Luiz Gonzaga Belluzzo - Artigos Carta Capital

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Luiz Gonzaga Belluzzo

Carta Capital

O passado não consegue passar

21/01/2010 17:43:44

Luiz Gonzaga Belluzzo

Em 17 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirmava


“que o desprezo e o desrespeito pelos Direitos Humanos resultaram em atos bárbaros
que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os
homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do
temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homen comum. É
essencial que os Direitos Humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o
homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a
opressão”.

Em 2008, escrevi um artigo para celebrar os 60 anos da Declaração. Naquela ocasião,


percebi claramente que os fantasmas dos traumas nascidos das experiências totalitárias
dos anos 30 assombram suas linhas e entrelinhas. Por isso, a declaração afirmava que
toda a pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até
que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público,
no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.
Ninguem poderá ser inculpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não
constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta
pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato
delituoso.

É considerada intolerável a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar
ou na sua correspondência, (e, atenção!) nem a ataques à sua honra e reputação. Toda
pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. O cidadão
(note o leitor, o cidadão) tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações por quaisquer meios e independente de fronteiras.

Todos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistências especiais. Todas as
crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. A
instrução é um direito de todos e ela será gratuita pelo menos nos graus elementares e
fundamentais. O artigo 17 é dedicado a Bush Filho: “Toda pessoa terá direito a uma
ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente
Declaração possam ser plenamente realizados”.

Na Europa dos séculos XIX e XX, a consciência dos direitos moveu a luta dos
subalternos e transformou o Estado numa instância de “totalização das relações sociais”.
Suas intervenções realizam a mediação entre as classes e entre os membros individuais
das diferentes classes. O avanço da “totalização das relações sociais” pode ser avaliado
de forma mais clara pelo grau de independência adquirido pelas instâncias do poder
público e da política diante do poder material da camada dominante. Os sitemas de
proteção aos Direitos Humanos nos países mais avançados da Europa assumem que há,
sim, contradição entre as exigências de impessoalidade e publicidade dos atos
praticados pela autoridade, regulados pela lei abstrata e universal e o exercício do poder
real pelas camadas economicamente mais poderosas.

A Declaração dos Direitos Humanos, na esteira do pensamento liberal e progressista dos


séculos XIX e XX, imaginou que a igualdade e a diferença seriam indissociáveis na
sociedade moderna e deveriam subsistir reconciliadas, sob as leis de um Estado Ético.
Esse Estado permitiria ao cidadão preservar sua diferença em relação aos outros e, ao
mesmo tempo, harmonizá-la entre si, manter a integridade do todo. Mas as
transformações econômicas das sociedades modernas suscitaram o bloqueio das
tentativas de impor o Estado Ético e reforçaram, na verdade, a fragmentação e o
individualismo agressivo. Assim, a “ética” contemporânea não é capaz de resistir à
degradação das propostas coletivas.

O século XXI completou uma década e o Brasil ainda não conseguiu acertar contas com
o passado. O passado não passa, lança suas sombras sobre o presente e projeta maus
agouros para o futuro. As reações à publicação do decreto dos Direitos Humanos
lançaram no ar os odores da famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade e
suas consequências funestas. Sob essas consignas – Deus, Família e Liberdade – os
beleguins da ditadura assassinaram religiosos, invadiram os lares de muitos brasileiros
que dissentiam, desarmados, aos atropelos da exceção. Para garantir a liberdade de
expressão degradaram (algumas) redações com censores de ornamentos culturais que
iam do grotesco ao obsceno.

Digo acertar as contas sem ranço revanchista nem propósitos de revigorar a Lei de
Talião, mas de abrir aos brasileiros de todas as gerações as portas da verdade. Não
entenda o leitor que vamos encontrá-la apenas cavoucando as masmorras da ditadura,
indagando os paus de arara, ou até mesmo desencavando e publicando os arquivos da
repressão política (vou insistir: da repressão política). A verdade vai chegar a nós na
discussão, sem receios nem interdições, acerca das razões e das circunstâncias históricas
e sociais que levaram o País a sucumbir diante da inescrupulosa e oportunista violação
dos princípios da vida democrática e do Estado de Direito.
Nos anos 60, às vésperas do famigerado golpe de Estado de 1964, surgiu um slogan
premonitório: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Gordon era o
embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Conspirava abertamente com as “forças
democráticas” nativas, aquelas que estão permanentemente arquitetando a supressão da
democracia. Da conspiração participavam naturalmente os homens de bem, os mesmos
que hoje se arvoram em defensores intransigentes da democracia e do Estado de Direito.
Nada mais inconveniente para essa turma do que uma Comissão da Verdade.

O silêncio devotado e cúmplice de muitos protagonistas dos anos de escuridão denuncia


a falsidade de suas juras de amor pelos princípios que dizem defender. Não por acaso,
depois de 25 anos de vida democrática, as garantias individuais somadas aos direitos
econômicos ainda sofrem os ataques e achaques das forças do poder real e mal
conseguem sair dos códigos para ganhar vida do povaréu, cotidianamente massacrado
pelos abusos dos senhoritos da “ordem” e seus sequazes. Os mais furiosos se
apresentam como “humanos direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos
humanos”. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna
sociedade capitalista de massas, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições
que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A
possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria
o Gulag e o Holocausto ensaios de amadores. 

Assassinato de reputação

04/12/2009 16:12:24

Luiz Gonzaga Belluzzo

O artigo de Cesar Benjamim sobre o filme Lula, o Filho do Brasil, publicado na Folha
de S. Paulo em 27 de novembro, caiu na armadilha de transformar a crítica política em
character assassination. 

O leitor há de concordar que a prática não escasseia nas mídias contemporâneas. Seja
como for, o artigo de Benjamim suscitou uma controvérsia que envolveu o “grande
jornalismo” e seus “inimigos” abrigados nos blogs da internet. Com exceções honrosas,
graças aos céus não tão raras, o debate foi dominado por argumentos ad hominem, num
jogo de espelhos em que os defensores do bom jornalismo começam por violar as regras
recomendadas ao adversário ou “inimigo”. Em alguns cantos e tantos recantos,
Benjamim foi massacrado impiedosamente, numa retorsão que só abastarda o padrão já
miserável em que se desenvolveu a contenda. 

Talvez Paul Virilio, importante pensador francês da atualidade, tenha exagerado ao


observar que, na moderna sociedade capitalista de massas, a mídia é o único poder que
tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo que sustenta a
pretensão de não se submeter a nenhuma outra. Digo talvez, porque essa convicção
tornou-se ainda mais agressiva e generalizada com o desenvolvimento das novas mídias,
espaço em que o anonimato e a inexistência de regras criaram uma “sociedade”
hobbesiana. Nela, a loucura do sonho iluminista da liberdade guiada pela razão é
superada pela realidade do pesadelo da liberdade da loucura, uma aventura da desrazão.
A defesa da liberdade de opinião e de informação se debilita quando é confundida com
o exercício do poder econômico e político das grandes empresas de comunicação.
Mesmo numa sociedade encantada pela “inversão” de significados e pelo ilusionismo da
escolha do indivíduo-consumidor, não escapa ao cidadão comum que a “construção” da
notícia, a censura da opinião alheia e a intimidação do opositor ou dissidente disputam
o laurel de inimigas das liberdades. Essa tirania exercida sobre o indivíduo em nome da
liberdade, não justifica a barbárie da liberdade exercida sob inspiração da tirania
individualista. Este, diga-se, é o sentido profundo da pretensão apontada por Virilio, de
não só se alçar acima da lei, mas de fazer e executar as suas próprias leis. 

Ao tratar do assunto, Pierre Bourdieu lança uma pergunta incômoda: quem é o sujeito
do discurso midiático, dos grandes e dos pequenos? Ele responde: os jornalistas não são
entidades abstratas, mas cidadãos de carne e osso, com formações e níveis de instrução
diferentes, opiniões distintas e gostos peculiares. Ainda assim, na mídia contemporânea,
as produções jornalísticas são cada vez mais homogêneas tangidas pela concorrência e
pela busca incessante de publicar diariamente o que “não é cotidiano”. A contradição
torna-se aguda: de um lado, a liberdade de expressão exige um sistema legal de
garantias, cuidadoso em seus procedimentos, de outra parte, a concorrência desenfreada
pelo controle da informação estimula a formação de correntes de opinião que
propugnam por formas primitivas de punição e de vingança.

Bourdieu cuidou de analisar os arroubos moralistas de âncoras, comentaristas e outros


bichos de menor porte. “Gide dizia que com bons sentimentos se faz má literatura. Mas
com bons sentimentos se faz audiência. É preciso refletir sobre o moralismo das gentes
midiáticas: frequentemente cínicos, eles propugnam por um conformismo moral
absolutamente prodigioso. Os apresentadores de jornal televisivo, os animadores de
debate, os comentaristas esportivos se transformaram em pequenos diretores de
consciência, porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno burguesa. Dizem o que é
preciso pensar sobre os problemas da sociedade.” 

Hoje, com a internet e seus blogueiros, há uma inflação de diretores de consciência,


fenômeno provavelmente mais perigoso do que a inflação de ativos tóxicos alimentada
pelos créditos subprime. Quase sempre é em nome do bem que se faz o pior, diz o
filósofo Comte-Sponville. “Se Bush e Bin Laden não estivessem convencidos de
representar o Bem, ou a própria vontade de Deus, suas decisões políticas não teriam
sido tão trágicas.” 

É tragicamente curioso que os valores mais caros ao projeto do Iluminismo, as liberdade


de expressão e de opinião, tenham se transformado em instrumentos destinados a conter
e cercear o avanço da autonomia e da liberdade dos indivíduos. O uso e o abuso do
assassinato de caráter colocam em risco o sistema de garantias destinado a proteger o
cidadão das arbitrariedades do poder, seja ele público ou privado. •

A reforma financeira internacional

09/10/2009 13:36:38
Luiz Gonzaga Belluzzo

O tema do momento é a reforma da arquitetura financeira internacional, ou coisa


assemelhada. São cada vez mais frequentes os rumores sobre a possibilidade de
abandono progressivo do dólar em favor de outras moedas no faturamento das
transações internacionais e na denominação de contratos. 

O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Khan, propõe


a transformação do FMI em um emprestador de última instância, uma espécie de banco
central dos bancos centrais. O futuro chegou ao passado. Keynes, o delegado da
Inglaterra em Bretton Woods, propôs a Clearing Union, uma espécie de banco central
dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor,
destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios
privados seriam realizados nas moedas nacionais, que, por sua vez, estariam referidas ao
bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e
superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos
centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union. 

O plano apresentado por Keynes em Bretton Woods buscava uma distribuição mais
equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários
e superavitários. Isto significava, na verdade – dentro das condicionalidades
estabelecidas – facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países
superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e
manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais, que o
controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem
econômica mundial”.

Mas o espaço econômico internacional, na posteridade da Segunda Guerra Mundial, foi


construído a partir do projeto de integração entre as economias nacionais proposto pelo
Estado americano e pela hegemonia de sua moeda. A supremacia do dólar impulsionou
a transnacionalização da grande empresa, a ampliação e a reorientação dos fluxos de
comércio, ao promover o investimento “cruzado” nos mercados dos países
industrializados e suscitar a redistribuição geográfica da produção manufatureira para a
periferia. 

A “metástase” da grande empresa ganhou força redobrada na década dos 90 e, a partir


daí, concentrou o investimento industrial na China e na Ásia emergente. A
“competitividade” chinesa é crescente tanto nos mercados menos qualificados quanto,
em ritmo acelerado, nos de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande
receptor do investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo,
ganhou participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos
Estados Unidos e Europa. 

A redistribuição espacial da indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios nos


balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu o
avanço da chamada globalização financeira. Os EUA foram capazes de atrair capitais
para cobrir os déficits em conta corrente e, assim, mantiveram taxas de juro baixas,
dólar valorizado e importações baratas e calmaria inflacionária. A ampliação dos
déficits em conta corrente dos EUA teve como contrapartida a rápida acumulação de
reservas nos países emergentes – nos manufatureiros e nos exportadores de
commodities, aí incluídos os petroleiros. Utilizadas na compra de ativos americanos, as
reservas dos “poupadores” ensejaram a espantosa expansão do crédito, fomentaram a
inflação de ativos e estimularam o consumo das famílias. A virtude da temperança
incitou os destemperos da finança que levaram à crise.

A crise financeira tem relações umbilicais com os déficits e superávits crônicos. Os


partidários dos desajustes entre poupança e investimento repartem a responsabilidade
pelos desequilíbrios globais entre dois vícios simétricos: os americanos poupam menos
do que investem; os superavitários (sobretudo, os asiáticos – não só a China, mas
também o Japão e outros menos votados) investem menos do que poupam. Os que
acusam os superavitários de manipular a taxa de câmbio sublinham a importância das
estratégias de crescimento dos parceiros emergentes, impulsionadas pela expansão das
exportações, ancoradas nas moedas subvalorizadas. 

Conservadores ilustrados, como Martin Feldstein, propõem que a reforma contemple a


redução do papel do dólar como moeda de reserva, sua substituição progressiva por um
sistema plurimonetário. Recomenda, para tanto, ressuscitar a proposta europeia da
chamada “conta de substituição”. Discutida na reunião do FMI em 1979, a proposta foi
rejeitada por Paul Volker, que reafirmou o poder da moeda americana, ao impor ao
mundo uma elevação sem precedentes da taxa de juro. Tal façanha unilateral está hoje
fora do alcance dos EUA.

Saudades das quarteladas

02/10/2009 15:06:17

Luiz Gonzaga Belluzzo

No episódio hondurenho, as classes dominadoras e bem falantes do Brasil varonil


retiraram seus coturnos do armário e enfiaram a botas num pântano semântico. As
tormentosas trapalhadas com o significado das palavras marcaram os comentários,
pronunciamentos e conexos a respeito “da remoção compulsória e involuntária de
Manuel Zelaya do exercício das funções presidenciais”. Aqui me arrisco a mimetizar as
cautelas nativas que perambulam entre o “quase golpe”, golpinho, governo de fato,
governo provisório. 

Essas são ape nas algumas, entre tantas teratologias semânticas banhadas no caldo da
hipocrisia genética e generalizada da turma do andar de cima, outrora chamada, nas
colunas sociais, de anedota e champanhota. 

Desde a transição democrática de meados dos anos 80, esse povo anseia pelo desfecho
da desperança sem mudança ou, como dizia um crítico de Adorno, “a realiza ção das
esperanças do passado”. Assim os senhores da terra concebem o progresso. A história
relata que as eleições diretas sucumbiram diante das artimanhas e salamaleques do
colégio eleitoral. A nau de Ulisses encalhou nas praias do transformismo à brasileira e
os náufragos do regime militar saltaram alegremente a bordo. O episódio hondurenho
mostra que, ainda hoje, os quase afogados navegam à solta, despojados das culpas que
simulavam depois da derrocada do regime autoritário, fórmula em que apostavam para
consolidar a democracia brasileira. Há que compreender, portanto, os pruridos
linguísticos nascidos, provavelmente, da negação coletiva e inconsciente da conivência
com as tropas que pisotearam a democracia e o Estado de Direito, desde a quartelada
levada a cabo naquele distante, mas inesquecível 1º de abril de 1964.

