Luiz Gonzaga Belluzzo - Artigos Carta Capital
Luiz Gonzaga Belluzzo - Artigos Carta Capital
Luiz Gonzaga Belluzzo - Artigos Carta Capital
Carta Capital
21/01/2010 17:43:44
É considerada intolerável a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar
ou na sua correspondência, (e, atenção!) nem a ataques à sua honra e reputação. Toda
pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. O cidadão
(note o leitor, o cidadão) tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações por quaisquer meios e independente de fronteiras.
Todos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistências especiais. Todas as
crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. A
instrução é um direito de todos e ela será gratuita pelo menos nos graus elementares e
fundamentais. O artigo 17 é dedicado a Bush Filho: “Toda pessoa terá direito a uma
ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente
Declaração possam ser plenamente realizados”.
Na Europa dos séculos XIX e XX, a consciência dos direitos moveu a luta dos
subalternos e transformou o Estado numa instância de “totalização das relações sociais”.
Suas intervenções realizam a mediação entre as classes e entre os membros individuais
das diferentes classes. O avanço da “totalização das relações sociais” pode ser avaliado
de forma mais clara pelo grau de independência adquirido pelas instâncias do poder
público e da política diante do poder material da camada dominante. Os sitemas de
proteção aos Direitos Humanos nos países mais avançados da Europa assumem que há,
sim, contradição entre as exigências de impessoalidade e publicidade dos atos
praticados pela autoridade, regulados pela lei abstrata e universal e o exercício do poder
real pelas camadas economicamente mais poderosas.
O século XXI completou uma década e o Brasil ainda não conseguiu acertar contas com
o passado. O passado não passa, lança suas sombras sobre o presente e projeta maus
agouros para o futuro. As reações à publicação do decreto dos Direitos Humanos
lançaram no ar os odores da famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade e
suas consequências funestas. Sob essas consignas – Deus, Família e Liberdade – os
beleguins da ditadura assassinaram religiosos, invadiram os lares de muitos brasileiros
que dissentiam, desarmados, aos atropelos da exceção. Para garantir a liberdade de
expressão degradaram (algumas) redações com censores de ornamentos culturais que
iam do grotesco ao obsceno.
Digo acertar as contas sem ranço revanchista nem propósitos de revigorar a Lei de
Talião, mas de abrir aos brasileiros de todas as gerações as portas da verdade. Não
entenda o leitor que vamos encontrá-la apenas cavoucando as masmorras da ditadura,
indagando os paus de arara, ou até mesmo desencavando e publicando os arquivos da
repressão política (vou insistir: da repressão política). A verdade vai chegar a nós na
discussão, sem receios nem interdições, acerca das razões e das circunstâncias históricas
e sociais que levaram o País a sucumbir diante da inescrupulosa e oportunista violação
dos princípios da vida democrática e do Estado de Direito.
Nos anos 60, às vésperas do famigerado golpe de Estado de 1964, surgiu um slogan
premonitório: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Gordon era o
embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Conspirava abertamente com as “forças
democráticas” nativas, aquelas que estão permanentemente arquitetando a supressão da
democracia. Da conspiração participavam naturalmente os homens de bem, os mesmos
que hoje se arvoram em defensores intransigentes da democracia e do Estado de Direito.
Nada mais inconveniente para essa turma do que uma Comissão da Verdade.
Assassinato de reputação
04/12/2009 16:12:24
O artigo de Cesar Benjamim sobre o filme Lula, o Filho do Brasil, publicado na Folha
de S. Paulo em 27 de novembro, caiu na armadilha de transformar a crítica política em
character assassination.
O leitor há de concordar que a prática não escasseia nas mídias contemporâneas. Seja
como for, o artigo de Benjamim suscitou uma controvérsia que envolveu o “grande
jornalismo” e seus “inimigos” abrigados nos blogs da internet. Com exceções honrosas,
graças aos céus não tão raras, o debate foi dominado por argumentos ad hominem, num
jogo de espelhos em que os defensores do bom jornalismo começam por violar as regras
recomendadas ao adversário ou “inimigo”. Em alguns cantos e tantos recantos,
Benjamim foi massacrado impiedosamente, numa retorsão que só abastarda o padrão já
miserável em que se desenvolveu a contenda.
Ao tratar do assunto, Pierre Bourdieu lança uma pergunta incômoda: quem é o sujeito
do discurso midiático, dos grandes e dos pequenos? Ele responde: os jornalistas não são
entidades abstratas, mas cidadãos de carne e osso, com formações e níveis de instrução
diferentes, opiniões distintas e gostos peculiares. Ainda assim, na mídia contemporânea,
as produções jornalísticas são cada vez mais homogêneas tangidas pela concorrência e
pela busca incessante de publicar diariamente o que “não é cotidiano”. A contradição
torna-se aguda: de um lado, a liberdade de expressão exige um sistema legal de
garantias, cuidadoso em seus procedimentos, de outra parte, a concorrência desenfreada
pelo controle da informação estimula a formação de correntes de opinião que
propugnam por formas primitivas de punição e de vingança.
09/10/2009 13:36:38
Luiz Gonzaga Belluzzo
O plano apresentado por Keynes em Bretton Woods buscava uma distribuição mais
equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários
e superavitários. Isto significava, na verdade – dentro das condicionalidades
estabelecidas – facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países
superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e
manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais, que o
controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem
econômica mundial”.
02/10/2009 15:06:17
Essas são ape nas algumas, entre tantas teratologias semânticas banhadas no caldo da
hipocrisia genética e generalizada da turma do andar de cima, outrora chamada, nas
colunas sociais, de anedota e champanhota.
Desde a transição democrática de meados dos anos 80, esse povo anseia pelo desfecho
da desperança sem mudança ou, como dizia um crítico de Adorno, “a realiza ção das
esperanças do passado”. Assim os senhores da terra concebem o progresso. A história
relata que as eleições diretas sucumbiram diante das artimanhas e salamaleques do
colégio eleitoral. A nau de Ulisses encalhou nas praias do transformismo à brasileira e
os náufragos do regime militar saltaram alegremente a bordo. O episódio hondurenho
mostra que, ainda hoje, os quase afogados navegam à solta, despojados das culpas que
simulavam depois da derrocada do regime autoritário, fórmula em que apostavam para
consolidar a democracia brasileira. Há que compreender, portanto, os pruridos
linguísticos nascidos, provavelmente, da negação coletiva e inconsciente da conivência
com as tropas que pisotearam a democracia e o Estado de Direito, desde a quartelada
levada a cabo naquele distante, mas inesquecível 1º de abril de 1964.
