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Volume IV

População, modos e ciclos de vida:


Família, género e sexualidades

Manuel Carlos Silva et al. (orgs)


Centro de Investigação em Ciências Sociais (ed)
Instituto de Ciências Sociais
Universidade do Minho
População, modos e ciclos de vida:

Família, género e sexualidades


Índice

Família, género e intimidades.................................................................................................................................................. 1 


De mulheres e de saídas - Histórias....................................................................................................................................... 1 
Questionar a Nova Gestão Pública e o Género: Uma reflexão a partir da academia portuguesa ......................................... 12 
“Trabalho, família e género, articulando dimensões centrais da vida dos indivíduos”........................................................ 23 
Família, protecção social e redes sociais: algumas reflexões a partir da história de vida de uma família ........................... 66 
A intersectorialidade nas políticas para mulheres e do meio ambiente ............................................................................... 71 
A masculinidade não cai do "céu", ela nasce do "chão" ...................................................................................................... 75 
Transexualidade e transgénero em Portugal: dois “vazios” em debate ............................................................................... 84 
Em conversa com os amigos: a importância do grupo de pares na construção da sexualidade ........................................... 91 
Família, juventude e conjugalidade ..................................................................................................................................... 99 
Notas sobre família, hierarquia e gênero na Academia Militar das Agulhas Negras......................................................... 108 
“Não há ideais de pais, falhamos sempre”: dilemas da parentalidade no início do século XXI” ...................................... 112 
El camino hacia el empoderamiento político de las mujeres ............................................................................................. 127 
Famílias imigrantes portuguesas na cidade do Rio de Janeiro: rupturas e reconstrução de identidades ............................ 136 
De Castro Daire a Pernambuco: trajetória de uma família cristã-nova na economia açucareira e suas agruras com
a Inquisição ....................................................................................................................................................................... 143 
Mulheres e direitos humanos: desfazendo imagens, reconstruindo identidades ................................................................ 151 
Custos Sociais e Económicos da Violência Exercida Contra as Mulheres em Portugal: dinâmicas e processos
socioculturais .................................................................................................................................................................... 161 
Gênero e adoecer feminino: olhares sobre o corpo, a saúde e a doença ............................................................................ 166 
Vida conjugal, curso de vida e sexualidade....................................................................................................................... 178 
Homoparentalidade, Discriminação e Direitos Humanos: O caso Silva Mouta na Justiça portuguesa e no Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos......................................................................................................................................... 188 
Tensões e assimetrias de género – Processos de ruptura conjugal e poder paternal .......................................................... 201 
Os jovens, os ventos secularizantes e o espírito do tempo. ............................................................................................... 210 
Privilégios e Direitos: Territórios sem Fronteira na Violência Doméstica? ...................................................................... 222 
Violência Psicológica contra a Mulher: Dor Invisível ...................................................................................................... 232 
A imbricação entre a violência física contra a mulher e a posição que ocupa na organização familiar............................. 244 
Os discusos que construiram as mulheres brasileiras, africanas e portuguesas ................................................................. 252 
As mulheres e a vivência pós-cárcere ............................................................................................................................... 256 
A arte da amizade na cultura digital: blogs femininos e feministas................................................................................... 260 
A importância da ampliação de discussões referentes à violência masculina após um ano de Lei Maria da Penha
no Brasil. ........................................................................................................................................................................... 267 
Poder e representação política de mulheres brasileiras - as cotas legislativas entre instituições e cultura* ...................... 273 
Para além do "Teto de Vidro": As Representações do “Ideal” de Mulher Executiva no Brasil......................................... 282 
Homens e Mulheres: Identidade Militar ............................................................................................................................ 286 
O Cotiadian de Crianças Residentes em Espaços de Reforma Agrária – Assentamento Nova Alvorada do Sul .............. 293 
Patrilocalidade, matrifocalidade e adaptabilidade no mundo rural de Santiago de Cabo Verde........................................ 300 
A violência doméstica contra crianças e adolescentes e o trabalho com as famílias no Brasil .......................................... 312 
Modos de vida, corpo e sexualidades .................................................................................................................................. 321 
Momentos queer no contexto educacional: desafios na construção de performances alternativas para os corpos ............ 321 
Desigualdades Sociais e Dissidência Sexual Feminina ..................................................................................................... 330 
Corpo e Ambiguidade Genital: o estranho e o peso do olhar ............................................................................................ 337 
A Lógica Perversa do Consumo, a Apatia e Depressão como Efeitos da Globalização .................................................... 344 
Amor, intimidade e sexualidade: roteiros amorosos e sexuais na época contemporânea .................................................. 352 
O corpo como projecto: modos de vida orientados para padrões de beleza ...................................................................... 368 
Metamorfose de um corpo andarilho: busca e reencontro do algo melhor ....................................................................... 377 
Corpo, subjetivação, ética e poder .................................................................................................................................... 383 
Hábitos Alimentares da Terceira Idade: um estudo comparativo entre as Classes AB x CD em São Paulo - Brasil......... 390 
O corpo e o sujeito na contemporaneidade: signos de memórias e traços de identificação nas transformações
corpóreas ........................................................................................................................................................................... 403 
Modos de vida e padrões de consumo: travestismo e prostituição em Juiz de Fora, Brasil ............................................... 414 
Corpo e infância: dialogando com a sociologia da infância .............................................................................................. 421 
Símbolos sobre o corpo: marcas de gênero no universo da tatuagem ............................................................................... 427 
Comportamentos sexuais, crenças, atitudes e conhecimentos de adolescentes/jovens portuguesas e cabo-verdianas
face à vulnerabilidade ao risco do HIV/SIDA: uma abordagem antropológica comparativa em contexto urbano. ........... 432 
Projecto Saúde e Prevenção na Escola e Protagonismo Juvenil ........................................................................................ 446 
Grupo gestor estadual em saúde e prevenção nas escolas – GGE/SPE ............................................................................. 452 
Narrativas da Alteridade: Corpos Femininos na Construção Luso-Afro-Brasileira .......................................................... 456 
Usos e construções de imagens representativas sobre a sensualidade da mulher brasileira em um contexto
migratório.......................................................................................................................................................................... 468 
Homossexualidade na Reclusão Feminina: Discursos, Representações e Práticas. ........................................................... 479 
A produção da sexualidade pela mídia .............................................................................................................................. 486 
Reflexões da violência e abuso sexual infanto juvenil ...................................................................................................... 489 
População, gerações e ciclos de vida ................................................................................................................................... 497 
A formação do indivíduo alicerçada em valores éticos e religiosos .................................................................................. 497 
As políticas sociais e o protagonismo da criança e do adolescente ................................................................................... 503 
Políticas públicas para a educação da primeira infância: a creche .................................................................................... 512 
Políticas Internacionais para o mundo do trabalho, repercussões no Brasil para as pessoas com deficiência. .................. 516 
Quando as crianças fotografam ......................................................................................................................................... 519 
Universidade Aberta para a Terceira Idade: o desafio educacional na pós-modernidade.................................................. 523 
Idoso: o crescimento de uma nova geração ....................................................................................................................... 533 
Práticas corporais para a terceira idade: facilitadores para o fortalecimento do corpo, da mente e da integração
social ................................................................................................................................................................................. 536 
Políticas Sociais Alternativas a Institucionalização de Idosos na Região das Missões - RS ............................................. 541 
Juventudes, Memórias e cultura: articulações para o encontro entre distintas gerações .................................................... 549 
Sociabilidades Juvenis em Teresina: o Trabalho de jovens no Lazer ................................................................................ 563 
Pescando histórias à beira mar: um estudo intergeracional ............................................................................................... 567 
Jovens e crianças intermediam relações geracionais: um estudo a partir de contos e lendas do lugar .............................. 571 
Coletivos juvenis e expressões culturais no Brasil ............................................................................................................ 575 
Mudanças na estrutura demográfica do Espirito Santo - Brasil......................................................................................... 585 
Políticas públicas e gestão do envelhecimento no Brasil .................................................................................................. 598 
Envelhecimento, subjetividade e espaços urbanos: nas ruas da memória ......................................................................... 601 
O envelhecimento populacional e o desafio àqueles que atuam com os novos atores sociais – os idosos ........................ 605 
A Vivência em Lar e a Privação da Intimidade ................................................................................................................. 610 
Juventude e diferenças de gênero nas culturas juvenis contemporâneas ........................................................................... 624 
Juventude e Noite: Narrando a violência e o risco. ........................................................................................................... 634 
Crianças, Participação e Cidades: uma geo-grafia da infância .......................................................................................... 639 
Reflexões Metodológicas Acerca De Uma Pesquisa Com Crianças Num Contexto Educativo Pré-Escolar..................... 647 
Investigação com crianças e metodologias participativas. Reflexões a partir da experiência numa escola da
periferia de Maputo. .......................................................................................................................................................... 653 
O Surgimento dos Novos Estudos Sociais sobre a Infância no contexto da Radicalização do Processo Histórico de
Individualização da Criança .............................................................................................................................................. 665 
Crime, dependência e direito ............................................................................................................................................... 680 
Da Exclusão e do Racismo à Criminalidade. Um Estudo de Caso no Bairro da Atouguia em Guimarães........................ 680 
O Poder e a Cultura de Violência em Alagoas .................................................................................................................. 693 
Memória e pertencimento: o discurso criminalizante e o samba como "território" de resistência. Uma experiência
na periferia de uma grande metrópole brasileira ............................................................................................................... 701 
Sistema de justiça criminal brasileira e cidadania dos aprisionados: prisão como castigo ou agente
ressocializador? ................................................................................................................................................................. 710 
A pena privativa de liberdade na penitenciária de São Luiz Gonzaga, no interior do Estado Rio Grande do Sul/
Brasil ................................................................................................................................................................................. 718 
Da atualidade e da oportunidade do tema "Tráfico de Mulheres para fins de exploração sexual" .................................... 730 
Eco da violência urbana: o cotidiano das crianças trabalhadoras do narcotráfico brasileiro ............................................. 735 
Quando o petro-capitalismo encontra a cleptocracia: crime organizado em Angola em contaxtos de integração e
fragmentação ..................................................................................................................................................................... 742 
Plantios de Maconha no Brasil, o Caso do polígono da Maconha: Atores e Relações Sociais na Cadeia Produtiva......... 746 
“Negócios e trapaças: O lucrativo comércio marítimo ilícito de africanos no município de Macaé (1830-1865)” ........... 754 
Violências e Conflitos Intersubjetivos no Brasil Contemporâneo ..................................................................................... 757 
Política e Questão de Família ............................................................................................................................................ 764 
Os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Brasil – Primeiras Impressões ................ 771 
Programa Pró-Egresso de Toledo: a ação do serviço social .............................................................................................. 780 
Vulnerabilidade e exclusão X emancipação e gerenciamento do risco: o papel das políticas públicas penais e de
programas de apoio a ex-presidiários no Brasil................................................................................................................. 786 
As Penas Alternativas superam as prisões no Brasil, hoje. É um avanço ou um retrocesso? ........................................... 793 
Apoio familiar aos adolescentes egressos do sistema sócio-educativo da região de Ponta Grossa – Paraná – Brasil ....... 802 
Representações sociais do fenómeno das drogas nos meios de comunicação de massa .................................................... 809 
Um novo modelo de atendimento aos dependentes químicos ........................................................................................... 814 
A ordem pública e a segurança individual. A luta contra o cangaço e contra o PCC ........................................................ 825 
Representações de Justiça Polular na trajetória de um bandido social .............................................................................. 837 
Amor e dor: um estudo sobre as punições corporais em crianças e adolescentes na cidade de Natal/Rio Grande Do
Norte/Brasil ....................................................................................................................................................................... 844 
Reflexo das Ordenações Filipinas na Violência Doméstica Praticada no Brasil ............................................................... 849 
A memória que não faz laço social: crime e destrutividade .............................................................................................. 859 
A violência de gênero em Niterói: um registro de invisibilidades..................................................................................... 870 
Práticas e Políticas Culturais num Estabelecimento Prisional ........................................................................................... 878 
Direitos humanos: uma injustiça na realidade das prisões brasileiras ............................................................................... 890 
O corpo da mulher em situação de privação de liberdade: o feminino encarcerado. Do descaso ao abandono ................. 902 
Caldeirão em ebulição: análise da construção e manutenção da identidade de grupos antagônicos nas prisões ............... 907 
A matriz prático-discursiva da política de segurança pública no Rio de Janeiro de hoje .................................................. 913 
Tendências e desafios das políticas na gestão da segurança pública nas cidades: o caso do Estado do Rio de
Janeiro ............................................................................................................................................................................... 927 
Segurança pública e favelas no Rio de Janeiro: crime violento, polícia, riscos e rotinas .................................................. 932 
A Municialização da Segurança Pública: estudo de caso em São Leopoldo - RS ............................................................. 943 
Sobre a percepção de “direitos” e de “humano” entre operadores de segurança pública no Brasil ................................... 954 
A produção de “transparências” na polícia portuguesa. .................................................................................................... 956 
Formação dos magistrados no Brasil e a necessidade de reforma para um Poder Judiciário mais justo. .......................... 961 
As políticas de Educação Sexual existentes no Brasil e em Portugal como tema de estudo comparativo ......................... 969 
Algumas notas sobre o RDD e as políticas públicas de exceção no Brasil........................................................................ 981 
Livre convencimento, imparcialidade e subjetividade na decisão judicial ........................................................................ 992 
Pensando a justiça penal brasileira a partir dos conceitos de campo e habitus de Pierre Bourdieu ................................. 1002 
Solução dos Conflitos sócio-ambientais através do Poder Judiciário: o caso da carcinicultura na APA da Barra do
Rio Mamamguape-Pb ..................................................................................................................................................... 1007 
Criminalização da pobreza e judicialização das relações sociais: Reflexões a partir do olhar do Serviço Social ........... 1012 
Sistema Judicial e Reformas: o Caso Brasileiro .............................................................................................................. 1018 
Delinquência juvenil feminina: histórias de vida sobre transgressão .............................................................................. 1025 
A inserção da Juventude no processo de produção da violência na atualidade ............................................................... 1039 
Estudo sobre a incidência de homicídios praticados por adolescentes e o número de óbitos deste segmento no
município de Natal/RN-Brasil......................................................................................................................................... 1044 
Os adolescentes em conflito com a lei e a criminalização das classes perigosas: notas sobre o perfil étnico-racial ....... 1056 
Será a legislação penal contemporânea de emergência uma legislação de "linhas abissais"? Análise da
problemática brasileira à luz de espectáculos mediáticos ................................................................................................ 1061 
"Nem às paredes confesso": a relação entre a(s) justiça(s) e a(s) arquitectura(s) judicial(ais) ........................................ 1070 
Família, género e intimidades

De mulheres e de saídas - Histórias


Cenira Duarte Braga
Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Rita de Cássia Santos Freitas


Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Nívia Valença Barros


Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Resumo: Esta comunicação tem por objetivo recontar o “sair” das pioneiras da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense, localizada em Niterói (RJ,BR). Neste texto, utilizamos o depoimento de quatro pioneiras. Nestes depoimentos levantou-se a
história de vida dessas mulheres, suas memórias e contribuições para a história da ESSN, mas, sobretudo, da profissão do Serviço Social.
Esta comunicação fala da saída de mulheres que, por conta dessa ousadia – saírem de seus cotidianos de gênero e de classe – construíram
uma profissão. Enfatiza-se a história das mulheres como elemento fundamental para pensar a condição humana e a história de nossa
profissão. Nosso projeto, ao trabalhar com memórias e história oral, analisa o modo como essas mulheres, pioneiras nos anos 40, foram, aos
poucos, conformando uma ocupação. O estudo centra sua análise no surgimento da Escola, mas não se descola da realidade mais global onde
esses acontecimentos ganham vida. Elas partiram do zero e foram estudando, viajando, trocando experiências, elaborando apostilas,
construindo os primeiros livros, as primeiras técnicas, se organizando em associações, enfim, criando uma profissão. A memória da ESS
pode ser recolhida em várias passagens onde o público e o privado se entrelaçam. Foi uma escola/um trabalho importante em suas vidas. Não
podemos deixar de concluir utilizando uma frase de Nilda Ney, uma de nossas entrevistadas: “desde que a mulher foi trabalhar ela ficou
independente, porque o que dá independência à mulher não é o casamento, é a profissão e independência econômica e a cultura”. Como
feministas, não podemos deixar de concordar.
PALAVRAS-CHAVE: gênero, história oral e memórias
APOIO FINANCEIRO: FAPERJ.

Introdução
Esta comunicação é resultado de uma pesquisa intitulada “Niterói - Cidade das Mulheres”. Nesta pesquisa temos
como objetivo resgatar a memória de mulheres que fizeram parte da história da cidade de Niterói, situada no Estado do Rio
de Janeiro, Brasil. As mulheres tradicionalmente estão ausentes da chamada “história oficial”; assim, em nossa pesquisa
buscamos exatamente retirar da invisibilidade as mulheres de Niterói, ouvindo-as e preservando sua memória e, nesse
sentido, a história oral tornou-se uma metodologia imprescindível em nosso cotidiano.
Neste texto, recontamos um pouco do “sair” das pioneiras da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense (ESSN/UFF), localizada em Niterói. Para tanto, utilizamos o depoimento de quatro pioneiras da Escola acima
citada. Nestes depoimentos levantou-se a história de vida dessas mulheres, suas memórias e contribuições para a história da
ESSN, mas, sobretudo, da profissão do Serviço Social. Podemos perceber, dessa forma, como muitas mulheres conseguiram
“sair” de dentro dos cotidianos de gênero tão fortemente amarrados e construir uma profissão.
Assim, iniciamos nosso texto “apresentando” nossa cidade e um pouco da historiografia da cidade. Num segundo
momento, teceremos comentários acerca da construção da ESSN/UFF, o momento histórico, os sujeitos então presentes e em
seguida, vamos apresentar alguns desses personagens, algumas dessas mulheres, protagonistas dessa história. Como não
poderia deixar de ser, fazemos posteriormente algumas reflexões finais.
Contar uma história é também relembrar vidas. São as atividades diárias que realizamos em nosso dia-a-dia que
transformam os acontecimentos em fatos a serem rememorados. É assim que construímos nossas memórias. Partimos, em
nosso projeto, do pressuposto que toda profissão é construída através de várias pessoas, de várias gerações. E a gente está
fazendo esse trabalho justamente para que as novas gerações não pensem que tudo começou agora, e principalmente, que
nada termina aqui. Convivemos com vários problemas, mas apesar disso somos daquelas e daqueles que acreditam que ainda
assim temos o que comemorar. Olhar o passado pode nos ajudar muito nesse sentido.

Niterói – uma cidade e sua historiografia


Niterói é uma cidade relativamente pequena, ocupando uma área de cerca de 131.000 quilômetros quadrados (o
equivalente a 0,30 do território total do Rio de Janeiro), contudo é densamente habitada (possui hoje o quinto lugar em

1
população e densidade demográfica no Estado), possuindo quase quinhentos mil residentes. É tida como uma cidade com
uma boa qualidade de vida e a expectativa de vida dos moradores chega, segundo o IBGE, aos 68 anos. Todavia, ainda é uma
cidade que convive com grandes bolsões de pobreza.
Das janelas de Niterói se descortina a cidade do Rio de Janeiro – um dos mais belos cartões postais do país1. A
proximidade com o Rio traz vantagens e também desvantagens, uma vez que grande parte da população de Niterói flutua
diariamente entre as duas cidades, seja através das barcas que cortam a Baia de Guanabara, seja pela monumental Ponte Rio-
Niterói.
Os professores Ismênia de Lima Martins e Paulo Knauss – na introdução que fazem ao livro Cidade Múltipla:
temas de história de Niterói – lembram que a cidade é um objeto antigo dos historiadores; contudo, fazem a ressalva que ela
não é abordada da mesma forma pelas diversas investigações históricas. Nós também nos interessamos pela cidade e
entendemos que esta é um produto das contradições socais, culturais e econômicas que rasgam o seu dia-a-dia. A história de
uma cidade não pode ser encerrada em uma única leitura. Nesse ponto, a busca por uma certa objetividade na análise não
pode cegar os olhos do investigador para o fato de que construímos um olhar, uma interpretação – possível entre outras
igualmente possíveis. Nas palavras de nossos autores: “a história das cidades evidencia um movimento incessante de
significação variada dos espaços” (Martins e Knauss, 1997: 10).
Niterói surge nesse livro como um espaço “múltiplo”. Diversos projetos (sociais, políticos, econômicos,
individuais, classistas ou culturais) surgem e são estudados demonstrando a multiplicidade de sujeitos e processos sociais.
Comecemos nos perguntando como anda a historiografia referente à cidade de Niterói. O texto de Martins (1997) nos ajuda
nesse caminho. Neste, a autora estuda a historiografia existente acerca da cidade de Niterói.
A análise da história da cidade revela o modo como Niterói se constituiu tendo como uma grande referência em sua
vida a cidade do Rio de Janeiro2; isso é verdadeiro quando pensamos no mercado de trabalho (principalmente depois da
fusão), na esfera do político, pois afinal de contas, o centro do poder estava ao “nosso lado” – ou melhor, a nossa frente (e foi
transferido para o Planalto Central – Brasília3). Dessa forma, Niterói não foi efetivamente motivo de grandes reflexões
históricas. Ismênia Martins ao analisar a produção existente até a década de 80 constatou a existência de apenas 84 produções
que estudavam a cidade de Niterói. Estas se caracterizavam pela abordagem descritiva (presente em 49 das produções
estudadas). O século XIX é o alvo preferencial dessas análises, destacando-se também o baixo número de autores, o que
comprova que pouca gente escrevia sobre esse tema.
Os anos 80 e 90 não trazem grandes transformações nessa realidade, apesar da instalação do Programa de Pós-
Graduação em História da UFF: são poucas as dissertações e tese defendidas neste programa que tomam a cidade como
objeto de estudo. Fora do âmbito da universidade, segundo Martins, a produção continua tendo como referência a cidade do
Rio de Janeiro, o século XIX ainda é um privilegiado objeto de estudo e a abordagem política e administrativa continua
dominante (Martins, 1997).
Enfim, conclui Martins que a história de Niterói necessita ainda de um grande esforço; porém, “não se trata da
história de um lugar e sim de um espaço social permanentemente reconstruído. Nele atuam, na mesma cena, lideranças
políticas, nobres do Império e os comuns. E as relações sociais que aí se desenvolvem permanecem estranhamente ausentes
nos trabalhos examinados” (1997: 244). Este é um desafio a ser enfrentado: procurar novas abordagens, novos olhares, novos
objetos de estudo que nos permita nos aproximar um pouco mais de “tudo o que foi significativo para a construção e
transformação da cidade”.
Nesse sentido, dando “continuidade” ao texto de Martins, iniciamos uma pequena pesquisa na Biblioteca Central do
Gragoatá/UFF, que teve como objetivo fazer um levantamento inicial sobre a bibliografia existente que abrange a cidade de
Niterói, a partir das seguintes temáticas: História Política, do Patrimônio Artístico e Cultural, Biográfica, Econômica e Geo-
História4. O recorte temporal compreendeu o período de 1995 a 2005, ou seja, dez anos da produção historiográfica de
Niterói em livros, Trabalhos de Conclusão de Curso e Teses. Em relação aos livros compete destacar, do universo de 21
obras, a seguinte divisão:

Temática Número de obras


História Política 2
Geo-História 2
História Econômica 2
História do Patrimônio Artístico Cultural 8
História Biográfica 7

1
Embora, ainda que menos conhecida, Niterói possui igualmente belíssimas praias e recantos.
2
Cf. Martins (1997) e Ferreira (1997).
3
Niterói era capital do Rio de Janeiro. Com a mudança da capital para Brasília, Niterói perde esse posto, uma vez que a cidade do Rio, antiga capital do Brasil,
passa a ser a capital do Estado do Rio.
4
Trabalho apresentado na Semana de Iniciação Científica em 2006, com o título “Pensando a historiografia de Niterói: dez anos (1995-2005)”, de autoria de
Ellen do Nascimento Anacleto e Iohana Santos Fernandes.

2
Podemos observar a elevação no quantitativo das duas últimas temáticas. Creditamos esta situação à valorização,
pela Prefeitura de Niterói, da história da cidade, visando romper com a história niteroiense como parte da história carioca,
mostrando peculiaridades e riquezas desta terra.
Foram pesquisados, ainda Trabalhos de Conclusão de Curso e Dissertações de Mestrado. Nos TCCs predominam
os cursos de história e biblioteconomia. Observamos a predominância da abordagem da memória da cidade de Niterói, seja a
partir de imagens que caracterizam suas transformações, seja a partir de estudos sobre memória como construção de
identidade social. A temática do patrimônio cultural, por exemplo, revela a influência do sentido das imagens e as relações
desenvolvidas na história da sociedade brasileira e, sobretudo seus reflexos na cidade de Niterói. Dessa forma podemos
constatar que o resgate da memória da cidade está presente nas teses em diferentes formas de mensagem.
Em relação à história biográfica – central em nossa pesquisa – citaremos aqui duas obras: “Memória de Niterói: 12
depoimentos” coordenação de Júlio Vasco e “Personagens e imagens de uma cidade” coordenação de Ângela de Castro
Gomes. Ambos seguem uma metodologia semelhante: depoimentos de personagens importantes para a cidade, mas cujos
nomes não figuram na “grande história5”.
No primeiro livro todos os personagens são homens. No segundo encontramos o relato de apenas uma mulher
(Lizair Guarino). Outro livro, de Aníbal Bragança (Livraria Ideal: do cordel à bibliofilia), nos possibilita conhecer a vida de
um emigrante (Silvestre Mônaco) e um pouco do cotidiano da cidade, mas também não nos traz um olhar feminino sobre essa
cidade. Onde estão as mulheres de Niterói? Não desmerecemos os personagens escolhidos por esses autores, mas entendemos
que outros olhares, outras falas também são possíveis.

Essa pequena pesquisa ratificou nossa percepção da existência de uma grande lacuna no que diz respeito à história
das mulheres, à participação destas nos fatos históricos narrados nas obras pesquisadas. É importante enfatizar que apostar na
construção da história desta cidade a partir do olhar e da vivencia feminina6 não significa, para nós, a reconstrução de uma
“outra” história, verdadeira e definitiva. Interrogamos o passado e buscamos contar, reconstituir uma história, várias histórias
e trazer para o momento atual suas experiências, as imagens que ficaram no esquecimento e que podem nos ajudar a entender
um pouco melhor nossa cidade, nossa vida de mulheres e homens, hoje7.
As mulheres que entrevistamos nos dão uma “leitura” possível das experiências e dos processos históricos que
viveram (uma leitura que envolve o olhar feminino, uma posição de classe, etnia, idade, etc.). Suas histórias não se justificam
aqui apenas por serem mulheres que estiveram no chamado mundo público. Além dessa dimensão, o que enriquece seus
relatos é o modo como navegam pelas diversas dimensões, públicas e privadas. Nesse ponto se aproximam da descrição de
Rago (ao se referir a sua “biografada” Luce Fabri): “uma experiência de atuação no mundo público, sem perder, contudo,
uma forte inserção na esfera da vida privada” (Rago, 2001: 18).
No passado se aprende as várias histórias perdidas, as possibilidades que não se realizaram, mas também as
histórias que não foram contadas; enfim, temos acesso a outras leituras do passado (Rago, 2001). Essa perspectiva se
enriquece, em nosso entender, pela possibilidade de diálogo que estabelece entre várias disciplinas. Assim, tentaremos nos
colocar nesse debate.

Deixando a Niterói de hoje, avançamos no passado e retomamos aos anos 40, onde a história desse escrito começa.
É importante lembrar que os anos quarenta foram anos de grande movimentação na área social. O final do Primeiro Governo
Vargas vê emergir um grande número de instituições nesta área (o SENAI, o SESI e a LBA são grandes exemplos). A criação
da LBA, em 1942, demarca uma redefinição no Estado brasileiro com a incorporação da pobreza e da miséria ao discurso
oficial. Esse é o “mote” que gera a necessidade de profissionais preparados para atuar na área social.
Nestes anos surgem as primeiras Escolas de Serviço Social no Brasil. Os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro
(respectivamente) foram pioneiros. A LBA (Legião Brasileira de Assistência) foi criada em 1942, quando do ingresso do país
na guerra, com o objetivo de prestar atendimento as famílias carentes cujos maridos estavam no front. A criação da LBA
Fluminense possibilitou o estabelecimento do primeiro curso de visitadoras sociais – precursor da nossa Escola de Serviço
Social. Este curso foi ministrado pela assistente social Maria Esolina Pinheiro (fundadora da Escola de Serviço Social, hoje
pertencente a UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Em 1943, a LBA Fluminense organizou cursos intensivos de treinamentos do voluntariado: Noções de
Enfermagem, Defesa Civil, Nutricionista e o de Visitadoras Sociais, coordenado por Maria Esolina Pinheiro (uma das
pioneiras da hoje Escola de Serviço Social/UERJ). Este último foi o embrião para a criação da primeira Escola de Serviço
Social de Niterói – uma escola tecida por mãos femininas e que congregou diversas mulheres interessadas em também fiar
um tempo diferenciado e tingir com novas a paisagem local.

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Lembramos que nestes livros de história biográfica não se dá a utilização da história oral como metodologia, mas depoimentos colhidos na forma de
questionário.
6
Que, necessariamente, se diferencia do olhar e da vivencia masculina, não por uma questão biológica ou essencialista, mas por um olhar e uma vivência que
foram construídos social e historicamente de forma diferenciada.
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“Nada do que aconteceu um dia deve ser considerado perdido para a história” – esse foi o ensinamento de Benjamim que ajuda a reforçar o que estamos
querendo dizer.

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A Escola de Serviço Social de Niterói
Este é o acontecimento: no dia 23 de agosto de 1945, na Rua Tiradentes, 148 surgia a Escola de Serviço Social do
Estado do Rio de Janeiro. Uma bonita casa, com uma bela varanda e um porão em seu interior que pertencera a família do
Desembargador Ferreira Pinto, e depois a Legião Brasileira de Assistência (LBA) – que a cedeu para o funcionamento da
ESS. Esta foi criada pelo Decreto Estadual 1.397 de seis de julho de 1945. Este decreto, na verdade, legitimou todo um
processo de lutas que não se esgotam na criação do fato em si. Foi a inauguração em 23 de agosto que deu vida a essa
instituição.
No Rio de Janeiro já existiam outras três Escolas de Serviço Social. No entanto, a de Niterói tem um diferencial:
era mantida em parte pela LBA e em parte pelo Estado; as alunas não pagavam mensalidades e suas turmas não eram
compostas apenas por moças da alta sociedade, mas por muitas professoras primárias vindas do interior do Estado que
recebiam integralmente seus salários para depois de formadas retornarem às suas cidades (o que nem sempre acontecia, como
poderemos ver). Ainda compunham as turmas funcionárias das poucas instituições sociais existentes (LBA, SESC, SESI).
No início o curso era considerado de nível médio e de natureza exclusivamente feminina. Como a profissão no
Brasil era ainda relativamente nova (ainda não tinha completado dez anos do surgimento da primeira Escola de Serviço
Social), podemos dizer que houve um esforço em conjunto para “fazer” a profissão do Serviço Social. Apresenta-se aí o
primeiro desafio: como funcionar um curso de Serviço Social sem professores desta disciplina? A solução foi convidar
professores com título universitário e que tivesse alguma experiência em “obras sociais” e as disciplinas mais específicas
ficariam sob orientação das assistentes sociais vindas de São Paulo.
Em 1946, a LBA decide focar suas atividades no atendimento à maternidade e a infância, transferindo os demais
“casos dolorosos” para a ESSN. Cria-se então o chamado Escritório Central, uma espécie de agência onde as alunas,
devidamente supervisionadas pelas professoras da área, resolveriam tais casos, servindo como um campo de estágio.
É importante registrar que se as primeiras escolas de Serviço Social surgem com a marca forte do discurso católico,
a escola de Niterói (ainda que possua em seu interior mulheres de formação católica) tem sua identidade assentada no Poder
Público. Este é um detalhe fundamental que marca toda a diferença para se pensar a história dessa escola e, respectivamente
do próprio Serviço Social fluminense. Por isso, nos voltamos neste texto a um resgate do que foram os primeiros dias, meses,
anos de nossa história. Entendemos que esse interesse se justifica, pois percebemos como muitas vezes olhamos o passado –
e estas mulheres –com o olhar do presente e as condenamos por um conservadorismo que, na verdade, nunca as caracterizou.
Ou melhor, que não as caracteriza unicamente. No entanto, essas mulheres são lembradas apenas de uma única forma, por um
único viés e não se percebem as contradições, os avanços que também realizaram. Vamos falar aqui de mulheres que foram,
antes de tudo, OUSADAS. Elas ousaram sair do “círculo restrito traçado a sua volta”. Elas foram muito mais longe. Mas, e
isso é fundamental não esquecermos, são mulheres “comuns”, são pessoas comuns como qualquer um(a) de nós. E isso é o
que as faz grandes.

Dessa forma, além de demarcar nossa preocupação com o resgate da história local, outro ponto a destacar é nossa
preocupação de resgatar uma história onde a participação de mulheres apareça. Voltamo-nos para o resgate da história dessas
mulheres que, com todas as limitações (de gênero, de classe, raça) conseguiram fazer uma profissão e serem respeitadas por
seus trabalhos. Dessa forma, uma característica importante em nosso discurso diz respeito a necessidade de construir olhares
que estejam atentos para o cotidiano, para os chamados “pequenos acontecimentos” (mas grandes em importância) que fazem
parte importante de nossas vidas.
Assim, esse texto fala das saídas dessas mulheres de seus universos ditos femininos, de suas preocupações privadas
e do modo como pelo social adentraram no mundo público, modificando suas vidas, das pessoas a seu redor, modificando
mesmo a cidade onde circulavam. A “saída” de tais mulheres deve ser entendida segundo a concepção da historiadora
francesa Michelle Perrot (1999). Podemos caracterizar esse sair a partir de duas formas: sair fisicamente, buscando novas
formas de construir o Serviço Social e sair também moralmente, pois não podemos negar que, na busca por seus objetivos,
estas pioneiras tiveram que fugir dos papéis de gênero atribuídos às mulheres pela sociedade.
Estas “saídas” se caracterizam, no caso de nossa pesquisa, pela “viagem-ação” a partir do trabalho onde essas
mulheres puderam movimentar e transformar a realidade a sua volta e também a si mesmas. Mas se caracteriza também pelas
viagens efetivas que estas pioneiras tiveram que fazer, inclusive a outros países, para conhecer experiências em Serviço
Social, visando dar um embasamento teórico ao seu trabalho docente – e que repercutiu em seus mundos privados,
transformando valores e representações. Parafraseando M. Perrot, pudemos perceber o modo pelo qual as mulheres buscaram
tomar o pouco espaço que lhes eram deixados para ampliar seus conhecimentos, alargando suas influências à fronteiras antes
improváveis de serem alcançadas.
O artigo de Perrot fala da filantropia e da caridade como uma primeira forma de “saída” das mulheres não só dos
seus lares, mas principalmente das funções que lhes eram atribuídas. Essas “saídas” não só mudam a visão de mundo das
próprias mulheres – já que se fazia necessário realizar obras, fazer visitas domiciliares e atividades diversas das quais as
mulheres não estavam familiarizadas –, mas também abre caminhos para a amplitude (e ampliação) do trabalho social. A
transformação da filantropia em trabalho social representa de fato, um momento decisivo dessas saídas, já que com o passar
do tempo fez-se necessário a profissionalização das mulheres. Elas puderam, então fazer “do seu compromisso social um
exercício de liberdade pessoal” (PERROT, 1999, p. 509). Nesse sentido, queremos apresentar algumas mulheres que,

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quebrando essas barreiras, conquistaram não só seu espaço na sociedade, mas um espaço onde construíram uma profissão. A
partir de suas falas queremos relatar os desafios, as experiências e as conquistas no processo de organização e
desenvolvimento dessas mulheres para a construção do curso (e da profissão) de Serviço Social.
Queremos ressaltar também a importância da história oral dentro desse processo, pois foi a metodologia que
possibilitou que nos aproximássemos da memória e das lembranças dessas mulheres e de um tempo que passou – mas que
não foi um tempo qualquer. A História Oral tem sido muito questionada ao logo do tempo, mas é através dela que
procuramos e temos obtido um ótimo resultado na compreensão factual de um contexto por muitos desconhecido; que tem
por objetivo devolver ao povo sua própria história, ou seja, através disso colocar ao alcance de todos uma história contada por
seus próprios autores/atores – no nosso caso, suas próprias autoras.
Como afirma Paul Thompson (1992) em seu, hoje, clássico livro, já que a habilidade escrita é mais exigente e
restritiva que a fala, as palavras faladas “insuflam vida na história”, possibilitando o resgate de uma história contada a partir
das próprias experiências vividas pelas pessoas. Dessa forma, a história oral penetra em áreas que de outro modo seriam
inacessíveis, ajudando a transformar os ditos “objetos de estudo” em sujeitos, isso porque ela possibilita a abertura da história
para outras vozes, já que as testemunhas podem ser convocadas também entre as classes subalternas, caracterizando, assim, o
caráter “mais democrático”, que lhe atribui P. Thompson. Trabalhar na perspectiva da história oral significa abertura para
ouvir a voz, o relato as experiências das pessoas “comuns” e, nesse sentido, o cotidiano é um rico palco para nossa análise,
por permitir a apreensão do ser através da experiência vivida. O livro de Ecléa Bosi, ao falar de “lembranças de velhos” nos
acompanha neste projeto. Através de suas reflexões nos aproximamos de seus entrevistados, seus velhos dos quais colheu
suas memórias. Como enfatiza essa autora, não podemos perder de vista a dimensão social da memória. Esta não deve ser
encarada enquanto uma atividade meramente individual, ainda que a memória venha à tona a partir de um indivíduo. A
construção social da memória é um fenômeno que nos acompanha. Ela nos fala da sociedade, dos grupos, daqueles que
fizeram parte de nossas vidas e que ainda hoje lhes dão significado: “um mundo social que possui uma riqueza e uma
diversidade que não conhecemos, pode chegar-nos pela memória dos velhos”, é o que nos diz Bosi, à página 40 de seu livro.
Nossa preocupação foi e está sendo registrar a voz dessas mulheres e a partir disso, “a vida e o pensamento de seres que já
trabalharam por seus contemporâneos e por nós”. Trata-se de uma memória pessoal que também é “social, familiar e grupal”.
Através de suas falas, resgata-se o registro de um tempo, uma cidade, de desejos e esperanças (BOSI, 1987).
É através do relato da experiência vivida por essas mulheres que temos acesso a uma memória que muitas vezes a
história escrita não dá conta de transmitir. O resgate histórico da saída dessas mulheres que ousaram e lutaram e que
possibilitou a formação de nossa profissão torna-se ainda mais apurado quando levamos em consideração toda emoção,
detalhes pessoais e até mesmo confidências que mudam o rumo da compreensão e valores que se tinha até então.
Assim, o relato dessas mulheres nos faz refletir sobre a necessidade de se avaliar a dimensão do processo de
alteridade que viveram e que não pode ser medido simplesmente através de uma história escrita; esses relatos tem variáveis
que devem ser levados em consideração na reconstrução da história de saída dessas mulheres.

A criação da escola foi uma iniciativa da Primeira-Dama do Estado D. Alzira Vargas que criou inúmeras comissões
para atender as várias demandas emergentes no período. Entre estas, estava a criação da Escola de Serviço Social de Niterói.
“Alzirinha” (como era conhecida) parece ser uma pessoa bem próxima (afinal, o poder morava ao lado; bastava atravessar a
baía) e ela mesma recorda com orgulho (em entrevista que possuímos no Núcleo) que foi paraninfa de uma turma de Serviço
Social.
Como já foi falado, a LBA foi criada por causa da guerra. D. Darcy Vargas (mãe de Alzirinha) inicia uma grande
mobilização. D. Darcy também tinha uma presença atuante, ainda que não tanto quanto a filha (Costa, 1995). O principal
objetivo da LBA seria ajudar as famílias não dos pracinhas que foram para guerra e ganhavam em dólares, mas daqueles
foram convocados para guarnecer as fronteiras. E foi nessa época, afirma D. Alzira, “que eu tive a brilhante idéia (rs) de criar
a Escola de Serviço Social”. Podemos nos perguntar: e por quê? Ela mesma nos responde que era altamente importante para
o trabalho. E essa mulher não esquece o modo como as mulheres pioneiras, todas trabalhavam como voluntárias, “subindo e
descendo morros”, tendo como única ajuda o uniforme, “mais nada”. Provavelmente foi dessas experiências, desse dia-a-dia
que nasceu a seguinte reflexão: “aí eu comecei a verificar por elas que com um pouco mais de informação, de instrução, a
assistente social podia resolver sozinha sem apelar para mais ninguém”. Ou seja, era necessário profissionalizar – era
urgente, criar uma profissão e profissionais para trabalhar nela. A LBA assumiu parte dos encargos (como a realização de
obras) para a manutenção da escola, o pessoal era pago pelo Estado.
D. Inayá Moraes (hoje já falecida), uma de nossas entrevistadas, nos fala sobre a contribuição e o “valor” de
Alzirinha: “naquela altura ela já sabia que havia alguma coisa capaz de nos orientar e foi o que ela fez. Eu tenho a impressão
que a escola nasceu tão bem, foi tão bem gerida, ela não teve dificuldade para ser aceita e respeitada”. A escola surge, assim
contando com “o carinho de todo o mundo”.
Trata-se de uma escola criada por mulheres e que foi gerenciada, em grande parte, por mãos femininas. Mulheres
de Niterói, mulheres do interior do Estado que saíam de seus cotidianos e adentravam o mundo público na tentativa, nas
palavras de D. Violeta Campofiorito (uma de suas primeiras alunas e diretora da escola), de “dar uma melhor formação
técnica às Visitadoras Sociais” que já atuavam “com dedicação e certa eficiência”. Nessas saídas, modificaram as suas vidas
e deram uma nova feição à cidade.

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As primeiras professoras da Escola de Serviço Social foram de São Paulo e foram trazidas por intermédio do Luís
Carlos Mancini (secretário de Alzira Vargas). A primeira diretora da escola foi D. Yolanda Maciel, indicada pelo Centro de
Estudos Sociais de São Paulo. A equipe que organizou a Escola de Serviço Social de Niterói era composta ainda pelas
supervisoras Petra Maria Calazans e Heloisa Marcondes Faria. A primeira turma formou professoras e supervisoras de
Serviço Social que contribuíram para a construção e organização do aparato de proteção social no município.
Entre estas, podemos destacar Nilda de Oliveira Ney, Nair de Souza Motta, Arlete Braga, Maria Bittencourt e
Altair de Azevedo. O nome do professor Jamil El Jaick também é lembrado com carinho por todas. Era ele que, caminhava
pela praia com D. Violeta quando tiveram a idéia de falar com o antigo dono do Cassino Icaraí – para que aquele prédio
pudesse ser sede da reitoria de nossa universidade.

O antigo prédio da Rua Tiradentes logo se tornou um espaço aberto onde professores e alunos da escola e de outros
cursos se encontravam em festas, festivais e reuniões. Assim, a vida cultural da cidade de Niterói e o dia-a-dia da Escola de
Serviço Social se entrelaçaram.
Lá, no porão daquela primeira casa (um porão com muitas utilidades, vocês irão ver) foi feito o escritório central
para treinar as alunas. O porão foi um espaço de aprendizado profissional, “aprendia-se ali” com os casos sociais enviados
pela LBA. A cidade, nesse momento, vê aos poucos suas ruas, seus espaços sociais se transformando.
Em 1949 se formam as duas primeiras turmas da ESS (apenas seis meses separam uma da outra). Essas duas turmas
formaram a base do curso e assumiram a coordenação da ESS depois que a equipe de São Paulo retornou.
Em 1951, D. Yolanda Maciel se afasta da escola. Interinamente (no curto período de nove de setembro à três de
novembro) assume D. Altair Azevedo. Em três de novembro deste mesmo ano sai a nomeação de D. Violeta Campofiorito de
Saldanha da Gama (primeiro como interina e depois como efetiva). Depois de D. Violeta, assume a direção da ESS D. Nilda
de Oliveira Ney.
É importante entender a conjuntura de então. A bibliografia era pouca. As idéias circulavam com relativa
dificuldade e havia poucos estudos sobre nossa realidade. Não havia uma regulamentação para o exercício profissional nem
mecanismos associativos. Tudo, na verdade, estava por se fazer.
E elas não demoraram em colocar as mãos na obra. Violeta relembra o modo como a escola abria-se para a
comunidade “passando a ser um centro de convivência, onde estudantes de outras faculdades se reuniam e os principais
movimentos particulares ou do governo, nacionais ou internacionais, eram discutidos em seminários e encontros
comunitários” no interior da ESSN.
Todas, então, faziam traduções destes materiais adquiridos nas viagens e utilizavam como bibliografia das
disciplinas, e partindo destes conhecimentos, começaram a desenvolver produções acadêmicas próprias. A partir daí,
surgiram convites para dar cursos e palestras em vários estados brasileiros e outros países, e as professoras da ESSN – em
conjunto com outras pioneiras das outras escolas – tornaram-se referência em vários aspectos para a categoria dentro e fora
do país, formando uma rede para além de nossas fronteiras.
Lembremos que, neste momento, havia muitos congressos nacionais, internacionais e latino-americanos da
profissão e da categoria. Em 1947 ocorreu o primeiro Congresso Brasileiro de Serviço Social, importante passo para o
intercâmbio de representantes das principais entidades particulares e governamentais. Este foi uma preparação para a
realização do 2º Congresso Pan-Americano de Serviço Social, realizado no Brasil em 1949.
Continuando a narrar as práticas destas mulheres, podemos citar o papel desempenhado por elas nas associações de
classe. Violeta foi Secretária e Vice-presidente do Setor Leste da Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social
(ABESS). Já Nilda foi presidente em uma gestão e vice-presidente em outra gestão da Associação Brasileira de Assistentes
Sociais (ABAS). Arlete foi da diretoria do Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) – hoje, Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS), – o principal órgão da categoria profissional. Inayá foi presidente do Conselho Regional de
Assistentes Sociais (CRAS) – hoje CRESS – e da Associação Profissional de Assistentes Sociais, que se uniu ao CFESS.
A ABESS e a ABAS são duas entidades fundamentais, respectivamente, para regulamentação do ensino e
regulamentação da profissão. A ABESS tinha como objetivo promover um intercâmbio entre as escolas afiliadas e solicitar a
adesão a um padrão mínimo de ensino. A ABAS tem por finalidade a defesa dos interesses da categoria profissional e sua
Seção Regional de São Paulo é responsável pelo estabelecimento do primeiro Código de Ética Profissional dos Assistentes
Sociais em 1947.
Pela atuação nas diversas instâncias da organização profissional, nossas pioneiras se engajaram na luta pela
regulamentação da Escola como de nível superior e pela desvinculação com a LBA, pois deste modo ganharia uma maior
personalidade jurídica. Este movimento necessitava que as pessoas que o encabeçavam tivessem contatos na Câmara e em
outras agências estatais, demonstrando o quanto esta inserção no mundo público deveria permear a vida destas mulheres.
De uma metodologia mais globalizada, onde não havia divisão por especialidades, por influência norte-americana o
Serviço Social na Escola, após a regulamentação do ensino que ocorreu em 1955 passou a ser classificado em cátedras de
Caso, Grupo e Comunidade e os professores nomeados catedráticos. Tal nomeação exigiu um aperfeiçoamento ainda maior
dos profissionais e por estes estudos mais profundos surgiam vários convites de outras instituições para apresentar seus
trabalhos e lecionar em cursos especiais. Outro desafio era criar cursos de aperfeiçoamento após a graduação, como
mestrados e doutorados em nosso país, nossas pioneiras, iam buscá-los em outros países. Nilda, por exemplo, fez mestrado
nos Estados Unidos. Violeta fez curso de especialização na França sobre Educação do Menor – Pediatria Social.

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Mas, voltemos nossa atenção para o momento do surgimento. Para a criação de uma escola é fundamental pensar
nos estágios, no material didático (muito material foi traduzido), na criação de uma metodologia. Não se tem como
aprofundar muito nessa discussão neste momento; o que importa registrar é que o curso/a escola – na verdade, o Serviço
Social enquanto profissão – foi aos poucos construindo uma metodologia própria e as primeiras cátedras foram criadas (como
o Serviço Social de Caso, Grupo e Comunidade). A história da Escola de Serviço Social da UFF se junta a história da
profissão e ao modo como esta foi se regulamentando.
Gostaríamos de lembrar que a Escola de Serviço Social ficou sobre o ofício do Estado até 1955. De 1949 a 1955 ela
é uma Escola sem nível definido. Em 03 de abril de 1956, pelo Decreto Federal n. 38.968 a escola foi reconhecida como
instituição de nível superior e o curso passou de três para quatro anos. Mais lutas e a Lei Federal 3.848 (de 12 de dezembro
de 1960) cria a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ, hoje UFF). As lutas passaram, então, a ser pela
federalização da ESS – que em 13 de setembro de 1961 (Decreto 3.958) foi incorporada a universidade (junto com
engenharia, filosofia, enfermagem e ciências econômicas).

Depois da casa na Rua Tiradentes, a escola mudou para a Reitoria durante um curto período de tempo. Da reitoria,
ocupamos ainda uma casa na Praça do Rink e de lá viemos para o atual prédio. Em 15 de maio de 1959 foi criado o Diretório
Acadêmico Maria Kiehl (assistente social formada em São Paulo e que atuou no planejamento e organização da escola).
O que, vale destacar, nos chama atenção quando ouvimos os relatos dessas mulheres, é o fato como se articularam
para um intercambio; seja nacionalmente, conhecendo escolas por todo o Brasil, fazendo cursos, indo as Convenções da
ABESS (na época Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social); seja internacionalmente, trocando experiências com
países da América Latina, mas também com os Estados Unidos (segunda grande influencia no Serviço Social do Brasil) ou a
França:
Eu entreguei o meu (trabalho de conclusão de curso) e ganhei um prêmio: foi a minha primeira bolsa de estudo. Recebi
como compromisso ir ao Chile, Argentina e ao Uruguai para conhecer as Escolas de Serviço Social de lá e para
pesquisar, desvendar o que se fazia de Serviço Social nesses três países porque eram mais ou menos contemporâneos
da nossa Escola de Serviço Social (...). Eu fui e passei três meses nesses três países e conheci as Escolas, conheci os
campos de estágio, Serviço Social Penitenciário que não existia, não se falava aqui em Niterói. Serviço Social e
Empresas dentro das fábricas, isso não se falava em Niterói (D. Arlete Braga).

Então a formação americana, era muito interessante. Quando eu fui para os Estados Unidos, eu fiquei um mês na
American University, em Washington para desenvolver o meu inglês e melhorar a pronúncia e também aprender, ouvir
conferências sobre a Política de Bem-Estar Social nos Estados Unidos. Eu lembro que quando eu vim de lá, eu vim tão
entusiasmada com as coisas que eu aprendi, que um dia as alunas fizeram, na Escola tinha um piano, elas fizeram uns
versinhos para mim e diziam: Dona Nilda toma “tenência”. Eu não esqueço disso, sabe? Para eu tomar tenência porque
estava no Brasil, porque eu estava entusiasmada, eu tive ótimos professores (D. Nilda Ney).

Além da vida acadêmica em seu sentido mais restrito, havia a preocupação com a ampliação dos horizontes dos
alunos e alunas da escola. Essas preocupações foi que fizeram o curso contratar aulas de português optativas, bem como de
piano e canto. Mas essas professoras estavam presentes também nas discussões sobre o alojamento e alimentação dos
estudantes. A sensibilidade fez com que promovessem propusessem cursos, instituições, projetos altamente significativos.
Não cabe aqui nesse escrito, mas as articulações com outras mulheres, como Emília Ferreiro da Nutrição (também por nós
entrevistadas) ampliava e muito as redes tecidas por essas mulheres.
Em todas essas instituições essas mulheres estiveram presentes. Com relação às instituições, no décimo aniversário
da Escola, foram criadas instituições que pudessem ampliar o aparato social no município. Podemos citar o Conselho de
Obras e Serviços de Assistência ao Menor (COSAM), entidade que estudava, pesquisava e debatia os problemas que
afetavam o “menor” (somos obrigadas, para ser fiel as denominações de então a manter essa terminologia). Violeta foi
presidente e uma das fundadoras, depois Inayá a substituiu na presidência desta obra.
A Cruzada de Recuperação e Assistência ao Cego Fluminense (CRACEF) e a Fundação de Assistência,
Recuperação e Integração Social (FARIS), também foram criadas nesta época de comemoração do primeiro decênio da
Escola. Ambas as instituições tiveram presente na sua coordenação a professora Violeta Campofiorito. D. Nilda tem
importante participação na construção do Serviço Social na área médica, especialmente em dispensários para tuberculoses e
também em vários cursos no interior do Brasil – até mesmo um curso de Serviço Social para homens. Essas mulheres
estiveram presentes, mais tarde, na interiorização com a criação da Escola de Serviço Social de Campos dos Goytacazes
(município do Estado do Rio de Janeiro).
As publicações começaram a surgir: revistas, livros, traduções; enfim, uma bibliografia própria. Assim, foi possível
melhorar a formação dos alunos e um dos veículos que contribuiu para essa melhoria foi justamente a ABESS (Associação
Brasileira de Escolas de Serviço Social) e a ALAESS8 (Associação Latino-Americana de Escolas de Serviço Social).

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Seria interessante repensar hoje essa realidade. Nossa inserção na cidade não é mais a mesma; nossa dimensão e articulação nacional e internacional
declinaram. O Serviço Social Latino-Americano nos é hoje, com raras exceções, um desconhecido. Precisamos reaver esses contatos!

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Enfim, passemos a conhecer algumas dessas nossas entrevistadas9

D. Violeta Campofiorito de Saldanha da Gama


A escola abriu-se para a comunidade passando a ser um centro de convivência, onde estudantes de outras
faculdades se reuniam e os principais movimentos particulares ou do governo, nacionais ou internacionais, eram discutidos
em seminários e encontros comunitários no recinto da Escola de Serviço Social.

Uma imagem inesquecível: D. Violeta, em sua casa, tocando piano para um grupo de professoras e alunas que ali
foram para conhecer um pouco de suas memórias. E que memória! E essa exaltação tem um duplo sentido: que memória ela
tem considerando os anos que já viveu e que memória ela tem considerando o conteúdo de suas lembranças... são muitas
histórias, impossível de revive-las aqui. Nossa intenção, nesse momento, é, na verdade, tentar apresentar um pouco dessas
mulheres e chamar as novas gerações, novos pesquisadores para buscar conhecê-las.
Violeta não nasceu em Niterói. É de Belém do Pará de nascimento, mas é niteroiense, acreditamos, que por opção.
Como as mulheres aqui entrevistadas, também foi professora (pré-escolar, primário e secundário). Foi da terceira turma da
ESS. Ao se formar, com o afastamento de D.Iolanda Maciel, foi designada diretora da escola. Foi diretora de 1951 até 1964.
Ficou na escola, como professora até 1977 – foram trinta e quatro anos na ESS. Importante registrar o modo como a Escola
de Serviço Social estava envolvida com a vida da sociedade de uma forma ampla. A frase que destacamos no início dessa
sessão dá uma idéia do envolvimento dessas mulheres e da escola nas coisas da nossa cidade e de nossa profissão. Este
envolvimento existia de um lado, pela participação das professoras na vida da cidade e por outro, pela rede de campos de
estágio que foram tecendo.
Violeta foi professora de Serviço Social do Menor e Serviço Social de Comunidade. Elaborou apostilas para essas
disciplinas que foram utilizadas em outras escolas. Foi dela (em colaboração com a professora Mercedes Trindade) a
elaboração do “Catálogo de Equipamentos Sociais de Niterói”, em 1985. A necessidade de elaboração desse tipo de catálogo
é algo que nos acompanha profissionalmente10.
O espaço é pouco e queríamos registrar apenas a vontade, o desejo existente nessas mulheres. Ouvindo-as, vemos
como suas saídas transformaram a cidade e a vida das pessoas nesta cidade. O aparato de proteção social do município foi
sendo, lentamente, construído. A presença de D. Violeta pode ser vista na compra do prédio para a reitoria, mas também nas
negociações para o funcionamento do HUAP, na aquisição (junto com a assistente social Maria Cândida Domingues e a
nutricionista Emília Ferreiro – uma das fundadoras da Faculdade de Nutrição) das dependências do antigo SAPS do Barreto –
que passou a ser de propriedade da universidade.
Sua presença se sente em várias cidades, como Bom Jesus do Itabapoana, e Campos. Suas viagens também foram
muitas: pelo Brasil e no exterior, fazendo cursos em França, Argentina ou Estados Unidos. Foi aluna e professora em vários
cursos. Foi homenageada em várias cidades. Sua presença é/foi marcante na cidade de Niterói. Mas queríamos enfatizar o
quanto foi importante para a expansão da escola.

D. Inayá Moraes
Eu acho que naquele tempo havia um contexto social muito bom para o serviço social e acho que a coisa já vem do
nascimento da escola. A coisa quando nasce bem, é bem aceita né? Tinha que dar certo né?

Essas são algumas palavras de D. Inayá quando se recorda da fundação da escola. Provavelmente ela tem total
razão quando diz que naquele momento existia um contexto propício. Mas, temos que enfatizar que esse contexto encontrou
com algumas mulheres dispostas a participarem ativamente da construção desse momento. Quando pensamos em D. Inayá
Moraes a primeira coisa que nos vem a mente é um par de olhos que parecem brilhar além do esperado. Apesar da idade era
ainda muito bonita, arrumada, cabelos impecáveis (e adoravelmente roxos – ou seria lilás?) e um sorriso confortador,
aconchegante. Por trás de uma figura que poderia parecer vulnerável, no entanto, percebe-se a força, a vontade, a presença
que deve ter encantado e “preocupado” a sociedade niteroiense. Inayá Moraes é natural de Niterói. Foi casada com o prefeito
Brandão Júnior. D. Inayá se destaca, entre outras coisas, por sua atuação política. Mulher de prefeito participou ativamente da
vida política da cidade – afinal, era sua “obrigação”. Participou da CRACEF e trabalhou na Ilha das Flores, recebendo os
imigrantes estrangeiros – “eu nem lembro mais são tantos imigrantes, tão queridos, tão amados”. Foi presença incansável na
criação do que hoje poderíamos chamar dos Conselhos de Direito (como o COSAM). A semente dessa participação começou
a ser plantada nesse momento. Os “pequenos jornaleiros” são também uma criação sua em parceria com o Jornal do Brasil.
Ouvindo-a vemos no quanto é preciso relativisar o peso (que realmente existe até hoje) da religião no Serviço
Social. Essa mulher não teve dúvidas em nos afirmar que “religião não tem nada a ver com trabalho social. O que tem a ver
com trabalho social é o respeito a pessoa humana e isso não é religião”. Talvez em nossa linguagem, hoje, essa preocupação

9
As entrevistas foram, em sua maior parte filmadas, hoje se encontram em formato de DVD e foram transcritas o que pode possibilitar o acesso a outros
pesquisadores.
10
E que nos remete para a toda discussão desenvolvida hoje em torno das chamadas redes sociais.

8
pudesse ser falada em termos de sujeitos históricos e cidadania. O que importa para o Serviço Social é o sujeito de direitos e
não um ideal abstrato – mas o ser humano.
Além de ser assistente social, ser “mulher do prefeito” (“que tem tudo na mão”; “tá na mão dela”) tornou-se, em
sua vida, uma questão crucial. A responsabilidade pelo social, pelo outro a acompanha em todas as dimensões. Torna-se uma
obrigação, mas eu me permito dizer que também é um prazer... Inayá faleceu no ano passado. Seus últimos dias passou na
cidade de Rio das Ostras – onde até já tem uma sala com seu nome, pois continuou fazendo história. E, para concluir,
deixamos alguns versos. Autoria? Da própria, pois além de tudo, ela é poeta!
Termino assim os meus versos
Pedindo desculpas à alguém
O que eu quis na verdade
Nem de longe alcancei.

Mas não deixou de tentar!

D. Arlete Braga
O grupo, vocês observem, foi uma mania da minha vida.

Falar em D. Arlete Braga é falar do Serviço Social de Grupo. Estar em grupo, organizar grupos foi sempre uma
prática comum nessa católica fervorosa (“eu tenho impressão que no decorrer da conversa vocês vão sentir que a vida de
grupo foi uma semente na minha vida desde a minha infância”). Realmente, não é difícil imaginar porque alguns alunos a
chamavam de “Grupolina”. A necessidade de trabalhar/viver em grupo pode ser percebido desde quando se organizou em
grupo para o pagamento de um quadro de formatura, ou na organização do Grupo Mocidade. Além do grupo, também desde
criança, segundo ela, havia a vocação para ser professora. Quando criança ensinava as bonecas, depois, ensinou filhos de
amigos, em aulas particulares. Atuou profissionalmente como professora e, por fim, chegou ao Serviço Social.
Trabalhando em Rodeio, ouviu falar que o governador do estado convocava professoras do interior para participar
de um curso que estava sendo programado aqui na cidade de Niterói: “nós iríamos fazer o curso e voltaríamos se quiséssemos
se não quiséssemos entraríamos numa nova profissão”. D. Arlete ficou e aceitou o desafio de uma nova profissão, onde
seriam abertos novos campos de trabalho e uma oportunidade para professores que trabalhavam no interior, mas que tivessem
vontade de mudar, era a oportunidade da mudança e de voltar para Niterói.
E ela começou o curso e, disciplinada, terminou seu TCC antes que as outras alunas tivessem iniciado o seu.
Ganhou, então, como prêmio, sua primeira bolsa de estudo. Foi ao Chile, Argentina e ao Uruguai para conhecer as Escolas de
Serviço Social e pesquisar, “desvendar o que se fazia de Serviço Social nesses três países”. (Mercosul?) Depois de sua volta,
defende o TCC e volta a ser professora:
“Quase todas nós tínhamos experiência técnico-administrativa de escola, tínhamos conhecimento de trabalhos sociais
de comunidade porque professora do interior era como, vamos dizer assim, uma sementinha do assistente social”.

Hoje, podemos analisar que as sementes do Serviço Social estavam sendo lançadas nesse momento. O fato é que a
Escola de Serviço Social alcançou repercussão nacional e mesmo internacional, no Serviço Social Latino-Americano – uma
dimensão, uma articulação que o Serviço Social brasileiro como um todo perdeu nesses últimos anos.
D. Arlete Braga trabalhou em inúmeras Escolas de Serviço Social no Brasil, ministrando cursos. Destaca-se em sua
vida as viagens. México, Uruguai, Venezuela (onde perdeu os óculos, lembra? E todos ajudaram a procurar – gerando, assim,
um “movimento internacional de procura aos óculos”).
Teve a experiência, rara ainda hoje, de dar um curso de Serviço Social para homens, em São Paulo e um curso
noturno, hoje bem comum. Na Escola de Enfermagem da UFF, havia uma disciplina de Serviço Social e dessa disciplina, ela
foi fundadora e a lecionou enquanto existiu no currículo.
Foi fundadora da Escola de Serviço Social de Campos – talvez a primeira interiorização da UFF que deu certo (e
uma das poucas). Para essa interiorização, Arlete ressalta o fato de ter feito um movimento comunitário para aceitação da
Escola, e a colaboração que teve das professoras de lá (como Heloísa Monteiro e Conceição Maria Costa Muniz).
Sabemos que lembra com orgulho o fato de ter sido a fundadora da cátedra de Serviço Social de Grupo, no Estado
do Rio e do Brasil. Fez parte da primeira diretoria do Conselho Federal de Assistentes Sociais – antigo CFAS e participou de
duas diretorias do CRAS.
Mas momentos que a “tocam” muito de perto é também recordar quando foi paraninfa pela primeira vez (o título de
seu discurso foi “O Serviço Social na atualidade fluminense”). Gosta de recordar das alunas que, hoje são amigas e
continuam fazendo parte de seu ciclo de amizade. Arlete Braga se aposentou em 1967 e foi fazer o curso de Serviço Social
em Montevidéu. Enfim, a semente foi lançada e germinou:
“A minha vida de trabalho, a minha vida de professora foi uma vida que eu trabalhei, que eu escrevi, que eu participei
foi uma vida plena que eu ganhei tudo que eu ganhei com muita dedicação, muito prazer”.

9
D. Nilda Ney
Eu encontro com assistentes sociais que foram minhas alunas e eu digo: a Escola era muito boa.

D. Violeta ficou na direção da Escola até 1966. Neste ano, em doze de abril sai a nomeação de D. Nilda de Oliveira
Ney, que segundo a própria, era a reencarnação da avó Ana, uma “generala”, uma lutadora. Gosto muito dessas suas palavras:
“eu nunca deixo as lutas no meio do caminho, eu tenho que lutar, porque se eu não lutar, eu vou me sentir infeliz para o resto
da minha vida. Posso perder, mas perco lutando”.
D. Nilda de Oliveira Ney nasceu em Santo Antonio de Pádua. Também foi professora indo trabalhar em Paraíso
Tobias, localidade pertencente a Miracema. Desde esses tempos, “já era líder”. Organizou cursos para as pessoas das
camadas mais pobres, ensinava ginástica, até natação (“tinha um rio, tinha feito uma pedreira assim e eu ia ensinar os alunos
a nadar e minha mãe ficava sentada com um bambu e uma corda, era a salva-vidas”).
Foi em Aperibé, outra localidade, que ouviu pelo rádio a notícia do curso de Serviço Social. Veio para Niterói e
conseguiu vaga no curso. Corajosa, enfrentou os próprios medos e organizou, a pedido de D. Iolanda o Serviço Social no
dispensário de tuberculose. Enfrentou os medos, quando pela primeira vez foi falar em público (coisa que mete medo a
muitas alunas até hoje) e teve que falar sentada (“porque as pernas não me seguram”). Mas apesar disso, “eu não tinha medo
não, minha filha, eu falava de qualquer jeito, nem que seja sentada”.
Buscou estágios, organizou cursos no Brasil. Foi catedrática do Serviço Social de Caso. A escola foi chamada para
iniciar o Serviço Social na Petrobras; “olha a projeção da Escola, porque era a Escola, não era a Nilda não”. Participou da
ABAS (sendo vice-presidente e depois presidente) e da ABESS. Uma marca característica dessas mulheres é a articulação
que possuíam e que se estendia a todos os espaços onde a profissão podia alcançar; por isso dissemos em nosso projeto que
dentro do possível elas realizaram o impossível. A regulamentação da nossa profissão é fruto dessa movimentação.
As viagens também se fazem presentes em sua vida. Argentina, Chile, e também os Estados Unidos (que ganha
projeção na profissão). D. Nilda vai várias vezes a esse país fazer cursos; cursos que modificaram suas visões não apenas
profissionalmente, mas foram verdadeiras “lições de vida” – não se sai impunemente de tantas saídas, tantas viagens: “foi
uma coisa de Deus, sabe? Eu vim de lá completamente diferente”.
Aprendeu, mas me atrevo a dizer que também ensinou. Afinal, não levava desaforo para casa. Uma vez
conversavam sobre a “família americana” e relataram estatísticas sobre o padrão de vida dos países da América Latina:
“Aquilo foi me enchendo, foi me enchendo e eu disse: esses americanos vão ter que me ouvir! Aí eu pedi licença (...)
eu disse a eles que o Brasil estava se desenvolvendo e eu acreditava nos jovens (...) e que um dia o Brasil ia ter um
padrão de vida bom e que ia prolongar a vida, mas por outro lado, pelo o que eu tinha observado nas minhas visitas às
obras sociais, eu preferia morrer cedo no Brasil do que ficar velha nos Estados Unidos, porque a organização familiar
no Brasil não era nuclear, era familiar”.

D. Nilda Ney morreu em 2004. Mas não é com sua morte que queremos encerrar essa texto. É do início de seu
mandado como diretora que surge nossa última lembrança neste escrito – que já se alongou demais. D. Nilda Ney dirigiu a
escola no período da ditadura, período que a Escola de Serviço Social era muito “visitada” pelo DOPS. Em pleno regime
militar, esta mulher assume a direção da escola que, mantendo uma inserção intensa na vida cultural e política do município,
era tida, naquele momento como o “Moscouzinho de Niterói”. O porão, agora, abrigava o Diretório Acadêmico.
A escola chegava a ser cercada pela polícia, consta que um carro do Correio da Manhã ficava na porta esperando
fotografar o momento em que a diretora seria presa. Uma faixa preta enfeitou a fachada da escola como forma de repúdio e
resistência ao Golpe de 64 (contudo, a faixa que ela mais gostava era uma outra que fora posta nos jardins da escola pedindo
que ela ficasse em – raro – momento em que chegou a pensar em sair da ESS).
Esses fatos, é importante enfatizar, não aponta para uma D. Nilda “revolucionária”; aponta, isso sim para uma
profissional séria que se sentia responsável pelas suas “meninas”: “elas eram levadíssimas”. No DA do Serviço Social se
reuniam estudantes de vários cursos. Uma personagem contraditória. Protetora? Talvez sim. Jamais entregaria a ficha de um
professor (“porque eu achava um absurdo querer inventar alguma coisa contra professora. Vê se eu ia entregar ficha de
professor e ficha de aluno? Morria, mas não entregava”). Por isso, ela protegia, mas sabia ser ditadora: “eu era ditadora, fazia
a portaria, chapa tinha que passar por mim, jornalzinho, tinha que passar”.

Considerações Finais
Podemos perceber o quanto estas mulheres adentraram diversos espaços na busca pela ampliação do aparato social
da cidade e pela regulamentação do ensino e da profissão em âmbito nacional. Esperamos que com este trabalho
demonstremos o quanto foi complexo este processo e que elas não encontraram tudo pronto, mas tiveram o trabalho de
construir para que nós pudéssemos hoje desfrutar de uma categoria profissional com muitas deficiências, mas devidamente
regulamentada.
Um outro aspecto importante de destacar diz respeito ao entendimento da história do Serviço Social enquanto
elemento fundamental para se pensar a história das mulheres e a micro-história. Ainda acreditamos que o trabalho – enquanto
elemento que faz e refaz os indivíduos – é extremamente central para pensarmos a emancipação das mulheres.

10
A trajetória de construção do Serviço Social na Universidade Federal Fluminense acontece, portanto, a partir de
muitas realizações no campo da assistência, sobretudo na área da educação em Niterói e na LBA. Deve-se considerar também
a importância das contribuições de outras escolas e do empenho dessas pioneiras para que o Serviço Social se tornasse uma
profissão.
A partir desses meios iniciais e das lutas dessas e de outras mulheres para o reconhecimento do ensino, se inicia
uma reforma não só na universidade, mas em todo o campo de trabalho para as mulheres. Todo esse processo traduz a
ousadia e a vitória dessas mulheres que desafiaram o conservadorismo de sua época e transformaram a universidade num
espaço onde a mulher conquista a sua independência a partir de sua profissão. Como afirma D. Nilda, para a “defesa” da
mulher é fundamental a cultura, a instrução e a independência econômica: “no dia em que a mulher tiver independência
econômica, ela é dona de si mesma”.

Como enfatiza Bosi, não podemos perder de vista a dimensão social da memória11. Esta não deve ser encarada
enquanto uma atividade meramente individual, ainda que a memória venha à tona a partir de um indivíduo. A construção
social da memória é um fenômeno central para nossos estudos. Ela nos remete à sociedade, aos grupos, aqueles que fizeram
parte de nossas vidas e que ainda hoje lhes dão significado. Ao priorizarmos a memória de mulheres da universidade
destacamos também as memórias do trabalho, elemento constitutivo de nossas vidas. Narrar, falar contar: essas são
socialmente práticas mais próximas ao universo feminino, sempre pronto a montar, tecer, uma conta de retalhos que nos
aproxima das redes e das relações que “fiaram” em suas vidas.
Michael Pollak (1989) enfatiza o fato de que as histórias de vida podem ser consideradas como um instrumento de
reconstrução da identidade, posto que funcionam ordenando acontecimentos que balizaram uma existência. Assim, Pollak
parece não se importar tanto com o fato de tentarmos ordenar coerentemente o passado, dando-lhe uma ordenação lógica e
cronológica a posteriori; ao contrário, segundo este autor, é através desse trabalho (onde se reconstrói a si mesmo) que o
indivíduo define o seu lugar social e suas relações com os outros. A tentativa das pessoas de “ordenar” a história não é em si
nem boa nem má; é um fenômeno social que temos de enfrentar metodologicamente. Ao trabalharmos com os depoimentos
orais, temos que ter claro que não buscamos a “verdade”. Efetivamente tais relatos estão relacionados ao momento e às
visões do tempo presente, à história de seus depoentes, ao modo como estes se voltam sobre suas lembranças, bem como
sobre a dimensão política do que querem que seja lembrado; mas é nisso que está concentrada sua riqueza. Se for verdade
que os entrevistados buscam desenvolver uma lógica linear e racional (que é dada a posteriori) em seus relatos, é verdade
também que esta é logo “perturbada” pelas suas próprias reflexões, pelos intrincados caminhos da memória. Ao trabalhar
com essas mulheres temos claro que o que mais nos importava não era um relato objetivo e jornalístico do fato, mas
exatamente as coisas que elas lembram e o modo como lembram. E o fato de terem achado quem se dispusesse a ouvi-las.
Os fios de nossos pensamentos, de nossas falas vão se entrelaçando e a colcha de pensamentos resulta colorida,
diversa. Tecer, correr os fios da vida; tecer histórias; coisa de mulher. Nada muito racional, mas prático, amistoso, rico de
entrega e abandono (lembro das "conversas de mulheres", nas varandas, de que nos fala Gilberto Freyre!). Hoje, já não
contamos histórias. Hoje, ouvimos músicas, lemos livros e mostramos fotos (fatos?) e filmes. Isso nos redime da angústia de
ter que falar, de refletir. Contudo, há um pouco de nós em tudo que contamos. Benjamim afirma que existe uma relação
artesanal entre o narrador e a sua matéria, a vida humana. Pois afinal como afirma o poeta: “o pensamento parece coisa à toa,
mas como é que a gente voa, quando começa a pensar”.

Concluindo, a partir de nossa primeira pesquisa vimos surgir novos elos que compõem uma corrente (ou usando um
termo mais atual, uma rede12) envolvendo várias mulheres, fora do Serviço Social e mesmo do mundo acadêmico que
despertaram nosso interesse em dar continuidade a esses estudos13. Vários nomes substituem essas pioneiras. Situamos aqui
um começo. Contudo, homens e mulheres passaram pela direção da Escola de Serviço Social de Niterói. A vida dessas
pessoas construiu essa escola. A memória da ESS pode ser recolhida em várias passagens onde o público e o privado se
entrelaça. A história da escola é parte integrante da vida dessas mulheres e também da cidade de Niterói.
Concluindo, percebe-se a força que essas mulheres tiveram. Percebe-se também o amor que dedicavam/dedicam a
essa escola. Foi uma escola importante em suas vidas. Eu me pergunto se nós seremos capazes de construir uma Escola de
Serviço Social tão boa. O que estamos fazendo para isso?
Não posso deixar de concluir utilizando outra frase de Nilda Ney:
Desde que a mulher foi trabalhar ela ficou independente, porque o que dá independência à mulher não é o casamento, é
a profissão e independência econômica e a cultura.

Como feministas, não podemos deixar de concordar.

11
Cf. Halbwachs,1990.
12
Nos estudos sobre mulheres é interessante atentar para como se não o conceito, ao menos a realidade das redes se faz presente. Exemplo nesse sentido pode
ser visto em Ferreira (1996) ou Freitas (2000).
13
Analisar a participação das mulheres na constituição da universidade federal fluminense é tema de nosso projeto atual.

11
BIBLIOGRAFIA
ALBERTI, Verena. Para onde vai a fita? Dilemas na conservação de fontes orais, História Oral: um espaço plural (org.:
MONTENEGRO, Antonio Torres e FERNANDES, Tânia Maria), Recife: universitária; UFPE, 2001.
BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política, 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1996.
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COSTA, Suely Gomes. Signos em transformação: a dialética de uma cultura profissional, São Paulo: Cortez, 1995.
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FIQUEIREDO, M. B. “Democratização da Educação Superior (1945-1968) – transformações exemplificadas pela trajetória
da Escola de Serviço Social/Niterói da Universidade Federal Fluminense”. Monografia de Final de Curso de Pós-Graduação
em História do Brasil pós-30 (ICHF-UFF), 2007.
FREITAS, Rita de Cássia Santos e BRAGA, Cenira Duarte. Projeto Niterói - Cidade das Mulheres, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2005
FREITAS, Rita de Cássia Santos. “Do Canto da Cigarra ao Trabalho da Formiga – a formação do ‘ethos’ do trabalho no
Rio de Janeiro dos anos 30”. Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Serviço Social/UFRJ, março de 1994.
GÓIS, João Bôsco Hora. “Reprodução da hierarquia entre os gêneros e a preocupação com as condições de vida das mulheres
– a condição feminina no discurso do serviço social (1939-1950), Revista Gênero, vol. 1, n. 2, Niterói: EdUFF, 2001.
GOMES, Leila Maria Alonso. Proteção social no Estado do Rio de Janeiro – 1945-1964: o significado histórico da Escola
de Serviço Social da UFF, Niterói: EdUFF, 1997.
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MARTINS, Ismênia de Lima & KNAUSS, Paulo (org.). “Introdução”, Cidade múltipla: temas de história de Niterói, Niterói:
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Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1999.
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Tribunais, 1989.
RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade: Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo, São Paulo: Ed. UNESP, 2001.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

Questionar a Nova Gestão Pública e o Género: Uma reflexão a partir da


academia portuguesa
Teresa Carvalho
CIPES - Universidade de Aveiro
[email protected]

Rui Santiago
CIPES - Universidade de Aveiro
[email protected]

Resumo: Apesar do aumento substancial da participação profissional das mulheres no ensino superior e na ciência em Portugal, a
reprodução das desigualdades de género na carreira continua a apresentar-se como uma constante histórica. Ultimamente, a intrusão do
mercado e da Nova Gestão Pública (NGP) no ensino superior tem sido objecto de alguma reflexão teórica e empírica sobre o seu potencial
efeito nas estruturas e processos das instituições de ensino superior (IES). No entanto esta reflexão é, ainda, muito escassa no âmbito da
configuração de género da carreira académica. Neste contexto, para além da caracterização empírica da presença actual das mulheres na
carreira académica e da análise dos termos e das condições do emprego académico, o objectivo geral deste estudo comporta, igualmente, a
formulação de um conjunto de hipóteses interpretativas sobre os potenciais efeitos dos pressupostos e práticas de mercado e da NGP na
constituição de género da carreira académica em Portugal. Os dados empíricos utilizados no estudo provêm das listas de docentes, por
instituição, divulgadas pelo Observatório da Ciência e do Ensino Superior (OCES/MCTES) para o ano de 2005. A análise destes dados
permite extrair algumas conclusões pertinentes do estudo: as IES portuguesas reproduzem as mesmas desigualdades de género na carreira
observadas em outros contextos internacionais; a carreira universitária e a carreira politécnica produzem fenómenos semelhantes de
segregação horizontal e vertical; as regras e procedimentos locais de recrutamento e selecção parecem começar a constituir-se como uma
importante componente na análise da presença das mulheres na carreira académica.

Introdução
O aumento da participação profissional das mulheres no ensino superior e na ciência, visível após a segunda metade
do século XX, não se tem traduzido em alterações estruturalmente substanciais na configuração de género da carreira
académica. A sub-representação das mulheres neste campo parece manter uma persistente e estranha tendência para se
reproduzir no tempo e no espaço, como é amplamente demonstrado em vários relatórios internacionais e estudos nacionais

12
(Rees, 2001; Kloot, 2004; Fiona, 2005; Stomquist, Gil-Antón, Balbachevsky, Mabokela, Smolentseva e Colatrella, 2007;
Amâncio, 2005; Harman, 2003; Bagilhole, 2000; Krais, 2002; Sauderson, 2002; Benshop e Brouns, 2003; Coates,
Goedegebuure, Van Der Lee e Mekk, 2008; Postiglione e Tang, 2008; Daizen e Yamamori, 2008; Finkelstein e Cummings,
2008; Locke, 2008). As crenças na ‘teoria pipeline’ – mais participação numérica das mulheres seria sinónimo de mais
oportunidades de igualdade na divisão social do trabalho académico - não encontra eco na realidade (Webster, 2001). As
mulheres continuam a ser travadas no ‘pipeline’ pelo ‘tecto de vidro’ (Rothausen-Vange, Muller e Wrigth, 2005).
Recentemente, vários estudos (Benschop e Brouns, 2003; Knigths e Richards, 2003; Krefting, 2003) introduziram
uma nova dimensão que constitui uma via promissora no aprofundamento da análise da estrutura de género da carreira
académica: o impacto nas desigualdades de género advindo da intrusão crescente, desde os anos 1980, do mercado e da Nova
Gestão Pública (NGP) no sistema e nas instituições de ensino superior. A questão geral que atravessa estes estudos pode ser
formulada da seguinte forma: a pressão para o aumento da produtividade (principalmente científica) dos académicos, a
avaliação da ‘qualidade’ do ensino e da investigação e os incentivos à competição institucional, assim como a vinculação
crescente do ensino superior à economia, surgem como factores susceptíveis de interferir negativamente no desenvolvimento
da carreira das mulheres académicas?
A procura de elementos de resposta para esta questão não constitui, neste estudo, a matriz principal da
caracterização empírica que se procura empreender sobre a presença das mulheres na carreira académica em Portugal. Porém,
a análise dos termos e condições do emprego académico que esta caracterização suscita não pode deixar de se cruzar,
frequentemente, com os novos contextos institucionais que configuram o sistema de ensino superior, fortemente marcados
pelos pressupostos e práticas de mercado e da Nova Gestão Pública. Este cruzamento constitui uma oportunidade para
formular um conjunto de hipóteses interpretativas sobre a persistência actual, no ensino superior português, de um conjunto
de mecanismos de reprodução da desigualdade de género na carreira académica.
Nesta perspectiva, é inicialmente percorrida a literatura sobre as principais incidências das questões de género na
carreira académica, explorando-se, igualmente, a relação destas com a nova gestão pública. Num segundo momento, são
analisados os dados oficiais disponíveis (ano, 2005) sobre o emprego académico no ensino superior português. Procura-se,
com esta análise, a realização de um duplo objectivo: detectar a composição de género da estrutura da carreira das
instituições de ensino superior portuguesas; proceder a um esforço de conceptualização a propósito do potencial efeito da
NGP sobre os termos e condições do emprego académico das mulheres. Finalmente, apresentamos algumas pistas futuras de
investigação, assumindo que as particularidades do caso português - forte participação das mulheres na academia - é
exemplarmente ilustrativa para a compreensão da reprodução, ainda que parcial, das desigualdades de género no ensino
superior.