Revisitadas as raízes dos engasgos semânticos, convém retornar aos fatos ocorridos na
República de Honduras. Em sua irritante persistência, os fatos relatam que Zelaya, alta
madrugada, foi retirado da cama, enfiado no avião e despachado para fora do país. Em
qualquer região civilizada do globo habitada por cidadãos acostumados ao exercício da
democracia e ao respeito às regras do Estado de Direito, tal cometimento dos gorilas de
Honduras, fardados ou não, seria chamado de golpe. 

Há quem argumente, como justificativa para suas vacilações e tremeliques, que Zelaya
preparava um plebiscito para legitimar sua reeleição, prática expressamente proibida,
em cláusula pétrea, pela Constituição. É certo que a Constituição de Honduras não
permite tais manobras. Mas também é certo que ela apresenta os remédios legais e não
violentos para a destituição da autoridade seduzida pelo continuísmo.

O professor Pedro Estevam Serrano, da PUC de São Paulo, em artigo publicado na


Folha de S.Paulo mostra que “a alínea 6 do artigo 42 e diversos outros dispositivos da
Constituição hondurenha determinam que a perda de cidadania deve ser aplicada em
processo judicial contencioso e com direito a ampla defesa, observado o devido
processo legal, o que não aconteceu de modo algum no procedimento adotado pelos
golpistas e seus apoiadores.” Ademais, continua o professor de Direito, “o artigo 102 da
Constituição estabelece expressamente que nenhum hondurenho pode ser expatriado
nem entregue pelas autoridades a um Estado estrangeiro. Ter detido Zelaya ainda de
pijama e tê-lo posto para fora do país de imediato atenta gravemente contra tal
dispositivo”. 

A maioria – comentaristas, articulistas e assemelhados – esmerou-se em escancarar suas


reticências ou dúvidas lancinantes diante da natureza notoriamente truculenta e ilegal
das ações dos beleguins do senhor Micheletti. Resta-nos o conforto de celebrar as
honrosas exceções. Entre elas, raríssimas, está artigo do jornalista Elio Gaspari, de 30
de setembro, quarta-feira. Gaspari cuida dos acontecimentos hondurenhos com a
simplicidade e a clareza dignas dos melhores momentos da crítica política e do
jornalismo independente.
A posição da diplomacia brasileira fundou-se nos princípios e práticas consagrados no
“nomos da terra”. Cuidou de respeitar as instituições internacionais e, sobretudo, o
direito de asilo, a despeito das indisciplinas e inconveniências do comportamento do
abrigado.

O discurso e a prática

18/09/2009 14:03:33

Luiz Gonzaga Belluzzo


O discurso do presidente Obama sobre a nova regulamentação financeira foi recebido
entre sorrisos de Mona Lisa e carantonhas aborrecidas: na plateia figuravam ilustres
personagens de Wall Street. Os figurões da finança pareciam apreensivos diante das
ameaças de redução no valor dos bônus que ainda esperam receber como
reconhecimento por seu estrondoso sucesso pessoal e rotundo fracasso institucional. 

Muita gente desconfia, no entanto, que o presidente dos Estados Unidos vá sucumbir
diante das resistências e humores dos senhores da finança. É cada vez maior o
contingente de analistas céticos em relação à disposição de Obama de impor aos
mercados regras prudenciais e medidas capazes de reverter o impulso de buscar
inovações capazes de satisfazer o apetite feroz por ganhos maiores. 

Nos anos 90, os democratas de Clinton patrocinaram a extinção das regras que
determinavam a separação das funções entre os bancos comerciais, de investimento e
instituições encarregadas do crédito hipotecário, imposta pelo Glass-Steagall Act na
crise bancária dos anos 30. A rápida ampliação dos mercados de capitais, ao promover a
securitização dos créditos, não só abriu espaço para as trampolinagens do subprime,
como também estimulou as operações de tesouraria por parte dos bancos ou quase-
bancos. 

Esses novos personagens do mundo financeiro, sob os auspícios de estruturas


alavancadas, passaram a carregar securities emitidas por outras instituições financeiras.
Como informa o relatório do especialista inglês Adair Turner, tais práticas
determinaram um crescimento desproporcional das dívidas “no interior” do sistema
financeiro entre bancos comerciais, bancos de investimento e hedge funds. A crescente
interdependência entre os balanços das instituições, o leitor há de perceber, foi a receita
perfeita para a tragédia sistêmica.

O ímpeto da concorrência levou o sistema bancário internacional à incessante violação


de todas as normas e à velha e fatal combinação entre euforia, má avaliação dos
créditos, concentração setorial de ativos e superalavancagem. Para juntar infâmia à
injúria, num momento em que se estreitavam os spreads entre as taxas de papéis “sem
risco” do governo e os rendimentos dos títulos mais arriscados, a “securitização”
evoluiu para a criação de produtos sintéticos, ou seja, para a emissão de securities
derivadas de blocos de securities. 

O economista inglês William Buiter, ex-membro do Comitê de Política Monetária do


Banco da Inglaterra, começa por suspeitar do compromisso com as reformas por parte
dos encarregados da tarefa. Figuras como o chefe da Assessoria Econômica do
presidente, Lawrence Summers, e o secretário do Tesouro, Timothy Geithner não só
estavam entre aqueles “que fracassaram em reconhecer as distorções que levaram à
crise, como na verdade, foram responsáveis pela criação de muitas dessas distorções”. 

O rol de equívocos promíscuos cometidos por Geithner e Summers em sua função de


autoridades reguladoras é impressionante. Entre tantas proezas figura com aplomb
afirmação de Geithner em 15 de março de 2007: “As inovações financeiras, como os
derivativos, melhoraram a capacidade de avaliar e administrar os riscos”. Para Geithner,
“as maiores instituições estavam em geral mais fortes no que diz respeito aos
requerimentos de capital em relação ao risco”. O palpite infeliz foi pronunciado em
2007, quando a crise financeira já mostrava os dentes e afiava as garras. Dois dias
depois, entrevistas e gravações mostram que Geithner trabalhou nos bastidores para
reduzir o capital dos bancos.

A crise veio brava e os amigos de Geithner e Summers foram pegos no contrapé,


superalavancados, com capital e reservas insuficientes para contrabalançar as perdas.
Um tanto tardiamente os sábios concluíram que estavam diante de uma “crise
sistêmica”. 

Não é fácil definir com precisão o que é uma crise sistêmica, mas é possível reconhecer
o fenômeno quando está ocorrendo. Numa pesquisa exaustiva, os economistas De Bandt
e Hartmann afirmam que uma crise sistêmica ocorre quando “um número considerável
de instituições financeiras ou mercados afeta o bom funcionamento do sistema de
crédito, ou seja, afeta negativamente a eficiência da transformação da poupança em
investimento produtivo”. Os dois economistas estão falando de uma contração do
crédito, um credit crunch, que se esparramou por toda a economia e disparou uma crise
no setor dito “real”, sobretudo no consumo das famílias, no investimento produtivo e no
emprego. Sem tirar nem pôr, foi isso o que ocorreu sob as barbas dos economistas de
Obama, senão sob seu patrocínio entusiasmado.

Plano Real, 15 anos

03/07/2009 17:38:57

Luiz Gonzaga Belluzzo

Em sua concepção essencial, o Plano Real seguiu o método básico utilizado para dar
fim à maioria das “grandes inflações” do século XX: recuperação da confiança na
moeda nacional pela garantia de seu valor externo. A “âncora” foi, como é amplamente
reconhecido, a estabilização da taxa de câmbio nominal, garantida por financiamento
em moeda estrangeira e/ou por um montante de reservas capaz de desestimular a
especulação contra a paridade escolhida. Isso foi possível graças à deflação da riqueza
mobiliária e imobiliária observada já no fim de 1989 nos mercados globalizados. A
recessão americana, que se prolongou até meados de 1992, e o “estouro” da bolha
especulativa japonesa foram fatores que exigiram grande lassidão das políticas
monetárias. O propósito era tornar possível a digestão dos desequilíbrios correntes e do
balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias, atingidos pelo colapso do
exuberante surto de valorização de ativos que se seguiu à intervenção salvadora de
1987. 

No momento da reforma monetária, as reservas brasileiras eram superiores a 40 bilhões


de dólares, correspondente a dezoito meses de importação, mais do que suficiente para
amparar a fixação do câmbio como instrumento da política de estabilização. A partir
daí, até a crise de 1998/1999, as reservas chegariam a quase o dobro do último valor,
sustentando e renovando a aposta na ancoragem cambial. No momento do Plano, o
superávit comercial era de 13,3 bilhões de dólares e o déficit em transações correntes,
de apenas 592 milhões de dólares.

Na partida do Real, a situação financeira do setor público brasileiro era invejável, uma
vantagem com que nenhum dos planos anteriores pôde contar. Portanto, o ajuste fiscal e
de endividamento público foi feito antes. Em 1993, os resultados primário e operacional
eram superavitários e a dívida líquida total e mobiliária, modesta em proporção ao PIB. 

Os responsáveis pelo programa de estabilização brasileiro escolheram um regime de


conversibilidade limitada, com taxa de câmbio semifixa. Nos primeiros meses do
programa, as autoridades permitiram uma forte valorização da taxa nominal de câmbio,
visando a uma convergência mais rápida entre a taxa de inflação doméstica e a que
prevalecia nos Estados Unidos, o que de fato ocorreu. Após uma aceleração
inflacionária motivada pela “corrida” de reajustes para chegar “alinhado” no momento
da anunciada conversão à nova moeda, a inflação despenca em julho de 1994, chegando
a registrar em dezembro menos de 1% no índice geral de preços. 

No entanto, a mesma valorização cambial que amparou a desinflação rápida ampliou o


componente que, na formação da taxa de juros, se correlaciona com a expectativa de
desvalorização do câmbio. O governo procurou regular essa expectativa definindo uma
política de ajuste gradual da taxa de câmbio, o que acabou por consolidar na formação
da taxa de juros o nível nominal aproximado de 7% ao ano, valor correspondente à
desvalorização projetada do câmbio. A taxa de juros básica passou a ter um piso
formado pela agregação da expectativa de desvalorização à taxa de juros internacional
(como a taxa norte-americana, em torno de 6%) e ao spread de risco cobrado a
tomadores do País ( o “risco Brasil”), o que totalizava algo como 22% ao ano.

A combinação entre câmbio valorizado e juros altos, mantida a ferro e fogo, lançou a
economia brasileira numa trajetória de crescimento medíocre. O crescimento lento ainda
sofreria fortes oscilações provocadas por uma sucessão de crises que se abateram sobre
as economias “emergentes”. A estabilização foi acompanhada de um crescimento
bastante rápido do passivo externo da economia, além da expansão vertiginosa da dívida
pública. 

Em 1998, após a crise da Rússia e depois do acordo formalizado com o FMI em


dezembro, os mercados financeiros externos e internos deram mostras de
inconformidade com a situação no Brasil. Já era generalizada a percepção de que o
regime cambial e monetário gerava endogenamente um déficit externo não financiável –
4,4% do PIB em 1998 –, e um desequilíbrio público de 8% do PIB, no conceito
nominal. A massa de ativos financeiros domésticos líquidos, inflados pela elevada taxa
interna de juros, crescia rapidamente até atingir um nível perigoso em relação ao
volume de reservas externas. No auge da crise, as reservas foram consumidas pelos
detentores de riqueza que buscavam converter seus haveres líquidos em moeda
estrangeira.

Delícias do privatismo

01/07/2009 17:48:05

Luiz Gonzaga Belluzzo


Em homenagem a seu amigo José Aristodemo Pinotti, que faleceu em 1º de julho,
Luiz Gonzaga Belluzzo republica um artigo que fez para o médico e políco em
outubro de 1997, à época da votação de um projeto de lei que regulamentava a ação
dos planos de saúde.

"Foi comovente a luta do Deputado José Aristodemo Pinotti para impedir que rolo
compressor dos bancos das empresas e do governo aprovassem a abominável lei que
regulamenta os chamados planos de saúde. Tão comovente quanto repulsiva a cena em
que o outros deputados comemoravam a vitória dos mercadores da desgraça humana. 

A grande imprensa saudou a aprovação da lei como uma vitória dos usuários. Mas a
verdade é que, nas palavras do deputado Pinotti, “o projeto exclui tudo o que é caro nos
tratamento das doenças mais graves”. Ou seja, a saúde do cidadão está entregue aos
critérios do lucro privado. 

Há quem diga que esta é a conquista suprema da raça humana e tudo o que existe ou
está para existir deve sucumbir ás normas do ganho monetário. Alguns brasileiros, da
classe média para cima vêm tentando transformar este axioma em orientação para a vida
prática. Não é de hoje que tentam safar a onça entregando a sua saúde e de seus filhos à
iniciativa dos privados. Não apenas a saúde mas também a educação, a segurança, a
aposentadoria, etc.. 

É claro que o repúdio desta gente à saúde pública , à escola pública, à segurança pública
é um gesto de diferenciação, de distinção em relação aos de baixo , uma espécie de grife
que os identifica como consumidores de bom gosto em oposição à rafaméia que se veste
com andrajos sem qualidade. A grande vantagem desta atitude é que, de quebra, fica
justificado o descumprimento das obrigações fiscais, ensejando esta espécie de
anarquismo de remediados. Há fortes evidências, neste momento, de que, salvo para os
de cima, a experiência foi desastrosa. 

Os mitos em que apreendeu a acreditar impedem o cidadão remediado de avaliar as


verdadeiras razões de seus percalços. Para ele, o indivíduo é o único responsável por
suas desditas. Se quebrou a cara é porque não teve competência para fazer melhor, não
soube vencer os competidores, nem ultrapassar as suas circunstâncias. O seu
individualismo é tão visceral, tão patológico e tão tragicamente cômico, que é tambem
essencial para a reprodução de uma sociedade que funda a sua justificação moral na
“sobrevivência do mais forte”. 

Sobrevivem realmente os mais fortes, mas os mais fortes são mais fortes há muito
tempo e o resultado da luta competitiva só pode ser a dizimação dos incautos que se
julgavam aptos a concorrer. É verdade que alguns conseguem se agarrar à espaçonave
que arranca em alta velocidade. Mas a maioria se estatela no chão duro. 

Os planos de saúde, a escola privada, estes pesadelos não foram ainda suficientes para
ensinar às vitimas do individualismo as lições da vida. Faltam ainda os ensinamentos da
previdência privada. Mas ele não tardarão. Assim, desde as crianças até os velhos,
passando pelos de idade adulta, todos poderão provar das delícias do privatismo."
Dólar furado

05/06/2009 19:15:00

Luiz Gonzaga Belluzzo

Na quarta-feira 3, em depoimento na Comissão de Orçamento do Congresso dos


Estados Unidos, o presidente do Fed, Ben Bernanke, augurou um futuro nada
alvissareiro para a trajetória da dívida pública americana. Os prognósticos apontam para
uma relação dívida/PIB de 80%. A cifra aproxima os súditos de Tio Sam dos padrões
italianos e os afasta das recomendações de Maastricht. Idem para o déficit do governo,
que parece namorar cifras de Terceiro Mundo no início do Terceiro Milênio. 