Revisitadas as raízes dos engasgos semânticos, convém retornar aos fatos ocorridos na
República de Honduras. Em sua irritante persistência, os fatos relatam que Zelaya, alta
madrugada, foi retirado da cama, enfiado no avião e despachado para fora do país. Em
qualquer região civilizada do globo habitada por cidadãos acostumados ao exercício da
democracia e ao respeito às regras do Estado de Direito, tal cometimento dos gorilas de
Honduras, fardados ou não, seria chamado de golpe.
Há quem argumente, como justificativa para suas vacilações e tremeliques, que Zelaya
preparava um plebiscito para legitimar sua reeleição, prática expressamente proibida,
em cláusula pétrea, pela Constituição. É certo que a Constituição de Honduras não
permite tais manobras. Mas também é certo que ela apresenta os remédios legais e não
violentos para a destituição da autoridade seduzida pelo continuísmo.
O discurso e a prática
18/09/2009 14:03:33
Muita gente desconfia, no entanto, que o presidente dos Estados Unidos vá sucumbir
diante das resistências e humores dos senhores da finança. É cada vez maior o
contingente de analistas céticos em relação à disposição de Obama de impor aos
mercados regras prudenciais e medidas capazes de reverter o impulso de buscar
inovações capazes de satisfazer o apetite feroz por ganhos maiores.
Nos anos 90, os democratas de Clinton patrocinaram a extinção das regras que
determinavam a separação das funções entre os bancos comerciais, de investimento e
instituições encarregadas do crédito hipotecário, imposta pelo Glass-Steagall Act na
crise bancária dos anos 30. A rápida ampliação dos mercados de capitais, ao promover a
securitização dos créditos, não só abriu espaço para as trampolinagens do subprime,
como também estimulou as operações de tesouraria por parte dos bancos ou quase-
bancos.
Não é fácil definir com precisão o que é uma crise sistêmica, mas é possível reconhecer
o fenômeno quando está ocorrendo. Numa pesquisa exaustiva, os economistas De Bandt
e Hartmann afirmam que uma crise sistêmica ocorre quando “um número considerável
de instituições financeiras ou mercados afeta o bom funcionamento do sistema de
crédito, ou seja, afeta negativamente a eficiência da transformação da poupança em
investimento produtivo”. Os dois economistas estão falando de uma contração do
crédito, um credit crunch, que se esparramou por toda a economia e disparou uma crise
no setor dito “real”, sobretudo no consumo das famílias, no investimento produtivo e no
emprego. Sem tirar nem pôr, foi isso o que ocorreu sob as barbas dos economistas de
Obama, senão sob seu patrocínio entusiasmado.
03/07/2009 17:38:57
Em sua concepção essencial, o Plano Real seguiu o método básico utilizado para dar
fim à maioria das “grandes inflações” do século XX: recuperação da confiança na
moeda nacional pela garantia de seu valor externo. A “âncora” foi, como é amplamente
reconhecido, a estabilização da taxa de câmbio nominal, garantida por financiamento
em moeda estrangeira e/ou por um montante de reservas capaz de desestimular a
especulação contra a paridade escolhida. Isso foi possível graças à deflação da riqueza
mobiliária e imobiliária observada já no fim de 1989 nos mercados globalizados. A
recessão americana, que se prolongou até meados de 1992, e o “estouro” da bolha
especulativa japonesa foram fatores que exigiram grande lassidão das políticas
monetárias. O propósito era tornar possível a digestão dos desequilíbrios correntes e do
balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias, atingidos pelo colapso do
exuberante surto de valorização de ativos que se seguiu à intervenção salvadora de
1987.
Na partida do Real, a situação financeira do setor público brasileiro era invejável, uma
vantagem com que nenhum dos planos anteriores pôde contar. Portanto, o ajuste fiscal e
de endividamento público foi feito antes. Em 1993, os resultados primário e operacional
eram superavitários e a dívida líquida total e mobiliária, modesta em proporção ao PIB.
A combinação entre câmbio valorizado e juros altos, mantida a ferro e fogo, lançou a
economia brasileira numa trajetória de crescimento medíocre. O crescimento lento ainda
sofreria fortes oscilações provocadas por uma sucessão de crises que se abateram sobre
as economias “emergentes”. A estabilização foi acompanhada de um crescimento
bastante rápido do passivo externo da economia, além da expansão vertiginosa da dívida
pública.
Delícias do privatismo
01/07/2009 17:48:05
"Foi comovente a luta do Deputado José Aristodemo Pinotti para impedir que rolo
compressor dos bancos das empresas e do governo aprovassem a abominável lei que
regulamenta os chamados planos de saúde. Tão comovente quanto repulsiva a cena em
que o outros deputados comemoravam a vitória dos mercadores da desgraça humana.
A grande imprensa saudou a aprovação da lei como uma vitória dos usuários. Mas a
verdade é que, nas palavras do deputado Pinotti, “o projeto exclui tudo o que é caro nos
tratamento das doenças mais graves”. Ou seja, a saúde do cidadão está entregue aos
critérios do lucro privado.
Há quem diga que esta é a conquista suprema da raça humana e tudo o que existe ou
está para existir deve sucumbir ás normas do ganho monetário. Alguns brasileiros, da
classe média para cima vêm tentando transformar este axioma em orientação para a vida
prática. Não é de hoje que tentam safar a onça entregando a sua saúde e de seus filhos à
iniciativa dos privados. Não apenas a saúde mas também a educação, a segurança, a
aposentadoria, etc..
É claro que o repúdio desta gente à saúde pública , à escola pública, à segurança pública
é um gesto de diferenciação, de distinção em relação aos de baixo , uma espécie de grife
que os identifica como consumidores de bom gosto em oposição à rafaméia que se veste
com andrajos sem qualidade. A grande vantagem desta atitude é que, de quebra, fica
justificado o descumprimento das obrigações fiscais, ensejando esta espécie de
anarquismo de remediados. Há fortes evidências, neste momento, de que, salvo para os
de cima, a experiência foi desastrosa.