As mulheres no ensino superior


Nos países ocidentais, durante o século XIX, e grande parte da primeira metade do século XX, as mulheres foram
praticamente excluídas das universidades e da ciência. A partir da segunda metade do século XX este panorama foi-se
alterando com a eliminação de algumas barreiras à integração e participação das mulheres no ES e na ciência. Em parte, esta
alteração decorreu da própria expansão e massificação dos sistemas, após a segunda guerra mundial, tornada possível pela
confluência de vários fenómenos que emergiram, principalmente, no contexto de expansão do estado-providência: as
necessidades do capitalismo industrial de uma mais numerosa e qualificada força de trabalho; o desenvolvimento do
conhecimento científico e tecnológico; o aumento das expectativas e das revindicações sociais sobre a educação; a
democratização do ensino não-superior; a acção, nos anos sessenta do movimento feminista e a luta pela igualdade de género.
Tomando este último fenómeno, é possível constatar que, desde o início dos anos setenta, ao mesmo tempo que ia
emergindo uma forte crítica feminista das desigualdades de género na sociedade e nas organizações, algumas mulheres
académicas documentaram diversas experiências de marginalização e de subordinação a que foram submetidas no interior
das instituições (Acker, 1994; Currie, Harries and Thiele, 2000). Os valores da masculinidade mantinham-se como uma
referência dominante na produção da ciência e no ensino superior (Asmar, 1999; Poole et al, 1997; Ruth, 2005; Rothausen-
Venge et al, 2005), sendo, a este nível, exemplar a dificuldade em institucionalizar, no campo das ciências sociais e na
academia, as áreas de ensino e de investigação sobre as mulheres.
Mais recentemente, um aumento substancial da participação das mulheres no ensino superior tem surgido como um
fenómeno referenciado em todos os sistemas dos países desenvolvidos (Sagaria e Adams, 2005; Webster, 2001; Sauderson,
2002; Smeby e Try, 2005). Contudo, paradoxalmente, uma forte reprodução das desigualdades subsiste como ‘norma’, em
particular na configuração de género das áreas de ensino/investigação e no topo da carreira académica e das estruturas
institucionais de poder. Padrões de diferença, baseados no género, continuam a reproduzir-se na forma como os papéis são
desempenhados no interior das instituições. As insuficiências da metáfora ‘pipeline’ (Webster, 2001) – a presença de um
maior número de mulheres na ciência e no ensino superior acabará por suplantar os obstáculos que se erguem à sua
representatividade no topo da carreira e nos domínios chave de decisão – mantêm, assim, à superfície a necessidade de
continuar a explorar, mais profundamente, a metáfora do ‘tecto de vidro’. As mulheres aumentaram a sua participação no
ensino superior, mas, de facto, a constatação da existência de discriminações e desigualdades de género nas universidades e
nas organizações de ciência e tecnologia (Kloot, 2004; Fiona, 2005; Stomquist, Gil-Antón, Balbachevsky, Mabokela,

13
Smolentseva e Colatrella, 2007; Amâncio, 2005; Harman, 2003; Bagilhole, 2000; Krais, 2002; Benshop e Brouns, 2003)
mostra que o fenómeno do ‘tecto de vidro’ (Rothausen-Venge et al, 2005) continua a ser uma realidade.
As discriminações e as desigualdades de género na estrutura da carreira académica poderão, em grande medida,
estar conectadas com uma menor ‘produtividade’ científica das mulheres (Asmar, 1999; Harley, 2003; Lafferty e Flemimg,
2000; Nakaie, 2002; Ruth, 2005; Smeby e Try, 2005), aferida em consonância com os padrões (masculinos) actualmente
dominantes nas instituições. A interpretação deste fenómeno é multidimensional, desdobrando-se desde dimensões
‘externas’, ligadas às dificuldades das mulheres em conciliar os papéis no domínio privado ou doméstico com os papéis
científicos – o estatuto marital e parental (Kyvik e Teigen, 1996; O’Laughlin e Bischoff, 2005; Rothausen-Vengen et al,
2005), em particular as pausas da maternidade (Harley, 2003), e os cuidados dos filhos (Kyvik e Teigen, 1996) – até
dimensões ‘internas’, que enfatizam as posições estruturais ocupadas pelas mulheres académicas no campo institucional.
Em relação às primeiras, subsistem algumas dúvidas sobre a sua interferência na actividade científica das mulheres.
Alguns estudos sublinham que as variáveis ligadas à família contribuem pouco, ou mesmo nada, para a predição da
produtividade científica das mulheres académicas (Perna, 2005; Sex et al, 2002; Toren, 1993). Todavia, as dúvidas parecem
ser menores quanto à interferência das segundas nesta produtividade. As mulheres académicas são mais envolvidas, e durante
mais tempo, nas actividades de ensino e na manutenção, na ‘periferia’ organizacional, das infra-estruturas pedagógicas e
administrativas (Olsen, Maple e Stage, 1995; Poole et al, 1997; Sax et al, 2002; Dêem, 2003; Morley, 2005) e este
envolvimento pode constituir um obstáculo ao aumento da sua produtividade científica e, consequentemente, à sua
progressão na carreira académica (Conley, 2005; Perna, 2005; Webster, 2001; Toren, 1993).
Em paralelo, a orientação dominante das universidades e/ou das unidades orgânicas para o ensino ou a investigação
(Harley, 2003) e a representação de género nas várias áreas disciplinares (Ciências ‘Exactas’ ou Naturais, Saúde,
Tecnologias, Engenharia, Humanidades, Artes e Ciências Sociais) constituem, ainda, outras dimensões institucionais que,
articuladamente, podem interferir na posição das mulheres académicas no campo institucional. Mais ‘acantonadas’ nas artes,
humanidades e ciências sociais, onde as tradições do trabalho individual são mais fortes (Asmar, 1999), é provável que este
‘acantonamento’ dificulte o acesso das mulheres a redes, a trabalho colaborativo e a financiamentos para a investigação
(Laffertty e Fleming, 2000), o que constitui uma forte desvantagem no avanço na carreira baseado na noção de produtividade
científica contínua (Harley, 2003).
Um novo tópico foi, entretanto, trazido para a discussão das questões de género na academia: a intrusão do mercado
e da Nova Gestão Pública – ou do managerialismo/novo managerialismo (Deem, 1998, 2003; Reed, 2002;) - na condução do
ensino superior (Meek, 2003; Santiago e Carvalho, 2004; Olssen e Peters, 2005) a qual, de acordo com diversos autores
(Amâncio, 2005; Berg, Barry and Chandler, 2004; Clarke e Newman, 1997; Deem, 1998; Carvalho e Santiago, 2008), pode
ser ainda mais desfavorável à participação das mulheres na carreira académica e nas estruturas institucionais de poder. Por
um lado, o percurso profissional das mulheres parece ser mais sensível aos ambientes e práticas institucionais de competição,
eficiência, eficácia, accountability e de avaliação da qualidade (Sagaria e Agans, 2006; Blackmore, 2002). Por outro lado, os
princípios do racionalismo, individualismo e flexibilidade, nos quais, crescentemente, as IES têm apoiado a ‘gestão’ dos
profissionais, também parecem colocar mais dificuldades às mulheres, sobretudo ao nível do recrutamento quando este se
processa pela via informal (Brouns, 2000; Benschop e Brouns, 2003; Rees, 2001; Bagilhole, 2007). Mas, mesmo depois de
um recrutamento com sucesso, as diferenças de género podem persistir nas condições de trabalho e de emprego, sendo
atribuídos às mulheres mais contratos a termo fixo, em comparação com os seus pares homens. A este propósito, Sauderson
(2002) refere-se à existência de uma ‘segregação contratual’ no ensino superior, a adicionar à segregação horizontal e
vertical.
A investigação desenvolvida sobre a intrusão do mercado e da NGP no ensino superior português tem enfatizado as
mudanças nas finalidades e objectivos do sistema e no governo das instituições (Santiago e Cravalho, 2004; Amaral e tal,
2003; Santiago, Magalhães e Carvalho, 2005), na ‘gestão académica’ intermédia (Santiago, Carvalho, Amaral e Meek, 2006)
e nos termos e condições do trabalho académico (Santiago e Cravalho, 2008). Parece-nos importante, agora, também iniciar
uma reflexão mais profunda sobre as possíveis consequências das mudanças ocorridas no sistema de ensino superior sobre a
carreira académica das mulheres. A análise dos dados oficiais existentes sobre a estrutura da carreira académica em Portugal
constitui um suporte pertinente para construir um certo número de hipóteses conceptuais sobre as desigualdades de género no
acesso, nos termos e nas condições actuais do trabalho académico.
As características dos dados empíricos usados neste estudo não permitem retirar conclusões seguras quanto à
influência da NGP no desenvolvimento da carreira das mulheres no ensino superior português (por razões explicitadas mais
adiante). Contudo, as indicações gerais que fornecem sobre a composição de género da estrutura da carreira académica abrem
as portas à inferência para sustentar uma melhor compreensão da persistência das desigualdades. A hipótese de que a NGP
produz implicações de género na selecção, recrutamento, condições de trabalho e emprego académico constitui um percurso
conceptual relevante nesse esforço de inferência.

Metodologia
As análises desenvolvidas na componente empírica deste estudo baseiam-se nos registos oficiais – listas de
professores por instituição - do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/Gabinete de Planeamento, Estratégia,
Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI). A informação qualitativa contida nestas listas foi codificada de acordo com

14
variáveis de género, subsistema, qualificação académica, posição dos professores na estrutura hierárquica da carreira e
regime de contratação, sendo os resultados desta codificação transferidos para a base de dados SPSS. Apenas foram
analisados os dados referentes aos académicos vinculados às instituições de ensino superior públicas (com exclusão das
academias militares) no ano de 2005.
A estrutura binária do ensino superior português projecta-se na carreira académica em dois percursos diferenciados
– universitário (Dec. Lei 448/79) e politécnico (Dec. Lei 185/81) - estruturados segundo uma hierarquia alongada –
Assistente Estagiário, Assistente, Professor Auxiliar, Professor Associado (incluindo a Agregação) e Professor Catedrático,
no caso das universidades; Assistente do 1º e 2º Triénios, Professor Adjunto, Professor Coordenador e Professor Coordenador
com Agregação, no caso dos politécnicos.
Para além do recrutamento por concurso público, os profissionais podem, igualmente, ser contratados a termo fixo
para posições correspondentes às formalmente previstas nos respectivos estatutos da carreira. A renovação dos contratos
destes professores ‘convidados’ (universidade) ou professores ‘equiparados’ (politécnico) pode ser decidida anualmente ou
por períodos de três (politécnico e universidades) ou cinco anos (universidades), após parecer dos respectivos conselhos
científicos das instituições ou das suas unidades (faculdades, escolas e/ou departamentos).
Para os propósitos do nosso estudo, categorizamos este último conjunto de posições com a expressão ‘estrutura de
carreira paralela/escondida’, na qual, em muitos casos, os académicos podem ser mantidos durante largos períodos de tempo
até à sua integração, ou não, no que designamos por ‘estrutura de carreira formal/oficial’. As restrições ao financiamento do
ensino superior e, sob a influência do mercado e da NGP, as alterações políticas e institucionais nas concepções tradicionais
de carreira – contrato individuais, flexibilidade e relativização da noção de nomeação definitiva – têm dado origem a que as
posições ‘informais’ se venham a confirmar, crescentemente, como a modalidade preferencial de recrutamento em várias
instituições de ensino superior. Como os profissionais não são imediatamente contratados no ‘trilho’ da nomeação definitiva,
os processos de recrutamento não se baseiam no quadro formal tradicional do concurso público nacional, mas antes em regras
e procedimentos definidas localmente.
A amostra usada neste estudo representa um conjunto de dados recolhidos no final do ano de 2005 e, nesta
perspectiva, constitui apenas um suporte para analisar um conjunto importante de condições institucionais que, nesse período,
envolviam o desenvolvimento da carreira académica. Tendo em atenção o facto de que os dados oficiais disponíveis têm sido
recolhidos e registados de forma diferente ao longo de vários períodos, tornou-se impossível compará-los desde a sua
publicação inicial em 1993.

A estrutura de género da carreira no ensino superior português


Em 2005, em Portugal, o número total de professores do ensino superior público ascendia a 24280, dos quais 14063
(58%) eram homens e 10217 mulheres (42%). Este número traduz uma posição peculiar de Portugal no contexto dos países
europeus (Rees, 2001), marcada, nos últimos anos, por uma ligeira tendência para o aumento da participação das mulheres no
ensino superior (Figura 1). De facto, embora de forma lenta, a percentagem de mulheres na carreira académica tem
aumentado de 40,8%, em 2000, para 41,4%, 41,6% e 43,1%, respectivamente em 2001, 2003 e 2005. Como argumentam
Amâncio e Ávila (1995), Portugal parece constituir um caso único no contexto da EU, atendendo a que, nos últimos 20 anos,
o desenvolvimento da comunidade científica portuguesa foi conseguido, parcialmente, através da contribuição das mulheres.
Todavia, o aumento da participação das mulheres na carreira académica não é paralela à tendência para a
feminização no acesso ao ensino superior. É importante não perder de vista que existem diferenças de participação das
mulheres estudantes entre os níveis de licenciatura e pós-graduados (doutoramento). Apesar do aumento da participação das
mulheres estudantes nos dois níveis de formação, este aumento é mais baixo na pós-graduação quando comparado com a
licenciatura. Em 1993, o rácio entre homens e mulheres que obtiveram o doutoramento era de 2.0 e, em 2002, de 1.2,
mantendo nos últimos 10 anos uma média de 1.4 (OCES, 2005).
Mas este aumento geral da participação das mulheres estudantes, neste período, não produziu um impacto similar
na composição de género da carreira académica nas universidades e nos politécnicos. Na verdade, este fenómeno não é
homogéneo no conjunto do sistema, persistindo diferenças relevantes entre cada um dos subsistemas.

15
Quadro 1: Evolução das diferenças de género no ensino superior

70.0
59.2 58.6 58.4 57.9
60.0

50.0
41.4 41.6 43.1
40.8
40.0
% Homens
Mulheres
30.0

20.0

10.0

0.0
2000/01 2001/02 2002/03 2004/05
Ano Académico

Fonte: Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/OCES 2004

Em 2005, apesar da presença de uma maioria de homens no corpo académico dos dois subsistemas, a participação
das mulheres na carreira do politécnico era mais elevada (N=4,713; 46.6%) do que nas universidades (N=5,504; 38.9%). Esta
diferença substancial pode, eventualmente, ser interpretada pelas seguintes ordens de razões: a institucionalização mais
recente do politécnico, o que teria facilitado a integração de mais mulheres na carreira como reflexo do aumento do seu
acesso ao ensino superior; o desenvolvimento da formação inicial ‘politécnica’ em áreas tradicionalmente mais femininas
(ciências sociais, educação e enfermagem); a orientação dominante para o ensino das actividades académicas do politécnico
e, simultaneamente, a oferta de condições de emprego académico mais instáveis e inseguras (Santiago e Carvalho, 2008).
No sentido de analisar a potencial existência de diferenças na participação dos homens e mulheres no ensino
superior, torna-se importante, agora, ponderar outras variáveis ligadas às áreas científicas e à posição ocupada na estrutura
hierárquica da carreira académica.
A observação do gráfico 2, revela a existência de um certo desequilíbrio na representação de género nas diferentes
áreas científicas. As principais diferenças verificam-se nas áreas de educação/formação de professores, artes/humanidades e
engenharia. Nas duas primeiras, as mulheres representam a maioria do corpo de professores – 62.9% na educação e 54.1%
nas artes/humanidades. Ao contrário, a engenharia surge como a área onde os homens constituem a maioria do corpo
académico (77%). A concentração das mulheres nas áreas de conhecimento, tradicional e socialmente estigmatizadas como
‘soft’ (Bourdieu, ) parece constituir um fenómeno comum a outros sistemas (Amâncio, 2005; Bagilhole, 2000; Benschop e
Brouns, 2003; Knights e Richards, 2003; Bailyn, 2003; Stromquist et al, 2007).

Gráfico 2: Distribuição dos académicos por áreas e género.

39,6
Serviços 60,4
38,5
Agricultura 61,5
48
Ciências 52
54,1
Artes e Humanidades Mulheres
45,9
48,7 Homens
Saúde 51,3
Engenharia 22,3
77,3
43,7
Ciências Sociais 56,3
Educação 62,9
37,1

0 20 40 60 80 100
Fonte Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/OCES (2004/05)

Tomando agora os dados oficiais disponíveis, publicados entre 2001 e 2005, é possível verificar que apesar do
pequeno aumento da participação das mulheres na carreira académica pública, este aumento não tem impacto visível na
composição de género das áreas científicas (ensino e investigação). A taxa de participação das mulheres mantêm-se quase
semelhante na educação/formação de professores (61.5%, 2000; 62.9%, 2005), aumenta nas ciências sociais (38.4%, 2000;
43,5%, 2005) e nas ciências ‘exactas’ e naturais (44.7%, 2000; 48%, 2005) e decresce em áreas como as artes/humanidades
(61.5%, 2000; 54.1%, 2005). Da mesma forma, no caso da pós-graduação, o número de doutoramentos concluídos ou

16
reconhecidos em Portugal mantém uma configuração de género semelhante: a percentagem de mulheres que obteve o
doutoramento entre 1992 e 2002 - engenharia, 27.5%; ciências, 46.4%; agricultura, 45.5%; saúde, 42.4%; ciências
sociais/humanidades, 45.8% (OCES, 2005) – reproduz, globalmente, o ‘padrão’ de género (Amâncio, 2005) na repartição das
mulheres pelas diferentes áreas científicas das instituições de ensino superior (universidades e politécnicos).
A questão que pode ser colocada face a estes resultados é a de saber se a intrusão recente do mercado e da gestão
privada nas instituições amplia o efeito da segregação horizontal no desenvolvimento da progressão da carreira académica
das mulheres. Na verdade, como vários estudos o demonstram (Davies e Thomas, 2002; Blackmore, 2002; Slaugther e Leslie,
1997) a actividade de investigação nas IES é crescentemente valorizada pela sua capacidade crescente em atrair fundos,
bolsas e estudantes e produzir conhecimento útil para a economia e o mercado. Como as mulheres estão mais concentradas
nas áreas das humanidades e ciências sociais, onde a produção de conhecimento parece estar mais afastada das concepções
dominantes de ciência – empreendedora, comercial e estratégica - esta orientação política pode, eventualmente, ter um
impacto negativo sobre a avaliação da sua produtividade científica e, consequentemente, sobre o seu avanço na carreira
(Asmar, 199; Laffertty e Fleming, 2000; Harley, 2003; Slaugther e Leslie, 1997). Neste contexto, o discurso sobre o mérito e
a qualidade académica, mesmo apresentado como ‘neutro’, baseia-se em conceitos de competência e sucesso que são
construídos “… em torno das experiências de vida dos homens e de uma visão de masculinidade que surge como o requisito
normal e universal da vida da universidade” (Bailyn, 2003, p.143).
Para além da segregação horizontal, é possível detectar, também, um fenómeno de segregação vertical na
representação de género na estrutura hierárquica da carreira, configurando um conjunto de problemas significados pela
metáfora do ‘tecto de vidro’. Quando se considera a posição ocupada pelas mulheres nos diferentes níveis hierárquicos da
estrutura da carreira, a comparação que pode ser estabelecida entre os percursos formais (carreira oficial/formal) e informais
(carreira paralela/escondida) suscita um conjunto de questões sobre o impacto dos processos de recrutamento e selecção no
género.
Observando a posição das mulheres no percurso da carreira universitária ‘formal/oficial’ (Gráfico 3), torna-se
imediatamente visível que os homens constituem a maioria dos representantes em cada um dos seus patamares hierárquicos,
sendo as diferenças bastantes mais pronunciadas no topo. De facto, à entrada e na fase inicial e intermédia da carreira
(assistente estagiário, assistente e professor auxiliar) a participação das mulheres aproxima-se da dos homens (entre 39% e
45%), mas no topo as diferenças aumentam e as mulheres passam a representar apenas 32% e 22% do total do número de,
respectivamente, professores associados e catedráticos.
Provavelmente, esta segregação poderá, em parte, ser interpretada pela menor ‘produtividade’ científica das
mulheres, como tem sido observado em outros sistemas (Asmar, 1999; Harley, 2003; Lafferty e Flemimg, 2000; Nakaie,
2002; Ruth, 2005; Smeby e Try, 2005), crescentemente ligada à ‘cultura da performance’, cuja configuração integra,
predominantemente, valores da masculinidade. Neste contexto, as percepções e os estereótipos dominantes sobre a relação
entre os papéis que as mulheres desempenham no domínio privado – estatuto marital, maternidade e cuidado dos filhos
(Kyvik e Teigen, 1996; O’Laughlin e Bischoff, 2005; Rothausen-Vengen et al, 2005) - e o seu envolvimento na produção
científica podem contribuir para a manutenção institucional desses valores e suportar a reprodução da segregação vertical.

Gráfico 3: Participação dos homens e mulheres na carreira ‘oficial/formal’ nas universidades

80

60

40

20

0
Prof Prof Prof Assi
Assist
Cat Ass Aux Est

Mulhe % 21,7 32 44,1 45,4 38,6


Hom % 78,3 68 55,9 54,6 61,4

Fonte: Fonte Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/OCES (2004/05)

Por outro lado, a ligação da produtividade científica à reprodução da segregação vertical das mulheres pode, ainda,
ser interpretada por outros factores de ordem institucional situados nos domínios pedagógico/administrativo, científico e
político: a concentração das mulheres nas actividades de ensino e nas tarefas de manutenção das infra-estruturas pedagógicas
e administrativas (Olsen, Maple e Stage, 1995; Poole et al, 1997; Sax et al, 2002; Dêem, 2003; Morley, 2005); as próprias
características e estratégias das instituições e/ou das unidades (orientação dominante para a investigação ou para o ensino)

17
(Harley, 2003); a natureza científica e académica (ciências ‘exactas’, ciências sociais ou artes/humanidades) e os processos
de produção de conhecimento (ciência básica ou aplicada) dominantes nas áreas às quais as mulheres estão mais vinculadas
(Asmar, 1999; Laffertty e Fleming, 2000; Harley, 2003); a maior dificuldade das mulheres, em comparação com os seus
pares homens, em aceder a recursos, redes e colaborações (Conley, 2005; Perna, 2005; Kyvik e Teiger, 1996; Webster, 2001)
no desenvolvimento da investigação.
A tendência para a segregação vertical é ainda mais pronunciada na carreira ‘paralela/escondida’, onde parece ser
mais evidente a manifestação da desigualdade de género: as mulheres constituem 40.4% dos assistentes convidados, mas,
respectivamente, apenas 25.4 % e 20.7% dos professores auxiliares e convidados (Gráfico 4). Porém, torna-se também
importante sublinhar que os homens constituem a maioria nos níveis de entrada na carreira ‘paralela/escondida’ (60% dos
assistentes convidados e 75% dos professores auxiliares convidados), o que, eventualmente, pode assumir um duplo
significado: por um lado, os homens confrontam-se com condições mais precárias de trabalho, mas, por outro lado, as
mulheres têm mais dificuldades em entrar na carreira académica por esta via mais informal.

Gráfico 4: Participação dos homens e mulheres na carreira ‘paralela/escondida’

100

80

60

40

20

0
Prof. Cat Prof Ass Prof Aux Ass Conv
Conv Conv Conv

Mulhe % 5,7 20,7 25,4 40,4


Hom % 94,3 79,3 74,6 59,6

Fonte: Fonte Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/OCES (2004/05)

Como se sublinhou anteriormente, os padrões de emprego na carreira académica do subsistema politécnico


apresentam um carácter mais complexo. A estrutura da carreira é menos hierarquicamente alongada, mas as situações de
precariedade são mais numerosas. Tal é devido, provavelmente, à existência de mais dificuldades na possível transição dos
académicos entre o percurso informal e formal, que conduz à nomeação definitiva, e na obtenção de uma posição de topo
nesta última posição.
Por outro lado, a produtividade científica assume menos peso na progressão da carreira dos académicos integrados
neste subsistema, em comparação com as universidades. Os politécnicos são instituições centradas, predominantemente, no
ensino vocacional e profissionalizante, onde a actividade de investigação tem sido substancialmente inferior à desenvolvida
nas universidades (Amaral e tal, 2002).
Todavia, os resultados inscritos no gráfico 5, mostram a existência do mesmo padrão de segregação vertical
observado no caso das universidades, mesmo que nos patamares iniciais da carreira a representação dos homens e mulheres
seja similar: as mulheres constituem 50% dos assistentes e 50% dos professores adjuntos. Neste sentido, parece que no
subsistema politécnico, aliás tal como na universidade, se observa o que Beate Krais (2002) sugere ao analisar o caso alemão:
o desaparecimento das mulheres no seu percurso ao longo da estrutura hierárquica da carreira, conduzindo-as à ‘mortalidade
académica’. O caso dos politécnicos mostra que esta ‘mortalidade académica’ não depende, apenas, da produtividade
científica, mas, provavelmente, também de outros factores institucionais ligados à hegemonia do ‘habitus’ académico
(Bourdieu, ) estruturado na cultura masculina.

18
Gráfico 5: Participação dos homens e mulheres na carreira ‘formal/oficial’ do politécnico

80

70

60

50

40

30

20

10

0
Prof. Coord Prof. Coord. Assist (1º 2º
Prof. Adjunt
‘agregação’ Triénio
Mulhe % 24 46,2 49,7 50
Hom % 76 53,8 50,3 50

Fonte: Fonte Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/OCES (2004/05)

A paridade entre homens e mulheres no patamar inicial da carreira académica deste subsistema, deve-se, em grande
parte, à presença das escolas de enfermagem e de educação nas suas instituições. Em particular, as Escolas Superiores de
Educação, durante um largo período de tempo, tiveram a oportunidade de desenvolver a área educacional e de formação de
professores nos politécnicos e, frequentemente, em conjunto com as Escolas Superiores Agrárias, constituíram o seu núcleo
institucional mais forte. Este facto justifica o recrutamento de mais mulheres académicas pelos politécnicos, muitas vindas do
ensino não superior e/ou das áreas das humanidades e das ciências sociais. Mas a escassa presença das mulheres no topo da
carreira politécnica, como professores coordenadores com agregação, mostra que elas não experienciaram o mesmo tipo de
progressão na carreira que os seus colegas homens (Gráfico 5).
Além disso, os resultados inscritos no gráfico 6 mostram que, com a excepção dos professores especialmente
contratados, as mulheres continuam a ter uma participação mais baixa em todos os níveis da carreira ‘paralela/escondida’.
Estes resultados confirmam, como se viu antes, outros estudos empíricos, de acordo com os quais, para além da
produtividade científica, persistem, nas instituições, outros mecanismos que excluem as mulheres do avanço na estrutura
hierárquica da carreira académica (Bagillole, 2000; Rees, 2001; Krais, 2002). Mas, acima de tudo, estes resultados revelam,
também, a possibilidade dos processos de recrutamento e selecção não serem neutros, mas antes marcados pelo seu carácter
de género. A ausência desta neutralidade pode, eventualmente, estar ligada ao jogo da ‘old boys network’ (Benschop e
Brouns, 2003). Neste jogo, os homens, situados no topo da carreira e nos lugares estratégicos da decisão (Bagillole, 2007;
Ruth, 2005), agem como ‘gatekeepers’ na contratação e promoção, ‘agenciando’, assim, a cultura masculina da organização
(Sagaria e Agans, 2006) e a reprodução do sistema patriarcal das instituições.

Gráfico 6: Participação dos homens e mulheres na carreira ‘paralela/escondida’ do politécnico

80
70
60
50
40
30
20
10
0
Equip. Equip. Equip. Especiall
Outros
Coord Adjunt Assist Contrat
Mulhe % 30,1 34,6 44,7 59 28
Hom % 69,9 65,4 55,3 41 72

Fonte: Fonte Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/OCES (2004/05)

19
Em suma, embora de forma mais evidente nos politécnicos do que nas universidades, os indícios que os resultados
deste estudo fornecem são de que a flexibilidade contratual, a instabilidade e a insegurança aumentaram na carreira
académica nas instituições de ensino superior portuguesas. Este novo ‘ambiente’ institucional, envolvendo os termos e as
condições do trabalho académico, é susceptível de agravar a insegurança institucional das mulheres e contribuir para a sua
concentração nos níveis mais baixos da carreira e nas actividades desenvolvidas na ‘periferia’ das instituições, ligadas ao
trabalho ‘invisível’, ‘pastoral’ e emocional de ensino e de manutenção das suas infra-estruturas (Laffertty e Fleming, 2000;
Ruth, 2005). Deste modo, as mulheres podem confrontar-se com mais dificuldades em lidar com os processos de avaliação
das performances, que, preferencialmente, se centram no que é visível e mais facilmente mensurável, em particular ao nível
da produtividade científica. A estas dificuldades adiciona-se a intensificação do trabalho académico que torna mais complexa
a conciliação dos papéis profissionais com os papéis socialmente dominantes atribuídos às mulheres na família.

Conclusões
Quando comparado com outros países europeus, o ensino superior português tem uma forte presença das mulheres
na academia e no sistema científico. Contudo, a análise dos resultados obtidos com este estudo permite assumir a conclusão
de que esta participação não produziu efeitos substanciais nas lógicas de segregação horizontal e vertical na carreira
académica. É possível, ainda, que esta segregação se acentue no contexto actual de mudança do ensino superior,
caracterizado por uma forte influência do mercado e da NGP.
Este estudo distingue duas formas através das quais é possível observar a persistência das desigualdades de género
na carreira académica no ensino superior português. Uma refere-se ao facto das mulheres académicas estarem concentradas
nas áreas de humanidades e ciências sociais, as quais são menos privilegiadas pelos financiamentos públicos e privados para
a investigação. Os profissionais destas áreas têm, assim, menos oportunidades para desenvolver investigação e menos
possibilidades de responder aos padrões mensuráveis de produtividade científica, actualmente hegemónicos na ciência e no
ensino superior. Desta forma, como as mulheres estão mais concentradas nestas áreas, podem, eventualmente, ter menos
oportunidades para publicar e, assim, avançar na carreira académica.
As actuais mudanças no ensino superior português, que, sob a influência da ideologia do mercado e dos
pressupostos e práticas da NGP, enfatizam, ao nível da investigação, a produção de um tipo de conhecimento utilitário,
conectado com a economia e o tecido empresarial, favorece as áreas científicas em que as mulheres estão menos
representadas, podendo produzir um impacto negativo na sua participação e progressão no ensino superior.
A outra forma de persistência das desigualdades de género pode estar ligada aos procedimentos do recrutamento e
de selecção dos académicos. Os resultados deste estudo fazem antever, ainda, que as desigualdades de género foram sendo
objecto de um trabalho ‘histórico’ de reprodução, pelo menos parcial, no quadro dos processos tradicionais de recrutamento,
consignados nos estatutos da carreira docente do ensino superior universitário e politécnico. Mas é legítimo formular a
questão de saber se, sob a influência do mercado e da NGP, que privilegiam processos mais locais, informais e flexíveis de
recrutamento, em detrimento do princípio da homogeneidade legal contido no quadro legislativo nacional, a reprodução das
desigualdades de género não se agrava, através da criação de obstáculos ao acesso e à promoção das mulheres na carreira
académica.
Como se mostrou neste estudo, as políticas igualitárias definidas após a revolução democrática de 1974, permitiram
um forte aumento da participação das mulheres no ensino superior, mas a intrusão crescente de uma cultura de gestão privada
nas instituições pode, eventualmente, tornar-se num privilégio informal que favorece os homens. Os resultados, embora
confinados à situação existente em 2005, fazem pressupor que as mulheres não só se confrontam com as barreiras
tradicionais que se erguem à sua promoção, como parecem enfrentar oportunidades desiguais no acesso à profissão
académica.
Em termos do ‘ponto de partida’, surgiram ganhos consideráveis no que respeita à participação das mulheres na
estrutura da carreira académica. Mas, questionando determinados pontos do trajecto na direcção da paridade e da igualdade
género, os resultados deste estudo permitem considerar a hipótese de, futuramente, se poder observar um retrocesso ao nível
do recrutamento e das oportunidades de progressão. É crucial desenvolver mais a investigação neste campo para tentar
responder melhor a esta hipótese, incluindo neste desenvolvimento estudos comparativos ao nível internacional. Torna-se
importante, também, analisar as tendências para a mudança nas modalidades de recrutamento e ponderar o seu impacto nas
relações contratuais. Mas, talvez, o maior desafio à análise das questões da desigualdade de género na estrutura da carreira
académica é o de tentar compreender melhor o ‘mistério’ da travagem no ‘pipeline’: porque é que mesmo nos sistemas com
altos níveis de participação de mulheres, como é o caso do sistema de ensino superior português, estas continuam a
confrontar-se com dificuldades para atingir o topo da carreira profissional?

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“Trabalho, família e género, articulando dimensões centrais da vida dos


indivíduos”
Diana Maciel
CIES/ISCTE
[email protected]

Cristina Marques
CIES/ISCTE
[email protected]

Anália Torres
CIES/ISCTE
[email protected]

Resumo: Desde meados de 60 do século XX que têm vindo a ocorrer transformações profundas na sociedade contemporânea que
contribuíram para a existência de novas formas de articulação do trabalho e da família. Trabalho e família são aspectos centrais da vida dos
indivíduos. Homens e mulheres trabalham não só porque precisam, mas também porque é importante para a sua identidade pessoal. Contudo,
formas tradicionais de articular trabalho com a família persistem: os homens continuam a sentir-se responsáveis pelo sustento da sua família,

23
apesar da aceitação da participação das mulheres no mercado de trabalho; e as mulheres ainda realizam a maior parte das tarefas domésticas
e dos cuidados com as crianças.
Com base nos resultados de entrevistas em profundidade, realizadas em diferentes contextos sociais e regionais (Lisboa, Porto e Leiria), a
indivíduos com diferentes contextos sociais, a viver em casal e em diferentes momentos do seu ciclo de vida, procura perceber-se como as
famílias portuguesas articulam trabalho e vida familiar. Analisa-se e discute-se a importância do trabalho para homens e mulheres, a sua
influência na vida familiar e o modo como as famílias dividem o trabalho pago e não pago.
Pretende mostrar-se que o trabalho é um valor importante para homens e mulheres. No geral, o trabalho tem implicações na vida dos
indivíduos, representando um ganho positivo na identidade pessoal, mas também condicionando os tempos familiares. Os homens,
empenhados na construção das suas carreiras, trabalham longas horas, tendo menos tempo para passar com as suas famílias. As mulheres
condicionam o seu trabalho de forma a adequar-se às exigências da sua família.

Introdução
Nos últimos anos têm ocorrido mudanças, nos diferentes países europeus, directa ou indirectamente, relacionadas
com as realidades familiares, como a descida da natalidade e da nupcialidade, o aumento do divórcio, dos nascimentos fora
do casamento, da coabitação e da taxa de actividade feminina (Torres et all, 2006). Os processos de afirmação das mulheres
no espaço púbico, aquilo a que Torres (2001) designa como a transição da ideia de uma mulher-natureza para uma mulher
indivíduo, afiguram-se como centrais.
É neste âmbito que o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, nos vários países da Europa, é
desde a década de 60, uma tendência estruturante das sociedades contemporâneas. No entanto, esta participação das mulheres
no mercado de trabalho não foi acompanhada de uma maior participação masculina no trabalho não pago.
Durante vários anos, nos países da OCDE, a correlação entre as taxas de natalidade e a crescente participação das
mulheres no mercado de trabalho foi negativa, no entanto, desde os finais da década de 80, que se tem verificado que, na UE,
quanto maior é a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho, mais elevado é o índice sintético de fecundidade
(Torres et all, 2006)
Em Portugal, ao contrário do que acontece em muitos outros países da Europa, onde o regime de trabalho a tempo
parcial é a escolha de mães com filhos pequenos1, as mulheres trabalham, sobretudo, a tempo inteiro, sendo, aliás, o país
onde as mães de crianças até aos 10 anos mais horas por semana trabalham. No entanto, “as estruturas do emprego masculino
e feminino mantêm características distintas” (Torres et all, 2004: p. 86). Existindo uma maior “dispersão relativa das
mulheres por grupos profissionais e maior concentração dos homens em certas profissões” (idem). Os empregos femininos
são muitas vezes empregos com baixos salários e com poucas perspectivas de estabilidade, mas, encontra-se também uma
“preponderância feminina em sectores de actividade caracterizados por altas qualificações escolares, como é o caso das
profissões intelectuais e científicas” (idem), pese embora em muito menor número do que nos casos anteriores.
As mulheres, trabalhando ou não fora de casa, assumem a seu cargo a maior parte das tarefas domésticas, dos
cuidados com as crianças, idosos ou doentes; sendo que a menor participação das mulheres com escolaridade ao nível do
ensino superior na realização das tarefas domésticas resulta menos de uma maior divisão das tarefas, do que duma maior
“delegação numa empregada doméstica” (idem: p. 131). Deste modo os autores falam na existência de tarefas
“predominantemente femininas” e “não negociáveis”: a limpeza e a manutenção da casa e da roupa, e de outros mais
“negociáveis”, que dizem respeito à alimentação e aos cuidados com as crianças, onde a participação masculina pode ser um
pouco mais significativa. Esta situação pode ser explicada pela activação de “disposições que lhes foram inculcadas” ou por
uma resposta “às expectativas tradicionalistas sobre os desempenhos de papéis na nossa sociedade” (idem: p. 132). Recai
então sobre a mulher a responsabilidade da conciliação entre vida profissional e familiar; preocupar-se em ser boa
profissional, mas acima de tudo boa mãe e capaz de gerir as actividades domésticas.
O facto de serem as mulheres a estarem mais sujeitas a trabalhos precários e mal pagos, ao desemprego e ao
trabalho a tempo parcial (indicadores das desiguais oportunidades no mercado de trabalho), tem a sua correspondência na
maior valorização do salário do cônjuge como fonte de subsistência para o agregado doméstico e consequente desvalorização
do trabalho feminino. Os constrangimentos existentes ao nível do trabalho pago “tornam-se, efectivamente, uma fonte de
legitimação de uma divisão tão assimétrica do trabalho não pago, no interior da relação conjugal” (idem). Esta divisão
ideológica entre um homem a quem cabe o papel instrumental de ganha pão da família e uma mulher a quem cabe as funções
expressivas de cuidado com a casa e com os filhos, acaba por ser incorporada pelas empresas que criam diferentes
expectativas quanto ao papel do homem e da mulher, a quem ligam sempre os cuidados com a família.
Ora, para as mulheres o trabalho profissional não corresponde apenas à resposta de uma necessidade, surgindo
também como “fonte de sociabilidades, produtor de identidade social e indispensável, não só para a melhoria das condições
de vida da família, mas como forma de aumentar o poder negocial no interior da relação conjugal” (idem: p. 133).
Com base nos resultados de entrevistas em profundidade2, realizadas em diferentes contextos sociais e regionais
(Lisboa, Porto e Leiria), a indivíduos com diferentes contextos sociais, a viver em casal e em diferentes momentos do seu

1
Em Portugal, o peso do tempo de trabalho a tempo parcial na actividade feminina é pouco significativo (10,8%), para além de que as condições de trabalho
neste regime não se traduzem em verdadeiras opções, visto situarem-se em sectores profissionais pouco qualificados e com precariedade de emprego.
2
Foram realizadas entrevistas a 83 casais (os dois membros de cada casal, homens e mulheres) com pelo menos um filho, num total de 166 indivíduos, 72 na
Grande Lisboa, 54 no Grande Porto e 40 em Leiria, distribuídos pelas diferentes durações de casamento e pertenças sociais. Os dois membros do casal, homens e
Esta nota continua na página seguinte

24
ciclo de vida, procura perceber-se como as famílias portuguesas articulam trabalho e vida familiar. Analisa-se e discute-se a
importância do trabalho para homens e mulheres, a sua influência na vida familiar e o modo como as famílias dividem o
trabalho pago e não pago.

Trabalho pago e não pago: sobreposição no feminino


As sociedades contemporâneas são, nos dias hoje, palco de grandes e complexas mudanças (Carvalho da Silva,
2007), nomeadamente transformações no comportamento e formação familiar, com o declínio das taxas de divórcio, o
aumento da coabitação, o aumento da idade ao casamento, o declínio das taxas de fecundidade, que afectam várias dimensões
da vida. Também o mundo do trabalho tem sofrido grandes alterações, mas que não lhe retira a centralidade que tem na
sociedade e na vida dos indivíduos; uma das dimensões mais valorizadas por estes. O trabalho interpenetra a esfera da família
e das sociabilidades, denotando, deste modo, a sua importância nas dimensões mais subjectivas e íntimas da vida dos
indivíduos, assim como a sua importância para a estruturação das identidades pessoais (idem).
A centralidade do trabalho é algo “estrutural e estruturante das sociedades” (idem: p. 88). Apresenta-se como “uma
actividade central que estrutura a vida dos indivíduos e a vida social em geral” (idem); sendo um meio de produção de
riqueza, mas também de integração social, numa economia de pleno emprego. O trabalho pago é uma fonte importante de
desenvolvimento do indivíduo, enquanto um factor de produção e de socialização, uma expressão de qualificações, algo
profundamente relacionado com a valorização do trabalho e com a evolução dos modos de prestação do trabalho, fonte de
emanação de direitos sociais e de cidadania, direito universal, “fonte e espaço de dignidade e valorização humana” (idem), e
condição de acesso a padrões de consumo e estilos de vida (idem; Torres, 2004; Casaca, 2005; Torres et all, 2006; Crompton,
2006), conferindo estatuto social ao trabalhador (Kóvacs, 2002).
Deste modo, o trabalho constitui um termo complexo e ambíguo, significando, simultaneamente, “uma actividade
física e intelectual; um acto compulsório, mas também um acto de criação que constitui uma fonte de desenvolvimento e de
satisfação; é um meio de subsistência, mas ao mesmo tempo, uma forma de auto-realização e fonte de rendimento, de
estatuto, de poder e de identidade” (Kóvacs, 2002).
Em Portugal, a mudança na estrutura de trabalho e o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho
deve ser explicada por várias razões. A partir da década de 60, a guerra colonial e a emigração, especialmente proveniente
das zonas rurais, levou à existência de um défice de mão-de-obra masculina e ao recrutamento de mulheres em todos os
sectores profissionais (André e Feio, 2000; Torres et all, 2004, 2006; Torres, 2004, 2006). No caso das mulheres com um
estatuto socioeconómico mais desfavorecido, houve a oportunidade de procurar trabalho nas grandes cidades, em fábricas ou
como empregadas domésticas. Por seu turno, as mulheres mais escolarizadas (com ensino secundário ou superior) tinham
oportunidades de emprego na função pública, nas empresas ou como professoras; contando com a ajuda de apoios domésticos
baratos, o que lhes permitia conciliar a vida profissional com a vida familiar (Torres et all, 2004, 2006; Torres, 2004, 2006).
Nos meios rurais, as mulheres ganham um papel mais activo nas actividades agrícolas (André e Feio, 2000). Com o 25 de
Abril de 74, a guerra colonial chega ao fim, mas deu-se simultaneamente uma maior abertura aos ideais de igualdade de
oportunidades entre homens e mulheres, que são transpostos na lei, permitindo a permanência da mulher no mercado de
trabalho.
No entanto, este desenvolvimento foi acompanhado por um considerável grau de exclusão social e aprofundamento
das diferenças sociais. A população feminina, devido às tarefas e responsabilidades que tem na família, vê-se ainda
confrontada com uma maior dificuldade no seu progresso profissional num mercado de trabalho, altamente competitivo
(André e Feio, 2000). Actualmente as taxas de actividade de homens e mulheres são muito próximas, todavia mantêm-se as
discriminações e desigualdades.
Nos últimos anos, Portugal tem-se afirmado enquanto um dos países da União Europeia com uma das maiores taxas
de actividade profissional feminina a tempo inteiro (65% de mulheres trabalhadoras actualmente; 84% trabalha a tempo
inteiro; poucas interrupções da actividade laboral ao longo da vida (Crompton e Lyonette, 2007); sendo que as mães
portuguesas mantém uma relação contínua com o mercado de trabalho, independentemente da idade dos seus filhos (Torres,
2004; Torres et all, 2004; Torres, 2006; Torres et all, 2006; Casaca, 2005). Ao contrário do que acontece em muitos outros
países da Europa, onde o regime de trabalho a tempo parcial é a escolha de mães com filhos pequenos3, as mulheres
portuguesas trabalham, sobretudo, a tempo inteiro, sendo, aliás, o país onde as mães de crianças até aos 10 anos mais horas
por semana trabalham.
No contexto da União Europeia, Portugal encontra-se também entre os países em que mais horas se trabalha
durante a semana, variando a duração média do horário de trabalho semanal a tempo inteiro em Portugal entre as 36 e as 40
horas semanais (Casaca, 2005), sendo para Crompton e Lyonette (2007) de 41,9 para os homens e 39,2 para as mulheres. No
entanto, quando se trata de homens e mulheres com filhos menos de 10 anos passa para 46,4 horas e 45,9 horas por semana

mulheres, foram entrevistados em simultâneo, mas de forma isolada. A unidade de análise foi então o indivíduo no contexto do casal, de forma a captar
separadamente a perspectiva de homens e de mulheres face às várias dimensões e estratégias de adaptação (da) e (na) conjugalidade e sua relação com o trabalho.
3
Em Portugal, o peso do tempo de trabalho a tempo parcial na actividade feminina é pouco significativo (10,8%), para além de que as condições de trabalho
neste regime não se traduzem em verdadeiras opções, visto situarem-se em sectores profissionais pouco qualificados e com precariedade de emprego.

25
em média, respectivamente (Torres et all, 2004). Portugal tem assim o mais baixo diferencial entre sexos no que se refere ao
tempo dedicado ao trabalho pago.
As mulheres portuguesas, com idades compreendidas entre os 25 aos 49 anos (fase da maternidade), são das que
menos trabalham a tempo parcial (Casaca, 2005). No entanto, são também as mulheres que estão mais sujeitas a vínculos de
contractos laborais mais precários. Desde a década de 80, que se assiste em Portugal a uma tendência para o crescimento da
flexibilidade do emprego. No nosso país a flexibilidade do emprego está associada a um padrão de relações laborais
precárias, sendo que as modalidades flexíveis de emprego são atravessadas por uma linha de género, em que os homens estão
mais representados no trabalho por turnos, no trabalho nocturno e no emprego por conta própria; e as mulheres no trabalho a
tempo parcial e no emprego temporário. Em 2002, 48% das mulheres em Portugal estavam envolvidas numa relação
contratual precária há mais de 3 anos. Na maior parte dos países da EU, a taxa de desemprego feminino é também superior à
masculina (idem; André e Feio, 2000). Em 2003, em Portugal as mulheres totalizavam 53% dos desempregados (Casaca,
2005).
Resultados de investigações recentes realizadas em Portugal e na U.E. mostram claramente uma profunda
assimetria na divisão do trabalho pago e não pago entre mulheres e homens (Perista, 1999; Torres, et al., 2004). É sabido, por
exemplo, que, em Portugal, as mulheres realizam a quase totalidade do trabalho não remunerado, mesmo trabalhando no
exterior aproximadamente o mesmo número de horas do que os homens. Na verdade, se os homens com actividade
profissional gastam mais 1 hora no trabalho por dia, as mulheres, na mesma situação, e em contrapartida, despendem mais
2,5/3 horas diárias em tempo de trabalho doméstico (Torres, 2004).
A entrada generalizada das mulheres no mercado de trabalho, considerada como dado estrutural das sociedades
contemporâneas, teve consequências variadas, directas e indirectas, na vida conjugal e familiar. Consequências directas,
porque tal tendência rompe, embora apenas parcialmente, com um modelo ideal de relação entre trabalho e família,
dominante durante grande parte do século XX e até aos anos 60. Ele assentava na ideia de complementaridade, através da
diferenciação das tarefas, entre homens e mulheres, sendo o trabalho para o mercado responsabilidade dos primeiros e o
“trabalho” familiar competência exclusiva das mulheres. Embora não se possa esquecer que tal modelo ideal na prática tenha
sido muito menos aplicado e tenha tido carácter menos abrangente do que durante muito tempo se procurou fazer crer, a
verdade é que se operaram, desde o momento em que essas ideias eram dominantes até aos dias de hoje, mudanças
significativas.
Quanto aos efeitos indirectos, na vida conjugal e familiar, da entrada generalizada das mulheres no mercado de
trabalho, verifica-se que essa inserção através da ocupação de um posto de trabalho, do exercício de uma profissão ou do
investimento numa carreira, tem consequências no plano da identidade pessoal e social, ao nível da autonomia, da melhoria
das condições de vida, ou da realização pessoal. Esses desempenhos podem assim contribuir para outras definições de si
enquanto pessoa, no quadro da própria conjugalidade.
No plano dos valores, a aceitabilidade de novas normas parece inequívoca e resulta, aliás, de um processo de
contínua e segura afirmação da igualdade de direitos das mulheres. Isso não significa, que no plano das práticas,
nomeadamente nas que à conjugalidade dizem respeito, se esteja no mesmo patamar.
Apesar dos dois membros do casal trabalharem profissionalmente as mesmas horas fora de casa, são as mulheres
que desenvolvem a maior parte das tarefas domésticas (limpeza, roupa, alimentação) e dos cuidados com as crianças, em
simultâneo com o desempenho das actividades profissionais. No caso dos homens é ainda muito reduzido o tempo que
dedicam às tarefas domésticas e mais significativo aquele que despendem com actividades de índole profissional ou mesmo
de lazer (INE, 2001; Perista, 1999). As tarefas que os homens menos realizam na vida doméstica são as que se relacionam
com o “tratar da roupa”, campo sempre remetido para o domínio dos cuidados e das competências adquiridas no feminino.
Restam assim para os homens, quase sempre, as tarefas mais esporádicas ou ocasionais, como as pequenas reparações de
equipamentos ou do espaço doméstico, enquanto que as mais rotineiras e regulares são normalmente da responsabilidade das
mulheres (Torres e Silva, 1998).
Em relação a quase todas as actividades, e independentemente do grau de instrução, a tendência da divisão
assimétrica do trabalho entre homens e mulheres, é clara, já que ficou visível noutras investigações mais recentes que as
mulheres afirmam realizar, substancialmente, a quase totalidade das tarefas domésticas, enquanto os homens apenas dizem
assegurar uma pequena parte. Esta assimetria é atenuada, nos níveis mais altos de instrução, pela maior participação
masculina, nomeadamente nas tarefas domésticas relativas à preparação das refeições (preparar refeições; pôr a mesa, lavar a
louça) e a fazer compras. Porém, tal afirmação tem o seu negativo no grupo de tarefas relativas à limpeza e manutenção da
casa e da roupa (tratar roupa, lavar, passar; limpar a casa) já que, nestas últimas, a menor participação das mulheres mais
instruídas (relativamente às menos instruídas) não resulta de uma maior colaboração masculina, mas sim da delegação dessas
actividades em ajuda não paga (mãe, sogra e filha) ou em empregadas domésticas. Podemos então continuar a afirmar a
existência de tarefas domésticas predominantemente femininas que permanecem como tarefas “não negociáveis”4 (as
relativas à limpeza e manutenção da casa e da roupa), ainda que noutras, “negociáveis” (como as relativas à alimentação e às
crianças), a participação masculina possa aumentar.

4
A classificação das tarefas em “negociáveis”, quando admitem a realização por ambos os cônjuges e “não negociáveis”, no caso inverso, integrando ou um
“pólo feminino” ou um “pólo masculino” é proposta por Bernard ZARCA (1990) “La Division du Travail Domestique. Poids du Passé et Tensions au Sein du
Couple”, Économie et Statistique, nr. 228

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O género feminino permanece, assim, como variável determinante, mesmo quando as mulheres delegam essas
tarefas, seja sob a forma de trabalho familiar não pago (mães/sogras e filhas), seja na delegação das tarefas em empregadas
domésticas, são ainda e sempre as mulheres que as realizam.

A centralidade do trabalho na vida dos indivíduos


O trabalho é um aspecto central das sociedades contemporâneas. Homens e mulheres atribuem uma importância
fundamental a esta dimensão das suas vidas. Com a desvalorização do ideal de mulher doméstica, que não é mais visto como
um factor de identificação, o trabalho profissional tornou-se uma dimensão importante da identidade pessoal e social das
mulheres. Valoriza-se agora uma imagem de mulher companheira, “igual em direitos e deveres” (Torres, 2004).
Mas como será que homens e mulheres percepcionam a esfera do trabalho? Que peso tem esta dimensão nas suas
vidas? Que influências tem na família? Neste parte procura-se reflectir sobre os significados subjectivos e objectivos que o
trabalho adquire para os indivíduos, no que diz respeito a aspectos como o seu percurso profissional, o sentimento destes
perante o seu trabalho actual e a influência que o trabalho tem na família.
Defende-se a hipótese de que homens e mulheres valorizam o seu trabalho profissional, sendo que este adquire uma
importância a vários níveis, desde um nível mais instrumental a um nível mais expressivo. No geral, o trabalho tende a
influenciar a vida dos entrevistados tanto pela positiva, sobretudo ao nível da importância que adquire para a sua identidade
pessoal, como pela negativa, devido ao sentimento que os horários e/ou as horas de trabalho retiram tempo para a família, e
ao stress e às preocupações que se levam para casa.

Homens e mulheres querem trabalhar


Tal como Carvalho da Silva (2007) defende, o trabalho revela-se, para os entrevistados, enquanto algo central na
sua vida, sendo um plano da sua existência de que não querem abdicar, dado todas as suas propriedades instrumentais, como
fonte de rendimento, mas também dado as suas propriedades mais expressivas, como fonte de integração social, estatuto e
sociabilidade, construtor identitário e espaço de valorização e realização pessoal (idem; Kóvacs, 2002; Torres, 2004; Casaca,
2005; Torres et all, 2006; Crompton, 2006). Deste modo, a esmagadora maioria dos indivíduos entrevistados valoriza a sua
actividade profissional, sendo que as mulheres portuguesas, inclusive as mães de filhos pequenos, trabalham a tempo inteiro e
querem trabalhar no exterior (Torres, 2004; Torres et all, 2004; Torres, 2006; Torres et all, 2006; Casaca, 2005); reflexo
também de outra característica da actividade profissional que é a de implicar um ganho de poder na relação conjugal e de
maior autonomia (Torres 2004, 2006).
Em Portugal, homens e mulheres tendem a trabalhar a tempo inteiro e de forma intensiva, não interrompendo
geralmente a sua actividade profissional, sendo dos países da Europa em que as mães com os filhos pequenos mais horas
trabalham (Torres, 2004; Torres et all, 2004; Torres, 2006; Torres et all, 2006; Casaca, 2005). Desta forma, o casamento e a
maternidade parecem não limitar, significativamente, o acesso das mulheres portuguesas ao emprego. A ideia da mulher
doméstica tornou-se um estereótipo ultrapassado. Existe uma valorização cultural do trabalho profissional do trabalho das
mulheres que leva a que estas não saiam do mercado de trabalho devido à vida familiar, mesmo em situações em que não é
necessária a existência de dois salários (André e Feio, 2000).
Como várias pesquisas, de carácter quantitativo e qualitativo, têm vindo a referir o trabalho é considerado como
uma dimensão fundamental da vida dos indivíduos (Kóvacs, 2002; Casaca, 2005; Torres, 2004, 2006; Torres et all, 2004,
2006; 2007; Carvalho, 2007). No geral, tanto os homens como as mulheres, das várias gerações e posições sociais, valorizam
o desempenho de uma actividade profissional.
“Eu gosto do que faço. Trabalho a dias, não trabalho os dias todos da semana, também somos 5 pessoas cá em casa.
Mas gosto, dá-me prazer sair das casas e deixar tudo limpinho, ver que valeu a pena o esforço.” (Anabela canhoto, 41
anos, empregada. doméstica, Lisboa)

“Sempre gostei de estrada, sempre gostei de carros... E tem que se gostar muito daquilo que se faz, para a gente se
conseguir manter nesta profissão! Eu gosto imenso daquilo que faço, e portanto vou continuar até quando puder.”
(Pascoal Ramos, 39 anos, motorista máquinas perigosas, Porto)

Através dos discursos dos entrevistados, verificou-se que o trabalho das mulheres é largamente aceite pela maioria
dos homens. Tal como as mulheres tendem a valorizar a actividade profissional do seu cônjuge, é também geral a satisfação
que os homens exprimem em relação ao trabalho das suas esposas: “É um bom trabalho! E muito importante. Embora se
diga tanto mal, os professores é que podem mudar a mentalidade do país... sem os professores, é impossível!” (César
Lourenço, 40 anos, engenheiro informático, analista de sistemas, Porto).
Quando estas estão numa situação mais precária em relação ao mercado de trabalho, isto é, em situações de
desemprego ou de trabalho a tempo parcial, ou em situações em que o trabalho não as realiza, os entrevistados tendem a
referir que gostariam que a sua esposa estivesse a trabalhar e que conseguissem um trabalho que as fizesse feliz,
demonstrando assim um reconhecimento da importância do trabalho para a realização pessoal e construção da identidade
desta: “É uma preocupação ela estar desempregada e vê-la preocupada com isso.” (Alexandre Gomes, 33 anos, técnico

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empresarial, Porto);“Uma pessoa que sempre trabalhou e de repente fica sem emprego, ela psicologicamente não fica nada
bem” (Ricardo Almeida, 43 anos, patrão pequena empresa de calçado, Porto).
Alguns dos entrevistados afirmam que o trabalho e a vida familiar são duas dimensões separadas e estanques da sua
vida, uma não influenciando a outra. Todavia, a maioria dos entrevistados considera que o trabalho influencia, de alguma
forma, a família. Essa influência pode ser positiva: ao nível financeiro – a ajuda para a casa ou o ganha-pão, ao nível dos
horários de trabalho que permitem conciliar com a família – os turnos; ao nível das sociabilidades – dos contactos que se
fazem no trabalho; ao nível dos aspectos intrínsecos salienta-se a importância das rotinas e do ganho de responsabilidade, do
crescimento e satisfação pessoal, da valorização de si, do orgulho, da autonomia, do moldar da personalidade.
Mas pode também ser negativa: os horários de trabalho (o tipo de horário, o excesso de horas que se faz, a
necessidade de levar trabalho para casa ou a falta de controlo sobre os tempos do trabalho) fazem com que se tenha menos
disponibilidade para a família, nomeadamente para os filhos, e para os amigos; levam-se as preocupações do trabalho para
casa, chega-se cansado a casa, o estado de humor altera-se: são os nervos, o stress que se ganham. A um maior investimento
no trabalho, especialmente da parte dos homens, parece corresponder uma maior perda para a família. Neste sentido, o
discurso dos entrevistados aponta para uma “incorporação da norma assimétrica considerada adequada no masculino – os
homens devem centralmente ocupar-se do sucesso profissional e da família depois – e no feminino – as mulheres podem
ocupar-se da carreira se conseguirem conciliar trabalho e família, sendo que em caso contrário os interesses desta devem
sobrepor-se aos interesses daquela” (Torres, 2004: p. 90).
Veja-se então, de forma um pouco mais detalhada, como se processa esta influência do trabalho na família.

Separando as águas
Como foi referido, existem entrevistados, embora minoritários, que consideram que o trabalho não influencia a sua
vida familiar. Nestas situações, os entrevistados referem, sobretudo, que conseguem separar trabalho e família, que procuram
não levar os problemas do trabalho para casa, ou que o seu horário de trabalho permite conciliar ambos os domínios.
“ Se a pergunta for no sentido de saber se eu trago trabalho para casa, isso não, eu quando chego a casa, desligo.
Quando passo a porta de casa... Nunca trouxe questões de trabalho para casa, nem incomodo a minha mulher com
isso.” (César Lourenço, 40 anos, engenheiro informático, Porto)

Existem ainda casos em que, no geral, o trabalho não influencia a família, no entanto, em determinadas alturas,
quando se tem mais trabalho ou preocupações maiores, passa a interferir.
“Depende. Nessas alturas influencia um bocado. Eu e as minhas colegas andamos mesmo com um stress muito, muito
grande por causa dos prazos. (…) é então nessas alturas que eu noto que realmente ando mais um bocadinho com
menos paciência, é um bocado assim. Ando mais stressada, mais nervosa e noto que influencia um bocadinho, por
muito que a gente não queira, influencia sempre. Nessas alturas noto que se calhar prejudica um bocadinho, mas
pronto, a gente não consegue controlar tudo.” (Carolina Arroteia, 33 anos, contabilista, Leiria)

As influências positivas do trabalho: os rendimentos, as sociabilidades, a valorização da identidade, os ganhos de


autonomia
A maior parte dos entrevistados considera, no entanto, que o trabalho influencia a sua vida pessoal e/ou familiar de
alguma maneira. Assim, e a um nível mais instrumental, uma das influências positivas apontada pelos entrevistados (homens
e mulheres) remete para a importância do trabalho como fonte de rendimento, traduzindo assim as responsabilidades que os
indivíduos casados têm face à família.
“Influencia, influencia. Se eu não trabalhasse, qual seria o meu comportamento cá em casa? Para ter as coisas
alinhadas cá em casa, por pouco que seja, tem que se trabalhar. Isso não parece mas tem um peso bom.” (Valter Sousa,
37 anos, pintor de automóveis, Lisboa)

Existem também entrevistados, embora minoritários, para quem o tipo de horário de trabalho efectuado é uma ajuda
na articulação do trabalho com a família. É, assim, numa lógica de articulação entre ambas as esferas da vida dos indivíduos,
que o trabalho por turnos ou a flexibilidade nas horas de trabalho podem ser consideradas como uma mais-valia, permitindo
conciliar o campo profissional com o cuidado com as crianças e/ou com outros assuntos de âmbito familiar, quando o
cônjuge não está presente.
“Gosto muito do que faço, pela liberdade que me dá, e liberdade não significa que a gente não trabalhe, porque nunca
trabalho menos de 10 horas por dia. Só que preciso de ir ao infantário da garota, preciso de ir dar uma vacina à minha
filha, disponho desse tempo sem problema absolutamente nenhum, porque sei que o posso.” (Renato Barbosa, 36 anos,
gestor comercial, Leiria)

As sociabilidades são outro dos factores mais valorizados por quem trabalha. As amizades que se fazem no
trabalho, assim como o tempo que se passa juntamente com os colegas, são considerados como bastante importantes: “ Acho
que permite manter contacto com pessoas de fora, já que a nossa situação económica não permite grandes contactos de
amizade.” (Simão Costa, 59 anos, guarda de museu, Lisboa).

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Mas acima de tudo será importante realçar os aspectos intrínsecos que a actividade profissional traz aos indivíduos
e à sua vida familiar. Como se referiu anteriormente, o desempenho de uma actividade profissional é central para na vida dos
indivíduos, fazendo-os crescer enquanto pessoas, trazendo-lhes satisfação e orgulho a nível pessoal, valorizando-os.
“Influencia muito. Influencia muito porque o trabalho amadurece-nos, o trabalho dá-nos aquilo que se chama carimba,
a gente apanha desgostos, temos que ser exigentes, recebemos críticas pelo comportamento e pelo desempenho, isso
acaba por nos moldar. Acaba por nos ir moldando. Acabamos por encontrar tipos de pessoas diferentes que nos
influenciam, que nos cativam. É claro que sim, que influencia muito a minha vida. [Influência] positiva. A minha vida
pessoal é, familiar acaba por ser de alguma maneira [influenciada], mas é como disse há bocado, tento filtrar. É no
sentido em que nos engrandecemos um bocado, porque quando temos responsabilidades lá fora, no trabalho para o
exterior dá-nos uma segurança grande também na família. […]. E a minha esposa saber que tenho responsabilidades
também dá assim um certo orgulho, isso tudo ajuda-me numa boa relação. […]” (Renato Barbosa, 35 anos gestor
comercial, Leiria)

Directamente relacionada com a questão da realização pessoal, está o sentimento de autonomia que o trabalho gera
nos entrevistados, nomeadamente nas mulheres. O trabalho permite, a estas mulheres, serem independentes, não depender
dos seus maridos, terem a possibilidade de adquirirem as suas próprias coisas.
“Pronto, ai está, ter um ordenado é estar independente. Mesmo assim de vez em quando ele diz que ele é que me
sustenta e não sei quê, não sei quanto. Tenho o meu ordenado, sou independente, posso fazer dele o que quiser e não,
pronto. Acho que isso é muito importante, para não estar a pedir e pedir, não!” (Armanda Serra, 46 anos, empregada
doméstica, Leiria)

Ora, mas nem tudo são rosas e o trabalho tem, por vezes, uma influência na vida familiar que é considerada, pelos
entrevistados, como menos positiva.

As influências negativas do trabalho: menor disponibilidade para a família, cansaço e stress


Como se realçou, os entrevistados também sentem que o trabalho tem consequências negativas na vida familiar: são
as preocupações do trabalho que se levam para casa e geram maiores desentendimentos no casal e menor paciência para a
família; são os horários de trabalho que “roubam” tempo à família.
No que toca “às chatices”, isto é, as preocupações, o stress, o mau humor, que se levam do trabalho para casa, são
referidas maioritariamente pelos entrevistados mais qualificados, sobretudo pelas mulheres, embora seja também muito
referida pelos homens (mais de Leiria e Lisboa). Neste sentido, os entrevistados referem que não conseguem desligar da
pressão e das exigências profissionais, levando-as para o seio familiar, juntamente com a tensão e a impaciência gerada no
contexto laboral que acaba por originar, algumas vezes, o conflito conjugal ou parental: “No dia a dia, se tenho um dia mau,
chego a casa e discutimos por isso até porque às vezes fico bruta, pronto, um bocado chateada e ele também não percebe e
discutimos por causa dessas coisas.” (Patrícia Mira, 28 anos, escriturária, Lisboa); “Traz mais atritos, menos paciência
para as brincadeiras dos filhos, embora eu seja um pai que até liga muito a essas coisas.” (Joaquim Machado, 38 anos,
profissional de seguros, Lisboa).
Ora, se as chatices e as preocupações do trabalho são maioritariamente referidas pelas mulheres, os homens
queixam-se, sobretudo, das horas que trabalham que lhes deixa pouco tempo para se dedicarem à família e/ou a outras
actividades que desejem realizar: “Influenciou um bocado a vida familiar devido à ausência. A ausência levou a algumas
incompreensões e a alguns atritos.” (Duarte Ventura, 62 anos, engenheiro civil, Lisboa).
A questão das horas de trabalho é também reconhecida pelas suas esposas. Quando questionadas sobre qual a
influência que o trabalho do seu cônjuge tem na família ou o que desejariam mudar neste, a questão das horas do trabalho
vêm frequentemente ao de cima: “O que eu mudaria, punha-o a trabalhar das 8 às 5 e vinha para casa. Que assim já tinha
mais tempo para programar a vida dele.” (Olga Amaro, 34 anos, doméstica, Leiria); “Mudava estas questões do horário,
pedia-lhe para chegar mais cedo, pelo menos à tarde, à noite, para estar e ajudar com as miúdas, que com duas não nada
fácil...” (Luísa, 38 anos, professora do ensino especial, Lisboa).
Os próprios homens referem muitas vezes que, se há um aspecto que mudariam na sua actividade profissional, este
prende-se com as horas que efectuam no trabalho e o empenho que têm para com este, de modo a poderem ter mais tempo
disponível para si e para a sua família: “Ter mais tempo para estar com a família... neste momento era só isso” (Marco
Ferreira, 34 anos, motorista, Porto).
Deste modo, tal como foi referido em diversas pesquisas (Beck e Beck-Gernsheim, 1995; Torres, 2004, 2006;
Torres et all, 2004) os homens ao contrário das mulheres, não parecem encontrar na paternidade um condicionamento à vida
profissional. Contudo, expressam o seu desejo de estar mais presentes para a família e, especialmente para os filhos. Estamos,
assim, perante uma “reinterpretação moderna de uma divisão de papéis antiga” (Torres, 2004: 72), em que as mulheres já
sentem o direito ao desempenho de uma actividade profissional e eles se começam a sentir culpados por não darem tanto
apoio em casa como o ideal de simetria, que partilham com elas, implica. No entanto, o investimento familiar não é paritário
e as mulheres são forçadas a retrair-se na profissão.
Neste sentido, existem também mulheres que se queixam das horas de trabalho que têm que realizar, referindo
mesmo que gostariam de diminuir as suas horas de trabalho, de modo a poderem conciliar mais facilmente trabalho e família.

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“Influencia bastante porque (…) para os meus filhos agora não tenho tanta… eu falo deste, os outros eu criei-os,
dediquei-me totalmente a eles, este não, este foi criado sozinho com a avó. Tenho bastante pena, queria estar mais
tempo com ele, gostava de dedicar mais tempo.” (Florbela Ramos, 39 anos, empregada doméstica, Porto)

Alguns homens fazem também referência às horas de trabalho das suas esposas, sobretudo quando estas trabalham
ao fim-de-semana. O trabalho realizado aos sábados e, especialmente, aos domingos, leva-os a considerar que existem
determinados programas, como passeios ou viagens, que é difícil fazer em família: “Gostava mesmo que ela também não
tivesse que trabalhar tanto... para ter mais disponibilidade...” (Diniz Gouveia, 42 anos, corticeiro, Porto); “Em questão de
horários, pois, se ela pudesse ter um trabalho com um horário que pudesse estar, por exemplo, os fins-de-semana em casa
com o filho, arranjava-lhe um trabalho assim.” (Hermínio Matias, 41 anos, encarregado de armazém, Leiria).
Neste sentido, conciliar trabalho e família nem sempre é fácil, e às vezes é preciso fazer escolhas…
“Tive muitas vezes esse dilema: entre ser professora e ser mãe e eu: “mas porque é que tem que ser assim, ao que é que
tenho que dar prioridade?” e às vezes vinha esgotada, isso sentiu-se muita vez. (…) Era uma profissional competente,
nesse aspecto era só mesmo quando estava doente. Agora quando um filho estava com febre ou doente eu sofria que
não imagina, era por ele e era pelos alunos, então algumas vezes tive que faltar. Era assim, mas era um dia, dois, assim
que se apanhava melhor lá ia eu.” (Regina Ramalho, 56 anos, professora 1º ciclo em processo reforma, Leiria)

Através dos discursos dos entrevistados tornou-se visível como o trabalho é um aspecto central na vida dos
indivíduos, proporcionando-lhes uma fonte de rendimento, mas também uma fonte de identidade, de sociabilidade, de
integração social, de sentido de si. Deste modo, a actividade profissional é amplamente valorizada, sendo que os
entrevistados que não trabalham expressam frequentemente o seu desejo em fazê-lo.
Acresce ainda que a esfera profissional influência, geralmente, a vida familiar quer seja ao nível dos rendimentos e
dos horários de trabalho que possibilitam uma gestão objectiva da vida familiar, quer seja em termos de ganho de satisfação
pessoal ou, pelo contrário, de cansaço e preocupações que se vão repercutir no mundo da casa, de forma mais subjectiva,
embora não menos essencial.

Tarefas domésticas – mudanças ou permanências


Como referimos anteriormente, os resultados de várias investigações, levadas a cabo em Portugal e na União
Europeia, continuam a mostrar a forte assimetria existente na divisão do trabalho pago e não pago entre homens e mulheres
(Perista, 1999, 2002; Torres e Moura, 2004; Torres et al. 2004, 2006; Torres, 2006; Crompton, 2006; Amâncio, 2007;
Crompton e Lyonette, 2007; Singly, 2007; Cardoso et al., 2008).
Embora os discursos tendam a reproduzir uma lógica moderna de maior participação dos homens no espaço
doméstico, e apesar da grande participação das mulheres no mercado de trabalho, os homens não têm participado de forma
equivalente no trabalho não pago (Perista, 2002, Torres, e Moura 2004; Torres, 2004, 2006; Torres et all 2004, 2006). Deste
modo, apesar de, na maior parte dos casos, ambos os elementos do casal trabalharem no exterior, aproximadamente, as
mesmas horas, as mulheres continuam a realizar a maior parte das tarefas domésticas e dos cuidados com as crianças.
Ora, relativamente ao domínio do privado, e mais especificamente à divisão efectuada das tarefas domésticas,
interessou-nos olhar para as práticas e representações que surgem no contexto do casal. Será que existe alguma relação entre
práticas e representações neste domínio da vida dos indivíduos? Quais são os modelos ideais defendidos? E quais os
efectivamente praticados? Existirão diferenças entre casais com maior e menor duração de casamento? E entre os mais e
menos instruídos?
Partindo da exploração da relação entre representações e práticas e da análise comparativa do discurso de casais
residentes em Lisboa, Porto e Leiria, procurou-se chegar a uma tipologia onde se articulam os discursos dominantes com as
práticas. Neste sentido, da análise sobressaíram 3 tipos principais: os casais igualitários; os casais assimétricos atenuados e os
casais assimétricos tradicionais. Os casais igualitários defendem e praticam uma divisão mais igualitária das tarefas
domésticas, onde os dois elementos do casal procuram realizar as tarefas pelos dois. O trabalho profissional no exterior surge
como principal argumento para a procura do equilíbrio na esfera privada. Estes casais sentem-se satisfeitos com o modo
como as tarefas domésticas são divididas, consideram que esta forma de organização é justa e equilibrada.
No caso dos casais assimétricos atenuados, embora haja, geralmente, uma defesa dos ideias da partilha, na prática
as mulheres tendem a realizar a maioria das tarefas domésticas, enquanto que eles dão uma ajudinha (a pôr/levantar a mesa, a
fazer uns grelhados aos fins-de-semana, a cuidar dos filhos, nas bricolages, no jardim, com os carros). Apesar de
reconhecerem que a situação não é justa, eles vêm-na como menos injusta do que elas. Mas o reconhecimento desta injustiça
pode levá-los a sentirem-se culpados por não irem de encontro ao ideal de igualdade na divisão das tarefas domésticas. A
assimetria é justificada pela educação (eles não sabem como realizar muitas da tarefas, não foram educados para o
desempenho das mesmas), o hábito e com o facto de eles trabalharem mais horas no exterior do que elas. Além disso, elas
assumem as responsabilidades, o que os leva a “encostarem-se”. Quanto a elas, consideram que a divisão praticada é injusta,
recaindo o maior peso sobre elas. A empregada doméstica, sobretudo entre as mulheres mais qualificadas, vem atenuar esta
situação, retirando-lhes uma parte significativa das tarefas domésticas. No entanto, elas têm gosto na casa, preferindo,
frequentemente, desempenhar este tipo de tarefas, para as quais se sentem mais qualificadas: foram educadas para realizar as
tarefas domésticas, fazem mais depressa e melhor e têm uma maior disponibilidade. Esta dimensão das suas vidas é encarada

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de forma instrumental, a realização das tarefas domésticas é uma necessidade, não existindo, portanto, um ganho identitário
resultante da sua execução. Mas o facto das mulheres realizarem a maior parte destas tarefas pode fazê-las, à luz dos ideais
actuais de uma divisão igualitária das tarefas domésticas, sentirem-se culpadas, na medida em que são elas próprias que vão
assumindo a responsabilidade pelo seu desempenho. Os papéis sociais esperados a desempenhar do feminino e do masculino
encontram-se aqui bem patentes. Elas já esperavam que assim fosse e têm pouca esperança que a situação mude. Assim,
podem queixar-se, mas, geralmente, estão conformadas – é a queixa desmaiada.
Por fim, nos casais assimétricos, as mulheres voltam a assumir a totalidade ou a maior parte das tarefas domésticas,
sendo que eles podem dar uma pequena ajuda, especialmente após o nascimento dos filhos. Contudo, ao contrário do que
acontece com os casais que praticam um modelo assimétrico atenuado, aqui a assimetria das tarefas domésticas é sentida
como justa. Deste modo, a desigualdade no desempenho das tarefas domésticas é incorporada tanto por elas como por eles,
sendo naturalizada. É, então, do dever das mulheres a execução e a responsabilidade das tarefas da casa: preparar as
refeições, fazer as comprar e as limpezas, tratar da roupa, cuidar dos filhos. As tarefas domésticas fazem, assim, parte do
mundo do feminino. Elas têm mais jeito, maior sensibilidade, mais conhecimento e uma maior prática para as executar,
sabendo, portanto, desempenhar melhor as tarefas da casa. Neste contexto, o espaço doméstico pode mesmo ser vivido pelos
homens como um espaço de “disvirilização” (Torres e Moura, 2004). Por seu turno, elas podem retirar ganhos identitários no
desempenho das lides domésticas. Estas são algo que as valoriza; elas gostam de as executar e eles gostam que elas sejam
assim. A assimetria está naturalizada e os papéis sociais femininos a desempenhar estão incorporados: elas estão habituadas,
as mulheres fazem sempre mais, eles não sabem fazer; elas querem agradar. Ambos reconhecem que elas fazem mais, mas
sentem-se satisfeitos e consideram a situação justa.
Tal como referimos anteriormente, o resultado de diversas pesquisas que se debruçam sobre a divisão do trabalho e
não pago (Perista, 1999; Torres et al, 2004, Singly, 2007; Amâncio, 2008), mostram a permanência de uma divisão
assimétrica das tarefas domésticas. Há uma sobrecarga feminina; uma responsabilização por parte delas relativamente a este
domínio. Em casa elas fazem sempre mais do que eles (tratar da roupa, limpar a casa, fazer almoço/jantar), sendo que a
maioria trabalha fora de casa.
“Eu faço mais do que ele. Eu acho que a gente tem um botãozinho, é como se estivéssemos programados. Eu chego a
casa e começo logo a tratar do jantar, e entretanto trato de apanhar a roupa ou estender e aquilo vai tudo de seguida.
(…).” (Margarida Silva, 29 anos, empregada de balcão, Lisboa)

Eles tendem a dar uma ajuda e a realizar mais tarefas no exterior da casa. As tarefas que eles, geralmente, fazem
dizem respeito ao ajudar a lavar a loiça ou pôr a loiça a lavar, adiantar e/ou fazer as refeições, fazer grelhados, pôr a roupa na
máquina, ajudar/fazer as limpezas, fazer obras, tratar do quintal e ou do jardim, dos carros, dos animais: “Muito poucas, eu
não faço quase nada. Habitualmente eu trato das tarefas que têm a ver com os carros, com o jardim e, algumas vezes, se
estiver em casa, ajudo a fazer a cama…” (Martim Couto, 35 anos, sócio gerente empresa, Porto). Os entrevistados referem
também, frequentemente, que ajudam a tomar conta dos filhos: dar banho, ajudar a vestir, lavar/buscar à escola, deitar os
filhos e/ou apoiá-los nos trabalhos de casa. Fica então claro que, apesar do aumento da participação dos homens no cuidado
com os filhos, como tínhamos já mencionado anteriormente, os homens ficam encarregues de tarefas mais esporádicas ou
ocasionais, como as pequenas reparações de equipamentos, enquanto as mulheres têm a seu cargo as tarefas mais rotineiras e
regulares (Torres e Silva, 1998).
As mulheres mais qualificadas, tendem a ter uma empregada doméstica que as ajuda nas tarefas da casa, sobretudo
a passar a ferro e a fazer as limpezas. Vimos como, nos casais tendencialmente mais tradicionais, sobretudo do Porto, a
existência da empregada retirando peso à mulher, leva a um maior afastamento do homem em relação à casa, enquanto que
nos casais mais igualitários, de Leiria e Lisboa, a empregada vem atenuar as tarefas que o casal tem que realizar, sendo que
as restantes são divididas entre os dois. Deste modo, a empregada doméstica, embora tenha um papel fundamental no retirar
de tarefas às mulheres, pode não levar a uma maior participação dos homens nas tarefas restantes, justificando antes a sua
menor participação entre alguns casais.
“Houve uma altura em que ajudava mais... Não muito nas tarefas domésticas, por feitio, por educação, por uma série
de coisas. Depois, por uma série de coisas que aconteceram na vida… eh pá, tenho uma empregada todos os dias, tenho
não sei quê, portanto, demarquei-me um bocado e deixo-as para a minha mulher… E hoje os filhos também ajudam
imenso… a pôr a mesa, a levantar a mesa, em muitas coisas.” (André Teixeira, 42 anos, empregado de escritório,
Porto)

Contudo, é notória a manutenção de uma forte incorporação dos papéis tradicionais, sobretudo entre os mais velhos
e nos sectores operários: “é o dever da mulher”, elas preferem fazer; fazem “naturalmente”, melhor e mais depressa. Elas
podem ainda assumir a responsabilidade pela assunção das tarefas domésticas, sentindo-se culpadas. Por sua vez, eles
acomodam-se: “ela sabe desempenhar melhor”, é uma questão de educação ou de hábito.
“Porque tenho mais disponibilidade de tempo, venho mais cedo. (...) Uma pessoa é que acaba por ser um bocado
culpada de logo no início não ter distribuído as tarefas. Eu acho que a mulher aí é sempre a subcarregada porque
quando os miúdos são pequeninos é a mãe sempre que faz e eu acho que depois também a mãe acha que só a mãe é
que sabe fazer bem. (...) também acho que vêm de uns hábitos familiares, eu acho que os pais dele também não o
educaram nesse sentido, eu vejo que por exemplo as raparigas ajudam muito mais, eu em casa da minha mãe fazia de
tudo e o meu irmão não fazia nada. Se eu estou a fazer isto, ele pode estar a estudar um bocadinho mais com, dar uma

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explicação de matemática aos filhos, ajudá-los naquelas áreas que eu ajudo menos.” (Matilde Santos, 46 anos, chefe de
departamento de actividades culturais de museu, Porto)

“Aconteceu assim, porque ele, na altura que foi criado, não é? Eram as mulheres que faziam as lides de casa. Casou
ainda era isso. E depois eu também nunca lhe exigi, fui criada também assim, achava que a mulher é que tinha que
limpar a casa e que tratar da roupa e tratar da comida. Agora ao fim destes anos todos, não aprendeu, não fez.” (Juliana
Dias, empregada de balcão, Leiria)

Deste modo, homens e mulheres afirmam a sua identidade pessoal como completa. Sendo que a realização das
tarefas domésticas fazem parte das actividades performativas de produção de género, algumas mulheres assumem a sua
realização como forma de provar a sua identidade sexuada. De forma semelhante, alguns homens podem rejeitar a realização
de determinadas tarefas domésticas, em parte para evitar uma certa feminização da sua identidade (Singly, 2007).
A existência ou não de uma actividade profissional é um factor que influência na divisão das tarefas domésticas. No
caso das mulheres desempregadas há um “retorno” à casa, isto é, a falta de emprego leva as mulheres a assumirem as tarefas
como suas, mesmo como forma de contribuição para a casa.
“Eu acho que quando estou mais aflita por algum motivo, ele ajuda. Quando não estou, quando estou mais disponível
acho muito justo eu ter a responsabilidade da casa e de tudo, que parecendo que não, é muito, até com o miúdo é muita
responsabilidade e muito trabalho, mas acho justo porque ele tem muito trabalho.” (Mónica Amaral, 26 anos, socióloga
desempregada, Lisboa)

Mas não é apenas a questão do desemprego que leva as mulheres a assumirem a maior parte das tarefas. Quando
ambos trabalham fora de casa, mas existe uma percepção que os homens trabalham mais, as mulheres assumem a realização
das tarefas domésticas. Consideram que o cônjuge está cansado, já vem tarde, pelo que acabam por assumir essa
responsabilidade. No entanto, o facto das mulheres trabalharem fora de casa é motivo para que eles dêem uma ajudinha
(maior ou menor), sobretudo com os filhos.
“É assim, tento sempre ajudar a esposa, como ela tem trabalho, tem emprego, tento sempre ajudar. Nós temos dois
filhos, isso já se sabe com filhos em casa há sempre trabalhos dobrados […]. Ou faço eu as camas, por exemplo, ou
vou aspirar está ela a lavar a roupa. Pronto, é preciso estar sempre a conjugar as coisas, depois passamos em casa os
quatro…” (Manuel Carvalho, 35 anos, operário, Leiria)

O modo como as tarefas domésticas são realizadas entre o casal, geralmente, muda ao longo do tempo. Factores
como a mudança de casa, a contratação ou o despedimento de uma empregada doméstica, a situação perante o trabalho dos
indivíduos ou o nascimento dos filhos, geralmente implicam uma reorganização da divisão das tarefas domésticas no
contexto do casal. A maior participação dos homens no domínio do trabalho não pago aquando do nascimento dos filhos é
bastante exemplificativa dessas dinâmicas conjugais, no domínio das tarefas domésticas.
“Eu reconheço que [as tarefas domésticas] foram mudando devido à situação dos filhos, devido à situação da
profissão… foram mudando bastante. Por exemplo, quando casei, nos primeiros 3 anos, não fazia nada. A partir do
momento em que tive filhos, comecei a ajudar basicamente em tudo, naquilo que sei. E isso continua. Desde que
nasceu o segundo, as coisas começaram a ser insuportáveis só para uma pessoa… Há mais louça, há mais roupa, então
comecei a fazer… basicamente a fazer as coisas que ainda hoje faço.” (Diniz Gouveia, 42 anos, corticeiro, Porto)

A percepção da justiça e do sentimento quanto à divisão das tarefas domésticas está profundamente relacionado
com as práticas e as representações que os entrevistados têm neste domínio das suas vidas. Como refere Amâncio (2008) “as
representações sobre os papéis sexuais e os valores que lhes estão associados assumem particular importância, na medida em
que o grau de identificação com as normas que deles decorrem é determinante da capacidade de resistir ou não ao conflito
gerado” (idem: p. 187). Acresce ainda que as funções da vida conjugal não se inscrevem apenas sobre um registo da
igualdade (Singly, 2007). Há também uma procura do reconhecimento pessoal, que nem sempre é fácil de encontrar noutras
esferas da vida. Assim, se existem justificações, para o modo como a divisão das tarefas domésticas é realizada, que fazem
parte de uma concepção de igualdade, outras há que remetem para o reconhecimento do outro (idem). É ainda necessário ter
em conta que a vivência em casal é um contexto muito específico, sendo um lugar de afectos (Torres, 2002), onde mais do
que uma simples contabilização da realização das tarefas domésticas, há todo um conjunto de trocas simbólicas de contornos
afectivos e sexuais que ganham outros significados. Assim, é possível compreender como situações que objectivamente
possam parecer injustas, não sejam vividas como tal pelos membros do casal (idem).
Ora, entre os casais igualitários, tanto eles como elas, tendem a considerar a divisão das tarefas domésticas justas e
a sentirem-se satisfeitos. No entanto, também nos casais mais assimétricos (sobretudo nos operários) existe um sentimento de
justiça e satisfação perante a divisão das tarefas domésticas, relacionada com a forte incorporação dos papéis sociais de
género. Entre os casais assimétricos atenuados (em que eles dão uma ajudinha) existem diversos sentimentos perante a
divisão das tarefas domésticas: pode haver uma compreensão porque consideram que eles trabalham mais horas do que eles;
ambos podem considerar que a situação é injusta, mas estão conformados por uma questão de hábito ou de educação,
podendo, em alguns casos, sentir-se satisfeitos; um dos dois (especialmente elas), ou ambos, podem sentir a situação como
injusta.
Todavia, embora a maioria dos entrevistados nos dê conta da existência de desabafos, queixas ou críticas que são
feitas, sobretudo, pelas mulheres, uma parte significativa dos nossos entrevistados nega a existência de conflitos a propósito

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das tarefas domésticas. Quando “reconhecem” a existência de conflitos, falam sobretudo em pequenos conflitos,
especialmente, pelo facto delas estarem cansadas e de eles não participarem nas tarefas domésticas. Apenas uma pequena
parte dos entrevistados assume a existência de conflitos. Mas, à medida que a idade avança, os conflitos podem ser encarados
como normais e relativizados. Elas tendem a assumir, mais do que eles, a existência de alguns conflitos, ou pelo menos de
desabafos e queixas. São as mulheres profissionais técnicas e de enquadramento que mais parecem queixar-se desta dimensão
das suas vidas, o que poderá dever-se a um maior desfasamento nas suas expectativas iniciais com a vivência da sua realidade
actual.
“Às vezes lá coiso que ele podia me ajudar um bocadinho mais na limpeza ou qualquer coisa, naquelas situações que
eu vejo que ele não tem muito que fazer e podia-me coiso, mas também são essas poucas vezes, por isso… não, não há
assim…” (Carolina Arroteia, 33 anos, contabilista, técnica oficial de contas, Leiria)

No geral, as mulheres referem várias vezes que gostariam que o cônjuge participasse mais nas tarefas domésticas
ou que ajudasse sem elas terem que pedir. Algumas mulheres com mais de 20 anos de duração de casamento dizem que
punham os filhos a participar mais ou que lhes teriam ensinado a fazer as tarefas. Eles tendem a referir mais que elas que não
mudariam nada na realização das tarefas domésticas. Ambos dizem que gostariam de ter uma empregada doméstica, ou
quando já têm, que esta trabalhasse mais horas na sua casa.
“Se eu pudesse a cada um tinha que fazer as suas obrigações, tratar das suas coisas ou então dividir, um fazia uma
coisa, outro fazia outra, outro fazia outra, mas todos fazer, não é? Porque também um tar a lavar a roupa, outro a lavar
a roupa, outro a lavar a roupa também não dava, não é? Pronto, depois enquanto um lavava a roupa, outro tinha que
fazer outra coisa, dividir as tarefas por todos, isso é que devia ser assim.” (Armanda Serra, 46 anos, empregada
doméstica, Leiria)

Temos então uma presença do modelo assimétrico tradicional, sobretudo, entre os casais com maior duração de
casamento, entre os casais do Porto e/ou entre os casais operários. O modelo assimétrico atenuado está presente em todas as
regiões, sendo mais frequente entre os indivíduos mais qualificados de todas as gerações. Quanto aos casais que praticam um
modelo mais igualitário, constituindo uma minoria entre os entrevistados, encontram-se entre os indivíduos mais jovens e
qualificados de Lisboa, e em alguns casais mais qualificados com mais de 10 anos de duração de casamento, de Leiria e
Lisboa.

