Cartografia Do Desassossego

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Ana Claudia Camuri

CARTOGRAFIA DO DESASSOSSEGO:
O ENCONTRO ENTRE OS PSICÓLOGOS E O
CAMPO JURÍDICO

Niterói, 2012
© 2012 by Ana Claudia Camuri
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense -
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É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Normalização: Fátima Corrêa
Edição de texto: Tatiane Braga
Revisão: Rozely Campello Barrôco e Maria das Graças Carvalho
Capa e editoração eletrônica: Marcos Antonio de Jesus
Projeto gráfico: José Luiz Stalleiken Martins
Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo
Conversão para ebook: Freitas Bastos
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

C211
Camuri, Ana Claudia
Cartografia do desassossego: o encontro entre os psicólogos e o campo jurídico / Ana
Claudia Camuri. – Niterói: Editora da UFF, 2012.
260 p. ; 23 cm. (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografia: p. 253
ISBN 978-85-228-0739-0
1. Psicologia jurídica 2. Psicanálise. 3. Filosofia. 4. Direito. I. Título.
CDD 158

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


Reitor: Roberto de Souza Salles
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Gizlene Neder
Heraldo Silva da Costa Mattos
Humberto Fernandes Machado
Luiz Sérgio de Oliveira
Marco Antonio Sloboda Cortez
Maria Lais Pereira da Silva
Renato de Souza Bravo
Rita Leal Paixão
Simoni Lahud Guedes
Tania de Vasconcellos
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a Aline


Nascimento que, acompanhou
na difícil tarefa de nominar o
inominável, de gestar
e parir as palavras do e no
desassossego.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais: Paulo e Heloisa Camuri.


Aos amigos: Abrahão Nascimento,
Mauricéa Nascimento, Regina Neri,
Cecília Coimbra, José Novaes, Heliana
Conde, Cristina Rauter, Márcia Badaró,
Tânia Kolker, Maria Helena Zamora,
Vera Malaguti Batista, Nilo Batista, Vera
Vital Brasil e Gustavo Borges.
PREFÁCIO
1
Nilo Batista

O cativante estudo de Ana Claudia Camuri me confronta, pela


segunda vez, com a crise ética e metodológica que assola os
psicólogos recrutados pelo sistema penal para nele exercerem os
atos de sua profissão. Na primeira vez, quando tive a honra de
apresentar o volume organizado por Cecília Coimbra, Lygia Santa
Maria Aires e Maria Lívia do Nascimento,2 a preocupação se
estendia também à atividade de psicólogos em varas de família.
Naquela oportunidade, pareceu-me evidente que aos psicólogos
estava sendo reservado um incômodo papel de peritos, ou seja, de
“auxiliares da Justiça”, tais como os serventuários e oficiais, os
depositários e os intérpretes.3 Recordei, então, que a imaginação
jurídica já havia concebido o perito como uma testemunha especial
(“instruída” para uns, “letrada” ou “racional” para outros) cujos
conhecimentos e capacidade técnica favoreceriam a compreensão
do juiz acerca de certos fatos; em determinada etapa do processo
romano, o portador desses conhecimentos e dessa capacidade
técnica era intencionalmente escolhido para dirimir a lide que os
envolvesse (arbiter), e então perito e juiz viviam na mesma pessoa.
No final do século XIV, um autor observava que os médicos não
eram propriamente testemunhas, antes, eram mais juízes (magis
judicium quanto testimonium).

A questão, debatida naquele volume e no presente trabalho,


poderia ser assim resumida: pode o Estado, ao criar cargos
públicos de psicólogos no âmbito do Poder Judiciário e
especialmente em agências do sistema penal, pretender deles uma
contribuição que extrapole as regras técnicas e éticas de sua
profissão (objetivadas pelas instituições que legalmente regulam a
profissão), ou que, mesmo em situações normativamente
ambíguas, violem sua consciência profissional? Quem responder
que sim deverá a mesma resposta para a hipótese do médico
católico que se recuse a participar de cirurgia abortiva, mesmo
autorizada pela lei (como a da gravidez resultante de estupro).4
Essa mesma resposta sepultará o debate, de raiz constitucional,
sobre a objeção de consciência; mas seria ela compatível com o
Estado de direito democrático?
Olhando a mesma questão no espelho: pode o psicólogo
testemunhar em juízo sobre o seu paciente? Aqui, a resposta está
na lei, e é um rotundo não. A lei proíbe o depoimento de pessoas
que, “em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam
guardar segredo”, ressalvando a hipótese duplamente
condicionada pela dispensa do sigilo que o interessado faça e pela
vontade do depoente (“salvo se, desobrigadas pela parte
interessada, quiserem dar o seu testemunho”).5 Trata-se de regra
destinada a preservar precisamente o sigilo profissional,
impedindo as situações grotescas em que o advogado revelasse o
que lhe confiara seu cliente, ou o padre discorresse sobre o
conteúdo da confissão, ou o psicólogo expusesse as fobias de seu
paciente etc. Sobre a velha aproximação entre a figura do perito e
a do juiz as coisas ficam ainda mais claras, porque nem o
advogado, nem o padre, nem o psicólogo podem julgar
respectivamente os clientes, confidentes e pacientes que
acolheram, buscaram compreender e tentaram orientar.
Mas os sistemas penais expansivos do capitalismo pós-
industrial, com sua invasividade big brother – tão finamente
percebida pela autora –, com a pretensão de judicializar o
cotidiano na linha de construção de uma sociedade de controle e
vigilância, repetiram no espaço dos direitos individuais a mesma
estratégia de que a infraestrutura econômica se valeu para
favorecer a acumulação: a flexibilização das garantias trabalhistas
e a precarização do emprego. A privacidade foi uma categorização
jurídica contemporânea que vicejaria no Estado de bem-estar e
sucumbiria no Estado neoliberal, convertido num grande
supervisor dos negócios privados e no maior encarcerador da
história. A toda transformação econômica estrutural se segue uma
correspondente transformação no respectivo sistema penal: a
mesma dinâmica que levou à força dezenas de milhares de
sobreviventes da economia feudal, que não cabiam no modelo de
exploração capitalista da terra, leva agora ao cárcere os
desempregados irremediáveis da economia industrial.
Este livro nos conta um capítulo muito interessante desta
passagem: o esforço das agências do sistema penal para
instrumentalizar a intervenção dos saberes “psi”, para criar uma
espécie de funcionário-câmera que conseguiria imagens da própria
alma dos condenados, nessa modalidade que foi adequadamente
chamada de “perícia de interiores”, e também a admirável
resistência de setores esclarecidos da psicologia brasileira,
resistência que imediatamente desperta autoritarismos e
arrogâncias.
Se a psicologia lograr construir-se um futuro no sistema penal,
não será por certo na condição de auxiliar da Justiça, em plano
similar aos demais auxiliares, como os depositários e os
intérpretes. Aquilo de que o psicólogo é depositário e constitui
objeto de sua peculiar interpretação não pode simplesmente ser
transmitido ao juiz, como se fora a coisa litigiosa apreendida ou a
mais exata tradução de um texto em língua estrangeira. Aqui, o
psicólogo e o intérprete submetem-se a estatutos antagônicos, e
pode ocorrer que o primeiro tenha o dever de calar-se na mesma
situação na qual tocaria ao segundo revelar tudo quanto pudesse.
E, se chamássemos ao debate o direito constitucional do silêncio,6
o mal-estar aumentaria: caberia aos psicólogos fazer, antes da
sessão, a advertência de que tudo aquilo que o paciente lhes
revelasse poderia ser empregado na construção do “diagnóstico”
de sua “periculosidade”? Afinal, queremos nos presídios uma
psicologia libertadora, antes auxiliar dos criminalizados do que da
própria criminalização, ou uma psicologia delatora e
colaboracionista?
No sempre generoso e surpreendente marco teórico
foucaultiano, de mãos dadas com o melhor estudo brasileiro sobre
o jurídico na obra do filósofo,7 Ana Claudia Camuri empreende a
crônica da expansão do sistema penal na direção da incorporação
deste estranho meio de prova, a delação que se espera faça o
psicólogo das entranhas sofridas de seu paciente. A autora se vale
de dois dispositivos como “analisadores”: o exame criminológico,
aquela tosca profecia acerca de reincidência (que “respaldaria” a
decisão de soltura, “inocentando” o magistrado que nela se fiou), e
o depoimento sem dano,8 esse perigoso experimento que
pasteuriza aquele que, na opinião de toda a literatura, constitui o
mais inconfiável de todos os testemunhos, e praticamente
neutraliza o contraditório.
Para este casal em plena crise – psicologia e direito – não basta
livrar-se do positivismo: é indispensável também deixar na estrada
os usos positivísticos de ambos os saberes. Caso contrário,
seremos capazes de reinventar, na prática, uma medida de
segurança detentiva para imputáveis quando, desde 1984, a lei
penal brasileira se afastou desse modelo. Mas é ele que sobrevive
sempre que, no início do século XXI, pede-se à psicologia que faça
aquilo mesmo que lhe era solicitado no século XIX.
Ana Claudia Camuri realizou um trabalho academicamente
denso, sem se deixar engessar pelos modelos universitários. Ao
contrário, a tessitura – tão cara para nós brasileiros – do ensaio
predomina, e temos ainda deliciosos momentos de indignação e
saudável irreverência transcritos de seu diário de campo.
Este livro será lido não apenas por psicólogos, diretamente
interessados nas graves questões por ele levantadas, mas também
por juízes, advogados, promotores de justiça e defensores
públicos que levem a sério as garantias fundamentais do processo
e da execução penal num ambiente verdadeiramente democrático.

Professor titular de direito penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Pivetes – Encontros entre a Psicologia e o Judiciário, Curitiba, 2008, ed. Juruá.
CPC, arts. 139 ss.; CPP, arts. 274 ss. (cf. tit. VIII).
CP, art. 128, inc. II.
CPP, art. 207.
CR, art. 5º, inc. LXIII.
Márcio Alves da Fonseca. Michael Foucault e o Direito, S. Paulo, 2002, ed. M. Limonad.
Uma implacável crítica, a partir do direito processual penal, do depoimento sem dano
em NASCIMENTO, André, Depoimento sem dano: considerações jurídico-processuais
(apresentado no seminário Impasses em práticas de depoimento de crianças e
adolescentes, Instituto de Psicologia, UERJ, 18/09/09).
SUMÁRIO
Capa
Projeto e-books
Folha de Rosto
Créditos
Dedicatória
Agradecimentos
Prefácio
Sumário
Notas Introdutórias
1. O desassossego do cartógrafo
2. Os modos de relação entre o direito e os saberes “psi”
2.1- A norma(lização) e suas modulações nos textos de
Foucault
2.2- Primeira perspectiva ou “direito como legalidade”
2.3 - Segunda perspectiva ou “direito normalizado-
normalizador”
2.4 - Criminologia, políticas criminais, processos de
criminalização
2.5 - A psicanálise e sua relação com o sistema jurídico-penal
no século XX
2.6 - A psicanálise e sua relação com o campo jurídico no
século XXI
3. O desassossego dos psicólogos que atuam no campo jurídico no
contemporâneo
3.1- Formas de produção de verdade
3.2 - Exame criminológico: o psicólogo como lanterninha no
breu da execução penal
3.3-Processos de captura e envenenamento
3.4 - Depoimento sem dano: proteção integral da criança ou da
prova?
3.5 - Pontos de contato entre os dois analisadores: o contrato
3.6 - É possível desarticular um dispositivo?
4. O abolicionismo como uma “ideia adequada”
Considerações Finais
Referências
NOTAS INTRODUTÓRIAS
A proposta deste texto9 foi fazer um mapa intensivo, uma
dinâmica dos afetos, ou seja, uma cartografia das práticas do
psicólogo10 no campo jurídico ou em territórios judicializados.
Estes termos, aqui, são sinônimos e foram escolhidos em virtude
da percepção de que a prática dos profissionais, em determinadas
instituições, está ligada, direta ou indiretamente, a questões
relacionadas ao direito e à máquina judiciária.
Deve-se esclarecer que “campo” e “território” carregam a ideia
não só de um lugar físico ou estabelecimento, mas também a
dimensão do jogo de forças presente nesses estabelecimentos,
nessas instituições, nesses discursos e práticas, mostrando a
indissociabilidade entre saber, poder e produção de
subjetividades.
Sempre que aparecerem as expressões: campo jurídico e/ou
território judicializado estarão referidas aos profissionais que
trabalham no Tribunal de Justiça (Varas de Família, Infância e
Juventude, Vara de Execução Penal, demais Varas e aos projetos
desenvolvidos em seu interior, como, por exemplo: depoimento
sem dano e Justiça terapêutica); Defensoria Pública; Ministério
Público; prisões; sistema socioeducativo; secretarias municipais
ou estaduais; estâncias do controle social (conselhos de direitos e
conselhos tutelares) e ONGs. Todavia, apesar de ter sido feita uma
espécie de circunscrição, isso não significa uma restrição, pois as
forças de “judicialização” do viver podem estar presentes em
outros âmbitos, como, por exemplo, na educação, saúde ou
assistência social.
No campo jurídico, nos deparamos com incontáveis
dispositivos que compõem a maquínica do controle social,
formada por profissionais oriundos de várias disciplinas. No
entanto, me interessei, em particular, por aqueles pertencentes às
práticas e saberes “psi” (psicologia, psicanálise e psiquiatria) e
pelos operadores do direito (advogados, promotores, defensores e
juízes).
Com o fim de me aproximar do “campo jurídico”, foram
realizadas, entre os anos de 2006 e 2010, entrevistas semidirigidas,
visitas a unidades prisionais e várias observações participantes;
além da participação em inúmeros eventos: seminários, simpósios,
fóruns, congressos, conferências livres, mostras, encontros e
semanas de psicologia. E, como o modo de pesquisar escolhido
era processual, foi só na habitação desse território que entendi
que ele estava judicializado.
A minha passagem como profissional desse campo também foi
incluída por meio do processo de análise de implicações que,
apesar de ganhar destaque no primeiro capítulo, se estende por
todo o texto. Por isso, também, foi inevitável, em diversos
momentos, escrever na primeira pessoa do singular.
A análise de implicações, para René Lourau (1993, p. 14), é: “a
análise dos lugares que ocupamos, ativamente, neste mundo.”
Alguns anos depois, o autor nos diz também que: “a implicação
deseja pôr fim às ilusões e imposturas da ‘neutralidade’ analítica,
herdadas da psicanálise e, de modo mais geral, de um
cientificismo ultrapassado.” Para ele, no “novo espírito científico”,
o observador está implicado no campo de observação e sua
intervenção transforma o objeto estudado (LOURAU, 2004, p. 83).
Barros e Passos (2000, p. 73), inspirados também em Lourau,
apontam que a noção de implicação, além de ser o assinalamento
do lugar ocupado pelo pesquisador, é ainda a indicação do lugar
que “ele busca ocupar e do que lhe é designado ocupar enquanto
especialista, com os riscos que isso implica [...] a recusa da
neutralidade do analista/pesquisador procura romper, dessa
forma, as barreiras entre sujeito e objeto a ser conhecido”.
Acrescento que, na tentativa de rompimento dessa barreira, na
qual, na verdade, os “objetos” são sujeitos, não é apenas o
“objeto” de pesquisa que sofre transformações, mas também o
pesquisador.
Outra “ferramenta-conceito” importante utilizada foi a de
“pesquisa-intervenção”, formulada a partir da década de 1960,
pelo movimento da Análise Institucional Socioanalítica Francesa.
Sobre ele, Barros e Passos (2000) dirão que, por meio dessa
metodologia, podemos interrogar os diversos sentidos
cristalizados nas instituições, produzindo evidências que tornam
visível o jogo de interesses e de poder encontrado no campo
investigado e, dessa forma, se desmancham os territórios
constituídos e possibilita-se a criação de outros.
O “diário de pesquisa” foi imprescindível na construção desse
mapa. Lourau (1993, p. 85) expõe em um de seus escritos que o
diário nos mostra o “como foi feito” da prática, em vez do “como
fazer” das normas. Esse autor aponta que o diário poderia
“auxiliar a produzir outro tipo de intelectual [...] o implicado cujo
projeto político inclui transformar a si e a seu lugar social, a partir
de estratégias de coletivização das experiências e análises.”
Portanto, sigo acreditando que não é possível interrogar os
sentidos cristalizados nas instituições e desmanchar os territórios
constituídos, se não fizermos isto em nós mesmos e com nossas
práticas. Neste trabalho, procurou-se romper com a suposta
“neutralidade científica” para dizer que objeto de pesquisa e
sujeito pesquisador “se constituem no mesmo momento, no
mesmo processo” (BARROS; PASSOS, 2000, p. 73).
O capítulo inicial, “O desassossego do cartógrafo,”11 tem o
objetivo de contar como se deu a confecção de um mapa
intensivo, compartilhar com o leitor a minha própria experiência
como estudante-psicóloga-pesquisadora-militante e, a um só
tempo, fazer uma análise de implicações, na qual são narradas
como emergiram as principais questões que serão discutidas ao
longo do texto. Ou, dito de outra forma, quis pensar “como” se dá
o processo de fazer pesquisa e “se fazer” pesquisador. Esse
capítulo foi ganhando contorno à proporção que entrei em contato
e pude dar passagem à dificuldade de lidar com as forças que
estavam fora de mim, mas, especialmente, com aquelas que, em
mim, obstruíam o processo de escrita. Por isso, outra questão que
será abordada nesse capítulo é aquela em que afirmamos que não
estamos discutindo apenas instrumentos metodológicos, mas,
especialmente, processos ontológicos, no que tange a uma
ontologia crítica de nós mesmos e de nossas práticas.
Essa narrativa que levanta várias discussões alia-se, o tempo
inteiro, aos autores e aos conceitos que escolhemos habitar para
pensar sobre nossas questões. Alguns deles merecem destaque, já
que compõem o nosso modus operandi, são eles: cartografia,
desassossego, marcas, encontros (e seus efeitos), afeto, afecção,
perspectiva transdisciplinar, produção de subjetividade, processo
de singularização, ética, estética, política e dispositivos.
No segundo capítulo, “Os modos de relação entre o direito e os
saberes ‘psi’”, procurou-se conhecer as forças que servem de
“liga” entre os saberes e práticas “psi” e o direito, em busca de
pistas, para uma espécie de “diagnóstico” acerca do
funcionamento desses saberes no campo jurídico. Para tanto, fez-
se necessário conhecer as forças que perpassam esse encontro.
Sendo assim, não vi caminhos mais apropriados do que aqueles
que Foucault12 nos abriu ao discutir amplamente essa temática.
Encontradas algumas pistas, nos aproximamos da compreensão
do desassossego que atravessa alguns psicólogos que atuam
nesses espaços.
Alguns autores que também são leitores de Foucault auxiliaram
nessa jornada. O primeiro deles, que aparece no segundo e no
quarto capítulos, é Márcio Alves da Fonseca, que, no livro Michel
Foucault e o Direito (2002), discute sobre o fenômeno jurídico ou o

direito, nos escritos de Foucault.


Contudo, essa discussão acontece sempre em relação às
noções de “norma” e de “normalização”, que, para o autor, estarão
remetidas às ciências médicas e humanas e não às ciências
jurídicas. Neste trabalho também é feito desta forma, porém, na
maior parte das vezes, adotou-se a seguinte terminologia:
“norma(lização)”. Esse recurso nos permitirá diferenciar a norma
jurídica e seus processos de “normatização”, da norma do sentido
das ciências médicas e humanas e seus processos de
“normalização”. Essa diferença pode parecer trivial, mas não é,
pois, nos territórios judicializados, a confusão e/ou sobreposição
dos termos norma e lei é recorrente. E esclarecer isto se faz
indispensável para o desenvolvimento deste trabalho.
Pesquisar nessa temática também requer o entendimento de
conceitos e termos que são utilizados com muita naturalidade
como, por exemplo, “crime”, “criminoso”, “criminologia”,
“periculosidade”, “delinquência”; por isso, com Cristina Rauter e
seu livro Criminologia e subjetividade no Brasil (2003), será
discutida a noção foucaultiana de “poder disciplinar” para se
analisar a construção histórica da criminologia em nosso país,
assim como as transformações dos dispositivos de poder que este
saber instrumentou. Vera Malaguti Batista (2009) com o artigo
“Criminologia e Política Criminal” auxiliará na compreensão das
modulações, não só da criminologia, mas daquilo que a faz
funcionar: a articulação entre o discurso médico e jurídico, a
demanda por ordem, as políticas criminais e os processos de
criminalização que atingem determinadas parcelas da população
mundial, ao longo da história. Contudo, convém assinalar que a
autora destaca o contexto da América Latina. Neste, também
aparecem os escritos de Agamben sobre o “Estado de Exceção”,
que tem virado “regra” no contemporâneo.
Em seguida, recorreu-se aos escritos de Sigmund Freud e
Sandór Ferenczi, para entender como a psicanálise se insere no
sistema penal e, posteriormente, Regina Neri (2009), com o texto:
“Enfraquecimento da lei ou aumento do poder punitivo? Uma
reflexão acerca do discurso psicanalítico sobre a crise do
simbólico na contemporaneidade”, problematiza sobre o discurso
psicanalítico acerca da “crise do simbólico” na
contemporaneidade, lançando a questão sobre se “o que vivemos
é um ‘enfraquecimento da lei’ ou ‘um aumento do poder punitivo’”,
levando em consideração as limitações apontadas por Foucault
em relação à teoria psicanalítica, além de levantar uma
preocupação que também faz parte deste trabalho: “quais são os
efeitos políticos de tais discursos?” Todos os autores que
compõem o segundo capítulo deram subsídios para a análise de
alguns discursos, ditos psicanalíticos, colhidos nesta pesquisa.
Cheia de pistas nas mãos, segui para: “O desassossego dos
psicólogos que atuam no campo jurídico no contemporâneo”.
Neste terceiro capítulo, entra-se em contato com a atualidade dos
escritos de Foucault, porém, em função da amplitude da temática
e das inúmeras áreas de atuação dos psicólogos, foi feito um
recorte no qual escolheu-se utilizar, como analisadores13
principais, os procedimentos jurídicos: exame criminológico e o
depoimento sem dano14 ou especial, já que ambos, por si mesmos,
já denunciam o funcionamento dos saberes ligados aos poderes.
Dito de outro modo, será discutido o que acontece quando
determinadas práticas “psi” e o velho direito se aliam às formas
violentas de controle social encontradas para governar
determinadas parcelas da população.
A discussão do terceiro capítulo é iniciada com a apresentação
das duas formas de produção de verdade mais comuns no campo
jurídico: o inquérito e o exame, pela perspectiva foucaultiana.
Posteriormente, serão discutidas as questões relativas ao exame
criminológico e à prática do psicólogo no sistema penitenciário,
assim como os efeitos dessas práticas na vida dos profissionais
envolvidos. Para tanto, serão analisados brevemente o Código
Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940),
a Lei de Execução Penal (LEP) nº 7.210, de 11 de julho de 1984,
alterada pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, o Decreto
nº 8.897, de 31 de março de 1986 – Regulamento do Sistema
Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro (RPERJ) –, a
Constituição Federal do Brasil de 1988, a Portaria Interministerial
do Ministério da Saúde/Ministério da Justiça nº 1.777, de 9/9/03,
que aprova o Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário
(PNSSP) e o Código de Ética dos Psicólogos, de agosto de 2005,
além de inúmeros documentos produzidos por profissionais que
atuam na área prisional e pelo Sistema Conselhos de Psicologia.
Foram feitas também análises de falas retiradas de entrevistas e
observações participantes. Portanto, a convivência com os
psicólogos que trabalham em presídios, ao longo dos últimos
quatro anos, foi fundamental.
No item “Depoimento sem dano: proteção integral da criança
ou da prova?”, o projeto intitulado Depoimento Sem Dano (DSD)
será discutido. Além da apreciação dos textos que defendem e dos
que problematizam o projeto, faremos também uma breve leitura
do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990, do Código de Ética dos Psicólogos e do Projeto de
Lei complementar PLC nº 035. Foram realizadas, ainda, análises de
discursos recolhidos por meio de entrevistas e observações
participantes.
No item seguinte, será discutido um ponto de contato entre os
dois analisadores: o contrato, para problematizarmos a questão: a
serviço de quem está o trabalho do psicólogo no campo jurídico?
Após todas essas discussões, serei levada a indagar-me se o
nosso problema é “curar” o desassossego desses profissionais ou
problematizar aquilo que os desassossega. Ou seja, somos nós
psicólogos que estamos adoecendo porque estamos
desassossegados, ou, doentes estão as práticas “psi” e jurídicas?
Ou ainda: será que quem padece não são aqueles que não podem
se inquietar? Por isso, no item a seguir, será lançada a pergunta de
Agamben (2009): “é possível desativar um dispositivo?”
Essa última ideia se junta a todas as outras que surgiram ao
longo do texto e leva ao quarto capítulo: “O abolicionismo penal
como uma ‘ideia adequada’”, no qual aparece novamente a ideia
de estar em constante análise de implicações em nossas práticas
profissionais e nos processos vitais, lembrando que isso não é
uma questão de método apenas, mas ontológica e que, para
sustentarmos esse processo, que não é nada fácil, precisamos ter
bons encontros e ideias adequadas. Por isso, convido Spinoza,
Deleuze e Foucault, que, com a força inventiva e inquieta de seus
escritos e de suas ideias adequadas, nos abrem possibilidades de,
a partir do desassossego, pensar outras práticas nos campos dos
saberes “psi” e do direito, em que sejam abolidas as forças que os
aprisionam e envenenam e que também caminhem em direção à
criação e à liberdade.

Este livro foi escrito a partir de dados colhidos na minha dissertação de mestrado em
psicologia defendida pela Universidade Federal Fluminense, no ano de 2010, com o título:
“Cartografia do desassossego: um olhar clínico-político para o encontro entre os
psicólogos e o campo jurídico”, sob a orientação da profa. dra. Cristina Rauter.
Neste trabalho seguimos as regras gramaticais do “Guia de preparação e apresentação
de originais para publicação”, da Editora da Universidade Federal Fluminense, 2009. Que
diz, por exemplo, que os nomes de disciplinas, ciências, correntes de pensamento, como:
direito, medicina, ciências sociais, positivismo, psicologia etc. devem ser escritos com
letra minúscula. O que é bem conveniente para a proposta deste texto, que, entre outras
coisas, busca questionar a “soberania” desses saberes. Ressaltamos que eles serão
escritos com letra maiúscula, apenas quando citarmos algum autor, em respeito à
escolha deste.
Logo após a defesa da dissertação, foi publicado um artigo com sua apresentação oral
sob o título: “O desassossego do cartógrafo”, Departamento de Psicologia Social e
Institucional/UERJ, Revista Mnemosine, v. 6, n. 2, p. 42-47, 2010. Disponível em:
<http://www.mnemosine.cjb.net/mnemo/index.php/mnemo/article/viewFile/417/698>.
Michel Foucault refere-se aos seus próprios trabalhos como “diagnósticos”. Cf.
Introdução de O uso dos Prazeres. In: FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos
prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
De acordo com Lourau (2004, p. 132), analisadores são: “acontecimentos ou fenômenos
reveladores e ao mesmo tempo catalisadores; produtos de uma situação que agem sobre
ela”.
O primeiro é o exame realizado em instituições prisionais para que seja efetuada a
individualização da pena, a fim de que o detento receba a progressão e regressão de
regime e o livramento condicional, e o segundo é um método de inquérito de crianças e
adolescentes, supostamente, abusados sexualmente.
CAPÍTULO I
O DESASSOSSEGO DO CARTÓGRAFO
[...] devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas
ciências sociais e psicológicas [...] cuja posição consiste em se interessar pelo
discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica
fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos
permitem criar saídas para os processos de singularização, ou, ao contrário, vão
estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas
possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. (ROLNIK;
GUATTARI, 2000, p. 29)
Este livro se propõe a fazer uma análise cartográfica do
encontro entre os psicólogos e o campo jurídico. Essa ideia
ganhou sentido a partir dos encontros, quase sempre polêmicos,
com estes profissionais, com o desassossego que os movimenta e
com as forças que, às vezes, os paralisam.
A percepção de que existem muitos problemas, controvérsias
e, também, alguns movimentos de resistência se iniciou na
pesquisa que realizei como acadêmica bolsista do Pibic/Cnpq,15
ainda na graduação, com psicólogos que trabalhavam em prisões.
Posteriormente passei a conviver com psicólogos que
trabalhavam em outros pontos do que chamamos de “campo
jurídico”, o que me fez entender que o problema está muito além
das grades.
Pensando junto com o filósofo Spinoza, para o qual é nos
encontros de corpos que sua potência de agir no mundo se
transforma, podemos inferir que nos encontros “tudo se compõe e
se decompõe”.16 Os encontros geram no corpo um estado
chamado por ele de afecções, que variam em seu grau de potência.
Essa variação é chamada de afeto. Ou, como afirma Deleuze:
O affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo
afetante, ao passo que o affectus remete à transição de um estado a outro [...]
por afetos entendo as afecções do corpo pelas quais a potência de agir desse
mesmo corpo é aumentada [alegria] ou diminuída [tristeza], favorecida ou
impedida.17 (DELEUZE, 2002, p. 56)
Nos encontros com esses profissionais emergiram múltiplos
afetos, alguns alegres, outros tristes, muitos inomináveis. Contudo,
minha insistência na construção de sentido para aquilo que
experimentava me levou para o caminho da escrita e, por isso,
escolhi escrever a monografia de conclusão do curso de psicologia
sobre o trabalho dos psicólogos nas prisões, o que me rendeu, em
2008, o Prêmio UFF Vasconcelos Torres de Iniciação Científica.
Nesse ínterim, recebi indicação para atuar como acompanhante
terapêutica no Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.18 Fui também
indicada para participar como colaboradora da Comissão de
Psicologia e Justiça e do Grupo de Trabalho (GT) Psicologia e
Sistema Prisional, ambos do Conselho Regional de Psicologia19
(CRP/05-RJ), em um Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico da Secretaria de Administração Penitenciária do
Estado do Rio de Janeiro20 (SEAP/RJ). Além disso, fui convidada a
atuar como psicóloga-pesquisadora na ONG internacional Médicos
Sem Fronteiras,21 que atua em situações de guerra civil e de
violência urbana.
Por todos esses encontros e pelos efeitos que produziram,
justifica-se a escolha da temática deste livro. Fui guiada pela ideia
de que pesquisador e objeto se compõem a cada encontro, e foi
pelo caminho dos afetos que emergiram dos bons e dos maus
encontros e das marcas produzidas por eles que a escrita desse
texto se realizou.
No momento em que escrevia essas frases, lembrei-me de um
belíssimo texto de Suely Rolnik (1993), no qual a autora diz que, ao
fazer seu memorial para apresentar na PUC-SP, se deu conta de
que um memorial não é apenas um comentário acerca de nossa
trajetória, pois, à medida que foi mergulhando na memória para
buscar os fatos e reconstituir sua cronologia, se viu adentrando
numa outra espécie de memória, uma memória do invisível feita
não de fatos, mas de algo que chamou de “marcas”.
A passagem por todos esses lugares e o encontro com todos
esses profissionais com quem trabalhei, nesses últimos anos,
foram uma experiência muito intensiva. A escolha da palavra
“marcas” não está dissociada da escolha do termo desassossego.
Esta última também advém da minha composição com esse texto
de Rolnik (1993) e de minha composição com Fernando Pessoa em
seu Livro do desassossego (2006).
Em carta a um amigo, Fernando Pessoa (2006, p. 516)22 diz que
deu esse nome ao livro “por causa da inquietação e incerteza que
é a sua nota predominante”. Pessoa nos ajudou, pela literatura, a
compreender a importância da inquietação e da incerteza para a
composição deste livro/cartografia e da minha prática como
psicóloga.
Em outra passagem do texto de Rolnik (1993), podemos
constatar que a marca e o desassossego se dão no plano da
criação e da produtividade. Ao tratar a marca como diferença,
desassossego e devir-outro, a autora diz que durante nossa vida e
em cada uma das dimensões que a compõem, vivemos
mergulhados em várias espécies de ambientes, inclusive aqueles
planos que são invisíveis e que, neles, o que há é uma textura
(ontológica) e esta vai-se formando a partir dos fluxos que
constituem nossa composição atual e da conexão com outros
fluxos, somando-se e esboçando novas composições. Em suas
palavras:
Tais composições, a partir de um certo limiar, geram em nós estados inéditos,
inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência subjetiva
de nossa atual figura. Rompe-se assim o equilíbrio desta nossa atual figura,
tremem seus contornos. Podemos dizer que a cada vez que isto acontece, é uma
violência vivida por nosso corpo em sua forma atual, pois nos desestabiliza e
nos coloca a exigência de criarmos um novo corpo – em nossa existência, em
nosso modo de sentir, de pensar, de agir etc. – que venha encarnar este estado
inédito que se fez em nós. E a cada vez que respondemos à exigência imposta
por um destes estados, nos tornamos outros. Ora, o que estou chamando de
marca são exatamente estes estados inéditos que se produzem em nosso corpo,
a partir das composições que vamos vivendo. Cada um destes estados constitui
uma diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o
que significa que as marcas são sempre gênese de um devir. (ROLNIK, 1993, p.
241-242)

A utilização desse termo, por Rolnik, converge para a afirmação


foucaultiana de que devemos realizar uma “ontologia crítica de
nós mesmos”, ou seja, trata-se de “uma atitude, um êthos, uma via
filosófica”, na qual “a crítica do que somos é simultaneamente
análise histórica dos limites que nos são colocados e a prova de
sua ultrapassagem possível” (FOUCAULT, 2005b, p. 351).
A proximidade com uma constelação de forças geradoras de
práticas violentas, sofridas e/ou exercidas pelos profissionais
ouvidos nessa pesquisa produziu muitas inquietações e
incertezas. E um enorme desassossego tomou conta de mim.
Porém, devemos trazer o paradoxo do desassossego, que é o fato
de ser aquilo que pode nos produzir um certo “mal-estar”, mas
também é aquilo que produz movimento, nos convoca a
ultrapassar limites, aquece a militância política, possibilita a
construção de estratégias de resistência ao instituído, nos impele
a outrar-nos e a inventar outras práticas “psi”. José Gil discute
esse paradoxo em seu livro Fernando Pessoa ou a metafísica das
sensações:

O estado de estagnação representa a paragem do desassossego, a imobilidade


da ausência de vida. Se o desassossego é o movimento que prepara e conduz ao
devir-outro, a estagnação, deve negar toda a possibilidade de metamorfose. Mas
de uma a outra, a passagem mal se faz sentir, pois, paradoxalmente, a
estagnação pode derivar do desassossego-deslizar imperceptível do movimento
para paragem do movimento, do pleno para o vazio, da vida para a morte, do
sentido para o não-sentido, do expressivo para o inexpressivo. (GIL, [1987?], p.
25)

Contudo, devo dizer que só foi possível compreender melhor


esse paradoxo, e tudo aquilo que havia escutado dos psicólogos
que trabalhavam em prisões, ao aproximar-me deste tipo de
instituição. Antes, tudo que eu podia era estranhar, questionar,
problematizar, indignar-me, criticar, mas diria que em um nível um
pouco superficial; somente após a experiência concreta é que tudo
aquilo que sentia foi intensificado.
Enquanto estive no hospital de custódia, a sensação de ser uma
estrangeira naquele lugar me seguiu até a última hora. Penso que
foi isso o que me preservou. Em momento nenhum consegui me
acostumar com a obediência aos dispositivos de controle, como o
crachá, a assinatura do ponto, a constante ameaça de um suposto
fiscal que iria ao local tirar fotos da equipe trabalhando, a
negociação diária com os servidores para obter autorização a fim
de ter acesso aos documentos que deveriam ser analisados, a
fragmentação da vida do paciente nas informações e documentos
distribuídos por inúmeros setores e funcionários, o linguajar
vulgar com que os agentes penitenciários se referiam aos
pacientes, a minha bolsa23 e a dos pacientes que nunca chegavam,
a visão das galerias nas quais ficavam os pacientes – que em nada
se diferenciava dos presídios comuns –, além do fato de muitos
profissionais que lá estavam já terem naturalizado tudo isso. Toda
essa configuração só denunciava os jogos de força, as relações de
saber-poder nessas instituições e, coloco no plural, porque, no
caso do hospital de custódia, são pelo menos duas instituições
sobrepostas: a prisional e a manicomial. E, apesar de serem
parcialmente financiados pelo Sistema Único de Saúde,24 não há,
nesse tipo de instituição, trabalhos que sigam as propostas do que
conhecemos como “reforma psiquiátrica”, sobretudo porque a
principal diretriz da reforma é o fim das instituições de
confinamento. Entretanto, conforme veremos ao longo deste
trabalho, instituições como esta existem há tanto tempo devido à
sua “funcionalidade”.
Não posso deixar de mencionar, também, as barbaridades
contidas nos laudos psiquiátricos. Houve uma situação em que
identifiquei que um único paciente tinha dois laudos, produzidos
no mesmo mês e hospital, porém, por dois psiquiatras diferentes.
Um laudo afirmava que o sujeito era esquizofrênico, portanto
inimputável,25 devendo, por isso, receber uma medida de
segurança26 e, no outro, que era usuário e traficante de drogas e
imputável, devendo receber uma pena por isso. Se a doença
estivesse no sujeito e a psiquiatria tivesse o poder de descobrir,
como eles afirmam, qual seria a explicação para isso? Como diria
Cristina Rauter (1992): “Só Kafka explica”!
Não posso me furtar a também convidar, para nossa conversa,
Machado de Assis, na novela O Alienista, na qual o médico
alienista Simão Bacamarte, no afã de suas experiências em busca
de tratamento da loucura, prende quase toda a cidade em sua
“Casa Verde”, sem se dar conta de que ele próprio produzira
aquela loucura, mas é importante ressaltar que, ao final da
história, ele é capturado por sua lógica aprisionadora e mortífera.
A ansiedade, a irritação, o descontrole do aparelho digestivo e
a alergia respiratória iam tomando conta do meu corpo à medida
que os obstáculos encontrados para a realização desse projeto do
hospital se multiplicavam. A impressão que eu tinha era de que
tudo lá funcionava para que aquelas pessoas (pacientes detidos)
nunca saíssem de lá e para que nenhum profissional tentasse fazer
algo diferente do repertório oficial. A despeito de alguns
profissionais que buscam, por meio de suas práticas, resistir a
essa captura e ao adoecimento gerado por ela, a grande maioria
azeita essa máquina e muitos estão adoecidos, ou, como diria
Spinoza, “envenenados”, pelos maus encontros que fazem nesse
tipo de instituição.
A expressão “de bicicleta pelo carcerário” foi utilizada por
Rodrigues (2008),27 encantei-me com a ideia, mas devo admitir que
imediatamente fui invadida por uma outra, que seria cômica, se
não fosse triste, que foi a de que passeei “de jegue pelo
carcerário”.28 Pessoa (2006, p. 50) já dizia, “faço paisagens com que
sinto.” Essa imagem-paisagem ganha sentido ao lembrar-me de
elementos como a força, a resistência, a lentidão e o tapa-olhos,
presentes no funcionamento desse tipo de instituição. Ao me
referir à força, à resistência e à lentidão, aponto a burocracia
processual e institucional de forma geral, as práticas cristalizadas
das equipes técnicas que “resistem” anos a fio a qualquer tipo de
mudança e a força que gastam para alimentá-las. Ao trazer a
imagem do tapa-olho, quero dizer que nesse tipo de passeio, no
qual se anda sem olhar para os lados, sempre na mesma direção,
algumas coisas e pessoas são vistas demais e outras caem no
regime da invisibilidade.
Uma das coisas que caem nesse regime de invisibilidade é a
própria saúde dos profissionais que trabalham nesses lugares. Não
raro fui convocada a opinar do lugar de psicóloga sobre o grau de
“maluquice” dos funcionários. Nos momentos de “descontração”,
se é que de fato havia algum. Os termos “prisionais-manicomiais”
eram usuais no vocabulário diário dos funcionários, porém, não
sei exatamente por que, ninguém se comparava a um criminoso
quando queria fazer humor ou reclamar de algo, só quando
queriam acusar alguém. Mas era comum que se comparassem aos
loucos quando achavam que estavam sobrecarregados de
trabalho, nesse caso aproximando-se da figura do doente
invisibilizado pelo funcionamento da instituição.
Penso que é em razão dessa sobreposição das lógicas
manicomial e prisional que o vocabulário dos funcionários
alternava termos comuns a essas duas instituições. A confusão
entre pena e medida de segurança, preso e paciente, reincidência e
agudização do caso era comum nos documentos e nas falas dos
profissionais. Será demonstrado, ao longo desta pesquisa, por
meio dos textos de Foucault, que aquilo semelhante a uma
confusão entre os termos não é exatamente uma confusão, mas,
genealogicamente, há um cruzamento dessas coisas que foram
importantes tanto para a construção de saberes e práticas na
modernidade, como a medicina, a psiquiatria, a psicologia, a
psicanálise e também para a edificação do direito.
Minha outra experiência profissional, referida anteriormente,
foi numa ONG.29 Nesse caso não trabalhava dentro de hospitais,
mas em comunidades populares com profissionais da saúde
pública. A experiência foi muito interessante, por vários motivos,
mas algo me impressionou muito: a forma como a violência
permeia o trabalho dos profissionais e, por vezes, os adoece.
Quando entrevistava os profissionais de saúde que
trabalhavam em comunidades e eles falavam dos problemas
gerados pela presença dos traficantes, da polícia, do confronto
entre eles ou queixavam-se da “ausência” do Estado na hora de
resolver esses problemas, eu tinha a sensação de que o percurso
“comunidade-prisão e/ou hospital-comunidade” era rápido, curto
e inevitável, isso na “melhor das hipóteses”, já que sabemos que o
índice de mortes nessas comunidades é bastante elevado.
Ao cruzar, em minha memória, os depoimentos dos
profissionais da saúde que trabalhavam em comunidades e
aqueles do campo jurídico e as análises por eles feitas nos laudos,
pareceres e prontuários do hospital, todos pareciam ter uma
estranha semelhança, justamente por serem todos territórios
judicializados.
De acordo com os dados levantados no hospital de custódia,
verificam-se dados que se repetem em todo o sistema penal.30 Para
dar uma ideia, só o nosso estado, no final do ano de 2011,
mantinha sob custódia 29.468 pessoas. Essa repetição consiste,
por exemplo, no fato de a população internada não ter nem o
ensino fundamental completo.31 Observa-se, ainda, que a maioria
não tem profissão, vem de regiões pobres da cidade ou do estado
do Rio de Janeiro, são de cor parda,32 geralmente jovens33 que têm
entre 18 e 24 anos e estavam desempregados ao serem presos.
Seus crimes? Variados, mas podemos dizer que um número
significativamente alto é de roubos34 e do tráfico de entorpecentes.
Ou seja, são crimes contra o patrimônio e do comércio de
substâncias ilícitas,35 e não contra a vida.
Segundo o relato dos profissionais de saúde das comunidades
em que estive, a população dessas regiões também é composta de
pessoas com baixa escolaridade e desempregadas ou com
empregos informais, como o “comércio de ervas”.36
A distância entre as comunidades ou, como se diz quando não
tem ninguém olhando, “a favela” e as prisões ou hospitais de
custódia não é tão grande assim. Essa frase me traz outra imagem,
aquela vista da copa do hospital onde trabalhava: um cacto
gigantesco postado em frente ao prédio no qual ficavam os
custodiados. Se Fernando Pessoa dizia que fazia paisagens com o
que sentia, tomo uma licença poética para dizer o que essa
paisagem desértica me fez sentir: a secura e a aridez daquele lugar.
Curiosamente, nessa copa, constantemente, faltava água para os
funcionários beberem! E, atrás do prédio, lá estava ela: a favela.
A memória também é sonora, pois era comum trabalhar
embalada pelo som dos tiroteios ao fundo. E o ouvido também é
marcado pela narrativa dos colegas que diziam que era comum
cruzar com o caveirão,37 na porta do hospital, subindo para a tal
comunidade.
Ao discutir a estreita relação entre a criminalização da pobreza
e a segurança pública no contemporâneo, Nascimento (2008) diz
que:
[...] a história da violência urbana no Rio de Janeiro é interpretada como
nascendo do conflito entre traficantes de drogas moradores da favela e o Estado,
que, em nome da segurança da população, aciona o BOPE como exterminador
do mal-estar contemporâneo. E, havendo um local de nascimento para esse mal,
as ações de invasão nas comunidades são vistas como naturais e justificadas
socialmente. Um novo campo de concentração surge daí, porém a céu aberto
[...] passamos a aceitar como natural a existência de certas práticas de controle
que exterminam, dia a dia, milhares de pessoas que vivem nas comunidades.
(NASCIMENTO, 2008, p. 136)

E o Estado? Não está ausente, está penal, como diria Löic


Wacquant (2003). Segundo este autor, o desenvolvimento de um
“Estado Penal” aumenta os meios, a amplitude e a intensidade da
intervenção do aparelho policial e judiciário, visto que é
convocado para resolver as desordens causadas pela economia,
desemprego e pobreza das populações urbanas e, com isso,
estaríamos estabelecendo uma “verdadeira ditadura sobre os
pobres”. Para ele, as prisões brasileiras mais parecem um “campo
de concentração para pobres [...] o aparelho carcerário brasileiro
só serve para agravar a instabilidade e a pobreza das famílias
cujos membros ele seqüestra.” Para se ter uma noção, no ano de
2011, nosso país possuía 514.582 pessoas atrás de suas grades.38
Outra semelhança na narrativa de todos esses profissionais é
que os problemas relativos às condições de trabalho e à saúde do
trabalhador nessas comunidades não eram muito diferentes dos
problemas narrados pelos trabalhadores de instituições totais,
como aqueles dos hospitais de custódia ou das prisões. Todos eles
se queixam de a gestão não fornecer condições adequadas para o
trabalho ser exercido, dos baixos salários e de problemas de
saúde gerados pela prática de suas atividades profissionais.
Esses locais: a comunidade, a prisão, o hospital de custódia, os
serviços de saúde pública e do Judiciário, estão atravessados por
forças como: o desemprego; a pobreza; o racismo, a opção do
Estado por investimentos na área da segurança pública tornando-o
um “Estado Penal”; o desinvestimento nas políticas públicas de
educação, saúde e geração de empregos; a força dos
especialismos que produzem, entre outras coisas, subjetividades
doentes e/ou delinquentes; a intolerância às diferenças e, por
último, mas não menos importante, o descaso com a saúde dos
seus profissionais.
Todas essas experiências, a maioria delas ocorridas
simultaneamente, – e talvez por isso o texto as traga de forma tão
imbricada – produziram em mim inúmeras marcas, que, nesse
momento, assumem a forma de perguntas: quem está mais sujeito
à violência: quem está desse ou daquele lado das grades? Quem
corre mais risco de ser atingido pela violência: quem está na favela
ou no asfalto? Qual a diferença entre um operador do direito, um
agente penitenciário ou um técnico capturado pela lógica da
violência e uma pessoa detida lá por este motivo? Qual a distância
entre um psiquiatra que redige um laudo sentado no lugar de
quem possui “A Verdade” e um paciente que afirma saber a
verdade por ser um “enviado de Deus”? Será que o tráfico de
substâncias ilícitas é o único motivo para justificar tanta violência
e essa política de criminalização, aprisionamento e extermínio das
populações pobres, que vivemos no contemporâneo? O que nós,
os psicólogos, temos a ver com tudo isso?39
Compor com os fluxos que percorreram todos esses encontros
certamente faz “tremer meus contornos”. É certo que, ao
experimentar esse diferir, muitas vezes, senti-me instável,
violentada e um novo corpo se fazia necessário.
No fundo invisível da minha alma, invisíveis forças desconhecidas travavam uma
batalha em que meu ser era solo, e todo eu tremia do embate incógnito [...] uma
inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de
endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito
latente. O meu coração batia como se falasse. (Pessoa, 2006, p. 127)

O que me trouxe um pouco de sossego é que sei que esse


desassossego e a possibilidade de outrar-se não são somente
meus e sim coletivos.40 Cada palavra que sai de minha boca ou de
minhas mãos é composta de muitas forças e vozes,41 como dizia
Pessoa (2006, p. 45): “[...] penso se a minha voz, aparentemente
tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes
[...]”.
Fernando Pessoa, com toda a sua polifonia, nos conduz a
Deleuze quando este afirma que:
Os enunciados não têm por causa um sujeito que agiria como sujeito da
enunciação, tampouco não se referem a sujeitos como sujeitos de enunciado. O
enunciado é o produto de um agenciamento, sempre coletivo, que põe em jogo,
em nós e fora de nós, populações, multiplicidades, territórios, devires, afetos,
acontecimentos. O nome próprio não designa um sujeito, mas alguma coisa que
se passa ao menos entre dois termos que não são sujeitos, mas agentes,
elementos [...]. É isso agenciar: estar no meio, sobre a linha de encontro de um
mundo interior e de um mundo exterior. (DELEUZE; PARNET, 2004, p. 69-70)

Por sua vez, Deleuze nos leva de volta à literatura, quando diz
que se interessava pelo o que se passava entre as artes, a ciência e
a filosofia e acreditava que não havia nenhuma relação de
superioridade de uma dessas disciplinas em relação à outra, pois
cada uma delas é criadora. Dizia também que: “o verdadeiro
objeto da ciência é criar funções, o verdadeiro objeto da arte é
criar agregados sensíveis e o objeto da filosofia, criar conceitos”.
Este autor apostava no encontro entre elas, mas não sem se
perguntar: como ele se dá? Para tanto, ele desenvolve suas ideias
dizendo que a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de
ressonância mútua, “são como espécies de linhas melódicas
estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre
si” (DELEUZE, 1992, p. 154; 156).
Deleuze também trabalha com a ideia de que a criação se dá
por meio dos intercessores, que podem ser pessoas, artistas,
cientistas e também coisas, plantas e até animais. “Fictícios ou
reais, animados ou inanimados é preciso fabricar seus próprios
intercessores. [...] Se não formamos uma série, mesmo que
completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso dos
meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam
sem mim [...]” (DELEUZE, 1992, p. 156).
Ou seja, os autores e seus conceitos sejam eles da filosofia, dos
saberes “psi”, do direito, da literatura ou as coisas da natureza,
como o “cacto” e o “jegue” e outros que aparecerão no
desenvolvimento deste texto, agenciam-se na formação de séries e
redes, em uma relação de intervenção e interferência, que
desestabiliza e, num só tempo, possibilita a criação. O movimento
é o que mais importa, não interessam as causas das coisas, mas o
que se dá entre, por isso só podemos compreender essa noção no
interior de uma certa “operação de encontro, contágio e
cruzamento” (BARROS; PASSOS, 2000). São estes encontros que
nos ajudam a escapar do aprisionamento identitário das práticas
“psi” e da própria militância, quando estes se apresentam como
obstáculos à transversalização de nossas experiências clínico-
políticas, segundo Coimbra e Abreu (2005, p. 41).
Por isso a escrita desse texto se faz vital, porque as marcas
conservam vivas seu potencial de proliferação sempre a engendrar
outros devires42 e devires-outros.43 O poeta que nos acompanha
nessa jornada, aquele que levou ao extremo a experiência de
outrar-se mudando de nome a cada vez que descobria um novo
modo de escrever ou, até, assinando com seu nome próprio, que
de próprio nada tinha, pois era o nome mais impessoal que alguém
poderia ter: Pessoa. Pessoa não é nome de alguém, ou melhor, de
ninguém; é o nome que todos nós recebemos ao nascer antes de
nos darem um nome próprio; ele dizia: “Tudo em mim é a
tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma
consigo mesma [...] um desassossego sempre crescente [...]”
(PESSOA, 2006, p. 49).
Assim, neste capítulo, tento criar sentidos que aumentem o
grau de potência com que a vida se afirma. E faço isto no alegre
encontro com esses autores e suas ideias tão adequadas para o
que quero expressar. Segundo Rolnik (1993), em trecho bastante
espinosista de seu texto, a escrita tem o poder de tratamento, de
antídoto, ao que ela denomina “marcas-feridas”, que são as marcas
de experiências que produzem em nós um estado de
enfraquecimento de nossa potência, um tipo de intoxicação,
produzida pelos maus encontros que fazemos na vida.
O modo como escolhi estar na vida, como mulher, psicóloga,
pesquisadora, interventora, militante política..., – aliás, não é
possível ficar apenas em um desses lugares, quando o que
queremos é justamente equivocar esses limites – foi o que
possibilitou que este trabalho fosse criado, e essa tessitura se deu
por uma perspectiva transdisciplinar, na qual descobri que havia
coisas imprescindíveis a serem feitas: acompanhar e intervir, mas
também: se deixar acompanhar e sofrer intervenções.44 E esse
acompanhar não é apenas “fazer companhia”, mas “fazer-com”, ou
seja, compor cartografias ou cartas que mostrem como se dão os
encontros, quais os estados que eles geram (afecções) e quais as
variações do grau de potência desses estados (afetos), quais os
caminhos percorridos e quais as paisagens. Ou ainda, na
linguagem de Deleuze (2004), seria estudar as linhas pelas quais
indivíduos ou grupos são feitos. Acreditamos que só assim
encontraremos possibilidades de criar novos modos de
subjetivação e de construção de outras práticas “psi”.
De acordo com Barros e Passos (2000, p. 77):
O que nos interessa são modos de subjetivação e, neste sentido, importa-nos
poder traçar as circunstâncias em que eles se compuseram, que forças se
atravessam e que efeitos estão se dando. No lugar do indivíduo, individuações.
No lugar do sujeito, subjetivação. Como nos conceitos, não se trata de modo
algum de reunir, unificar, mas de construir redes por ressonâncias, deixar nascer
mil caminhos que nos levariam a muitos lugares.

O que compõe com o texto Linguagem, Consciência e Sociedade,


quando Guattari (1990, p. 10) diz: “O importante neste caso, não é
o resultado final, mas o fato de que o método cartográfico coexiste
com o processo de subjetivação e torna então possível uma
reapropriação, uma autopoiese dos meios de produção de
subjetividade”. O autor diz ainda que a subjetividade é produzida
por instâncias individuais, coletivas e institucionais, logo:
[...] é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas
existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa
subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão,
na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma
relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de

singularização. (Guattari; Rolnik, 1993, p. 33, grifo nosso)

Assim, as práticas “psi” deveriam ocupar-se em possibilitar os


processos de singularização, ou seja, contribuir na criação de
novos modos de existir, novas formas de pensar, criar, trabalhar,
sentir, amar, desejar e de ser livre. Para isso, suas ações precisam
ser críticas no que diz respeito ao modo de vida característico da
organização vigente e dos modos de ser e de existir coniventes e
propícios à manutenção dessa organização, ou seja, do
capitalismo mundial integrado, como diriam Guattari e Rolnik
(1993, p. 187).
A partir dessa diferenciação entre produção de subjetividade e
processos de singularização e de tudo mais que foi mencionado
até aqui, é possível fazer uma nova série de perguntas: quais as
linhas constitutivas do encontro entre os psicólogos e o campo
jurídico? Que afecções preenchem os corpos que estão nesse
encontro? Quais as variações do grau de potência (afetos tristes
e/ou alegres) desses corpos? As práticas “psi” no campo jurídico
são equipamentos reprodutores de subjetividades produzidas pela
lógica dominante e também dispositivos que vão buscar a
transformação dessa lógica? Como fica a supremacia da
objetividade e do positivismo, tão caros ao direito, para os
psicólogos com todas as suas diferenças e contradições
epistemológicas na rotina do Judiciário? Como os psicólogos
respondem às demandas do Judiciário? Como se dão os processos
de captura pelas lógicas dominantes? Quais os efeitos das suas
práticas nas suas vidas e nas vidas de quem eles atendem?
Fazer cartografia é acompanhar as linhas, os processos e esse
acompanhamento, que por si só, já é uma intervenção e tem de
estar fortemente ligado à habitação de um ethos ético-estético-
político. Digo ético45 com o intuito de nos implicarmos no nosso(s)
modo(s) de existência, de escutarmos e afirmarmos os processos
de diferenciação de si e do outro. Estético porque se trata da
criação de um campo para produção de outros caminhos, de
novas paisagens, para que as forças ativas se afirmem, criando
uma nova estética da existência.46 Mas para criar uma nova
estética é necessário que haja uma transvaloração,47 ou seja, o
ultrapassar os valores estabelecidos e construir novos valores,
não morais, mas éticos, porque partem da vida, da relação de
forças que a colore e não dos valores hegemônicos que ditam
como ela tem de ser vivida. Para tanto, faz-se fundamental uma
atitude política. Para transvalorar é preciso, antes, adotar uma
atitude crítica diante do que se apresenta como realidade,
analisando em que condições e circunstâncias emergiram esses
valores já dados, ou seja, temos de adotar uma perspectiva
genealógica.48
E, é político, porque se trata de uma luta contra as forças em
nós que podem obstruir as nascentes do devir, do diferir, da
criação, impossibilitando a emergência do novo.
A aposta na perspectiva citada acima está em consonância,
mais uma vez, com Rolnik quando ela afirma a necessidade de
imprimir em seu trabalho um rigor que:
[...] é mais da ordem de uma posição ontológica do que metodológica,
intelectual ou erudita: é um rigor ético/estético/político. Ético porque não se
trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor em si (um
método), nem de um Campo de verdades tomadas como valor em si (um campo
de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o
rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir
a partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor,
assim como as regras que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto
conduzidas e exigidas pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do
domínio de um campo já dado (campo de saber), mas sim o da criação de um
campo, criação que encarna as marcas no corpo do pensamento, como numa
obra de arte. Político porque este rigor é o de uma luta contra as forças em nós
que obstruem as nascentes do devir. (ROLNIK, 1993, p. 242)

Assim como Suely inspirou-se na filosofia da diferença,49


Cristina Rauter, Eduardo Passos e Cecília Coimbra, profissionais
que me acompanham nesse percurso, também o fazem para
pensar a vida e as práticas “psi” em uma perspectiva
transdisciplinar.
Segundo Passos e Rauter,50 o que defendem não é a criação de
mais uma zona de especialismo, daqueles que matizam o campo
dos saberes e práticas “psi”, muito menos de um ecletismo, e sim
a tentativa de se afirmar como abordagem, perspectiva, um ethos
clínico transdisciplinar (BARROS; PASSOS, 2000).
De acordo com o que foi mencionado até agora, fica claro que,
neste trabalho, o ato de viver, pesquisar, intervir, militar e clinicar
significa a subversão da lógica das oposições para a política da
transversalidade.51 Isso significa transformar o antagonismo em
uma agonística,52 ou seja, sair do confronto por oposição e passar
a habitar o plano das forças. Mas para tal feito, faz-se necessário
extrair o não clínico da clínica ou extrair a clínica do não clínico.
Essa atitude não se pode fazer senão pela problematização dos
limites do suposto campo da clínica e das práticas “psi”.
Por isso, desestabilizar os limites das práticas “psi” é analisá-
las para que seja possível a invenção contínua de um plano
transdisciplinar, que é um plano que se exerce numa certa
experiência de estar e operar, no limite, na fronteira, na borda, no
limiar. Significa ir para o limite e se perguntar: estou dentro ou
estou fora? Mas não com a preocupação de achar “a resposta”,
mas sim com a intenção de promover encontros, operar desvios,
criar novos territórios existenciais.
Clínica enquanto experiência de desvio, do clinamen que faz bifurcar um
percurso de vida na criação de novos territórios existenciais. O sentido da
clínica, para nós, não se reduz a esse movimento do inclinar-se sobre o leito do
doente, como se poderia supor a partir do sentido etimológico da palavra
derivada do grego klinikos (“que concerne ao leito”; de klíne, “leito, repouso”; de
klíno “inclinar, dobrar”). Mais do que essa atitude de acolhimento de quem

demanda tratamento, entendemos o ato clínico como a produção de um desvio


(clinamen), na acepção que dá a essa palavra a filosofia atomista de Epicuro
(1965). Esse conceito da filosofia grega designa o desvio que permite aos
átomos, ao caírem no vazio em virtude de seu peso e de sua velocidade, se
chocarem articulando-se na composição das coisas. Essa cosmogonia epicurista
atribui a esses pequenos movimentos de desvio a potência de geração do
mundo. É na afirmação desse desvio, do clinamen, portanto que a clínica se faz.
(PASSOS; BARROS, 2001, p. 89-99)

Utilizo-me de todas as ideias apresentadas até aqui para pensar


as práticas e discursos “psi” como um todo. Melhor dizendo,
aposto na potência clínica de toda intervenção “psi” quando ela
parte de um ethos ético-estético-político.
Esta é uma proposta transdisciplinar em que todos esses
saberes estejam presentes, possam misturar-se e “contaminar” uns
aos outros. Aqui, interessa a apropriação da capacidade de
movimentar-se, a possibilidade de sempre transitar, de ignorar
cercas e criar outros territórios. Pensar dessa forma traz efeitos
para nossas práticas enquanto psicólogos: de especialistas a
interventores/agenciadores (COIMBRA; LEITÃO, 2003, p. 14).
Portanto, considero que as práticas e discursos53 “psi” fazem
parte da rede de dispositivos que participam tanto da produção
de subjetividades como dos processos de singularização.
Neste trabalho, utilizarei inúmeras vezes o termo “dispositivo”,
não para naturalizá-lo, mas por acreditar que ele seja composto de
múltiplas forças e, dessa forma, carregue a possibilidade de
múltiplos usos.
É chegada a hora de esclarecer o que os “autores-parceiros”
escolhidos entendem por dispositivo. E, a despeito de suas
diferenças, a possibilidade de uso da concepção de um não exclui
a do outro.54
De acordo com Foucault (1993, p. 244-245), é:
[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos.

Ao discutir esse conceito de Foucault, Deleuze (1996, p. 1-3)


afirmará que ele:
É antes de mais nada um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele é composto
de linhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo não cercam ou não
delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a língua etc., mas seguem
direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às
vezes se afastam uma das outras. [...] Os dispositivos têm portanto como
componentes linhas de visibilidade, de enunciação, linhas de força, linhas de
subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura, e todas se entrecruzam e
se misturam, de modo que umas repõem as outras ou suscitam outras, através
de variações ou mesmo mutações e agenciamentos.

Ao pensar as práticas e discursos “psi” como dispositivos que


produzem subjetividades, trazendo assim a dimensão do controle
social, também acredita-se que as práticas e discursos “psi”
possibilitam os processos de singularização, carregando a
dimensão da liberdade. Mas essa múltipla potência de um
dispositivo “psi” não tem como ser atingida de outra forma que
não seja concebendo nossas práticas e discursos como
inseparáveis de um ethos ético-estético-político, conforme
explicitado.
Afirmar sua potência de dispositivo, isto é, de produtor de efeitos de sentido
variados. Mas não basta chamar a atenção para tal caráter de dispositivo como
algo em si. Há que se rastrear – sempre – em que práticas tal dispositivo se
sustenta, o que está fazendo funcionar, que visibilidades tem permitido passar,
que dizibilidades tem autorizado conectar, que lutas tem enfrentado na
produção de subjetividades outras (BARROS, 2002, p. 136-137).

Assim, uma das propostas deste trabalho é equivocar esse


lugar de “especialistas ‘psi’” e nos colocarmos no limiar entre os
saberes “psi” e os saberes do direito, entre a norma e a lei, entre o
clínico e o não clínico, para pensarmos por que somos
convidados, o tempo todo, pela sociedade, pela academia, pela
mídia, pela máquina jurídico-penal, pelo Estado, para dar conta
dos acontecimentos que envolvem violência, das questões
relacionadas à família, à sexualidade, à criminalidade, e, no caso
desta pesquisa em especial, por que somos convidados a lidar
com essas questões quando elas se tornam um problema da
Justiça e quais os efeitos que o aceite desse convite produz.
Como vimos com Rolnik (1993), no início deste capítulo, as
marcas de experiências causam desassossego, não podemos
perder de vista que assim como esse desassossego pode
desnortear, ele também aponta novos caminhos, potencializa
nosso desejo, cria antídotos, nos faz diferir, catalisa movimento e
nos leva a tecer outros modos de existir, modos singulares que nos
permitam mudar nossas vidas e nossas práticas profissionais. Por
isso, o presente trabalho aposta também na possibilidade de
criação de estratégias nas quais as práticas “psi” possam ser
experienciadas a partir da construção e habitação de um ethos
clínico-estético-ético-político de intervenção. Desejamos, junto
com Fernando Pessoa, pensar que “nascemos em pleno
desassossego político” (PESSOA apud ALBERTI, 2004, p. 180).
E, embora este capítulo pareça uma espécie de memorial, seu
objetivo não é pessoalizar as experiências narradas, mas
coletivizá-las, por meio de uma breve análise de implicações de
parte do meu processo de formação, como pesquisadora,
interventora, psicóloga e militante política. Por isso, convido
vocês a lerem este texto, “[...] não apenas como uma enunciação
individual, mas como um modo singular de dizer uma história que
é necessariamente coletiva” (RAUTER; NERI, 2005). E, tomada por
esse coletivo que me habita, pergunto: será que nosso medo
corporativista de desativar certos dispositivos dos saberes e
práticas “psi” não está nos impedindo de trabalhar em nome dos
processos de autonomia, de singularização, de potencialização da
vida e da liberdade?

Como aluna de psicologia da Universidade Federal Fluminense, recebi financiamento do


Pibic/Cnpq, no período de 2006-2008, por meio da pesquisa: “Clínica e Violência –
Problematizações e Construções para uma Clínica do Contemporâneo”, sob a coordenação

da profa. dra. Cristina Rauter e participação da profa. dra. Regina Neri, na qual o recorte
escolhido foi o de pesquisar sobre o trabalho dos psicólogos nas prisões.
Trecho de uma linda música “espinosista” do Paulinho Moska “O jardim do silêncio”.
A ideia de afeto também é discutida em outro momento da obra de Deleuze e Guattari
(1997, p. 21), que, entre outras coisas, dizem: “o afecto não é um sentimento pessoal,
tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva
e faz vacilar o eu”.
Fiz parte da equipe clínica do grupo Tortura Nunca Mais como acompanhante
terapêutica, de 2007 a 2009. Este grupo atende pessoas acometidas pela violência
impetrada pelos aparelhos do Estado.
A indicação partiu dos professores Cecília Coimbra e José Novaes. Colaborei, de março
de 2009 a agosto de 2010, na Comissão, e de março de 2009 a março de 2010, no GT.
Fui convidada por Tânia Kolker e Ana Carla Silva para participar como pesquisadora no
projeto: “Estudos para reformulação de ações que possibilitem a desinstitucionalização e
reinserção social dos pacientes internados nos hospitais de custódia e tratamento

psiquiátrico”, de janeiro a abril de 2009. O trabalho consistia na análise dos laudos e


pareceres que compunham o exame de sanidade mental e o exame de verificação e
cessação de periculosidade, assim como o levantamento dos prontuários jurídicos e
clínicos, com o objetivo de preencher um instrumento-questionário com informações
sobre cada paciente sob medida de segurança a fim de se fazer, junto à equipe técnica,
um projeto de saída da instituição e reinserção social, familiar e na Rede de Saúde
Pública para aquele paciente.
Prestei serviços como pesquisadora-psicóloga sob a coordenação da psicóloga Maria
Helena Zamora (PUC-RJ), para a ONG Médicos Sem Fronteiras no período de novembro
de 2008 a janeiro de 2009. O objetivo era avaliar, por meio de observações participantes,
grupos focais e entrevistas, um trabalho já realizado por eles intitulado: “Oficina de
Capacitação em Gestão de Risco para profissionais em programa da Saúde da Família
atuando em Áreas de vulnerabilidade Social”.
Trecho da carta a João Lebre de Lima, em 3/5/1914.
Ao trabalhar o conceito de análise de implicações, Lourau (1993, p. 16) diz: “nos
referimos ao conjunto de condições da pesquisa. Condições inclusive materiais, onde o
dinheiro tem uma participação tão ‘econômica’ quanto ‘libidinal’”.
A esse respeito, conferir os seguintes documentos: a) Portaria interministerial MS/MJ nº
1.777 de 9/9/2003, que aprova o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário
(PNSSP); b) Portaria nº 1.552 de 28/7/2004, que publica os valores do custeio do Plano
Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, e dá outras providências; c) Portaria nº 268
de 17/9/2003, que regulamenta o cadastro das Equipes de Saúde e das Unidades de Saúde
dos estabelecimentos prisionais no CNES; d) Portaria interministerial MS/MJ nº 3.343 de
28/12/2006, que altera os valores do incentivo para Atenção à Saúde no Sistema
Penitenciário; e) Portaria nº 240 de 31/1/2007, que publica os valores de custeio do Plano
Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, por Unidade da Federação. Além da
Resolução nº 5 de 4/5/2004, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária,
que dispõe a respeito das diretrizes para o cumprimento das Medidas de Segurança,
adequando-as à previsão contida na Lei nº 10.216 de 6/4/2001.
Cf. Código Penal, art. 26.
Cf. Código Penal, art. 96 e 97.
A autora inicia afirmando que seu texto pretende ser um passeio pelo livro Vigiar e punir,
de Michel Foucault, inspirada em Michel de Certeu, que dizia que Foucault: “visitava os
livros como circulava por Paris de bicicleta [...] com uma atenção exata e vigilante para
apreender, ao virar uma página ou uma rua, o clarão de uma estrangeiridade [...] as
citações de um impensado” (RODRIGUES, 2008, p. 149).
O termo jegue (jumento) pode parecer grotesco, mas para mim é uma imagem de
infância, no Nordeste, lugar árido no qual este animal era sempre associado à ideia de
força, resistência e lentidão.
Devo ressaltar que os dados a que me refiro são apenas observações pessoais e não
dizem respeito à encomenda de pesquisa feita pela ONG em questão, nem estão contidas
no relatório entregue oficialmente a esta instituição. Se aqui faço comentários em cima
de minhas observações, é porque acredito que elas em nada comprometem as
instituições e/ou profissionais envolvidos.
De acordo com o Ministério da Justiça, por meio do Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN) e seu Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), a
população carcerária do estado do Rio de Janeiro no mês de dezembro de 2011 era de
29.468. Nesta mesma época, o número de habitantes do estado era de 159.993.583.
Portanto, a população carcerária por 100.000 habitantes era de 184,25. A maioria (10.323)
se acumula no sistema penitenciário em regime fechado ou estão como presos
provisórios (10.505). E em medida de segurança de internação havia 97.
Em dezembro de 2011, O DEPEN declara que a quantidade de presos por grau de
instrução tinha, em sua maioria, ensino fundamental incompleto (14.449).
O DEPEN ainda declara que, em dezembro de 2011, a quantidade de presos por cor de
pele/etnia era em sua maioria parda (12.123).
A quantidade de presos por faixa etária de 18-24 anos, no estado do Rio de Janeiro, em
dezembro de 2011, era, segundo o INFOPEN, de 8.439.
A maior concentração de presos está no grupo de crimes contra o patrimônio (6.303),
seguida do grupo entorpecentes, com 2.090 presos, em dezembro de 2011, no estado do
Rio de Janeiro, segundo o INFOPEN.
O número de encarceramentos aumentou visivelmente após a Lei nº 8.072, de 25 de julho
de 1990, que inclui o tráfico de substâncias ilícitas como um crime hediondo. Cf.
Matozinhos, Déa Rita. A lei de crimes hediondos e a execução penal. In: Rauter, Cristina et
al. (Org.). Execução penal: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1995.