Sobrevivem realmente os mais fortes, mas os mais fortes são mais fortes há muito
tempo e o resultado da luta competitiva só pode ser a dizimação dos incautos que se
julgavam aptos a concorrer. É verdade que alguns conseguem se agarrar à espaçonave
que arranca em alta velocidade. Mas a maioria se estatela no chão duro.
Os planos de saúde, a escola privada, estes pesadelos não foram ainda suficientes para
ensinar às vitimas do individualismo as lições da vida. Faltam ainda os ensinamentos da
previdência privada. Mas ele não tardarão. Assim, desde as crianças até os velhos,
passando pelos de idade adulta, todos poderão provar das delícias do privatismo."
Dólar furado
05/06/2009 19:15:00
No afã de conter o apodrecimento continuado dos ativos privados nas carteiras das
instituições financeiras – bancos, criaturas assemelhadas e híbridas –, o Fed escancarou
as comportas de seu balanço para acolher o lixo tóxico. Simultaneamente, a recessão e
as medidas anticíclicas – a elevação do gasto e a redução das receitas – cuidaram de
cavar um buraco ainda mais fundo nas finanças do governo federal e, pior, destroçaram
o Erário dos estados da federação.
O dólar teve boa vida nos primeiros meses de crise. A moeda norte-americana
apresentou forte valorização diante do euro e do iene, para não falar das moedas dos
ditos emergentes, todas atacadas pelo que parecia ser mais um episódio de fuga para a
qualidade. O rublo, por exemplo, despencou, sugando uma fração expressiva das
robustas reservas do governo russo, que, diga-se, queimou sua grana em moeda forte na
tentativa de impedir a derrocada do câmbio.
Menos dramática foi a desvalorização do real. Falo isso sem desrespeito aos que se
lançaram na aventura do Target Forward, arataca financeira engendrada por bancos
espertos e clientes nem tanto. Conhecida no popular por “pague dois e leve um”, a
trapalhada suscitou pressão sobre os mercados de crédito em um momento de
desconfiança generalizada, o que rebateu sobre o câmbio e levou o dólar às imediações
da taxa de R$ 2,40.
Mas nosso presidente do BC não ignora que a taxa de juro e a taxa de câmbio
exprimem, em sua interação, a variação dos preços dos ativos denominados em moedas
distintas. Em uma economia aberta, com livre entrada e saída de capitais, as interações
entre câmbio e juro determinam alterações no valor dos estoques de riqueza
denominados em moedas distintas. Sua movimentação pode resultar em alinhamentos
indesejáveis da taxa de câmbio real, sobretudo quando as expectativas dos investidores
antecipam cenários muito favoráveis para o balanço de pagamentos, como é o caso do
Brasil do pré-sal.
27/05/2009 12:19:18
Na assim chamada Era Dourada – entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos
anos 70 do século passado – conviveram em harmonia o crescimento rápido, a baixa
inflação, reduzidas taxas de desemprego, aumento dos salários reais e integração das
massas aos padrões modernos de consumo e convivência.
Na década dos 70, o jogo virou. Entrou em campo a funesta combinação entre inflação e
baixo crescimento. O bloco ideológico que se opunha às políticas “intervencionistas” e
ao Estado do Bem-Estar tratou de atribuir o desarranjo à decrepitude das políticas e das
práticas que buscavam controlar a instabilidade do capitalismo e impedir que o destino
dos cidadãos ficasse à mercê das incertezas do mercado. Depois de 30 anos de
desempenho brilhante – as economias capitalistas emitiam sinais de fadiga estrutural. A
Golden Age agonizava.
No limiar dos anos 80, a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald
Reagan nos Estados Unidos refletiu o desconforto das classes abastadas e médias com a
estagflação. As cargas tributárias elevadas, o excesso de regulamentação e o poder dos
sindicatos eram, sem dúvida, os responsáveis pelo mau desempenho das economias.
A famosa Curva de Laffer garantia que a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos
e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto, reduzia a
oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As práticas neocorporativistas, diziam os
ideólogos do neoliberalismo, criavam sérias deformações “microeconômicas”, ao
promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços – nas taxas de câmbio,
nos juros e nas tarifas.
Ainda nos anos 50, tempo de esplendor e glória das políticas keynesianas e do Estado de
Bem-Estar, o libertarianismo de Friedrich Hayek e o monetarismo de Milton Friedman
formaram a comissão de frente da ofensiva contra “os inimigos da liberdade
econômica”. Para Hayek, o mercado é um processo de troca e de acumulação de
informações e não um ambiente estático dotado de forças que o reconduzem ao
equilíbrio. As intervenções do Estado são nefastas, pois só o processo de mercado torna
possível a inovação nos métodos de produção e de organização, a partir do continuado
fluxo de informações que surge da interação entre os indivíduos livres.
Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram para
aumentar o poder das grandes corporações em suas relações com os empregados e
terceirizados. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e
promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um
obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento
da concorrência coexistiram com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os
cidadãos, no exercício da política democrática, exercitassem o direito de decidir sobre a
própria vida.
15/05/2009 15:09:19
Assim, devo arriscar a pele. Prudentemente, começo pelo passado: depois do colapso
financeiro deflagrado pela quebra do Lehman Brothers, os preços dos ativos privados
foram atropelados pelos mercados em pânico, na busca impossível da desalavancagem
coletiva. Vendedores em fúria e compradores em fuga prometiam uma deflação de
ativos digna da Grande Depressão dos anos 30.
Nas crises, ocorre o colapso dos critérios de avaliação da riqueza que vinham
prevalecendo. As expectativas de longo prazo capitulam diante da incerteza e não é
mais possível precificar os ativos. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação
risco/rendimento sucumbem diante do medo do futuro. A obscuridade total paralisa as
decisões e nega os novos fluxos de gasto. Em tais circunstâncias, a tentativa de redução
do endividamento e dos gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do
reequilíbrio patrimonial é uma decisão “racional” do ponto de vista microeconômico,
mas danosa para o conjunto da economia, pois leva necessariamente à ulterior
deterioração dos balanços. É o paradoxo da “desalavancagem”.