No afã de conter o apodrecimento continuado dos ativos privados nas carteiras das
instituições financeiras – bancos, criaturas assemelhadas e híbridas –, o Fed escancarou
as comportas de seu balanço para acolher o lixo tóxico. Simultaneamente, a recessão e
as medidas anticíclicas – a elevação do gasto e a redução das receitas – cuidaram de
cavar um buraco ainda mais fundo nas finanças do governo federal e, pior, destroçaram
o Erário dos estados da federação.

Em um primeiro momento, a fuga para a liquidez permitiu que o Tesouro inundasse o


mercado de títulos, demandados avidamente pelas instituições financeiras e pelos ditos
investidores, a despeito da mesquinhez dos rendimentos. Isso abriu caminho para outras
ações de salvamento, como garantias, provimento de liquidez e capitalização de bancos.
Providência ainda mais ousada por parte das autoridades monetárias foi a intervenção
nos mercados monetários, lastreados em commercial papers praticamente destruídos
pela crise na primeira hora. 

A incisiva atuação do Fed como comprador de última instância sustentou os mercados


em pânico e ajudou a ressuscitar o interbancário. A crise financeira, em seu estágio mais
agudo, promoveu a indiferenciação entre os ativos, demonstrando que em caso de
estresse não se sustenta a hipótese de inexistência de correlação entre os preços dos
ativos. 

O dólar teve boa vida nos primeiros meses de crise. A moeda norte-americana
apresentou forte valorização diante do euro e do iene, para não falar das moedas dos
ditos emergentes, todas atacadas pelo que parecia ser mais um episódio de fuga para a
qualidade. O rublo, por exemplo, despencou, sugando uma fração expressiva das
robustas reservas do governo russo, que, diga-se, queimou sua grana em moeda forte na
tentativa de impedir a derrocada do câmbio.
Menos dramática foi a desvalorização do real. Falo isso sem desrespeito aos que se
lançaram na aventura do Target Forward, arataca financeira engendrada por bancos
espertos e clientes nem tanto. Conhecida no popular por “pague dois e leve um”, a
trapalhada suscitou pressão sobre os mercados de crédito em um momento de
desconfiança generalizada, o que rebateu sobre o câmbio e levou o dólar às imediações
da taxa de R$ 2,40.

Mas a “relativa normalização” dos mercados financeiros, anunciada pela elevação da


taxa de juros dos títulos de 10 anos do Tesouro dos Estados Unidos, foi acompanhada
do progressivo restabelecimento dos preços dos ativos de acordo com a hierarquia
risco/rendimento. Nesse momento, o dólar reiniciou sua escalada de desvalorização,
impulsionada pelas expectativas negativas a respeito da evolução da dívida pública e do
déficit fiscal dos EUA. 

Nesse ambiente, a política monetária do Banco Central do Brasil promoveu uma


redução cautelosa da taxa Selic, mantendo um diferencial elevado diante dos juros
externos. Henrique Meirelles defende a atuação do BC em nome da política de metas de
inflação e sugere que a taxa de juros deve ser administrada em razão desse objetivo e
nunca para apaziguar os movimentos da taxa de câmbio. De fato, cabe à política
monetária fixar o ponto focal que permite aos agentes coordenar suas antecipações,
enquanto estabelecem seus planos de ação. 

Mas nosso presidente do BC não ignora que a taxa de juro e a taxa de câmbio
exprimem, em sua interação, a variação dos preços dos ativos denominados em moedas
distintas. Em uma economia aberta, com livre entrada e saída de capitais, as interações
entre câmbio e juro determinam alterações no valor dos estoques de riqueza
denominados em moedas distintas. Sua movimentação pode resultar em alinhamentos
indesejáveis da taxa de câmbio real, sobretudo quando as expectativas dos investidores
antecipam cenários muito favoráveis para o balanço de pagamentos, como é o caso do
Brasil do pré-sal.

Era uma vez no Oeste

27/05/2009 12:19:18

Luiz Gonzaga Belluzzo

Na assim chamada Era Dourada – entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos
anos 70 do século passado – conviveram em harmonia o crescimento rápido, a baixa
inflação, reduzidas taxas de desemprego, aumento dos salários reais e integração das
massas aos padrões modernos de consumo e convivência.

Na década dos 70, o jogo virou. Entrou em campo a funesta combinação entre inflação e
baixo crescimento. O bloco ideológico que se opunha às políticas “intervencionistas” e
ao Estado do Bem-Estar tratou de atribuir o desarranjo à decrepitude das políticas e das
práticas que buscavam controlar a instabilidade do capitalismo e impedir que o destino
dos cidadãos ficasse à mercê das incertezas do mercado. Depois de 30 anos de
desempenho brilhante – as economias capitalistas emitiam sinais de fadiga estrutural. A
Golden Age agonizava.

No limiar dos anos 80, a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald
Reagan nos Estados Unidos refletiu o desconforto das classes abastadas e médias com a
estagflação. As cargas tributárias elevadas, o excesso de regulamentação e o poder dos
sindicatos eram, sem dúvida, os responsáveis pelo mau desempenho das economias.

A famosa Curva de Laffer garantia que a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos
e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto, reduzia a
oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As práticas neocorporativistas, diziam os
ideólogos do neoliberalismo, criavam sérias deformações “microeconômicas”, ao
promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços – nas taxas de câmbio,
nos juros e nas tarifas.

Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou de proteger segmentos


empresariais ameaçados pela concorrência, os governos distorciam o sistema de preços
e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e insubstituível função de produzir
informações para os agentes econômicos. Tal violação das regras de ouro dos mercados
competitivos culminava na disseminação da ineficiência e na multiplicação dos grupos
“predadores de renda”, que se encastelavam nos espaços criados pela prodigalidade
financeira do Estado.

Ainda nos anos 50, tempo de esplendor e glória das políticas keynesianas e do Estado de
Bem-Estar, o libertarianismo de Friedrich Hayek e o monetarismo de Milton Friedman
formaram a comissão de frente da ofensiva contra “os inimigos da liberdade
econômica”. Para Hayek, o mercado é um processo de troca e de acumulação de
informações e não um ambiente estático dotado de forças que o reconduzem ao
equilíbrio. As intervenções do Estado são nefastas, pois só o processo de mercado torna
possível a inovação nos métodos de produção e de organização, a partir do continuado
fluxo de informações que surge da interação entre os indivíduos livres.

O importante nessa concepção é a ênfase na capacidade do mercado livre de empecilhos


de mobilizar e fluidificar os recursos individuais. O corpo de propostas “reformistas”
rotuladas de neoliberais está, portanto, comprometido com a ideia de que é preciso
liberar as forças criativas do mercado. A renovação do capitalismo, em gestação desde o
crepúsculo da era keynesiana, tinha o propósito de abrir caminho para a preeminência
das relações entre indivíduos livres, dispostos aos objetivos do ganho monetário. Esta é
a sociedade dos neoliberais.

Mas, na verdade, as reformas liberalizantes, empreendidas desde o crepúsculo dos anos


70 do século passado, trataram de mobilizar os recursos políticos e financeiros dos
Estados nacionais para fortalecer os respectivos sistemas empresariais envolvidos na
concorrência global. O Estado não saiu da cena, apenas mudou de agenda. Em sua obra
maior, Civilização Material e Capitalismo, o historiador Fernand Braudel escreveu: “O
erro mais grave (dos economistas) é sustentar que o capitalismo é um sistema
econômico... Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são companheiros
inseparáveis, ontem como hoje”.

Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar


padrões de governança agressivamente competitivos. Entre outros procedimentos, as
empresas subordinaram seu desempenho econômico à “criação de valor” na esfera
financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. Aliados aos
administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o
exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitaram um
individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de reengenharia
administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custos.

As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes


mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com
centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações
comerciais, industriais e de serviços em geral. A cartilha neoliberal pretendia nos
ensinar que a globalização nasceu de uma espantosa revolução tecnológica capaz de
aproximar o homem do momento em que vai se livrar da maldição do trabalho e gozar
dos encantos da vida cosmopolita. A microeletrônica, a informática, a automação dos
processos industriais, etc. prometem nos libertar das limitações impostas pelo espaço e
pelo tempo. O indivíduo livre pode trabalhar em casa e se tornar, além de patrão de si
mesmo, um partícipe da prosperidade universal. A globalização, associando tecnologia
e transformação das formas de trabalho, estaria realizando essa maravilhosa promessa
da modernidade.

Mas a realidade da globalização neoliberal foi outra. A individualização das relações


trabalhistas promoveu a intensificação do ritmo de trabalho, conforme estudo recente da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e de outras instituições que lidam com o
assunto. O trabalho intensificou-se, sobretudo, entre os que se tornaram independentes
das relações formais, os que negociam diariamente a venda de sua capacidade de
trabalho nos mercados livres.

Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram para
aumentar o poder das grandes corporações em suas relações com os empregados e
terceirizados. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e
promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um
obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento
da concorrência coexistiram com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os
cidadãos, no exercício da política democrática, exercitassem o direito de decidir sobre a
própria vida.

Os neorreformistas, na realidade, cuidaram de transferir os riscos para os indivíduos


dispersos, ao mesmo tempo que buscaram o Estado e sua força coletiva para limitar as
perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da
concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de
financeirização e concentração da riqueza e da renda como submeteu os cidadãos às
angústias da insegurança.

Os efeitos do acirramento da concorrência entre empresas e trabalhadores são


inequívocos: foram revertidas as tendências à maior igualdade observadas no período
que vai do final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70 – tanto no interior
das classes sociais quanto entre elas. Na era do capitalismo “turbinado” e
financeirizado, os frutos do crescimento concentraram-se nas mãos dos detentores de
carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os
demais, perduravam a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade
das novas ocupações, a exclusão social. 

O projeto da autonomia do indivíduo está inscrito no pórtico da modernidade. Significa


a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e do respeito ao
outro. Opõe-se à submissão aos poderes – públicos e privados – que o cidadão não
controla. A disseminação das formas mais agressivas de concorrência encontrou, até
agora, pouca resistência em seu incessante trabalho de reduzir os “conteúdos” da vida
humana às relações dominadas pela expansão do valor de troca. Mas pode se tornar
intolerável para os indivíduos – ou para a maioria deles – a sensação de que o seu
cotidiano e seu destino são governados pelas tropas de uma “racionalização” sufocante,
destruidora do projeto de uma vida boa e decente. 

O rali dos trouxas?

15/05/2009 15:09:19

Luiz Gonzaga Belluzzo

Diante do frenesi que ora turbina as bolsas, as moedas dos emergentes e as


commodities, não faltam prognósticos que anunciam o fim da crise. Outros falam, de
forma desdenhosa e pessimista, do rali dos trouxas, episódios de euforia que, logo ali,
na próxima esquina, serão tragados pelo desempenho da economia real. 

A reputação das previsões econômicas e de seus autores mais conhecidos, os


economistas, está nos calcanhares. Mas, a despeito de seus desacertos recorrentes, as
previsões são inevitáveis. Os práticos e soi-disant teóricos da ciência triste estão
condenados a imaginar o futuro. 

Assim, devo arriscar a pele. Prudentemente, começo pelo passado: depois do colapso
financeiro deflagrado pela quebra do Lehman Brothers, os preços dos ativos privados
foram atropelados pelos mercados em pânico, na busca impossível da desalavancagem
coletiva. Vendedores em fúria e compradores em fuga prometiam uma deflação de
ativos digna da Grande Depressão dos anos 30. 

Nas crises, ocorre o colapso dos critérios de avaliação da riqueza que vinham
prevalecendo. As expectativas de longo prazo capitulam diante da incerteza e não é
mais possível precificar os ativos. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação
risco/rendimento sucumbem diante do medo do futuro. A obscuridade total paralisa as
decisões e nega os novos fluxos de gasto. Em tais circunstâncias, a tentativa de redução
do endividamento e dos gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do
reequilíbrio patrimonial é uma decisão “racional” do ponto de vista microeconômico,
mas danosa para o conjunto da economia, pois leva necessariamente à ulterior
deterioração dos balanços. É o paradoxo da “desalavancagem”. 

A riqueza concentra-se, agora, na posse do dinheiro em si (ou substitutos próximos, os


títulos da dívida pública). Essa corrida privada para as formas imaginárias, mas
socialmente incontornáveis do valor e da riqueza, vai afetar negativamente a valorização
e a reprodução da verdadeira riqueza social, ou seja, a demanda de ativos reprodutivos e
de trabalhadores. Ante a busca coletiva pela liquidez, os preços inflados dos direitos
sobre a riqueza real – ações e dívidas privadas – despencam e, não raro, arrastam os
preços de bens e serviços. 

As intervenções do Fed e do Tesouro conseguiram, aos trancos, barrancos e trombadas


legais, estancar a rápida deterioração das expectativas. Contrariando os augúrios mais
pessimistas, a ação das autoridades foi capaz de afetar positivamente as taxas do
interbancário e dos mercados monetários. A reação das autoridades, no entanto, foi
ineficaz para restabelecer a oferta de crédito no volume desejado e impotente para
reanimar o dispêndio das famílias e dos negócios. Empresas e consumidores trataram de
cortar os gastos (e, portanto, a demanda de crédito) para ajustar o endividamento
contraído no passado à renda que imaginam obter num ambiente de desaceleração da
economia e de queda do emprego. 

A economia real nos Estados Unidos e na Europa segue em sua trajetória recessiva.
Como bem observou o economista Willem Buiter, os otimistas vacilam na matemática
ao confundir a primeira derivada – negativa – com a segunda, positiva. Isso significa
que o produto e o emprego seguem em declínio, mas a uma velocidade menor. 

Diz Buiter, em seu habitual estilo de mestre-escola: “A reversão só ocorre quando a


primeira derivada muda de sinal. Na etapa atual do ciclo, estamos todos esperando uma
mudança de sinal da primeira derivada, de negativa para positiva. Há poucos indícios de
que isso tenha ocorrido ou esteja prestes a ocorrer em nível global, para não falar das
perspectivas das economias desenvolvidas”. 

Seja como for, as injeções de liquidez e os programas de compra de ativos podres não
fizeram pouco. Além de construir um piso para a deflação de ativos, as intervenções
suscitaram um movimento global “no interior” da circulação financeira. Trata-se, na
verdade, de um rearranjo dentro do estoque de riqueza que responde aos preços
esperados dos ativos por parte dos investidores que lograram vencer o colapso da
liquidez e, depois, capturar os benefícios oferecidos pelas autoridades. A realocação de
carteiras favoreceu as bolsas, as moedas dos emergentes e as commodities, enquanto o
dólar devolve a valorização observada nos primeiros meses de crise. 