Termo utilizado, para se referir ao tráfico de substâncias entorpecentes, por um dos


profissionais de saúde pública (um agente comunitário de saúde), entrevistado em 2009
no trabalho que fiz pela ONG citada anteriormente.
Veículo blindado utilizado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), que,
segundo o site http://www.boperj.org/, “é a força de intervenção da Polícia Militar do
Estado do Rio e Janeiro”. Devemos ressaltar que esta força foi reformulada na ditadura
brasileira, em 19/1/78, quando se fortaleceu sua militarização e, tendo sido
posteriormente regulamentado pelo Decreto nº16.374 de 1/3/91. Acesso em: 29/8/09.
De acordo com o INFOPEN, em dezembro de 2011, a população do país era de
190.732.694 e a população carcerária era de 514.582. Ou seja, em cada grupo de 100 mil
habitantes, tínhamos 269,79 presos.
Frase inspirada no trabalho ético-político da psicóloga Maria Beatriz Sá Leitão (1944-
2009).
Entendendo, aqui, coletivo, tal como Guattari (1990, p. 8) o define, isto é, no sentido “de
uma multiplicidade desenvolvendo-se para além do indivíduo, do lado do socius, como
também aquém da pessoa, do lado das intensidades pré-verbais, relevando mais uma
lógica dos afetos que uma lógica de conjuntos bem circunscritos”.
Aqui me refiro, por exemplo, à intervenção feita por “mim” no Ministério Público no
evento “Abordagem Psicológica de Crianças e Adolescentes Envolvidos com a Justiça e o
Ministério Público”, realizada em 3/7/09, no auditório do Ministério Público/RJ, no qual,
após ouvir barbaridades sobre o papel do psicólogo nesses espaços, interrompi a fala de
um dos promotores para perguntar se iria haver debate, como prometido, e a pergunta
transformou-se numa acalorada discussão entre nós e denunciou o silenciamento e a
desqualificação aos quais estavam sendo submetidos os psicólogos e assistentes sociais
presentes na plateia. Porém, o mais interessante foi o fato de que senti como se “tivesse
sido falada”, como se todos os incomodados ali presentes tivessem falado pela minha
boca. Pois eu, em circunstâncias “normais”, jamais faria aquilo. A sensação de estar
sendo violentada, assim como os outros trabalhadores, pelo que estava acontecendo
naquele lugar, fez-me agir de uma maneira inesperada. A sensação de estranhamento em
relação a mim mesma e a tudo aquilo perdurou por longos dias. E de solidão também,
pois ficou visível o medo das pessoas presentes de se colocarem diante das figuras do
Judiciário. Curiosamente, a frase que mais ouvi, dos próprios psicólogos, foi: “Você é
louca, não devia ter feito aquilo!”.
Segundo Deleuze (1997, p. 11). “[...] a escrita é inseparável do devir [...] devir não é
atingir uma forma, mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de
indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou
de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto
menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população [...] o devir
está sempre ‘entre’ ou ‘no meio’”.
Conforme Rolnik (1993), “Devir-outro” é uma expressão utilizada por José Gil ao referir-
se aos heterônimos de Fernando Pessoa (GIL, [1987?]).
Sobre estas duas últimas, aprendi muito trabalhando como acompanhante terapêutica
pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.
Segundo Deleuze (1992, p. 125), ao comentar a obra de Foucault no livro Conversações, “a
ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos o que dizemos em
função do modo de existência que isso implica. [...] São os estilos de vida, sempre
implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro. Já era a ideia de modo em
Spinoza”.
Deleuze (1992, p. 135) diz que Foucault se depara com a questão: “Não há nada ‘além’ do
poder?” Diante do impasse, continua Deleuze (1992, p. 136), “Foucault percebe que
chocar-se contra o poder é o destino do homem moderno e que é o poder que nos faz
ver e falar”. Porém, Foucault necessitava transpor essa linha e, por isso, podemos dizer
que, neste momento, Foucault queria pensar na possibilidade da criação, da existência
como obra de arte, tal como os gregos o fizeram. Que é uma proposta ético-estética para
a existência.
No livro Crepúsculos dos ídolos, Nietzsche (2000, p. 37, grifo do autor) afirma: “Quando
falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos
obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos
valores”.
A perspectiva genealógica nietzschiana e sua relação com a psicologia é amplamente
discutida por Nascimento (2006).
Alguns filósofos, como Baruch Spinoza, Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, são
expoentes da filosofia da diferença porque concebem o pensamento para além da
representação clássica, para além da visão dogmática. Para que haja criação, afirma
Deleuze ao longo de seus textos, a diferença precisa ser pensada em si mesma e, assim,
cria-se uma nova imagem para o pensamento e para o pensador. O que está em jogo,
portanto, a partir da filosofia da diferença, é o seguinte questionamento: Como produzir
diferença, como criar, já que a criação pressupõe o inédito, se, tal como estabelecido
pela filosofia clássica, tudo se mostra pronto, só esperando ser revelado pelo filósofo?
Então, a partir do encontro de Deleuze com a obra dos filósofos acima citados, essa
imagem do pensamento vinculado à representação é rompida, dando passagem para a
criação.
Frase proferida pelos professores Eduardo Passos e Cristina Rauter, na disciplina
subjetividade e clínica, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal Fluminense, no dia 6/8/2008.
O conceito de transversalidade é desenvolvido por Félix Guattari no contexto da
terapêutica institucional, para o autor: “A transversalidade é uma dimensão que
pretende superar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples
horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicação máxima se efetua em
diferentes níveis e, sobretudo nos diferentes sentidos” (GUATTARI, 1987, p. 88). De
acordo com René Lourau (2004, p. 132), “É o entrecruzamento de pertencimentos e
referências (sociais, econômicas, ideológicas, políticas)” que atravessa nossas vidas.
Claudio Ulpiano, em aula disponível no site: www.claudioulpiano.org.br, diz que: “o grego
inventa uma prática muito nova, que se chama relação agonística de si consigo próprio”.
O que é isso? O grego afirma que todos os homens trariam dentro dele múltiplas forças.
Forças que tenderiam para o fora, forças que tenderiam para o religioso, forças que
tenderiam para o supersticioso, forças que tenderiam para a submissão, e forças ativas.
Então o grego vai asseverar que um homem só pode se constituir livremente se ele
realizar a si próprio como um campo de batalha, se ele realizar a si próprio como um
confronto de forças. Forças vão/irão entrar em luta dentro de si próprio – e é isso que
Foucault chama de confronto agonístico, exatamente à maneira espinosista – forças que
deverão entrar em luta, em confronto consigo próprio para produzir uma vida livre. Ou
seja, um homem é livre na hora em que as forças ativas dominarem as forças que tendem
à submissão. O grego está produzindo a partir daí o que se chama uma estética da
existência. Segundo Deleuze, não basta que a força se exerça sobre outras forças, ou
sofra o efeito de outras forças, também é preciso que ela se exerça sobre si mesma: será
digno de governar os outros aquele que adquiriu domínio de si (DELEUZE, 1992, p. 140).
Segundo Foucault (2003, p. 9): “O discurso é esse conjunto regular de fatos lingüísticos
em determinado nível, e polêmicos e estratégicos em outro.”
Ao discutir sobre devir e história, em uma entrevista, Deleuze (1992, p. 191) diz: “[...]
uma de nossas diferenças em relação a Foucault: para ele, um campo social está
atravessado por estratégias, para nós ele foge por todos os lados”.
CAPÍTULO II
OS MODOS DE RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E OS
SABERES “PSI”
Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. [...] O que é certo, na questão
da punição, é que determinadas instituições, em dada época, sentindo-se
ameaçadas em sua solidez com a perpetração de determinados atos, taxa-os
como puníveis. [...] Porque o crime significa um ataque à determinada
instituição vigente, em grande parte das vezes e se não fosse punido
representaria a derrocada dessa instituição e o estabelecimento de uma nova.
[...] A sociedade, porém, mais sabiamente, prefere falar num direito de punir,
força unilateral garantidora de uma boa defesa contra o ataque à sua
estabilidade. [...] Houve um tempo em que a medicina se contentava em
segregar o doente, sem curá-lo e sem procurar sanar as causas que produziam a
doença. Assim hoje é a criminologia e o instituto da punição. Surge na sociedade
um crime, que é apenas um dos sintomas dum mal que forçosamente deve
grassar nessa sociedade. Que fazem? Usam o paliativo da pena, abafam o
sintoma [...] e considera-se encerrado um processo. Como então imaginar que o
fundamento desse poder que a sociedade tem de punir está na sua legitimidade,
se essa legitimidade só se explicaria por sua utilidade? (Clarice Lispector, [1941],
2005, p. 48).55

Este capítulo se abre com as palavras da literata Clarice


Lispector, que, em 1941, teve a coragem de se mover na contramão
dos discursos jurídicos correntes e também daqueles que
tentavam normatizar a função da mulher na sociedade, para
afirmar suas percepções sobre os modos de governar do Estado.
Poderíamos dizer que são análises foucaultianas, se Foucault não
tivesse nos agraciado com seus escritos somente algumas décadas
depois. E, com a força intempestiva desta autora, convido vocês
para continuar esta leitura.
Para realizar sua pesquisa sobre as diferentes imagens do
direito e a relação deste saber com os mecanismos de
norma(lização), Fonseca (2002) inspira-se na força da
descontinuidade presente nos escritos de Foucault e afirma que
não há uma unidade, precisão ou constância do objeto “direito”
em seus textos, nem mesmo do que se poderia chamar de “obra”
deste autor, já que ele não se propôs a construir um sistema de
pensamento, mas realizar um diagnóstico de como surgem os
diversos sistemas de pensamento. Com isso, o autor parte da ideia
do próprio filósofo de que, em grande parte de seu trabalho, o que
está em jogo é “o triângulo: poder, direito, verdade” (Foucault,
1999, p. 28).
De fato, ao falar sobre suas pesquisas na década de 1970, no
curso “Em defesa da Sociedade”, Foucault diz que tentou estudar,
[...] o “como do poder”, isto é, tentar apreender seus mecanismos entre dois
pontos de referência ou dois limites: de um lado as regras de direito que
delimitam formalmente o poder, de outro lado, a outra extremidade, o outro
limite, seriam os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder
conduz e que, por sua vez, reconduzem esse poder. (FOUCAULT, 1999, p. 28)

E, em seguida, Foucault (1999) se pergunta: “Quais são as


regras de direito de que lançam mão as relações de poder para
produzir discursos de verdade?”. A pergunta do filósofo se atualiza
ao pensarmos as questões que estão sendo discutidas neste
trabalho: Como se organiza, na sociedade contemporânea, o
domínio constituído de “regras de direito”, “mecanismos de
poder” e “efeitos de verdade”?
É importante salientar que Foucault (1999) apreendeu o poder
de forma muito peculiar. Analisava-o sob o aspecto da extremidade
cada vez menos jurídica de seu exercício já que suas análises eram
feitas de baixo para cima, de fora para dentro e em sua relação
direta com seu campo de aplicação. O poder para ele era uma
força que circulava e que emergia com o(s) saber(es).
Ao procurar as “imagens” ou “figuras” do direito, nos trabalhos
de Foucault, Fonseca (2002) aponta o funcionamento que elas
assumem em diferentes contextos em que aparecem e percebe que
existe um outro conjunto de noções sempre presente nas imagens
do direito: aquele relativo à norma. Com isso, parte do
contraponto direito/norma para explorar as implicações e efeitos
produzidos na relação entre eles. Este contraponto é bem
interessante para nós, já que queremos pensar, aqui, os múltiplos
modos em que os saberes “psi” se apresentam e funcionam no
campo jurídico. E não vemos forma alguma de pensar essa
questão sem que o direito e a norma sejam considerados, também,
em suas múltiplas modulações.
O próprio Foucault (1999, p. 31) vem para nos esclarecer sobre
sua concepção de direito: “E quando digo o direito, não penso
somente na lei, mas no conjunto de aparelhos, instituições e
regulamentos, que aplicam o direito.”
Ao esclarecer o que entende por direito, Fonseca faz uma
alusão ao pensamento de Francis Ewald:56
O Direito não existe; aquilo que se chama “Direito” é uma categoria do
pensamento que não designa nenhuma essência, mas serve para qualificar
certas práticas: práticas normativas, práticas de coação, e da sanção social sem
dúvida, prática política certamente, prática de racionalidade também. Estas
podem ser muito diferentes umas das outras; o Direito está, todo ele, sem mais,
em cada uma delas, sem que se deva supor em parte alguma a permanência de
uma essência. (FONSECA, 2002, p. 34)

Como, neste estudo, o direito será pensado sempre em relação


à norma, Fonseca esclarece que:
O tema da “norma” e da “normalização” tal como aparece em Foucault não deve
ser buscado prioritariamente do lado do Direito, da lei, das regras postas por um
poder constituído e competente para tal, mas sim ao lado da medicina, da
psiquiatra, do campo compreendido pelas ciências que têm como objeto a vida.
A norma em Foucault remete antes ao funcionamento dos organismos e aos
domínios do saber e de práticas que lhes correspondem e não exatamente às
categorias formais do Direito. (FONSECA, 2002, p. 37)

Definido o critério do contraponto, Fonseca identifica as


diversas imagens do direito em Foucault segundo três
perspectivas que são definidas em razão de dois planos (um
teórico e o outro prático). Mas, apesar de o autor criar essa
diferença entre planos e perspectivas e esses estarem ligados a
textos específicos dos três momentos metodológicos de Foucault,
a saber: arqueologia, genealogia e ética, o autor não pretende fazer
uma demarcação rigorosa entre eles, “são apenas momentos em
que a recorrência a certos temas e a determinadas formas de
abordagem permitem a identificação de algumas regularidades,
nunca se constituindo em momentos estanques e independentes
entre si” (FONSECA, 2002, p. 94). Por esse motivo, ao realizar a
identificação do que ele chama de “imagens do Direito”, sua
análise será relativamente independente de sua localização em um
ou em outro momento metodológico de Foucault, o que não
significa um abandono das noções de “arqueologia”, “genealogia” e
“ética” como referenciais importantes.
Pode-se afirmar que as ideias acerca dessas “imagens do
direito” apresentadas ao longo de todo o livro de Fonseca me
ajudaram a compreender melhor a análise foucaultiana sobre o
poder e as formas de gestão das “anormalidades” e “ilegalidades”,
quais as diferenças e as implicações entre o campo jurídico (o
direito, as leis), as práticas “psi” e os processos de norma(lização).
Ou, dito de outra forma, como “norma e direito se colonizam e
interpenetram mutuamente” (FONSECA, 2002, p. 242).
Para Foucault (2005a, p. 11) “entre as práticas sociais em que a
análise histórica permite localizar a emergência de novas formas
de subjetividade, as práticas jurídicas, ou, mais precisamente, as
práticas judiciárias estão entre as mais importantes.” Por isso, a
forma como o direito se apresenta ou os mecanismos de
funcionamento do Judiciário nos são tão caros nesta pesquisa.
Além do mais, alegra-me constatar que, ao final de seu livro,
Fonseca enxerga em Foucault a imagem de um “novo direito”, ou
melhor, a ideia de práticas do direito que seriam objeto de uma
inquietação contínua e que estivessem libertas do “princípio da
soberania”, dos “mecanismos normalizadores” e dos “dispositivos
de segurança”. Mais uma vez, os interesses dos dois autores
convergem para a ideia desenvolvida ao longo desta pesquisa, que
foi a de pensar novas práticas “psi” que estejam libertas das forças
acima mencionadas, porém, acrescento à nossa lista abolicionista:
dos dispositivos jurídico-penais.
2.1- A Norma(lização) e suas modulações nos textos de
Foucault
Ao dizer que não há “norma em si” nos textos de Foucault,
Fonseca afirma a tese da imanência nos escritos desse autor. Por
essa ideia, a norma não seria exterior ao seu campo de aplicação,
pois ela o produz e, justamente por isso, ela produz a si mesma.
Esse processo é o que garante, segundo ele, a diversidade de
formas com que a norma aparece nos textos do filósofo em
questão:
No ambiente dos textos da arqueologia, onde o que está em jogo é o problema
de percorrer os solos epistêmicos que tornaram possíveis saberes como a
psiquiatria, a medicina e as ciências humanas, a norma se especifica na forma da
bipolaridade do normal e do patológico, como princípio de separação de objetos
e sujeitos no interior desses saberes. Por sua vez, no ambiente dos trabalhos da
genealogia, marcados por uma analítica do poder, a norma se especificará
segundo outras formas, muito mais próximas de mecanismos e tecnologias
positivas de poder. (FONSECA, 2002, p. 59)
Nas observações que Fonseca faz sobre os livros: As palavras e
as coisas e O nascimento da clínica,57 o autor afirma que o modelo

das ciências humanas é a ciência médica, esta é a ciência do


indivíduo e, ao mesmo tempo, a ciência da intervenção sobre o
indivíduo. Neste escrito, as ciências do homem apareceriam
marcadas pela bipolaridade médica do normal e do patológico,
centrais para a medicina moderna, na qual não basta conhecer
técnicas de cura, deve-se ter um conhecimento do homem
saudável, que é a um só tempo uma experiência do homem não
doente e uma definição do homem modelo. “A medicina moderna
se refere antes à normalidade do que à saúde, ou seja, suas
intervenções têm o ponto de ancoragem numa apreensão de
parâmetros de regularidades definidas como norma” (FONSECA,
2002, p. 53-54).
Para que se entendam melhor as modulações da noção de
“norma” nos escritos de Foucault da época arqueológica para a
genealógica, é preciso compreender algo importante:
[...] a norma se afasta de uma forma que oferece um princípio de distribuição de
objetos e sujeitos nos campos do normal e do anormal e assume a forma de uma
ação, remetendo à ideia de mecanismos e estratégias de constituição de objetos
e sujeitos. A norma se desubstantiva e se torna verbo. Mais pertinente do que se
falar em “norma”, será falar em “normalização” [...]. Trata-se agora de pensar a
norma como mecanismos de intervenção do poder, ou mais precisamente,
pensar nos mecanismos de normalização. (FONSECA, 2002, p. 60)

Quando se refere aos textos da analítica do poder,58 Fonseca


(2002) ressalta que as formas da norma não se afastam da ideia de
bipolaridade do normal e patológico dos textos arqueológicos,59
mas dá a ela novas implicações. Foucault perceberá as irrupções
das práticas discursivas enquanto acontecimentos e as
acompanhará na medida em que estão imersas em processos de
poder. Portanto, epistemologicamente, para o filósofo, não se trata
de uma ruptura da noção de norma, mas de dar uma nova ênfase,
que seria a preocupação central com os dispositivos de poder,
com os efeitos arquitetônicos (o panóptico) e com os mecanismos
de poder inerentes ao ato terapêutico (exame).
Os textos da analítica do poder serão cuidadosamente
analisados por este autor por serem os principais para a discussão
das imagens do direito no pensamento de Foucault. E,
consequentemente, são os textos analisados mais detidamente
neste livro, sem nunca me distanciar totalmente da imagem da
norma presente nos textos arqueológicos.
Segundo Fonseca (2002, p. 65), nos cursos de 1974 – Le pouvoir
psychiatrique (O Poder Psiquiátrico) e de 1975 – Les Anormaux60 (Os

Anormais) é que as ideias de “norma” e “normalização” serão

aprofundadas e possibilitarão desdobramentos em torno das


noções de “disciplina” e “mecanismos de segurança”, pois ao
pesquisar a noção de “anormalidade” nas ciências médicas, entre
os séculos XVIII e XIX, Foucault faz uma espécie de genealogia do
anormal e da norma, com influência do pensamento de Nietzsche
no que diz respeito à genealogia e de Georges Canguilhem61 no que
tange à noção de norma. A genealogia do anormal que Foucault
realiza, nestes dois cursos, permitiu-lhe
[...] descrever, em torno das noções de norma e normalização, um conjunto de
estados e situações que se reportam fundamentalmente ao exercício de [...] um
poder produtor de condutas, gestos, discursos, subjetividades. A norma aparece
como o elemento a partir do qual tal exercício de poder torna-se possível. Ela é
seu veículo, sua referência mais importante. E a normalização é o próprio
movimento descrito por tal exercício. (FONSECA, 2002, p. 89)
Os anormais

No curso Os anormais, Foucault (2001)62 dirá que o final do


século XVII e o início do século XVIII corresponderiam ao processo
histórico chamado de “invenção de tecnologias positivas de
poder”. Suas análises são realizadas a partir da quarentena das
cidades devidamente esquadrinhadas acometidas pela peste na
Europa, nas quais, em vez do antigo modelo de exclusão da lepra,
organizava-se uma inclusão cuidadosamente controlada dos
indivíduos acometidos pela peste. “O que se vê organizar, nesse
sistema de inclusão da peste, é um mecanismo de poder contínuo,
produtivo, capaz de governar a conduta de um grupo de homens,
ao invés de retirar alguns deles do convívio [...]” (FONSECA, 2002,
p. 88). Todo esse processo teria uma implicação necessária com
algo que seria chamado posteriormente de “norma”.
Para entender o surgimento da categoria dos anormais,
Foucault propõe analisar três figuras históricas: o “monstro
humano”, o “onanista” e os “incorrigíveis”. No que diz respeito à
figura do “monstro”, esta era explicada por meio da tradição
jurídico-científica desde a Idade Média até o final do século XVIII
pela “transgressão” (da ordem natural, civil e religiosa), porém, no
final deste século, essa noção será substituída pela de
“irregularidade” (associada às ideias de desvio, malformações e
estranhezas – que podem significar o princípio de condutas
criminosas). O primeiro perfil do monstro moral que aparece,
naquele momento, na literatura popular e médico-jurídica, é o do
criminoso político, ou seja, todos aqueles que rompem com o
pacto social. Entre eles, o rei tirânico (monstro incestuoso) e o
povo revoltado (monstro antropófago) são figuras que comungam
por meio da traição e violência que realizam contra o pacto social.
Mas a importância dada a essas duas figuras foi sendo reduzida
até a monstruosidade se tornar figura menor e cotidiana do
“anormal”.
Conforme Fonseca (2002), essa passagem do “monstro” ao
“anormal” é demonstrada por Foucault por meio de casos de
psiquiatria da época, entre eles, três grandes “monstros”
fundadores da psiquiatria criminal, que são: o da mulher de
Sélestat, o Papovoine e o de Henriette. Não nos interessa aqui nos

determos na análise dos casos, mas na diferença que Foucault


percebe na análise dos dois primeiros casos para o terceiro, o
único em que houve decapitação. No primeiro, encontrou-se uma
espécie de “razão” para o ato criminoso, no segundo, a loucura foi
a melhor saída, mas o terceiro será caracterizado por uma
“ausência de interesse”.
Este último caso será de grande interesse para o aparelho
judiciário e a psiquiatria da época. Ao analisar os documentos
sobre ele, Foucault extrai expressões que justificam a origem da
“ausência de interesse”, como, por exemplo: “afecção irresistível”,
“desejo quase irresistível”, “energia de uma paixão violenta”,
“presença de um agente extraordinário, estranho às leis regulares
da organização humana”, ou seja, tudo aquilo que passará a
compor a noção de “instinto”. Esta noção será central na
passagem da figura do monstro para a do anormal.
No curso “Os anormais”, Foucault (2001) faz suas análises a
partir de laudos psiquiátricos penais e afirma que, no início do
século XIX, esses discursos estavam ligados a um mecanismo de
poder que faz do Poder Judiciário e do saber psiquiátrico não
instâncias do controle do crime e de tratamento das doenças, mas
de controle do anormal. Os laudos médicos-legais não são
perfeitamente homogêneos em relação às regras do direito, muito
menos no que se refere às verdades científicas da medicina, visto
que seu objeto não é exatamente a conduta criminosa ou alienada,
mas as condutas irregulares, “anormais”, que serão apontadas
como a causa, o ponto de origem ou o lugar de formação do crime.
De acordo com o filósofo, tais documentos possuíam três
propriedades discursivas que lhes conferiam um caráter
particular: primeiro, podem determinar uma decisão judicial que
diz respeito à liberdade ou à detenção e, no limite, à vida ou à
morte de alguém. Segundo, são “discursos de verdade” que
carregam o estatuto científico. Terceiro, são “discursos que fazem
rir” (FOUCAULT, 2001, p. 8). Devo dizer que é lamentável constatar
a atualização do que Foucault identificou em laudos de dois
séculos atrás no funcionamento de algumas instituições como, por
exemplo, o hospital de custódia por onde passei.
Foucault irá estudar o movimento de generalização do poder e
do saber psiquiátrico a partir da problematização da noção de
instinto, assim como as noções de norma que derivam desse
movimento e apontará três processos: “O cruzamento entre a
psiquiatria e a regulação administrativa”, a “demanda familiar à
psiquiatria” e “uma demanda política em relação a esse saber”
(Fonseca, 2002, p. 83).63
Em relação ao primeiro e ao segundo processos, Foucault irá
dizer que, entre os anos de 1840 e 1850, a psiquiatria será inscrita
no interior de uma regulação administrativa nova, assim como
haverá certa reorganização da demanda familiar em relação à
psiquiatria, em ambos os casos, a lei de internação francesa de
1838 contribui significativamente. Todavia, curiosamente, seu
objetivo não era determinar se um indivíduo se encontraria em
certo estado de demência que lhe tornaria incapaz como sujeito
jurídico, mas se seria capaz de perturbar a ordem ou ameaçar a
segurança pública e/ou familiar. No primeiro caso, era a
administração que, na maioria das vezes, encaminhava os
pacientes considerados por ela perigosos para a psiquiatria. Já no
segundo, o pedido era de que o médico redigisse um certificado
reconhecendo o perigo que aquela pessoa representaria para sua
família.
Já nos anos de 1850 a 1875, houve uma demanda política em
relação à psiquiatria que completou os processos que
possibilitaram a ampliação do poder e do saber psiquiátrico no
século XIX. “Ela consiste em se pedir à psiquiatria um
discriminante político entre os indivíduos, os grupos, as ideologias
e os processos históricos”. Após a série de revoluções ocorridas
em diversos países europeus, entre os anos de 1848 e 1870, um
discriminante psiquiátrico servirá “de instrumento efetivo de
sanção e de exclusão” de indivíduos e grupos, de processos
históricos. “A psiquiatria, a biologia, a anatomia ofereciam, deste
modo, um discriminante acerca dos movimentos políticos a que se
podia validar e daqueles a que se devia desqualificar” (Fonseca,
2002, p. 84).
É importante ressaltar que, nesse período, a psiquiatria passou
por uma abertura de novos campos sintomatológicos, pois “será
sintoma da doença qualquer distância que uma conduta
representar em relação às regras de ordem, definidas sob o fundo
da regularidade administrativa, das obrigações familiares, da
normatividade política social” (FONSECA, 2002, p. 85). É possível,
ainda, apontar uma abertura epistemológica também no campo da
medicina orgânica, uma vez que os problemas de conduta citados
acima eram pesquisados em sua relação com os distúrbios
orgânicos e funcionais.
Portanto, nesse processo, a psiquiatria irá trabalhar com duas
noções de norma simultaneamente:
a “norma”, entendida como regra de conduta, como princípio de conformidade,
a que se oporão a irregularidade, a desordem, a excentricidade e a “norma”
enquanto regularidade funcional, enquanto princípio de funcionamento
adaptado e ajustado, a que se oporão o patológico, o mórbido, o disfuncional.
(FONSECA, 2002, p. 85)

A partir das análises acima, Fonseca percebe que a noção de


norma não remete à ideia de uma regra que restringe, reprime ou
exclui, e sim “à ideia de estados ou situações a partir dos quais, e
por meio dos quais, uma tecnologia positiva de poder é possível,
de tal forma que normalizar significaria agenciar a produção de
condutas esperadas” (FONSECA, 2002, p. 87), ou seja, a disciplina
produz, por isso é uma tecnologia positiva.
O poder psiquiátrico

No início do século XIX, o asilo será organizado como um


campo de batalha, segundo Foucault, pois existiria na loucura uma
força não dominada, e sua cura consistiria na submissão dessa
força a outra mais poderosa. Por isso, no curso O poder
psiquiátrico,64 o autor estudou “o dispositivo de poder, inerente ao

espaço asilar e ao ato terapêutico, como instância produtora de


um certo número de práticas discursivas [...], que “dariam lugar a
um certo jogo da verdade” (Fonseca, 2002, p. 66).
Conforme Foucault, o poder psiquiátrico se caracteriza pelo
fato de se constituir como uma espécie de intensificador da
realidade em relação à loucura, na medida em que, ao tentar fazer
a realidade entrar no delírio do louco, o psiquiatra obteria a cura.
Por isso, antes de ser curativo, seria uma maneira de administrar
um regime, uma tentativa de subjugar, uma direção. Ou seja, a cura
era entendida como o resultado de um processo de
assujeitamento diário a uma certa direção que só poderia se dar
no espaço asilar – disciplinar, no qual o tempo, os corpos e as
atividades são minuciosamente controlados por mecanismos de
vigilância e um sistema de sanções constantes e essa “ordem”
presente no espaço asilar, que funcionava como um regulador
permanente das atividades e dos corpos, seria condição para o
cumprimento de duas grandes funções desse tipo de lugar: a
constituição de um saber médico e a obtenção de um efeito de
cura permanente dos que lá habitavam. Porém, deve-se ressaltar,
como o faz também Basaglia,65 que essa ordem só funcionava
porque era apoiada em uma dissimetria entre o poder do médico e
o poder do louco.
Esse “poder psiquiátrico” sofreu uma espécie de “migração”
para todos os lugares em que era necessário fazer a realidade
funcionar como poder. Se a partir do século XIX, a psiquiatria
aparecerá “nas prisões, nas escolas, nas usinas, no exército é
porque ela intervém no momento em que essas instituições se
encontram na obrigação de fazer funcionar a realidade como
poder, ou ainda, de fazer valer como realidade, o poder que se
exercia em seu interior” (Fonseca, 2002, p. 69).
Essa generalização do poder psiquiátrico em uma série de
instituições teria sido possível, sobretudo, devido à produção da
categoria da anomalia por meio da medicina pela psiquiatrização
da infância e, posteriormente, do criminoso.
No que diz respeito à infância, esse processo ocorreu por meio
da figura da criança imbecil ou idiota, que, no início do século XIX,
passou a ser diferenciada da criança louca. Aqui surge outro
conceito que será fundamental nessa migração supracitada: o de
“desenvolvimento”, presente de alguma forma até hoje nos
saberes “psi”, tendo sido lançado por Esquirol e discutido por
Foucault nas aulas de 1974. A noção de desenvolvimento é crucial
na diferenciação entre idiotice e loucura. O desenvolvimento
permite que se estabeleçam duas normatividades. A primeira será
a do fim ideal do processo de desenvolvimento: o adulto. A
segunda corresponde à média deste processo nas crianças.
De acordo com Fonseca,
O desenvolvimento seria um processo que atuaria sobre a vida psicológica e
orgânica de todos os indivíduos e que, segundo um critério temporal poderia
servir de norma em relação à qual todos poderiam se situar [...]. Assim, pode-se
especificar em relação à infância, um certo número de “estados”, que não seriam
propriamente doenças, mas desvios em relação a uma norma. (FONSECA, 2002,
p. 70)

No início do século XIX, a anomalia era uma categoria aplicada


somente às crianças. Os adultos eram considerados loucos, e as
crianças, anormais. Mas, a despeito da separação teórica entre
idiotice e loucura, motivos de ordem econômica e social tornaram
necessário enquadrar também a criança idiota. Na França havia a
preocupação com o tempo que essa criança ocupava os pais,
tirando-os do trabalho; isso fez com que a lei de internamento de
1838 passasse a ser aplicada “às crianças pobres e idiotas [...] sob
a categoria geral de alienação mental será possível internar,
assistir, a partir dos mecanismos institucionais, o doente mental e
a criança idiota”. Nesse momento histórico, vemos que a
psiquiatria se define como “a ciência e o poder sobre o anormal [e
o pobre]”, tudo que é anormal em relação ao regime familiar,
escolar, de trabalho, de lazer etc. caberá a ela dar conta, como nos
mostra Foucault (Fonseca, 2002, p. 71).
As técnicas de normalização e os poderes a elas ligados, para
Foucault (2001, p. 37), não são efeitos apenas do encontro e da
composição entre o saber médico e o Poder judiciário, pois, na
verdade, em toda sociedade moderna um certo tipo de poder, “que
em si mesmo, tem sua autonomia e suas regras”, conseguiu
colonizar e repelir tanto o saber médico como o poder judiciário,
apoiando-se no jogo entre eles, “o poder de normalização”.
Mas esse modelo assistencial, criado pela lei francesa de
internamento, gerava custos ao governo ou às comunidades locais
e justificá-lo se tornou necessário. A explicação seria encontrada
na proporção que se demonstrasse que aqueles indivíduos não
apenas apresentavam problemas em seu desenvolvimento em
relação a uma certa média do desenvolvimento da maioria das
crianças, mas era, notadamente, alguém que poderia apresentar
perigo para a sociedade, já que poderia cometer um homicídio, um
incêndio, um dano a alguém. “Foucault dirá que a noção de
‘perigo’ será essencial para que a anomalia passe de um fato de
assistência para um fenômeno de proteção social”66 (FONSECA,
2002, p. 72).
Essa “passagem” continuará a ser tratada ainda neste capítulo,
no item “Criminologias, políticas criminais, processos de
criminalização”, contudo se faz necessário explicitar primeiro o
que Fonseca denomina de primeira e segunda perspectivas do
Direito.
2.2- Primeira perspectiva ou “direito como legalidade”
Em relação às perspectivas, na primeira delas, Fonseca mostra
o uso que Foucault faz do direito enquanto parâmetro para
mostrar as diferenças entre dois modelos de poder: o modelo (do
direito) “jurídico-discursivo” e o modelo (estratégico) “disciplinar-
normalizador”. Nessa imagem o direito figura como “lei”, como o
“conjunto das estruturas da legalidade”67 e é considerada pelo
autor uma oposição entre normalização e direito, mas que se
verifica apenas no plano teórico:
O que estaria em jogo nos textos aqui referidos seria a pesquisa em torno de
uma concepção clássica de poder e a necessidade de sua superação enquanto
modelo explicativo das relações entre os campos de saber, os tipos de
normatividade e as formas de subjetividade que caracterizam o presente. Neste
chamado plano teórico define-se uma clara oposição entre as noções de norma e
normalização [...] e uma primeira imagem do Direito que daí decorre. Trata-se da

imagem do Direito como “legalidade” (FONSECA, 2002, p. 29).

Conforme Fonseca (2002, p. 96-98), essa distinção entre os dois


modelos (“jurídico-discursivo” e “disciplinar-normalizador”),
realizada por Foucault, aparece de forma privilegiada no ano de
1976, nos cursos Em defesa da sociedade, A ordem do discurso e A
vontade de saber (1º vol. História da sexualidade), e marcam o

surgimento de novas noções na “analítica do poder”, são elas:


biopoder, seguranças e artes de governar.
Em defesa da sociedade

No curso Em defesa da sociedade,68 na aula de 14 de janeiro de


1976, Foucault (1999), ao falar nas relações entre o direito e o
poder, nos lembra que há algo muito importante a ser
considerado, o fato de que, nas sociedades ocidentais, desde a
Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez em torno
do poder régio, a seu pedido, em seu proveito, para instrumentá-lo
e justificá-lo. Portanto, foi por meio dessa encomenda régia que se
elaborou o edifício jurídico de nossas sociedades.
Nesta mesma aula, Foucault afirmará que o problema central da
teoria do direito, desde a Idade Média, foi a soberania, ou seja, que
o discurso e a técnica do direito tinham a função de dissolver, no
interior do poder, o fato da dominação, para fazer aparecer: os
diretos legítimos da soberania e a obrigação legal da obediência. E,
que era justamente dessa “teoria da soberania”, reativada do
direito romano, que ele queria se desligar para analisar o poder. E,
vai ainda mais longe, ao dizer que essa teoria é a grande
“esparrela” em que corremos o risco de cair, quando queremos
analisar o poder, e em que, pelo visto, muitos já cairiam, já que, de
acordo com o autor, ela foi o grande instrumento de luta política e
teórica em torno dos sistemas de poder dos séculos XVI ao XVIII.
Visto que nem Rousseau e seus contemporâneos da Revolução
Francesa escaparam! É claro, para eles ela tinha outro papel, que
era o de construir, contra as monarquias, o modelo das
democracias parlamentares. A teoria é insistente e chega também
ao século XIX, como ideologia do direito e na organização dos
códigos jurídicos que a Europa construiu a partir dos códigos
napoleônicos.
De acordo com Foucault (1999, p. 42), enquanto existiram as
sociedades feudais, os problemas de que tratava a teoria da
soberania garantiam a mecânica geral do poder do modo como ele
se exercia naquelas sociedades. A relação de soberania
(soberano/súdito) cobria, em suma, a totalidade do corpo social.
Porém, nos séculos XVII e XVIII, ocorreu um fenômeno importante,
a invenção de uma nova mecânica de poder oposta à anterior e
que incide primeiro sobre os corpos e seus afazeres, extraindo
deles tempo e trabalho. Era um tipo de poder que se exercia
continuamente por vigilância e no qual o princípio era o de que
“se deve ao mesmo tempo fazer com que cresçam as forças
sujeitadas e a força e a eficácia daquilo que as sujeita”, trata-se do
“poder disciplinar”.
Contudo, a despeito da heterogeneidade entre esses dois tipos
de poder, Foucault se pergunta por que a teoria da soberania
persistiu como princípio organizador dos grandes códigos
jurídicos e, ele próprio responde, apontando duas razões:
De um lado, a teoria da soberania foi, no século XVIII e ainda no século XIX, um
instrumento crítico permanente contra a monarquia e contra todos os
obstáculos que podiam opor-se ao desenvolvimento da sociedade disciplinar.
Mas, de outro, essa teoria e a organização de um código jurídico, centrado nela,
permitiram sobrepor aos mecanismos da disciplina um sistema de direito que
mascarava os procedimentos dela, que apagava o que podia haver de
dominação e de técnicas de dominação na disciplina e, enfim, que garantia a
cada qual que ele exercia, através da soberania do Estado, seus próprios direitos
soberanos. Em outras palavras, os sistemas jurídicos, sejam as teorias, sejam os
códigos, permitiram uma democratização da soberania, a implantação de um
direito público articulado a partir da soberania coletiva, no mesmo momento, na
medida em que e porque essa democratização da soberania se encontrava
lastrada em profundidade pelos mecanismos de coerção disciplinar. (FOUCAULT,
1999, p. 44)

Por tudo isso que foi dito, Foucault (1999, p. 44-45) vai afirmar
que, nas sociedades modernas – desde o século XIX até o
momento em que ele pronunciou essas ideias em 1976 –, temos
“de um lado uma legislação, um discurso, uma organização do
direito público articulados em torno do princípio da soberania do
corpo social e da delegação, por cada qual, de sua soberania ao
Estado” e, simultaneamente, “uma trama cerrada e de coerções
disciplinares que garante, de fato, a coesão desse mesmo corpo
social. [...] Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina:
é entre esses dois limites [...] que se pratica o exercício do poder”.
Ao demonstrar as razões da aceitação de tal modelo “jurídico-
discursivo” do poder, Fonseca (2002, p. 98) aponta dois motivos: o
tático e o histórico. No primeiro, “a identificação do poder a um
puro limite à liberdade mascararia aspectos essenciais de seu
funcionamento e de sua abrangência” e o segundo remeteria ao
desenvolvimento das monarquias e dos Estados no final da Idade
Média, que se estruturaram na medida em que se apresentavam
como instâncias regidas por um princípio de direito, que lhes dava
o “direito” de dominação sobre a terra e todas as formações nela
implicadas. E, a despeito do pensamento político (século XVII,
XVIII e XIX) ter considerado isso como o “exercício de um não
direito”, percebe-se que o desenvolvimento dessas monarquias
ocidentais possibilitou a instauração dessa dimensão do “jurídico-
político”, ou seja, assegurou a representação “jurídico-discursiva”
(imagens do “poder-lei”, “poder-soberania”) do poder, cujo ponto
central é a enunciação da lei e à qual ainda permanecemos atados,
segundo Foucault, e que nos impede de perceber “o
funcionamento concreto e histórico de novos mecanismos de
poder, em si mesmos irredutíveis à representação do direito”.
Esses mecanismos são aqueles formados ao longo dos séculos
XVII e XVIII, que funcionavam pela técnica, pela normalização e
pelo controle muito mais do que pelo direito, pela lei e pelo
castigo, ultrapassando a esfera estatal.
A proposta de Foucault, naquele momento, era inverter a lógica
pela qual operava a teoria da soberania ao afirmá-la,
[...] como um fato, tanto em seu segredo como em sua brutalidade, a dominação,
e depois mostrar [...] não só como o direito é [...] o instrumento dessa
dominação [...] mas também como, até onde e sob que forma, o direito veicula e
aplica relações que não são relações de soberania, mas relações de dominação.
[...] múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da
sociedade: não, portanto, o rei em sua posição central, mas os súditos em suas
relações recíprocas; não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas
sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social. (FOUCAULT,
1999, p. 31)

Portanto, segundo o próprio Foucault (1999, p. 32), sua


intenção foi “curto-circuitar” a linha geral da análise jurídica, por
acreditar que o sistema do direito e o campo judiciário são o
veículo permanente de relações de dominação e de técnicas
polimorfas de sujeição. Por isso sua inversão focava, em vez do
problema da soberania e da obediência, a questão da dominação e
da sujeição. “É preciso estudar o poder [...] fora do campo
delimitado pela soberania jurídica e pela instituição do Estado;
trata-se de analisá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação”
(FOUCAULT, 1999, p. 40).
Ainda no livro Em defesa da sociedade, na aula de 7 de janeiro
de 1976, Foucault (1999) se pergunta também como fazer uma
análise da questão do poder, sem ser pela referência fundamental
à economia, como fizeram as concepções jurídicas e liberal do
poder ou os marxistas, afinal o poder não se dá, não se troca, não
se retoma, “mas ele só se exerce e só existe em ato”. Contudo, esse
autor diz que, ao tentar se libertar desse esquema “economicista”,
cai-se, inevitavelmente, no esquema citado “guerra-repressão” em
uma de suas duas versões. Para melhor entender este processo, é
importante lembrar que, nessa mesma aula, Foucault (1999) faz
suas análises a partir da oposição entre dois sistemas gerais de
análise do poder, aquele presente desde o pensamento filosófico-
político do século XVIII, em que o poder aparece “como direito
originário, constitutivo da soberania e objeto do contrato, no qual
a oposição pertinente é a do legítimo e do ilegítimo (esquema
contrato-opressão ou esquema jurídico)” e aquele que busca
“analisar o poder a partir da oposição entre luta e submissão
(esquema guerra-repressão)”. Todavia, deve-se ressaltar que,
neste último, pode-se privilegiar a noção dos mecanismos de
repressão, na qual o poder é tratado como negativo (“hipótese de
Reich”) ou as noções de luta e de guerra, ou seja, aquela do
enfrentamento belicoso das forças (“hipótese de Nietzsche”), nas
quais o poder é entendido como relações de forças em
enfrentamento constante. O autor ainda afirma que, nos anos
anteriores a este curso, utilizou o esquema guerra-repressão, mas,
à medida que o aplicava, passou a “desconfiar” dessa noção de
repressão e a reconsiderou, afirmando que ela não era suficiente
para demarcar os mecanismos e os efeitos de poder. Apesar da
promessa de desenvolver essa ideia no mesmo curso, o filósofo só
a retoma no livro A vontade de saber.
Conforme Fonseca, em A vontade de saber, Foucault dirá que só
é possível fazer uma “analítica do poder” em relação à história da
sexualidade, se nos libertarmos da representação “jurídico-
discursiva” do poder e, mostrará ainda que as duas principais
teorias que discutem a sexualidade: a repressiva (“repressão dos
instintos”) e a teoria da lei enquanto constitutiva do desejo (“lei
dos desejos”) diferenciam-se pela maneira que cada uma concebe
a natureza e a dinâmica das pulsões, todavia igualam-se na forma
de conceber o poder e tomam sua ação como essencialmente
negativa, ou seja, dizem que: “o poder exclui, sujeita, recusa,
interdita, e o faz pronunciando a lei, a regra” (FONSECA, 2002, p.
98).
Essa imagem do direito ligada à teoria da soberania é
importante para esta pesquisa, especialmente para se
compreender a discussão que será trazida, ao final deste capítulo,
no item “A psicanálise e sua relação com o campo jurídico do
século XXI”, a respeito de determinado modo de operar da
psicanálise, no campo jurídico contemporâneo, que parece
também se manter atado à teoria da soberania.
A história da loucura

Ao discutir a lei como veículo de interdição, Fonseca (2002, p.


104) dirá que, no livro A história da loucura, a imagem do direito
como “legalidade” aparece tanto nas práticas do internamento
clássico (hospitais gerais – século XVIII) quanto nas práticas do
internamento moderno (asilo psiquiátrico – século XIX).
Em suas análises sobre a época clássica, Foucault faz referência
ao direito, remetendo-o às estruturas de legalidade, pois essas
tinham o papel de determinar as medidas de internação ou de
liberação, ou seja, definiam os “deslocamentos da loucura em
relação aos locais de internamento.” Existiam dois planos de
sensibilidade justapostos para se tratar a questão da loucura
nessa época: um “médico-jurídico” e um “jurídico-social”, este
último, quase policial, uma vez que loucura e crime estavam bem
próximos (Fonseca, 2002, p. 111).
Apesar de a consciência “médico-jurídica” ser mais restrita no
período clássico, ela será essencial para entendermos, na
modernidade, a formação da concepção da loucura como doença
mental. O direito teve importante papel em todo esse processo,
pois, ao analisar a loucura para delimitar precisamente a
personalidade jurídica do alienado, forneceu certos critérios “para
uma ciência médica das doenças mentais”, conforme podemos
confirmar nas pesquisas de Foucault, nas quais foram
encontrados, em textos de jurisprudência do século XVII,
elementos que apareceriam posteriormente na psicopatologia.
Com a busca por delimitar as capacidades do sujeito direito é que esta
sensibilidade médico-jurídica da loucura preparará o surgimento de uma
psicologia ou uma ciência médica das doenças mentais, que por sua vez,
também se vêem implicadas com o problema da conduta do homem social,
relacionando-se assim, igualmente coma a outra sensibilidade da loucura
(sensibilidade de caráter social), que marcou o internamento nos Hospitais
Gerais. (FONSECA, 2002, p. 112)

Todavia, as disposições legais (como os decretos) não são


suficientes para explicar a transformação da loucura em doença
mental. Será no âmbito dos eventos daquele período e das
estruturas que os suportam, um pouco abaixo das medidas
jurídicas, na parte inferior das instituições, onde se confrontam e
se dividem o louco e o não louco, que se identifica o outro nível
em que o direito se faz presente. E essa presença é coextensiva às
alterações da própria noção de loucura que acompanham as
transformações na forma de internamento, além de estar
relacionada à modernidade e sua ciência positivista (século XIX)
que concebeu como inerente à doença mental a coincidência entre
a alienação do “sujeito de direito” (o irresponsável/incapaz) e a
“loucura do homem social” (o estranho). Três dessas estruturas
foram determinantes:
Numa delas, vieram a se confundir espaço do internamento e um espaço médico
que havia se formado em outro domínio; uma outra estabelece entre a loucura e
aquele que a reconhece e a julga, um relacionamento de ordem objetiva; e numa
terceira, a loucura se vê confrontada com o crime e, de alguma forma, habita
nele. (FONSECA, 2002, p. 114)

No final do século XVIII, ocorre uma importante mudança na


noção de alienação, uma vez que esta passará a ser referida à
questão da liberdade. Seja na organização de uma forma de
liberdade restrita e controlada como nos textos de Tenon ou de
Cabanis, para os quais o problema da loucura era encarado do
ponto de vista do direito do indivíduo livre e não da razão e da
ordem. Como a liberdade passa a fazer parte da “natureza”
humana, “o internamento será apenas uma tradução, em termos
fáticos e jurídicos, de uma abolição da liberdade já ocorrida a nível
psicológico”. E a prova de que quem é louco perde a liberdade é o
próprio mecanismo do internamento (FONSECA, 2002, p. 115).
Há outro ponto discutido por Foucault e explorado por Fonseca
que também é caro, nesta pesquisa: é aquele em que crime e
loucura se encontram. Numa configuração em que se antevê o fim
dos locais de reclusão, é justamente o homem livre (soberano do
Estado burguês) que se torna o juiz primeiro da loucura,
inicialmente nos tribunais de família, e, posteriormente esse
processo se tornará público e institucional. A expressão disto são
as modificações ocorridas na natureza das penas, num plano
conceitual, e na Justiça criminal, que foram objeto da reforma.
Oscilando entre o privado e o público, o crime passará a ser
considerado segundo dois critérios: o que ajusta a falta a uma
pena (a referência são as regras de uma consciência pública) e o
outro é o que define a relação da falta com as suas origens
(implica um plano individual e secreto). Enquanto o crime
pertence ao mundo privado ele é inexistente, mas quando atinge o
público ele manifesta o desumano, o insensato, aquilo em que a
consciência de todos não consegue se reconhecer, portanto,
aquilo não tem o direito de existir. “Neste não-ser que o manifesta
é que o crime encontra seu parentesco com a loucura”. Tal
parentesco pode ser percebido por meio do mecanismo que
passará a ocorrer na Justiça quando, uma vez detectada a loucura,
o criminoso é inocentado, essa determinação da inocência não é
irrestrita, pois essa “loucura” precisa manifestar “valores” que a
sociedade burguesa defenda, como, por exemplo: “a fidelidade”.
Ou melhor, a loucura que expressa os valores da moral burguesa é
aquela que inocenta o crime (FONSECA, 2002, p. 116).
Mas, ao contrário do que podemos pensar, essas modificações
no final do século XVIII não são uma tomada de consciência acerca
da loucura ou de fato a libertação dos acorrentados, mas, na
verdade, uma captura, segundo Foucault, por uma forma de
conhecimento objetivo em uma estrutura alienante em que
processos de liberação coabitam com estruturas de proteção e
verificação, permitindo à razão manter distância em relação à
loucura. Conforme Fonseca (2002, p. 117), a loucura tornou-se
simultaneamente objeto a ser conhecido (pela medicina) e forma
objetivante, uma vez que aquele que a apreende passa a ter um
conhecimento objetivo sobre si próprio. A realização concreta
dessa estrutura se deu com a instituição asilar de Tuck e Pinel.
Em história da loucura, Foucault vai dizer ainda que o louco
libertado por Pinel, na modernidade, seria um personagem “sob
processo”, pois, “em sua estrutura e funcionamento, o asilo remete
às formas e procedimentos judiciários”.
Os procedimentos de cura no interior dos asilos assumem a forma de um
“microcosmo judiciário”. Pelo silêncio, que permite a introspecção e o
reconhecimento da própria culpa, pela confrontação de si com outro louco, que
se deixa ver a si como louco, cria-se um espaço em que a loucura é
constantemente chamada a julgar a si mesma. (Fonseca, 2002, p. 118)

Assim sendo, o que podemos verificar, nessa análise que


Fonseca (2002) faz do texto de Foucault sobre a loucura, é que a
imagem do direito como lei está ligada à interdição e aos
deslocamentos compulsórios do louco no período clássico e,
associados a essa imagem, encontram-se procedimentos de
organização do espaço do asilo psiquiátrico pautados num modelo
judiciário de culpabilização, julgamento e correção, em que cura
significará não resistência e adequação e que servirá de matriz dos
procedimentos de caráter médico em relação à loucura no
Ocidente, a partir do século XIX.
Essa imagem do “direito como lei”, que está ligada à interdição
e aos deslocamentos compulsórios do louco, ainda está presente
atualmente, conforme vimos no primeiro capítulo, no qual narro
brevemente minha passagem pelo hospital de custódia. Nesse tipo
de instituição “manicomial-prisional”, o “microcosmo judiciário” é
elevado à enésima potência. É um lugar em que crime e loucura,
direito e medicina estão tão imbricados que não sabemos mais
onde começa um e termina o outro. E, associados a essa imagem,
ainda encontramos procedimentos de organização desse tipo de
espaço pautados num modelo judiciário de culpabilização,
julgamento, só que com uma diferença: não se tem mais a
expectativa de uma “correção”, mas sim de um “controle”, porém,
a “cura” continua significando “não resistência” e “adequação” às
normas da casa.
Neste tipo de espaço tem-se a impressão de que o tempo parou,
especialmente, no que diz respeito aos procedimentos
psiquiátricos que, por sua vez, determinam os jurídicos e vice-
versa. Para a Medida de Segurança ser executada, faz-se antes um
Exame de Sanidade Mental (ESM) para confirmar se aquela pessoa
é insana. Assim como ninguém suspende uma Medida de
Segurança sem fazer antes um Exame de Verificação de Cessação
de Periculosidade (EVCP) e também não se faz um EVCP, se não
preexistir uma Medida de Segurança.
Nesse processo, que perdura há séculos, vemos o direito
“colonizar” a medicina e vice-versa, poderíamos também chamá-lo
de “retroalimentação”. Usarei esse termo também para me referir à
colonização entre a psicologia e/ou psicanálise e o campo jurídico,
sem excluir a presença, quase que “fantasmagórica”, da medicina.
Digo “fantasmagórica” porque, na atualidade, por vezes, a
medicina aparece como uma espécie de “as(sombra)ção” nos
saberes e práticas psicológicos/psicanalíticos, conforme visto
brevemente à respeito das práticas no hospital de custódia, e será
demonstrado em outros procedimentos descritos ao longo de todo
este livro.
Vigiar e punir

Ao discutir a imagem do direito como legalidade no livro Vigiar


e punir, Fonseca (2002, p. 122) comentará sobre a lei, o castigo, as

ilegalidades e os “ilegalismos”, pois, apesar de ser este o livro em


que os mecanismos de normalização disciplinar aparecem
descritos de forma mais detalhada, a imagem do direito como lei
tem também o seu lugar, visto que o modo de punição
representado pela prisão opõe-se a duas outras formas punitivas,
a saber: os suplícios e as penas proporcionais da Reforma
Humanista do Direito Penal (segunda metade do século XVIII) e
será por meio destas duas formas que a imagem do direito como
legalidade aparecerá, posto que nelas não se identifica aquilo que
será entendido como norma.
A imagem do direito nas análises foucaultianas sobre o suplício
remete apenas às estruturas de legalidade. Esse modo de punição
em seus fundamentos e efeitos tem uma função “jurídico-política”,
pois o que se vê por meio do corpo marcado ou dilacerado do
infrator, no suplício, é a reativação do poder soberano por meio da
lei.
Já nas penas proporcionais ao crime, típicas da reforma
humanista, na qual estava em jogo uma nova “economia política”
do poder de punir, vemos aparecer uma noção muito importante
no pensamento de Foucault, que é a do “ilegalismo”;69 a diferença
dessa noção e a de ilegalidade é que a primeira não trata apenas
de um ato que contraria o que está disposto na lei, mas de uma
“gestão diferencial de certas ilegalidades em relação a outras.” Em
Vigiar e punir, o “ilegalismo” inicialmente se liga à imagem do

direito como legalidade, mas também permite a Foucault se afastar


de uma concepção rígida da lei, o que nos ajudará a entender, mais
tarde, a outra imagem do direito presente em seus escritos, que é
aquela relacionada à normalização segundo Fonseca (2002, p. 130-
131).
Na leitura de Fonseca (2002, p. 132-135), a escolha do termo
“ilegalismo” advém da dificuldade de explicar a passagem da
proporcionalidade entre crimes e penas (fim do século XVIII) para
a uniformidade da prisão (início do século XIX). Ao contrário do
que se pode pensar, a Reforma não teve como finalidade
estabelecer formas de punir mais “humanas”, mas criar uma nova
política em relação à gestão das “ilegalidades”.
O que de fato ocorreu, no período em questão, foi uma inversão
do eixo em que os “ilegalismos” se organizavam. Se antes o eixo
era o dos “direitos”, depois passou a ser o dos “bens”. Por
exemplo, a sonegação e o contrabando foram “ilegalismos”
largamente operados para que se pudesse propulsionar o
crescimento econômico da burguesia e, paralelo a isto, ocorreu o
êxodo rural e o crescimento demográfico, todos esses fatores
fizeram com que a preocupação se voltasse para a proteção dos
bens, do patrimônio da burguesia.
Se “ilegalismos” como a sonegação e o contrabando foram
tolerados e até necessários, para o crescimento econômico de
diversos grupos sociais, os outros deverão ser punidos. Por isso, o
que está em jogo na Reforma Humanista é, na verdade, a gestão, a
administração diferencial e permanente dos “ilegalismos” contra o
patrimônio. E se, no primeiro momento, essa gestão ainda estava
ligada a algumas regras da Reforma (como a proporcionalidade
entre penas e crimes que passariam a compor os códigos), elas
também já assinalavam para o novo sentido que as práticas
punitivas passariam a ter mais adiante, que é o da objetivação do
crime e do criminoso por um “conhecimento científico”. É
importante esclarecer que o sentido dessa objetivação já aparecia
por meio dessas regras de proporcionalidade entre crimes e
penas, pois elas já incluíam indiretamente a ideia de uma
especificação e individualização do infrator (sua natureza,
história, modos de ser e pensar etc.) que explicariam como ele
rompeu com o pacto social. Portanto, essa linha de objetivação
que Foucault identificou já na Reforma, a da “identidade do
criminoso”, será a marca principal da forma punitiva representada
pela prisão e que terá na noção de “ilegalismos” seu vetor mais
importante, conforme Fonseca (2002, p. 137-138).
Faz-se necessário entender também que a punição está inserida
no contexto de um jogo múltiplo de interesses e forças em que
legalidade e ilegalidade não se opõem nas práticas sociais porque
o regime dos “ilegalismos” integrava a dinâmica político-
econômica das sociedades e pode ser considerado como uma
“margem de tolerância” das regras. Ao dar uma entrevista para
Droit, Foucault diz que seria uma ficção achar que as leis teriam
sido feitas para serem respeitadas. Diz ainda que os “ilegalismos”
não são acidentes ou imperfeições e sim um elemento positivo do
funcionamento social, pois circulam “entre o domínio formalizado
da lei e os domínios não formalizados que constituem as práticas
de ordem econômica e social” (FONSECA, 2002, p. 140).
Todo dispositivo legislativo dispôs espaços protegidos e aproveitáveis em que a
lei pode ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros enfim, em que as
infrações são sancionadas [...]. Ao final de contas, diria que a lei não é feita para
impedir tal ou qual comportamento, mas para diferenciar as maneiras de fazer
circular a própria lei. (FOUCAULT apud FONSECA, 2002, p. 139-140)70

Pode-se concluir que, nessa discussão acerca da primeira


imagem do direito nos escritos de Foucault, Fonseca (2002, p. 147)
quis acentuar a discussão teórica desse filósofo acerca da
diferença entre o caráter “normativo” da lei (o legal) e os
mecanismos de “normalização” (o normal). Para ele o objetivo de
Foucault foi “explorar a dimensão da normatividade da lei
enquanto esta possa estar implicada nos mecanismos de
normalização”. Diz ainda que, se há uma clara distinção entre lei e
normalização em Foucault, ela se dá apenas num plano de análise
conceitual que é complementar, em suas análises, ao plano das
práticas, no qual a forma da lei e os procedimentos de
normalização não são pensados de forma independente, mas estão
sempre se implicando e se colonizando, de diferentes formas,
conforme me propus a demonstrar neste livro.
Uma das formas dessa implicação se verifica no direito penal,
no qual a responsabilidade do indivíduo está fundada sobre a falta,
e a sanção vem para puni-la. Mas, com a ideia de “segurança”,
passa-se a levar em consideração menos a falta (crime) e mais a
“periculosidade” (criminoso), ainda que, para efeitos de pena e
liberação desta, como podemos ver claramente nos crimes em que
está em cena o problema da sanidade mental, conforme citado
anteriormente a respeito da medida de segurança. “Fonseca
enxerga nesse processo o ‘deslizamento’ recíproco entre a
normatividade da lei e os mecanismos de normalização”
(FONSECA, 2002, p. 150).
2.3 - Segunda perspectiva ou “direito normalizado-
normalizador”
[...] a formação de uma sociedade normalizadora, longe de provocar o
apagamento da lei ou o desaparecimento das instituições de Justiça, vai antes a
par com uma espantosa proliferação legislativa. Na prática, nunca o legislador
foi tão loquaz como na era do biopoder. É que a norma não se opõe à lei, mas
àquilo que fez da lei um modo de expressão de um poder ligado à ideia de
soberania: “o jurídico”. Se, como diz Foucault, “a lei não pode deixar de ser
armada”, e se a sua arma por excelência é a morte, não é porque tal seja da
essência da lei, porque a lei também pode funcionar como uma norma, formulá-
la, e ser assim uma das peças de um poder inteiramente consagrado a
“qualificar, a medir, a apreciar, a hierarquizar, mais do que a manifestar-se na sua
exuberância mortífera”. Ao jurídico que caracterizava o Direito da monarquia
opõe-se na era do biopoder, o normativo, encontrando este um meio particular
de se exprimir em constituições, em códigos, por toda uma atividade legislativa
permanente e ruidosa. (Ewald, 1993, p. 77-78)

A segunda perspectiva do direito em Foucault, para Fonseca


(2002), é aquela na qual se forma uma relação de “implicação entre
normalização e Direito” ou “Direito normalizado-normalizador”, ela
está localizada no “plano das práticas”. Nessa perspectiva, o
direito não escapa à trama das relações entre os campos de saber,
os tipos de normatividade e as formas de subjetivação que
caracterizam o presente em razão de suas implicações nos
mecanismos de normalização. Nessa imagem o direito funciona
como “vetor” desses mecanismos.
Para alcançarmos como se processa a colonização entre os
mecanismos de normalização e as práticas e saberes jurídicos, é
necessário conhecer as modulações que a noção de norma sofre
no pensamento do filósofo. Num primeiro momento, a norma é
entendida como “disciplina” e, posteriormente, como
“mecanismos de regulação e de gestão da vida e de seus
processos” (FONSECA, 2002, p. 155).
Por conseguinte, para compreendermos o que significa “a
norma entendida como disciplina”, devemos explicitar aquilo a
que Foucault chamou de sociedades disciplinares71 e “poder
disciplinar”. As disciplinas são entendidas por este autor como
uma tecnologia positiva de exercício do poder, como um conjunto
de técnicas que tratam os indivíduos como objetos e instrumentos
de seu exercício, controlando-os continuamente. Tais técnicas
funcionariam como “fábricas” de indivíduos adestrados e dóceis,
porém, não para reduzir suas forças, mas para multiplicá-las e
utilizá-las no funcionamento de um modo de produção capitalista.
[...] a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação,
nem mesmo exatamente a repressão. Põe em funcionamento cinco operações
bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos
singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço
de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em
relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto que se deve fazer
funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que
se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos
de valor as capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos. (FOUCAULT, 1987,
p. 152)

Como esse tipo de poder é caracterizado por ser descentrado,


invisível, onipresente, polimorfo, automático e anônimo, ele
atravessa todo o espaço social por meio de procedimentos
menores, se comparados aos rituais excessivos da soberania ou
aos grandes aparelhos do Estado. Mas, ainda que modestamente,
eles vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar
seus mecanismos e impor-lhes seus processos e, o aparelho
judiciário não escapará a essa invasão.
Porém, é importante destacar que, apesar de Foucault afirmar
que o direito que experimentamos, por meio de suas
manifestações concretas, é um direto implicado nos mecanismos
da normalização, ele também diz que, simultaneamente, esse
direito se efetiva, na prática, no interior de um quadro formal
descrito pelo princípio da soberania, conforme vimos no item
anterior (FONSECA, 2002, p. 248).
A verdade e as formas jurídicas e a vontade de saber