Conclusão
No que ao trabalho diz respeito, foi considerado enquanto um aspecto central da vida dos indivíduos, tal como
referido por diversas pesquisas (Kóvacs, 2002; Torres, 2004; Casaca, 2005; Torres e Moura, 2004; Torres et all, 2004, 2006;
Crompton, 2006; Carvalho da Silva, 2007). Homens como as mulheres, das várias gerações, regiões e posições sociais,
valorizam o desempenho de uma actividade profissional.
No entanto, os entrevistados mais qualificados falam em realização pessoal, o que denota a importância da
actividade profissional para a construção da sua identidade pessoal. Neste sentido, os indivíduos, com maior duração de
casamento, deste sector profissional, fazem referência a um forte sentimento de satisfação com o trabalho, não só
profissional, como também pessoal, dando conta de um percurso escolhido e construído: de um projecto realizado. Mas, se os
entrevistados dos sectores mais qualificados falam de realização pessoal, as mulheres operárias, operárias fabris ou
empregadas domésticas, na maioria dos casos, sentem-se satisfeitas com os seus trabalhos, mesmo quando estes são pesados.
O trabalho do cônjuge é, geralmente, aceite, quer por homens, quer por mulheres. É assim que os homens referem
respeitar o trabalho da sua esposa, apoiando-as quando estas estão desempregadas e expressando o desejo que estas
encontrem um trabalho que as realize. Entre os entrevistados, existe assim uma aceitação generalizada do trabalho das
mulheres, o que vai de encontro aos referido por Torres (2004) e André e Feio (2000) sobre a importância cultural do
trabalho em Portugal e da perda de influência da ideologia da domesticidade.
A influência do trabalho na vida familiar é sentida pela generalidade dos entrevistados, existindo apenas uma
minoria que refere conseguir separar trabalho da família, que, usualmente, não leva problemas para casa e que tem um
horário que lhes permite conciliar ambas as esferas. Os horários de trabalho são um aspecto essencial no que se refere às
influências que este tem na família. Embora sejam uma minoria, existem entrevistados que referem que o tipo de horário de
trabalho (por exemplo, o trabalho por turnos ou a flexibilidade das horas de trabalho) efectuado é uma ajuda na articulação do
trabalho com a família. Contudo, os homens confessam, frequentemente, que o tempo que passam no trabalho os impede de
passar mais tempo em família e, especialmente, com os filhos. Existem também mulheres, nomeadamente as profissionais
técnicas e de enquadramento menos qualificadas, com mais de 10 anos de duração de casamento, que se queixam das horas
de trabalho que têm que realizar, referindo mesmo que gostariam de diminuir as suas horas de trabalho, de modo a poderem
conciliar mais facilmente trabalho e família.
Mas existem outros aspectos em que o trabalho influencia a vida familiar e/ou a família. Entre estes encontram-se a
possibilidade de obter um rendimento, algo que é sublinhado pelos operários e profissionais técnicos e de enquadramento
menos qualificados, traduzindo assim as responsabilidades que os indivíduos casados têm face à família. Outro dos factores
valorizados é o das sociabilidades, especialmente entre os mais jovens, mas também entre mulheres mais qualificadas e com
mais de 20 anos de duração de casamento de Lisboa. Ainda pela positiva, um outro aspecto a salientar é o do sentimento do

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trabalho como fonte de realização pessoal e de autonomia, o que é referido, sobretudo homens e mulheres mais qualificados;
sendo que os operários mais velhos de Leiria demonstram uma forte identificação com o trabalho.
Pela negativa, é ainda de destacar as preocupações que se levam para casa e que geram maiores desentendimentos
no casal e menor paciência para a família, especialmente entre as mulheres mais qualificadas.
Volta a salientar-se a importância do emprego na estruturação das identidades individual e colectiva. O trabalho é
um meio de acesso a uma fonte de rendimento, mas também de integração e coesão social, de satisfação, realização pessoal e
de sentimento de autonomia individual. A perda de um emprego implica para as mulheres uma perda de autonomia, material
e subjectiva, a possibilidade de assimetria das relações de poder entre homens e mulheres e de fortalecimento do
tradicionalismo das mesmas (Casaca, 2005). Assim, homens e mulheres são motivados pela esfera do trabalho. Mesmo para
as mulheres casadas e com filhos “o trabalho é um valor em si mesmo, que vai para além da necessidade económica de haver
dois rendimentos, tendendo a fazer parte de um modelo identitário feminino forte” (Torres et all, 2006). É neste âmbito que
se compreende que as mulheres “investem ou querem investir nas duas frentes [trabalho e família]” (idem: p. 140). Contudo,
a possibilidade destas poderem concretizar este desejo de “duplo investimento no trabalho e na família depende de condições
concretas e específicas que, variando de país para país, podem, nalguns casos criar dilemas e impor opções não desejadas”
(idem).
Já no que diz respeito às tarefas domésticas verifica-se a manutenção de assimetrias. Embora possam existir alguns
casais mais igualitários, sobretudo entre os profissionais técnicos e de enquadramento, na generalidade, as mulheres tendem a
realizar a maior parte das tarefas domésticas, enquanto os homens se limitam a dar uma ajuda.
Permanece então uma forte incorporação dos papéis de género tradicionais, em que as mulheres assumem para si a
realização das tarefas domésticas, que consideram fazer melhor e mais depressa. Para as mulheres operárias esta assunção das
tarefas domésticas traduz-se em ganhos identitários, que as identifica enquanto mulheres. Já para as mulheres com profissões
mais qualificadas a realização das tarefas domésticas assume-se com um sentido mais instrumental, aqui é a necessidade que
impera.
É curioso verificar que uma análise dos resultados ao nível dos valores e das representações sobre o género, o
trabalho e a vida familiar conduz a conclusões que são substancialmente distintas daquelas que podemos retirar dos dados
sobre práticas concretas de divisão do trabalho. Isto porque persistem descontinuidades importantes entre as práticas efectivas
de divisão do trabalho e as representações veiculadas pelos dois membros do casal. Globalmente, pode-se afirmar que as
declarações de adesão a valores tendem a ser substancialmente mais adeptas de valores modernos, isto é, num sentido amplo
e como sinónimo de aceitação das ideias de paridade, igualdade, simetria entre homens e mulheres, do que os padrões de
divisão do trabalho observados.
Com efeito, e embora se tenham registado evoluções muito significativas no que refere a uma distribuição mais
igualitária entre homens e mulheres do trabalho pago e não pago (pelo menos ao nível simbólico e ideológico), uma das
características das sociedades modernas, continua ainda a configurar-se no plano das relações de conjugalidade, padrões
assimétricos de partilha na maioria dos casais portugueses. Tal traço característico da divisão do trabalho entre sexos, quer no
que se refere às tarefas domésticas, quer no que diz respeito aos cuidados com as crianças, torna-se quase paradoxal quando
se analisam os resultados da avaliação da justiça dessa partição das tarefas. Sobre estes indicadores, tanto homens como
mulheres manifestam uma quase total concordância com as formas instaladas de divisão, considerando-as justas ou muito
justas (Torres, 2000).
Numa investigação realizada e coordenada por Torres (2000) ficou claro que do pequeno conjunto das mulheres
que classificam a situação como injusta sobressaem, como seria de esperar, as que trabalham profissionalmente e as mais
instruídas. Porém, estes valores são, de qualquer modo, surpreendentemente baixos se considerarmos a enorme sobrecarga de
tarefas que recai sobre estas mulheres. São mais as mulheres do que os homens a considerar a divisão das tarefas domésticas,
mais ainda do que os cuidados com as crianças, como injusta. Este dado não parece surpreender, mas pelo contrário e tendo
em conta por um lado, que a assimetria da divisão penaliza as mulheres e sabendo, por outro lado que os cuidados com as
crianças gratificam mais quem os assegura do que as outras actividades domésticas; surpreende-nos, sim, o facto de a maior
parte dos entrevistados (principalmente mulheres) viverem numa situação tão desigual ao nível das práticas e no entanto a
considerarem como justa, ao nível das representações.
De salientar, por outro lado, o facto de a maioria dos casais entrevistados afirmarem a inexistência de conflitos a
propósito da divisão das tarefas domésticas. Nota-se que embora a maioria dos homens e mulheres, independentemente de
exercerem actividade profissional, declare que os conflitos nunca existem, tanto em relação às tarefas, como em relação aos
cuidados com as crianças, as mulheres que têm profissão afirmam menos do que as domésticas que nunca há conflitos.
A análise dos discursos dos entrevistados, em especial nas dimensões da divisão objectiva das tarefas domésticas e
dos cuidados com os filhos, a avaliação subjectiva da (in)justiça dessa partição e os possíveis conflitos inerentes, permite-nos
afirmar que apesar de existir efectivamente uma sobrecarga para o lado das mulheres ao nível das práticas no contexto
conjugal, ela não é exteriorizada nos discursos seja na declaração de injustiça, seja na declaração de conflitos na relação
conjugal.
Há que ter sempre presente que estamos a lidar com as práticas efectivas e com as representações dos indivíduos,
mas inseridas num contexto muito específico, o da conjugalidade enquanto lugar de afectos (Torres, 2002). Assim, muito
mais do que a simples contabilização da prática das tarefas domésticas e da sua divisão mais ou menos equilibrada entre
homens e mulheres, há todo um conjunto de trocas simbólicas de contornos afectivos e sexuais na vida conjugal, que ganham

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outros significados. Deste modo, torna-se mais claro perceber que uma situação objectivamente injusta pode não ser vivida
nem declarada como tal pelos seus protagonistas.
O desempenho da maioria das tarefas domésticas e dos cuidados com as crianças é assegurado quase
exclusivamente e em termos globais pela mulher, o que está profundamente relacionado com as expectativas tradicionalistas
sobre os papéis masculino e feminino na nossa sociedade. Por isso, a mulher que desempenha um trabalho profissional tenta
corresponder às expectativas que integram o papel feminino, acciona disposições que lhe foram sendo inculcadas, tendo
sempre presente a preocupação em provar que para além de ser uma boa profissional, é principalmente uma excelente mãe,
também capaz da gestão doméstica. Sobre ela recai a responsabilidade de conciliar profissão e vida familiar, mas nunca sobre
o seu cônjuge. A prevalência destas profundas diferenças, explicáveis pelas assimetrias de género, é particularmente aguda
no caso português exactamente porque as mulheres, e em particular as mães, são as que mais horas trabalham
profissionalmente nos países da União Europeia (Torres, et al., 2004).

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Relações familiares violentas


Sandra Lourenço
Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO
[email protected]

Resumo: A violência doméstica contra mulheres é uma das formas de materialização da violência estrutural inscrita no sistema de
exploração-dominação. Este trabalho analisou a realidade vivida por mulheres que sofreram violência doméstica desde sua infância.
Objetivou-se neste estudo analisar o modo de pensar e de agir dessas mulheres, tendo em vista contribuir no aprofundamento das
investigações nesse campo complexo. Utilizou-se a abordagem qualitativa viabilizando condições para a compreensão da consciência como

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imanente às ações dos sujeitos sociais. Optou-se por alguns instrumentos de coleta dos dados, tais como a observação participante, a
entrevista e a análise documental. Com relação às respostas das mulheres sujeitos da pesquisa, estas ocorreram de forma complexa. Nas falas
e ações dos sujeitos se presentificaram elementos instituídos e instituintes da ordem falocêntrica. Como consequências disso, as mulheres
encontraram dificuldades para compreender a realidade vivenciada, o que implicou em ações isoladas na tentativa de enfrentamento da
violência doméstica ou até mesmo na permanência em relações violentas. Evidentemente, a superação da violência contra mulheres é uma
arena onde interesses antagônicos de gênero travam duras lutas, porém é justamente essa arena contraditória que fornece as condições para a
sua superação.

Introdução
A violência contra mulheres é um fenômeno cuja visibilidade social foi possível por conta das intensas
reivindicações dos movimentos de mulheres. O abuso sexual; o estupro; o turismo sexual e tráfico de mulheres; o assédio
sexual e moral no local de trabalho; a discriminação; a violência institucional, cometida por omissão; a mutilação genital
feminina; os crimes ligados ao dote; o estupro em massa nas guerras e conflitos armados, são formas de violência contra
mulheres.
Os dados desse tipo de violência de acordo com Saffioti (1994) registrados não só no Brasil como nos outros
países, denotam o quão endêmica é a violência de gênero, atingindo todas as mulheres independemente de sua condição de
classe social, de cultura, de nível educacional.
Uma das formas de materizalização da violência contra mulheres é a violência doméstica. Esse tipo de violência é
uma violação de direitos e objetiva-se por meio da violência sexual, física e psicológica que, em geral são perpetradas pelo
agressor concomitantemente e, em muitos casos, reincidentemente.
Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2001 (VENTURI; RECAMÁN; OLIVEIRA, 2004), coligiu
dados sobre a desigualdade de gênero no Brasil, tendo como um de seus eixos a violência contra mulheres. Para a coleta de
dados, o Núcleo de Opinião Pública desta Fundação entrevistou 2.502 mulheres acima de 15 anos de idade residentes em
áreas urbanas e rurais em todo o território nacional. No que toca à violência doméstica, entendida como aquela que envolve
pessoas que vivem parcial ou integralmente no mesmo domicílio possuindo ou não laços de consanguinidade, a estimativa é
de que 6,8 milhões de mulheres (11% das brasileiras vivas) sofreram no mínimo um espancamento. Sendo assim,
aproximadamente, 2,1 milhões são vítimas de Lesões Corporais Dolosas (LCD) ao ano; 175 mil ao mês; 5,8 mil ao dia; 243 a
cada hora e, por conseguinte, quatro vítimas por minuto ou uma a cada 15 segundos.
Esse índice torna-se mais alarmante ao responderem espontaneamente, haja vista que, 19% das entrevistadas
declararam ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem. Destas, 16% sofreram violência física; 2%
violência psicológica; e 1% assédio sexual. Na medida em que foi apresentada a tipologia da violência, 43% afirmaram ter
sofrido algum dos tipos de violência, sendo que destas 33% citaram a violência física; 24% foram privadas do direito de ir e
vir, sob ameaça de uma arma; 22% sofreram agressões; 13% sofreram estupro conjugal ou abuso sexual; 27% sofreram
violência psicológica (ofensas à conduta moral) e 11% assédio sexual. A tipologia de violência é classificada desta maneira,
isto é, em separado, para dar visibilidade à gravidade da questão, entretanto, vale ressaltar que os tipos de violência não
ocorrem isoladamente. Na verdade, o que se verifica de acordo com os relatos das usuárias dos serviços de apoio, é que são
praticadas mais de uma forma de violência concomitantemente.
O estudo aqui apresentado, nasceu da inquietação da pesquisadora frente à necessidade de apreensão da violência
doméstica a partir da vivência das mulheres que a sofrem. Entede-se que este é um elemento central para a compreensão
deste fenômeno complexo e que se presentifica no cotidano de um número significativo de mulheres.
Este trabalho analisou a realidade vivida por mulheres que sofrem violência doméstica desde sua infância.
Objetivou-se neste estudo analisar o modo de pensar e de agir dessas mulheres, tendo em vista contribuir no aprofundamento
das investigações nesse campo.
Para a coleta de dados, elegeu-se o município de Guarapuava, no Estado do Paraná, onde a pesquisadora atua como
docente em uma universidade pública, chamada Universidade Estadual do Centro-Oeste.
Esta pesquisadora, realizou um mapeamento da violência doméstica em Guarapuava, por meio do estudo e da
análise de todos os Boletins de Ocorrência (BOs) e Termos Circunstanciados (TCs) lavrados entre julho de 2001 e junho de
2002, visando levantar as seguintes informações: natureza da ocorrência, bairros com maior incidência, dados de
identificação da vítima e do agressor, como: idade, escolaridade, trabalho; o horário das ocorrências, entre outros aspectos
que facilitaram o conhecimento da materialização desse fenômeno naquela localidade.
Delimitou-se esse período (2001 a 2002), pois foram esses os documentos disponibilizados pela Polícia Militar, a
qual informou que os BOs lavrados em período posterior estavam passando por sistematização em banco de dados
informatizado e seriam disponibilizados em outro momento.
Corroborando a escolha por essa análise documental, a Delegacia de Polícia Civil (DPC) 14ª. Subdivisão, que
naquele momento era a responsável pelos casos de violência doméstica no Município, informou que a melhor maneira de
levantar esses dados seria a partir do estudo dos documentos disponibilizados pela Polícia Militar, devido às condições
precárias de atendimento da DPC, uma vez que não havia uma delegada na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de
Guarapuava, o que gerava uma situação em que raramente eram lavrados BOs dessa natureza. Por sua vez, a polícia militar
(PM) era a primeira a ser chamada para atender as ocorrências, tendo, portanto, um contato direto com essa realidade.

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Essa fase de análise durou aproximadamente 8 meses, durante os quais foram estudados todos os BOs registrados
no período eleito, totalizando 9.292 (nove mil, duzentos e noventa e dois), dos quais 11% eram referentes à violência
doméstica.
Pôde-se verificar com esse levantamento que, no Município de Guarapuava, aproximadamente 95 registros de
violência doméstica foram lavrados ao mês, sendo uma média de 3 ao dia. Vale lembrar que esses números elevados diziam
respeito aos dados que são registrados. Entretanto, de acordo com o Conselho Nacional da Mulher, estima que
aproximadamente 50% dos casos de violência doméstica não são registrados. Além disso, constatou-se que dos casos que
acionaram a PM, 95,7% das mulheres que sofreram violência doméstica não prestaram queixa.
O silêncio das mulheres, isto é, a solicitação de ações imediatas da PM ou da polícia civil (PC), rejeitando qualquer
forma de continuidade do processo criminal como a instauração do inquérito policial foi, muitas vezes, afirmado pelas
usuárias desses serviços, como o desejo de apenas uma represália, um susto no companheiro para que ele deixe de agir
violentamente. Comum tornava-se a prática de solicitar, horas depois ou mesmo no dia seguinte, que o processo fosse
“engavetado”.
Essa situação refletiu elementos da ordem patriarcal de gênero, cujas formas de materialização também se dão pelo
medo e a vergonha em denunciar a violência doméstica; pelas ameaças que vão desde a perda da guarda dos filhos até as
ameaças de morte e tentativas de homicídio; pelas inúmeras dificuldades de encontrar apoio até mesmo junto à rede familiar
e da comunidade onde vive; pelas influências culturais e religiosas que, ainda hoje, preconizam a manutenção do núcleo
familiar “até que a morte os separe”, conforme, por exemplo, o ritual do casamento católico; pelos preconceitos e
discriminações que muitas mulheres sofrem após a dissolução da relação conjugal. A autonomia financeira também pode se
tornar um agravante para o enfrentamento dessa situação. A escassez e precariedade dos serviços de apoio e de segurança que
acolham e acompanhem as mulheres cujos direitos são violados também potencializam as dificuldades de superação da
violência doméstica.
Com relação às localidades com maior incidência de registros, destacaram-se os bairros: Xarquinho, Santana, Carli
e Morro Alto, com 40% dos casos. Estes estão situados na região periférica da cidade, onde houve um maior número de
denúncias e, não necessariamente são os bairros mais violentos. O registro policial da violência conjugal contra mulheres em
bairros populares se deu em número mais elevado do que em bairros de segmentos abastados em função de que o recurso
policial foi a alternativa existente para as pessoas de segmentos pobres.
A violência conjugal doméstica não ocorre necessariamente mediante a condição de classe. É preciso cuidar para
não incorrer numa análise mecânica entre violência e pobreza. Para tanto, é preciso perquirir a realidade com o intuito de
levantar as suas conexões e a complexidade das relações sociais.
Outro dado constatado referiu-se ao maior número de ocorrências que se deram durante o período noturno (noite e
madrugada), totalizando 62,4%. Isso ocorreu, uma vez que, em geral, os membros da família estavam no espaço doméstico
nesse período, adensando os conflitos pela permanência em um período de tempo prolongado, momento no qual o homem
provedor encontrava-se nesse espaço, demandando dedicação direta dos demais membros para o atendimento de suas
requisições.
É importante deixar claro que, esta pesquisadora preocupou-se com a violência cometida contra mulheres, já que,
somente em Guarapuava essa população constituiu aproximadamente 85,3% das vítimas ao passo que 76,5% dos agressores
foram homens. A constatação de que o maior número de agressores no espaço doméstico foram homens e, em contrapartida,
as mulheres foram as que mais sofreram com essa violação de direitos é um fenômeno que ocorre não somente nesse
Município uma vez que, é derivado da ordem patriarcal de gênero, cuja primazia é masculina, compreendendo este o vetor da
violência.
Deparou-se com uma dificuldade no levantamento dos principais crimes cometidos contra mulheres por meio da
análise dos BOs, por conta do relato dos/das policiais que não detalharam as formas de violência, pois descreviam o que
elas/eles denominaram genericamente como maus tratos referindo-se a: violência física, verbal, sexual e moral abarcando
59,7% seguida da ameaça com um total de 27,6%. Os relatos das/dos policiais disseram muito pouco sobre os crimes
cometidos contra mulheres, o que dificultou o conhecimento desse fenômeno por meio desses documentos.
No tocante à faixa etária dos agressores, 53% encontraram-se entre os 21 e 40 anos de idade. Uma parcela
significativa das mulheres violadas (43%) também está nessa faixa etária, entre 21 e 40 anos, atingindo pessoas que se
encontram na fase reprodutiva da vida e que são consideradas economicamente ativas, exercendo ou não atividade
remunerada no momento da pesquisa.
No Brasil, de acordo com os dados da Fundação Perseu Abramo (VENTURI; RECAMÁN; OLIVEIRA, 2004),
53% das mulheres são consideradas economicamente ativas. No mercado de trabalho, as mulheres sofrem discriminações
como, por exemplo, as diferenças salariais entre trabalhadoras e trabalhadores que exercem funções idênticas. Essas
diferenças encontram-se em torno de 30%, conforme dados do IBGE (2003).
Outro aspecto destacado foi o fato de que os agressores exerciam majoritariamente atividades sem nenhum vínculo
empregatício, principalmente, como empregados domésticos, pedreiros, mecânicos e, ainda, aqueles que viviam de trabalhos
esporádicos, totalizando 63%. Isso revela que nos meios populares a violência doméstica é mais exposta, haja vista que, esse
é um fenômeno que ocorre em todas as classes sociais. Além disso, esse é um quadro referencial não somente dessa
localidade, mas que reflete a atual condição dos trabalhadores.

37
Conforme dados do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), a população
economicamente ativa encontra-se em torno de 71.307, sendo que desta, apenas 29.807, aproximadamente 42%, exercem
atividade remunerada.
Dentre os agressores identificados no Município de Guarapuava, houve também 18% que eram profissionais
liberais: médicos, contadores, engenheiros, dentistas, entre outras áreas afins, demonstrando que a violência contra mulheres
ocorre independentemente de condição sócio-econômica e de formação educacional, além do fato de que há um crescimento
das denúncias nesse meio.
No caso das pessoas que sofrem violência, 26,1% não perfazem renda alguma, já que são donas-de-casa. 25,1% são
empregadas domésticas, o que dificulta a tomada de decisão no sentido romper a relação com aquele que é o provedor do lar,
uma vez que, um número significativo de mulheres não possui autonomia financeira.
Comprovando as estatísticas no âmbito nacional, os agressores são aqueles com os quais as mulheres estabelecem
relações de confiabilidade e de convivência, já que 57,4% dos perpetradores da violência são os homens com os quais as
mulheres mantêm relação de conjugalidade.
Esta é uma região repleta de contradições que não se objetivam de forma isolada, mas que refletem uma dinâmica
sócio-histórica mais ampla. Este espaço serviu de referência para a pesquisa, no caso, um Município no qual se depara com
interesses antagônicos de classe, com a acumulação do capital baseada em um modo de produção capitalista pautado na
exploração da mais-valia, sob um ideário burguês e latifundiário. Conta ainda com a precarização do trabalho e com
inúmeros sujeitos que não têm e dificilmente terão a possibilidade de ingressar no mercado formal de trabalho por falta de
qualificação e pela própria lógica do capitalismo maduro do século XXI que mantém um significativo contingente
populacional no mercado informal e sob os auspícios da flexibilização do trabalho.
A realidade torna-se mais complexa à medida que se depara com as respostas para o enfretamento das demandas
apresentadas pela população por parte do Estado. No aspecto sócio-econômico poucos são os investimentos para superar
tamanhas dificuldades. Em um estudo realizado pelo Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social, alguns
autores afirmam que isso se deve ao fato de que, em Guarapuava, a estrutura da terra está organizada em grandes
propriedades; há presença de atividades com baixo potencial gerador de emprego as quais são incapazes de desencadear
outras atividades, além do baixo potencial para o uso agrícola (MOURA; LIBARDI; SILVA;BARION, 2006).
Nesse contexto, analisou-se a manifestação da violência doméstica contra mulheres a partir do olhar desses sujeitos,
o que será brevemente apontado a seguir.

O desenho da pesquisa
Vários são os caminhos teórico-metodológicos para a construção de uma pesquisa. Ao pensar sobre esse processo,
definiu-se como direção aquela que possibilitasse investigar e explicar a dinâmica do real, do existente, levando-se em
consideração sua complexidade e contradições cuja materialização deu-se em um determinado recorte espaço-temporal
situado historicamente, brevemente apontado na introdução deste trabalho. Nesse exercício de investigação da realidade,
preocupou-se em analisar a realidade enquanto concreto pensado à luz de alguns de seus elementos para a maior aproximação
e compreensão do objeto de estudo, ou seja, o modo de pensar e de agir das mulheres que sofreram violência doméstica desde
sua infância.
O caminho metodológico foi, assim, iluminado pelo real em seu movimento,por meio da análise dos fatos e
acontecimentos, das relações sociais, das condições objetivas dos sujeitos investigados, bem como sua visão de mundo, sua
consciência enquanto ser ontológico, entre tantos outros elementos instituintes e instituídos pelo real em sua totalidade. Daí a
necessidade de perquirir permanentemente a realidade, ou, melhor dizendo, colar-se ao real.
Outra questão central na elaboração do caminho metodológico foi a compreensão de que a pesquisadora também é
sujeito do processo de produção de conhecimento, resguardados os devidos cuidados com o subjetivismo, que atribui
primazia ao indivíduo e suas representações em detrimento do real, bem como, com o objetivismo que, dentre outras coisas,
faz uma apologia à neutralidade científica.
O recorte temporal também foi considerado para fins deste estudo, uma vez que foi preciso situar o objeto também
na dimensão tempo. Assim, focou-se o ano de 2007, uma vez que, em 07 de agosto de 2006 foi criada a Lei 11.340. Esta Lei,
mais conhecida como Lei Maria da Penha foi considerada um avanço no sentido de ampliação das medidas legais protetivas
de urgência determinadoras de maior amparo às mulheres que sofrem violência doméstica e familiar.
Delimitou-se a pesquisa a partir dos primeiros cinco meses de criação da Lei Maria da Penha, acreditando-se que
esse período de implantação poderia agregar um número maior e mais qualitativamente significativo de elementos para este
estudo.
O caminho metodológico da pesquisa é algo que vai além de regras pré-estabelecidas definidoras do modo de fazer
a pesquisa. É um caminho que propicia a reflexão e um olhar diferenciado, investigativo e criativo a partir da apreensão da
complexidade e das contradições imanentes ao real enquanto concreto pensado. À guisa de perquirir o real, buscando
responder aos objetivos propostos nesta tese, a abordagem qualitativa trouxe contributos fundamentais. Dessa maneira,
debruçou-se sobre o objeto, fazendo uso dessa abordagem, tendo em vista o olhar das mulheres que sofreram violência
doméstica, o que viabilizou condições para a compreensão da consciência como imanente das ações dos sujeitos sociais, foco
desta pesquisa.

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Apesar das polêmicas em torno da questão qualitativa e quantitativa, acredita-se que ambas são instituídas e
instituintes do movimento do real em permanente interrelação, uma vez que qualidade e quantidade são inseparáveis
(MINAYO, 2004). Desta forma, supera-se a visão dicotômica entre qualidade e quantidade, percebendo-as como um
complexo constitutivo da totalidade.
A apreensão do modo de pensar e de agir dos sujeitos enquanto concreto pensado foi possível na medida em que a
pesquisadora se aproximou não apenas de indicadores, dados, índices quantitativamente sistematizados. Evidentemente, eles
alimentaram o estudo, porém foi imprescindível para essa análise perquirir profundamente o modo de pensar dos sujeitos,
pois a consciência está imanentemente articulada à dimensão concreta da vida do sujeito social. Sujeito este que se objetiva
no cotidiano, de maneira que ele não se desvincula da estrutura.
O cotidiano é instituído e instituinte de determinações históricas, isto é, trata-se de um dos níveis constitutivos da
história, no qual a reprodução dos indivíduos é a materialização da reprodução das relações sociais, num dado momento e
com suas particularidades.
Para captar essa imediaticidade e superá-la com vistas à compreensão das mediações foi preciso fazer a suspensão
do cotidiano, entendendo o campo contraditório de interesses antagônicos como fruto da relação capital-trabalho, adotando-se
assim, uma perspectiva de totalidade, por meio da qual se persegue a dinâmica e a complexidade da realidade. Assim,
entende-se que os elementos captados a partir do cotidiano dos sujeitos, seu modo de pensar e de agir devem ser analisados
em sua interconexão com as determinações históricas.
A escolha da metodologia qualitativa de pesquisa pautou-se na compreensão de que cada pesquisa é única e no
pressuposto de que a experiência social do sujeito foi fundamental para a apreensão do objeto deste estudo.
Uma arena de debate se constrói também em torno do método em pesquisa. Vale esclarecer que este é entendido
como o próprio processo de apreensão do movimento do real, ou seja, é a própria alma do conteúdo por que medeia a
complexidade do concreto pensado, enquanto materialização real e sua forma de apreensão no pensamento (LÊNIN, 1965).
Nesse sentido, dedicou-se em apreender a complexidade do movimento histórico e a sua base material na qual os indivíduos
se objetivam.
O método adotado para a produção do conhecimento aqui esboçado compreendeu o pensamento como um
complexo contraditório e em permanente movimento situado em uma dada historicidade. O uso da Triangulação foi um
recurso interessante para essa apreensão, implicando na utilização de diversas técnicas de abordagens e de análises, de vários
sujeitos e pontos de observação.
Optou-se por alguns instrumentos de coleta dos dados empíricos eleitos na medida em que se aproximava do
objeto.
A análise das experiências e vivências concretas, do imediato, do concreto humano foi entendida como um primeiro
exercício de abstração, a partir do qual foi possível estabelecer conexões e relações tendo em vista suas particularidades
captadas numa totalidade. A compreensão dessa realidade exigiu da pesquisadora a apreensão tanto do ponto de vista social,
com seus elementos gerais e suas particularidades como do ponto de vista dos fenômenos singulares e cotidianos.
O objeto deste estudo de pensamento em uma dada conjuntura histórica, política e econômica na qual os sujeitos
sociais encontram-se em movimento, cuja apreensão implicou numa perspectiva heurística, haja vista que, refletiu relações
concretas.
A escolha dos sujeitos desta pesquisa levou em consideração os objetivos propostos, os pressupostos teóricos e o
movimento da realidade, bem como as experiências que detinham enquanto sujeitos coletivos. Dessa forma, identificá-los foi
uma tarefa extremamente complexa.
Em nenhum momento houve a preocupação em levantar a representatividade numérica, pois a pesquisa qualitativa
prescinde de um grande número de sujeitos para se tornar válida, haja vista que pressupõe a aproximação do movimento do
real por meio da apreensão de significados e das experiências dos sujeitos coletivos, objetivando apreender o objeto
empiricamente em todas as suas dimensões (MINAYO, 2004). Nesse sentido, o que importou foi o significado que esses
sujeitos tiveram em função do objetivo da pesquisa (MARTINELLI, 1999).
Além disso, pressupôs-se como relevante não somente a recorrência de informações, mas também aquelas que
tiveram significância para a compreensão do objeto mesmo quando fluíram da fala de apenas um dos sujeitos.
Neste estudo, buscou-se o olhar das usuárias dos serviços de proteção, especificamente da Delegacia de Defesa da
Mulher de Guarapuava. A escolha desses sujeitos se deu por sua relevância para a pesquisa. Não houve uma delimitação de
um número a priori das mulheres que viriam a ser entrevistadas, pois, pressupôsse a inclusão de novos sujeitos na medida em
que fosse necessário. Previu-se apenas que as entrevistas deveriam ser realizadas com usuárias que já se encontravam em
acompanhamento nesse serviço.
Esse foi um momento bastante esperado pela pesquisadora já que pressupôs que as usuárias desse serviço
forneceriam novos e enriquecedores elementos para a análise do objeto de estudo. A pesquisadora acreditava que a única
forma de contato com essas usuárias, respeitando-se a ética da pesquisa com seres humanos, seria por intermédio dos/das
profissionais que as acompanhavam nos serviços públicos facilitando a criação do vínculo necessário para a realização da
pesquisa.
Todavia, a cada nova entrevista com os/as profissionais, tornava-se mais evidente que esse não seria um caminho
viável, uma vez que, somente uma profissional indicou sujeitos para a pesquisa. Os/as demais alegaram que a identificação
dessas usuárias não seria possível, pois o contato que estabeleceram com essas mulheres era apenas emergencial, uma vez

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que o acompanhamento desse público era assistemático e descontínuo, impedindo a identificação dessas usuárias nos serviços
onde atuavam.
Frente a essa dificuldade, a pesquisadora optou por realizar a entrevista com a única usuária com a qual conseguiu
estabelecer contato. Tal foi sua importância, que a pesquisa foi estruturada a partir do olhar desse sujeito, presente no corpo
deste trabalho como um todo.
Profundamente marcante pela quantidade e densidade de informações e de vivências, a trajetória dessa usuária
trouxe elementos fundamentais para este estudo. Sua vida foi permeada pela violência doméstica desde sua infância, sofrendo
os mais diversos tipos dessa violação de direitos humanos.
Esse sujeito foi considerado representativo, pois personificou o fenômeno da violência doméstica contra mulheres
em várias dimensões.
Enfim, trabalhou-se com práticas de pesquisa que consideraram o ser humano na sua totalidade, buscando a
compreensão cada vez mais detalhada e profunda do movimento do real, aproximando-se assim do objeto de estudo. Para
tanto, partiu-se de uma análise heurística, na medida em que os dados e informações coletados empiricamente iluminaram o
caminho da discussão teórica, possibilitando a apreensão do real enquanto concreto pensado e considerou-se aqueles com os
quais estabeleceu-se contatos para a coleta de dados e informações enquanto sujeitos históricos e não como objeto.

Violência doméstica: o olhar de quem a vive cotidianamente.


Analisou-se a categoria violência doméstica contra mulheres, visando apontar elementos constitutivos dos
processos sociais e a ordem falocêntrica de gênero a partir do cotidiano de uma mulher que sofreu esse tipo de violência ao
longo de sua vida. Atribuiu-se a ela o pseudônimo de “Esperança”, pois este foi o conceito central apreendido a partir da fala
desse sujeito durante toda a entrevista.
O contato com esse sujeito da pesquisa, que sofreu violência doméstica foi repleto de signficações. O início dessa
relação dialógica foi marcado da seguinte maneira:
- Qual o seu nome?
Perguntou a pesquisadora. E, em meio a um sorriso tímido, respondeu a entrevistada:
- Meu nome é tão comprido quanto a minha esperança!
Durante o relato foi possível imaginar o quanto de esperança essa mulher precisou para se fortalecer e enfrentar
tantas situações de violência ao longo de sua vida.
“Esperança” é uma jovem mulher branca, com 38 anos de idade que cursou até a quarta série primária. Atualmente
trabalha como empregada doméstica, buscando garantir a sua sobrevivência e de seus quatro filhos. Além desses quatro
filhos que residiam com ela, no momento da pesquisa de campo, possuia também uma filha que já estava casada e, que por
sua vez, repetiu o ciclo do casamento precoce tal qual a mãe. Porém, neste caso, não foi possível detectar se sofria algum tipo
de violência conjugal, já que Esperança não relatou sobre a vida da filha.
A sua condição de classe e de gênero trouxe particularidades fundamentais para a compreensão da realidade. A
questão da raça/etnia não se apresentou como um diferencial em nenhum momento do relato apresentado. Atribuiu-se à não
evidência desse elemento na vida desse sujeito, o fato de que Esperança é branca e, assim, pertencente ao grupo étnico
hegemônico.
A trajetória de vida de “Esperança” foi permeada por diversas situações de violência, especialmente no espaço
doméstico. Neste espaço, sofreu violência desde sua infância, por parte de seu padrasto, que se prolongou nas relações
conjugais. Além destas, também foi violentada em seus direitos nas instituições nas quais buscou apoio e proteção. Esses
elementos ficaram claros durante a entrevista realizada para coleta de dados e brevemente apontada ao longo deste trabalho.
Logo em sua infância, “Esperança” saiu de sua casa e foi morar com alguns parentes e conhecidos, tendo em vista a
relação difícil que mantinha com seu padrasto que exercia um controle absoluto sobre ela, seus irmãos, e sobre sua mãe,
[...] eu não tenho pai, eu fui criada por padrasto, sempre morando em casa de outros eu nunca morei junto com minha
mãe porque eu não gostava do meu padrasto era muito complicado [...] (informação verbal).

As complicações por ela aferidas no que toca à convivência com o padrasto se davam, no geral pela relação de
domínio que ele exercia sobre os enteados e na prática de atos violentos contra a sua mãe, seus irmãos e também contra ela,
para afirmar esse controle. De acordo com Saffioti (1997), esse tipo de violência é possível graças ao estabelecimento de um
território físico e de um território simbólico, nos quais os homens detêm praticamente domínio total, tendo assim, como
principais vítimas mulheres, crianças e adolescentes. Seu território geográfico é constituído pelo espaço do domicílio. Todas
as pessoas que vivem sob o mesmo teto, vinculadas ou não por laços de parentesco ao chefe do local, devem-lhe obediência.
No espaço doméstico os homens, em geral, ocupam o lugar de controle, exercendo a vigilância constante sobre os
que estão subjugados ao seu poder. Esse fenômeno incorre numa correlação de forças na qual o uso da violência torna-se um
ato concreto para assegurar o lugar de primazia de um sobre o outro, numa relação de poder e de impotência. A relação de
poder estabelecida pelo agressor/patriarca envolve a potência e a impotência. É justamente na ausência da potência que o
agressor age agressivamente, fazendo uso da violência como estratégia para manutenção de seu controle.

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O jugo do padrasto ao qual a mãe de “Esperança” permaneceu submetida ainda por um tempo significativo após a
saída dos filhos do domicílio, demonstrou o poder exercido por seu companheiro em relação a ela. O poder, por sua vez,
apareceu na forma de autoridade e, portanto, foi reconhecido e legitimado por meio da manutenção dessa relação conjugal.
O poder exercido pelo padrasto no espaço doméstico implicou em autoridade legitimada não só pela companheira,
como também materializou-se como um poder socialmente determinado pela ordem patriarcal de gênero, justificando
inclusive atos violentos.
O domínio do senhor do domicílio se deu, portanto, na relação com as pessoas com as quais mantinha vínculos não
somente consanguíneos como também de afinidade, no caso, os enteados e as enteadas que se submeteram, ao menos em um
dado momento, à lógica de um homem, considerado o chefe da família. Essa chefia não implicava no fato de o sujeito que a
detinha ser o provedor do lar, pois o sustento da família era proveniente do trabalho da mãe de “Esperança”, mas na sua
autoridade enquanto aquele que tomava as decisões e controlava o espaço do domicílio.
[...] Minha mãe trabalhava e ele era, vamos dizer bem pelo certo, gigolozão ficava só em casa e a minha mãe era quem
sustentava a casa (informação verbal).

A compreensão do espaço-domicílio é muito importante, haja vista que, o poder do senhor rompe os muros desse
espaço e se presentifica em todos os lugares por onde os sujeitos subjugados passam, pois na verdade, o controle é
proveniente da relação de opressão física e simbólica.
Esse controle consolidado no espaço domiciliar está consubstanciado na sociedade patriarcal que exclui as
mulheres dos processos de tomadas de decisão, desconsiderando-as como sujeitos históricos, seja no espaço privado ou no
espaço público.
A polissemia do conceito de patriarcado atribuído à sociedade torna-o polêmico, fazendo-se necessário o
esclarecimento teórico da importância da utilização desse termo para afirmar o vetor da violência, evitando-se assim que o
mesmo seja diluído nas relações sociais.
O patriarcado aponta para a dominação da mulher pelo homem, enquanto categorias sociais cuja prática se
desenvolve há, aproximadamente, seis milênios, de acordo com Lerner (1986).
Entende-se que a existência da relação patriarcal incide não somente na hierarquização entre os sexos, mas também
na contradição de seus interesses, isto é na manutenção do status quo para o homem e a busca pela igualdade entre os sexos,
pela mulher.
O patriarcado enovela-se com o racismo e com as classes sociais não de forma quantitativa, mas na realidade que
resulta dessa junção.
No tocante ao capitalismo, depara-se com o traço comum, presente na classe dominante em seus diversos
segmentos, que não são homogêneos, cujas singularidades consistem na sua capacidade e competência para dominar e
explorar a classe que vive do trabalho (ANTUNES, 1998). A subordinação daqueles que vendem sua força de trabalho no
mercado é absolutamente necessária para que haja a exploração, através da qual as classes dominantes obtêm lucro e se
efetivam enquanto tais. Há também nestas, aspectos heterogêneos. As classes médias possuem um traço interessante: os
trabalhadores e as trabalhadoras não estão ligados diretamente ao processo produtivo, porém, têm em comum com os
operários e as operárias o fato de que ambos são dominados pelas diferentes frações da burguesia. Assim, tanto a classe
média, quanto as operárias e os operários e os excluídos e as excluídas do processo produtivo estão submetidos a uma
ideologia conservadora, de aprovação do esquema de dominação-exploração.
Vale ressaltar, que as mudanças aspiradas por parcelas significativas da sociedade, acabam por serem solapadas
pelas posições sociais de algumas frações da classe média. Assim, os choques entre as classes e segmentos de classe,
contribuem para atrasar as conquistas da classe trabalhadora. Tendo em vista a divisão sexual do trabalho, percebe-se que ao
se tratar da produção, esse campo é destinado, predominantemente aos homens, aos quais é atribuída, historicamente, a esfera
pública, enquanto que à mulher, fica restrito o campo da reprodução, não só biológica, mas também dos aspectos culturais e
sociais a serem perpetuados através das gerações. Pode-se questionar essa postura dicotomizadora entre a produção e a
reprodução, uma vez que essas categorias formam uma totalidade no mundo das relações sociais. Embora a mulher venha
assumindo significativos espaços na esfera pública, ainda há muitas conquistas a serem efetuadas.
A questão étnica também compõe o sistema de exploração-dominação. Em termos de racismo, na sociedade
brasileira não são apenas os negros e mulatos que sofrem discriminações, mas também índios, asiáticos e, às vezes, europeus.
Ressalva-se aqui, a mulher negra, que na sociedade brasileira ocupa a última posição, justamente por sua condição de gênero
e de etnia (SAFFIOTI, 1987).
Assim, o sexismo, o racismo e o capitalismo contribuem para a manutenção do poder e do quadro de contradições
existentes, quer no que se refere ao gênero, etnias e as classes sociais. Esses três sistemas de dominação-exploração
fundiram-se de tal maneira, que será impossível transformar um deles, deixando intactos os demais.
Para a apreensão dos rebatimentos do sistema de dominação-exploração no âmbito das relações entre homens e
mulheres, há uma categoria relevante. É a categoria gênero, a qual contribuiu diretamente neste estudo.
Gênero como uma categoria de análise histórica, dentro de uma perspectiva cultural, é analisado por Joan Scott e
Linda Nicholson. Para essas autoras, gênero se refere a um conjunto de significados e de símbolos construídos sobre a base
da percepção da diferença sexual, porém ampliando-o com a compreensão cultural e histórica, considerando-o como uma
categoria de análise.

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Essa é uma concepção interessante, na qual há o enfoque do processo de construção histórico e cultural, abordando
a relação de poder existente entre os sexos, numa perspectiva analítica. Nesse sentido, Scott (1990) esclarece que gênero
implica em quatro elementos, numa proposição inicial.
O primeiro refere-se aos símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas e
contraditórias. O segundo, sobre os conceitos normativos que evidenciam as interpretações do sentido dos símbolos,
expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas, com combinação binária do masculino e
feminino. Um terceiro aspecto reporta-se à análise da natureza do debate ou repressão produzindo a aparência de uma
eternização na representação binária do gênero, devendo incluir uma noção de política e uma referência às instituições e à
organização social. Por fim, um quarto elemento: a identidade subjetiva, devendo-se estudar as maneiras pelas quais as
identidades de gênero são construídas e relacioná-las com as representações sociais, organizações, entre outras,
historicamente situadas.
Saffioti também discute o conceito de gênero, afirmando que é uma categoria ontológica, histórica e não só de
análise. Gênero está vinculado à natureza transformada pela cultura.
Assim, a categoria gênero pode ser pensada em várias perspectivas e seu entendimento certamente contribui para a
compreensão da dinâmica social. Isso, porque a questão de gênero está imanentemente articulada às formas de exploração-
dominação e na luta pela sua superação, uma vez que é concebido como uma relação entre sujeitos historicamente situados.
Nesta tese corrobora-se o pensamento de Saffioti que compreende gênero como uma categoria ontológica, que tem seu
referente primeiro no sexo e que, devido às mediações históricas, afastou-se desse, instituindo-se e instituindo a construção
cultural de socialização do masculino e feminino, na relação homem-homem, mulher-mulher e homem-mulher, permeados
por relações hierárquicas de poder.
Uma questão premente nessa análise é que, justamente por sua condição relacional, o uso da categoria gênero não
torna claro qual o vetor da exploração-dominação que também se objetiva pela violência. Assim, reafirma-se a análise de
Pateman no sentido de que não é possível substituir a categoria patriarcado por gênero. Para tornar claro qual o vetor da
violência, utiliza-se nesta pesquisa a categoria ordem patriarcal de gênero.
A lógica de poder estabelecida no espaço doméstico pelo padrasto de “Esperança”, retrata de forma muito clara que
a experiência individual reflete as particularidades de um todo universal, já que ele reproduziu no cotidiano o ideário da
ordem patriarcal de gênero, inclusive, de diferentes maneiras. Outro modo de coerção e de violência exercida pelo “patriarca”
foi a prática do abuso incestuoso contra dois filhos: um menino e uma menina. “Esperança”, bastante emocionada, relatou
que,
[...] Na época quando a gente saiu de casa a minha irmãzinha de 6 anos ficou [...] e ele era pai dela mesmo sabe, dessa
menininha. [...] Essa menina, quando ela cresceu [..] com os seus 11 anos ele tentou violentá-la pela primeira vez. Não
conseguiu porque ele [o outro irmão, também filho desse padrasto] correu pedindo socorro. Quando a minha irmã fez
13 anos [...] eu morava longe e eu não sabia de nada. Eu fiquei sabendo já teria acontecido tudo. Pra resumir ele
engravidou a própria filha. Minha irmã ficou bem revoltada, ficou meio fora de si [...] depois de tudo o que aconteceu
com meu irmão também (informação verbal).

O “patriarca” era aquele com quem os irmãos de “Esperança” passavam a maior parte do tempo, haja vista que a
mãe trabalhava fora do domicílio. A princípio, seria o adulto masculino com o qual essas crianças teriam estabelecido o
maior vínculo de confiabilidade, o que potencializou o sentimento denominado na fala acima de revolta.
O poder atribuído ao homem pela ordem patriarcal de gênero, como no caso em estudo, também se materializou no
controle não só das consciências, mas também dos corpos daqueles que estavam subjugados à lógica do patriarca, no caso a
mãe de “Esperança” e de seus irmãos. Enquanto amo e senhor esse homem, teve legitimada a autoridade em relação àqueles
que estão sob seu domínio, apropriando-se deles e atribuindo-lhes um papel de objetos de sua posse. Esta relação personifica
as demais estabelecidas na sociedade que atribui primazia aos homens.
Mesmo em escala significativamente menor, deparou-se com mulheres que cometeram violência contra crianças,
adolescentes e idosos. Todavia, a lógica do patriarca é personificada independentemente da constituição biológica, isto é,
tanto os homens quanto as mulheres em determinadas condições sócio-históricas materializam a ordem patriarcal de gênero,
embora, ressalve-se que os homens são os que têm primazia nessa personificação. Quando a mulher age dessa forma é porque
recebeu de seu o seu amo e senhor essa atribuição de agir nos moldes do patriarca.
O abuso incestuoso constitui-se em uma violação de direitos. Concretiza-se em uma relação de opressão e de poder,
uma vez que, o agressor e a vítima possuem posições completamente díspares, não só no aspecto geracional, mas também de
autoridade e de decisão.

Em busca do sonho: a família ideal


Na perspectiva de resistência ao poder e à violência do patriarca, naquele momento personificado pelo padrasto,
“Esperança” e seus irmãos encontraram como único caminho a saída do lar. É complicado considerar esta como uma
alternativa uma vez que, viviam uma situação na qual não havia possibilidades de escolha. Na verdade foi uma tentativa de
afastamento do jugo daquele que os violentava, sem ter como enfrentá-lo nas condições que se encontravam.

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Com isso, os irmãos separaram-se de sua mãe e cada um, a seu modo, procurou condições de sobrevivência com
outros familiares e amigos. Debruçou-se neste momento, sobre o caminho trilhado por “Esperança”.
“Esperança” deparou-se com várias dificuldades em sua trajetória de resistência ao patriarca. Dentre elas as
relativas à convivência em lares substitutos que vão desde a questão econômica até a aceitação de um indivíduo que não
pertencia aquele núcleo familiar. Esse contexto levou a que buscasse uma nova alternativa: o casamento precoce, como se por
meio do estabelecimento de uma nova relação, pudesse superar as dificuldades vivenciadas. Esse foi um caminho que, no
processo de enfretamento da situação vivenciada, se apresentou como uma possibilidade em determinadas condições
objetivas.
“Esperança” relatou que o casamento representava a possibilidade de uma vida que lhe garantisse condições de
sentir-se pertencente a um núcleo familiar, onde teria condições para viver relações de afeto e de companheirismo.
Essa perspectiva de “Esperança” baseou-se na construção social sobre família. Construção social esta que, nos
últimos anos vem apresentando profundas mudanças.
A partir da segunda metade do séc. XX, o casamento e o conceito de família sofreram influências das mudanças
sociais. Mudanças estas fruto de ações decisivas provenientes das lutas duramente travadas pelos movimentos feministas que
colocaram em pauta questões como a igualdade de gênero, a redefinição de papéis masculinos e femininos nos espaços
públicos e privados e a constituição da mulher como sujeito histórico, para citar alguns dos inúmeros avanços alcançados.
De acordo com Szymanski (2002), família é compreendida como uma associação de pessoas que escolhem
conviver por razões afetivas e assumem um compromisso de cuidado mútuo, todavia, para Marx e Engels (2002) ao
analisarem a divisão social do trabalho e as suas consequências no caso a propriedade privada, o Estado e a alienação da
atividade material afirmam que a família é o embrião da apropriação privada e que, portanto incide na relação hierárquica de
poder.
Bertaux, (1979) analisou as estruturas das relações sociais, tendo em vista as trajetórias sociais, especialmente no
tocante ao lugar da família na estrutura de classe. Para ele, as ligações entre os membros da família se sustentam não somente
por laços de afetividade e de cuidado mútuo, idéia esta oposta ao pensamento de Szymanski, mas, primeiramente, unem-se
com vistas à produção, ou seja, suas relações são em princípio relações de produção e, assim, se situam no campo da vida
prática material sob determinadas condições de classe.
No Brasil, as reflexões sobre as novas estruturas de família influenciaram mudanças legais, fruto dos processos de
luta das mulheres. Exemplo disso, em 1986, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher realizou em Brasília uma
Conferência Nacional que contou com a participação de aproximadamente 1500 mulheres de todo o território
nacional e que culminou na elaboração da Carta das Mulheres Brasileiras ao Constituinte. Por meio das reivindicações, a
maioria (80%) das propostas apresentadas nessa Carta foi incorporada na Constituição Federal de 1988. Também o Código
Civil Brasileiro – Lei 10.406/2002 vigente desde janeiro de 2003, na esteira do art. 226 da Constituição Federal avançou
nesse sentido. Um dos marcos desse avanço foi a extinção da expressão família legítima, que dizia respeito somente àquelas
formadas pelo casamento formal e passa a utilizar família ou entidade familiar. Esta é composta, de acordo com esse Código
pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis; pela união estável, e pela comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes. Há assim a legalização de constituição familiar mediante a comunhão plena de vida. Em seu Artigo 1511
também estabelece a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
Em meio a essa realidade plena de complexidades e contradições, permanece a busca por parte de vários sujeitos
sociais em seu cotidiano, da família enquanto um espaço de proteção.
Há relatos de indivíduos que, como “Esperança”, ainda hoje reproduzem o conceito explicitado por Gomes (1988)
com bastante propriedade, denominado de família pensada. A família pensada é aquela idealizada como uma união exclusiva
de um homem e uma mulher, que se inicia por amor, com a esperança de que o destino lhes seja favorável e que ela seja
definitiva.
Um compromisso de acolhimento e cuidado para com as pessoas envolvidas e expectativa de dar e receber afeto,
principalmente em relação aos filhos. Isto, dentro de uma ordem e hierarquia estabelecida num contexto patriarcal de
autoridade máxima que deve ser obedecida, a partir do modelo pai-mãe-filhos estável. Todavia, a família ao tornar-se real,
concreta apresenta-se, muitas vezes, bastante distinta da pensada, mas nem por isso deixa de ser o chamado ninho de Perrot.
Infelizmente, a questão toma outras dimensões quando a violência se presentifica nessas relações.
“Esperança” buscou nos seus dois casamentos o distanciamento de relações violentas como as que vivenciou em
sua infância e em sua adolescência. Sonhou com a constituição de uma família que de fato, se tornasse um espaço de
acolhimento, de troca de afetos, de cuidado mútuo. Todavia, se deparou com uma realidade bem diferente.

O encontro com a realidade: o sonho desfeito.


A busca pela constituição de uma relação conjugal baseada em afeto e segurança tornou-se mais uma arena de luta
e de resistência para “Esperança”. Casou-se duas vezes e tanto no primeiro casamento quanto no segundo, o sonho da família
ideal não se tornou uma realidade. As relações conjugais que vivenciou se tornaram, em certa medida, a continuidade da
família já vivida por ela em sua infância. Tal como seu padrasto, os seus companheiros tornaram-se seus agressores.
“Esperança” continuou sofrendo com a violência doméstica, que passou a ser perpetrada na relação de
conjugalidade. Violência doméstica constitui-se em uma das formas de materialização da violência enquanto categoria

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histórica e socialmente situada em um sistema de dominação-exploração pautado no patriarcado, racismo e capitalismo,
como abordado anteriormente. A apreensão das particularidades desse fenômeno incidiu na precisão de alguns tipos de
violência, especialmente no que se refere à violência de gênero e à violência intrafamiliar, os quais, mesmo que sobrepostos,
possuem especificidades.
Essa violência é majoritariamente praticada pelos homens contra as mulheres enquanto categorias, cujas relações
são hierárquicas e antagônicas, pautadas na ordem patriarcal de gênero, sendo assim mais ampla e se presentificando nos
mais diversificados espaços e nas mais diversas relações entre os seres sociais. A Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em seu Capítulo I Art. 1º, define a violência contra a mulher como, “[...]
qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher,
tanto no âmbito público como no privado”.
A violência de gênero pode ocorrer inclusive nas relações entre os familiares ou nos espaços domésticos,
sobrepondo-se a essas. A violência intrafamiliar é aquela que ocorre entre os membros de uma mesma família,
independentemente de sua estrutura, isto é, seja ela: nuclear, extensa, monoparental, de casais, adotiva etc. Isso implica em
dizer que uma das especificidades desse tipo de violência é que ela envolve pessoas que possuem vínculos não só de
consanguinidade, mas também de afinidade, podendo se materializar para além do espaço domiciliar.
A violência doméstica, de acordo com Saffioti (2004) se sobrepõe em alguns aspectos com a familiar, porém atinge
também pessoas que, mesmo não pertencendo à família, vivem parcial ou integralmente no mesmo domicílio do agressor
como, por exemplo, empregadas domésticas.
As relações violentas no espaço doméstico independem de sua formalização, corroborando-se o pensamento de
Szymanski (2002) no que toca a constituição das relações familiares por laços de afetividade e de cuidado mútuo.
Interessante notar que essa violência extrapola as relações conjugais durante a sua vigência e muitas vezes, mesmo após a
dissolução dessas relações, os agressores continuam a desferir ações violentas contra as mulheres, demarcando assim a
continuidade do seu território, agora somente simbólico.
Ocorre na medida em que o agressor entendido como o “patriarca”, estabelece uma relação hierárquica de poder e
de controle contra aqueles que não possuem condições de resistência e de luta e que se encontram sob o seu domínio
geográfico ou simbólico, com dito anteriormente. Majoritariamente é perpetrada por homens contra idosos, crianças,
adolescentes, mulheres e empregadas domésticas, dada a supremacia masculina na sociedade androcêntrica.
Numa das falas de “Esperança” também ficaram claros alguns pontos para a análise das formas de pensar
socialmente construídas sobre a violência. Um deles reportou-se ao fato de que a violência, para esse sujeito, é fruto de um
processo individual e, como tal, sua solução encontra-se em ações individuais.
Evidentemente que esse fenômeno é objetivado por indivíduos, entretanto, esses indivíduos, enquanto seres sociais
exprimem em seu cotidiano um ideário mais profundo, instituído e instituinte das relações sociais contraditórias pautadas no
sistema de exploração-dominação.
As estratégias e instrumentos de violência podem ser diferenciados por classes. A restrição ao poder econômico de
compra e ao status de classe pode ser uma forma de violência, que mantêm as mulheres em relações violentas com homens
ricos. Em contrapartida, para as mulheres pobres a condição de sobrevivência e um teto para abrigá-la e aos filhos pode ser
também uma razão para mantê-las junto ao agressor. A materialização da violência de gênero, a exemplo da violência
familiar e doméstica, ocorre independentemente da condição de classe, raça-etnia, de cultura, de nível de escolaridade,
embora possa ser potencializada pela questão econômica.
“Esperança” apresentou claramente como se deu a materialização da violência doméstica,
[...] sofri violência durante 15 anos [...] pelo meu marido [...] era espancada, era acuada dentro da casa, ameaçada de
várias formas [...] Sofri a violência que está no meu direito de ir e vir, decidir por mim mesma [...] quando tentava sair
fora da relação ele usava o meu filho de 9 anos, porque eu tenho 2 filhos com ele [...] me chantageava. [...] Engravidei
do primeiro casamento e [...] já era uma violência [...] aconteceu de engravidar e quando eu contei pra ele [...] ele dizia
que eu estava grávida do pai dele, que eu estava grávida do irmão dele. [...] estava tão nervosa [...] pelo stress todo eu
acabava abortando as crianças. Ele fazia questão de me chamar de vaca, de piranha, de vagabunda, que eu era uma
porca, uma porca com os filhos [...] No segundo aborto o meu marido perguntava pra uma pessoa e pra outra: - Esses
chás do fundo do quintal que fazem, ele fazia, ele tinha o trabalho de fazer chá pra mim e me dar. Não sei se foi o chá
ou se foi o stress mesmo que acabei perdendo o segundo [...] ele usando de violência naquelas horas ele achava que
seria um meio também de eu abortar e aí acabava machucando. Até chegou uma vez eu briguei, a gente se enrolou lá,
[...] ele queria introduzir o cabo de uma escova pra tirar a criança (informação verbal).

Nesta fala ficou claro que a violência doméstica contra mulheres ocorre por meio de agressões físicas, emocionais,
morais e sexuais e que, muitas vezes são cometidas concomitantemente.
A violência doméstica contra mulheres constitui violação de Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e,
assim, não pode ser considera apenas como uma ruptura de qualquer forma de integridade da vítima. Como quebra de
integridade, situa-se no terreno da individualidade. Como violação de Direitos Humanos atinge o humano-genérico e a situa
no sistema de exploração-dominação pautado no patriarcado-racismo-capitalismo.
A partir da análise de alguns casos acompanhados por esta pesquisadora enquanto assistente social no CIAM, em
Bauru, foi revelado que, muitas mulheres alegavam que preferiam continuar com os companheiros agressivos dentro de casa,

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pois, se eles deixassem o lar, correriam o risco de que os chefes do tráfico das comunidades onde moravam, invadissem suas
casas, para usá-las como pontos de apoio.
A permanência da figura masculina, representava para as mulheres pobres, certa proteção em relação à violência
urbana. Em contrapartida, as raras vezes que essa instituição foi procurada por mulheres ricas pertencentes à classe
dominante, elas afirmavam que preferiam manter a relação violenta a perderem o conforto e o poder aquisitivo que
desfrutavam pela condição de classe de seus maridos. O que fica claro é que o recorte de classe se objetiva concretamente nas
relações conjugais violentas, sob determinadas condições.
Um dos elementos eminentes da violência doméstica conjugal apareceu claramente na fala de “Esperança”: a
permanência em uma relação violenta por um tempo considerável, no caso durante 15 anos. Realidade essa vivida por mais
de 20%, em média, das 2.502 brasileiras entrevistas pela Fundação Perseu Abramo (VENTURI; RECAMÁN; OLIVEIRA,
2004).
Esta pesquisadora atribuiu a essa permanência uma série de fatores que concretizam a ordem patriarcal de gênero,
como: a ideologia da defesa da família e a importância da figura masculina na vida da mulher; a falta de serviços de apoio e
de proteção e a desinformação, a escassez de recursos financeiros suficientes para recomeçar a sua vida em outro lugar e o
medo das ameaças do companheiro. Esta situação se repetiu continuamente durante o segundo casamento de “Esperança” o
que por sua vez, reiterou a realidade vivida por inúmeras mulheres que sofrem violência conjugal.
A família real, concreta, sob determinadas condições de classe, raça/etnia e de gênero é constituída, muitas vezes,
por indivíduos que possuem visões de mundo e interesses antagônicos, o que pode levar à conflitos, violências,
concorrências, tornando-se uma arena de luta. Longe de refletir o conceito de família ideal, pode se tornar um espaço que
ameaça a vida. A fala de “Esperança” ao se reportar ao fato de que seu padrasto além de ameaçá-la e de agredi-la fisicamente,
tentou estuprála, deixa mais clara essa questão,
[...] fiquei abalada com o que aconteceu e o que acontecia comigo quando criança, de pessoas tentarem [...] de você ver
uma pessoa adulta, uma pessoa que te cuida e essa pessoa acaba fazendo coisas que acabam marcando por uma vida
inteira e eu fiquei assim [...] (informação verbal).

Não obstante fatos como estes se repetirem cotidianamente, a família permanece sendo pensada enquanto um
espaço de proteção. Evidentemente há inúmeras famílias que o são, todavia não é possível atribuir essa característica a todos
os grupos familiares. Mas, mesmo assim, a família mantém seu status de instituição harmônica, ao menos em tese, e para a
qual há uma conjugação de forças sociais para isso. O risco dessa ideologia da defesa cega da família está na manutenção do
núcleo familiar mesmo que para isso, se pague um preço muito alto, até mesmo com a própria vida de um ou mais de seus
membros.
Além disso, a violência conjugal tem uma característica peculiar: é perpetrada pelas pessoas nas quais as mulheres
buscam companheirismo, apoio, afeto e cuidado. Em algum momento, houve um encontro e uma promessa de afetividade e
confiabilidade. Houve a construção de um projeto idealizado de vida em comum que, muitas vezes geraram frutos: os filhos.
São relações compostas por esperanças e frustrações, sonhos e desilusões, amor e ódio, encontros e desencontros. Essa lógica
complexa e contraditória compõe a rotina dos casais em relações violentas e que pode criar uma relação de co-dependência e
o estabelecimento de uma relação fixada na violência.
É possível entender a ambiguidade das mulheres, que ao mesmo tempo desejam romper a relação violenta, mas
retomam a convivência com o agressor. Há diversas situações nas quais as mulheres buscam auxílio externo seja na Polícia
Militar ou em serviços de apoio e dizem que só querem dar um susto no agressor, mas não querem prejudicá-lo, afinal ele é o
pai de seus filhos. Claramente está posto que se trata de uma relação que envolve, de alguma forma, a afetividade e
confiabilidade, incorrendo em inúmeras dependências entre ambos.
Esse relacionamento fixado pode ser personificado por outros sujeitos ao longo da vida. Uma determinada mulher
que sofre violência após conseguir romper definitivamente uma relação violenta com um companheiro pode iniciar uma nova
relação, com outro sujeito que age tão violentamente quanto o primeiro como no caso de “Esperança”.
Além da dependência por relacionamentos dessa natureza, esse fenômeno se explica também pelo fato de que não é
possível romper espontaneamente com o ideário androcêntrico e, com isso, tendencialmente, a probabilidade de se deparar
com homens que reproduzem esse ideário é significativamente maior do que com homens que já o tenham superado.
Outra razão é que, há a manutenção dos padrões de relacionamento apreendidos na infância.
“Esperança” trouxe uma reflexão baseada em suas percepções empíricas que ilustram com propriedade essa
afirmação.
[...] via a mãe e se criou com a mãe, abaixando a cabeça pro pai, o pai fala mais alto, o pai grita com a mãe, o pai bate
na mãe, a mãe não faz nada, a mãe não pede socorro, a mãe não pede ajuda e ela acha que quando ela crescer [...]
porque eu penso assim, nós somos espelhos para os nossos filhos e tudo o que você faz ele vai te copiar, e ela vê, e o
filho homem a mesma coisa. A filha também se criou vendo a mãe naquela situação e ela vai na sua vida matrimonial
agir da mesma forma, eu penso assim. E o menino também: -Ah o pai bate na mãe pra ela calar a boca e ela obedece
[...] eu vou fazer assim pra minha mulher também (informação verbal).

“Esperança” evidenciou também o quão importante foi o apoio familiar que recebeu para enfrentar a violência
vivenciada. Embora a família a tenha acolhido, num primeiro momento, sentiu muitas dificuldades para se manter afastada do
agressor. As pessoas que a ajudaram durante o primeiro casamento foram os familiares de seu companheiro, especialmente

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uma das irmãs dele. Entretanto, esse apoio era restrito, já que a distância entre as residências dos familiares e a de
“Esperança” não garantia a sua segurança.
[...] não encontrava apoio [...] as portas estavam fechadas de todos os lados [...] existem pessoas por detrás dessa
história que me ajudaram que me deram bastante força e é por isso que eu estou aqui em pé [não sabia o que fazer por]
falta de informação (informação verbal).

A permanência em relações conjugais violentas também ocorre pela ausência de apoio não só de parentes e amigos,
mas principalmente de serviços públicos que ofereçam proteção às mulheres e seus filhos quando do enfrentamento da
violência conjugal.
O total desconhecimento de “Esperança” em relação aos seus direitos, inclusive aqueles relativos à guarda dos
filhos tornou-se uma das questões potencializadoras de sua fragilização fazendo-a voltar ao jugo do agressor. Além do fato de
que este a ameaçava dizendo que ficaria com a guarda dos filhos, também tinha medo em relação às possibilidades de que o
companheiro cometesse violência e abuso também contra a sua prole.
[...] quando tentava sair fora da relação ele usava os meus filhos [...] me chantageando porque de certa forma, também
eu voltava pra relação por medo que ele fizesse alguma coisa com o meu filho tipo como teria acontecido com a minha
irmã e com o meu irmão também. Então, eu acabava voltando de medo. Não porque eu quisesse (informação verbal).

A existência de recursos de apoio e de proteção são elementos fundamentais para o enfrentamento da violência
doméstica, inclusive porque constituem meios que devem garantir a veiculação de informações e efetivação dos direitos das
mulheres.
Essa permanência e retornos contínuos para as relações violentas também pode se dar em função da ausência de
recursos financeiros para a garantia de sobrevivência das mulheres e de seus filhos, pois, muitas vezes essas mulheres são
impedidas de trabalhar fora do lar pelos maridos, sob os auspícios da infidelidade feminina.
Conforme dados da Fundação Perseu Abramo (VENTURI; RECAMÁN; OLIVEIRA, 2004), 9% das mulheres são
as provedoras do lar e 36% auxiliam nas despesas. Essa é uma realidade que denota as dificuldades para as mulheres
deixarem o espaço doméstico e garantirem a sua sobrevivência e a de sua prole.
A tolerância das mulheres nas relações violentas não implica sua passividade ou consentimento. Saffioti (2004)
citando a posição de Nicole Claude-Mathieu afirmou que as mulheres enfrentam a violência sofrida com os instrumentos que
individualmente possuem, haja vista que, “sendo detentoras de parcelas infinitamente menores de poder que os homens, as
mulheres só podem ceder, não consentir”.
Pressupõe-se que, se “Esperança” tivesse acesso às informações sobre os seus direitos e se fosse acompanhada por
serviços de proteção e apoio a mulheres que sofrem violência conjugal, sua trajetória de vida seria diferente. A tomada de
consciência sobre a sua condição de sujeito e, a possibilidade de contar com o suporte necessário para seu fortalecimento, por
meio de ações de acompanhamento no âmbito social, psicológico e jurídico, além de um espaço que a abrigasse e seus filhos,
seria possível o seu empoderamento enquanto sujeito de direitos, possibilitando a tomada de decisão de acordo com suas
demandas, antes mesmoque se envolvesse em uma segunda relação conjugal violenta.

A luta solitária.
“Esperança” também contribuiu para a compreensão de uma das inúmeras dificuldades que as usuárias encontram
para denunciar a violência conjugal. Este relato refere-se ao vivido por ela na Delegacia de Defesa da Mulher.
- Aí eu fui pra Delegacia e foi assim:
- Gostaria de registrar uma queixa.
– Contra quem? [Falou o escrivão]
- Fulano de tal.
- Por quê?
[...] Não tinha Delegacia da Mulher aqui. Ela existia, daí ela fechou e, agora, ela voltou de novo. Só tinha um número
na Delegacia da Mulher. O rapaz que me atendeu, que me ouviu na Delegacia, ele digitou o meu nome no computador,
endereço, aquela coisa toda.
- Por quê a senhora quer registrar uma queixa?
E contei:
- Estou tentando sair de uma relação assim, assim [...] não dá muito certo, ele me ameaça, ele tem arma de fogo dentro
de casa. Já tentei sair outras vezes e voltei por medo, porque ele ameaçou os meus filhos, ameaçou a minha família [...]
E, ele [...] com os pés em cima da escrivaninha sabe [...] depois que eu comecei a contar ele parou de digitar o
computador, colocou os pés e cruzou os braços e assim olhando com uma cara bem cínica [...] ele só falou num tom de
voz mais alto que a minha:
- E por que é que a senhora não fez uma queixa antes? É porque a senhora consente com o que está acontecendo!
Então eu fui procurar ajuda e, como diz o ditado, sai com o rabinho entre as pernas. Saí de lá [...] porque você vai
pedindo um socorro e eles te recebem assim [...] já está com medo já arranquei forças não sei da onde pra denunciar e
daí, chego lá e sou recebida nessa situação [...] Aí eu não fui mais. Eu fiquei muito tempo, depois disso [...] muito,
muito tempo [...]

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[...] Voltando lá eles mandaram uma intimação pra ele e ele foi. A pessoa que escutou ele era homem e são poucos os
homens que respeitam o direito da mulher, até nas autoridades competentes e o tabu ainda eles dizem que já caiu, não
caiu não. Não é verdade, em algumas áreas ainda não, pode ser que eu esteja errada, mas eu sei é isso. E mandaram
uma intimação, ele foi intimidado [...] e chegando lá, ele conversou com uma, eu não sei se era delegada ou assistente
de delegada e, não estou lembrada, e conversou sabe [...] Ele levou ela na manha, no bico e ficou o dito pelo não dito.
Eu saí de megera e ele ficou de bom. A verdade foi essa.
E passou uma régua, uma borracha e nem o nome dele ficou lá. E foi por isso eu fiquei durante muito tempo, acuada
[...] me sentindo presa naquela situação, uma situação que eu tava tentando sair a qualquer preço, porque eu não era
feliz com essa pessoa (informação verbal).

“Esperança” sofreu as consequências da violência institucional, ou seja, um atendimento que também a violentou
em seus direitos e a culpabilizou pela violência sofrida. Nem sequer foi ouvida com dignidade e, com isso, as poucas forças
que havia reunido para recorrer à justiça se esvaíram.
Esse é um quadro vivido por tantas outras mulheres que são humilhadas inclusive nos serviços que legalmente têm
por função a sua proteção e segurança.
Há diversas situações nas quais são recorrentes atitudes de violência ou de indiferença por parte dos/das
profissionais que impedem o efetivo atendimento das demandas das usuárias, uma vez que elas nem ao menos conseguem
denunciar os crimes sofridos.
“Esperança” complementou o seu relato relembrando a situaçãovivida por sua mãe, dizendo que,
[...] na época o socorro não tinha como não tem até hoje. Minha mãe deveria ter sido acolhida com essas crianças [...] o
dever da lei é cuidar (informação verbal).

Essa difícil realidade descrita por “Esperança” e vivenciada por tantas mulheres leva ao não enfrentamento da
violência conjugal e até mesmo ao fato das mulheres sentirem-se as rés, quando na verdade são elas que têm os seus direitos
violados.
Há casos de mulheres que conseguiram romper uma relação violenta, por meio da tomada de atitudes individuais de
enfrentamento. “Esperança” é uma dessas mulheres. Decidida em separar-se legalmente de seu primeiro marido, comunicou a
ele a sua decisão:
[...] Quando eu cheguei na presença dele com esses papéis [para a separação judicial] ele falou:
- Quer ver o que eu faço com isso?
Ele rasgou em mil pedacinhos aqueles papéis e disse assim:
- Não tem Lei porque eu mato e quero ver quem é que faz isso [...] quem é que vem aqui e toma meus filhos e, se você
continuar fazendo isso eu vou te matar! (informação verbal).

Situações como esta, infelizmente, são corriqueiras. Quando as mulheres conseguem enfrentar a violência conjugal
sofrem diversas ameaças, agressões e até mesmo tentativas de homicídio. E, se vêem sozinhas, pois não podem, muitas
vezes, contar nem com os recursos de proteção e apoio legalmente instituídos, ora porque inexistem em algumas
localidades, ora porque neles também são violentadas em seus direitos.
“Esperança” diante de mais essa dificuldade reuniu forças para romper definitivamente essa relação. Contando
apenas com o apoio de seus familiares e também de seus empregadores que informaram sobre a Lei “Maria da Penha”,
separou-se de seu marido.
Atualmente, “Esperança” mora com seus filhos e continua trabalhando como empregada doméstica, porém não vive
mais com nenhum companheiro. Além de conseguir romper as relações conjugais violentas, demonstrou interesse em
contribuir com outras mulheres que também vivem situações semelhantes às dela.
Eu tenho uma vizinha minha que sofre esse tipo de violência pelo marido. O marido bate nela, ele bebe, xinga,
espanca, ela e as crianças e inclusive ela tem que sair de casa. Ainda estou procurando um jeito de chegar até ela e
conversar e contar que existe essa Lei que ampara, porque ainda existem mulheres que tão presas, são violentadas de
todas as formas e tenham medo de ficar na rua, tenham medo de morrer, como já aconteceu [...] então eu acho que nós
mulheres [...] tem que se unir e gritar por esse direito que a gente tem. Eu penso assim (informação verbal).

“Esperança” personificou um sujeito múltiplo e contraditório, conforme o pensamento de Lauretis (1994, p. 208).
Ela é um sujeito que vive em determinadas condições históricas e objetivas, constituindo-se enquanto sujeito e objeto da
história. Enquanto indivíduo situado em uma dada realidade, cuja existência se materializa concretamente, enfrentou as
situações de violência com os instrumentos que possuía. A compreensão de violência desse sujeito e suas formas de
resistência, iluminadas também pela produção teórica aqui apresentada, foram fundamentais para o aprofundamento deste
estudo. Para tanto, o modo de pensar de “Esperança” foi apreendido a partir de sua singularidade, isto é, em sua
cotidianidade, buscando sua compreensão enquanto concreto pensado.

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Conclusão
Este estudo foi construído em meio a inúmeras inquietações, questionamentos, reflexões e dúvidas, que
contribuíram para o adensamento de meu conhecimento em relação ao tema o que, em muitos momentos, colocou em xeque
a minha maneira de pensar enquanto pesquisadora.
Pleno de significações foi o momento no qual conheci “Esperança”. Tal foi a importância desse contato que me
debrucei ao longo de todo o processo investigativo sob o olhar desse sujeito extremamente representativo das mulheres que
sofrem violência doméstica.
Busquei também as interconexões do objeto de estudo com as condições objetivas e suas determinações, partindo
do pressuposto de que a realidade social só se apreende por aproximação, pois é mais rica do que qualquer pensamento que
possamos ter sobre ela (LÊNIN, 1965).
Para tanto, debrucei-me sobre a categoria violência e sua materialização no espaço doméstico perpetrada por
homens contra mulheres na relação de conjugalidade. Fundamentei o estudo sobre os avanços teóricos, legais e políticos que
se referem ao enfrentamento desse fenômeno.
A análise da violência doméstica da ótica das mulheres que a sofrem, incidiu na compreensão de suas
particularidades que, por sua vez, remeteram ao estudo dessa categoria fundamentada em um sistema de dominação-
exploração pautado no patriarcado, racismo e capitalismo (SAFFIOTI, 1987), cujo ideário se presentifica em todas as
relações sociais. Assim sendo, as ações dos sujeitos sociais são permeadas pela ordem hegemonicamente androcêntrica,
etnocêntrica e capitalista.
A violência é uma categoria que tem sua existência na correlação de forças entre interesses antagônicos e
contraditórios reais e se inscreve no campo de relações sociais situadas em determinadas condições sócio-históricas,
econômicas e políticas (SILVA, 2004).
Violência doméstica costumeiramente aparece como um ato pontual, localizado somente na esfera individual, sem
suas interconexões com a totalidade, no entanto, esse tipo de violência inscreve-se num circuito que se (re)produz como um
processo que não se limita à esfera individual e cuja realização supõe determinadas condições sócio-históricas.
As ações violentas possuem teleologia e contam com sujeitos intencionais que as realizam com, pelo menos, um
mínimo grau de consciência, uma vez que toda atividade humana possui caráter teleológico, isto é, o ser humano projeta
finalidades a partir não só de necessidades, mas também, de possibilidades, que por sua vez, conduzem a uma ação
(LUKÁCS, 1979b). Dessa maneira, esse fenômeno se objetiva na realidade, com sujeitos reais, a partir de determinadas
particularidades e em dado momento histórico.
A superação desse ideário implica na articulação de ações complexas no âmbito sócio-histórico cultural, com a
apreensão crítica do sistema de dominação-exploração da classe, etnia e gênero. Para tanto é preciso estabelecer a unidade
teórico-prática já que o conhecimento só é alcançado na relação que teoriza a realidade e a prática desenvolvida. Com isso
revê e reformula a análise teórica a partir de elementos implícitos na própria realidade.
É fundamental também a incorporação da categoria gênero de forma transversal em todas as esferas da vida social,
especialmente na formação profissional e de projetos mais amplos no âmbito jurídico, social, político, educacional, de
movimentos sociais, entre outros.
Enfim, para o enfrentamento da ordem patriarcal de gênero e de suas formas de materialização como a violência
doméstica, são fundamentais não somente a elaboração e execução de políticas públicas; a dotação orçamentária no âmbito
Federal, Municipal e Estadual; a criação e implementação de serviços de apoio e proteção pautados nas demandas e na modo
de agir e de pensar das mulheres que sofrem violência doméstica; o enfrentamento dos limites institucionais, ou ainda, a
formação profissional comprometida com a apreensão crítica da realidade e com a perspectiva de gênero. Na verdade,
acredito que somente com a materialização de todos esses elementos conjuntamente articulados com a construção coletiva de
estratégias de luta frente às condições de vida das mulheres que sofrem violência doméstica, será possível construir um
caminho que leve ao processo de crítica transformadora desse ideário. Evidentemente é uma arena onde interesses
antagônicos travam duras lutas, porém é justamente essa arena contraditória que fornece as condições para a sua superação.

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O caleidoscópio da “violência conjugal”: instituições, atores e políticas públicas no Rio de Janeiro 1

49
Aparecida Fonseca Moraes
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ)
[email protected]

Carla de Castro Gomes


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ)
[email protected]

Resumo: Ações destinadas ao combate da violência conjugal foram incorporadas às políticas públicas em muitos países. Inspiradas nos
valores feministas que defendem os ‘direitos das mulheres’ a uma vida privada não violenta, estas são vistas como um importante caminho
de promoção da justiça de gênero. Considerando as dimensões culturais e práticas sociais implicadas na experiência brasileira, a
comunicação expõe um conjunto de problematizações a partir da interação de grupos de atores importantes nesse processo: organizações que
representam o Estado (delegacias policiais), organizações influenciadas pelo feminismo (centro de atendimento a mulheres vítimas de
violência) e mulheres vitimadas. Tendo como campo de pesquisa a cidade do Rio de Janeiro, são pontuadas algumas dificuldades no combate
à violência conjugal considerando três contextos ou dimensões: A) a difusão dos valores do feminismo e os desafios postos nas
particularidades da nossa sociedade para que estes se concretizem. B) a dimensão da judicialização dos conflitos ocorridos na intimidade,
onde se sublinha as tensões na introdução de tal ordem reguladora, especialmente quando os casos implicam em publicização da desarmonia
conjugal ou familiar. C) as trajetórias das políticas de combate à violência conjugal no Brasil, tendo como principal expressão as Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Os principais resultados apontam para a coexistência de expectativas bastante
diferenciadas nas políticas de combate à ‘violência conjugal’. As formas de compreensão das dinâmicas dessa violência e dos papéis dos
atores envolvidos expõem ambiguidades e confrontam projetos de instituições do campo feminista, do Estado e as mulheres vítimas que
recorrem aos serviços.

1. Introdução
Em muitos países as políticas públicas incorporaram ações destinadas ao combate da violência de gênero. Inspirado
nos valores feministas que defendem os ‘direitos das mulheres’ à vida privada e conjugal não violenta, o desenvolvimento
dessas políticas é considerado um dos caminhos de redução das desigualdades de gênero, de promoção da igualdade e da
justiça social (WALBY, 2004).
A partir de pesquisas realizadas no Rio de Janeiro, esse capítulo apresentará algumas dificuldades das instituições
envolvidas no combate à “violência conjugal” 2 para forjarem os acordos necessários a uma compreensão compartilhada de
justiça que implique no reconhecimento de uma posição igualitária das mulheres, de acordo com o ideário que inspirou esse
campo de ação pública. A trajetória das políticas de combate a esta violência, na qual chama atenção o momento atual de
regulamentação e implementação da lei “Maria da Penha” 3, expõe um necessário debate acerca das possibilidades e
dinâmicas de distribuição de justiça por tal via, especialmente em torno de sua administração pública e consequências nas
instituições que integram o sistema de justiça-criminal.
As políticas de combate à violência de gênero no Brasil se fundamentam em um tipo de reconhecimento, o da
opressão das mulheres, e têm como principal objetivo mudar essa posição. O pacto da agenda social do governo federal em
vigor no país admite que o combate à violência contra as mulheres requer percepção multidimensional e que coloca também
a exigência de políticas que acelerem a redução das desigualdades entre homens e mulheres, prevendo em sua política
nacional de enfrentamento uma ampla parceria com vários Ministérios e outros órgãos do poder público.4
No entanto, alguns estudos brasileiros vêm, de alguma maneira, apontando a coexistência de padrões institucionais
muito variados nas políticas de combate à ‘violência conjugal’, indicando que as diferentes formas de compreensão dos
conflitos e das ‘violências’, expõem confrontos de projetos e de expectativas entre instituições do campo feminista,
instituições do Estado e famílias das mulheres vítimas que recorrem aos serviços.5 A nossa pesquisa, realizada no Rio de
Janeiro, também mostrou que a implementação das políticas de combate à violência conjugal confronta referências culturais
múltiplas e distintas, tornando problemática a institucionalização de novos padrões culturais consoantes com a agenda global
introduzida pelo feminismo.
Embora o feminismo e os direitos humanos alcancem difusão e penetração crescentes na nossa sociedade e
instituições, o tratamento das questões postas por esses movimentos e seus processos políticos está longe de produzir
resultados lineares. Consideramos que os diferentes caminhos percorridos na trajetória de incorporação destes novos
conteúdos, ao contrário, introduziram um plano permanente de tensões entre valores e direitos universais e práticas sociais

1
Essa é uma versão provisória e resumida de um capítulo a ser publicado na coletânea Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira, organizada por Bila
Sorj (IFCS) e Aparecida F. Moraes (IFCS). Parte da pesquisa desenvolvida para esse trabalho contou com o apoio da FAPERJ, através do Edital Direitos
Humanos/FAPERJ (2005), sob a outorga da professora Bila Sorj, a quem agradecemos também as inúmeras contribuições e supervisão da investigação.
2
Entendida como uma violência que ocorre no âmbito privado ou em outras relações de intimidade, entre parceiros amorosos.
3
Lei nacional, promulgada em agosto de 2006, que trata de maneira específica da violência doméstica e conjugal contra a mulher. Consulte seção 4 para mais
informações sobre a lei.
4
Considerando as políticas de combate à violência contra a mulher como “formas de combate às desigualdades de gênero e de estabelecimento da justiça de
gênero”, desde 2003, através da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), o governo federal intentou combater a “fragmentação” identificada nessa
área através da criação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Ver, SPM (2003) e SPM (2007).
5
GREGORI (1993); BRANDÃO (1998); PASINATO IZUMINO (2004), entre outros.