Os movimentos observados no interior da circulação financeira, em si mesmos, não


prometem à economia global uma saída rápida da trajetória recessiva, mas indicam que
os mercados começam a se restabelecer da derrocada de 2008.

O mercado sumiu

01/04/2009 12:58:54

Luiz Gonzaga Belluzzo

O novo pacote de socorro do governo americano aos bancos encalacrados no lixo tóxico
foi, em um primeiro momento, recebido com entusiasmo pelos mercados. Já no dia
seguinte havia mais perplexidade do que entusiasmo entre observadores, analistas e
assemelhados. 

Martin Wolf, o lúcido conservador do Financial Times, confessou seus temores e


angústias com o andar da carruagem na terra das liberdades. Ele duvida da eficácia das
sucessivas e maciças injeções de grana nas instituições carregadas de ativos sem
possibilidade de transações, seja qual for o preço, entre os agentes privados. O
secretário do Tesouro, Timothy Geithner, emprestou glamour à operação de resgate, ao
lançar mão da ideia da parceria público-privada para a aquisição do dejeto abominável.
Mas, na dura realidade da vida financeira de nosso tempo, isso significa simplesmente
que o mercado para as transações com esses papéis desapareceu. É isso mesmo: o
mercado não existe, sumiu. 

Wolf compreendeu o enrosco: “O governo fornece virtualmente todo o financiamento e


arca com todo o risco, mas utiliza o setor privado para formar os preços dos ativos. Em
troca, os investidores privados obtêm recompensas – talvez, generosas – com base no
desempenho. Interpreto essa ideia como ‘esquema de alívio a fundos-abutre’. Mas vai
funcionar? Depende do significado de funcionar. Não se trata de um mecanismo real de
mercado, porque o governo subsidia os riscos. Os preços podem não ser baixos o
bastante para atrair os compradores ou altos para satisfazer os vendedores”.

O Tesouro dos Estados Unidos e o Federal Reserve tentam ressuscitar o cadáver dos
super-SIVs, que, imaginei, teria sido sepultado em 2008. Eles seriam encarregados de
recolher detritos financeiros desvalorizados: um pool de grandes bancos compraria a
gororoba intragável por um preço acima do valor de mercado. Já naquele tempo, o
mercado para a negociação dos ativos desmoralizados havia desaparecido nas brumas
da imprudência. 

O economista Nouriel Roubini e o consultor John Mauldin suspeitaram que o


contribuinte americano estivesse diante de mais uma tapeação engendrada pelos
senhores da finança. Perguntam: já engasgados com a gororoba intragável, estariam os
bancos e fundos com apetite para engolir mais do mesmo, pagando preços acima dos
fixados pelo mercado e agravando os problemas de rentabilidade e liquidez? A resposta
só poderia ser uma: na calada da noite, violando as normas do Fed, as autoridades
monetárias tratariam de prover os recursos para financiar, a custos módicos, os super-
SIVs. A ideia foi arquivada. Retornou, agora sob a direção de Obama e Geithner, com
outra denominação e amplos subsídios dos contribuintes à banca depauperada. 

Mas, de lá para cá, a ira dos contribuintes contra os gatos gordos de Wall Street assumiu
as proporções das revoltas ditas populistas do início do século XX. Wolf está
preocupado com a hostilidade explosiva ao setor financeiro. “O Congresso debate taxar
os bônus dos executivos. E o procurador-geral de Nova York que sejam revelados os
nomes. Isso equivale a um convite ao linchamento.”

Na história da sociedade americana, esses frêmitos exaltados duram o tempo necessário


para descarregar o ressentimento dos “bons cidadãos”. Beneficiários dos confortos
individualistas e consumistas nos tempos de vacas gordas, os bons cidadãos da América
jogam o fardo das desgraças sobre os ombros dos que consideram malfeitores e ladinos.
Há fundados receios, entre os sobreviventes do naufrágio financeiro, que o bote salva-
vidas do Estado seja baixado por políticos populistas para resgatar a turma do “andar de
baixo”. 

No entanto, os praticantes das formidáveis inovações destrutivas – os gatos gordos de


Wall Street – não teriam prosperado em suas ousadias se, à retaguarda, não estivessem
de prontidão os fanáticos do livre mercado e da concorrência desaçaimada. O mal, como
sempre, é o intervencionismo do Estado, o poder dos sindicatos, o controle dos
mercados financeiros, os obstáculos ao livre movimento de capitais. 

A ira populista é o avesso do fervor livre-mercadista, assim como o moralismo


midiático e internético de nosso tempo é a outra face da amoralidade das formas de
dominação da sociedade de massas contemporânea. Nela, mostrou Hanna Arendt, o
indivíduo desarraigado e sem rumo é manipulado e abusado por slogans
simplificadores. Os dois estados de espírito, a ira e a crença cega, alternam-se na alma
dos bons cidadãos. Tanto um quanto outro impedem a compreensão das formas
econômicas e das relações sociais que levaram a economia e a sociedade à crise atual. 

Contradições do mundo em que vivemos

30/03/2009 16:57:26

Luiz Gonzaga Belluzzo

O sarcasmo de “direita”, sempre negativo, é cético e destruidor não só da forma


‘contingente’ mas do conteúdo ‘humano’ dos sentimentos e crenças na justiça, na
igualdade e na fraternidade, elementos ideológicos difundidos pelas tendências
democráticas herdadas da Revolução Francesa. (Antonio Gramsci, em Maquiavel, a
Política e o Estado Moderno)

Devemos sempre resistir à impressão de que o mundo enlouqueceu. O famoso conto de


Machado de Assis “O Alienista” nos deixa essa lição. Doutor Simão Bacamarte, depois
de trancar toda a cidade no manicômio - inclusive a sua própria mulher - acabou por
trancar a si mesmo. 

Se não é saudável nem prudente apostar na loucura geral, imaginando-se em plena


sanidade, há evidências de que grassa uma epidemia de capota furada. Junto dois textos
que julgo oportuno republicar diante das manifestações –contra, a favor e muito ao
contrário - suscitadas pela prisão dos diretores da Camargo Correa e de Eliana
Tranchesi. Os dois episódios desataram um desfile de fúria e descontrole moral entre os
comentaristas de blogs e missivistas das colunas de Cartas ao Leitor. Não se trata aquí
de discutir as razões e as justificativas das ações da polícia ou a procedência das
decisões judiciais. Cuida-se de examinar as reações aos fatos e avaliar o estado da
consciência jurídica que predomina entre os cidadãos deste país. 

Nos episódios mencionados, os ululantes atacaram, mais uma vez, com as bordunas do
preconceito, da intolerância e da apologia da brutalidade, sem falar nas ações em massa
contra última flor do Lácio, inculta e bela. Alguém já dizia que há método na loucura,
mas a desrazão caprichou na metodologia. Expressões grosseiramente facistóides
poucas vezes foram utilizadas com tanta liberalidade e descuido. A generosa
distribuição de adjetivos foi acompanhada de exaltadas conclamações para o retorno dos
militares ou sugestões para que o desrespeito à lei e aos direitos individuais se
transformasse em regra geral e irrestrita. 

Torço para que o destampatório seja mais um esgar do que um ideário consistente. Mas
não custa ficar esperto: os estudiosos do totalitarismo sabem que a “auto-vitimização”
da “boa sociedade” e a inculpação do “outro” foram métodos eficientes para a conquista
do poder absoluto. Vejo nos blogs: os mais furiosos se apresentam como “humanos
direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar
como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massas,
crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis,
sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse
pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um
ensaio de amadores. 

As novas operações da Polícia Federal desataram, ademais, a costumeira rodada de


críticas ao poder Judiciário e às leis destinadas a proteger os direitos individuais, – a
começar da Constituição. As acusações, em boa medida, partem de certa esquerda de
boca torta. Em sua sede de “justiça” (com letra minúscula) ela se acumplicia aos
extremistas de direita das classes remediadas, em sua campanha para “limpar” a
sociedade.
“A polícia prende, a Justiça solta”. Refrão midiático destinado ao imaginário de um
povo habituado a ser preso e espancado arbitrariamente, desamparado da consciência de
seus direitos. O século XXI já vai completar uma década e, no Brasil, a letra da lei que
garante os direitos do indivíduo jaz inerte nos compêndios. As garantias individuais
ainda não saíram dos códigos para ganhar vida do povaréu, quotidianamente
massacrado pelos abusos dos senhoritos da “ordem” e seus sequazes. 

No livro What Does the Ruling Class Do When It Rules - pouco conhecido, mas
fundamental para o entendimento das relações de poder e de dominação no capitalismo
contemporâneo - Göran Therborn mostra que, na Europa dos séculos XIX e XX a
consciência dos direitos moveu a luta dos subalternos e transformou o Estado numa
instância de “totalização das relações sociais”. Suas intervenções realizam a mediação
entre as classes e entre os membros individuais das diferentes classes. 

O avanço da “totalização das relações sociais” pode ser avaliado de forma mais clara
pelo grau de independência adquirido pelos procedimentos judiciais diante do poder
material da camada dominante. Diz Therborn: “não são poucas as contradições que
podem surgir da independência do judiciário numa sociedade de classes.. Em certas
circunstâncias, a autonomia do judiciário pode se tornar fonte de conflitos no interior da
classe dominante, porquanto há contradição entre o caráter necessariamente abstrato e
universal da lei na economia capitalista de mercado e as exigências do exercício do
poder real pelas camadas dirigentes. Quando os juízes não são mais criaturas das classes
superiores, a aplicação da lei pode criar embaraços para os fundamentos materiais da
dominação” 

O jurista Herbert Hart, no livro The Concept of Law diz com razão que o juiz não pode
decidir como supremo censor e guardião da moralidade pública. A primeira e ilustre
vítima do particularismo moralista será o princípio da legalidade que deve estabelecer
com a maior clareza possível o que é lícito e o que não é. Exemplo de atropelo ao
principio da legalidade é a lei promulgada pelo regime nazista em 1935. Ela prescrevia
que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’
popular”. 

No ensaio O Estado e o Indivíduo no Nacional-Socialismo, Herbert Marcuse


argumentava que, na era moderna, o domínio da lei, o monopólio do poder coercitivo e
a soberania nacional são as três características do Estado que mais claramente
expressam a divisão racional de funções entre Estado e Sociedade. “A lei trata as
pessoas, se não como iguais, pelo menos sem considerar as contingências sociais mais
óbvias; é, por assim dizer, a corte de apelação que mitiga os infortúnios e as injustiças
que as pessoas sofrem em suas relações sociais. O caráter universal da lei oferece
proteção universal a todos os cidadãos, não apenas em relação ao desastroso jogo de
auto-interesses conflitantes, mas também aos caprichos governamentais. O regime
nacional-socialista aboliu estas propriedades da lei que a tinham elevado acima dos
riscos da luta social.” 

Ao observar a tragédia do nazismo, Marcuse teve lucidez para perceber que o projeto da
igualdade social e econômica está ancorado no respeito ao princípio abstrato da
igualdade de todos perante a lei. A idéia de uma lei para os ricos e outra para os pobres,
monstruosidade pré-moderna, consagra, ao invés de exterminar, as diferenças de poder e
de dinheiro entre os cidadãos, como condições incontornáveis e eternas da vida social.
Nos anos 20 do século passado, os comunistas alemães denunciaram os direitos
inscritos na Constituição de Weimar como uma forma de encobrir a exploração
capitalista. Não atentaram para o seu caráter progressista em uma de uma sociedade
ultra conservadora, hostil às forças democráticas. 

Para Marcuse, era permanente o risco de derrocada do Estado de Direito: no nazismo, os


grandes grupos privados produziram a “coletivização privada” das relações econômicas,
sobretudo ao impor o trabalho compulsório aos trabalhadores “livres”. Para tanto se
apoderaram do Estado e suprimiram a sua independência formal em relação à sociedade
civil. Sem as mediações da ordem jurídica “liberal”, os interesses da classe dominante
passaram a se exercitar diretamente através da ação do Estado Policial. 

No mundo das grandes empresas e da inevitável mediação do Estado nas disputas entre
os competidores privados, a exceção tende a se tornar a regra. Tal estado de
excepcionalidade deságua na proliferação legislativa casuística e na ameaça permanente
ao caráter abstrato e universal da norma jurídica. A contradição se torna aguda: de um
lado, a liberdade dos indivíduos no mercado exige a independência do Judiciário,
certeiro na aplicação da lei e cuidadoso em seus procedimentos;de outra parte, a
“corrupção” quase congênita, engendrada pela concorrência econômica mediada pelo
Estado, estimula a formação de correntes de opinião que propugnam por formas
primitivas de punição e de vingança. 

A sociabilidade moderna se move entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida


pela história e a pluralidade dos indivíduos. A identidade é “recebida” sem que o
indivíduo seja indagado sobre suas preferências. A história dessas sociedades trouxe o
mercado como instância dominante da sociabilidade, o que supõe o “indivíduo livre”
cujas ações egoístas ameaçam, para o bem e para o mal, a estabilidade do conjunto. Essa
forma peculiar de sociabilidade torna difícil a compreensão e a mediação do conflito
entre a reprodução da sociedade e a construção da autonomia individual, relação
contraditória que só pode ser mediada precariamente pela política e pelo direito. Para
assumir a condição de sujeitos de direitos e deveres, os indivíduos são constrangidos a
abdicar de sua moral particularista. O consensus iuris é o reconhecimento dos cidadãos
de que o direito, ou seja, o sistema de regras positivas emanadas dos poderes do Estado
e legitimados pelo sufrágio universal deve punir rigorosamente quem se aventura à
violação da norma abstrata. Mas a mediação do Estado é precária, sugere Giorgio
Agambem, pois a soberania é um frágil compromisso entre a natureza e a razão, o
direito e a violência. 

Hanna Arendt nas Origens do Totalitarismo abordou as transformações sociais e


políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos
monopólios promoveu a substituição empresa individual pela a coletivização da
propriedade privada e, ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”, engendrada
pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. A isto se
juntou a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais.
A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do
homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a
brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais
normais.” 

Trata-se da abolição do sentimento de pertinência a uma classe social, sem a supressão


das relações de dominação. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade
atomizada, cuja estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram
controladas quando se pertencia a uma classe. O ‘pecado original’ da acumulação
primitiva de capital exigiu novos pecados para manter o sistema em funcionamento e foi
eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental.
Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu
parentesco com a escória”. A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação
econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se
sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”. 

Os meios de comunicação de massa, compelidos pela disputa de audiência, são


arrastados para o abismo da vulgaridade, pelos “movimentos da ralé”. Eles repercutem e
realimentam as simplificações e slogans de um tipo de sociabilidade que necessita cada
vez mais, para reproduzir suas formas de dominação, da incompreensão dos indivíduos
abandonados à sua solidão. Essa relação entre a linguagem midiática e as relações no
interior da sociedade de massas legitimam as tropelias e ilegalidades praticadas pelas
burocracias públicas e promovem a subversão da hierarquia entre os poderes do Estado.
As empresas corrompem a política e, assim, degradam o instituto da representação
popular. Procuradores e policiais fazem gravações clandestinas ou inventam provas e
assim corrompem o princípio da legalidade e da impessoalidade nos atos da
administração pública. Nas altas esferas do Olimpo midiático, “a imprensa diária
dispara a cortina de relâmpagos”¹ e trata de manipular a opinião pública, atemorizar
juízes e fomentar a arbitrariedade dos esbirros e beleguins.