Nos cursos A vontade de saber e Em defesa da sociedade,


sempre que Foucault menciona a “normalização” está se
remetendo aos “mecanismos disciplinares”. Na primeira
perspectiva do direito foi mostrado que, no contexto dos escritos
da “analítica do poder”, a noção de poder disciplinar-normalizador
foi desenvolvida em oposição (no nível teórico) a uma concepção
de poder soberano. Porém, o surgimento do tema das disciplinas
em sua relação com o da verdade aparecerá, segundo Fonseca
(2002), por meio de considerações de caráter histórico sobre
práticas e saberes do direito, nos cursos La volonté de savoir
(1971),72 Théories et institutions pénales (1972),73 La societé punitive
(1973)74 e na conferência A verdade e as formas jurídicas (1973).75
Ou seja, podemos entender esse momento do autor como sendo o
da pesquisa das relações entre verdade e poder e da vontade de
saber.
Nesses cursos e nessa conferência, Foucault pensará, seguindo
o fluxo da genealogia nietzschiana, os discursos como
acontecimentos.76 Ou seja, em vez de buscar pela origem da
verdade de um discurso, procurar entender que os saberes e
práticas emergem do confronto de forças, das lutas, das relações
de poder. O “acontecimento”, pelo qual se constituem os
discursos, seria o resultado de conformações de poder, que
atravessam outros discursos e práticas que lhes são
contemporâneos, colocando todos em relação e gerando efeitos,
entre eles, a formação de outras práticas discursivas. É por essa
perspectiva de análise, na qual se entendem os discursos como
uma “política de formação da verdade”, que serão tratados os
discursos neste livro.
O curso, A vontade de saber, segundo Foucault (1997, p. 11),
objetivava “constituir [...] uma morfologia da vontade de saber”
analisando temas filosóficos, noções antropológicas ou
psicológicas e acontecimentos históricos. Contudo, Fonseca
afirma que o filósofo teve a preocupação de estudar a função que
pode ter um discurso de verdade no interior do discurso da lei
penal. E, em suas análises, denuncia a violência que o sistema de
produção de verdade, nas sociedades ocidentais, tentou ocultar. O
filósofo vai até a Grécia arcaica (séculos X a VII a.C.) e considera
as práticas jurídicas que afirmam que a verdade deveria aparecer
no interior de um “sistema de provas”. Posteriormente, vai à
Grécia antiga (século VI a.C.) e analisa as formas de fabricação da
verdade por meio da tragédia de Édipo Rei, de Sófocles, na qual
aparece a figura do “testemunho” (daquele que viu o que se
passou). O jurista ainda afirma que o que há de comum em ambas
é que nelas o discurso judiciário não se ordena para constatar
uma verdade que lhe seria exterior, mas a verdade é “estabelecida
segundo as regras e as formas que seriam interiores ao próprio
discurso jurídico.” (FONSECA, 2002, p. 159).
Já no curso Teorias e instituições penais (1972), a pretensão era,
segundo o próprio Foucault (1997, p. 19): “seguir a formação de
determinados tipos de saber, a partir das matrizes jurídico-
políticas que os engendraram”. Ele permanecerá com sua teoria da
inseparabilidade entre poder e saber, só que, dessa vez, vai à
Europa para estudar o “inquérito” como forma jurídica de
produção da verdade ligada à formação do Estado medieval e que
foi sofrendo modulações até constituir-se, do século XIV em
diante, em um dos instrumentos que formariam as ciências
empíricas. Por último chega à França, entre os séculos XVIII e XIX,
nas sociedades disciplinares, onde localiza novas formas de
controle social e uma nova forma de poder-saber e de produção da
verdade: o “exame” que servirá como meio de fixar ou restaurar a
norma e como matriz das “ciências do homem”, entre elas: a
psicologia, a psiquiatria e a psicanálise.
Em A sociedade punitiva (1973), Foucault (1997, p. 27-40) busca
entender como foi possível que, nas sociedades ocidentais
modernas, a prisão, apesar de não estar implicada na teoria do
direito penal, sendo, em verdade, objeto de crítica da reforma
humanista do direito, tenha penetrado no campo institucional de
forma tão profunda. Nesse curso afirmará que a transformação da
penalidade nesse período (entre os séculos XVIII e XIX) se deu
devido ao ajustamento do Judiciário a mecanismos de vigilância e
de controle. Ou seja, a integração de ambos num aparelho de
Estado centralizado, além da instauração de uma série de
instituições que serviriam de apoio, configurando um “sistema de
vigilância-reclusão”, que se espalhou por toda a sociedade. Para
ele essa transformação ocorreu devido a novas formas na prática
dos ilegalismos, necessidade de gestão das massas populacionais
e de seus corpos produtivos no que se refere à economia, ou seja,
a relação entre o poder político e os corpos.
Nas conferências reunidas sob o título de: A verdade e as
formas jurídicas (1973), o percurso seguido foi similar ao dos três

cursos supracitados. Na primeira, Foucault (2005a, p. 8) irá


mostrar: “como se pôde formar, no sec. XIX, um certo saber do
homem, da individualidade, do indivíduo normal ou anormal,
dentro ou fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das
práticas sociais, das práticas sociais do controle e da vigilância”.
Discutirá, ainda, que as práticas jurídicas estão entre as mais
importantes em uma sociedade, já que é a maneira pela qual, entre
os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o
julgamento de seus erros, a maneira como se impôs a reparação
de algumas ações e a punição de outras. Todas essas regras ou
práticas regulares, mas também modificadas, sem cessar, ao longo
da história “[...] me parecem uma das formas pelas quais nossa
sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por
conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem
ser estudados” (FOUCAULT, 2005a, p. 11).
Para desenvolver essa proposição, o filósofo passará à segunda
conferência, pela qual temos um interesse em particular, já que
nela será analisada a forma jurídica de busca da verdade chamada:
“inquérito”, que emerge na Grécia clássica, conforme já
mencionamos, e que pode ser ilustrada a partir da história de
Édipo. Essa é a história do homem que sabia demais, segundo
Foucault (2005a), e que representa um tipo de relação entre saber
e poder da qual nós nunca nos libertamos.
A emergência do inquérito traz consigo a figura do
“testemunho”, aquele que presenciou os fatos e que os atualizaria
por meio de suas declarações, possibilitando assim que o jogo da
verdade fosse montado, como um quebra-cabeça. Contudo, o
filósofo lembra que, na tragédia, essa construção da verdade é
indissociada das lutas pela manutenção do poder de Édipo
(FOUCAULT, 2005a).
Fonseca (2002) afirma que a peça de Sófocles seria
representativa de um mito ao qual ainda hoje estaríamos ligados, o
de que poder e saber estariam separados, de que o poder político
seria cego e que o verdadeiro saber só existiria quando purificado
das tramas de poder.
Na terceira conferência, Foucault tenta acompanhar os
deslocamentos das formas de produção da verdade judiciária na
Idade Média. E, nessa análise, localiza uma atualização da forma:
“inquérito”, nos tribunais da inquisição, por volta do século XII: o
inquisitio. A quarta e a quinta conferências serão dedicadas ao

“exame”.
Todavia, segundo Fonseca (2002, p. 172-175), somente no livro
Vigiar e punir será realizada uma análise rigorosa sobre o
funcionamento dos mecanismos, dispositivos e técnicas
disciplinares. Ao falar das instituições de sequestro, que ocupam
todo o tempo de quem por elas é capturado, controlando toda a
sua existência, dirá que nelas há uma instância de julgamento, na
qual todos são submetidos continuamente a apreciações,
punições e recompensas, além de outra que é a formação da
discursividade baseada num sistema de notações sobre as
individualidades. Ou seja, essa era a forma como os mecanismos
de poder-saber se manifestavam sobre o corpo (alvo do
investimento político) e seu objetivo era formar, nesses corpos e a
partir deles, um “tecido de hábitos”, ou seja, “as normas”. Não
podemos esquecer que, nesse período, o controle dos corpos e da
virtualidade dos indivíduos está intimamente ligado à ascensão do
capitalismo e à preservação da riqueza que esse regime
econômico produz.
No que tange às práticas jurídicas, a forma coextensiva à
sociedade disciplinar é a da prisão que, no século XIX, tinha por
função a fixação dos corpos em um aparelho de normalização das
condutas e de produção de um tipo de indivíduo patologizado: o
“delinquente”.
Foucault (1985, 1997) considerava a prisão ambígua, primeiro
porque ela era incompatível com o pensamento dos reformadores
humanistas do direito penal, no final do século XVIII, e, segundo,
por causa de sua incongruência entre seu “fracasso” penal e seu
“sucesso” institucional.
A despeito das diferenças entre as sanções no campo do direito
e os mecanismos disciplinares, estes últimos funcionam como um
“pequeno mecanismo penal”, com leis próprias, delitos
especificados, formas particulares de sanção, instâncias de
julgamento, “como se as disciplinas estabelecessem uma
infrapenalidade”, que não é independente da esfera do direito.
Teoricamente, até são distintos, mas, na prática, tais mecanismos
não podem ser dissociados do direito formal, das estruturas mais
gerais das formas jurídicas. E, por fim, o instrumento do “exame”,
instrumento pelo qual se consegue a articulação das estratégias
de poder com a formação dos domínios de saber. Por tudo isso,
Fonseca (2002, p. 185) defende a tese de um “direito normalizado-
normalizador” em Foucault. “Normalizado, porque investido,
penetrado pelas práticas da norma e, ao mesmo tempo,
normalizador, porque agente e vetor da normalização”.
Um exemplo muito ilustrativo desses mecanismos são os
regulamentos que regem o funcionamento das instituições
disciplinares. Já que estes são feitos a partir das regras de direito,
esse as torna aplicáveis no interior desses lugares, é como se
houvesse uma continuidade entre a “norma jurídica” e a “norma
disciplinar” (FONSECA, 2002). De fato, verifica-se isto no terceiro
capítulo, no qual será feito um comentário sobre o Regulamento
Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro de 1986, que é
praticamente igual à Lei de Execução Penal de 1984. Assim como a
Comissão Técnica de Classificação, que tem o funcionamento
similar ao de um tribunal.
Outro exemplo claro do nível de implicação do direito com os
mecanismos disciplinares é o que Fonseca (2002, p. 190) chama de
“refluxo da verdade”. A verdade é produzida pelo exame no
interior das instituições disciplinares, mas seu conteúdo é
utilizado pelas estruturas formais do direito, que dirão o que
acontecerá com esses indivíduos. Ou seja, as regras do direito irão
gerenciar a delinquência. Voltarei a essa questão na discussão
sobre o exame criminológico no terceiro capítulo.
Dois séculos depois, a prisão continua sendo a forma punitiva
por excelência e a resposta para seu “fracasso” continua a ser a
mesma, encontrar uma forma melhor de punir para
corrigir/normalizar o comportamento dos detentos. O filósofo
acreditava ainda que o problema da prisão não é um problema do
direito penal, ou da sociologia, mas que temos de nos perguntar
qual é o lugar da prisão na gestão dos ilegalismos em face de sua
utilidade econômica e política. Mas será possível imaginar uma
sociedade em que o poder não esteja ligado aos ilegalismos?
Segundo Fonseca (2002, p. 191), ao final de Vigiar e punir, o
filósofo define a norma como algo que não seria propriamente uma
lei, mas que não se constitui em um domínio independente da
legalidade, um misto de legalidade e natureza, de prescrição e
constituição, uma nova forma de lei: a norma.
De acordo com o próprio Foucault (1999, p. 45), as disciplinas
vão trazer um discurso que não é o da regra jurídica derivada da
soberania, mas o da regra natural, isto é, da norma. Essa
tecnologia disciplinar traz consigo um código que será aquele, não
da lei, mas da normalização. E ainda assim ela estará referida a um
horizonte teórico que não é o do direito, mas o do campo das
ciências humanas, no qual a jurisprudência será a de um saber
clínico.
Eu creio que a normalização, as normalizações disciplinares, vêm cada vez mais
esbarrar contra o sistema jurídico da soberania; cada vez mais nitidamente
aparece a incompatibilidade de umas com o outro; cada vez mais é necessária
uma espécie de discurso árbitro, uma espécie de poder e de saber que sua
sacralização científica tornariam neutros. E é precisamente do lado da extensão
da medicina que se vê de certo modo, não quero dizer combinar-se, mas reduzir-
se ou intercambiar-se, ou enfrentar-se perpetuamente a mecânica da disciplina e
o princípio do direito. O desenvolvimento da medicina, a medicalização geral
dos comportamentos, das condutas, dos discursos, dos desejos, etc., se dão na
frente onde vêm encontrar-se os dois lençóis heterogêneos da disciplina e da
soberania. (FOUCAULT, 1999, p. 45-46)

Fonseca nos dirá que a norma disciplinar é apenas uma das


formas de os processos de normalização se manifestarem e
aponta, ainda, outra forma, que é a dos “mecanismos de
segurança”.
Governamentalidade

Os “mecanismos de segurança” aparecem nas análises de


Foucault, em relação ao controle das epidemias no final do século
XVIII. A modulação ocorrida aqui diz respeito a uma nova forma de
controle social, no qual surge um novo corpo para ser objeto e
sujeito das estratégias de poder-saber cujo foco de atenção seriam
os processos inerentes à vida. Porém, não se trata apenas do
corpo individual, como nas disciplinas, mas de um corpo coletivo,
denominado “população”. Entretanto, para gerir os processos
vitais dessa população seria necessária uma “arte de governar”,
uma “biopolítica”. Fonseca (2002, p. 195) diz que a série:
segurança-população-governo, ou a “biopolítica”, será discutida
nos livros ;
A vontade de saber Em defesa da sociedade; Segurança,

;
território e população O nascimento da biopolítica ; e o Governo dos
vivos. O jurista se propõe a comentar todos eles em busca das

imagens do direito normalizado-normalizador, porém, neste livro,


serão recortados apenas alguns comentários sobre A vontade de
saber, pois servirão para compreender melhor as discussões

acerca da psicanálise e de um dos nossos analisadores, o


depoimento sem dano.
Para Fonseca (2002), uma das questões discutidas em A
vontade de saber é a crítica que Foucault faz ao modelo “jurídico-

discursivo” de análise do poder e sua proposição do poder como


estratégias de normalização implicadas numa biopolítica. Uma das
versões do modelo jurídico-discursivo é a teoria repressiva que
Foucault refutará mostrando que o poder, em vez de reprimir,
incita e produz. A outra versão é aquela em que o poder se
confunde com a ordem instaurada pela lei oriunda do Estado
(filósofos contratualistas); para contestá-los o filósofo dirá que o
poder, em vez de instaurar a ordem e a paz por meio das leis, é
uma guerra perpétua.
Ao discutir a história da sexualidade no Ocidente (entre os
séculos XVII e XIX), que geralmente é explicada a partir da teoria
repressiva, o filósofo mostrará que, na verdade, o que ocorreu foi
uma explosão discursiva a respeito do tema. Por isso ele propõe
que pensemos esse investimento político nessa vontade de saber
sobre sexo. Tudo o que ocorria em relação a sexo passou a ter de
ser dito, as práticas, as sensações, os pensamentos, os desejos, o
que, aliás, não se restringia ao regime da confissão religiosa. Com
isso, essas práticas serviram de modelo para uma “tecnologia da
confissão” que se expandiu para outras instâncias e foi investida
pelo interesse público. O sexo tornou-se uma questão de polícia,
de saúde pública, de governo. O surgimento da “população” como
um problema econômico e político passa a ser considerado pelos
governos, e isso inclui a preocupação com a natalidade, a
fecundidade, a morbidade, a procriação, a expectativa de vida, o
aumento da população. Assim, diversas esferas do poder público
assumiram o papel de regular essa questão; a escola, a medicina, a
psiquiatria e a psicanálise passaram a se preocupar com o sexo
desde a tenra infância. Todas as regularidades e irregularidades
pertinentes aos processos que são inerentes à população estariam
implicadas no sexo. A sexualidade nada mais é do que o produto
de um mecanismo de poder-saber (biopoder), ou seja, um
dispositivo que integra a “biopolítica da população” (FONSECA,
2002, p. 191-200).
Ainda segundo Fonseca, é importante destacar a diferença do
modo como a norma é tratada nas disciplinas e nos mecanismos
de segurança:
Nos mecanismos de segurança, o “normal” vem antes e a norma é deduzida dele.
Se nas disciplinas partia-se da norma, separava-se o “normal” do “anormal” e se
realizava um adestramento em relação a essa separação, nas seguranças parte-
se de apreensões do “normal” e do “anormal” descritas por diferentes curvas de
normalidade, sendo que só a partir do estudo ou do jogo das normalidades que
se fixa a “norma”. (FONSECA, 2002, p. 214)

A necessidade de analisar as imagens do direito e sua relação


com a norma(lização), presentes nos escritos de Foucault, advém
do fato de considerar importante compreender por que se verifica,
nesse campo, a multiplicação de instrumentos jurídicos que, em
vez de limitarem o exercício de um Estado punitivo, alimentam-no,
mostrando um direito que funciona como força propulsora de
dispositivos de controle social e de produção de subjetividades.
Vem também do desejo de entender como os saberes “psi”, em
particular a psicologia e a psicanálise, estão implicados nesse
processo. Foucault nos abre um caminho esclarecedor ao dizer:
Eu creio que o processo que tornou fundamentalmente possível o discurso das
ciências humanas foi a justaposição, o enfrentamento de dois mecanismos e de
dois tipos de discursos absolutamente heterogêneos: de um lado a organização
do direito em torno da soberania, do outro, a mecânica das coerções exercidas
pelas disciplinas. Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através
desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses
discursos nascidos das disciplinas invadam o direito, que os procedimentos de
normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu,
que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma
sociedade de normalização. (Foucault, 1999, p. 45)

Na “terceira perspectiva” ou “direito novo” Fonseca visualiza,


nos escritos de Foucault, um direito que se opõe aos mecanismos
normalizadores. Contudo, antes de passarmos aos comentários
sobre essa terceira imagem, serão discutidas, ainda neste capítulo
e também no próximo, questões que considero estarem ligadas às
duas primeiras imagens apresentadas e, somente no quarto
capítulo, será mostrada a terceira perspectiva do direito.
Conforme explicitado, no primeiro capítulo, optei por trabalhar
nessa fronteira tênue entre as disciplinas, por isso não pude
habitar apenas os limites que separam o saber do direito dos
saberes “psi”, fez-se necessário também ir para outras fronteiras,
que às vezes servem de “ponte da amizade” entre eles, como a
criminologia, sobre a qual nos deteremos a seguir.
2.4 - Criminologia, políticas criminais, processos de
criminalização
A maior parte dos presos não tem nada em suas histórias que seja diferente do
resto da população. Seu único crime foi ser pobre e não ter advogado.77

Após uma breve reflexão sobre as duas primeiras imagens do


direito e as modulações da noção de norma em alguns textos de
Foucault, recorto aquela sua percepção de que a noção de
“perigo” será fundamental para que a anomalia passe de um fato
de assistência para um fenômeno de proteção social com o aval da
psiquiatria. Convido Vera Malaguti Batista (2009), no artigo
“Criminologia e política criminal”, para nos ajudar a entender
melhor essa questão.
A autora assinala, entre outras coisas, a permanência histórica
da articulação entre o discurso médico e o jurídico em nome da
busca da verdade por meio de técnicas de domínio sobre o
“objeto” averiguado que emergem na Inquisição, no século XIII. E,
segundo esta pesquisa, apesar das modulações ao longo dos
séculos, essa articulação se atualiza, de forma quase “inquisitória”,
no contemporâneo, em algumas práticas no campo jurídico. Por
isso, nos interessa compreender de que forma se deu não só essa
“articulação”, como diz Batista, mas uma espécie de colonização
recíproca, como diria Foucault, entre os saberes médicos e
humanos com o direito e o sistema jurídico-penal-penitenciário.
Como visto neste capítulo, as tecnologias de poder disciplinar e
os mecanismos de segurança (biopoder) se organizam por meio de
diversos dispositivos que têm como objetivo a normalização e o
controle dos corpos, da população, das sociedades, ou seja, a
absorção e dissolução de suas diferenças e contradições, mas
todo esse processo só ocorre porque há toda uma produção de
saberes que o instrumenta. Considero que a criminologia é um
desses saberes, que conseguiu colonizar e repelir tanto o saber
médico como o poder judiciário, apoiando-se no jogo entre eles,
criando suas próprias regras, conquistando sua autonomia e
compondo determinados dispositivos de controle social.
A criminologia positivista

Tratada como uma nova corrente penal, quando de sua


emergência como ciência no século XIX, traz, em seu carro “abre-
alas”, as noções de “criminoso anormal” e de “periculosidade”.
Contudo, ressalta-se que a criminologia não se inscreve
exatamente no mundo tão formal das disciplinas jurídicas, nem
nos modelos das ciências criminais, seja as tradicionais, seja
críticas, nem naquele das ciências humanas. Portanto, ela é, na
verdade, um “discurso-amálgama”, criado a partir da junção de
outros discursos sobre o crime, de evidente fragilidade
epistemológica, mas que acabou conquistando o “status” de
ciência por sua força utilitária para alguns segmentos das
sociedades.
Em seu artigo, Batista (2009) procura estabelecer conexões
históricas entre o objeto epistemológico da criminologia e as
demandas por ordem no processo de desenvolvimento do
capitalismo. Para tanto, percorre do século XIII ao XXI, por meio
de uma perspectiva política das relações de poder que envolvem
essas demandas, além de tratar a questão criminal (a política
criminal e a criminologia) como um constructo histórico-social.
Não se pretendeu fazer todo o percurso da autora, apenas
visitaram-se alguns pontos de sua viagem, na justa medida em que
eles puderam esclarecer algumas questões levantadas neste livro.
A partir do século XVIII, quem dará a tônica da demanda por
ordem é o processo histórico de fortalecimento do contrato social.
A multidão, tomada por “uma perspectiva revolucionária”,
empreendeu sua crítica ao Absolutismo. Com isso, o poder
punitivo precisou de novas ideias e técnicas para dar conta da
concentração de pobres “revoltados” que o processo de
acumulação de capital – intensificado entre os séculos XVI e XVIII
– produziu. Nesse movimento crítico surgiu o discurso jurídico de
princípios (ideias como legalidade e de outras garantias e
conceitos como delito e pena), assim como uma racionalidade
utilitarista que produziu diversos saberes que legitimariam as
relações de poder e de assujeitamento. A ascensão da burguesia e
sua crítica ao Absolutismo ensejaram novos discursos
criminológicos, novas instituições, novas políticas com
características cartesianas e iluministas. A verdade passou a ter
outro método de organização: punir em vez de vingar, gerir as
ilegalidades populares, disciplinar e docilizar os corpos, conforme
vimos com Foucault anteriormente. A Revolução Industrial
também precisou de novos dispositivos de controle social para o
disciplinamento e assujeitamento do contingente de miseráveis
que produziu. E a prisão, inicialmente subordinada à fábrica, se
converteu na principal pena do mundo ocidental (Batista, 2009).
Com a chegada ao século XIX, a Europa já tinha uma produção
teórica acerca do grande encarceramento iniciado no século
anterior. A sociedade disciplinar cria sua rede de prisões,
manicômios, internatos e asilos; e é justamente nesse período que
o pensamento criminológico galga seu status “científico” por meio
de suas próprias normas e conquista sua autonomia em relação ao
discurso jurídico.
Para Batista (2009, p. 26), esse pensamento era tenebroso e se
alimentava de uma clientela seletivamente estocada nas
instituições de aprisionamento, sem contar que surgiu das
próprias agências do poder sobre o “objeto” – que na verdade era
um sujeito – estudado. A autora ainda nos diz que, por meio dele,
“passa a reinar uma racionalidade falsamente autonomizada do
político que produzirá um recuo do Iluminismo, que se imaginava
contendo o absolutismo penal”. Afinal, “contra os perigos
revolucionários da ideia de igualdade, nada melhor do que uma
legitimação ‘científica’ da desigualdade”.
Conforme Foucault profere a respeito da criminologia
positivista: “Nesse novo saber importa qualificar ‘cientificamente’
o ato enquanto delito e especialmente o indivíduo enquanto
delinqüente”. Chegamos, então, a outro efeito do encontro entre
os saberes citados acima, a produção da subjetividade
“delinquente”, que, segundo o filósofo, foi criada para substituir o
infrator condenado enviado pela Justiça. O delinquente é uma
unidade biográfica, com um núcleo de “periculosidade”, ou seja, é
representante de um tipo de anomalia que o aparelho do castigo
fabricou e que serve como ponto de aplicação do poder punitivo e
como objeto da “ciência penitenciária”. A técnica penitenciária e o
delinquente são, para este estudioso, “irmãos gêmeos”
(FOUCAULT, 1987, p. 213).
Conforme visto, no início deste capítulo, a Justiça penal
definida no século XVIII pelos reformadores traçava uma linha de
objetivação possível do criminoso que era a série dos “monstros”
morais ou políticos que rompiam com o pacto social, mas ela
também traçou outra, bem divergente da primeira:
[...] a do sujeito jurídico requalificado pela punição. Ora, o “delinquente” permite
justamente unir as duas linhas e constituir com a caução da medicina, da
psicologia ou da criminologia, um indivíduo no qual o infrator da lei e o objeto
de uma técnica científica se superpõem. Que o enxerto da prisão no sistema
penal não tenha acarretado reação violenta de rejeição se deve sem dúvida a
muitas razões. Uma delas é que, ao fabricar delinqüência, ela deu a Justiça
criminal um campo unitário de objetos, autentificado por “ciências” e que assim
lhe permitiu funcionar num horizonte geral de “verdade”. (FOUCAULT, 1987, p.
214)

Ou seja, por meio das informações biográficas sobre o


indivíduo infrator, vai-se construindo um “caráter delinquente”.
Uma rede complexa, formada por pulsões, instintos,
temperamento e tendências, que aproxima e amarra o delinquente
ao seu delito. A vigilância sobre o indivíduo estará para além do
que ele fez (seu ato), agora importa o que ele “é ou será”, o
indivíduo e suas virtualidades, seu potencial para “periculosidade”
são mais importantes do que o ato infracional em si. “O
delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu
ato quanto sua vida o que mais o caracteriza. [...] O castigo legal
se refere a um ato; a técnica punitiva a uma vida” (FOUCAULT,
1987, p. 211). Nesse caso, quem determinará quem é ou não
delinquente é a “norma”, por meio das ciências médicas e
humanas, e não a lei.
Deve-se ressaltar que a demanda por saber a respeito do
delinquente e seu grau de periculosidade não é produzida pelo ato
jurídico para fundamentar melhor a sentença e o nível de culpa,
mas para que o condenado possa ser punido de maneira mais
eficaz. Para Foucault (1987, p. 213), “a delinquência é a vingança
da prisão contra a Justiça. Revanche tão temível que pode fazer
calar o juiz. É então que os criminologistas se impõem” e os juízes
começam a julgar algo bem diferente dos crimes: a “alma” dos
criminosos.
A criminologia servirá ainda como um “prolongamento da lei”,
segundo Rauter, visto que, ao se articular com as práticas
jurídicas, produz efeitos concretos, dotando essas práticas de
novos métodos de controle sobre a população, “humanizando-as”
e revestindo-as de uma finalidade “terapêutica” e de uma
“neutralidade científica”, ou seja, ela produz uma espécie de
“disciplinarização da Justiça” (RAUTER, 2003, p. 24).
A criminologia positivista no calor dos trópicos

País Tropical78
Moro num país tropical, abençoado por Deus
E bonito por natureza, mas que beleza
Em fevereiro (em fevereiro)
Tem carnaval (tem carnaval)...
Tenho um fusca e um violão
Sou Flamengo
Tenho uma nega
Chamada Tereza...
Sou um menino de mentalidade mediana
Pois é, mas assim mesmo sou feliz da vida
Pois eu não devo nada a ninguém
Pois é, pois eu sou feliz
Muito feliz comigo mesmo...
No que diz respeito, especificamente, à chegada da
criminologia e os seus efeitos no Brasil, no final do século XIX e
início do século XX, quem nos acompanha é Cristina Rauter, em
seu livro Criminologia e subjetividade no Brasil (2003), no qual ela
analisa a construção histórica da criminologia em nosso país,
assim como as transformações dos dispositivos de poder que este
saber instrumentalizou. Além disso, faz um paralelo entre as
diferenças de propagação deste saber na Europa e em nosso país.
A autora salienta que a condução dessa análise deve ser
considerada de forma especial no Estado brasileiro, pois, se as
disciplinas emergiram no contexto das sociedades industriais na
Europa, devemos nos perguntar que papel elas teriam em nosso
país, no qual as formas de dominação burguesas encontraram
modos peculiares de implantação, e no qual as ações estatais
trazem a característica de sempre terem se dado de forma
violenta.
De acordo com o que foi discutido anteriormente, a
criminologia é um dos dispositivos ligados a um processo de
normalização das sociedades, ou seja, de dissolução das
diferenças e contradições. Entretanto, em nosso país, esse
processo nunca se harmonizou com a gestão das relações
antagônicas entre as classes sociais que não puderam ser geridas
por meio de estratégias sutis e anônimas características dos
dispositivos de controle social. Segundo Rauter:
[...] o Judiciário incorporou o que poderíamos chamar de uma tecnologia penal
normalizadora, com o advento e expansão do discurso da criminologia. No
entanto, no nível das práticas sociais (das instituições do Judiciário), este
processo não pôde se dar sem um ônus de violência que aparentemente o
contradiz. Esta combinação bizarra, até certo ponto, de norma e repressão,
talvez seja a peculiaridade presente no processo de normalização da sociedade
brasileira. As operações conhecidas como de “reeducação”, “cura” ou
“ressocialização” etc., não podem se dar sem um nível de violência mais ou
menos explícita que todo o tempo as denuncia. (RAUTER, 2003, p. 19)

No Brasil, a coexistência de uma legislação liberal com


dispositivos autoritários tem sido constante no direito. Ao analisar
uma lei promulgada em 1841, que alterava o Código do Processo
Penal de 1832, Rauter (2003, p. 22) nos mostra como tudo isso era
inadequado para o poder político brasileiro, que tinha medo do
“furor revolucionário” e do liberalismo das leis vindos da Europa.
A despeito de alguns juristas liberais brasileiros do início do
século XX terem saudado o novo “código penal humanizado”, que
era mais ameno do que as Ordenações Filipinas marcadas pelo
pacto do direito com a Igreja, nas quais se confundia lei com
religião, crime com pecado e que traziam a marca da crueldade e
do despotismo, o liberalismo penal europeu causava tensões.
Entretanto, não é tão difícil entender esta inadequação da
legislação liberal em relação à realidade brasileira do século XIX,
pois os dispositivos disciplinares não se expandiram aqui de
forma tão ampla quanto na Europa e, por isso, a “norma(lização)”
da população não pode ser generalizada a ponto de atuar como
complemento adequado de um contrato social em bases liberais,
segundo demonstra Rauter (2003, p. 23). Afinal, como se poderiam
manter as condições de exploração de uma classe sobre a outra,
ou seja, de uma minoria rica sobre uma maioria de escravos?
Situação esta que não se alterou muito após a Abolição da
Escravatura – e perdura até hoje –, respeitadas as devidas
proporções e modulações. Ontem eram escravos, atualmente são
milhões de desempregados.
Com a chegada da criminologia em nosso país, o direito liberal
passa a ser concebido como ineficaz e anticientífico e passa a ser
tratado como “escola clássica” em oposição à “escola
antropológica ou positiva”, que poderia conhecer cientificamente
o crime e os meios para combatê-lo. Pelo direito clássico-liberal
não se podia ver a desigualdade entre os homens, já que eram
todos “iguais perante as leis”, leis estas que eram oriundas do
contrato social por eles firmado. Todos (com exceção das
crianças, loucos e dementes) tinham a capacidade racional de
decidir e responsabilizar-se por seus atos. Mas o direito moderno
só se pautava na ideia de igualdade, para dizer que não era a razão
que controlava nossos atos, mas os instintos, os afetos, os atos
reflexos, portanto não apenas os loucos, mas qualquer cidadão era
potencialmente perigoso e, por isso, precisava de instrumentos
científicos para identificar esses “diferentes” que eram
verdadeiros inimigos da ordem jurídica e social (Rauter, 2003, p.
27).
Nesse momento, opera-se o deslocamento da apreciação dos
delitos e das penas, para o estudo daquele que comete o delito
por meio de suas peculiaridades psicossociológicas. Por esta
operação as penas passarão a ser adequadas à personalidade de
cada um, ou seja, é o princípio individualizador da pena que está
presente no nosso código penal de 1940. Nessa época, “a lei surge,
no discurso da criminologia, como um anteparo necessário que a
sociedade teve de opor a esta espécie de caos íntimo que habita
todo ser humano” (RAUTER, 2003, p. 28).
Nesta pesquisa, tive a oportunidade de observar a atualização
dessa afirmação de Rauter por meio de alguns discursos e práticas
“psi”, que serão explicitados ainda neste capítulo.
A criminologia emerge no Brasil pela importação cultural
europeia das ideias de Lombroso e Ferri. O primeiro afirmava que
a “anormalidade do criminoso” se verificava por meio de
características físicas e, o segundo, que o crime era um sintoma de
degeneração moral e que as diferenças sociais eram consideradas
derivadas da evolução natural, em que uma classe é inferior por
um fracasso evolutivo enquanto a outra era superior por ter tido
mais êxito e tudo isso era transmissível hereditariamente! Assim,
avaliava-se o grau de “temibilidade” ou “antissociabilidade” pela
classificação dos criminosos por tipos, levando-se em conta seus
precedentes, condições de existência, educação e, com isso,
ampliava-se o espectro de justificativas para o crime por parte dos
criminólogos.
De acordo com Rauter (2003), passa-se da observação do corpo
à observação do comportamento. A noção de “periculosidade”,
assim como os novos procedimentos de classificação desses
“anormais”, será fundamental na ampliação desse discurso, pois o
crime vai passar a aparentar-se com um “mal psicológico”, mas
não próximo da doença e sim da degeneração das raças e do
temperamento. Por exemplo, no Brasil, o olhar dos criminólogos
volta-se para o carnaval, os cangaceiros nordestinos, os negros, os
índios e a miscigenação, como indícios de uma incapacidade para
o controle moral, indolência em relação ao trabalho, desrespeito
às autoridades que, por fim, levariam ao crime.
Outro fator que se processa quando da emergência da
criminologia em nosso país é a implantação da medicina social
como condutora de uma ordem disciplinar que promove uma
reflexão médica/higiênica no social e também sobre as prisões,
criando uma aproximação entre doença e crime. Porém, esse
processo é lento e incompleto, e quase todas as instituições de
privação de liberdade permanecem como meros depósitos, com a
única finalidade de “tirar de circulação” aqueles que representam
“perigo” para a sociedade.
Assim, vemos que o projeto institucional que se articula a essas
concepções “médico-higienistas” é o de um maior rigor nas penas,
tendo em vista a defesa da sociedade. Mas, no Brasil republicano,
alguns juristas liberais olham atravessado para essas inovações
científicas, Ruy Barbosa, por exemplo, aponta os
comprometimentos políticos de Lombroso com o autoritarismo e
com o aumento das penas, que desrespeitavam o processo penal
(RAUTER, 2003, p. 33-36).
A partir da segunda metade do século XIX, a psiquiatria e a
criminologia passaram a estabelecer um diálogo constante,
entretanto, preservavam cada qual sua singularidade. Enquanto a
última representa uma transformação interna do direito penal sob
a influência das ciências humanas baseadas nas noções de
anormalidade e cura, a primeira, com toda a sua tecnologia
médica, vem para disputar com o direito penal a gestão sobre os
criminosos por meio da afirmação de que o crime é apenas uma
das manifestações da doença mental.
Ao referir-se à proximidade entre o discurso penal e o
psiquiátrico, Foucault escreve que:
À medida que a biografia do criminoso acompanha na prática penal a análise das
circunstâncias, quando se trata de medir o crime, vemos os discursos penal e
psiquiátrico confundirem suas fronteiras; e aí, em seu ponto de junção, forma-se
aquela noção de indivíduo “perigoso” que permite estabelecer uma rede de
causalidade na escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredicto de
punição-correção. (FOUCAULT, 1987, p. 211)
Em nosso país, isso fica bem claro ao analisarmos, nos Códigos
Penais, a problemática da responsabilidade do louco. De acordo
com Rauter, o Código imperial-liberal de 1830 tornava
irresponsáveis os loucos de todo tipo. “Os loucos seriam
desarrazoados e por isso incapazes para o contrato social”
(RAUTER, 2003, p. 42). Porém, neste período, a classe médica
ainda não tinha conseguido que os juristas lhe delegassem tantos
poderes assim no que diz respeito à detecção da loucura.
Contudo, foi promulgada, em 1903, a Lei dos Alienados, que definiu
o hospício como o local para onde deveriam ser levados os
loucos, que só poderiam ali permanecer mediante parecer médico,
em cuja posse os bens do alienado ficavam. Assim, a psiquiatria
passa a configurar-se como um álibi para o Estado apreender
aqueles que não necessariamente transgrediram o Código Penal,
mas que não cumpriram com o contrato social de bases liberais.
Com isso, o próprio direito transforma o “direito” de sequestrar e
de punir numa função técnica.
Com o passar dos anos, um importante deslocamento ocorre e
loucura e irracionalidade já não são mais consideradas sinônimos.
A psiquiatria transforma-se em um saber mais aceito e organizado
e se torna indispensável para a questão da responsabilidade penal,
visto que só ela possui os instrumentos necessários para avaliar e
determinar o grau em que a capacidade de discernimento do
criminoso estaria afetada (RAUTER, 2003, p. 44). Como podemos
ver, a tentativa de impetrar o “ato médico”79 em nossa sociedade é
antiga!
Contudo, entre o final do século XIX e início do século XX,
travaram-se discussões entre a Justiça e a psiquiatria sobre a
competência do psiquiatra diante do louco-criminoso. O
Judiciário, por sua vez, usava a tecnologia desta “ciência”, mas
temia ser confundido com ela. Alguns juristas brasileiros
criticavam este ideal humanitário de transformar o criminoso num
doente, só que, na realidade, a psiquiatria nunca pretendeu
libertar o louco criminoso do rigor penal, apenas quis se apoderar
da gestão desta classe de excluídos que deveriam ser devidamente
nomeados e incluídos em algum lugar.
Um dos efeitos desses embates e acordos entre a psiquiatria e
o Judiciário, no Brasil, é a criação do primeiro “Manicômio
Judiciário”, nos idos de 1920. Era um “híbrido” entre hospício e
prisão, onde os psiquiatras não conseguiam aplicar a tecnologia
disciplinar de seus asilos, nem decidir sobre o destino destas
pessoas, pois as internações e altas eram definidas pelo juiz,
relegando à psiquiatria um complemento da ação repressiva
quando esta dá ao aparelho de Estado uma característica
disciplinar, que não é nem da psiquiatria, nem da penalogia
tradicional (RAUTER, 2003, p. 50).
No que diz respeito ao direito penal, nosso Código Penal de
1940 incorporou as novidades trazidas pela criminologia, que, a
despeito de carecer de elaboração teórica, entre as “ciências
humanas” era a que tinha o discurso mais utilitário, segundo
Foucault (1993). Ele continha novidades como “o critério de
periculosidade” para aplicação da pena por meio do dispositivo
legal da medida de segurança. Esta última não significa punição,
mas tratamento e prevenção da delinquência, ou seja, “a pena de
tratamento”. Não se tratava mais de julgar o delito, mas a
personalidade do criminoso. A partir desse período, o louco-
criminoso tinha um destino certo: a medida de segurança (“a pena
de tratamento”) no Manicômio Judiciário, do qual só sairia após o
Exame de Verificação de Cessação de Periculosidade (EVCP), que
seria feito por um psiquiatra, que liberaria sua alta, caso tivesse
sido “curado”.
Porém, nossos juristas da época avisaram que este ideal
reformador encontraria dificuldades no nosso país em função da
precariedade dos nossos estabelecimentos penais (RAUTER, 2003,
p. 70).
Mas, a despeito das dificuldades para introduzir essas
novidades tecnológicas, a colonização do Judiciário pelas ciências
humanas só aumentou o arbítrio dos juízes na avaliação da
periculosidade das pessoas que eram capturadas por essa rede. E,
é óbvio que os juízes não avaliavam os casos sozinhos. Contavam
– e ainda contam – com a ajuda dos peritos auxiliares (psiquiatras
e psicólogos), que avaliavam quais deles eram perigosos o
suficiente para receber uma medida de segurança. Isso, segundo
os juristas liberais da época, representava uma contradição no
novo código, pois tornava este dispositivo curativo-preventivo e,
simultaneamente, punitivo-expiatório. Essa dupla faceta do
dispositivo é gerada, justamente, pela psiquiatria e sua teoria dos
variados graus de responsabilização, de acordo com Rauter (2003,
p. 72).
Outro fato que não pode ser ignorado nesse período é a criação
da entidade psiquiátrica que mais se relaciona com o crime, a
psicopatia. Aqui vemos a oposição à lei ser transformada em
sintoma e, para tal anomalia, a pena é o melhor tratamento! A
psicopatia tem a singularidade de ser considerada uma “loucura
lúcida”, assim, quem é acometido deste mal não precisa ser
enviado ao hospício, afinal não seria curado, uma vez que os
“psicopatas” são “inimigos das leis por natureza”. Contudo,
precisam ser presos em defesa da sociedade (Rauter, 2003, p. 47).
Entretanto, ao transformar oposição às leis em patologia, este
saber tira o caráter político deste tipo de atitude, adoecendo-a e
produzindo a demanda de criação de dispositivos de contenção
para tal “anomalia”. Agindo dessa forma, a psiquiatria fomentou e
ainda fomenta as ações violentas e os dispositivos de controle
social do Estado, só que atualmente ela conta com a psicologia e a
psicanálise para essa tarefa, às vezes se aliando a esses saberes,
outras desqualificando-os.
Ao tirar o caráter político das formas de contestação ao Estado
e transformar essas ações em anormalidades sociais ou
individuais, a criminologia, a psiquiatria, assim como qualquer
outro saber, tornam “técnica” a tarefa de combater o crime e
eximem-se de ser responsabilizadas, de se comprometer com a
manutenção das formas vigentes de dominação. Não podemos
esquecer que as relações entre estas “ciências” e o poder não são
de exterioridade, pois seu surgimento e expansão fazem parte das
estratégias de poder que visam ao controle social. Rauter (2003, p.
24) afirma que, em nome desse controle, o Código Penal de 1940 –
e estes saberes que o sustentavam – representava um aumento do
arbítrio judicial, da restrição das liberdades individuais, da
duração das penas, ou seja, uma ampliação do poder de aplicar
ações violentas por parte do Estado, que usava como álibi as
“ciências” para tornar suas ações “neutras” e “técnicas”.
Vale lembrar que instituições como o Manicômio Judiciário
ainda existem em nosso país e continuam operando por meio de
mecanismos não muito diferentes dos que descrevemos acima.
Além de não terem acompanhado os movimentos da Reforma
Psiquiátrica, não atendem as indicações do Sistema Único de
Saúde (SUS). No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, temos três
unidades denominadas de “Hospitais de Custódia e Tratamento
Penitenciário”, conforme narramos brevemente no primeiro
capítulo.
Pelo que já foi mencionado até aqui, pode-se afirmar que o
asilo, o manicômio, o hospital ou a prisão não eram apenas lugares
para o tratamento ou a pena serem cumpridos, eram também
locais de observação e produção de discursos sobre os indivíduos
(loucos, doentes mentais, criminosos) que ali se encontravam. O
objetivo não era apenas vigiar80 e/ou punir, mas conhecer seu
comportamento, suas disposições profundas, sua progressiva
melhora. Era, especialmente, um lugar de produção de
subjetividades. Por isso, esses lugares tornaram-se local de
formação de um “saber clínico” sobre seus internos e a figura dos
especialistas “psi” se tornou imprescindível, pois, no aparelho
manicomial e no carcerário, produz-se o silenciamento de quem lá
está, que passa a ser falado através do outro, o “especialista”.
Outras versões da “Criminologia” no século XX

Ao longo do século XX, ocorreu uma nova modulação na


criminologia, segundo Batista (2009, p. 26), e as guerras tiveram
um importante papel nesse processo, pois enquanto o
nazifascismo ocupou a Europa ocidental, os Estados Unidos
lutavam contra a Depressão Econômica, Roosevelt fazia alianças
com os comunistas e investia na construção do Welfare System,
tudo isso “repolitizou” a questão criminal. Nessa época, “a
sociologia e as ciências humanas vão avançar do positivismo
segregador para um funcionamento integrador”.
A criminologia americana do século XX, a partir do trabalho de
Merton, vai reciclar o conceito de anomia81 de Durkheim. Os
sociólogos e criminólogos americanos tentaram achar saídas para
a profunda conflitividade social decorrente da heterogeneidade
das populações urbanas formadas por migrantes e imigrantes de
diversas culturas. O comportamento desviante passou a fazer
parte da estrutura social, já que cumpria funções integradoras. O
limite do desvio era a anomia, a ruptura da coesão “pactada”. De
acordo com Batista (2009, p. 27), nessa perspectiva, “o delito, ou o
desvio, não é mais um fenômeno natural, é uma definição, uma
construção do sistema de controle. A criminologia levanta os
olhos da prisão e consegue enxergar as relações entre o gueto e a
‘criminalidade’”. E um dos efeitos dessa mudança de olhar foi que
passam a ser objetos de estudo: as instituições e as formas de
controle social, assim como as áreas com concentração de
imigrantes pobres. Tratava-se de uma “criminologia funcionalista”,
para atender as demandas do capitalismo e de ordem naquele
momento.
Conforme Batista (2009, p. 27), “foi essa criminologia norte-
americana, revigorada pela construção do Welfare System, que
conduziu à ruptura do rotulacionismo, que no cruzamento com a
teoria psicanalítica e o marxismo puderam produzir, junto com a
ebulição política dos anos 60 e 80, a criminologia crítica”. Apesar
de este não ter sido um pensamento hegemônico, a autora
acredita que produziu avanços na pesquisa acadêmica e na busca
de paradigmas e práticas de política criminal que não investiam na
dor, na repressão e no dogma da pena. Além de ter sido um
importante “dique utópico” contra as violências dos regimes
militares da década de 1970 na América Latina.
Porém, até a própria “criminologia crítica” deve ser analisada
em seus impasses, e quem o faz é Rosa Del Olmo,82 em 1975, ao
desconstruir as importações criminológicas – da positivista à
crítica – feitas pela América Latina e concebê-las como uma
internacionalização do controle social dos resistentes. A autora
aponta para uma metodologia que se adeque ao objeto da questão
criminal a partir da realidade latino-americana, mas, para que isso
aconteça, é preciso realizar uma descolonização ideológica da
criminologia.
O problema da tradução é um grande impasse, pois sabemos
que ela não é neutra; um exemplo patente disso, conforme Batista
(2009, p. 30-31), foi a repercussão das ideias de Lombroso na Bahia
africana de Nina Rodrigues.83 Outro impasse é a
transnacionalização do controle social, como vemos, por exemplo,
no que tange à entrada da questão das drogas no Brasil a partir da
“guerra” contra as drogas dos Estados Unidos, sem que isso
tivesse uma relação direta com os problemas brasileiros.
Nessa perspectiva crítica em relação à criminologia, Eugenio
Raúl Zaffaroni84 concebe o “realismo marginal”, conforme nos
conta Batista (2009, p. 33), “pensando na criminologia como um
rio e na aproximação pela margem, ele indica os significados
diversos que as ideologias dos países centrais apresentam na
nossa periferia”. Para promover essa aproximação temos de
compreender a “multiplicação latino-americana das perguntas
centrais, somada à notória inferioridade no desenvolvimento
teórico e nos recursos informativos disponíveis e também na
dramaticidade do nosso cotidiano violento”, afinal, o maior
número de mortes na América Latina é causado pelas agências do
Estado (agências policiais ou parapoliciais e algumas políticas
públicas).85 O jurista analisará, também, a discursividade
criminológica como um fato de poder letal, do centro para a
periferia e aponta como uma das técnicas de poder o monopólio
da informação, como também o fez o geógrafo Milton Santos.86
Segundo Batista (2009, p. 36), Zaffaroni afirma que a
dramaticidade do problema criminal, nos países da América
Latina, exige que a criminologia responda às seguintes questões:
“que são nossos sistemas penais, como operam, que efeitos
produzem, por que e como nos ocultam esses efeitos, que vínculo
mantêm com o resto do controle social e do poder, que
alternativas existem a essa realidade e como se podem
instrumentar”? O século XX chegava ao fim, porém essas questões
continuavam pertinentes e poucos procuravam respondê-las.
Zaffaroni foi um deles, e que, 20 anos após o “realismo marginal”,
propôs um “replanteo epistemológico” na criminologia a partir de
Wayne Morrison e suas ideias acerca do “inimigo” no direito penal,
colocando em questão a “criminologia global”. A partir do
“período Bush”, especialmente após o 11 de setembro, produziu-se
a simbiose entre os discursos da guerra e do crime. Este
acontecimento marca a invasão do espaço “civilizado” pelo “não
civilizado”, o que fomenta novos medos que são muito úteis para
alguns discursos. A criminologia ganhou um sentido mais
emocional, mais popularizado e politizado mediante uma nova
relação com os meios de comunicação. Com isso, emerge na
América Latina o fenômeno do “populismo punitivo”.
Século XXI ou “A Solução não é punir mais é punir melhor”

Nenhum de nós está livre da prisão. Hoje menos do que nunca. A vigilância
policial se intensifica sobre nossa vida de cada dia [...] as medidas antidroga
multiplicam a arbitrariedade. Estamos sob o signo de “guarda à vista.” Dizem-
nos que a justiça está sobrecarregada. Isso já sabemos. Mas se foi a polícia que a
sobrecarregou? Dizem-nos que as prisões estão superpovoadas. Mas se foi a
população que foi superencarcerada?87

É chegado o século XXI e as modulações do capitalismo


acentuaram os bolsões de pobreza e a violência em todo o mundo.
A expansão do domínio americano, apesar de sua crise, não passa
despercebida. O neoliberalismo precisa de estratégias globais de
criminalização e de políticas de controle social cada vez mais
duras – mais tortura, menos garantias, penas mais longas e
aprisionamento em massa – para dar conta dos inúmeros
desempregados ou, pior que isso, daqueles impossibilitados de se
endividar, em todo o mundo, ou, dito de outra forma, para
controlar aqueles que não apenas rompem com o pacto social,
mas, sobretudo, com o pacto do capital: o consumismo.
Surgem também as estratégias de criminalização das condutas
cotidianas, gerenciadas por dispositivos como os juizados
especiais, as penas alternativas e a Justiça terapêutica. Essas
mudanças têm como aliada a mídia, que no processo de
inculcação e utilização do medo produz a demanda por punição,
segundo Batista (2009). Um ótimo exemplo disso é o slogan da
campanha88 do Conselho Nacional de Justiça: a “Solução não é
punir mais é punir melhor”, que tem como alvo a “modernização
da Justiça criminal”, veiculada no mês de abril de 2010 pelo rádio e
TV, em nosso país. Segundo os organizadores, o objetivo foi o de
explicar de maneira fácil e didática a lógica do sistema brasileiro
de penas para que as pessoas que não são atores do direito
também possam participar.
Seguindo essa trilha, o município do Rio de Janeiro criou a
operação “Choque de Ordem”,89 criativamente chamada pelos
cariocas de “chilique de ordem”, criada em 2009, pela atual gestão
municipal, com o apoio da estadual. Seus principais alvos são os
vendedores ambulantes de todos os tipos, por quê?90 Será que é
porque eles não pagam impostos como os comerciantes
“legalizados”? Os principais ambulantes perseguidos foram os
vendedores de bebida, pois outra operação em curso no momento
é a “Lei seca”. Mas, além deles, persegue-se, prende-se ou multa-se
quem estaciona com flanelinhas, ah, estes últimos também são
“eletrocutados” pela operação. Outros inimigos da ordem pública
são aqueles que fazem xixi nas ruas e o carnaval. Agora imagine
quem tentou, no carnaval carioca de 2010, “estacionar o carro
para pular carnaval, beber uma cerveja e depois fazer um xixi”, ou
para variar a sequência, “aproveitar o carnaval para ganhar um
troco estacionando carros ou vendendo cerveja e fazer xixi, de vez
em quando”.
Bem, o resultado da Operação “Rua Seca”, nos anos de 2010 e
2011, foi, respectivamente, 360 e 777 detenções de “foliões-mijões”.
Com um dado inédito para as feministas, foi a primeira vez, no
mundo, que mulheres foram presas por fazerem xixi na rua! E
como nosso país ainda não legislou sobre esse terrível “crime”, os
flagrados foram autuados por “importunação ao pudor público”
ou por “ato obsceno” (artigo 233 do Código Penal). Todos eles
assinaram um termo de compromisso e foram encaminhados a um
Juizado Especial e receberam uma sentença: trabalho comunitário
ou a doação de cestas básicas. Assim como as calçadas, a ficha
dos “incontinentes” também ficou suja por cinco anos, tempo de
duração da anotação criminal na qual ele deixa de ser réu primário
e, se cometer algum outro delito, poderá ser preso.91
Mas não eram os criminólogos positivistas brasileiros que
temiam o carnaval? É, Lombroso e Ferri devem estar às
gargalhadas no “além” diante da imortalidade de suas ideias!
Percebe-se por esta pesquisa que a combinação entre
estratégias sutis e anônimas, características dos dispositivos de
controle social aliadas às ações violentas por parte do nosso
Estado brasileiro – não sendo exclusividade dele, como vimos
anteriormente – nos convoca a problematizar o discurso da
criminologia, do direito, da medicina, das políticas públicas e dos
saberes “psi”, especialmente porque no campo jurídico todos
esses discursos se encontram da forma mais perniciosa. Toda essa
rede de dispositivos de controle social ainda se articula de forma
bem peculiar, combinando quotidianamente norma e violência,
restringindo as liberdades individuais, aumentando o rigor das
penas e usando como álibi as “ciências” para tornar suas ações
“neutras” e “técnicas”.
A respeito do “populismo punitivo”, Batista (2009, p. 37) vai
dizer que:
Máximo Sozzo analisa a maneira como a maior presença cotidiana de delitos
começa a ser compreendida de outra forma: a insegurança urbana vira “objeto
de intercâmbio político, de mercadoria política”. Esta eleitoralização da
emergência produziu um mercado de trocas simbólicas, de novos agentes e
especialistas que vão dar novos sentidos para produzir consensos e controles
sobre as subjetividades diante do fato criminal. [...] Uma das características do
populismo seria o apagamento de uma reflexão criminológica acadêmica para o
surgimento de um novo especialista: a vítima. [...] no Brasil serão os pais e mães
das vítimas (brancas, é claro) que darão o tom do debate criminológico e da
mudança das leis penais no sentido de maior rigor. Essa emocionalidade é
estratégica para o processo de expansão de poder punitivo no mundo
contemporâneo. Não é à toa que assistimos no Brasil ao assustador debate, nos
meios de comunicação, em que um filósofo, um psicanalista e um antropólogo
(Renato Janine Ribeiro, Renato Mezan e Roberto DaMatta) defendiam o uso das
suas emoções punitivas para repercutir a superexposição de um caso92 trágico
acontecido no Rio de Janeiro. (BATISTA, 2009, p. 37)

É importante observar que, nesse contínuo processo de


criminalização de determinadas parcelas da população, as falas
dos profissionais se misturam de tal forma que se tornam uma
única fala, uma fala universal. Não importa mais se é o povo
(senso comum), um filósofo, um psicanalista, um antropólogo, um
jurista, um psiquiatra, um agente penitenciário ou um policial.
Quem nos mostra isso, de forma muito interessante, é o jurista
Sérgio Verani (1996, p. 138), que pesquisou sobre os assassinatos
cometidos pelas forças do Estado em nome da “defesa da
sociedade” e do “estrito cumprimento do dever legal”: o “auto de
resistência”.93 Nesse procedimento a população atingida é, em sua
maioria, negra e pobre e, apesar de essas pessoas serem as
supostas vítimas dos processos que se abrem, na verdade, se
tornam acusadas por algum crime e culpadas por sua própria
morte. E os policiais? Nunca são responsabilizados! O autor diz
ainda que a ação criminosa e violenta do policial encontra
legitimação por meio do discurso do delegado, do promotor e do
juiz: “se suas tarefas não estivessem divididas e delimitadas pela
atividade funcional, não se saberia qual é a fala de um e qual é a
fala de outro – porque todos têm a mesma fala contínua e
permanente”, trata-se da “generalização e a uniformização de
determinados valores e da fala que os legítima”.
Sociedades de controle e Estado de exceção

No início deste capítulo, discutiu-se aquilo que Foucault, no


livro Vigiar e punir, chamou de “sociedade soberana” e teoria da
soberania, posteriormente, comentou-se sobre suas ideias acerca
da “sociedade e do poder disciplinar” (séculos XVIII, XIX e início
do XX) e seus dispositivos de assujeitamento. Esta última, tal
como assinala Deleuze (1992), encontrará seu fim após a Segunda
Grande Guerra Mundial, período a partir do qual este autor a
denomina de “sociedade de controle”.
Por isso, no próximo capítulo, trabalharei com a novela A
colônia penal de Kafka, pois ela contém muitos elementos

discutidos nesta pesquisa, e um deles refere-se à transição do


regime de poder soberano para o regime de poder disciplinar. Mas,
segundo Deleuze, Kafka foi mais longe, pois sua escrita
[...] já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O
processo as formas Jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades

disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades


de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito
diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque
saímos de um para entrar no outro. (DELEUZE, 1992a, p. 222, grifo do autor)

Deleuze nos diz ainda que:


[...] Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de
confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola e família etc. Os ministros
competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias [...]
mas todos sabem que estas instituições estão condenadas, num prazo mais ou
menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a
instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que
estão substituindo as sociedades disciplinares. (DELEUZE, 1992a, p. 220)

Podemos observar a instalação dessas “novas forças”, a que


Deleuze se refere, também nas pesquisas de outros autores, como,
por exemplo, Jock Young (2002), que, em seu livro A sociedade
excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na

modernidade recente, afirma que passamos da sociedade inclusiva


do pós-Segunda Guerra Mundial (modernidade) para uma
sociedade excludente a partir da revolução cultural dos anos 1960
(modernidade recente). Na sociedade inclusiva o Estado tinha
como papel assimilar, reabilitar ou curar o desviante para integrá-
lo na sociedade, para tanto, expande um corpus de especialistas,
como psicólogos e assistentes sociais, de modo que, nesta época,
tanto o discurso penal como o terapêutico era de integração. Já na
sociedade excludente, a exclusão se dá em três níveis: econômico,
social e por meio do sistema judiciário criminal e da segurança
privada.
De acordo com Young (2002), no primeiro nível, vemos que a
redução do mercado de trabalho primário, a expansão do mercado
de trabalho secundário e a criação de uma subclasse de
desempregados estruturais aumentam as desigualdades de renda
e produz-se uma privação relativa entre os pobres, gerando um
aumento da criminalidade e uma ansiedade entre os de melhor
situação, isso, por sua vez, gera a cultura da intolerância e
imputabilidade; crime e castigo derivam da mesma fonte: o
sistema capitalista, que, em um só tempo, exclui e estimula o
consumo.
Outra característica operada por essas modulações do
capitalismo é o cordão sanitário, já citado por Foucault ao falar da
emergência da medicina social, só que, desta vez, a separação
geográfica entre pobres e ricos é mais refinada, pois conta com a
segurança privada, que é quem pretende “garantir” a existência
dessa separação e que movimenta milhões em todo o mundo,
segundo Deleuze (1992a), Wacquant (2003), Young (2002). Estas
empresas têm suas ações em bolsas de valores, como a Nasdaq, e
oferecem em sua lista de serviços os presídios. Essa tendência à
privatização dos presídios ocorre abertamente nos Estados
Unidos. No Brasil, esse processo foi iniciado no estado do
Paraná,94 mas não se expandiu devido a obstáculos legais, pois, de
acordo com a Constituição Federal de 1988, a segurança pública
deve ser administrada pelo Estado.95
Em As prisões da miséria, Löic Wacquant (2003) caminha na
mesma direção que Young ao mostrar que a penalidade neoliberal
(inventada nos Estados Unidos) é paradoxal, pois pretende
diminuir o Estado econômico e social mínimo e aumentar o Estado
policial e penitenciário máximo. E também aponta ambos como
causa da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países. O
autor ainda afirma que, no Brasil, a insegurança criminal e o uso
habitual da violência são agravados pela intervenção das forças de
ordem, movimento antigo em nosso país, originado na escravidão
e fortalecido na ditadura, quando a luta contra a “subversão
interna” se travestiu de repressão aos “delinquentes”.
Uma das coisas que chamam a atenção, ao longo desta
pesquisa, é constatar que o Brasil não construiu um novo Código
Penal e continua utilizando a Parte Especial (crimes em espécie)
do de 1940; a Parte Geral (do art. 1º ao art. 120) sofreu
reformulações com a Lei de Execuções Penais (LEP), nº 7.210, de
11/7/1984. E esta última sofreu alteração pela Lei nº 10.732, em
1/12/2003. Vale ressaltar que as duas “grandes novidades” trazidas
pelo Código Penal de 1940 e fundamentadas na criminologia
positivista: o critério da “periculosidade” para a aplicação da pena
e o dispositivo da “medida de segurança” permanecem nesta
última alteração e ainda surge uma nova forma de punir, o “Regime
Disciplinar Diferenciado – RDD”,96 dispositivo disciplinar que
permite colocar o preso em regime de isolamento por até um ano.
Para que isto aconteça, basta que o preso apresente “alto risco
para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da
sociedade” ou que sobre ele “recaiam fundadas suspeitas de
envolvimento ou participação, em organizações criminosas,
quadrilha ou bando”.
Quanto ao Código de Processo Penal (CPP), continua em vigor
o de 3 de outubro de 1941 apesar de, nos últimos anos, ter sido
alterado por algumas leis. Existe um novo Código de Processo
Penal que, muito provavelmente, será votado e aprovado.
Faz-se importante lembrar que os dois códigos foram
tacitamente alterados com a entrada em vigor da Constituição
Federal de 1988, que instaurou uma ordem constitucional de
garantias mínimas em relação ao acusado, como a ampla defesa, o
contraditório97 e a presunção de inocência. Mas muitos artigos não
foram recepcionados por essa nova ordem. Tomemos de exemplo
o art. 59 do Código Penal:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do
crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Apesar de todas as alterações, a permanência deste artigo,


assim como de outros que não cabe aqui citar, sinaliza que o
Poder Judiciário ainda acredita na pena e a aplica com a finalidade
de “reprovar” e “prevenir” o crime por meio do conhecimento da
“personalidade” do agente (ou seria melhor dizer do
“delinquente”) e de seu grau de culpabilidade (ou seria mais
apropriado dizer “de periculosidade”). Portanto, nossos códigos
não só não foram reformulados para criar novos modos de gerir a
questão do descumprimento das leis e dos conflitos sociais, como
ainda promovem o aumento do rigor das formas punitivas por
meio de seus “remendos” legislativos.
Nossa preocupação também se estende às práticas “psi”, que
continuam sendo realizadas no campo jurídico a partir da
demanda de um Estado e de seu Poder Judiciário, que se pauta
nesse tipo de codificação/legislação e que, muitas vezes, reproduz
essa lógica que conjuga disciplina, controle, norma(lização) e
punição.
Esse aumento do Estado policial e penitenciário, ou seja, penal,
que os autores citados apontam só ocorre porque há um uso
abusivo da lei, o que é amplamente discutido por George Agamben
nos livros Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (2002) e
Estado de exceção (2004). Ao comentar esses escritos, Nascimento

(2008) mostra como, na modernidade, o Estado de exceção se


vincula ao direito público, de modo que permite que se suspenda,
em um só tempo, a lei e o direito. Na contemporaneidade, o Estado
de exceção se modula na forma de dispositivo de controle social
em grande escala.
O Estado de exceção, também conhecido como Estado de
sítio,98 originariamente era tomado como uma modalidade jurídica
e como uma medida excepcional passível de ser acionada em
situações de guerra ou em conflitos internos extremos, na qual,
por um certo tempo, era permitido ao chefe de uma nação
suspender os direitos individuais dos presos, o que implicava
tornar legais medidas de violência dirigidas a eles, que não mais se
configuravam como crime. Acontece que, curiosamente, na
contemporaneidade, o que era uma medida de exceção tem-se
tornado regra, transformando-se na face dominante das práticas
políticas ditas democráticas.
A título de exemplo, Nascimento (2008) parte das pontuações
de Agamben quando mostra como o ex-presidente americano,
George Bush, aproveitando-se deste artifício presente nas
constituições democráticas, promulga uma ordem militar que
autorizava a detenção dos cidadãos suspeitos de envolvimento em
atividades terroristas, o que anulava radicalmente o estatuto
jurídico desses indivíduos, que eram desnacionalizados. Tal
medida produziu seres juridicamente inomináveis e
inclassificáveis. A criação de Guantánamo é um exemplo pungente
disso. Contudo, tal dispositivo se estende a qualquer pessoa que
não seja considerada um cidadão americano, podendo assim ser
incriminado sem ter cometido crime algum.
Passa, também, a vigorar uma medida “contraterrorista” de
fichamento dos estrangeiros: qualquer um que entre nos Estados
Undios tem de deixar suas impressões digitais registradas. Com
isso, vemos surgir um novo modo de controle: a tatuagem
biopolítica. O Estado, deste modo, atua no âmbito da privacidade
do indivíduo, no seu corpo biológico, sob o pretexto de prevenção.
A norma, aqui, se transforma em mecanismo de regulação e gestão
da vida e de seus processos.
Entendo perfeitamente o que dizem esses autores, pois também
tive marcada em minha própria pele essa “tatuagem”, ao tentar
viajar a passeio para os Estados Unidos, alguns meses após os
acontecimentos do “11 de setembro”. Após longas horas de um
interrogatório em que tentaram me incriminar até por não falar
inglês fluentemente e de ter a mala e a vida vasculhadas, e passar
horas em uma sala cheia de bananas, fui “devolvida” ao meu país
por não ter sido considerada “adequada” para pisar em solo
americano. Além de ter tido meu passaporte “fichado” como
infratora de uma determinada cláusula de seu regulamento, que
não compreendi bem e que tornaria infrutífera qualquer tentativa
minha de entrar naquele país novamente.
Ao contextualizar essa problemática no Brasil, Nascimento
(2008), inspirada nas análises de Cecília Coimbra (2001) acerca da
violência urbana e dos discursos que a fomentam no Rio de
Janeiro, afirma que a naturalização de assassinatos que não têm
penalidade jurídica é também fomentada pela imagem de “estado
de guerra” que lhe serve de base. Assim, o Estado de exceção só
se configura como “mediador de conflitos internos” porque forja
uma imagem de guerra que abala a segurança pública. Imagem e
discurso que estão presentes no Brasil desde os anos 1960 e 1970,
momento em que vigorava a Doutrina da Segurança e em que o
“inimigo interno” era o opositor político que recebia a alcunha de
“subversivo”. Porém, é no início da década de 1990 que as falas
que exigem a lei, a ordem e a repressão ganham um novo fôlego
“num país democrático” que, curiosamente, produz a imagem da
“guerra civil” como parte do cotidiano dos fluminenses, e
encontra, agora, na figura do “traficante”, residente nas favelas, o
novo inimigo da sociedade. Assim:
A estrutura da exceção [...] aqui, no Rio de Janeiro, ressurge, de maneira sutil, na
relação entre pobreza=criminalidade=repressão da violência= naturalização de
assassinatos. Com isso, qualquer ação sobre esta parcela da população se
transforma em dado natural: ela começa a inexistir enquanto cidadã, de modo
que qualquer ação sobre ela não é mais delito, pois tem o aval dos próprios
poderes públicos que violam, através do dispositivo de exceção, as liberdades
fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição. (NASCIMENTO, 2008, p.
133)