50
locais que orientam os atores e as instituições. Não se trata de interpretar essa questão opondo processos de modernização (e
de universalização de valores) e práticas que expressariam mera resistência às mudanças.6 Interessa destacar as tensões postas
nessas articulações, assim como alguns dos seus resultados díspares ou mesmo paradoxais quando são confrontadas as
expectativas dos diferentes atores e instituições.
Tal complexidade, sem dúvida, é o pano de fundo de toda análise que aqui empreendemos. Ao mesmo tempo, no
âmbito de uma reflexão sobre a construção da igualdade através das políticas feministas, chamamos atenção para os estudos
de FRASER (2002, 2000), a fim de destacar um dos aspectos que a autora aponta como condição para a promoção da “justiça
de gênero”: o da mudança na hierarquia de status na qual estão colocados homens e mulheres. Isso significa considerar,
previamente, que os modelos de status são perpetrados através das instituições sociais que regulam a interação social de
acordo com normas que impedem a paridade, ou seja, o reconhecimento da posição das mulheres como parceiras plenas na
interação social. Assim, por exemplo, a difusão de um conceito equivocado de reconhecimento poderia terminar
privilegiando, pela via da institucionalização de valores, traços associados com o masculino e/ou calcados na própria cultura
patriarcal. 7 Nessa dimensão analítica, as nossas considerações são de que o campo de políticas governamentais de combate à
violência de gênero no Brasil, se desenvolve através de uma tensão permanente entre os valores disseminados via as novas
perspectivas da “justiça de gênero” e aqueles que, presentes na nossa cultura, obstam tal alcance .
Isso posto, priorizamos, então, uma análise das dimensões culturais, práticas sociais e políticas implicadas nessa
experiência, para expor um conjunto de problematizações a partir da interação de grupos de atores importantes nesse
processo. Através de pesquisa qualitativa, mostramos como essas dificuldades apontadas emergem nas rotinas das
instituições que combatem a ‘violência conjugal’ e sublinhamos o fato de que a agenda de direitos difundida pelo feminismo
vai sendo transformada, dotando de caráter contingente o campo de realização dessas políticas públicas. Como em um
caleidoscópio, a percepção do fenômeno da ‘violência conjugal’ se alterna de acordo com os lugares que os atores ocupam
nesse campo e oferece várias possibilidades de combinação. Identifica-se, nesse caso, a coexistência de diferentes valores e
moralidades que compõem o quadro das políticas de combate à ‘violência conjugal’, o que é especialmente marcado por
expectativas que, em geral, são díspares e poucas vezes compatíveis, entre grupos de profissionais influenciadas pelo
feminismo, grupos de policiais que atuam nas delegacias e as mulheres que recorrem a essas instituições.
Três contextos ou dimensões implicados na produção das políticas públicas de combate à violência de gênero no
Brasil são destacados nessa abordagem: A) as expectativas e valores do feminismo, bem como os seus reflexos na produção
dos estudos sobre gênero e violência no Brasil; B) a regulação e judicialização de questões da intimidade das famílias e das
relações de afeto; C) as trajetórias das políticas de combate à violência conjugal no Brasil, tendo como principal expressão as
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), instrumento que hoje, programaticamente, se procura
integrar a uma ação multisetorial de combate à violência.

2. Expectativas do feminismo e estudos sobre gênero e violência no Brasil


A penetração dos valores do feminismo nas diferentes sociedades não se realiza sem tensões e por isso também
encontra desafios para se concretizar. O ideário feminista sustenta as suas reivindicações na referência a direitos universais e
a um padrão global de justiça. Nessa construção social, valores como autonomia, emancipação e livre-arbítrio das mulheres,
de alguma maneira constituem as principais expectativas de mudanças dos movimentos feministas. A expressão mais
concreta desse “universal” construído pelos atores coletivos do feminismo se mostra através de um conjunto de práticas
institucionais, principalmente através do desenvolvimento das comunicações e das instituições globais.8 O feminismo
conseguiu fazer com que a violência contra as mulheres fosse reconhecida como uma violação dos direitos humanos,
tornando o fortalecimento dos sistemas de justiça criminal em defesa destas um requisito para os governos nacionais que
aderiram a tal agenda de direitos. Essas mudanças, sem dúvida, aumentaram a circulação de valores do universo feminista,
mas esta muitas vezes termina por confrontar expectativas bastante diferenciadas na vida concreta dos indivíduos,
especialmente das mulheres. Não obstante as grandes conquistas e oportunidades alcançadas pelo feminismo em sua
perspectiva globalizada, os problemas também foram tecidos em novas tramas que tendem a colocar mais desafios.

6
Conforme já foi explorado em outras análises (SORJ & MORAES, 2008; SORJ, 2002; MORAES, 2006), tal complexidade pode ser examinada nos recentes
debates sobre a globalização e sistemas culturais. Estes debates parecem ter atualizado uma antiga disputa no interior da sociologia que confronta as chamadas
“teorias da modernização” e interpretações “culturalistas e historicistas.” A primeira foi responsável por um tipo de interpretação na qual a superação de valores
tradicionais prevalentes nessas sociedades viria mediante a emergência de elites modernizadas (GERMANI, 1969, apud. SORJ & MORAES, Op. Cit.). A
segunda enfatizou os processos de resistência às mudanças estruturais e culturais introduzidas pela modernização (BERGER, BERGER & KELLNER, 1974,
apud. SORJ & MORAES, Op. Cit.).
7
Nancy Fraser propõe uma “abordagem bidimensional” capaz de englobar tanto questões de distribuição, quanto de reconhecimento. Uma “injustiça de gênero”
seria realmente reparada se houvesse mudança tanto na estrutura econômica quanto na hierarquia de status na qual estão colocados homens e mulheres. Não
temos o propósito de tratar essa dupla face de redistribuição e reconhecimento, tal como é vislumbrada na ampla agenda de estudos da autora. Ao mesmo tempo,
uma consideração à abordagem via status é bastante adequada às nossas problematizações. Tal abordagem, de fato, não significaria reduzir o debate à “questão
de identidade”. Segundo Fraser, o reconhecimento requer exame dos padrões institucionalizados, de valor cultural, para verificar seus efeitos na posição
(standing) relativa das mulheres. Esses padrões institucionalizados assumem formas variadas, podendo estar codificados no Direito, nas políticas
governamentais, nas práticas profissionais padronizadas, interações cotidianas etc., constituindo modelos que representariam “séria violação da justiça”
(FRASER, 2000, pp. 113 e 114; 2002, pp. 65, 66 e 71).
8
Refere-se, principalmente, aos grandes eventos, órgãos e conferências internacionais.

51
Já se afirmou que o século XX, marcado por estrondoso questionamento da ordem patriarcal, teria sido outro não
fosse a reverberação polifônica do feminismo (CASTELLS, 1999). O feminismo não só é o principal ator coletivo no
contexto das mudanças experimentadas nas relações de gênero, como os seus movimentos também difundiram um campo
rico de interpretações sobre a opressão feminina. No caso do tema da violência, as argumentações feministas mais
consolidadas estruturaram a compreensão de que tal fenômeno é a consequência mais nefasta da dominação masculina. De
forma bastante genérica, podemos dizer que as seguintes idéias pautaram as principais estratégias dos movimentos feministas
para o avanço de políticas públicas de combate à violência conjugal: a denúncia de um tipo de vitimização que atinge as
mulheres, mas, ao mesmo tempo, a afirmação do potencial das mulheres para agir diante da violência conjugal. A
reivindicação de políticas que pudessem eliminar essa violência trazia embutida a idéia de que as mulheres agiriam com
autonomia e de maneira determinada, no sentido de publicizar a opressão do homem violento nas suas vidas.
Foi com o quadro de idéias e interpretações feministas, que a maioria dos estudos de gênero dialogou ao longo do
tempo. Conforme sublinhou HEILBORN (1993), se podemos falar de “estudos de gênero” no Brasil, estes de alguma forma
se firmaram através do diálogo com o feminismo. Entre os estudos de gênero e violência, diferentes explicações para a
posição de vítima da mulher embalaram as principais discussões interpretativas.
Entre aqueles estudos que acentuaram o tema da vitimização da mulher estão os que se alinharam à explicação de
que esta é, principalmente, fruto da socialização dos homens e que, portanto, tem forte conteúdo histórico assentado na
herança patriarcal.9 Heleieth SAFFIOTI (1994), por exemplo, em alguns dos seus respeitados e cotejados trabalhos,
apresentava a violência de gênero no Brasil como parte da nossa organização social, uma vez que na família é forte a idéia de
que a mulher se constitui propriedade do homem e que por isso não é vista como agredida ou abusada de fato pelo seu
marido.
Tensões interpretativas sobre o grau de “cumplicidade” ou “passividade” das mulheres também marcaram boa parte
das produções sobre gênero e violência, principalmente na década de 1990. De fato, conforme salientado por MACHADO &
MAGALHÃES (1999, p.175), nesse novo contexto de crítica à perspectiva que homogeneizava a vitimização das mulheres,
os estudos passaram a se dedicar a problemática das “atitudes que levam mulheres a se manterem em relações de violência e
até mesmo a contribuírem para a continuidade do jogo”. As próprias autoras, através de estudo etnográfico e entrevistas
realizadas com vítimas de violência conjugal e agressores, em uma DEAM no Distrito Federal, optaram por uma proposta
interpretativa em condições de “enfrentar os dilemas e a complexidade do campo da violência doméstica”. Com o objetivo de
incorporar a demanda dos direitos, mas também decifrar os motivos do envolvimento das mulheres nas relações conflituosas,
as autoras trataram o assunto através da categoria “casais violentos”.
O trabalho de Maria Filomena GREGORI (1993) teve grande repercussão e encetou uma reflexão mais profunda
que problematizava o papel de vítima das mulheres nos casos de violência conjugal. A base empírica de sua pesquisa,
desenvolvida através de etnografia e entrevistas com mulheres e profissionais em uma organização de apoio a vítimas de
violência conjugal, focou as relações interpessoais de casais em contextos de conflitos que antecediam a violência física. Em
alguns casos analisados, a autora mostrou também que a irrupção da violência acabava contribuindo para a restauração dos
papéis de gênero, o que era almejado do ponto de vista das mulheres.
Por caminhos diferenciados, outras análises também acabaram abordando a complexidade das interações que
ligavam afetivamente homens e mulheres em relações violentas, bem como as condutas ambíguas dos pares envolvidos. As
pesquisas que mostraram as expectativas e motivações que orientam as vítimas de violência conjugal a procurar a delegacia,
deixaram ainda mais evidentes que são bastante sinuosos os caminhos por onde se percorre o reconhecimento desses direitos.
Duas análises são especialmente importantes para o nosso estudo, uma vez que elas expõem que o uso das DEAMs pelas
mulheres segue lógica diversa do movimento feminista e da própria instituição policial.
A consagrada pesquisa de BRANDÃO (1998) em uma DEAM no Rio de Janeiro mostrou que quando as mulheres
se referem aos conflitos conjugais, a categoria ‘violência’ é pouco citada e que elas “não compartilham a concepção da
violência como algo que fira a integridade (física e moral) individual, conforme dispõem os preceitos jurídicos”, ou “ideais
feministas.” 10 As mulheres utilizam a DEAM como ‘recurso simbólico’ que é “coerente com ideário que compartilham e
com as condições sociais em que vivem.”11 Para Brandão, a polícia é acionada como recurso de auto-proteção e repreensão
do parceiro, porém, a “negociação se faz efetivamente entre vítima e acusado, no âmbito privado, mediante a influência
indireta da DEAM.”12

9
Esta concepção foi bastante difundida nos estudos brasileiros e influenciou muitas pesquisas no decorrer dos anos 80 e início dos 90. Cf., SORJ e HEILBORN
(1999). A discussão bibliográfica apresentada por SORJ e HEILBORN (Op. Cit.) embasa boa parte de nossos comentários.
10
Idem, p. 65 e 77
11
Ibidem, p.77.
12
Conclui autora: “(...) A suspensão da queixa constitui-se, portanto, em mais um elemento de negociação que a vítima disporia para barganhar com o acusado,
no sentido de que ele volte a cumprir as obrigações masculinas assumidas ou, no mínimo, não a perturbe mais. Em suma, sem abrir mão de seus valores ‘holistas-
hierárquicos’, as mulheres recorrem estrategicamente à ordem legal (cuja matriz está dada pela tradição ocidental moderna), mas não delegam total e
incondicionalmente à DEAM a resolução de sua crise conjugal e familiar, procurando gerenciá-la paralelamente à ação policial. Embora não compartilhem da
concepção de cidadania que preside as demandas jurídico-policiais, acredito que elas tenham um modo peculiar de ‘lutarem’ pelo que consideram ser ‘seus
direitos’” (Ibidem, p.79 e 80).

52
O segundo trabalho a ser agrupado nessa perspectiva é o de PASINATO IZUMINO (2004) que, ao examinar a
aplicação da lei 9099/95 no contexto do fluxo do sistema de justiça-criminal de São Paulo, 13 argumenta que “a decisão de
recorrer à polícia e a capacidade legal de intervenção no processo judicial, conquistada pelas vítimas sob esta legislação,
revelam um modo de exercício de poder pelas mulheres.” 14 Assim, as delegacias e os Juizados Especiais Criminais
(JECRIMs) estariam se apresentando como “espaços privilegiados para o empoderamento das mulheres.” 15 Conclui a autora,
que não se trata de um auto-reconhecimento das mulheres como “sujeitos de direitos”, mas uma “ampliação de seu espaço de
negociação” que, ao mesmo tempo, expressa “vários dos anseios do movimento feminista”, com a diferença de que estes são
buscados por uma “leitura muito particular e individual.”
O que se pode concluir é que as pesquisas sobre o assunto apontaram ambivalências nos sentimentos das mulheres
quando a violência ocorre na intimidade dos afetos. Mostram ainda que o pêndulo de imagens que oscila do extremo da
“vítima passiva” ao outro, o da mulher que reconhece o seu direito à igualdade legal e desencadeia comportamento pró-ativo
no contexto de vitimização, ainda corresponde a construções típicas, ideais, que não abarcam as ambiguidades de mulheres e
homens que integram o cotidiano das famílias e a intimidade dos casais. De fato, são grandes os desafios para teorizar as
relações conjugais brasileiras imersas em conflitos e que eclodem em violência.

3. A judicialização dos conflitos na intimidade


A dimensão da regulação e da judicialização de questões que tocam na intimidade das famílias e nas relações de
afeto ou amorosas dos casais, implica em observar o grau de adesão de uma sociedade a um determinado processo de
modernização. Trata-se de uma política de combate à violência que para se realizar necessita da publicização de algum um
tipo de desarmonia familiar, ou afetiva, ocorrida entre parceiros de uma interação conjugal. Em geral, os desdobramentos
dessa publicização, implicam na introdução de uma nova ordem reguladora na vida das pessoas envolvidas, frequentemente
expressa através do poder de judicialização que é conferido ao Estado. As lógicas dos “afetos” e os valores morais que
moldam o cotidiano das famílias são defrontados com uma ordem de formalidade e racionalidade jurídicas.
Em muitos contextos, as classificações das formas de violência dirigidas às mulheres e postas pelo feminismo
assumiram dimensões institucionais relevantes. Essas novas experiências podem ser definidas nos termos de GIDDENS
(2002) que, ao referir-se às instituições da modernidade, identificou-as como palcos privilegiados de auto-identificação dos
atores, “constituindo-os e sendo constituídas” por eles, e promovendo um entrelaçamento entre vida individual e experiência
institucional.
Essa nova institucionalidade pública tem se mostrado, principalmente, através das agendas políticas dos governos e
das ações das organizações não governamentais. Em várias partes do mundo diversas instituições trabalham pelo fim da
violência, responsabilizando-se por campanhas legais, pesquisas, criação de abrigos e centros de atendimento para mulheres
agredidas ou violentadas sexualmente. No Brasil, organizações governamentais e não-governamentais têm expandido seus
esforços para responder à violência contra a mulher nos últimos anos e, especialmente a partir da década de oitenta, o
movimento feminista começou a transpor para o campo das políticas públicas as primeiras propostas para enfrentar a
violência de gênero. Assim, se procurou promover a compreensão de que este tipo de violência é um produto social inscrito
no âmbito das relações de gênero (SORJ e MONTEIRO, 1985).
Em relação aos casos trazidos pelas mulheres que procuraram as delegacias pesquisadas, analisamos apenas aqueles
nos quais a denúncia da agressão e/ou violência tem como perpetradores homens conhecidos que tenham mantido ou que
mantenham alguma forma de conjugalidade com a vítima.16 Admitimos que nas relações conjugais onde as agressões se
manifestam, também está presente um tipo de “violência simbólica” (BOURDIEU, 1999) que ultrapassa os limites do físico e
que se desenvolve via sistemas de representação que operam diferenças nas relações entre os sexos. Também consideramos
que as dinâmicas da ‘violência conjugal’, ao exporem-se de formas múltiplas, reforçam um padrão de “conflitualidade
interpessoal”.17
O tratamento de conflitos pessoais nas instituições públicas modernas vinculou questões privadas e da dimensão da
intimidade. Um aspecto que manifesta uma forma de regulação, pelas instituições, de tipos de agressividade e de conflitos
nas relações familiares e pessoais, é o que tem sido nomeado “judicialização”. A ‘judicialização’ é, antes de tudo, a
introdução do universo impessoal do Direito no mundo pessoal e privado. Como processo complexo, não se limita à
‘violência conjugal’e “(...) traduz duplo movimento: de um lado a ampliação do acesso ao sistema judiciário, e por outro, a
desvalorização de outras formas de resolução de conflito” (RIFIOTIS, 2003, p.05).

13
A Lei 9099/95 transferiu para os Juizados Especiais Criminais (JECRIMs) a tarefa de arbitrar sobre os crimes de menor potencial ofensivo.
14
Op. Cit., p.03
15
Segue a autora: “Os números ascendentes de queixas registradas nas DDMs nos últimos anos são indicadores de que estas mulheres reconhecem nas
delegacias e nos Juizados um espaço de exercício de poder. A queixa policial marca a passagem do problema do espaço privado para o público.” (Op. Cit., p.24 e
25)
16
Seja no presente, passado distante ou recente, podendo ser “marido” ou “ex-marido, “companheiros” ou “ex”etc.
17
Segundo SUÁREZ e BANDEIRA (2002, p. 306), o conceito de conflitualidade interpessoal: “(...) aponta fortemente para a natureza inevitável do conflito
entre homens e mulheres, como de resto entre indivíduos de qualquer gênero. O conceito também permite aprofundar a idéia de que essas violências se
perpetuam porque firmam as imagens tradicionais de homem e mulher, bem como os papéis que lhes são atribuídos. (...) Desse modo, as violências do cotidiano
acontecem como formas de sociabilidade previstas, cuja perversidade causa estranhamento somente nos setores mais progressistas da sociedade.”

53
O recurso aos serviços oferecidos pela instituição policial e a possibilidade de seu encaminhamento ao sistema
judiciário, caracterizam o principal conteúdo das políticas de combate à ‘violência conjugal’. DEBERT (2006) ao estudar as
Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher (DDMs) de São Paulo, registrou que:
“(...) os conflitos entre particularidade e universalidade oferecem também um caráter específico que tem sido chamado
de ‘judicialização das relações sociais’. Essa expressão busca contemplar a crescente invasão do direito na organização
da vida social. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, essa invasão do direito não se limita à esfera propriamente
política, mas tem alcançado a regulação da sociabilidade e das práticas sociais em esferas tidas, tradicionalmente,
como de natureza estritamente privada, como são os casos das relações de gênero e o tratamento dado às crianças pelos
pais ou aos pais pelos filhos adultos.” 18

RIFIOTIS (Op. Cit., p.6), ao comparar a Delegacia da Mulher de João Pessoa, Paraíba, com as experiências
canadenses no campo da ‘violência conjugal’, lembra que a criminalização nos conflitos intrafamiliares é problemática e que,
“(...) a ‘judicialização’ é apresentada como conjunto de práticas e valores, pressupostos em instituições como a
Delegacia da Mulher, e que consiste fundamentalmente em interpretar a ‘violência conjugal’ a partir de uma leitura
criminalizante e estigmatizada contida na polaridade ‘vítima-agressor’ ou na figura jurídica do réu. A leitura
criminalizadora apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção dos conflitos interpessoais.”

Finalmente, queremos sublinhar a importância dos trabalhos de Luís Roberto Cardoso de Oliveira para a
compreensão dos conflitos interpessoais e seus desdobramentos no âmbito do fenômeno ‘violência conjugal’, os quais
reafirmam a precedência da dimensão simbólico-moral na constituição da violência. Significa dizer que as formas de
interação que concorrem para a produção dos conflitos conjugais (e violências deles decorrentes) na vida privada colocam
situações que, na esfera pública, “(...) não podem ser satisfeitas através de simples obediência à norma legal.” 19
Esta questão tem sido observada em muitos estudos sobre ‘violência conjugal’ que, por caminhos diferentes, têm
mostrado as dificuldades de se absorver a regulação dos conflitos interpessoais exclusivamente pela normatização jurídica,
uma vez que estes estão profundamente arraigados à distribuição de papéis e às dimensões dos costumes. A ‘dimensão moral’
não seria aqui considerada como simples entrave à implantação de novas ordens requeridas pela modernidade e pelo
reconhecimento dos “direitos individuais”. Esta tem o mérito de mostrar que a abordagem “restrita ao exame do conflito de
interesses” ou ao “foco nos direitos individuais como princípios absolutos” não é suficiente, pois trata-se de “(...) direitos
situados na intersecção entre os universos da legalidade e da moralidade (...).”20
Ao se colocarem a tarefa de regular a esfera pessoal e privada, as instituições públicas, assim incumbidas, se tornam
espaços problematizadores de conteúdos morais e de tipos de moralidades que nelas circulam. No escopo de compreensão do
objeto, se assinala aqui que o campo das instituições públicas pesquisadas e seus agentes (profissionais e usuárias),
constituem o foco de observação dessas problematizações.

4. Políticas de combate à “violência contra a mulher” no Brasil


No Brasil, a principal política específica de combate à violência contra a mulher, ocorreu pela via da segurança
pública, através da implantação e expansão das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Em que pese
a grande repercussão e relevância dessa política, ao longo da atuação dessas instituições, estudos apontaram ambiguidades
nos papéis desenvolvidos pelas autoridades policiais e pelas próprias vítimas que indicavam, principalmente, as dificuldades
para se tratar essa questão no âmbito exclusivo da justiça-criminal.21 A nova legislação brasileira, ao prever um conjunto de
ações em condições de articular diversas áreas, tem o mérito de fazer avançar uma perspectiva de ação mais integrada na
política de combate à violência contra a mulher. A sua recente promulgação e fase de regulamentação, no entanto, ainda não
permite certificar se isso realmente jogará para a redução dos desafios identificados.22
O movimento internacional de constituição de uma agenda pública de combate à violência contra a mulher começa
a se organizar, com maior força, em fins da década de setenta. Na década de noventa é impulsionada uma série de ações,
através de conferências e reuniões mundiais, que objetivou a elaboração de instrumentos e a implementação de medidas para
“prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres”.23 O protagonismo das feministas nesses movimentos de
mudanças atingiu estruturas governamentais e transpôs para o campo das políticas públicas as primeiras propostas para

18
Op. Cit., p. 16.
19
Cf., CARDOSO de OLIVEIRA (2002; 2005)
20
Cf., CARDOSO de OLIVEIRA (2004)
21
Por exemplo, os estudos de PASINATO IZUMINO (Op. Cit.) e BRANDÃO (Op. Cit.), comentados na página 03.
22
A lei 11.340, promulgada em agosto de 2006 e conhecida como Lei Maria da Penha, prevê em seu artigo 8 e inciso I: Um conjunto articulado de ações da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário,
do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
23
Dentre estes instrumentos destacam-se a recomendação de número 19 (publicada em 1992) da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher (CEDAW, convenção aprovada em 1979 pelas Nações Unidas); a II Conferência sobre direitos humanos, realizada em 1993 em
Viena e que incorporou a consideração de que “a violência contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos”; a Convenção Interamericana para
Prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher, realizada em junho de 1994, em Belém do Pará; a Conferência Mundial sobre a mulher realizada em
Beijing, na China, em 1995; e a reunião conhecida como Beijing + 5 que integrou uma Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, cinco anos após
a IV Conferência Mundial. Cf; CAVIEDES (2002), VIANNA (2004).

54
enfrentar a violência de gênero, especialmente com a constituição de formas de representação governamental (Conselhos
Estaduais e Nacional dos Direitos da Mulher, assessorias, coordenadorias etc.) e, posteriormente, as Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). A primeira delegacia especializada no atendimento às mulheres vítimas
de violência surgiu em 1985, na cidade de São Paulo, com a função acolher, dentro dos procedimentos legais, a queixa
trazida à polícia e de forma que a violência conjugal pudesse ser efetivamente combatida e criminalizada.24 O que os
movimentos feministas reivindicaram foi, principalmente, uma mudança na qualidade do atendimento, capaz de superar
preconceitos, rótulos e estereótipos depreciadores que recaíam sobre as mulheres que se apresentavam para fazer o registro
policial. De fato, o pioneirismo dessa experiência colocou as DEAMs na posição mais importante no ranking das instituições
que passaram a integrar o quadro das políticas de combate à violência no Brasil. As DEAMs introduziram “o mundo da lei,
da justiça e da impessoalidade no âmbito privado, no reino da intimidade conjugal”25.
Contudo, desde a sua criação, essas delegacias passaram por transformações significativas e, apesar de sua
importância como política pública, não constituem homogeneamente um campo de investigação da violência contra a mulher.
MACHADO (2002), ao analisar os dados constantes no levantamento realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (CNDM) em 2001 ressalta o caráter histórico e diferenciado na atuação das DEAMs no Brasil. De acordo com a
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2007)26, hoje existem cerca de 400 delegacias que estão desigualmente
distribuídas nos municípios brasileiros e quase a metade do nº total de DEAMs está na região sudeste. Além da diferença de
cobertura, chama atenção a particularidade de funcionamento das delegacias em alguns estados. No Rio de Janeiro, por
exemplo, são mulheres (delegadas) que comandam as DEAMs, mas ao contrário do que ocorre em outros locais, homens
também integram o quadro de investigadores. Em São Paulo, conforme assinala DEBERT (Op. Cit.), o decreto 40.693 de
1996 ampliou a área de atuação das DDMs (Delegacias de Defesa das Mulheres) incluindo delitos contra crianças e
adolescentes. Tal decreto implicou em mudanças de rotinas que, apesar de terem sido “validadas positivamente” pelas
agentes das delegacias de mulheres alcançadas por sua pesquisa, altera o significado da instituição, segundo a autora.
As DEAMs terminaram por se configurar em vasto campo de pesquisa e têm sido insistentemente analisadas por
cientistas sociais que apontam a relação complexa entre o Estado, o feminismo e as mulheres vítimas. A história das DEAMs
não pode ser dissociada da principal expectativa das feministas brasileiras em relação à violência conjugal: a de que esta deve
tratada no âmbito justiça-criminal, portanto, ser considerada como crime.
A mais significativa transformação experimentada pelas delegacias de mulheres ocorreu através da aprovação da
Lei Federal 9.099 que regulamentou os Juizados Especiais Criminais (JECRIMs). Estes, implantados a partir de 1995,
passaram a receber os casos de contravenção e aqueles considerados de “menor potencial ofensivo” (tipificados como de
ameaça e/ou lesão corporal leve). A principal inspiração destes Juizados no campo da criminologia foi o de promover o
acesso da população a justiça sob a ótica da conciliação. Ou seja, concebidos para promover a conciliação entre as partes
envolvidas em conflitos interpessoais, eles deveriam facilitar acordos e negociações.27 A criação dos JECRIMs alterou,
principalmente, as rotinas de delegacias como as DEAMs, na medida em que o maior número de registros destas se refere a
delitos tipificados como ameaça e lesão corporal leve.28
Durante o funcionamento dos JECRIMs, passou a chamar atenção de grupos feministas o grande número de casos
oriundos de conflitos e de violências que envolviam, principalmente, homens e mulheres em relações conjugais, e nas quais
as mulheres eram, recorrentemente, as vítimas. Esta constatação será problematizada nos estudos e nas organizações
feministas que vão requerer a incorporação de uma “criminologia feminista” na atuação destas instituições.29 A principal
crítica ao encaminhamento dos casos de ‘violência de gênero’ aos JECRIMs foi de que, na prática, esses acabaram por
despenalizar os crimes. Desta forma, a ‘violência conjugal’ foi considerada um crime de menor gravidade no qual as
punições aos agressores, em geral, se limitaram ao fornecimento de cestas básicas de alimentos, serviços prestados à
comunidade, participação em grupos terapêuticos etc.
As críticas dos movimentos feministas às atuações dos JECRIMs levaram à articulação de um “consórcio”,
formado por organizações não governamentais feministas, que investiu na elaboração de uma nova proposta de lei para o
encaminhamento dos casos de ‘violência contra a mulher’ na Justiça. Em 2004, um projeto foi enviado à Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres (SPM) no qual se propunha a alteração dos procedimentos instituídos pelos Juizados Especiais
Criminais (JECRIMs) no tratamento dos crimes de violência conjugal. Do conjunto dessas intensas manifestações e
articulações resultou a criação da “Lei Maria da Penha”, que prevê a criação de varas e Juizados Especiais de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher com autoridade para aplicar as medidas cabíveis nos casos de ‘violência conjugal’.
Nos debates em torno do seu percurso, tem chamado atenção o seu apelo a uma efetiva criminalização da violência contra a

24
Seção baseada em SORJ (Op. Cit) e SORJ e MORAES (Op. Cit.).
25
SORJ (Op. Cit.)
26
A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres foi criada no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para desenvolver ações e políticas públicas
conjuntas com todos os Ministérios e outras Secretarias Especiais.
27
Essa instituição teve como princípios norteadores a oralidade, simplicidade, informalidade, celeridade, economia processual, conciliação e transação penal.
Ver, BURGOS (2001).
28
O Instituto Médico Legal (IML) tem a atribuição de definir se a lesão é leve ou grave. Por outro lado, a tipificação de outros tipos de delitos nas delegacias
suscita muita polêmica e questionamentos de organizações feministas, conforme veremos.
29
Entre outros, ver CAMPOS (2003).

55
mulher. No entanto, trata-se de projeto abrangente que inclui medidas preventivas, assistenciais, punitivas, educativas e de
proteção à mulher e aos filhos.30
Em agosto de 2007, o governo federal lançou o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Uma das metas do pacto é garantir a implementação da Lei
Maria da Penha, ampliando e fortalecendo a rede de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Estão
previstos a criação e o reaparelhamento de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, Centros
de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Educação e Reabilitação do Agressor, Central de Atendimento à
Mulher (Ligue 180). Ainda, segundo a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), desde a criação da Lei Maria
da Penha até setembro de 2007 foram criados, em todo o país, 15 Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar
Contra a Mulher e 32 varas adaptadas (o estado do Rio de Janeiro possui atualmente quatro Juizados).31
É desafiadora a consolidação de um modelo de política de combate à violência conjugal e de gênero. Hoje, no
Brasil, chama atenção a preocupação com um atendimento às mulheres vítimas que, pelas suas características abrangentes,
podemos chamar de multisetorial. Em tese, este deve responder, simultaneamente, às exigências de punição legal do autor da
violência e ao apoio social e assistencial à vítima, especialmente para aquele número significativo de casos de mulheres em
precária situação econômica. Uma rápida comparação com estudos internacionais sobre violência de gênero no espaço
privado mostra que os resultados nas políticas públicas muitas vezes são considerados pouco satisfatórios.32 Enquanto aqui, a
nossa trajetória obteve relevância institucional via as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), em
outros países, programas de prevenção e atenção à violência inseridos nos regimes de monitoramento e de desenvolvimento
dos sistemas de welfare state, por exemplo, são apontados como possuidores de fragilidades que podem ser atribuídas à
distância entre as ações de assistência social e a área de segurança pública, que não dispõe de um atendimento
especializado.33 Mesmo não sendo possível aprofundar aqui tal comparação, queremos apenas ressaltar que o caminho
traçado pela via das delegacias especializadas, se por um lado mostra importantes avanços, especialmente porque muitas
mulheres já reconhecem este como um recurso para acessar direitos, por outro, tem suscitado críticas tanto de agentes
internos quanto externos a estas organizações. De fato, conforme salientado, uma característica que parece recortar um
grande número de experiências com essa política é uma forte percepção de que os seus resultados estão sempre aquém das
expectativas projetadas.34

5. Metodologia e campo de pesquisa 35


A pesquisa de campo foi realizada em três instituições da cidade do Rio de Janeiro: uma Delegacia Especializada
de Atendimento à Mulher (DEAM), entre julho de 2005 e março de 2006; o Centro Integrado de Atendimento à Mulher
(CIAM), durante o primeiro semestre de 2006; e uma Delegacia Distrital, entre julho de 2006 e janeiro de 2007. A
metodologia de coleta de dados e informações para o estudo foi baseada em técnicas de investigação qualitativa;
principalmente nos registros de observação das rotinas de atendimento das instituições e na aplicação de entrevistas semi-
estruturadas junto a diversos profissionais (policiais e atendentes do balcão das delegacias; assistentes sociais, psicólogas e
advogadas do Centro de Atendimento à Mulher) e mulheres vitimadas. Resumimos, assim, os objetivos específicos das
comparações entre essas instituições:
1. Comparar o CIAM (Centro de Atendimento) e DEAM (delegacia especializada), destacando como dois grupos
de profissionais (as técnicas do Centro de Atendimento e os/as policiais) se orientam por diferentes conjuntos de valores no
atendimento às vítimas que procuram essas instituições.
2. Comparar a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) e da Delegacia Distrital (comum) a fim de
verificar se existem diferenças sensíveis entre esses dois tipos de delegacias, confrontando práticas nas rotinas de
atendimento, percepções e expectativas dos policiais. Trata-se de identificar, sobretudo, se a experiência de criação da
DEAM, com o propósito de acolher de forma específica as mulheres que são vítimas de violência conjugal, se mostrou
consistente e condizente com os propósitos que as originaram.

As instituições pesquisadas (DEAM, CIAM e Delegacia Distrital)


No Rio de Janeiro as DEAMs fazem parte do “Programa Delegacia Legal”, em implantação desde 1999, o qual
integrou um processo de modernização e racionalização dos procedimentos das delegacias policiais do Estado.36 Os

30
Cf., ROMEIRO (2006).
31
Essas informações podem ser encontradas em Enfrentamento à violência contra a mulher. Balanço de ações 2006-2007, Secretaria Especial de Políticas para
as Mulheres, disponível no sítio www.spmulheres.gov.br.
32
SEITH (2001), SCOTT (2002), SOARES (1999), RIFIOTIS (2003)
33
SEITH (Op. Cit.).
34
No estudo em que compara essas políticas públicas no Brasil e Canadá, RIFIOTIS (Op. Cit., p.23, 24) identifica que apesar das grandes diferenças entre os
contextos brasileiro e canadense há, por parte dos atores das instituições responsáveis, nos dois casos, um significativo grau de insatisfação com os resultados
alcançados no desenvolvimento dos atendimentos.
35
As alunas Jenifer Tinoco e Keila Alves do IFCS/UFRJ também participaram do trabalho de campo, prestando relevante e imprescindível colaboração.

56
investigadores encarregados de proceder ao Registro de Ocorrência (R.O) são, quase todos, homens e mulheres com alguma
formação universitária. Nesta delegacia os homens só estão impedidos de atender aos casos de “violência sexual”. 37 Podemos
dizer que o modelo estereotipado de policiais “brutalizados” e “insensíveis”, tão contestado pelos movimentos feministas e
dos direitos humanos, não se encaixa nos padrões ali encontrados. No que se refere à apresentação pública de seu modelo
institucional, a DEAM aparece como instituição que cumpre metas modernizadoras que qualificaram algumas das
reivindicações do feminismo.
A delegacia distrital pesquisada fica no subúrbio carioca e atende a quase todos os tipos de ocorrência: roubos e
furtos, acidentes de trânsito, homicídios, agressões diversas. Segundo seus profissionais, costuma receber um número
significativo de casos de violência conjugal. Esta delegacia, como a DEAM, faz parte do Programa Delegacia Legal. Suas
aparências e estruturas são, portanto, bastante semelhantes. Quase todos os policiais possuem ou cursam o terceiro grau.
Diferentemente da DEAM, há apenas uma mulher realizando atendimento ao público.
O Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM), instituição pública vinculada ao governo do estado do Rio
de Janeiro, oferece às mulheres vítimas de violência serviços de atendimento, orientação e informação nas áreas jurídica e
psicológica. O processo de institucionalização do CIAM se consolidou através de intensos e permanentes diálogos com
grupos e organizações feministas.38 Orientados por um tipo de “metodologia feminista”, os seus serviços concentram-se em
três frentes: a) “Grupos de reflexão”: grupos de mulheres usuárias que se encontram para debater “sobre suas vidas e futuro.”
b) Apoio jurídico: orientação às mulheres que estão com o Registro de Ocorrência em mãos e/ou com o processo em
andamento. c) “Disque-Mulher”: serviço de atendimento à mulher em situação de violência, via telefone.
A DEAM adotou formalmente o procedimento de encaminhar suas usuárias ao CIAM, que fica a menos de
duzentos metros de distância daquela, o que facilitou a circulação de mulheres entre as duas instituições.

6. Comparando DEAM e CIAM


Para as profissionais do CIAM, o atendimento a vítimas de violência conjugal, não pode prescindir de uma rede de
apoio de serviços. Conforme mencionado por algumas ‘técnicas’, as demandas que as usuárias trazem para a instituição
agregam outros tantos pedidos de orientação e ajuda: “apoio emocional”, “apoio financeiro”, “apoio familiar” etc. A
variedade de demandas pode ser tratada via acompanhamento psicológico, apoio jurídico ou encaminhamento a outros
serviços do Estado. No entanto, a principal intervenção da instituição se dá no sentido de (re)definir, com as mulheres, o tipo
de violência sofrida.
As explicações para a produção da “violência de gênero” entre as técnicas do CIAM ressaltam a “cultura machista”
(na qual estariam incluídos não apenas os “homens”, mas também as mulheres). Assim, a permanência de mulheres na
situação violenta, estaria relacionada, principalmente, a fatores sociais e às restrições econômicas, mas conteúdos afetivos
também estariam associados. Essas condições responderiam por uma “cegueira” que impediria as mulheres de se
reconhecerem em situação de violência permanente e contínua. A intervenção se estrutura então, através de duas abordagens:
na identificação das vitimizações e na definição do tipo de violência vivenciada (a de gênero).
No primeiro caso, um valor importante na missão institucional é o de levar as mulheres a perceberem que, além das
agressões que deixam marcas no corpo, elas são vítimas de outras formas de ‘violência’: “(...) é como se abríssemos uma
cortina”. São mencionadas as dificuldades que as usuárias têm para perceber o “abuso do marido”, “as ameaças”, “os
xingamentos”, “a pressão psicológica”, a “humilhação”, a “traição” etc. Haveria um leque variado de expressões de
“violências invisíveis”, intrincadas no cotidiano, das quais as mulheres “não se dão conta”.
O segundo aspecto da intervenção privilegia a idéia de reconduzir a mulher a um “lugar de autonomia”, atuando
como “autora de sua história”. Também implica em retirá-la do lugar “passivo de vítima” ao estimulá-la a “responsabilizar o
marido ou companheiro”. “Responsabilização” é categoria da intervenção que substitui a de “criminalização”, com o objetivo
de reduzir significados e conteúdos negativos que possam criar resistências entre as vítimas. Mesmo assim, as profissionais
reconhecem que muitas usuárias têm dificuldades para lidar com a “responsabilização” do agressor e que mesmo aquelas que
chegam “decididas”, ou mesmo tomadas por “impulsos de vingança”, podem resistir no percurso: “a mulher que deixa que o
marido seja responsabilizado até o fim, está há muito tempo nos grupos do CIAM”, diz uma técnica. O principal investimento
da instituição passa a ser então o de estimular a vítima a comunicar o fato (quando ainda não o fez) e prosseguir com a
denúncia até a sua conclusão definitiva na Justiça.39
As relações do CIAM com as delegacias, especialmente com a DEAM pesquisada, são referidas como “cordiais” e
“respeitosas”. A satisfatória relação institucional presente no campo não exclui, por outro lado, a coexistência de perspectivas

36
Esse programa de modernização incluiu o desenvolvimento de software que permitiu a geração de Registros de Ocorrência (R.O) de maior complexidade, o
processamento em rede de informações nunca antes reunidas. Cf., MORAES, SOARES e CONCEIÇÃO (2005, p.2-3)
37
Estes são considerados “estupro”, “assédio sexual” e “atentado violento ao pudor.” Justifica-se que as vítimas de violência sexual ficariam “mais a vontade”
para relatar a ocorrência a uma policial.
38
A experiência de atendimento interdisciplinar a vítimas de violência, com uma metodologia “de escuta” e de “acolhimento” foi iniciada em 1988 no Conselho
Estadual de Direitos da Mulher (CEDIM)/RJ, com o apoio de feministas. Em 2000, o CEDIM formalizou um projeto piloto de atendimento que passou a
funcionar sob a sigla CIAM com a preocupação de “fortalecer” e “complementar” o atendimento nas Delegacias de Mulheres.
39
A metodologia de intervenção se desdobra em tensões internas quanto à “autonomia” das vítimas. A autonomia é enfaticamente preservada pela maioria das
técnicas: “(...) o CIAM não obriga ninguém a fazer o registro”; “(...) nós não estamos aqui para separar ninguém”.

57
bastante conflitivas no que tange às classificações dos crimes. Há um grau razoável de interferência do CIAM nos Registros
de Ocorrência (R.O.) das delegacias que chegam às técnicas através das usuárias. A possibilidade destes diálogos em torno
do R.O. foi absorvida na política de segurança da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro, mas estas interlocuções não são
igualmente assimiladas entre delegadas e investigadores/as.
Na consulta ao R.O. trazido pela vítima, após solicitação de técnicas e/ou advogadas do CIAM, o campo “dinâmica
do fato” é o principal alvo de preocupação, uma vez que neste consta o relato que, em última instância, vai permitir a
tipificação ou classificação do crime. As técnicas do CIAM mencionaram várias situações nas quais as delegacias _ sejam
comuns ou DEAMs_, terminam por minimizar a gravidade dos casos na descrição do relato da vítima. Segundo as técnicas:
“(...) já recebemos R.O. de uma DEAM que tinha tipificado como lesão corporal uma tentativa de enforcamento (...)
era tentativa de homicídio!”.
“(...) tem mulheres que chegam aqui e dizem que sofreram ameaça de morte e o R.O. vem mencionando injúria!”

Alguns profissionais da DEAM reconhecem que os encaminhamentos de usuárias para o CIAM ajudam a reduzir a
tensão entre as “demandas diversificadas” trazidas por elas e a função estritamente policial e investigativa. Observam, no
entanto, incompatibilidades entre as expectativas do CIAM e o trabalho que a delegacia deve realizar. Há percepção de que
instituições inspiradas no feminismo _ Conselhos de Defesa dos Direitos da Mulher, tais como o CEDIM/RJ, organizações
não governamentais, e o próprio CIAM _ exercem “pressão política” que repercute no trabalho das DEAMs. Ao se referir à
proposta de criação dos novos Juizados, um inspetor, dizia: “(...) o campo jurídico hoje procura penas mais brandas e as
feministas discutem penas mais pesadas para o agressor (...)”. A estas considerações somam-se observações de que as
organizações, inspiradas no feminismo, acabariam instituindo uma “prática de confecção de registros mesmo quando não há
crime capitulado.”
Os/as agentes da DEAM estão muito mais orientados pelo ethos da profissão do que por um horizonte político de
direitos compartilhado pelas instituições feministas. Há uma percepção, nem sempre explicitada discursivamente, de que são
as organizações feministas, referências nas lutas de defesa das mulheres, que transformam a DEAM em instituição pública
representativa do combate à violência de gênero no Brasil; tornando este um atributo pré-nomeado por organizações externas
ao sistema de justiça-criminal. Muitos também se preocuparam em apontar que a visibilidade do tema _ constatada através de
campanhas de denúncia, abordagens em novelas e através de “casos concretos” apresentados pela mídia envolvendo artistas e
personalidades do mundo político_ contribuiu para trazer as vítimas às delegacias, mas também criou outros problemas nas
suas rotinas.
“Pressões externas” que podem vir de diferentes canais institucionais, aliadas às dificuldades que as vítimas
apresentam para lidar com os conflitos interpessoais e domésticos, reúnem elementos que, para policiais, potencializariam
uma utilização inadequada das DEAMs por parte das vítimas. Isto responderia também pelo aumento significativo de queixas
que chegam à delegacia e que são consideradas de difícil criminalização e de precária materialidade:
“‘Você vai ver só’! Não tem crime. Não tô discutindo se ela está se sentindo ameaçada. De repente ela está se sentindo
ameaçada mesmo. Só que não dá pra fazer o registro. (...) O juiz? Devolve rapidinho pra gente. Porque não tem
materialidade. Tem um monte ali devolvido porque não tem a materialidade do crime, porque o ‘você vai ver só’ não
quer dizer nada. (...) Como é que pode fazer um registro de ‘violência psicológica’, como é? (...) Aí, eu acho que quem
coloca na televisão devia explicar e talvez até criar um órgão de assistência à violência psicológica, como eles mesmo
dizem.”

Um policial utilizou a expressão “cifra rosa do crime”, para explicar as suas percepções sobre o aumento
significativo de registros na DEAM. Para ele, os registros incluídos na chamada “cifra rosa do crime” seriam criações_ “a
delegacia acaba criando registros” _, uma vez que estes revestem-se de demandas “pouco claras”, “confusas” e de difícil
tipificação.40 A expressão “banalização”, referindo-se às dificuldades que as mulheres apresentam para utilizar os serviços da
DEAM, é a categoria mais representativa deste conjunto de percepções que, afinal, termina por problematizar um valor que
norteou a criação desta política: o aumento do acesso das vítimas à polícia.
A preocupação com a multiplicação e variabilidade das queixas pode potencializar outros conflitos em relação aos
princípios de “objetividade” e “imparcialidade” valorizados no discurso policial.41 A (re)definição da Delegacia de Mulheres
como espaço “neutro” ou “imparcial” é classificação acionada por muitos/as agentes para organizar outros dilemas presentes
. Expressões como “os profissionais são totalmente imparciais, temos que ouvir as duas partes”, se por um lado parece ser
uma projeção idealizada da integridade a ser preservada no processo investigativo, por outro indica um conflito com o
“diferencial” que justificou a própria criação das DEAMs _ o atendimento especializado e dirigido para determinado tipo de
crime e para um segmento específico da sociedade. A menção a ideais de “isenção” e “imparcialidade”, na prática traduz
ambiguidades em torno da percepção de “vítima”. As categorizações das usuárias dos serviços da delegacia assumem
conotações diferentes daquelas correntes no CIAM. Para os/as agentes da DEAM, é importante identificar aquelas mulheres

40
O ranking da “banalização” incluiria queixas de conflitos com homens e/ou companheiros (como xingamentos mútuos), mas também aqueles que envolvem
apenas mulheres, como “brigas de trânsito”, “brigas de vizinhas”, “de irmãs”, “entre amantes e esposas” etc. Um leque bastante variado de conflitos que, segundo
um inspetor: “se é mulher, nós registramos né”.
41
Na DEAM havia um cartaz que indicava os seus “valores”. “Valorizamos: imparcialidade, cortesia, honestidade, capacitação profissional, cidadania, ética,
hierarquia, disciplina”.

58
que trazem “sofrimentos legítimos”, as “vítimas de verdade” Essa lógica classificatória indicou que uma hierarquia da
credibilidade42 é acionada para classificar as usuárias. Essas classificações pressupõem um julgamento das mulheres com
base em expectativas de comportamentos e de papéis sociais de gênero. Os investigadores/as afirmam que “todos os registros
são feitos”, porém, alguns casos são claramente colocados por eles/as nos degraus mais baixos e desacreditados desta
hierarquia. Entre as “vítimas” desacreditadas estariam aquelas que vêm “instruídas por advogados”, aquelas que fazem
registro “apenas para negociar uma separação”; “aquelas que só querem infernizar a vida do cara”; “as traídas”; “as
abandonadas pelo marido”; “as vingativas”; aquelas “que vão desistir logo em seguida”, “aquelas que logo depois estão aos
beijos com o cara” etc.
***
A compreensão dos conflitos assume ecos muito diferentes, a depender do lugar de onde os atores discursam. Para
o CIAM as delegacias continuam a minimizar a criminalização ou acabam atuando no sentido da descriminalização das
violências (“múltiplas”, “invisíveis” etc.). Para as DEAMs, as organizações feministas politizam os instrumentos
disponibilizados pelo Estado e as usuárias por vezes buscam objetivos inadequados nestes. Nas dinâmicas dos atores no
campo, tanto as visões universalistas do feminismo quanto a lógica policial, são problematizadas na intersecção das atuações
institucionais.
Ao mesmo tempo, é muito diferente das outras delegacias, a maneira como as DEAMs acabaram “personalizando”
os seus atendimentos e reduziram com isso o receio que muitas mulheres tinham de ir à polícia. Este padrão acolhedor
presente em muitas Delegacias de Mulheres, talvez explique, em parte, porque a entrada de instituições específicas de
atendimento aos casos de violência (como o CIAM), se por um lado ajuda a reduzir a tensão constante entre “social e
criminal” que é sentida nas delegacias; por outro, não transfere totalmente as atribuições vistas como “sociais”. Em muitas
situações, as atuações das instituições acabam se sobrepondo. Práticas de atendimento continuam pulverizadas na DEAM,
assim como o CIAM acaba acompanhando (ou mesmo interferindo) na prática de confecção de Registros de Ocorrência, ou
seja, monitorando para que o processo de criminalização seja efetivamente desencadeado.
Na prática, há que se reconhecer a importância de ações conjugadas que disponibilizem recursos diferenciados no
combate à violência. As diferenças ou mesmo conflitos entre estas instituições realmente parecem não constituir problema
em si. No plano das relações políticas e institucionais, o problema talvez possa ser traduzido por aquilo que GREGORI
(2006, p.80), ao estudar a relação das DEAMs do município de São Paulo com outras organizações, denominou
“paralelismos” que acabam por marcar as atuações. Nesses, diz a autora, inexiste forma institucional para atuar como força
mediadora _ “como a de rede, por exemplo”_, o que comprometeria a aglutinação das intervenções com legitimidade e
consenso.
Para finalizar as considerações no plano analítico, o campo de instituições de atendimento a vítimas de violência
vai se constituindo via “ações em paralelo”, mas também via confrontos de diferentes horizontes morais. Isso interpela
também sobre a maneira como essa institucionalidade atinge as mulheres.

7. DEAM e Delegacia não especializada (Distrital)


Ao se comparar os grupos de policiais da delegacia especializada (DEAM) e não especializada (Distrital), se
identifica um conteúdo comum: a violência conjugal é mais percebida como um problema social e familiar do que como um
crime. Há, no entanto, diferenças consideráveis na maneira como policiais constroem tal compreensão.
Para os policiais da delegacia Distrital, a idéia de que prestam um serviço para toda a população e para os “pobres”,
principalmente, vincula o fenômeno da violência conjugal a um “problema de famílias desestruturadas” e empobrecidas. Na
DEAM, por sua vez, o fato de que esta representa um equipamento de proteção a um grupo específico da população introduz
alguns planos de tensão. A principal tensão está relacionada com o próprio ethos profissional constituído na formação
policial, uma vez que este não foi preparado para atuar nos limites da particularidade dos direitos de grupos ou minorias. O
ethos profissional do policial é universalista e não particularista, questão corroborada também por outros pesquisadores.
ANDRÉA (2008), em pesquisa realizada em três delegacias especializadas da região metropolitana do Rio de Janeiro (Anti –
Sequestro, Homicídios de Niterói e São Gonçalo, e Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais),
argumenta que “a formação que [os policiais] recebem na ACADEPOL é generalista” e não os prepara para os trabalhos
especializados que precisam desempenhar nessas delegacias.43 Para os policiais é estranha a idéia de defender direitos
humanos particulares. A partir desse eixo é que espiralam conflitos subjetivos na maneira como os próprios policiais da
DEAM percebem a relação com os grupos de beneficiárias.
Tanto para os policiais da delegacia distrital, quanto das DEAMs, a polícia teria pouco poder para, efetivamente,
solucionar o problema da violência conjugal. Para os dois grupos, a violência conjugal na família é um acontecimento,
sobretudo, da “esfera social” cujas soluções estão distantes da polícia: seja porque estas só poderiam ser encontradas em
políticas públicas mais abrangentes, seja porque dependem, em última instância, de outros acontecimentos na esfera das
interações íntimas e privadas. Nessa lógica, esse tipo de violência guardaria um limite para se esgotar nos procedimentos e na

42
Cf., MORAES (2004)
43
Cf., Op. Cit., p. 80. Através do detalhamento do currículo dos cursos de formação dos profissionais da polícia civil, esse trabalho revela o teor generalista da
formação policial.

59
racionalidade pura da justiça criminal, na medida em que os seus principais conteúdos estariam sempre ligados a problemas
“pessoais” e “sociais”. No escopo mais amplo, na “pobreza”, no “desemprego”, na “falta de recursos e de instrução” etc. Nas
relações micro-sociais, no “alcoolismo”, na “falta de respeito”, na “instabilidade dos casamentos”, na “desestruturação das
famílias” etc. Assim, de magnitude inacessível no âmbito social e inscrita no campo das “questões pessoais” e dos silêncios
guardados nas fronteiras do mundo privado, o combate e prevenção à violência conjugal aparecem como um desafio
considerável para a polícia. O sucesso ao seu combate dependeria mais da atuação de outras organizações do Estado e, acima
de tudo, da vontade dos atores nela envolvidos.
Nessa perspectiva, o principal eixo argumentativo dos policiais da distrital recorre à discussão sobre o papel que a
polícia acaba desempenhando junto aos mais pobres. As “mulheres vítimas de violência conjugal” são parte de um conjunto
amplo de usuários que recorrem à polícia frente às fragilidades encontradas nos outros serviços oferecidos pelo Estado. Essas
“fragilidades” dos aparatos do Estado jogariam para colocar esses policiais, frequentemente, diante das mais diferenciadas
demandas. Assim, descrevem o chamado atendimento social como uma prática constante nos seus serviços, como fornecer
orientações e informações diversas ou mesmo “uma palavra de conforto.” Esse “trabalho social” é diferenciado pelos
profissionais daquilo que chamam de “trabalho policial”. Este segundo englobaria atividades relacionadas a crimes
considerados graves que também “batem na porta da delegacia todos os dias” e que exigiriam a ação e o conhecimento
realmente peritos, tais como: elucidação de homicídios, roubos com vítimas, detenções de pessoas envolvidas em flagrantes,
processos investigatórios sobre grupos criminosos etc. O que chama a atenção nos casos de “violência conjugal” na
Delegacia Distrital é o fato de que, salvo envolvam consequências gravíssimas que afetem a integridade física das vítimas,
como lesões graves e homicídio, esse evento é classificado como parte do “trabalho social” da polícia.
Entre os policiais homens e mulheres da DEAM, a discussão sobre o papel da instituição no combate à violência
conjugal é marcada por controvérsias significativas em relação ao ideário que inspirou a criação dessas delegacias. A
principal delas envolve a maneira como os profissionais concebem o papel da polícia na defesa dos direitos específicos das
mulheres, o que, em um bom número de situações, se choca com o “dever” de proteção e escuta a “todos” os cidadãos.
Conforme mencionamos no item 6 desse paper, entre os policiais da delegacia especializada é muito presente a preocupação
em esclarecer que o fato de trabalharem em uma delegacia da mulher não deve confundi-los com “defensores das mulheres”.
A idéia de “imparcialidade” ganha importância enquanto elemento discursivo entre muitos profissionais da DEAM. Antes de
tudo, eles afirmam a sua identidade de policiais, profissionais que devem prestar um serviço à população em geral e
“imparciais” na apuração adequada dos casos que chegam à delegacia.
O discurso da imparcialidade revela a tensão entre uma concepção universal e uma concepção “politizada” ou
específica das políticas de segurança _ aquela que institui recortes de gênero e de geração. As delegacias especializadas da
mulher, do idoso e da criança e do adolescente são concretizações desta crescente “politização” das políticas de segurança em
particular e das políticas públicas em geral. Uma das dificuldades que os policiais têm em relação a essa concepção é o fato
de que ela, de antemão, institucionaliza legal e formalmente alguns indivíduos como vítimas e outros como agressores. Isso
estaria ferindo a orientação generalista e o princípio da integridade do processo investigativo, valores repetidamente
afirmados como centrais pelos policiais da DEAM.
Os policiais entendem que o cotidiano da DEAM está repleto de conflitos que dificilmente se esgotariam neste tipo
de mediação institucional. O material bruto de trabalho dos policiais consiste em complexas relações conjugais e familiares,
em que diversos interesses e disputas estão em jogo. Alguns incorporam como prática do seu trabalho o aconselhamento às
mulheres para “mudarem de vida”, para “não se submeterem”, em vários casos encorajando-as, explicitamente, a se separar
do marido agressor. Esses conselhos são justificados como práticas que tornariam o atendimento policial mais humanizado,
pessoalizado e atencioso. A menção implícita ou explícita à separação enseja a visão de que o divórcio é a melhor solução
para a violência doméstica. Embora alguns profissionais percebam que o recurso à delegacia ocasionalmente pode modificar
o comportamento do agressor e fazer cessar, ao menos temporariamente, a violência conjugal, a maioria entende que o
registro de ocorrência, por si só, não pode resolver definitivamente o problema.
Passadas mais de duas décadas de criação das DEAMs no Brasil, o que se observa é que a violência conjugal
continua sendo considerado um fenômeno que escapa às competências propriamente policiais. É certo que mudaram certas
práticas e percepções na medida em que, por exemplo, rituais como “dar uma bronca no agressor”, e que tanto marcaram o
cotidiano dessas delegacias especializadas nos seus primeiros anos de existência, parecem ser hoje alvo de crítica entre
muitos policiais nessas delegacias especializadas. Aqueles ouvidos na nossa pesquisa declararam rejeições a essa prática, na
medida em que ela significaria uma desvalorização do trabalho policial. No entanto, através de outros arranjos que
constantemente se atualizam, essa violência de gênero que ocorre nas relações de intimidade, ainda é um problema visto
como pessoal, da mulher, cheio de impasses que dependem das dinâmicas familiares. Para os profissionais, o registro de
ocorrência não passa de um “papel” e a mediação policial teria pouco poder diante da dinâmica privada da violência
conjugal. O ator mais poderoso, nesse caso, seria a própria mulher que, através da separação, estaria garantindo a sua real
proteção.
Portanto, o Estado se propôs a agir como ator importante na solução desse problema, mas os seus agentes acreditam
que é a própria mulher quem tem a melhor solução. Consequentemente crêem que essa violência é, fundamentalmente, um
problema de “relacionamento” e “convivência” e que a separação é o que protege. Independente do sentido irônico ou mesmo
punitivo que pode fazer parte dessas idéias defendidas por alguns policiais da DEAM, o que ocorre é que se devolve às
mulheres a responsabilidade de viver de maneira não violenta.

60
Sobre os atores e fatores que responderiam pela violência conjugal
As explicações sobre os fatores que implicam em violência conjugal recorrentemente se embaralhavam com
considerações acerca do comportamento dos atores envolvidos. Nas duas delegacias, é muito recorrente a percepção que
elege o alcoolismo do homem como principal fator a precipitar a violência doméstica e conjugal. Mas sobre esses homens,
nas duas delegacias, tanto surgiram versões acusatórias e que lhes imputavam a violência, quanto justificativas que
denotavam alguma compreensão ou mesmo tolerância em relação à manifestação de algum nível de agressão, dadas
condições de adversidade e de constrangimentos sociais em que muitos se encontrariam. Os homens foram simultaneamente
descritos como portadores de uma “natureza violenta” ou reprodutores de comportamentos machistas e agressivos _ como
homens que “traem a mulher”, que “não orientam os filhos”, “não ajudam em casa”, isto é, não cumprem o papel de provedor
e chefe de família socialmente esperado_ mas também como “trabalhador”, “bom pai”, “bom marido”, mas transfigurados
pelo alcoolismo. Sob efeito do álcool, o homem tornar-se-ia “mais agressivo” e perderia “a capacidade de discernimento”. É
uma explicação que retira boa parte da responsabilidade do agressor pela violência, na medida em que este é visto antes como
alcoólatra e, portanto, como vítima de sua própria doença.44
As raízes da violência nos espaços domésticos, não estariam reduzidas, no entanto, ao alcoolismo dos homens. Essa
não seria uma causa isolada e foi frequentemente inserida em contextos de deterioração econômica, emocional etc. A pobreza
foi o fator externo apontado como a principal causa da violência entre homens e mulheres. Esta percepção é expressiva tanto
na DEAM, quanto na distrital. A equação “pobreza = violência” é amplamente difundida no senso comum e, nas delegacias,
esta é operada para reforçar também que as vítimas (mulheres) são pobres e, por isso, dependentes de homens que, apesar de
viverem igualmente em situação de restrição econômica, são os principais provedores das famílias. Segundo os profissionais,
diante da falta de emprego e/ou dinheiro, o homem se sente muito pressionado pela mulher, que “fica querendo as coisas”, e
pelos “muitos filhos famintos”. Fracassado em sua função de provedor, e diante de tantas cobranças dos dependentes, o
homem se desespera e agride a cônjuge, e muitas vezes também os filhos. É neste quadro de pobreza e degradação que o
alcoolismo em geral se insere. A pobreza é, assim, identificada como produtora de “famílias desestruturadas”, nas quais
reinariam o alcoolismo e a violência. Embora alguns profissionais concebam que a violência conjugal e doméstica está
presente em todas as classes sociais, a justificativa da pobreza implica em atribuir às classes mais baixas o lócus por
excelência das relações familiares violentas. De acordo com essa lógica, nos estratos médios e altos, a violência conjugal
estaria ausente ou se configuraria apenas como evento isolado e, em grande parte desses casos, não chegaria a ser
publicizada. Há uma visão entre os policiais de ambas as instituições de que essas classes não recorrem à polícia em caso de
conflito, mas a outras formas de resolução que não passam pela via da justiça criminal, como processos de divórcio e
separação de bens, psicoterapia, e mesmo “viagens” ou “compras”. Na percepção dos policiais, a perspectiva da família
desestruturada e violenta não se aplica às classes economicamente favorecidas, o que reforça uma visão comum bastante
estigmatizante da pobreza. Violência e pobreza são percebidas como fatores fortemente associados.
Tanto na DEAM quanto na delegacia distrital, os policiais e funcionárias do balcão de atendimento caracterizavam
as mulheres envolvidas na violência conjugal como mães, casadas, dependentes economicamente dos maridos, pobres e
pouco escolarizadas. Em ambas as delegacias, há uma forte tendência, por parte dos policiais, em definir, genericamente,
essas mulheres como pessoas que se tornam vítimas da violência porque não possuem recursos econômicos ou acesso a
benefícios sociais ou educacionais. Ao mesmo tempo, comparado com os homens, as mulheres ocupam lugar central na
discussão sobre o comportamento dos atores envolvidos na violência conjugal. Nas duas delegacias a situação de agressão e
violência é descrita como um evento que inclui muitas interações e não se encerraria na conduta exclusiva do perpetrador, ao
contrário, muitos dos seus desfechos seriam de alguma forma (pré)definidos pelos comportamentos das próprias mulheres.
Um exemplo é que as mulheres estariam no centro da produção dos conflitos, ou mesmo da eclosão de algumas situações de
violência, na medida em que as manifestações de agressão dos homens seriam muitas vezes provocadas por elas. Elas tanto
provocariam como aceitariam essas situações, o que as tornaria, em muitos casos, cúmplices. Provocariam porque “irritam”
os homens até um ponto tal que “não lhes deixam outra opção” que não bater _ a agressão dos homens seria apenas uma
reação legítima. Ainda, a imagem da mulher irritante, foi reproduzida também via a idéia de que elas “reclamam o tempo
inteiro de tudo”, “falam muito”, “não fazem a comida”, “deixam as crianças largadas” etc. Por fim, aceitariam as violências,
quando, a despeito da agressão, escolhem permanecer casadas com eles. Frases como “só fazem com a gente o que a gente
permite” e “ninguém pode impedir o homem de bater, mas a mulher pode evitar apanhar” ilustram como relações de gênero
baseadas em manifestações de violência, podem ser, nesses contextos, explicadas.
Nas rotinas das delegacias, a construção social da mulher como vítima é, no mínimo, repleta de tensões.
Acreditamos que esse aspecto já foi suficientemente abordado no item 6 desse trabalho, quando tratamos da hierarquia de
credibilidade que envolve a classificação das vítimas na DEAM. Mas vale ainda destacar que essa “vitimização”, a menos
que traga conteúdos e materialidades indiscutíveis, é construída pelos policiais por um trilho de convencimento moral que
fará alusão ao histórico e comportamento da vítima, ao contexto da agressão etc. Inequivocamente, os policiais têm uma
percepção multifacetada da condição de vítima e essas faces múltiplas são vistas através de lentes que não avaliam apenas o

44
Para uma discussão a respeito da percepção do alcoolismo como doença e das correlações entre alcoolismo e violência, ver SOARES (1999). A autora cita
algumas pesquisas que mostram que não é possível “estabelecer conexões causais diretas entre álcool e violência doméstica, já que ambos são simultaneamente
motivados por combinações de fatores socioeconômicos e culturais” (pp. 240-1).

61
relato do “fato em si”, mas também a maneira como as vítimas se conduzem, ou dizem se conduzir, em relação aos papéis de
gênero.

Sobre as famílias envolvidas na violência conjugal


A família onde se desenrola a violência conjugal é indubitavelmente classificada pelos profissionais de ambas as
delegacias como uma “família desestruturada”. Imagens muito diversas e estereotipadas são utilizadas para definir essa
representação. A primeira é a de que, no interior dessas famílias, a manifestação de alguma violência seria um evento
provável. Seriam consideráveis as probabilidades de ocorrerem conflitos e agressões nas rotinas envolvendo membros desses
grupos familiares, sejam homens, mulheres, filhos e idosos. Com exceção desses últimos e dos filhos, quando crianças, os
outros atores estariam moldados para formas agressivas de interação, uma vez que esses relacionamentos conjugais e
familiares seriam naturalmente problemáticos e conflituosos. Esta percepção engendra a de que, no espaço doméstico e no
âmbito das relações de matrimônio e parentesco, algum grau de agressão interpessoal, ou mesmo de violência, seria
previsível e de certo modo aceitável. A naturalização da violência nessas famílias foi comum tanto aos policiais da Distrital
como aos da DEAM, onde esperávamos encontrar uma percepção diferenciada.
A “desestruturação da família” também foi vista como parte de um processo mais geral de “desestruturação social”
causado, aparentemente, pela “modernidade”. Assim, é comum na fala dos policiais a idéia de que “hoje em dia”, “ninguém
respeita mais ninguém”, “os jovens estão drogados”, “os valores estão invertidos” etc. A violência conjugal e doméstica
estaria, assim, inserida nesse contexto mais geral de questionamento dos valores morais de respeito, autoridade, harmonia etc.
Da mesma forma, a relação entre os cônjuges foi vista como a “base” moral sobre a qual a família deve ser
construída. Alguns profissionais, especialmente os policiais mais velhos, atribuíram à “desestruturação familiar” e violência
ao que eles chamaram de “casamentos precipitados”. O caráter de transitoriedade cada vez mais presente nas uniões
conjugais contemporâneas foi percebido por esses profissionais como um elemento negativo, pois contraria suas
representações de família e casamento como relações harmoniosas e duradouras. Casamentos “imaturos”, que não foram
antecedidos pelas fases de “namoro” e “noivado”, tenderiam, na visão desses profissionais, a gerar famílias desestruturadas e
violentas porque não estão mais assentados sobre as sólidas bases dos direitos e deveres rigidamente distribuídos por gênero e
geração, que outrora garantiam a estabilidade conjugal e familiar. A transitoriedade das relações, na medida em que comporta
dissensões, foi, assim, identificada como fonte de conflitos violentos. Devemos salientar que essa visão é minoritária e não
deve ser atribuída ao conjunto dos profissionais. Entretanto, é útil para evidenciar a persistente construção de modelos de
famílias “desviantes” e “normais”, a despeito do expressivo número de profissionais, bem como de pesquisas, que
reconhecem a existência de violência em casamentos de longa duração.
Finalmente, visões psicologizantes referentes a uma perspectiva de proteção à infância apareceram em relação aos
riscos do ambiente familiar “violento” ou “desestruturado” quando se trata do cuidado e atenção que devem ser dispensados
aos filhos. Os filhos são uma grande fonte de preocupação para os profissionais. Eles seriam as principais vítimas da
violência conjugal, uma vitimização até mesmo anterior a das mulheres. O pior aspecto da violência de gênero não seria
exatamente o desrespeito à mulher, mas a incapacidade de ambos os cônjuges de cuidar adequadamente das crianças. Essa
“incapacidade” seria o principal obstáculo à harmonia familiar. A violência conjugal geraria crianças violentas ou sofridas. É
isso, principalmente, o que mobilizava e sensibilizava os policiais e as atendentes.
***
No Brasil, realmente as DEAMs são pensadas como parte importante do processo que SOARES (Op. Cit.) chama
“vitimização afirmativa”, pelo qual as mulheres reconhecem-se como vítimas e constroem novos discursos e subjetividades
baseados nessa experiência. Como um espaço de construção da vitimização afirmativa, a DEAM confere poder e dignidade
às mulheres. Também é muito diferente das outras delegacias, a maneira como as DEAMs acabaram “personalizando” os
seus atendimentos e reduziram com isso o receio que muitas mulheres tinham de ir à polícia.
Se por um lado é fundamental reconhecer a importância da DEAM como instrumento efetivo de combate à
violência e como recurso que aumentou o acesso das mulheres à justiça, por outro, algumas situações interpelam sobre as
especificidades que justificaram a sua criação. A rigor, muitas das percepções que circulam e muitas das categorias utilizadas
por um grande número de profissionais, não seriam diferentes daquelas que encontramos na delegacia comum. Chama
atenção também o fato de que, nas duas instituições, de alguma maneira, é dirigida à mulher uma responsabilidade moral com
a promoção ou manutenção da harmonia familiar. Na DEAM ela pode ser ainda mais enfatizada pelos policiais, em virtude
das tensões introduzidas no próprio processo de institucionalização de uma “delegacia de mulheres”.
Nesse sentido, a construção do evento “violência conjugal” como um crime, é permeada por situações e formas de
interação que terminam por manter valores fortemente associados à concepção de que na divisão dos papéis de gênero cabe
principalmente à mulher investir em condutas apaziguadoras no cotidiano do lar e no interior das famílias. A violência contra
as mulheres nas relações de intimidade e nos espaços domésticos, se por um lado ingressou definitivamente na esfera pública,
por outro se tornou um fenômeno imerso em uma complexa teia de significados que confrontam práticas e culturas
diferenciadas.
O caleidoscópio de representações dos policiais nas duas delegacias acerca da violência conjugal, ainda mostra uma
geometria entre espelhos que desenha concepções estigmatizantes sobre as famílias envolvidas e que atribui às mulheres uma
grande responsabilidade com a reprodução harmônica destas. Se nos basearmos em FRASER (Ops. Cits.), implicaria em

62
dizer que esse jogo de tensões, permanências e retraduções interpela sobre as possibilidades de as mulheres serem
reconhecidas como parceiras plenas na interação social.

8. As vítimas
As expectativas e motivações que orientam as vítimas de ‘violência conjugal’ a procurar as delegacias e publicizar
a situação de conflito (e/ou agressão dele decorrente), novamente remetem a uma discussão sobre os possíveis impasses
postos na criminalização. Conforme mencionado, pesquisas mostram que o uso das DEAMs pelas mulheres segue lógica
diversa do movimento feminista e da própria instituição policial, uma vez que a mais frequente motivação das mulheres em
procurar as delegacias não consiste em criminalizar o parceiro. Por exemplo, BRANDÃO (Op. Cit.) destaca que as mulheres
utilizam a DEAM como ‘recurso simbólico’ para uma negociação e PASINATO IZUMINO (Op. Cit.) considera que as
delegacias e os JECRIMs estariam se apresentando como “espaços para o empoderamento das mulheres”, uma “ampliação de
seu espaço de negociação”.
As análises, por caminhos diferenciados, ressaltam relevantes aspectos que têm marcado a experiência de
institucionalização da ‘violência conjugal’ no Brasil. Mostram que, no âmbito das respostas das vítimas, não prevalece, nem
uma prática de mediação exclusivamente consolidada pelo Estado _ as mulheres não entregam todo poder ao Estado, na
medida em que interferem, de alguma maneira, no processo _ nem se trata, unicamente, de uma reprivatização do conflito
conjugal, de um retorno ao lar e à família, com consequente esvaziamento da questão na esfera pública. Seja ressaltando a
recorrência estratégica das mulheres a uma ordem legal, como em BRANDÃO (Op. Cit.); seja pela interpretação do
empoderamento através da ampliação dos espaços institucionais de negociação das mulheres, como em PASINATO
IZUMINO (Op. Cit.); esses trabalhos sugerem significativas articulações entre dimensões individual e coletiva, assim como
pública e privada.
Na DEAM pesquisada, as referências das mulheres aos conflitos conjugais que vieram registrar corroboram
pesquisas anteriores que identificam que a categoria “violência” é pouco citada. Ao mesmo tempo, observa-se a emergência e
difusão de categorias de outros campos.45 As categorias empregadas por elas para classificar as queixas foram “agressão
verbal”, “ameaça”, “injúria”, “xingamento”, “calúnia”, “difamação”, “pressão, “pressão psicológica”, “constrangimento”, “as
agressividades” etc. Entre cinquenta mulheres entrevistadas, quinze mencionaram que as “agressões” físicas (entre estas os
“empurrões” e “solavancos” que deixam “marcas”) também estiveram presentes.
A pesquisa na DEAM deixa patente que quando as mulheres publicizam o rompimento da reciprocidade nos
conflitos conjugais (sejam estes acompanhados ou não de violência física) estão, ao mesmo tempo, orientadas para uma ação
cujo sentido é a restituição da solidariedade perdida na interação familiar e no contexto privado. Este sentido implica em
restabelecer vínculos da dimensão emocional e dos afetos, mas estes não se restringem à esfera da conjugalidade. Não se trata
sempre de uma restituição pela via da recomposição do “casal”. A estratégia de publicizar a violência para reintegrar um tipo
de solidariedade no espaço privado extrapola, em muitos casos, as fronteiras da conjugalidade. Entre as mães, a decisão de
publicizar os conflitos e violências se justifica pela preocupação com o modelo de família que estaria sendo disseminado:
“porque está atrapalhando os meus filhos”, “porque foi na frente das crianças”, “porque dessa vez pegou o ponto fraco
(filhos)”, “por amor aos meus filhos” etc. Muitas vítimas recusaram a reprodução do modelo de homem agressor e de mulher
submissa na família, entre os filhos e filhas.
A ruptura do vínculo conjugal não exclui a perspectiva de ‘recuperação’ do autor, com o objetivo de reintegrar
vínculos ou mesmo pacificar outros circuitos de relacionamento no qual estão incluídos os filhos, principalmente, mas no
qual podem estar também outros parentes. Ou seja, o rompimento do relacionamento, não as impede de dizer que não querem
que o “ex” seja preso. Desejam que ele “seja tratado”, “que mude”, que “deixe de ser estressado” etc.
Imagens tradicionais dos papéis atribuídos nas relações de gênero permitem interpretar, nos contextos dos conflitos
conjugais, a relativa fixidez destes papéis ao se tomar na análise os casos nos quais as mulheres, ao publicizarem, rompem
com o parceiro acusado. A separação, se por um lado mostra rejeição ao modelo de relação conjugal, por outro, não implica
em ruptura com outras imagens que constituem o lugar do feminino. Nas relações privadas as mulheres ainda imputam às
suas ações uma enorme responsabilidade com o bem-estar da família. Pela lógica da distribuição dos papéis tradicionais de
gênero que orienta as ações de muitas mulheres, a publicização de conflitos e de violências deles decorrentes, requerem o
esforço de conjugar outros mecanismos (re)integradores da ordem familiar.
Não se pretende reduzir a problemática à simples equação de que as mulheres se sentem responsáveis pela
manutenção e reprodução da família. Trata-se de sublinhar uma articulação particular entre a noção de um direito individual
(posto na recusa de se submeter a uma ordem de conjugalidade violenta) e a preocupação com a produção de uma
solidariedade familiar. Na decisão de publicizar o evento da violência e os conflitos, há um esforço para conjugar projetos
individuais (e de construção de uma outra conjugalidade) com preocupações referidas à ordem familiar.46 Há um reforço a
perspectivas de futuro que são descritas como incompatíveis com o grau de conflitos cotidianos e formas de violência que
experimentam(ram) na relação com o parceiro. Estas expectativas, somadas ao constatado aumento de registros e à maneira

45
BRANDÃO encontrou categorias como “as ingnorância”, “as graças”, “as gracinhas” (Op. Cit., p.65).
46
Isso se manifesta através de projetos de futuro: “quero me reestruturar”, “quero cuidar mim, a vida foi sempre cuidar dos outros”, “quero olhar um pouco para
mim”, “quero mudar”, “não escolhi sofrer na vida”, “quero cuidar de mim e dos meus filhos”, “quero investir em mim” etc.

63
crescente como as mulheres vêm buscando apoio em outras redes de serviço, mostram que seus campos de possibilidade têm
se ampliado.
A fronteira da renegociação de um pacto restrito à conjugalidade, também é ultrapassada quando a denúncia é
motivada por “pressão da família”, por “incentivo de amigos” ou “conhecidos”, “amigos do trabalho” e, principalmente, por
incentivo de “filhos/as” jovens ou adultos que questionam a submissão da mãe e/ou o modelo de relação violenta. O
feminismo e as práticas de mediação legal dos conflitos têm difundido conteúdos morais de percepção das violências que
atingem não apenas as mulheres, mas também a família (filhos e filhas, principalmente), comunidade, vizinhança etc. Novos
padrões de sociabilidade vão sendo exigidos e incentivados nas esferas circundantes. Dessa forma, a publicização dos
conflitos e da violência movimenta muitos atores, tanto no momento da ‘decisão’ de denunciar, quanto nos possíveis
processos de negociação de outras formas de sociabilidade. As “negociações” são efetivamente empreendidas pela mulher
vítima, mas destas podem fazer parte muitos outros: sejam aqueles que pertencem ao campo das políticas de combate à
‘violência de gênero’ (“delegacia”, “CIAM” etc.), sejam aqueles mais presentes na vida pessoal (filhos, parentes, vizinhança,
grupos que representam poder na comunidade, amigos etc.). Há uma circulação intensa de valores que estão postos, tanto no
horizonte moral de instituições públicas, quanto no horizonte das experiências das mulheres.
É certo que muitos conflitos conjugais e situações violentas permanecem na privacidade dos relacionamentos.
Estamos tratando daqueles que foram inseridos na esfera pública pelos próprios atores implicados. São, portanto,
experiências de conflitos e de agressões que foram problematizadas e, de alguma maneira, rejeitadas como padrão de
sociabilidade. Porém, o fato de serem publicizados não significa adesão à idéia de que “tornar público” é entregar
estritamente para o Estado. Aqui, o “público”, não parece ser identificado, unicamente, com o universo normativo e
governamental, e nem se esgotaria nele. Este incluiria outras esferas onde a negociação pode ser, na perspectiva das vítimas,
efetivamente ampliada.
Neste sentido, as interpretações do fenômeno da ‘violência conjugal’, em seus vários desdobramentos e articulações
entre vítimas e instituições, não pode se restringir à oposição entre uma ordem moderna e individualista e a herança patriarcal
na qual o “público” terminaria submetido aos códigos pessoais ou à esfera familiar.
Os caminhos percorridos pelas mulheres ao publicizarem a ‘violência conjugal’ mostram que as suas demandas não
se reduzem ao foco dos direitos individuais como únicos. Muitas mulheres procuram, com o registro, recompor vínculos de
integração coletiva e familiar. São respostas específicas que mostram que, no Brasil, as mulheres tendem a pensar a questão
do reconhecimento dos seus direitos via práticas e situações locais que tornam esta agenda plural e complexa. Significa
também admitir que os “sujeitos de direitos”, projetados pelo feminismo, vão sendo construídos através de caminhos bastante
diversificados.47

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47
De acordo com BUTLER (2003) os sujeitos do feminismo são “pré-construídos”, o que tem implicado em versões homogêneas e lineares sobre as condutas e
identidades destes

64
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Família, protecção social e redes sociais: algumas reflexões a partir da história de


vida de uma família
Aline Ferreira
Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Viviane Moraes
Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Lubia Badaró
Prefeitura Municipal de Natividade, Rio de Janeiro
[email protected]

Alessandra Franco
Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Resumo: Este artigo, às luzes do debate sobre família e política social, apresenta a história de vida de uma família que tem como principal
característica a vulnerabildade social, através da qual discorre sobre a re-introdução da temática da Família nos Programas Sociais, o atual
conceito de Família utilizado nos programas e as novas responsabilidades que lhe são atribuídas.

APRESENTAÇÃO
No intuito de se conhecer melhor as condições de sobrevivência, a vida social das famílias em situações de
vulnerabilidade social e as representações das circunstâncias de suas vidas; recolhemos para o presente trabalho, depoimentos
e história de vidas de uma família beneficiária do Programa Cartão Alimentação de Bom Jesus do Itabapoana, no Bolsa
Família.
A ser dessa forma, teremos ao longo do trabalho, relatos das experiências de vida de uma família pobre, onde
estaremos pontuando o seu percurso de vida, suas redes sociais e sua relação com a Assistência Social.

ALGUMAS INDAGAÇÕES SOBRE FAMÍLIA E POLÍTICA SOCIAL


A partir do final do século XIX, uma série de descobertas e de progressos científicos e tecnológicos abalaram os
fundamentos tradicionais da divisão do trabalho e do poder entre os sexos, fazendo diminuir a mortalidade e
consideravelmente a parte do tempo ocupada pela gestação e amamentação no ciclo de vida das mulheres. (LEFAUCHEUR,
1991:486)
O aperfeiçoamento e comercialização dos métodos contraceptivos revolucionaram as relações entre sexos no que
diz respeito à iniciativa e ao controle da concepção e talvez ao conjunto da vida sexual.
Quando as mulheres utilizam estes métodos, os homens, pela primeira vez na história da humanidade, deixam de
poder expor contra a sua vontade ao risco de uma gravidez, e o seu próprio desejo de paternidade torna-se tributário da
vontade de maternidade das suas parceiras.
Com todas estas transformações ocorridas no final do século passado, podemos dizer que a família brasileira
também apresentou significativas mudanças em diversos segmentos da sua população, como a redução do número de filhos,
concentração da vida reprodutiva das mulheres nas idades mais jovens e aumento da concepção em idade precoce,
predomínio das famílias nucleares, mas com um aumento significativo das famílias monoparentais , sobretudo, chefiadas por
mulheres; aumento de pessoas que vivem só, da co-habitação e da união consensual e de famílias recompostas. (GOLDANI,
1994. Apud in MIOTTO, 1997:120)
Estas mudanças, tiveram profundas implicações na configuração familiar, acarretando uma fragilização dos
vínculos e uma maior vulnerabilidade da família no contexto social, onde as famílias pobres tornaram-se as mais vulneráveis
às situações de crise.
Podemos dizer que tais mudanças foram decorrentes de múltiplos aspectos, como a transformação e a liberalização
dos hábitos e costumes, o desenvolvimento científico e o modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo Estado
brasileiro; que caracterizaram o processo de modernização da nossa sociedade, na segunda metade do século XX.