¹Marx, K, O 18 Brumário de Luís Bonaparte

Tudo que é sólido...

19/03/2009 11:33:22

Luiz Gonzaga Belluzzo

No último trimestre de 2008, a produção industrial brasileira caiu forte e abruptamente.


Em consonância com a derrocada da indústria, o PIB declinou 3,6%. Na mesma
proporção, entraram em parafuso os diagnósticos dos especialistas em crises pretéritas,
aquelas que surgiam do estrangulamento do balanço de pagamentos. As malditas da
periferia passavam pelas agruras da desvalorização da moeda nativa e terminavam na
elevação da taxa de juro e no ajuste fiscal, com o propósito de abafar as tensões
inflacionárias e reduzir a chamada absorção doméstica.

Também em matéria de crises, o Brasil foi promovido a investment grade. O baque na


produção industrial e no PIB foi deflagrado por uma fortíssima contração global do
crédito que atingiu o País no auge de um ciclo de expansão. O credit crunch universal
afetou de forma aguda as expectativas dos bancos, empresas e famílias consumidoras.
Em setembro, a quebra do Lehman Brothers explicitou o risco sistêmico abrigado na
inflação de ativos, o que incluía as frenéticas valorizações cambiais promovidas pelos
capitais que buscavam os papéis públicos e privados dos emergentes.

Os empresários, antes empolgados com as expectativas de crescimento de suas vendas e


dos lucros, cuidaram de preservar os balanços de suas empresas. No afã de resguardar o
equilíbrio patrimonial de longo prazo, as empresas cortaram os projetos de
investimento. Caíram fora do endividamento adicional ou cuidaram de manter sob a
forma líquida a “poupança” decorrente dos lucros acumulados no passado. O susto foi
suficientemente grande para aconselhar os empresários a resguardar o capital de giro: ao
imaginar a contração da demanda, reduziram a produção corrente e demitiram
preventivamente os trabalhadores.

A incerteza radical paralisou as decisões e negou os novos fluxos de gasto. Em tais


circunstâncias, a tentativa de redução do endividamento e dos gastos de empresas e
famílias em busca da liquidez e do reequilíbrio patrimonial é uma decisão racional do
ponto de vista microeconômico, mas danosa para o conjunto da economia, pois leva
necessariamente à ulterior deterioração dos balanços. É o paradoxo da desalavancagem.

A riqueza concentra-se, agora, na posse do dinheiro em si (ou substitutos próximos, os


títulos da dívida pública). Essa corrida privada para as formas imaginárias, mas
socialmente necessárias, do valor e da riqueza vai afetar negativamente a valorização e a
reprodução da verdadeira riqueza social, ou seja, a demanda de ativos reprodutivos e de
trabalhadores. Diante da busca coletiva pelo reequilíbrio patrimonial e pela liquidez, os
preços inflados dos direitos sobre a riqueza real – ações e dívidas privadas – despencam
e, não raro, arrastam os preços de bens e serviços.

Keynes escreveu a Teoria Geral para explicar esse momento de “ruptura de


expectativas” e não a ocorrência de simples flutuações cíclicas da economia capitalista.
Nas flutuações cíclicas, a contração do investimento e do consumo deprime a
acumulação interna das empresas e a renda das famílias, suscitando problemas de
endividamento e risco que podem ser resolvidos com mudanças suaves na política
monetária e na velocidade e intensidade do gasto público.

Nas crises, ocorre o colapso dos critérios de avaliação da riqueza que vinham
prevalecendo. As expectativas de longo prazo capitulam diante da incerteza e não é
mais possível precificar os ativos. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação
risco/rendimento dos ativos sucumbem diante do medo do futuro. 

Em sua palestra na quarta-feira 11, em São Paulo, o economista Nouriel Roubini disse,
com alguma ironia, que a única demanda que cresce no mundo de hoje é a do governo.
No caso do Brasil, as casamatas da burocracia estão preparadas para lançar o País em
uma recessão ampla, geral e irrestrita. Os projetos de infraestrutura têm de passar por
um calvário de aprovações e de restrições. Frequentemente, os tribunais bloqueiam o
andamento dos projetos de investimento, ao conceder generosamente liminares para os
derrotados nas concorrências. 

Os critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal são apropriados, sim, para tempos


normais, mas danosos em uma situação de crise aguda de crédito e demanda. Outras não
são as penas do Banco Central e da Fazenda, frequentemente ameaçados pelo Ministério
Público quando tentam ampliar o Fundo Garantidor de Crédito. Destinado a garantir os
empréstimos dos bancos de menor porte para as pequenas e médias empresas, o Fundo
não decola, porque os rapazes do parquet ameaçam seguidamente os membros do
Conselho Monetário Nacional com processos de improbidade administrativa. 

Para enfrentar a recessão da demanda e da fome exangue por liquidez, os governos


precisam negociar urgentemente com o Congresso uma legislação econômica de
emergência, com prazo determinado e competências claramente definidas. Caso
contrário, no futuro, ninguém se lembrará que os males e infortúnios da economia em
crise foram descurados por conta de uma legislação inadequada. 

Trilha inglória

13/02/2009 15:37:53

Luiz Gonzaga Belluzzo

Os mercados receberam os pacotes de Obama com nariz torcido. Seriam necessárias


páginas e mais páginas para discutir as virtudes e as falhas dos projetos apresentados ao
Congresso dos Estados Unidos. Vou restringir o âmbito deste artigo à questão da
limpeza do lixo tóxico e seus desdobramentos. 

A proposta de tratamento às instituições financeiras quebradas retoma a ideia de se


constituir um banco podre ou um fundo público-privado para abrigar a gororoba
contaminada. A opinião especializada é quase unânime em reconhecer que, no momento
de passagem da iliquidez para a insolvência, as dívidas e os ativos dos bancos são de
difícil (se não impossível) precificação. Insistir nessa trilha é tomar o risco de pagar
caro demais pelos detritos financeiros ou declarar um valor insuficiente para aliviar a
carteira das instituições da bagulhada malcheirosa. 

Vamos combinar: o sistema bancário americano está literalmente quebrado. Poucos se


deram conta do óbvio: a espantosa e imprudente alavancagem das instituições foi
alicerçada em grande medida na rápida expansão da dívida intrafinanceira. Isso se
acelerou nas últimas décadas de intensa desregulamentação financeira, por conta de dois
fenômenos correlacionados. 

Primeiro, a abolição das barreiras entre os bancos comerciais e os shadow banks.


Segundo, nessa toada, o avanço do processo de securitização nos mercados monetários
– os money markets funds – subtraiu os recursos dos depósitos à vista. Isso ocorreu na
mesma proporção que os bancos-sombra sobrepujaram os comerciais nas operações de
crédito. Tal proeza introduziu um risco adicional não percebido pela regulação anterior:
in illo tempore, os depósitos à vista estavam garantidos pelo FDIC.

Nas condições do mercado desregulado e descompartimentado, o funding dos shadow


banks era oferecido pelos atacadistas dos mercados monetários ávidos por commercial
papers. Estes papéis de curto prazo lastreavam carteiras longas carregadas de CDOs,
CMOs e outras securities, que representavam pacotes de dívidas hipotecárias, estudantis
e derivadas do financiamento de veículos. 

Diante da crise em marcha, ou seja, do anúncio de resultados desastrosos e da ameaça


de falências em massa, o chamado público e as instituições ainda solventes e líquidas
trataram de sair do risco e correr para os títulos do governo americano. 

A esta altura do campeonato, a derrocada no preço das dívidas e dos ativos do setor
financeiro impede, para dizer pouco, a recapitalização das instituições mediante
operações de mercado. Não por acaso, o governo trata de aumentar os recursos
destinados à capitalização. Mas, se a economia entra em forte recessão e, por isso, o
sistema de crédito não roda, apavorado com a possibilidade de um festival de
inadimplências, é certo que o capital dos bancos vai encolher ainda mais. 

Colocar mais dinheiro público nas instituições quebradas e inoperantes se assemelha aos
trabalhos de Sísifo, condenado ao castigo eterno de rolar uma enorme pedra até o topo
da montanha, para logo depois deixar a rocha rolar ladeira abaixo e recomeçar a tarefa
imposta pelos deuses.

Willem Buiter coloca o dedo na ferida em seu blog no Financial Times: “Duas coisas
são sistemicamente importantes. A primeira é restaurar a operação dos mercados
financeiros que se tornaram ilíquidos. A segunda é restaurar os empréstimos bancários
para a economia real. Nenhum dos dois objetivos requer o salvamento dos bancos
existentes, para não falar na salvação de seus credores e acionistas. Pode-se salvar o
sistema bancário sem salvar os bancos ou os banqueiros”. 

Buiter propõe a criação do good bank, uma instituição nova, limpa e administrada pelo
Estado. Na contramão dos beldroegas conservadores, ele sabe que, na economia
monetária da produção, a dominância do sistema de crédito e da moeda fiduciária
transforma os bancos em emissores de meios de pagamento e, ao mesmo tempo,
concede uma centralidade incontornável ao Banco Central. Essa instituição estabelece
as mediações entre os bancos privados e a soberania monetária do Estado. 

O Banco Central cuida de regular as delicadas relações entre a moeda e o bem público,
ou seja, referência confiável para as decisões de endividamento das empresas e famílias
(e, portanto, de financiamento por parte dos bancos), destinadas a prover liquidez à
produção, ao consumo e ao investimento – e sua outra natureza, a de objeto do
enriquecimento privado. Na crise atual, as instituições financeiras cuidam de promover
a desalavancagem e, por isso, não podem cumprir a tarefa de expandir o crédito, ou seja,
de alavancar recursos para a economia real.

Ainda o Buy American


06/02/2009 14:52:30

Luiz Gonzaga Belluzzo

Marx e Engels defendiam o comércio livre entre as nações. Viam nele o instrumento da
mercantilização universal e, portanto, de introdução das relações e das forças produtivas
capitalistas nos países atrasados, a força capaz de eliminar os resíduos do Ancien
Régime. Marx terminou o seu discurso, pronunciado em 1847 na Associação
Democrática de Bruxelas, denunciando o caráter conservador do protecionismo.
Proclamou: “O sistema de livre comércio impulsiona a revolução social. É apenas nesse
sentido, senhores, que eu voto a favor do livre comércio”.

No fim do século XIX, o apogeu da ordem liberal burguesa, a expansão do comércio e


das finanças internacionais estava fundada nas relações simbióticas entre o liberalismo
da Inglaterra hegemônica e as políticas protecionistas de industrialização dos
retardatários europeus e dos Estados Unidos. Depois da Segunda Guerra Mundial, os
americanos abriram o mercado para as exportações dos protecionistas da Europa e da
Ásia, a começar pelo Japão em reconstrução, ao mesmo tempo que suas empresas
migravam para as regiões de crescimento mais rápido.

No imediato pós-guerra, o projeto americano de construção da ordem econômica


internacional foi concebido com o propósito de promover a expansão do comércio entre
as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras e de crises
de balanço de pagamentos. A ideia-força dos reformadores de Bretton Woods
sublinhava a necessidade de criação de regras destinadas a garantir a expansão do
comércio e o ajustamento dos balanços de pagamentos, mediante o adequado
abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a propagação
das forças deflacionárias e as tentações do protecionismo.

A severa recessão que ora nos atormenta já designou o protecionismo como um risco
iminente, entre tantos que se apresentam à consideração das lideranças globais. Barack
Obama, ao anunciar o Buy American para os programas de investimento em
infraestrutura, promoveu a reestreia do protecionismo, velho protagonista dos episódios
de contração aguda do comércio internacional.

O gesto agressivo do governo americano suscitou temores de retaliação. Não faltam


ameaças nem providências, mais ou menos ostensivas, na Europa, na China e no Brasil.
Mas, sem dúvida, o Buy American é menos inamistoso para o comércio internacional
do que a tarifa Smoot-Hawley, baixada em junho 1930 com o propósito de proteger os
agricultores e industriais americanos da concorrência estrangeira.

Autores respeitados, como Charles Kindleberger, atribuem a disseminação das forças


depressivas que avassalaram o mundo na década dos 30 do século passado à decisão
nacionalista da administração americana. O Smoot and Hawley Act, de fato, inaugurou
uma sombria temporada de competição protecionista. No movimento de desviar o
desemprego para o território do outro, seguiram-se as desvalorizações competitivas.
Iniciado com a saída da Inglaterra do padrão-ouro em 1931, o jogo de estrepar o vizinho
teve sequência na desvinculação do ouro anunciada por Roosevelt em 1933.

Essas reações provocaram a contração brutal dos fluxos de comércio e suscitaram


tensões nos mercados financeiros. Tais forças negativas propagavam-se livremente, sem
qualquer capacidade de coordenação por parte dos governos. Na verdade, o que se
assistiu foi à disseminação das práticas do beggar-thy-neighbour. Assim, a economia
global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos
bens e dos ativos.

Diante da progressão da crise social e do desemprego, frações importantes das


burguesias europeia e americana tiveram de rever seu patrocínio incondicional ao
ideário do livre comércio e às políticas de austeridade na gestão do orçamento e da
moeda. A contração do comércio mundial, provocada pelas desvalorizações
competitivas e pelos aumentos de tarifas, deu origem a práticas de comércio bilateral e à
adoção de controles cambiais. Na Alemanha nazista, tais métodos de administração
cambial incluíam a suspensão dos pagamentos das reparações e dos compromissos em
moeda estrangeira, nascidos do ciclo de endividamento que se seguiu à estabilização do
marco em 1924.

Na ausência de uma coordenação global, a tentativa (racional) de defender o mercado


doméstico dos efeitos da queda do volume de comércio culmina no prejuízo geral e
irrestrito. Em sua essência, as reações protecionistas são antes de tudo políticas, no
sentido de que respondem às pressões internas nascidas do desemprego e da queda dos
rendimentos das famílias.

É fácil pedir grandeza de espírito e generosidade a Obama. Difícil é combinar com os


americanos desempregados.

A gênese das crises

05/01/2009 12:48:22

Luiz Gonzaga Belluzzo

Na posteridade da crise asiática, os governos e o Fundo Monetário Internacional (FMI)


ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para “as
assimetrias e riscos implícitos” no atual regime monetário internacional e nas práticas
da finança globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira
internacional. A reação do governo Clinton – orientado pelos conselheiros de Barack
Obama, Robert Rubin e Lawrence Summers – foi negativa. Os reformistas enfiaram a
viola no saco.