Corroborando o que a autora afirma, lembramos novamente do


“Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)”.99 Cabe ressaltar que esta
prática iniciou-se por meio de resoluções administrativas no
sistema prisional do estado de São Paulo em 4/5/2001, portanto,
partiu do Poder Executivo, até ganhar o status de lei, pela
alteração da Lei de Execuções Penais (10.732) em 2003, ganhando,
assim, amplitude nacional. Mais uma vez recorremos à leitura feita
por Nascimento, dos escritos de Agamben, quando a autora diz
que, desde a Primeira Guerra Mundial, podemos observar uma
crescente “erosão dos poderes legislativos do Parlamento, que
acabam se limitando a ratificar disposições promulgadas pelo
Executivo sob a forma de decretos com força de Lei [...] isto é, a
abolição provisória da distinção entre os poderes legislativo,
executivo e judiciário” (NASCIMENTO, 2008, p. 132).
Esse é mais um dos pontos em que os saberes do direito, da
medicina e o saberes “psi” se acasalam, além de termos um déjà vu
da criminologia positivista e sua noção de periculosidade nas
formulações a respeito dos grupos com “potencial para delinquir”,
como os “terroristas” e “traficantes”. Todos sabem que
Guantánamo está repleta de psicólogos. Aqui no Rio de Janeiro
temos Gericinó, vulgarmente conhecido como “Bangu 1, 2, 3... 26”.
É isso mesmo, só lá são 26 unidades,100 por enquanto! Nessas
unidades de segurança máxima ocorre a prática, agora jurídica, do
RDD e nelas também temos psicólogos produzindo, em grande
parte do tempo, inúmeros exames criminológicos e participando
de Comissões Técnicas de Classificação (CTC) disciplinares,
conforme discutiremos no terceiro capítulo.
Foucault, quando escreveu Vigiar e punir, em 1975, afirmava
que o sucesso da prisão é tal que: “depois de um século e meio de
‘fracassos’, a prisão continua a existir, produzindo os mesmos
efeitos e que se têm os maiores escrúpulos em derrubá-la”. De
1975 até hoje passaram-se mais de 37 anos e a única diferença é
que a tecnologia de vigiar e punir se aprimora. Mas nos países
mais pobres, como o Brasil, a tecnologia de punição se revela por
meio da insalubridade e superlotação dos presídios, da violência e
tortura a que os detentos são submetidos, das armadilhas e da
morosidade da Justiça penal e da miséria econômica que assola a
população carcerária, que em sua maioria já era miserável antes
de lá estar, ou seria melhor dizer que lá entrou por ser miserável.
Infelizmente, nas instituições prisionais, o profissional que é
mais convocado para medir esse “grau de periculosidade”, na
atualidade, é o psicólogo. Segundo Wacquant (2003), essa
violência também se assenta em uma “concepção hierárquica e
paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras
e doutores, os ‘selvagens’ e os ‘cultos’, que tende a assimilar
marginais, trabalhadores e criminosos de modo que a manutenção
da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se
confundem”. No que diz respeito à realidade brasileira, Rauter
(2006) afirma que, apesar de o fenômeno ser mundial, aqui a
situação é potencializada em virtude de suas origens coloniais
geradoras de estratificação social e má distribuição de renda, em
que é fácil confundir vicissitudes de classe com as de raça.
Como vemos, a discussão sobre os “pactos” entre os saberes e
os “poderes” permanece atual, só que hoje nosso maior problema
não está mais na união entre o direito e a Igreja, como há alguns
séculos, mas nos efeitos do encontro entre o Poder Judiciário, as
políticas de segurança pública, o sistema penitenciário e os
saberes das ciências médicas e humanas. Ou seja, entre a lei, a
ordem e a norma, que se solidificam e sofisticam diariamente,
revestindo-se de tecnologias ditas “científicas” cada vez mais
bizarras101 que servem de álibi ao Judiciário, e nas quais se
misturam laudo com alvará de soltura; medida de segurança com
tratamento psiquiátrico; pena com tratamento; uso com tráfico de
substâncias ilícitas; leito com cela; inquérito com escuta; vítima
com testemunha de acusação; lei legislativa com a lei do simbólico
da teoria psicanalítica etc.
Também temos as técnicas de última geração, como a “autópsia
psíquica”102 ou ainda dispositivos de controle com tecnologia de
ponta, como a “coleira eletrônica”, instituída pela Lei nº 12.258, de
15 de junho de 2010, que altera a Lei de Execução Penal e o Código
Penal para “prever a possibilidade de utilização de equipamento
de vigilância indireta pelo condenado”,103 quando da saída
temporária no regime semiaberto e prisão domiciliar. A lei
determina, ainda, que a violação do dispositivo de controle
chamado “monitoração eletrônica” poderá levar à regressão do
regime e à revogação da autorização de saída temporária.
Entretanto, o que realmente importa é que mudamos de século,
a tecnologia de poder se modulou de disciplinar para os
mecanismos de segurança e controle. Mas o objetivo não mudou
tanto assim, a dimensão do governo e do controle das massas
populacionais miseráveis, que não têm mais condição de se
endividar, permanece, mas acrescenta-se a regulação e gestão da
vida e de seus processos de uma maneira generalizada.
Portanto, o que vemos na atualidade é uma conjugação
perversa entre dispositivos de normalização e de controle. As
grades e muros das prisões e campos de concentração não são
mais os únicos meios de excluir pela inclusão aqueles que
representam perigo para a sociedade. Agora podemos falar de
“campos de dispersão”, pois nem todos estão literalmente
encarcerados, mas todos estão devidamente endividados,
fichados, “encoleirados” e tatuados por inúmeros dispositivos do
biopoder, da biopolítica.
Pelo o que foi visto até agora, o “populismo punitivo” atravessa
os saberes “científicos”, os governos dos Estados, as alterações
legislativas e o campo jurídico. O Judiciário, por sua vez, por meio
de sua burocrática máquina, se deixa colonizar por estes saberes,
práticas e políticas assim como os coloniza por um processo de
“retroalimentação”. Nesse processo, torna-se difícil compreender
onde começa um e termina o outro. Talvez por isso, neste livro,
precisemos fazer um caminho tão longo, para podermos
compreender como foram montados todos esses “quebra-
cabeças”.
Proponho pensar que, assim como a psiquiatria não pode ser
separada da criação do asilo, que inventa novas formas de gestão
da loucura redefinindo-a como uma doença mental, a criminologia
e alguns instrumentos inventados e/ou utilizados pelos saberes
“psi”, como o exame criminológico e o depoimento sem dano, não
podem ser separados das instituições de aprisionamento e
controle, nem das novas formas de gestão das “ilegalidades”, da
sexualidade, da infância/adolescência e dos que não têm mais
sequer como se endividar, ou seja, das novas formas de gestão da
vida.
Foi visto anteriormente que as alianças feitas entre o direito, a
medicina, a criminologia, os saberes “psi” e as políticas
criminais104 objetivavam criar formas de gestão das ilegalidades e
de controle de uma determinada parcela da população. Isso nos
faz pensar “como” outros saberes “psi” (psicologia e psicanálise)
também serviram e ainda servem de álibi para as ações de um
“Estado penal”, de um “populismo punitivo” (produzido e
propagado pelas mídias) e dos mecanismos de regulação e gestão
da vida característicos do contemporâneo.
Neste subitem, foram lançadas algumas ideias de autores
estudiosos do campo das questões criminais, contudo não com o
objetivo de defender um novo tipo de criminologia, especialmente
por não acreditarmos que tenha sido essa a sua intenção. O que
pretendemos é problematizar o fenômeno da violência, as políticas
criminais, os processos de criminalização e a produção de
subjetividades no contemporâneo, de um modo a um só tempo
clínico-ético-estético-político, para que possamos nos perguntar,
tal como faz Batista (2009, p. 28): vamos participar da formulação
de uma política criminal desse Estado penal capitalista ou
estaremos “na trincheira da resistência à barbárie”?
Por isso, no próximo capítulo discutirei, mais detalhadamente,
as práticas dos profissionais “psi” no campo jurídico –
especialmente dos psicólogos –, assim como alguns de seus
efeitos. Mas, antes, gostaria de pensar um pouco sobre as
implicações de um determinado saber, o psicanalítico, após tudo o
que foi exposto até agora a respeito das tecnologias de poder e
seus dispositivos, assim como sua função no campo jurídico.
Em decorrência das forças em jogo na emergência da
criminologia, isto é, entre o poder jurídico e os saberes das
ciências humanas e médicas, observamos, num primeiro
momento, a importância que a psiquiatria teve para subsidiar sua
funcionalidade. Contudo, a psicanálise vem como uma importante
interlocutora, conferindo novos tons discursivos a esse
dispositivo de controle social, amplificando sua “utilidade” e suas
manobras. É nessa interlocução problemática que nos deteremos a
seguir.
2.5 - A psicanálise e sua relação com o sistema jurídico-
penal no século XX
Ao analisar algumas questões relativas ao entrelaçamento dos
saberes “psi” com o campo jurídico, busquei construir sentido
para algumas “falas” ou “escritos” (artigos científicos, laudos,
exames e avaliações) realizados pelos atores dessas áreas
(psicólogos, psiquiatras, psicanalistas e juristas) e colhidos nesta
pesquisa. No que diz respeito especificamente à psicanálise, esse
saber aparece com frequência nos seus discursos e essa aparição
geralmente se dá por meio de uma visão teórico-prática baseada
nos apontamentos de uma determinada leitura de Sigmund Freud
ou de derivações da psicanálise pós-freudiana, em particular, a de
Jacques Lacan. Portanto, consideramos, neste trabalho, que o
discurso psicanalítico também faz parte do sistema penal
moderno.
A psicanálise emerge nos discursos que analisamos como uma
referência teórica importante, mas “quase” impossível de ser
realizada como prática, especialmente nas prisões. E eu digo
“quase”, porque muitos desses profissionais especulam que
poderiam, caso tivessem uma melhor infraestrutura, oferecer esse
tipo de atendimento aos presos. Encontrei pelo menos dois
profissionais que afirmaram fazer tratamento psicanalítico com
presos, um deles atuava em uma unidade prisional comum e o
outro em um hospital de custódia.
No que tange à fase processual, que se passa nos Tribunais de
Justiça e suas Varas, também verifiquei a tentativa de utilizar as
ferramentas psicanalíticas no atendimento a crianças e
adolescentes, tanto em nível institucional105 como de forma isolada
por psicólogos.
Esta pesquisa não se propôs a fazer uma investigação
abrangente dos escritos de Freud, muito menos de Lacan, porém,
foram consultados alguns textos de Freud e Sandór Ferenczi, com
o objetivo de colher alguns dados a respeito do posicionamento
desses autores no que diz respeito ao uso da psicanálise no
sistema judiciário.
Em minha leitura dos escritos de Freud sobre essa temática,
deparei-me com um pequeno texto intitulado: “A psicanálise e a
determinação dos fatos nos processos jurídicos”, de 1906, que é
fruto de uma conferência ministrada para juristas em Viena, que
queriam discutir o uso de testes psicológicos para comprovar se a
pessoa submetida havia ou não cometido o crime do qual era
acusada. O teste em questão era o de “associação de palavras”, de
Jung.
Freud constrói sua crítica no uso deste teste nessas
circunstâncias, apoiado nas diferenças existentes entre o
“neurótico” e o “criminoso”. Entre elas, o fato de que no caso do
neurótico a culpa é inconsciente e refere-se a um crime imaginário,
no que tange ao criminoso, o esforço consciente é o de negar algo
feito na realidade. Lembra ainda que o psicanalista conta com o
desejo do paciente como aliado no processo de cura, pois, como
este buscou tratamento, colabora com o analista e luta contra
suas resistências inconscientes que o impedem de lembrar alguns
acontecimentos; por outro lado, os operadores do direito buscam
uma verdade que pode estar sendo omitida conscientemente pelo
sujeito acusado de um crime, pois, neste último caso, resiste-se a
uma lembrança que só interessa aos investigadores jurídicos.
Ao discutir sobre as declarações feitas por testemunhas, Freud
(1906) diz: “estamos cada vez mais convictos da falta de
fidedignidade das declarações feitas por testemunhas, sobre as
quais, entretanto, se apóiam tantas condenações nos tribunais”.
Essa afirmação nos remete diretamente ao procedimento
“depoimento sem dano”, que será discutido posteriormente, e que
se utiliza de conceitos dos saberes “psi”, especialmente, a
psiquiatria e a psicanálise, como parte de sua fundamentação
teórica.
Para terminar essa breve análise deste texto de Freud, trago a
preocupação do autor, que, no final de sua palestra, solicita que
caso os juristas insistam em utilizar instrumentos psicológicos
experimentais nas investigações criminais, que isso se dê “[...]
durante um certo número de anos, em cada processo criminal real,
impedindo que os seus resultados venham influenciar o veredicto
do tribunal.”
Em outro texto acerca do uso da psicanálise em processos
judiciais, escrito 24 anos depois (1930-1931) do primeiro e
intitulado “O parecer do perito no caso Halsmann”, Freud discute
o parecer da Faculdade de Medicina de Innsbruck sobre o caso de
Philipp Halsmann, acusado de matar o próprio pai. Este
documento, segundo o autor, faz um uso ingênuo da psicanálise
para explicar, a posteriori, o fenômeno do crime.
A despeito de não concordar com a universalização feita por
Freud (1930-1931) e seus seguidores em relação ao complexo de
Édipo,106 conforme é possível verificar em um trecho do texto: “[...]
o complexo de Édipo está presente na infância em todos os seres
humanos [...]”, destacamos a importância de suas colocações a
respeito desse caso, quando, por exemplo, sinaliza que, na época,
não foi objetivamente demonstrado que o réu assassinara seu pai
e, caso tivesse sido, haveria sim
[...] alguns fundamentos para introduzir o complexo de Édipo, a fim de fornecer
um motivo para um ato de outro modo inexplicável. Visto que nenhuma prova
desse tipo foi aduzida, a menção do complexo de Édipo possui um efeito
desorientador; é, na melhor das hipóteses, ociosa.
Verifica-se que, apesar de sua grande aposta no complexo de
Édipo, o autor não recomenda que esse complexo sirva como
produtor de provas criminais. Segundo o autor: “Precisamente por
estar sempre presente, o complexo de Édipo não é apropriado
para fornecer uma decisão sobre a questão da culpa” (FREUD
1930-1931).
Desse modo, após a leitura dos textos de Freud, constata-se a
preocupação do autor com a utilização indiscriminada da técnica
psicanalítica no campo jurídico; afinal, as técnicas de um saber
não podem ser transpostas para outro literalmente, ignorando-se
as diferenças envolvidas no que diz respeito à motivação daquele
que é submetido à técnica e daquele que a aplica. Sua justificativa
se fundamenta, em particular, nas diferenças existentes entre o
“neurótico” e o “criminoso”. Considero importante ressaltar as tais
diferenças, já que são afirmações interessantes, caso sejam lidas
por um viés não só individual (que diga respeito ao
comportamento do sujeito, seja ele neurótico ou criminoso, ou
ainda, do analista ou jurista), mas sim coletivo, político e ético,
pois acredito que aquilo que este autor quis marcar em seu
discurso foi o cuidado que devemos ter ao utilizarmos um
dispositivo clínico de escuta, acolhimento e elaboração de um
sujeito em sofrimento psíquico como um dispositivo policial de
inquérito, acusação e penalização de um possível infrator das leis.
Desse modo, a produção de verdade (provas) ao longo do
processo penal não pode ficar a cargo da psicanálise, segundo o
autor.
Supostamente apoiado na teoria freudiana, Sándor Ferenczi
escreve três artigos: “Importância da Psicanálise na Justiça e na
Sociedade” (1913), “Psicanálise e Criminologia” (entre 1919 e 1926)
e outro do mesmo título, em 1928.
No primeiro deles, originalmente escrito para uma conferência
de juristas em Budapeste, em 1913, a psicanálise aparece como um
“progresso” da psicologia e, a despeito de algumas colocações
políticas interessantes, como: “não se deve temer [...] que a
redução da autoridade parental destrua a ordem social”, seu tom é
bastante normativo, desenvolvimentista, pedagógico e apoiado no
mito edípico. Segundo o autor:
[...] não posso resistir ao desejo de evocar uma possibilidade talvez um pouco
utópica, de momento: refiro-me ao tratamento psicanalítico de criminosos. [...] O
método atual, repressivo, que consiste em privar de liberdade, tem tão poucas
chances de culminar num resultado duradouro, quanto a Sugestão no
tratamento das neuroses. Só a psicanálise pode, ao permitir o acesso em
profundidade à personalidade e um melhor conhecimento de si mesmo,
contrabalançar a influência exercida pelo meio desde a infância e permitir o
controle dos instintos, que se exprimem até então inconscientemente ou de um
modo deformado; em outras palavras, só ela pode realizar uma reeducação
radical. [...] Seja como for, a análise quantitativa e qualitativa da respectiva
influência da constituição e do meio fará aparecer com maior nitidez os
verdadeiros fatores determinantes dos atos criminosos. Em outras palavras: o
determinismo penal aplicar-se-á de modo muito mais convincente aos casos
particulares se se apoiar no método psicanalítico para elucidar os fatores
determinantes dos processos psíquicos. (FERENCZI, 1992a, v. 2, p. 8)

O segundo texto de Ferenczi (1993, v. 3, p. 69-71), intitulado


“Psicanálise e Criminologia” e escrito entre 1919 e 1926, é bem
curto, e, apesar de ressaltar o “sadismo das instâncias
repressivas” e da “opinião pública”, o autor sugere, a partir de sua
experiência clínica com neuróticos com “tendências ou impulsos
criminosos”, a elaboração de uma “criminologia psicanalítica”, ou
que se coloque “a psicanálise a serviço da psicologia criminosa
[...] [para] criar a crimino-psicanálise”.
Ao contrário de Freud, que se preocupou em diferenciar o
neurótico do criminoso, Ferenczi diz que o crime é um subproduto
das doenças neuróticas. Para ele, os mais poderosos
determinantes do crime são as tendências da vida psíquica
inconsciente e suas origens. O autor termina seu texto dizendo
que, sob seu ponto de vista, “um psicanalista qualificado iria ver
nas prisões criminosos legalmente condenados que teriam
confessado seus delitos, e submetê-los-ia a uma psicanálise
metódica”. O resultado disso no nível teórico, segundo ele, seria a
produção de material científico sólido que permitiria “eliminar as
lacunas profundas do determinismo criminoso” e, no plano
prático, permitiria a criação de uma “profilaxia pedagógica do
crime” para a “renovação psíquica dos criminosos e sua
adaptação à ordem social” (FERENCZI, 1993, v. 3, p. 71).
Já no artigo de 1928, também intitulado “Psicanálise e
Criminologia”,107 Ferenczi (1992b) continua defendendo a criação
de uma “psicocriminologia” que permitiria a cura (por meio da
sublimação) dos criminosos já condenados, pois levaria em
consideração os “movimentos psíquicos inconscientes”, afinal,
[...] não é o crime em si, [...] mas presumivelmente a acentuação demasiado
forte de tal ou qual disposição pulsional o que forma a base constitucional; esta,
em seguida, torna mais difícil a adaptação à ordem da sociedade; leva ao conflito
com o meio social, que quer atenuar ou impedir as manifestações das pulsões, e
culmina mais tarde na criminalidade. (FERENCZI, 1992b, v. 4, p. 193-205)

Nesse último texto, Ferenczi ainda apresenta algumas


especulações a respeito da relação entre a neurose e o crime, este
último poderia ser um “tipo particular” ou uma forma “mais
perigosa” das neuroses já conhecidas. O autor também faz
comparações entre a perversão e as toxomanias com as ações
ilícitas. Entretanto, ele lembra que nesses casos só o tratamento
psicanalítico não basta, pois são necessárias “medidas
educativas”, como “a detenção por medida de segurança” e a
“vigilância” dessas pessoas que estariam em “criminoterapia”.
Todavia, destaco que o autor tem, nesse texto, uma
preocupação que, infelizmente, nem todos os nossos juristas têm:
a de que o método psicanalítico não deva ser aplicado aos casos
sub judice, devido ao princípio constitucional da ampla defesa e do

contraditório. De acordo com o autor: “não se pode, durante a


instrução ou os debates, tomar em consideração um método que
apoia suas conclusões nas declarações do acusado, acreditando
em sua veracidade”.
Infelizmente, Ferenczi não teve em seus escritos a mesma
prudência de Freud quanto ao seu desejo em relação ao uso da
psicanálise no campo jurídico-penal. Contudo, é importante
ressaltar que a psicanálise como saber marca sua singularidade
em relação à criminologia positivista e ao próprio direito penal,
visto que o conceito de inconsciente embaralha a questão da
responsabilidade pelo ato, apesar de continuar procurando as
causas da conduta delituosa em algum lugar.
A psicanálise opera um movimento de deslocamento
importante também em relação à psiquiatria, já que emerge como
uma linha crítica ao dispositivo psiquiátrico ao querer dar voz à
loucura. Entretanto, ela se perde quando simultaneamente se
constitui como um dispositivo de normatização que quer
descobrir a verdade e a cura da loucura, assim como o fez em
relação à sexualidade, quando dá voz a ela, para posteriormente
tentar normatizá-la por meio do complexo de Édipo.
Ao discutir a influência da “psicanálise criminal”,
especificamente no Brasil das décadas de 1920 e 1930, Rauter
(2003, p. 50-51) afirma que, entre os discursos que pregam a
“anormalidade do criminoso”, é este que fará deixar de existir a
diferença entre homem honesto-normal e homem criminoso-
anormal, afinal, todos têm em comum: “um manancial de paixões
desordenadas” que, dependendo do nível de desordem, se torna
incompatível com a convivência social.
Ao contrário da psiquiatria, que em sua produção de categorias
nosológicas consegue transformar a oposição responsabilidade x
irresponsabilidade em “graus de responsabilização” que
orientariam o direito penal na escolha da pena, a psicanálise irá
articular a ideia de irresponsabilidade penal com a de recuperação
do criminoso. De alguma forma ela reedita o pensamento
positivista de Lombroso e Ferri. Apesar de não propor a exclusão e
a vigilância como eles e de não se prender às características
biológicas e hereditárias, ela se propõe à recuperação pelo
tratamento terapêutico, já que as determinações do crime estão
na esfera comportamental e inconsciente. Aqui a razão
(responsabilidade) e seu comprometimento não são o que mais
importa, pois a questão se desloca para o afeto e para como o
indivíduo é capaz de controlá-lo de acordo com sua história de
vida.
Em sua pesquisa Rauter analisa documentos produzidos no
nosso país do período que antecede a criação do Código Penal
Brasileiro de 1940. Curiosamente os autores desses escritos hoje
emprestam seus nomes para as unidades prisionais: “Heitor
Carrilho”, “Nelson Hungria”, “Moniz Sodré” etc. Segundo a autora,
a psicanálise criminal que chega aqui é a mesma encontrada nos
textos de Freud e Ferenczi, centrada no complexo de Édipo,
fazendo aproximações e diferenciações entre neuróticos e
criminosos, mostrando a necessidade da lei para coibir o caos
instintivo, apontando o desejo inconsciente do criminoso pela
pena (o que a tornaria ineficaz, assinalando a urgência de uma
transformação nas formas de punir).
Nos textos brasileiros estudados por Rauter, encontramos
muita semelhança com o que vimos anteriormente na análise dos
textos de Ferenczi; entre os ideais psicanalíticos “importados”
tínhamos a técnica de regeneração por meio de uma educação dos
afetos e instintos e de reconstrução do respeito às leis. Por isso, a
parceria com a pedagogia se fez inevitável nessa produção da
“anormalidade do criminoso” e na proposta de recuperação dos
“delinquentes”. Na impossibilidade de se reformar o sistema penal,
reformava-se o superego!
Na psicanálise criminal, o crime é fruto de uma canalização
equivocada dos impulsos sexuais, por isso nossos teóricos se
preocupavam em como encaminhá-los adequadamente. E uma das
estratégias de recuperação encontradas foi a de que as prisões
não deveriam proibir a vida sexual, apenas controlá-la.
Esses teóricos também se preocupavam, segundo Rauter
(2003), com a pobreza da população, pois ela levaria a um desvio
desses impulsos: a promiscuidade, a desagregação familiar, a
infância abandonada. Logo, todas essas “ilegalidades” passarão a
ganhar atenção especial por parte do Estado e de suas ações
pedagógicas. Ao livrar-se do determinismo biológico que explicava
o crime, a criminologia psicanalítica enfatiza as causas “sociais”,
especialmente as familiares, para explicá-lo. Portanto, paralela à
figura do criminoso anormal corre também uma visão do social
como fonte de anormalidade e de crime.
A psicanálise criminal, apesar de ser aquela que era mais capaz
de instaurar formas de controle disciplinares, não encontrou
muitos adeptos entre os juristas brasileiros da década de 1930
nem após a implantação do Código Penal de 1940. A anormalidade
do criminoso continuaria escolhendo a via do discurso médico-
psiquiátrico para se fundamentar, pois este, diferentemente da
psicanálise, se articulava bem melhor com as antigas formas
repressivas que, após 1940, ganharam uma conotação terapêutica.
Afinal, como vimos anteriormente, a atenção dada pelo nosso
Estado nunca foi de fato articulada com uma reforma social, mas
apenas com ações punitivas (RAUTER, 2003, p. 56).
Ao analisarmos a história dos discursos da “psicanálise
criminal”, podemos dizer que ela consegue transformar a
transgressão à lei em um sintoma de anormalidade,
desconsiderando todo seu caráter político. Hoje em dia, ainda
vemos a psicanálise servir como base teórica e técnica nos
discursos e práticas dos profissionais que atuam no campo
jurídico, e um dos problemas com que nos deparamos, que
consideramos um efeito produzido a partir do período analisado, é
o da aproximação entre o termo “lei” referente ao direito e “lei”
concernente à instância psíquica superego (pai) ou, à lei
simbólica. Esta hibridização de termos é realizada tanto pelos
operadores do direito quanto pelos próprios psicólogos e/ou
psicanalistas. Penso que esta questão é muito naturalizada e que
temos de estranhar essa “aproximação” e nos perguntarmos até
que ponto a psicanálise não funciona, em determinadas situações,
como mais um dispositivo de controle, típico do biopoder.
2.6 - A psicanálise e sua relação com o campo jurídico no
século XXI
Ao pensar de que forma o discurso da psicanálise pode
contribuir com os processos de captura de subjetividades, um dos
mecanismos centrais de funcionamento do capitalismo
globalizado, Regina Neri (2009) lembra que a psicanálise, ao
oferecer uma crítica à psiquiatria e à criminologia positivista,
contribuiu para que se problematizasse a colonização do direito
pela psiquiatria. Entretanto, a autora pontua que a psicanálise se
beneficiaria, caso recebesse ressonâncias da criminologia crítica a
respeito da questão criminal e da violência nos dias atuais, pois,
entre tantas coisas, este pensamento aponta para um crescimento
do poder punitivo que investe no sistema penal como instrumento
de controle social ou, como diria Löic Wacquant (2003), na “gestão
carcerária da pobreza”.
A autora problematiza o discurso psicanalítico acerca da “crise
do simbólico” na contemporaneidade, e se pergunta se o que
vivemos é um “enfraquecimento da lei” ou “um aumento do poder
punitivo”, pois, em sua opinião, são frequentes as interpretações
de psicanalistas que apontam para a crise no simbólico e o
enfraquecimento da lei como causas do aumento da violência e da
criminalidade. Neri (2009) também demonstra uma preocupação –
compartilhada neste trabalho – com os efeitos políticos de tais
discursos que só alimentam o pedido por mais limites e ordem.
A despeito das contribuições freudianas sobre a articulação
entre subjetividade e cultura, o pensamento de Foucault (1990,
2005a) aponta os limites da teoria psicanalítica sobre os processos
de subjetivação e de constituição de laços sociais. Ao afirmar que
as formas de subjetivação são produzidas historicamente, o
filósofo diz que a psicanálise tem uma concepção de sujeito que é
determinada por uma ordem simbólica a-histórica e que se refere a
mitos universais que seriam os fundadores do sujeito e da cultura.
Foucault sinaliza ainda que, embora a psicanálise ponha em
questão “a posição absoluta do sujeito”, no domínio da teoria do
conhecimento ou no da epistemologia parece “que a teoria do
sujeito permaneceu ainda muito filosófica, muito cartesiana e
kantiana” (FOUCAULT, 2005a, p. 10).
Penso que, apesar de a psicanálise ter rompido com a ideia do
sujeito da razão, a criação do “sujeito do inconsciente” (depósito
do que não se encaixa nessa razão) não é nada mais que uma
mudança de endereço do desejo desse sujeito da razão.
Questiono também se a psicanálise, com a invenção de uma
teoria e uma prática sobre o corpo da mulher histérica, não
estabelece uma linha de continuidade entre corpo e verdade. Pois,
se inicialmente ela se diferencia do saber psiquiátrico com sua
força política e inventiva e com a ideia de inconsciente,
posteriormente a ideia de estrutura captura esses corpos tão
singulares.
Em consonância com a crítica foucaultiana, Neri (2009, p. 114)
indica que: “Em Freud haveria uma pré-história fictícia do pai da
horda primitiva, reinterpretada por Lacan em termos de uma
estrutura universal fundadora da cultura que se inaugura pela
articulação primordial do desejo à interdição da lei paterna”.
Esta psicanalista também traz a importância do conceito de
pulsão e sua distinção em relação à noção de instinto,
contrapondo-se à criminologia positivista. Contudo, nos lembra
que, apesar de a tradição psicanalítica empreender uma crítica
sistemática ao paradigma evolucionista do discurso positivista, à
noção de degeneração e à ideia de um instinto criminoso, a
criminalidade foi inserida no campo da perversão e da economia
sexual. As determinações do crime se deslocaram para a esfera do
desvio de comportamento, cujas origens estariam na história
familiar do sujeito. “As condutas criminosas podem, assim, ser
esclarecidas à luz da interpretação edípica, tornando
compreensível o que seria incompreensível para o direito, ou seja,
a estrutura mórbida do crime, na qual o indivíduo é impelido por
uma força à qual ele não pode resistir” (NERI, 2009, p. 116-117).
Ao sinalizar como a experiência psicanalítica ressalta a
importância dessa ordem simbólica nos efeitos patogênicos da
vida e conduta dos indivíduos, Neri nos diz:
A teoria da lei e do simbólico na psicanálise está referida à concepção de uma lei
universal, a interdição do incesto, que inaugura a cultura e funda a
subjetividade, onde a criminalidade é situada no registro de um desvio moral,
decorrente de uma falha na estruturação psíquica do indivíduo. Como afirma
Lacan, não se pode apreender a realidade concreta do crime sem o referir a um
simbolismo que ordena e estrutura a sociedade. (NERI, 2009, p. 116)

No texto “O mal-estar da Civilização”, Freud assinala a tensão


entre o severo superego e o ego que lhe está submetido, tensão
esta que é revelada pela consciência de culpabilidade, que se
manifesta como desejo de punição e é só por esse meio que a
cultura pode dominar o desejo de agressão do indivíduo. E, no
esteio do pensamento freudiano, Lacan vai dizer que o móvel
inconsciente do crime “se reporta ao desejo incestuoso do
parricídio, com a culpa que ele acarreta em função da
transgressão da lei interditora” (Neri, 2009, p. 117).
A partir do que já foi dito até o presente momento a respeito da
psicanálise, afirma-se, com Neri, que este saber confere uma
importância muito grande ao romance familiar do sujeito na sua
“estruturação” como ser desejante. A despeito das colocações de
Freud já analisadas anteriormente no que tange à inadequação do
uso do relato consciente do infrator como prova de condenação
em virtude de sua distinção entre a realidade dos fatos e a
realidade psíquica, a psicanálise não abriu mão de buscar as
causas inconscientes do ato criminoso, comumente referindo-as
ao mito edípico (ao parricídio).
Essa positivação da lei interditora leva a um lugar perigoso,
aquele em que se acredita que a punição do infrator leva à sua
recuperação, “pela interiorização da lei e pelo reconhecimento da
responsabilidade sobre seu ato.” (NERI, 2010, p. 162). Nesse ponto,
vemos os projetos do sistema jurídico, da psiquiatria e da
psicanálise se encontrarem, conforme vimos no item a respeito da
“criminologia psicanalítica” nos anos 1920-1930, e vemos esse
processo se atualizar no contemporâneo, segundo Neri (2009, p.
119), com a “equivalência lei jurídica/lei do pai”.
Esta equivalência é bem nítida nas discussões e laudos
emitidos pelos psicólogos e/ou psicanalistas acerca das
deficiências na interiorização do “nome do pai” por parte dos
jovens “delinquentes” nascidos em “famílias desestruturadas”,108
ou seja, em famílias pobres e/ou que simplesmente não se
encaixam no padrão edípico-burguês. Conforme veremos ainda
neste item, esses discursos têm, por vezes, um tom positivista e,
frequentemente, periculosista, racista, moralista, preconceituoso e
punitivo. Entre seus efeitos, temos a imposição de duras sanções
aos jovens, sobretudo aos pobres e/ou afrodescendentes. Para
Neri (2009), esses discursos têm contribuído para agravar o
aumento da violência.
Segundo Neri (2010, p. 164), “a concepção de lei na teoria
freudiana, está estritamente referida à hipótese repressiva do
poder, ao modelo jurídico da soberania e a tese hobbesiana do
contrato social”.
Ao discutir o posicionamento de Lacan em relação a essa
questão, Neri (2009, p. 119)109 afirma que o psicanalista faz um
elogio da família patriarcal e lamenta o declínio social do “imago
paterno” diante do papel da mãe, que passa a ganhar mais
importância. Logo, o que assegura a “conexão entre a
normatividade libidinal e a normatividade cultural, ligada desde o
início da humanidade ao imago do pai” é, exatamente, a lei do pai,
que barra a relação dual com a mãe por meio da interdição do
incesto e possibilita a triangulação da relação, além de introduzir o
sujeito no campo social. Quando esse processo não se dá a
contento, ou seja, quando a fragilidade do simbólico paterno deixa
“faltar” um princípio que possa mediar os conflitos de rivalidade
na família e na sociedade, ocorrem “as incidências
psicopatológicas no que tange à loucura e ao crime”. O “mal-estar
na modernidade” para este autor seria, portanto, uma
consequência do abalo da figura do pai (crise no simbólico) na
nova configuração familiar moderna (NERI, 2009, 2010).
Lacan jaz, todos sabem, mas suas teorias continuam vivas e
influenciando uma certa leitura da psicanálise na atualidade.
Entretanto, lamentavelmente, essa história não se encerra nos
limites do setting terapêutico burguês, ela chega aos corredores
dos fóruns do sistema judiciário, dos sistemas socioeducativo e
penitenciário, além de contagiar as teorias do direito. Um dos
exemplos mais expressivos disso é o trabalho do francês Pierre
Legendre,110 que, de acordo com Neri (2009), se apresenta como
um desdobramento do pensamento de Lacan e emerge na
perspectiva de
[...] fortalecimento do Nome do Pai na cultura em sua função de referência
normalizadora dos vínculos sociais, pelo viés de uma assimilação da lei jurídica
à lei do pai. Com esse propósito, o autor articula estreitamente “o sujeito do
desejo” ao “sujeito do direito” a partir da equivalência que propõe entre a lei
primordial da psicanálise e a lei jurídica, consideradas como “montagens
normativas de referência”, instituintes do sujeito e da vida social, que só podem
ser operantes sob a “forma dogmática” e na condição de um “absoluto
fundador”, qual seja, “a de um discurso que diz sempre a verdade”. (NERI, 2009,
p. 119-120)

Pode-se observar, a partir dos comentários acerca das ideias de


Legendre, que elas vão num sentido muito diferente do
pensamento foucaultiano – que propõe uma historicização das
práticas jurídicas, clínicas e dos modos de subjetivação no
Ocidente –, pois na sua perspectiva “não há vertente de
subjetividade que não mantenha uma ligação essencial com a
vertente jurídica e a própria ordem jurídica, através de montagens
fictícias em toda e qualquer cultura, encontra-se referida a uma
‘cena não jurídica do direito’” (NERI, 2009, p. 120).
Segundo a lógica de Legendre:
O direito origina-se de uma cena não jurídica que remete à cena freudiana do
assassinato do pai da horda primitiva, uma cena fundadora da humanidade,
colocando em discurso um interdito: sob a figura do pai morto está presente a
referência que nos funda como sujeitos do direito. O mito freudiano permite dar
conta do que Legendre designa de verdade da relação à lei. Desse modo, a cena
do tribunal, onde o juiz, intérprete da lei, faz valer a função do limite, supõe
necessariamente para a eficiência subjetiva das manobras judiciárias, a outra
cena, a do sujeito do Inconsciente. No centro das construções ficcionais
encontra-se a figura do pai, pivô do processo de humanização. A questão do pai
é uma questão de que nenhum sistema jurídico consegue prescindir não
somente para produzir as regras de filiação propriamente ditas em direito civil
como também para que o surgimento de uma Referência Absoluta, logicamente
necessária, seja politicamente pensável. (NERI, 2009, p. 120-121)

No Brasil também temos alguns psicanalistas com discursos


que mantêm características similares as que apontamos acima e
que recorrem a Freud, Lacan e, muitas vezes, a Legendre para
fundamentar suas ideias.
Será comentada, abaixo, uma observação participante, que
realizei em um congresso e um artigo que foi escrito pelo
organizador desse evento. Todos os psicanalistas a que nos
referiremos pertencem à mesma escola e, de todas as instituições
psicanalíticas ou falas psicanalíticas que escutamos, ao longo
desta pesquisa, as desse lugar foram as que concentraram, de
forma mais explícita, as questões que estamos problematizando
aqui.
Clínica “da” violência
Um dos congressos111 em que realizei observação-participante
me chamou muito a atenção, pois nele estavam contidas todas as
questões que buscamos problematizar até este momento do
trabalho e, na verdade, ele próprio funcionou, exatamente,
segundo os princípios que seus organizadores defendiam,
especialmente em relação à psicanálise em sua versão “patriarcal”.
Por isso, achei por bem fazer uma análise geral do evento.
Comecemos pelo nome do evento, que denunciava a criação de
mais um especialismo “psi”: “Clínica da violência: Infância e
Adolescência de Risco”. Havia muitas coisas em comum na fala
dos psicanalistas presentes, provavelmente pelo fato de que todos
eram filiados à mesma instituição.
Uma fala se repetia insistentemente, a saber, o fato de a
instituição à qual eles pertenciam ter desenvolvido uma pesquisa
intitulada: “Função Paterna” – conexão da psicanálise com o
campo do direito, realizada por oito anos, na 1ª Vara de infância,
Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, com crianças que estavam
em processo de adoção. O que por si só é um excelente analisador,
não carecendo de maiores explicações.
O uso frequente dos termos “bandido”, “menor” e “menino de
rua” chamou a atenção, sem contar que nas falas da maior parte
dos palestrantes aparecia: o clamor por limites às crianças e
adolescentes, por leis mais severas, pelo fim da impunidade aos
criminosos e por “famílias estruturadas”.
Um fato que não poderia passar despercebido foi a escolha dos
convidados de honra do evento: três jornalistas do jornal O Globo
– que fizeram uma pesquisa intitulada Di Menor –; um jornalista da
Revista Veja – que fez severas críticas a Foucault em uma
reportagem – e o ex-capitão do Bope que ficou famoso por ter
coescrito um livro que virou filme. Outro fator importante foi a
disposição dos “estrangeiros”, ou seja, dos convidados “não
psicanalistas”, a qual era feita da seguinte forma: montavam mesas
intituladas “Fórum Clínico”,112 nas quais um membro da escola
mediava e outros dois convidados “não psicanalistas” falavam. Os
três jornalistas tiveram uma mesa só para eles e o ex-policial ficou
com o jornalista da Veja.
A primeira impressão que esse dispositivo do “Fórum Clínico”
transmitia é que eles faziam questão de separar os discursos deles
dos de outros profissionais. Parecia que os profissionais de outras
áreas eram considerados “representantes” de uma sociedade com
pessoas violentas que ameaçavam o pacto social e que os
psicanalistas eram uma sociedade à parte e que estavam lá para
“analisar” e “interpretar” essa sociedade por intermédio desses
profissionais.
No geral, os psicanalistas não faziam interlocuções com as falas
dos palestrantes convidados, a socióloga e os dois advogados
questionaram um pouco o status quo. Os jornalistas tiveram uma
estranha acolhida por parte dos membros da escola, assim como o
ex-capitão, mas esse acolhimento guardou sua particularidade,
que era a de que suas falas não foram colocadas no lugar de
produtores de saber/conceitos ou teorias, seus discursos não
eram incorporados ao discurso lacaniano, a não ser para dizer
coisas do tipo: “viu como Lacan estava certo”, “a psicanálise já
anunciava isso há muito tempo”. As perguntas da plateia eram
raras e os organizadores esvaziavam toda e qualquer tentativa de
intervenção ou problematização dos demais participantes que não
convergisse para as ideias dos convidados “de honra”.
Outra curiosidade no funcionamento do “Fórum Clínico” era
que, ao apresentar os convidados “não psicanalistas”, o
psicanalista mediador sempre interpretava suas vidas, por
exemplo: quando o ex-capitão foi apresentado, em vez de se
começar a apresentação e discussão em cima do livro/filme, a
apresentadora/psicanalista começou fazendo uma interpretação
da epígrafe do livro coescrito por ele utilizando a “teoria freudiana
do luto”, além de ter feito o mesmo com a trajetória existencial do
ex-militar, pontuando suas transformações. Segundo ela: “Ele sai
da ação e vai para a criação”, portanto, “ele cumpre seu processo
de luto”. Depois dessa “sessão analítica”, o “analisando” sorriu,
visivelmente constrangido, e disse que não havia sido ele que
escrevera aquilo, que isso “era coisa do outro coautor”, o
sociólogo, e deu a entender que nada tinha a ver com aquilo que
ela havia dito a respeito do seu próprio luto. O que fica para mim
deste momento é a impressão de que os psicanalistas que
organizaram o evento estavam ali para colocarem seus convidados
(e seus discursos) no divã e afirmarem seu suposto saber sobre
eles e sobre a estranha sociedade à qual aqueles estrangeiros
pertenciam.
Entre os discursos esvaziados, estava o de um jurista carioca
que criticou o “ranço liberal-punitivo” presente na construção do
ECA. Ele também relatou as péssimas condições em que as
crianças e adolescentes estão atualmente, sobretudo as que estão
em unidades do sistema socioeducativo. Logo após sua fala, o
moderador da mesa disse: “O ECA é um dos livros mais bem
escritos da história, se 50% dele fosse executado, a situação não
estaria no ponto que chegou”! O moderador acrescentou ainda
outros argumentos que desqualificavam a fala do jurista.
Uma das psicanalistas da escola em questão, ao narrar sua
interlocução com o campo jurídico por meio de uma instituição
que acolhia crianças e adolescentes em conflito com a lei,
defendeu a importância do analista no resgate da dignidade
humana desse sujeito, pois só este profissional poderia “abrir uma
porta para que esse ‘sujeito da margem’ pudesse se questionar a
respeito de sua própria violência e de se responsabilizar”.
Acrescentou ainda que as situações de extrema violência
denunciam “uma certa banalização da violência” e “uma certa
falência, fragilidade dessa lei simbólica, desse corpo simbólico que
nos une em torno de uma civilização, do laço social, em torno de
uma nação”.113
Em todas as mesas do congresso o assassinato de uma
criança114 foi amplamente comentado. O psicanalista115 que
organizou o evento escreveu um artigo sobre esse crime, no qual
faz várias afirmações que reproduziremos, correndo o risco de
cansar o leitor, mas porque consideramos imperdíveis, por
concentrarem uma série de ideias/conceitos que estavam
presentes em todo o evento, que são justamente aqueles que
estamos problematizando neste trabalho e que denunciam os
efeitos políticos desse tipo de discurso.
O autor inicia seu texto acentuando a suposta fragilidade das
leis em nosso país: “[...] estes jovens infelizes conseguiram
demonstrar, com esta montagem obscena e cruel, a fragilidade das
leis que têm regido as instituições brasileiras”. E, na sequência,
retoma a tese hobbesiana do contrato social iluminista: “Este
acontecimento em si rompeu com todos os liames e pactos sociais
estabelecidos pelas leis dos humanos, as leis que regem os
padrões de uma vida em sociedade, entre semelhantes”.
A leitura desse psicanalista a respeito do mito edípico e da
“equivalência lei jurídica/lei do pai” como fundamental para
orientar a “essência agressiva” do homem mostra os efeitos
nefastos que uma aliança da psicanálise com a máquina estatal
produz; afinal, se a criança não introjeta valores simbólicos, cabe
ao Estado penal, por meio da punição, assumir esse papel, zelar
pelo “bem social”. Segundo o autor:
A mãe coloca o filho no mundo. Mas quem dá vida e existência ao filho é o pai,
ou seja, uma autoridade paterna, pois o pai é o agente de uma lei que irá dar um
basta nos excessos, nos exageros da dualidade mãe-filho, abrindo um novo
caminho para o filho ou para a filha, rumo a uma sublimação. Mas é a mãe quem
realmente passa para a criança um estatuto simbólico da lei paterna. Tudo
dependerá, logicamente, dela. É a mãe quem verdadeiramente passará ou não o
pai. Ou, pelo menos, a sua palavra. O vigor da palavra do pai salva a criança de
sua própria agressividade. O assentimento da criança à lei é uma das maneiras
de se poder orientar frente à força pulsional agressiva e desorientada. Quando
uma criança não tem condições de subjetivar os valores simbólicos de uma lei
familiar ela, inevitavelmente, irá produzir delitos e transgressões, fazendo-se
punir pelas autoridades que zelam pelo funcionamento das instituições.116

Ainda vemos, no artigo em questão, o clamor por uma justiça


armada, pelo aumento do rigor penal, e no limite, pela “redução da
idade penal”, apesar de sua inconstitucionalidade.
As instituições brasileiras representadas pelas suas autoridades têm pela frente
uma chance exemplar de não se fazer enganar produzindo apenas remendos nos
sintomas que emergem nas estruturas sociais. O desastroso acontecimento
criado por aqueles jovens novamente reacendeu a necessidade de se debater a
forma mais realista e mais justa de punição contra os delitos praticados por
menores e jovens adolescentes. A necessidade de fazer valer o rigor da lei.
Simplesmente fazer funcionar a lei com o rigor que ela exige para ser cumprida.
Quando as instituições funcionam dentro de um regime de seriedade, não é tão
difícil dar força à lei. O próprio símbolo da justiça contém numa das mãos uma
espada. Isto equivale dizer que a justiça sem o vigor de uma força não tem
117
alcance algum.

No trecho abaixo, a psicanálise e as leis aparecem claramente


como dispositivos de normalização e controle da organização
familiar, da sexualidade e da vida. Além de os valores morais
serem tomados como dados naturais, universais, a-históricos:
[...] necessitamos reconsiderar a posição da estrutura da família na sociedade
brasileira. Os valores estão com dificuldades de se estabelecer em sua solidez
necessária. Temos, por exemplo, uma questão séria e difícil de se resolver. Trata-
se de um desconforto na atualidade, ou seja, muitas meninas púberes e
adolescentes estão se fazendo engravidar, sintoma grave dos dias de hoje. Este
ato, tão insano quanto inconsequente, pode vir a constituir uma possível escola
para futuros delinquentes, na medida em que há, aí, uma quebra do sentido de
uma genealogia, que é a raiz da transmissão da função paterna. O exercício da lei
deve estar presente até mesmo nos pequenos gestos da vida de uma criança ou
de um adolescente. Como a relação dos jovens frente ao ato sexual, por
exemplo. A presença da lei é a consciência que se impõe nos passos de nossa
118
vida. A vida de hoje é o próprio exercício da lei.

E, no final do artigo, o autor, que anteriormente convocava um


Estado penal, agora criticará o Estado social mínimo, fará
comentários preconceituosos sobre o “cidadão brasileiro” e
medicalizará questões sociais e políticas.
Que o cidadão [...] deixe de lado este traço do brasileiro que muitas vezes ocupa
a posição de vítima, do pobre coitado! Sempre a se queixar de seus governantes,
sempre esperando algo. [...] Temos que criar projetos sobre as questões
familiares, realizar um retorno à estrutura conservadora da família, para se
poder lidar com as outras escolhas e direções. Trabalhar com a igreja, por
exemplo, no sentido de rever posições que mereçam ser revistas. [...] Talvez
esteja chegando o momento de abandonarmos as políticas de curto prazo,
políticas anêmicas e cansadas. Educação não deve ser alguma coisa prematura.
Não devemos fazer curativo onde o necessário é um processo cirúrgico, muito
menos ministrar analgésico onde a indicação é um uso de antibiótico. De todo
modo, o melhor seria acabar com as neuroses de baixa renda que se propagam
em nome de um querer ser amado. O amor é mero paliativo, um impedimento na
construção de ideais mais sólidos e duradouros. Não se trata, com isto, de
deixar de ajudar estas jovens adolescentes e seus filhos em sua errância
sintomática. Tudo bem, já aconteceu, mas há que se colocar um basta, uma lei.
[...] Temos os melhores profissionais do mundo, tanto em sociologia,
antropologia, ciências políticas. Vamos deixar a politicagem selvagem de lado e
colocar a mão na massa.
Podemos verificar com muita clareza, por meio das
observações sobre o evento e do artigo, que se trata de uma
psicanálise burguesa, com valores moralistas, conservadores e
patriarcais, presa nos ideais iluministas, apegada à teoria da
soberania, aliada à psiquiatria, ao higienismo, à criminologia
positivista (ao acreditar que o homem tem uma “essência
agressiva”, que existe um “coeficiente criminal” e uma “identidade
delinquente”). É uma psicanálise admiradora de uma imprensa que
produz e veicula o “populismo punitivo”, que apela inclusive para
a Igreja, esquecendo que o Estado é laico e a psicanálise também.
Além disso, acredita na fragilidade das “leis nas instituições
brasileiras” – apesar de nossa população carcerária ser de
aproximadamente 514.582 presos –, ela ainda coloca em um
continuum evolucionista a lei simbólica e as leis jurídicas, se

mostra de forma a-histórica e universal, e por fim, pede: mais


limite, mais lei e nos dá margem a pensar que está solicitando a
redução da idade penal.
É com esse tipo de saber, no caso, uma “certa psicanálise”, que
opera na lógica punitiva, que o Estado se alia, por meio de seus
governos, para gerir sua população e dar conta dos indesejáveis e
dos problemas relacionados ao crime e à violência.
Por tudo isso não se pode dizer que essa versão da psicanálise
é despolitizada, ela afirma uma atitude política, sim, a política de
um Estado penal, do aumento do rigor das penas, do
aprisionamento e do extermínio de determinadas parcelas da
população.
Mal-estar na cultura ou mal-estar da função paterna na cultura?

Ao trazer o pensamento de M. Tort,119 Neri (2009, 2010) expõe


que o discurso do “declínio do pai”, do ponto de vista histórico, se
apresenta mais como uma “legenda” do que como um saber, por
isso temos de tentar entender como foi construída historicamente
essa legenda e qual o papel do discurso psicanalítico nessa
construção. Ao lançar a pergunta: “Mal-estar na cultura ou mal-
estar da função paterna na cultura?”, ela diz que, do ponto de vista
da teoria e clínica psicanalítica, trata-se de “analisar qual é o
estatuto da figura paterna como legisladora na operação do
Complexo de Édipo e se indagar em que medida essa figura
legisladora do pai seria universal” (NERI, 2009, p. 121-122), ou
ainda pensar com Derrida quando este pergunta: “em que medida
a concepção de sujeito e de cultura, na psicanálise, encontra-se
referida ao modelo soberano?”120
Isso nos remete novamente a Foucault (2005a), no livro A
verdade e as formas jurídicas, quando discute a respeito do

inquérito, no século V a.C., no pensamento grego. O autor diz:


“Falarei da história de Édipo não como ponto de origem, de
formulação do desejo ou das formas do desejo do homem, mas, ao
contrário, como episódio bastante curioso da história do saber e
ponto de emergência do inquérito” (FOUCAULT, 2005a, p. 13). A
tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que
temos das práticas judiciárias gregas. É uma história em que
pessoas, um soberano, um povo, ignorando uma certa verdade,
conseguem por meio de técnicas produzir uma verdade que coloca
em questão a própria soberania do soberano.
Como parte de suas críticas, Foucault (2005a) traz comentários
sobre o livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guatarri, de 1972, e diz que,
se para Freud a fábula do Édipo é o relato mais antigo sobre nosso
desejo e inconsciente, para Deleuze e Guatarri, o triângulo
edipiano não revela uma verdade atemporal, nem profundamente
histórica de nosso desejo, ele se torna objeto de manipulação no
interior da cura por parte do analista, como uma maneira de
conter o desejo no interior da família, “um pequeno drama
burguês”, impedindo-o de se investir e difundir no mundo que nos
circunda, no mundo histórico. Édipo não seria uma verdade da
natureza, mas um instrumento de limitação e coação que os
psicanalistas, a partir de Freud, utilizam para conter o desejo e
fazê-lo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa
sociedade em determinado momento.
Pelo que vemos, Foucault (2005a) considera a história de Édipo
a história de um poder, um poder político e também o lugar da
emergência de uma forma jurídica, a história de uma pesquisa da
verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas
dessa época e não o lugar a partir do qual o desejo e o sujeito se
constituem como para a psicanálise.
Não parece algo trivial o fato de a psicanálise ter colocado a
constituição do desejo e do sujeito no mito edípico, pois para nós
isso revela um ponto de contato importante entre as formas
psicanalíticas e jurídicas de produção de verdade. Isso nos leva a
pensar que esse saber já emerge aliado a determinadas formas
jurídicas, como o inquérito e a teoria da soberania.
Ao dar continuidade à problematização sobre a questão do
modelo soberano na psicanálise, Regina Neri (2009, 2010) se
baseia em M. Tort, para afirmar que temos de criticar a formação
de uma “psicopatologia psicanalítica do social” que se põe a
analisar o que está em jogo na passagem à modernidade por meio
de uma interpretação de base metafísica da história, na qual as
relações sociais são escamoteadas em benefício de uma
abordagem estrutural. Essa perspectiva produz um inventário
calamitoso das novas doenças da alma e do pobre sujeito
moderno, sujeito este que se encontra ameaçado pelas forças
maléficas da ciência, da técnica e do mercado, as quais vão
desestabilizar a função paterna, disseminando o mal-estar na
subjetividade contemporânea. A percepção da autora sobre esse
tipo de discurso alarmista é que ele exprime, de forma fantasiosa,
as transformações dos sistemas de governo e de poder sobre a
vida e a sexualidade que conhecem hoje as sociedades ocidentais,
“a crise sendo então a dos modelos políticos desses poderes
distanciados cada vez mais do recurso ao modelo paterno” (NERI,
2009, p. 122).
A evolução das sociedades modernas aponta incontestavelmente para a
diminuição do poder social exercido pelo pai, mas é importante esclarecer se
esse declínio levaria à destruição das condições de subjetivação, como pretende
o discurso lacaniano, ou se esse discurso de ameaça de catástrofes subjetivas
seria uma reação conservadora a mudanças significativas da norma familiar e da
relação entre os sexos. De tal maneira que a invocação simbólica do pai poderia
aparecer como um meio de perpetuar de forma nostálgica os tempos de
antigamente. (NERI, 2009, p. 122, 2010, p. 168)

Mais uma vez Neri (2010, p. 172) cita M. Tort, para dizer que: “a
psicanálise estabelece uma ligação estreita entre a ‘solução
paterna’ e a valorização da submissão à lei, na qual o processo de
subjetivação é equivalente ao de se submeter à lei do pai.” A
autora ainda nos diz o seguinte: “Se pudéssemos, ao contrário,
considerar que a solução paterna não é a única relação que os
sujeitos podem ter com a lei, mas tão somente um momento
particular, então torna-se possível pensar numa outra concepção
de subjetividade”, como o fez Foucault ao demonstrar que “os
sujeitos resultam de tecnologias de saber/poder e as formas de
subjetivação se configuram como efeitos do embate entre
processos de assujeitamento e de resistência em contextos
históricos determinados” (NERI, 2009, p. 122).121
Tal como discutido no item a respeito da teoria jurídico-política
da soberania e da hipótese repressiva do poder em Foucault, Neri
(2009, p. 123-124) também o faz para pensar a teoria psicanalítica,
já que, para o filósofo, o fato de a psicanálise fundar sua teoria de
subjetivação e de cultura “atrelada à hipótese repressiva do
poder” e de ser “tributária da tese hobbesiana do contrato social”,
no qual a proteção da sociedade contra a violência dos indivíduos
se dará quando os membros da coletividade renunciam ao seu
desejo, em nome de uma potência soberana que eles investem do
poder de legislar, não pode passar como algo trivial.
De acordo com a autora:
A concepção da lei na psicanálise está referida ao poder jurídico, no qual é
ressaltada a função estruturante da lei, deixando em segundo plano, a dimensão
punitiva da lei, bem como sua função de impor assujeitamentos. A teoria do
simbólico referida à lei do pai parece estar muito próxima da lei soberana e não
leva em consideração as modificações introduzidas pelo sistema penal moderno
dentre as quais se destacam: a suavização das penas dos crimes violentos e de
sangue, visando à penalização máxima dos crimes populares contra a
propriedade e os bens comerciais e industriais; a emergência do modelo da
norma disciplinar que tem como função menos reprimir do que produzir
comportamentos convenientes a partir da definição do que seria da ordem da
normalidade e da anormalidade. (NERI, 2009, p. 123)

Apesar de Neri (2009, p. 124-125) afirmar que “a tradição


psicanalítica privilegia, nas formulações de Freud, a concepção de
vínculo social referida à hipótese repressiva do poder e à teoria
jurídico-política da soberania”, ela acredita que tais formulações
“podem se abrir para outras interpretações”, ao entrever, no
pensamento de Freud, uma vertente a ser potencializada: “pensar
o mal-estar na cultura não em termos de uma associabilidade
intrínseca à condição humana, e sim como resultado do impasse
do projeto de civilização moderno”.
A autora cita pelo menos três passagens de Freud. A primeira
está no texto “A moral sexual civilizada e a doença nervosa dos
tempos modernos” (1908), no qual o autor “faz uma estreita
articulação entre as exigências da moral sexual civilizada e a
produção da neurose, acenando assim com a perspectiva de
problematizar o projeto da civilização moderna” (NERI, 2009, p.
124).
Ao analisar “O mal-estar na cultura” (1930), Neri (2009, p.124)
aponta para um paradoxo, pois, apesar de expressar “sua adesão
ao projeto de civilização que exige a renúncia da pulsão em nome
da cultura, mediante a qual o homem civilizado troca parcela de
suas possibilidades por uma parcela de segurança”, o psicanalista
exprime também sua desconfiança quando diz que “é impossível
desprezar até que ponto a civilização construída sobre a renúncia
da pulsão pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão,
repressão, ou algum outro meio?).”
Por último, a autora traz o texto “Por que a guerra?” (1933), no
qual Freud “associa a lei à violência, afirmando que há um estreito
vínculo entre esses termos que parecem se opor” (NERI, 2009, p.
125), e, ao fazê-lo, vem-se reunir à reflexão de pensadores
contemporâneos, como G. Agamben, que assinala o estreito
vínculo entre o Estado de exceção e a ordem jurídica, que encerra
nela mesma um espaço sem direito. A autora (2009, p. 125) ainda
enfatiza: “a possibilidade de suspender a lei não é um fenômeno
marginal, mas constitui efetivamente o núcleo do sistema jurídico
na medida em que o estado de exceção na sua forma moderna é
uma criação da Revolução Francesa e pertence à tradição da
democracia e não do absolutismo”.
Concordo com Neri (2009, p. 125) quando esta pensa que os
escritos freudianos ganhariam se fossem considerados como
discursos sobre “a crise do sujeito da modernidade, cuja riqueza
residiria em expressar uma tensão paradoxal – entre a adesão ao
projeto iluminista e a constatação de seus limites”.
Contudo, penso que devemos continuar nos preocupando com
o que os saberes “psi”, especialmente a psicanálise, enquanto
discurso e prática, estão produzindo atualmente; pois, apesar de a
psicanálise ter reavaliado a prioridade um tanto sagrada conferida
ao sujeito e ter discutido essa tensão “entre a adesão ao projeto
iluminista e a constatação de seus limites”, muitas vezes ela se
estabelece como uma “verdade externa”,122 em que um certo
número de regras de jogo são definidas, regras em que vemos
nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto,
certos tipos de saber. Parece-nos que a psicanálise é, a um só
tempo, máquina e produto final. Ela inventa um sujeito a partir das
“verdades” que aquele sujeito traz, mas ela também produz
verdades sobre aquele sujeito por meio de suas interpretações. E
o pior, produz verdades com o discurso de que está
problematizando essas verdades, mas no final acaba se tornando
ortopédica, por tentar adaptar aquele sujeito, por meio da cena
familiar, a um determinado modelo de sociedade.
Foucault (2005a) diz que a prática judiciária é uma das formas
pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas
de saber e relações entre o homem e a verdade, mas isso é o que
também fazem determinadas práticas “psi” (psiquiátricas,
psicanalíticas e psicológicas).
Colonização às avessas

As criações conceituais de Foucault apresentadas no início


deste capítulo, como, por exemplo: a inseparabilidade entre poder
e saber que assinala para a positividade do poder, que, mais que
reprimir, produz saberes que modelam formas de subjetivação; a
passagem do poder soberano ao regime disciplinar que opera a
transformação da prática jurídica da ordem da punição para o
registro da vigilância contínua e da sanção normativa; a
configuração do sistema penal moderno em torno de um modelo
jurídico resultante da articulação da reforma penal iluminista e do
poder disciplinar – que, apesar de diferentes, se interpenetram; o
deslocamento do interesse da questão do crime (ato infracional)
para o criminoso (personalidade do autor); a criminologia
positivista, as noções de periculosidade e delinquência e a
colonização do direito pela medicina (psiquiatria) são
fundamentais para problematizarmos os saberes “psi” no
contemporâneo, assim como suas implicações no campo jurídico.
As discussões de Foucault foram apresentadas até a década de
1980, mas é fácil constatar a atualidade de seu pensamento
quando o utilizamos nessa problematização acerca da produção
discursiva e das práticas “psi” nos territórios judicializados da
atualidade.
Até aqui falou-se da colonização do direito pela norma, mas
será que é possível fazermos uma dobra nessa questão? Acredito
que sim, e de certa forma isso já foi demonstrado, neste mesmo
item. Portanto, aponto aqui para um processo de “colonização às
avessas”, “múltipla captura”, “retroalimentação”, no qual, o direito
e a máquina jurídica também atravessam os saberes “psi”. Ou seja,
vivemos na atualidade uma psicologização do direito e das
práticas jurídicas e uma judicialização da psicologia. Nesse
processo, conforme tem sido demonstrado, desde o início deste
livro, todos esses saberes citados se colocam a serviço de um
Estado penal e este, por sua vez, alimenta essas produções
teórico-práticas.
Essas afirmações emergem a partir da análise dos dados
colhidos nesta pesquisa, seja na pesquisa de campo, seja nas
leituras realizadas, incluindo-se ainda minha breve experiência
como psicóloga no hospital de custódia, no qual tive a
oportunidade de ler inúmeros laudos de Exame de Verificação e
Cessação de Periculosidade (EVCP) escritos por psiquiatras e
acompanhados de pareceres de psicólogos e assistentes sociais,
que certamente me fizeram rir, ante a minha incredulidade diante
dos absurdos. Mas também me entristeceu muito constatar que,
ainda hoje, esse tipo de documento é enriquecido por meio de
uma combinação de jargões moralistas, preconceituosos e
periculosistas incrementados por equações formadas pela
classificação nosográfico-numérica do Código Internacional de
Doenças (CID) e pelos artigos do Código Penal, sendo justificados,
muitas vezes, por meio das teorias psicanalíticas.
De acordo com Foucault:
A prisão, essa região mais sombria do aparelho de Justiça, é o local onde o
poder de punir, que não ousa mais se exercer com o rosto descoberto, organiza
silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar
em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do
saber. (FOUCAULT, 1987, p. 214)

Essa produção discursiva à qual o filósofo em questão se


referia continua ocorrendo e mantendo pessoas presas por longos
anos, algumas por toda a vida. E, quando elas saem, dificilmente
conseguem se livrar das marcas que essas instituições e seus
discursos deixaram em seus corpos.
É possível constatar isso também por meio dos discursos
psicanalíticos contemporâneos, conforme mostramos
anteriormente.
Ao querer dar conta do “mal-estar” na modernidade,
profissionais do direito, daquela época, procuraram explicações
para o crime, ou melhor, para o criminoso, na psicanálise. Mas,
conforme visto anteriormente, com o advento da criminologia
enquanto saber e de seu constante encontro com os saberes “psi”,
especialmente com a psiquiatria e com a psicanálise, estranhas
formas de explicação se produziram. No contemporâneo, os
profissionais do direito continuam buscando as causas dos
fenômenos relacionados ao crime, ao criminoso e à violência, ou
seja, do “mal-estar contemporâneo” nos saberes “psi”, mas agora
contamos com o agravante que é o de alguns profissionais “psi”
procurarem no direito e no campo jurídico subsídios para a
sustentação de suas práticas, tornando difícil saber onde começa
um e termina o outro.
Nesse processo, ao qual dei múltiplos nomes: “colonização às
avessas”, “múltipla captura”, “retroalimentação”, vemos os
profissionais do direito se apoiarem nos saberes “psi” em
momentos específicos, assim como profissionais “psi” se
utilizarem da estrutura do aparelho judiciário, da teoria ou da
terminologia do direito para realizarem suas práticas. E, a despeito
das enormes diferenças epistemológicas entre o direito e os
saberes médicos e “psi”, o que supostamente tornaria a
comunicação entre eles quase inviável, saberes como a
“criminologia”, a “neurocriminologia”, a “psicologia jurídica”,
“clínica da violência” etc. tornam essa comunicação possível e
produzem efeitos em nossa sociedade que não podemos
naturalizar.
Um dos dispositivos que mostram muito bem esse processo é a
“Justiça Terapêutica” (JT),123 uma atualização da funesta aliança
entre o direito penal e a psiquiatria demonstrada no início deste
capítulo. Ao discutir esse procedimento, Arantes (2008) diz que é
uma espécie de “pena-tratamento” baseada no modelo norte-
americano124 dos Tribunais para Dependentes Químicos (Drug
Courts – Cortes de Drogas) que oferece ao adolescente que for

detido portando drogas para uso pessoal a opção de tratamento


em vez de receber uma medida socioeducativa. O programa exige
total abstinência de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas, por
isso, algumas das “ferramentas” para o sucesso do tratamento são:
submeter o adolescente a testes de urina periódicos e aleatórios, o
que significa a quebra do sigilo profissional, já que o psicólogo
deve produzir prova que deponha contra o próprio sujeito; a
quebra dos direitos individuais mínimos, posto que o sujeito que
opta pela “JT” tem de abrir mão do direito de defesa, confessando-
se culpado, ainda que use a substância eventualmente e, por
último, mas não menos importante, o fato de que, entre as sanções
previstas para a falha injustificada no cumprimento das normas
desse tipo de programa, tem-se duas que são inaceitáveis do
ponto de vista ético da psicologia, pois colocam o atendimento
com o psicólogo na série da punição, que são aquelas que exigem:
“Aumento na freqüência de sessões de tratamento individual ou
familiar” e “Entrevistas compulsórias com médicos, psicólogos ou
integrantes de grupos de auto-ajuda.”125
Apesar de os defensores da Justiça Terapêutica apoiarem-se no
art. 28 da Lei nº 11.343/2006, a nova lei de drogas, Boiteux (2009)
considera esta uma interpretação equivocada e inconstitucional.
Isso porque, de acordo com a mesma lei e artigo em questão, é
garantida ao acusado a possibilidade de “voluntariamente” se
submeter a tratamento especializado; nos artigos 4º e 19o estão
previstos o respeito aos direitos fundamentais, especialmente,
quanto à sua autonomia e liberdade, inclusive em relação ao uso
indevido de drogas. Do ponto de vista constitucional fere o art. 5º,
inciso X. E afirma ainda que não há como se admitir que, em um
Estado dito “Democrático de Direito”, uma terapia seja imposta
contra o desejo e sob ameaça de prisão do usuário. “Também fere
os Códigos de Ética de profissionais de saúde, que não podem
servir ao Estado como carrascos de seus pacientes, prontos a
dedurá-los ao juiz diante de uma recaída” (BOITEUX, 2009).
A autora supracitada conclui que estes são princípios
incompatíveis com a ideia do tratamento obrigatório preconizado
pela “JT”, pois essa proposta é autoritária, conservadora e
coercitiva, além de ser uma “tentativa de legitimação do direito
penal como instrumento de modificação da personalidade do
sujeito”.
Após a discussão acerca de determinadas formas de
apresentação da psicanálise no contemporâneo e de dispositivos
como a Justiça Terapêutica, nos quais leis simbólicas e jurídicas
são correlatas, fui conduzida ao texto: Produção Social do
Negativo, no qual Rauter (2003b) discute os riscos de se acreditar
que a violência social é oriunda de uma tendência destrutiva
básica do psiquismo, ou seja, uma tendência ontológica para o
negativo. A autora marca a oposição entre instinto e civilização,
desejo e lei na obra freudiana e a contrapõe à concepção
deleuziana de desejo como produção,126 na qual a violência seria
um fenômeno secundário relacionado ao próprio modo de
funcionar do capitalismo contemporâneo.
Portanto, os fenômenos relacionados à violência não seriam
ontológicos ou tendências que agem na base do psiquismo em
oposição à sexualidade, mas secundários, pois, ao pensar o desejo
como produção em coextensividade com “as leis”, não tornamos
os fenômenos da violência como mais ou menos reversíveis, mas
tiramos as práticas sociais, relativas ao campo das infrações, do
pessimismo e autoritarismo de sempre, tendo em vista que estas
práticas não propõem nada além do encarceramento e do
tratamento moral, já que partem da crença de que há uma
tendência básica para a destruição que precisa ser coibida e, com
isso, julgam resolver as questões criminais.
Rauter (2003b) também nos diz que a coextensividade entre
regras e produção desejante possibilita a emersão de regras
fascistas e coercitivas, pois o negativo não está na base do campo
de produção desejante, mas é um descaminho da mesma que
engendra antiprodução. E, como não podemos também deixar de
lado a multiplicidade de agenciamentos127 sociais e dos processos
de produção maquínica, bem como as mutações de universos de
valor e de universos históricos que engendram esses modos,
devemos ficar atentos às nossas práticas, caso contrário,
estaremos a serviço da reprodução de modelos que não nos
permitem criar saídas para os processos de singularização.
Ao referir-se ao trabalho do psicólogo no campo jurídico,
Sergio Verani (1992, p. 18)128 diz: “nessas situações a psicologia,
participa apenas para reforçar a própria norma”. Podemos afirmar
que, ao longo deste capítulo, foi possível entendermos um pouco a
respeito da questão: “com que psicologia o direito quer se
encontrar?”. Assim como por quais caminhos esses dois saberes
se encontram.
Mas, apesar da atualidade dos escritos foucaultianos e das
análises feitas até aqui, é preciso analisar essa questão um pouco
mais de perto. Por isso, foram eleitos como analisadores dois
dispositivos: o exame criminológico e o depoimento sem dano,
para que possamos entender melhor qual é “a psicologia com que
o direito quer se encontrar” no contemporâneo, a fim de
discutirmos sobre as formas de produção de verdade, sobre o
desassossego que tudo isso que temos debatido, até aqui, provoca
nos psicólogos, assim como os efeitos nefastos de certas
demandas naqueles que as recebem. Também pretendo mostrar as
lutas daqueles que não querem aceitar essas “encomendas” e
pensar como seria possível não aceitá-las.