A economia real nos Estados Unidos e na Europa segue em sua trajetória recessiva.
Como bem observou o economista Willem Buiter, os otimistas vacilam na matemática
ao confundir a primeira derivada – negativa – com a segunda, positiva. Isso significa
que o produto e o emprego seguem em declínio, mas a uma velocidade menor.
Seja como for, as injeções de liquidez e os programas de compra de ativos podres não
fizeram pouco. Além de construir um piso para a deflação de ativos, as intervenções
suscitaram um movimento global “no interior” da circulação financeira. Trata-se, na
verdade, de um rearranjo dentro do estoque de riqueza que responde aos preços
esperados dos ativos por parte dos investidores que lograram vencer o colapso da
liquidez e, depois, capturar os benefícios oferecidos pelas autoridades. A realocação de
carteiras favoreceu as bolsas, as moedas dos emergentes e as commodities, enquanto o
dólar devolve a valorização observada nos primeiros meses de crise.
O mercado sumiu
01/04/2009 12:58:54
O novo pacote de socorro do governo americano aos bancos encalacrados no lixo tóxico
foi, em um primeiro momento, recebido com entusiasmo pelos mercados. Já no dia
seguinte havia mais perplexidade do que entusiasmo entre observadores, analistas e
assemelhados.
O Tesouro dos Estados Unidos e o Federal Reserve tentam ressuscitar o cadáver dos
super-SIVs, que, imaginei, teria sido sepultado em 2008. Eles seriam encarregados de
recolher detritos financeiros desvalorizados: um pool de grandes bancos compraria a
gororoba intragável por um preço acima do valor de mercado. Já naquele tempo, o
mercado para a negociação dos ativos desmoralizados havia desaparecido nas brumas
da imprudência.
Mas, de lá para cá, a ira dos contribuintes contra os gatos gordos de Wall Street assumiu
as proporções das revoltas ditas populistas do início do século XX. Wolf está
preocupado com a hostilidade explosiva ao setor financeiro. “O Congresso debate taxar
os bônus dos executivos. E o procurador-geral de Nova York que sejam revelados os
nomes. Isso equivale a um convite ao linchamento.”
30/03/2009 16:57:26
Nos episódios mencionados, os ululantes atacaram, mais uma vez, com as bordunas do
preconceito, da intolerância e da apologia da brutalidade, sem falar nas ações em massa
contra última flor do Lácio, inculta e bela. Alguém já dizia que há método na loucura,
mas a desrazão caprichou na metodologia. Expressões grosseiramente facistóides
poucas vezes foram utilizadas com tanta liberalidade e descuido. A generosa
distribuição de adjetivos foi acompanhada de exaltadas conclamações para o retorno dos
militares ou sugestões para que o desrespeito à lei e aos direitos individuais se
transformasse em regra geral e irrestrita.
Torço para que o destampatório seja mais um esgar do que um ideário consistente. Mas
não custa ficar esperto: os estudiosos do totalitarismo sabem que a “auto-vitimização”
da “boa sociedade” e a inculpação do “outro” foram métodos eficientes para a conquista
do poder absoluto. Vejo nos blogs: os mais furiosos se apresentam como “humanos
direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar
como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massas,
crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis,
sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse
pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um
ensaio de amadores.
No livro What Does the Ruling Class Do When It Rules - pouco conhecido, mas
fundamental para o entendimento das relações de poder e de dominação no capitalismo
contemporâneo - Göran Therborn mostra que, na Europa dos séculos XIX e XX a
consciência dos direitos moveu a luta dos subalternos e transformou o Estado numa
instância de “totalização das relações sociais”. Suas intervenções realizam a mediação
entre as classes e entre os membros individuais das diferentes classes.
O avanço da “totalização das relações sociais” pode ser avaliado de forma mais clara
pelo grau de independência adquirido pelos procedimentos judiciais diante do poder
material da camada dominante. Diz Therborn: “não são poucas as contradições que
podem surgir da independência do judiciário numa sociedade de classes.. Em certas
circunstâncias, a autonomia do judiciário pode se tornar fonte de conflitos no interior da
classe dominante, porquanto há contradição entre o caráter necessariamente abstrato e
universal da lei na economia capitalista de mercado e as exigências do exercício do
poder real pelas camadas dirigentes. Quando os juízes não são mais criaturas das classes
superiores, a aplicação da lei pode criar embaraços para os fundamentos materiais da
dominação”
O jurista Herbert Hart, no livro The Concept of Law diz com razão que o juiz não pode
decidir como supremo censor e guardião da moralidade pública. A primeira e ilustre
vítima do particularismo moralista será o princípio da legalidade que deve estabelecer
com a maior clareza possível o que é lícito e o que não é. Exemplo de atropelo ao
principio da legalidade é a lei promulgada pelo regime nazista em 1935. Ela prescrevia
que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’
popular”.
Ao observar a tragédia do nazismo, Marcuse teve lucidez para perceber que o projeto da
igualdade social e econômica está ancorado no respeito ao princípio abstrato da
igualdade de todos perante a lei. A idéia de uma lei para os ricos e outra para os pobres,
monstruosidade pré-moderna, consagra, ao invés de exterminar, as diferenças de poder e
de dinheiro entre os cidadãos, como condições incontornáveis e eternas da vida social.
Nos anos 20 do século passado, os comunistas alemães denunciaram os direitos
inscritos na Constituição de Weimar como uma forma de encobrir a exploração
capitalista. Não atentaram para o seu caráter progressista em uma de uma sociedade
ultra conservadora, hostil às forças democráticas.
No mundo das grandes empresas e da inevitável mediação do Estado nas disputas entre
os competidores privados, a exceção tende a se tornar a regra. Tal estado de
excepcionalidade deságua na proliferação legislativa casuística e na ameaça permanente
ao caráter abstrato e universal da norma jurídica. A contradição se torna aguda: de um
lado, a liberdade dos indivíduos no mercado exige a independência do Judiciário,
certeiro na aplicação da lei e cuidadoso em seus procedimentos;de outra parte, a
“corrupção” quase congênita, engendrada pela concorrência econômica mediada pelo
Estado, estimula a formação de correntes de opinião que propugnam por formas
primitivas de punição e de vingança.