No imediato pós-guerra, o projeto americano de construção da ordem econômica


internacional foi concebido com o propósito de promover a expansão do comércio entre
as nações e colocar seu desenvolvimento a salvo de turbulências financeiras. A idéia-
força dos reformadores de Bretton Woods sublinhava a necessidade de criação de regras
monetárias capazes de garantir o ajustamento dos balanços de pagamentos, ou seja, o
adequado abastecimento de liquidez para a cobertura de déficits, de forma a evitar a
propagação das forças deflacionárias. Tratava-se, também, de erigir um ambiente
econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as
políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.
Keynes, o delegado da Inglaterra, propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco
Central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor,
destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios
privados seriam realizados nas moedas nacionais, que, por sua vez, estariam referidas ao
bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e
superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos
centrais nacionais (em bancor) na Clearing Union.

A despeito de sua rejeição à relíquia bárbara, Keynes aceitou a manutenção do ouro


como âncora nominal do seu sistema monetário, mimetizando a relação que a moeda
bancária mantinha com as reservas metálicas no padrão-ouro clássico. Mas o metal seria
uma espécie de “rainha da Inglaterra” do sistema monetário, já que nenhum papel
efetivo lhe seria concedido na liquidação das transações e dos contratos – função que
seria exercida exclusivamente pela moeda bancária internacional, administrada pelas
regras da Clearing Union. É provável que Keynes não estivesse disposto a colocar em
risco a confiabilidade do novo padrão monetário, e muito menos pretendesse
desvalorizar as reservas-ouro acumuladas pelos Estados Unidos nos anos 20, 30 e 40
(em 1948, os EUA detinham cerca de 72% das reservas-ouro mundiais). Debates
travados no Senado revelam que era forte a resistência política dos americanos à
abolição do ouro como fundamento da nova ordem monetária internacional.

O Plano Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro
enquanto último ativo de reserva do sistema, instrumento universal da preferência pela
liquidez. Buscava, portanto, uma distribuição mais eqüitativa do ajustamento dos
desequilíbrios dos balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isto
significava, na verdade – dentro das condicionalidades estabelecidas –, facilitar o
crédito aos países deficitários e penalizar os superavitários. O propósito de Keynes era
evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno
emprego. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser uma característica
permanente da nova ordem econômica mundial, como repetiu seguidamente nos
trabalhos preparatórios da Conferência de Bretton Woods. O plano – uma utopia
monetária – não só era excessivamente avançado para o conservadorismo dos
banqueiros privados, mas também inconveniente para a posição amplamente credora
dos EUA, pois anularia o poder de seigniorage do dólar como moeda reserva. A
faculdade de usar sua moeda como meio de pagamento universal conferiu e ainda vem
conferindo aos EUA grande flexibilidade na gestão da política monetária e na
administração dos balanços de pagamentos.

Em 1944, nos salões do Hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia
monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs
o dólar – ancorado no ouro – como moeda universal. Talvez por isso o segundo pós-
guerra conte a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narre
as desditas da reprodução dos desequilíbrios globais e da sucessão de ajustamentos
traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.

Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods


sobreviveram ao gesto de 1971 – a desvinculação do dólar ao ouro – e à posterior
flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a
elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro
Mundo, lançou os europeus na desinflação competitiva e culminou na crise japonesa
dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar se fortaleceu, agora
obedecendo ao papel dos EUA como demandante e devedor de última instância.

A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se
desenvolveu nos mercados financeiros americanos. Na contramão do senso comum, os
investidores globais empreendem uma fuga desesperada para os títulos do governo
americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia
(México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os papéis do governo dos EUA oferecem
repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas e reservam os
tormentos da volatilidade cambial para os incautos que acreditaram nas promessas de
recompensa pelo bom comportamento.

Escrevi recentemente na Folha de S.Paulo que entre 2003 e 2007, no auge da Grande
Moderação – momento em que prevaleceram a baixa inflação, a liquidez abundante e a
avidez pelo risco –, as moedas periféricas viveram a ilusão de freqüentar os salões da
conversibilidade. A crise financeira nascida nas mansões dos pródigos abastados barrou
a entrada dos intrusos e mostrou que os saraus das moedas conversíveis não admitem
penetras.

Desde o won coreano, passando pelo real brasileiro até a rupia indonésia e o rublo da
Rússia, as moedas mais débeis sucumbem ao vendaval de ordens de venda emitidas
pelos possuidores de riqueza em busca de proteção e segurança. Mal iniciada a
desalavancagem nos mercados centrais, os investidores decidiram formar posições
baixistas nos elos fracos dos mercados globalizados, independentemente dos
“fundamentos” que supostamente sustentavam o garboso desempenho das moedas
apreciadas. Com elas, capitularam as bolsas de valores e, em alguns casos, os mercados
imobiliários excessivamente valorizados. Os hedge funds que operam nos países que
dispõem de mercados futuros de câmbio passaram a liquidar suas posições e sair com a
grana.

A crise acentua o caráter assimétrico dos ajustamentos dos balanços de pagamentos


entre países de moeda forte e aqueles de moeda fraca. Ao contrário do que sustentam
alguns analistas, os realinhamentos mencionados das taxas de câmbio não contribuem
para reverter os desequilíbrios globais: o déficit americano não se reduz ou se contrai
muito lentamente diante da valorização do dólar. Em compensação, a fuga dos ativos e
das moedas de maior risco em direção aos títulos de qualidade permite a queda dos
rendimentos, abrindo espaço para o endividamento público e, portanto, para políticas
anticíclicas mais agressivas. A crise financeira reforça a supremacia do dólar e amplia o
poder de seigniorage da moeda americana. Em contrapartida, a pressão externa sobre as
economias emergentes torna mais difícil a excecução de políticas fiscais e monetárias
anticíclicas. Em um ambiente recessivo, a elevação dos juros para defender a moeda é
um tiro no pé: deprime ainda mais a capitalização dos ativos mobiliários, afeta o serviço
da dívida pública, atinge a saúde financeira das empresas machucadas pelo faturamento
minguante e, last but not least, aumenta a prudência dos bancos.

Bretton Woods II, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar conturbações geradas pela
decadência americana. Vai, sim, acertar contas com os desafios engendrados pelo
dinamismo da globalização, impulsionada pela grande empresa e ancorada na
generosidade da finança privada dos EUA. O processo de integração produtiva e
financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem
precedentes das famílias consumistas americanas, causa e efeito da migração da
indústria manufatureira para a Ásia produtivista e da acumulação de mais de 5 trilhões
de dólares de reservas nos cofres dos emergentes.

Em 2006, o déficit em transações correntes dos EUA bateu na casa dos 800 bilhões de
dólares. Qualquer outro país com um “buraco” externo dessa magnitude teria sofrido
um ataque contra sua moeda. Se não parece estar à vista uma derrocada do dólar, é
imprudente sustentar que o regime dólar-yuan possa reproduzir suas virtualidades
depois de sanada a fase aguda da crise global.

As divergências movem-se em torno das razões dos déficits e superávits crônicos: de


um lado os partidários dos desequilíbrios entre poupança e investimento, de outro a
turma dos preços relativos, isto é, os que acusam os parceiros superavitários de
manipular a taxa de câmbio. Sem menosprezar a importância do regime de câmbio
administrado dos fanáticos exportadores do Oriente, o primeiro grupo reparte a
responsabilidade pelos desequilíbrios globais entre dois vícios: a prodigalidade dos
americanos, que poupam menos do que investem, e a sovinice dos superavitários
(sobretudo, os asiáticos – não só a China, mas também o Japão e outros menos votados),
que investem menos do que poupam. O segundo grupo sublinha a importância das
estratégias de crescimento dos superavitários, impulsionadas pela expansão das
exportações e ancoradas na manipulação do câmbio.

Bernard Ber, consultor de investimentos, publicou no blog Prudent Bear um artigo


interessante, intitulado “Crédito é a chave para a economia de hoje”. O autor constrói
um organograma das relações entre os protagonistas dos processos de desequilíbrio
geral da economia globalizada. Introduzi algumas modificações no modelo original. 

Uma demonstração prática das relações entre hegemonia do dólar, expansão de crédito,
valorização de ativos, inovações financeiras, crescimento econômico e inflação baixa
nos EUA e na Ásia emergente. O consultor Bernard Ber coloca em relevo os elementos
que, ao mesmo tempo, movem a expansão global e incitam os desequilíbrios. No centro
estão a demanda e a oferta de crédito, ou seja, alavancagem das famílias e das empresas
produtivas que gastam em consumo e investimento.

Os americanos gastam para adquirir produtos finais e bens intermediários baratos


fabricados por empresas localizadas no exterior – muitas americanas –, que buscam
competir na arena global com a ajuda do câmbio desvalorizado e da oferta de mão-de-
obra barata dos produtivistas da Ásia.

Os capitais especulativos apostam na valorização do yuan e tentam furar os controles


impostos pelas autoridades chinesas. Mas seus efeitos monetários – juntamente com os
saldos acumulados em conta corrente – são esterilizados mediante a emissão de títulos
do Tesouro ou do Banco Central da China, justamente para impedir a valorização da
moeda chinesa.

A força do crédito e do dispêndio privado e público nos EUA (os elementos ativos do
macrossistema global) tem como contrapartida as posições superavitárias em conta
corrente e na conta de capitais, bem como as reservas acumuladas nos emergentes. Esta
é a “poupança” (o elemento passivo) que financia o déficit externo americano. 
Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de
desequilíbrios mediante o realinhamento entre as moedas é problemática. A dita
correção passa necessariamente por uma redistribuição de déficits e superávits entre as
regiões envolvidas. Isto exigiria não só a forte reativação das fontes de crescimento
domésticas na Europa e no Japão, como também a moderação das estratégias
mercantilistas nos emergentes asiáticos. Mas, como Keynes havia previsto em seus
escritos preparatórios da reunião de Bretton Woods, tal coordenação de políticas supõe
um verdadeiro sistema monetário internacional ou um sistema monetário
verdadeiramente internacional.

Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a
partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva. Até agora, as soluções
que vêm sendo aventadas para a prevenção das crises financeiras nos mercados
“securitizados” têm procurado evitar a adoção de medidas capazes de estabilizar as
taxas de câmbio e prover financiamento adequado para os desequilíbrios dos balanços
de pagamentos. Esse tem sido o tom dos governos e das instituições multilaterais. Tal
leniência aplica-se tanto à re-regulamentação dos sistemas financeiros domésticos
quanto ao controle dos movimentos de capitais.

A Turma do 'Veja Bem'...

17/11/2008 16:29:00

Luiz Gonzaga Belluzzo

O Tesouro dos Estados Unidos anunciou, sob o codinome conservatorship, a


nacionalização das duas agências de hipotecas, Fannie Mae e Freddie Mac. O
eufemismo denuncia a má consciência dos interventores. No desespero da crise, o
governo Bush filho viu-se constrangido a reconhecer que suas teorias e convicções
valem menos do que os miseráveis ativos lastreados em créditos hipotecários. Na
verdade, as duas empresas privatizadas (e supostamente garantidas pelo governo) foram
colocadas sob administração da Federal Housing Finance Agency, criada recentemente
para enfrentar as mazelas do sistema de financiamento da casa própria dos Estados
Unidos.

Alguém me perguntou se a estatização envergonhada das moribundas é indício da


derrota do neoliberalismo. Tenho cá minhas dúvidas. É prudente não apostar nesse
cavalo. As disputas ideológicas do tipo intervencionismo vs. não-intervencionismo
padecem do vício das oposições excludentes, aquelas que entorpecem a compreensão da
dinâmica do capitalismo, do seu movimento contraditório, eivado de crises e de suas
recuperações. Estado e mercado não são perspectivas incompatíveis que se chocam e se
excluem. No capitalismo, o “econômico” supõe a unidade indissociável entre a
perspectiva dos possuidores de riqueza envolvidos no jogo do mercado e o ambiente
político institucional garantido pelo Estado coordenador. A outra perspectiva, a do
público, desvela os mistérios do ponto cego, o que não é percebido a partir da primeira
visão, a dos negócios privados. Essa intersecção de perspectivas – contraditórias, mas
não excludentes – esteve sempre presente nas diferentes configurações históricas do
capitalismo, desde o mercantilismo até a sua etapa atual.

Até mesmo a Velhinha de Taubaté sabe que, em sua forma atual, o capitalismo
aumentou a carga de obrigações impostas ao Estado. As reformas ditas neoliberais,
empreendidas desde o crepúsculo dos anos 70 do século passado, trataram de utilizar o
poder político e fiscal dos Estados nacionais para fortalecer os respectivos sistemas
empresariais – aí incluídos os mercados financeiros e de capitais – com o propósito de
ganhar espaço na arena global.

Nessa toada, as reformas atropelaram as instituições destinadas a garantir a segurança


econômica e social da maioria assalariada ou dependente. Os neo-reformistas cuidaram
de transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo que buscaram
limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. O Estado
não saiu da cena, apenas mudou de agenda.

Não é sábio, portanto, sucumbir às elucubrações dos acadêmicos conservadores, os que


carregam o andor para a turma da bufunfa. Essa tigrada cumpriu magnificamente o
papel que lhe atribuíram os senhores do pedaço. Iludem a si mesmos e, de quebra,
tapeiam os ingênuos, ao sugerir a eliminação do intervencionismo dos governos na
economia e pugnar pelo predomínio sem peias das leis do mercado.

A despeito das diferenças analíticas e de método, Hayek e Friedman sustentavam que os


“anos gloriosos” do capitalismo domesticado e regulado estavam fadados
inexoravelmente ao fracasso em sua insana tentativa de interferir nos movimentos
“naturais” dos mercados. As políticas monetárias e fiscais acomodatícias, combinadas
com pactos “corporativistas” entre as classes sociais e grupos de interesses, levariam
inevitavelmente ao baixo dinamismo e à inflação crônica e elevada.

Logo depois, os novo-clássicos, escorados na hipótese das expectativas racionais,


reforçaram as tropas do reformismo liberal. Expediram uma sentença condenatória
ainda mais dura contra a intervenção do Estado, ao proclamar a ineficácia das políticas
fiscal e monetária em sua vã pretensão, assim diziam, de limitar a instabilidade cíclica e
promover o crescimento da economia.

Os governos logo haveriam de aprender: os agentes racionais que povoam os mercados


sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível,
são capazes de antecipar sua evolução provável. Não se deixam enganar, nem por um
momento, pelo velho truque de estimular a atividade econômica com os anabolizantes
nominais da política monetária leniente. Caso insistam nessa prática, políticos e
burocratas voluntaristas, em vez de mais empregos, conseguirão apenas mais inflação,
salvo na hipótese improvável de que possam surpreender e tapear permanentemente os
sagazes agentes privados, implacavelmente racionais.

No início dos anos 80, a turma da economia da oferta dizia ainda mais: a sobrecarga de
impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o
investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As
práticas neocorporativistas, diziam eles, criavam sérias deformações microeconômicas,
ao promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços, nas taxas de câmbio,
nos juros e nas tarifas. Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou
de proteger segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos
distorciam o sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e
insubstituível função de produzir informações para os agentes econômicos. Tais
violações das regras de ouro dos mercados competitivos culminavam na disseminação
da ineficiência e na multiplicação dos grupos predadores de renda, que se encastelavam
nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.