Clarice Lispector ingressou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil,


em 1939, e concluiu o curso em 1942, porém nunca retirou seu diploma.
Francis Ewald é um conhecido estudioso de Foucault. O trecho citado foi retirado do
livro: EWALD, F. L’etat providence. Paris: Grasset, 1986. p. 29-30.
De acordo com Fonseca (2002, p. 54-55), nos livros As palavras e as coisas e O nascimento
da clínica, o que importa para Foucault são as condições históricas que permeiam a

organização de um tipo de saber sobre o homem, “o aparecimento do homem em sua


finitude, como sujeito e objeto de conhecimento, passa a ser a referência essencial à
ordem dos saberes”.
Segundo Fonseca (2002, p. 60), tem-se chamado de “textos da analítica do poder” aos
livros Vigiar e punir, A vontade de saber, aos cursos do Collège de France de 1971 a 1980 e
aos inúmeros artigos sobre o tema presentes na versão francesa dos Ditos e escritos, v. 2
e 3.
São considerados por Fonseca (2002) textos desse momento: História da Loucura na
Idade Clássica, As Palavras e as Coisas e O Nascimento da Clínica.

No Brasil foram publicados desta forma: FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso
no Collège de France (1973-1974). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: M. Fontes, 2001
e FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução
Eduardo Brandão. São Paulo: M. Fontes, 2001.
CANGUILHEM, Georges. Normal e patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.
Cf. as aulas de 15/1 em Os anormais.
Cf. as aulas de 12/2 de Os anormais.
Informação retirada de fita cassete, por Márcio Alves da Fonseca, da aula de 14/11/1973
do curso Le pouvoir psychiatrique.
Cf. Basaglia (1972).
Informação retirada de fita cassete, por Márcio Alves da Fonseca, das aulas de 1974 do
curso Le pouvoir psychiatrique.
Segundo Fonseca (2002, p. 94-95, nota de rodapé nº 135), “[...] Foucault não se preocupa
em discutir uma concepção de lei que adota nos diversos momentos em que utiliza a
referida palavra. Parece-nos que ao se referir à lei, assume a concepção de lei enquanto
comando geral e abstrato, positivado pelo Estado. Da mesma forma, ao falar em
“estruturas de legalidade”, parece referir-se às diversas formas que os comandos
positivados pelo Estado, ou decorrentes de sua autoridade, podem ter: as Leis
propriamente ditas (federais, estaduais, municipais), os Decretos, os Regulamentos, os
Ofícios. Por ‘estruturas de legalidade’ o autor parece entender ainda as próprias
instâncias, órgãos e aparelhos encarregados de produzir e aplicar as Leis, os Decretos,
os Regulamentos.”
Apesar de Fonseca mencionar que essa distinção entre os dois modelos (“jurídico-
discursivo” e “disciplinar-normalizador”), realizada por Foucault, aparece nos cursos Em
defesa da sociedade, A ordem do discurso e A vontade de saber, tanto ele, como nós,

optamos por analisar mais detidamente apenas o livro Em defesa da sociedade.


Traduzido por “Ilegalidade” nas versões publicadas pela Editora Vozes.
Essa afirmação será fundamental para entendermos mais adiante, neste mesmo capítulo,
os comentários sobre os escritos de Agamben, assim como, no terceiro capítulo, o
debate sobre o exame criminológico.
Segundo Foucault, são as sociedades ocidentais modernas (séculos XIX e XX).
Cf. Foucault (1990a).
Cf. Foucault (1997).
Cf. Foucault (1997).
Cf. Foucault (2005a).
Para mais detalhes sobre o conceito de acontecimento, Cf. Foucault (1990a, 1999 e 2005).
Fala retirada do filme: Kinsey: vamos falar de sexo. Drama. Dirigido por Bill Condon. 148
min. Estados Unidos, 2004.
Música de Jorge Ben Jor contida na faixa nº 5 de seu sexto álbum, lançado em LP, em
1969, pela Philips.
Refiro-me ao Projeto de lei nº 7.703 de 2006, que prevê uma nova regulamentação para o
exercício da medicina.
Lembro da importância do projeto panóptico de Jeremy Bentham, que foi um dos
dispositivos de vigilância utilizados nas instituições totais (Foucault, 1987).
Segundo o dicionário Aurélio, significa: “ausência generalizada de respeito a normas
sociais, devido a contradições ou divergências entre estas”.
Para quem interessar: OLMO, Rosa Del. Ruptura criminológica. Caracas: Universidad
Central de Venezuela/ Ed. De en Biblioteca, 1975.
Raimundo Nina Rodrigues foi um médico legista, psiquiatra, professor e antropólogo
brasileiro que defendeu teses racistas, a ponto de publicar, em 1894, um ensaio no qual
defendia a tese de que deveriam existir códigos penais diferentes para raças diferentes,
afinal, para ele, haveria uma relação direta entre degenerescência e tendências para o
crime relacionadas aos negros e mestiços. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Nina_Rodrigues>. Acesso em: 1 ago. 2010.
Para mais informações: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un
margen. Bogotá: Temis, 1988.
De acordo com Batista (2009, p. 34), Zaffaroni afirma que o controle social em nossa
margem se caracteriza por ser um sistema de punição institucionalizado que impõe uma
cota de dor e privação, não prevista em lei e também levada a cabo pelo controle social
parainstitucional.
Santos, Milton. Por uma outra globalização. Record, 2001.
Trecho citado por Fonseca (2002, p. 296) e que se refere a um texto que teria sido o texto
fundador do movimento GIP (Group d’Information sur lês Prisions – 1971-1972), publicado
em março de 1971 na revista francesa Esprit, e assinado por Michel Foucault, Pierre Vidal-
Naquet e Jean-Marie Domenach.
A campanha foi aprovada pelo então presidente do CNJ, Gilmar Mendes. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2166422/a-solucao-nao-e-punir-mais-e-punir-
melhor>. Acesso em: 16 jul. 2010.
A operação iniciou-se em 5/1/2009, na gestão do prefeito Eduardo Paes. Segundo o site da
Secretaria Especial da Ordem Pública/RJ (SEOP): “O Choque de Ordem é um conjunto de
ações para combater a desordem no espaço público, fazendo valer as leis e o código de
posturas municipais. A desordem urbana é a grande responsável pela sensação de
insegurança pública por ser facilitadora da prática de pequenos delitos”. E entre suas
principais ações estão: “De olho nos flanelinhas”, “Coibição do estacionamento
irregular”, “Um basta ao xixi na rua”, “Repressão ao comércio irregular”, “Demolições em
áreas de risco”, “Ordenamento das praias” e “Recolhimento de publicidade irregular”.
Disponível em: <http://choquedeordem.com.br/portal/index.php/quem-somos>. Acesso
em: 24 jul. 2010. Em notícia publicada em 15/3/2011, no mesmo site, lemos: “O Choque de
Ordem no Carnaval 2011 leva para a delegacia 777 mijões, mais que o dobro do ano
passado [...]. “Todos os detidos foram conduzidos para as delegacias mais próximas aos
blocos e responderão pelo crime de ato obsceno, conforme o artigo 233 do Código Penal.
Ano passado, o número de mijões detidos foi de 360”. Disponível em:
<http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=1617980>. Acesso em: 4 abr.
2011.
Poderia dizer que essa operação é uma importação daquilo que Wacquant (2003, p. 8)
chama de “medidas norte-americanas de limpeza policial das ruas e de aprisionamento
maciço dos pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do mercado”.
Notícia postada em 18/2/2010, no site:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,EMI122817-15228,00-
O+BLOCO+DOS+SEMBANHEIRO.html.
Caso “João Hélio” ocorrido em 7/2/2007, no qual uma criança de seis anos foi arrastada
por um carro em movimento. Um dos responsáveis, na época, tinha menos de 21 anos. O
fato foi amplamente divulgado na mídia simultaneamente à discussão sobre a redução da
idade penal.
De acordo com Verani (1996), este procedimento desrespeita o Código Penal, o Código
do Processo Penal e a Constituição. Diz ainda que ele foi inicialmente regulamentado
pela Ordem de Serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superintendência da Polícia
Judiciária, do antigo estado da Guanabara. Seu conteúdo é ampliado pela Portaria “E”, nº
0030, de 6/12/1974, do secretário de segurança pública.
Estado pioneiro nesta experiência. A implantação de prisões industriais constitui um
novo modelo de gestão penitenciária, que adota o modelo da cogestão, presente em
cidades como Guarapuava, Cascavel, Londrina e Piraquara. Seguindo os mesmos moldes,
Juazeiro do Norte/Ceará, Ribeirão das Neves/Minas Gerais e Itaquitinga/Pernambuco
também inauguraram unidades. O aumento do custo do preso com o sistema privado fez
com que o Paraná retomasse a administração das suas prisões, no início de 2006. No
Ceará, três presídios foram privatizados, mas o governo também já retomou o controle
da administração, de acordo com o livro Privatização do sistema prisional brasileiro, de
Grecianny Carvalho Cordeiro. Disponível em: <http://pt.shvoong.com/books/479017-
privatiza%C3%A7%C3%A3o-sistema-prisional-brasileiro/> e publicado em 22/1/2007.
Acesso em: 16 jul. 2010.
Segundo o Título V- Da defesa do Estado e das instituições democráticas, Capítulo III- Da
Segurança Pública, art. 144: “A segurança pública, dever do Estado [...]”.

Cf. Lei nº 10.732 em 1/12/2003, Subseção II – Das Faltas Disciplinares, art. 52.
No Brasil, o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa é assegurado pelo artigo 5º,
inciso LV da Constituição Federal de 1988.
Para mais informações a respeito do nosso país, consultar a Constituição Federal
Brasileira de 1988, Título V – Da defesa do Estado e das Instituições democráticas,
Capítulo I – Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio.
Esta lei foi votada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que tinha como ministro da
Justiça, Márcio Tomaz Bastos, que, na época, solicitou que a votação fosse realizada em
regime de urgência.
Além destas, existem mais 12 unidades neste município e, também, outras 15
distribuídas pelo estado do Rio de Janeiro.
Como, por exemplo, apontamos a Escala Hare – PCL-R, de HARE, de Robert D., com
versão brasileira de MORANA, Hilda pela MULTI-HEALTH SISTEMS INC. – MHS Editora.
Para ter uma visão crítica desta escala, conferir a dissertação de mestrado de Lia Toyoko
Yamada, intitulada: O Horror e o Grotesco na Psicologia – A Avaliação da Psicopatia
através da Escala Hare PCL-R (Psychopathy Checklist Revised), que foi defendida na

Universidade Federal Fluminense, em 2009.


O curso de “Perícia Psicológica Criminal e Policial”, administrado pelo CEAP (Centro de
Estudos Avançados em Psicologia), apresenta em seu conteúdo programático a
disciplina: autópsia psicológica e avaliação da personalidade em casos de suicídio.
Vale a pena conferir os artigos 2 e 3 da referida lei.
Que, conforme Nilo Batista (apud BATISTA, 2009, p. 23), “abrangeria a política de
segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária”.
No que tange à dimensão institucional, além da implementação do procedimento
“depoimento sem dano” nos Tribunais de Justiça por todo o Brasil, temos pelo menos
mais dois exemplos no estado do Rio de Janeiro, o primeiro é o da “Escola Lacaniana de
Psicanálise”, que ministrou uma pesquisa intitulada “Função paterna”, por quase toda a
década de 2000, na 1ª Vara de Infância, da Adolescência e do Idoso do Rio de Janeiro,
com as equipes de adoção e com os adotados. Esta informação foi colhida no evento
organizado por esta mesma escola intitulado “Clínica da violência – infância e
adolescência de risco”, em 6/7/2008 no Hotel Glória, no Rio de Janeiro e também consta
no site: (http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/educacao/0180.html –
publicado em 20/6/2005). O outro diz respeito à parceria realizada entre a SOBEPI
(Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas da Infância) e a FIA (Fundação de Infância
e Adolescência do Estado); em uma observação participante em 2009, ouvi um de seus
membros, Jorge Volnovich, afirmar ter participado como responsável técnico e
supervisor do Programa de atenção a crianças e adolescentes vítimas de maus tratos na
FIA.
Cf. Guattari, Félix; Deleuze, Gilles. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Este texto é resultado da exposição apresentada na Associação de Psicopatologia
Aplicada de Viena, em 30 de abril de 1928.
Quem faz considerações importantes sobre essa questão é BATISTA, Vera Malaguti.
Difíceis ganhos fáceis: droga e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan,

2003.
Os textos deste autor utilizados por Neri (2009) foram: LACAN, J. Fonctions de la
psychanalyse en criminologie e agressivité en psychanalyse. In: _______. Écrits. Paris,
Seuil, 1966.
Para mais detalhes, consultar: Legendre, P. Sujeito do direito, sujeito do desejo. In: Altoé,
S. (Org.). Sujeito do direito, sujeito do desejo. Rio de Janeiro: Revinter, 1999.
Congresso “Clínica da Violência: Infância e Adolescência de Risco (Psicanálise em
articulação com o Direito, a Medicina e a Educação)”. Realizado pela Escola Lacaniana de
Psicanálise do Rio de Janeiro, nos dias 6, 7 e 8/6/2008, no Hotel Glória, RJ.
A respeito do dispositivo: “Fórum Clínico”, consultar COIMBRA, Cecília. Guardiães da
ordem: uma viagem pelas práticas “psi” no Brasil do “milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do

autor, 1995.
Congresso “Clínica da violência: Infância e Adolescência de Risco (Psicanálise em
articulação com o Direito, a Medicina e a Educação)”. Realizado pela Escola Lacaniana de
Psicanálise do Rio de Janeiro, nos dias 6, 7 e 8/6/2008, no Hotel Glória, RJ.
Conferir nota de rodapé nº 38 deste capítulo.
Trechos retirados do artigo: “Cena de horror e marca incurável: uma criança é
arrastada”, publicado no Boletim Moebius nº 1-Espaço Psicanálise por José Nazar, que é
médico com mestrado em psiquiatria UFRJ, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise
e editor-chefe da Companhia de Freud Editora. Disponível em:
<http://www.espacopsicanalise.com.br/docs/moebius1.htm#4>. Acesso em: 29 jun. 2010.
Ibid.
Ibid.
Ibid.
O livro utilizado desse autor por Neri (2009): TORT, M. Findudogme paternal. Paris:
Aubier, 2005.
Neri (2009) cita da seguinte forma: Derrida, J. Conferência dos Estados Gerais da
Psicanálise. Rio de Janeiro, 2001.
A proposta de Foucault (2005a, p. 10), no livro A verdade e as formas jurídicas, foi: “tentar
ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado
definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história”, mas “de
um sujeito que constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e
refundado pela história”.
Segundo Foucault (2005a, p. 11), há duas histórias da verdade, uma interna e outra
externa. A primeira: “[...] a história de uma verdade que se corrige a partir de seus
próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da
história das ciências”. E a segunda: “[...] parece-me que existem, nas sociedades, ou pelo
menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um
certo número de regras de jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos
nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber
– e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da
verdade.”
Instituído pela “Ordem de Serviço Nº 2/01, datada de 27 de junho de 2001, que cria o
Programa Especial para Usuários de Drogas (PROUD), no âmbito de competência da 2ª
VIJ, Comarca da Capital/RJ, de acordo com as normas gerais previstas no Provimento Nº
20/2001, da Corregedoria-Geral de Justiça” (ARANTES, 2008).
Cf. site da Associação Nacional de Justiça Terapêutica. Disponível em:
<www.anjt.org.br/index.php?id=1>. Acesso em: 10 dez. 2008.
Arantes (2008) destaca dois artigos, de um dos programas de JT existentes no Rio de
Janeiro, que trazem dificuldades específicas para a atuação do psicólogo:
A rtigo 6 - Dos participantes do Programa, exige-se:
I. Não usar ou possuir drogas ilícitas e bebidas alcoólicas e, se for exigido pela unidade
de tratamento conveniada, não fumar tabaco nas sessões ou conforme a orientação
desta unidade. II. Comparecer a todas as sessões de tratamento determinadas. III. Ser
pontual. IV. Não fazer ameaças aos participantes, à equipe do programa ou da unidade de
tratamento, bem como não comportar-se de modo violento. V. Vestir-se apropriadamente
para as sessões de tratamento e audiências no Juizado. VI. Cooperar com a realização
dos testes de drogas. VII. Cooperar para a obtenção de informações necessárias à
avaliação inicial e seqüencial de seu caso. VIII. Os pais ou responsáveis deverão
comparecer às audiências no Juizado e às sessões de tratamento recomendadas. IX.
Comparecer e demonstrar desempenho satisfatório na escola, estágios
profissionalizantes e laborativos. X. Agir de acordo com as normas específicas da
unidade de tratamento para a qual foi feito o encaminhamento.
Artigo 7 – As sanções previstas para a falha injustificada no cumprimento das normas do
Programa são as seguintes:
I. Advertência verbal. II. Retirada de privilégios (válida para os casos de algum
adolescente que esteja, por exemplo, em programa de recebimento de cesta básica,
lazer, etc.). III. Aumento na freqüência de sessões de tratamento individual ou familiar. IV.
Regressão na fase de tratamento e conseqüente maior tempo de permanência no
Programa. V. Comparecimento a palestras e sessões educativas sobre uso indevido de
drogas ou outros temas considerados úteis pela equipe de acompanhamento. VI. Maior
freqüência na realização de testes de drogas. VII. Internação temporária. VIII. Entrevistas
compulsórias com médicos, psicólogos ou integrantes de grupos de auto-ajuda. IX.
Restrições às atividades de lazer, inclusive nos finais de semana. X. Prestação de
serviços na comunidade ou na sua própria casa, de acordo com o entendimento do Juiz.
XI. Limitação de horário de saída da residência. XII. Exclusão do Programa e retomada do
processo inicial”.
Apoiados na concepção espinosista da natureza é que Deleuze e Guattari (1976)
pensaram o desejo como pura positividade e produção. De acordo com Zourabichivili
(2004, p. 22-23), para Deleuze, todo desejo procede de um encontro e é nele que o desejo
se constrói e se agencia, por isso é sempre coletivo. Portanto, não é possível apreender
ou conceber um desejo fora de um agenciamento determinado. O tipo de agenciamento é
que vai determinar a qualidade desse desejo e desse coletivo. Isso nos permite pensar
como surgem fenômenos como a violência, em que o desejo pode desejar sua
aniquilação (antiprodução).
De acordo com Deleuze (1977, p. 112): “Segundo um primeiro eixo, horizontal, um
agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um
lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos
reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e
enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um
eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territorializados ou
reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.
Sérgio Verani é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, além
de ser o 2º vice-presidente desta Corte. É um dos únicos juristas do nosso estado a se
posicionar criticamente quanto à atuação do psicólogo no campo jurídico e a se colocar
contra o exame criminológico.”
CAPÍTULO III
O DESASSOSSEGO DOS PSICÓLOGOS QUE ATUAM NO
CAMPO JURÍDICO NO CONTEMPORÂNEO
PSICOLOGIA 129
O seu castigo é este:
Falar comigo quando chegar,
Sentar na cadeira e me entrevistar,
Saber da minha vida e como será.
O seu castigo é este:
Me fazer perguntas
E saber como estou,
Quais os meus problemas
A dor, o dilema,
O que me apavorou.
O seu castigo é este:
Formar ideias, mas sempre com as suas
Saber se eu minto,
Se a verdade é sua
E como será o meu amanhã.
O seu castigo é este:
Parar, pensar, dar seu parecer,
O que será que pensou,
O que será que vai ser.
Será que o juiz também pensa o mesmo.
W. (21/8/2001)

No artigo intitulado “Mediante quais práticas a Psicologia e o


Direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-
estar”, Esther Arantes (2008) discute “um certo mal-estar”
existente entre os psicólogos que atuam no âmbito jurídico. O que
a autora caracteriza como “mal-estar” entre os psicólogos
jurídicos parece similar ao que, neste trabalho, denomino de
“desassossego” dos psicólogos que trabalham no “campo
jurídico”. Ao perguntar como pensar a relação entre psicologia e
direito, a autora diz que essa tarefa não é nada simples e, para
realizá-la, temos de levar em conta a multiplicidade de “situações e
demandas apresentadas no campo social, que parece ampliar-se
na proporção da judicialização das relações sociais”. Dessa forma,
vemos psicólogos atuando em diversos pontos do campo jurídico,
predominantemente com a confecção de “laudos, pareceres e
relatórios, no pressuposto de que cabe ao psicólogo, nesta
interface, uma atividade basicamente avaliativa e de subsídio aos
magistrados” (ARANTES, 2008, p. 131).
Para compreender melhor essa relação entre a psicologia e o
campo jurídico, assim como o desassossego desses profissionais,
perguntou-se ainda que motivos justificam a presença do
psicólogo nesse campo. Alguns deles foram discutidos, no
segundo capítulo, por meio, notadamente, do pensamento de
Foucault, que continuará presente até o fim deste trabalho; afinal,
a cristalização das práticas jurídicas e “psi” fazem com que tudo o
que ele disse continue atual.
Uma das falas que escutei algumas vezes e que considerei
“inesquecível” foi que um dos motivos que torna imprescindível a
presença do psicólogo nessa área é a suposição de que somos os
únicos capazes tecnicamente de “dar uma luz”130 aos operadores
do direito para que eles possam ver a pretensa verdade sobre o
que aconteceu ou acontecerá, seja com quem denominam
criminoso, seja com quem chamam de vítima. Essa suposta
capacidade técnica, que nenhum outro profissional teria, é
composta de seu arsenal téorico-metodológico: as teorias que vão
desde as explicações sobre os mistérios do inconsciente de um
criminoso até os atuais mapeamentos cerebrais de adolescentes
infratores, a escuta que “decifra as entrelinhas”131 do discurso do
criminoso ou da vítima, os testes psicológicos (como a Escala
Hare – O PCL-R) para quando a escuta não é suficiente para
identificar um “psicopata” e, finalmente, o parecer ou laudo, que é
peça-chave no processo, pois fará objetivamente um “traçado
subjetivo”132 do preso e servirá de subsídio ao processo decisório
quanto às progressões e regressões de regime ou livramento
condicional, introduzindo, na decisão, o julgamento do sujeito e
não do ato praticado.
Pode-se perguntar também se a necessidade de toda essa
“iluminação” se deve ao fato de os juízes e promotores não terem
o hábito de entrar em contato direto com o breu da realidade
prisional. Ou seja, as condições insalubres em que vivem os
presos e trabalham os profissionais, a prática de tortura e os
efeitos mortificantes que uma instituição de confinamento produz
em todos que por ela passam. Parece que a expectativa do
Judiciário é a de que o psicólogo, por meio de “técnicas de
iluminação”, seria capaz de revelar a verdade do sujeito, sem ao
menos questionar o que é isso que chamam de “direito”,
“psicologia”, “lei”, “sujeito”, “delinquente”, “desejo”, “verdade” etc.
Em alguns procedimentos jurídicos que contam com a
participação do psicólogo, cria-se uma pretensa paisagem clínica
para se realizar um procedimento jurídico, mas com
características e objetivos policiais, investigativos e de inquirição.
Refiro-me a procedimentos tanto no nível processual quanto no da
execução penal.
Esse problema torna evidente, logo de início, uma das muitas
contradições do encontro entre esses saberes: a epistemológica.
Nela vemos que a demanda do Judiciário em relação aos saberes
“psi” é tingida pela supremacia da objetividade e do positivismo,
tão caros ao direito; este fato convoca a psicologia a responder do
lugar de “ciência” e o psicólogo do lugar de “cientista”.
Infelizmente, ao longo desta pesquisa, foi possível observar que
muitos profissionais se sentem seduzidos por essa demanda,
atendendo-a.
Também percebe-se nos discursos dos profissionais que atuam
no âmbito jurídico a constante repetição do termo “lei”.
Curiosamente ela comporta, pelo menos, três versões. A primeira
quando se refere àquela lei presente na Constituição, nos Códigos
ou nos Decretos-lei, a outra quando a lei é encarnada na pessoa do
juiz e, por último, a lei tratada de forma psicanalítica (simbólica).
A respeito da última versão, creio que fomos contemplados na
discussão do item “A psicanálise e sua relação com o campo
jurídico no século XXI” e, sobre as duas primeiras, observamos
que, durante a pesquisa de campo, duas frases proferidas, tanto
pelos operadores do direito quanto pelos psicólogos, foram
recorrentes: “mas tá na lei” e “não podemos negar um pedido do
juiz”. Falas estas que identificam outras contradições presentes
nessa relação entre a psicologia e o campo jurídico: o discurso
legalista e a hierarquia na máquina judiciária.
Esther Arantes discute com muita clareza e assertividade os
conflitos epistemológicos e hierárquicos:
[...] a fragilidade epistemológica do seu próprio campo de conhecimento
(levando-o a constantes indagações sobre o objeto, método e técnicas da
psicologia jurídica) e com a sua falta de autonomia profissional (dada a
subordinação hierárquica, real ou imaginária, ao magistrado) – vem
apresentando novas feições, na medida em que se pode constatar uma
tendência de parte do judiciário de interferir no espaço que antes era
considerado próprio da atividade do psicólogo e demais profissionais da área da
saúde, levando-nos a perguntar se restaria ao judiciário, diante da crescente
colonização do Direito pela norma, legislar sobre os procedimentos de
normalização ou impor que a norma se realize como regra jurídica? (ARANTES,
2008, p. 132).

Como tem sido demonstrado desde o início deste trabalho,


meu objetivo é caminhar no limiar entre o direito e a psicologia,
entre a norma(lização) e a lei. E, ao pensar que as disciplinas são
uma faceta do liberalismo e que as ciências humanas emergem
com as instituições disciplinares, entendemos o porquê de esses
saberes irem modificando o direito, porque a norma foi
colonizando o direito, não para humanizá-lo, mas como nova
forma de controle social. Do “direito liberal” ao “direito
humanizado”. Assim como entendemos que o direito,
especialmente por meio do princípio da soberania, foi colonizando
os saberes “psi”, sobretudo, a psicanálise. Da “lei jurídica” à “lei
simbólica”.
Corroborando o que temos discutido até o momento, Sérgio
Verani, ao comentar como tem funcionado o encontro entre o
direito e a psicologia, diz:
Tem sido desastroso, no sentido de garantir as liberdades e os Direitos
fundamentais dos indivíduos. Quase sempre o encontro da Psicologia com o
Direito tem sido uma aliança que reforça ainda mais o conteúdo e a natureza
repressora que estão inseridos no Direito. Isto porque o conhecimento jurídico
é, fundamentalmente, um conhecimento não-científico; é um conhecimento
dogmatizado, burocratizado, elitizado, excluidor, prepotente e autoritário. E a
Psicologia reforça ainda mais esse poder enorme do conhecimento jurídico, que
é o poder de determinar o que é certo, o que é errado; o que é justo, o que é
injusto; quem tem culpa e quem . (VERANI, 1992, p. 14, grifo do
não tem culpa

autor)

Nos encontros com os psicólogos atuantes nesse campo, ao


longo desta pesquisa, dois temas foram recorrentes e denunciam,
entre outras coisas, o constante desassossego de alguns
profissionais quanto à participação ou não do psicólogo nos
procedimentos jurídicos: o “depoimento sem dano” e o “exame
criminológico”. Por isso, foram eleitos como analisadores
principais, pois considerou-se que denunciam o funcionamento da
psicologia, do direito, do campo onde essas forças se encontram
(Judiciário), assim como as alianças feitas entre esses saberes e
seus efeitos.
Portanto, esta pesquisa considera que o exame criminológico e
o depoimento sem dano funcionam como dispositivos nessa
cartografia do encontro entre os psicólogos, o direito e o campo
jurídico, ou, como diria Nilo Batista, deste “acasalamento entre os
saberes jurídico, [psicológico] e médico, compartilhando
processos decisórios e gestões ao ponto de em algum momento a
alta hospitalar provir de decisão judicial e o laudo psiquiátrico
[psicológico] servir de alvará de soltura [...]” (Batista apud Rauter,
2003, p. 9).
Mas, apesar de todos os paradoxos e contradições presentes
nesse campo, alguns desses “desassossegados” nos mostraram
que nem todos ali queriam ser apenas “profissionais da disciplina,
da normalidade e da sujeição” (FOUCAULT, 1987, p. 245). Por isso,
optou-se por construir essa parte do texto fazendo uma análise
dos discursos e práticas dos psicólogos que trabalham no campo
jurídico e que estão envolvidos direta ou indiretamente com os
dois dispositivos citados acima. Esta análise se dará mediante
seus discursos (falados e/ou escritos) e a participação deles em
alguns movimentos políticos. Também serão analisadas as leis que
regulamentam os direitos e deveres desses profissionais nesses
espaços, assim como os do público a ser atendido por eles.
No que diz respeito à análise dos discursos dos operadores do
direito, esta foi realizada por meio dos enunciados proferidos por
eles em eventos em que estive como observadora participante,
além de ter pesquisado alguns processos jurídicos e artigos
escritos por juristas.
Contudo, antes de passar aos analisadores, aos discursos e ao
desassossego desses profissionais, trarei novamente Foucault,
pois considero que ele é um dos raros autores que viraram os
holofotes do pensamento para a máquina judiciária, que está
sempre tentando funcionar às escuras, iluminando apenas aqueles
que ela quer assujeitar. Pela inversão dessa lógica, ele dará “uma
luz” acerca de uma questão fundamental para os problemas
levantados neste texto, que é a busca da “verdade”.
3.1- Formas de produção de verdade
Conforme visto no segundo capítulo, ao discutir o “como do
poder”, Foucault (1999, p. 28) traz a imagem do triângulo poder,
direito e verdade. Além disso, percebe que os mecanismos de
poder operam entre dois pontos de referência: as regras de direito
que delimitam formalmente o poder e os efeitos de verdade que
esse poder produz, conduz e que, por sua vez, reconduzem-no. Por
isso, não podemos enfocar apenas os efeitos negativos do poder e
dizer que ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”,
“mascara”, “esconde”, pois o fato é que o poder é positivo porque
é produtivo; “ele produz realidade; produz campos de objetos e
rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode
ter se originam nessa produção” (Foucault, 1987, p. 159-161).
Assim, ao marcar a intensidade e a constância nessa relação
triangular, Foucault dirá ainda que: “O poder não para de
questionar, de nos questionar; não para de inquirir, de registrar,
ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a
recompensa. [...] somos igualmente submetidos à verdade, no
sentido de que a verdade é a norma” (FOUCAULT, 1999, p. 29).
O autor almeja enfatizar que a produção de discursos
verdadeiros traz consigo efeitos específicos de poder. Afinal, é
somente a partir de discursos “verdadeiros” que se classificam e
se julgam determinadas formas de viver e de morrer, denunciando
que as regras de poder jamais estão desvinculadas do poder de
tais discursos.
No livro Vigiar e punir, Foucault (1987, p. 185), ao pesquisar
sobre as formas de produção de verdade, menciona duas que nos
interessam particularmente: o exame e o inquérito.133 A primeira
por causa dos itens “Exame criminológico: o psicólogo como
lanterninha no breu da execução penal” e “Processos de captura e
envenenamento”, nos quais serão discutidos o trabalho dos
psicólogos nas prisões e a realização do procedimento “exame
criminológico”. O exame será analisado de forma mais minuciosa,
por ser uma técnica/prática amplamente utilizada pelos saberes
“psi”. A segunda em função da discussão do item “Depoimento
sem dano: proteção integral da criança ou da prova?”, sobre o
depoimento sem dano. Por isso serão feitos breves comentários a
seu respeito, na justa medida que isso ajude a entender esse
projeto que, apesar de estar revestido de uma roupagem
“humanizada”, demanda a participação de um psicólogo na
inquirição, embora não seja essa uma técnica/prática considerada
pertencente às profissões “psi”. Mas, na verdade, este
revestimento não é em vão, percebe-se também nesse
procedimento características típicas de técnicas disciplinares,
como o exame.
Portanto, distinguir as diferenças entre o exame e o inquérito,
assim como tentar compreender o ponto em que eles se
encontram, seja nos corredores do sistema judiciário e
penitenciário, seja de forma mais ampla, no que chamo de
territórios judicializados, no contemporâneo, se faz aqui
pertinente.
Foucault (1987, p. 185, 2005a, p. 12) dirá que o século XIX
inventou, a partir de problemas jurídicos, judiciários e penais,
formas de análise bem curiosas denominadas de exame (examen).
Este supõe um mecanismo que liga formação de saber a exercício
do poder e, ao realizar uma analogia desse acontecimento com a
invenção do inquérito judiciário, na Idade Média, o autor faz
também as devidas distinções entre ambos os procedimentos.
O processo do inquérito era uma técnica fiscal e administrativa
que se desenvolveu especialmente com a reorganização da Igreja e
o crescimento dos Estados principescos, nos séculos XII e XIII
(Idade Média), momento em que o mundo ocidental começava a
conquista econômica e política desse mesmo mundo. Nesse
período, ele adentrou na jurisprudência dos tribunais eclesiásticos
e, depois, nas cortes leigas. Funcionava de forma diferente dos
antigos processos do juramento, pois era uma “pesquisa
autoritária de uma verdade constatada ou atestada. O inquérito
era o poder soberano que se arrogava o direito de estabelecer a
verdade através de um certo número de técnicas regulamentadas”
(Foucault, 1987, p. 185). Era, portanto, um processo vindo de cima
para baixo.
O filósofo destaca, também, que o inquérito foi uma peça
fundamental, a matriz jurídico-política para a constituição das
ciências empíricas ou da natureza no fim da Idade Média, e tem
seu modelo operatório na Inquisição. E que, embora essa técnica
tenha se incorporado à Justiça ocidental, chegando até aos nossos
dias, não podemos esquecer “sua origem política, sua ligação com
o nascimento dos Estados e da soberania monárquica, nem
tampouco sua derivação posterior e seu papel na formação do
saber” (Foucault, 1987, p. 185).
Quanto ao exame, Foucault procura por sua emergência na
formação de um certo número de controles políticos e sociais no
momento da formação da sociedade capitalista, no final do século
XIX. Para o filósofo, na modernidade, saímos da “era da justiça
inquisitória” para “a justiça examinatória”, na qual o procedimento
do exame estende-se à totalidade da sociedade porque se instaura
a partir de uma especificidade de uma relação entre saber e poder
alicerçada na política do corpo, numa certa manobra que o torna
dócil e útil. Essa manobra que parte de uma técnica para
entrecruzar a sujeição e a objetivação incluía novos
procedimentos de individualização, implicando, por sua vez,
diversos mecanismos de enclausuramento. Por isso, “a rede
carcerária constitui uma das armaduras desse poder-saber que
tornou historicamente possíveis as ciências humanas”. Ou seja, a
emergência das “ciências do homem” ou “clínicas”, no fim do
século XVIII, marca a entrada do indivíduo (e não mais da espécie)
no campo do saber. O homem “conhecível” é o efeito-objeto desse
investimento analítico, dessa “dominação-observação” e, por isso,
“o procedimento do exame pôde dar lugar às ciências do homem”
(FOUCAULT, 1987, p. 252).
Para Foucault (1987, p. 159, 186), é “nesses arquivos de pouca
glória onde foi elaborado o jogo moderno das coerções sobre os
corpos, os gestos, os comportamentos” que encontraremos
algumas respostas para o problema da entrada da descrição
singular, do interrogatório, da anamnese, dos testes, das
entrevistas, das consultas, dos processos, no funcionamento geral
do discurso científico. “Tais formas de análise deram origem à
Sociologia, à Psicologia, à Psicopatologia, à Criminologia, à
Psicanálise” (FOUCAULT, 2005a, p. 12).
Segundo o autor, o exame parece ter sofrido uma depuração
especulativa quando se integrou e se difundiu amplamente entre
esses “estranhos conhecimentos” (a psiquiatria, a psicologia, a
criminologia). Para ele, todas as ciências, análises ou práticas com
radical “psico” substituem os mecanismos de individualização
histórico-rituais pelos científico-disciplinares, nos quais “o normal
tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status,
substituindo assim a individualidade do homem memorável pela
do homem calculável”; foi assim que as ciências do homem
emergiram junto a uma nova tecnologia do poder e uma outra
anatomia política do corpo (FOUCAULT, 1987, p. 252).
Mas toda essa produção só foi possível por causa de outra
estratégia operada pelo poder disciplinar, que é a da “iluminação”;
é só lembrar como este capítulo começou, contando que os
promotores públicos acham que podemos “dar uma luz” a eles
sobre “quem são os presos”. Isso quer dizer que as técnicas
disciplinares operam num regime de invisibilidade de si próprias e
de iluminação daqueles que elas assujeitam.134 O exame vale como
uma cerimônia na qual se realizará o exercício do poder até em
seus graus mais baixos, pois é por essa “visibilidade obrigatória”
que esse poder impõe que os indivíduos são diferenciados,
sancionados, captados num mecanismo de objetivação
(FOUCAULT, 1987, p. 156).
A sobreposição das relações de poder e de saber “assumem no
exame todo o seu brilho visível”. Pois, ao combinar as técnicas da
hierarquia que vigiam e as da sanção que normalizam, o exame se
torna um “controle normalizante” e uma “vigilância que permite
qualificar, classificar e punir”. Nesse procedimento se reúnem “a
cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da
força e o estabelecimento da verdade” (FOUCAULT, 1987, p. 154).
De acordo com Foucault, o exame também provocará outro
efeito, que é situar a individualidade num campo documentário,
colocando os indivíduos num campo de vigilância e numa rede de
documentos que os captam e os fixam, pois esse “aparelho de
escrita” carrega em si duas possibilidades que são correlatas: a
objetivação dos indivíduos e a constituição de um sistema
comparativo entre eles. Esse “poder de escrita” é constituído
como uma peça essencial nas engrenagens da disciplina, pois ele
produz documentos do tipo administrativo e também aqueles
realizados por meio de técnicas particulares. Ele consegue fazer de
cada indivíduo um “caso”.135 É desse período que vem a formação
de uma série de códigos da individualidade disciplinar e, apesar
de sua rudimentaridade, eles marcam o momento de uma primeira
“formalização” do individual dentro de relações do poder
(FOUCAULT, 1987, p. 157-158). O código médico de sintomas é um
deles, e existe até hoje, conforme citado no primeiro capítulo, o
Código Internacional de Doenças (CID10).
Ao contrário do inquérito, a técnica disciplinar invadiu, como
que por baixo, uma Justiça penal que é ainda, em seu princípio,
inquisitória. A penalidade moderna se caracteriza por se
preocupar mais com o criminoso do que com seu crime, pois
antes de receber a pena o indivíduo será inquirido, investigado,
examinado para descobrir-se aquilo que, nele, é invisível e que o
fez cometer o delito (seus comportamentos, apetites, instintos,
pulsões etc.). Isso é o que decidirá a pena a ser recebida. Portanto,
não será mais pelo que ele fez, mas pelo que dizem que ele é que
ele será punido, e seja lá o que for dito, ele precisará passar por
processos terapêuticos de avaliação, correção e normalização. É
assim que se produz o indivíduo disciplinar.
O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório
sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação
minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a
constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de
uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que
seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma
norma inacessível e o movimento assintótico que obriga a encontrá-la no
infinito. [...] A “observação” prolonga naturalmente uma justiça invadida pelos
métodos disciplinares e pelos processos de exame. (Foucault, 1987, p. 186-187)

De acordo com Foucault, o que o inquérito político-jurídico,


administrativo, criminal, religioso e leigo foi para as ciências da
natureza, a análise disciplinar foi para as ciências do homem
(FOUCAULT, 1987, p. 185-186). As ciências com que nossa
“humanidade” se encanta, há mais de um século, têm sua matriz
técnica na minúcia tateante e maldosa das disciplinas e de suas
investigações. E, ao contrário do inquérito que deu lugar às
ciências da natureza, mas destacou-se de seu modelo político-
jurídico, o exame permaneceu preso à tecnologia disciplinar que o
formou e continuou uma peça intrínseca das disciplinas.
Nos itens a seguir, serão discutidos o exame criminológico e o
depoimento sem dano, dois dispositivos que funcionam no campo
jurídico com a participação de psicólogos e nos quais podemos
visualizar resquícios do poder soberano, por meio do inquérito
realizado no depoimento sem dano, e fantasmas das técnicas
disciplinares, como o exame criminológico, mas com uma
diferença: não vivemos mais sob a égide de um poder soberano ou
disciplinar, mas num campo no qual as forças são regidas pela
lógica de um poder sobre a vida, o biopoder.
Também se verá como os psicólogos são capturados por essas
forças e como tentam operar desvios em relação a essa captura.
3.2 - Exame criminológico: o psicólogo como lanterninha no
breu da execução penal
Ao ouvir, diversas vezes, dos promotores públicos:136 “o exame
criminológico te dá uma luz sobre aquela pessoa que eu não
tenho”, repito a pergunta de Foucault (1987, p. 186): “quem será o
Grande Vigia que fará [...] [o] exame, para as ciências humanas?”
Essa fala, recorrente entre os promotores, é enunciada para
justificar a “necessidade” de os psicólogos continuarem a fazer os
exames criminológicos. Por isso, buscou-se entender, até que
ponto a resposta para a pergunta de Foucault seria: “o
psicólogo”.137
No que diz respeito aos aspectos legais, os psicólogos que
trabalham em prisões138 têm suas funções determinadas em nível
nacional pela Lei de Execução Penal (LEP) nº 7.210 de 11/7/1984,
alterada pela Lei de nº 10.792 de 1/12/2003.139 Uma das exigências
da LEP é que cada estado crie sua própria regulamentação, por
isso, o estado do Rio de Janeiro criou, por meio do Decreto nº
8.897 de 31/03/1986, o Regulamento Penitenciário do Estado do Rio
de Janeiro (RPERJ), baseado na LEP de 1984.
A LEP instaura, em 1984, a Comissão Técnica de Classificação
(CTC) pautada em características do pensamento positivista.140
Essa comissão tem por objetivo realizar o exame criminológico
inicial do condenado para que se possa conhecer sua
personalidade e traçar um plano de tratamento adequado de
acordo com o princípio individualizador da pena,141 além de fazer o
acompanhamento de sua execução. Essa comissão avaliadora é
formada por uma equipe multidisciplinar composta de um
psiquiatra, um assistente social, um psicólogo e dois chefes de
serviço.
De acordo com o art. 6º da lei citada anteriormente: “A
classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação que
elaborará o programa individualizador e acompanhará a execução
das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos,
devendo propor, à autoridade competente, as progressões e
regressões dos regimes, bem como as conversões”.
O exame criminológico era o instrumento pelo qual o
psicólogo, por meio da CTC, emitia seus pareceres a respeito do
“programa individualizador da pena”, fazia o acompanhamento de
sua execução e, por último, mas não menos importante, enunciava
sua opinião sobre as condições de o detento obter ou não a
progressão, regressão e conversão de regime e o livramento
condicional. Conforme verifica-se ao se analisar o art. 112 da LEP,
em 1984:
A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva,142 com a
transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o
preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu
mérito indicar a progressão.
§ único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica
de Classificação e do exame criminológico, quando necessário.

Porém, com a alteração da LEP, em 2003, percebe-se que foi


aplicado o princípio de jurisdicionalização da execução penal
sobre a individualização da pena, conforme verificado a partir da
alteração dos artigos 6º e 112 da lei em questão. O art. 6º mudou
para: “A classificação será feita por Comissão Técnica de
Classificação que elaborará o programa individualizador da pena
privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso
provisório”.
Já o art. 112 alterou-se para:
A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a
transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o
preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar
bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento,
respeitadas as normas que vedam a progressão.
§ 1º A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério
Público e do defensor.
§ 2º Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento
condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas
normas vigentes.

Depois das alterações em 2003, o psicólogo fica desobrigado,


pelo art. 6º, de realizar exames criminológicos para fins de
acompanhamento da execução das penas privativas de liberdade e
restritivas de direitos. Também não lhe cabe mais a função de
propor à autoridade competente as progressões, regressões e
conversões de regime, nem o livramento condicional, pois esta
decisão passou a ser “sempre motivada143 e precedida de
manifestação do Ministério Público e do defensor”. É a isto que se
chama, no meio jurídico, de “jurisdicialização” da individualização
da pena, já que quem terá de propor a progressão e apresentar
requerimento com o motivo, a causa ou seu fundamento são os
operadores jurídicos. E o parecer sobre o comportamento do
preso? Passou a ser função da administração (gestão) carcerária.
O art. 112 é um dos pontos fundamentais para essa discussão.
Por meio dele podemos verificar algumas coisas: a primeira é que,
em 1984, ainda havia uma demanda dirigida aos técnicos da
Comissão Técnica de Classificação, entre eles o psicólogo, para
emissão de pareceres que iriam compor o exame criminológico.
Porém ressalta-se que, desde essa época, já se dizia que era para
emiti-lo apenas “quando necessário”, não sendo, portanto,
obrigatório em todos os casos.
Entretanto, um dos motivos que deram origem a essa pesquisa
foi justamente a constatação de que, embora a LEP tenha sido
alterada em 2003, esse exame continua a ser pedido aos
psicólogos nos casos de progressão de regime e livramento
condicional, ignorando-se a mudança. E o mais interessante é o
fato de ser pedido justamente pelas duas categorias de operadores
do direito que deveriam argumentar sobre a progressão: o
promotor e o defensor. No primeiro caso, para que o apenado
continue preso e, no segundo, para que ele seja solto. Por isto,
algumas perguntas se tornam indispensáveis: por que nem os
operadores do direito, nem a gestão carcerária querem dar
“motivos” para o preso mudar de regime? Este exame serve para
quê e para quem? E, por que o psicólogo continua fazendo?
Segundo Rauter (1992, p. 22), “observando-se mais
atentamente, pode-se concluir que alguns promotores pedem o
exame não porque acreditam nele, mas porque ‘está na lei’ [...]
Quer dizer: por uma postura muito mais legalista do que por uma
crença nos exames.” A autora confirma o que se tenta mostrar
desde o início deste capítulo, pois apesar da alteração na LEP, os
operadores do direito, sobretudo os da promotoria, continuam
“tentando” fundamentar seus pedidos de exame “na lei”, mas,
nesse caso, aquela prescrita pelo Código Penal, por meio dos
artigos 33 e 83.
De acordo com o art. 33, na seção I – Das penas privativas de
liberdade – Reclusão e detenção, § 2º – “As penas privativas de
liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o
mérito do condenado, observados os seguintes critérios e
ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso
[...]”. Após lê-lo, pergunta-se: quem seria o profissional mais
indicado para determinar o “mérito do condenado”? Porque o
Código em questão não diz.
O outro artigo apontado é o 83 do C. P., que no item V,
parágrafo único, diz:
O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa
de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que:
[...] V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por
crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa
natureza.
§ único - Para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave
ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à
constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não
voltará a delinquir.

Apesar de o art. 83 referir-se apenas ao livramento condicional


e não à progressão de regime, o que se observa, na prática, é que
ele tem sido utilizado também para fundamentar o pedido de
exame para a progressão de regime. Além disso, nota-se ainda que
ele também não contém uma referência direta ao exame
criminológico ou ao parecer, assim como não se refere ao
profissional de psicologia, porém, em seu conteúdo, solicita a
“constatação de condições pessoais que façam presumir que o
liberado não voltará a delinquir”. Vemos que apesar de a indicação
do art. 83 sofrer uma pequena modulação em relação ao art. 33,
deixa no ar uma pergunta similar: quem poderá presumir se o
liberado voltará ou não a delinquir?
Em 19/2/2004, a Vara de Execução Penal do Estado do Rio de
Janeiro elaborou um documento intitulado: “Uniformização das
decisões”, com o objetivo de evitar atitudes diferenciadas entre os
seus juízes. Entre os 24 enunciados de que o documento é
composto, subtraímos o de nº 19: “A lei 10.792, de 01/12/2003, não
retirou do juiz da Execução a faculdade de, no caso em concreto,
requisitar o exame criminológico do apenado como meio de aferir
o preenchimento do requisito subjetivo à concessão do livramento
condicional.” (BANDEIRA BADARÓ, 2003, p. 25). No entanto,
destaca-se que o documento não menciona o profissional da
psicologia.
Não nos cansamos de perguntar: por que o Ministério Público,
a Defensoria Pública, os juízes da VEP e alguns psicólogos,
sobretudo no Rio de Janeiro, insistem em manter a crença de que
existe a real possibilidade de individualizar a pena e de que nós,
psicólogos, temos de fazer isso, além de ter de dizer se os presos
voltarão ou não a delinquir? Por que o procurador-geral de Justiça
do Rio de Janeiro defendeu em 7/10/2009, em audiência pública na
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, a
obrigatoriedade do exame criminológico, conforme publicado no
Jornal do Ministério Público de igual data?
Se fôssemos juristas, com essa “argumentação legalista” na
qual mostramos que não existe mais nenhuma lei em vigor que
obrigue o psicólogo a fazer o exame criminológico, ganharíamos
essa causa e não precisaríamos mais realizar esse procedimento.
Ou ainda, se acreditássemos em coisas como: “bola de cristal”,
“cartomante”, e “exame criminológico”, já teríamos achado
respostas para as nossas questões. Mas, como gostamos de
pensar, conseguimos achar algumas respostas para o fato de os
operadores do direito não quererem, em suas manifestações,
assumir a responsabilidade sobre a constatação das condições
pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a
delinquir. Uma delas é que, em nosso estado, e arriscaria dizer em
nosso país, não existem políticas públicas efetivas dirigidas ao
egresso,144 para auxiliá-lo na busca de condições mínimas de
sobrevivência, como moradia e trabalho, sendo a reincidência
criminal um caminho produzido pelo próprio sistema. Também
constata-se, ao longo desta pesquisa, que a maioria dos
operadores do direito não vai aos presídios “examinar” os presos,
muito menos a própria prisão. Talvez eles tenham perdido a
lanterna ainda na universidade. Sendo assim, seria impossível
esperar que eles dissessem se aquelas pessoas “merecem” ou não
sair dali, pois tudo o que eles aprenderam é que eles próprios não
“merecem” estar ali.
Mas, como a “Justiça é cega”145 e como todo cego precisa de
uma bengala, ela dirá que quem tem de se prestar a fazer este
serviço de guiá-la na escuridão é o psicólogo. Afinal, somos
“iluminados” o suficiente para fazer tais “previsões sobre o mérito
e o comportamento”.146 Contudo, temos de lembrar que não são as
leis que determinam nossas práticas, mas nossas práticas que
legitimam as leis. Afinal, os psicólogos, em algum momento,
ocuparam esse lugar e continuam ocupando até hoje!
Ressaltamos que, após analisar o Código de Ética dos
psicólogos e as resoluções complementares que regulamentam a
profissão, não encontramos nenhum item que trate de exame,
muito menos o do tipo “criminológico”. Conforme a Resolução CFP
nº 007/2003, que institui o Manual de Elaboração de Documentos
Escritos produzidos pelo psicólogo decorrentes de avaliação
psicológica, no Item II – Modalidade de documentos, podemos
verificar quais são os documentos que podem ser produzidos por
psicólogos e como devem ser confeccionados: atestado
psicológico, relatório/laudo psicológico, declaração e parecer
psicológico. Os dois últimos não são considerados documentos
decorrentes da avaliação psicológica. Portanto, concluímos que o
exame não é reconhecido como um instrumento técnico pelo
Sistema Conselhos de Psicologia. Assim como não é considerado
um procedimento de avaliação psicológica.
Porém, todos os “indícios” nos levam a crer que os operadores
do direito, muitas vezes, parecem vincular a individualização da
pena, assim como a concessão da progressão de regime e do
livramento condicional, ao exame criminológico realizado pelo
psicólogo. Digo “muitas vezes” e não sempre, porque não há uma
unanimidade entre os operadores do direito em relação a essa
questão, como veremos a seguir.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo posicionou-se
recentemente a favor da retirada do exame criminológico dos
casos de progressão de regime, por meio da Proposta de Súmula
Vinculante nº 3, apresentada ao Supremo Tribunal Federal pela
Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 31/3/2009. Neste
documento, o autor Rafael Ramia Muneratti defende a
inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 8.072, de 1990, que fala
sobre a progressão de regimes em crime hediondo e solicita que
“seja expurgado do nosso ordenamento jurídico [...] a
possibilidade de confecção do exame criminológico como
elemento para concessão de benefícios na execução da pena, uma
vez que, além de ter questionável utilidade nos seus prognósticos,
é fortemente condenado pelos próprios profissionais que o
confeccionam”. Curiosamente o autor utilizou, para fundamentar
seu texto, vasto material retirado do site do CRP-05/RJ.
No estado do Rio de Janeiro, no que diz respeito ao
posicionamento da Defensoria Pública, não se pode dizer que haja
unanimidade, mas alguns defensores têm-se posicionado
publicamente pelo fim do exame criminológico para fins de
concessão de progressão de regime. Citamos pelo menos um
caso,147 que ocorreu no momento da escrita deste trabalho, em
que a Defensoria Pública, na pessoa de Renata Bessa, optou por
solicitar a progressão de regime para vários presos em um habeas
corpus coletivo, independentemente da exigência do exame, com

uma argumentação foucaultiana e “garantista”, já que foi fundada


na Constituição de 1988, em particular no Título II, capítulo I – Dos
Direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º, item X, que diz
que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem da pessoa, e ainda, no item LV, que diz que aos acusados
são assegurados o contraditório e a ampla defesa, além de
acentuar que todos os pleiteantes cumpriam as exigências do art.
112 da LEP (Lei 10.792/2003). Seu pedido foi concedido, em 2009,
pelo desembargador Sergio Verani.
Em reunião realizada pelo CRP-05148 com representantes da
Defensoria Pública e do Ministério Público,149 pudemos verificar
alguns enunciados interessantes nessa discussão, por exemplo,
um dos defensores considerou o exame criminológico “como uma
prática antidemocrática na medida em que, por ser um parecer
técnico, não admite o contraditório, não podendo ser contestado”.
Mas os promotores presentes afirmaram “que um parecer técnico
não tem a ver com a defesa e o contraditório”. Eu estava presente
nessa reunião e ouvi de um dos promotores que o que estávamos
fazendo ali “nada tinha a ver com democracia”.
Não resisti e, após esse encontro, consultei a nossa
Constituição Federal de 1988 e, para nossa surpresa, olha o que
encontramos: no Título IV – Da organização dos Poderes, no
capítulo IV – Das funções essenciais à Justiça, seção I – Do
Ministério Público, o art. 127 no qual consta que: “O Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional
do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Que falta faz uma lanterna!
Nessa mesma reunião os promotores “expressaram a
necessidade da permanência do EC. [...], pois alegaram que este é
o único instrumento no processo da execução penal que permite
entrever a pessoa do condenado, sendo por isso elemento
imprescindível à sua manifestação diante dos pleitos em
julgamento”.150
E, ao serem por mim indagados a respeito das alterações da
LEP, os promotores responderam que “a decisão do STF deixa
clara a possibilidade de o Juízo solicitar a realização dos exames
que julgar necessários à sua decisão, porque se apoia no art. 83 do
CP”.151 Essa resposta advém do fato de que é comum, por parte
dos operadores de direito, utilizarem-se do artifício da
jurisprudência152 para fundamentar suas argumentações de uma
forma geral, e no caso do exame criminológico, verificamos que
eles a utilizam tanto para que ele não seja mais pedido, quanto
para que ele continue sendo pedido.
No que diz respeito à expectativa dos promotores em relação
ao trabalho do psicólogo por meio do exame criminológico, fomos
presenteados, nessa mesma reunião, com outras “falas-pérolas”,
que juntas dariam um colar, ou melhor, uma coleira, pois são
frases desse tipo que capturam alguns psicólogos que se sentem
seduzidos por essa demanda, porque ela lhes dá um “pseudo”
lugar de poder dentro do campo jurídico-penal.
Os crimes relacionados à sexualidade são um tabu para eles,
como vemos aqui e também mais adiante: “As representantes do
MP [...] apontaram que em certos delitos, como por exemplo, o
estupro, o exame criminológico seria indispensável”.153
Ao serem questionados sobre que tipo de informações a
promotoria esperava obter desse exame, responderam: “que
esperam que o exame faça um traçado da subjetividade do
indivíduo [...]. Assim, para conceder o benefício seria necessário
avaliar se o apenado tem condições de aceitar as novas regras, a
partir de seu comportamento na prisão.154
Algumas falas recolhidas no meu diário de campo acerca dessa
reunião também mostram as expectativas dos promotores em
relação à psicologia que eles querem encontrar. Ao afirmarem que
se apoiam no parecer “porque o parecer é isento, é feito por um
técnico”, acreditam que o psicólogo pode fazer “um perfil da
pessoa” e fornecer “um laudo que dê algum tipo de respaldo”.
Afirmam também que não acreditam que o exame irá prever se o
preso cometerá um crime ou não, mas que “auxilia, respalda e dá
uma noção de quem é o sujeito”.
No final, os representantes do Ministério Público possibilitaram
a confirmação daquela suspeita de que eles não costumam
circular pelas galerias da prisão e que não passam de meros
maquinistas da burocracia, pois disseram que, na hora de decidir
pela progressão, eles querem ver “algo mais que papéis”;155
provavelmente, esse é mais um dos motivos que fazem com que
eles precisem tanto das ciências “humanas” (psicologia) na prisão.
Afinal, eles supõem que de “humanos” entendemos nós! Dizem
ainda “que têm encontrado nas entrelinhas do exame dados que,
muitas vezes, orientam suas decisões, já que, mesmo tendo um
contato pessoal, mínimo que seja, com o apenado, o psicólogo
deixa, por vezes, transparecer informações de ordem mais
subjetivas que podem nortear o promotor”.156
Ocorreram outras reuniões dos psicólogos que trabalham em
presídios com a participação de representantes do CRP-05/RJ e do
Ministério Público, tendo como objetivo discutir sobre o exame
criminológico. Na segunda delas, em 15/9/2009, realizada no MP,
apenas com a presença do CRP-05/RJ e de alguns psicólogos que
trabalham em presídios, com Ata157 redigida pelo MP, consta que:
Novamente foi dito que posicionamento do CRP é contra a elaboração do exame
criminológico, da forma como é feito. No entanto, não foi apresentado pelos
psicólogos nenhum modelo ou projeto de algo que possa substituí-lo. [...]
sugeriu [se] que o CRP apresente o substitutivo ao exame criminológico, de
forma clara e objetiva. Os Promotores de Justiça presentes concordaram que o
exame criminológico não pode ser abolido definitivamente, mas alterações e
ajustes devem ser feitos inclusive com ponderações do próprio CRP e dos
Psicólogos que atuam no sistema prisional. Ficou acertado a criação de
comissões para avaliação de critérios coletivos.

No dia 26/1/2010 ocorreu outra reunião, também nas


dependências do MP, dessa vez contando com a presença da
coordenação de psicologia e de saúde da SEAP, do CRP-05/RJ e de
alguns psicólogos prisionais. E, segundo a coordenação de
psicologia, no ano de 2009 ocorreram 37.798 atendimentos em
contrapartida a 42.900 exames criminológicos. A coordenadora da
promotoria esclareceu que “o trabalho do Ministério Público não é
obstaculizar a vida do preso e que o trabalho dos psicólogos não é
o trabalho de um ‘informante’”. O conteúdo da reunião não foi
muito diferente daquele das anteriores, psicólogos dizendo das
dificuldades em relação à realização do exame e demonstrando o
desejo de atuar na área da assistência e da saúde, e os promotores
afirmando a necessidade de que eles permaneçam como peritos
fazendo o exame criminológico. Mas, após a discussão, “decidiu-se
pela realização de reuniões para se discutir uma proposta de
Exame Criminológico, bem como as hipóteses em que esse possa
ser dispensado”.
No dia 5/5/2010 houve a quarta reunião, também no Ministério
Público, com a participação do CRP-05, da Coordenação de
Psicologia da SEAP, de alguns psicólogos que trabalham na SEAP,
de um representante da Defensoria Pública e do MP. Estavam
presentes um psiquiatra, um psicólogo e alguns promotores. Nessa
última reunião, a coordenadora da promotoria “reforçou que o MP,
institucionalmente, é favorável à realização do exame
criminológico de modo que não cogita sua extinção”.158 Já o
representante da defensoria informou que participou de uma
reunião anterior com o juiz titular da VEP e que este “não abre
mão do exame criminológico”. Também comunicou que a
“Defensoria Pública, institucionalmente, reconhece a validade do
exame em questão, razão pela qual os requerimentos são feitos
pelos Defensores Públicos, respeitada a independência funcional
do defensor que discorde”. Disse também que “por visar defender
o interesse individual do preso, considerando que o juiz da VEP irá
exigir o exame criminológico, os defensores se antecipam no
pedido a fim de ganhar tempo”. Ressaltou ainda que “decisões dos
Tribunais estão confirmando a necessidade do exame”. Porém se
colocou como “favorável à flexibilização desses requerimentos
somente para alguns casos, reduzindo a quantidade de exames
realizados para a melhoria da qualidade dos mesmos”.
Pelo que foi visto, por meio dos discursos dos operadores do
direito, pode-se até entender melhor os escritos de Foucault,
assim como a pertinência do segundo capítulo deste livro, além do
fato de termos respondida a questão: “com que psicologia o
direito quer se encontrar?”
Contudo, como se sabe que isso não é um jogo maniqueísta em
que estão operadores do direito “malvadinhos” de um lado, e
psicólogos “bonzinhos” do outro, tenho de dizer que encontrei, ao
longo desta pesquisa, alguns psicólogos que passariam por
promotores facilmente, em função da semelhança de seus
discursos. De acordo com o posicionamento de um “psicólogo”159
do Ministério Público do Paraná, um dos objetivos do exame
criminológico é: “Compreender a morfologia do delito mediante a
análise do fato cometido, o conhecimento dos aspectos da
dinâmica da personalidade do agente causador, bem como a
natureza dos estressores psicossociais presentes por ocasião da
prática do delito ilícito (local psicológico do crime)”. E ainda que
esse procedimento: “Não comporta devolutiva para o interno, pois
está voltado para o ato criminoso e não tem vínculo com a pessoa
presa”. Resta-nos a pergunta: se não tem vínculo com quem está
preso e sendo submetido ao exame, tem com quem?
Em busca de uma compreensão mais ampla dessa
problemática, recorri às instâncias jurídicas superiores,
comumente citadas pelos operadores do direito quando querem
se referir à jurisprudência. Para tanto, foram analisados alguns
processos que tratam do exame criminológico que tramitavam no
Supremo Tribunal Federal (STF) e que se encontravam na
Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. Não foi encontrado
nenhum processo sobre esse tema, oriundo do Rio de Janeiro, que
houvesse chegado até essa instância do Judiciário, nos últimos
dez anos. Pelo visto, em nosso estado, as coisas são resolvidas nas
instâncias locais mesmo.
Na maior parte dos processos avaliados, um determinado
enunciado se repetia: “Conforme entendimento firmado neste
supremo tribunal, a superveniência da Lei nº 10.792/2003 não
dispensou, mas apenas tornou facultativa a realização de exames
criminológicos, que se realiza para a aferição da personalidade e
do grau de periculosidade do sentenciado”. Cabe observar que
este enunciado também é repetido pelos promotores do estado do
Rio de Janeiro.
Entre os processos analisados, foram escolhidos três, em
função da convergência com o tema do exame. Todos eles foram
impetrados por meio de habeas corpus no estado do Rio Grande do
Sul e têm elementos (discursos) em comum.
No primeiro deles,160 a Defensoria Pública argumenta que a
progressão de regime não deve ser subordinada ao exame
criminológico, pois, neste caso, seu cliente já havia conseguido
junto à Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre a progressão
por meio do atestado de bom comportamento e do cumprimento
de 1/6 da pena, conforme exige a LEP. Mas, inconformado, o
Ministério Público interpôs agravo alegando que o “paciente”161
não preenchia os requisitos subjetivos para a progressão e solicita
o exame criminológico, já que o laudo psicossocial mencionava
que o preso: “apresenta fugas, as quais atribui a problemas com os
apenados.” O agravo foi aceito e a defensoria impetrou um habeas
corpus no STF alegando que, segundo o próprio laudo psicossocial,

há uma indicação clara para a progressão de regime, quando diz


que o apenado: “[...] vem buscando lentamente a sua auto-
identificação com as questões externas, incluindo o resgate afetivo
com sua mãe, do qual terá resultado positivo caso venha a
cumprir pena em regime mais brando [...]”. Aqui, o pedido da
defensoria foi deferido.
Vemos nesse caso como um único laudo, escrito em conjunto
pelo psicólogo e o assistente social, é utilizado pelos operadores
do direito, de acordo com a conveniência de cada um. E isso
acontece com frequência nos processos judiciais. Sabem aquele
jargão: “tudo o que disser poderá ser usado contra você”? No caso
do psicólogo ele serve, mas viria com um complemento: “tudo o
que você escrever poderá ser usado contra o preso” e, em último
caso, até contra a própria psicologia. Foram inúmeros os relatos
que escutei de casos em que o psicólogo realizou o exame ou um
parecer e, após a saída do preso, este cometeu algum tipo de
infração e as notícias veiculadas pela mídia, acerca desses casos,
sempre responsabilizam o profissional que emitiu o documento.
No segundo processo162 analisado, a Defensoria Pública
também impetrou um habeas corpus em favor de um apenado cuja
progressão de regime já havia sido concedida na instância local. O
processo, porém, caiu em exigência, em função da apresentação
de um agravo pelo Ministério Público, que alegava a necessidade
de realizar um exame criminológico devido à ausência de
preenchimento do requisito subjetivo passível de ser averiguado
pelo laudo psicológico “desfavorável” contido nos autos. O agravo
foi aceito, e podemos ver com clareza a expectativa do Judiciário
em relação ao trabalho do psicólogo por meio do pronunciamento
do juiz-relator do recurso no Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul:
Nada impede que o Juiz da Execução, no propósito de bem aquilatar da presença
ou não do mérito, se valha de outros elementos de convicção, como parecer
técnico emitido por profissionais, que pelo emprego de técnicas científicas que
mais se aproximem da alma das pessoas, capacitando-se proclamar ter ou não o
cumprimento da pena permitido que o condenado passou a trilhar o desejável
caminho da ressocialização.

Creio que qualquer comentário soaria redundante, tendo em


vista a clareza das palavras do magistrado acima citado em
relação à psicologia que o Judiciário deseja fazer circular em seus
corredores.
Ainda de acordo com o laudo psicológico desse processo,
podemos ler:
[...] V [...] refere ter 45 anos e vínculos laborais frágeis ao longo de sua vida. [...]
envolveu-se em tráfico de drogas para ganhos mais fáceis e rápidos. [...] Mostra-
se influenciável, sem perspectiva desmotivado para perceber no momento o
envolvimento ilícito e as consequências que a prática do tráfico, desencadeia
para quem utiliza e a destruição emocional que resulta. Não consegui avaliar a
gravidade de tal situação, o que no momento, resulta ainda, em pensamentos
regidos pelo princípio do prazer, onde o comportamento e a conduta é regida
pela gratificação impulsiva, imediata, apesar da privação de liberdade
vivenciada no momento. A ausência de crítica interna, prejudica seu juízo de
valores, impedindo reformulações internas importantes, para permanecer no
regime semi-aberto sem atuar condutas ilícitas, no atual momento. Não reúne no
momento, condições psicológicas, que permitam beneficiar-se com a progressão
solicitada, deve permanecer vinculado à atividade laboral fixa, como auxiliar de
plantão, ofício que já executa no momento, cumprindo regras, horários, a
normas pertinentes à instituição, fator que possibilitará condições futuras, de
rever comportamentos, para incluir-se na sociedade, sem ter que recorrer ao
tráfico, como meio de sobrevivência.