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Contudo, o modelo de desenvolvimento econômico adotado, mais os efeitos da crise econômica, a recessão e as
medidas de ajuste nas populações de países em desenvolvimento, tiveram na década de 80, como consequência o
empobrecimento acelerado de muitas famílias brasileiras.,
Nos países capitalistas em desenvolvimento, ocorre a castração da cidadania, sucedendo uma relação onde não é o
Estado o pilar fundamental da proteção social aos mais pauperizados, e sim a sociedade. É a rede de solidariedade social da
sociedade civil a protagonista principal na atenção aos despossídos e destituídos.
E o processo de retração estatal das políticas sociais na América Latina, sobretudo no Brasil, tem levado à
dualidade no acesso aos seus serviços e benefícios, criando um setor público para os pobres sem recursos e cada vez mais
desfinanciado e de forma complementar, um setor privado para quem pode pagar, devidamente incentivado pelos governos
nacionais e muitas vezes, subsidiado por recursos públicos.
Assim, os ajustes imposto no Brasil tem trazido enormes limitações para os municípios, no que diz respeito às
respectivas capacidades de intervenção e de resposta frente a enorme e complexa problemática social, face à crescente
desresponsabilização por parte do governo federal das suas atribuições e obrigações no campo das políticas sociais.
É nesse cenário que as redes de solidariedade e sociabilidade, como a família, ganham importância na política
social e, em especial, na proteção social movida neste final de século.
Há no desenho da política social contemporânea um particular acento nas sociabilidades familiares, nas redes de
solidariedades pela sua potencial condição de assegurar proteção e inclusão social.
Contudo, esta proteção dá a ilusão de um novo manancial de recursos para responder às dificuldades sociais
encontradas por uma parte cada vez maior da população. No entanto, esta forma de proteção tem fortes possibilidades de
acentuar as desigualdades, em vez de compensá-las. (Martin, 1995:71, apud in Vitale, 2002:55)
Podemos afirmar que as políticas sociais brasileiras foram se inscrevendo no campo do clientelismo político e do
assistencialismo, que além de não se aproximarem da redução, muito menos da erradicação da pobreza, muitas vezes
desempenham um papel ideológico e conservador para manter enormes contigentes populacionais submetidos ao peso da
alienação política.
E o movimento de desconstrução das políticas sociais, orientado pelo neoliberalismo, ideologia dominante no
Brasil a partir dos anos 90, que procurou transformar os programas e serviços sociais em mercadorias sujeitas às regras do
mercado, onde apenas os indigentes, os mais miseráveis dos miseráveis tornam-se o objeto de uma política centrada na
focalização.
Uma focalização que se materializa por programas precários, insuficientes, descontínuos e desvinculados entre si,
sendo muito mais fragmentadores do que focalizadores da pobreza.
Percebemos também que o princípio de descentralização, que diz orientar os programas, projetos e ações de
enfrentamento à pobreza e às políticas sociais de um modo geral, no Brasil, tem significado uma estratégia de repasse de
responsabilidades do Governo Federal para os Estados e Municípios, onde são desconsideradas suas heterogeneidades e
fragilidades.
Com essa tentativa de despolitização das políticas sociais o que se tem conseguido é fortalecer o movimento de
privatização dos programas e serviços sociais, reeditando a filantropia e a caridade, agora assumidas não só pelos indivíduos
e entidades vocacionais, mas por grandes grupos da economia privada, servindo para imprimir uma face de solidariedade aos
agentes do mercado.
Assim, essas reflexões desvelam a realidade da violência, da corrupção, da impunidade, do abismo da desigualdade
social na distribuição da riqueza socialmente produzida e da imensa pobreza que amplia e se perpetua, agravada pelo
desmonte dos direitos sociais e pela desresponsabilização social do Estado.
Essa situação nos faz reforçar a idéia da insuficiência, da fragilidade, da inconsistência e da descontinuidade das
ações desenvolvidas pelos governos, no sentido de alterar o quadro de pobreza e exclusão no Brasil.
Desse modo, podemos dizer que essa fragilização das políticas sociais tem levado a um atendimento cada vez mais
pontual, restrito, seletivo e precário, não atendendo a sua crescente demanda, que é uma grande parcela da sociedade que se
encontra submetida a situação de extrema pobreza, onde, sobretudo, mulheres e crianças emergem como uma população cada
vez mais vulnerável.
Assim, percebemos o modo como as famílias brasileiras foram sendo pressionadas por uma política econômica, que
em vez de assegurar condições mínimas de sobrevivência como renda, emprego, segurança, serviços de qualidade; foram
desencadeando situações geradoras de estresse familiar, como migrações, desemprego, ausência de serviços públicos.

VIVENCIANDO A POBREZA
Neste contexto de transformações políticas e sociais, apresentamos, como narradora de uma história de vida
marcada por um conjunto de carências, Luciana, 32 anos, casada, mãe de três filhos, nascida em Santo Amaro, distrito do
município de Campos dos Goytacazes, de onde veio para Bom Jesus do Itabapoana1.

1
O município de Bom Jesus do Itabapoana, pertence à Região Noroeste Fluminense, com área total de 599,4Km², de acordo com o censo de 2000, com uma
população de 33.632 habitantes, sendo a densidade demográfica de 56,1 habitantes por km².

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Em sua infância conciliou estudo com trabalho na agricultura, mas parou de estudar ao se casar com Sebastião, aos
dezesseis anos de idade. Há 15 anos mudou-se para Bom Jesus, quando seu marido começou a trabalhar como “descarregador
de caminhão” em uma fábrica de doces. Trabalhou nessa empresa por cinco anos, depois passou por vários empregos e teve
períodos de desemprego, quando viveu de vários “bicos”.
Contudo, há dois anos atrás, em uma viagem para São Paulo, quando foi ajudar um primo no descarregamento de
caminhão para pagar o aluguel, sofreu um acidente, que deixou grandes sequelas em sua perna direita, que o incapacitou para
o trabalho. Como diz Luciana:
“A perna dele é uma coisa horrive, se você vê a perna dele, não pode colocar uma cueca na praia, tiraro muita carne
daquilo e ele não guenta mais trabalha, tudo que vai fazer num guenta. Se vai pegá um quintal pra capiná, de tarde
aquilo tá tudo inchado, começa a dar cãibra e ele tem que deitar logo.”

Assim, após o acidente, Luciana passou a depender de auxílios da Secretaria Municipal de Assistência Social, como
cestas básicas, auxílio construção, com o qual construiu dois cômodos, nos fundos da casa da sogra, para onde foi morar com
seu o marido e seus três filhos, o mais velho com 15 anos, outro de 9 e o mais novo de 7 anos de idade. Assim as condições
de moradia da família tornaram-se muito precárias. A família de 5 membros passou a viver em dois cômodos, sem banheiro,
em uma área de risco de desabamento, com seus poucos pertences.
“Não me importo não, do jeito que a casa tá aqui tá bom, a única coisa que eu queria era um banheirinho pra mim,
porque eu uso o da minha sogra e usar tudo junto fica chato, né? Aquela escada de pau também queria arrumar ela, tem
que vê no dia que chove! Outro dia eu tava descendo com um saco de cimento que tinha ganhado e puf! Cai no chão e
arrebentei a cara toda! Tem que arrumá aquilo ali!

Contudo, ainda passou a ter uma gratidão muito grande e uma verdadeira adoração à figura do prefeito e da
primeira dama, a secretária municipal de Assistência Social, em uma relação na qual não consegue perceber tais benefícios
como sendo seus direitos. Esses benefícios que ela pensa que são favores, são na verdade programas da Secretaria Municipal
de Assistência Social de atenção as necessidades básicas e garantia dos mínimos sociais, como o programa emergencial de
distribuição de cestas básicas, o “Ver Melhor” (distribuição de óculos) e o “Morar Bem” (auxílios em forma de mão de obra
e/ou em materiais de construção)
“Minha valença foi o Seu Prefeito e a Dona B. que me deram as téias e os tijolo pra fazer meu barraco e quando num
tenho o que cumê, ela ainda me dá uma bolsa-alimentação. (...) Outro dia meu menino do meio tava com muita dor de
cabeça, levei no médico e o doutor passou um óculos de cem reais e eu só recebo 80, fui lá e ela me deu o óculos pro
meu menino, ela é muito boa pra mim.”

A partir do acidente, Luciana passou a ser a responsável pela manutenção econômica de sua família, através de
diversas atividades, como de passadeira, lavadeira e até de servente de pedreiro. Para denominar tal fato, poderíamos utilizar
o conceito de “chefia de direito”, que é quando a sobrevivência do grupo familiar é garantido pela mulher, estando a família
com ou sem a presença do cônjuge, como propõem Youssef e Hetler. (1983. Apud in Carvalho, 1998: 78)
“Ele, num dianta, num guenta mesmo trabalhar! Eu que quando aparece quintal pra capiná que pego e capino, inclusive
tem um ali em baixo pra eu ir lá vê e capiná. A mulher do meu pastor também, de vez em quando, me dá umas trouxas
de roupa pra lavar, ela até deixa lavar lá na casa dela, na máquina. E faz uns dois meses que peguei o barranco da
mulher ali da frente pra cavucá por cem reais. Cavuquei tudo, se você ver nem acredita, cheguei ficar com o ombro
todo arrebentado por causa da lata de terra. A mulher falava que eu era muito corajosa, mas é o jeito de sobreviver, tem
que corre atrás, né?”

Sua família não possuí renda, apesar dos seus “biscates”, estes são eventuais e o benefício do Bolsa Família, no
valor de 80 reais, sendo R$50,00 do PCA e R$30,00 do Bolsa-Escola, que a família recebe mensalmente do Governo Federal,
não lhe garante, de fato, condições dignas de sobrevivência.
“A gente passa uma vida tremenda, porque os 80 reais não dá nem pra cumê! Tiro 30 pro gás, tenho que pagá a luz,
mais 20 e o que sobra, eu vou lá e compro um macarrão, um arroz. Tem vez que recebo e o gás num cabô ainda, vou lá
compro tudim em comida e depois até aparecer dinheiro, vou cozinhando lá fora na lenha.”

Desse modo, notamos que nem os “biscates” de Luciana, nem o benefício de transferência de renda do Bolsa-
Família, são suficientes para garantir a subsistência da família
“Tem dia que meus menino falam que quer um leite, que quer pão e não tem. É muito triste você vê seus filhos
pedindo as coisas e não poder dar... Os filhos de papaizinho senta na mesa com aquela comida gostosa e fala que não
quer comer, quando tenho as coisas pra fazer um arroz com feijão e frito um ovo, os menino ficam tudo bobo e come
duas, três vezes, falando mãe que comida boa!. É muito triste, outro dia passei em frente uma casa e vi na lata de lixo,
uma sacola com uns cinco pão, cheguei a chorar... Em pensar que tem dia que nem tem pão pros meus menino cumê...”

Reconhecemos a importância de muitas iniciativas de transferência de renda, contudo, muitas deixam claro a marca
“mínima dos mínimos” que vem permeando essas experiências de transferência monetárias para as famílias pobres.
“Aproveita-se da fragilidade extrema da população mais pobre, que, aturdida por exclusão lancinante, se dispõe a lutar
por e sobretudo a bastar-se com somas absolutamente irrisórias. Com efeito, para quem vive na maior miséria, alguma

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coisa é muito. A sobrevivência fala mais alto que a cidadania, porque aquela se impõe de imediato, enquanto esta é
gestada no longo prazo.” (DEMO, 2000:153, apud in BADARÓ, 2004:9)

E nas situações de crise, quando o dinheiro do seu benefício já se esgotou e não encontra biscates, a família recebe
apoio de amigos e parentes, que apesar de compartilharem a experiência de pobreza, se solidarizam uns com outros.
“Quando a situação tá feia vem um e me dá um mucado de macarrão, vem outro me dá um quilo de feijão, um arroz.
Ontem mesmo eu tava sem nada pra cumê, minha sogra foi lá comprou 5 quilos de arroz e me deu, a filha dela tem o
chitadão (Cheque-Cidadão) e quando recebe vem cá e me ajuda também”.

Contudo, esta rede de proteção oferecida pelas pessoas envolvidas em seu cotidiano, é frágil e tem suas limitações,
como ela mesma reconhece:
“As coisas tão difícil pra todo mundo, minha sogra ficou quatro meses cortada e agora conseguiu só dois meses do
benefício, o meu sogro só tem um salarinho da aposentadoria dele, eles num tavam nem guentando pagá a àgua e a luz
que foi cortada a dois meses. Então eles até mudaram pra roça, pra viver como campeiro, porque na rua não tava dando
mais.”

Estas redes de solidariedades que ajudam na sobrevivência da família de Luciana, devem ser refletidas, como
enfatiza Vitale, na relação com o encolhimento da responsabilidade do Estado e com a ausência de políticas públicas
consistentes ante questões sociais que se expressam no âmbito familiar. (2002:55)
A família de Luciana é também cadastrada no Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), no Núcleo de
Atenção à Família (NAF), participando de ações de geração de trabalho e renda, onde fez um curso de culinária.
“Aprendi a fazer salgadinho no NAF, tenho a lista dos material, tudo direitinho! Tô querendo fazer pra poder vender,
mas só que tem que ter dinheiro pra compra o material que fica caro. Uma vez eu até fiz porque a Dona B. me deu um
isopor e algumas coisas, mas você vai e vende e faz uns 15 real e tem lá que comprá o material de novo, sem vê o
lucro. Tem que já ter o material antes, é difícil comprar isso pra depois ter o lucro.”

A ser desse modo, notamos que algumas ações de atenção às famílias vulneráveis, como sugere Carvalho
(1998:90/91), deveriam merecer atenção especial de planejadores e executadores de políticas sociais, sobretudo, os
programas de incentivo à geração de trabalho e renda, que muitas vezes concebem as mulheres simplesmente como mães e
donas-de-casa, com disponibilidade de tempo e potenciais para contribuir na complementação da renda familiar e com isso,
elaboram cursos que além de não atenderem seus ideais, não conseguem alterar seu quadro de vulnerabilidade social e criam
condições para garantir a inserção dos sujeitos no mercado de trabalho.
Além, dos cursos geração de trabalho e renda, o NAF também apresenta ações de atenção as necessidades básicas e
garantia dos mínimos sociais, como liberação de cestas básicas, de botijas de gás e até material de construção, em situações
emergenciais.
Para estar se beneficiando dessas ações, Luciana teria que estar participando de algum curso oferecido pelo
Programa. Contudo, ela não conseguiu conciliar os horários dos curso com seus biscates.
“Eu não podia ficar lá olhando pra cima com quintal pra pegá. As coisa tão difíceis, eu tinha que aproveitá que tava
aparecendo trabalho naquela época Agora tô tentando voltar pra lá, tô esperando vaga. Fui lá uns dois meses atrás vê se
tinha, mas não tinha não.”

Percebemos em sua narrativa, o valor do trabalho tanto para garantir sua sobrevivência, quanto para manter sua
dignidade, sua identidade social.
“Se pelo menos eu tivesse um emprego de carteira assinada, um salarinho, já ajudava bastante. Nossa vida seria bem
melhor... Eu podia melhorar minha casinha, fazer um quarto bonitinho pros minino, comprar umas roupinhas, um
sapatinho... Aí sim, nossa vida ia ser melhor.”

O desemprego, como uma expressão concreta da pobreza e da exclusão, a incapacidade para o trabalho se
apresentam como uma situação vergonhosa para Sebastião, no que diz respeito ao provimento do lar, que era de sua
responsabilidade antes do acidente.
“Ele fica nervoso, porque muitos home trabalham por mês ou por semana, tem o dinheiro dele e quando recebe vai lá e
faz uma comprinha pra família, faz um agradinho pros filho... Ele não coitado, ele fica triste porque vê os filhos
querendo as coisas e não pode dar. Ele quase não sai de casa, fica com vergonha porque tem gente que olha assim e
pensa, mais aquela mulher tem um marido vagabundo, que não gosta de trabalhar, não é assim, ele num guenta. Ele
falou inclusive que se arrumasse um serviço de ficar sentado, ele podia até fazer.”

Assim, o trabalho representa o caminho para uma vida melhor e a educação, é reconhecida como um caminho de
ascensão social.
“Meus minino tudo estudam direitinho, não deixo faltar aula, tem que estudá se quiser ser alguma coisa na vida. Eu
parei de estudar quando me juntei com meu marido, não interessei mais, mas agora interessei de novo e voltei, tô na 5ª
série! Hoje estudo faz falta pra tudo! Pra consegui um emprego bom, precisa de estudo, pra melhorar de vida, precisa
pra fazer um concurso, né?”

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Contudo, a busca de melhores condições de vida e de trabalho, torna-se uma referência importante na explicitação
dos seus desejos de migração, de se mudar de cidade.
“Já falei pro meu marido que tô com vontade de sumir de Bom Jesus, não tô guentando mais! Eu queria ir pro um lugar
assim que tivesse emprego bom, pra gente melhorar de vida, igual muita gente que a gente vê que vai pro Rio de
Janeiro e se dá bem lá. Mas ele que não quer ir. Duas vezes já juntei minhas coisas, minhas roupas pra poder ir embora
e largar tudo por aí, filho, marido, tudo... Porque é muito triste...”

Podemos dizer que esta família depende quase exclusivamente dos serviços sociais em suas estratégias para
sobreviver, buscando nesses serviços o suprimento de suas necessidades materiais de consumo e para enfrentar outras
dimensões significativas do seu cotidiano.
Estes serviços não se restringem apenas aos órgãos públicos, compreendem também a ação de entidades sociais,
como as religiosas, que executam programas assistenciais.
“A minha igreja ainda não tá me ajudando muito, porque tô começando agora, a igreja é pobre, tá em construção, mais
a mulher do pastor quando pode, sempre me dá uma coisinha... Mas na Igreja Católica que você vê falando que ajuda
tanta gente, eu fui lá, contei toda minha vida, expliquei minha situação e a mulher lá achou que eu num precisava
receber cesta alimentação e falou ainda que tô gorda e num passo dificuldade nada! Foi por causa dela que num
consegui o chitadão! Aí, larguei tudo pra lá, é muito difícil você fica dependendo dessas coisas, levá portada na cara...
E você tanta gente que não precisa, com a vida bem melhor que a da gente conseguindo as coisas...”

Contudo, as ações assistenciais, muitas vezes, significam tutela, reiteração da exclusão do sujeito, num movimento
de negação dos direitos sociais, que passam a ser concebidos como favores, como benesses, ao invés de significar o
reconhecimento dos direitos e o acesso ao protagonismo. Onde o sujeito precisa sempre estar passando por situações
vexatórias para garantir o que, de fato, é um direito seu.
Percebemos em toda sua trajetória, dois anos recorrendo à serviços sociais, nunca lhe foi explicitado que
Assistência Social é uma política pública, constitutiva do tripé da Seguridade Social Brasileira, como consolida a
Constituição Federal de 1988. E que dada as circunstâncias da sua vida, sua renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo e
a incapacidade para o trabalho de seu marido, comprovada por diversos laudos médicos, nunca lhe foi, sequer, falado sobre a
existência do Benefício de Prestação Continuada.
Sem conhecer seus direitos, Luciana segue acreditando que se conseguisse aposentar ou “encostar” seu
companheiro, seria a solução de boa parte dos seus problemas. Mesmo sem ter contribuido para a Previdência, ela pensa que
com ajuda de vereadores, principalmente em momentos de eleição, pode conseguir.
“Ele (o marido) fala pra mim corre agora atrás pra poder aposentar ele, tem tanto candidato aí, agora. Vamo supor, se
eu arrumasse um emprego de um salarinho só, mas de carteira assinada, eu tirava 50 reais e pagava o INPS dele, mas
não tenho condição... Agora falei prum vereador ver a aposentaria dele pra mim, deixei a papelada do Bastião com ele
lá. Outro dia fui atrás dele e ele me disse que tava vendo com um escritório se podia, mais té hoje nada... Bastião fica
nervoso, manda correr atrás, eu vô, mais é difícil ficar levando toda hora portada na cara!”

Assim, Luciana vai levando sua vida, entre um quintal e outro, sonhando que sua vida vai melhorar, que alguém vai
conseguir aposentar seu marido e desse modo sua vida vai mudar, eles poderão “arrumar” sua casa, comprar melhores roupas
e se alimentarem melhor, garantir uma vida digna.
Porém, levantamos algumas questões: Quem são estes profissionais que trabalham com essa família? Por qual
motivo nunca trabalharam a Assistência Social na perspectiva de diretos? Será que ao atender os objetivos das instituições em
que trabalham, estão desempenhado, de fato, o seu papel profissional? Quantas Lucianas eles não devem atender por dia...

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como configuram diversos autores, a família é uma realidade com a qual temos bastante intimidade, contudo, tal
intimidade traz confusões ao conceituarmos família, pois, muitas vezes, nos baseamos em nosso modelo familiar ao
trabalharmos com a família. Enfatizamos, muitas vezes, as relações parentais a partir da consanguinidade, naturalizamos
nossas relações e com isso trabalhamos com estereótipos do ser pai, do ser mãe e do ser filho.
Esquecemo-nos que a dinâmica relacional estabelecida em cada família não é dada, mas é construída a partir de sua
história e de negociações cotidianas que ocorrem internamente entre seus membros e com o meio social mais amplo.
Nesse sentido, a família deve ser entendida como uma instituição social historicamente condicionada e
dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida. (Miotto, 1997:120)

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A intersectorialidade nas políticas para mulheres e do meio ambiente


Marli Renate von Borstel Roesler
UNIOESTE
[email protected] 1

Rosana Mirales
UNIOESTE
[email protected] 2

Resumo: Esta comunicação aborda as interfaces entre a política para mulheres e do meio ambiente. Propõe-se iniciar reflexões sobre as
particularidades regionais e as formas organizativas dos segmentos sociais no enfrentamento de questões decorrentes das desigualdades de
gênero e da adoção de desenvolvimentos que desconsideram a sustentabilidade do meio ambiente. Em médio prazo, estas reflexões poderão
ser traduzidas em ações de extensão universitária. Trata-se da região designada Bacia Hidrográfica do Paraná III, constituída por 28
municípios localizados na região Oeste do Paraná. Pretende-se situar nos marcos da legislação as conquistas realizadas nesta perspectiva,
através das quais se vislumbram formas de contribuição para a organização das mulheres e o desenvolvimento sustentável. As

1
Doutora em Serviço Social. Professora Adjunta do Colegiado do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Campus
de Toledo. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Agronegócio e Desenvolvimento Regional – GEPEC. Representante Titular da Sociedade Civil Organizada
no Comitê da Bacia do Paraná III, 2004-2007, Coordenadora da Sala de Estudos e Informações em Políticas Ambientais e Sustentabilidade – SEIPAS –
UNIOESTE/Toledo. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em “Fundamentos do Trabalho do Assistente Social” UNIOESTE/Toledo – Turma:
2007-2008.
2
Graduada em Serviço Social, mestre em Ciências Sociais; aluna do Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social na PUC-SP. Professora do
Colegiado do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Rua Faculdade 645 CEP 85903000 Toledo PR Telefone 45
3379 7000

71
particularidades que são expressões da totalidade possibilitam, na vida social, formas organizativas dos segmentos sociais que se desdobram
em práticas de enfrentamento às questões como as aqui focadas, que são decorrentes das desigualdades de gênero e da adoção de
desenvolvimentos que desconsideram a sustentabilidade do meio ambiente. A região da Bacia Hidrográfica do Paraná III, situa-se em um
contexto especial da América Latina, na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, onde se constituem as ações de ensino, pesquisa
e extensão da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, na qual se atua como docentes da graduação e pós-graduação em Serviço Social e
em outras iniciativas formativas, de onde rapidamente a adoção de estratégias como a aqui discutida, poderá levar a transposição de
nacionalidades para um contexto latino-americano.
Palavras-chave: mulheres, meio ambiente, intersetorialidade.

INTRODUÇÃO:
As particularidades que são expressões da totalidade possibilitam, na vida social, formas organizativas dos
segmentos sociais que se desdobram em práticas de enfrentamento às questões como as aqui focadas, que são decorrentes das
desigualdades de gênero e da adoção de desenvolvimentos que desconsideram a sustentabilidade do meio ambiente. A
comunicação proposta pretende abordar as interfaces entre as políticas para mulheres e do meio ambiente, nos aspectos
relativos às ações iniciadas na região da Bacia Hidrográfica do Paraná III, constituída por 28 municípios localizados na
região Oeste do Paraná.
Esta região situa-se em um contexto especial da América Latina, na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e
Argentina, onde se constituem as ações de ensino, pesquisa e extensão da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, na qual
se atua como docentes da graduação e pós-graduação em Serviço Social e em outras iniciativas formativas, de onde
rapidamente a adoção de estratégias como a aqui discutida, poderá levar a transposição de nacionalidades para um contexto
latino-americano.
Este processo poderá gerar condições de defesa de saberes e cuidados, em diálogos construídos como ferramentas
diante da grave situação socioambiental do planeta. Esta perspectiva apontada formalmente no capítulo 6 do II Plano
Nacional para Mulheres versa sobre o desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de
justiça ambiental, soberania e segurança alimentar em seus objetivos, metas, prioridades e plano de ação. O texto da Agenda
21, documento resultado da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de janeiro em
1992, em seu capítulo 24, já se voltou para a ação mundial pela mulher.

DESENVOLVIMENTO:
A intersetorialidade das políticas sociais
Tema de absoluta necessidade e de difícil possibilidade, a intersetorialidade entre as políticas setoriais que
compõem o quadro da política social, perpassa as discussões dos agentes que estão inseridos nos processo concretos de
planejamento, execução e avaliação das políticas.
Ocorre que todas as políticas setoriais “... que possuem uma leitura integral e integradora das necessidades
sociais...” (Sposati, 2004, p. 39) não se constituem sem o pressuposto da intersetorialidade mostrando que elas se completam,
compondo o quadro da política social, que traduz ao mesmo tempo a capacidade organizativa das populações e as intenções
governamentais como respostas a estas reivindicações.
A intersetorialidade torna-se neste sentido, um princípio da política social. Há alguns temas que, pela repressão
histórica de sua demanda na incorporação da agenda pública, carregam em si maior perspectiva de incômodo, pois traduzem
conteúdos e forçam a revisão nas políticas setoriais. Geralmente são os considerados novos temas, mas que de novo nada
tem, os quais, neste momento histórico são a pobreza, o meio ambiente, as mulheres, as diversidades de opções sexuais entre
outros.
Autores que discutem a assistência social vêm destacando, que este princípio não se confunde com ausência de
particularidade. Mesmo que neste texto se enfatize a natureza da política de meio ambiente e das mulheres como intersetorial,
deve se relevar que há particularidade em cada uma das políticas, que exigem um escopo próprio de regulamentação,
planejamento, orçamento, sistema que a articule em si, controle social e gestão, serviços etc.
Na situação das políticas de meio ambiente e para as mulheres, a natureza temática, exige a articulação e a interface
com outros temas. Como pensar o ambiente, sem pensar as populações, as sociedades, as culturas, os territórios e as formas
que encontram de enfrentar e suprir as necessidades e transformá-las em outras? Como pensar política para as mulheres sem
considerar que as demandas por elas explicitadas para a formulação das políticas exigem ações da educação, da saúde, da
segurança pública, cultura, lazer, de emprego e renda, da família, da criança e do adolescente?
A questão é que a natureza dos fenômenos se apresenta de forma articulada, em totalidades e com desdobramentos
absolutamente necessários, ou particularidades, quer seja em seu entendimento ou em suas formas de enfrentamento e
desdobramentos. No que diz respeito ao conhecimento dos fenômenos sociais, sempre se encontram relações entre as suas
formas de entendimento e como a sociedade se organiza política e economicamente. A adoção de métodos adequados mostra
ser inevitável a compreensão da sociedade em sua totalidade para posteriores entendimentos setoriais e segmentados. A
setorialização possibilita o aprofundamento da particularidade, o conhecimento sobre o fenômeno e o direcionamento de
ações, e por isso se lança mão desta forma de abordagem.

72
Vale agora pensar: seria possível a organização de ações se não fossem setorializadas? Como pensar no
enfrentamento real e universalizado, com a garantia de acesso comum a tod@s, de questões como a saúde e a educação em
sociedades nacionais? Estas formas de ações sociais tornam-se absolutamente necessárias, constituindo-se em campos de
disputas de projetos de sociedade e ao mesmo tempo de construção de possibilidades consensuais provisórias possíveis,
diante das conjunturas. Neste sentido, constituem-se em áreas de conhecimentos e de ação específicos, como parte da divisão
social e técnica do trabalho.

A política do meio ambiente, a agenda 21 e a Carta da Terra


O documento Agenda 21 representou o consenso da comunidade internacional a respeito da questão ambiental em
suas diversas faces sócio-econômicas e culturais, não se restringindo às questões de preservação e conservação da natureza.
Propôs o rompimento com os pressupostos do desenvolvimento dominante, que prioriza a produção econômica; a revisão à
exclusão social na gestão das políticas públicas; a indissociabilidade dos fatores sociais, culturais, políticos, éticos e
ambientais no enfrentamento da crise de civilização e na construção do desenvolvimento sustentável e, por isso, compreende-
se que é um instrumento a ser adotado como referência na formulação de políticas locais. No mesmo capítulo 24, a Agenda
21 considerou as convenções e tratados internacionais dos direitos humanos das mulheres como as Estratégias Prospectivas,
formuladas em Nairóbi, para o Progresso da Mulher e, sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher, baseada no sexo, acesso aos recursos de terra e outros, à educação e ao emprego seguro e em condições de igualdade,
de outras conferências que tiveram por tema as mulheres. A implementação das Estratégias Prospectivas de Nairóbi para o
Progresso da Mulher, particularmente em relação à participação da mulher no manejo racional dos ecossistemas e no controle
da degradação ambiental, passaram a constituir os objetivos e atividades propostas na referida Agenda, tornando-se
estratégias para os governos nacionais. O mesmo artigo 24, da Agenda 21, se refere também:
“... às medidas para examinar políticas, estabelecer planos a fim de aumentar a proporção e participação das mulheres
como responsáveis pela tomada de decisões, planejadoras, gerentes, cientistas e assessoras técnicas na formulação, no
desenvolvimento e na implementação de políticas e programas para o desenvolvimento sustentável”. (IPARDES,
2001).

Ao mesmo tempo, como medidas comuns, as duas políticas aqui focadas: de meio ambiente e para as mulheres,
requisitam da sociedade mudanças profundas quer seja no plano econômico, social, político, cultural e espiritual. Ou seja,
levam a projetar sociedades que tenham valores pautados na relação entre as sociedades e a natureza, com bases menos
destrutivas e, ao mesmo tempo, a imaginar sociedades com maior igualdade entre homens e mulheres.
O texto da Carta da Terra elenca grandes e complexos princípios: 1. respeitar e cuidar da comunidade de vida; 2.
integridade ecológica; 3. justiça social e econômica; 4. Democracia, não-violência e paz. No 3. princípio em especial,
encontramos expresso encaminhamento integrado e includente aos desafios e cuidados da carta da terra e da
intersetorialidade das políticas de se construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e
pacíficas, ou seja, ao
“... afirmar a igualdade e a equidade de gênero como pré-requisito para o desenvolvimento sustentável e assegurar o
acesso universal à educação, ao cuidado da saúde e às oportunidades econômicas” (Carta da Terra. Princípio 3. Inciso
11., 2000) .

A Carta da Terra ao afirmar a igualdade e a equidade de gênero no desenvolvimento sustentável, busca - dentre
outros cuidados - assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com todas as formas de violência contra
elas. Também, busca estabelecer as suas participações ativas, plenas e paritárias em todos os aspectos da vida econômica,
política civil, social e cultural, como parceiras e formadoras de opinião, lideranças e beneficiárias. Por último, o cuidado em
se reforçar as famílias e garantir a seguridade e a amorosa criação de todos os membros da família.
Isso pressupõe alterações profundas, quer seja no modo de produção, na cultura, nos valores, nos padrões de
consumo, na ética e na relação com o meio ambiente. Situado neste contexto pretende-se iniciar reflexões sobre as políticas
para as mulheres e de meio ambiente. Parte-se do pressuposto intersetorial que as duas políticas remetem, com vista a um
desenvolvimento sustentável e equitativo. O artigo 4o, inciso VI dos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente,
introduz esse compromisso ao apresentar em seu texto os fins e mecanismos de formulação e aplicação da política, dentre
eles:
“... à preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade
permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida” (Brasil, lei n. 6.938, de 31 de
agosto de 1981).

A política para mulheres e os dois planos nacionais


A luta por serviços e pela política para mulheres vem sendo parte das reivindicações das mulheres e do movimento
feminista, com maior vigor a partir do século XX. Neste século, muitas conquistas foram feitas pelas mulheres no plano dos
direitos e da cidadania.

73
A partir da década de 1980, cresceu o debate sobre gênero o que alimentou teoricamente a luta das mulheres,
passando a ser considera a saúde e violência, pontos estratégicos em suas mobilizações. É necessário se reconhecer que este
debate, ao mesmo tempo cresce em seu interior e polemiza não só em si, mas na relação com outras áreas do conhecimento.
Este contexto de crescimento do debate teórico sobre as estratégias de conquistas dos direitos das mulheres, não se
desvincula dos debates sobre os direitos humanos. A partir da década de 1970, passaram a se realizar conferências da
Organização das Nações Unidas que incorporaram a temática das mulheres, alimentando as lutas nacionais para a conquista
dos direitos e através de sua implantação de institucionalidade.
O movimento das mulheres e feminista cresceu e no país, várias organizações não governamentais que agregam
esta perspectiva organizativa das mulheres, mantiveram suas orientações políticas com base na luta por reais conquistas em
favor das mulheres e pela mudança real da sociedade em bases mais justas, seja com pressupostos na justiça social. Isso faz
com que atualmente a Marcha Mundial de Mulheres tenha sede no país. A expressão da capacidade organizativa das
mulheres pode ser visualizada não só através das conquistas no campo dos direitos, a exemplo da Lei Maria da Penha que
pela primeira vez regulamentou o combate à violência doméstica contra mulheres, mas através das manifestações que
ocorrem no dia 8 de março, lembrando o dia internacional das mulheres e que concentra em São Paulo a grande marcha nas
ruas. Como mostra que os direitos das mulheres se situam no campo das mudanças culturais, outra grande manifestação de
rua que ocorre em vários pontos do país e que as mulheres compõem, é a Parada GLBT ou dos gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transexuais, que ocorre anualmente.
No campo das regulamentações, foi tardia a constituição própria de uma Secretaria Nacional de Políticas para
Mulheres, a qual se constituiu somente em 2003. Antes disto, desde o período da redemocratização da sociedade, na década
de 1980, se constituiu o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que se abrigou institucionalmente no Ministério da
Justiça.
A institucionalização da Secretaria Nacional possibilitou enfim que a política ganhasse dinâmica como a proposta
nos parâmetros de formulação e execução das outras políticas setoriais. Em 2004, ano de eleições municipais, ocorreram pela
primeira vez, conferências ou plenárias municipais, estaduais e a conferência nacional. O processo de formulação do I Plano
Nacional de Políticas para Mulheres gerou o debate interior as outras políticas, concretizando formas de incorporação
temática das questões de gênero pelas mesmas. O I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (Brasil, 2004) teve por
eixos de discussão: - Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; - Educação inclusiva e não sexista; - Saúde
das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; - Enfrentamento à violência contra as mulheres.
O II Plano Nacional (Brasil, 2008) formulado em 2007, ampliou a constituição dos eixos de discussão compondo-se
da seguinte forma: - Autonomia econômica com igualdade no mundo do trabalho, com inclusão social; - Educação inclusiva,
não racista, não sexista, não homofóbica e não lesbofóbica; - Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; -
Enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres; - Participação das mulheres nos espaços de poder e
decisão; - Desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, soberania e
segurança alimentar; - Direito a terra, moradia digna e infra-estrutura social nos meios rural e urbano, considerando as
comunidades tradicionais; - Cultura, comunicação e mídia igualitárias, democráticas e não discriminatórias; enfrentamento
do racismo, sexismo e lesbofobia; - Enfrentamento das desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial
atenção às jovens e idosas.
Observou-se a ampliação das temáticas dos eixos de discussão e formulação de propostas que se explicitaram no II
Plano Nacional. Disso decorreu que houve concretamente a incorporação de temas de relevância para os desdobramentos das
buscas de compensação das desigualdades historicamente constituídas em torno da desigualdade que as mulheres vivem. Não
é finalidade deste texto, analisar o significado social de cada uma das perspectivas incorporadas. Focaremos na incorporação
do eixo “Desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, soberania e
segurança alimentar”. Este eixo incorporou através da recuperação de conteúdos como a igualdade e equidade de gênero, já
explícitos na Carta da Terra e da Agenda 21 Global, documentos sínteses Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), realizada no Rio de Janeiro e mais adiante considerada Rio +.
Foi neste contexto de regulamentação que o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, com vigência estratégica
articulada ao período do Plano Plurianual estabelecido entre 2008-2011, incorporou afinal a questão ambiental.
Ocorre que a implementação das propostas, como é comum a todas as políticas setoriais, depende da capacidade
organizativa das regiões, que no Paraná, também tardiamente passaram a ser incorporadas de acordo com as bacias
hidrográficas. Este é o desafio presente na conjuntura. Capacidade organizativa, seja das administrações do estado nas
diferentes esferas do poder e da sociedade civil, afim de traduzir estas intencionalidades de planejamento estatal em ações
concretas e que repercutam no cotidiano da vida das mulheres, situadas em suas sociedade e comunidades.
Diante de tais desafios colocados às mulheres em defesa do desenvolvimento sustentável e equitativo, e da
capacidade organizativa das regiões, a II Conferência Regional de Políticas para as Mulheres, ocorrida em Foz do Iguaçu/Pr
em maio de 2007, possibilitou a emergência da proposta de se estabelecer o Movimento de Políticas para as Mulheres na
Bacia do Paraná III, constituída por 29 municípios localizados na região Oeste do Paraná, área territorial estratégica e
fronteiriça com países latino-americanos: Paraguai e Argentina. Desde então, conforme dados da coordenação do movimento,
um processo de articulação de lideranças vem ocorrendo na região, motivado pela participação na II Conferência Estadual de
Políticas para Mulheres, ocorrida em Curitiba, no mês de junho de 2007 e na II Conferência Nacional de Políticas para
Mulheres, ocorrida em Brasília, em agosto de 2007. O último evento ocorrido nessa direção pelo movimento, “Encontro de

74
Políticas para Mulheres nas Eleições 2008” ocorrido em Medianeira no mês de maio/2008, se justificou pelas eleições à
Prefeitura e Câmaras Municipais em todos os municípios e a necessária motivação da participação feminina nos espaços de
poder nas Prefeituras Municipais, Câmaras de Vereadores e outras instâncias representativas, hoje ocupadas majoritariamente
por homens (Grondim, 2008).

CONCLUSÃO
O acompanhamento formal ao cumprimento das conferências vem gerando condições para institucionalidade das
políticas setoriais. Em esfera municipal e regional, cada uma das políticas setoriais adquire as características da gestão
municipal, as quais, nem sempre se encontram no campo democrático e popular, o que dificulta o avanço de propostas
participativas e descentralizadas no interior dos próprios municípios.
A incorporação da perspectiva ambiental II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, corrobora a indicação
feita na Agenda 21, desde a década de 1990. A Política Nacional de Meio Ambiente, as conferências que ocorrem em
diferentes níveis de governo, e em destaque o texto do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, são documentos
formais que podem se traduzir em possibilidades organizativas dos segmentos sociais, o que nesta situação, vem fortalecendo
ao mesmo tempo, a perspectiva intersetorial das duas políticas, quais sejam, a de meio ambiente e para mulheres, bem como
cada uma delas, dada sua condição de novo tema que entrou para a agenda pública.
O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres amplia e aprofunda o campo de atuação das políticas setoriais em
áreas estratégicas, dentre elas, a participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; no desenvolvimento sustentável
no meio rural, na cidade e na floresta, como garantia de justiça ambiental, inclusão social, soberania e segurança alimentar.
Não resta dúvida de que há muito por avançar, como exemplo, a geração de uma política para mulheres, a exemplo da já
existente no meio ambiente e em outras áreas temáticas.
O Movimento Regional de Políticas para as Mulheres na Bacia Hidrográfica do Paraná III fortalece a articulação na
defesa destas conquistas e direitos universais de todas e de todos. Este fórum, gerado a partir da iniciativa das mulheres na
região, poderá ser o guia das ações nas políticas setoriais, alavancando espaços e possibilidades de avanços na forma de
gestão democrática, bem com nas conquistas a serem feitas, em cada uma das políticas.

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1992. Re-edição IPARDES-PR.
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Brasil, Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. (2008). II Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
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sustentável. Petrópolis: Gráfica Editora Stampa Ltda, 2004.
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Sposati, Aldaíza. (2004). Especificidade e intersetorialidade da política de assistência social. In Revista Serviço Social e
Sociedade. no. 77, ano XXV, mar. , p.30-53.

A masculinidade não cai do "céu", ela nasce do "chão"


Amanda Rabelo 1
Universidade de Aveiro
[email protected]

Resumo: O género é uma construção social de idéias sobre papéis adequados a homens e mulheres. Como o género é uma construção social,
um dos objetos que ele marca é o corpo humano, marcas que são efetuadas desde o nascimento pela “imposição” da masculinidade e da
feminilidade para identificar cada sexo. A sexualidade e o género podem estar ligadas à natureza, mas não podem ser a ela reduzidos, pois a
própria natureza é uma construção histórica e social: o “natural” se dá pela linguagem, pelas representações e se modifica historicamente.
Para compreender as atitudes dos homens, a relação de género em que se encontram, as resistências ou confirmações que eles representam,
faremos uma análise de como são formadas as masculinidades no contexto das relações de gênero e quais as consequências nas acções destes

1
Doutoranda em Ciências da Educação – Departamento de Ciências da Educação de Universidade de Aveiro –Projeto de investigação financiado pela FCT.

75
homens. Enfim, “a masculinidade não cai dos céus”. Queremos complementar esta frase metafórica de Connell (1990: 90) dizendo que a
masculinidade nasce do chão, que significa o contexto social, biológico, cultural e histórico onde o homem se insere, contexto em que a
família, a escola e o trabalho têm se marcado como instituições principais na formação dos géneros.

O Conceito de Gênero
A utilização do termo gênero teve a sua inicial aparição nas análises feministas a partir de meados da década de
1970 (Almeida, 1998; Scott, 1990; Yannoulas, 2001). A definição da OIT diz que:
Gênero é um conceito que se refere ao conjunto de atributos negativos ou positivos que se aplicam diferencialmente a
homens e mulheres, inclusive desde o momento do nascimento, e determinam as funções, papéis, ocupações e as
relações que homens e mulheres desempenham na sociedade e entre eles mesmos. Esses papéis e relações não são
determinados pela biologia, mas sim, pelo contexto social, cultural, político, religioso e econômico de cada
organização humana e são passadas de uma geração a outra... Gênero são as valorizações e definições construídas pela
sociedades para moldar o perfil do que é ser homem ou ser mulher nessa sociedade. A identidade de gênero é
desenvolvida durante a infância e a vida adulta (OIT/MTb, 1998, p. 12-3 citado por Yannoulas, 2001, p. 70).

Assim, o gênero é uma construção social de atributos diferentes a homens e mulheres efetivada durante toda a vida,
que acaba por determinar as relações entre os sexos em vários aspectos. O uso deste termo visa, assim, sublimar o caráter
social das distinções fundadas sobre o sexo e a rejeição de se usar a palavra sexo, profundamente fundada no determinismo
biológico e suas associações naturalistas, assim Yannoulas (2001, p. 70) define que:
A palavra sexo provém do latim sexus e refere-se à condição orgânica (anatômico-fiosiológica) que distingue o macho
da fêmea [...] A categoria gênero provém do latim genus e refere-se ao código de conduta que rege a organização
social das relações entre homens e mulheres. Em outras palavras, o gênero é o modo como as culturas interpretam e
organizam a diferença sexual entre homens e mulheres.

Scott2 (1990, pp. 7-8) ressalta no seu artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” que quando começam
os estudos de sexualidade esta diferenciação entre sexo e gênero pareceu ainda mais necessária. Nesta diferenciação o gênero
passou a ser visto como um modo de distinguir a “prática sexual dos papéis sexuais consignados a homens e mulheres: O uso
de gênero põe a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas ele não é diretamente determinado
pelo sexo. Ele age mais sobre os domínio que implicam as relações entre os sexos”.
Esta divisão também é destacada por Almeida (1998, p. 43) quando diz que “sendo o sexo determinado antes do
nascimento por processos biológicos naturais, o gênero é um produto cultural adquirido e transmitido nas estruturas sociais”.
Assim, os estudos de gênero consideram a diferença entre os sexos como uma construção social. Diferença que não pode
servir como desculpa para desigualdades, mas como motivo para analisar as peculiaridades entre os dois sexos, o que implica
um não-acatamento das diferenças assentadas simplesmente no aspecto biológico e uma rejeição aos enfoques naturalistas3.
O gênero é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado, uma construção social de idéias sobre papéis
adequados a homens e mulheres. Mas temos que tomar cuidado com essa visão, pois não devemos interligar, pura e
simplesmente, o gênero e a biologia (Scott, 1990). Connel (1997, p. 6) concorda com esse pensamento e diz que o gênero é
uma prática social que se refere aos corpos, mas não se reduz a eles, pois o gênero existe na medida em que a biologia não
determina o social. Louro (2000) nos lembra, ainda, que a sexualidade e o gênero podem estar ligadas à natureza, mas não
podem ser a ela reduzidos, pois a própria natureza é uma construção histórica e social: o “natural” se dá pela linguagem,
pelas representações e se modifica historicamente.
Porém, Torrão Filho (2005, p. 149) lembra-nos que isso não significa que não existam traços biológicos na
constituição das identidades sexuais (para o autor, muitas vezes isso tem refletido em uma relação de medo e ódio à
natureza), não é preciso lutar contra um determinismo biológico apagando-se as diferenças sexuais, esse pensamento
redutoramente igualitário pode ser um empecilho para o avanço do conhecimento das relações de gênero, ele defende que há
atributos biológicos na constituição dos gêneros e da sexualidade, mas eles não são únicos.
Assim como a natureza é uma construção, Butler (2003) considera que o próprio sexo não é natural, ele também
discursivo e cultural como o gênero, assim, a distinção sexo/gênero é arbitrária, pois talvez o sexo sempre tenha sido o
gênero. Por isso propõe a idéia de entender o gênero como “efeito”, no lugar de um sujeito centrado, ou seja, o “ser um
gênero é um efeito, um sentido em si do sujeito”.
Os estudos de gênero evoluíram nas suas análise, portanto, tentaremos nos distanciar das abordagens criticadas por
Scott (1990, pp. 8-12): as que fazem apenas a descrição, sem explicar ou atribuir uma causalidade; as que analisam somente
as causas, mas tendem a incluir generalizações reduzidas ou demasiado simples; algumas abordagens feministas marxistas,

2
Uma das autoras mais citadas nos trabalhos acadêmicos dos estudos de gênero.
3
Este enfoque naturalista fixado nos aspectos biológicos de cada indivíduo era utilizado pelos positivistas e higienistas do século XIX na análise das relações de
desigualdades entre os sexos, que pressupunha a subordinação da mulher ao homem (pois a mulher era considerada com inferior biológica/ intelectualmente,
assim, deveriam ser retiradas da esfera pública e o homem alicerçar-se no poder). O higienismo, ainda embasado nestes pressupostos, reservava à mulher a
responsabilidade pela higiene doméstica e os cuidados com a saúde da prole, em nome do progresso e das necessidades profiláticas dos centros urbanos. Estas
formulações naturalistas e higienistas continuam encontrando respaldo em diversos setores sociais, entre o sexo masculino e mesmo entre as próprias mulheres
(Almeida, 1998).

76
onde o conceito de gênero foi por muito tempo tratado como um sub-produto das estruturas econômicas cambiantes e que,
apesar de alguns avanços, não deu ao gênero o seu próprio estatuto de análise; as baseadas na psicanálise, que trouxeram
contribuições importantes4, mas que tendem a reificar o antagonismo do masculino/feminino, assim parece que não há
solução, havendo a falta de introdução de uma variabilidade histórica e a previsibilidade da teoria.
A definição de gênero mais importante para o nosso trabalho é a de Joan Scott (1990, pp. 14-16). Sua conceituação
divide-se em duas partes (ligadas entre si, mas distinguidas na análise):
1- “O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os
sexos” – esta primeira parte da definição de gênero é composta de quatro elementos, onde nenhum deles pode operar sem os
outros nem simultaneamente (como se um fosse um simples reflexo do outro), é preciso saber quais são as relações entre
esses quatro aspectos:
 os “símbolos” culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas e mitos.
 os conceitos “normativos” que põem em evidência as interpretações do sentido dos símbolos e se esforçam para
limitar e conter suas possibilidades metafóricas. São as doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou
jurídicas. Estas doutrinas tomam a forma típica de oposição binária e afirmam de forma categórica o sentido do
masculino e do feminino, mas apesar de reprimir qualquer alternativa, há conflitos. Contudo, a história posterior é
depois escrita como se estas posições normativas fossem o consenso social.
 as “instituições e representações sociais”, onde o historiador/pesquisador deve estar atento para desafiar a noção de
fixidez destas e ter uma visão mais ampla, pois uma instituição não constrói sozinha o gênero.
 a “identidade subjetiva”, que não pode ser dissociada da história, examinando as maneiras pelas quais as
identidades de gênero são realmente construídas e relacionando seus achados com toda uma série de atividades,
organizações e representações sociais situadas historicamente.
2- “O gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” – a autora considera que o gênero
aparece como um meio persistente e recorrente de dar eficácia à significação do poder em quase todas as sociedades atuais,
sem ser o único campo. Os conceitos de poder não se referem literalmente ao gênero, mas as mudanças na organização das
relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações do poder (sem significar um único sentido de
mudança).
A teorização de gênero de Scott (1990, pp. 16-17) é apresentada nessa segunda proposição, onde a busca por
encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais possibilita compreender a
reciprocidade entre gênero/sociedade e as maneiras particulares e situadas dentro de contextos específicos, “pelas quais a
política constrói o gênero, e o gênero constrói a política”5. Por exemplo, as hierarquias fundamentam-se nas percepções
generalizadas da relação “natural” entre masculino e feminino, as definições normativas de gênero reproduzem-se na cultura
dos trabalhadores, entre outras.
Para proteger o poder e as hierarquias a referência às características masculinas e femininas deve parecer certa, fixa
e natural. “Desta maneira, a oposição binária e o processo social tornam-se ambos partes do sentido do poder ele mesmo; pôr
em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema inteiro” (Scott, 1990, p. 18). Como as significações de gênero e de poder
se constroem reciprocamente, só é possível que as coisas mudem de acordo com os processos políticos6 (pois os
questionamentos à ordem vigente podem mudar ou utilizar os mesmos referenciais de outra forma).
A exploração das questões de gênero de uma forma ampla pode oferecer novas perspectivas a velhas questões,
redefinindo as antigas questões em novos termos e abrindo possibilidades para a reflexão sobre as estratégias políticas
atuais/futuras, pois esta exploração sugere que redefinir e reestruturar o gênero só é possível em conjunto com uma visão de
igualdade política e social (que inclui sexo, classe e raça) (Scott, 1990, p. 19).
Diante dessa concepção, o gênero é intimamente relacionado com as questões de poder no sentido amplo dos
micropoderes foucaultianos. Louro (2000, p. 14) exalta esta relação do gênero com o poder e propõe uma análise de
“construção social e cultural do feminino e do masculino, atentando para as formas pelas quais os sujeitos se constituíam e
eram constituídos, por meio de relações sociais de poder”. Não podemos esquecer que este poder (o micropoder ou biopoder)
não age somente reprimindo, mas pelo fascínio/atração dos sujeitos produzindo-os de forma tão interpessoal e intrapessoal
que muitas vezes o indivíduo não se dá conta disso.
Almeida (1998) concorda e acentua que as configurações de poder entre os gêneros, da mesma forma que os
significados, as normatizações valorativas, as práticas e os símbolos, variam de acordo com as culturas, a religião, a
economia, as classes sociais, as raças e os momentos históricos, formando redes de significações que se edificam e se

4
Ao mostrar que a linguagem constrói a identidade sexuada e que a identificação de gênero é extremamente instável, mesmo quando aparece como sendo
coerente e fixa. Há um processo de diferenciação e distinção que tenta superar a ambiguidade para assegurar a coerência. A idéia de masculinidade precisa da
repressão de aspectos femininos, sendo que a representação de masculino e feminino não é imutável, o conflito sempre existe. O masculino e o feminino são
construções constantes.
5
A política é somente um dos domínios nos quais o gênero pode ser utilizado para a análise histórica. A autora cita vários estudos que relacionam os regimes
autoritários e o controle das mulheres, nestes os dirigentes legitimam a dominação/força/autoridade identificando-os como masculinos, e o feminino é
identificado com a fraqueza/subversão. Traduz-se essa dominação em leis que situam as mulheres onde querem. Os regimes democráticos também construíram,
diferentemente, sua ideologia política a partir de conceitos generificados, como o paternalismo protetor presente em leis dirigidas a mulheres e crianças. Na
maioria das vezes a diferença sexual foi concebida em termos de dominação e de controle das mulheres, mas essa relação particular não constitui um tema
político universal (1990, pp. 17-18).
6
Político no sentido de que diversas significações conflituam para assegurar o controle (1990, p. 19).

77
relacionam integradamente, atuando em todos os âmbitos da vida quotidiana e nas relações de poder da sociedade que
revelam os conflitos e as contradições existentes.
Para estudar o modelo de estrutura de gênero, Connel (1997) propõe a análise de três dimensões: entender as
relações de poder (a subordinação geral das mulheres e a dominação dos homens que persiste apesar das resistências), de
produção (as divisões de gênero no trabalho e as consequências econômicas destas), mas é preciso compreender também a
cathexis (o vínculo emocional, as práticas que dão forma e atualizam o desejo, a heterossexualidade como forma de segurar a
dominação social dos homens). Por isso, devemos ir além do próprio gênero para entendê-lo, pois este é somente um dos
componentes da estrutura social.
Em resumo, concordando os referenciais citados, entendemos que para estudar o arcabouço das relações de gênero
precisamos enfatizar seus vários aspectos que passam pelas interações entre homens e mulheres, mas que vai muito além,
sendo uma estrutura ampla que abrange a política (que inclui o poder, a economia e o Estado), a família, a sexualidade, as
instituições, as normas, a identidade e que tem uma dimensão local e internacional. Sua estrutura é muito mais complexa do
que as divulgadas dicotomias homem/mulher.

Estudo de gênero não é sinônimo de estudo da mulher


Quando falamos sobre estudos de gênero a primeira idéia que vem à mente é mulher, feminilidade ou feminismo.
Inicialmente as investigações de gênero estiveram relacionadas com os estudos feministas sobre a mulher – que
representaram uma experiência de transformar os paradigmas dentro das ciências e obter o reconhecimento e legitimidade
institucional de uma nova categoria científica, novas metodologias e campos de pesquisa que visam reexaminar premissas e
critérios das análises7.
Mas queremos destacar aqui que o termo gênero é comum aos dois sexos, pois este deve ser entendido como uma
construção social, histórica e cultural, elaborada sobre as diferenças sexuais, conforme afirma Almeida (1998, p. 40): “o
conceito de gênero não se refere especificamente a um ou outro sexo, mas sobre as relações que são socialmente construídas
entre eles”. Joan Scott (1990, p. 7) também ressalta esta compreensão dizendo que:
“Gênero” tanto é substituto para mulheres como é igualmente utilizado para sugerir que a informação sobre o assunto
“mulheres” é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro. Esta utilização insiste
sobre o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens.

Assim, considerar os estudos de gênero como sinônimo de estudo das mulheres é utilizar um sentido mais restrito e
simplista, pois sua conceituação mais geral enfoca a construção social das relações entre homens e mulheres (Almeida, 1998;
Scott, 1990).
Yannoulas, Vallejos e Lenarduzzi (2000, p. 446) salientam que é necessário “evitar a tentação ginecocêntrica dos
feminismos”, pois o foco deve estar na elaboração de teorias que mostrem com a maior clareza possível as atividades das
mulheres enquanto atividades sociais, assim como, as relações sociais de gênero como elemento de importância para a
compreensão da história humana. Enfim, os estudos de gênero entendidos de uma forma ampla podem ajudar a compreender
os conflitos, resistências, reafirmações, satisfações e sucesso também dos homens (e vice-versa)8.

A construção da feminilidade e da masculinidade


Como o gênero é uma construção social, um dos objetos marcados pelo gênero é o corpo humano, marcas que são
efetuadas desde o nascimento pela imposição da masculinidade e da feminilidade para identificar cada sexo. Assim como nos
lembra Catani (1997, p. 39):
Toda a vasta gama de elementos que constituem a nossa cultura atuam no desenvolvimento da consciência social de
meninas e de meninos. Tanto para homens, quanto para as mulheres, modos de ser e de estar no mundo são, portanto,
construções históricas e culturais [...]. Não há apenas um conceito, mas houve e há vários conceitos de gênero, ao
longo da história, em diferentes culturas e até mesmo em uma dada sociedades, no mesmo momento histórico.

Os conceitos de masculino e feminino mudam, às vezes sutilmente. Como eles são configurações de prática de
gênero, eles são categoria sócio-histórica-cultural, e não só, são também biológicas, estes conceitos moram em todas estas
categorias ao mesmo tempo e a pressão de cada domínio apaga as marcas próprias do outro (assim como nos descreve
Connell, 1990).
Nepomuce (2005, p. 7) explica que a construção do masculino e feminino é histórica: na antiguidade o masculino
era considerado o sexo único, a mulher era o masculino com imperfeições; no iluminismo o sexo passa a ser uma

7
Vasconcelos (2005), por exemplo, descreve que vários embates são feitos pela história das mulheres para conseguir respeitabilidade, pois esta era vista como
parcial, tendenciosa e não profissional. Críticas que mascaram questões de poder e o caráter político da história das mulheres e dos estudos de gênero.
8
No nosso caso específico que foi investigar os homens que são professores na 1ª a 4ª série, os estudos de gênero foram importantes, pois estes são homens que
lidam quotidianamente com atividades sociais socialmente consideradas como femininas, deste modo, as suas relações de gênero colocam-se em conflito com as
expectativas e podem mostrar exceções aos padrões de gênero ou tentativas de reafirmação (apesar do próprio fato deles estarem em um ofício tradicionalmente
feminino já os colocar socialmente como exceções às regras de gênero).

78
diferenciação radical de opostos; atualmente ser homem ou ser mulher passa por deslocamentos e desconstruções de sentidos.
Mas para desconstruir a polaridade rígida de gênero ainda é preciso compreender que cada um, masculino ou feminino,
contém em si o pólo oposto, e que os gêneros se produzem nas relações intrínsecas de poder, uma construção que, de acordo
com a autora, “não passa somente através dos mecanismos de repressão ou censura, mas através das práticas e relações que
instituem os modos de ser e de estar no mundo”.
Essa definição social do ser homem e do ser mulher e dos seus modos próprios de ser em várias sociedades não têm
se limitado a estabelecer uma diferenciação binária entre estas categorias sociais. Para Amâncio (1998, p. 87) são
estabelecidas diferenciações assimétricas entre elas, ou seja, ao homem são conferidas competências que são como referente
universal, enquanto que a mulher é referida como categoria específica (conforme acontece na linguagem).
Amâncio (1998, pp. 15, 28-29) considera que a discriminação tem a sua origem nesta “forma de pensamento social
que diferencia valorativamente os modelos de pessoa masculina e feminina e as funções sociais dos dois sexos na sociedade”.
Por isso, importa analisar não as diferenças entre homens e mulheres9, mas o “pensamento social” sobre a diferenciação do
masculino e o feminino, ou seja, a epistemologia do senso comum sobre os sexos, a ideologia e as relações intergrupos.
E destaca um argumento importante para este estudo, a necessidade de:
salientar os processos que envolvem os diferentes significados atribuídos ao trabalho consoante o sexo dos que o
desempenham e que são partilhados por ambos os sexos [...] [pois] tanto homens como mulheres participam na
reprodução do sentido dos modos de ser que os diferenciam, através de padrões de comportamento que, embora
aparentemente distintos, têm uma origem ideológica comum (Amâncio, 1998, pp. 29, 34).

Ou seja, não é o homem enquanto “sexo dominante” que impõe o seu pensamento sobre a mulher, os dois sexos
partilham determinados valores (sim, a mulher também tem a sua parcela de culpa nas discriminações), as discriminações
de gênero não são atribuídas nem só às mulheres nem só aos homens.
Para a autora é importante estudar os estereótipos10 que constroem o masculino e o feminino, pois normalmente os
estereótipos sexuais não têm assumido a mesma funcionalidade para homens e mulheres: o estereotipo feminino normatiza os
comportamentos e caracteriza as mulheres, já o estereotipo masculino além de orientar os comportamentos, distinguem os
indivíduos mais pela sua autonomia do que pela sua categoria de pertença. Assim, o estereótipo feminino serve para os
homens identificarem as mulheres, mas para as mulheres é mais pertinente universalizá-los a fim de que mantenham um
significado positivo, conforme a autora explica no trecho a seguir:
A dominância do masculino não é uma propriedade dos homens, mas é uma propriedade de concepção do seu modo de
ser na medida em que se confunde com a concepção dominante de pessoa, ao nível de um modelo de comportamento.
[...] em contextos públicos [...] os homens afirmam a sua distintividade [...], mas as mulheres fazem-no sob certas
condições: a de que estes comportamento não implique uma ruptura com o modo de ser feminino e a de que ele não
subverta a natureza da relação entre os sexos (Amâncio, 1998, p. 180).

Desta forma, os estereótipos ajudam na dominação masculina e são prejudiciais às mulheres, pois a norma é
masculina, a exceção é feminina. As mulheres para serem “dominantes” têm que assumir características que são consideradas
“masculinas”, assim sua feminilidade fica comprometida e isto tem consequências na vida destas. Como Torrão Filho (2005,
p. 145) ressalva para entender o masculino ou o feminino é preciso relacioná-lo um ao outro e para entender a ambos é
necessário entender a homossexualidade, que é parte constituinte e constitutiva, da masculinidade e da feminilidade.
Os padrões de comportamento de homens e mulheres “constituem a parte mais visível de um fenômeno que o senso
comum designa por diferenças entre os sexos, mas por detrás desta evidência observável esconde-se a determinação de uma
ideologia que é partilhada por ambos os sexos” (Amâncio, 1998, p. 177). Uma ideologia de estereótipos que tem tido
consequências mais fortes para as mulheres, pois, o seu sucesso numa tarefa masculina suscita impressões mais negativas do
que o seu fracasso, além de ser mais fácil para a mulher obter sucesso numa atividade feminina (conforme a autora conclui
com as suas investigações).
O que a autora verifica é que o senso comum procura simplesmente confirmar a hipótese da estratificação social e
justificar aquilo que é incongruente com ela. O “diferente” tem maior visibilidade: um único comportamento serve para
explicar e comprovar uma hipótese previamente existente do estereótipo. Essa é a base menos visível da discriminação das
mulheres.
Nas explicações sobre o sucesso profissional, o homem tende a diferenciar o sucesso da mulher e do homem, já a
mulher não. Ou seja, o dominante procura preservar o seu sucesso acentuando a sua diferenciação (identificando a diferença
coletiva e masculinizando a mulher que ultrapassa as fronteiras), e o dominado universalizar (tentando minimizar a
discriminação de que são objeto, moderando as suas aspirações, valorizando a sua especificidade coletiva e a invisibilidade
individual, por fim, vendo as mulheres com sucesso como não femininas). Além disso, as mulheres tinham tendência a

9
Estudos estes que costumam centrar-se nas oposições binárias: biológicas, dos papéis sociais (baseadas em estereótipos), nas posições sociais na família e na
sociedade.
10
O conceito de estereótipo para a autora une-se com o das representações sociais (sendo uma diferenciação da psicologia européia/psicologia americana que
criou dois conceitos), pois constituem ideologizações coletivas, abrangem conteúdos e processos (como as representações) e traduzem também um conhecimento
prático e as crenças sociais (Amâncio, 1998, pp. 48-49). No entanto, como citamos anteriormente, Silva (2002) diferencia a representação do estereótipo, sendo o
último uma forma de representação em que entram processos de simplificação, e centra a representação na dinâmica das relações de poder. Enfim, não há um
consenso, mas preferimos utilizar a representação como um conceito mais amplo e complexo.

79
subestimar as suas atividades, enquanto os homens a superestimar as suas (Amâncio, 1998, p. 181). Por isso, a autora conclui
que:
Homens e mulheres contribuem, embora de maneira diferente para a acentuação da diferença e do desvio das mulheres
no mundo de trabalho, do mesmo modo que assumem naturalmente modelos de comportamento que lhes são
socialmente impostos. Mas é porque a identidade masculina e feminina se constroem na identificação com modos de
ser socialmente definidos, e não simplesmente com os grupos respectivos, que a análise das suas implicações para a
discriminação da mulher no trabalho não permite apontar nem culpados nem vítimas. Isto porque a objectivação da
diferença é partilhada por ambos os sexos na representação da situação da mulher no trabalho.[...] [Assim] a afirmação
do direito à diferença pode muito bem transformar-se na negação do direito à individualidade.

Resumindo, ambos os sexos assumem modelos de comportamento que lhes são socialmente impostos como se
fossem naturais, partilhando pressupostos e contribuindo para acentuar a diferença entre homens e mulheres. A
masculinidade e a feminilidade são construídas na interação entre os sexos, não pelos seus pares nem por um só sexo (que
seria o culpado pelas diferenças), assim não há culpados pelas desigualdades nem vítimas da mesma, tanto homens quanto
mulheres podem ser vítimas nesse processo, vítimas da discriminação e da demarcação da diferença11.
Se ambos partilham os estereótipos e contribuem para a desigualdade tanto reprimindo quanto construindo modos
de ser, se cada um contém o sexo oposto, é possível questionar as regras que tentam fixar o masculino e o feminino a partir
desta construção do ser, questionar as relações de poder que os formulam e falar de um homem mais feminino e uma mulher
mais masculina.

A construção da masculinidade
Ao estudar os homens no magistério é necessário fazer uma análise de como são formadas as masculinidades para
compreender as suas atitudes, a relação de gênero em que se encontram, as resistências ou confirmações que eles
representam. Apesar de não haver um consenso entre os estudos em torno da masculinidade, estes surgem depois dos estudos
feministas, com a modificação do lugar da mulher nas sociedades ocidentais e o questionamento de padrões tradicionais de
masculinidade (Alves, 2005).
Alves (2005) cita algumas classificações dos principais estudos sobre masculinidade: “conservadora” (que
considera natural que os homens sejam dominantes, provedores e protetores de mulheres), “pró-feminista” (critica a
dominação masculina e o privilégio da masculinidade), “direitos do homem” (os homens são vítimas dos papéis masculinos),
“espiritual” (os padrões inconscientes profundos devem ser atualizados), “socialista” (relaciona masculinidade e os tipos de
trabalho), “grupos específicos” (questiona o masculino universal e enfatiza a diversidade de grupos), “aliança com o
feminismo” (reconhecendo o conceito de gênero e o valor do seu legado) ou “estudos autônomos” (que não reconhecem o
legado feminista). Alves (2005) destaca também alguns estudos que buscam as origens da masculinidade12.
Connell é um dos principais autores sobre a masculinidade, no seu livro “Masculinities”13 (2005) ele teoriza a
masculinidade interligada com a conceituação de gênero, ou seja, considerando os contributos dos estudos feministas. O
gênero é algo tão presente que parece natural, mas envolve, na realidade, um enorme esforço social (inclusive em
normatizações) para orientar o comportamento das pessoas em determinado sentido. Como destaca Areda (2006, p. 1) “não
se nasce Homem, nem se é Homem”, mas torna-se homem, investindo na busca do reconhecimento da sua masculinidade.
Para Connell (1995) há uma narrativa convencional sobre como as masculinidades são construídas, onde toda
cultura tem uma definição da conduta e dos sentimentos apropriados para os homens e pressiona (de várias formas e em
várias instâncias) os rapazes a agir/sentir dessa forma (e a se distanciar do comportamento feminino). A maior parte dos
rapazes internaliza essa norma social e adota maneiras e interesses masculinos, tendo como custo, frequentemente, a
repressão dos seus sentimentos. Mas mesmo existindo um registro cultural de gênero, o conceito de masculinidade é recente
(assim como a feminilidade). Até o século XVIII as mulheres foram vistas como seres incompletos ou inferiores, mas não
como portadoras de características qualitativamente diferentes.
Algumas definições passaram a marcar a masculinidade. Connell cita as definições: “essencialistas” (definem um
núcleo do masculino universal, geralmente arbitrário), “positivista” (quer definir ‘o que os homens realmente são’, usa
estatísticas, mas acabam por se basear nas tipificações), “normativas” (define o que os homens deveriam ser) e “semióticas”

11
Por exemplo, Lopes (2001, p. 326) aponta entre as professoras primárias que entrevistou que a maioria define a sua identidade de gênero em função das suas
relações familiares, apresentando o modelo ideal docente associado ao estereótipo de “fada do lar”: “a mulher sente orgulho em ser mais responsável pela
educação dos filhos do que os homens e em “sacrificar-se” em nome do bem-estar “dos seus” e da criação de um bom ambiente familiar. Não prescinde das
tarefas e das compensações inerentes a esse estereótipo, por razões em que o pessoal e o social se confundem. [...] O estereótipo acima referido parece dificultar-
lhes o assumir do conflito ou até a sua identificação. Entretanto, culpabilizam-se e acusam-se pelo modo passivo e pouco inovador como desempenham o seu
trabalho (sobretudo “as mais velhas”), enfatizam nesse desempenho as características positivas também enfatizadas nas relações com os filhos, ao mesmo tempo
que valorizam nos homens o modo activo e inovador como desempenham o seu trabalho. Se dos homens se espera ambição e prestígio pelo trabalho, às mulheres
recomenda-se um sucesso moderado”.
12
Estes estudam encontram explicações na socialização (enfatizando os pares e a anti-feminilidade) e na psicanálise (enfatizando a repressão de aspectos
femininos). São limitados porque, como vimos acima na conclusão de Amâncio(1998), não são só os homens que constroem a masculinidade, mas também as
mulheres.
13
Com primeira edição datada de 1987.

80
(contrasta a masculinidade e a feminilidade, a masculinidade é a autoridade simbólica, a feminilidade é definida pela
carência).
Mas para Connell (1997, p. 1) as principais correntes de investigação da masculinidade tem falhado na tentativa de
produzir uma ciência a respeito dela, isto revela a impossibilidade dessa tarefa, pois o autor considera que a masculinidade
não é um objeto coerente para produzir una ciência generalizadora, mas ampliando nosso ponto de vista podemos ver a
masculinidade não como um objeto fechado, mas como um aspecto de uma estrutura maior. Assim, o autor define:
Ninguna masculinidad surge, excepto en un sistema de relaciones de género.[...] En lugar de intentar definir la
masculinidad como un objeto (un carácter de tipo natural, una conducta promedio, una norma), necesitamos centrarnos
en los procesos y relaciones por medio de los cuales los hombres y mujeres llevan vidas imbuidas en el género. La
masculinidad, si se puede definir brevemente, es al mismo tiempo la posición en las relaciones de género, las prácticas
por las cuales los hombres y mujeres se comprometen con esa posición de género, y los efectos de estas prácticas en la
experiencia corporal, en la personalidad y en la cultura (1997, p. 6. Grifos nossos).

Não existe uma masculinidade fixa (se fosse fixa não poderíamos falar de feminilidade nos homens ou da
masculinidade nas mulheres), pois qualquer forma de masculinidade é internamente complexa e contraditória, depende da
posição nas relações de gênero, das consequentes práticas de acordo com estas posições e os efeitos dessas práticas. Portanto,
a masculinidade é uma configuração de práticas em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero, mas
Connell(1997, p. 8) afirma que estas estruturas podem seguir diferentes trajetórias históricas. Por conseguinte, a
masculinidade (e a feminilidade) associa-se constantemente a contradições internas e rupturas históricas.
Ao assumir que há várias masculinidades, ele cria, então, o conceito da masculinidade hegemônica (derivado do
conceito de hegemonia Gramsciano) que representa que há uma forma de masculinidade em cada tempo-espaço que tem
destaque em lugar de outras. Na nossa sociedade ocidental, a masculinidade hegemônica apresenta-se como a configuração
da prática genérica que encarna a resposta ao problema da legitimidade do patriarcado e garante (ou tenta garantir) a posição
dominante dos homens e a subordinação das mulheres (Connell, 1997, pp. 11-12).
Algumas críticas são efetuadas à sua conceituação de masculinidade hegemônica (descritos por Alves, 2005;
Matos, 2000) de que ela seria desnecessária quando já existe um conceito de patriarcado que dá conta das masculinidades
dominantes e que o conceito de hegemonia acrescentaria muito pouco, sendo necessária uma perspectiva que dê conta das
variadas dinâmicas existentes ou que “destradicionalize” as masculinidades.
Contudo, Connell (1990) analisa a teoria do patriarcado e verifica que essa conceituação está longe de ser um
sistema lógico bem estruturado, pois apresenta-se como uma rede de argumentos a respeito de relações entre várias coisas,
que tem como escopo a extensão dessa rede de argumentos14, entretanto, esta teoria centra-se nas condições para ultrapassá-
lo. Ele advoga que não é preciso uma relação “chave” do patriarcado, “central”, que organiza todo o resto. A sua unidade
pode ser concebida como uma unidade composta, como o produto flutuante da historia de muitos processos, que sempre
mostram alguma incoerência, algumas contradições.
A unidade no patriarcado não é uma unidade lógica, de definição, é historicamente produzida e como parte de uma
luta para impor vários tipos de ordem e de unidade nas relações sociais (uma delas é a família nuclear). A dinâmica do
patriarcado deve ser entendida como uma dinâmica composta, na qual interagem a resistência ao poder, as contradições na
formação da pessoa, as transformações da produção, entre outras relações (Connell, 1990, p. 92).
Defendemos, então, que o conceito de masculinidade de Connell (tanto a hegemônica como as outras possibilidades
de masculinidade que veremos) é necessário para os estudos das masculinidades. Pois, como o autor afirma, este termo não é
fixo e visa ir além da reprodução cultural, enfatizando o dinamismo da luta social pela liderança na mudança social, pois a
masculinidade que ocupa a posição hegemônica em dado contexto, é uma posição sempre disputável. Enfim, a guerra dos
sexos (entre outras lutas sociais), é o resultado de grandes desigualdades, desta forma, estudar a masculinidade precisa
associar-se a assuntos de justiça social (1997, pp. 11, 17).
Além disso, o conceito de masculinidade hegemônica não pressupõe que os portadores mais visíveis desta
masculinidade sejam as pessoas mais poderosas, pois apesar de ser correntemente aceita na sociedade, a maioria dos homens
não cumprem/praticam na realidade os ditos modelos normativos (respeitam as mulheres, não usam violência, fazem parte
dos afazeres domésticos), mas deseja hegemonia, pois se beneficiam das consequências patriarcais (obtém com a
subordinação das mulheres vantagens em termos materiais, de honra, prestígio, direito a mandar, direito às melhores posições
sociais). Enfim, a maioria têm uma cumplicidade com o projeto hegemônico, isto é, uma masculinidade cúmplice15
(Connell, 1997, p. 14).

14
Como a origem da subordinação das mulheres, as práticas culturais que a sustentam, a divisão sexual do trabalho, as estratégias dos movimentos de
resistências, entre outras.
15
Williams (1995) conclui igualmente com a sua investigação que a maior parte dos homens em profissões de mulher têm uma cumplicidade com a
masculinidade hegemônica, as próprias estratégias para manter sua masculinidade nestas profissões (tentativas de se diferenciar das mulheres/feminilidade e
afirmar suas diferenças, além de ocuparem postos superiores) faz com que os homens possam apoiar a masculinidade; poucos homens do seu estudo não apóiam
a masculinidade hegemônica (contrariando as expectativas dominantes da sociedade de como o homem deve ser). Catani, Bueno, & Sousa (2000) também
encontram em muitas das narrativas masculinas sobre a profissão docente um reforço das representações da autoridade masculina e uma associação da
“vocação”/adequação das mulheres para o magistério, ressaltando qualidades “naturais” de homens para a liderança e de mulheres para a afetividade. Carvalho
(1998) encontra essas e outras formas de reafirmar a masculinidade, mas também depara-se com uma tentativa de formar uma masculinidade diferente que
ultrapassa a relação de feminino e mulher, que descobre que o homem também pode ser feminino.

81
Em síntese, o gênero está imbricado em relações (e lutas) por poder: “un sistema de género donde los hombres
dominan a las mujeres no puede dejar de constituir a los hombres como un grupo interesado en la conservación, y a las
mujeres como un grupo interesado en el cambio” (Connell, 1997, p. 17).
Como não é a única forma, a masculinidade hegemônica em geral recorre à autoridade (mais do que à violência
direta), mas a violência16 também sustenta a autoridade e mostra a imperfeição desse modelo. Deste modo, Connell (1997,
pp. 14, 18), concordando com Gramsci, considera que uma hierarquia completamente legítima teria menos necessidade de
intimidar.
Enfim, “a masculinidade não cai dos céus; ela é construída por práticas masculinizantes, que estão sujeitas a
provocar resistência [...] que são sempre incertas quanto a seu resultado. É por isso, afinal, que se tem que pôr tanto esforço
nelas” (Connell, 1990, p. 90. Grifos nossos).
Ou seja, a resistência não está presente somente na feminilidade. Dentro da dominação da masculinidade
hegemônica há relações de dominação e subordinação, até mesmo entre grupos de homens, como o dos homens
heterossexuais sobre a subordinação dos homossexuais17 (pela estigmatização, exclusão política e cultural, abuso cultural,
violência, discriminação econômica e boicotes pessoais), mas esta parece ser a masculinidade subordinada mais evidente e
mais “associada à feminilidade”18.
Mas alguns homens heterossexuais são expulsos do círculo de legitimidade, também denegrindo pelo vocabulário
que os compara com a feminilidade. Além disso, como a masculinidade está inserida em contextos sociais mais amplos, em
que a classe e a raça também estão presentes, outra forma de masculinidade subordinada pode estar associada à raça (que
Connell denomina de masculinidade marginalizada), onde as masculinidades negras jogam papéis simbólicos para a
construção branca de gênero. Mas nestas dinâmicas podem existir exceções. Até porque, como veremos, as dinâmicas se
modificam:
A historicidade acarreta um processo histórico, uma dinâmica social. A biologia entra na constituição das principais
categorias do patriarcado; mas elas entram numa dinâmica social. [...] temos uma dinâmica social que incorpora, usa, e
transforma a diferenciação biológica. [...] a mesma diferenciação biológica é produzida de novo em cada geração [...] o
“material” biológico encontra não um mundo natural constante, mas as situações humanas novas produzidas a partir da
rodada anterior de encontros. Assim, a mudança histórica no patriarcado é não apenas possível, mas inevitável
(Connell, 1990, p. 91).

Assim como a história interage com a biologia em uma dinâmica constante em que um modifica o outro, a
modificação do patriarcado (da hegemonia) é inevitável. Por isso Connel (1997, pp. 14, 16) esclarece que não há um caráter
fixo na sua definição, somente configurações de práticas geradas de situações particulares, em uma estrutura cambiante de
relações. Toda a teoria da masculinidade deve dar conta deste processo de transformação. Não adianta só reconhecer que há
múltiplas masculinidades, temos que examinar as relações entre elas, inclusive as de classe e raça, também temos que
reconhecer o gênero ao mesmo tempo como um produto e como um produtor da história. O que não significa que as relações
de gênero sejam débeis e triviais, mas que elas se formam e transformam no tempo inseridas na ação social. Enfim:
Enfatizo que la masculinidad hegemónica encarna una estrategia corrientemente aceptada. Cuando cambien las
condiciones de resistencia del patriarcado, estarán corroídas las bases para el dominio de una masculinidad particular.
Grupos nuevos pueden cuestionar las viejas soluciones y construir una nueva hegemonía. La dominación de cualquier
grupo de hombres puede ser desafiada por las mujeres. Entonces, la hegemonía es una relación históricamente móvil.
Su flujo y reflujo constituyen elementos importantes del cuadro sobre la masculinidad que propongo (Connell, 1997, p.
12).

Por conseguinte, as masculinidades são fluídas como as relações de gênero, a resistência pode ser exercida por
novos grupos de homens e/ou de mulheres. A hegemonia patriarcal não é eterna, é historicamente móvel, mas temos que estar
atentos, pois, como vimos nas análises de Scott, as modificações podem não significar igualdade. Amâncio (2004, p. 27)
indica que:
Romper com a masculinidade cúmplice, contestando a masculinidade, como parte integrante de uma estrutura global
de poder, e as diferenças entre sexos e sexualidades que lhe dão sentido, é uma condição indispensável para uma
sociedade mais justa, onde homens e mulheres possam viver, em liberdade, a sua diversidade.

16
Existem principalmente dois tipos de violência: alguns usam a violência para sustentar sua dominação (ataques físicos e verbais), e sentem-se autorizados por
uma ideologia de supremacia (estão exercendo um direito); outra forma é a importância da violência na política de gênero entre os homens, que pode chegar a ser
uma maneira de exigir ou afirmar a masculinidade em lutas de grupo (principalmente na juventude).
17
O homossexualimo é perigoso ao patriarcado até por causa da existência das instituições homossociais existentes.
18
Mesmo esta masculinidade subordinada é uma forma de masculinidade, muitos tentam demarcar esta masculinidade como não subordinada, Areda (2006, pp.
2-5) demonstra que “Ser gay poderia a princípio aparecer como uma maneira de fugir da heteronormatividade; poderia, mas não é isso que tem acontecido”, pois
muitos homossexuais (os “meios gays”) tentam afirmar-se constantemente como Homem, criando “discursos que façam o envolvimento erótico com outro
homem aparecer como um movimento que não prejudique a sua masculinidade, ainda na busca de ser reconhecido como Homem”. Estes não tentam desconstruir
a masculinidade e lutar contra ela e contra a homofobia, ao contrário tentam encaixar-se na moral da masculinidade (o que torna necessário um empenho em
discursos de construção simbólica que se expurgue o “feminino” de seus atos e de suas subjetividades). Continua havendo um discurso misógino que cria, até nos
relacionamentos mais íntimos, barreiras identitárias intransponíveis e inegociáveis: “afirma-se como não-outro, mostrando que se é ativamente feminino e não
um outro feminilizado”. A “busca continua a mesma – não ser o outro. Esse exemplo ajuda a mostrar como o gênero antes de uma estrutura rígida é um discurso
que se apropria de atos e relações criativamente dando uma inteligibilidade masculina a relações mais múltiplas possíveis”.

82
Connel (1997, pp. 19-20) destaca ainda que, conforme muitos autores sublimam, estamos diante a uma tendência de
crise atual, mas não diante uma crise de masculinidade19, pois só podemos falar de uma crise de gênero como um todo, onde
tanto as “relações de poder” mostram tendências de crises (com a emancipação das mulheres), como as “relações de
produção” (com uma participação maior das mulheres) e as “relações de cathexis” (o homossexualismo e a ampla demanda
das mulheres pelo prazer/controle sobre seus corpos, estas “liberdades sexuais” têm afetado tanto a prática heterossexual
como a homossexual). Então, completa:
Las profundas transformaciones ocurridas en las relaciones de género en el mundo, producen a su vez cambios
ferozmente complejos en las condiciones de la práctica a la que deben adherir tanto hombres como mujeres. Nadie es
un espectador inocente en este escenario de cambio. Estamos todos comprometidos en construir un mundo de
relaciones de género. Cómo se hace, qué estrategias adoptan grupos diferentes, y con qué efectos son asuntos políticos.
Los hombres, tanto como las mujeres, están encadenados a los modelos de género que han heredado. Además, los
hombres pueden realizar opciones políticas para un mundo nuevo de relaciones de género. No obstante, esas opciones
se realizan siempre en circunstancias sociales concretas, lo cual limita lo que se puede intentar; y los resultados no son
fácilmente controlables (1997, p. 21).

As transformações ocorridas nas relações de gênero afetam a todos, pois todos estão envolvidos na sua construção,
apesar de estarmos envolvidos nos modelos que herdamos, podemos realizar opções que levem a novas relações de gênero,
mas não podemos esquecer dos contextos a que estamos interligados. Em outro artigo Connell (1995) afirma que a posição
dominante dos homens na ordem de gênero tem um custo material, e não podemos subestimar a dimensão desse custo, pois
não é fácil para os homens (nem para as mulheres) romper seus papéis sexuais rígidos.
Louro lembra que a masculinidade é vigiada constantemente e passa por um processo de masculinização (não pode
chorar, não pode aproximar fisicamente de outros homens, não pode trocar confidencias, tem que ter uma rigidez, não pode
ter afeto), assim “pouco importa sob quais bases foi fundada esta representação; o que importa é que ela teve e ainda tem
efeitos na produção de sujeitos masculinos e femininos” (2000, p. 53).
Neste sentido, Connell (1990, p. 91) explica que “as construções sociais complexas, tais como a masculinidade
hegemônica, estão literalmente corporificadas no processo de formação pessoal [...]. As pessoas realmente sentem de forma
diferente”.
Enfim, a masculinidade não cai dos céus. Queremos complementar esta frase metafórica de Connell (1990, p. 90)
dizendo que a masculinidade nasce do chão, que significa o contexto social, biológico, cultural e histórico onde o homem se
insere, contexto em que a família, a escola e o trabalho têm se marcado como instituições principais na formação dos
gêneros.

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19
Pois crise pressupõem um sistema coerente e a masculinidade não é um sistema nesse sentido, é uma configuração de prática dentro de um sistema de relações
de gênero, falar de crise de masculinidade abrange uma tentativa de restaurar uma masculinidade dominante (Connell, 1997). Amâncio (2004) descreve alguns
estudos que assumem esta perspectiva de restaurar uma masculinidade dominante.