Para acrescentar ofensa à injúria, os mercados de trabalho, castigados pela rigidez


nominal dos salários e por regras políticas hostis ao seu bom funcionamento – como a
do salário mínimo –, não podem mais exprimir o preço de equilíbrio desse fator de
produção, por meio da interação desembaraçada das forças da oferta e da demanda.

Em matéria financeira, a teoria dos mercados eficientes pretendia ensinar que todas as
informações relevantes sobre os fundamentos da economia estão disponíveis em cada
momento para todos os participantes dos mercados que avaliam os títulos de dívida e os
direitos de propriedade. A ação racional dos agentes, diante das informações existentes,
seria capaz de orientar a melhor distribuição possível dos recursos entre os diferentes
ativos. Essa teoria procurava afirmar que, em condições competitivas, não podem existir
estratégias “ganhadoras” capazes de propiciar resultados acima da média.

A hipótese dos mercados eficientes surgiu na segunda metade do século XX, período
em que as intervenções dos Bancos Centrais e dos Tesouros atenuaram a virulência das
crises financeiras. Para juntar ambigüidade ao paradoxo, a certeza quanto à eficiência
das intervenções de última instância, destinadas a limitar perdas, abriu caminho para
desregulamentação financeira e para as armadilhas da auto-regulamentação. Criou-se,
na verdade, uma situação de moral hazard permanente: seja qual for a intensidade do
porre de otimismo, os bancos centrais vão interferir para curar a ressaca.

Estava, assim, criado o ambiente para a exuberância irracional: alavancagem


imprudente e afrouxamento dos critérios de avaliação do risco. O projeto de retorno aos
princípios do mercado auto-regulado sucumbiu às fragilidades e inconsistências de sua
concepção. A complacência disseminou-se entre bancos, empresas e consumidores. São
os ardis da razão.

No início do século XXI, por exemplo, a política de redução de taxas de juro nos
Estados Unidos serviu para abortar a crise da nova economia, mas impulsionou outro
ciclo de crédito e de inflação de ativos, acompanhado de inovações financeiras
mirabolantes, agora nos mercados de hipotecas. Os preços dos imóveis residenciais
foram às alturas. A valorização da riqueza aumentou o apetite das famílias pelo
endividamento. O consumo liderou o crescimento da economia americana, amparado na
ampliação do déficit em conta corrente financiado pela poupança dos asiáticos
superavitários.

Quando os preços das residências, pressionados pelo excesso de oferta, iniciaram a


derrocada e os devedores sem lenço nem documento tiveram de enfrentar o reajuste do
juro e o pagamento do principal, os mercados reverteram as expectativas, da euforia
para o pânico. Passaram a amargar os ajustamentos perversos entre a queda dos preços
dos imóveis, a inadimplência dos devedores, a desalavancagem dos bancos e demais
instituições financeiras (a desvalorização da riqueza) e a tentativa das famílias de
reduzir o endividamento e os gastos de consumo.
O Federal Reserve e seus pares no mundo desenvolvido não vacilaram. Trataram de
prover liquidez para administrar a desalavancagem e conter a qualquer custo a contração
do crédito. Os balanços dos bancos centrais abriram as comportas para a inundação de
ativos sem preço nem reputação. As regras, danem-se as regras. Não faltam no pedaço
liberais de carteirinha dispostos a defender as medidas não-convencionais, como as
anunciadas no domingo pelo governo americano. É a macacada do “veja bem”. Os
mercados, dizem eles, funcionam exatamente como a vulgata liberal ensina, “mas, veja
bem”...

Os debates sobre a nova regulamentação dos mercados financeiros e de suas práticas


desastradas demonstram, no entanto, que a turma do “eu ganho, você perde” deseja
continuar no campo de jogo. Pede prorrogação. Mas é inegável que a aventura dos
mercados sabichões e dos sabichões do mercado estrebucha nas mãos do Estado
salvador.

Já mencionei em outra ocasião que Martin Wolf, colunista do Financial Times, perdeu a
esportiva. Diz ele: “Nenhum setor de atividades tem talento comparável para privatizar
lucros e socializar prejuízos. Em nenhum outro setor os agentes mostram-se tão
irritantemente confiantes em suas certezas morais quando as autoridades
governamentais – especialmente presidentes de bancos centrais – não agem
imediatamente para socorrê-los quando se vêem (merecidamente) em dificuldades”.

Wolf prossegue no destampatório: “Mas eles (os meninos travessos) estão certos em
esperar socorro. Pois sabem que, enquanto cometerem os mesmos erros coletivamente –
como fazem os “banqueiros sensatos” –, o setor público precisará prestar socorro. Os
banqueiros têm condições de manter a economia e a sociedade democrática como suas
reféns (veja bem...). Os governos não têm alternativa: precisam ajudar os bancos.”

O problema está aqui

17/11/2008 16:31:05

Luiz Gonzaga Belluzzo

“O que criou essa bolha e produziu seu estouro barulhento”, diz John Helyar, editor da
Bloomberg, “foi a mudança do modelo de negócios de Wall Street. A rejeição do Glass-
Steagall Act em 1999 permitiu que os bancos comerciais e os bancos de investimento
criassem sinergia entre suas incompetências.” O Glass-Steagall, prolatado em 1930,
determinou a separação entre os bancos comerciais e os bancos de investimento. Os
primeiros são instituições que recebem depósitos à vista e realizam empréstimos
mantidos em carteira até o vencimento. Os bancos de investimento se dedicam ao
aconselhamento de empresas nas emissões primárias de títulos de dívida e ações e na
gestão desses instrumentos financeiros – avaliados e negociados diariamente nos
mercados de capitais, primários e secundários. São brokers e dealers.

A desregulamentação financeira rompeu os diques impostos – depois da crise dos anos


30 – à ação dos bancos comerciais, que voltaram a operar como supermercados
financeiros e passaram a se valer da “securitização” de créditos, o que facilitou o seu
envolvimento com o financiamento de posições nos mercados de capitais e em
operações “fora do balanço” com derivativos.

A nova configuração institucional acirrou a concorrência entre as instituições


financeiras na atração da clientela e na aceleração das inovações financeiras. Os
gestores de portfólios – bancos comerciais, de investimento e fundos mútuos, de pensão
e de hedge –, no afã de carrear mais recursos sob o seu controle e na ânsia de bater os
concorrentes, são constrangidos a exibir as melhores performances.

Um experiente administrador de fundos concluiu, em meio à tormenta do subprime:


“Quando todos à sua volta estão fazendo negócios à velocidade do raio, é incrivelmente
fácil ser carregado pela onda de otimismo e fazer coisas das quais você vai se
arrepender. Nesses momentos, a atitude mais corajosa é não fazer nada”. Piedosa
intenção. Quem disputa o jogo da concorrência nos mercados financeiros – frouxamente
regulados e displicentemente supervisionados – está obrigado pela clientela a buscar o
rendimento máximo, sob pena de ser desbancado pelo rival da esquina. Ligada a ignição
da ganância infecciosa, os tripulantes não podem brecar o expresso da alegria, até o
comboio descarrilar.

O entusiasmo quase generalizado com a liberalização e a desregulamentação dos


mercados financeiros deu lugar à recriminação e à busca de culpados. Agora já são
muitos os que criticam as interpretações convencionais que atribuíam as crises
financeiras e cambiais à má gestão monetária e fiscal dos governos. Desde o episódio
asiático, os analistas mais responsáveis e menos comprometidos com o mundo dos
negócios procuraram ressaltar o papel desempenhado pelos bancos e empresas privadas,
sempre envolvidos em surtos especulativos com ativos reais e mobiliários, bem como
nos ataques às moedas fracas.

A sucessão de quebras e intervenções do Federal Reserve e do Tesouro nos Estados


Unidos deixou de calças na mão os arrogantes e presunçosos do Primeiro Mundo
ocidental. Digo ocidental porque muitos juravam de pés juntos: as encrencas bancárias
no Japão e a crise financeira na Ásia eram o resultado lógico de sistemas bancários
concebidos para um “capitalismo de compadres”. Coisa de orientais que descuravam da
supervisão e regulamentação de seus sistemas bancários. Não foram poucos os que
antecipavam o surgimento de problemas de liquidez nos bancos chineses, diante do
crescimento dos non performing loans.

Os fanfarrões demoraram a descobrir que os bancos de investimento americanos e seus


parceiros, como os hedge funds e as seguradoras de crédito, estavam empenhados em
jogar entulho na cordilheira de lixo tóxico. A cadeia de montanhas de detritos
financeiros foi construída mediante a multiplicação e negociação de ativos lastreados
em créditos hipotecários e a disseminação de derivativos que supostamente garantem os
investidores contra o default, os indefectíveis CDS (Credit Default Swaps). Estimulados
por comissões polpudas para suas instituições e incentivados pela expectativa de bônus
estonteantes, os administradores da finança ajudaram a montar o cenário do desastre.

Já relatei, em outra ocasião, o debate promovido pela revista inglesa Prospect entre
George Soros, Anatoly Kaletstky do London Times, Martin Wolf do FT e John Gieve
do Comitê de Estabilidade Financeira do Banco da Inglaterra, entre outros. Trechos do
debate foram traduzidos de forma livre e se concentram na controvérsia sobre os
instrumentos mais adequados para administrar um ciclo de crédito com inflação de
ativos.

Alto dirigente do Banco da Inglaterra, Gieve não escapa pela tangente ao comentar a
responsabilidade das autoridades no desenvolvimento das práticas e inovações que
levaram ao desfecho indesejado. Diz ele: é impossível negar que a ausência de
regulação no mercado de hipotecas contribuiu para a eclosão da crise. Na última euforia
com a valorização de ativos, as operações estruturadas de crédito – vender títulos
lastreados em empréstimos hipotecários e outros – fizeram a diferença. Os que
inventavam e promoviam tais produtos não tinham a menor idéia a respeito do
comportamento de seus preços em condições econômicas agudas.

O assim chamado megaespeculador George Soros desconfia das teorias que informam
as decisões dos protagonistas dos mercados financeiros. Para ele, as autoridades e os
demais participantes do jogo de avaliação da riqueza apóiam-se em uma falsa
interpretação sobre o funcionamento dos mercados. Imaginam que tendem ao equilíbrio
e os desvios são aleatórios. Essa falsa concepção permitiu a elaboração dos produtos
estruturados e produziu uma crise muito maior e mais abrangente do que uma simples
bolha imobiliária americana.

Bolhas de ativos são endêmicas. As autoridades reguladoras têm obrigação de lidar com
elas enquanto é tempo. Não é o caso de se utilizar a política monetária, ou seja, de tentar
furar a bolha com aumento do juro. Trata-se de operar através do canal do crédito.
Soros, como Hyman Minsky, assegura que os mercados financeiros lidam com
promessas e avaliações sobre o curso futuro dos ativos e dos títulos de dívida. Estão,
portanto, sujeitos a gerar endogenamente euforia e pânico. O Banco Central deve estar
sempre pronto para modificar as exigências de reservas e de capital conforme a toada do
ciclo econômico.

Gieve não só concorda com Soros, como acrescenta: usar a taxa de juro para controlar
um ciclo de ativos pode produzir graves danos à economia – as taxas devem subir muito
para conter as expectativas altistas e eufóricas dos investidores. As autoridades – leia-se
o Banco Central – devem recorrer à ampliação das exigências de capital e de liquidez
para dar eficácia anticíclica às suas políticas.

A omissão das autoridades diante das pirotecnias dos mercados é a marca registrada do
capitalismo americano. As crises financeiras se tornam graves quando as flutuações no
valor da riqueza contaminam os bancos comerciais, aqueles que recebem depósitos e
fazem empréstimos, além de funcionar como sistema de pagamentos na economia
monetária. Na terça-feira 16 de setembro, os bancos cobravam entre si taxas
exorbitantes nos mercados interbancários onde são efetuadas as trocas de reservas. As
taxas sinalizam para uma forte contração do crédito, a despeito das sucessivas e maciças
injeções de liquidez promovidas pelos bancos centrais.

Quando isso acontece, a maquinaria econômica trava. É certo que a sucessão de


intervenções e nacionalizações tem o propósito de fazer a engrenagem do crédito voltar
ao seu funcionamento normal. Mas a opacidade dos mercados securitizados e
alavancados é de tal ordem que não há como descobrir onde está o contraparte e, muito
menos, se ele é um justo ou um pecador. Sendo assim, o sistema de crédito é tomado
pelo descrédito.
A dinâmica da crise financeira parece impor aos recalcitrantes lições interessantes sobre
as inter-relações entre mercados financeiros, crédito e moeda no capitalismo moderno.
Na corrida dos investidores para os títulos do governo americano, os mercados prestam
reverência à soberania monetária do Estado nacional responsável pela gestão da moeda
reserva. Os preços dos ativos derretem, as pseudomoedas se desvalorizam, o crédito
desaparece. A fuga para a qualidade, ou seja, a preferência para a liquidez, revela que a
diversificação e o fracionamento da riqueza e das moedas sucumbem ao caráter central
e centralizador do dinheiro universal.

Como nos anos 30, as autoridades terão de avançar o controle sobre as finanças até as
fronteiras da estatização do crédito, para não falar da administração pública das
inevitáveis fusões e aquisições. O processo de centralização de capital na órbita
financeira será comandado pelo Estado, respondendo aos clamores do mercado. Seja
qual for o nome atribuído a essas venturosas operações.

Sobre a natureza da economia de mercado

17/11/2008 16:32:21

Luiz Gonzaga Belluzzo

Há poucos meses, os exportadores brasileiros tomavam financiamentos em dólar


(adiantamentos de contrato de câmbio) e vendiam a moeda americana para abiscoitar os
juros em reais e a valorização da moeda nativa. O longo período de bonança na
economia global favoreceu, entre outras coisas, a valorização do real, com auxílio
inestimável do hiato generoso entre juros domésticos e externos.

Tudo isso açulou o ânimo de bancos criativos e exportadores, estranhamente satisfeitos


com o real valorizado. Entusiasmados com os efeitos do euforizante que inalavam, os
empresários foram além e “alavancaram” posições vendidas na moeda americana. Para
tanto, as empresas se valeram de operações com derivativos de balcão, contratadas com
os bancos, estrangeiros em sua maioria. Passaram do hedge à especulação. Na onda do
efeito-demonstração, seguiram acompanhadas na empreitada por outras empresas não
exportadoras.