19/03/2009 11:33:22
Nas crises, ocorre o colapso dos critérios de avaliação da riqueza que vinham
prevalecendo. As expectativas de longo prazo capitulam diante da incerteza e não é
mais possível precificar os ativos. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação
risco/rendimento dos ativos sucumbem diante do medo do futuro.
Em sua palestra na quarta-feira 11, em São Paulo, o economista Nouriel Roubini disse,
com alguma ironia, que a única demanda que cresce no mundo de hoje é a do governo.
No caso do Brasil, as casamatas da burocracia estão preparadas para lançar o País em
uma recessão ampla, geral e irrestrita. Os projetos de infraestrutura têm de passar por
um calvário de aprovações e de restrições. Frequentemente, os tribunais bloqueiam o
andamento dos projetos de investimento, ao conceder generosamente liminares para os
derrotados nas concorrências.
Trilha inglória
13/02/2009 15:37:53
A esta altura do campeonato, a derrocada no preço das dívidas e dos ativos do setor
financeiro impede, para dizer pouco, a recapitalização das instituições mediante
operações de mercado. Não por acaso, o governo trata de aumentar os recursos
destinados à capitalização. Mas, se a economia entra em forte recessão e, por isso, o
sistema de crédito não roda, apavorado com a possibilidade de um festival de
inadimplências, é certo que o capital dos bancos vai encolher ainda mais.
Colocar mais dinheiro público nas instituições quebradas e inoperantes se assemelha aos
trabalhos de Sísifo, condenado ao castigo eterno de rolar uma enorme pedra até o topo
da montanha, para logo depois deixar a rocha rolar ladeira abaixo e recomeçar a tarefa
imposta pelos deuses.
Willem Buiter coloca o dedo na ferida em seu blog no Financial Times: “Duas coisas
são sistemicamente importantes. A primeira é restaurar a operação dos mercados
financeiros que se tornaram ilíquidos. A segunda é restaurar os empréstimos bancários
para a economia real. Nenhum dos dois objetivos requer o salvamento dos bancos
existentes, para não falar na salvação de seus credores e acionistas. Pode-se salvar o
sistema bancário sem salvar os bancos ou os banqueiros”.
Buiter propõe a criação do good bank, uma instituição nova, limpa e administrada pelo
Estado. Na contramão dos beldroegas conservadores, ele sabe que, na economia
monetária da produção, a dominância do sistema de crédito e da moeda fiduciária
transforma os bancos em emissores de meios de pagamento e, ao mesmo tempo,
concede uma centralidade incontornável ao Banco Central. Essa instituição estabelece
as mediações entre os bancos privados e a soberania monetária do Estado.
O Banco Central cuida de regular as delicadas relações entre a moeda e o bem público,
ou seja, referência confiável para as decisões de endividamento das empresas e famílias
(e, portanto, de financiamento por parte dos bancos), destinadas a prover liquidez à
produção, ao consumo e ao investimento – e sua outra natureza, a de objeto do
enriquecimento privado. Na crise atual, as instituições financeiras cuidam de promover
a desalavancagem e, por isso, não podem cumprir a tarefa de expandir o crédito, ou seja,
de alavancar recursos para a economia real.
Marx e Engels defendiam o comércio livre entre as nações. Viam nele o instrumento da
mercantilização universal e, portanto, de introdução das relações e das forças produtivas
capitalistas nos países atrasados, a força capaz de eliminar os resíduos do Ancien
Régime. Marx terminou o seu discurso, pronunciado em 1847 na Associação
Democrática de Bruxelas, denunciando o caráter conservador do protecionismo.
Proclamou: “O sistema de livre comércio impulsiona a revolução social. É apenas nesse
sentido, senhores, que eu voto a favor do livre comércio”.
A severa recessão que ora nos atormenta já designou o protecionismo como um risco
iminente, entre tantos que se apresentam à consideração das lideranças globais. Barack
Obama, ao anunciar o Buy American para os programas de investimento em
infraestrutura, promoveu a reestreia do protecionismo, velho protagonista dos episódios
de contração aguda do comércio internacional.
05/01/2009 12:48:22
O Plano Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro
enquanto último ativo de reserva do sistema, instrumento universal da preferência pela
liquidez. Buscava, portanto, uma distribuição mais eqüitativa do ajustamento dos
desequilíbrios dos balanços de pagamentos entre deficitários e superavitários. Isto
significava, na verdade – dentro das condicionalidades estabelecidas –, facilitar o
crédito aos países deficitários e penalizar os superavitários. O propósito de Keynes era
evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno
emprego. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser uma característica
permanente da nova ordem econômica mundial, como repetiu seguidamente nos
trabalhos preparatórios da Conferência de Bretton Woods. O plano – uma utopia
monetária – não só era excessivamente avançado para o conservadorismo dos
banqueiros privados, mas também inconveniente para a posição amplamente credora
dos EUA, pois anularia o poder de seigniorage do dólar como moeda reserva. A
faculdade de usar sua moeda como meio de pagamento universal conferiu e ainda vem
conferindo aos EUA grande flexibilidade na gestão da política monetária e na
administração dos balanços de pagamentos.
Em 1944, nos salões do Hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia
monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs
o dólar – ancorado no ouro – como moeda universal. Talvez por isso o segundo pós-
guerra conte a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narre
as desditas da reprodução dos desequilíbrios globais e da sucessão de ajustamentos
traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.
A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se
desenvolveu nos mercados financeiros americanos. Na contramão do senso comum, os
investidores globais empreendem uma fuga desesperada para os títulos do governo
americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia
(México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os papéis do governo dos EUA oferecem
repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas e reservam os
tormentos da volatilidade cambial para os incautos que acreditaram nas promessas de
recompensa pelo bom comportamento.
Escrevi recentemente na Folha de S.Paulo que entre 2003 e 2007, no auge da Grande
Moderação – momento em que prevaleceram a baixa inflação, a liquidez abundante e a
avidez pelo risco –, as moedas periféricas viveram a ilusão de freqüentar os salões da
conversibilidade. A crise financeira nascida nas mansões dos pródigos abastados barrou
a entrada dos intrusos e mostrou que os saraus das moedas conversíveis não admitem
penetras.