83
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Transexualidade e transgénero em Portugal: dois “vazios” em debate


Sandra Palma Saleiro
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia - CIES-ISCTE
[email protected]

Resumo: Contrastando com um crescente interesse da comunidade científica internacional acerca das temáticas da transexualidade e do
transgénero a que se tem vindo a assistir sobretudo a partir de meadas da década de 1990, em Portugal persiste um “vazio” na investigação
sociológica, e mais genericamente no conjunto das ciências sociais, acerca desses fenómenos. Partindo do projecto de investigação
“Transexualidade e transgénero: identidades e expressões de género”, desenvolvido no CIES-ISCTE com financiamento da Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (FCT), pretende-se, assim, com a presente comunicação, contribuir para a discussão de realidades que têm estado
ausentes das ciências sociais em Portugal.
Começaremos, pois, pela tentativa de identificação de pistas que permitam enquadrar e compreender esta ausência da transexualidade e do
transgénero enquanto fenómenos merecedores de estudo por parte da sociologia e das ciências sociais em Portugal.
Por outro lado, numa altura em que no país vizinho entrou recentemente em vigor uma Lei de Identidade de Género que é generalizadamente
reconhecida como uma das (senão a) mais avançadas leis no que se refere aos direitos e protecções das pessoas transexuais, em Portugal
constata-se um “vazio” também neste aspecto. Face a este outro “vazio”, avançaremos para a reconstituição do panorama da transexualidade
e do transgénero em Portugal, não só a nível jurídico, mas também dos cuidados médicos e do movimento associativo onde se incluem – o
LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros).
Palavras-chave: Transexualidade; Transgénero; Género; Identidades; Identidades de género; Expressões de género.

Introdução
Partindo do projecto “Transexualidade e transgénero: identidades e expressões de género”, desenvolvido no CIES-
ISCTE, com financiamento da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pretende-se com a presente comunicação
contribuir para a discussão sobre dois “vazios”, obviamente interligados, existentes na realidade portuguesa acerca dos
fenómenos da transexualidade e do transgénero: um “vazio” na investigação sociológica e, mais genericamente nas ciências
sociais em Portugal, que até agora não se têm dedicado a estas problemáticas; e um “vazio” na própria sociedade em geral,
que torna estes fenómenos e os respectivos sujeitos praticamente invisíveis.
Uma das razões para a invisibilidade é a sistemática confusão em termos de senso comum entre a
transexualidade/transgénero e a homossexualidade. Trata-se efectivamente de realidades diferentes e, como tal, de
problemáticas diferentes: enquanto a primeira se refere à orientação sexual, os fenómenos que aqui nos ocupam remetem
conceptualmente para as identidades de género. A orientação sexual põe em destaque a questão da sexualidade, respeitando
ao sentido da atracção sexual; a identidade de género ao modo como as pessoas se sentem e se expressam em termos de
género. A principal confusão é pois entre homossexualidade e transexualidade ou o transgénero. A homossexualidade refere-
se à atracção sexual por indivíduos do mesmo sexo/género, não existindo geralmente, no caso das pessoas homossexuais
descoincidência entre sexo biológico e género social. Já as pessoas transexuais/transgénero podem ser, tal como as pessoas
cissexuais (ou seja, aquelas em que há uma coincidência entre sexo e género), hetero, homo ou bissexuais.


Investigadora do CIES-ISCTE, doutoranda do Programa de Doutoramento em Sociologia do ISCTE.

84
Interessa pois, antes de prosseguirmos, definir os termos centrais desta comunicação, ou seja, o que é que
entendemos por transexualidade e por transgénero, embora as próprias definições sejam ainda provisórias, já que são um
contributo esperado da pesquisa que nos encontramos a desenvolver.
Partindo de um sentimento aparentemente comum – a descoincidência entre sexo biológico (aferido à nascença pela
verificação dos genitais exteriores) e género desejado, aquilo que se designa nas ciências médicas por “disforia de género” ou
“perturbação da identidade de género”1 – os indivíduos transexuais serão aqueles cujo género é permanentemente sentido
como o oposto ao sexo biológico que lhes foi atribuído à nascença. Isto independentemente da sua situação face à cirurgia de
reatribuição de sexo, ou seja, quer a tenham ou não realizado ou até quer seja ou não desejada.
Por seu turno, os indivíduos transgéneros (ou transgender, como é mais habitual, utilizando o termo em inglês)
serão aqueles cuja relação com o sexo biológico atribuído à nascença não é necessariamente problemática e que sentem e
expressam não o outro género, mas outros fora do exclusivamente masculino e feminino ou não mantêm uma relação estável
com nenhum dos dois. Será o caso, por exemplo, das pessoas cross-dressers, andróginas, drag queens ou drag kings,
travestis, etc.

Transexualidade e transgénero: um “vazio” na investigação sociológica em Portugal


Tendo como objectivo realizar um projecto de investigação sobre identidades transexuais e transgéneros e
começando por uma pesquisa bibliográfica sobre o assunto, uma primeira evidência com que nos confrontamos é a ausência
de trabalhos realizados sobre essa temática na sociologia em Portugal. Já fora do âmbito das ciências sociais, no contexto
científico nacional foi possível colectar, através da análise da Revista da Faculdade de Medicina de Lisboa, oito autores das
ciências médicas que produzem sobre o tema, o que nos leva a questionar se estará a temática da transexualidade e do
transgénero numa fase em que ainda não serão legitimamente reconhecidos como fenómenos sociais, tal como aconteceu
outrora com a homossexualidade.
Se no contexto da produção sociológica internacional o tema tem merecido crescente atenção desde há duas ou três
décadas atrás, existindo já um considerável património de conhecimento respeitante a esta matéria, esse interesse não teve
eco nem paralelo no nosso país2. O défice de produção sociológica nacional é, aliás, extensível ao enfoque analítico que
assenta na problematização da tríade sexo/género/sexualidade, e consequentemente a uma temática, essa já largamente
estudada pela sociologia a nível internacional e que só recentemente emergiu na produção nacional - a identidade ou
orientação sexual. O desenvolvimento nesta última área é de tal ordem que deu até origem a um “tipo de estudos”, os gay e
lésbicos, com consideráveis contributos da sociologia. Justifica-se pois uma reflexão sobre esta ausência na investigação
sociológica em Portugal.
Se traçarmos a genealogia dos estudos que se centram na questão transexual/transgénero na produção sociológica
internacional, descobrimos a sua génese nos estudos sobre mulheres que introduziram a questão do género nas ciências
sociais, mas mais especificamente nos women´s studies sob influência da teoria feminista. Partindo do pressuposto e
consequente contestação do sistema patriarcal dominante nas sociedades onde recai a análise, a teoria feminista vai partilhar
com os autores que se centram nas minorias sexuais modelos analíticos e conceptuais sobre as identidades de género.
Avança-se depois para os “estudos gay e lésbicos” que dão visibilidade à questão das identidades homossexuais e finalmente
para a teoria queer, que trata a totalidade das categorias representadas na sigla LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e
transgéneros (cf. Vale de Almeida, 2004 e Cascais, 2004a). Esta última é a principal responsável por trazer a
transexualidade/transgénero para o campo da análise sociológica, uma vez que parece adequar-se perfeitamente ao seu
estudo, como o demonstra a definição proposta por Annamarie Jagose no seu livro Queer Theory – An Introduction (1996),
“queer descreve os gestos ou modelos analíticos que dramatizam as incoerências nas relações supostamente estáveis entre
sexo cromossomático, género e desejo sexual” (Vale de Almeida, 2004: 91). Fazendo bandeira, a nível social, da diferença e
da multiplicidade e descentramento das identidades a nível teórico, os autores filiados na teoria queer reivindicam-se de uma
atitude pós-estruturalista e pós-modernista com influência sobretudo de Michel Foucault e as suas análises estão claramente
posicionadas epistemologicamente no pólo relativista/construtivista.
Tendo em conta a genealogia dos estudos que se centram na transexualidade e no transgénero que acabámos de
descrever, julgamos que um dos factores que contribuirão para a sua ausência a nível da sociologia em Portugal se prenderá
com a entrada tardia do conceito de género nas ciências sociais nacionais. Valerá então a pena determo-nos um pouco sobre
os tempos do género nas ciências sociais no nosso país.
A história do conceito de género nas ciências sociais surge em paralelo com a constatação das desigualdades entre
homens e mulheres e com a reivindicação de uma nova situação para a mulher na sequência do debate suscitado pela segunda
vaga do feminismo (a do activismo dos anos 60 e 70 do século XX) e portanto foram tradicionalmente as mulheres o objecto

1
Tal como consta do DSM IV.
2
A única abordagem de que temos conhecimento, no âmbito das ciências sociais, especificamente sobre transexualidade e transgénero em Portugal, é a da
antropóloga brasileira Juliana Jayme (2001) que, na sua tese de doutoramento da Universidade Estadual de Campinas, toma Lisboa como referência comparativa
em relação a Belo Horizonte. Já no plano dos movimentos sociais, a socióloga Ana Cristina Santos tem desenvolvido trabalhos sobre o movimento LGBT no
nosso país (Santos, 2003, 2004 e 2005).

85
de estudo e o referente empírico quando se falava de género, situação que só veio a ser alterada muito recentemente com a
descoberta pelas ciências sociais da “masculinidade” e das minorias sexuais.
A própria entrada do conceito de género é tardia no panorama português das ciências sociais, e também da
sociologia, por comparação sobretudo com o da produção científica de tradição anglo-americana e francesa. Tendo-se
difundido rapidamente na sociologia logo no início dos anos 1970 (com Ann Oakley em 1972), ele permaneceu nas ciências
sociais em Portugal, segundo Lígia Amâncio que traça a história do conceito no nosso país, em “estado de latência” até à
década de 1980 (2003:691). É, de facto, apenas a partir da segunda metade de 1980 que conseguimos colectar referências na
sociologia, sendo que a esmagadora maioria delas se situa já na década seguinte. Ana Nunes de Almeida num artigo de 1986,
que se debruçava sobre as mulheres como sujeito e objecto de investigação nas ciências sociais, dava conta desse défice,
considerando que o aumento de mulheres investigadoras não estava a ter correspondência, pelo menos no Instituto de
Ciências Sociais sobre o qual recaía a análise, na produção sociológica sobre o tema, retirando conclusões como a de que “a
mulher como objecto de investigação está praticamente ausente da produção científica do ICS” e constitui “um objecto que
prima pela sua invisibilidade” (1986:982).
Na procura de explicações para essa entrada tardia do género nas ciências sociais no nosso país, Lígia Amâncio
avança essencialmente três ordens de razões. A primeira terá que ver com o apagamento da memória colectiva portuguesa
dos movimentos feministas surgidos durante a I República e com as características do modelo feminino ideológico que lhe
sucedeu, o que fez com que os movimentos de mulheres que foram aparecendo durante os anos 70 não tivessem a força que
conseguiram noutros países e que impulsionaram a entrada do conceito no léxico das ciências sociais. A segunda remete para
o baixo nível de escolaridade da população portuguesa, e particularmente das mulheres, que raramente chegavam ao ensino
superior, não tendo impulsionando deste modo os debates académicos e os activismos sobre as desigualdades entre homens e
mulheres que tiveram lugar noutros países. Por último, o desenvolvimento ainda bastante recente das ciências sociais em
Portugal, já ulterior à tal vaga do feminismo activista dos anos 60 e 70 do século XX, o qual desempenhou um papel
estratégico na conceptualização do género nas ciências sociais e, não menos importante, as dificuldades financeiras crónicas
com que se confrontava a investigação científica até aos anos 19903, que “não era particularmente encorajadora de iniciativas
críticas, ao juntar a competição pelos escassos recursos disponíveis à competição pela institucionalização de territórios e
identidades profissionais” (2003:691).
Quando se dá a melhoria das condições, tanto ao nível dos recursos humanos com o aumento do número de
mulheres na investigação, quanto ao nível dos recursos financeiros, com um maior investimento na investigação nas ciências
sociais em Portugal, e neste caso particularmente da sociologia, surgem então as equipas de investigadores (quase
exclusivamente mulheres) e os projectos de investigação sobre a diferenciação de papéis entre homens e mulheres, sobretudo
na família e no trabalho. O conjunto de trabalhos produzidos tem já significativa expressão no património da sociologia
nacional.
A entrada tardia do conceito de género na sociologia em Portugal, bem como a necessidade de demarcação das
ciências sociais do campo político, dada a sua recentividade e consequente necessidade de legitimação, são factores, entre
outros, que contribuirão para explicar porque é que não se verifica na sociologia portuguesa o desenvolvimento dos estudos
sobre mulheres com influência da teoria feminista, à semelhança do que acontece noutros países. Tendo em conta a
genealogia dos estudos que se centram na transexualidade e no transgénero já descrita, podemos colocar a hipótese de que
este não desenvolvimento na génese tenha condicionado todo o percurso seguinte. Como também já foi referido, a teoria
feminista é uma forte influência nos estudos sobre minorias sexuais, partilhando tanto quadros analíticos como até projectos
políticos.
É de realçar quanto a este aspecto a excepção que constituem os trabalhos de Virgínia Ferreira. Esta autora, que
trata a questão das mulheres sobretudo na dimensão da vida profissional, está próxima da influência das autoras feministas e
de uma perspectiva epistemológica relativista e construtivista4. É também a autora que no campo da produção sociológica
mais tem desenvolvido a problematização do conceito de género, nomeadamente a sua relação com o de sexo. Quanto a este
aspecto há que referir a ausência na produção sociológica nacional de trabalhos que tomem a identidade de género como
objecto principal das pesquisas como acontece em disciplinas que lhes são próximas. Casos da antropologia, com Miguel
Vale de Almeida que tem desenvolvido estudos sobre a “masculinidade”5 e de Lígia Amâncio na psicologia social, que
investiga a “construção social do género”6.
Tendo em conta este “atraso” é preciso contudo referir que a sociologia nacional parece estar a encetar o seu
caminho no que concerne à temática da orientação e identidade sexual, como o demonstra a contabilização em 20067 de uma
tese de mestrado e em 2008 de uma tese de doutoramento8 sobre a temática.

3
Em 1986, Ana Nunes de Almeida defendia precisamente ser o financiamento a principal condição para o incremento dos estudos sobre as mulheres em Portugal
(cf. Almeida, 1986)
4
A autora propõe que se elimine o género do léxico da sociologia e que se substitua pelo sexo, uma vez que “devemos adoptar uma conceptualização em que o
sexo não é biológico mas culturalmente construído como sexo biossocial, em que o sexo aparece já como parte dos discursos sobre as identidades e os
comportamentos.” (Ferreira, 2003: 99).
5
Vale de Almeida, M. (1995), Senhores de Si. Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade, Lisboa: Fim de Século.
6
Amâncio, L. (1993), “Género: Representações e Identidades. Análise das representações do masculino e do feminino e a sua articulação com as identidades”,
Sociologia. Problemas e Práticas, 14, 127-140 e Amâncio, L. (1998), Masculino e Feminino – A Construção Social da Diferença, Porto: Afrontamento/ICS.
7
Silva, F. V. (2006), Família, individualização e experiências da homossexualidade em Portugal, Tese de Mestrado, Lisboa, ICS.

86
Outras razões da ausência prender-se-ão precisamente com o outro “vazio”, a invisibilidade social da problemática,
remetendo para a velha questão entre problema social e problema sociológico. Acresce a isto a inexistência em Portugal de
estudos vindos “de dentro” (na tradição dos estudos de género) que foram grandes impulsionadores do desenvolvimento do
tema sobretudo nos EUA9, mas também na Europa, onde se salienta o Reino Unido10, mas incluindo, por exemplo, a nossa
vizinha Espanha11.

Transexualidade e transgénero: um “vazio” social em Portugal


A invisibilidade deste fenómeno em Portugal está bem patente no facto de não existirem dados disponíveis –
oficiais ou não – que nos permitam saber quantos indivíduos transexuais e transgéneros existem em Portugal. Se a obtenção
do número é difícil para os transexuais, será quase impossível consegui-lo para os transgéneros, dado ficarem fora dos
registos médicos.
Quanto aos transexuais, o número estimado pelo Hospital Júlio de Matos, um dos estabelecimentos de saúde que
acompanham pessoas transexuais, é de 210: 157 de mulher para homem e 53 de homem para mulher. Este rácio é curioso,
quer porque vai contra a nossa percepção - apesar de pouco visíveis quando aparecem são geralmente mulheres transexuais,
ou seja, homens biológicos que se sentem e se expressam como mulheres -, quer porque contraria o sentido do rácio (embora
considerado normal na bacia mediterrânica) - na esmagadora maioria dos países o rácio calculado é de sentido contrário.
Segundo os Standards of Care a prevalência é de 1 para 11.900 de homem para mulher e de 1 para 30.400 de mulher para
homem. Aliás, actualmente começa a surgir a hipótese na literatura sobre o tema, de que o rácio seja bem mais proporcionado
que as estimativas médicas usualmente avançadas, atribuindo-se o pender para um ou outro lado mais à visibilidade do que à
realidade. Por exemplo, em alguma literatura internacional começa a surgir a ideia de que os transexuais masculinos estão
agora a “sair do armário”.
Ouvidas num debate sobre transexualidade em 2007, a equipa do Hospital Júlio de Matos referiu contar no seu
ficheiro com 70 indivíduos e a equipa de Santa Maria avançou com cerca de cinco dezenas de pessoas seguidas na última
década12. No entanto, pode haver sobreposições, pois para completar um processo de transição os indivíduos podem ter que
passar por mais do que um estabelecimento hospitalar. Podem também existir desistências e novas inscrições noutro
estabelecimento.
Relativamente às características sociais destas pessoas, o vazio continua, como se esperaria, a ser quase total. Existe
um único inquérito realizado em Portugal, em 1998, da responsabilidade da ILGA Portugal, financiado pela Comissão
Nacional de Luta contra a Sida, com uma amostra de 50 indivíduos transexuais, mas cujos indicadores incidem quase
exclusivamente na área da saúde. Alguns dados conseguidos através das parcas caracterizações sociais realizados nos artigos
das ciências médicas estarão longe da representatividade, mesmo para o caso das pessoas transexuais.
Daí a necessidade e a utilidade de levarmos a cabo um inquérito por questionário que nos permita ter, pelo menos
uma aproximação do perfil social das pessoas transexuais e transgéneros no nosso país13.

Legislação
Não existe legislação específica referente à transexualidade e ao transgénero em Portugal, nem qualquer menção na
legislação existente à transexualidade, ao transgénero ou à identidade de género.
Esta ausência contrasta com o panorama existente num conjunto de países europeus, que começaram a legislar
sobre a matéria já desde o início da década de 1970, caso da Suécia (1972), tendo seguimento na década seguinte na
Alemanha (1980), Itália (1982), Holanda (1985) e Turquia (1988) e na década de 1990 na Áustria (1993). Já neste século
juntaram-se a este grupo de países a Finlândia (2002) e o Reino Unido (2004). Muito recentemente, mesmo aqui ao lado, na
vizinha Espanha entrou em vigor aquela que é considerada, a par do Gender Recognition Act do Reino Unido, como a mais
avançada lei no que se refere aos direitos e protecções das pessoas transexuais, a Ley de Identidad de Género (2007). Ambas
admitem a alteração de nome e de menção ao sexo na ausência de cirurgia de reatribuição de sexo, desde que exista um
diagnóstico médico que confirme a “disforia de género”. Apesar deste último aspecto ser objecto de contestação, dado que
este quadro legislativo pressupõe uma patologização das pessoas que não se identificam com o sexo que lhe foi atribuído à
nascença e não as toma como autónomas e auto-suficientes na tomada de decisão quanto à sua identidade de género, estas
leis constituem indubitavelmente uma subida de patamar no reconhecimento da identidade de género dos indivíduos.

8 Brandão, A. M. (2008), “E se tu fosses um rapaz?”: homo-erotismo feminino e construção social da identidade, Tese de Doutoramento em Sociologia, Braga,
Universidade do Minho.
9
Com nomes como Dallas Denny, Leslie Feinberg, Viviane K. Namast, entre muitos outros.
10
Com nomes como Stephen Whittle e Lewis Turner.
11
Com nomes como Norma Mejía que editou recentemente a sua tese de doutoramento: Mejía, N. (2006), Transgenderismos. Una experiencia transexual, desde
la perspectiva antropológica, Barcelona: Edicion Bellaterra.
12
Primeiro debate organizado pela associação ILGA Portugal especificamente sobre transexualidade em Janeiro de 2007.
13
Este inquérito está neste momento em curso no âmbito do projecto financiado pela FCT já referido.

87
Não obstante a situação descrita, há pessoas transexuais em Portugal que já conseguiram a alteração do sexo no
assento de nascimento. Importa pois perceber como é que, na ausência de legislação específica, se processa a alteração legal
da menção ao sexo no nosso país.
A classificação de uma pessoa como sendo homem ou mulher resulta das menções constantes no assento de
nascimento. Em Portugal não existe qualquer dispositivo legal específico que permita a alteração do sexo no assento de
nascimento, mas também não existe qualquer preceito legal que o impeça. Face à ausência de legislação, esta acção tem que
seguir a forma de processo comum de declaração ordinário, tendo a pessoa transexual que peticionar ao Tribunal que este crie
uma norma para cada caso concreto.
O processo tem pois que ter a forma judicial, e não a de mero acto administrativo como acontece nos países em que
esta situação está prevista e acautelada legalmente, com consequências em termos dos montantes financeiros e temporais
dispendidos e também de ansiedade, por parte dos requerentes que não têm à partida garantia de ver uma deliberação
favorável para o seu pedido.
Consultada a jurisprudência constata-se que as decisões têm sido constantes no sentido da autorização, desde que se
verifique um conjunto de pressupostos, que, para além da não fundamentação jurídica, são bem mais restritivos do que os
contemplados nas leis de identidade de género existentes. Alguns exemplos são: não ser casado/a, não ter filhos/as, ter
realizado cirurgia de reatribuição de sexo ou não estar em condições de procriar (ou seja, ser estéril).
Quando as pessoas não se pretendem submeter à cirurgia genital ou ainda não a concretizaram, podem pedir para
alterar o nome (não a menção ao sexo) para um dos poucos nomes neutros existentes no índice onomástico. Esta
possibilidade fazia com que as pessoas nesta situação conseguissem passar como “membros legítimos” do género desejado,
na maioria das situações, em que a identificação se faz mediante apresentação do Bilhete de Identidade. No entanto, o novo
cartão de identificação nacional contém, ao contrário do seu antecessor, a menção ao sexo, o que vem colocar em causa a
eficácia do recurso a esta “estratégia” para as pessoas transexuais.
Há países em que a identidade de género é explicitamente referida no que concerne à legislação anti-discriminação.
Em Portugal isso foi recentemente conseguido na revisão do Código Penal mas para a “orientação sexual”. O novo Código
Penal acrescentou assim a “orientação sexual” como motivação particular para a discriminação, a par da raça, do sexo e da
religião, no Artigo 240º e no Artigo 132º nos “crimes contra a vida”, os chamados “crimes de ódio”14 . Resta agora esperar
que a confusão que geralmente se faz entre estas duas problemáticas, a que nos referimos logo no início desta comunicação,
resulte aqui a favor da problemática da identidade de género. Não deixa, contudo, de ser um indicador, quer da perpetuação
da invisibilidade da temática, quer da pouca força reivindicativa dos indivíduos transexuais e transgéneros, de que falaremos
ainda mais adiante nesta comunicação.
Em Novembro passado activistas LGBT, entre os quais portugueses, reuniram em Estrasburgo com o Comissário
para os Direitos Humanos do Conselho da Europa para debater as discriminações e os direitos das pessoas transexuais na
Europa, onde foi reiterada a necessidade de em todos os países existirem leis especificamente relacionadas com a identidade
de género.

Cuidados clínicos
Até 1995, e contrariando uma recomendação de 1989 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que
recomendava aos Estados Membros que legislassem de modo a que se reconhecesse às pessoas transexuais o direito ao
processo de transição do sexo atribuído ao nascimento para o que corresponde à sua identidade de género15, as cirurgias de
reatribuição de sexo eram proibidas em Portugal pela Ordem dos Médicos.
A partir dessa data a proibição foi levantada. Os tratamentos médicos são acolhidos pelo Serviço Nacional de Saúde
no que respeita ao seguimento psicológico, hormonal e cirúrgico. No entanto, as pessoas transexuais consideram os serviços
demorados e burocráticos. Embora sigam os Standards of Care da World Professional Association for Transgender Health
(WPATH), documento de referência a nível internacional no que concerne às práticas clínicas das pessoas transexuais, a
realidade portuguesa tem algumas especificidades. Uma delas é a necessidade de avaliação pela Ordem dos Médicos do
pedido de realização da cirurgia de reatribuição de sexo, o que, segundo foi possível apurar, não acontece em mais nenhum
país onde a cirurgia é autorizada.
A primeira etapa do chamado “processo de transição” corresponde ao acompanhamento psicológico, no decurso do
qual irá ser produzido o diagnóstico referente à “perturbação de identidade de género”. Este pode decorrer nas consultas de
Psicoterapia Comportamental do Hospital de Santa Maria ou Hospital Júlio de Matos ou ainda nos Hospitais da Universidade
de Coimbra, por médicos e/ou psicólogos. De referir que não existe especialidade de sexologia na medicina nacional. Após a
confirmação do diagnóstico de “perturbação de identidade de género” pelos profissionais responsáveis pelo
acompanhamento, este tem que ser seguido de uma segunda opinião de um médico independente.

14
Alterações publicadas no Diário da República, 1ª Série, nº 170 de 04/09/2007, pp. 6181-6258.
15
Rcomendação n.º 1117 da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, de 29 de Julho de 1989.

88
Terminada a fase de diagnóstico interpõe-se o pedido de autorização ao Bastonário da Ordem dos Médicos para a
realização da cirurgia de reatribuição de sexo, bem como se passa à fase da endocrinologia, ou seja, ao tratamento hormonal,
que altera aspectos relativos à aparência (timbre de voz, pilosidade, etc.).
A fase das cirurgias, que apenas se realizam no Hospital de Santa Maria, no Serviço de Cirurgia Plástica e por um
único cirurgião plástico, podem incluir mamoplastia (quando necessário, uma vez que a toma de estrogéneos já tem como
efeito o crescimento do peito), a mastectomia (sempre), a extracção dos órgão reprodutores, a vaginoplastia e os vários
procedimentos cirúrgicos necessários no caso da passagem da vagina para o pénis.
Este processo não tem tempos máximos estipulados, pelo que desde os aconselháveis par de anos tem-se alargado,
no caso de algumas pessoas, até a meia dúzia de anos. Para além da morosidade, que se prenderá com vários factores, desde a
tal autorização da Ordem dos Médicos até à existência de uma única sala de cirurgia num único hospital em Portugal que está
reservada para este tipo de procedimentos apenas uma vez por semana e que conta com um único cirurgião, outra
reivindicação das pessoas incluídas no que concerne ao processo de transição é o facto de não estarem incluídas ao abrigo do
SNS procedimentos como por exemplo a depilação definitiva, no caso das mulheres transexuais.

Movimento associativo
A temática transexual e transgénero insere-se no movimento associativo LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transgéneros, o que significa que a problemática da identidade de género surge num “pacote” com a orientação sexual.
Embora não se saiba ao certo quantos pessoas transexuais e transgénero existem em Portugal elas serão por certo, tal como
acontece nos restantes países, bastante minoritárias relativamente às pessoas que têm uma orientação sexual fora da
heterossexual, sendo por isso uma minoria dentro de uma minoria. Talvez por isso a sua voz dentro do movimento tem sido,
proporcionalmente ao seu número, também bastante minoritária. Arriscamo-nos até a dizer que, pelo menos até ao início de
2006, o “T” era frequentemente apenas um acessório na sigla LGBT.
Existiu de 2002 a final de 2007 uma associação especificamente dirigida à temática da transexualidade e do
transgénero – a ªt.* - Associação para o Estudo e Defesa do Direito à Identidade de Género16. No entanto, pelo menos nos
anos mais recentes, as suas tomadas de posição públicas apareciam frequentemente em parceria com outra associação LGBT
– as Panteras Rosa –, o que denota alguma fragilidade por parte desta associação. Viria a extinguir-se em Dezembro de 2007
”em virtude da sua actual inactividade”17. Esta situação terá tido a ver com a deslocação para o estrangeiro da fundadora e
presidente de sempre da associação, e da dificuldade em encontrar uma pessoa que lhe sucedesse na presidência, o que é
igualmente indiciador das dificuldades de organização colectiva das pessoas com estas expressões de género. Não nos
esqueçamos que estas pessoas são vítimas de discriminação, das mais subtis às mais brutais (como o comprova o assassínio
de Gisberta em 2006 e, mais recentemente, o de Luna em 2008) e que o “dar a cara” será um acto que pode acarretar
significativas consequências na vida dessas pessoas.
Parece-nos que o “despertar” do movimento LGBT para as questões de identidade de género terá acontecido após o
trágico acontecimento que foi a morte de Gisberta, cidadã transexual brasileira a viver há longos anos em Portugal, em
Fevereiro de 2006 e que, provavelmente pelo barbaridade do episódio, teve grande eco na comunicação social e acabaria por
motivar diversas iniciativas por parte do movimento. No entanto, a reacção do movimento associativo em geral, exceptuando
a associação especificamente dedicada às questões da identidade de género, ofereceu a possibilidade de constatar o seu
desconhecimento acerca da realidade da transexualidade. Assim, imediatamente após a notícia da morte de Gisberta,
surgiram comunicados das associações que se referiam ao crime como um crime motivado pela homofobia, sem menção à
transfobia, ou, o que será ainda mais ilustrativo, a qualificação da vítima como “travesti” ou até “homem travesti”, com o
consequente tratamento no masculino.
A partir dessa altura até ao presente momento algumas alterações têm vindo a acontecer a nível da atenção que o
movimento dedica às questões da identidade de género. De facto, sobretudo a partir de 2007 foi possível ir assistindo a uma
sucessão de iniciativas especificamente sobre transexualidade e transgénero levadas a cabo pelas diversas associações LGBT
nacionais, como por exemplo, a colaboração das Panteras Rosa com a ªt* nas múltiplas iniciativas que tiveram que ver com o
assassínio das duas pessoas transexuais; dois debates realizados em 2007 pela Ilga Portugal, especificamente sobre as
questões da transexualidade com a participação das equipas médicas envolvidas no processo de transição; a realização de um
colóquio sobre “Transexualidade em Portugal”, organizado pela Opus Gay no âmbito do encerramento do Ano Europeu da
Igualdade de Oportunidades para Tod@s; a acção anti-psiquiatrização em Lisboa: “Doença é o binarismo de género”,
convocada pelas Pantera Rosa em Junho de 2008.
Esse crescendo de atenção chegou a ter reflexos mesmo a nível organizativo interno das associações, como se pode
constatar com a criação em Abril de 2007 de um Grupo de Interesse sobre Transexualidade dentro da maior associação
LGBT portuguesa, a ILGA Portugal: o GRIT – Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade.

16
Cf. o sítio da associação em http://a-trans.planetaclix.pt/.

89
Tanto a Ilga Portugal, precisamente através do GRIT18, como a Opus Gay19 conceberam propostas para uma lei de
identidade de género.
Para concluir, na área política, mas que extrapola o próprio movimento associativo LGBT, é de referir que, apesar
de ténues, e ainda sem qualquer efeito efectivo, vão contudo havendo alguns indícios de preenchimento deste vazio que aqui
nos tem ocupado. Assim, em Fevereiro de 2008 assistiu-se a uma audiência parlamentar, promovida pelo Bloco de Esquerda,
sobre a realidade das pessoas transexuais em Portugal, com a participação de representantes do movimento associativo e de
pessoas transexuais. Já em Junho do mesmo ano o mesmo partido inclui uma mesa redonda sobre transexualidade e
transgenderismo no Fórum Sem Medos – Jornadas contra a homofobia. Continuando na área político-partidária, a Moção
Global de Estratégia “Agir por + Igualdade”, que têm como primeiro subscritor o actual líder da Juventude Socialista (JS),
que foi eleito em Julho de 2008, integra o compromisso de a JS promover a apresentação de um projecto de lei sobre
identidade de género, permitindo às pessoas transexuais a mudança de nome e de sexo no registo civil, “salvaguardando o
direito fundamental à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade”.

Bibliografia
Almeida, A. N. (1986), “As mulheres e as ciências sociais: os sujeitos e os objectos de investigação”, Análise Social, 94, Vol.
XXII, 979-985.
Almeida, A. N. (1996), “Desafios para a mudança: actores, práticas e processos sociais”, Sociologia – Problemas e Práticas,
20, 105-112.
Almeida, A. N. & outros (1998), “Relações familiares: mudança e diversidade” em J. M. Viegas & A. F. da Costa (orgs.),
Portugal, que Modernidade?, Oeiras: Celta.
Amâncio, L. (2003), “O género no discurso das ciências sociais”, Análise Social, 168, Vol. XXXVIII, 687-714.
Cascais, A. F. (2004), “Apresentação”, em A. F. Cascais (org.), Indisciplinar a Teoria. Estudos Gays, Lésbicos e Queer, s/l:
Fenda, (pp. 9-20).
Cascais, A. F. (2004a), “Um nome que seja seu: dos estudos gays e lésbicos à teoria queer”, em A. F. Cascais (org.),
Indisciplinar a Teoria. Estudos Gays, Lésbicos e Queer, s/l: Fenda, (pp. 21-89).
Ferreira, V. C. (2003), Relações Sociais de Sexo e Segregação do Emprego: Uma Análise da Feminização dos Escritórios em
Portugal, Dissertação de Doutoramento em Sociologia, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Jayme, J. G. (2001), Travestis, Transformistas, Drag-queens, Transexuais: Personagens e Máscaras no Cotidiano de Belo
Horizonte e Lisboa, Tese de Doutoramento, Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas.
Santos, A. C. (2003), “Orientação sexual em Portugal: para uma emancipação”, em B. S. Santos (org.), Reconhecer para
Libertar: Os caminhos do Cosmopolitismo Multicultural, Colecção Reinventar a Emancipação Social, 3, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira/Record, (pp. 335-379). Uma versão não final deste texto pode ser consultada em
htpp://www.ces.fe.uc.pt/emancipa.
Santos, A. C. (2004), “Direitos humanos e minorias sexuais em Portugal: o jurídico ao serviço de um novo movimento
social”, em A. F. Cascais (org.), Indisciplinar a Teoria. Estudos Gays, Lésbicos e Queer, s/l: Fenda, (pp. 143-182).
Santos, A. C. (2005), A Lei do Desejo. Direitos Humanos e Minorias Sexuais em Portugal, Porto: Afrontamento.
Vale de Almeida, M. (2004), “Teoria queer e a contestação da categoria ‘género’”, em A. F. Cascais (org.), Indisciplinar a
Teoria. Estudos Gays, Lésbicos e Queer, s/l: Fenda, (pp. 91-98).
http://www.pfc.org.uk/ (site oficial da associação Press For Change)

18
Pode ser consultada em www.ilga-portugal.pt/pdfs/LIG.pdf.
19
Pode ser consultada em www.opusgay.org/Transgender.html.

90
Em conversa com os amigos: a importância do grupo de pares na construção da
sexualidade
Cristina Marques
CIES/ISCTE
[email protected]

Resumo: A comunicação sobre sexualidade é um processo dinâmico de troca e (re)construção de mensagens, feito continuamente, quer de
forma mais formal, intencionais e visíveis, como de forma mais informal, subtil e descontínua, sendo também mais difícil de captar.
Ora, actualmente o grupo de amigos ganha cada vez mais importância. Os jovens tornam-se mais autónomos, passam menos tempo com os
elementos da sua família e mais com os amigos. Actualmente, as primeiras relações amorosas e sexuais tendem a acontecer aquando da
inserção dos jovens numa rede de sociabilidade. A título de exemplo, a influência dos amigos do mesmo sexo na primeira relação sexual
genital é forte, especialmente para as raparigas.
Nesta comunicação iremos apresentar alguns resultados de uma pesquisa em curso sobre as trajectórias sexuais dos jovens adultos para a
conjugalidade e para a parentalidade. Os dados foram obtidos através de entrevistas biográficas, realizadas em Leiria, a jovens entre os 18 e
os 29 anos, pertencentes a diferentes meios sociais. Pretendemos focar a análise na comunicação que os jovens têm com o grupo de pares no
que concerne a sexualidade. Procuramos responder a algumas questões centrais: qual a importância do grupo de amigos para os jovens? Será
que estes falam sobre sexualidade? Que influência poderão ter os amigos nas práticas e representações dos jovens sobre a sexualidade?

Introdução
A comunicação sobre sexualidade é um processo dinâmico de troca e (re)construção de mensagens, feito
continuamente, quer de forma mais formal, intencionais e visíveis, como de forma mais informal, subtil e descontínua, sendo
também mais difícil de captar.
Ora, actualmente o grupo de amigos ganha cada vez mais importância. Os jovens tornam-se mais autónomos,
passam menos tempo com os elementos da sua família e mais com os amigos. Actualmente, as primeiras relações amorosas e
sexuais tendem a acontecer aquando da inserção dos jovens numa rede de sociabilidade. A título de exemplo, a influência dos
amigos do mesmo sexo na primeira relação sexual genital é forte, especialmente para as raparigas.
Nesta comunicação iremos apresentar alguns resultados de uma pesquisa em curso sobre as trajectórias sexuais dos
jovens adultos para a conjugalidade e para a parentalidade. Os dados foram obtidos através de entrevistas biográficas,
realizadas em Leiria, a 19 jovens entre os 18 e os 29 anos, pertencentes a diferentes meios sociais. Pretendemos focar a
análise na comunicação que os jovens têm com o grupo de pares no que concerne a sexualidade. Procuramos responder a
algumas questões centrais: qual a importância do grupo de amigos para os jovens? Será que estes falam sobre sexualidade?
Que influência poderão ter os amigos nas práticas e representações dos jovens sobre a sexualidade?

Os amigos
As redes de relacionamento sociais, ou seja o “conjunto de laços e relações, de diversos tipos e intensidades, que
ligam um actor social a outros actores, bem como os eventuais laços desses outros actores entre si” (Costa et al, 1990: p. 198)
são um aspecto central da vida dos indivíduos. As sociabilidades1 permeiam estas redes de relacionamento social, sendo que
as sociabilidades de juventude exprimem-se dominantemente nas relações de amizade (idem).
A amizade providencia uma rede de suporte e segurança particularmente importante em tempos de rápida mudança
(Weeks, 1997). A amizade permite desenvolver novos padrões de intimidade e de compromisso, baseados na escolha e em
algum grau na igualdade. Os amigos podem providenciar apoio emocional e material, afirmando também a identidade e a
pertença (idem).
Os grupos de pares, na adolescência e na juventude, são diferentes entre si, tanto na sua origem social como na
identidade pessoal dos seus elementos, existem diferentes subculturas locais, familiares e de classes que tornam estas
experiências heterogéneas, contudo são semelhantes no seu interior (Saraceno, 1997). O grupo de jovens tem uma função
socializante, complementar à função da escola e da família assim como um papel funcional e integrador; que “permite ao
adolescente sair do enquadramento familiar e aceder à sociedade, onde porá em prática normas e valores que interiorizou”.
(Segalen, 1998: p. 202). Na sociedade ocidental, nesta fase da vida, o grupo de amigos ganha cada vez mais importância. Os
jovens tornam-se mais autónomos, passam menos tempo com os elementos da sua família e mais com os amigos; desejam
tomar as suas próprias decisões e fazer as suas escolhas sobre diferentes aspectos da sua vida (Vilar, 2001). As culturas dos
jovens formam-se a partir das redes de sociabilidade, importantes a nível psicológico e emocional e ao nível da formação de
identidades juvenis (Machado Pais, 1996). O grupo de amigos assegura uma certa identificação entre os vários elementos que
os constituem (ex. gostos musicais ou literários comuns), funcionando como contextos coerentes de estruturação dos tempos

1
As sociabilidades são contactos “não anónimos, repetidos e duradouros, que se estabelecem no quadro de distintas referências, como as familiares, as de
amizade, as profissionais, as de vizinhança, as de associação (Costa et al, 1990: p. 198);

91
quotidianos dos jovens que os integram e das actividades que praticam de forma compartilhada. O grupo de amigos pode
servir como protector das diversas socializações a que os jovens estão sujeitos, protegendo deste modo as suas identidades
individuais (Machado Pais, 1993).
“Os tempos quotidianos dos jovens encontram-se fortemente associados a práticas de sociabilidade e lazer que se
desenvolvem no quadro de determinadas redes grupais. Estas, por sua vez, encontram-se associadas a identidades
juvenis que parecem definir-se, por contraposição, umas em relação às outras...as imagens que os grupos de jovens
formam de si mesmos e dos outros parecem orientar as relações que se estabelecem entre esses grupos.” (Machado
Pais, 1993: p. 93)

Os grupos de jovens aparecem muitas vezes associadas a fachadas grupais, designação que implica distinções
culturais identitárias; ao identificarem-se por sinais, os jovens apresentam representações rígidas e hostis contra outros grupos
de jovens. O vestuário pode, a título de exemplo, constituir-se como a afirmação, por parte dos jovens, de um estilo de vida;
como um meio de afirmação e de diferenciação de status. A construção das fachadas nos grupos de jovens assenta em
diversos elementos, como na imagem (roupas, adornos, cabelo), no comportamento (expressão corporal2, porte) ou na gíria,
no calão (idem).
É também no grupo de amigos, compostos frequentemente por rapazes e raparigas, que os jovens ensaiam as suas
primeiras práticas a nível sexual, partilham as suas experiências, desabafam sobre os seus problemas, tiram dúvidas, que de
outro modo poderiam ficar por resolver.

Individualização, mudança e sexualidade


Os resultados de diversas pesquisas apontam para as profundas transformações que têm vindo a ocorrer, desde os
anos 60, do século XX, no que diz respeito à família, ao género e à sexualidade. Tem-se vindo a assistir a uma
democratização da vida íntima, a uma pluralização da vida familiar, ao reconhecimento da diversidade sexual, à proliferação
de histórias sexuais, entre outros aspectos, embora estes movimentos não sejam iguais em todo o mundo ou acessíveis a todas
as pessoas (Weeks, 2007). Actualmente, no mundo ocidental, existe uma pluraridade de crenças e de comportamentos
relativos às práticas sexuais e padrões de relações que reflectem diferenças geraccionais, culturais, étnicas e políticas (Weeks,
2003 [1996]).
Nos dias de hoje, existe uma tendência para a democratização das relações. O reclamar de uma cidadania sexual faz
parte da combinação de várias mudanças culturais que se vão sobrepondo às relações hierárquicas tradicionais, expressas, por
exemplo, na destradicionalização, no egualitarismo e na autonomia (Weeks, 1998).
No mundo ocidental temos vindo a assistir a uma profunda mudança das formas e valores tradicionais motivadas
pelas rápidas mudanças económicas, sociais e culturais, existentes a uma escala global. Estas mudanças têm implicações nas
relações familiares e nas distinções tradicionais entre homens e mulheres, entre heterossexualidade e homossexualidade, entre
vida pública e privada. Existem então fortes mudanças nos padrões herdados da vida íntima, estando as mulheres,
geralmente, na vanguarda destas mudanças (idem).
Embora se mantenham as desigualdades entre homens e mulheres, as relações igualitárias tornaram-se os modelos
pelos quais os indivíduos medem as suas vidas pessoais. No centro desta mudança está a crença de que as relações amorosas
e o companheirismo devem fazer parte de uma escolha pessoal e não de uma combinação ou da tradição. Passa a existir uma
nova contingência nas relações, muitas vezes expressa em termos de incerteza e ansiedade na vida íntima, mesmo quando o
ideal possa continuar a ser um compromisso para toda a vida (Weeks, 1998); as pessoas apenas ficam juntas desde que as
relações satisfaçam as necessidades do parceiro. São as relações puras de Giddens, baseadas no amor confluente o que
implica uma abertura ao outro dependente da igualdade e na confiança mútua, o que implica que as relações têm que ser
baseadas na negociação entre parceiros.
Num período de modernidade, a identidade pessoal torna-se reflexivamente organizada. O projecto reflexivo do self
consiste na manutenção de narrativas biográficas coerentes, mas continuamente revistas, num contexto onde existem
múltiplas escolhas. A escolha de um estilo de vida torna-se cada vez mais importante na constituição da identidade pessoal de
cada um de nós e na nossa actividade diária (Giddens, 1991: p. 5).
Em condições de modernidade avançada, os laços sexuais duráveis, os casamentos e as relações de amizade tendem
a aproximar-se das relações puras. Estas tornam-se também um elementos essencial do projecto reflexivo do eu (idem).
A relação pura não está ancorada em condições externas da vida económica ou social como as relações pessoais dos
contextos tradicionais. A relação é procurada apenas pelo é capaz de dar aos parceiros nela envolvidos, sendo reflexivamente
organizada, de forma aberta e contínua. O compromisso tem um papel essencial na relação pura, sendo o amor uma forma de
compromisso; mas este compromisso implica que o indivíduo decida comprometer-se e que haja reciprocidade na relação. A
relação pura assenta também na existência de uma intimidade, e consequentemente, uma preocupação com a qualidade da
relação e algum grau de privacidade da parte de cada parceiro. A abertura ao outro faz parte das novas formas de confiança
que a relação pura exige. Na relação pura a identidade pessoal é (re)negociada através de processos de auto-exploração e de
desenvolvimento de uma intimidade com o outro, criando histórias partilhadas.

2
Sobre as questões do corpo ver M. V. Almeida (org.) (1996) “O corpo presente: Treze reflexões antropológicas sobre o corpo”, Celta editora, Oeiras.

92
As relações puras formam-se principalmente nos domínios da sexualidade, do casamento e da amizade. Mas o
contexto e as diferentes posições socioeconómicas influenciam a extensão das possibilidades de transformação das esferas
intimas (Giddens, 1991).
A abertura contemporânea das possibilidades em matéria de sexualidade está relacionada com dois fenómenos mais
gerais: a diversificação e a individualização de trajectórias conjugais e afectivas e o declínio da regulação da sexualidade por
princípios absolutos (Bozon, 2005 [2002]: p. 42).
As biografias conjugais e afectivas dos indivíduos diversificaram-se e fragmentaram-se.
A duração do período em que os indivíduos são sexualmente activos alongou-se, devido, por um lado, a uma maior
precocidade na juventude, e, por outro lado, a um prolongamento da actividade sexual até idades mais avançadas (idem).
As mudanças nos comportamentos transformaram as normas sociais existentes que regulam as práticas sexuais.
Estas são cada vez menos absolutas e inatingíveis, fundadas sobre as regras de uma religião ou de uma comunidade; deixando
de servir para controlar ou censurar a juventude, a vigiar o casamento ou a prescrever os actos contra-natura (idem).
As normas sexuais são cada vez menos transmitidas pela família, pelo grupo social ou pela escola e cada vez mais
elaboradas em conversas entre pares, entre confidentes e mesmo entre parceiros. Cada vez mais flexíveis e evolutivas, as
orientações normativas acompanham o processo de individualização dos comportamentos. Tudo parece indicar que os actores
interpretam cada vez mais os seus comportamentos sexuais em função de situações e de contextos relacionais, mais do que de
princípios absolutos (idem).
A nova normatividade sexual assenta em controlos internos, elaborados ao seio de uma rede de amigos e de
confidentes ou na interacção entre parceiros, postos em prática e interiorizados pelos indivíduos. Os actores adoptam uma
atitude cada vez mais reflexiva sobre as suas práticas, o que implica um aumento de exigência de significados e de
interpretações relativos à actividade sexual (Bozon, 2004).
No entanto, as transformações das relações sociais que dizem respeito à sexualidade são menos radicais do que
geralmente se acredita, constituindo mais uma ideia que foi interiorizada do que um abrandamento dos controlos sociais
(Bozon, 2005 [2002]).
Assistimos antes à passagem de uma sexualidade construída por controlos e disciplinas externas aos indivíduos a
uma sexualidade organizada por disciplinas internas (Bozon, 2004).
Assim, mais do que uma emancipação, libertação ou apagamento das normas sociais existe antes uma
individualização, mesmo interiorização, que implica um deslocamento e um aprofundamento das exigências e dos controlos
sociais. Apesar da manutenção das desigualdades de género e de classe, da proliferação das normas relativas à sexualidade e
de uma flutuação de referências pertinentes, passa a caber ao indivíduo a necessidade de estabelecer uma coerência nas suas
experiências íntimas. Os indivíduos continuam a ser submetidos a julgamentos sociais estritos, diferentes segundo a sua idade
e o seu género (idem).

Falando sobre sexualidade


A comunicação sobre sexualidade engloba expressões verbais e, de forma mais implícita, os comportamentos Os
comportamentos dos pais, mais visíveis ao olhar da família, são percebidos e avaliados pelos filhos, podendo ser
incorporados pelos jovens, à medida que estes vão formando os seus valores, atitudes e comportamentos face à sexualidade;
podem também servir de exemplos para a comunicação sobre estes assuntos. Os pais, geralmente, tentam transmitir algum
tipo de educação sexual aos filhos durante o seu crescimento. Esta comunicação é “um processo interactivo de elaboração,
troca e reelaboração de mensagens que se expressa de forma contínua, informal, muitas vezes subtil e difícil de captar, ou, de
forma mais descontínua, em práticas mais formais, intencionais e visíveis” (Vilar, 2001: p. 217). A comunicação pode
expressar-se ao nível da linguagem verbal - focando acontecimentos do quotidiano, como comentários sobre o aspecto das
pessoas, anedotas, avisos, comentários sobre notícias veiculadas pelos média, conversas sobre acontecimentos do dia a dia,
etc.; e ao nível de comportamentos não verbais – como as maneiras de vestir, de estar, de se comportar, especialmente dos
pais e das mães ou de outros parentes, os livros e revistas que são lidos, os programas de televisão que se vêm, etc.
Os contextos da comunicação sobre a sexualidade englobam as situações em que esta é abordada, os actores sociais
que intervêm na comunicação, as práticas de educação sexual, intencionais ou não, dos educadores, as dificuldades que
podem existir na comunicação e a importância atribuída por pais e pelos filhos aos papéis dos pais como agentes de
socialização, neste domínio. No seio da família, os irmãos e outros parentes podem ser actores importantes no processo de
socialização. Para os jovens outros actores e/ou instituição (escola, amigos, etc.) são também importantes nesse mesmo
processo (idem).
Um outro aspecto da educação e comunicação informais sobre a sexualidade é aquela que é realizada com os
amigos. O namoro e a experimentação sexual ocorrem, no contexto do grupo de amigos (Lhomond, 1999; Vilar e Gaspar,
1999; Vilar, 2001), que defendem valores relacionados com uma vivência da sexualidade mais liberal e mais relacionada com
o prazer (Vilar e Gaspar, 1999). A pressão do grupo de amigos é mencionada por alguns jovens como justificação para a
iniciação sexual (Heilborn e Bozon, 1999; Voydanoff e Donelly, 1990). Os amigos são então as pessoas com que os jovens
mais conversam em termos de sexualidade, mostrando assim a importância do grupo de amigos para os jovens, devido ao
tempo que passam juntos no quotidiano, à existência de preocupações comuns e de códigos de comunicação semelhantes. As
raparigas parecem conversar, mais do que os rapazes, com os amigos sobre sexualidade (Vilar, 2001). O grupo de amigos

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pode constituir modelos sexuais reais passíveis de levar a processos de identificação, devido à semelhança nas idades, nos
gostos e interesses. Esta influência dos amigos na aprendizagem da sexualidade pode ser pensada como benéfica, na medida
em que a aprendizagem é feita numa relação recíproca, onde se partilham experiências, se testam referências oferecidas pelos
adultos e se ensaiam alternativas; e como negativa, visto que a informação transmitida é muitas vezes imprecisa,
acompanhada do riso (p. ex. as anedotas), sujeita à pressão da experimentação, sem ter em conta os ritmos pessoais dos
indivíduos (Vaz et al, 1996). Para além disso, os valores transmitidos pelos amigos podem entrar em contradição com os
valores veiculados na família (Vilar e Gaspar, 1999). Esta contradição de valores (por um lado, o silêncio e avisos pouco
específicos que se encontram em casa e por outro lado à lógica do prazer incentivada pelo grupo de amigos, que pode
pressionar as jovens na entrada da sexualidade) irá ter um papel fundamental para a existência de uma gravidez na
adolescência.
“As práticas relativas á sexualidade não deixam de existir; mas, sendo vividas em função dos significados inerentes à
moral sexual das famílias, tornam-se, em si, contraditórias. É desta contradição, presente no complexo processo de
socialização relativo à sexualidade, que resulta a gravidez na adolescência: as práticas existem e são entendidas como a
norma (entre o grupo de pares...); os significados, por seu turno, impelem ao silêncio, advertindo para riscos que não se
especificam. A moral sexual familiar, em contraste com a lógica hedonista do grupo de amigos, uma ética sexual
própria que serve os interesses, simultaneamente do hedonismo moderno (que dissocia sexualidade de reprodução e de
família), e da moral sexual, para não falar do tradicionalismo dos papéis de género que...têm um peso significativo na
definição dos projectos de vida dos jovens, principalmente nos estratos sociais mais baixos.” (Vilar e Gaspar, 1999: p.
51)

Vejamos então qual a importância da amizade para os jovens, se estes comunicam sobre sexualidade ou não e que
influência esta comunicação pode ter.

Qual a importância do grupo de amigos para os jovens?


Vários estudos mostram como as sociabilidades juvenis exprimem-se dominantemente nas relações de amizade
(Costa et al., 1990; Pais, 1996). Os amigos têm uma função integradora (Pais, 1996), deste modo as amizades podem
contribuir para sentimentos de identidade e de pertença (Costa e et al., 1990). Os jovens procuram nos amigos e nas
sociabilidades quotidianas “sentidos de vida e possibilidades de afirmação identitária” (Pais, 1996, a): p. 171).
A família deixou de ser a principal instância de socialização dos jovens em domínios relacionados com os tempos
livres e o lazer (Pais, 1996, a)). É com os amigos que os jovens passam mais os seus tempos livres, mais se divertem e têm
mais opiniões em comum. As relações entre os amigos são de natureza mais igualitária, havendo uma reciprocidade de
interesses, afectos e de gostos culturais entre os amigos; deste modo o lazer assume uma função integradora nas
sociabilidades amicais (idem).
Embora possam ter um vasto grupo de pessoas conhecidas os jovens falam de um grupo restrito de amigos reais
com quem podem contar: “Tenho muitos amigos, mas depois tenho aqueles mais restritos, que só tenho… sei que são
aquelas pessoas com quem eu posso contar” (Catarina, 22 anos, 12º ano incompleto, proprietária de loja) e com quem
mantém laços fortes, isto é, “dotados de maior durabilidade, de maior intensidade emocional, de maior confiança e
intimidade, de maior frequência na troca de favores e serviços” (Costa et al, 1990: 198). Neste sentido faz-se a diferenciação
entre os conhecidos e os amigos verdadeiros, embora estes sejam em menor número. É nos momentos difíceis que se vêm os
verdadeiros amigos, aqueles com quem se pode realmente contar, não só nos bons momentos, mas também nos momentos
mais difíceis:
“A amizade? A amizade é uma palavra que é usada muitas vezes em contextos que não tem nada a ver. Ou seja, a
amizade é uma coisa que está a ser banalizada e acho que a amizade é uma coisa muito valiosa e só se vêm os
verdadeiros amigos em situações de verdadeiro aperto, quando uma pessoa precisa, quando uma pessoa precisa
mesmo, e depois vê quem é que são os verdadeiros amigos, quem é que está lá para as situações difíceis.” (João, 25
anos, estudante no ensino superior, empregado de loja)

Para estes jovens a amizade é algo de muito valioso, constituindo uma segunda base, para além da família, onde
podem assegurar um apoio para os momentos menos bons: “A amizade é muito importante, porque os amigos acabam por
ser uma segunda família que nós temos, aquele apoio que nós muitas vezes temos que recorrer e quando a família falha os
amigos substituem” (Paulo, 22 anos, 12º ano, electricista). A amizade é então encontrar um apoio no outro, ter alguém com
quem se pode desabafar, a quem contar os problemas, convergindo com aquilo a que Giddens (1991) chama de relação pura.
“Acima de tudo acho que a amizade é uma das coisas mais importantes da vida por causa disso, toda a pessoa precisa
às vezes de um bocadinho de um ombro amigo para conversar e isso assim e ter uma amizade que se possa fazer isso
acho que isso é isso é muito importante. Ajuda uma pessoa a recuperar fases más da vida.” (Bruno, 24 anos, 12º ano,
DJ)

Os amigos ajudam-se uns aos outros nos momentos de maior necessidade, sendo que esta inter-ajuda recíproca
acaba por fortalecer o sentimento de amizade: “O mais importante é saber que nós podemos contar com essa pessoa e ela
saber que pode contar connosco, acho que é o mais importante” (Patrícia, 20 anos, estudante do ensino superior). Nos
momentos de solidão são os amigos que fazem companhia, são eles também que têm um conhecimento do verdadeiro eu dos

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jovens. O inter-conhecimento é um aspecto fundamental da amizade, estando associado à confiança que se tem pelo outro e
que permite aos jovens dar a descobrir a pessoa que são. A amizade providencia um espaço de conhecimento daquilo que as
pessoas verdadeiramente são e daquilo que se querem tornar (Weeks, 2007).
“A amizade é uma coisa maravilhosa, é um dom. Há muitas maneiras de definir a amizade, é encontrar… sei lá
conhecer aquela pessoa, ir aos poucos conhecendo aquela pessoa e ver que ela completa-se comigo e encaixa
determinadas coisas em mim e eu dou-lhe total confiança para lhe contar os meus segredos, para lhe contar os meus
medos, para lhe demonstrar a pessoa que eu sou. […] Acho que a amizade é um fruto do conhecimento e é recíproco,
porque é tanto dar como receber, acho que é igual.” (Rita, 25 anos, estudante do ensino superior)

No grupo de amigos as experiências de vida são partilhadas, os mais velhos transmitem essa experiência aos mais
jovens, que por sua vez vão transmitir esses conhecimentos aos amigos mais novos que eles. Numa sociedade caracterizada
pela incerteza e pelo risco (Beck, 2000) a confiança é torna-se uma característica essencial da amizade, os amigos são aquelas
pessoas em quem se sabe que se pode confiar: “Para mim a amizade é muito importante. É uma pessoa em que eu posso
confiar, que hoje em dia não podemos confiar em quase ninguém, tem que ser mesmo uma pessoa que a gente saiba que
podemos mesmo confiar” (Ana, 26 anos, 12º ano incompleto, desempregada), de modo a que os jovens possam apresentar-se
no seu verdadeiro eu, possam rir ou chorar sem receios de repreensões sociais. A confiança que é tida no outro é algo de
essencial na amizade (Levinson, 2003). A proximidade com o outro e a intimidade partilhada asseguram a improbabilidade
de uma traição. Contudo, a confiança é sujeita a uma medição, existindo diferentes graus de confiança, tendo um valor
relativo e não absoluto (idem), podendo ser posta em causa com uma traição.
Embora não seja necessária uma identificação total com o outro, a compreensão é essencial. Mas não se pense que
os amigos estão lá só para dar festas, eles são também um factor essencial na construção das trajectórias dos jovens pelo
papel que têm no redireccioná-los para os caminhos considerados como mais adequados. Assim os amigos não são só aqueles
que concordam com tudo o que se faz, são também aqueles que chamam a atenção
“Epá, é ter alguém que te ajude e que te entenda, mesmo que não concorde com o que tu fazes, mas que também esteja
lá para te dar uma chapada quando é preciso e para te chamar à razão. Não é só para dizer o que tu queres ouvir, é para
compreender aquilo que tu dizes, mas ao mesmo tempo corrigir-te, as tuas atitudes, o que tu dizes.” (Carolina, 22 anos,
licenciada, empregada de balcão)

A composição sexual das amizades juvenis tende a ser diversificada – os jovens tendem a relacionar-se com grupos
de amigos de composição mista, pelo que se criam condições para que possam existir eventualmente envolvimentos afectivo-
sexuais (Pais, 1996, a)). Para a maioria destes jovens a amizade entre rapazes e raparigas é uma coisa que faz parte do seu
mundo, sendo algo de natural: “Os homens e as mulheres podem ser amigos, até podem ser os melhores amigos […] Eu acho
que se nos damos bem com aquela pessoa não é por ser homem ou mulher que nos vamos deixar de dar” (Maria, 20 anos,
estudante do ensino superior).
É mesmo possível que os jovens tenham um maior número de amigos do sexo oposto do que de pessoas do mesmo
sexo. Para as raparigas a amizade com os rapazes pode ser vista como mais verdadeira, os homens podem ser considerados
pessoas em quem se pode confiar, enquanto que a relação entre mulheres é representada como conflituosa, pelas críticas,
competitividade, cinismo e inveja que podem existir.
“Porque lá está a gente tem aquela maneira de pensar que sabemos perfeitamente que as raparigas têm sempre inveja
umas das outras, ah, são muito cínicas, irónicas e não sei quê. Isto estou a falar tudo no geral, não é? Sabemos
perfeitamente que uma rapariga com uma rapariga esquece, porque há sempre aqueles conflitos e não há hipótese […]
E sabemos que os rapazes não são falsos, sabemos que os rapazes são sempre sinceros, não têm esse preconceito de…
não têm essa inveja […] eu acho que são muito mais fixes para conversar.” (Ana, 26 anos, 12º ano incompleto,
desempregada)

Já os rapazes podem considerar que encontram nas mulheres uma maior amizade. Com estas é possível
confidenciar, podendo fugir ao imperativo de se conformarem com a masculinidade hegemónica (Connell, 1987) que um
grupo de amigos pode impor: “A maneira de falar delas para nós é um bocadinho diferente, já não estamos a falar em
carros, motas, falamos doutras coisas, por exemplo, da vida delas, dos namorados e tal, […]. É porreiro.” (Tiago, 23 anos,
9º ano, mecânico). Esta busca do sexo oposto para conversar pode assim ser a expressão a uma fuga da obrigatoriedade de
falar sobre as suas performances, impostas, geralmente, pelo grupo de pares nos jovens rapazes (Holland et all, 2004 [1998]).
Acresce ainda que as raparigas podem providenciar um ponto de vista considerado como diferente para os jovens e que os
ajuda a compreender melhor o sexo oposto.
“Eu digamos que tenho, hoje em dia, tenho tanto amigas como amigos e consigo separar as coisas. [....] As mulheres
têm uma maneira diferente de pensar que os homens e acabas por ouvir dois pontos de vista completamente diferentes,
o que nos dá perspectivas. […] As mulheres conseguem dar conselhos, porque elas metem-se na pele […] As mulheres
são muito complicadas, são muito complexas e às vezes para as perceber é preciso muito, então mais vale uma própria
mulher me explicar.” (Paulo, 22 anos, 12º ano, electricista)

Contudo há jovens que não acreditam tanto na amizade de entre homens e mulheres, ou pelo menos da parte do
homem pela mulher, na medida em que acreditam que pode haver uma intenção, mais ou menos explícita, de sexualizar a
relação.

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“Ai acho que há uma diferença entre homens e mulheres. É assim também há homens que vêm a mulher como uma
amiga, mas há muitos que não conseguem discernir e quando fazem o contacto com alguém que não conhecem eles
vão sempre à procura da sexualidade, enquanto as mulheres já pensam noutras coisas, já vão mais pela amizade.”
(Sónia, 26 anos, licenciada, desempregada)

Os momentos de lazer permeiam de forma significativa as actividades realizadas com os amigos. Os fins-de-
semana são os momentos privilegiados para se estar na sua companhia. Com estes vai-se jantar fora, frequenta-se os cafés, os
bares, as discotecas, as festas, os concertos ou quando é possível a casa uns dos outros. Ir beber um café ou ir para os copos
são actividades frequentemente realizadas com o grupo de amigos: “Sei lá, costumo sair mais eles à noite, beber o café. Sei
lá, ir ao bowling, jogar snooker. Sei lá, costumo ir ao cinema, por exemplo, jantar fora, essas coisas todas.” (Miguel, 23
anos, 12º ano, operário); “Saímos para bares, cafés, conviver, festas de amigos. Para festas, para concertos. Muitas vezes é só
juntarmo-nos todos para conversar um bocadinho. Pronto, é à base disso” (Maria, 24 ano, licenciatura, estagiária em serviço
social).
São estes momentos de lazer que servem geralmente de pano de fundo para as conversas que se têm. Entre amigos
conversa-se basicamente de tudo. Como referido anteriormente, os amigos são indivíduos com quem se pode desabafar. Mas
as conversas vão muito para além dos desabafos. Nos momentos em que se reúnem os jovens metem os amigos a par do seu
dia a dia, conversa-se sobre o trabalho, os problemas com a família, do futuro, das viagens que se quer fazer, de sexo, dos
relacionamentos. Entre os homens é também comum falar-se de mulheres e de carros
“Varia às vezes a conversa, tanto podemos falar do nosso quotidiano, trabalho-escola, como podemos falar da questão
da família, ou porque uma chateou-se com o pai ou com a mãe, e vem desabafar e não sei o quê e fala. Falamos
também do geral, tipo da sociedade, falamos às vezes também do sexo, também falamos muito, conversamos sobre
isso. Temos conversas de todo o tipo mesmo.” (Rita, 25 anos, estudante do ensino superior)

“Mulheres. O que é que costumamos falar? Às vezes coisas banais, aquelas coisas banais que se fala tipo do tipo
carros, mulheres, depois quando um está com problemas tentamos ajudarmo-nos mutuamente. Por exemplo, quando eu
estou interessado em alguém ou quando… pronto, falo disso. Ou então “olha ali aquela que está ali a passar”, coisas
assim mais…” (Paulo, 22 anos, 12º ano, electricista)

Será que os jovens falam sobre sexualidade?


As conversas sobre sexualidade no grupo de amigos são algo de comum entre os jovens. Com estes tiram-se
dúvidas, partilham-se experiências, falam-se sobre preconceitos, sobre as relações entre homens e mulheres.
Durante os anos de escola, estas conversas tornam-se comuns. As primeiras experiências são contadas aos colegas,
as jovens sem experiência ao nível das relações sexuais e amorosas ouvem as colegas mais experientes. Os rapazes tendem a
comentar as jovens raparigas. Mas estas conversas, sobretudo para os rapazes, podem ser desvalorizadas, pensadas como
sendo sem interesse, como pouco profundas, coisas que se fazem quando se é ainda novo.
“ Mais naquelas conversas de rapazes, que não eram fundamentadas, era mais bocas para o ar, um lançava uma boca, o
outro lançava outra, portanto, nunca era nada… nunca se pode chamar uma conversa, era mais bocas lançadas para o
ar. Não eram temas, por exemplo, falávamos de relacionamentos […]. Ou seja, normalmente fala-se do que é que terá
acontecido, se a rapariga é interessante senão, se já tem experiência, se não, aquelas conversas. No tempo de escola
nunca é muito profundo, não leva a lado nenhum.” (João, 25 anos, estudante no ensino superior, empregado de loja)

“Entre colegas falávamos nisso. Falava com os meus amigos da turma, comentávamos, só comentários. Nos intervalos
das aulas, se houvesse uma rapariga bonita a gente comentava: “esta é bonita e tal”, pronto tentávamos ter o número de
telefone dela, fazíamos concursos para ver quem é que ia chegar primeiro lá, pronto, era mais ou menos assim.”
(Daniel, 27 anos, 9º ano, pasteleiro)

Mas é sobretudo nesta fase, nos anos de adolescência, que os jovens vão tirando as dúvidas uns com os outros. É
ainda frequente que se comentem os relacionamentos dos colegas, as suas experiências ou a falta dela. Numa fase em que se
ensaiam as primeiras relações sexuais e amorosas, os jovens que ainda não iniciaram a sua vida sexual podem ser comentados
pelos colegas, que consideram que estes lhes estão atrás, o que pode originar pressões no sentido de ter relações sexuais,
como verificaremos mais à frente,
“A fase das dúvidas sobre a sexualidade, a fase que tínhamos 15, 16 anos que não sabíamos bem o que estávamos a
fazer, acho que essa fase já passou. Agora penso que as dúvidas já deixaram de existir. […] Era a fase da juventude, ali
as primeiras namoradas, toda a gente devia ter a sua primeira relação sexual e achavam-se… no meu grupo de amigos
as pessoas achavam-se… foi uma coisa com a qual eu nunca concordei, que uma pessoa que não tinha feito relações
sexuais até ao momento que, pronto, ficava um bocadinho atrás dos outros. Isso não é verdade obviamente. […]”
(Marco, 20 anos, 12º ano, empregado de balcão)

Já as raparigas, para além das dúvidas que se tiravam e das experiências partilhadas, podiam falar sobre as
transformações corporais: a primeira menstruação, o crescimento dos seios: “Era, tirávamos as dúvidas uns aos outros.
Fazíamos perguntas, se alguém sabia respondia. […] Nós raparigas falávamos muito era sobre o período: “ai, quando vier,
não sei quê” e “eu já tenho maminhas, eu não tenho maminhas”.” (Matilde, 25 anos, licenciada, técnica de turismo).

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As raparigas mais velhas podem ser procuradas pela sua experiência pessoal. Estas tornam-se as confidentes das
raparigas mais jovens, esclarecendo as suas dúvidas através das suas experiências pessoais ou dos conhecimentos que lhes
foram sendo transmitidos, nomeadamente, pela família.
“Sobre a sexualidade? Sei lá?! Perguntava… não sei. Prontos, havia muitas das minhas amigas também, uma vez que
eu era a mais velha, na escola, como chumbei muitos anos, eu era a mais velha e muita gente vinha ter comigo para
perguntar sobre esse tema, uma vez que eu considerava-me mais experiente que elas, podia ser que não, mas o que é
certo é que elas me vinham perguntar e eu dava a minha opinião, e o que é que achava e o que é que não achava, e o
que é que deves fazer, o que é que não deves fazer e pronto, basicamente é disso. Das perguntas se calhar que eu fiz à
minha mãe, elas fizeram-me a mim.” (Ana, 26 anos, 12º ano incompleto, desempregada)

Mesmo na actualidade, temas como a influência que a sociedade tem nas práticas sexuais dos jovens, as reputações
que ambos têm ou a homossexualidade, fazem parte das conversas que os jovens têm uns com os outros.
“Às vezes falamos, lá está, de experiências que temos, do que é que faz… tipo relativamente à sociedade como é que
encara a questão da sexualidade. Também do uso dos métodos contraceptivos, do apoio ao adolescente ou ao jovem,
neste caso. […] Mas falamos de tudo um pouco, é a nível de informação; da questão da sociedade, como é que é
encarado, como é que não é, se é tabu ainda, se não é; em questão da família também, porque eu tenho, lá está, eu
sempre tive colegas minhas, amigas, que falavam disso abertamente com os pais, e eu tipo… então e tu, eu não, nem
sonho em falar, não dá, por isso é que toda a informação que eu tenho foi do exterior.” (Rita, 25 anos, estudante do
ensino superior)

O facto de se ter amigos com uma orientação sexual diferente pode ser tema de debate. Através destas conversas o
preconceito que poderia existir inicialmente, vai-se esbatendo para se tornar numa aceitação clara da homossexualidade.
“Naturalmente, o G. é gay. A gente fala bué, muito. O facto do G. dar um beijo na boca ao namorado, à minha frente,
por exemplo, ao início fez-me confusão, nós falámos sobre isso. […] Mas hoje em dia não me faz absolutamente
confusão nenhuma, nenhuma, nenhuma.” (Cristina, 27 anos, 12º ano, administrativa)

Para alguns jovens trocam-se experiências muito íntimas. Embora estas conversas não sejam tidas com todos os
amigos, existem aqueles com quem, para além dos relacionamentos afectivos que se têm, se falam nas práticas e posições
efectuadas. Falar de sexualidade não significa falar das mesmas coisas para pessoas diferentes, assim fala-se com uns amigos,
mas não com outros ou pode falar-se de temas diferentes segundo as pessoas (Olomucki, 2004).
“As minhas experiências, as experiências deles, como é que fazem. Por exemplo, eu com a M., eu a ouvir as histórias
da M., a M. conta-me tudo, tudo […]. Com a M. conseguimos falar mesmo os pormenores: há quanto tempo, como foi,
quais foram as posições, se encaixava, se não encaixava, tudo. Com a S. não falo de nada disso, só que ontem tive com
aquele rapaz ou tive com outro, ou tenho saudades de não sei quem, mais sentimentos. Com o P. somos uns porcos,
como a M. também, falamos de tudo.” (Carolina, 22 anos, licenciada, empregada de balcão)

Neste sentido, os amigos podem servir como fontes de informação importantes, ensinando os jovens,
nomeadamente os rapazes, como dar prazer a uma rapariga ou qual a melhor maneira de fazer as coisas.
“São dúvidas para mim, mas acaba sempre por calhar em conversas de raparigas, não é?, que é mesmo assim. […]
Acaba sempre por chegar a essas conversas, como excitar uma mulher, como isto e como aquilo, como há-de ser a
melhor maneira e tal, acaba por ser muito essas conversas, estás as ver? Como eles têm mais nível…” (Pedro, 19 anos,
9º ano, impermeabilizador)

Por vezes o conhecimento que se obtém através do grupo de amigos é o único que se obtém. Se não fossem essas
conversas entre amigos, a sexualidade passaria a ser um tema tabu: “Acho muito importante, fico a pensar nisso e acho que
se elas… se eu não falasse com elas sobre isso, ainda hoje era um tabu, porque eu não falo com os meus pais sobre isso.”
(Patrícia, 20 anos, estudante do ensino superior). Neste sentido, as confidências que se fazem no grupo de amigos podem ser
entendidas como tendo um carácter informativo e de construção para cada um dos jovens (Olomucki, 2004).
Estas conversas podem ser sentidas como muito importantes. Os jovens podem considerar que têm uma abertura
total para conversar com os amigos sobre sexualidade, que falam com facilidade sobre estes assuntos. Neste sentido, os
jovens podem pensar que a partilha das experiências como algo de positivo, sendo algo que gostam de fazer.
“Por exemplo experiências, experiências que eu já tive a nível de sexualidade, se calhar falar sobre isso. Isto aqui tanto
com amigas como com amigos, não tenho qualquer problema. Falo de sexo com a maior facilidade, com pessoas que
conheço (ri-se). Falo sobre isso sem qualquer problema, nas minhas experiências. Tudo o que eu falo não falo ao
acaso, é porque já passei por isso e às vezes gosto de falar disso, gosto que as pessoas vejam um bocado o meu ponto
de vista e a minha forma de encarar a vida, a nível sexual, a nível emocional, gosto. E a nível de sexo assim é bom e
todas as pessoas gostam de falar disso, é preciso haver aquele à vontade para falarem.” (Paulo, 22 anos, 12º ano,
electricista)

No entanto há jovens que falam menos de sexualidade com os colegas. O facto de se sentirem pouco à vontade com
o assunto ou de o considerarem um assunto mais íntimo, que não se deve ter em público, leva-os a serem mais reservados
com o assunto.

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“Eu acho que nesse aspecto sou um pouco reservado, falar sobre sexualidade abertamente, acho que não… eu
pessoalmente nunca puxaria esse assunto num grupo de amigos, portanto, nunca iria… se fosse eu por vontade, por
iniciativa própria, nunca o faria. Acho que são assuntos que devem ser tratados mais recatadamente, não sei. Acho que
abertamente, mas normalmente a dois. Não expor no café, num sítio público a sexualidade, porque acho que não é sítio
para se falar disso.” (João, 25 anos, estudante no ensino superior, empregado de loja)

A existência de um(a) parceiro/a pode levar também a que os jovens se tornem mais reservados. Deste modo, se
anteriormente à relação poderia existir uma maior troca de experiências com os colegas, a existência de um(a) parceiro(a)
leva a que os jovens se tornem mais reservados, de modo a não partilharem o que se passa na sua intimidade. Afinal, o que é
de dois, não é de três!
“Não. Desde que eu estou com a minha namorada não. Dantes falava. O que é que eu falava antes? Não era falar, era
mais comentar. Porque é assim, desde que eu estou aqui em Portugal, estou com a minha namorada e conheci os meus
colegas, por exemplo com estes colegas daqui não falava disso, porque sempre estava com a minha namorada, eu não
falo nada aos outros do que se passa comigo e com ela.” (Daniel, 27 anos, 9º ano, pasteleiro)

Que influência poderão ter os amigos nas práticas e representações dos jovens sobre a sexualidade?
O grupo de amigos constitui assim uma fonte importante de conhecimento para a sexualidade. Diversas pesquisas
apontam para o facto de os amigos serem mesmo a fonte principal de educação sexual dos jovens (Holland e tal, 2004
[1998]). Através das conversas que se vai tendo, dos conselhos que os amigos trocam uns com os outros, das experiências
que se partilham, os jovem vão formando os seus conhecimentos sobre sexualidade, a par com outras fontes de informação
como a televisão, a internet, a escola, etc. Para as jovens que não têm uma comunicação aberta com os pais, as conversas
tidas com as amigas tornam-se mesmo centrais para o conhecimento que têm sobre sexualidade.
“Eu fui aprendendo através da televisão em alguns programas, através da escola, porque nas ciências também falavam
um bocadinho nos contraceptivos. Ah, fui aprendendo com as minhas amigas, porque às vezes… porque por exemplo,
no meu 8º ano, houve uma vez que uma colega minha foi comprar preservativos e nós não sabíamos para o que é que
era aquilo então agarrámos no preservativo, enchemos aquilo de água, começámos a brincar com aquilo como se fosse
uma coisa muito normal. Nós começámos a procurar, a ver, a tentar informarmo-nos com os nossos amigos, com
pessoas mais experientes, com pessoas um bocado mais crescidas. Televisão, jornais, comunicação social,
basicamente” (Patrícia, 20 anos, estudante do ensino superior)

Como referido anteriormente, o grupo de amigos é também o local onde se vive a sexualidade. A existência de um
grupo de amigos misto possibilita a existência de encontros sexuais e afectivos. Neste sentido, alguns jovens referem que
conheceram os/as seus/suas actuais ou anteriores namorado/as através da convivência com os amigos: “O meu segundo
namorado conhecemo-nos porque temos amigos em comum, eu saia com os meus amigos, ele saia com os amigos dele,
acabávamos por formar o mesmo grupo. Acabámos por nos conhecer e começámos por nos relacionar” (Patrícia, 20 anos,
estudante do ensino superior).
No entanto, a influência que o grupo de pares tem na vivência da sexualidade dos jovens pode ser negativa e os
jovens podem sentir-se pressionados a ter relações sexuais. Várias pesquisas mostram como a pressão efectuada pelo grupo
de amigos é mencionada por alguns jovens como justificação para a iniciação sexual (Heilborn e Bozon, 1999; Voydanoff e
Donelly, 1990). Os comentários, não já dos amigos, mas dos colegas, sobre as suas experiências, ou sobre o facto destes não
serem experientes podem levar os jovens a procurar essas experiências. Os comentários gozões entre os jovens podem levar a
que os indivíduos que são objecto desses mesmos comentários se possam sentir rebaixados. Ora, o facto de se ter tido a
primeira relação sexual pode ser considerado como um passo para a idade adulta, o que pode levar os jovens que ainda não
tiveram esta experiência a sentirem-se diminuídos relativamente aos outros jovens mais experientes.
“Porque às vezes: “és virgem?, mas tu ainda és virgem? Com 20 anos? Que horror” pronto e é esses comentários assim
que às vezes a pessoa fica a pensar: será que isto é um bicho?, será que eu sou uma pessoa normal por ainda não ter
perdido a virgindade?. Às vezes as pessoas pensam nisso e querem mais rapidamente perder a virgindade” (Patrícia, 20
anos, estudante do ensino superior).

“Existe aquela pressão do outro já fez, tenho que fazer. Quando nós somos novos existe: “À então, mas tu tal e coiso,
ainda não fizeste nada?”, depois acaba por ser aquele gozo, aquela forma de rebaixar uma pessoa e isto entre os jovens
existe muito, principalmente nos homens.” (Paulo, 22 anos, 12º ano, electricista)

Em jeito de síntese
Como referimos anteriormente, vários estudos mostram como as sociabilidades juvenis exprimem-se
dominantemente nas relações de amizade (Costa et al., 1990; Pais, 1996). Os amigos têm um papel importante na integração
e na afirmação da identidade dos jovens.
Para os jovens entrevistados, a amizade é uma relação de confiança, recíproca entre os amigos. Com estes desabafa-
se, fala-se dos problemas, revela-se o verdadeiro eu dos jovens. Ao reprimir ou ao aprovar comportamentos, os amigos
ajudam a construir as trajectórias dos jovens. A amizade é considerada como algo de muito importante, mesmo uma segunda

98
base de apoio, logo a seguir à família ou algo que a substitui quando esta não pode estar presente. Com os amigos sai-se, vai-
se beber um café ou uns copos, falando-se de tudo.
É neste sentido que se verifica que os jovens, geralmente, também falam sobre sexualidade. Embora não se diga a
mesma coisa a todos ou tudo a toda a gente, entre amigos fala-se das práticas sexuais, das experiências que se tem, dos
relacionamentos amorosos, dos problemas ou das dúvidas ou a nível mais geral do modo como a sociedade tende a encarar a
sexualidade.
Deste modo, falar sobre sexualidade entre amigos tem um papel essencial na construção do conhecimento sexual
dos jovens. Para algumas jovens que não falam de sexualidade em casa, o grupo de amigos é a única oportunidade de falar
destes temas, que doutro modo poderiam ser tabu. É também no grupo de amigos, tendencialmente misto, que existe a
oportunidade para os jovens iniciarem relacionamentos afectivos e sexuais, sendo este o espaço onde por vezes se conhecem
o parceiro. No entanto, da parte dos amigos, sobretudo dos conhecidos, podem existir pressões no sentido dos jovens
iniciarem a sua actividade sexual. O facto dos jovens mais experientes falarem das suas práticas ou a existência de alguns
comentários gozões podem levar a que os jovens que ainda não se tenham iniciado sexualmente sintam pressão para o fazer.

Bibliografia
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Família, juventude e conjugalidade


Acácia Batista Dias1
Universidade Estadual de Feira de Santana
[email protected]

Resumo: O texto versa sobre a parentalidade juvenil compreendendo que tal condição redefine as relações entre pais e filhos e reafirma a
família como esfera de apoio afetivo-material, esfera que acolhe conflitos, negociações, solidariedades e cumplicidades. O cotidiano familiar
exprime características contemporâneas de novas atitudes e comportamentos nas relações familiares, ao mesmo tempo em que sentimentos,
funções parentais e posturas dos jovens pais/mães apontam para uma permanência de valores assimétricos de gênero. O nascimento do filho
promove a passagem da adolescência à vida adulta, embora essa transição, para muitos desses/as jovens, possa já ter se iniciado com a
aquisição de outras responsabilidades como a inserção precoce no mercado de trabalho. Neste texto se procede à análise de determinados

1
Professora Adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Bahia, Brasil. Doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Brasil.

99
aspectos relacionados aos desdobramentos que ocorrem nas biografias juvenis, após o nascimento do primeiro filho. Em especial, a discussão
da união conjugal a partir de questões destacadas pelos jovens no tocante ao sentimento em relação ao parceiro/a, ao desejo de coabitação e
os (des)compassos da convivência conjugal. Ao apontarem as mudanças sofridas nas suas vidas e a forma de convivência familiar, os jovens
revelam que recorrem à família de origem em algumas situações, principalmente nos momentos de conflitos com seus pares – os quais
esboçam diferentes formas de intervenção e de posicionamento sobre as escolhas individuais. Tais inferências são resultados de um percurso
metodológico que contemplou entrevistas semi-estruturadas realizadas com jovens de ambos os sexos, de 18 a 24 anos, residentes na cidade
de Salvador, Bahia - Brasil.