Os resultados foram compensadores por algum tempo. Mas a brutal inversão de


tendência no movimento do câmbio impôs prejuízos alentados às empresas que
apostavam na valorização do real. A partir de então, os ganhadores de ontem tornaram-
se os perdedores de hoje. Muitos ainda não zeraram a posição, mas todos passaram a
demandar desesperadamente a moeda americana, acentuando a escalada do dólar. A esta
altura do campeonato, as empresas estão amargando em seu caixa (e provavelmente em
seus resultados) as conseqüências do risco de preço em que incorreram, enquanto os
bancos estão ameaçados de descumprimento dos contratos por parte das contrapartes.
Percalços da especulação.
É oportuno esclarecer que a palavra “especulação” utilizada acima exprime tão-somente
o modo de ser, a natureza, da economia de mercado, também conhecida como
capitalismo. Nela as “especulações” a respeito da evolução das condições do crédito e
dos valores monetários dos ativos são constitutivas das decisões dos possuidores de
riqueza. Quem produz e exporta salsichas não o faz para suprir as necessidades dos
consumidores, senão para acumular riqueza monetária.

Na economia da especulação, não há “estabilização do câmbio” em torno de um valor


fundamental, como pretendem as teorias que sustentam os regimes de câmbio flutuante.
Tais hipóteses estariam bem, talvez, se aplicadas a um mundo em que a taxa de câmbio
real exprime os preços relativos entre os bens produzidos domesticamente e aqueles de
produção forânea. Fosse este o caso, o câmbio se moveria em razão da posição da
balança em transações correntes, ou seja, reagiria aos déficits ou superávits na conta que
registra as exportações e importações de mercadorias e serviços.

As supracitadas teorias funcionam mal, muito mal, quando as economias estão abertas
aos movimentos de capitais e sujeitas à formação de posições especulativas em
mercados futuros. Em tais circunstâncias, a taxa de câmbio reflete a demanda e oferta
das moedas enquanto ativos financeiros. Sempre pró-cíclicas e causadoras de exageros,
as antecipações sobre as variações de preços provocam bruscos ajustamentos entre a
moeda nacional e a moeda internacional de referência, sem proporção com os resultados
do comércio.

A coisa fica ainda pior quando esses movimentos ocorrem em períodos de turbulência
financeira. Não é tão difícil entender que, a despeito da grave crise que afeta as
instituições financeiras dos Estados Unidos, o prêmio de liquidez implícito na posse da
moeda americana é, nos momentos de desconfiança e medo, a prenda mais cobiçada nos
mercados globais. Por isso, a despeito de flutuante, o câmbio brasileiro apresenta hoje
distúrbios próprios de um regime de câmbio fixo em tempos de ataque especulativo.

A escalada de valorização do dólar confirma a percepção de muitos: os Treasury Bills


são os ativos de última instância do sistema monetário global, ainda sob o comando do
Estado Nacional americano. Veja o leitor: os rendimentos dos títulos despencam, mas a
elevada probabilidade de deflação universal torna vantajoso (e racional) ficar nos títulos
seguros e líquidos de Tio Sam. A economia mundial navega, sim, nas águas da liquidez
e de suas armadilhas.

Os sinais são inequívocos. Na terça-feira 7 de outubro, o Fed decidiu intervir nos


mercados de curto prazo – liberou 460 bilhões de dólares para a compra de commercial
papers. As transações nesses mercados estão praticamente paralisadas, enquanto os
felizardos detentores de liquidez – sejam eles bancos, empresas ou famílias – tratam de
se refugiar nos ativos sem risco.

O pânico dos investidores rapou os fundos de renda fixa com resgate mediante pré-aviso
e os bancos de depósito congelaram o crédito para todos os mercados. Os commercial
papers são títulos de curto prazo emitidos pelas empresas para o financiamento de
capital de giro ou pelas instituições financeiras não bancárias (não depositárias) para
financiar posições em ativos mais longos, como, por exemplo, os CDOs, derivativos de
crédito lastreados em empréstimos hipotecários.
O desmoronamento da pirâmide invertida de ativos – a desalavancagem, a busca
desaçaimada por ativos mais líquidos – começa a afetar os fundamentos que lhe deram
origem, ou seja, a capacidade do sistema de crédito de criar depósitos por meio de
empréstimos, provendo liquidez e meios de pagamento à economia. Se essa engrenagem
não funciona, a economia monetária é incapaz de dar apoio às decisões de produção das
empresas e, portanto, de gerar emprego e renda para a comunidade.

O economista Willem Buiter sugere providências para normalizar o mercado de crédito.


As sugestões são de exclusiva responsabilidade do seu autor.

1) Nacionalizar os bancos. Único proprietário, o governo tem poder para induzir os


bancos a emprestarem uns aos outros. Problema resolvido. Para quem não se sente
preparado para tais medidas, aí vai mais uma.

2) O Banco Central se interpõe como contraparte universal nas transações


interbancárias. Isso já acontece nas operações de overnight na Inglaterra e na área do
euro. Em vez de o banco A emprestar para o banco B e vice-versa, o Banco Central
toma emprestado do banco A e repassa para o banco B. Isso exige que o Banco Central
determine a taxa interbancária para todos os prazos em que vá operar como contraparte
universal.

O insaciável Moloch

17/11/2008 17:09:09

Luiz Gonzaga Belluzzo

O indivíduo racional e maximizador da utilidade é a argamassa do pensamento social


dominante. Nas versões eruditas ou nas traduções vulgares, a hipótese da racionalidade
individual é um pressuposto metafísico da ideologia dominante, necessária para apoiar a
“construção” do mercado como um servo-mecanismo capaz de conciliar os planos
individuais e egoístas dos agentes.

Para esse paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída


mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não
necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoe a Sexta-Feira. Essa operação
ideológica permite a oposição entre Estado e Mercado como instâncias antitéticas da
vida social. Trata-se de uma operação de “limpeza ideológica” que pretende eliminar as
condições em que se trava a luta social, conflito que nasce na “esfera das necessidades”,
ou seja, no âmbito das relações de produção e da concorrência, inescapavelmente
mediado na esfera política pela intervenção do Estado.

Na visão liberal conservadora, Estado e Mercado deixam de ser instâncias da


constituição do capitalismo enquanto sistema histórico de relações sociais, políticas e
econômicas e passam a representar alternativas abstratas de organização da sociedade.
Desde o início dos anos 1980, sob a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher,
foi desaçaimada a ofensiva global – ideológica e política – contra as práticas do Estado
regulador e os direitos criados pelo Estado do Bem-Estar. A “ideologia economicista”
que viria conquistar os corações e as mentes de todos estava comprometida com uma
idéia fundamental: é preciso libertar as forças criativas da iniciativa privada e permitir a
fluência mercantil, na medida do possível desimpedida das restrições impostas pela
intervenção estatal.

Os liberais de todos os matizes sustentam que o Estado interventor criou uma clientela
que, entre outras coisas indevidas, quer garantia de emprego, além de sombra e água
fresca, tudo fornecido graciosamente pelo Estado munificente. Garantem os adversários
do Estado Social que a insistência em políticas “irracionais e populistas” produziria
menos crescimento e mais desemprego a longo prazo, ao contrário do que pretendem os
defensores das iniciativas voltadas intencionalmente para contrabalançar os efeitos dos
solavancos da economia. Numa versão um pouco mais sofisticada, essa pérola poderia
ser assim engastada nos adornos do livre-pensamento: está fadada ao fracasso qualquer
proposta de intervenção, em nome da segurança coletiva, que esteja em desacordo com
as hipóteses científicas da escolha racional do indivíduo “utilitarista”, cuja ação deve
estar apenas limitada por restrições impostas pela escassez de recursos e pelo
funcionamento dos mercados competitivos.

A recomendação para os mercados financeiros, por exemplo, é a desregulamentação e a


eliminação das barreiras à entrada e saída de capital-dinheiro nos países, sejam fracos
ou fortes, de modo que a taxa de juro possa exprimir, sem distorções, a oferta e a
demanda de “poupança” nos espaços integrados da finança mundial.

Para os mercados de bens, submeter as empresas à concorrência global, eliminando os


resquícios do protecionismo ou quaisquer políticas deliberadas de fomento. E para os
mercados de trabalho, a flexibilização e a remoção de cláusulas sociais, ineficientes e
danosas para os trabalhadores.

Tais reformas devem ser levadas a cabo num ambiente macroeconômico em que a
política fiscal esteja encaminhada para uma situação de equilíbrio intertemporal
sustentável e a política monetária controlada por um banco central independente. Essas
condições macroeconômicas significam que as duas dimensões públicas das economias
de mercado – a moeda e as finanças do Estado – devem ser administradas de forma a
não perturbar o funcionamento das forças que sempre reconduzem a economia privada
ao equilíbrio de longo prazo.

Mas escapou a esse ideário bem-comportado que os fenômenos centrais do capitalismo


destravado de nosso tempo são o acirramento da concorrência entre as grandes empresas
internacionais, a escalada da financeirização e as rápidas mudanças na geoeconomia
mundial. As posições relativas de países, continentes e classes sociais sofrem, já há
algum tempo, alterações tão radicais quanto perturbadoras.

O economista de Harvard Richard Freeman diz, em artigo recente, que a velha conversa
sobre os benefícios do comércio – na situação em que os países avançados produzem
bens de alta tecnologia com trabalho qualificado enquanto os menos desenvolvidos se
dedicam aos setores de mão-de-obra não qualificada – “tornou-se obsoleta com a
presença da China e da Índia”.

Nos anos 90, Paul Krugman, o economista recém-laureado com o Nobel, patrocinou
uma cruzada ideológica contra os movimentos antiglobalização que protestavam pela
perda dos bons empregos americanos para os trabalhadores produtivistas da Ásia. Em
artigo recente sobre os efeitos da migração de empresas para a China, Krugman foi
obrigado a reconsiderar seus pontos de vista. Os moradores de Flitch, no estado de
Michigan, perderam o emprego na fábrica de autopeças fechada sob pressão da
concorrência chinesa.

Indagado sobre o destino dos desempregados, o economista Gregory Mankiw respondeu


candidamente: “As pessoas têm de se mover”. Afirmou isso depois de ter proclamado a
necessidade de se ministrar um curso de economia no ensino médio para que o público
em geral possa ter uma visão mais acurada da globalização.
A internacionalização da economia é um fenômeno constitutivo do capitalismo, o que
não significa que haja uma única maneira de lidarmos com os processos que a
constituem. É fácil, hoje em dia, confundir as limitações crescentes impostas ao Estado-
nação com a construção de um espaço de livre circulação dos indivíduos, promovido
pelo movimento desembaraçado de mercadorias e capitais. Os entusiastas da
globalização asseguram que a liberdade humana decorre do impulso natural do homem
à troca, ao intercâmbio, à aproximação por meio do comércio etc. Adam Smith
corretamente chamou a atenção para o caráter libertador da economia mercantil
capitalista e para as suas potencialidades. Marx, herdeiro e defensor das postulações do
Iluminismo e da Revolução Francesa, indagou se as relações de produção e as forças
produtivas do capitalismo permitiriam, de fato, a realização da Liberdade, da Igualdade
e da Fraternidade.

O capitalismo pode ser definido como a coexistência entre a enorme capacidade de


criar, transformar e dominar a natureza, suscitando desejos, ambições e esperanças, e as
limitações intrínsecas à sua capacidade de entregar o que prometeu. Não se trata de uma
perversidade, mas do seu modo de funcionamento.

As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes


corporações. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e
promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um
obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento
da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e, assim, restringem a
soberania estatal e impedem que os cidadãos, no exercício da política democrática,
tenham capacidade de decidir sobre a própria vida.

Na visão de Elizabeth Roudinesco, o sujeito moderno, aquele “consciente de sua


liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte, pela proibição”, é substituído pela
concepção “mais psicológica de um indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente e
está preocupado em retirar de si a essência de todo o conflito”.

Os trabalhos de destruição da subjetividade moderna são realizados por uma sociedade


que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. As ciências humanas e
sociais contemporâneas exprimem essas necessidades da sociedade capitalista, ou seja,
desse sujeito abstrato, mediante duas visões: a universalidade naturalista, deduzida de
disciplinas sérias como as neurociências ou a genética e a diversidade do culturalismo
empírico.

Para os primeiros, os males do mundo podem ser solucionados com doses maciças de
Prozac ou de qualquer substância química capaz de aliviar o sofrimento dos “aparelhos
biológicos”. Para os outros, os do culturalismo, o melhor é abandonar as dores que
acompanham a constituição de um saber universal e eternamente inacabado, refugiando-
se na completude do mundo mítico e mágico das verdades particulares e supostamente
originárias. As duas visões do sujeito, aparentemente antitéticas, têm em comum o
horror à diversidade concreta e irredutível do mundo da vida. Esse horror não pode ser
aplacado pela sociabilidade do mercado que transforma o Outro num inimigo-
competidor.

Apoiados em convenções e constrangidos pela concorrência, essas subjetividades, os


detentores de riqueza não podem escapar dos estados de euforia e apetite pelo risco que
culminam na decepção, na crise e na desvalorização da riqueza. Os indivíduos racionais
e calculadores são atropelados pela “busca desesperada da riqueza líquida”, a volúpia
coletiva pela forma geral da riqueza que, em seu movimento maníaco, termina por
destruir não só as suas formas particulares como também os particularismos dos
indivíduos tomados pelo instinto de manada. Em todas as crises, o descontrole da
manada só é aplacado com intervenções de suporte de liquidez que visavam e visam
impedir que a busca da riqueza geral produza a generalização do empobrecimento
causado pela “sagrada fome do ouro”. Auri Sacra Fames.

A intervenção salvadora dos bancos centrais, sem dúvida, corre o risco de fortalecer a
crença de que os desatinos dos investidores estarão sempre a salvo de perdas
pronunciadas e definitivas. As eventuais crises seriam momentâneas, apenas
oportunidades em que se apresentariam pontos de compra convidativos para o início de
uma nova temporada de alta generalizada.

Ainda assim, a experiência dos últimos anos, estimulada, entre outras causas, pela
imprevidência do ex-presidente do Banco Central dos EUA Alan Greenspan, não é
suficiente para assegurar que a sucessão de episódios de euforia e depressão vá terminar
sempre com a salvação dos protagonistas mais alavancados.
Os ataques frenéticos de desorientação e desespero são apenas os aspectos mais
explicitamente homicidas do capitalismo “financeirizado”. Nele, a pretensão dos bem-
sucedidos de acumular “tempo livre” sob a forma de capital fictício é, ao mesmo tempo,
a “liberação” dos dependentes para as agruras do desemprego, da crescente insegurança
e precariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da exclusão social.

Nesse ambiente darwinista são cada vez mais freqüentes as arengas dos economistas,
sacerdotes da religião dos mercados, contra as tentativas dos simples cidadãos e cidadãs
de barrar a marcha do Moloch insaciável e ávido por expandir o seu poder. A grita dos
sábios da finança é desferida contra os “desvios” da política, os surtos de “populismo”.
Com esses slogans os ideólogos pretendem enquadrar a sociedade na camisa-de-força
de uma suposta racionalidade econômica.

Os mercados e seus agentes, diga-se, não estão certos nem errados. Estão simplesmente
obrigados a tomar decisões que, em seu imaginário peculiar, são as apropriadas para
proteger ou acrescentar o valor de sua riqueza. Na verdade eles são “pensados” por uma
lógica que não controlam.

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