Desde o won coreano, passando pelo real brasileiro até a rupia indonésia e o rublo da
Rússia, as moedas mais débeis sucumbem ao vendaval de ordens de venda emitidas
pelos possuidores de riqueza em busca de proteção e segurança. Mal iniciada a
desalavancagem nos mercados centrais, os investidores decidiram formar posições
baixistas nos elos fracos dos mercados globalizados, independentemente dos
“fundamentos” que supostamente sustentavam o garboso desempenho das moedas
apreciadas. Com elas, capitularam as bolsas de valores e, em alguns casos, os mercados
imobiliários excessivamente valorizados. Os hedge funds que operam nos países que
dispõem de mercados futuros de câmbio passaram a liquidar suas posições e sair com a
grana.
Bretton Woods II, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar conturbações geradas pela
decadência americana. Vai, sim, acertar contas com os desafios engendrados pelo
dinamismo da globalização, impulsionada pela grande empresa e ancorada na
generosidade da finança privada dos EUA. O processo de integração produtiva e
financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem
precedentes das famílias consumistas americanas, causa e efeito da migração da
indústria manufatureira para a Ásia produtivista e da acumulação de mais de 5 trilhões
de dólares de reservas nos cofres dos emergentes.
Em 2006, o déficit em transações correntes dos EUA bateu na casa dos 800 bilhões de
dólares. Qualquer outro país com um “buraco” externo dessa magnitude teria sofrido
um ataque contra sua moeda. Se não parece estar à vista uma derrocada do dólar, é
imprudente sustentar que o regime dólar-yuan possa reproduzir suas virtualidades
depois de sanada a fase aguda da crise global.
Uma demonstração prática das relações entre hegemonia do dólar, expansão de crédito,
valorização de ativos, inovações financeiras, crescimento econômico e inflação baixa
nos EUA e na Ásia emergente. O consultor Bernard Ber coloca em relevo os elementos
que, ao mesmo tempo, movem a expansão global e incitam os desequilíbrios. No centro
estão a demanda e a oferta de crédito, ou seja, alavancagem das famílias e das empresas
produtivas que gastam em consumo e investimento.
A força do crédito e do dispêndio privado e público nos EUA (os elementos ativos do
macrossistema global) tem como contrapartida as posições superavitárias em conta
corrente e na conta de capitais, bem como as reservas acumuladas nos emergentes. Esta
é a “poupança” (o elemento passivo) que financia o déficit externo americano.
Diante das assimetrias estruturais da economia global, a almejada correção de
desequilíbrios mediante o realinhamento entre as moedas é problemática. A dita
correção passa necessariamente por uma redistribuição de déficits e superávits entre as
regiões envolvidas. Isto exigiria não só a forte reativação das fontes de crescimento
domésticas na Europa e no Japão, como também a moderação das estratégias
mercantilistas nos emergentes asiáticos. Mas, como Keynes havia previsto em seus
escritos preparatórios da reunião de Bretton Woods, tal coordenação de políticas supõe
um verdadeiro sistema monetário internacional ou um sistema monetário
verdadeiramente internacional.
Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a
partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva. Até agora, as soluções
que vêm sendo aventadas para a prevenção das crises financeiras nos mercados
“securitizados” têm procurado evitar a adoção de medidas capazes de estabilizar as
taxas de câmbio e prover financiamento adequado para os desequilíbrios dos balanços
de pagamentos. Esse tem sido o tom dos governos e das instituições multilaterais. Tal
leniência aplica-se tanto à re-regulamentação dos sistemas financeiros domésticos
quanto ao controle dos movimentos de capitais.
17/11/2008 16:29:00
Até mesmo a Velhinha de Taubaté sabe que, em sua forma atual, o capitalismo
aumentou a carga de obrigações impostas ao Estado. As reformas ditas neoliberais,
empreendidas desde o crepúsculo dos anos 70 do século passado, trataram de utilizar o
poder político e fiscal dos Estados nacionais para fortalecer os respectivos sistemas
empresariais – aí incluídos os mercados financeiros e de capitais – com o propósito de
ganhar espaço na arena global.
No início dos anos 80, a turma da economia da oferta dizia ainda mais: a sobrecarga de
impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o
investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As
práticas neocorporativistas, diziam eles, criavam sérias deformações microeconômicas,
ao promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços, nas taxas de câmbio,
nos juros e nas tarifas. Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou
de proteger segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos
distorciam o sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e
insubstituível função de produzir informações para os agentes econômicos. Tais
violações das regras de ouro dos mercados competitivos culminavam na disseminação
da ineficiência e na multiplicação dos grupos predadores de renda, que se encastelavam
nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.
Em matéria financeira, a teoria dos mercados eficientes pretendia ensinar que todas as
informações relevantes sobre os fundamentos da economia estão disponíveis em cada
momento para todos os participantes dos mercados que avaliam os títulos de dívida e os
direitos de propriedade. A ação racional dos agentes, diante das informações existentes,
seria capaz de orientar a melhor distribuição possível dos recursos entre os diferentes
ativos. Essa teoria procurava afirmar que, em condições competitivas, não podem existir
estratégias “ganhadoras” capazes de propiciar resultados acima da média.
A hipótese dos mercados eficientes surgiu na segunda metade do século XX, período
em que as intervenções dos Bancos Centrais e dos Tesouros atenuaram a virulência das
crises financeiras. Para juntar ambigüidade ao paradoxo, a certeza quanto à eficiência
das intervenções de última instância, destinadas a limitar perdas, abriu caminho para
desregulamentação financeira e para as armadilhas da auto-regulamentação. Criou-se,
na verdade, uma situação de moral hazard permanente: seja qual for a intensidade do
porre de otimismo, os bancos centrais vão interferir para curar a ressaca.
No início do século XXI, por exemplo, a política de redução de taxas de juro nos
Estados Unidos serviu para abortar a crise da nova economia, mas impulsionou outro
ciclo de crédito e de inflação de ativos, acompanhado de inovações financeiras
mirabolantes, agora nos mercados de hipotecas. Os preços dos imóveis residenciais
foram às alturas. A valorização da riqueza aumentou o apetite das famílias pelo
endividamento. O consumo liderou o crescimento da economia americana, amparado na
ampliação do déficit em conta corrente financiado pela poupança dos asiáticos
superavitários.