Podemos nos perguntar se este laudo é fruto do exercício de


alguma nova especialidade da psicanálise, ou é um retorno
daquela “psicanálise criminal” do início do século XX, da qual
falamos no segundo capítulo? Esse profissional parece que
desenvolveu uma nova técnica para atender à demanda do
sistema jurídico-penal de o aproximar da alma das pessoas:
“Futurologia psicanalítica”. Mas, apesar desse “show de horrores”,
o pedido da defensoria foi deferido.
Como vemos, não são apenas as forças jurídicas que nos dão
um lugar nesse campo, nós também construímos nossas práticas e
as legitimamos. O problema é quando os profissionais não se
implicam ética e politicamente no que estão fazendo, a ponto de
dizer, em um documento, que uma pessoa não tem condições
“psicológicas” que lhe permitam permanecer no regime
semiaberto sem atuar em condutas ilícitas. E a ilicitude de um
parecer como esse, ninguém questiona?
O terceiro processo163 é muito interessante. O apenado, que já
havia cumprido ¾ da pena e tinha atestado de bom
comportamento carcerário, conforme exige a LEP, havia tido sua
progressão de regime deferida pelo juiz local. Todavia, o Ministério
Público entrou com um pedido no STF para revogar essa
progressão e exigir que um exame criminológico fosse realizado. A
argumentação se fundou em um laudo psicossocial relativo a uma
condenação anterior, que aquela pessoa já havia cumprido,
conforme verificamos no trecho abaixo, retirado da argumentação
da promotoria contida no processo:
Até o momento, o apenado não se envolveu com o cometimento de infrações
disciplinares. Contudo, no cumprimento de sua condenação anterior, registrou
uma fuga de um ano do semi-aberto. Em função desse tipo de conduta no
transcurso da execução criminal antecedente e por ter se envolvido
rapidamente em outro delito assim que saiu em liberdade, [o exame] sugere um
prognóstico reservado quanto sua capacidade de se manter adequadamente em
regime mais brando.

O laudo psicossocial em que o promotor acima citado se funda


também recomendava a manutenção do regime fechado, vide “a
ausência de planos para o futuro do apenado”.
Verifica-se aqui, mais uma vez, como o discurso “psi” é
utilizado como recurso para tentar impedir a progressão de regime
penal. E os psicólogos, por sua vez, se submetem a esse papel de
produzir “carreiristas da indisciplina”, como diria Rauter (2003). A
propósito, nesse caso, o pedido da Defensoria Pública também foi
deferido. Ou seja, o indivíduo foi mais uma vez penalizado por um
crime cuja sentença já havia pago e também pela ausência de
políticas públicas para os egressos.
Conforme citado anteriormente, o art. 112 da LEP vincula a
progressão de regime ao cumprimento de 1/6 da pena no regime
anterior e ao fato de o apenado “ostentar bom comportamento
carcerário”. Porém, é muito interessante observarmos que na
argumentação dos operadores do direito, o entendimento a
respeito dessa “avaliação” sobre o comportamento não é unânime.
Os promotores públicos afirmam que “comportamento” é um
requisito subjetivo, só podendo ser verificado por meio de um
exame criminológico realizado por um psicólogo. Já os juízes e
defensores, quando aceitam a alteração do art. 112, argumentam
que o requisito subjetivo é o atestado de bom comportamento
carcerário emitido e comprovado pelo diretor do estabelecimento.
Não achamos isso um fato banal.
O breve estudo dos processos analisados, em especial dos três
processos mencionados, nos fez observar os usos que os
operadores do direito fazem da jurisprudência, já que todos eles
faziam referência a algum outro pedido, da mesma natureza, que já
havia sido concedido pelos tribunais. O resultado disso é a
criação, tanto por parte do Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
como do Supremo Tribunal Federal (STF), das súmulas.164 Elas têm
dupla finalidade: tornar pública a jurisprudência para a sociedade,
bem como promover a uniformidade entre as decisões.
A respeito do exame criminológico, tomemos o exemplo do STF,
que criou, em 16/12/2009, a Súmula Vinculante165 nº 26,166 da qual
destaca-se o seguinte trecho:
Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime
hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade
do Art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o
condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício,
podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame
criminológico.

E, no caso do STJ, temos o exemplo da Súmula nº 439167 de


3/5/2010, em que: “admite-se o exame criminológico pelas
peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.
Mas, se, por um lado, essas duas súmulas produzidas pelo
poder Judiciário incluem um requisito que o legislador
acertadamente expurgou com as modificações trazidas pela Lei
10.792/2003 (o pedido do exame para progressão de regime) e do
qual fazem uso os promotores, por outro, também abrem a
possibilidade de que a decisão da progressão não esteja vinculada
ao exame, ou seja, que o juízo da execução não esteja subjugado
ao parecer psicológico ou ao exame criminológico, conforme
vimos nas argumentações utilizadas, pelos ministros do STF, na
feitura de seus votos sobre os três casos supracitados.
Contudo, de acordo com o informativo virtual do STJ, a súmula
deles “pacificou o entendimento sobre a realização do exame
criminológico quando as peculiaridades da causa assim o
recomendarem”. Em minha análise, além de as súmulas não terem
“pacificado” nada, desassossegaram mais ainda aqueles que
conhecem os efeitos nocivos do exame e lutam pelo seu fim. Por
isso, no quarto capítulo, a jurisprudência e as súmulas serão
discutidas novamente.
A lei convém a quem?

Mas a captura pela argumentação legalista não está presente


apenas nos discursos e práticas dos “maquinistas do direito”, ela
também atravessa o discurso dos psicólogos, tanto para justificar
o fato de “terem de” participar das CTC e fazer o exame
criminológico, quanto para se queixarem de não terem respaldo
legal para realizarem outras atividades. No que diz respeito a esta
queixa, um exemplo apontado por eles é o fato de o psicólogo não
estar inserido no item: “Assistência”168 da LEP de 1984, em sua
alteração em 2003, nem no item correspondente no Regulamento
Penitenciário do Rio de Janeiro – RPERJ (Decreto nº 8.897, de 31 de
março de 1986).
Considero que não é trivial a ausência do psicólogo dentro dos
itens que deveriam ser “dever do Estado” dar ao apenado e ao
egresso; isso me faz perguntar novamente: o que quer o Estado de
um psicólogo em um presídio? O que determinava a “necessidade”

desse profissional nas unidades prisionais, e ainda a determina, é


a questão que norteia a problemática apresentada ao longo de
todo este texto e que não tenho a pretensão de esgotá-la nele.
Ao analisarmos o RPERJ, que foi construído a partir da LEP de
1984, verifica-se que ambos são praticamente idênticos. O RPERJ
não sofreu modificações depois da alteração da LEP, em 2003, e foi
citado por alguns profissionais do sistema penitenciário como um
documento que norteia a prática do psicólogo na CTC, além de ter
sido utilizado como argumento pelos psicólogos que ainda
realizam exames para progressão de regime, como um
regulamento que não pode ser desobedecido. Ao lê-lo, podemos
constatar que a demanda do regulamento é de que o psicólogo
tenha apenas uma prática pericial. Conforme notamos no art. 4º,
que discorre sobre as funções das Comissões Técnicas de
Classificação (CTC), em itens como o “III – apurar e emitir parecer
sobre infrações disciplinares ocorridas nos estabelecimentos”; “IV
– propor aos diretores dos estabelecimentos o encaminhamento
ao diretor-geral dos pedidos de conversão, progressão e regressão
dos regimes”; “V – opinar sobre os pedidos de conversão,
progressão e regressão dos regimes” e o “VIII – dar parecer sobre
as condições pessoais do interno para atender ao disposto no
parágrafo único do Art. 83 do Código Penal”.
Outro imperativo legal que foi apontado pelos psicólogos como
um problema é o fato de que algumas funções dadas aos
psicólogos, segundo o art. 8º169 da LEP de 1984 e o art. 34170 do CP,
não foram alteradas. Tais funções tratam da “adequada
classificação” com vistas à individualização da execução, ou seja,
à elaboração do exame criminológico inicial mirando a
classificação do condenado. Esta classificação tem como função
uma avaliação das condições subjetivas do apenado para
conhecer e identificar as necessidades, aptidões, interesses e
recursos disponíveis a fim de elaborar um projeto para o preso
enquanto ele estiver no sistema penitenciário. Porém, constata-se
que isso não ocorre. Um dos motivos é que a execução penal é
determinada prioritariamente pelos objetivos das equipes de
segurança das instituições, o outro é a escassez de recursos
materiais e humanos, que torna a individualização da pena
inviável.
Segundo alguns dos psicólogos entrevistados, no Rio de
Janeiro, muitas vezes, o exame criminológico inicial (art. 34 do CP)
recai na separação dos presos por “facção criminosa” e na escolha
da unidade prisional adequada para aquela “facção”, ou seja, os
objetivos da “segurança” se tornam prioridade. Mas qual o sentido
de se fazer o exame criminológico no momento da entrada do
preso, se a individualização da pena não é realizada conforme
orientação da legislação e não haverá também o acompanhamento
da execução da pena?171
Outro marco legal utilizado por esses profissionais, mas, nesse
caso, para os aproximarem de uma prática mais voltada para a
saúde e assistência do preso, são as regras mínimas para
tratamento do preso no Brasil (Resolução nº 14 de 11/11/1994),
resultantes da recomendação do Comitê Permanente de Prevenção
do Crime e Justiça Penal da ONU, que em seu art. 15 estabelece: “A
assistência à saúde do preso, de caráter preventivo e curativo,
compreenderá atendimento médico, psicológico, farmacêutico e
odontológico”. Estes profissionais também citam os Princípios
Fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo
(Resolução CFP nº 010/05) e, especialmente, os artigos: 1º, alíneas
“c” e “l”; 2º, alíneas “a”, “c” “g”e “k” e os artigos 9º, 10º, 11, 12, 14 e
21.
Existem ainda algumas políticas públicas, apontadas pelos
psicólogos do sistema penitenciário, que não concordam com o
exame criminológico e com a CTC, que supostamente os colocaria
bem mais próximos da saúde e da assistência nessas instituições.
São elas:
– O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, criado

pela Portaria Interministerial 1.777/2003 – Ministério da Justiça e


Ministério da Saúde e norteado pela legislação do Sistema Único
de Saúde (SUS) – Lei 8.080/1990, que estabelece em seu art. 8º a
inclusão do psicólogo como um dos profissionais da equipe de
atenção básica à saúde no âmbito das unidades penitenciárias.
– Os Princípios e Diretrizes do SUS, que preconizam a
universalidade de acesso aos serviços de saúde, a integralidade de
assistência e serviços preventivos e curativos (individuais e
coletivos), igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie.
Porém, observa-se que todas essas leis servem mais para
obrigá-los a fazer o exame e a participar das CTC do que para
desobrigá-los. Portanto, nesse caso, parece que a lei só funciona
para manter os interesses do próprio Judiciário, de um “Estado
penal” e do capitalismo globalizado.
Outros fatores aparecem como motivo para os psicólogos
atenderem à constante demanda dos operadores do direito de
realizarem o exame criminológico, notadamente para a progressão
de regime. As alegações são variadas: agilizar o processo de
progressão de regime do detento, já que, quando o juiz se depara
com um parecer favorável, o preso tem mais chances de conseguir
o que está solicitando, ou seja, estão “promovendo o
desinchamento” das prisões; que não podem se negar por razões
administrativas (descumprimento de ordem judicial); medo de
sofrerem perseguições por parte dos presos172 e/ou dos
gestores;173 e para aqueles que trabalham em regime de
contratação temporária: há o medo de perderem o emprego.
Os psicólogos que trabalham em prisões também apresentam
inúmeros obstáculos para o fato de não realizarem outras
atividades além das CTC e da confecção de exames
criminológicos. Os obstáculos, em geral, são: a falta de material de
escritório; poucas cadeiras e salas para o elevado número de
presos; falta de colaboração da diretoria e dos agentes
penitenciários para autorizar e realizar o deslocamento do preso
para participação em atividades; e falta de tempo em função dos
inúmeros pedidos de exame e participação nas CTC disciplinares.
Quanto a este último motivo, o incômodo de alguns psicólogos em
participar das CTC do tipo disciplinar174 ficou visível durante
nossa pesquisa. De fato, se olharmos para a prisão como o
aparelho ideal dos dispositivos de controle social e de
adestramento dos corpos, a CTC pode acabar servindo apenas
para o “tratamento” das faltas disciplinares cometidas pelos
apenados, e tornar-se um “minijúri”,175 no qual o psicólogo corre o
risco de “escorregar” para o lugar de quem julga e ter de escolher
o grau de punição em que o preso será classificado, ou seria
melhor dizer: “desclassificado”!
O psicólogo também corre o risco de escorregar para o lugar de
“aprisionado” – não só fisicamente –, pois, apesar de termos
visitado uma unidade prisional na qual o psicólogo trabalhava em
uma cela, acreditamos que o perigo maior é o aprisionamento de
sua potência, de seu pensamento e de suas práticas.
Em busca de “conselhos” no Conselho

Apesar de todas as controvérsias, a inquietação, o


desassossego de alguns psicólogos do sistema penitenciário,
particularmente no Rio de Janeiro, deve ser mencionado.176 No
início da década de 1980, após a implementação da LEP (1984),
começaram os questionamentos que perduram até os dias de hoje.
Serão destacados, a seguir, alguns dos principais movimentos
feitos por esses profissionais.
Em 2003, um grupo de profissionais cariocas que trabalhavam
em prisões – entre eles um psiquiatra, dois assistentes sociais e
dois psicólogos – publicou um artigo177 no qual várias questões
sobre a exigência legal da realização dos exames criminológicos
foram levantadas, das quais destacamos: o fato de ser um
instrumento de dominação escondido sob o manto da
cientificidade; ser eticamente discutível, pois nele colhem-se
informações particulares que se tornam de domínio público; o fato
de sua elaboração ser pautada na história de vida do sujeito como
justificativa do ato criminoso, aprisionando-o perpetuamente em
seu passado.
Em 2005, o CFP entra em cena e realiza com o Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN) o I Encontro Nacional dos
Psicólogos do Sistema Prisional, em novembro. Nele, psicólogos
de todo o país discutiram amplamente proposições para diretrizes
de atuação e qualificação desses profissionais, o que resultou, em
2007, na publicação das Diretrizes para atuação e formação dos
psicólogos no sistema prisional brasileiro (CFP/DEPEN).178
Documento este que deve ser avaliado cuidadosamente, em
especial, por não ter sido criado apenas por psicólogos para sua
clientela, mas em parceria com a instância máxima da gestão
penitenciária no país. Contudo, a iniciativa de realizar esse
encontro e os efeitos produzidos têm seu valor.
Em dezembro de 2006, os psicólogos da SEAP-RJ encaminharam
ao CRP-05/RJ uma solicitação de posicionamento em relação aos
dilemas éticos vividos por eles no que tange à participação nas
CTC e no exame criminológico. Em um trecho do documento
lemos:
Os pedidos de exame criminológico [...], chegam em grande quantidade,
frequentemente com prazo para realização. Sem condição de acompanhar o dia-
a-dia dos presos, visto que são numerosos e somos poucos profissionais, o que
acontece é que damos um parecer (que é mais um “parece”) baseado em uma
única entrevista. No contexto em que a maioria de nós trabalha, principalmente
nas penitenciárias de segurança máxima, onde o preso não trabalha, não tem
atividades, o único parecer profissional cabível seria de que o confinamento só
está contribuindo para adoecer o sujeito ou incrementar a violência.

Após várias reuniões com a categoria, o CRP-05/RJ respondeu à


carta, em agosto de 2007, por meio do Ofício nº 582/07,179 no qual
se colocava disponível para prosseguir nas discussões acerca do
tema, “visando repensar e examinar as possibilidades de
intervenção do psicólogo no Sistema Prisional no estado do Rio de
Janeiro.”
Ainda em 2007, o CFP manifestou-se contrariamente às
tentativas – por meio de Projetos de Lei (nº 00190/07 e 75/07) – de
reintroduzir o exame criminológico e a Comissão Técnica de
Classificação para fins de concessão de benefício de progressão de
regime e/ou livramento condicional, indulto e comutação de
penas, já extintos pela Lei 10.792/2003. No mesmo ano, uma
Comissão de Psicólogos da SEAP, acompanhada da diretoria do
CRP-05/RJ, esteve reunida com o juiz da Vara de Execuções Penais
(VEP/RJ) para discutir sobre a extinção do exame criminológico e
a não participação dos psicólogos na CTC. Nessa ocasião, o juiz
solicitou um documento que apontasse práticas alternativas ao
exame criminológico. O documento foi elaborado pela Comissão
dos Psicólogos da SEAP e protocolado na VEP pelo CRP-05/RJ,
dando origem ao Procedimento Especial nº 2008/144.047. Quanto à
participação do psicólogo na CTC – que avalia faltas disciplinares
cometidas pelos presos –, o juiz manifestou-se verbalmente, nessa
mesma ocasião, discordante, reconhecendo não ser este o lugar
do psicólogo em razão das questões éticas e técnicas envolvidas
nessa prática, contudo não concordou com o fim da emissão de
exames criminológicos.
Em novembro de 2008, ocorreu no Rio de Janeiro o II Seminário
Nacional sobre o Sistema Prisional, organizado pelo CFP, CRP/RJ e
CRP/MG, no qual foi deflagrada a campanha pelo fim do exame
criminológico mediante uma Moção e uma Carta-Manifesto
assinadas por cerca de 30 instituições e mais de cem profissionais.
No início de 2009, o CRP-05/RJ criou, por meio da Comissão de
Psicologia e Justiça, o Grupo de Trabalho Psicologia e Sistema
Prisional, composto de profissionais e consultores ad hoc de
diferentes campos do saber envolvidos com a questão penal. O
grupo, do qual fiz parte, encerrou oficialmente suas atividades, em
março de 2010, e um de seus objetivos foi ampliar o diálogo com o
campo jurídico para aprofundar a discussão sobre a extinção do
exame criminológico. Alguns dos encontros com os operadores do
direito já foram descritos neste mesmo subitem. Outros momentos
dessa experiência serão narrados ao final deste capítulo. Mas acho
que esta última experiência marcou um deslocamento importante
em relação aos outros, que foi o fato de esse grupo ter entendido
que não há acordo possível com os operadores do direito e órgãos
judiciários. Pelo menos não com esse direito “escravocrata” que
se apresenta atualmente, que demanda da psicologia uma
subserviência aprisionante e dolorosa.
Pelo que foi dito até aqui, fica visível o jogo de forças presentes
no que denominamos “território judicializado” ou “campo
jurídico”. Agora se faz necessário avaliar certas qualidades de
forças que, por vezes, se apoderam dos profissionais que nele
atuam.
No primeiro capítulo, convidei Fernando Pessoa para ajudar-me
a dar passagem para afetos indizíveis que nomeei, inspirada nele,
de desassossego. Neste momento, trago os literatos Kafka e Guy
de Maupassant para ajudar-nos a pensar os processos de
envenenamento e captura, bem como para assinalar que a
sensibilidade artística capta processos fazendo falar, mediante
perceptos e afectos,180 aquilo que também inquieta e se transforma

em conceitos na filosofia da diferença, mas que, muitas vezes, é


negligenciado pelos discursos e práticas “psi.”
3.3-Processos de captura e envenenamento
Compartilhamos, com Deleuze e Guattari (1992, p. 88), a ideia
de que “a arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por
afectos e perceptos”. Por isso, convidamos alguns literatos para
nosso texto. Além de Machado de Assis e seu Alienista, trazidos no
primeiro capítulo, de Clarice Lispector, que abriu nosso segundo
capítulo, temos Franz Kafka na novela “A colônia penal”181 e Guy de
Maupassant, no conto chamado “Um louco”.182 Os dois últimos
foram privilegiados porque, em suas histórias, percebemos
algumas características em comum entre si e com esta pesquisa,
que é o funcionamento da máquina jurídica, como por exemplo: a
transição entre os dois estilos penais discutidos por Foucault
(soberano e disciplinar); os interesses políticos do Estado
interferindo na administração das penas; a importância da figura
do especialista para a máquina jurídico-penal; o funcionamento
discriminatório da Justiça que não está dissociado da produção de
criminosos e provas criminais e a captura e o envenenamento dos
profissionais-protagonistas pela máquina jurídico-penal. Por tudo
isso se optou, por gosto e estilo, por utilizar a literatura em alguns
momentos deste trabalho, pois nos sentimos impulsionados pela
força de sua intempestividade.
Iniciemos com a novela de Kafka, escrita em 1914, na qual um
explorador estrangeiro, em uma visita a uma colônia penal, aceita,
por educação, o convite do comandante para assistir à execução
de um soldado que cometeu o crime de “dormir em serviço”. A
execução seria realizada em um aparelho mecânico, projetado por
um antigo comandante, já falecido e, segundo o oficial, “o
mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo
com o rastelo [...] ele vai experimentá-la na própria carne”
(KAFKA, 2007, p. 36).
Todo o processo de “suplício” duraria em torno de 12 horas;
podemos considerá-lo, segundo as explicações de seu defensor,
um processo de aprendizado, pois com o corpo o condenado
aprende aquilo que não conseguiu durante a vida. Bem ao estilo de
Kafka, o crime, que nesse caso era a própria pena, era escrito nas
costas, não podendo o condenado “ver-saber” o porquê da
“acusação-pena”, tal como veremos também em seu livro O
processo.

O guardião da máquina também lamentava ser o único adepto


do aparelho, em uma época em que “o interesse pela execução já
não era muito grande nem na colônia penal” (KAFKA, 2007, p. 36),
e lembrava os dias em que a colônia ficava superlotada de gente
para assistir à execução.
Em determinada parte da novela, o visitante se pergunta se
deveria ou não intervir no processo que se desenrolava. Ao lermos
cuidadosamente suas reflexões, temos a clareza de que suas
dúvidas não se remetem à injustiça e à crueldade daquela pena,
mas a sua crença em ser um observador neutro, ante a sua
posição de estrangeiro. Este pensa silenciosamente que:
A isso ele não poderia replicar nada, apenas acrescentar que não compreendia
sua própria situação nesse caso, pois estava viajando com um único intuito de
observar e não, de forma alguma, para mudar procedimentos judiciais
estrangeiros. Seja como for, porém, as coisas aqui se colocavam de maneira
muito tentadora. A injustiça do processo e a desumanidade da execução
estavam fora de dúvida. (KAFKA, 2007, p. 47)

Sentimos, por meio dessa passagem, as ressonâncias com o


que foi discutido no primeiro capítulo deste trabalho sobre o lugar
do pesquisador no processo de pesquisa.
Finalmente, o observador “humanista”, após ser bastante
pressionado pelo militar para ajudá-lo a manter sua máquina em
funcionamento, deixa de lado sua suposta neutralidade e se
posiciona ao dizer que é contra o procedimento. O comandante
imediatamente expressa seu temor de que a opinião do estranho
sobre o aparelho incentive seu atual superior a eliminar
completamente seu uso e imagina até a fala deste: “um grande
pesquisador do ocidente, encarregado de examinar o
procedimento judicial em todos os países, acabou de declarar que
o nosso antigo procedimento é desumano”.
Chega-se ao desfecho da história, quando o comandante
desiste de convencer o estrangeiro e decide se submeter à
máquina. Em uma passagem, que aparece duas vezes, o oficial
mostra ao observador a frase escolhida pelo projetista para ser
colocada no desenhador que marcaria o corpo do condenado. O
observador não consegue entendê-la em nenhuma das duas
circunstâncias. Na segunda, o comandante lê o que está escrito em
voz alta: “seja justo” e programa a máquina com essa inscrição.
Começa a despir-se e deita-se na máquina, cujos dias, já sabia,
estavam contados. Mas o aparelho entra em colapso e se
autodestrói, além de destruir também o comandante, sem,
contudo, conseguir escrever em suas costas a frase escolhida por
ele para marcar seu próprio corpo: “seja justo”. Afinal, a justiça é
cega.
É possível ver, em Kafka, a contradição entre o sistema jurídico
penal e a Justiça. Como poderiam uma máquina punitiva e um
carrasco ser justos? Fazer justiça?
Com Foucault (1987, p. 13) lemos a novela de Kafka, e ela nos
traz o filósofo de volta quando este diz que, com o passar do
tempo, a punição tornou-se a parte mais velada do processo penal,
pois a “mecânica exemplar da punição muda as engrenagens”.
Essa “mudança de engrenagens” fica visível por meio dos diálogos
dos personagens do comandante e do estrangeiro. O comandante
funcionava com um pensamento de soberania típico da sociedade,
e o estrangeiro carregava o olhar neutro do “especialista humano”
da sociedade disciplinar, que tantas vezes, por causa de sua
“neutralidade”, é capturado pela famigerada máquina jurídica.
Já no conto de Maupassant (2007, p. 246), o personagem
central da história condensa vários elementos que compõem as
discussões contidas na obra de Foucault. Ele era um magistrado
francês que “passara a vida perseguindo o crime e protegendo os
fracos. Escroques e assassinos nunca haviam tido inimigo mais
temível [...]”. Após sua morte, um escrivão encontra na gaveta,
onde eram guardados os dossiês dos grandes criminosos, um
texto com o título “Por quê?”, escrito entre 1851-1852, e assinado
pelo próprio juiz, que revela ser ele também um assassino.
Uma das discussões sustentadas pelo personagem é que o
assassinato só deixa de ser um crime, se for praticado pelo
Estado. Mostra que a sociedade passa a considerar o assassinato
um crime, mas ela mesma promove o crime usando a seguinte
justificativa: “a defesa da sociedade”. Os que matam em nome do
Estado, nas guerras ou nos tribunais, recebem honrarias, já os
demais são duramente punidos. É possível algo mais foucaultiano
que isto?
Nas palavras do magistrado podemos ver as contradições
apontadas por ele no que diz respeito a este “direito de matar”,
assegurado pelo seu lugar de representante da lei e do Estado: “Eu
que passei minha vida julgando, condenando, matando pelas
palavras pronunciadas, matando pela guilhotina aqueles que
haviam matado pela faca.” Mas, no enredo, o personagem vivencia
esta contradição, experimentando o lugar do “assassino” de
assassinos: o que mata “em nome da lei” apenas pelas “palavras
pronunciadas” e o lugar do assassino “fora da lei”: o que
transgride esta lei. Vivendo no limite entre os dois polos, o
personagem de Maupassant discute, entre tantas coisas, o que
ocorre desde o século XV até os dias de hoje: o funcionamento
discriminatório da Justiça.183 Segundo seu personagem: “[...] se eu
fizesse como todos os assassinos que atingi, eu! eu! quem saberia?
Quem saberia? Desconfiariam de mim, de mim [...]”. De fato,
ninguém desconfiou do magistrado, morreu sem ser descoberto e
foi enterrado com muitas honrarias. O personagem dessa história
era duplamente protegido, primeiro por sua profissão,
representante máximo da lei, o juiz, e também por sua situação
econômica e social privilegiada.
No conto, o juiz começa matando um passarinho que estava
preso na gaiola, depois mata uma criança sozinha no bosque e,
por último, um pescador que dormia. No caso do pescador, outro
homem é acusado pelo crime e quase se confessa culpado de
tanto que o pressionam. há toda uma rede de produção de
provas184 que justificam esse assassinato e o juiz (que na realidade
cometeu o assassinato) é quem preside o julgamento e condena o
suposto assassino à morte na guilhotina. Lembro que, assim como
na novela de Kafka, esse conto mostra o contexto de transição
entre os modelos jurídicos punitivos do poder soberano para o
disciplinar.
No desfecho do conto, o escrivão encaminha o escrito aos
alienistas, afinal, somente a “loucura” poderia justificar “tal
desatino”! Estes constroem o seguinte parecer: “Existem no mundo
muitos loucos ignorados, tão hábeis e tão temíveis quanto este
monstruoso demente”. Nessa passagem, vemos que o escrito sai
das mãos do escrivão e vai direto para as mãos dos alienistas,
revelando, portanto, o papel dos “especialistas em anormais” –
típico do modelo disciplinar – a serviço do Judiciário.
Trazemos uma última frase do conto, na qual Maupassant
(2007, p. 246) descreve o magistrado: “[...] assassinos nunca
haviam tido inimigo mais temível, pois ele parecia ler, no fundo de
suas almas, seus pensamentos secretos, e desvendar, com um
passar de olhos, todos os seus mistérios e intenções”. Nessa
passagem, fica evidente o que se esperava de um juiz, ou melhor,
da Justiça, nesse conto. Mas ao lê-la, desavisadamente, pode-se
facilmente confundi-la com algumas das frases proferidas pelos
operadores do direito aos psicólogos no contemporâneo.
Nesses dois textos literários escolhidos, de todas as
semelhanças citadas, ambos trazem um detalhe pitoresco: o fato
de os personagens principais terem sido contaminados por suas
próprias práticas, ou seja, tiveram suas práticas e vidas
capturadas e envenenadas pela máquina jurídico-penal. O
defensor da máquina letal no conto de Kafka dá fim à própria vida
com o seu próprio instrumento de trabalho. Podemos dizer que foi
consumido até o fim pela sua própria prática. No conto de
Maupassant, o magistrado que condena assassinos se torna um
deles e, ao revelar, ainda que depois de morto, seus feitos, é
encaminhado, por meio de sua carta, para os especialistas da alma
humana, que fizeram uma “autópsia psíquica” para descobrir seus
pensamentos mais secretos e desvendar toda sua
“monstruosidade”.
Esses dois textos me chegaram às mãos ao longo desta
pesquisa e, ao lê-los, vi que os três se relacionavam diretamente.
Pois, como já disse, este trabalho orbita em torno do
desassossego vivido pelos psicólogos que atuam no campo
jurídico, e isso inclui o efeito das forças atuantes nesse campo em
suas práticas e em suas próprias vidas. Talvez por isso, ao estar
com os psicólogos mais inconformados com toda essa situação em
seus locais de trabalho, uma imagem me vinha à cabeça: a de um
inseto preso na trama da teia de uma aranha. Sabe-se o que
acontece quando ele não consegue dessa trama se livrar:
envenenamento seguido de morte.
Averiguaram-se, ao longo desta pesquisa, vetores de força que
permeiam o encontro dos profissionais “psi” com o campo
jurídico, que, em casos extremos, desencadeiam efeitos nefastos.
A partir da filosofia de Spinoza, poder-se-ia dizer que são
processos de envenenamento desses profissionais, de suas
práticas, de suas vidas.
Desses vetores, aquele que considerei mais forte ou presente
nos profissionais com quem estive foi aquele que chamei de
“paranoico”, caracterizado por uma desconfiança constante em
relação a tudo e a todos. Após sentir185 na pele a força desse vetor,
em particular, após minha breve passagem como psicóloga pelo
hospital de custódia, chego à conclusão de que isto era um
sintoma contemporâneo, ou melhor, um vetor de força que
atravessa as instituições de confinamento de forma mais
acentuada, mas que também está presente em todo o campo
social.
Apenas para exemplificar o que tentei explicar, apresento
inicialmente a fala de um dos psicólogos atuantes no sistema
prisional, com quem estive num grupo de discussão: ele achava
que os psicólogos estavam sendo vigiados e seguidos por
funcionários desse sistema. E duas das pessoas desse grupo
também se referiam a outros colegas de profissão com
desconfiança. E ainda tive de suportar o receio deles em relação a
mim, quando iniciei os encontros nesse grupo de discussão. Em
diversos momentos nos quais estive com estes psicólogos em
atividades grupais, observei sua dificuldade em problematizar
seus conflitos no próprio grupo, pois forças que poderíamos
descrever como “expulsivas” e “paranoides” entravam em ação.
Tive a oportunidade de estar em várias unidades prisionais
com psicólogos que praticavam algum tipo de trabalho em grupo
com os detentos.186 Algum tempo depois encontrei com um deles
em um evento. Ele me contou que seu projeto com
biblioteca/leitura no presídio estava prejudicado por um problema
ocorrido em sua unidade, quando um detento, ao sentir-se
perseguido por membros do grupo, delatou-o para a diretoria com
a alegação de que este havia denunciado os agentes penitenciários
aos órgãos competentes por praticarem agressões e torturas.
Na época, este psicólogo encontrou algumas dificuldades para
continuar realizando seu trabalho, pois não contava mais com a
“credibilidade” da diretoria que estava “suspeitando” de suas
intenções. O mais interessante é que, quando estive na unidade de
trabalho desse profissional, ele me deu a oportunidade de
participar de uma reunião com os internos que integravam seu
projeto, e uma das coisas que pude observar foi justamente que
esse vetor paranoico circulava também entre o detentos, inclusive
o detento que o denunciou à diretoria irrompeu na reunião para
delatar um outro detento.
Ao observarmos o depoimento acima, podemos constatar que
isso que ocorreu não foi apenas um sinal de que o detento em
questão é afeito a mexericos ou está com sintomas paranoicos e
deve ser medicalizado e analisado isoladamente. Não é um
problema da “estrutura” do sujeito. O que ocorre é que há um
vetor paranoico que apenas se atualizou na pessoa deste detendo,
e que está presente nestes lugares e atravessa todos que lá estão
confinados, até aqueles que “têm a chave”,187 como os funcionários
do cárcere, que, apesar de voltarem para as suas casas no final do
expediente, exercem suas funções em confinamento.
Outro psicólogo que entrevistei em sua unidade de trabalho
também fazia trabalhos com grupos. Seu objetivo era a prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis com formação de
multiplicadores (detentos) que dariam continuidade ao trabalho,
alcançando os presos que não podiam participar dos encontros
daquele grupo. Esse profissional relatou já ter tido sua vida
ameaçada por funcionários do próprio sistema penitenciário, em
consequência de suas posições políticas em relação à sua própria
prática. Cabe também relatar que tive a oportunidade de
participar de um encontro conjunto com vários dos detentos que
integravam o projeto e ouvi deles como aquilo fazia uma diferença
positiva em vários aspectos de suas vidas.
Também ouvi de um dos psicólogos que atuavam em prisões
que, em um dos encontros em grupo que fazia com os detentos na
unidade em que trabalhava, um dos funcionários lhe disse: “O que
é isso, um motim?”
Com Foucault (1987, p. 148) entendemos com clareza o que se
passou, pois quando discute a questão da vigilância e da delação
nas instituições diz que o poder disciplinar: “[...] está em toda
parte e sempre alerta, pois, em princípio, não deixa nenhuma
parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão
encarregados de controlar”.
Os exemplos acima apontam, ainda, uma produção de
esvaziamentos das práticas de resistência, em especial quando
elas se fazem por meio dos grupos e escapam da demanda
institucional (realizar exames criminológicos e participar de CTC).
Os profissionais que tentam fazer algo fora do esperado, em sua
maioria, têm seus projetos dificultados, ou pior, são deslocados de
unidade ou função, têm suas férias ameaçadas, ou, no pior dos
casos, têm sua vida ameaçada! Algo parecido com a criminalização
dos movimentos sociais, aqui ocorre o enfraquecimento das
práticas de resistência e, por que não, a criminalização das
práticas de resistência, pois, se o psicólogo, ou qualquer outro
funcionário, insistir em não obedecer às “regras da casa”, ele se
torna um infrator também!
Também foi percebido, no discurso de alguns profissionais
desse campo, especialmente aqueles que atuavam no sistema
penitenciário, o sentimento de “desvalorização profissional”;188 um
deles me disse o seguinte: “ser psicólogo lá dentro é o nada
absoluto” e, após duas horas de entrevista,189 perguntou: “Eu te
ajudei? Eu não sei se eu te ajudei... Não sei se isso vai servir pra
você”. Era como se tudo o que tivesse me contado não servisse
para nada, não tivesse importância. Pois o que me disse que fazia
não considerava função de psicólogo.
Estive com muitos profissionais que trabalham no campo
jurídico ao longo desta pesquisa, porém destaco que estive mais
próxima dos que trabalhavam em instituições fechadas, como as
prisões, e devo dizer que, de um modo geral, me pareceu que eram
os que realmente trabalhavam em piores condições.
Uma das reclamações que eram recorrentes se dava em relação
às condições de trabalho, por exemplo, os baixos salários em
relação à demanda de trabalho. No início, eu tive dificuldade de
compreender, talvez porque não tenha encontrado nenhum deles
que fosse mais de três vezes na semana à unidade em que
trabalhavam. Mas, com o passar do tempo, pude entender o que
diziam, sobretudo após trabalhar, ainda que por pouco tempo, lá.
A minha experiência, pelo menos, foi a de que cada hora lá
demandava um dispêndio de energia incomensurável. Ver tudo
que acontece nesse tipo de instituição e ter a sensação de não
poder fazer nada e, muitas vezes, realmente, não poder. É, de fato,
um preço muito alto, que pagamos com nossa saúde, com nossa
vida. Não me propus a fazer uma pesquisa quantitativa a respeito
da ocorrência de adoecimento e sua relação com as condições de
trabalho, mas posso dizer que observei que os relatos de
depressão e hipertensão foram frequentes. O que achei muito
curioso, pois ambas as palavras que nomeiam essas doenças nos
remetem a outras duas: tensão e pressão, uma no sentido da
diminuição (depressão) e outra no sentido do aumento
(hipertensão). Portanto, inferimos que o encontro com o
funcionamento dessas instituições gera um campo de tensão que
às vezes toma a forma de “pressão”, que, muitas vezes, os
profissionais não podem suportar, e por isso alguns adoecem.
Outra forma de captura realizada por essa maquinaria, tão
complexa e operada por todos de alguma forma, é aquela em que
os psicólogos caem na “esparrela” de que determinadas práticas
nesse “território judicializado” são o melhor que podem fazer ali e
que estão sendo feitas para o bem de quem está sendo atendido.
Citemos, por exemplo, os psicólogos que defendem o exame
criminológico. Sim, há quem o defenda! Pois bem, um dos
argumentos é o de que este instrumento é uma das únicas formas
de se aproximarem dos presos. Uma clara confusão desse
procedimento com uma forma de dar assistência ao preso. Isso só
denota, entre tantas coisas, o desconhecimento desses
profissionais no que diz respeito ao direcionamento de suas ações
por meio das políticas públicas na área da assistência e da saúde e
do seu próprio Código de Ética. Podemos também notar a
aderência à demanda do Judiciário, que está ligado a um “Estado
penal”, além do aprisionamento em práticas psicológicas
positivistas e ortopédicas.
Do mesmo modo, notam-se, no discurso de alguns profissionais
que trabalham no campo jurídico, os seguintes argumentos: “é o
melhor que podemos fazer ali” e “fazemos para o bem de quem
está sendo atendido”. Isso será discutido melhor adiante, mas
enfocando um projeto em especial, o depoimento sem dano,
realizado nos Tribunais de Justiça.
Ao trazer de novo o personagem Simão Bacamarte – o
especialista em alienados de Machado –, pergunto até onde os
profissionais “psi” se intitulam “especialistas” em criminalidade de
nossos tempos? Será que esses profissionais vão precisar sentir-se
encarcerados para que possam avaliar seus discursos e suas
práticas, tal como o alienista, que, ao final da novela, encarcera a
si próprio e chega à seguinte reflexão: “A questão é científica [...];
trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo, sou eu.
Reúno em mim mesmo a teoria e a prática”.
Na novela machadiana, o alienista não suporta o
encarceramento, e morre alguns meses depois. Podemos supor
que sua vida não suportou sua teoria, nem sua prática. Porém, se
comungarmos com a ideia do alienista de não separar teoria e
prática e afirmarmos o quanto é importante nos implicarmos
constantemente nos lugares que ocuparemos e o que
produziremos a partir deles, poderemos pensar outros sentidos
para as práticas “psi” que não nos tornem o que Rauter (2003)
denominaria: “funcionários do cárcere”.
O risco de os profissionais “psi” se tornarem “funcionários do
cárcere”, ou seja, se envenenarem com essa lógica carcerária, não
está circunscrito apenas àqueles que trabalham nas prisões. Os
que atuam em outros pontos desse campo podem também estar
fomentando essa máquina de encarceramento em massa, isto é,
esses dispositivos de controle social, ou seja, podem estar a
serviço de um Estado penal, conforme veremos abaixo.
3.4 - Depoimento sem dano: proteção integral190 da criança
ou da prova?
Foucault (1987) nos deu importantes informações a respeito da
emergência do inquérito, nos séculos XII e XIII, com a
reorganização da Igreja e o crescimento dos Estados principescos.
Mas o que dizer da sua atualização no século XXI em um Estado
considerado democrático? Segundo o autor, o inquérito era uma
“pesquisa autoritária de uma verdade constatada ou atestada”. E,
com o advento das técnicas disciplinares que invadiram
insidiosamente a sociedade utilizando-se de dispositivos que
produzem efeitos de assujeitamento, adestramento e docilização
dos corpos, essa pesquisa autoritária da verdade na máquina
judiciária nunca deixou de existir. Ela, aliás, apenas se “refinou” em
tempos de biopoder, por meio das ciências médicas, dos saberes
“psi”, dos aparatos eletrônicos trazidos pelo avanço da tecnologia
e pelos “remendos” legislativos.
Na atualidade, o que vemos são técnicas, cada vez mais duras,
de controle social e das formas de viver, que funcionam por meio
de dispositivos que criminalizam condutas cotidianas,
especialmente as praticadas por determinadas parcelas da
população, conforme já discutimos nos capítulos anteriores.
Nesta parte do texto, será colocada em análise uma das
práticas de assistência à infância/adolescência no Sistema de
Garantia de Direitos,191 o projeto “depoimento sem dano” (DSD),192
entendendo que ele funciona como um dispositivo biopolítico, que
tem como um dos principais efeitos o controle da sexualidade das
crianças e adolescentes que pertencem a famílias pobres e que,
muitas vezes, funcionam com uma organização diferente daquela
tida como “normal”.
Considera-se indispensável desnaturalizar a ideia que circula,
no contemporâneo, de que proteção, revelação e punição estão na
mesma série. Essa correlação está clara no referido dispositivo, no
qual a criança/adolescente que supostamente sofreu abuso sexual
será, por meio de uma “medida protetiva”, “obrigada” a prestar
depoimento e induzida193 a revelar o que aconteceu para que seu
agressor seja punido.
Esse procedimento ocorre nas dependências do Tribunal de
Justiça dos estados, em uma sala especialmente “projetada para
tal fim, devendo estar devidamente ligada, por vídeo e áudio, ao
local onde se encontram o magistrado, o promotor de justiça, o
advogado, o réu, e os serventuários da Justiça [...],” segundo o
autor, José Antônio Daltoé Cezar (2007, p. 61).
Ao justificar seu projeto, o juiz alega que, em grande parte dos
casos judiciais dessa natureza, os meios físicos e humanos eram
impróprios, assim como as informações dadas na fase policial não
se confirmavam em juízo. Por isso as “ações terminavam, na sua
maior parte, sendo julgadas improcedentes, com base na
insuficiência de provas”. Desde então, ele procurou
“aleatoriamente conhecimentos sobre a matéria na psicologia e na
psicanálise” (CEZAR, 2007, p. 60).
Portanto, a preocupação do autor com a melhor maneira de
produzir e preservar a prova o levou a outro campo de saber. Pela
via da ideia de “interdisciplinaridade”,194 o campo escolhido foi
dos saberes “psi”, ou melhor, uma determinada leitura da
psiquiatria e da psicanálise, conforme veremos adiante.195 A
execução conta com a participação de psicólogos e assistentes
sociais. Pois quem melhor para garantir os direitos de alguém do
que “O Direito” e quem melhor para valorizar a palavra de alguém
do que um “psi” (psiquiatra, psicólogo, psicanalista).
É possível visualizar, pelo que foi mostrado até aqui, como a
força dos saberes “psi” é utilizada pelo Judiciário para apoiar suas
ideias quando os saberes do seu campo deixam lacunas. E, é
melhor ainda, quando a força dos saberes que irão executar um
procedimento como o DSD está “no quintal”, ou seja, vem de “um
serventuário da Justiça”, que, por razões administrativas, não
pode questionar uma ordem vinda da “sala de estar” do juiz.
Foi ao ler o livro da jurista Veleda Dobke (2001) que Cezar
(2007, p. 61) atentou para a possibilidade sugerida por essa autora
de que a inquirição fosse realizada por meio de profissional
habilitado, psicólogo ou assistente social, com o uso da Câmara de
Gesell.196 Dessa forma, os operadores jurídicos poderiam
“fiscalizar” e “participar” do depoimento, resguardando, dessa
forma, os princípios do contraditório e da ampla defesa do
acusado.
O criador do projeto ainda nos diz que outro problema muito
comum nos processos judiciais é a exigência de que a criança
apresente um discurso lógico e um poder de enfrentamento de um
adulto para lidar com situações de abuso, o que contribui para
que os acusados de abuso sexual consigam desqualificar a
acusação. Ante a não validação da prova na prática forense, o
médico/psicanalista Volnovich (2005, p. 41 apud CEZAR, 2007, p.
65) é citado quando diz que: “devemos estar atentos aos
preconceitos adultomórficos, que aceitam como prova somente
um discurso lógico como o do adulto, partindo da ideia de que
existe uma simetria entre o adulto testemunha e a criança
testemunha”. Esta citação é, no mínimo, paradoxal, tendo em vista
que é a palavra da criança/adolescente que será a própria prova
do crime infringido contra ela mesma. Convenhamos que isso
acarretará várias implicações para a criança, inclusive a de ela
assumir uma responsabilidade “adultomórfica” de acusar, na
maioria das vezes, os seus responsáveis por violência e/ou crimes
sexuais. Nesse caso, a palavra da criança passa a ter peso idêntico
à de um adulto!
De acordo com Cezar (2007, p. 68), a equipe técnica do Juizado
da Infância e da Juventude de Porto Alegre procurou encampar o
projeto, optando por nele integrar lições do
psiquiatra/psicanalista Tilman Furniss, que sugere que a divisão
dinâmica do depoimento deve ser feita em três etapas:
acolhimento inicial, depoimento ou inquirição e acolhimento final.
Na primeira etapa, o acolhimento inicial, que dura de 15 a 30
minutos, é utilizada a estratégia de pedir para o responsável
chegar com a criança 30 minutos antes do procedimento, o que
evita um problema recorrente: o encontro da criança com o réu, já
que, segundo Cezar (2007, p. 68), quando isso ocorre, as crianças
ficam “psicologicamente traumatizadas, e os depoimentos assim
realizados, colhidos à égide de tais emoções, tornam-se dúbios e
inconsistentes para comprovarem a efetiva prática do delito”.
Podemos observar que, segundo esse método, o tempo de
acolhimento que a criança/adolescente recebe do psicólogo é
muito curto e anterior ao inquérito, não fazendo parte do “ritual
tecnológico de inquirição” o acompanhamento dos efeitos desse
depoimento na vida da criança e de sua família. Afinal “O projeto
depoimento sem dano busca precipuamente, a redução do dano
durante a produção de provas em processos [...] nos quais a
criança/adolescente é vítima ou testemunha [...]” (Cezar, 2007, p.
67).
No Brasil não existem pesquisas sobre o acompanhamento das
crianças e adolescentes inquiridos, porém, segundo experiências
similares realizadas na África do Sul, os autores Jonker e Swanzen
(2006, p. 111-112) consideram em seu artigo que:
O contexto no qual a criança oferece seu testemunho pode estar causando mais
danos do que seria cabível. Constata-se decepção entre aqueles que tinham a
esperança de atuar como intermediadores a fim de tornar o processo mais fácil
para as crianças, pois acabaram se defrontando apenas com expectativas
inadequadas para a idade das crianças e com um foco muito acentuado nos
direitos do acusado. [...] A eficácia do processo atual só pode ser descrita como
“pouco amigável ao usuário” [...] faz com que a criança permaneça no limbo no
que se refere ao “processo de cura”.

Os autores acima também relatam que a criança/adolescente só


tem direito a terapia após o testemunho, para que “o depoimento
da criança não fique contaminado”. Contudo, “ter direito” não
significa que, na realidade, esses serviços estejam prontamente
disponíveis para crianças-testemunhas. Segundo os autores,
geralmente não estão.
Como vemos, a “redução do dano” só existe enquanto dura o
processo de produção de prova, que, curiosamente, não é feito
apenas pela polícia ou promotoria, mas, nesse caso, também pelo
juiz, que supostamente deveria apenas analisá-las e julgá-las, e
pelo psicólogo e/ou assistente social que, em vez de lerem o ECA,
art. 151, que indica como uma das competências da equipe
interprofissional, o desenvolvimento de trabalhos de
aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção, estão
participando desse “circo”.
Esther Arantes (2008), no texto “Mediante quais práticas a
Psicologia e o Direito pretendem discutir a relação? Anotações
sobre o mal-estar.”, nos convoca a pensar em várias questões.
Contudo, uma delas é importantíssima, pois marca a diferença da
participação dos psicólogos no depoimento sem dano em relação
às outras modalidades do exercício profissional do psicólogo no
âmbito judiciário, que é o fato de o psicólogo ser convidado para
participar de uma prática que não se identifica com sua área, já
que todos os termos são próprios da prática judiciária: vítima,
depoimento, inquirição etc. “[...] nestes programas o psicólogo
não é chamado a desenvolver uma prática ‘psi’ [...] mas a ter uma
função de ‘duplo’, de ‘instrumento’, ou ‘boca humanizada do juiz”
(ARANTES, 2008, p. 143). Ou seja, podemos constatar que a
Justiça, além de cega, é muda!
Se depender das demandas do Judiciário, não ocuparemos
outro lugar nesse campo, que não o do perito, ou seja, aquele que
realiza um procedimento de investigação visando provar “através
de exame, vistoria e avaliação, de caráter técnico e especializado,
esclarecendo um fato, um estado ou estimação da coisa que é
objeto de litígio, ou processo” (SANTOS, 2001, p. 186).197
O livro de Cezar confirma essa demanda, já no prefácio, feito
por Jorge Trindade – jurista e psicólogo –, ao apontar o objetivo
do projeto: “produzir provas consistentes, fidedignas e confiáveis”.
Além disso, são inúmeras as passagens, ao longo do livro, nas
quais fica evidente a preocupação do autor e de seu projeto com a
produção e preservação das “provas” do crime.
Será que os psicólogos, ao atenderem essa demanda, não
estariam abrindo mão do lugar daquele que ajuda a construir
sentido para esse tipo de acontecimento na vida de uma criança
ou adolescente, para se tornar um mero inquiridor?
Em entrevista a uma publicação on-line do TJ do Acre, Cezar diz
que: “para a Justiça, a prova produzida dessa forma é muito mais
confiável. O principal é que o DSD aumentou o índice de
responsabilização de 3% para 59% do total das denúncias.198
Por que será que eles também não fizeram uma estatística a
respeito de como as crianças ficam após condenarem, na maior
parte das vezes, seus parentes, por meio do seu “direito” de
acusar?
Outra característica perniciosa do projeto é a captura das
emoções e da memória:
Após o depoimento, que é gravado na memória de um computador, sua íntegra,
além de ser degravada e juntada aos autos, é copiada em um disco e juntada na
contracapa do processo. Tal prática permite que não só as partes e Magistrado
tenham a possibilidade de revê-lo a qualquer tempo para afastar eventuais
dúvidas que possuam, mas também que os julgadores de segundo grau, em
havendo recurso da sentença, tenham acesso às emoções presentes nas
declarações, as quais nunca são passíveis de serem transferidas para o papel.
(Cezar, 2007, p. 62)

Vemos aqui a preocupação com que a memória da criança, ou


seria melhor dizer “a prova do crime”, seja perdida. Por isso,
precisa-se de uma memória sobressalente (do computador), que
preservará a possibilidade de “acesso às emoções”, que não são
captadas nos documentos escritos. Intrigante manobra essa, na
qual se inventa a necessidade de preservar e arquivar as emoções
que figuram como prova para além das palavras, mas que, na
realidade, não surgem espontaneamente. Afinal, a “intervenção”
do psicólogo não se produz num encontro clínico, no jogo de
forças invisíveis que pedem passagem e que obedecem ao tempo
dos afetos, mas que parte de uma força concreta: a voz do juiz, do
“caçador” da verdade, no ouvido do psicólogo, como uma força
soberana, assoprando-lhe o que deve ser perguntado naquele
instante determinado por ele, ignorando as emoções reais da
criança em questão e seu tempo de digestão psíquica! No entanto,
achando que, dessa forma, garante os seus direitos.
Estamos aqui diante da sobreposição de planos de poder:
soberano (a soberania do juiz e o inquérito), disciplinar (o exame
de um corpo vitimado por meio da pseudoescuta “psi”) e de
controle (o registro eletrônico e impresso da verdade da Justiça).
Em tempos de biopoder, a política é cercar a vida por todos os
lados. Trata-se de uma nova humanização, a que preserva,
virtualmente, a verdade mediante a tecnologia da imagem que
capta gestos e os exibe aos julgadores, como num reality show que
será repetido infinitamente.
Não foi à toa que, curiosamente, Arantes (2008) chamou o
dispositivo de “programa”. Foi inevitável não associar a esta
palavra a imagem de um “reality show”, desses que são produzidos
em larga escala mundial pelas emissoras de televisão, no qual os
“sobreviventes” são observados por trás do vidro das televisões e
nos quais os participantes não têm controle sobre a vida lá fora,
nem sobre sua vida lá dentro. Contudo, os “sobreviventes voyeurs”
que estão do lado de fora e que assistem a esse tipo de programa
controlam suas vidas por ligações telefônicas. Nesta pesquisa,
coloco os voyeurs como sobreviventes também, por considerar
que ambos, protagonista e telespectador, participantes desse tipo
de programa, são capturados em uma espécie de “sobrevida” em
um dispositivo de produção de subjetividade e controle social.
Ao continuar a discussão sobre o encontro dos saberes “psi”
com o DSD, pergunta-se: o que se espera do técnico (psicólogo)? O
próprio Cezar nos responde:
Para que os objetivos do projeto sejam alcançados com maior facilidade,
importante é que o técnico entrevistador – assistente social ou psicólogo –
facilite o depoimento da criança. Para isso, é desejável que possua habilidade
em ouvir, demonstre paciência, empatia, disposição para o acolhimento, assim
como capacidade de deixar o depoente à vontade durante a audiência. [...] para
que o depoimento seja realizado com sucesso, tanto para o bem-estar do
depoente como para a qualidade da prova produzida, o técnico possua
conhecimento teórico relativo à dinâmica do abuso, preferencialmente com
experiência em perícias, assim como possua um pensamento hábil e articulado
que permita a fácil compreensão e interação de todos que estão a participar do
ato judicial. (CEZAR, 2007, p. 66-67)

Quanta coisa se espera de um técnico!


Constata-se que, para justificar seu projeto, Cezar se apoiou na
psiquiatria e na psicanálise. Mas, nem só de saberes médico e
“psi” vive um projeto no campo jurídico, o saber do direito
também é convocado. Para fundamentar juridicamente seu
projeto, Cezar (2007, p. 64-65) critica a normativa processual
vigente e cita o art. 12 da Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança (1990),199 incorporada pelo Brasil por meio do
Decreto Legislativo nº 28 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente–ECA (Lei 8.069/90), art. 28, parágrafo 1º, incisos III e
VI, que instituem o direito da criança de ser ouvida pela
autoridade competente, porém ela trata de forma geral da
produção de prova realizada em Juízo e não cria modelo para
inquirir crianças e adolescentes, fato que, segundo o autor,
desconsidera o art. 227 da Constituição Federal e artigos 4º, 5º e 6º
do ECA, que determinam a efetivação dos direitos referentes, entre
outros, à dignidade e ao respeito, que restam desatendidos
quando a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento não é
observada adequadamente.
Porém, curiosamente, o projeto “esquece” de citar que os
artigos 203, 206 e 208 do Código de Processo Penal (CPP)
possibilitam o entendimento de que “a promessa de dizer a
verdade” não é uma obrigatoriedade para os menores de 14
(quatorze) anos.
Se levarmos em conta as forças políticas do contemporâneo,
que produzem dispositivos de exceção e que operam na lógica de
um “Estado penal”, não basta que um projeto seja fundamentado
pelo direito, pelas “ciências” médicas, humanas e regulamentado
pela legislação vigente, é necessário que ele próprio se torne
também uma lei.
O dispositivo DSD ainda não é regulamentado por nenhuma lei,
mas existe um projeto de lei complementar (PLC 035), de autoria
da ex-deputada – também gaúcha, como Cezar – Maria do Rosário
(PT/RS), que propõe regulamentar o depoimento de crianças e
adolescentes por meio de alterações no Código de Processo Penal
(CPP) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e é um dos
resultados dos trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito da Exploração Sexual (2003/2004). No dia 17/3/2010, a
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o
PLC 035 com relatoria da senadora Lúcia Vânia (PSDB/GO). Ao
comemorar a aprovação, Cezar profere em entrevista: “em sete
anos de implantação do depoimento sem dano mais de duas mil
crianças foram ouvidas. Nossa preocupação maior é com a
proteção da criança, mas hoje conseguimos condenar mais
também. Em 2009, 76% das ações geraram condenações”.200
Caso o DSD viesse a se tornar uma lei, funcionaria também
como um dispositivo de exceção, mas, como diria Agamben, na
contemporaneidade a exceção tem-se tornado regra.
No que diz respeito à proposta de regulamentação do PLC 035,
saliento que o ECA não menciona nada a respeito de “produção
antecipada de provas”. Logo, o projeto, na realidade, não se
propõe a uma regulamentação, mas a uma inclusão de matéria
nova; segundo Esther Arantes,201 trata-se especificamente da
inclusão de uma seção (VIII) com vários artigos (197-A a 197-F) no
capítulo II, do título VI da Parte Especial. Arantes alerta para o fato
de não estarmos diante de um problema “técnico”. E acrescenta
que devemos nos perguntar se o direito de ser ouvido e de se
expressar significa ser inquirido para a produção de prova.
Estranho lugar esse que se produziu, por meio desse
procedimento, no qual a “suposta vítima” se torna
simultaneamente, ou seria melhor dizer, compulsoriamente, “a
testemunha-chave”, ou seja, a própria prova do crime.
Por meio de todas as afirmações de Cezar sobre seu projeto,
podemos fazer das palavras de Jonker e Swanzen (2006) minhas
também:
Pode-se então argumentar que os processos judiciários são pouco benéficos
para as crianças. As razões básicas para o processo criminal não estão voltadas
necessariamente para o melhor interesse da criança. Pode haver pouca ou
nenhuma correlação entre o melhor interesse da criança e as expectativas da
autoridade que move o processo. (JONKER; SWANZEN, 2006, p. 113)