A história da família é a história dos processos de transformações, dentre os quais, está a forma como a criança
aparece na família moderna inaugurando um novo conjunto de atitudes para com a infância, inclusive com a preocupação
acerca da formação psico-social dos filhos (Áries, 1981a). Destaca-se também, o surgimento do "sentimento da família" que
permite ao homem escapar a uma solidão moral, tendo em vista a dimensão dada à vida privada e à relação entre pais e
filhos, nas quais se instituem novas regras de sociabilidade e intensificação do processo de individualismo. Dessa forma, a
família moderna corresponde "a uma necessidade de intimidade e também de identidade: os membros da família se unem
pelo sentimento, o costume e o gênero de vida". (p.278).
O século XX traz como uma das suas características a projeção da família nuclear como modelo, baseada na
formação de uma “unidade sentimental” e centramento em torno de si mesma (Badinter, 1985). Assim, a presença da
afetividade nas relações familiares é fruto das mudanças sócio-culturais de condutas e sentimentos dos indivíduos (Elias,
1994). Para alguns autores, fatores como o processo de urbanização e a industrialização refletem diretamente nas novas
configurações familiares. Entretanto, como aponta Saraceno (1997), o engendramento das mudanças a partir desses processos
revela especificidades consubstanciadas aos diferentes contextos sócio-cultural e econômico de determinadas sociedades.
No âmbito das Ciências Sociais, o tema família é responsável por abordagens plurais que instituem interpretações
advindas de diferentes correntes teóricas, referidas a tempos distintos do processo histórico. Leituras e releituras sobre este
tema são elaboradas a partir de aspectos como: formação, manutenção, produção e reprodução das famílias, sempre
demarcando a relação indivíduo e sociedade.
De modo geral, as análises apontam para duas direções. De um lado, a perspectiva de crise, e por outro, a
perspectiva de como a família responde às transformações sociais. A Sociologia da Família, na França, tem priorizado a
segunda perspectiva, discordando do pressuposto de “crise”; posição esta que alicerça a perspectiva aqui trabalhada. Segalen
(1996) enfatiza a compreensão das mudanças na família a partir de uma investigação conjunta nas áreas de Ciências Sociais,
História e Demografia, visto que dados como fecundidade, divórcio, nupcialidade, entre outros, refletem diretamente no tipo
de composição e nos comportamentos familiares. Assim, a autora efetiva uma análise sobre os modelos de família extensa e
nuclear, demarcando as suas inserções em um dado processo histórico em que as relações com a parentela se estruturam em
termos de regras e valores compartilhados e socialmente demarcados. Já Singly (1993) contempla como modelo de família o
casal, considerando a existência de um processo relacional de individualização dos seus membros. Assim, a vida privada se
estrutura sobre o reconhecimento mútuo das pessoas que vivem juntas, demarcando as “regras” da conjugalidade. A relação
com a parentela é fundamental para a manutenção do grupo, especialmente no que se refere à troca dos serviços, mas
existindo certa autonomização da família (Singly, 2000), ainda que, no caso francês, exista um percurso de liberação da
parentela amparado pelo Estado Providência que assume o cuidado com crianças, jovens e pessoas mais velhas.
Entre as formas de expressão do individualismo destacam-se a questão da intimidade e a noção de espaço, ambas
atreladas ao processo de autonomia dos indivíduos. Ariés (1981) menciona que a reorganização da casa e a reforma dos
costumes subsidiam a construção dos valores da família moderna. Mas, de imediato não uniformiza os sentimentos dos
distintos segmentos sociais, embora a vida familiar tenda, lentamente, a se estender para toda a sociedade. A individualidade
que se desenvolve no sujeito depende também de um processo de individualização baseado na estrutura da sociedade em que
se encontra inserido (Elias, 1994). Nessa estrutura social, o contexto das relações familiares é considerado como uma
instância propícia e fundamental de produção da individualização - de construção e revelação de si (Singly, 1996).
No Brasil, os estudos sobre família têm, a partir da década de 70, novos horizontes de investigação, com a
emergência de discussões que criticam a prevalência de determinados modelos como expressão da sociedade brasileira2. Em
especial, ocorre a desconstrução da família patriarcal como modelo hegemônico que durante muito tempo foi utilizado como
parâmetro de classificação. Assim, ao final da década de 80 proliferam-se as recusas à sua representação como referência à
família brasileira e essa como família extensa. Alguns autores apontam que tal modelo trata-se de um tipo historicamente
situado, particularmente nordestino (advindo da estrutura da lavoura canavieira), com valores e normas relativos a um cenário
que retratava uma estrutura de poder centrada no homem (sentido de patriarca), e com relações sociais bem definidas entre:
“casa-grande e senzala”, patrão e empregado, pai e filho, marido e mulher (Freyre, 1995). Como desdobramento desse
movimento, alguns autores mantêm a premissa de que a estrutura da família patriarcal era uma forma dominante de
construção social e política que muito influenciou a organização e a manutenção de uma dada ordem social nacional
(DaMatta, 1987). Prevalece, portanto, a vertente analítica que versa a família como uma instituição essencial, cuja estrutura
se refletia nas relações de poder com centralidade na figura masculina e que se estendia à vida social, através de um forte
grau da relação exploração e subordinação tipicamente retratada na nossa sociedade.

2
Críticas às obras de Gilberto Freyre, Antônio Candido e Oliveira Vianna.

100
A compreensão da família como instituição social ainda é uma característica dos estudos no país, os quais
referenciam a sua correlação com a estrutura e a organização social; assim, figura a sua representação como instância de
produção e reprodução econômica, sócio-cultural, biológica; e, também, como espaço de socialização enfatizando a formação
dos indivíduos, através do processo de interiorização de normas, valores e regras sociais.
“A família é uma esfera social marcada pela diferença complementar, tanto na relação entre o marido e a mulher
quanto entre os pais e os filhos. O caráter relacional da família corresponde à lógica de sua própria constituição.
Embora comporte relações do tipo igualitário, a família implica autoridade, pela sua função de socialização dos
menores como instituinte da regra.” (Sarti, 1995: 43)

Entretanto, a recorrência à interdisciplinaridade para repensar o tema promove a visibilidade de outros tipos de
composição familiar, a partir da utilização de critérios que consideravam questões como: temporalidade, contextos
econômicos regionais, movimento da população, inclusive o fluxo migratório, as etnias e a expressividade de grupos sociais
distintos que compõem a história da sociedade brasileira (Samara, 2002).
A percepção dessa multiplicidade de situação no cenário social com arranjos familiares muito distintos do modelo
gilbertiano, contribuiu para tornar os conceitos de família patriarcal e extensa insuficientes e inadequados para a pluralidade
da formação familiar no Brasil. Corrêa (1994) chama a atenção para a evidência histórica da existência e da permanência de
famílias chefiadas por mulheres; ressalta, também, que a família conjugal moderna não se forma automaticamente via
processo de modernização. Nessa perspectiva, Samara (1987: 31) alude às evidências ao longo da história.
“Assim, mergulhar no passado buscando reconstituir a família é enveredar por muitos caminhos, é o encontro de uma
gama variada de composições ora simples, ora complexas, que vão da unidade conjugal à extensa, do grupo de sangue
ao núcleo doméstico, que agrega relações não formalizadas apenas pelo parentesco.”

Pensar a história da família brasileira é pensar as várias formas de coexistência, dentro de um mesmo espaço social,
de diferentes formas de organização familiar que consideram, entre outros aspectos, a convivência de valores igualitários e
hierárquicos (Machado, 2001). A compreensão da família como grupo social contempla a discussão de redes e relações
sociais que se estabelecem, pautadas em práticas de solidariedade, reciprocidade, inter-ajudas. Também em conflitos e
negociações resultantes de uma composição diferenciada por sexo e idade no interior do grupo. Destacam-se ainda questões
relativas ao sentimento familiar que remete à noção e ao sentido de pertencimento. Atualmente, são expressivos os estudos
sobre o tema no Brasil, evidenciando as mudanças propiciadas, especialmente, pelos processos de modernização e
individualização (Sorj e Goldenberg, 2001), ainda que as abordagens se direcionem para referência da família como valor,
mais do que para relações familiares e geracionais sob a ótica de suas práticas e comportamentos (Peixoto e Bozon, 2001).
Como reflexo das próprias transformações sociais, outro modelo torna-se parâmetro de análise e comparação: a
família nuclear, compreendida dentro do processo de modernização como unidade de produção que possibilita a manutenção
e a qualidade de vida do grupo, caracterizada, também, como uma “forma dominante e abrangente de organização doméstica”
(DaMatta, 1987: 131). A diversificação das pesquisas tem privilegiado enfoques específicos que tratam da divisão sexual e
social do trabalho, centralizados na dicotomia público – privado; bem como, características singulares presentes em
determinados tipos familiares como: do campo, das classes trabalhadoras e médias, de diferentes raças/etnias e religiões.
Essas perspectivas analíticas, geralmente, dialogam com questões referentes às relações de gênero. Há que se considerar a
influência da Demografia nesse campo de investigação, o que possibilitou uma ampliação dos conceitos e especificação de
novos modelos, como por exemplo, a visibilidade da família monoparental com chefia feminina e as circunstâncias históricas
e sociais a ela relacionadas.
Em termos mais teóricos, é perceptível o deslocamento de atributos da família burguesa para a de classe média,
especialmente no tocante ao debate acerca do individualismo. Nesse sentido, é comum a caracterização das relações
familiares dos estratos médios da sociedade brasileira em bases mais igualitárias, condicionadas por uma postura mais liberal,
cujos conflitos de geração e tipos de negociação se inscrevem no conjunto de valores considerados modernos. Em
contraposição, as práticas das camadas populares são caracterizadas por valores mais tradicionais, nos quais prevalecem o
domínio do grupo sobre o indivíduo, através de relações hierarquizadas, baseadas em conceitos como moral e honra. Uma
parte da literatura brasileira sobre o tema traz como marca essa dualidade, denominada por Sorj e Goldenberg (2001) de
“literatura de polarização”, tendo em vista o referencial teórico pautado na dicotomia tradição e modernidade, que é marcado
por um sistema de valores dual que classifica os comportamentos familiares como hierárquicos ou igualitários. As autoras
chamam a atenção para o fato de que a adoção dessa postura analítica tende a incorrer em uma superficialidade, uma vez que
essa abordagem não incorpora “o processo de (re)significação de práticas sociais que rompem com [tal] dualidade” (p.114).
Na dinâmica da vida cotidiana, uma ordem de mudanças impele os indivíduos para novos olhares e novos debates
sobre as relações familiares, tendo em vista questões como: aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho,
queda da taxa de fecundidade, prolongamento dos anos de estudos - especialmente entre jovens, exercício mais autônomo da
sexualidade, reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de Direito, mudanças na legislação3; a progressiva

3
Referência à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente; a promulgação na Constituição Federal da igualdade de direitos entre homens e mulheres na
sociedade conjugal; o Novo Código Civil (janeiro de 2003) no qual a expressão “pátrio poder” foi substituída por “poder familiar” reconhecendo o direito de
ambos os pais; a inserção de questões no Direito de Família referentes as novas tecnologias reprodutivas, relacionamentos na internet etc. Sobre o discurso legal
acerca da família no Brasil, ver Basterd (1987).

101
redistribuição de funções na socialização do cidadão (família e escola como agências sociais responsáveis). Os movimentos
feministas foram emblemáticos em todo o processo, pois a contestação da posição social designada às mulheres expandiu-se,
possibilitando a formação de identidades sexuais e de gênero. Novos personagens emergem nesse contexto social,
reivindicando seu reconhecimento através de direitos e deveres: gays, negros, índios, idosos, portadores de necessidades
especiais. O pronunciamento dessas solicitações elucida especificidades dos campos de embate, mas aponta a família como
locus de referência.
Nessa perspectiva, é comum a manifestação de alguns setores da sociedade insistindo no argumento da existência
de uma “crise ou do fim da família”. Dentre as questões apontadas destacam-se a desestruturação familiar, devido a novas
formas de sua composição, entre as quais aparece a família recomposta (ou reconstruída) e a formação de casal homossexual
com ou sem a presença de filhos; diferenças na expressão da autoridade parental, haja vista a incorporação do processo de
autonomia e construção da individualização dos membros do grupo, sobretudo de filhos jovens; a crescente inserção feminina
no mercado de trabalho juntamente com outras formas de organização doméstica. Vale ressaltar que as mudanças ocorridas
nas últimas décadas, não provocaram um enfraquecimento da instituição família, “mas o surgimento de novos modelos
familiares, construídos a partir desses fenômenos sociais, mas, principalmente, das transformações nas relações entre os
sexos, vistas de uma perspectiva mais igualitária” (Peixoto e Cicchelli, 2000: 9). Essas transformações se difundiram por
vários países e pode-se afirmar que elas compõem as “novidades” da sociedade contemporânea. Decerto que as formas de
vivenciá-las possuem condições próprias de incorporação e não se realizam ao mesmo tempo e da mesma maneira em todos
os grupos e segmentos sociais, uma vez que essas condições possuem uma intrínseca relação de dependência com fatores
como: “mercado de trabalho, possibilidades de consumo, acesso aos sistemas de saúde e educacional, à informação e à ação
da mídia” (Bilac, 1995: 35).
Em termos de perspectiva teórica, alguns autores têm adotado como referência de análise a família conjugal,
configurando-se como uma alternativa de compreensão do processo de mudança social e seus reflexos internos ao grupo
doméstico. Essa abordagem privilegia o processo de individualização na família, baseado na compreensão de que seus
componentes constituem um grupo, mas este é formado por individualidades (Singly, 1993, 1996, 2000; Giddens, 1993,
Kaufmann, 2001 etc.). Desse ponto de vista, o casamento (cerne da família conjugal) não se traduz como base para
reprodução biológica, o motor interno dessa relação é a troca sexual, fazendo com que a relação sexual ocupe lugar de
destaque (Bozon e Heilborn, 2001; Bozon, 2004). A escolha do cônjuge continua fortemente centrada no grupo de pares
(homogamia conjugal), embora a configuração do mercado matrimonial, sobretudo com o maior percentual feminino na
população e aumento das taxas de divórcio, tem favorecido a formação de novos arranjos conjugais: casais com diferenças de
capital cultural, diferenças etárias, com filhos de relações anteriores, entre outros.
A partir da noção de individualidade, as relações sociais estabelecidas entre os membros do grupo familiar
adquirem novo contexto, são, também, mediadas por uma ambiguidade em torno do sentimento de independência e
pertencimento em relação à família. A compreensão da dinâmica familiar requer interpretações acerca das interdependências
estabelecidas entre seus membros, cujo grau de autonomia depende da posição que ocupam, correlacionada com
características de gênero, geração, inserção profissional, entre outros. Cicchelli (2000: 114) defende o pressuposto de que:
“Por um lado, a produção de indivíduos autônomos não é, de maneira alguma, feita em detrimento da construção do
laço familiar e, por outro lado, estas duas dimensões devem ser tratadas conjuntamente pelo pesquisador, na medida
em que os atores sociais contemporâneos são indissociavelmente ligados às preocupações consigo mesmo e com os
outros.”

Compreender como cada grupo social trata a questão da individualidade e da reciprocidade nas relações familiares,
significa estar atento para a maneira como as concepções de família são aferidas nos distintos segmentos sociais. A noção de
autoridade presente nestas concepções implica não só uma relação hierárquica, mas, também, estratégias de barganha na
relação de poder, que devem ser entendidas como um “processo dinâmico, recíproco e interativo” (Salem, 1980: 187). Logo,
há uma fluidez do poder que é alocado de forma diferente conforme os indivíduos envolvidos na trama social, no contexto
em que ocorre a cena e no tempo histórico equivalente. Assim, a autora afirma que: “os padrões de poder não são estáveis no
curso da biografia da família, mas, antes, fluidos e específicos segundo tempo e situação” (p.187).
No momento atual, parece estar cada vez mais preeminente a posição de que a família se transforma ao longo do
tempo, se adaptando aos novos contextos e assumindo um perfil mais centrado na qualidade das relações entre os indivíduos,
inclusive no respeito às escolhas e aos desejos de cada membro do grupo. Assim, ressalta-se a prevalência de valores
igualitários que contribuem para o enfraquecimento da hierarquia e do formalismo nas relações familiares. Entretanto, é
necessário relativizar tal perspectiva a fim de evitar a construção de uma visão romântica e puramente harmoniosa destas
relações, demonstrando-a como um espaço mais democrático e isento de conflitos, sobretudo de geração. Decerto que já se
vislumbra mudanças de atitudes, sobretudo entre pais e filhos e com maior intensidade nas camadas médias, através de
posicionamentos mais flexíveis, busca de diálogo, negociação e maior expressão de afetividade entre os homens do grupo; no
entanto, os limites continuam sendo estabelecidos e outras formas de repreensão são adotadas.
No Brasil, a família é uma referência primordial para o indivíduo porque o situa na sociedade e remete a
sentimentos de identidade e de pertencimento. DaMatta (1987) atesta a importância de se ter “um nome de família”, sendo
esse um dos aspectos que reforça a sua percepção como valor. Percebe-se a incorporação de novos sentidos e novas
expectativas nas relações familiares, a exemplo da composição e manutenção do casal conjugal a partir da dimensão do afeto.

102
O momento atual solicita “diálogos” mais intimistas entre os sujeitos e as agências sociais, motivados por uma busca de
reflexividade (Giddens, 1991), demarcando reciprocidades e conflitos, instituindo situações em que prevalecem o “eu” ou o
“nós”. Sentimentos e anseios se expressam também nas demarcações de espaço da vida privada, do individualismo e de
novas formas de participação no cotidiano familiar, como por exemplo, a reivindicação masculina por uma paternidade mais
participativa e da nova maternidade, que tem por ideal a busca pela equidade na responsabilidade parental (Scavone, 2001).
Embora a consolidação de relações igualitárias entre os sexos não tenha se estabelecido de forma plena nas diferentes esferas
sociais, endosso a premissa de que "é também no cotidiano da vida familiar que surgem novas idéias, novos hábitos, novos
elementos, através dos quais os membros do grupo (...) criam condições para a lenta e gradativa transformação da sociedade"
(Bruschini, 1993: 77).
Nesse sentido, o jovem aparece como um ator social potencialmente capaz de adaptação e proposição de mudanças.
Pensar a juventude é pensar a diversidade que a circunscreve, reconhecendo que não se trata da definição de uma
determinada faixa etária, mas de um processo, uma passagem à vida adulta, que tem, também, suas marcas de gênero.
Galland (1993) aponta a vigência de um prolongamento da juventude, inclusive com maior investimento nos estudos e
postergação de saída da casa parental.
As nuances dessa transição são demarcadas por diferentes condições e posição de classe social (Bourdieu, 1992).
Para esse autor, é importante investigar a juventude a partir da sua heterogeneidade, alertando que a linguagem possibilita
reunir no mesmo conceito universos sociais distintos, mas não inviabiliza a construção de interesses coletivos de geração
(Bourdieu, 1983). Dessa forma, a heterogeneidade é, também, formada por especificidades de origens sociais, perspectivas e
aspirações, nas quais as vertentes de acesso à vida adulta mostram-se flutuantes, flexíveis e diversificadas, compondo a
complexidade do debate e revelando a existência de várias formas de transição (Pais, 1993), entre as quais se destaca a
inserção no mundo do trabalho, com importância atestada pelos autores. Nesse sentido, Sposito (1997: 39) revela a trajetória
de jovens de baixa renda, cujo trabalho precoce se constitui em uma necessidade que propicia a aquisição de autonomia e
responsabilidade.
“Para o conjunto da sociedade brasileira, a tendência maior é a de antecipação do início da vida juvenil para antes dos
15 anos, na medida em que certas características de autonomia e inserção em atitudes no mundo do trabalho - típicas
do momento definido como de transição da situação de dependência da criança para a autonomia completa do adulto –
tornam-se o horizonte imediato para grande parcela dos setores empobrecidos”.

Analisar a juventude e as relações familiares, tendo por base a experiência de parentalidade4 implica o
entendimento de situações de independência e/ou dependência financeira, de solidariedade intergeracional, bem como estar
atento para a reorganização familiar que abriga formas diferenciadas de coexistência e de coabitação entre gerações, e que
expressam valores e comportamentos diversos. A compreensão da família como grupo social contempla a discussão de redes
e relações sociais que se estabelecem, pautadas em práticas de solidariedade, reciprocidade e conflitos (Dias & Peixoto, no
prelo).
O nascimento do filho é um dos demarcadores de passagem da adolescência à vida adulta, embora essa transição,
para muito dos jovens aqui analisados, possa já ter se iniciado com a aquisição de outras responsabilidades como a inserção
precoce no mercado de trabalho. As inferências apresentadas nesse texto são oriundas da Pesquisa GRAVAD5, mas para fins
dessa análise ateve-se ao resultado de um percurso metodológico que contemplou entrevistas semi-estruturadas realizadas
com jovens de ambos os sexos, de 18 a 24 anos, residentes na cidade de Salvador, Bahia, Brasil.
A análise dos dados revela que a maioria dos jovens mora com seus familiares, ainda que vivam conjugalmente
com suas/seus parceiras/os. Segundo Pais (1993), na sociedade moderna os problemas que mais afetam a juventude são os
relacionados e derivados da inserção no mercado de trabalho. Como consequência das dificuldades de conseguir um emprego
que garanta a independência financeira, ocorre o aumento do tempo de permanência na casa dos pais, incluindo situações em
que permanecem na condição de recém-casados. Essa é uma situação presente entre os/as entrevistados/as.
A convivência de pais com seus filhos possui suas ambivalências; o laço de filiação é “considerado
simultaneamente uma ligação e uma obrigação, marcado tanto pelo desejo quanto pela rejeição” (Cicchelli, 2001: 257). A
permanência na casa parental aventa um “prolongamento da socialização” (Ciccheli, 2000, 2001), pois o jovem continua
inserido em um espaço com normas e regras que são também direcionadas para a construção da sua autonomia e ascensão à
vida adulta. Mas, se por um lado, essa situação propicia certo conforto familiar, por outro lado, é permeada por conflitos,
tensões e ressentimentos entre os membros do grupo. Assim, a convivência com a família é, em geral, marcada pela
existência de um universo cultural juvenil com novos códigos e valores que diferem do de seus pais. Isso contribui, muitas
vezes, para o acirramento dos conflitos entre pais e filhos (Pais, 1993).

4
O termo parentalidade está sendo utilizado para designar a condição de maternidade/paternidade na adolescência; é um neologismo que visa suprir a falta da
palavra em português, correspondendo ao termo inglês parenthood (Heilborn, 1993; Heilborn et. al., 2002)
5
O projeto “Gravidez na Adolescência: Estudo Multicêntrico sobre Jovens, Sexualidade e Reprodução no Brasil” foi elaborado originalmente por Maria Luiza
Heilborn (IMS/UERJ), Michel Bozon (INED, Paris), Estela Aquino (MUSA/UFBA), Daniela Knauth (NUPACS/UFRGS) e Ondina Fachel Leal
(NUPACS/UFRGS). A pesquisa foi realizada por três centros: Programa em Gênero, Sexualidade e Saúde do IMS/UERJ, Programa de Estudos em Gênero,
Mulher e Saúde do ISC/UFBA e Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde da UFRGS. O grupo de pesquisadores compreende Maria Luiza
Heilborn (coordenadora), Estela Aquino, Daniela Knauth, Michel Bozon, Ceres G. Victora, Fabíola Rohden, Cecília McCalum, Tania Salem e Elaine Reis
Brandão. O consultor estatístico é Antônio José Ribeiro Dias (IBGE). A pesquisa foi financiada pela Fundação Ford e contou com o apoio do CNPq.

103
Quando o jovem casal consegue formar sua própria família, geralmente o domicílio se localiza próximo à casa de
seus familiares. Assim, seus vizinhos são caracterizados por relações de parentesco: mães, sogras, cunhados, tios. Não raras
são as vezes em que o novo endereço corresponde à casa de cima ou a da frente da residência dos pais. Ter a família como
vizinhança é comum nas camadas populares. A mulher busca particularmente morar próximo à mãe, em razão do predomínio
e da predisposição de tensões na relação entre nora e sogra. Esse vínculo é constitutivo de uma relação por afinidade e
representa “uma relação obrigatória, quer dizer, inevitável, inelutável, forçosa” (Lemarchant, 2000: 168), com poucas
chances de fazer prevalecer a dimensão eletiva.
A literatura aponta a tendência da relação de proximidade, apoio e afeto na díade mãe-filha e um maior
distanciamento dos filhos, pois estes tendem a conviver mais com as famílias de suas esposas (Macêdo, 2001), sem que esse
movimento implique perda do afeto e do apoio material de suas famílias de origem. No tocante as relações de troca e de
ajuda, a tendência é que se recorra às mães. Afinal, “uma mulher sempre está mais disponível para sua filha do que para sua
nora” (Lemarchant, 2000: 170). Logo, os laços filiais se intensificam, sobretudo no cuidado com os/as netos/as. Vários
estudos sobre relações familiares apontam a proximidade geográfica como um fato importante na consolidação da
solidariedade familiar, mas os laços afetivos não são comprometidos por um distanciamento espacial (Peixoto, 2000a).
Os relatos evidenciam uma tendência à união do casal com a descoberta da gravidez e/ou nascimento do filho.
Entre os 20 jovens entrevistados, 12 disseram que se uniram conjugalmente em função da experiência de
maternidade/paternidade na adolescência. Entre os jovens pais, apenas dois continuam unidos com as parceiras, outros dois
mantêm o relacionamento afetivo-sexual com as mães dos seus filhos e esboçam o desejo de se casarem com elas. Os poucos
casos de união conjugal por parte dos rapazes não são surpreendentes, levando em conta que são mais novos do que os
parceiros das jovens mães. A maior estabilidade conjugal encontra-se nos casos de uniões das moças provavelmente a qual
deriva de uma melhor inserção social dos seus companheiros. Vale ressaltar que a gravidez entre adolescentes foi mais
frequentemente descrita pelos rapazes, cujas parceiras eram quase sempre mais novas ou tinham a mesma idade deles. As
jovens tendem a manter a relação conjugal e em um dos casos a moça se casa antes da gravidez. Contudo é, geralmente, a
situação de gravidez que motiva a união conjugal, sempre assumida como uma escolha do jovem casal, sobretudo por
considerar que a vida a dois inscreve-se em um dos caminhos de autonomia juvenil. Ainda que os jovens pais e mães contem
com formas de apoio material das suas famílias de origem e/ou das famílias dos/as parceiros/as, advogam que a vida do casal
está no campo de escolhas individuais. Entre os/as entrevistados/as percebe-se que uns dependem totalmente das famílias,
pois não possuem nenhum tipo de rendimento, outros conseguem certa autonomia financeira para prover a família, mas ainda
insuficiente para garantir total independência material.
Nessa conjuntura, a família configura-se como agente mediador em variados níveis, reafirmando a condição de que
as relações familiares se apresentam como suporte imprescindível no processo dos jovens de tornarem-se adultos. Ao
apontarem as mudanças sofridas nas suas vidas, a partir das situações de parentalidade e conjugalidade, e a forma de
convivência familiar, os jovens revelam que recorrem à família de origem em algumas situações, principalmente nos
momentos de conflitos com seus pares – os quais esboçam diferentes formas de intervenção e de posicionamento sobre as
escolhas individuais.
Entre os/as entrevistados/as há um sentido implícito de que a família se constitui a partir de uma formação que
reúne o casal e filho. Quando essa configuração não se estabelece, o filho é agregado à família de origem, adquirindo o
sentido de novo membro. A reprodução do modelo nuclear figura como uma idéia definida no imaginário social (Fonseca,
2002), por isso este formato tende a ser socialmente esperado. A literatura contemporânea sobre casamento e/ou uniões
conjugais refere-se à importância das relações amorosas como impulsionadoras ou responsáveis por esse processo. Os jovens
se unem conjugalmente tendo em vista a perspectiva de acolhimento da criança e o afeto em relação ao outro, objetivando,
entre tantas, uma das modalidades da atualidade: “o ideal de juntos por amor” (Bozon, 2004). Dessa forma, a união conjugal
juvenil está associada ao desejo e ao sentimento afetivo-sexual nutridos pelo parceiro/a, mas motivado, no momento, pela
gravidez. Situação semelhante foi apontada por Pais (1993), em pesquisa realizada com jovens, ao constatar que na decisão
de casar as hierarquias sentimentais e eróticas são privilegiadas.
A formação do casal, na contemporaneidade, endossa as características da escolha por amor, desejo, paixão,
acompanhado da relação de confiança que se estabelece entre os pares (Giddens, 1993, Singly, 1993, 2000). Na literatura
sociológica acerca do processo de individualização focalizando a esfera da intimidade, as relações sociais entre os sujeitos,
especialmente no campo da afetividade, são marcadas por construção e negociação intensas. Tais relações são orientadas por
uma busca de autonomia, que se expressa de forma plural, evidenciando as diferenças subjetivas inscritas nos tipos de
inserções e posições sociais dos indivíduos. Ainda que marcadas por especificidades, figura como ícone do processo de
construção da individualidade, a escolha do par com quem se quer estar e por quem se opta regido pelo sentido do “amor
paixão” (Luhmann, 1991).
Embora se trate de jovens e a durabilidade das relações afetivo-sexuais seja demarcada pela possibilidade de
incertezas, expressas na (possível) ausência da expectativa do “para sempre” e na valorização da intensidade do
relacionamento, o significado de compromisso assumido com a parentalidade e/ou com coabitação, os remete a um outro
patamar de vida, tornando-os pais e mães de família. Tal fato revela-se como suficiente para sentirem-se adultos. Béjin
(1987) afirma que na coabitação juvenil não predomina a suposição de que o relacionamento seja definitivo, a sua duração
está submetida a uma renegociação cotidiana entre os parceiros. Jovens casais ao decidirem pela coabitação firmam um
compromisso, mas atestam que a união se realiza em função da gravidez, ainda que, em algum momento, o casamento

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estivesse em seus planos. No entanto, em determinados casos, ocorre pressão da família da moça para uma assunção da
paternidade que contemple a união conjugal, mesmo assim todos os jovens insistem no registro de que a situação de
conjugalidade foi uma decisão do casal.
A família contemporânea ocupa lugar privilegiado tanto na reprodução biológica e social como na construção da
identidade individualizada (Singly, 2000), na qual a conjugalidade assume o estatuto de domínio autônomo da família
(Heilborn, 2004), fundamentando, assim, a esfera da produção de sentido, onde a parentalidade adiciona sentido existencial
para o indivíduo (Torres, 2000). Desse modo, a decisão de morar junto é permeada de sentimentos e significados. As
condições de parentalidade e conjugalidade aguçam o sentido de responsabilidade e promovem o redimensionamento do
novo contexto em que se inseriram. Estar e morar junto cria uma interação cotidiana (Torres, 2001), ainda que precedida da
convivência do namoro. Estar em situação de cônjuge pressupõe “encarar a esfera privada como um mundo onde há escolha e
autonomia para ‘moldar’ a realidade à nossa maneira, o que tende a traduzir-se em altas expectativas em relação ao
casamento” (p.91).
O cotidiano da vida do jovem casal revela-se como um aprendizado dinâmico e potencialmente sujeito a
“metamorfose dos sentimentos” (Kaufmann, 2001). O posicionamento frente aos conflitos, às negociações e às decisões
esboçam questões de âmbito individual, mas há também o recurso à família (Brandão, 2003), como domínio legitimado de
aconselhamento e amparo. Quando o assunto é o relacionamento do casal, a família é requerida, especialmente no tocante as
circunstâncias que envolvem indecisão e angústia, buscando aclarar sentimentos e escolhas. A experiência de vida dos pais e
em alguns casos de irmãos mais velhos é valorizada, não significando, necessariamente, acatar as propostas destes.
Os comportamentos juvenis, muitas vezes, são emblemáticos da proposta de uma vida individualizada, mas a vida
de casal (jovem), acentuada com a presença de filho, não consegue manter o distanciamento, ou a independência almejada,
dos posicionamentos, das atenções e sugestões familiares. Embora recorram à família para aconselhamentos e queixas, os
entrevistados não relatam um cotidiano da vida de casal compartilhado com os pais, fazem questão de demarcar que a
condição de casal constitui uma esfera autônoma das suas vidas, em última instância advogam que a decisão cabe a eles/as.
Afirmam que a coabitação com os parceiros/as é regida por negociações e renegociações próprias do casal, embora tenham
ciência das expectativas familiares sobre seus comportamentos e atitudes. Não decepcioná-los apresenta-se como mais uma
das tensões vividas em um momento de tantas novidades e descobertas, o que revela uma sutil forma de controle parental.
A nova conjuntura que se impõe na vida dos jovens pais provoca inquietudes, incertezas e receios sobre o devir. A
representação de risco do matrimônio é ilustrada nos depoimentos sobre as dificuldades da vida a dois, corroborando a
perspectiva de que “o casamento precisa de algum sacrifício e de algum empenho” (Torres, 2001: 61).
As narrativas dos jovens expressam dilemas presentes na vida conjugal, nos quais o indivíduo oscila entre o “eu” e
o “nós”. A família contemporânea se constitui numa esfera capital na construção de si, construção da individualidade no
espaço das relações, reafirmando o caráter relacional do indivíduo (Singly, 2000). Na literatura sócio-antropológica
brasileira, um dos campos de debate sobre família demarca uma distinção acerca da sua representação entre os diversos
segmentos sociais. Os autores advogam a preponderância de valores mais igualitários e individualistas associados às camadas
médias, em contraposição a valores mais relacionais e hierárquicos nas camadas populares. Nessa perspectiva, os jovens
baianos apresentam uma peculiar ambivalência: o ideal individualista, também predominante nas camadas médias, cede
espaço para o indivíduo relacional com a emergência da parentalidade. A forma como se manifestam as relações familiares,
com ênfase no grupo e no parentesco, possui configurações específicas de ethos, cujo código de valores é definido por
sentimentos de moralidade e responsabilidade.
Ao associarem a união conjugal à constituição de uma nova família, os jovens definem como prioridade dessa
instância as funções parentais, cuja conotação se expressa no eu e no outro. Quando refletem sobre a trajetória da
adolescência à experiência de paternidade/maternidade, avaliam que poderiam ter investido primeiramente no “eu-
individualizado”, onde se inclui a conquista de independência e maior autonomia, e, só depois na formação familiar – sempre
mencionada como um desejo. A “mudança de planos” com o nascimento da criança, e as relações sociais que passam a existir
entre pais e filhos, se apresenta envolta por um “espírito de família”, funcionando como habitus de reafirmação institucional
que, segundo Bourdieu (1996: 129): “visam produzir, por uma espécie de criação continuada, as afeições obrigatórias e as
obrigações afetivas do sentimento familiar (amor conjugal, amor paterno, amor materno, amor fraterno etc.)”. A literatura
brasileira que discute relações familiares nas camadas populares é categórica na premissa de que filho e casamento/união ao
implicar responsabilidade acentuam o significado da moralidade e da honra (Sarti, 1995, 2003, Heilborn, 1997). Tornar-se
pai/mãe (de família) significa assumir dependentes, cumprir obrigações, mesmo que matizadas em graus variados. Alguns
jovens, geralmente homens, se recusam a constituir união conjugal, mantendo a assunção paterna; outros aguardam um
momento financeiramente propício para formarem um novo domicílio e poder reunir a família; e outros se rendem à
coabitação. Há que se considerar que a parentalidade em si mesma demarca mais uma esfera de reconhecimento de
autonomia, que passa a ser conquistada cada vez mais precocemente por crianças e adolescentes.
Entre aqueles que passaram a coabitar com o/a parceiro/a, alguns desfizeram o laço conjugal, geralmente após o
nascimento do filho. Os discursos não refletem uma banalização da separação, mas é perceptível uma naturalidade da
situação, caracterizada como algo presumível e em alguns casos previsto.
Alguns jovens descrevem a interrupção ou término do relacionamento revelando que ainda sentem-se envolvidos
afetuosamente com o/a pai/mãe do seu filho, mas demonstram que o amor por si só não é suficiente para manter a vida
conjugal (Torres, 1996). Outras questões, descobertas, anseios e recomeços balizam essa decisão.

105
Nas narrativas femininas, estão presentes situações de desilusão em relação ao ex-parceiro, justificadas por
mudanças de comportamentos, sobretudo depois do nascimento da criança. A convivência marca as descobertas de si e do
outro na relação a dois. A conjugalidade dos casais jovens também é vulnerável à presença de “sinais de desconstrução em
relação ao sentimento inicial, situações conflituais de desfecho incerto” (Torres, 2000: 155). Nos momentos de conflitos
conjugais, os indivíduos buscam alguém de referência para dialogar, mas revelar acontecimentos ou situações da intimidade
requer confiança. Algumas jovens privilegiam a família, particularmente a mãe como principal interlocutora. É interessante
notar que em certos depoimentos femininos são perceptíveis determinadas mudanças de atitudes – as amigas são substituídas
pela mãe, sobretudo para conversar assuntos de família. Em última instância, é a mãe que ocupa posição privilegiada no
diálogo com os filhos. Vale lembrar que a conversa entre pais e filhos é também uma possibilidade de controle familiar
(Rezende, 1990). A construção social da mãe, para além dos estereótipos presentes no imaginário social, reúne elementos de
mito (cautela com conselhos, avisos e pressentimentos maternos) e de sabedoria. É uma relação de confiança porque se
acredita que ela deseja sempre e irrestritamente o bem dos seus filhos. Segundo Badinter (1985: 213): “a família moderna se
recentra em torno da mãe, que adquire uma importância que jamais tivera”.
Nos discursos dos jovens pais e mães de Salvador, tornar-se pai/mãe (de família), com ou sem vínculo conjugal,
remete a um reconhecimento da inserção na vida adulta. Para alguns jovens, as relações familiares modificam-se
substancialmente nesse momento e a parentalidade juvenil cria instâncias e relações próximas entre pares (pais e filhos-pais).
Entretanto, não ocorre uma perda da dimensão das hierarquias e assimetrias, os pais dos jovens não são simbólica e
efetivamente destituídos da sua autoridade. As relações entre eles apresentam nuances, compartilham um campo de maior
cumplicidade, confiança e intimidade. Pais e filhos consideram-se mais amigos.
Entre os rapazes, as relações familiares são descritas de forma breve. Brandão (2003) destaca que as questões
referentes a conflitos familiares e afetivos são narradas por eles não apenas com brevidade, mas também com uma postura de
distanciamento. A condição parental promove uma identidade social masculina, mas não revela uma intimidade com o pai,
sobretudo para debater questões afetivas. Ainda que se anuncie uma “qualidade do relacionamento, com ênfase sobre a
intimidade que substitui a relação de autoridade dos pais” (Giddens, 1993: 111), é perceptível que sua implantação encontra-
se em estágios variados. Possivelmente os jovens pais ao proporem relações de maior cumplicidade e menor distanciamento
com seus filhos, já experimentem relacionamentos mais próximos do ideal democrático anunciado no âmbito das relações
familiares, que já é atestado por alguns grupos sociais em determinados contextos culturais.
Entretanto, verifica-se nas narrativas dos rapazes aqui pesquisados que “no plano das trocas afectivas e simbólicas,
as mulheres são os principais agentes” (Segalen, 1996: 128). Assim, o comportamento familiar reafirma o domínio feminino
no tocante às funções de atenção e cuidado com os membros da família, seguindo a norma social ainda predominante. Mas é
importante para os jovens que seus pais reconheçam o processo de crescimento pessoal ao qual foram submetidos desde a
gravidez até a gestão das suas funções paternas.
Em síntese, observa-se que os jovens valorizam as escolhas feitas, consideradas expressões de uma autonomia em
construção. Assim, eles/as destacam a opção pela união conjugal, pela separação, ou, simplesmente, por não viverem
conjugalmente (atitude observada apenas entre rapazes), ainda que exista uma pressão familiar, mais expressiva nas camadas
populares (Dias e Peixoto, no prelo). Os sujeitos sentem-se capazes de decidir rumos da sua própria vida, contudo,
reconhecem que a implementação das suas escolhas está atrelada e depende efetivamente do apoio familiar. Em geral, a
família que tem melhor condição financeira e/ou material ajuda mais seus jovens. Independente da diversidade de situações
de gestão e provimento entre os entrevistados e seus filhos, o suporte familiar ocorre de forma constante e variada. Assim, as
relações familiares são marcadas pela busca juvenil em asseverar a sua autonomia e a condição de parentalidade potencializa
tal processo, especialmente quando estabelecem um novo núcleo familiar.

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Notas sobre família, hierarquia e gênero na Academia Militar das Agulhas


Negras
Cristina Silva
Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

Resumo: A comunicação apresenta um estudo etnográfico sobre as famílias de oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras
(Resende/Rio de Janeiro/ Brasil) – instituição representativa do Exército Brasileiro. Logo, o foco deste trabalho está na compreensão da
composição da família do militar (oficiais, cônjuges e filhos/as), na sua rede de relações e os ambientes em que elas circulam, nos atentando
para questões de gênero, família e forças armadas. Os dados têm mostrado que o próprio termo “família militar” é tido como um conceito
nativo, pois significa para os militares tanto a identidade do grupo (a instituição militar como um todo) caracterizada por uma forte “união,
apoio e solidariedade”; como também evidencia um dos valores sempre lembrados na Academia: a família como suporte para a vida. Assim,
a “família militar” apresenta características que são definidas, sobretudo, pelas normas e condutas da instituição militar (regida, sobretudo,
pelos valores da hierarquia e disciplina), nos sugerindo a idéia de que a família possa ser considerada uma extensão do quartel, que se reflete
na organização da moradia e do cotidiano dessas pessoas, marcado, segundo eles, por um convívio maior com outras famílias de mesmo
circulo hierárquico do cônjuge militar e também por algumas dificuldades, como a instabilidade da vida escolar dos filhos e o problema do
cônjuge em dedicar-se a uma profissão devido às frequentes mobilidades geográficas que o oficial de carreira é submetido.

Introdução
Este paper pretende apresentar os resultados iniciais de um estudo etnográfico, ainda em andamento, acerca das
famílias de oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) – instituição localizada em Resende/Rio de Janeiro e
responsável pela formação de oficiais combatentes do Exército Brasileiro. O objetivo principal é compreender como se
estrutura a família do militar, sua rede de relações e os ambientes em que circulam, buscando mostrar aspectos e práticas da
vida cotidiana de oficiais, cônjuges e filhos/as, analisando suas formas de sociabilidade e dificuldades e facilidades em
empenhar projetos familiares e individuais.
Um dos interesses que justifica a análise da “família militar” está no fato de tentar compreender se a corporação
entende que a família é uma extensão da caserna (quartel), que se reflete na organização da moradia, circulação de filhos,
organização do cotidiano (formas de trabalho, lazer, etc.), enfim, na construção de todo um aparato simbólico que torna a
família um elemento vital para se entender a dinâmica do cotidiano militar. Cabe lembrar que a vida militar é regida por um
sistema de crenças e valores próprios da instituição militar; um grupo considerado “fechado”, tradicional e altamente
hierárquico (Castro, 1990; Leirner, 1997).
Ao pensar a “família militar”, também estamos tentando articular os assuntos da vida militar com questões de
gênero, parentesco e família. Assim, tratando as noções de parentesco e família como um universo de relações (Schneider,
1968; Strathern, 2006; Carsten, 2003), buscaremos compreender como estas são compartilhadas e vivenciadas entre as
famílias de militares e de que modo as normas e condutas da instituição são reproduzidas nesta esfera. Os estudos sobre
“família” importantes para pensar nossa pesquisa nos indicam desde a idéia de desnaturalizar e colocar no plano sociológico
a noção de família (Lévi-Strauss, 1956; Héritier, 1989), até a discussão recente sobre a pluralidade de novos arranjos
familiares (Carsten, 2003; Fonseca, 2007) que tendem a dissolver a preocupação com modelos e tipologias para pensar em
princípios de relação entre os que se dizem e sentem familiares. E, ao pensar nas relações entre homens e mulheres, sempre
será adotada a idéia de gênero como relacional, aos moldes de Strathern e Carsten, na qual o masculino e o feminino são
dependentes e constitutivos um do outro; mas sempre lembrando que também temos que levar em consideração que a
sociedade na qual vivemos naturaliza a dicotomia masculino/feminino.1

1
Nossa sociedade pensa a todo o momento por pares de oposição, havendo uma produção e reprodução contínua, um trabalho constante de diferenciação a que
homens e mulheres estão sempre submetidos e que os leva a distinguir-se masculinizando-se ou feminilizando-se. Essa dicotomização dos papéis sexuais
Esta nota continua na página seguinte

108
A pesquisa de campo, até o momento, consistiu em: a) numa observação etnográfica na AMAN e em sua respectiva
vila militar; b) na realização de entrevistas com oficiais da Academia e seus cônjuges, além de conversas informais com
outros militares e esposas; e c) na participação da pesquisadora em um dos eventos de confraternização do curso de Infantaria
da Academia. Ao todo, foram efetuadas 15 entrevistas com casais (marido e esposa) cujo cônjuge militar trabalhava na
AMAN no ano de 2007. Os oficiais entrevistados correspondiam a oficiais generais, oficiais superiores (coronéis, tenentes-
coronéis e majores) e oficiais intermediários (capitães).
Dito isto, veremos como as famílias de militares lidam com a questão das frequentes mudanças, como é a vida nas
vilas militares e como é ser esposa de militar para as entrevistadas; sempre lembrando que o próprio termo “família militar” é
entendido como um conceito nativo e que será melhor discutido ao fim deste texto.

Mobilidade geográfica
De um modo geral, os oficiais de carreira do Exército são movimentados, isto é, transferidos de organização
militar, a cada 2 ou 3 anos. O plano de carreira militar ainda inclui um período para os aperfeiçoamentos da profissão: a
EsAO (Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais – Rio de Janeiro/RJ) e, anos depois, a ECEME ( Escola Superior e Estado-
Maior do Exército – Rio de Janeiro/RJ). As transferências são de caráter nacional e, os destinos, na maioria das vezes,
dependem da classificação adquirida pelo oficial nesses cursos de aperfeiçoamento. Um general, por exemplo, chega a fazer
cerca de 15 transferências durante sua carreira. E nessas mudanças a família (cônjuge e filhos/as), quase sempre, o
acompanha.
Os casais afirmam que a constante mudança gera uma série de problemas para a adaptação do militar e sua família
ao novo lugar (desde o espaço da nova casa até os costumes de determinada região), mas também proporciona, segundo eles,
a possibilidade de conhecer novas pessoas e novos ambientes:
As dificuldades são próprias da parte prática, de você montar a casa, desmontar a casa. Então vai das coisas mais
simples, cortina que não dá numa janela até móveis que não cabem, configurações da casa que você não tem, o quarto
da criança que daqui a pouco você não tem mais. A casa você pega independente da sua estrutura familiar. Então é
uma casa padrão, ela tá lá, você não escolhe a casa pelas suas necessidades, você é escolhido. É aquela casa que ta
lá pra você. E tem a parte com o próprio envolvimento, adaptação com a nova cidade, novos costumes, a parte da
cultura. As crianças quando tão maiores envolve a parte de colégio, de amizades. A nossa própria convivência com os
companheiros também muda de uma cidade pra outra, o jeito que as pessoas são. Você se adapta muito várias vezes.
Você chega e quando você já está adaptado, você muda de novo. Essa que é a realidade. (Oficial)

No entanto, mesmo quando instalados no novo lugar, outros obstáculos surgem para o militar e, sobretudo, sua
família: como a dificuldade de emprego e/ou faculdade para a esposa e demais dependentes dos militares. As barreiras para
cursar uma faculdade vêem do fato de que, a cada nova mudança de região, o dependente de militar que estuda numa
faculdade e/ou universidade, corre o risco de atrasar a conclusão de seu curso, pois a transferência entre faculdades não
implica na validação total dos currículos do aluno, ou seja, se, por exemplo, um aluno que está no 5º semestre de algum curso
na UNB, ao se mudar para o Rio de Janeiro precisará voltar para o 1º semestre do mesmo curso na UNIRIO.
Com relação ao emprego podemos notar que a esposa de militar enfrenta maiores dificuldades para exercer uma
profissão. Nas várias entrevistas, tivemos que o ser “mulher de militar” já era uma condição para não serem admitidas em
empresas e indústrias, visto que não seriam um “bom investimento” já que o emprego para elas seria de certo modo
“provisório”, com uma duração de 2 a 3 anos (o equivalente ao período em que o marido estaria servindo numa instituição
militar na região). A falta de estabilidade num trabalho também não permite a ascensão na carreira, gerando “frustrações” em
algumas das esposas entrevistadas. No entanto, muitas dessas mulheres de militares pensam como alternativa a essa
dificuldade, prestar um concurso federal; não só porque é um emprego estável, mas porque tem como vantagem a
possibilidade de serem transferidas de lugar quando o marido militar tiver que mudar de cidade e/ou estado.
Trabalhando ou não, a esposa de militar, como disse a mulher de um capitão, “tem que estar sempre pensando na
carreira do marido”.
Quando a gente casa com eles [militares], a gente casa com a Força junto. E aonde tem missão, aonde eles são
designados, a gente tem que ir, não é uma opção. (Esposa de Oficial)

E no caso, a profissão militar, que é vista pelos militares como um “modo de vida”, um “sacerdócio”2, “em prol de
um bem maior”, acaba tendo um valor maior para a estruturação das suas famílias; poderíamos dizer até que a instituição
militar “engloba” a família dos militares, pois o modo como a esposa e os/as filhos/as vivem, sofre influência direta do
trabalho do marido militar.

comporta sempre uma hierarquia, onde o masculino se impõe como superior ao feminino, isto é, vemos em nossa sociedade uma dominância masculina e autores
como Bourdieu (2003) e Héritier (1989) buscam compreender o porquê dessa classificação.
2
Devido aos horários rígidos e dedicação quase que exclusiva a profissão militar.

109
A vila militar
A vila militar em Resende, que faz parte do complexo da AMAN, é composta por 580 moradias destinadas a
oficiais, praças (cabos e sargentos) e funcionários civis. As vagas na vila são condicionadas ao oficial que possui
dependentes. Há também na cidade um prédio exclusivo para homens militares solteiros, e um prédio para militares e seus
dependentes. A moradia militar é denominada PNR (Próprio Nacional Residencial).
De certo modo, notamos que a estrutura da vila reflete a hierarquia operada na Academia: há a divisão “vila dos
oficiais” e “vila dos sargentos”, cada uma composta de um clube próprio, indicando que a diferenciação por círculos
hierárquicos encontrada no ambiente de trabalho, estende-se para o ambiente de lazer e, como veremos depois, para o círculo
de amizades. As casas são padronizadas e também vão ficando maiores e mais espaçosas à medida que aumentam as
graduações dos militares, isto é, as moradias de oficiais subalternos são térreas e pequenas se comparadas às dos oficiais
superiores, que são sobrados. Essa diferença também se reflete em relação ao pagamento de aluguel: quanto maior o posto,
maior o valor pago.
Toda essa configuração da vila nos indica que as famílias de militares acabam convivendo e compartilhando mais
relações com outras famílias de mesmo círculo hierárquico do cônjuge militar, não só pela proximidade das casas, mas por
participarem das mesmas atividades sociais. E de certo modo, esse convívio acaba sendo um reflexo das relações
estabelecidas no quartel, pois não só aproxima as famílias de oficiais de mesmo circulo hierárquico e/ou Arma, como também
distancia a proximidade dessas com famílias de sargentos. Assim, temos que
O ambiente militar ele é formal, regido pela hierarquia e pela disciplina, então naturalmente existe todo um trato
de respeito entre tenentes e capitães, e capitães e majores, e majores e tenentes-coronéis. Até o general. E essa
formalidade, eu sempre falo pra minha esposa: “o ser humano é uno. Não existe o Luís* no trabalho e o Luís em casa,
é a mesma pessoa”. E essas duas vidas, a profissional e a familiar, elas se mesclam, então naturalmente os
militares trazem pra dentro de casa essa hierarquia. (Oficial)

*Nome fictício.

Assim, algumas das regras e condutas estabelecidas na instituição militar (local de trabalho) se mantêm no
ambiente doméstico e de lazer dessas pessoas, ressaltando-se, sobretudo, os valores da hierarquia e disciplina – os pilares da
instituição3.
Mais que isso, encontramos evidências de que algumas esposas civis de militares comportam-se de modo paralelo
ao cargo do marido militar, como meio de diferenciação e status simbólico perante o grupo4, ou seja, acabam reproduzindo a
hierarquia deles perante outras esposas.
Por um lado, essa “hierarquia das esposas” é vista como positiva e até “funcional” para os entrevistados: a esposa
de comandante de curso e/ou a esposa do general – comandante da Academia – assumem tarefas tais como: organizar eventos
para reunir as esposas, tratar de lembrar os aniversários das mulheres e presenteá-las com algum bem simbólico, verificar se
as esposas passam por dificuldades, enfim, acabam assumindo um papel de “representante” das esposas de militares. A
organização SASAMAN (Serviço de Assistência Social da Academia), localizada dentro da AMAN, é um bom exemplo
disso: é uma associação composta majoritariamente por mulheres de militares, coordenada pela esposa do comandante da
AMAN e voltada para ajudar famílias de militares de baixa renda da própria vila militar.
Mas, segundo os casais, a hierarquia também pode ser empregada de maneira “negativa” e isso, normalmente, é um
problema que as esposas de oficiais subalternos e/ou sargentos passam com mais frequência: há toda uma preocupação, vinda
principalmente dos maridos militares em como suas esposas devem tratar e respeitar as esposas de oficiais mais graduados.
Também soubemos de casos em que a hierarquia do militar era “passada” para os filhos/as que, em determinados contextos,
usavam a hierarquia do pai como pressuposto para poder se sentir mais importante que outra criança.

Conclusão
De acordo com os dados apresentados até agora observamos que a vida militar pode ser caracterizada como uma
vida de “risco”, com alta mobilidade geográfica, separação temporária da família, treinamentos intensivos, disciplina severa,
exposição a perigos, solidez moral e obediência profissional acima de qualquer direito ou dever pessoal (D’Araújo, 2003). E,
como podemos notar nas narrativas, estes aspectos influenciam diretamente as famílias dos militares, nos indicando que a
própria ideologia da instituição militar (caracterizada como “holista”, na qual se configura a preeminência da coletividade

3
Piero Leirner (1997) com seu estudo etnográfico no Exército Brasileiro, já apontava que o registro central na vida militar é operado pela hierarquia. Logo, ela
seria uma espécie de “fato social total”: ao mesmo tempo em que a hierarquia representa um princípio formador de identidade coletiva que estabelece uma
fronteira clara entre mundo “de dentro” (militares) e mundo “de fora” (civis), ela também estruturaria as relações internas aos próprios militares. Ela atuaria tanto
nos seus aspectos que poderiam ser rotulados de técnico profissionais (a divisão de trabalho, os salários, a divisão espacial nas organizações militares, etc.), como
nos seus aspectos cotidianos (refeição, moradia, lazer, etc.). Cabe destacar que sempre quando falamos em hierarquia estamos nos apoiando na noção trabalhada
por Louis Dumont (1992;1993).
4
A idéia de diferenciação e status simbólico vem dos estudos de Pierre Bourdieu (1989). Segundo o autor, o mundo social atua por meio de sua própria
objetividade (propriedades etc) pelo sistema simbólico que, por conseguinte, organiza-se segundo a lógica da diferença. Outro nome dessa distinção,é o que
Bourdieu chama de capital simbólico, ou melhor dizendo, de qualquer espécie de capital – econômico, cultural, simbólico etc – que contribuem para estabelecer
as posições dos agentes no espaço social segundo suas distribuições de poder.

110
sobre os indivíduos como fundamental para o bom desempenho das atividades do quartel5) condiciona a vida familiar do
militar.
A questão da importância e valorização da família presente nos discursos dos militares nos confirma isso, visto que
a formação de uma “família estruturada”, que dê estabilidade emocional e amparo ao militar, é considerada um fator positivo
e visto com “bons olhos” pelo Exército.
Sem contar que o próprio termo “família militar” utilizado pelos militares e sempre enfatizado nas entrevistas, nos
revela essa forte relação da vida militar com a vida familiar.
A “família militar” é todo mundo que tá aqui, tanto aqui dentro [quartel] quanto lá fora na vila. A gente chama “família
militar” porque acaba sendo uma grande família, que a nossa relação acaba extrapolando a relação de trabalho.
(Oficial)

Esse termo que a gente emprega no meio militar, o tal da “família militar”, ela é uma realidade. Você às vezes não tem
ligação nenhuma com as pessoas do local, entretanto, o cara recebe o apoio como de família, coisas que você faz pro
seu irmão e tal. A solidariedade é a materialização desse termo “família militar”, você chega num local, se identifica ali
“ah eu sou capitão”, pode não ter ninguém da sua turma ou quem você tenha servido mas as pessoas te oferecem suas
casas. Isso é costume, é tradicional. (Oficial)

Desse modo, a “família militar” abrange a instituição como um todo, coletivo (o Exército no caso) e revela a
identidade de grupo, caracterizada pela “união” e “forte solidariedade”. A idéia é que devido aos constantes deslocamentos
geográficos, os militares e suas famílias sempre estão distanciados de parentes “de sangue” e acabam reconhecendo seus
vizinhos (outras famílias de militares) como parentes circunstanciais. Pois essas famílias compartilham, de um modo geral, os
mesmos tipos de experiências e dificuldades e, por estarem próximas, acabam sendo solidárias umas com as outras em
diversos momentos. Logo, a “Família militar” evidencia um dos valores que são reforçados e sempre lembrados na
Academia: a importância da família como suporte para a vida. Esse sentido abrange não só a idéia da família – coletivo
militar – mas também a importância de se valorizar a sua unidade familiar (cônjuge e filhos/as).
Assim, vemos que a “família militar” apresenta características que são definidas, sobretudo, pelas normas e
condutas da instituição militar, nos sugerindo a idéia de que a família possa ser uma extensão do quartel, que se reflete na
organização da moradia, do cotidiano dessas pessoas e nas suas formas de sociabilidade. O universo da “família militar” é
marcado, de acordo com os entrevistados, por um convívio maior com famílias de mesmo circulo hierárquico do cônjuge
militar, pela reprodução da hierarquia militar entre as esposas em determinados contextos; e por certas dificuldades, quase
sempre relacionadas com as esposas, como o problema delas em dedicar-se a uma profissão, devido às frequentes
mobilidades geográficas que o oficial de carreira é submetido. No entanto, mediante essas dificuldades, há uma forte
valorização e importância da esposa e filho/as de militares através de discursos e homenagens que estes últimos prestam à
família como meio de se “desculpar” pela dedicação quase que exclusiva ao quartel. Com isso, percebemos que a vida
militar, a todo o momento, reflete nas condutas e práticas dessas famílias que, se consideram, diante de todas essas
particularidades, como “diferentes” das demais estruturas familiares.
Vale mencionar que esta é uma análise inicial dos dados, e que, posteriormente, pretendemos um melhor
aprofundamento reflexivo e teórico dessa etnografia.

Referências
BOURDIEU, P. (1989). O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
_______.(1999). A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
CARSTEN, J. (2003). After Kinship. London: Cambridge University Press.
CASTRO, C. (1990). O Espírito Militar: Um Estudo de Antropologia Social na Academia Militar das Agulhas Negras. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_______.(1993). A origem social dos militares. Novos Estudos Cebrap, 37, 225-231.
D’ARAÚJO, M. C. (2003). Pós-modernidade, sexo e gênero nas Forças Armadas. Security and Defense Studies Review, 3(1).
http://www3.ndu.edu/chds/journal/index.htm (consultado na Internet em 12 de Setembro de 2006).
DA MATTA, R. (1997). Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco.
DUMONT, L. (1992). Homo-Hierarchicus. São Paulo: Edusp.
_______. (1993). O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco.
FONSECA, C., (2007). Apresentação - de família, reprodução e parentesco: algumas considerações. Cadernos Pagu, 29 (2),
9-26.
Héritier, F. (1989). Masculino/Feminino. In Enciclopédia Einaudi, 20, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 11-26.
LEIRNER, P.C., (1997), Meia-Volta, Volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar”, Rio de Janeiro:
FGV/Fapesp.
_______.(2003). Hierarquia e Individualismo: a antropologia de Louis Dumont. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LÉVI-STRAUSS, C. (1956). A Família. In Shapiro, H. L., Homem, Cultura e Sociedade, Lisboa: Fundo de Cultura.

5
Sobre isso e sobre a construção da identidade militar, ver Castro (1990).

111
SCHNEIDER, D. (1968). American Kinship: a cultural account. New Jersey: Prentice-Hall. STRATHERN, M. (2006). O
Gênero da Dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Tradução de André Villalobos.
Campinas, SP: Editora da Unicamp.

“Não há ideais de pais, falhamos sempre”: dilemas da parentalidade no início do


século XXI”
Cristina Marques
CIES/ISCTE
[email protected]

Anália Torres
CIES/ISCTE
aná[email protected]

Resumo: Com base nos resultados de entrevistas em profundidade realizadas em diferentes contextos sociais e regionais (Lisboa, Porto e
Leiria), a indivíduos com diferentes contextos sociais, a viver em casal em diferentes momentos do seu ciclo de vida, procura perceber-se as
transformações da parentalidade e dos cuidados com as crianças. Discute-se e analisa-se os significados da parentalidade para pais e mães e
as estratégias de educação das crianças das famílias portuguesas.
Implícitas a estes objectivos estão algumas questões de partida: qual a importância das crianças para homens e para mulheres? Quais são as
implicações de ter filhos na vida dos indivíduos? Qual o significado de ser-se pai/mãe? Quem toma conta das crianças? Será que a educação
das crianças tem implicações na relação do casal?
Identificou-se a existência de ambiguidades relativamente à parentalidade nos diferentes contextos sociais. Assim, por um lado, a
parentalidade é considerada como algo maravilhoso, por outro lado, homens e mulheres reconhecem as dificuldades da parentalidade: o
aumento das responsabilidades, do trabalho, das preocupações, os problemas financeiros ou na educação das crianças.
Esta ambiguidade está sedimentada num contexto de mudança nos modos de perceber os cuidados com as crianças. As narrativas apontam
para um desejo por parte dos pais de passarem mais tempo com os seus filhos, mas as práticas continuam a mostrar uma maior participação
das mães nos cuidados com as crianças.

Introdução
A parentalidade é considerada como algo de maravilhoso, sendo uma fonte de gratificação e de enaltecimento da
identidade tanto para os indivíduos como para o casal. Contudo, tanto os homens como as mulheres referem a existência de
dificuldades na parentalidade: o aumento das responsabilidades, do trabalho e das preocupações; os problemas financeiros; as
dificuldades que surgem com o crescimento das crianças… A parentalidade aparece, assim, como algo de ambíguo e cheio de
contradições.
São então os significados da parentalidade para homens e mulheres, a viver em casal, em diferentes momentos do
seu ciclo de vida e de diferentes contextos sociais, que se pretende analisar. Procurar-se-á aprofundar o sentido das
transformações que se têm vindo a sentir no domínio da família, e, mais especificamente, da parentalidade, assim como o
impacto que esta tem na vida dos indivíduos e do casal. Pretende-se, também, olhar um pouco para a organização da
parentalidade: saber quem interfere mais na educação das crianças e se esta provoca algum tipo de conflitos.
Para tal utilizam-se os dados retirados de entrevistas em profundidade, realizadas a casais com filhos, de diferentes
durações de casamento, com diferentes situações sociais e pertencentes a diferentes regiões: Porto, Leiria, Lisboa1. Estas
entrevistas enquadram-se num conjunto de trabalhos realizados sobre a conciliação entre trabalho e família, sob a orientação
da Professora Anália Torres. São estes os projectos de investigação intitulados: ‘Contextos conjugais e divisão do trabalho
entre homens e mulheres’ e ‘Trabalho, família, igualdade de género e políticas sociais’.
Numa primeira parte, começa por se olhar para o modo como a família, a criança e a paternidade e a maternidade
têm sido analisadas em diversas pesquisas, para depois se passar a reflectir sobre os resultados das entrevistas.

Os significados da parentalidade: a importância da família e a centralidade das crianças


Segundo Philip Ariés (1968, in Saraceno, 1997), a origem da família moderna, como âmbito privilegiado de
afectividade, encontra-se no processo de privatização da família, ou seja, na sua progressiva retirada do espaço e acções
públicos, levada a cabo devido à afirmação do estado moderno.
A partir da segunda metade do século XVII, nas famílias aristocráticas e, com maior incidência nas famílias
burguesas, os filhos passaram a ser o centro e o objecto de atenções precisas e de estratégias educativas, conduzindo a um

1
Foram realizadas entrevistas a 83 casais (os dois membros de cada casal, homens e mulheres) com pelo menos um filho, num total de 166 indivíduos, 72 na
Grande Lisboa, 54 no Grande Porto e 40 em Leiria, distribuídos pelas diferentes durações de casamento e pertenças sociais. Os dois membros do casal, homens e
mulheres, foram entrevistados em simultâneo, mas de forma isolada. A unidade de análise foi então o indivíduo no contexto do casal, de forma a captar
separadamente a perspectiva de homens e de mulheres face às várias dimensões e estratégias de adaptação (da) e (na) conjugalidade e sua relação com o trabalho.

112
prolongamento da infância – surge então uma idade, longa, de desenvolvimento, que deve ser regulada, protegida e
controlada.
A mãe é uma figura central deste projecto educativo, que faz os filhos ocupar um novo lugar na família e nas
estratégias familiares. “Também a maternidade, como modelo cultural e como centro da identidade social e familiar
feminina, é efectivamente um produto deste novo modelo de família dos sentimentos e da educação.” (Saraceno, 1997: p.
132). A família moderna, enquanto família de sentimentos e educação, nasce em torno das figuras da mãe e da criança,
assimétricas e interdependentes, em torno de um espaço que cada vez mais as circunscreve: o espaço doméstico – familiar.
A mulher é então identificada como mãe no sentido biológico e em termos afectivos e educativos, exprimindo,
assim, a nova atenção e responsabilidade familiar para com as crianças. Responsabilidade e actividade que “... por sua vez
especificam e circunscrevem cada vez mais tanto o papel familiar como social das mulheres nas classes burguesas.” (idem).
Todo este processo é acompanhado pelas mudanças existentes ao nível da contracepção. Assim, a primeira
revolução contraceptiva teve fortes implicações, ao conduzir a mudanças afectivas na família, com uma maior atenção pela
educação dos filhos e valorização do casal. Já a segunda revolução contraceptiva, acompanhando uma tendência prévia de
declínio de fecundidade, introduz novos significados em relação à procriação (Saraceno, 1997). Esta segunda revolução
contraceptiva, diferente por ser médica, mais eficaz, e feminina (atribuindo às mulheres o maior controlo da procriação),
transforma o facto de ter filhos numa opção, no fruto de uma vontade deliberada, através da separação que efectua entre
procriação e sexualidade. A par desta separação aparecem novos valores sobre a sexualidade, a conjugalidade, a procriação e
o lugar da criança na família, que concorrem para a tendência da diminuição da fecundidade, situada em vários países, na
tendência para as famílias de dois filhos, e para o aparecimento de novas formas parentais.
Nos últimos anos, ocorreram, em todos os países europeus, mudanças directa ou directamente relacionados com a
família, como a descida da taxa da natalidade e da nupcialidade, o aumento do divórcio, da coabitação, dos nascimentos fora
do casamento, do número de pessoas a viverem sós, da esperança de vida e da taxa de actividade feminina (Thery, 1998;
Almeida et all, 1998, 2002; Torres e all, 2006; Cunha, 2007), que vão no sentido de uma sentimentalização, privatização,
secularização e individualização das famílias, tornando os modos de viver em família mais plurais e diversos (Torres et all,
2006). Assiste-se assim a uma maior importância atribuída à dimensão afectiva, no sentido de uma maior realização e bem-
estar pessoal, no contexto familiar, assim como a uma maior igualdade entre os sexos, mas sem que a ideia de ter filhos seja
recusada (idem).
É neste contexto que, desde 1960, se tem vindo a assistir em Portugal a uma queda abrupta da fecundidade
feminina, (A. N. Almeida et all, 2002), sendo que, em 2005, a idade média das mulheres ao nascimento do primeiro filho se
situava nos 27,8 anos (INE, 2006), tendo sido de 25,05 anos, em 1960, de 24,70, em 1990 (Ferreira et all, 2006), e de 26,5,
em 2000 (INE, 2006). Tem-se assim verificado um adiamento contínuo, desde década de 90 e após um período de uma certa
estabilidade, da entrada na maternidade (Cunha, 2007).
Ora, a família moderna é “uma família intencionalmente restrita, afectiva e educadora” (Cunha, 2007). A família
contemporânea é representada como uma família afectiva, estruturada de forma a ajudar o indivíduo a construir-se através
das suas relações (Singly, 1996). Actualmente, a família tem a função de procurar consolidar a identidade dos adultos e das
crianças. O novo objectivo da educação dos pais passa a ser ajudar a revelar a identidade escondida da criança, com uma
atenção constante e com um meio ambiente estável, e a igualdade de tratamento entre crianças. O amor paternal deve ser
desinteressado, voluntário e incondicional, não podendo haver ameaça de retirada desse amor. As semelhanças entre pais e
filhos são um garante de amor parental, num contexto de amor conjugal cada vez mais incerto (idem).
É assim, que vemos surgir um “novo pacto de filiação” (Théry, 1998), traduzido por uma nova forma de
personalização e sentimentalização dos laços entre pais e filhos. A criança tornou-se, nos dias de hoje, “um bem raro e
durável, um capital, um investimento, e o imperativo da qualidade substitui-se ao valor da quantidade” (idem: p. 36). Ao
tornar-se pessoal e afectivo, o laço de afiliação torna-se também um laço incondicional. Passa a existir o dever de amar,
cuidar e proteger a criança em todas as circunstâncias (Théry, 1998).
Todavia, nos nossos dias, tende a existir uma desarticulação entre projecto conjugal e projecto parental. Tornar-se
pai/mãe é entendido como uma escolha pessoal, que não necessita mais de uma união conjugal estável (idem). Se até aos
nossos dias, na sociedade portuguesa, a ideia de ter filhos era o objectivo principal da vida em casal, actualmente,
conjugalidade e reprodução já não se sobrepõem de forma tão clara (Cunha, 2007). Passa então a existir uma dissociação
entre “sexualidade e casamento, sexualidade e procriação, casamento e fecundidade. Ter um filho deixa de ser um destino
biológico a cumprir; é antes uma escolha a fazer, entre outras possíveis, e condicionada à vontade individual” (Almeida et all,
2002: p. 379).
A importância da parentalidade na vida dos indivíduos é explicada por Beck e Beck-Gernsheim (1995) em face dos
processos de individualização. Assim, segundo os autores, num mundo de industrialização tardia as pessoas são treinadas
para se comportarem de forma racional, para serem eficientes, rápidas, disciplinadas e bem sucedidas. Uma criança
representa o oposto de todas estas características, o que faz com que esta se torne tão apelativa. A parentalidade ajuda a
redescobrir sentimentos como a paciência, o afecto, a calma ou a sensibilidade. Neste sentido, ter uma criança traz um novo
significado à vida dos indivíduos, podendo mesmo tornar-se no centro da sua existência. A criança é, então, numa fonte de
grande alegria, trazendo novos significados e objectivos à vida dos pais, fornecendo-lhes uma “âncora emocional” (Beck e
Beck-Gernsheim, 1995: p. 127).

113
Os filhos têm, assim, um lugar primordial na família contemporânea, representado para os pais, uma fonte de
gratificação pessoal (Cunha, 2007). A centralidade da criança na família contemporânea assenta na importância que esta
assume para os pais como fonte de “identidade socialmente valorizada e enquanto projecto de auto-realização (idem: p. 104).
Nas famílias portuguesas, o lugar dos filhos expressa, sobretudo, a importância que a maternidade e a paternidade detém na
construção de uma identidade social positiva para o indivíduo; na representação da criança enquanto agente fundador da
família; e na esperança de mobilidade ascendente, que é projectada na biografia dos filhos. A função afectiva da criança,
transposta no desejo de “estabelecer um laço sólido e gratificante” (idem: p. 106) é a principal razão para a vontade de ter
filhos. O laço entre pais e filhos é entendido como “ímpar, indissolúvel e recíproco: o amor único e incondicional dos pais
tem naturalmente como espelho o amor único e incondicional dos filhos” (idem).
Contudo, a parentalidade tornou-se numa tarefa que exige cada vez mais responsabilidade, o que torna a decisão de
ter filhos em algo cada vez mais difícil. Neste sentido, quanto mais os pais esperam poder dar às crianças as melhores
condições possíveis, mais estes pesam a decisão de ter filhos (Beck e Beck-Gernsheim, 1995). A criança tornou-se um foco
de esforço por parte dos pais, sendo importante corrigir o máximo de defeitos que esta possa ter e enaltecer as suas
capacidades. Os pais, especialmente a mãe, devem fazer um esforço constante para corresponder às novas exigências. O amor
maternal tornou-se algo ditado por peritos, escrito nas revistas científicas e nas revistas populares. Amar os filhos torna-se,
assim, num dever para os pais, e, sobretudo, da mãe (idem).
As expectativas são altas e os pais descobrem que nem sempre têm os recursos necessários: dinheiro, paciência,
tempo ou energia, de modo que, se é necessário corresponder às exigências impostas por se ter uma criança, estes têm que
cortar nas suas próprias necessidades, direitos e interesses, fazendo, frequentemente, sacrifícios consideráveis.
Consequentemente, existe uma maior pressão na rotina diária de quem cuida da criança, que na maioria dos casos
corresponde à mãe. No entanto, como ambos os pais sentem esta pressão, a sua relação tende a mudar. Começa então a surgir
um dilema: quanto maior esforço é colocado sobre a criança, menor é o empenho na relação conjugal. Ora, se a criança é algo
enriquecedor, que traz novos papéis para ambos os pais, existe também um mas: a possibilidade de aumento das tensões e a
falta de tempo para as resolver. Assim, na relação entre pais e filhos, como na relação conjugal, amor e tensão andam a par,
não podendo de deixar de ser vistas em conjunto (idem).
A par destas transformações da família, que vão no sentido de uma família mais relacional, várias pesquisas têm
sugerido, desde o início dos anos 80, a existência de uma forte mudança na paternidade, traduzida nas maiores expectativas
tidas relativamente a um maior envolvimento dos pais no cuidado das crianças (Wall e Arnold, 2007). Idealmente, os “novos
pais” são carinhosos, desenvolvem um relacionamento emocional próximo com os seus filhos, passam mais tempo com estes
e partilham os cuidados com as crianças com as mães (idem). Os “novos pais” são considerados tão capazes como as mães
nos cuidados a ter com as crianças.
Mas, apesar de existirem indícios de uma maior participação dos homens no cuidado com as crianças, o seu
envolvimento neste, especialmente com as crianças mais novas, é ainda uma pequena parte daquele que é efectuado pela
mãe. Os motivos apontados para este menor envolvimento dos pais nos cuidados com as crianças prende-se com questões
como as políticas sociais existentes, a cultura do mercado de trabalho, a diferença de salários entre homens e mulheres e a
persistência dos entendimentos culturais sobre a maternidade e a paternidade (que atribui ao pai o papel principal como
ganha-pão e à mãe o papel principal como cuidadora da família); havendo relações complexas entre estes diferentes factores.
As representações culturais, simultaneamente, reflectem e moldam os papéis da paternidade, jogando um papel central nas
fronteiras daquilo que é considerado como possível ou aceitável. As expectativas culturais esperam que as mães sejam as
principais cuidadoras; “uma realidade que tem ligações directas com as desigualdades de género na família e no local de
trabalho” (idem: p. 522).
Assim, num estudo sobre a participação de homens e mulheres no cuidado com os filhos, realizado a partir dos
dados do Australian Bureau of Statistics Time Use Survey, de 1997, Caig (2006) conclui as mulheres cuidam de forma mais
interactiva das suas crianças, deste modo são mais constrangidas pelos cuidados com as crianças do que os pais. Por seu
turno, os pais despendem mais tempo a brincar e a conversar com as crianças do que as mães. As tarefas em que os homens
participam tendem a ser mais divertidas. Assim, a autora conclui que o exercício da parentalidade é diferente para mães e
pais. O cuidado das crianças parece “pesar” mais sobre as mulheres do que sobre os homens. As mães tendem a ter mais
trabalho físico, um horário mais rígido e uma maior responsabilidade nos cuidados com os filhos do que os pais (idem).
No mesmo sentido, mas desta feita para Portugal, o inquérito à ocupação do tempo mostra-nos como, ao nível de
acompanhamento das crianças (de as ensinar, jogar, brincar com elas), os homens despendem algum tempo a mais por dia do
que as mulheres (INE, 2001). No entanto, são as mulheres que prestam, mais frequentemente, os cuidados regulares das
crianças (dar de comer, higiene diária, etc), o acompanhamento da vida escolar (ajuda nos trabalhos de casa, participação nas
reuniões da escola, etc.) e, embora, a um menor nível, o acompanhamento das crianças em actividades desportivas, de lazer e
entretenimento (idem).
Ora, como temos vindo a referir, nos dias de hoje, a maternidade é enquadrada por representações que privilegiam o
papel da mulher e suportam a supremacia da medicina. Deste modo, a exterioridade do homem, relativamente à
parentalidade, é reforçada, ao mesmo tempo que um maior envolvimento deste é desejado. As referências associadas aos
papéis mais tradicionais das mulheres mantêm-se, enquanto que são exigidas, a homens e mulheres, novas competências
(Castelain-Meunier, 2002).

114
As mulheres têm que lidar com modelos contraditórios, que lhes pedem para desempenhar o seu papel enquanto
mãe, ao mesmo tempo em que é também definida através de outros papéis. As instituições que lidam com a infância tendem a
privilegiar o contacto com a mãe e não com o pai. A sociedade tende a fazer coincidir os interesses da mãe com os interesses
da criança, impossibilitando desta forma a existência de uma maior partilha dos deveres educacionais à volta da criança. Se o
lugar da mãe é definido naturalmente, tal não acontece com o lugar do pai (idem).
Actualmente, espera-se que os pais participem mais no quotidiano das crianças, que estejam mais presentes, que
sejam mais flexíveis. A paternidade é redefinida de acordo com o tipo de ligação que o pai tem com a criança, sendo uma
função complexa e ambivalente. Assim, se por um lado a paternidade é definida pela sua exterioridade relativamente ao laço
existente entre mãe e filho, por outro é construída através da relação construída entre pais e filhos; embora as mulheres
participem cada vez mais no mercado de trabalho, é ainda frequente que o homem seja considerado como o principal
responsável pelos rendimentos da família; o papel tradicional do pai não é definido pela sua referência com a esfera privada,
mas a maior parte da interacção familiar é lá que acontece; a importância do desenvolvimento de uma consciência paterna
ganha uma nova dimensão numa sociedade que dá ainda pouca atenção aos pais (Castelain-Meunier, 2002). Contudo, tal
como acontece para a maternidade, também entre os homens existem “diferentes representações e atitudes perante a
paternidade” (Mendes, 2007: p. 9), que variam em função da posição social dos indivíduos.

Parentalidade: práticas e representações


A parentalidade é algo desejado por homens e mulheres, mas cheio de dificuldades e ambivalências. Ao longo da
análise procurar-se-á mostrar como ter filhos é, de facto, algo desejado pela maior parte dos entrevistados. A parentalidade é
considerada como algo de maravilhoso, algo com que os indivíduos sempre sonharam. No entanto, tanto os homens como as
mulheres reconhecem as “dificuldades” que a parentalidade impõe: as responsabilidades, os maiores gastos ao nível
financeiro; as preocupações, o aumento de trabalho, os problemas que podem vir do crescimento das crianças…
Pretende-se ainda salientar que, embora pareça haver realmente um incremento da participação dos pais nos
cuidados das crianças, na prática, a mãe continua a interferir mais na educação das crianças. Neste sentido, se homens e
mulheres tendem a valorizar a parentalidade de igual forma, os entrevistados continuam ainda a atribuir à mulher o papel
principal enquanto educara das crianças – “mãe é mãe”.
A partir dos dados obtidos através das entrevistas construiu-se uma tipologia, onde constam 3 modelos principais
de viver a parentalidade para os entrevistados. São eles: o modelo autoritário, o modelo maternalista e o modelo relacional.
O modelo autoritário caracteriza-se por ser o mais tradicionalista, podendo mesmo traduzir uma divisão sexual
tradicional do trabalho doméstico, ficando elas em casa a tomar conta dos filhos, enquanto eles trabalho no exterior para
prover a família. Neste contexto, os homens tendem a ser mais autoritários, são eles que impõem as regras, é a eles que os
filhos têm mais respeito. Já que elas tendem a mimar mais os seus filhos, não conseguindo impor a mesma autoridade que o
pai.
O modelo maternalista remete para a grande importância que a mãe tem no cuidado com os filhos, entre estes
casais. Neste grupo, ambos os indivíduos trabalham, mas elas tendem a estar mais disponíveis para cuidar das crianças.
Acredita-se, também, que elas têm uma maior sensibilidade para esta tarefa. Estes casais procuram transmitir valores aos seus
filhos, mas também acompanhá-los, orientá-los, ajudá-los.
Finalmente, no modelo relacional os casais tendem a partilhar a educação dos filhos e as decisões são tomadas a
dois. Procura-se acima de tudo encaminhar os filhos, dotá-los de ferramentas, para que estes se transformem em adultos
autónomos e independentes; para que sejam seres humanos com valores. Os pais tentam dar o exemplo aos filhos e
proporcionar-lhes as melhores condições, mas são eles que escolhem o seu caminho.