Já mencionei em outra ocasião que Martin Wolf, colunista do Financial Times, perdeu a
esportiva. Diz ele: “Nenhum setor de atividades tem talento comparável para privatizar
lucros e socializar prejuízos. Em nenhum outro setor os agentes mostram-se tão
irritantemente confiantes em suas certezas morais quando as autoridades
governamentais – especialmente presidentes de bancos centrais – não agem
imediatamente para socorrê-los quando se vêem (merecidamente) em dificuldades”.
Wolf prossegue no destampatório: “Mas eles (os meninos travessos) estão certos em
esperar socorro. Pois sabem que, enquanto cometerem os mesmos erros coletivamente –
como fazem os “banqueiros sensatos” –, o setor público precisará prestar socorro. Os
banqueiros têm condições de manter a economia e a sociedade democrática como suas
reféns (veja bem...). Os governos não têm alternativa: precisam ajudar os bancos.”
17/11/2008 16:31:05
“O que criou essa bolha e produziu seu estouro barulhento”, diz John Helyar, editor da
Bloomberg, “foi a mudança do modelo de negócios de Wall Street. A rejeição do Glass-
Steagall Act em 1999 permitiu que os bancos comerciais e os bancos de investimento
criassem sinergia entre suas incompetências.” O Glass-Steagall, prolatado em 1930,
determinou a separação entre os bancos comerciais e os bancos de investimento. Os
primeiros são instituições que recebem depósitos à vista e realizam empréstimos
mantidos em carteira até o vencimento. Os bancos de investimento se dedicam ao
aconselhamento de empresas nas emissões primárias de títulos de dívida e ações e na
gestão desses instrumentos financeiros – avaliados e negociados diariamente nos
mercados de capitais, primários e secundários. São brokers e dealers.
Já relatei, em outra ocasião, o debate promovido pela revista inglesa Prospect entre
George Soros, Anatoly Kaletstky do London Times, Martin Wolf do FT e John Gieve
do Comitê de Estabilidade Financeira do Banco da Inglaterra, entre outros. Trechos do
debate foram traduzidos de forma livre e se concentram na controvérsia sobre os
instrumentos mais adequados para administrar um ciclo de crédito com inflação de
ativos.
Alto dirigente do Banco da Inglaterra, Gieve não escapa pela tangente ao comentar a
responsabilidade das autoridades no desenvolvimento das práticas e inovações que
levaram ao desfecho indesejado. Diz ele: é impossível negar que a ausência de
regulação no mercado de hipotecas contribuiu para a eclosão da crise. Na última euforia
com a valorização de ativos, as operações estruturadas de crédito – vender títulos
lastreados em empréstimos hipotecários e outros – fizeram a diferença. Os que
inventavam e promoviam tais produtos não tinham a menor idéia a respeito do
comportamento de seus preços em condições econômicas agudas.
O assim chamado megaespeculador George Soros desconfia das teorias que informam
as decisões dos protagonistas dos mercados financeiros. Para ele, as autoridades e os
demais participantes do jogo de avaliação da riqueza apóiam-se em uma falsa
interpretação sobre o funcionamento dos mercados. Imaginam que tendem ao equilíbrio
e os desvios são aleatórios. Essa falsa concepção permitiu a elaboração dos produtos
estruturados e produziu uma crise muito maior e mais abrangente do que uma simples
bolha imobiliária americana.
Bolhas de ativos são endêmicas. As autoridades reguladoras têm obrigação de lidar com
elas enquanto é tempo. Não é o caso de se utilizar a política monetária, ou seja, de tentar
furar a bolha com aumento do juro. Trata-se de operar através do canal do crédito.
Soros, como Hyman Minsky, assegura que os mercados financeiros lidam com
promessas e avaliações sobre o curso futuro dos ativos e dos títulos de dívida. Estão,
portanto, sujeitos a gerar endogenamente euforia e pânico. O Banco Central deve estar
sempre pronto para modificar as exigências de reservas e de capital conforme a toada do
ciclo econômico.
Gieve não só concorda com Soros, como acrescenta: usar a taxa de juro para controlar
um ciclo de ativos pode produzir graves danos à economia – as taxas devem subir muito
para conter as expectativas altistas e eufóricas dos investidores. As autoridades – leia-se
o Banco Central – devem recorrer à ampliação das exigências de capital e de liquidez
para dar eficácia anticíclica às suas políticas.
A omissão das autoridades diante das pirotecnias dos mercados é a marca registrada do
capitalismo americano. As crises financeiras se tornam graves quando as flutuações no
valor da riqueza contaminam os bancos comerciais, aqueles que recebem depósitos e
fazem empréstimos, além de funcionar como sistema de pagamentos na economia
monetária. Na terça-feira 16 de setembro, os bancos cobravam entre si taxas
exorbitantes nos mercados interbancários onde são efetuadas as trocas de reservas. As
taxas sinalizam para uma forte contração do crédito, a despeito das sucessivas e maciças
injeções de liquidez promovidas pelos bancos centrais.
Como nos anos 30, as autoridades terão de avançar o controle sobre as finanças até as
fronteiras da estatização do crédito, para não falar da administração pública das
inevitáveis fusões e aquisições. O processo de centralização de capital na órbita
financeira será comandado pelo Estado, respondendo aos clamores do mercado. Seja
qual for o nome atribuído a essas venturosas operações.
17/11/2008 16:32:21
As supracitadas teorias funcionam mal, muito mal, quando as economias estão abertas
aos movimentos de capitais e sujeitas à formação de posições especulativas em
mercados futuros. Em tais circunstâncias, a taxa de câmbio reflete a demanda e oferta
das moedas enquanto ativos financeiros. Sempre pró-cíclicas e causadoras de exageros,
as antecipações sobre as variações de preços provocam bruscos ajustamentos entre a
moeda nacional e a moeda internacional de referência, sem proporção com os resultados
do comércio.