Por tudo o que já foi mostrado até aqui, afirmo que o próprio
autor do projeto DSD já respondeu à pergunta deste estudo: “DSD
proteção integral da criança/adolescente ou da prova?”
Definitivamente, este dispositivo não funciona para garantir
que a criança/adolescente seja protegida como um sujeito de
direitos, pois ele está a serviço do “Sistema de Garantias de
Provas” e é regido pelo princípio da “Proteção Integral da Prova”.
Mas, e como estão agindo os psicólogos que trabalham nos
Tribunais de Justiça do país; não querem brincar de ventríloquos?
Os Conselhos Federais das duas categorias de profissionais que
compulsoriamente teriam de realizar o DSD – psicologia e serviço
social – têm questionado ética e politicamente esse dispositivo.
No ano de 2005, o CFP foi consultado pelo CRP-07/RS a respeito
do projeto DSD, pois alguns psicólogos desse estado estavam
preocupados com as possíveis faltas éticas que poderiam ser
cometidas ao participarem desse procedimento. O
encaminhamento do Sistema Conselhos de Psicologia para a
questão foi a realização, em 2006, de um evento para discutir o
tema para o qual o criador do projeto foi convidado.
Em 2007, no VI Congresso Nacional de Psicologia, foi aprovada
uma moção de repúdio ao projeto de lei sobre o DSD.202 E, nesse
ano, no VIII Encontro das Comissões de Direitos Humanos do
Sistema Conselhos, foi aprovada uma carta aberta manifestando a
preocupação com o referido projeto de lei, que havia sofrido
alterações e passou a ganhar outra nomenclatura: PLC 035.
Também foi solicitada a não votação da matéria que estava no
Senado e audiências públicas para garantir que a sociedade
conheça seu teor, implicações e consequências, bem como
contribua de maneira democrática e participativa com esse
debate.
Em 2008, o CFP lançou um documento público, uma
manifestação, posicionando-se pela não aprovação do PLC 035 e
sugerindo a ampliação das discussões com os setores diretamente
envolvidos e com os diversos segmentos sociais. E, ainda no
mesmo ano, ocorreu uma audiência pública no Senado, na qual o
CFP se manifestou e propôs a suspensão do DSD, assim como a
realização de um seminário nacional sobre escuta de crianças e
adolescentes.
O CFP também estabeleceu parceria com o Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS), que, em 15/9/2009, publicou a Resolução
de nº 554/2009, que “dispõe sobre o não reconhecimento da
inquirição das vítimas crianças e adolescentes no processo
judicial, sob a Metodologia do Depoimento Sem Dano/DSD, como
sendo atribuição ou competência do profissional assistente social”
e vedando a participação do assistente social no DSD.
Porém, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,
por meio da Procuradoria-Geral do Estado, obteve concessão de
uma liminar na Justiça Federal, em 9/11/09,203 suspendendo a
Resolução nº 554/2009. A argumentação foi a existência de risco de
violação dos artigos 150 e 151 do ECA, regulamentados pela Lei
Estadual nº 9.896/93, para manter a equipe interprofissional
destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude,
especialmente por meio do DSD.
Na VIII Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente, que ocorreu de 7 a 10/12/2009, foram apresentadas
diversas moções, entre elas, uma contra o depoimento sem dano
(DSD),204 proposta pelas conselheiras Iolete Ribeiro, do Conselho
Federal de Psicologia e Erivã Garcia Velasco, do Conselho Federal
de Serviço Social. O documento obteve aprovação da plenária.
Em 2009 também aconteceu, no Rio de Janeiro,205 o Seminário
“Escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de
violência e a rede de proteção”, no qual o DSD foi amplamente
discutido por profissionais do direito, serviço social e psicologia.
E um dos principais consensos foi o posicionamento contrário ao
PLC 035, ou seja, ao DSD. Nesse seminário, também foram
elencadas propostas para tratar a problemática que deu nome ao
evento a fim de não ferir os Códigos de Ética dos profissionais
envolvidos e não trazer “danos” à população atendida.
Por tudo que foi mencionado até este momento, é possível
verificar como são tênues os limites entre os saberes (direito,
medicina, psicanálise, psicologia) e as forças que governam a
população em um Estado dito democrático, no qual dispositivos
travestidos de práticas “multi” ou “interdisciplinares”, e, ainda por
cima, “humanizadas”, colocam para funcionar mecanismos de
regulação, normalização e controle dos corpos, da sexualidade e
da vida.
3.5 - Pontos de contato entre os dois analisadores: o
contrato
Ao problematizar as dificuldades e possibilidades dos
psicólogos que trabalham no âmbito jurídico, estou colocando não
só o próprio campo e o direito em questão, mas também os
saberes e práticas “psi”. Ao me perguntar sobre o que existe de
comum entre esses profissionais, sobretudo quando o vetor do
medo aparece em suas falas, algumas questões dão pistas da
resposta: quem contrata o psicólogo que atua nesse campo? Em
que base (servidor estatutário ou contratação temporária) será
feito o contrato? Que parte da população o psicólogo vai atender?
A demanda de quem o psicólogo vai atender? A dos seus pacientes
ou a de seu contratante?
O contrato, ao que tudo indica, deveria ser firmado entre o
psicólogo e a pessoa que será atendida por ele, o paciente/cliente,
mas não é bem assim que ocorre no “campo jurídico”.
No campo jurídico nunca se recebe um simples “paciente”, mas
um paciente bastante adjetivado. No caso das prisões, é “alguém
que cometeu um crime e está privado da liberdade” e, no caso do
depoimento sem dano, “uma criança ou adolescente,
supostamente vítima de violência sexual, que não responde civil
nem juridicamente por seus atos, que tem sua liberdade de
escolha bastante limitada em virtude de sua idade e das práticas
de nossa cultura”.
Ainda no que tange ao contrato, outras questões se fazem
pertinentes, justamente aquelas que compõem um contrato: que
tipo de serviço será prestado? Por quanto tempo? Por qual valor?
O que a outra parte tem de fazer em contrapartida?
Em função de ter ouvido, por parte dos psicólogos desse
campo, muitas referências acerca da impossibilidade de seguir as
recomendações psicanalíticas, trouxe uma das recomendações
levantadas por Freud (1913, p. 168) sobre os acordos a respeito do
tempo de atendimento e do pagamento deste:
Com referência ao tempo, atenho-me estritamente ao princípio de ceder uma
hora determinada. [...] Tender-se-á a indicar os muitos acidentes que podem
impedir o paciente de comparecer [...] e esperar-se-á que sejam levadas em
conta as numerosas indisposições intervenientes que podem ocorrer no decurso
de um tratamento analítico prolongado. A minha resposta, porém, é: nenhuma
outra maneira é praticável.
Tentemos imaginar a situação de um psicólogo prisional que
marca dia e hora com seu paciente-detento e fica a esperar por ele.
Poderá esperar por muito tempo, uma vez que dentro de uma
instituição carcerária o preso não tem livre trânsito. Ele depende
de autorização e acompanhamento do pessoal da segurança para
se deslocar. Entretanto, o contingente de agentes penitenciários é
desproporcional ao número de presos. São poucos, e, além disso,
alegam ter tarefas mais importantes a fazer. Poderíamos
parafrasear Freud quando diz que: “Tender-se-á a indicar os
muitos acidentes que podem impedir o paciente de comparecer
[...] e esperar-se-á que sejam levadas em conta as numerosas
indisposições intervenientes que podem ocorrer”. Freud não fazia
ideia de como de fato isto pode ocorrer dentro de um presídio,
pois lá há uma “economia” – em todos os sentidos em que essa
palavra pode ser entendida – que possibilita ou interdita a
circulação; há uma economia que manipula o poder, o tempo, os
corpos e, não raro, o dinheiro.206
Essa passagem de Freud foi escolhida por se tratar de um
ponto considerado importante, pois a forma como o contrato
deveria ser realizado denuncia o funcionamento da própria
psicanálise, que foi criada para ser realizada em um determinado
ambiente e voltada para um certo público. Ou seja, ela emerge em
um período em que as forças econômicas impulsionavam o
capitalismo, além de ter sido inventada pela burguesia para a
própria burguesia. Já falamos anteriormente da própria
impossibilidade que Freud via no uso de sua teoria no sistema
penal.
Mas não podemos deixar de levar em consideração que as
recomendações clínicas de Freud, sobretudo em relação ao
atendimento (o tempo, a cobrança de valores, a periodicidade),
atravessaram e continuam presentes nas práticas do psicólogo,
desde a sua formação universitária até sua prática profissional,
mesmo que siga uma linha que não seja psicanalítica.
A forma como é feito o contrato também aponta para o
funcionamento das instituições ligadas ao campo jurídico,
conforme tem-se mostrado desde o início deste texto.
Contudo, afirmo que essa questão está para além da psicanálise
ou de qualquer outra linha teórico-prática, ou seja, não é apenas
um problema metodológico, mas, antes de qualquer coisa, ético e
político.
Sabe-se que nos dois procedimentos jurídicos utilizados como
analisadores, o psicólogo, na maior parte das vezes, é
concursado207 e tem suas funções definidas em regulamentos, leis
e recebe um salário do Estado – seja por verbas federais, estaduais
ou municipais. Portanto, em ambos os casos, o contrato é feito de
antemão entre o psicólogo e o campo jurídico-penal. Ele é,
consequentemente, um “servidor público”. E o Estado espera, ou
melhor, exige que a demanda seja atendida.
Mas cabe ressaltar que, apesar de nossa Constituição
determinar, no art. 37, que a ocupação de cargos em órgãos
públicos deverá ser feita por meio de concurso, sabemos que o
regime da contratação também vigora. Estive com psicólogos que
prestavam serviços para os Tribunais de Justiça, para o Sistema
Penitenciário e para o Ministério Público.208 E, apesar de não serem
“servidores”, muitas vezes, são mais “servis” ainda, pois têm medo
de ser demitidos a qualquer momento.
Por tudo que foi pesquisado, posso inferir que a demanda da
administração penitenciária não é pagar para o preso ter um
espaço de elaboração para as suas questões existenciais, assim
como a do Judiciário, no caso dos procedimentos de inquérito,
como o depoimento sem dano, não é financiar psicólogos para
acolher e acompanhar crianças supostamente vítimas de violência
intrafamiliar ou sexual. Isso pode parecer uma equação simples;
afinal quem faz uma seleção ou concurso público sabe que será
um servidor do Estado. porém, isso não é nada simples; percebeu-
se, ao longo da pesquisa, que alguns psicólogos se sentem
divididos em relação a essas demandas. E, não raro, tentam
atendê-las simultaneamente, o que por si só já é um paradoxo e
traz questões primordiais para esta discussão: esses profissionais
estão a serviço de quem? Como pensar em princípios éticos numa
relação contratual com um paciente/cliente que não nos
contratou? Como trabalhar com uma pessoa que não nos chega
movida pelo próprio desejo e sim, na maioria das vezes, porque é
obrigada?
Tomemos como exemplo o movimento da reforma psiquiátrica
que, em seu surgimento, propôs novos modos de tratamento, mas,
sobretudo, a intervenção institucional.
Em busca de um referencial teórico que abrangesse o
atendimento de pessoas em instituições – e não apenas nos
consultórios da antiga classe média, como era o caso de Freud –,
chega-se à obra de Franco Basaglia (1972), que também discute a
questão contratual, mas dentro das instituições totais ou
“instituições da violência”, segundo texto homônimo, no qual o
autor diz que a sociedade se organiza tendo essas instituições
como base. Pode-se dizer que, embora o alvo da crítica de Basaglia
recaísse sobre a esfera psiquiátrica, o que está em jogo é uma
problematização muito mais ampla que implica uma crítica a todo
o campo institucional. Para ele: “A violência e a exclusão estão na
base de todas as relações que se estabelecem em nossa sociedade.
Os graus de aplicação dessa violência dependerão, entretanto, da
necessidade que tenha aquele que detém o poder de ocultá-la ou
disfarçá-la. E daí que nascem as diversas instituições, desde a
família e a escola até a carcerária e a manicomial” (BASAGLIA,
1972, p. 101).
A sociedade criou um campo para poder escamotear suas
contradições: conceder poder aos técnicos, que terão como
função ampliar as fronteiras da exclusão ao mistificar a violência
por meio do tecnicismo.
O novo psiquiatra social, o psicoterapeuta, a assistente social, o psicólogo de
indústria, o sociólogo [...] são os novos administradores da violência no poder,
na medida em que, atenuando os atritos, dobrando as resistências, resolvendo
os conflitos provocados por suas instituições, limitam-se a consentir, com sua
ação técnica aparentemente reparadora e não-violenta, que se perpetue a
violência global. Sua tarefa, que é definida como terapêutica-orientadora, é
adaptar os indivíduos à aceitação de sua condição de “objetos de violência”,
dando por acabado que a única realidade que lhes cabe é serem objeto de
violência se rejeitarem todas as modalidades de adaptação que lhes são
oferecidas. (BASAGLIA, 1972, p. 132, tradução nossa)
Ainda na visão desse autor, tanto o “interno” como o
“especialista” são excluídos, porém, ao especialista cabe o papel
de ser o executor da exclusão mediante seus pareceres, mas ele é
excluído porque sua função nasce de um mandato social
engendrado na instituição. Se olharmos por uma perspectiva
foucaultiana para isso que Basaglia chama de “exclusão”,
poderíamos entendê-la como um modo específico de “inclusão”,
seja por meio do “aprisionamento” dos internos, seja mediante
esse “mandato” endereçado aos profissionais. Esse “mandato”, no
contemporâneo, se torna também uma forma de “aprisionamento”
dos discursos e práticas dos profissionais.
Segundo Guattari (1990, p. 5): “A produção maquínica de
subjetividades pode trabalhar tanto para o melhor como para o
pior”. Ao considerarmos as práticas “psi” como engrenagens dessa
maquínica, temos de fazer uma análise constante de nossas
implicações e questionar esse mandato – ou demanda institucional
– que é feito para o psicólogo. Do contrário, seremos meros
reprodutores e mantenedores dos dispositivos de captura e
controle típicos do biopoder, como alguns profissionais que
mencionamos aqui.
Compreendo que o exame criminológico e o DSD são
dispositivos que funcionam como “redes frias” que, segundo
Eduardo Passos (2004), se sustentam na crença de um centro
ordenador de onde o poder partiria exercendo-se de cima para
baixo. Aqui caberiam as frases, tão repetidas pelos profissionais
ouvidos nesta pesquisa: “mas tá na lei” e “não podemos negar um
pedido do juiz”. Porém, todo este estudo quer pensar como tecer
redes que potencializem a vida, “redes quentes”, que, conforme
Passos, podem ser consideradas como dispositivos de
intervenção que “se caracterizam por um funcionamento
[descentralizado] no qual a dinâmica conectiva ou de conjunção é
geradora de efeitos de diferenciação”. Outro termo utilizado pelo
autor para “redes quentes” é “redes de resistência”. E, para que
estas redes possam surgir, as práticas “psi” têm de operar nas
entrelinhas criando um plano estético-ético-político de
intervenção.
Para Cecília Coimbra209 resistir não é só apresentar oposição,
mas criar e promover rupturas, afirmar outras lógicas, outras
realidades, possibilidades inéditas e valores novos. É isso o que
esperamos que a psicologia, como saber, e nós, como psicólogos,
possamos fazer. No caso do psicólogo, “trata-se de reinventar
completamente seu trabalho, redirecionando-o no sentido, não da
manutenção do cárcere [e do Estado penal], da pesada e mortífera
engrenagem carcerária [e punitiva], mas no sentido de sua
desarticulação” (RAUTER, 1992, p. 24).
Por tudo isso que foi discutido até o presente momento, alego
que não é possível realizar um contrato clínico com um paciente
internado em uma instituição de confinamento ou nos corredores
do Judiciário. O que podemos fazer de clínico, nesses lugares,
nessas instituições, saberes e práticas, é intervir no
funcionamento deles, é provocar desvios. Mas será que isso é
possível?
3.6 - É possível desarticular um dispositivo?
Para introduzir esta parte do texto, gostaria de analisar uma
reportagem que achamos ao longo da pesquisa e que, apesar de
ter sido divulgada antes da aprovação do PLC 035 pela Comissão
de Constituição e Justiça do Senado Federal, permanece atual. Ela
é, também, bastante ilustrativa, pois mostra o nível do
embricamento desses dois dispositivos trazidos como
analisadores principais, além do fato de denunciar como eles só
funcionam porque estão enredados em tantos outros dispositivos.
Trata-se de uma espécie de comunicado, divulgado no site
oficial do Senado Federal,210 sobre uma audiência pública da CPI da
Pedofilia, ocorrida no dia 27/5/09, na qual foram discutidos o PLC
035 e o depoimento sem dano. Na reunião, o senador Magno Malta
(PR-ES), então presidente da CPI da Pedofilia, afirmou sua
pretensão de conversar com a então senadora e relatora da
Comissão de Constituição e Justiça, Lúcia Vânia (PSDB/GO), com o
objetivo de disponibilizar os técnicos da CPI, ou ainda montar um
grupo de trabalho, na própria Comissão, para discutir as eventuais
mudanças necessárias à aprovação rápida do projeto.
Nessa mesma reunião foram discutidos mais alguns projetos
que seriam encaminhados ao plenário e, em um deles, estava
previsto que o livramento condicional de condenados por crimes
sexuais dependeria de um “exame criminológico” para verificar
sua “periculosidade” e, ainda, que durante o tratamento o
condenado deveria fazer “tratamento psicológico ou psiquiátrico”,
além de submeter-se à “monitoração eletrônica”.
Dez meses após a reportagem ter sido divulgada, em 17/3/2010,
a Comissão em questão aprovou o PLC 035, o exame criminológico
continua a ser realizado nos presídios de nosso país, além de a Lei
nº 12.258, de 15/6/2010, que trata da “monitoração eletrônica”, ter
sido assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Como podemos observar, não importa mais qual o partido a
que os políticos estejam filiados, sejam eles “destros”, “canhotos”
ou “ambidestros”, todos querem “punir melhor”.
Por meio dessa reportagem, entendemos também que os
instrumentos jurídicos, “psi”, legislativo, da segurança pública, o
“populismo punitivo” e os interesses políticos se amalgamam de
uma forma muitíssimo funcional para alguns segmentos de nossa
sociedade.
Ao discutir-se sobre o conceito “dispositivo” anteriormente, foi
dito que nele habitam múltiplas forças. Assim, como mostrou-se
ao longo de todo o trabalho, há diversos dispositivos que visam à
normalização de condutas, ao controle de determinadas parcelas
da população, ao controle sobre as formas de viver, adoecer e
morrer, produzidos pelas formas de governo, pelas formas
jurídicas, pela criminologia, pela medicina e pelos saberes “psi”,
como a prisão, o exame criminológico, a justiça terapêutica, o
depoimento sem dano. Contudo, também propus pensar as
práticas e discursos “psi” como um dispositivo, acreditando que
eles possibilitam os processos de singularização e carregam a
dimensão da liberdade, ainda que para atingir essa liberdade
tenhamos de “dobrar”, inúmeras vezes, o próprio dispositivo e
fazê-lo funcionar de outras formas. Tal como um origami, que a
cada nova sequência de dobraduras se transforma em outra coisa.
Parece simples, mas não é. Segundo Agamben (2009, p. 42), é
até ingênuo achar que podemos destruir ou ainda usar211 de “modo
correto” um dispositivo. Ao explicitar o que pensa sobre esse
conceito, o autor generaliza a ampla classe dos dispositivos
foucaultianos e afirma que, para ele, significam qualquer coisa que
tenha a capacidade de “capturar, orientar, determinar, interceptar,
modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões
e os discursos dos seres viventes”.
E, ao se perguntar que estratégia devemos usar no nosso
cotidiano, caracterizado pela fase extrema do capitalismo, ou
capitalismo de “espetáculo”, que produz uma gigantesca
acumulação e proliferação de dispositivos, Agamben diz que:
Na raiz de todo dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente
humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera
separada, constituem a potência específica do dispositivo. Isso significa que a
estratégia que devemos adotar no nosso corpo a corpo com os dispositivos não
pode ser simples, já que se trata de liberar o que foi capturado e separado por
meio dos dispositivos e restituí-los a um possível uso comum. (AGAMBEN, 2009,
p. 44)

Ao explorar um conceito que vem da esfera do direito e da


religião – “profanação” –, Agamben (2009, p. 45) diz que, pelo
direito romano, as coisas que pertenciam de algum modo aos
deuses eram “sagradas” e “religiosas”, sendo, portanto, impedidas
de ser usadas, doadas ou comercializadas livremente pelos
homens. A transgressão dessas leis era considerada um
“sacrilégio”, pois se tratava de coisas “sagradas” ou “religiosas.” E,
ainda que “se consagrar era o termo que designava a saída das
coisas da esfera do direito humano, profanar significava, ao
contrário, restituir ao livre uso dos homens”.
Olhando por esse prisma, o autor mostra como a religião é
aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas do uso
comum e os transfere a uma esfera separada, não havendo religião
sem separação. E mais, que em toda separação está contido algo
de genuinamente religioso.
Ao esclarecer o que entende por esse processo, Agamben
(2009, p. 45) afirmará que: “O dispositivo que realiza e regula a
separação é o sacrifício”, é o sacrifício que “sanciona em cada
caso a passagem de alguma coisa do profano para o sagrado, da
esfera humana à divina.” Contudo, se queremos pensar que o
dispositivo pode dobrar-se, isto é, ter outros usos, poderíamos
então considerar, a partir de Agamben, que todo dispositivo
carrega em si uma força contradispositiva e aquilo que foi
separado do comum pode ser restituído a esse comum. Como nos
mostra o autor: “A profanação é o contradispositivo que restituiu
ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido.”
No livro Profanações, Agamben (2007, p. 65-66) destaca que
esse “uso” não é uma coisa natural. Para o autor, entre usar e
profanar há uma relação especial, pois “profanar significa abrir a
possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a
separação, ou melhor, faz dela um uso particular”.
Ao discutir os ritos sacrificais, o autor diz que uma das formas
mais simples de profanação nesses rituais ocorre pelo contato: no
mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da
esfera humana para a divina, uma parte do corpo do animal está
reservada aos deuses. Entretanto, outras podem ser consumidas
pelos homens, basta que os participantes desse rito toquem essas
carnes, para que se tornem profanas e possam ser simplesmente
comidas. “Há um contágio profano, um tocar que desencanta e
devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado”
(Agamben, 2007, p. 66).
A profanação, segundo Agamben (2007, p. 68), implica uma
neutralização daquilo que profana, já que, depois de profanado, o
que estava indisponível e separado acaba restituído ao uso. E isto
é uma operação política, pois “desativa os dispositivos do poder e
devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado”.
Mas Agamben diz que esse processo não é nada fácil. O autor
segue Walter Benjamin212 para afirmar que o capitalismo leva ao
extremo a tendência que vem desde o cristianismo e que define a
religião, que é a estrutura da separação:
[...] onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado
ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de
separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para
dividi-la por si mesma e é totalmente indiferente a cisão sagrado/profano,
divino/humano. Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma
da separação, sem mais nada a separar. [...] E como, na mercadoria, a separação
faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de
troca e se transforma num fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito,
produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a
linguagem – acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera
separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se
torna duravelmente impossível. Esta é a esfera do consumo. (AGAMBEN, 2007, p.
71)

Portanto, para Agamben, na atual fase do capitalismo, todas as


coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, por isso,
“espetáculo e consumo são duas faces de uma única
impossibilidade de usar”. Aquilo que não pode ser usado vai ser
entregue ao consumo ou à exibição espetacular. Contudo, “se
profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido
separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase
extrema, está voltada para algo absolutamente improfanável”, o
que leva o autor a dizer ainda que “se tornou impossível profanar
(ou, pelo menos exige procedimentos especiais)” (AGAMBEN,
2007, p. 71).
Essa impossibilidade de usar, da qual fala Agamben (2007, p.
73), ocorre por meio de um processo que ele denomina
“museificação” do mundo, no qual as potências que definiam a
vida dos homens (a arte, a filosofia, a ideia de natureza e até a
política) retiraram-se docilmente para o museu, ou seja, para “uma
dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo
era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é” e que
indica “a exposição de uma impossibilidade de usar, habitar, de
fazer experiência”.
Ao duvidar da ideia do improfanável e especular sobre a
possibilidade de formas eficazes de profanação no
contemporâneo, Agamben (2007) diz que é preciso que lembremos
que:
[...] a profanação não restaura simplesmente algo parecido com um uso natural,
que preexista à sua separação na esfera religiosa, econômica ou jurídica. A sua
operação é mais astuta e complexa e não se limita a abolir a forma da separação
para voltar a encontrar, além ou aquém dela, um uso não contaminado. [...]
profanar não significa simplesmente abolir e cancelar separações, mas aprender
a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. (AGAMBEN, 2007, p. 75)

Mas, para tornar inoperante um dispositivo, é importante


arrancar dele “a possibilidade de uso que os mesmos capturam” e
encontrar um uso puro, não contaminado. Agamben (2007) cita
como exemplo o gato que brinca com um novelo como se fosse
um rato e que “usa conscientemente e de forma gratuita os
comportamentos próprios da atividade predatória”. Tais
comportamentos não são abolidos, mas, pela substituição do
novelo pelo rato, eles são desativados, e assim se abrem para um
novo uso.
Mas de que uso se trata? Para Agamben (2007, p. 74-75), o jogo
com o novelo significa a libertação de um comportamento
predatório, apesar de ainda expressar gestualmente as formas da
atividade de que se emancipou, esvaziando-as de seu sentido e da
relação de finalidade, dispondo-as para um novo uso. Esse jogo
também significa a libertação do rato do fato de ser uma presa.
Liberta, também, a atividade predatória do fato de estar
necessariamente voltada para a captura e para a morte do rato.
Apesar de não ter deixado de ser um comportamento de caça, “a
atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou
seja, uma prática que, embora conserve tenazmente a sua
natureza de meio, se emancipou de sua relação com uma
finalidade, esqueceu alegremente seu objetivo, podendo agora
exibir-se como tal, como meio sem fim”. Mas “a criação de um
novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso,
tornando-o inoperante” (AGAMBEN, 2007, p. 75).
Mas será que é possível profanar dispositivos que parecem
improfanáveis?
No apagar das luzes desta pesquisa, tive a oportunidade de
experimentar essa pergunta por meio da publicação, pelo
Conselho Federal de Psicologia, de três resoluções importantes
para os psicólogos que atuam no campo jurídico e na execução
penal.
A Resolução nº 08, de 30/6/2010, que “Dispõe sobre a atuação
do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder
Judiciário”, traz, em seu conteúdo, orientações sobre as
atribuições de cada uma dessas funções, marcando as diferenças
entre elas e, especialmente, recomendando sua não sobreposição.
A Resolução nº 09, de 29/6/2010,213 que “Regulamenta a atuação
do psicólogo no sistema prisional”, de onde destacamos o art. 4 –
que fala da elaboração de documentos escritos – dispõe o
seguinte:
a) Conforme indicado nos Art. 6º e 112º da Lei nº 10.792/2003 (que alterou a Lei
nº 7.210/1984), é vedado ao psicólogo que atua nos estabelecimentos prisionais
realizar exame criminológico e participar de ações e/ou decisões que envolvam
práticas de caráter punitivo e disciplinar, bem como documento escrito oriundo
da avaliação psicológica com fins de subsidiar decisão judicial durante a
execução da pena do sentenciado;
b) O psicólogo, respaldado pela Lei nº 10.792/2003, em sua atividade no sistema
prisional somente deverá realizar atividades avaliativas com vistas à
individualização da pena quando do ingresso do apenado no sistema prisional.
Quando houver determinação judicial, o psicólogo deve explicitar os limites
éticos de sua atuação ao juízo e poderá elaborar uma declaração conforme o
Parágrafo Único.
Parágrafo Único. A declaração é um documento objetivo, informativo e
resumido, com foco na análise contextual da situação vivenciada pelo sujeito na
instituição e nos projetos terapêuticos por ele experienciados durante a
execução da pena.

E, por último, a Resolução nº 10, de 29/6/2010, “Institui a


regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes
envolvidos em situação de violência, na Rede de Proteção” e, na
qual consta que: “É vedado ao psicólogo o papel de inquiridor no
atendimento de Crianças e Adolescentes em situação de
violência”.
Portanto, apesar de essas resoluções serem dispositivos
normativos reguladores que contêm, inclusive, sanções a quem
infringi-los e, por conseguinte, operam dentro da mesma lógica
normativa que tanto criticamos ao longo deste trabalho, é possível
fazermos dobras nelas, e também pensarmos que a estratégia
daqueles que as elaboraram foi usar a força do adversário a favor
das lutas políticas de nossa categoria214 para criar um documento
que oriente a prática do psicólogo, resguardando-o para quando
ele precisar se negar a participar de procedimentos que ferem o
Código de Ética de sua profissão. Ou seja, talvez, essas resoluções
signifiquem a tentativa de fazer um novo uso de determinados
dispositivos, como, por exemplo, o próprio dispositivo normativo:
“Resolução”.
Não podemos ser ingênuos e achar que está tudo resolvido.
Conhecendo um pouco do nosso sistema jurídico, penal e
penitenciário, nem se precisa ter “bola de cristal” para prever que
os psicólogos ainda enfrentarão muitas dificuldades para que
essas resoluções sejam acatadas, no dia a dia dessas instituições;
para poder trabalhar em prol da saúde desses cidadãos que se
encontram encarcerados; para desarticular essa mortífera
engrenagem carcerária e punitiva e, mais ainda, para afirmar uma
política abolicionista.
É possível que pelo nível de cristalização das práticas jurídicas,
penitenciárias e, até, das psicológicas, acabe surgindo um novo
procedimento de igual tipo, ou que algum órgão do Judiciário
impetre uma liminar que anule o efeito da resolução, tal como
fizeram no Rio Grande do Sul, quando o Tribunal de Justiça, por
meio da Procuradoria-Geral do Estado, obteve liminar na Justiça
Federal suspendendo a Resolução CFESS nº 554/2009,215 que
impedia os assistentes sociais de realizarem o depoimento sem
dano.
Como este estudo se iniciou com uma análise de implicações,
devo confessar que imaginei que os órgãos judiciários entrariam
com alguma liminar para impedir nossas resoluções também. Mas,
infelizmente, aconteceu algo lamentável: a primeira reação
contrária à resolução partiu da nossa própria categoria! Conforme
mencionamos anteriormente, ainda existem alguns psicólogos que
acreditam ter de participar dos dispositivos que problematizo
aqui. Recebi vários e-mails das pessoas envolvidas na luta pelo fim
do exame criminológico informando que entidades como: a
Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), a Associação Brasileira
de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC), a
Associação Brasileira de Psicologia e Justiça (ABPJ), a Sociedade
Rorschach de São Paulo, a Associação de Psicologia de São Paulo,
grupos da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Psicologia (ANPEPP) da área da Avaliação Psicológica, o Instituto
Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP), os psicólogos do
Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, entre outros “psi”, além
de operadores do direito de todo o país, estão se manifestando
contrariamente às Resoluções do CFP a que nos referimos
anteriormente.
Em reunião de uma comissão formada por psicólogos
vinculados aos CRP-05 e à SEAP, no Núcleo de Execução Penal da
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no dia 29/7/2010,
foi possível verificar como, às vezes, é possível nos
surpreendemos com os posicionamentos dos envolvidos. Por
exemplo, a Coordenação de Psicologia da SEAP/RJ informou,216
naquele momento, que havia encaminhado a resolução para uma
“apreciação da assessoria jurídica da SEAP” e aguardava o seu
parecer. Enquanto isso, deixava a cargo de cada psicólogo a
decisão de fazer ou não o exame, até que houvesse um
posicionamento da assessoria. A coordenação em questão
precisou ser lembrada “novamente”, pelos representantes do CRP-
05, de que constitucionalmente o CFP tem autonomia para decidir
sobre as questões técnicas e éticas do exercício profissional do
psicólogo, não estando atrelado à assessoria jurídica da SEAP.
Segundo consta na própria Resolução 09/2010, no art. 3º, alínea
“d”: “Em relação à atuação como gestor, o psicólogo deverá: d)
Considerar que as atribuições administrativas do cargo ocupado
na gestão não se sobrepõem às determinações contidas no Código
de Ética Profissional”.
Por outro lado, os defensores públicos parabenizaram o CFP
pela resolução, pois têm a mesma compreensão sobre o “engodo”
do exame criminológico, que tem servido apenas como “mais um
instrumento burocrático”.217
Na reunião seguinte, no dia 10/8/2010, estiveram presentes
alguns psicólogos da SEAP, assim como sua coordenadoria de
psicologia e a assessora jurídica do CRP-05. Lá foi comunicado que
a Subsecretaria de Tratamento da SEAP e seus coordenadores
(saúde, psicologia, serviço social) foram chamados pelo juiz da
VEP para uma reunião, ocorrida na véspera, da qual participaram
defensores e promotores. Na ocasião, foram informados de que os
psicólogos que não fizessem o exame poderiam sofrer punição
judicial e administrativa, quiçá ser presos por desobediência,
porque, antes de serem psicólogos, são “funcionários públicos”. E,
no dia 10/8/2010, a SEAP/RJ emitiu a Circular nº 004/SEAPTP/2010,
assinada pelo subsecretário adjunto de tratamento
penitenciário, que dispõe sobre a obrigatoriedade de realização
218

do exame criminológico pelos psicólogos do sistema


penitenciário, em desacordo com a Resolução CFP nº 09/2010.
Neste documento são feitas ameaças, configurando assédio moral,
inquérito administrativo e prisão aos (às) psicólogos (as).
Pelo visto, a defensoria mudou de ideia, e a SEAP, que
inicialmente se mostrou solícita, também.
O CRP/RJ se manifestou, em 16/8/2010, por meio do Ofício nº
618/2010 emitido ao CFP, no qual consta que: “Tomar nova posição
clara e firme diante deste fato, que revive os piores momentos da
ditadura civil militar no Brasil (1964-1985), é indispensável para
barrar o avanço de certos setores, que reagem tomando atitudes
punitivas, antidemocratas e anti-éticas, usando o terrorismo e a
intimidação”.
Por um momento, achou-se que a Defensoria Pública tinha nos
surpreendido. E que a SEAP também poderia nos surpreender.
Bem, o Ministério Público não nos surpreende jamais. No dia
3/8/2010, no Jornal Nacional da Globo,219 foi veiculada uma notícia
que parecia versar sobre a Resolução nº 09, mas, na verdade,
falava acerca de: “uma decisão do CFP [que] teve consequências
diretas para o Sistema Judiciário brasileiro.”
Na montagem da reportagem, apenas a parte da resolução que
menciona “ao psicólogo está vedado realizar o exame
criminológico” é citada, argumentando, logo em seguida, que: “de
acordo com o Conselho, os psicólogos têm pouco tempo para
prepararem o laudo e trabalham em condições impróprias e, nem
sempre, a avaliação permite prever como será o comportamento
do preso fora da cadeia”. Como se o nosso problema fosse a “falta
de tempo” e de uma “boa sala” para fazer uma ótima “avaliação”,220
que permitisse “prever” o comportamento do preso.
A reportagem sugere que o CFP esteja “proibindo” o psicólogo
de fazer o exame, em vez de contextualizar, histórica e
politicamente, que foram os próprios psicólogos que lutaram para
construir essa resolução porque acreditam que o procedimento do
exame criminológico fere o Código de Ética dessa profissão,
porque defendem sua autonomia em relação as suas próprias
práticas, porque querem possibilitar processos de singularização e
de conquista da liberdade, porque produziram as modulações que
a própria psicologia sofreu nos últimos anos, ao vir se afastando,
cada vez mais, de uma prática: ortopédica, normalizadora, que
silencia o outro quando fala em nome dele (especialismo), que
naturaliza a produção de subjetividades a partir da
universalização de conceitos como: crime, violência, identidade,
periculosidade, delinquência, verdade, mérito e tantos outros que
só promovem e sustentam processos de criminalização e
aprisionamento e, em última instância, o extermínio de
determinadas parcelas da população.
Na mesma reportagem, um promotor221 do Ministério Público
do Rio Grande do Sul foi entrevistado. Ele acredita que a resolução
é ilegal e que, sem o laudo, a Justiça corre ainda mais risco de
libertar criminosos violentos. O promotor diz ainda que: “é a
avaliação psicológica e social que ‘contra-indica’ essa progressão,
dando elementos técnicos importantes para que o juiz e o
Ministério Público possam, muitas vezes, impedir a progressão de
regime prematura e o perigo de agentes que não têm condições de
frenquentar a rua e retornar ao convívio social ainda”.
Percebemos aqui, novamente, como a demanda dos operadores
do direito é que os psicólogos sejam fiéis servidores,
responsabilizando-se pela indicação da progressão e pelo
comportamento do preso ao sair e, consequentemente, pela
“segurança pública”! Curiosamente, na reportagem, ninguém citou
a alteração da LEP que desobriga o psicólogo do papel de dar um
parecer sobre a progressão, muito menos se lembraram de
acentuar que isso é responsabilidade dos operadores do direito,
da administração penitenciária e do lapso temporal (cumprimento
de 1/6 da pena). Assim como não contaram aos telespectadores
que é competência dos conselhos de classe definir o que é ou não
atribuição de cada categoria profissional.
Mas a reportagem é bem sagaz. A um só tempo, afirma que o
conselho estava “impedindo” os presos que “merecem” o benefício
da progressão de consegui-lo. Além disso, ao se referirem a um
caso conhecido na mídia,222 em que um homem obteve a
progressão com um laudo favorável, mas cometeu seis
assassinatos logo que saiu da prisão, dizem que isso ocorreu
porque ele não teve o seu “grau de periculosidade” avaliado
corretamente, já que os psicólogos não tiveram condições para
fazer um laudo no qual estivesse previsto que esse homem iria
cometer tais crimes.
Temos de nos perguntar: uma reportagem como essa está a
serviço do quê e de quem? Responderíamos que serve para a
formação de opinião pública, que alimenta forças como o
“populismo punitivo”, a produção de medo e de subjetividades
perigosamente criminosas, o dispositivo prisional, a manutenção
do funcionamento de um “Estado penal” regido pelo capitalismo
neoliberal e, por fim, que demanda que a psicologia esteja a
serviço disso tudo.
Asseguro também que ela procura esvaziar as lutas políticas
dos psicólogos, e ainda os criminaliza, pois, ao final da notícia,
informa que o Ministério Público Federal abriu inquérito civil para
investigar se a resolução tem validade, questionando também se o
CFP tem autonomia para tomar uma decisão como essa. Dessa vez,
além da lanterna, perderam os óculos!
Alegra-me ver que os psicólogos estão criando problemas para
a burocracia do Sistema Judiciário brasileiro! A nosso ver, as
resoluções mostram que existe resistência por parte da nossa
categoria a determinadas práticas punitivas e antiéticas, e que
essa resistência não vem de fora, pois essas resoluções são
resultado de lutas compostas com alguns profissionais que atuam
no Poder Judiciário e na Execução Penal. Portanto, atuantes em
campos privilegiados, já que esses psicólogos puderam partir de
situações concretas em que as forças entram em confronto para
desenvolver suas estratégias e táticas e tentar tornar inoperantes
o velho uso de alguns dispositivos, inclusive os dispositivos
produzidos e/ou utilizados pela própria psicologia.
Penso que é necessário trabalhar mais num nível político com
nossa categoria, para que possamos construir estratégias políticas
e instrumentos que nos possibilitem ocupar e afirmar novos
lugares, discursos e práticas. Porque é até compreensível que os
operadores do direito não queiram abrir mão desse procedimento,
mas não é cognoscível o fato de tantos psicólogos ainda
acreditarem que ele deva ser realizado e apenas uns poucos
estarem brigando pelo seu fim.
Afirmo que as resoluções citadas trazem germes abolicionistas
a partir do momento em que apontam para o funcionamento
nefasto da máquina judiciário-carcerária e buscam afirmar a
autonomia e a libertação dos psicólogos e de suas práticas.
Mostram também o desejo da categoria por novas práticas que
não estejam a serviço da manutenção do funcionamento de um
Estado penal e do mercado capitalista. Isso nos remete novamente
à novela de Kafka, na qual, a partir do momento que forças que
equivocaram o funcionamento da lógica penal-punitiva entraram
em jogo, a máquina se autodestruiu. Que a literatura nos inspire a
continuar buscando outras formas para desmontar essa lógica que
está presente, em alguma medida, dentro da própria psicologia.
Por isso, este capítulo encerra-se com uma notícia que
apareceu momentos antes de este trabalho se finalizar e, como ele
propõe uma ontologia crítica de nossas práticas no presente, esse
acontecimento, esse jogo de forças, não poderia ficar de fora.
Trata-se do fato de o CFP ter acatado, em 3/9/2010, por meio do
Ofício nº 1806-10, a recomendação do procurador da república do
Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul, sr. Alexandre
Amaral Gavronski, de suspender os efeitos da Resolução nº 09,
sobre o exame criminológico. Essa situação surpreendeu e
entristeceu todos que estiveram diretamente envolvidos com a
luta pelo fim do exame criminológico e que confiavam na parceria
com o Sistema Conselhos de Psicologia. Não podemos deixar de
estranhar o fato de as resoluções terem sido aprovadas na véspera
das eleições para a nova gestão do CFP e dos CRP e da Resolução
nº 09 ter sido suspensa pelo CFP logo após as eleições. Só Kafka
explica!
Conforme vimos com Agamben (2007), para desativar ou tornar
inoperante um dispositivo e fazer com que ele ganhe um novo uso
não contaminado, temos de tirar dele “a possibilidade de uso que
os mesmos capturam”. Podemos pensar que, em um primeiro
estágio, o dispositivo não pode ser totalmente abolido, pois ainda
expressa algumas formas do antigo uso, mas que é possível
esvaziá-lo de seu sentido e de sua relação de finalidade, a ponto de
ele esquecer-se de seu objetivo e passar a exibir-se como um meio
sem fim.
Para finalizar a discussão sobre os textos de Agamben, trago
uma frase dele que tomei como uma provocação: “A profanação do
improfanável é a tarefa política da geração que vem”. Bem, eu sou
bem mais jovem que ele, portanto me considero dentro dessa
geração a que ele se refere, por isso, com este trabalho, que é só o
início de uma pesquisa que pede para continuar, quero pensar
como construir estratégias de restituir as práticas “psi” e o direito
“ao comum”. Não é ingênuo afirmar que esses dois
saberes/práticas foram, de certa forma, tratados como “sagrados”
sendo, portanto, impedidos de ser usados livremente pelos
homens e, dependendo de quem ousa transgredir as normas
médicas/“psi” ou jurídicas, ele será enquadrado rapidamente em
algum diagnóstico ou artigo de algum Código (CID 10 ou o Penal,
de preferência; às vezes, nos dois). Esses saberes atravessam as
vidas da maior parte dessa população que ousa transgredi-los,
sobretudo para criminalizá-la, aprisioná-la, psicologizá-la e
medicalizá-la. Certamente não é esse “uso comum” que quero
afirmar para esses saberes/práticas neste estudo, especialmente a
psicologia. Aliás, o que desejo é tirá-la do museu, desarticular,
desativar, dobrar, tornar inoperantes, profanar determinados
dispositivos que a capturam e também aqueles que nela
promovem a captura.
Mas para que façamos um novo “uso” da psicologia, para que
vivamos a experiência de habitá-la, desativando essa dimensão da
separação tão asséptica, promovida por ideias positivistas e
humanistas, como “neutralidade científica”, “metodologia
científica”, “teoria e prática”, “sujeito e objeto”, “sujeito do
suposto saber”, “especialismos”, “homem normal”, “humanos” e
tantas outras, temos de nos deixar invadir por uma força
antropofágica que nos faça comer esse “cientificismo humanista”
barato, que serve de base para a psicologia e para o direito e que
aniquila a singularidade de cada homem, tornando-o um homem
“normal”, “mediano”, “ideal”, “igual”, “universal”.
Segue-se, agora, para o próximo capítulo com uma indagação
de Sérgio Verani que deveria ser de todos nós: “A Psicologia quer
se encontrar com qual Direito?” (VERANI, 1992, p. 18).
As pistas para responder a esta pergunta já aparecem desde o
primeiro capítulo e as seguiremos até o final deste texto, sem a
pretensão de que os impasses apresentados sejam aqui resolvidos,
mas com a intenção de que todo esse desassossego e inquietação
contaminem quem leia este livro. Afinal, não devemos nos
apaziguar tão cedo.
Assim como eu, Verani (1996, p. 108-109) também se inspira em
um dos heterônimos de Fernando Pessoa,223 a fim de dizer que,
para que outro direito emerja, faz-se necessária “uma
aprendizagem de desaprender [...] desaprender a intransigência da
certeza deformada, desaprender a onipotência da crença
dogmatizada, desaprender a arrogância do saber auto-suficiente”.
Faço uso de suas palavras também para me referir às práticas
“psi”, em especial, a psicologia e a psicanálise. Ou melhor, depois
de tudo o que foi considerado nesta pesquisa a respeito da
imbricação entre o direito e as práticas “psi” e vice-versa, afirmo
que não é possível pensar em outras práticas “psi” sem pensar em
um outro direito.

O autor desta poesia a confeccionou ao participar de uma oficina coordenada por um


psicólogo quando estava detido no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro.
Nela podemos ver como este preso concebe o papel da psicologia e o trabalho do
psicólogo em sua vida. Para mais informações: Cf. BANDEIRA BADARÓ, 2003.
Esta fala foi registrada no meu diário de campo, é de um promotor público e foi proferida
na primeira reunião ocorrida com representantes do Ministério Público, Defensoria
Pública, psicólogos da Secretaria de Administração Penitenciária e membros do CRP-
05/RJ, no dia 2/6/2009, na sede do CRP, para discutir sobre o exame criminológico.
Ibid.
Ibid.
Conforme Santos (2001): Inquérito é o conjunto de atos e diligências visando à apuração
de alguma coisa; sindicância por meio de informações de testemunhas. E, inquirição é
uma indagação detalhada que a autoridade competente faz à testemunha sobre
determinado fato, solicitando-lhe que fale tudo o de que tem conhecimento acerca do
ocorrido, com a finalidade da real e completa averiguação da veracidade.
É uma inversão na economia de visibilidade no exercício de poder em relação ao poder
soberano, no qual o poder era mostrado e encontrava sua força nesse movimento de
exibição, enquanto aqueles que ele assujeitava eram esquecidos ou quando recebiam
alguma luz, era por reflexo desse poder.
“O caso não é mais, como na casuística ou na jurisprudência, um conjunto de
circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra, é o
indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em
sua própria individualidade” (Foucault, 1987, p. 159-161).
Esta fala foi registrada no meu diário de campo, é de um promotor e foi proferida na
primeira reunião ocorrida com representantes do Ministério Público, Defensoria Pública,
psicólogos da SEAP e membros do CRP-05/RJ, no dia 2/6/2009, na sede do CRP, para
discutir o exame criminológico.
Esta questão também foi discutida por Bandeira Badaró; Camuri; Nascimento (2011).
De acordo com o DEPEN, em dezembro de 2009, havia 72 psicólogos atuantes no sistema
em relação aos outros profissionais da área de saúde, como, por exemplo, enfermeiros,
dentistas, clínicos, ginecologistas e psiquiatras; éramos a categoria com maior número
de profissionais, empatando em número apenas com o de policiais militares nos
estabelecimentos penitenciários!
Em 7/3/2007, o senador Gerson Camata propôs alterar a Lei nº 7.210, de 11 de julho de
1984, para prever o exame criminológico para progressão de regime, livramento
condicional, indulto e comutação de pena, quando se tratar de preso condenado por
crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa. Vale ressaltar que, para os dois
últimos, nenhuma lei registra a necessidade de exame criminológico. A última notícia do
projeto é que foi remetido à Câmara dos Deputados em 12/6/2007. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=80103>. Acesso
em: 3 ago. 2010.
Segundo Nilo Batista (apud RAUTER, 2003, p. 9): “O sucesso do positivismo
criminológico entre nós tem uma dívida com a abolição da escravatura, porque o
discurso do controle penal tem que mover-se do paradigma escravista da inferioridade
jurídica para o da inferioridade biológica; ao contrário do primeiro, pura decisão política,

o segundo precisa de demonstração científica”.


Nesse princípio, a pena deve ser individualizada nos planos legislativo, judiciário e
executório, evitando-se a padronização da sanção penal. Para cada crime tem-se uma
pena que varia de acordo com a personalidade do agente, o meio de execução etc. Veja
art. 5º, inc. XLVI, 1ª parte, da Constituição Federal.
Isso quer dizer, do regime fechado para o semiaberto e deste para o aberto, até que o
preso consiga a liberdade condicional e, finalmente, a liberdade total.
Segundo o dicionário eletrônico Houaiss, significa: “que tem motivo, causa ou
fundamento; fundado, justificado. Ex.: parecer, requerimento, opinião”.
Cf. art. 26 da LEP.
O símbolo da justiça é a deusa Têmis, que tem os olhos vendados.
Cf. o artigo de Cristina Rauter “Pode o psicólogo fazer previsões de comportamento?”.
Disponível em: <http://www.crp07.org.br/gts_04.php>.
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – Processo nº: 0034006-19.2009.8.19.0000
(2009.059.07340). Sessão ocorrida em: 19/11/2009.
Consultar o site do CFP: www.pol.org.br.
Ata da reunião com representantes do Ministério Público, Defensoria Pública, psicólogos
que trabalhavam na SEAP e membros do CRP-05/RJ, no dia 2/6/2009, na sede do CRP.
Aviso que obtive autorização assinada pelo presidente do CRP para utilizar todo o
material pertencente a esta instituição e por mim citado.
Ibid.
Ibid.
De acordo com Santos (2001), jurisprudência é o “conjunto de decisões uniformes dos
tribunais; autoridade dos casos julgados sucessivamente do mesmo modo; ciência do
Direito e dos princípios de Direito seguidos num país, numa dada época ou em certa e
determinada matéria legal; fonte secundária do Direito”. A obediência à jurisprudência é
costume dos países que seguem a tradição anglo-saxônica do direito comum, o Commom
Law (sistemas jurídicos inglês e americano) e é menos frequente nos países que seguem

a tradição romana (Portugal, Brasil, Espanha). Nos sistemas jurídicos de tradição


romana, o juiz tem de julgar unicamente em “harmonia com a lei e a sua consciência”,
sendo perfeitamente irrelevante que a decisão contrarie a que tenha sido já tomada pelo
mesmo ou por outro tribunal, ainda que de categoria superior. O juiz interpreta e aplica a
lei. Em tese, o juiz é desideologizado, portanto, será guiado pelo direito positivo, ou seja,
pela lei conforme está escrita, em oposição ao Commom Law, que é norteado pelo
costume e é amplamente difundido nos países de influência anglo-saxônica. Mas em
razão das recentes reformas legislativas, em especial no que tange aos procedimentos
realizados nos tribunais e em consequência da nova mentalidade de oferecimento de
serviços eficientes à população, adotou-se no Brasil uma maior vinculação dos juízes às
decisões de órgãos jurisdicionais – tribunais – superiores. Como podemos observar com
a criação de súmulas vinculantes, assumindo, assim, o direito brasileiro, características
que antigamente referenciavam apenas os países do Common Law. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Jurisprud%C3%AAncia>.
Segundo a Ata da reunião do dia 2/6/2009, ocorrida na sede do CRP-05.
Ibid.
Informação retirada do meu diário de campo na reunião do dia 2/6/2009, ocorrida na
sede do CRP-05.
Segundo a Ata da reunião do dia 2/6/2009, ocorrida na sede do CRP-05.
Conforme a Ata da segunda reunião do dia 15/9/2009, realizada no 8º Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Execução Penal do Rio de Janeiro.
Ressaltou ainda que a recente súmula do Superior Tribunal de Justiça (nº 439) reafirma a
necessidade do referido exame.
Frases retiradas do Procedimento Especial do Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, nº 2008/144047-0. Este documento foi confeccionado em 10/11/2008, pela
promotora Thaimi S. K. Ferreira da 1ª Promotoria de Execução Penal, em resposta à carta
enviada, em 2007, ao Juízo da Vara de Execução Penal por um grupo de psicólogos da
Secretaria de Administração Penitenciária e pelo CRP-05. As frases são de autoria de
Mônica Louise de Azevedo e Noeli Kuhl S. Bessa, a primeira, promotora de justiça do
estado do Paraná e a segunda, psicóloga, à época lotada no Centro de Apoio Operacional
das Promotorias de Execução Penal e Medidas Alternativas desse estado. Estes
enunciados compõem a tese de nº 77, lançada no XIII Congresso Nacional do Ministério
Público de 1999.
Habeas corpus de nº 95.111-2, de 3/2/2009, impetrado no Supremo Tribunal Federal pela

Defensoria Pública da União e pelo estado do Rio Grande do Sul.


É bem interessante eles usarem esse termo que é comum aos saberes “psi”.
Habeas corpus de nº 94.503-1, de 28/10/2008, impetrado no Supremo Tribunal Federal pela

Defensoria Pública da União e pelo estado do Rio Grande do Sul.


Habeas corpus de nº 95.167-8, de 14/4/2009, impetrado no Supremo Tribunal Federal pela

Defensoria Pública da União e pelo estado do Rio Grande do Sul.


De acordo com Santos (2001), “Súmula – S.f. Coleção de três acórdãos, no mínimo, de um
mesmo tribunal, nos quais se adota a mesma exposição de preceito jurídico em tese. Não
existe obrigatoriedade desse tipo de relatório que somente tem efeito persuasivo
(Código do Processo Civil, Art. 479)”. Ou ainda, “no direito brasileiro, chama-se súmula
um texto judicial a respeito de um tema específico, com a dupla finalidade de tornar
pública a jurisprudência para a sociedade bem como de promover a uniformidade entre
as decisões”. Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Súmula>. Acesso em: 1 ago. 2010.
Segundo Luiz Flávio Gomes, doutor em direito penal, “as súmulas podem ser
classificadas em (a) vinculantes e (b) não vinculantes. Em regra não são vinculantes.
Todas as súmulas editadas pelo STF até o advento da Lei 11.417/2006 não são
vinculantes. Para serem vinculantes devem seguir rigorosamente o procedimento
descrito na Lei de 19/12/2006, que regulamentou o art. 103-A da CF (inserido na Magna
Carta pela EC 45/2004) e somente o STF pode aprová-las. Quando aprovada uma súmula
no âmbito criminal, ela passa a ser fonte formal mediata do direito penal. As súmulas
possuem duas características: imperatividade (imposição de um determinado sentido
normativo, que deve ser acolhido de forma obrigatória) e coercibilidade (se não
observada essa interpretação cabe reclamação ao STF).” Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/DOUTRINA/texto.asp?id=9402>. Acesso em: 1 ago. 2010.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?
s1=26.NUME.%20E%20S.FLSV.&base=baseSumulasVinculantes>. Acesso em: 1 ago. 2010.
A súmula foi aprovada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e teve
como relator o ministro Arnaldo Esteves Lima. O procedimento tomou como base
votações do STJ e também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF),
sobretudo de processos que discutem a progressão de regime. Em um dos precedentes e
nos quais o condenado foi promovido ao regime semiaberto, por decisão do juízo das
execuções, que entendeu satisfeitos os requisitos de ordem objetiva e subjetiva,
dispensando a necessidade de realização de exame criminológico, conforme analisamos
nos processos acima. Notícia publicada em 2/5/2010. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?
tmp.area=398&tmp.texto=96992>. Acesso em: 1 ago. 2010.
O Capítulo II da LEP é chamado “Da Assistência”. Na Seção I, nas Disposições Gerais,
consta que: Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando
prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Parágrafo único. A
assistência estende-se ao egresso. Art. 11. A assistência será: I – material; II – à saúde; III –
jurídica; IV – educacional; V – social; VI – religiosa.
“Art. 8º – O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime
fechado, será submetido a Exame criminológico para a obtenção dos elementos
necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução.
Parágrafo único. Ao exame de que trata este artigo poderá ser submetido o condenado
ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semi-aberto.”
Segundo o art. 34, “O condenado será submetido, no início do cumprimento da pena, a
exame criminológico de classificação para individualização da execução.”
Questão também discutida por Bandeira Badaró (2003).
Cf. monografia na qual Bandeira Badaró (2003) afirma que um dos psicólogos que
entrevistou em sua pesquisa relatou ter sido ameaçado de morte, mediante carta, por
um preso que recebeu parecer desfavorável ao livramento condicional.
Dois dos psicólogos entrevistados por nós nos relataram que já foram transferidos, por
mais de uma vez, de unidade por não concordarem com algumas questões relativas ao
exame criminológico e à participação nas CTC. Outro psicólogo relata ter sido ameaçado
de não ter assinada a autorização para tirar suas férias por ter discordado da
administração da unidade em relação a uma determinada questão.
É aberta quando o preso infringe alguma das regras do cárcere estabelecidas no RPERJ e
em resoluções da SEAP.
Palavras de um dos psicólogos que trabalham em presídios que entrevistamos.
Esta questão também encontra-se discutida no artigo: BANDEIRA Badaró, Márcia;
Camuri, Claudia; Nascimento, Aline. Exame criminológico: uma questão ética para a
psicologia e para os psicólogos. Revista Mnemosine, Rio de Janeiro, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2010. No prelo.
CARVALHO, J. L. et. al. O exame criminológico: notas para sua construção. In: CONSELHO
FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. O estudo social em perícias, laudos e pareceres técnicos:
contribuições ao debate no Judiciário, Penitenciário e na Previdência Social. São Paulo:
Cortez, 2003.
Tal documento encontra-se disponível no site do Conselho Federal de Psicologia:
www.pol.org.br.
Ibid.
Conforme Deleuze (1992, p. 171): “Os perceptos não são meras percepções, são pacotes
de sensações e de relações que sobrevivem aqueles que os vivenciam. Os afectos não são
sentimentos, são devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se
outro)”.
Franz Kafka nasceu em Praga, em 3/7/1883, e faleceu em Klosterneuburg, em 3/6/1924. Foi
um dos maiores escritores de ficção da língua alemã do século XX. A despeito das
interpretações reducionistas da obra desse autor, geralmente interpretadas pelo viés da
teologia ou da psicanálise, acreditamos que sua obra ultrapassa a pessoalidade e traz
elementos importantes a respeito do funcionamento da sociedade e de seu aparelho
jurídico-penal.
Henry René Albert Guy de Maupassant, escritor naturalista francês, nasceu em 1850.
Iniciado e encorajado nas letras por Gustave Flaubert, seu primo, teve uma vida
relativamente curta, mas muito produtiva, escrevendo, além de alguns romances e
novelas, cerca de 250 contos. Sofreu de sífilis. Tentou o suicídio em janeiro de 1892 e,
como consequência, foi internado num hospício, onde faleceu, no ano seguinte, já muito
próximo da loucura.
Segundo Vera M. Batista (2003, p. 43), desde a Idade Média, período no qual se inicia a
transição para o capitalismo, o direito penal tem sido construído para atingir os setores
populares, desprivilegiados socialmente e desprovidos economicamente.
Podemos aqui fazer uma aproximação no que diz respeito a esta “produção de
criminosos e provas criminais” com a nossa história, que, em diversos momentos,
criminalizou algumas figuras. Apenas para darmos alguns exemplos recentes, podemos
citar as mulheres na Inquisição da Idade Média, os intelectuais de esquerda nas
ditaduras do século XX e, na atualidade, os pobres, ou seja, uma grande parcela da
população que é criminalizada e condenada por encontrar-se em situação de pobreza,
desemprego e marginalidade.
Durante o processo de escrita deste trabalho, percebi que fui também atravessada por
este vetor, ao sentir receio de escrever sobre as entrevistas e observações dos
participantes.
Um desses profissionais escreveu sobre sua experiência de trabalho em Bandeira Badaró
(2010).
Expressão utilizada por um dos psicólogos prisionais entrevistados ao referir-se aos
profissionais que trabalham no cárcere.
Já em 1961, um sociólogo chamado Erving Goffman se interessou pelo tema e publicou
um livro: Manicômios, prisões e conventos, fruto de suas pesquisas nas instituições de
confinamento, denominadas por ele de Instituições Totais. Estas produziam
determinados efeitos (de prisionização) nos que lá estavam internados ou trabalhando;
eram eles: paranoia, paralisia, agressividade dirigida contra o próprio grupo, depressão,
mortificação e sentimentos de impotência e fracasso.
Esse profissional não quis ser entrevistado em sua unidade de trabalho; escolheu um
local público com muitas pessoas circulando.
Com a Declaração Universal dos Direitos da Criança da ONU, em 1959, surge a doutrina
da proteção integral, que foi posteriormente adotada pela Constituição de 1988 e pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90).
É o conjunto articulado de pessoas e instituições que atuam para efetivar os direitos das
crianças e adolescentes. Fazem parte desse sistema: a família, os Conselhos de Direitos,
Conselhos Tutelares, Ministério Público, Juizados da infância e da Juventude, Defensoria
Pública, Secretaria de Segurança Pública, organizações da sociedade (sindicatos,
associações, escolas, empresas etc.). É dividido em três eixos: promoção, defesa e
controle social. Disponível em: <http://200.187.19.67/ceca/eca_sistemadireitos.html>.
Acesso em: 4 fev. 2010.
O idealizador do projeto é o juiz José Antônio Daltoé Cezar, que atua na 2ª Vara da
Infância e da Juventude de Porto Alegre/RS. Seu projeto é realizado neste local desde
2003, mas só foi institucionalizado pelo Tribunal de Justiça do RS, em 2004. O projeto se
expandiu até os estados de Goiânia, São Paulo, Brasília, Acre, Goiás, Sergipe, Pará,
Pernambuco, Rondônia, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro.
Para quem quiser conferir, constam vídeos sobre o projeto nos sites:
http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.home e:
http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/default.asp?
Materia=50577&selecao=MAT&velocidade=100k. Acesso em: 2 maio 2009.
Segundo Barros e Passos (2000, p. 74), no texto “A construção do plano da clínica”,
interdisciplinaridade é “o movimento de criação de uma zona de interseção entre elas
[as disciplinas], para qual um objeto específico seria designado [...] mas o que vemos,
com efeito, [...] é a manutenção das fronteiras disciplinares, dos objetos e,
especialmente, dos sujeitos desses saberes.”
Os autores dos saberes “psi” nos quais Cezar (2007) fundamenta seu trabalho são:
Tilman Furniss, psiquiatra infantil, psicanalista e terapeuta familiar, “especializado” em
maus-tratos e abuso sexual e atualmente é presidente do Departamento de Psiquiatria da
Criança, no Hospital de Munster, na Alemanha; Jorge Volnovich, que é médico, membro-
fundador responsável pela SOBEPI (Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisa da
Infância- RJ) e também é conhecido como psicanalista. Em maio de 2009, assiti a uma
palestra dele na SOBEPI e uma de suas “teorias cientificas” é que “as crianças que
sofreram abusos tendem a ser prostitutas ou psicóticas”.
A Câmara de Gesell é uma habitação acondicionada para permitir a observação de
pessoas. É composta de dois ambientes separados por um vidro de visão unilateral, os
quais contam com equipas de áudio e de vídeo para a gravação dos diferentes
experimentos. Foi concebido como domo (Gesell dome em inglês) pelo psicólogo e
pediatra estadunidense Arnold Gesell para observar a conduta de meninos sem ser
perturbado ou para que a presença de uma pessoa estranha não causasse alterações.
Disponível em: <http://pt.wikilingue.com/es/C%C3%A2mara_de_Gesell>. Acesso em: 16
jul. 2010.
Cf. CPC, Arts. 202, 231, 392, 420 a 439 e 846 a 851; CPP, arts. 6, VII, 168, 170, 184, 235 e 423.
Retirado do Informativo do TJ do estado do Acre, “Judiciário em Foco”, ano 2, nº 23, abril
de 2009. Disponível em: <www.tjac.jus.br>. Acesso em: 6 jul. 2010.
A Convenção foi aprovada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas, em 20/11/1989, e
ratificada por Portugal, em 21/9/1990. Disponível em:
<http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_Direitos_crianca2004.pdf>.
Acesso em: 17 jun. 2009.
Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/03/27/brasil,i=182375/DEPOI

MENTO+SEM+DANO+DE+CRIANCAS+VITIMAS+DE+ABUSO+E+ADOTADO+NO+PAIS.shtml>.
Acesso em: 6 jul. 2010.
Fala da mesa de abertura do evento “Abordagem Psicológica de Crianças e Adolescentes
Envolvidos com a Justiça e o Ministério Público”, realizada em 3/7/2009, no auditório do
Ministério Público/RJ.
Na época era PL nº 4.126 de 2004, depois sofreu alterações e passou a ser PLC 035.
A decisão foi proferida pelo juiz federal Eduardo Rivera Palmeira Filho. O magistrado
proibiu ainda a aplicação de qualquer penalidade aos assistentes sociais, até o
julgamento final da ação. Disponível em:
<http://estudandoodireito.blogspot.com/2009/11/correio-forense-decisao-garante-
que.html>. Acesso em: 6 jul. 2010.
Para ler a “Moção 21”, na íntegra, conferir o site:
http://www.crprj.org.br/noticias/2010/0108-conferencia-aprova-mocao-contra-
depoimento-sem-dano.html. Acesso em: 6 jul. 2010.
Convém destacar que o CRP/RJ, na gestão de 2007-2010, participou ativamente da luta
contra esse procedimento.
Informação obtida por meio do relato de um psicólogo que trabalhava em prisões, que
afirmou que, às vezes, as senhas para o atendimento psicológico são trocadas por
favores ou vendidas pelos próprios presos ou pelos agentes penitenciários.
Constituição Federal de 1988, art. 37: “A administração pública direta, indireta ou
fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e, também, ao seguinte: II – a investidura em cargo ou emprego público
depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos,
ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração.
Segundo o Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça – Seção I – Do Ministério
Público: art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. § 2º Ao Ministério
Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o
disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e
serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas e de provas e títulos; a
lei disporá sobre sua organização e funcionamento.
Fala proferida por Cecília Coimbra no “IV Seminário de Psicologia e Direitos Humanos –
Judicialização da vida”, promovido pelo CRP-05/RJ nos dias 11 e 12 de dezembro de 2008,
na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Disponível em: <http://www.senado.gov.br/agencia/verNoticia.aspx?
codNoticia=91539&codAplicativo=2>. Acesso em: 6 set. 2009
É importante esclarecer que o autor distingue “usar” de “consumir”, pois: “[...] o uso é
sempre relação com o inapropriável, referindo-se às coisas enquanto não se podem
tornar objeto de posse. Desse modo, porém, o uso evidencia também a verdadeira
natureza da propriedade, que não é mais que o dispositivo que desloca o livre uso dos
homens para uma esfera separada, na qual é convertido em direito. Se hoje os
consumidores na sociedade de massa são infelizes, não é só porque consomem objetos
que incorporam em si próprio a não-usabilidade, mas também e sobretudo porque
acreditam que exercem o seu direito de propriedade sobre os mesmos, porque se
tornaram incapazes de profanar.” (AGAMBEN, 2007, p. 71).
O autor avisa em seu texto que utiliza as reflexões de Benjamin na perspectiva que lhe
interessa. Fazemos de suas palavras nossas, já que aqui estamos fazendo um uso
particular de suas ideias para o que nos interessa.
Quando este livro estava em processo de editoração saiu uma nova resolução que
regulamenta a atuação do psicólogo no âmbito do sistema prisional: Resolução CEP nº
012/2011.
Digo nossa porque, nos anos de 2009 e 2010, participei como colaboradora do CRP-05/RJ,
que contribuiu ativamente para que essas resoluções fossem elaboradas e aprovadas.
Em 9/11/2009 a liminar foi concedida. Disponível em:
<http://estudandoodireito.blogspot.com/2009/11/correio-forense-decisao-garante-
que.html>. Acesso em: 17 jul. 2010.
Informação retirada da Ata da reunião da Comissão formada por psicólogos vinculados
aos CRP-05 e à SEAP no Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro, no dia 29/7/2010.
Ibid.
Marcos Vinicius Silva Lips.
Disponível em: <http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,GIM1312307-7823-
PSICOLOGOS+SAO+PROIBIDOS+DE+AVALIAR+PRESOS+PARA+PROGRESSAO+DE+PENA,00.
html>. Acesso em: 4 ago. 2010.
Como vemos, eles também confundem avaliação psicológica com exame criminológico.
Promotor de Justiça Fabiano Dallazen.
Segundo informações da imprensa, Ademar de Jesus Silva havia sido condenado, em
2005, por abusar sexualmente de duas crianças e foi submetido ao exame psicológico em
11/5/2009, e ao psiquiátrico, uma semana depois, em 18 de maio. Os resultados de ambos
os procedimentos não apontaram nenhum indício de doença mental, assim como não
destacaram a necessidade de acompanhamento psicológico posterior, o que o fez obter a
progressão para o regime aberto em dezembro de 2009. Após sua saída, cometeu seis
assassinatos. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/04/16/cidades,i=186655/ENT
ENDA+O+CAMINHO+DE+ADEMAR+DE+JESUS+ENTRE+A+PRISAO+E+A+LIBERDADE.shtml>
. Acesso em: 4 ago. 2010.
No caso dele, trata-se de “Alberto Caeiro”.
CAPÍTULO IV
O ABOLICIONISMO COMO UMA “IDEIA ADEQUADA”
[...] a filosofia interroga a psicologia e diz: para aonde ides, para que eu saiba
quem sois? Mas o filósofo também pode dirigir-se ao psicólogo sob a forma de
um conselho – uma única vez não cria o hábito – e dizer: quando se sai da
Sorbonne pela Rua Saint-Jacques pode-se subi-la ou descê-la; quando se sobe,
chega-se ao Panteão, o Conservatoire de alguns grandes homens, mas quando se
desce, certamente se chega à delegacia de polícia. (Canguilhem, 1999, p. 26)
No início deste trabalho, o recurso utilizado para ajudar no
processo de escrita foi uma análise de implicações, na qual
cartografei os efeitos, sobre meu corpo, dos encontros que havia
tido com o campo jurídico e seus profissionais. Num outro
momento (terceiro capítulo), tentei mapear os efeitos do encontro
entre esses profissionais com seu campo de atuação.
Porém, todo esse processo não foi nada fácil, pois a sensação,
muitas vezes, foi a de estar à deriva. O tempo parecia não passar e
não conseguia sair do campo de pesquisa, simplesmente porque o
suposto campo de pesquisa havia se tornado também minha área
de atuação profissional. Em função disto, comecei a ter dúvidas
sobre a minha permanência em um dos grupos de trabalho sobre o
exame criminológico em que atuava. Especialmente, por sentir
uma grande dificuldade de falar dele, estando nele. Sem contar que
a maioria das pessoas que nele atuava pertencia ao quadro de
funcionários da SEAP e eu não. O que me dava um “não lugar” que
era um alívio em alguns aspectos, mas, em outros, enervante. E se,
por um lado, me tranquilizava saber que eu podia defender,
contundentemente, o fim do exame, o abolicionismo penal, a não
subserviência ao sistema, já que eu não iria sofrer retaliações e/ou
perder o emprego, por outro, o fato de não ser “do sistema”, como
eles, me impedia de falar coisas que eu realmente pensava sobre
alguns encaminhamentos propostos por eles a certas discussões e
ações.
Nos momentos mais difíceis, eu tentava me colocar no lugar
deles e chegava à conclusão de que eu não podia desejar que eles
agissem sem temer, pois havia muitas coisas em jogo. Isso exigia
uma enorme delicadeza nas intervenções que eu tentava fazer. Às
vezes, eram tão delicadas que pareciam não surtir efeito algum e
eu não me sentia trabalhando no grupo. Outras eram feitas de
forma tão desajeitada que saía de lá com um mal-estar imenso,
achando ter magoado alguém. E a pesquisa? Travada! Precisava de
um deslocamento, a fim de olhar para toda aquela experiência
com eles, sob outra perspectiva.
O fato de ter me percebido, em parte, objeto de minha própria
pesquisa, me colocava diante de um problema que poderíamos
considerar metodológico, se acreditássemos que objeto de
pesquisa e pesquisador não podem se misturar. Mas se
ponderarmos que método é o processo pelo qual se constrói uma
pesquisa e um pesquisador e, se esta construção está ligada ao
nosso modo de existir, isso se torna, para mim, também um
problema clínico-ético-estético-político, ou seja, uma questão
ontológica – no sentido foucaultiano de uma ontologia crítica de
nós mesmos.
E, como se observou até aqui, a problemática sobre o exame
criminológico e o depoimento sem dano não se restringe apenas a
dilemas técnico-teórico-metodológicos, muito menos a uma
discussão factual acerca do cumprimento ou descumprimento das
leis, mas é, sobretudo, um desafio ético-político.
Enquanto pensava e sentia tudo isso, uma pergunta martelava
em meu corpo: Estou dentro ou estou fora?
Um dos momentos mais significativos para mim, de todos os
encontros de que participei com os psicólogos que trabalhavam
em prisões, foi quando anunciei, pela última vez, a minha saída do
grupo citado. E digo isso, porque foi a primeira vez que me senti
fazendo realmente parte daquele grupo, que me senti efetivamente
escutada, ou seja, havia coisas que eu dizia, já há algum tempo, até
sobre minha própria saída, que pareciam não ser levadas em
consideração pelo grupo. Foi nesse limiar entre o dentro e o fora
do grupo que algo se operou. Curiosamente, esta reunião foi
realizada em um tom mais festivo, em um restaurante, ou seja, fora
da instituição onde eram habitualmente realizadas. E tinha uma
conotação de transição, pois, apesar de estarmos discutindo sobre
o encerramento oficial das atividades daquele grupo,224 as pessoas
estavam se articulando para dar continuidade aos trabalhos de
outras formas. Também estávamos todos animados com a
possibilidade de a publicação da Resolução do CFP – vedando a
participação dos psicólogos no exame criminológico, e que este
grupo ajudou a construir – sair a qualquer momento.
Fizemos um breve levantamento do que realizamos e
conversamos sobre o posicionamento que tomaríamos na terceira
reunião agendada com operadores do direito penal público, a
SEAP e o CRP-05, com o objetivo de discutir sobre a participação
dos psicólogos no exame criminológico. Porém, eu disse que não
iria. Argumentei que não fazia mais sentido para mim estar
presente nesses encontros, pois já havia ido a dois deles no ano
anterior e não acreditava que obteríamos algum resultado, já que a
promotoria já havia afirmado que não abriria mão do exame em
questão e a defensoria não tinha assumido uma posição clara.
Além do fato de que eu não trabalhava mais no sistema
penitenciário, portanto, não era a pessoa mais indicada para
argumentar sobre a questão.
O grupo alegou que minha presença era importante justamente
por este fato, pois eu era a única que podia analisar a situação de
outro lugar, observar e escutar coisas que talvez eles não
pudessem devido a suas funções nesse sistema. Isso foi
fundamental, porque só a partir desse momento pude dizer o
quanto estava incomodada com o que tinha acontecido nas
reuniões anteriores, como, por exemplo, o fato de os psicólogos,
apesar de afirmarem uma posição contrária ao exame, acabarem
aceitando a proposta dos operadores da promotoria de (re)
inventarem um novo instrumento que pudesse atender à demanda
da promotoria e da magistratura. Tentei dizer que achava que isso
era uma grande armadilha e que não deviam esperar por uma
negociação possível com os operadores do direito em relação ao
exame criminológico, já que eles afirmaram que não iam abrir mão
do exame. E, em minha opinião, o fato de eles aceitarem fazer
qualquer tipo de aliança, ainda que com a melhor das intenções,
só os enfraquecia.
Mais uma vez apareceu o vetor do medo, quando me
perguntaram se eu estava querendo dizer que eles tinham de se
negar a fazer o exame. Argumentei que o que eles tinham de fazer
era afirmar qual lugar gostariam de ocupar no sistema prisional, e,
segundo eles, era na assistência à saúde. Tentei explicar que não
se tratava de negação ou negociação, mas de afirmação de outro
lugar, de uma nova prática.
A narrativa desse encontro com o grupo foi colocada nesse
capítulo porque para mim foi um encontro clínico, alegremente
clínico! Não porque eu intervim no grupo, mas clínico para todos
nós, pois eu também havia me tornado parte daquele grupo. Algo
se passou ali, ou algo passou por ali, ou melhor, ali foi possível dar
passagem a afetos obstaculizados e isso foi libertador, pelo menos
para mim. Todos puderam falar como foi significativo aquele
trabalho em conjunto, a importância da atuação de cada um e os
que julgavam saber menos sobre a problemática puderam colocar
abertamente sua posição (que foi o meu caso). Assim como os que
supostamente dominavam o assunto, por estarem no sistema
prisional e nessa luta pelo fim do exame, há anos, tiveram a
oportunidade de avaliar suas contradições e estratégias de
enfrentamento.
Eu de fato parei de ir às reuniões desse grupo, mas não
consegui parar de ler os e-mails que me chegavam diariamente. O
que significa que não me desliguei completamente, e a dificuldade
de produzir a partir desse lugar de quem está tomado pelas
inquietações e incertezas foi um desafio tão grande quanto manter
o controle “dos nervos”, nas reuniões com o Ministério Público. E
eu só conseguia pensar que, se eu fosse paisagista em vez de
psicóloga, seria tudo bem mais fácil!
Mas em um determinado momento, fui arrebatada pelas ideias
espinosistas a respeito de potência, por isso voltei a lê-lo, assim
como a leitura deleuziana sobre seus escritos, em busca de
compreensão da tristeza e da impotência que, em muitos
momentos, eu mesma senti e que percebi em alguns profissionais
escutados durante esta pesquisa e que, tantas vezes, diante dos
meus questionamentos, me perguntavam: “mas o quê que a gente
faz?”
Entre ideias e afetos

Imersa nesse caldeirão em que já não distinguia mais o que era


ideia do que era afeto, o que era meu do que era deles, encontrei
caminhos em um dos textos/aula de Deleuze (1978),225 no qual
discute as “ideias e afetos” na filosofia de Spinoza. O primeiro
autor afirma, sobre a filosofia do segundo, que há um primado
cronológico e lógico da ideia (um modo de pensamento que
representa algo) sobre o afeto (é um modo de pensamento que
não representa nada). São duas espécies de modos de pensamento
que se relacionam, mas que diferem em natureza. A ideia não só
representa algo (realidade objetiva – caráter extrínseco), mas ela
mesma é alguma coisa (realidade formal – caráter intrínseco).
Cada ideia possui certo grau de realidade e perfeição e, apesar de
estar ligada ao objeto que ela representa, não se confunde com
ele.
Segundo Deleuze (1978, 1997), é preferível dizer que são as
ideias que se afirmam em nós, do que dizer que somos nós que
temos as ideias. Ocorre uma sucessão de ideias (cada qual com
seu grau de realidade e perfeição) e, além disso, opera-se uma
variação (aumento e diminuição) contínua da força de existir ou
da potência de agir. Essa variação contínua é o que Spinoza definiu
como afeto (alegria, tristeza, desejo).226 Ou seja, a variação da
potência de agir ou da força de existir é determinada pelas ideias
que a pessoa tem, mas não se reduz a elas. Por isso, é essencial
ver quais são essas ideias que determinam os afetos.
Spinoza, na parte III do livro Ética, proposição 11, afirma que:
“Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência
de agir do nosso corpo, a idéia dessa coisa aumenta ou diminui,
estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente”.227 E, no
escólio dessa mesma proposição, diz ainda:
Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes mudanças, passando ora a
uma perfeição maior, ora a uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos
de alegria e da tristeza. Assim, por alegria compreenderei, daqui por diante, uma
paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca,
compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor.
Além disso, chamo de alegria, quando está referido simultaneamente à mente e
ao corpo, de excitação ou contentamento; o da tristeza, em troca chamo dor ou
melancolia.