A coisa fica ainda pior quando esses movimentos ocorrem em períodos de turbulência
financeira. Não é tão difícil entender que, a despeito da grave crise que afeta as
instituições financeiras dos Estados Unidos, o prêmio de liquidez implícito na posse da
moeda americana é, nos momentos de desconfiança e medo, a prenda mais cobiçada nos
mercados globais. Por isso, a despeito de flutuante, o câmbio brasileiro apresenta hoje
distúrbios próprios de um regime de câmbio fixo em tempos de ataque especulativo.
O pânico dos investidores rapou os fundos de renda fixa com resgate mediante pré-aviso
e os bancos de depósito congelaram o crédito para todos os mercados. Os commercial
papers são títulos de curto prazo emitidos pelas empresas para o financiamento de
capital de giro ou pelas instituições financeiras não bancárias (não depositárias) para
financiar posições em ativos mais longos, como, por exemplo, os CDOs, derivativos de
crédito lastreados em empréstimos hipotecários.
O desmoronamento da pirâmide invertida de ativos – a desalavancagem, a busca
desaçaimada por ativos mais líquidos – começa a afetar os fundamentos que lhe deram
origem, ou seja, a capacidade do sistema de crédito de criar depósitos por meio de
empréstimos, provendo liquidez e meios de pagamento à economia. Se essa engrenagem
não funciona, a economia monetária é incapaz de dar apoio às decisões de produção das
empresas e, portanto, de gerar emprego e renda para a comunidade.
O insaciável Moloch
17/11/2008 17:09:09
Os liberais de todos os matizes sustentam que o Estado interventor criou uma clientela
que, entre outras coisas indevidas, quer garantia de emprego, além de sombra e água
fresca, tudo fornecido graciosamente pelo Estado munificente. Garantem os adversários
do Estado Social que a insistência em políticas “irracionais e populistas” produziria
menos crescimento e mais desemprego a longo prazo, ao contrário do que pretendem os
defensores das iniciativas voltadas intencionalmente para contrabalançar os efeitos dos
solavancos da economia. Numa versão um pouco mais sofisticada, essa pérola poderia
ser assim engastada nos adornos do livre-pensamento: está fadada ao fracasso qualquer
proposta de intervenção, em nome da segurança coletiva, que esteja em desacordo com
as hipóteses científicas da escolha racional do indivíduo “utilitarista”, cuja ação deve
estar apenas limitada por restrições impostas pela escassez de recursos e pelo
funcionamento dos mercados competitivos.
Tais reformas devem ser levadas a cabo num ambiente macroeconômico em que a
política fiscal esteja encaminhada para uma situação de equilíbrio intertemporal
sustentável e a política monetária controlada por um banco central independente. Essas
condições macroeconômicas significam que as duas dimensões públicas das economias
de mercado – a moeda e as finanças do Estado – devem ser administradas de forma a
não perturbar o funcionamento das forças que sempre reconduzem a economia privada
ao equilíbrio de longo prazo.
O economista de Harvard Richard Freeman diz, em artigo recente, que a velha conversa
sobre os benefícios do comércio – na situação em que os países avançados produzem
bens de alta tecnologia com trabalho qualificado enquanto os menos desenvolvidos se
dedicam aos setores de mão-de-obra não qualificada – “tornou-se obsoleta com a
presença da China e da Índia”.
Nos anos 90, Paul Krugman, o economista recém-laureado com o Nobel, patrocinou
uma cruzada ideológica contra os movimentos antiglobalização que protestavam pela
perda dos bons empregos americanos para os trabalhadores produtivistas da Ásia. Em
artigo recente sobre os efeitos da migração de empresas para a China, Krugman foi
obrigado a reconsiderar seus pontos de vista. Os moradores de Flitch, no estado de
Michigan, perderam o emprego na fábrica de autopeças fechada sob pressão da
concorrência chinesa.
Para os primeiros, os males do mundo podem ser solucionados com doses maciças de
Prozac ou de qualquer substância química capaz de aliviar o sofrimento dos “aparelhos
biológicos”. Para os outros, os do culturalismo, o melhor é abandonar as dores que
acompanham a constituição de um saber universal e eternamente inacabado, refugiando-
se na completude do mundo mítico e mágico das verdades particulares e supostamente
originárias. As duas visões do sujeito, aparentemente antitéticas, têm em comum o
horror à diversidade concreta e irredutível do mundo da vida. Esse horror não pode ser
aplacado pela sociabilidade do mercado que transforma o Outro num inimigo-
competidor.
A intervenção salvadora dos bancos centrais, sem dúvida, corre o risco de fortalecer a
crença de que os desatinos dos investidores estarão sempre a salvo de perdas
pronunciadas e definitivas. As eventuais crises seriam momentâneas, apenas
oportunidades em que se apresentariam pontos de compra convidativos para o início de
uma nova temporada de alta generalizada.
Ainda assim, a experiência dos últimos anos, estimulada, entre outras causas, pela
imprevidência do ex-presidente do Banco Central dos EUA Alan Greenspan, não é
suficiente para assegurar que a sucessão de episódios de euforia e depressão vá terminar
sempre com a salvação dos protagonistas mais alavancados.
Os ataques frenéticos de desorientação e desespero são apenas os aspectos mais
explicitamente homicidas do capitalismo “financeirizado”. Nele, a pretensão dos bem-
sucedidos de acumular “tempo livre” sob a forma de capital fictício é, ao mesmo tempo,
a “liberação” dos dependentes para as agruras do desemprego, da crescente insegurança
e precariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da exclusão social.
Nesse ambiente darwinista são cada vez mais freqüentes as arengas dos economistas,
sacerdotes da religião dos mercados, contra as tentativas dos simples cidadãos e cidadãs
de barrar a marcha do Moloch insaciável e ávido por expandir o seu poder. A grita dos
sábios da finança é desferida contra os “desvios” da política, os surtos de “populismo”.
Com esses slogans os ideólogos pretendem enquadrar a sociedade na camisa-de-força
de uma suposta racionalidade econômica.
Os mercados e seus agentes, diga-se, não estão certos nem errados. Estão simplesmente
obrigados a tomar decisões que, em seu imaginário peculiar, são as apropriadas para
proteger ou acrescentar o valor de sua riqueza. Na verdade eles são “pensados” por uma
lógica que não controlam.