Outro conceito importante de Spinoza, que é pensado por


Deleuze (1978), são os três tipos de ideias ou gêneros do
conhecimento: signos ou afetos, noções comuns ou conceitos e
essências ou perceptos.
O primeiro gênero do conhecimento é aquele no qual ficamos
no registro passivo das afecções. Ou seja, tudo o que sabemos é
efeito da ação que um corpo produz sobre o outro. É sempre um
contato, uma mistura de dois corpos. As afecções indicam mais a
natureza do corpo afetado do que a do corpo afetante; por
exemplo, percebo o sol em virtude do estado de minhas
percepções visuais. O que podemos fazer aqui é apenas imaginar,
ter ideias gerais, uma experiência vaga. São representações de
efeitos sem suas causas,228 são ideias inadequadas e confusas.
Trata-se de composições e decomposições, porém sem conhecer
as relações de composição, a causa daquilo que nos afeta.
Outra qualidade desse gênero é que nele se vive ao acaso dos
encontros (bons e maus).229 Os bons aumentam nossa força de
existir ou da potência de agir (afeto de alegria) e os maus a
diminuem (afeto de tristeza).
A partir desses conceitos, inferimos que as sensações de
tristeza, perseguição, paranoia, impotência, irritação, assim como
as diversas formas de adoecimento, que antes eu percebia nos
profissionais entrevistados e que, por alguns momentos, também
me atravessaram, eram decorrentes dos maus encontros. O que
nos leva a pensar que estes profissionais (e me incluo entre eles)
estavam, na maior parte do tempo, nisso que se chama de
“primeiro gênero do conhecimento”, plano em que tudo o que
podemos é entrar em contato com as afecções e com os efeitos de
outros corpos sobre os nossos.
No meu caso, por exemplo, aconteciam coisas curiosas; todas
as propostas de trabalho que surgiam eram nessa área, as pessoas
se referiam a mim como se eu trabalhasse no sistema
penitenciário. E eu nem trabalhava mais lá. Até minha analista me
lembrou que, se eu tinha entrado nisso, era porque havia desejado
isso. O que, na época, não me ajudou muito, pois não entendi
como podia ter desejado isso tudo. Claro, nesse estado não
entendemos a causa de coisa alguma! Tudo que sabemos é o que
sentimos, e, nesse caso, me sentia triste e com minha potência de
agir diminuída. No entanto, a compreensão de algumas questões
levantadas nesta pesquisa parecia estar mais próxima.
Voltei à leitura de Spinoza e, no livro III da Ética, proposição 1,
encontrei: “A nossa mente, algumas vezes, age; outras, na verdade,
padece. Mais especificamente, à medida que tem ideias
adequadas, ela necessariamente age; à medida que tem ideias
inadequadas, ela necessariamente padece”. E no corolário dessa
proposição diz: “Quanto mais ideias inadequadas a mente tem,
tanto maior é o número de paixões a que é submetida; e,
contrariamente, quanto mais ideias adequadas tem, tanto mais ela
age.”
Estas ideias me levaram a pensar que tipo de práticas “psi”
poderíamos produzir, se nos afastássemos das ideias inadequadas
e gerais, dos universais, como alguns conceitos veiculados como,
por exemplo, o complexo de Édipo, a ideia de falta, do negativo na
base do psiquismo, da angústia como motor da existência, de
imposição de limites ou a “ortopedia” da moral, a patologização
dos atos infracionais, a criminalização das pessoas por sua cor de
pele, idade ou condição financeira, de princípios jurídicos como o
da soberania e dos infinitos mecanismos de normalização que são
produzidos pelos saberes.
Spinoza nos esclarece, ao afirmar: “Quando a mente imagina
sua impotência, por isso mesmo ela se entristece” (Ética,
proposição 55, livro III). E nos anima, ao dizer: “A mente esforça-se
por imaginar apenas aquilo que põe sua própria potência de agir”
(Ética, proposição 54, livro III).
E como fazer para ter bons encontros, ideias adequadas e ser
afetado pela alegria? Como inventar outras práticas padecendo
com estas que estão postas?
E como se dá a passagem da passividade para a atividade? Das
ideias inadequadas para as adequadas? Do universal para o
singular? Da diminuição de potência para seu aumento? Como
pensar aquilo que marca os corpos não como uma ferida ardida,
mas como um acontecimento que se efetua em um estado de
coisas? Ou, dito de outra maneira, não é algo que acontece que
tem de ser afirmado, mas algo no que acontece que nos permite
transmutar a ferida, como o desassossego que invadiu meu corpo
e me conduziu à escrita, ou o desassossego vivido pelos
psicólogos em suas práticas junto ao Judiciário e à execução penal
que se transforma em luta política.
Por isso a sugestão de Deleuze (1978) é que possamos nos
perguntar: “de que um corpo é capaz?”, pois, se o corpo é definido
pelo conjunto das relações que o compõe, ou seja, pelo seu poder
de ser afetado, enquanto não soubermos o poder de ser afetado de
um corpo, o que pode destruí-lo, enquanto o apreendermos ao
acaso dos encontros, não estaremos de posse da vida sábia, da
sabedoria. Portanto, se quisermos saber o que pode um corpo, é
preciso fazer mapas intensivos dos afetos.
Nesta pesquisa, a proposta foi fazer uma espécie de mapa
intensivo, uma dinâmica dos afetos (cartografia) do meu encontro
com alguns psicólogos e suas práticas no Judiciário, é claro que de
forma local, fragmentária, descontínua, processual, não tendo em
nenhum momento a intenção de fazer esta ser “A pesquisa” que
trouxesse as “verdades” sobre a “psicologia jurídica”. Porém, isso
só se tornou uma possibilidade real após a feitura de um mapa dos
afetos do meu corpo de psicóloga e pesquisadora, e reitero que
esse movimento afirma a habitação de um ethos clínico-político-
estético-ético. O que está em perfeita consonância com Spinoza,
quando assegura que a conquista do conhecimento e da liberdade
é uma questão ética (Ética, parte II, proposição 35, escólio). Mas
essas conquistas não se dão assim, de uma hora para outra, a
partir de um ato volitivo.
Para que tomemos posse de nossa potência de agir, temos de
sair do domínio das paixões e entrar no domínio das ações, no
qual nossa posição é ativa, nossos afetos são ativos. Mas de que
maneira podemos sair do mundo das ideias-afecções inadequadas
que só nos levam à casualidade dos encontros e afetos passivos e
ao conhecimento dos efeitos e não das causas?
Deleuze (1978) afirmará que a linha de variação constante dos
afetos em função das ideias-afecções que temos e dos encontros
que fazemos faz com que a cada instante nosso poder de ser
afetado seja completamente efetuado, preenchido, simplesmente
sob o modo de tristeza, ou de alegria, ou de ambos. O autor
lembra ainda que um poder de ser afetado é um limiar de
intensidade e que nada é bom para alguém que excede seu poder
de ser afetado. O que Spinoza quis foi definir a essência de alguém,
de maneira intensiva, por isso, enquanto não conhecermos nossas
intensidades, nos arriscamos a ter um mau encontro.
Até esse momento, foram trabalhadas as definições de Deleuze-
Spinoza sobre o aumento ou a diminuição de nossa potência de
agir. Porém, segundo esses autores, alegria e tristeza são paixões
pelas quais somos tomados pelo acaso dos encontros, peculiar do
primeiro gênero do conhecimento, no qual ainda nos encontramos
em uma posição passiva, na qual não somos causa dos nossos
próprios afetos. Conforme verifica-se, ao longo deste trabalho,
especialmente no terceiro capítulo, quando apontados os efeitos
nocivos dos maus encontros desses profissionais com o campo
jurídico-penal.
Isso tudo me fez pensar no meu corpo de profissional da
psicologia, mas, em particular, nas principais questões da minha
pesquisa, que foram, após a leitura desses autores, reformuladas:
“o que pode o corpo de um psicólogo em territórios
judicializados?” “Quais são os efeitos do encontro de corpos nesse
campo de forças?”
Ao explorar essa questão, recorri a Deleuze (1978) quando este
diz que no livro Ética aparecerá o conceito de afetos ativos, nos
quais a potência de agir é conquistada, em vez de passar por
variações contínuas. O autor sinaliza ainda que existe uma
diferença, na obra de Spinoza, entre ética e moral, pois Spinoza
jamais pergunta “o que devemos fazer?” e sim “De que nós somos
capazes?”, “O que está em nossa potência?”, portanto, a ética se
torna um problema de potência, de devir e não de dever.
Naquelas variações nas quais registramos um aumento de
potência, os afetos de alegria são particularmente importantes,
pois nos impulsionam, de algum modo, a deixar esse registro da
passividade e do conhecimento parcial. Pelas palavras de Deleuze
(1978): “é como se os afetos de alegria fossem um trampolim; eles
fazem vocês passarem através de alguma coisa pela qual jamais
poderiam passar se só existisse tristeza”.
Em outro escrito, Deleuze (1968) nos diz que a primeira
pergunta que o livro Ética nos suscita é: o que fazer para ser
afetado por um máximo de paixões alegres? Contudo, alerta que
não basta que nossa potência de agir aumente para que tenhamos
a posse formal dela. Afinal, uma soma de paixões não faz uma
ação. Segundo ele, é necessário que, em favor desse acúmulo de
paixões alegres, encontremos um meio de conquistar nossa
potência de agir para experimentar, enfim, afecções ativas das
quais nós seríamos a causa. E, assim, nos leva à outra pergunta: o
que fazer para produzir em si afecções ativas?
Para Spinoza, se existem afecções ativas, elas são sempre
afecções de alegria,230 não há a possibilidade de uma tristeza ativa,
já que toda tristeza significa uma diminuição de nossa potência de
agir. O filósofo nos ensina que: “Esforçamo-nos por fazer com que
se realize tudo aquilo que imaginamos levar à alegria; esforçamo-
nos, por outro lado, por afastar ou destruir tudo aquilo que a isso
se opõe, ou seja, tudo aquilo que imaginamos levar à tristeza”
(Ética, livro III, proposição 28). E ainda: “Entre todos os afetos que
estão relacionados à mente à medida que ela age não há nenhum
que não esteja relacionado à alegria ou ao desejo” (Ética, livro III,
proposição 59).
O que Spinoza quer dizer, segundo Deleuze ([1989]), é algo bem
simples, a tristeza não torna ninguém inteligente, pois diminui
nossa potência; é por isso que os poderes (governos) têm
necessidade que os súditos (o povo) sejam tristes.231 Nada na
tristeza pode nos levar a uma noção comum ou ao segundo gênero
do conhecimento. Mas essa passagem é qualitativa e não
consciente, pois a razão não é uma faculdade, é um modo de
conhecer o mundo.
Nesse segundo gênero existem as ideias-noção, que nos
apontam uma espécie de saída. Uma ideia-noção, segundo
Deleuze, é uma ideia adequada, pois nos leva ao conhecimento
pela causa e não mais pelos efeitos. As ideias-noção ou noções
comuns “são o enunciado daquilo que é comum a muitos corpos
ou a todos os corpos”. Para Spinoza, “[...] a mente é tanto mais
capaz de perceber mais coisas adequadamente quanto mais
propriedades em comum com outros corpos tem seu corpo”
(Ética, parte II, proposição 39, corolário).
Mas como chegamos às “ideias adequadas”, se não temos
ideias nem de nós mesmos, nem dos corpos exteriores, se tudo o
que temos, segundo Deleuze (1968), são ideias de afecções que
indicam o efeito de um outro corpo sobre o nosso? Contudo,
segundo o autor, é precisamente a partir desse efeito que temos a
possibilidade de formar a ideia do que é comum a um corpo
exterior e ao nosso, sendo esse o único caminho que nos leva a
uma ideia adequada. “A primeira ideia adequada que temos é a
noção comum, ideia de alguma coisa em comum”. Spinoza diz que
uma ideia adequada leva sempre a outra ideia adequada e isso é
sinal de ação.232
É fato que ser afetado pela alegria não quer dizer que estou de
posse da minha potência, apesar do seu aumento, mas indica que
o corpo que me afetou desse modo me afeta sob uma relação de
combinação, em vez de decomposição. Algo me induz a formar a
noção do que é comum ao corpo que me afeta e ao meu, “nesse
sentido, a alegria [nos] torna inteligente [s]”. A alegria nos
propulsiona de algum modo para fora da variação contínua do
primeiro gênero. Para Deleuze (1978), ela nos faz adquirir ao
menos a potencialidade de uma noção comum, pois “entramos” na
nossa potência de agir. Portanto, há atividade nisso, no ponto de
vista da composição das relações e não mais do ponto de vista do
acaso dos encontros. “A noção comum marca o momento em que
entramos na possessão formal de nossa potência de agir,
constituindo o segundo momento da razão, que em sua gênese é o
esforço de organizar encontros em função das conveniências e
inconveniências percebidas” (DELEUZE, 1968, p. 252).
A experiência que narro no início deste capítulo, a respeito do
“festivo encontro” com o grupo de trabalho sobre o exame
criminológico, marca um desses momentos em que a alegria
serviu de trampolim para adquirir, ao menos, a potencialidade de
uma noção comum. Pois o grupo entrou, por meio da composição
das relações, na possessão formal de sua potência de agir, o que
lhe permitiu iniciar a constituição de um segundo momento da
razão, que diz do esforço de organizar encontros em função das
conveniências e inconveniências percebidas. Digo isso por
considerar que, depois desse dia, o grupo e seus membros
operaram deslocamentos importantes no que diz respeito ao
enfrentamento das forças a favor do exame. É nesse sentido que
afirmo: a alegria nos torna inteligentes.
Para Deleuze (1968), “comum”, em Spinoza, não significa
somente “alguma coisa em comum a dois ou vários corpos”, mas
também “algo comum aos espíritos capazes de formar uma ideia
disso”. Para o filósofo, é preciso saber fazer os encontros que nos
convêm. Não se pode dizer que é bom para si algo que ultrapassa
nosso poder de ser afetados, e se a beleza está em viver no limiar
do nosso próprio poder de ser afetado, que este limiar seja o da
alegria.
Na proposição 10, do livro V, da Ética – “A potência do intelecto
ou a liberdade humana”, Spinoza nos diz que:
Durante o tempo em que não estamos tomados por afetos que são contrários à
nossa natureza, nós temos o poder de ordenar e concatenar as afecções do
corpo segundo a ordem própria do intelecto. [...] por meio desse poder de
ordenar e concatenar corretamente as afecções do corpo, podemos fazer com
que não sejamos facilmente afetados por maus afetos.

Contudo, o que fazemos habitualmente é habitar o primeiro


gênero do conhecimento e listar os efeitos de outros corpos sobre
os nossos. Por vezes, esse processo não passa de um somatório de
nossas tristezas. Foi justamente assim que comecei este texto, mas
não é assim que pretendo concluí-lo.
Se este estudo se faz tão longo, foi em função da tentativa de
compreender como funcionam os dispositivos de saber-poder
existentes no campo jurídico, que são produzidos também por
psicólogos, mas que também os capturam, produzindo afetos de
tristeza. Mas Spinoza nos lembra que “à medida que
compreendemos as causas da tristeza, esta deixa de ser uma
paixão, isto é deixa de ser tristeza” (Ética, parte V, proposição 18,
escólio).
Para tanto, precisamos evitar as paixões tristes, ou seja,
“conjurar encontros nocivos” por meio da experimentação de
paixões alegres que nos tornem mais fortes e especialmente nos
ponham “em possessão de nossa potência de compreender e agir”
(DELEUZE, 1968). Contudo, para “conquistar o conhecimento”,
como diria Spinoza, é preciso achar o caminho da liberdade.
Não é possível pensarmos em noção comum, ideias adequadas,
coletivo, uso comum, composições, conquista de conhecimento e
da liberdade, sem ser pelos bons encontros e pelos afetos de
alegria, pela composição de corpos e pelo aumento de nossa
potência de agir. Por isso, apresento aqui uma breve discussão
sobre a ideia do abolicionismo, ou melhor, sobre ideias
abolicionistas, acreditando que elas são ideias adequadas o
suficiente para nos dar força crítica para que possamos estranhar
essa impossibilidade, que muitas vezes vemos, do fim das penas
privativas de liberdade e dos valores moralizantes que aprisionam
nossas práticas profissionais e a condução de nossas vidas, assim
como para produzir subsídios na construção de estratégias de
resistência aos processos de captura, aos maus encontros e aos
afetos de tristeza, que se potencializam no interior da engrenagem
jurídico-penal. Temos de afirmar e nos implicar na criação de
novas formas de fazer-saber e saber-fazer na psicologia e no
direito, aumentando a nossa potência e a daqueles com os quais
esses saberes/práticas se encontram.
O Abolicionismo como força crítica na formação de noções-

comuns (ideias adequadas)


Vocês, homens prestativos e bem-intencionados, ajudem na obra de erradicar do
mundo o conceito de punição, que o infestou inteiramente! Não há erva mais
daninha! Ele não apenas foi introduzido nas conseqüências de nossas formas de
agir – e como já é terrível e irracional entender causa e efeito como causa e
punição! – mas fez-se mais, privando da inocência, com essa infame arte
interpretativa do conceito de punição, toda a pura casualidade do acontecer. A
insensatez chegou ao ponto de fazer sentir a existência mesma como punição. –
é como se a educação do gênero humano tivesse sido orientada, até agora, pelas
fantasias de carcereiros e de carrascos! (NIETZSCHE, 2004, p. 21)

Ao discutir sobre o abolicionismo, o holandês Rolf S. Folter


(2008, p. 181-182) tece considerações interessantes. A primeira
delas é que temos de distinguir entre o sentido restrito do termo e
o mais amplo. O restrito refere-se à abolição de um aspecto
específico do sistema penal, por exemplo, a abolição da pena
capital. O abolicionismo no sentido mais amplo não alude apenas
a uma parte desse sistema, mas ao seu conjunto, que é
considerado um problema social em si mesmo e, portanto, a
abolição de todo o sistema aparece como única solução adequada
[...]. “Vejo o abolicionismo como uma maneira de captar todas as
práticas discursivas e não discursivas do Sistema de Justiça penal
e uma maneira de atuar frente a elas [...] Concebo o abolicionismo
como um método”.
Após esclarecer seu próprio posicionamento em relação ao
abolicionismo dos sistemas, especialmente do sistema penal, o
autor em questão faz um estudo comparativo dos métodos
utilizados por autores considerados por ele abolicionistas: Louk
Hulsman, Thomas Mathiesen e Michel Foucault. Um dos motivos
para justificar sua escolha é o fato de que os três autores
fundaram grupos de ação ou pressão contra o sistema. Neste livro,
serão utilizados apenas os comentários que Folter tece sobre os
escritos de Foucault.
Logo no início de seu texto, o autor deixa claro que apesar de
Foucault não se referir a si próprio como abolicionista, ele o
considera assim, pois seu trabalho teórico-prático tem muitos
pontos de contato com o movimento abolicionista do sistema
penal, além de conter uma análise sobre o poder, que é
fundamental para a teoria e prática abolicionista.
Em Vigiar e punir, Foucault diz: “A prisão é o único lugar onde o
poder se manifesta com total nudez, em sua forma mais excessiva,
e onde é justificado como força moral.” Por isso, ao se fazer a
pergunta: “O que deve ser abolido?”, Folter afirma que o objetivo
do abolicionismo penal, que ele enxerga em Foucault, é o da
arguição sobre todas as formas de expressão do poder. Mas isso
não implica dizer que:
Foucault reclame por uma ação política totalizante para abolição de todas as
relações de poder. As lutas abolicionistas são locais e relacionadas a um domínio
específico no qual as pessoas se sentem oprimidas. Não existe uma totalização
da luta abolicionista sob a aparência da verdade. Se podemos falar da
generalidade da luta, ela deriva do próprio sistema de poder, de todas as formas
em que se exerce e se aplica o poder. (FOLTER, 2008, p. 202)

Ao falar do trabalho do GIP (Group d’information sur les prisons


– 1971-1972), ou melhor, o Grupo de Informação Sobre as Prisões,

Folter (2008, p. 201) mostra a relevância de Foucault não ter se


tornado porta-voz dos presos, pois “ao reformular suas atividades
políticas a respeito do Sistema de Justiça penal podemos dizer que
Foucault tenta abolir os limites e as condições que fazem com que
os prisioneiros não possam falar por si próprios”.
Outra pergunta de Folter é: “Como atingir a abolição?”
Diferentemente de Louk Hulsman e Thomas Mathiesen, Foucault
oferece poucas propostas para implantar ações abolicionistas.
Segundo o autor, de forma geral, as ações do filósofo podem ser
ilustradas por meio de uma imagem do judô. Nessa luta, quando o
adversário ataca, “a melhor resposta é não retroceder, mas
considerar a manobra de ataque como ponto de partida para o
passo seguinte”. O autor assinala ainda que “o problema de se ver
capturado pelos mecanismos que se quer combater é próprio de
todas as situações de batalha [...] Foucault não tenta evitar a
manobra do adversário, mas a utiliza em seu próprio favor”
(FOLTER, 2008, p. 202-203).
Segundo Folter (2008, p. 203), “as reflexões de Foucault a
respeito da situação de batalha deixam também claro que as ações
abolicionistas devem ter ponto de partida na situação concreta, e
que devem desenvolver suas estratégias e táticas segundo o que
requisitar a situação real de forças em confronto”. E isso só se
torna possível porque, ao falar do governo, por exemplo, o filósofo
em questão diz que: “devemos sair do dilema; ou se está a favor ou
se está contra [...] é possível estar contra, mas ao mesmo tempo
envolvido” (FOUCAULT apud FOLTER, 2008, p. 203). Isso se chama
modelo de “ação oposicional” ou “contra-ataques táticos”, que
significa que todas as ações pressupõem uma relação fundamental
com os oponentes e essa pode modificar-se por não trazer o a
priori de estar sempre em contradição. A resistência ao poder não

está fora dele, mas é parte das próprias relações de poder. Por
isso, a política abolicionista, segundo Folter, só pode ser
implantada dentro do campo estratégico das relações de poder.
As afirmações de Folter remetem a outras duas ideias que
considero abolicionistas também, que são: a de contradispositivo
ou de “profanar” o dispositivo, discutida no capítulo anterior, e
aquela de Fonseca sobre uma “Terceira Perspectiva” ou “Direito
Novo” em Foucault, que serão discutidas a seguir. Foram reunidas
aqui, para que todas pudessem ser incluídas nesta pesquisa, em
que se buscavam possibilidades de compor antídotos que nos
protejam contra as forças de envenenamento que circulam nos
campos jurídico, “psi” e social.
Entendendo que não é possível pensar em abolir práticas “psi”
aprisionadas – sobretudo dentro do campo jurídico – se não
libertarmos também as práticas no direito, recorri, mais uma vez,
ao próprio Foucault, para compreender sua discussão acerca
dessa possibilidade:
[...] quando se quer objetar alguma coisa contra as disciplinas e contra todos os
efeitos de saber e de poder que lhes são vinculados, que se faz concretamente?
Que se faz na vida? [...] Que se faz, se não precisamente invocar esse direito,
esse famoso direito formal e burguês, que na realidade é o direito da soberania?
E eu creio que nos encontramos aqui numa espécie de ponto de
estrangulamento, que não podemos continuar a fazer que funcione
indefinidamente dessa maneira: não é recorrendo à soberania contra a disciplina
que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar. De fato,
soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânica disciplinares
são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder
em nossa sociedade. Para dizer a verdade, para lutar contra as disciplinas, ou
melhor, contra o poder disciplinar, na busca de um poder não disciplinar, não é
na direção do antigo direito da soberania que se deveria ir, seria antes na
direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo
tempo liberto do princípio da soberania. (FOUCAULT, 1999, p. 47)

Essa imagem não se delineia na forma de um conceito ou teoria;


ela deve antes ser procurada em determinados usos e referências
que o autor faz ao domínio jurídico. Como, por exemplo, quando
as práticas e saberes do direito são tratados sob um modo que
parece ser um esboço de uma filosofia do direito, no qual o direito
passa a ser objeto de uma reflexão específica localizando-se num
domínio de problemas e de abordagens em que seja possível
pensar em práticas do direito que escapem à normalização e “que
estariam mais próximas da afirmação da autonomia e da liberdade
dos indivíduos do que da efetivação dos mecanismos da
normalização em diferentes aspectos de suas vidas” (FONSECA,
2002, p. 247).
Para Fonseca (2002, p. 249), Foucault “desconfia” das formas
jurídicas (do direito) nas sociedades modernas por causa da
colonização de suas manifestações concretas233 pelos mecanismos
de normalização. E essa colonização se processa no interior de um
quadro institucional formal ligado ao Estado e expresso pelo
princípio da soberania.234 Dito isso, o jurista nos encaminha para
um dos textos do filósofo em que essa suspeita em relação às
formas do direito se apresenta em direta relação com o Estado.
Trata-se da discussão sobre a “justiça popular”, em 1971, com
intelectuais e militantes maoístas, em torno de um projeto sobre
um tribunal popular para julgar a polícia.
Ao se referir a alguns acontecimentos ocorridos na França e na
Europa Ocidental, entendendo-os como movimentos de “justiça
popular”, Foucault (1993, p. 39) afirmará que essa forma de justiça
é “antijudiciária” e se opõe às formas típicas do sistema penal
como o tribunal, pois este tem “por função histórica reduzi-la,
dominá-la e sufocá-la, na medida que a reinscreve no interior de
instituições características do aparelho de Estado”, afinal, desde o
final da Idade Média, o aparelho judiciário se apresenta como a
expressão do poder público.
Nos movimentos de “justiça popular” ou em uma “instância de
elucidação política”, não há os elementos conhecidos do tribunal,
as partes e o juiz, apenas há as massas e seus inimigos; não há
uma referência a uma ideia universal abstrata de justiça na hora
de impor um castigo ou a reeducação, pois esses se referem
apenas à própria experiência das pessoas envolvidas nas
situações concretas de injustiça (danos e opressões) e, por último,
a decisão final não é a decisão de uma autoridade apoiada em um
aparelho de Estado, mas se executam pura e simplesmente
(FOUCAULT, 1993, p. 45).
Mas ao ser perguntado como uniformizar as manifestações de
justiça popular, Foucault (1993, p. 61) dirá que “deve-se inventá-
las”, pois as massas já sofreram muito com a Justiça; então, por
que continuar impondo-lhes a mesma velha fórmula, ainda que
com novo conteúdo? Foi muito curioso observar nessa discussão
com os maoístas, como estes, o tempo todo, tentavam adaptar as
ideias de Foucault ao ideal deles de um novo Estado (o
“revolucionário”), que teria novas “normas”, sem, contudo, abrir
“Mao”, ou melhor, abrir mão do Estado e das normas. E, vide meu
“ato falho” na escrita, do pai, do poder soberano, na figura de
“Mao-Tsé-Tung”.
As discussões acerca da justiça popular foram apresentadas,
brevemente, não como uma saída que deve ser reproduzida,
apenas para pensarmos que não adianta ficarmos pedindo por
reforma constitucional, dos códigos e do sistema prisional, nem
por penas alternativas e restaurativas, ou ainda por outras leituras
dos saberes “psi”, como tem ocorrido na psicanálise
contemporânea. Nada disso adianta se, em todas essas propostas,
o direito e as práticas “psi” continuarem ligados aos mecanismos
de normalização, aos dispositivos de controle social e se
expressando pelo princípio da soberania.
Fonseca (2002, p. 255) traz outro texto de Foucault,235 de 1978,
em que o autor mostra que “é preciso desconfiar da forma do
direito cuja arquitetura seria ao mesmo tempo uma mecânica da
ordem”. Na opinião do filósofo, as “desordens” no interior do
Judiciário não são acidentes, limites ou obstáculos para seu
funcionamento, mas fazem parte dele. Pois, no aparelho judiciário
que conhecemos, a desordem produz a “ordem”. Mas o que é essa
“ordem”? Trata-se daquilo que é tido como “aceitável”,
“desejável”, “normal” numa dada sociedade, ou seja, aquilo que
remete à “norma”. Como, por exemplo, “humanos não fazem xixi
em poste, prenda os que fizerem”, conforme vimos no segundo
capítulo, com a operação “choque de ordem” no município do Rio
de Janeiro.
Esse processo de ordenação ou normalização, ou melhor, essa
“ordem social normalizadora” se dá de três maneiras:
[...] produzindo “irregularidades aceitáveis”, ao abrigo das quais todos se
reencontram em uma espécie de tolerância consentida; produzindo
“dissimetrias utilizáveis”, que asseguram a alguns indivíduos vantagens que não
são aproveitadas por aqueles que as desconhecem ou que nada podem fazer a
respeito delas; produzindo, enfim, aquilo que tem o mais alto valor em
civilizações como a nossa ordem social (FONSECA, 2002, p. 256).
Ao falar do primado da ordem sobre a lei em alguns textos de
Foucault, Fonseca (2002, p. 257) dirá que a Justiça irá substituir
cada vez mais “um fim possível para o direito que consiste no
respeito à lei pelo cuidado com a norma”. Ou, para dizer de outro
modo, a Justiça atualmente tende a penalizar mais os
comportamentos do que punir as infrações, conforme vimos no
segundo e terceiro capítulos desta pesquisa.
Todavia, nos dois últimos textos foucaultianos comentados
anteriormente, o de 1978 e o de 1993, a imagem de um direito novo
apenas se esboça. Para Fonseca (2002, p. 260-261), ela só se efetiva
nos textos do autor que nos permitem pensar em formas possíveis
de resistência ao poder normalizador, ou seja, naqueles em que há
consideração de práticas jurídicas capazes de constituírem uma
resistência aos mecanismos de normalização.
Portanto, para pensarmos em um “novo direito”, em outras
práticas no direito, temos de primeiro desconfiar das formas com
que o direito e a Justiça se apresentam, assim como, para
pensarmos em outras práticas “psi”, precisamos suspeitar das
formas como elas são construídas e oferecidas.
Essa desconfiança está ligada a uma atitude de resistência.
Contudo, para Fonseca, o tema da resistência em Foucault estaria
ligado ao da arte de governar236 (desenvolvido pela pastoral cristã
a partir do século XV e expandido para a esfera da sociedade
civil). Esse autor dirá que, a partir da noção de
governamentalidade, Foucault opera um deslocamento no interior
da analítica do poder e abre uma perspectiva diferente para se
pensar as formas possíveis de resistência. Esse deslocamento
seria aquele do eixo “saber-poder” para a ideia de “governo dos
homens”, na qual se pensa que os três domínios – saber, poder e
subjetividade – são pontos de articulação de processos de
governamentalidade que visam direcionar a conduta dos homens.
Segundo Fonseca (2002, p. 262-263), aqui se pode ver a
resistência ganhar nova consistência, pois se pode resistir às
formas de um “governo” na medida em que se pode “recusar ser
governado”, ou, dito de outra forma, pode-se ter uma “atitude
crítica”237 diante desse processo. Essa “atitude crítica”, também
chamada por Foucault de “arte da não servidão voluntária”, ou
ainda, “arte da indocilidade refletida”, seria o “movimento pelo
qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus
efeitos de poder e [interrogar] o poder sobre seus discursos de
verdade” (FOUCAULT, 1990b, p. 39 apud FONSECA, 2002, p. 265).
Para o filósofo, “como governar” e “como não ser governado”
são as duas faces do problema da governamentalidade, conforme
vemos pelas palavras do próprio Foucault:
Quero dizer que, no interior dessa grande inquietação em torno da maneira de
governar e da pesquisa sobre as maneiras de governar, nota-se uma questão
permanente que seria: “como não ser governado desse modo, por esse modo,
em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais
procedimentos, não desse modo, não para isso, não por ele”. (FOUCAULT, 1990b,
p. 38 apud FONSECA, 2002, p. 263)

Conforme Fonseca, Foucault assinala alguns pontos


historicamente localizados para pensarmos no que ele chama de
“atitude crítica”, são eles: a Igreja e a Bíblia, que trazem consigo
um retorno às Escrituras como um modo de recusar o magistério
eclesiástico; o direito soberano com suas leis e sua contrapartida,
o “direito natural”, inventado por seus críticos, e, por último, a
ciência e as verdades produzidas por suas autoridades e aqueles
que as contestaram.
Mas não basta recusar ser governado. ao compreender este
fato, Foucault, nos seus últimos escritos chamados de “éticos”,238
pensa o tema dos modos de subjetivação a partir das técnicas e
das práticas pelas quais o indivíduo institui uma relação de
cuidado com si próprio em virtude de um “estilo” que procura dar
à própria existência.
Fonseca (2002, p. 270-273) considera que a “ética” é outro
deslocamento operado por Foucault em suas pesquisas, que não
exclui o campo da política ou o tema do saber-poder, tão discutido
em seus estudos anteriores, mas trata-se de pensar no sujeito que
se compõe a partir de práticas ou técnicas de si, em suas relações
com o saber e com o poder. Período pelo qual é possível
pensarmos em uma estética e em uma ética da existência, nas
quais aderimos livremente e cuidadosamente a modos ou estilos
de “subjetivação” singulares, em vez de apenas nos assujeitarmos
ou, quando muito, mapearmos e criticarmos as forças que
promovem assujeitamento.
Essa ética está longe de ser um tipo de individualismo, pois,
para Foucault, ela está remetida ao problema da organização da
existência, o que implica a relação consigo mesmo e com os
outros. Bem, e o que seria o poder senão o conjunto de tais
relações?
A ética foucaultiana do cuidado pode ser entendida como um
exercício de liberdade e autonomia que conquistamos ao nos
implicarmos nas verdades que enunciamos, nas estratégias
políticas no interior das quais essas verdades se inserem, na
relação que estabelecemos com nós mesmos e que nos faz
conformarmo-nos com as configurações existentes ou resistir a
elas. Se Fonseca (2002) pesquisou esse autor para pensar em uma
forma ética nas práticas do direito, nós o fazemos, também, por
esse motivo, mas, especialmente, para pensarmos sobre isto em
relação às práticas “psi”, sobretudo, aquelas realizadas por
psicólogos no campo jurídico.
Por isso, foram citadas algumas práticas apontadas por
Fonseca que remetem a essa forma “ética” do direito – já que são
práticas refletidas de liberdade – presente em alguns trabalhos do
filósofo.
Segundo Foucault, estamos diante de uma demanda infinita em
face de um sistema finito, por isso não é possível pensar em uma
única forma cabível no direito, pois os meios que as sociedades
dispõem para responder às suas demandas serão sempre
inferiores às suas próprias necessidades. Isto fica claro em seus
comentários, em uma entrevista de 1983,239 a respeito das
reivindicações da “Confederação Francesa Democrática dos
Trabalhadores” quanto ao “direito à saúde.” E, surpreendendo
todos, o filósofo opera um deslocamento da questão do “direito à
saúde” para o problema do “direito de acesso aos meios de
saúde”.
Esse deslocamento se dá por Foucault não considerar a saúde
um direito, mas sim um “estado de fato”. Isso quer dizer que a boa
e a má saúde seriam um “estado de coisas”, não correspondendo,
portanto, a um bem jurídico imediato. Fonseca (2002, p. 281), ao
comentar esse texto, diz que: “O estado de boa saúde não decorre
imediatamente da afirmação de um direito”, poderia ser apenas
objeto de declaração ou de reconhecimento por parte de um
direito, o que também não garantiria a permanência nesse estado.
Contudo, Foucault afirma que se pode ter direito a condições de
trabalho que não aumentem os riscos de doenças, assim como ter
direito a reparações e cuidados quando um acidente no domínio
da saúde decorreu da responsabilidade de uma autoridade.
Mas Foucault, assim como fez com os maoístas, nos lembra o
tempo todo que não é possível definir um direito universal, pois
tem de se levar em conta a diversidade das situações. No caso da
saúde, dois problemas são elencados: “a igualdade de acesso aos
meios de saúde” e “o acesso indefinido” a esses meios, mas
ressalta ainda que “o importante é saber por meio de qual
‘arbitragem’ sempre flexível, sempre provisória, os limites desse
acesso serão definidos”, uma vez que é necessário ter clareza que
tais limites não podem ser definidos de uma única forma, por uma
definição médica, nem pela noção de “necessidade de saúde”
enunciada como um absoluto (FONSECA, 2002, p. 281-282).
Nesse texto, chama a atenção de Fonseca essa ideia de
“arbitragem”, pois ela é, para este autor, uma indicação de um
campo de referência a partir do qual as práticas e saberes ligados
ao direito poderiam ser pensados, visto que ela remete, de uma
forma geral, à necessidade de um exame permanente da
racionalidade que norteia as escolhas de um grupo sobre um
assunto qualquer. E, ao citar Foucault, diz que a arbitragem
envolve “um enorme trabalho de investigações, de
experimentações, de medidas, de reelaboração intelectual e
moral” (FONSECA, 2002, p. 282).
É importante ressaltar também a ideia de “arbitragem”, pois ela
não determina que as decisões acerca das medidas a serem
tomadas – como, por exemplo, as que ele cita no texto relativo ao
acesso aos meios de saúde – sejam exclusivamente dos “técnicos”
e “especialistas”, mas o filósofo imagina um conjunto de decisões
que se ordenariam em torno de uma espécie de “eixo normativo”
que fosse representativo de um certo estado de consciência das
pessoas, que dissesse da natureza da demanda delas e que fosse
objeto de seu consentimento. As arbitragens devem “ser o efeito
de uma espécie de consenso ético, para que o indivíduo possa se
reconhecer nas decisões tomadas e nos valores que as inspiram”
(FOUCAULT apud Fonseca, 2002, p. 283).
Para Fonseca, a “arbitragem” em Foucault seria o “jogo da
regulamentação social” (sempre inacabado), que não se esgota no
direito, nem vice-versa; o direito aparece apenas como um dos
participantes desse jogo, que deve ter a característica de se
manter sempre elástico e transformável. O jurista aponta ainda
que o filósofo,
Ao falar em arbitragem como sendo um jogo decisional realizado pela sociedade,
Foucault repõe o problema da norma. A arbitragem será sempre o
estabelecimento de uma norma, o estabelecimento de critérios normativos para
a tomada de decisões concretas no interior dos diversos domínios da vida
social. Entretanto, e aí está o aspecto importante a ser notado, o objetivo desse
jogo normativo seria “evitar que a norma funcionasse em termos disciplinares”,
ou seja, evitar que a norma decorrente do jogo social, se tornasse um
mecanismo de redução da multiplicidade das diferenças, da pluralidade ao
unitário e uniforme. A arbitragem, ao produzir uma norma, deve tentar impedir a
normalização do múltiplo. E isso só é possível na medida em que se pensa o eixo
normativo como uma linha móvel, comportando um grau sensível de
permeabilidade ao jogo das reivindicações sociais, à mudança das orientações
culturais, à incidência de novas necessidades materiais. (FONSECA, 2002, p. 283)

Desta forma, as práticas do direto não seriam exteriores ao


campo social, mas emergem com ele. Um exemplo desta
inseparabilidade foi o GIP,240 já apontado por Folter, e que, segundo
Fonseca, não pretendeu fazer uma reforma do sistema prisional,
nem esclarecer sobre os direitos dos presos, muito menos ensiná-
los a reivindicá-los. O objetivo era apenas divulgar241 informações
sobre o sistema carcerário, com a singularidade de que elas não
seriam produzidas por especialistas, mas pelos próprios
prisioneiros e familiares. O grupo não tinha a característica de ser
um movimento de liderança, mas um veículo de informações
“extraoficias”. A forma de mobilização do GIP, para Fonseca (2002,
p. 298), pode ser considerada um laboratório de novas formas de
ação como, por exemplo, deixar que os presos falassem por eles
próprios, a ausência de uma liderança e de um programa definido
de atuação, a invenção de práticas que eram expressão de uma
“atitude crítica”, a invenção de movimentos de resistência aos
mecanismos de normalização. As práticas que emergiram com o
GIP, neste estudo, são entendidas como manifestações de novas
práticas no direito.
Outro texto de Foucault em que visualizamos a possibilidade de
“um direito novo” é aquele em que discute sobre o direito penal.242
Nele, o autor nos convoca a mantermos uma inquietação
permanente243 em torno dos valores, da vida social e no âmbito do
direto; e acrescentamos os saberes “psi” porque foi por isso que
se começou esta pesquisa! O escrito é de 1981 e foi realizado em
função da supressão definitiva da pena de morte na França. Para
Fonseca (2002, p. 285), o que mais importa para o filósofo não é o
fato da supressão, mas a maneira como ela se deu; os problemas
nela implicados. No caso da pena de morte, estaria implicado o
problema de pensar-se em que medida a sociedade assume o
princípio de que o poder público não tem o direito de retirar a
vida de alguém. O que leva a um debate importante sobre
questões como a guerra, o serviço militar obrigatório, entre
outros. Portanto, um debate como esse toca no problema do
direito de matar que o Estado pode exercer de diversas maneiras,
como tão bem nos mostraram Maupassant e Kafka. Por isso, “é
preciso retomar, com todas as suas implicações políticas e éticas,
a questão de saber como definir de forma mais justa as relações
de liberdade dos indivíduos e de sua morte” (FOUCAULT apud
FONSECA, 2002, p. 285-286).
Foucault faz uma inversão em relação ao modo de conceber o
direito, que, segundo Fonseca (2002, p. 292), é muito importante. O
filósofo pega a concepção moderna e positivista do direito que
tende a definir a legitimidade em termos de legalidade e a
transforma em uma legitimidade que só pode estar referida à
prática histórica e circunstanciada dos indivíduos, já que a ação
seria a única capaz de reivindicar pretensões a serem definidas
como direitos; direitos que jamais tomariam a forma de uma teoria
absoluta e universal, mas que estariam em permanente devir.
Bem, a ideia de devir nos leva a pegar uma bifurcação nesse
caminho, que nos faz chegar a Deleuze (1992, p. 191), quando
afirma que seu interesse não é “a lei” ou “as leis”, pois a primeira é
uma “noção vazia” e as outras “são noções complacentes”. Ele
também não se interessa pelo direito ou pelos direitos e sim pela
jurisprudência, já que esta é “verdadeiramente criadora de
direito”.
Nos Estados de direito não são os direitos adquiridos e codificados que contam,
mas tudo aquilo que atualmente constitui um problema para o direito, tudo o
que leva as conquistas a correrem o risco permanente de serem novamente
questionadas. Não nos faltam tais problemas hoje, o código civil tende a rachar
por todos os lados, e o código penal conhece uma crise igual à das prisões. O
que é criador de direito não são os códigos ou as declarações, é a
jurisprudência. A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por
singularidade, por prolongamento de singularidades. (DELEUZE, 1992, p. 191)

E, ao discutir sobre a ideia de se estabelecer um “direito da


biologia moderna”, o autor nos mostra que a biologia moderna e
as novas situações que ela cria, “nos novos acontecimentos que
ela possibilita, são questão de jurisprudência. Não é de um comitê
de sábios, comitê moral e pseudo competente, que precisamos,
mas de grupos de usuários. É aí que se passa do direito à política”.
E, justamente por isso, a jurisprudência “não devia ser confinada
aos juízes” (DELEUZE, 1992, p. 209-210).
Deleuze aparece com sua ideia sobre jurisprudência, quando
nosso texto já estava praticamente terminado, mas chega na hora
exata em que havíamos nos deparado com o risco que corre a
jurisprudência de ser capturada pelas forças que temos citado
repetidamente neste trabalho, que são os mecanismos de
normalização e controle sobre a vida, pelo direito que ainda se
expressa pelo princípio da soberania.
Por isso, a discussão do terceiro capítulo, sobre a súmula
vinculante, será retomada aqui, visto que esse procedimento,
como já foi dito, pode ser entendido como uma espécie de
jurisprudência, mas, em nossa opinião, não o é, já que possui
características como a imperatividade (imposição de um
determinado sentido normativo, que deve ser acolhido de forma
obrigatória quando é do tipo vinculante) e a coercibilidade (se não
observada essa interpretação, cabe reclamação ao STF), além de
promover a uniformidade entre as decisões.
Portanto, neste trabalho, a súmula vinculante é entendida
como um dispositivo de captura da jurisprudência, pois, se esta
última carrega a potência do devir quando se difere da normativa
vigente, tirando nesse processo o direito do plano da
transcendência e colocando-o no da imanência, a sua
“normatização”, por meio da súmula vinculante, aniquila sua
potência de “diferir” e transforma a jurisprudência num
“reproduzir”. E, dessa forma, destrói-se o que ela tem de “singular”
para transformar em um “universal” e converte-se o “devir” de
novas práticas jurídicas em “dever” legal.
As súmulas vinculantes não são também aquilo que Foucault
chamou de arbitragem, elas são, em verdade, arbitrárias.244
A partir da leitura das ideias de Foucault sobre “arbitragem” e
de Deleuze sobre “jurisprudência”, aventamos que, nos dois
autores, esses processos se dão quando um acontecimento faz o
direito devir. Já que é na emergência dos conflitos que está a
potência de criação e de singularidade de uma “Justiça
jurisprudente”, não mais universal, absoluta, contínua e em
constante evolução, “mas a afirmação de direitos locais,
descontínuos, fragmentários, processuais, em constante
movimento e devir, múltiplos como as forças que os atravessam e
os constituem [...]” (COIMBRA; LOBO; NASCIMENTO, 2008, p. 95).
Heliana Conde, no decorrer desta pesquisa, foi quem me
sugeriu “estranhar essa impossibilidade que a gente vê do fim da
prisão”. E Foucault me fez pensar que enquanto ficamos por aí
procurando “classificar indivíduos perigosos”, não vemos se
constituir um perigo bem mais grave, o perigo de uma sociedade
“que não se inquietaria em permanência com seu código e com
suas leis, com suas instituições penais e suas práticas punitivas”
(FOUCAULT apud FONSECA, 2002, p. 286).
Lourau (1993, p. 13) também nos disse algo de que não
podemos esquecer: “o movimento, ou força de autodissolução,
está sempre presente na instituição, embora esta possa ter a
aparência de permanente e sólida”; ele estava querendo nos dizer
também que temos de estranhar essa aparência “sólida” de
determinadas instituições e dispositivos e enxergar que todos eles
carregam a força da “autodissolução”.
Ao analisar criticamente o papel dos psicólogos no encontro
com o campo jurídico, o jurista Sérgio Verani (1992, p. 18-20) nos
diz com que direito ele acredita que a psicologia deveria se
encontrar:
Não consigo imaginar que alguém estude Psicologia para chegar, depois, na
cadeia, e fazer um laudo dizendo que o preso tem que ficar lá mais um ano, não
sei mais quantos anos, porque ele é perigoso. Não deve ser essa a finalidade da
Psicologia. Para mim, a Psicologia deveria ser um conhecimento ligado à
liberdade, ligado à possibilidade do ser humano se relacionar integralmente com
o mundo. E essa relação só pode se dar em plena liberdade [...]. O encontro da
Psicologia com o Direito só será possível, na medida em que seja destinado à
liberdade, à desmistificação do Direito. Quer dizer: o Direito deve ser um
conhecimento para a garantia dos Direitos, e não, para a segurança da repressão
e da desigualdade. [...] o sentido – que eu imagino – do encontro entre o Direito
e a psicologia: Uma aliança em favor da dignidade da pessoa humana, em favor
da cidadania, em favor da liberdade. (VERANI, 1992, p. 18-20)
Aproprio-me das palavras de todos esses autores, tomados
como parceiros, neste trabalho, para convidá-los a pensar o fim
não só da prisão, mas de todos esses dispositivos e instituições
que produzem aprisionamento, controle, adoecimento e até a
morte, tal como os que mostro ao longo deste livro.
Foi tão difícil achar juristas que tivessem o pensamento
convergente para o meu como foi fácil achar autores e práticas
“psi” divergentes dos meus pensamentos e práticas. Mas como a
heterogeneidade faz parte da vida e se faz necessário afirmar a
diferença, quero pensar numa diferença que esteja a favor da
alegria, da vida e da liberdade e não a favor do encarceramento, da
violência e da morte. Acredito, assim como Spinoza,245 que a vida
insiste em perseverar. Por isso espero que esta pesquisa tenha
cumprido seu objetivo, que foi o de provocar desassossego e
fornecer algum subsídio para aqueles que apostam na vida e
desejem se implicar, estranhar, criticar, desarticular, profanar,
desativar, dobrar, tornar inoperantes determinadas práticas “psi” e
do direito e, assim, agir na construção de um ethos ético-estético-
político que possibilite a emergência de novas práticas “psi” e no
direito, que devenham, que emerjam do “uso comum”.

Segundo o Regulamento do CFP, os grupos de trabalho têm duração de apenas um ano.


Deleuze, G. aula sobre Spinoza no Cours Vicennes em 24/01/78, Disponível em:
<http://webdeleuze.com>.
Em toda a parte III do livro Ética.
Em função da ideia de que mente (pensamento) e corpo (extensão) são modos diferentes
da substância pensante divina se expressar. Spinoza não opera na lógica da dicotomia,
como Descartes, mas sim, cria o que se chama de paralelismo psicofísico.
Cf. Deleuze ([1989], p. 59): “Causa – Entendo por causa de si aquilo cuja essência envolve
a existência, ou, por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode conceber-se senão
como existente.”
Cf. Deleuze ([1989], p. 31): “II – Desvalorização de todos os valores e, sobretudo do bem e
do mal.”
Cf. Gilles Deleuze (1968) nos diz que a alegria passiva é produzida por um objeto que
convém conosco, que aumenta nossa potência, mas do qual ainda não temos uma ideia
adequada, ou seja, desconhecemos a causa. A alegria ativa é produzida por nós mesmos,
deriva de nossa potência e segue de uma ideia adequada em nós, ou seja, chegamos à
causa. Na medida em que as alegrias passivas aumentam nossa potência de agir, elas
convêm com a razão. Mas, a razão é uma potência de agir da mente e as alegrias
supostamente ativas nascem da razão. Por isso, quando Spinoza sugere que o que
convém com a razão pode também dela nascer, ele quer dizer que toda alegria passiva
pode dar lugar a uma alegria ativa, que dela se distingue somente pela causa (tradução
nossa).
Cf. Deleuze, ([1989], p. 37): “III – Desvalorização de todas as paixões tristes”.
Ética, parte III, proposição 1, demonstração e corolário.

Que, segundo Fonseca (2002, p. 249), é: a produção e o conteúdo das leis, a estrutura de
suas instâncias de julgamento, a organização dos saberes que compõem seus domínios.
Princípio da legitimidade do poder e a obrigação legal da obediência, de acordo com
Fonseca (2002, p. 249).
Segundo Fonseca (2002, p. 255), trata-se do texto: “Le citron et le lait”. In: FOUCAULT, M.
Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. vol. 3.

Fonseca lembra que a ideia de governo para Foucault não deve ser entendida como uma
instância executiva em um sistema estatal, e sim no sentido mais amplo de um conjunto
de mecanismos e procedimentos destinados a guiar a conduta dos homens (FONSECA,
2002, p. 261, nota de rodapé nº 407).
Sobre esse tema, Fonseca indica uma conferência proferida por Foucault, em 1978, e
publicada da seguinte forma: “Qu’ est-ce que la critique?”. Bulletin de La Societé Française
de Philosophie, t. 84, année 84, n. 2, p. 35-63, avril/juin 1990.

Constituídos dos seguintes textos, de acordo com Fonseca: O uso dos prazeres e O
cuidado de si (1984), os Cursos do Collège de France de 1980 a 1984 (Du gouvernement des

vivants, Subjectivité et vérité, L’herméneutique du sujet, Le Gouvernement de soi et des

autres: Le courage de la vérité e Dits et écrits v. IV).


Fonseca nos conduz para a publicação dessa entrevista na versão francesa do Ditos e
Escritos: FOUCAULT, Michel. Un système fini face à une demande infinie. In: _______. Dits

et écrits. Paris: Gallimard, 1994. vol. 4, p. 367-383.

Fonseca se refere a um texto que teria sido o texto fundador do movimento, publicado
em março de 1971, na revista francesa Esprit, e assinado por Michel Foucault, Pierre
Vidal-Naquet e Jean-Marie Domenach.
O grupo distribuia questionários aos detentos e aos seus familiares e os publicava em
formato de relatórios em folhetos. Em um ano de duração, foram publicados quatros
deles. Para mais informações Cf. Fonseca (2002, p. 297, nota de rodapé nº 488).
Fonseca cita a publicação francesa do Ditos e Escritos: “Contre les peines de substitution”
(FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 205-207).
Outro texto citado por Fonseca, no qual Foucault fala da necessidade de uma inquietação
permanente, é: “Punir est la chose la plus difficile qui soit” (FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 208-
210) e “Face aux gouvernements, les droits de l’homme” (FOUCAULT, 1994, v. 4, p. 707-
708).
Segundo o novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (FERREIRA, 2009): “que não
respeita lei ou regras, que não aceita restrições; despótico.
De acordo com o filósofo, no livro Ética, parte III: “Cada coisa esforça-se, tanto quanto
está em si, por perseverar em seu ser” (proposição 6).“O esforço pelo qual cada coisa se
esforça por perseverar em seu ser não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo
indefinido” (proposição 8).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira
de um rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as
normas.
Manoel de Barros
Quando me propus a fazer uma cartografia das práticas do
psicólogo no “campo jurídico” ou em “territórios judicializados”,
ainda não estava trabalhando como psicóloga. Porém, logo que
ingressei no mestrado, fui convidada para trabalhar,
concomitantemente, na prisão e na favela. Animou-me a
possibilidade de estar em lugares nos quais tantas coisas das
quais eu tinha de falar nesta pesquisa aconteciam. Eu só não tinha
ideia de como seria intensa essa experiência. Por isso, minha
passagem como profissional desse campo também foi incluída por
meio do processo de “análise de implicações”. O primeiro capítulo
foi ganhando contorno na medida em que entrei em contato e
pude dar passagem à dificuldade de lidar com as forças que
estavam fora de mim, mas, especialmente, com aquelas que, em
mim, obstruíam o processo de escrita. Procurei não me colocar
como um sujeito di(st)ante de um objeto, com um método pronto
para dissecá-lo. Muito menos como psicóloga clínica que buscava
a “cura” para os sintomas dos psicólogos que trabalhavam no
campo jurídico.
E a tradicional metodologia de pesquisa? E a tradicional forma
de se falar de clínica? Bem, essas foram as primeiras normas que
“despratiquei”. O que de fato aconteceu foi que: psicóloga, clínica,
pesquisadora, campo pesquisado, modo de pesquisar e intervir se
inventavam, a cada encontro. E a isso chamamos de “O
desassossego do cartógrafo,” e ninguém melhor do que Fernando
Pessoa para nos acompanhar nessa inquieta aventura do diferir.
Por isso asseveramos que, em uma pesquisa e na nossa prática
profissional, não devemos nos preocupar apenas com os
instrumentos metodológicos e/ou técnicos, mas precisamos estar
implicados constantemente em um processo que chamamos aqui
de ontologia crítica de nós mesmos e de nossas práticas. E isso só
pode acontecer quando estranhamos, desconfiamos dos
territórios e funções que ocupamos, quando procuramos habitar
um ethos – ético-clínico-estético-político – a partir do qual
poderemos trabalhar em nome dos processos de singularização,
de potencialização da vida e da liberdade.
É ético no sentido de estarmos constantemente implicados em
nossos modos de existir e de “fazer-saber” e “saber-fazer” em
psicologia. É clínico por escutarmos e afirmarmos os processos de
diferenciação de si, do outro e de nossas práticas, por operarmos
desvios. Isso nos leva imediatamente à ideia de estética porque
essa diferenciação se trata de criação. Criação de vida, de modos
de estar no mundo, de outros caminhos, de novas paisagens, de
novos conceitos, para que as forças ativas se afirmem. Mas para
essa criação acontecer é necessário que haja uma transvaloração,
ou seja, precisamos ultrapassar os valores hegemônicos que
reproduzem formas cristalizadas de se viver e trabalhar, ou seja,
precisamos “despraticar” normas.
Mas como se “despratica” uma norma? Precisamos para isso
afirmar uma atitude política. Porque para transvalorar e criar uma
nova estética para a existência é preciso, antes, adotar uma
atitude crítica e ultrapassar valores hegemônicos. E isso não se
consegue se não nos inquietarmos, se não nos desassossegarmos,
diante do que se apresenta como realidade e como natural.
Temos de analisar em que condições e circunstâncias
emergiram esses valores vistos como já dados, estes saberes,
como a psicologia e o direito, saberes estes que, com a força de
seus discursos, produzem leis, normas e subjetividades e, muitas
vezes, o bloqueio dos processos de criação de si e de mundo,
mediante as tentativas de aniquilamento das diferenças e das
singularidades por meio dos dispositivos de normalização e de
controle. E é político também porque se trata de uma luta contra
as forças, mas não somente aquelas que pensamos estar fora de
nós, como esses saberes, ou Estado “dito” democrático em que
vivemos ou o capitalismo globalizado, mas, principalmente,
aquelas que, em nós, podem obstruir as nascentes do devir, do
diferir, da criação.
Mas para que outros modos de existir e novas práticas
profissionais possam emergir, precisamos desativar os antigos,
mas não sem antes entender como eles se formaram e como
funcionam. Por isso, no segundo capítulo, alguns escritos de
Foucault foram percorridos para que se entendessem “Os modos
de relação entre o direito e os saberes ‘psi’”. E um dos caminhos
seguidos foi acompanhar a emergência e o funcionamento da
máquina jurídica e penitenciária e dos saberes “psi” nesse campo.
Dessa forma foi possível compreender melhor a inseparabilidade
entre saber e poder.
Outros autores me acompanharam nesse percurso e todos eles
se acompanharam de Foucault também. Em função da confusão
e/ou sobreposição dos termos “norma” e “lei” nos discursos
analisados, foi necessário diferenciar a norma jurídica e seus
processos de “normatização” da norma do sentido das ciências
médicas e humanas e seus processos de “normalização”, e quem
ajudou nesse processo foi Márcio Alves da Fonseca. Com ele
também vimos as diferentes imagens do direito e as modulações
que a noção de norma sofreu nos textos de Foucault. O contato
com esse autor e com os próprios textos de Foucault nos mostrou
que não era possível compreender como os saberes e práticas
“psi” funcionavam no campo jurídico, se não entendermos,
minimamente, o jogo de forças entre essas instâncias e o direito, a
máquina jurídica e penitenciária, as modulações sofridas pelo
capitalismo e as diferentes formas de governar a população (a
soberania, as disciplinas, os mecanismos de segurança, o
biopoder, a sociedade de controle). Por isso, me interessei em
estudar as formas pelas quais o direito e os saberes “psi” se
colonizaram reciprocamente. Algumas delas foram amplamente
exploradas: o princípio da soberania, a tecnologia disciplinar, os
mecanismos de segurança e de controle e as formas de produção
de verdade.
Mas outros termos e conceitos utilizados com muita frequência
pelos trabalhadores dessa área precisavam ainda ser esclarecidos;
por isso, Cristina Rauter e Vera Malaguti Batista se juntaram aos
que já estavam em cena e ajudaram a analisar a construção
histórica da criminologia, a articulação entre o discurso médico e
o jurídico, a demanda por ordem, as políticas criminais em um
“Estado penal”, os processos de criminalização que atingem
determinadas parcelas das populações, assim como as
transformações dos dispositivos de poder que este saber
instrumentou e ainda instrumenta.
Ainda no segundo capítulo, discutiu-se o conceito de “Estado
de Exceção” e a forma como ele se apresenta no contemporâneo,
nos escritos de Agamben.
Posteriormente, chega-se à psicanálise, que foi um dos saberes
que tentaram equivocar a criminologia em sua versão positivista.
Fui aos escritos de Sigmund Freud e Sandór Ferenczi, para
entender como a psicanálise se insere no sistema penal no século
XIX. Nesse passeio, observou-se que o primeiro não aderiu à
demanda do sistema penal, quanto ao segundo, não se pode
afirmar o mesmo. Para debater acerca de uma determinada forma
de a psicanálise se exprimir, atualmente, convidei Regina Neri,
que, por sua vez, convidou a criminologia crítica e Foucault,
possibilitando a problematização dos pontos de contato entre as
formas jurídicas e as psicanalíticas de produção da verdade, assim
como sobre os efeitos políticos desse encontro, conforme
verificamos por meio de certos discursos psicanalíticos que se
aliam ao direito, colocando, na mesma série, a lei jurídica e a lei
simbólica e, com isso, aumentando o pedido por mais leis, limites
e ordem.
Nesse ponto, tive a clareza de que não é só a tecnologia
disciplinar que invade o Judiciário, mas que é possível falar
também em uma “colonização às avessas”, na qual se constata
uma judicialização das práticas “psi”, que se inicia com certa
leitura da psicanálise e que fica visível em alguns procedimentos
desenvolvidos nos tribunais de justiça, como a “justiça
terapêutica”. Por isso, Agamben retorna ao texto para ajudar a
pensar se é possível desativar um dispositivo.
Foi preciso percorrer esse longo caminho para tentar
compreender com qual psicologia o direito quer se encontrar. Mas
ainda havia muitas questões que me puxavam como um imã para o
metal, no meu caso, para as grades da prisão, e não me refiro só às
grades físicas, mas também às invisíveis, que aprisionam nosso
pensamento e nossas práticas. Por isso, entrevistamos psicólogos
e visitamos seus locais de trabalho, assim como realizamos
inúmeras observações participantes para nos aproximarmos do
“desassossego dos psicólogos que atuam no campo jurídico no
contemporâneo”. Por isso, no terceiro capítulo, dois analisadores
me escolheram para que pudéssemos, juntos, montar um quebra-
cabeça; são eles: o exame criminológico e o depoimento sem dano.
Eles demonstraram, por meio do seu funcionamento, a
indissociabilidade entre saber-poder, nos mostrando o que ocorre
quando saberes e práticas “psi”, saberes do direito e práticas
jurídicas se aliam às forças do capitalismo e aos dispositivos do
biopoder para governar determinadas parcelas da população.
Debateram-se também alguns dos efeitos nefastos dessas
práticas na vida dos profissionais envolvidos e sobre o contrato de
trabalho deles com o campo jurídico.
Ao final desse capítulo, entendi que nosso problema não era
“curar” o desassossego desses profissionais, mas intervir naquilo
que os desassossega: os saberes e as práticas “psi” e jurídicas.
Porque o desassossego é uma potência coletiva, uma força ativa
que irrompe e nos exige uma mudança de perspectiva, nos atiça,
nos lança em direção à criação de novos modos de existir, de
pensar, de trabalhar.
No segundo e terceiro capítulos, quando destaquei os
discursos de profissionais dos saberes “psi” proferindo frases
tipicamente jurídicas ou juristas fazendo intervenções quase
clínicas, como Verani, estava praticando o exercício de equivocar
lugares, de mostrar que os limites entre os saberes são
extremamente tênues, que é possível operar nesses limites de uma
forma que produza adoecimento e morte, mas também de modos
criativos que potencializem os processos de criação do novo, de
saúde, de autonomia e de liberdade.
Portanto, no segundo e terceiro capítulos, contei como se
produzem e se praticam as normas e também como essas normas
podem ser “despraticadas”, inclusive, por aqueles mesmos que as
inventaram e/ou que as põem para funcionar. Por isso, pensei com
Agamben, no final do terceiro capítulo, acerca da possibilidade de
desativar um dispositivo.
Esta última ideia somou-se a todas as outras que foram
surgindo ao longo desta pesquisa e me levaram ao quarto capítulo:
“O abolicionismo penal como uma ‘ideia adequada’”, no qual
afirma-se, com Spinoza, Deleuze e Foucault, a ideia de estar em
constante análise de implicações com nossas práticas
profissionais e com os processos vitais, por meio de uma ontologia
crítica de nós mesmos e de nossas práticas, dos “bons encontros”,
das “ideias adequadas”, do desassossego, pois só assim podemos
caminhar em direção à criação e à liberdade para inventar outras
práticas nos campos dos saberes “psi” e do direito.
Para se compreender melhor esse complexo de problemas
presentes neste livro, precisamos pensar com que psicologia o
direito quer se encontrar e afirmarmos com que direito, nós
psicólogos, queremos nos encontrar. Temos também de
determinar, como psicólogos, quais são nossas práticas. Afinal,
não é uma lei que determina uma prática, mas as práticas que
legitimam as leis. Portanto, ninguém além dos próprios psicólogos
pode dizer como um psicólogo deve ou não trabalhar.
Fernando Pessoa trouxe, logo no primeiro capítulo deste
trabalho, a força de sua diversidade heteronímica com o Livro do
desassossego, que, inicialmente, foi atribuído a Vicente Guedes e,

posteriormente, teve sua autoria assumida por Bernardo Soares,


que adotou também algo de sua biografia, ou seja, ele é o
“heterônimo do heterônimo”! Com esse estilo tão singular, ao
alterar suas próprias marcas identitárias, Fernando Pessoa nos
traz a possibilidade da criação permanente de si, do mundo e da
sua prática profissional. Tradicionalmente, o psicólogo é aquele
que vai estar sempre conciliando com outros profissionais, pois a
própria emergência da psicologia tem a ver com isso e os
profissionais desse campo estão marcados por essa força
conciliadora; infelizmente, muitos não percebem que, enquanto
não se desprenderem disso, se não “despraticarem” normas, não
poderão diferir, outrar-se e, assim, construir outras práticas.
A proposta deste livro foi afirmar uma “atitude crítica” diante
das formas jurídicas e “psi”, mas para isso foi preciso se inquietar,
entrar em contato com forças que produzem mal-estar, para que
fosse possível achar a indocilidade e entender que, se quisermos
ser artistas da “arte da não servidão voluntária”, se desejamos
tirar do museu e profanar a psicologia e o direito, é preciso se
manter constantemente desassossegado.
Há quem possa inferir que passamos muito tempo deste livro
discutindo o direito, o Judiciário e a prisão, mas, na verdade,
durante todo este texto as práticas e discursos “psi” foram
pensadas. O fato de ter escolhido trabalhar em uma perspectiva
transdisciplinar me autorizou a fazer algo diferente do que se tem
visto na maior parte dos trabalhos realizados por psicólogos em
relação às suas práticas no Judiciário e no sistema penal, que têm
sido “pensar em como fazer clínica nesses lugares”. Contudo, eu
estava o tempo inteiro falando de clínica e de liberdade, pois, se
há algo de clínico e de libertário que podemos fazer nesse campo,
é intervir nele, nesses saberes, nesses discursos e práticas,
provocando desvios, “despraticando” normas, “desjudicializando”
a psicologia e construindo, para o mundo, outras paisagens.
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