Parentalidades: entre o desejo e a realidade


Como foi referido anteriormente, ter filhos é algo que faz parte dos projectos de vida dos indivíduos. Na
generalidade, os entrevistados referem que já tinham a ideia de ter filhos antes de casar. Ter filhos constituía um sonho,
mesmo o objectivo do casamento; era algo pelo que ansiavam. O desejo de constituir família, e de procriar, está assim muito
patente nos discursos femininos e masculinos, não sendo um objectivo exclusivo das mulheres.
“Uma coisa que eu sempre disse é que só me realizava depois de ter um filho, era uma coisa que eu sempre sonhei em
ter. Por isso quando me casei engravidei praticamente depois de um ano de casada, porque não queria estar muito
tempo à espera, tinha aquela necessidade de ter um filho [...]”(Carolina Arroteia, 33 anos, contabilista, técnica oficial
de contas, Leiria)

Consistente com este desejo de ter filhos, é a ideia patente na maioria dos homens e mulheres quando lhes
perguntamos o que foi para eles ter filhos, visto que a maioria refere que ter filhos foi uma alegria, uma coisa maravilhosa,
uma enorme felicidade, algo de muito importante, chegando a ser referido como uma “bênção de Deus”. A centralidade da
criança na família e a ideia de realização que esta traz para os pais (Beck e Beck-Gernsheim, 1995; Théry, 1998; A. N.
Almeida, 2003; A. N. Almeida, 2003; A. N. Almeida et all, 2004; Mendes, 2007; Cunha, 2007) está assim patente no

115
discurso dos entrevistados: “O filho nasceu e foi a melhor coisa que podiam dar a mim e a ela também.” (Patrício Oliveira,
62 anos, serralheiro mecânico naval, Lisboa).
A ideia de ter filhos é, frequentemente, considerada como um prolongamento do casal, uma continuidade. Isto é,
como um processo natural da vida, associado à ideia de constituir família e deixar descendência.
É neste âmbito, e no quadro de uma perspectiva mais tradicional da parentalidade, que muitos dos entrevistados,
sobretudo os operários e os indivíduos com mais de 20 anos de duração de casamento, das diferentes regiões do país, referem
que concebem primeiro o casamento e depois o ter filhos/que não teriam filhos se não fossem casados. Ter filhos decorre,
assim, da vida conjunta; é uma consequência do desejo de constituir família. Os indivíduos mais qualificados de Lisboa e
Leiria, com mais de 20 anos de duração de casamento, referem-se ainda ao facto de ter filhos como um processo natural da
vida. Ora, se actualmente os indivíduos não necessitam estar casados para ter filhos (Beck e Beck-Gernsheim, 1995; Théry,
1998; A. N. Almeida et all, 2002, 2004; A. N. Almeida, 2003; Cunha, 2007), para uma parte significativa dos entrevistados
ter filhos apenas faz sentido dentro do quadro de uma relação conjugal, o que vai de encontro aos resultados encontrados
noutras pesquisas (Phoenix e Wollett; 1991; Marshall, 1991; Monteiro, 2005; Almeida et all, 2004).
“A ideia de ser pai e a ideia de ter filhos, eu sempre pensei que é o culminar de todo o homem e de toda a mulher que
pensa um dia constituir família.” (Pascoal Ramos, 39 anos, motorista matérias perigosas, Porto)

“Só pensei em ter filhos depois de casar. O meu curso de vida é o ideal que eu sempre pensei: casar, para ter um tempo
sem filhos, depois tive filhos, tive os 3 como queria, pronto, até ver estou realizada.” (Olga Amaro, 34 anos, doméstica,
Leiria)

Contudo, existem também entrevistados, para quem a parentalidade não surge associada à conjugalidade. São,
sobretudo, mulheres que referem que não se importariam de serem mães/pais solteiras. Para estas mulheres, que adoptam
uma visão mais moderna da parentalidade, a ideia da maternidade está muito presente. Elas queriam ter filhos mesmo não
casando, como se pode ver pelo exemplo de Raquel: "Para mim ter um filho, era uma coisa muito importante, porque eu
quer casasse, quer não, eu sempre disse que queria ter um filho, mesmo que fosse mãe solteira." (Raquel, 32 anos,
professora 1º ciclo, Lisboa).
Ora, mas se a maioria dos entrevistados deseja de facto ter filhos, existem alguns entrevistados, embora
minoritários, sobretudo entre as profissionais técnicas e de enquadramento, com menos de 20 anos de duração de casamento,
das várias regiões, que não pensavam na ideia de ter filhos ou que só começaram a pensar em ter filhos a partir de
determinado momento da vida (a partir de certa idade, após se terem casado). É o receio de ter filhos, a ideia de que não é
fácil criar uma criança nos nossos dias ou de que o mundo de hoje não é o melhor, não só para as crianças, mas para os
indivíduos no geral, que faz estas mulheres recusar, ainda que não definitivamente, a ideia da parentalidade. No discurso
destas mulheres está presente a ideia da responsabilidade, especialmente para as mulheres, que é ter filhos nos dias de hoje
(Beck e Beck-Gernsheim, 1995). Assim, como refere Monteiro (2005: p. 91), a experiência de ser mãe é, actualmente, “um
processo altamente desafiante e exigente, que nem todas as mulheres encaram com facilidade, sem receios, nem como um
“mar de rosas””.
“Até aos meus 28, 30 anos, eu tinha uma ideia assim um bocadinho negativa em relação a ter filhos. Aquelas questões
existencialistas: pôr mais gente neste mundo para quê? […] Durante quase toda a minha juventude dizia a pés juntos
que não, que não queria.” (Márcia Barbosa, 34 anos, directora técnica lar 3ª idade, Leiria)

“Eu tinha um pavor incrível de engravidar. Sempre tive medo, eu tinha mesmo receio, eu acho que ter filhos não é uma
coisa fácil. E depois eu tinha uma sensação que eu não tinha muito jeito para crianças, tinha algumas dúvidas, portanto,
nunca foi assim uma coisa que eu…” (Paula Antunes, 29 anos, advogada, Lisboa)

Alguns entrevistados, especialmente os operários e os profissionais técnicos e de enquadramento, da região de


Lisboa, com menos de 10 anos de duração de casamento, e os indivíduos mais qualificados, do Porto e de Lisboa, entre os 10
e os 20 anos de duração de casamento, pensavam também na responsabilidade que seria ter filhos ou consideram que a ideia
de ter filhos não corresponde à realidade de os ter;
“Achava giro, mas não tinha nenhuma correspondência com a realidade. Queria ter um filho para ir ao futebol, para ir
andar de bicicleta, agora penso em coisas mais palpáveis, como a educação a segurança, etc.” (Francisco Abrantes, 36
anos, professor universitário e consultor, Lisboa)

Até ao momento vimos como a parentalidade faz parte dos planos da maior parte dos nossos entrevistados. O
desejo de ter filhos é algo que está patente no seu discurso. Quando estes surgem de facto, os nossos entrevistados referem,
geralmente, a grande alegria que sentiram. Contudo, o nascimento dos filhos acarreta também, para a maioria dos indivíduos,
uma alteração da sua vida pessoal e conjugal. Neste sentido, Théry (1998) refere que com o nascimento do primeiro filho, a
mulher muda a sua identidade, o casal amoroso dissolve-se no casal parental e o seu destino funde-se no destino comum da
família. Assim, os indivíduos solteiros podem antecipar o início de uma relação conjugal, mas os indivíduos que vivem já em
conjugalidade tendem também a sentir profundas transformações.
Deste modo, é referido, especialmente entre os operários e entre os entrevistados com mais de 20 anos de duração
de casamento, das diferentes regiões do país, que os filhos unem mais o casal, que dão mais sentido ao casamento, que
trazem mais harmonia à relação, que mudam a vida do casal para melhor, ajudando-o a superar “certas zangas”; constituem,

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assim, uma “prenda” para o casal. Neste sentido, casamento e maternidade surgem como complementares, com uma relação
de interdependência funcional (Monteiro, 2005).
“É bom. Porque é assim um filho ajuda a muita coisa num casamento, ajuda a superar certas zangas talvez que haja
dentro de um casamento. Porque é assim a gente chega a uma altura, só o homem e só a mulher parece que a vida não
tem sentido, a casa é oca, não... Agora é assim, vem uma criança há aquele barulho, há o movimento, há aquela
atenção para ela [...].”(Carina Barros, 27 anos, auxiliar enfermagem, Leiria)

Os profissionais técnicos e de enquadramento falam nas alterações da parentalidade, já não para o casal, mas a nível
individual. O nascimento dos filhos é, então, considerado como uma experiência enriquecedora, uma alavanca para a vida,
um estado de graça, alteração maravilhosa: “Opá, eu vi o nascimento e tudo dela, eu acho que caímos um bocado em estado
de graça. […] há ali quase como que um milagre, não é?” (Frederico Rodrigues, 30 anos, escriturário cartório, Leiria).
Entre as mulheres mais jovens e mais qualificadas, de Lisboa, é ainda referido que a parentalidade acarreta uma
mudança em termos de personalidade. Como dizem Beck e Beck-Gernsheim (1995), a parentalidade parece então ajudar a
redescobrir sentimentos, como a paciência ou a sensibilidade, que parecem alterar a identidade destas mulheres. Neste
sentido, elas consideram que ficam menos egoístas, mais maduras, mais responsáveis; como nos diz Paula Antunes, mais
“afectuosas”.
“Tornei-me muito mais afectuosa com as crianças, com a minha mãe, com as mães em geral, eu acho que nós nos
modificamos muito, eu acho que a partir da maternidade, aí é que eu acho que há uma mudança na nossa vida, mais do
que do casamento, eu acho que a maternidade nos dá uma perspectiva, e o tal amadurecimento, a tal experiência, o tal
evoluir e crescer.” (Paula Antunes, 29 anos, advogada, Lisboa)

Existem também entrevistados, embora em menor número, que fazem referência à maior participação do cônjuge
nas tarefas domésticas. Com o nascimento da criança e o aumento do trabalho, o homem vê-se assim na obrigação de
“ajudar” mais na realização das tarefas domésticas; existe a necessidade de uma reorganização no seio do casal.
“Na relação há menos disponibilidade, mas também não sei se é menos se é uma disponibilidade diferente, acho que é
diferente. A organização do tempo é que outra. O meu marido passou a cozinhar, ele já cozinhava de vez em quando,
mas agora é sempre ele que faz o jantar. Mudámos um bocadinho a organização, naturalmente, mas tinha que
acontecer, porque tínhamos que nos organizar.” (Teresa, 32 anos, gestora de contactos, Lisboa)

Mas se estas mudanças remetem para aspectos mais positivos das alterações provocadas pela parentalidade, outras
há que apontam as perdas que a parentalidade acarreta. Assim, é referida a falta de tempo que os filhos vêm trazer quer para o
próprio indivíduo, quer para o casal. Considera-se, na generalidade, que existe um “roubo” à relação, no sentido em que o
filho passa a ser o centro das atenções, ficando o marido em segundo plano. A relação entre os cônjuges sofre então um certo
afastamento. Deste modo, como indicam Beck e Beck-Gernsheim (1995), pode existir um aumento das tensões entre o casal
e a falta de tempo para as resolver.
“Nós não temos aquela intimidade, aquele espaço só dos dois, temos que compartilhar com os filhos, e depois durante
a noite, nos primeiros anos, temos que nos levantar muitas vezes. Claro que a relação entre marido e mulher vai-se
afastando um bocadinho, por isso é que devia haver mais tempo...” (Olga Amaro, 34 anos, doméstica, Leiria)

É também frequente existir uma mudança nas rotinas, uma alteração do ritmo de vida e/ou uma reorganização da
vida em casal. A existência da criança tende a implicar uma certa falta de liberdade de acção. Existe menos disponibilidade
para os amigos, para as saídas, para as actividades que se gosta de fazer. Fica-se com uma vida mais “presa”: “Claro que
modifica muito a nossa vida. Tanto a nível de responsabilidades, obrigações, prisões…representa isso tudo. É a maior
mudança na nossa vida é o nascimento de um filho.” (Joaquim Machado, 38 anos, profissional de seguros, Lisboa). Até
porque a existência de um filho implica maiores responsabilidades, mais preocupações, maiores cuidados, mais trabalho e
cansaço, e uma maior necessidade de pensar no futuro.
“Tivemos que lidar com responsabilidades e preocupações que nunca mais acabam e nas quais nem nunca tínhamos
pensado. […] Estamos permanentemente a olhar, a ver se podemos antecipar problemas que podem surgir… As coisas
são complicadas…” (Alberto Correia, 41anos, empresário, director e sócio de uma leiloaria automóvel, Porto)

Entre os operários, mas também entre alguns profissionais técnicos e de enquadramento, é ainda referido o aumento
das despesas que os filhos implicam e, por vezes, a dificuldade em fazer face aos problemas económicos: “Uma pessoa
aperta-se um bocadinho, não é? Porque a gente não estamos habituados, são um bocado mais de despesas” (Manuel
Carvalho, 35 anos, operário, Leiria).
O nascimento dos filhos pode também trazer alterações no modo como o casal articula o trabalho com a família. O
nascimento dos filhos, com a alteração de hábitos que, geralmente, acarreta, pode levar ao sacrifício de um ou dos dois
elementos do casal. O casal Abreu, do Porto, é um bom exemplo da dificuldade que pode existir na articulação da vida
familiar com a vida profissional. Alfredo Abreu, professor universitário, confessa que a sua vida académica ficou um pouco
prejudicada pelo nascimento da sua filha, na medida em que o levou a decidir não ir para o estrangeiro tirar o doutoramento.
Por seu turno, Lurdes Abreu, educadora de infância, fala das muitas coisas de que teve de abdicar para que o marido pudesse
seguir a sua carreira académica e para poder estar com a filha, já que esta estava pouco tempo com o pai.

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"A nossa filha modificou completamente a nossa relação. Obrigou-nos a alterar hábitos. Estivemos durante 6 anos sem
filhos e passeávamos por tudo quanto era sítio, mesmo por fora do país, e a partir daí, com a minha filha, eu próprio me
sujeitei a não ir para o estrangeiro fazer o meu doutoramento porque a minha filha tinha 2 anos e meio, portanto, não
quis condicionar a minha família à minha vida académica. E nesse aspecto a minha vida académica foi um pouco
prejudicada pela família, sobretudo pelo nascimento da filha.” (Alfredo Abreu, 56 anos, professos universitário
(doutorado), porto)

“Claro que sim, quem teve que abdicar de fazer muitas coisas que gostava de fazer e estudar muito mais tarde para
fazer uma licenciatura fui eu, porque o Alfredo fez o curso dele, entretanto foi convidado como assistente para ir para a
faculdade, entrou no processo de doutoramento (...) por isso quem teve que.. que abdicar de muitas coisas fui eu...,
porque achava que ela não tinha pai durante o dia inteiro e à noite também não, não podia ser. (Lurdes Abreu, 52 anos,
educadora de infância, porto)

Da realização às dificuldades: os significados e as práticas da parentalidade


Como referimos anteriormente, a parentalidade é, nos dias de hoje, considerada como uma fonte de realização
pessoal (Beck e Beck-Gernsheim,1995; Cunha, 2007). Ser-se mãe e pai faz parte da identidade dos entrevistados, é algo que
se deseja profundamente; com que eles sempre sonharam. Contudo, como foi referido, a parentalidade acarreta algumas
alterações, com implicações que se podem traduzir numa perda na vida dos indivíduos, como a falta de tempo que os filhos
podem representar na relação, para os outros e para si.
Mas, o resultado de outras pesquisas mostra como ser-se mãe é considerado como algo de muito importante para as
mulheres, independentemente da sua idade, escolaridade ou profissão (Almeida et all, 2004; Monteiro; 2005; Cunha, 2007).
A maternidade começa a fazer parte do “universo feminino de representações numa etapa em que as jovens ensaiam os
primeiros namoros ou fazem escolhas escolares decisivas em matéria de futuro profissional” (Almeida et all, 2004: p. 182).
Contudo, esta é encarada como uma escolha e uma decisão, a concretizar após reunidas certas condições de vida. A
maternidade é ainda considerada como algo que transforma a mulher, tornando-a mais madura e responsável; uma
experiência de tal maneira única, que, frequentemente, não há palavras para a descrever. Esta pode implicar a existência de
um vínculo afectivo único e diferente de todos os outros; permite compreender a experiência das suas próprias mãe e dar-lhes
o valor que merecem (A. N. Almeida et all, 2004).
Também para os homens a paternidade é considerada como algo importante. Mendes (2007), no seu estudo sobre as
vivências da paternidade, refere que ser pai tende a representar um aumento de responsabilidade, com implicações na postura
perante o trabalho (traduzida em mais ou menos horas de trabalho). Ser um pai perfeito está associado à presença junto à
criança, embora alguns entrevistados indiquem o facto de não existirem pais perfeitos. A paternidade leva a um aumento os
contactos com a família de origem e o fortalecimento da relação entre o casal. Actualmente, o nascimento dos filhos implica
geralmente uma maior participação dos pais nos cuidados com os filhos, o que denota um certo esbatimento nos papéis
tradicionais de género. No entanto, as instituições públicas relacionadas com as crianças (creches, infantários, colégios,
centros de saúde, hospitais…) procuram, sobretudo, as mães como interlocutores privilegiados.
Os resultados encontrados entre os entrevistados estão em consonância com as pesquisas mencionadas. No geral,
para os indivíduos, homens e mulheres, ter filhos é considerado algo de maravilhoso, a melhor coisa da vida, uma felicidade,
algo que não tem explicação. Mas são também mencionadas as dificuldades da parentalidade, ser pai/mãe é considerado algo
difícil e que implica preocupações um aumento de responsabilidade; a percepção das dificuldades da parentalidade parece ser
maior com o aumento da duração de casamento. Ser pai e mãe é também acompanhar os filhos, apoiar, transmitir valores,
dar-lhes ferramentas para crescerem.
Veja-se mais em pormenor, voltando agora a atenção para os resultados obtidos, tendo em conta as diferentes
durações de casamento, e, no interior de cada uma, as diferenças de classe e de região.

Menos de 10 anos de casamento: quando os filhos ainda são pequenos


No caso das mulheres operárias com menos de 10 anos de conjugalidade, sobretudo, do Porto e de Leiria, a
maternidade é de tal forma valorizada, que as entrevistadas dizem que é difícil explicar o que é ser-se mãe, só quem passa
pela situação é que consegue perceber: “É uma coisa que não dá para explicar ser mãe, é uma alegria, é, é uma coisa assim
que nos preenche a nós, percebes?” (Estela Ferreira, 31 anos, operária fabril, desempregada, Porto).
Em algumas destas mulheres está presente o sentimento de não querer que os filhos passem pelas mesmas
dificuldades económicas que estas passaram: “Gostava que a minha filha não passasse por nada daquilo que eu passei, por
isso (...) tento tudo por tudo para ela não passar nem metade das dificuldades que eu passei.” (Maria Martins, 25 anos,
empregada doméstica, Porto).
No caso dos homens operários, está também patente a grande importância dos filhos que os filhos têm na sua vida.
Estes pais dizem sentir um orgulho imenso nos seus filhos, para eles o seu nascimento foi acompanhado de uma enorme
felicidade. Por eles procura fazer-se o máximo possível, ajudá-los em tudo o que se possa: “Sinto-me orgulhoso de ser pai...
e ando a mostrar a minha filha a toda a gente, mostrar que tenho uma filha. E tentar levar tudo o melhor possível. Fazer
aquilo que possa.” (João Martins, 33 anos, montador de ar condicionado, Porto)

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Embora, sejam as mulheres que, no geral, tenham a educação dos filhos a seu cargo, entre os operários do Porto,
mas também de Lisboa, salienta-se o respeito que os filhos têm à figura paterna. Enquanto que elas falam e os filhos não
ligam, quando o pai fala estes obedecem de imediato, visto que a mãe dá mais mimos. Neste contexto, a parentalidade tende a
ser exercida de forma mais tradicional, sendo a figura do pai mais autoritária: “A minha filha tem mais respeito a mim. Ela
está mais habituada a lidar com a mãe, está mais tempo com ela e quando a mãe lhe diz alguma coisa, ela leva para a
brincadeira, começa-se a rir... E se eu falo já não... já sente mais e porta-se melhor”. (João Martins, 33 anos, montador ar
condicionado, Porto).
Mas no geral, eles tendem a ajudar a cuidar dos filhos, podendo olhar por eles, ou mesmo dar-lhes banho e vesti-
los, como é referido pelos indivíduos residentes em Leiria e em Lisboa.
“Eu tento fazer a mesma coisa que a minha mulher faz. Não tenho problema nenhum, eu sempre mudei as fraldas aos
miúdos, dar banhos, os miúdos tomam banho comigo, quando estou em casa. […] Hoje em dia tanto o homem como a
mulher trabalham.” (Manuel Carvalho, 35 anos, operário, Leiria)

A educação dos filhos tende a levar à existência de alguns conflitos (mais ou menos frequentes; com maior ou
menor intensidade), devido à existência de práticas contraditórias e de desacordos. O facto de haver perspectivas diferentes
pode também gerar conflitos ou desacordo, mas os cônjuges tentam não discutir à frente dos filhos ou procuram conversar
noutra altura. Quando não existe contradição/desautorização à frente das crianças, mas um diálogo entre os cônjuges, parece
não existir conflitos: “Não, porque quando ela está a dar uma ordem, por muito que eu ache que não é correcta, eu não me
intrometo entre a mãe e o filho.” (Marco Ferreira, 34 anos, motorista, Porto).
Entre as mulheres empregadas executantes, as profissionais técnicos e de enquadramento, mas também entre as
mulheres empresárias, dirigentes e profissionais liberais, a transmissão de valores, a educação transmitida, a orientação e o
ensino dados aos filhos são aspectos centrais do seu papel como mães. As mulheres técnicas e de enquadramento, sobretudo,
as de Lisboa, fazem ainda referência a uma certa transformação da personalidade, as mulheres tornam-se mais sensíveis, mais
tolerantes, passando, em alguns casos, a valorizar mais as suas mães. Estas mulheres referem-se frequentemente a uma
inversão de prioridades, que coloca os filhos em primeiro lugar nas suas vidas.
Mas as dificuldades da maternidade são também salientadas por estas mulheres, nomeadamente pelas residentes na
região de Lisboa. Neste sentido, embora a maternidade seja descrita como algo de maravilhoso, de que se gosta muito, é
ainda percebida como sendo uma tarefa muito complexa, mesmo assustadora, que implica uma grande responsabilidade e
uma preocupação constante com os filhos. Transparece a ideia de que não é fácil educar os filhos nos dias de hoje.
Já para os homens, destes sectores socioprofissionais, ser pai é educar, transmitir valores; criar instrumentos para os
filhos conseguirem sobreviver, ser um modelo que os filhos possam seguir: “É assim, para mim ser pai é saber dar
educação, é ajudar nos momentos que um filho precise.” (Henrique Barros, 30 anos, motorista CTT expresso, Leiria); “É
transmitir-lhe os mesmos valores que o meu pai lhe transmitiu. É estar permanentemente a ser chamado” (Alexandre
Gomes, 33 anos, técnico empresarial, Porto).
Entre os profissionais técnicos e de enquadramento é ainda referido que a paternidade é uma coisa natural,
inevitável, que faz parte da vida, dando-lhe sentido, como podemos ver pelo exemplo de César Lourenço:
“Ser pai é algo de natural. Nós nascemos uns homens e outros mulheres e a natureza, o que espera de nós, é que
encontremos o par igual, formemos família, sejamos pais ou mães... e penso que só isso é que dá significado à vida. De
resto, a vida pouco mais tem para nos oferecer. Não são os carros, o dinheiro ou as casas que nos preenchem. E vê-se.
As pessoas de mais idade dizem que o melhor da vida são os filhos e os netos. É isso que nos preenche o coração.”
(César Lourenço, 40 anos, engenheiro informático, analista de sistemas, Porto)

Assim, não só a maternidade é percebida como algo natural e instintivo, como tem sido referido por vários autores
(Miller, 2007), como a parentalidade no geral. Apesar de, actualmente, serem cada vez mais do domínio da escolha, o
parentesco e a procriação, foram, até recentemente, pensados, na cultura ocidental, como pertencentes ao domínio do
biológico, da natureza, representando, por conseguinte algo de imutável ou intrínseco às pessoas (Stathern, 1991). Esta
representação da parentalidade permanece então presente no discurso de alguns entrevistados.
Os homens, sobretudo os profissionais técnicos e de enquadramento, da região de Lisboa, salientam também as
dificuldades e ambivalências da paternidade. Neste sentido, fala-se na simultaneamente em realização e na responsabilidade
que é ser-se pai; na procura de ser-se um bom pai, o que nem sempre se consegue; no espírito de protecção que se tem pelos
filhos e no medo de falhar: “Ser pai é uma carga de trabalhos, física e psicológica. Não há descanso. Preocupo-me muito
com ela.” (Daniel Fernandes, 31 anos, professor, Lisboa); “Sinto que ser pai é esse balanço imenso de sentimentos bons,
sentimentos maus, de apreensões” (Diogo Amaral, 28 anos, professor universitário e investigador, Lisboa).
Nos casais mais qualificados, especialmente entre os profissionais técnicos e de enquadramento, de Leiria e de
Lisboa, mantém-se a tendência para ser a mãe a interferir mais na educação dos filhos, no entanto, passam a existir mais
casais que partilham a educação das suas crianças, embora esta interferência possa ser feita de forma diferente ou mais numas
áreas do que noutras. Neste sentido, o casal procura conversar a dois sobre as decisões a tomar, respeitar as decisões do outro;
tendo uma representação mais relacional da parentalidade.
“Os dois igual. Tanto que nós dividimos os trabalhos de casa, ele explica umas disciplinas, eu explico outras
disciplinas. Eu ralho mais, ele ralha menos, mas quando ele levanta a voz as meninas baixam mais do que…, mas em

119
termos de poder em relação, ou de elas acatarem mais um ou outro estamos iguais.” (Célia Henriques, 31 anos,
estudante, Leiria, 2 filhas)

Eles podem assumir e/ou ajudar em tarefas como o dar de comer, dar banho, mudar a fralda, deitar os filhos, levá-
los e buscá-los da escola: “relativamente à minha filha divido as tarefas, dou de comer, dou-lhe banho, deito-a, etc.”
(Francisco Abrantes, 36 anos, professor universitário e consultor).
Em Leiria e em Lisboa, faz-se também referência à importância dos avós na educação dos filhos: “a minha sogra
ficou com os meus filhos. Com a minha filha até aos dois anos e meio, depois coloquei-a num infantário; e o meu filho até
aos 3 anos e meio e foi para a pré o ano passado” (Carolina Arroteia, 33 anos, contabilista, Leiria).
Tal como acontece para os operários, nos casais executantes, nos empresários, dirigentes e profissionais liberais e
dirigentes e nos técnicos e de enquadramento as práticas contraditórias e a existência de discordâncias, no que se refere à
educação das crianças, levam à existência de alguns conflitos. Mais uma vez se verifica que o facto de haver perspectivas
diferentes pode gerar conflitos ou desacordo, mas os cônjuges procuram não discutir à frente dos filhos, conversando noutra
altura. Deste modo, o diálogo entre os cônjuges tende a impedir a existência de conflitos.
Nestes sectores sociais, alguns homens fazem também referência à existência de (pequenos) conflitos, mas estes
podem ser desvalorizados, na medida em que os indivíduos se referem a eles como coisas supérfluas, que existem de vez em
quando, que são pontuais. Estes conflitos são originados também pelas diferenças de opinião, mas podem ser pensados como
normais no casal.
É ainda de sublinhar o exemplo de Leonor Fernandes, que mostra como a sobrecarga feminina no mundo da casa
pode levar a conflitos no seio do casal. Embora ela compreenda que o esforço do cônjuge no trabalho seja para o bem da
família, acaba por ser ela a ter que abdicar dos seus projectos pessoais, neste caso da sua tese.
“Quando estamos os dois, sou eu que estou muito mais tempo com ela porque o Daniel está a fazer estágio, está
sempre muito mais embrenhado, lá está, ele está a fazer o estágio, ele tem um ano para fazer o estágio, ele tem que
acabar, é uma questão profissional, eu tenho a minha tese para fazer, mas eu é que abdico.” (Leonor Fernandes, 33
anos, professora, Lisboa)

Entre os 10 e os 20 anos: aumenta a idade, aumentam as dificuldades – a parentalidade nem sempre é fácil!
Neste grupo de duração de casamento começam a sentir-se mais “as dificuldades” da parentalidade. Mas, tal como
no grupo de duração de casamento anterior, a parentalidade é fonte de alegria e de realização pessoal. Para elas ser mãe é
algo muito bom, podendo mesmo ser considerada a melhor coisa da vida, a mais maravilhosa do mundo.
Os aspectos positivos da parentalidade são transversais aos vários sectores sociais. Assim também para os homens e
para as mulheres operárias ser pai e ser mãe é algo muito bom, a melhor coisa da vida, que implica um sentimento de grande
felicidade. Pelos filhos tem-se um imenso orgulho: “Estou sempre a pensar na minha filha. Estou sempre a pedir a Deus,
nosso Senhor que olhe por ela, pelos meninos. Gosto muito dela. Gostei muito de ser mãe” (Daniela Palmeira, 45 anos,
empregada doméstica, Lisboa).
Mas tal como aconteceu para os operários mais jovens, estes pais preocupam-se que os filhos não passem pelas
mesmas dificuldades pelas quais eles passaram, procurando educar as crianças da melhor forma. Neste sentido, apesar das
alegrias da parentalidade, esta pode também ser vista como um encargo financeiro para os pais: “É muito bom, adorei ser
mãe Quer dizer, é um encargo que a gente tem, não é? Mas de resto acho que é bom ser mãe...” (Inês Alves, 38 anos,
empregada doméstica, Porto). Com a parentalidade vêm então um ganho em termos afectivos, mas, também, maiores
despesas, mais responsabilidades e mais problemas. De tal modo que, em Leiria, existem mulheres que afirmam não existir
“escolas de mães”, cometendo-se sempre muitos erros.
“Não há escolas de mães. Nós cometemos muitos erros, nunca ninguém nos ensinou a mãe tem que ser assim, o pai
tem que ser assim, tem que fazer desta maneira, tem que fazer daquela. Como também não há um ideal de filhos, cada
qual é como é. Não sei, isto é uma coisa que é complicado ser mãe, mas não há preparação para isto. Ainda tentam às
vezes dar uns cursos ou outros, mas não se aprende mais, aprende-se com a com a vida, com a experiência da vida.”
(Júlia Jesus, 44 anos, doméstica, Leiria)

Embora a educação dos filhos esteja, na maior parte dos casos, a cargo das mães, entre os operários do Porto, as
mães tendem a intervir mais na parte emocional, são mais tolerantes. Os desabafos, as confidências dos filhos (já
adolescentes) são sempre com as mães, ao passo que os pais estão "mais em cima dos filhos", são mais rígidos, impõem o
respeito, ditam as regras. Assim, como acontece nos operários do Porto com menos de 10 anos de duração de casamento,
voltamos a encontrar uma figura paterna autoritária, entre os entrevistados residentes nesta região.
Eu, por norma, sou mais rígido na educação. As mães, por norma, têm a tendência de tolerar, tolerar, tolerar, e isso faz
com que muitas das vezes eles não respeitem tanto a mãe como o pai. Mas eu sou bastante duro na educação… duro e
responsável, no sentido de, quando há algo que está errado, eu chamar-lhes à atenção. (Diniz Gouveia, 42 anos,
corticeiro, Porto)

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Mas eles podem dar algum apoio no cuidado dos filhos, especialmente olhando por eles caso seja necessário. O
nascimento dos filhos pode também ter levado estes homens a participar mais na realização das tarefas domésticas, pelo
menos enquanto as crianças eram pequenas, como podemos ver pelo exemplo de Diniz Gouveia.
“[A realização das tarefas domésticas] Foram mudando. E eu reconheço que foram mudando devido à situação dos
filhos, devido à situação da profissão… foram mudando bastante. Por exemplo, quando casei, nos primeiros 3 anos,
não fazia nada. A partir do momento em que tive filhos, comecei a ajudar basicamente em tudo, naquilo que sei. E isso
continua. Desde que nasceu o segundo, as coisas começaram a ser insuportáveis só para uma pessoa… Há mais louça,
há mais roupa, então comecei a fazer.” (Diniz Gouveia, 42 anos, corticeiro, Porto)

No geral, entre os casais operário, deste grupo de duração de casamento, é comum fazerem-se referências aos
pequenos conflitos, às diferenças de opinião. Todavia estes aborrecimentos com a educação das crianças são entendidos
como normais, crê-se que existe um acordo nas questões fundamentais, existindo apenas algumas discordâncias no dia a dia,
em aspectos pensados como mais supérfluos. Nota-se no discurso dos entrevistados uma normalização dos conflitos, muito
presente também entre os profissionais técnicos e de enquadramento.
“Ai, isso é normal. Eu acho que é. Há sempre qualquer coisa que um não concorda e que o outro acaba por cair na
tentação de fazer. Acho que isso é normal que aconteça de vez em quando essas coisas. A menos que um se abstenha,
porque é mesmo de todo impossível as pessoas estarem sempre completamente de acordo. Aliás nem acho nada bem
que isso aconteça, isso nem é concordar, não pode ser, é só abster-se” (Júlia Jesus, 44 anos, doméstica, Leiria)

Entre as mulheres operárias do Porto fala-se mais na existência de alguns conflitos, fruto das diferenças dentro do
casal quanto aos métodos de educação. Neste sentido, é referido que o pai é mais duro, os filhos têm-lhe um maior receio; por
sua vez, este pode culpabilizar a mãe pelas acções dos filhos.
“Às vezes. É sempre aquela coisa, prontos, eles fazem uma asneira e o pai ralha, o pai diz e a mãe mete-se, portanto,
quando há qualquer coisa com os filhos aqui em casa o pai diz que a culpa que é da mãe porque a mãe dá-lhe sempre
mais mimos, portanto eles são muito mais agarrados a mim do que a ele.” (Inês Alves, 38 anos, empregada doméstica,
Porto)

Entre as mulheres empregadas executantes, empresárias dirigentes e profissionais liberais e as técnicas e de


enquadramento a transmissão de valores, a educação, a orientação que se tenta dar aos filhos fazem parte do seu papel
enquanto mães. Para estas mulheres a tarefa principal da maternidade é educar os filhos, “educá-los para a vida”, fazer com
que estes se tornam em seres humanos com valores, respeitadores e com capacidade para lutarem.
“A minha tarefa principal como mãe e a minha preocupação fundamental como mãe é educar, saber educar e saber
educá-los para a vida. Principalmente educar, transmitir-lhes valores, transmitir-lhes as ferramentas, digamos, para eles
viverem, para serem uns bons seres humanos, mais do que dar, mais do que a parte material. Essa parte normalmente
não me preocupa, preocupa-me mais transmitir-lhes os valores e prepará-los.” (Natália Cunha, 38 anos, médica
dentista, Leiria)

Para estas mulheres, especialmente para as residentes na região de Lisboa, tal como acontecia para as mulheres
mais jovens, o nascimento dos filhos pode implicar uma mudança na personalidade, que as faz sentir mais tolerantes, mais
sensíveis, e que as levas a valorizar mais as suas mães. No geral, estas mulheres dizem que há uma inversão de prioridades,
passando os filhos a estar em primeiro lugar: “Ser mãe é a principal actividade, que gosto mesmo. É deixar de pensar em si
mesma para passar a pensar noutro ser vivo. Até aí era egocêntrica e egoísta e com a maternidade deixei de ser” (Rosa
Pereira, 35 anos, técnica superior 2ª classe, Lisboa).
As profissionais técnicas e de enquadramento, de Leiria e de Lisboa, referem-se à maternidade como sendo um
sentimento de tal forma grandioso que se torna difícil de explicar. Nas palavras de Eva ser mãe é então: “deixar de pensar
nela própria, ou seja os filhos estão sempre em primeiro lugar independentemente do que aconteça...É o gostar assim sem
querer nada em troca. É um sentimento tão forte, tão forte que é difícil de explicar…” (Eva, 31 anos, psicóloga, Lisboa).
No entanto, existem algumas mães, profissionais técnicas e de enquadramento, sobretudo entre as residentes na
região do Porto e de Leiria, que, apesar de considerarem a maternidade como algo muito bom, não estão dispostas a fazer
tudo pelos filhos. Neste sentido, a maternidade pode mesmo ser sentida como uma tarefa complicada e cansativa. Em Leiria,
fala-se ainda da não existência de mães ideais: os contextos e as pessoas mudam, havendo sempre lugar para dúvidas. Como
nos diz Adriana Neves:
“Hoje acho que a gente ao longo dos anos, ao longo do crescimento deles vamos mudando as nossas atitudes todos os
dias, a toda a hora, aquilo que hoje achamos mau, amanhã já achamos bem. Consoante o contexto, a situação, o
ambiente que nos rodeia vamos mudando, isso é mesmo complicado […]. Os garotos são diferentes, o tempo passa e a
gente acaba por ir acompanhando as coisas, tem que ser assim.” (Adriana Neves, 42 anos, enfermeira, Leiria)

Estas dificuldades e ambivalências da parentalidade estão, também, muito presentes nos discursos dos homens
empresários, dirigentes e profissionais liberais, especialmente nos residentes do Porto. Para eles ser pai é, simultaneamente,
uma alegria e uma responsabilidade; uma tarefa que nem sempre é fácil! Para estes homens a paternidade corresponde a um
aumento das responsabilidades e das preocupações. Os pais devem procurar reunir condições para dar uma vida melhor aos
filhos, procurar o melhor para estes, fazê-los felizes, defendê-los.

121
“Isso é uma pergunta muito complicada, nomeadamente, hoje em dia. Ser pai, eu acho que é uma coisa muito difícil.
As pessoas normalmente pensam e dizem que ser pai é uma coisa fácil, eu acho que não. Porque, nos dias de hoje, é
muito difícil conseguir conciliar toda a informação que chega aos nossos filhos vinda de todas as partes e mais
algumas, sobretudo das novas tecnologias... e eles, cada vez, parece que nascem com mais conhecimentos. E é muito
difícil conseguirmos acompanhar toda esta avalancha de informação que eles têm. […]. Porque nós cada vez mais
estamos embrenhados no nosso trabalho, chegamos a casa sem paciência, porque temos a nossa vida do dia-a-dia
extremamente complicada, e depois os filhos requerem muita atenção. Portanto, ser pai é extremamente complicado...”
(Ricardo Almeida, 43 anos, patrão pequena empresa calçado, Porto).

Entre os casais destes sectores sociais, especialmente entre os profissionais técnicos e de enquadramento, há uma
maior tendência para que a interferência na educação dos filhos seja igualitária, ou para que um dos indivíduos interfira mais
numa área do que em outra, mas de forma equilibrada: “Tanto a mãe como o pai, tentamos dar o nosso melhor para
solucionar certos e determinados problemas aos filhos.” (José Salvador, 37 anos, sócio gerente stand automóvel, Lisboa).
No entanto podem existir situações em que os filhos confidenciam mais com a mãe ou em que esta tem mais disponibilidade
para eles. A mãe pode então estar mais presente ou abdicar mais da sua actividade profissional em prole da família.
“Tentamos os dois, mas talvez eu acompanhe mais. Tenho mais tempo ou quer dizer eu procuro sacrificar um bocado a
minha vida profissional para poder acompanhar… a parte da escola, de poder acompanhá-las na parte da saúde, levá-
las ao médico, passear com elas, conhecer coisas bonitas do Porto. Eu procuro ser cumpridora no horário, fazer o meu
trabalho naquele horário e depois acho que chega porque eu prefiro ter outras coisas e ir para casa porque acho que é
importante acompanhar ou os estudos ou o que elas precisam ou procurar que elas também não estejam tanto tempo
sozinhas, portanto eu acho que nisso eu abdiquei mais em função da família do que ele e portanto interferi mais porque
no fundo acabo por ter uma certa liberdade…” (Matilde Santos, 46 anos, chefe dep. Actividades culturais museu,
Porto)

Assim, na prática, os pais tendem a participar no cuidado com os filhos, ajudando a vesti-los, preparando as suas
refeições, levando os filhos à escola, dando-lhes banho, deitando-os filhos, passando tempo com eles.
“Sou eu que acordo os miúdos, que os visto, que lhes dou o pequeno-almoço e levo à carrinha. Faço bastante. Depois a
minha mulher vai buscá-los à carrinha. Vamos com eles à natação. Depois a minha mulher faz o jantar, eu dou-lhes
banho. Damos de comer a eles. Depois deitamo-los. Acabamos por estar muito interligados nas tarefas” (Pedro Pereira,
36 anos, empresário, Lisboa)

Em Leiria, existe uma referência aos avós no cuidado dos filhos. Estes podem, por exemplo, ficar com os netos ou
ir levá-los/buscá-los à escola: “Quem os vai buscar [à escola] são sempre os meus pais e trazem-nos para casa até um de
nós chegar.” (Adriana Neves, 42 anos, enfermeira, Leiria).
Nestes sectores sociais os conflitos relativos à educação das crianças são, mais uma vez, originados,
principalmente, pela existência de perspectivas diferentes. Geralmente um dos elementos do casal é mais rígido e o outro
mais brando. Contudo, o facto de conversarem ajuda a ultrapassar a situação, a chegar a um acordo.
Tal como acontece nos casais operários, entre os indivíduos destes sectores sociais, verifica-se uma certa
normalização dos desentendimentos. Mais uma vez se afirma que existem algumas diferenças de opinião, sobretudo em
questões mais superficiais, visto que nas questões mais importantes o casal tende a estar de acordo: “Pode haver,
eventualmente. Eu também acho que isso nem sempre é negativo. Nós estamos de acordo nas questões fundamentais, agora
nas situações do dia-a-dia há sempre olhares e opiniões diferentes. É normal.” (Filipe Melo, 41 anos, sócio gerente,
empresa, Porto).
Mas os conflitos nem sem sempre são os mesmos ao longo do ciclo de vida…Exemplo das dinâmicas da
parentalidade e de como esta tem pode ter fortes influências na relação conjugal, é o caso de Susana. Embora, actualmente,
não existam conflitos com o cônjuge sobre esta matéria, a adolescência da filha gerou fortes desacordos, o que levou a um
certo afastamento entre ambos.
“A educação da Sara quando ela entrou na adolescência gerou muitos conflitos foi terrível mesmo, porque houve falhas
das 3 partes, de mim, dele e da Sara, mesmo eu com o meu marido afastamo-nos muito. … o papel dele foi um bocado
a partir de hoje tu é que és mãe, tu é que dás as ordens, e as responsabilidades são tuas[…]. Criou-se um afastamento
entre mim e ele e especialmente entre a Sara e ele. Acho que só desde que ela se casou, que faz agora 3 anos, é que
acho que talvez que as coisas melhoraram.” (Susana, 45 anos, funcionária administrativa câmara, Lisboa)

Mais de 20 anos: olhando para trás


Entre os entrevistados com mais de 20 anos de conjugalidade, o discurso remete muitas vezes para o passado. Os
filhos são agora adultos e aquilo que se diz reflecte, frequentemente, as lembranças de quando estes eram ainda crianças.
Para os casais operários do tempo da conformação ou da realização pessoal, a parentalidade é algo de muito
importante, significando, sobretudo, acompanhar, apoiar e compreender os filhos, assim como transmitir-lhes valores: “Foi
bom, foi, é diferente ser mãe, é muito diferente e depois transmitir aos filhos, também me dizem as minhas filhas que eu sou
mãe galinha (risos), eu sou mesmo” (Rita Pontes, 56 anos, empregada doméstica, Lisboa).

122
As dificuldades ou responsabilidade que a paternidade implica é também sublinhada pelos operários, das mesmas
regiões: “Ora bem, ser pai... Antigamente era mais fácil! (risos) Agora é um bocado difícil, porque os jovens de hoje são
totalmente diferentes da minha descendência.” (Pascoal Ramos, 39 anos, motorista matérias perigosas, Porto). Todavia,
para a generalidade destes homens, ser-se pai é uma felicidade enorme, que influencia positivamente o relacionamento entre
o casal: “É uma coisa boa, é o segredo da nossa relação” (Augusto Lopes, 53 anos, motorista da carris, Lisboa).
Na prática, os discursos dos casais operários dão conta de uma maior assunção por parte da mãe na educação das
crianças: “Era eu. Apesar de não saber ler nem escrever, como passava mais tempo em casa do que o pai.... Era eu que dizia
como é que as coisas eram.” (Elsa Oliveira, 60 anos, empregada doméstica, Lisboa). No Porto, podia mesmo existir uma
divisão mais tradicional da parentalidade, traduzida no facto de ser o homem que traz o dinheiro para casa e a mulher quem
cuida dos filhos.
“Os filhos passavam o dia comigo porque nem que fossem para a escola, eu ia leva-los, ia busca-los e o pai saía de
manhã para o trabalho e vinha à noite, só à noite é que o pai estava ali presente mais eles, conviviam mais com a mãe.
Não sei se é essa a palavra de interferir, porque ele dava a coisa dele diferente, trazia o dinheirinho para casa, para a
educação deles, para os livros, para comer, para vestir...” (Aurora Monteiro, 56 anos, costureira, Porto)

No entanto, entre os operários, existem casais, especialmente dos residentes em Lisboa, em que a educação dos
filhos é partilhada pelos dois membros do casal, procurando haver um respeito pela decisão do outro, embora em alguns
aspectos um dos dois elementos do casal possa interferir um pouco mais: “A nível educacional é igual. A nível de contacto
mais directo é a minha mulher. A mãe, como elas são mulheres, aceita mais as possíveis coisas que elas necessitam. Mas a
nível educacional é igual.” (Afonso Pontes, 56 anos, serralheiro mecânico, Lisboa).
Mas a educação dos filhos pode gerar alguns conflitos, devido a pontos de vista diferentes: “Há sempre uma troca
de palavras mais... azeda, mas... faz parte. De resto, não. Acho que os dois conjugamos bem... a situação” (Pascoal Ramos,
39 anos, motorista de matérias perigosas, Porto). Mas também frequente é os casais referirem que não há quaisquer conflitos
neste domínio, na medida em que possíveis desacordos são resolvidos através do diálogo, em privado, entre os cônjuges e do
respeito pela posição do outro em frente dos filhos: “Não, nunca... Cada um tem a sua função aqui em casa e se nós
soubermos isso e soubermos ouvir-nos uns aos outros, penso que não...” (Leonel Monteiro, serralheiro mecânico, Porto).
Como referido anteriormente, existem alguns entrevistados, sobretudo da região do Porto, que mencionam a
existência de mudanças ao nível dos conflitos. Considera-se então que estes mudam ao longo do ciclo de vida, por motivos
diferentes, estando geralmente relacionados com as etapas do crescimento das crianças, e, neste caso, mais especificamente
com os namoros e a escola dos filhos (mostrando mais uma vez que a vida em família é dinâmica, pelo que os modos de
articulação entre trabalho e família também devem ser pensados como não sendo estáticos).
“Não, eu acho que não, mas já tivemos. Já tivemos por causa da minha filha… porque quando ela começou a namorar,
surgiu problemas, não é? e depois ela não gostava que eu lhe dissesse e ela andou aí muito tempo sem falar para mim e
tudo, depois o pai não gostava que lhe dissesse nada.” (Filomena Fontes, 47 anos, empregada doméstica, Porto)

Ora, mais uma vez fica claro que a existência de conflitos se deve, sobretudo, à existência de pontos de vista
diferentes. Contudo, é frequente considerar estas situações como normais, sendo sublinhada, por vários entrevistados, a
importância de não existir uma desautorização do outro em frente dos filhos. Podem, no entanto, existir casos de conflito
mais aberto em face das diferenças nos modos de educação.
Tal como acontece no caso dos operários, para os casais de empregados executantes, de empresários, dirigentes e
profissionais liberais e de profissionais técnicos e de enquadramento a parentalidade é algo que traz aos indivíduos ganhos
identitários significativos: “É óptimo, é uma coisa maravilhosa, acho que é uma das coisas melhores que há é ser mãe.”
(Angelina, 59 anos, assistente administrativa alfândega, Porto); “Além da felicidade que trouxeram e do bom motivo para
unir a família, foi uma boa dádiva, um bom acontecimento” (Armérnio Franquinho, 59 anos, acessor da direcção regional
de educação do Norte, Porto).
Contudo, as profissionais técnicas e de enquadramento fazem, frequentemente, referência às responsabilidades que
a maternidade impõe. Neste sentido, as mães dizem que ter filhos é algo que exige muita responsabilidade e entrega,
constituindo uma preocupação constante, que pode mesmo gerar ansiedade. As ambivalências da parentalidade estão muito
patentes no discurso destas mulheres, quando falam em simultâneo no amor incomensurável que se tem pelos filhos ou na
maternidade como um estado de graça, para logo depois se fazer referência às dificuldades e sofrimento que esta implica:
“Ser mãe, de uma forma completa, é muito difícil. Em 1º lugar há o amor incomensurável aos filhos e depois há como
que querer protegê-los ao máximo, mas é uma inquietação porque sei que não sou capaz. É toda uma entrega e é ao
mesmo tempo uma ansiedade” (Isabel Ventura, 60 anos, professora ensino básico, Lisboa).

Contudo, nem todas as mulheres empregadas executantes, empresárias, dirigentes e profissionais liberais e
profissionais técnicas e de enquadramento consideram que devem fazer tudo aos filhos, procurando antes ter algum tempo de
qualidade, como se pode ver pelo exemplo de Manuela Veríssimo.
“Eu para mim ser mãe é ter um bom relacionamento com elas, tentar perceber. Pronto, não ser uma mãe disponível
para tudo, ou seja, não ser aquela mãe criada, isso nunca. Mas ser uma mãe que partilha as coisas e que percebe o que é
que se passa, que consegue conversar, sabe quem são as filhas.” (Manuela Veríssimo, 43 anos, proprietária empresa
unipessoal área da engenharia assistida por computadores, Leiria)

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Entre as mulheres de Leiria, sobretudo entre as empregadas executantes, embora sejam casos mais isolados, existe
alguma menção às “falhas” ou aos “arrependimentos” da maternidade: é o não saber impor regras ou o não ter ensinado
determinadas coisas aos filhos que actualmente se consideram importantes.
“Olhe, eu digo-lhe uma coisa: eu sou má mãe. Sou má mãe porque faço as vontades todas aos meus filhos, todas, todas,
todas e acho que isso não é ser uma boa mãe. […] Olhe, eu acho que o ser boa mãe seria: primeiro ter feito sentir aos
meus filhos que a vida não era fácil. Eu privei-me sempre de tudo para lhes dar a eles. […] Ter-lhe-ia obrigado a
aprenderem a fazer de tudo: desde pôr a mesa, a fazer a cama, a arrumar o quarto e não sei o quê…” (Emília Freire, 54
anos, bancária, Leiria)

No caso dos homens, nomeadamente entre os profissionais técnicos e de enquadramento e os empresários,


dirigentes e profissionais liberais, residentes em Lisboa e Porto, nota-se uma forte referência aos aspectos positivos da
parentalidade. Estes homens dizem adorar os seus filhos, consideram-nos a melhor coisa do mundo, uma enorme felicidade,
algo muito importante para si. Neste sentido dar o exemplo aos filhos é algo importante da sua função enquanto pais.
“Construir… sem dúvida! É dar um exemplo da vida que eles poderão ter um dia mais tarde. Não quero que eles me
copiem, mas pretendo ser um bocadinho a reportagem para a vida deles. Da experiência da minha vida eles que retirem
o que quiserem. Acho que é importante eles descobrirem-se a si próprios e serem autónomos relativamente a mim. E
eu tento dar-lhes as noções de vida básica para que eles possam evoluir, possam escolher. É claro que eu gosto de dar a
minha opinião, se eles quiserem ouvir, se não quiserem, eu respeito as decisões deles.” (Paulo Ribeiro, 43 anos,
arquitecto paisagista e empresário, Lisboa)

Contudo, as dificuldades e as responsabilidades da parentalidade são bastante sublinhadas pelos homens destes
sectores sociais.
“É complicado... É complicadíssimo. No fundo, é uma coisa nova todos os dias, não é? Todos os dias a gente pensa
numa coisa diferente. Todos os dias a gente depara-se com uma situação diferente. […] Eu acho que ser pai é assim...,
é uma caixinha de surpresas todos os dias, para além duma responsabilidade como é óbvio. Uma pessoa pensar no dia
de hoje, no dia de amanhã... e estar a pensar já a médio e a longo prazo...” (Nuno Marques, 47 anos, gerente comercial
e sócio imobiliária, Porto)

Tal como acontece para as mulheres, os homens de Leiria sublinham que não existem pais ideais. Procura-se antes
fazer o melhor dentro dos condicionamentos socioeconómicos e culturais existentes.
“Não faço a menor ideia do que é ser o ideal de pai. Acho que, acho que cada um tenta fazer, dentro daquilo que é o
seu mundo cultural, o seu mundo cívico, cada um tenta aquilo que julga que é melhor para os filhos, para os filhos e
para o conjunto da família. Para mim ter sido ou ser um bom pai é permitir que as minhas filhas possam estudar, que
sejam pessoas, que do ponto de vista cívico sejam responsáveis e interventivas.” (Óscar Veríssimo, 47 anos, técnico
superior de economia, Leiria)

Também nos casais destes sectores sociais ficou patente que foram as mães quem mais interferiu na educação dos
filhos, na medida em que era considerado que estas tinham mais tempo disponível, como se pode ver pelo exemplo de Isabel
Ventura.
“O meu marido estava fora a semana toda, como ele trabalhava fora só vinha ao fim de semana. Por isso eu acabei por
ser mais interventiva na educação do que ele, embora nós conversássemos sobre isso. O papel dele era mais de dar
conselhos e as conversas… no dia a dia era sempre eu.” (Isabel Ventura, 60 anos, professora ensino básico, Lisboa)

Todavia, para algumas profissionais técnicas e de enquadramento, da região do Porto, o pai surge como uma figura
mais respeitada, com quem os filhos conversavam mais, de modo que estes são considerados como os principais responsáveis
pela educação dos filhos: “Acho elas lhe têm mais respeito talvez porque eu lhes facilite mais a vida, e ele não, torna-as mais
responsáveis percebe? E portanto acho que interfere um bocado mais nesses aspectos.” (Angelina, 59 anos, assistente
administrativa alfândega, Porto). Já em Leiria e em Lisboa existem referências ao grande apoio dos pais no que diz respeito
à educação escolar e às actividades dos filhos: “Em termos dos trabalhos da escola era sempre o pai que ajudava e
acompanhava, mas isso tinha a ver com o facto de ele ter mais tempo” (Teresa Caixinha, 48 anos, contabilista, Lisboa).
Contudo, sobretudo entre os profissionais técnicos e de enquadramento e os empresários, dirigentes e profissionais
liberais, residentes em Lisboa e em Leiria, parece existir uma partilha quanto à educação das crianças. Procura-se assim
educar a dois, conversar a dois sobre as decisões a tomar, respeitar as decisões do outro, embora um possa interferir mais
num aspecto e outro noutro.
Com o nascimento dos filhos, era comum que os homens destes sectores sociais (empregados executantes,
empresários, dirigentes e profissionais liberais e profissionais técnicos e de enquadramento) participassem mais na realização
das tarefas domésticas, chegando, em alguns casos, a dividir os cuidados com os filhos. Neste sentido, eles tomavam conta
das crianças, davam banho, mudavam as fraldas, davam as refeições, adormeciam as crianças…
“O meu marido foi um pai presente em tudo, porque de muito pequenino ele ajudou-me. Eu trabalhava e ele ajudava-
me, levantava-se e ia fazer o biberão, do meu filho mais velho, enquanto eu mudava a fralda e não sei quê. Depois
nasceu o outro, este tinha dois anos e nove meses, ele começou a tratar de um e eu a tratar doutro.” (Emília Freire, 54
anos, bancária, Leiria).

124
Em Lisboa e em Leiria existem ainda referências ao apoio da avó materna no cuidado com as crianças, como se
pode ver pelo exemplo de Deolinda Pires.
“Enquanto elas eram pequeninas tirava-as da cama, embrulhava-as num cobertor e ia-as deitar ao pé da minha mãe, o
meu pai ia trabalhar e elas ficavam na cama com a avó, depois quando começaram a ir para a escola, eu deixava-as na
escola e à hora de almoço a minha mãe ia lá buscá-las, dava-lhes o almoço ia-lhes lá levar e depois às 3 horas ia as lá
buscar e vinha para casa, quando elas ficavam no ATL, eu ia lá buscá-las às seis horas quando vinha para casa.”
(Deolinda Pires, 45 anos, administrativa, Leiria)

Tal como acontecia para os casais operários deste grupo de duração de casamento, também entre os indivíduos
destes sectores sociais a existência de conflitos no casal relativos à educação dos filhos, deve-se sobretudo à existência de
pontos de vista diferentes: “Tivemos alguns aborrecimentos, não muitos. Porque isto é assim, na vida de casado tem sempre
alguns contratempos, não é tudo rosas, e se não houver, então é porque alguma coisa está mal” (Victor Freire, 59 anos,
bancário, Leiria). No entanto, para a maior parte dos entrevistados destes sectores sociais, as situações de desacordo ou de
existência de alguns aborrecimentos são percebidas como normais. Quando existe um respeito pelo outro, no sentido de uma
não desautorização à frente dos filhos, de uma conversa posterior em particular os conflitos tendem a desaparecer dos
discursos dos entrevistados: “Nunca houve grandes aborrecimentos sobre isso. As coisas eram bastante conversadas”
(Margarida pestana, 48 anos, professora de música, Lisboa). Verifica-se ainda que a existência de conflitos ou o que os
origina não é igual ao longo do ciclo de vida do casal, mudando com as etapas de crescimento das crianças, sendo que a
adolescência tende a ser o período mais complicado.

Ideias finais
O desejo de ter filhos está presente para homens e para mulheres, o que vai ao encontro do resultado de várias
pesquisas que mostram a centralidade da parentalidade nos dias de hoje (Beck e Beck-Gernsheim, 1995; Théry, 1998; A. N.
Almeida, 2003; Cunha, 2007). Os filhos parecem ser de extrema importância para os indivíduos. Estes são as coisas mais
importantes do mundo, o que de mais maravilhoso se tem, uma continuação do eu e/ou do casal.
Mas o nascimento dos filhos implica uma alteração de rotinas, um aumento de responsabilidades, uma diminuição
do tempo do casal um para o outro, podendo levar a tensões no casal e a que o cônjuge seja remetido para segundo plano. Ao
nível do trabalho as mulheres, menos qualificadas entre as profissionais técnicas e de enquadramento, podem ter que fazer
um desinvestimento momentâneo na carreira. Ficam em “stand-by” (Torres, 2004; Torres e Moura, 2004), com a perspectiva
de mais tarde ter disponibilidade para retomar o investimento na carreira.
A existência de dificuldades na parentalidade, como o aumento das preocupações, dos medos ou das
responsabilidades, remetem para um sentimento de ambivalência patente no discurso de vários entrevistados. Assim, se por
um lado os filhos são muito valorizados, por outro lado os entrevistados não deixam de fazer referência às dificuldades do
que é ser-se pai ou mãe nos dias de hoje.
Como nos indicam várias pesquisas (Beck e Beck-Gernsheim, 1995; Ine, 2001; Castelain-Meunier, 2002; Monteiro,
2005; Craig, 2006; Wall e Arnold 2007; Cunha, 2005, 2007), existe hoje em dia um discurso que remete para a valorização
de uma maior participação do pai nos cuidados com as crianças, que se pode traduzir em parte, entre os pais entrevistados, no
maior desejo de passar mais tempo com os seus filhos e no maior cuidado que estes lhes prestam.
No entanto, a educação dos filhos está então, de um modo geral, a cargo das mães, na medida em que se considera
que estas têm maior disponibilidade, que os filhos "precisam mais da mãe” e/ou que estas têm uma relação mais próxima com
os filhos e anterior à que estes têm com o pai. As mães tendem a ser pensadas como pessoas mais presentes, mais
preocupadas, com maior capacidade de entrega e de amor; com maior sensibilidade maior. Parece então manter-se uma
“hiper-responsabilização” (Torres, 2004) da mulher pelos filhos. A maternidade aparece como uma questão central para a
vida das mulheres, na medida em que parece implicar uma associação destas à casa. O facto de lhes ser atribuída a
responsabilidade pelo cuidado dos filhos pequenos, questão que é fortemente naturalizada, parece levar a que estas estejam
mais disponíveis para a casa.
Contudo, para alguns dos entrevistados, os filhos têm um maior respeito ao pai, a quem obedecem mais depressa do
que à mãe; sendo que esta mima mais as crianças. Existem, também, entrevistados que referem que ambos interferem na
educação dos filhos, mesmo que interfiram de formas diferentes ou em áreas diferentes. Neste sentido, o casal procura
partilha a educação dos filhos: procura de educar a dois, de conversar a dois sobre as decisões a tomar, de respeitar as
decisões do outro. Está patente uma atitude mais relacional no que diz respeito. Há ainda algumas referências há importância
dos avós na educação dos filhos.
Quanto aos conflitos que advém da educação dos filhos, verificou-se que mais do que diferentes perspectivas em
termos de valores ou princípios de educação a causa dos aborrecimentos referida por uma larga maioria dos casais prende-se
com o desacordo entre os pais em frente aos filhos - a desautorização do outro. Neste sentido, deve transparecer uma imagem
de coerência entre os pais.
Nota-se ainda uma diferença substancial nos discursos dos casais à medida que avançamos no tempo. Ou seja, se os
casais casados à menos de 10 anos referem a ocorrência de conflitos dos desacordos (são diferentes perspectivas ou formas
de agir - é ainda uma fase de acertos e convergências) e de uma forma mais empolgada, já os mais velhos e com uma história

125
conjugal mais longa, parecem desvalorizar o desacordo (é normal entre os casais), e mostram uma postura mais conciliadora,
madura e concertada sobre estas matérias.
Relativamente à parentalidade foram criados três modelos que nos dão conta das posições dos entrevistados perante
o exercício da maternidade e da paternidade e dos seus significados. Assim, temos o modelo autoritário, caracterizado por ser
o mais tradicionalista, podendo mesmo traduzir uma divisão sexual tradicional do trabalho doméstico, ficando elas em casa a
tomar conta dos filhos, enquanto eles trabalho no exterior para prover a família. Neste contexto, os homens tendem a ser mais
autoritários, são eles que impõem as regras, é a eles que os filhos têm mais respeito. Já que elas tendem a mimar mais os seus
filhos, não conseguindo impor a mesma autoridade que o pai; os indivíduos que pertencem a este modelo são uma minoria
entre os entrevistados, estando presente, sobretudo, entre os indivíduos com mais de 20 anos de duração de casamento,
operários, residentes na região do Porto, mas também em Leiria.
Por seu turno, o modelo maternalista remete para a grande importância que a mãe tem no cuidado com os filhos,
entre estes casais. Neste grupo, ambos os indivíduos trabalham, mas elas tendem a estar mais disponíveis para cuidar das
crianças. Acredita-se, também, que elas têm uma maior sensibilidade para esta tarefa. Estes casais procuram transmitir
valores aos seus filhos, mas também acompanhá-los, orientá-los, ajudá-los. Os maternalistas correspondem à maior parte dos
entrevistados, distribuindo-se pelas diferentes regiões, durações de casamento e classes sociais.
Por fim, no modelo relacional os casais tendem a partilhar a educação dos filhos e as decisões são tomadas a dois.
Procura-se acima de tudo encaminhar os filhos, dotá-los de ferramentas, para que estes se transformem em adultos
autónomos e independentes; para que sejam seres humanos com valores. Os pais tentam dar o exemplo aos filhos e
proporcionar-lhes as melhores condições, mas são eles que escolhem o seu caminho. Os relacionais são essencialmente os
indivíduos mais qualificados, embora existam entre alguns operários, residentes em Leiria e Lisboa; apesar de serem mais do
que os autoritários, não constituem, contudo, a maior parte dos indivíduos.

Bibliografia
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of fatherhood”, Gender & Society, Vol. 21, N.º 4, pp. 508-527

126
El camino hacia el empoderamiento político de las mujeres
Mª Amparo Novo Vázque
Universidad de Oviedo
[email protected]

Resumen: Nos vamos a referir al empoderamiento político como un proceso que va más allá del número de mujeres que acceden a puestos
de toma de decisión, en el caso que nos ocupa, gobiernos y parlamentos. Empoderarse significa además, que las mujeres sean conscientes de
sus capacidades, habilidades y competencias para influir en el ámbito político. En esta comunicación se comienza presentando la situación
actual y las tendencias de la presencia de la mujer en parlamentos a nivel internacional y nacional y autonómicos (España). En concreto, se
estudia el caso del Principado de Asturias en donde además de comprobar, el considerable incremento del número de mujeres en el gobierno
y parlamento, nos detenemos en dos aspectos problemáticos para la consecución del empoderamiento femenino. Por un lado, la dificultad
tanto estructural como emocional que sobrellevan las mujeres para poder compaginar la actividad política, debido a “la triple jornada
laboral” lo que limita, la igualdad de acceso a este mundo y, por otro, la influencia negativa que los estereotipos ejercen sobre las mujeres a
la hora de participar en la vida política, lo que modera el proceso de autopercepción, autoestima y competencia en el desempeño de su rol
político.
De este modo se presume que ambos planteamientos explicarán de alguna forma el fenómeno de avance lento en el proceso de
empoderamiento de las mujeres. Y, para ello, empleamos una doble estrategia de investigación cuantitativa y cualitativa (grupos de
discusión).

I. Situación actual y tendencias de la presencia política de mujeres en puestos de toma de decisión


Si observamos los países que cuentan con mayor número de mujeres en los parlamentos nacionales, España se sitúa
en el puesto décimo del mundo con un 36,3%, por detrás de Rwanda, Suecia y Cuba, países que encabezan la lista1. Por lo
que respecta a las Cámaras Autonómicas, la importancia relativa de las mujeres, dentro del conjunto de parlamentarios
autonómicos en España, representa un porcentaje global próximo al 40%. Teniendo presentes estos datos, y los que se van a
exponer a continuación, se puede afirmar que en la actualidad las mujeres han incrementado su presencia en los parlamentos
como no se podría imaginar hace tan sólo una década.
Los datos que recoge la tabla 1 corresponden al porcentaje de mujeres en los sucesivos gobiernos españoles desde
1977 y a través de los mismos se puede observar una clara evolución positiva en cuanto a la participación de la mujer en la
esfera de poder, llegando a nuestros días a la paridad en el gobierno. Por otro lado, el gráfico 1 hace referencia a la
comparación entre dicho porcentaje y el de la representación femenina en los distintos gobiernos autonómicos asturianos a
través de las diferentes legislaturas. Así, la presencia relativa de mujeres en los gobiernos del Principado ha sido siempre
superior a la observada para los gobiernos de Madrid, con la excepción de la legislatura (2004-08), en la cual se aprecia una
paridad entre mujeres y hombres en el ejecutivo nacional presidido por Rodríguez Zapatero, mientras que en el asturiano el
porcentaje de mujeres se mantiene estabilizado en torno al 36’36%.

Tabla 1: Presencia femenina en los sucesivos gobiernos españoles desde 1977


Total de Porcentaje
Presidentes del Nº de Total de
Legislaturas mujeres de mujeres
Gobierno Gobiernos ministros
ministras sobre el total
I Legislatura Constituyente
Adolfo Suárez 2 24 0 0%
(77-79)
Adolfo Suárez/
I Legislatura (1979-82) 6 43 1 2’3%
Leopoldo Calvo Sotelo
II Legislatura (1982-86) Felipe González 2 25 0 0%
III Legislatura (1986-89) Felipe González 2 22 2 9%
IV Legislatura (1989-93) Felipe González 2 26 2 7’7%
V Legislatura (1993-96) Felipe González 3 22 3 13’6%
VI Legislatura (1996-2000) José María Aznar 2 18 4 22’2%
VII Legislatura (2000-04) José María Aznar 3 26 7 26’9%
José Luis Rodríguez
VIII Legislatura (2004-08) 2 18 9 50%
Zapatero
Fuente: Elaboración propia

1
Véase http://www.ipu.org/wmn-e/classif.htm (última actualización septiembre de 2008)

127
Gráfico 1: Evolución de la presencia de mujeres en el gobierno asturiano y español

% de Mujeres en el Gobierno Asturiano

% de Mujeres en el Gobierno Español

60

50

40

% 30

20

10

0
1983 1987 1991 1995 1999 2003 2006

Años

Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por el Gobierno Autonómico Asturiano

Desde 1983, año en el que se celebraron las primeras elecciones al Parlamento Asturiano, hasta la legislatura
iniciada en el año 2003, el número de mujeres parlamentarias ha ido creciendo paulatinamente y, tal y como refleja la Tabla
2, ese crecimiento ha sido sostenido hasta 1995, observándose un ligero retroceso entre las legislaturas 3ª y 4ª, un gran salto
cuantitativo tras las elecciones de 1999 y un posterior estancamiento según el cual la distribución por sexos en la cámara
vendría a ser aproximadamente de una mujer por cada dos hombres en la actualidad.

Tabla 2: Número de parlamentarias/os en todas las legislaturas


2ª (87-
1ª (83- 2ª (87-91) 3ª (91- 4ª (95- 5ª (99- 6ª (03- ) 6ª (03- )
LEGISLATURAS 91)
87) (COMIENZO) 95) 99) 03) (COMIENZO) (AÑO2006)
(FINAL)
PSOE, PP, PSOE,
PSOE, PSOE,
PARTIDOS CON PSOE, AP, PP, PSOE, PP, IU, PSOE, PP,
AP, AP, PSOE, PP, IU
REPRESENTACION CDS, IU IU, IU, URAS- IU
PCA CDS, IU
GPM GPM GPM
TOTAL
45 45 45 45 45 45 45 45
PARLAMENTARIOS
TOTAL 4 4 6 9 8 15 15 14

MUJERES (%) 8’8 8’8 13’3 20 17’7 33’4 33’4 31’2


TOTAL 41 41 39 36 37 30 30 31

HOMBRES (%) 91 91’1 86’6 80 82’2 66’6 66’7 68’9


Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por el Parlamento de Asturias

Por otro lado, en la tabla 3, observamos como el crecimiento de los porcentajes de la presencia femenina es más
discontinuo en Asturias y más sostenido en el conjunto del país. De este modo, el peso relativo de las mujeres en el
parlamento asturiano va por delante de la media nacional hasta 1995, cuando la tendencia se interrumpe coincidiendo con la
victoria del PP las elecciones de ese año. A partir de 1999, que registra una nueva victoria del PSOE, el peso relativo de las
mujeres en el parlamento regional se estabiliza en torno a un tercio, tendencia que contrasta con la tendencia que se observa
en el conjunto de cámaras regionales al aumento constante y sostenido. Así, en la legislatura 2003-2007, un 31’11 % de los
parlamentarios asturianos son mujeres, mientras que el porcentaje global a nivel nacional se aproxima ya al 40%.

Tabla 3: Presencia femenina en el global de los Parlamentos Autonómicos españoles


AÑOS 1983 1987 1991 1995 1999 2003
Escaños en todos los Parlamentos Autonómicos 1156 1164 1184 1180 1181 1186
(total)
Mujeres parlamentarias en todos los Parlamentos 65 79 165 231 348 455
Autonómicos
(total)

128
Mujeres parlamentarias sobre el total 5’6% 6’7% 13’9% 19’5% 29’4% 38’3%
(en porcentaje)
Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por los Parlamentos Autonómicos

Los datos anteriores se ven complementados por el hecho de que actualmente son ya cinco los gobiernos
autonómicos que superan al asturiano en lo que hace referencia a la presencia porcentual de las mujeres con respecto al total
de cargos de cada uno. Son en concreto, los de Andalucía, Baleares, País Vasco, Galicia y Castilla-La Mancha, tal como
puede observarse a través de las cifras y porcentajes que aparecen en la tabla 4:

Tabla 4: Presencia de mujeres en los gobiernos autonómicos (2006)


CCAA Total de cargos2 en cada Total de cargos ocupados Porcentaje de presencia
gobierno autonómico por mujeres en los femenina sobre el total
gobiernos autonómicos
Andalucía 15 8 53’3
Baleares 15 7 46’6
Euskadi 13 6 46’1
Galicia 14 6 42’8
Castilla-La Mancha 15 6 40
ASTURIAS 11 4 36’3
Canarias 12 4 33’3
Cantabria 12 4 33’3
Madrid 15 5 33’3
Castilla y León 13 4 30’7
Extremadura 13 4 30’7
Murcia 10 3 30
Cataluña 17 5 29’4
La Rioja 11 3 27’2
Aragón 12 3 25
Com. Valenciana 13 3 23
Navarra 13 1 7’6
Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por los Gobiernos Autonómicos

Para llegar a estos datos, ha sido imprescindible institucionalizar medidas de acción positiva como el sistema de
cuotas. La acción de los movimientos feministas en pos de la implantación de esta medida correctora de la desigualdad fue
apoyada y consensuada por los partidos políticos de izquierda como medio para eliminar el sesgo sexista de la actividad
política (García de León, 1994: 56), y esto ha sido, sin lugar a dudas, lo que ha provocado un mayor éxito de participación en
espacios de responsabilidad.
Pese a esta importante conquista, todavía no se cuenta con una presencia equivalente, ni la mujer participa en
igualdad de condiciones con los hombres en política. De ahí la persistencia de argumentos acerca del llamado “techo de
cristal” (Alberdi, 1997: 281), entendido como una estructura invisible que opera simultáneamente como “realidad cultural
opresiva y como realidad psíquica paralizante” (Burin, 2003: 51). La particularidad de esta alegoría es que favorece el avance
y proyección de interpretaciones que se saldan con el freno en la propia mujer al posible acceso a los puestos de toma de
decisiones. “El techo de cristal es apuntalado, pues, por tres consistentes pilares referidos a la identidad de género, a la
cultura organizacional dominante, caracterizada por la persistencia de creencias sociales estereotipadas sobre los géneros, y a
las responsabilidades familiares asumidas mayoritariamente por las mujeres” (Heredia et.al,. 2002: 60-61). Bajo este
concepto se encuadrarían, entre otras realidades, la propia percepción que tienen de sí mismas, los estereotipos relativos al
ejercicio del poder y las relativas a las responsabilidades domésticas o las dificultades para distribuir los tiempos. En
definitiva, que además de la sobrecarga de responsabilidades, las mujeres encuentran limitaciones de acción debido a que los
espacios y ritmos de vida políticos, organizados y consolidados a través del tiempo por los hombres, condicionan tanto el
acceso como su permanencia en este tipo de ocupaciones.
Como se puede observar a lo largo de las seis legislaturas (tabla 5), los puestos en el gobierno asturiano han estado
ocupados fundamentalmente por hombres, de tal modo que sólo trece mujeres han sido nombradas consejeras3 y entre ellas

2
Presidencias y Consejerías
3
Todos los presidentes autonómicos han sido varones, y las consejerías dirigidas por mujeres en las diferentes legislaturas han sido las siguientes: 2ª Legislatura
(1987-91): Consejería de Industria, Comercio y Turismo - María Paz Fernández Felgueroso- y la Consejería de la Juventud -Pilar Alonso Alonso-.En la 3ª
Legislatura (1991-95): Consejería de Interior y Administraciones Públicas -María Antonia Fernández Felgueroso-, Consejería de Medio Ambiente y Urbanismo -
María Luisa Carcedo Roces- y Consejería de Educación, Cultura, Deportes. y Juventud -María Antonia Fernández Felgueroso, sustituida por Amelia Valcárcel
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129
únicamente dos han ocupado el cargo durante dos legislaturas diferentes. En el ejecutivo asturiano se evidencia una vez más,
por lo tanto, la preeminencia masculina. Además de ser significativa la limitada representación de las mujeres, no es menos
revelante su escasa permanencia en el cargo si la comparamos con la de los hombres. Distintos estudios sobre elites políticas
(Martínez y Elizondo, 2007) han presentado datos que refrendan la mayor permanencia y estabilidad de los hombres en
puestos de toma de decisión, mientras que entre las mujeres la consolidación en los altos cargos es mucho más exigua, y en
muchos casos suelen ser prontamente sustituidas, a veces abandonan ese desempeño y en ocasiones llegan a causar baja en la
vida política activa. Las trayectorias políticas de hombres y mujeres presentan, por tanto, notables diferencias, no sólo en
cuanto a la mera presencia cuantitativa de unos y otras en los puestos de responsabilidad dentro de los partidos, sino también
respecto a los contrastes significativos –en términos de permanencia, ascenso, movilidad, abandono, etc- entre los distintos
cursos que suelen seguir las carreras políticas masculinas y femeninas (Durán, 2000).

Tabla 5: Presencia de mujeres en los diferentes gobiernos de Asturias


Gobiernos autonómicos
Nº de miembros del Nº de Mujeres en el % de mujeres en el
asturianos correspondientes a
gobierno autonómico gobierno autonómico gobierno autonómico
cada legislatura

Legislatura Provisional (83) 11 0 0

I legislatura (83-87) 11 0 0

II legislatura (87-91) 11 2 18’1

III legislatura
9 3 33’3
(91-95)
IV legislatura
7 1 14’2
(95-99)

V legislatura (99-03) 12 3 25

VI legislatura (03-07) 11 4 36’3

Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por el Gobierno del Principado de Asturias

En los grupos de discusión las mujeres expresaron sus opiniones al respecto que son interesantes revelar para poder
afrontar los siguientes puntos que se van a analizar:
(m) “el nivel de exigencia… la dedicación y los horarios... yo creo que hay muchísimas barreras que siguen
dificultando el acceso… y luego está el sistema de valores” (PSOE, GD 2)
(m) “Las mujeres, para participar activamente en política al mismo nivel que los hombres, para ejercer ese nivel
de liderazgo, o bien son solteras, o viudas, o no tienen hijos, o ya sus hijos son mayores…” (PSOE, GD 3)

I. Condicionantes culturales de acceso a puestos de toma de decisión: la difícil conciliación de las responsabilidades
familiares y la actividad política
Esta comunicación parte de la evidente dificultad de las mujeres para compaginar la actividad política con la
jornada laboral y las responsabilidades familiares que ellas continúan ejerciendo de forma generalizada, lo que implica tener
no una “doble” sino una “triple jornada laboral” (Norris y Franklin, 1997: 201). La irrupción de las mujeres en la esfera
pública, la educación y el trabajo remunerado no ha venido acompañada por la correspondiente corresponsabilización de los
hombres en las tareas no remuneradas. Hay hombres que no sienten la obligación de conciliar su vida profesional con su vida
familiar, ni la tienen atribuida socialmente (Torns, 2005: 23). Esta situación provoca que las mujeres tengan que buscar
estrategias de conciliación de la vida familiar y laboral consistentes fundamentalmente en: abandonar o reducir el trabajo
remunerado; reducir el número de hijos o incluso desistir de tenerlos; buscar sustitutas remuneradas -servicio doméstico- o no
remuneradas –familiares- para las tareas del hogar y los cuidados a familiares dependientes (Jurado, 2005: 77).
Es oportuno significar algunos datos de interés reflejados en la tabla 6 como cuál es el estado civil de los
parlamentarios autonómicos asturianos que ocupaban escaño en la Cámara del Principado durante la VI Legislatura.

Bernardo de Quirós-.En la 4ª Legislatura (1995-99): Consejería de Cultura -María Victoria Rodríguez Escudero-.En la 5ª Legislatura (1999-03): Consejería de
Presidencia -María José Ramos Rubiera-, Consejería de Trabajo y Promoción de Empleo, Consejería de Administraciones Públicas y Asuntos Europeos -
dirigidas ambas en distintas etapas por Angelina Álvarez González- y Consejería de Hacienda -Elena Carantoña Álvarez-.Finalmente, en la 6ª Legislatura (2003-
07): Consejería de la Presidencia -María José Ramos Rubiera-, Consejería de Medio Rural y Pesca -Servanda García Fernández-, Consejería de Cultura,
Comunicación Social y Turismo -Ana Rosa Migoya Diego- y Consejería de Vivienda y Bienestar Social -Laura González Álvarez-

130
Tabla 6: Estado civil de los Diputados autonómicos del Parlamento de Asturias (VI Legislatura)

Estado
Civil Porcentaje de
Porcentaje de Casados/as Porcentaje de Viudos/as
Grupos Solteros/as
Políticos
Mujeres 28’6 71’4 0
PSOE Hombres 7’7 92’3 0
Total 15 85 0
Mujeres 50 50 0
PP Hombres 6’7 86’6 6’7
Total 15’8 78’9 5’3
Mujeres 66’7 33’3 0
IU Hombres 100 0 0
Total 75 25 0
Mujeres 42’9 57’1 0
Totales Hombres 10’3 86’2 3’5
Total 20’9 76’8 2’3
Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por los partidos políticos

Se puede apreciar que más de ¾ partes del total de diputados están casados, y sólo uno de cada cinco está soltero.
Aunque al introducir la variable sexo en el análisis esos porcentajes sufren variaciones considerables, y, de este modo, se
puede apreciar claramente como los diputados varones que se han casado alcanzan un elevadísimo peso porcentual entre los
hombres –más del 85%- mientras que en el caso de las mujeres parlamentarias la diferencia relativa entre el número de
solteras y casadas está mucho más atenuada y no llega siquiera a los 15 puntos. Es significativo reseñar que más del 42% de
las diputadas están solteras, cuando entre ellos este porcentaje se sitúa en apenas un 10%.
Cuando se observan los datos para cada una de las tres agrupaciones políticas, es posible apreciar interesantes
divergencias y matices distintivos. Tanto en el PSOE como en el PP, los porcentajes de casados son abrumadores. Por contra,
en IU predominan los solteros, ya que de los cuatro diputados de este grupo político, tres lo son.
Entre los cargos parlamentarios autonómicos electos en la VI legislatura pertenecientes a los dos partidos con
mayor representación se aprecia un reducidísimo porcentaje de varones solteros. Sin embargo, entre las diputadas del PSOE
sigue habiendo un claro predominio de las casadas –más del 70%- mientras que en el PP el número de parlamentarias solteras
es el mismo que de casadas.
La tabla 6 parece, pues, confirmar, la existencia de unos costes diferenciales que deben afrontar las mujeres para
poder responder a las exigencias de la vida política. Entre ellos aparecen los llamados costes de aculturación, referidos a la
necesidad de prescindir en mayor o menor medida de la realidad tradicional femenina, basada en el matrimonio y los hijos.
Costes que para nada repercuten en sus homólogos masculinos, antes al contrario, para el hombre político la esposa e hijos
son signos de estatus y respetabilidad (García de León, 1994: 40 y 118).
Por su parte, la tabla 7 hace referencia al número medio de hijos que tienen los diputados y diputadas del
Parlamento Autonómico de Asturias durante la VI Legislatura.

Tabla 7: Número medio de hijos de los Diputados autonómicos del Parlamento de Asturias (datos VI Legislatura)
Grupos
Polit. PSOE PP IU Total del Parlamento
Sexo
Mujeres 1’1 1’0 1’0 1’0
Hombres 1’6 1’86 0 1’7
Totales por Partidos 1’5 1’6 0’7 1’5
Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por el Parlamento de Asturias

El número medio global de hijos es de 1’5, y son los varones los que claramente tienen una mayor descendencia, ya
que ellos tienen un promedio de 1’7 hijos por tan solo 1’07 de las mujeres.
Los parlamentarios del PP son los que tienen un mayor número de hijos, aunque no existen diferencias demasiado
significativas entre el dato global de este partido y el del PSOE. Sí las hay, por contra, entre estos dos partidos e IU, ya que
en este grupo político el número medio de hijos se reduce de un modo apreciable -0’7 hijos de media-. Los diputados varones

131
del PP tienen casi dos hijos de promedio, y sin embargo entre las mujeres esa cifra se reduce a uno, dato inferior al obtenido
entre las parlamentarias del PSOE y similar al de las de IU.
El problema de conciliar la vida laboral y familiar fue ampliamente tratado y valorado por los representantes
políticos que han participado en esta investigación (ver Metodología), y tanto las mujeres como los hombres que
intervinieron en los grupos de discusión, se refirieron al estigma femenino mujer/madre y la vigencia de una identidad
masculina construida en base a patrones culturales, que pese a ser cuestionados, siguen definiendo el poco protagonismo del
hombre en el espacio familiar. De un modo u otro plantearon la urgencia de que el hombre comparta responsabilidades, en el
ámbito privado y doméstico, para que la mujer pueda incorporarse plenamente a la vida política:
(v) “en cuanto al tema familiar, cuando uno se casa, los niños pues son un problema muy serio para la mujer,
probablemente porque los hombres no asumimos los papeles que tendríamos que asumir, por comodidad, porque nos
dedicamos a otras cosas, porque nosotros somos los que tenemos la mentalidad de que somos los punteros en la familia y
tenemos también esa conciencia de que la familia la hay que sacar adelante” (PP, GD 1)
Las dificultades de la mujer para acceder a los círculos de poder no sólo radican en el contexto social dominante,
sino también en su propia identidad de género transmitida a lo largo de siglos, según la cual “a las mujeres no les corresponde
ese lugar”, de tal suerte que ante la oportunidad de acceder a un puesto de responsabilidad, entran en conflicto los
sentimientos y la ansiada meta de conseguir un papel protagonista en política, conflicto que aflora, por ejemplo, en la relación
de pareja:
(m) “el tema de la conciliación, yo es que eso lo tengo clarísimo. Cantidad de veces que ibas a buscar a mujeres
para ir en tus listas y la primera cosa que te decía: “es que voy a quitarle tiempo a mi familia”.Cosa que nunca la oirás a
un hombre, jamás de la vida”. (PSOE, GD 3)
Pero sin duda el problema se acrecienta en el mundo político, ya que no estamos hablando de una doble jornada,
sino de “la triple carga” mencionada anteriormente. Si una mujer ocupa su tiempo en un trabajo profesional y lo dedica
asimismo al trabajo doméstico con su familia, al convertirse en políticamente activa y desempeñar una función pública,
asumirá un tercer trabajo a tiempo completo (Matland, 2004:20-1).
Esta situación la han vivido algunas de las mujeres representantes de instituciones políticas presentes en nuestros
grupos y, como veremos a continuación, dejaron constancia de la falta de referentes masculinos en su larga trayectoria
profesional a los que poder significar como partícipes de una situación homónima a la de ellas:
(m) “Yo recuerdo en un momento determinado que yo trabajaba en el Hospital San Agustín de 8 a 3, iba por la
tarde al Ayuntamiento de Avilés y llegaba a casa y hacía las cosas de casa, es decir, tenía tres jornadas. No puede ser que,
para que una mujer se dedique a una actividad política necesite tener tres jornadas, no es posible.…” (IU, GD 1)
(m) “el trabajo, la familia y la participación política, son tres trabajos. Yo no conozco a ninguno, casi ninguno, de
los dirigentes políticos de esta región y de este municipio, que tengan compartidas sus responsabilidades familiares, a un
nivel que se pueda considerar aceptable… (PSOE, GD 2)
A nivel político, parece claro que con frecuencia la mujer renuncia a sus aspiraciones debido a las dificultades que
entraña armonizar la ocupación con su vida privada. La disponibilidad horaria que requieren los puestos más elevados en la
mayoría de los espacios laborales, tanto públicos como privados, están planteados, por lo general, dentro de un universo de
trabajo masculino e incluye horarios, vespertinos o nocturnos, que habitualmente no están disponibles para las mujeres
(Burin, 2003: 45). La construcción del tiempo es análoga a la construcción del espacio parece que “sólo masculinizándose de
manera notable es posible que una mujer se pierda en el descontrol horario que exige la política” (Instituto de la Mujer, 1999:
114). Estas dificultades fueron planteadas por las mujeres en los grupos:
(m) “yo cuando fui Consejera de Gobierno Regional…lo que veía era es que los hombres no tenían límite de
horario en la política, incluso cuando se decía” no mire yo acabo de tener un niño, y a las 7 de la tarde me voy para mi
casa porque yo he rendido desde las 9 de la mañana hasta las 7”... entonces había una porción de horario, a partir de las 7
de la tarde, en la cual los hombres tomaban decisiones y nosotras no estábamos” (PSOE, GD 2)
De ahí que la falta de disponibilidad permanente y continua de la mujer, originada por la necesidad de atender otras
ocupaciones, “la desplaza de los grupos de influencia que controlan el poder” (García-Mercadal, 2005, 56).

II. La formación y su implicación en el acceso a los puestos de toma de decisión


Como señalan Requena y Bernardi (2005: 246) “el avance educativo de las mujeres ha alcanzado tal punto que se
ha conseguido invertir la tendencia histórica, muy arraigada en nuestra sociedad, que situaba a las mujeres en condiciones de
inferioridad educativa y desventaja cultural en relación con los hombres, es decir, en los últimos treinta años se ha acabado en
España con uno de los factores tradicionales de discriminación femenina como era el caso de la educación reglada”.
Tal como ocurre en otros campos de actividad, las mujeres intentan contrarrestar la influencia negativa de los
estereotipos con un mayor esfuerzo formativo, que les da una relativa ventaja comparativa en materia de educación (tal como
veremos más adelante, al comparar el nivel educativo de los parlamentarios asturianos por sexo), pero que no les protege de
la influencia del currículo oculto que interiorizan los jóvenes de ambos sexos en el proceso de socialización secundaria
transmitida en la escuela (Subirats, 1994; Novo, 2008).
La tabla 8 muestra el nivel de estudios de los diputados y diputadas que forman parte del Parlamento de Asturias en
la VI Legislatura.

132
Tabla 8: Nivel de estudios de los diputados autonómicos del Parlamento de Asturias (VI Legislatura)
Nivel de estudios de los diputados autonómicos del Parlamento de Asturias (VI Legislatura)
Nivel
Estudios Estudios Estudios
Licenciatura Diplomatura Totales
Grupos Medios Primarios
Políticos
Mujeres 4 (57’1%) 1 (14’3%) 2 (28’6%) 0 (0’0%) 7 (100%)
PSOE Hombres 6 (40’0%) 2 (13’3%) 4 (26’7%) 3 (20’0%) 15 (100%)
Total 10 (45’5%) 3 (13’6%) 6 (27’3%) 3 (13’6%) 22 (100%)
Mujeres 3 (75’0%) 1 (25’0%) 0 (0’0%) 0 (0’0%) 4 (100%)
PP Hombres 11 (73’3%) 1 (6’7%) 3 (20’0%) 0 (0’0%) 15 (100%)
Total 14 (73’7%) 2 (10’5%) 3 (15’8%) 0 (0’0%) 19 (100%)
Mujeres 1 (33’3%) 2 (66’7%) 0 (0’0%) 0 (0’0%) 3 (100%)
IU Hombres 0 (0’0%) 0 (0’0%) 1 (100%) 0 (0’0%) 1 (100%)
Total 1 (25’0%) 2 (50’0%) 1 (25’0%) 0 (0’0%) 4 (100%)
Mujeres 8 (57’1%) 4 (28’6%) 2 (14’3%) 0 (0’0%) 14 (100%)
Total Hombres 17 (54’8%) 3 (9’7%) 8 (25’8%) 3 (9’7%) 31 (100%)
Total 25 (55’5%) 7 (15’6%) 10 (22’2%) 3 (6’7%) 45 (100%)
Fuente: Elaboración propia a partir de datos facilitados por los partidos políticos

El primer dato que llama la atención es el hecho de que más de la mitad de todos ellos tienen estudios universitarios
superiores. En concreto, un 55% son licenciados y otro 15% son diplomados. Menos de la cuarta parte han terminado
estudios de grado medio y apenas un 6% tienen estudios primarios.
El nivel de estudios de las mujeres parlamentarias es ligeramente superior al de los hombres, ya que los porcentajes
femeninos son mayores en los dos grados formativos superiores, y menores en los dos inferiores.
Por partidos, se observa como es en el PP donde se encuentran los mayores porcentajes de licenciados, casi el 75%,
mientras que en el PSOE esas cifras se reducen al 45% y en IU al 25%. En esta última agrupación política ese dato se atenúa
al considerar que un 50% de diputados son diplomados universitarios. En el PSOE, por su parte, es en donde se constatan los
porcentajes más altos correspondientes a los niveles de estudios medios y primarios.
Al introducir la variable sexo, se puede apreciar como para cada uno de los tres partidos el nivel de estudios de las
mujeres parlamentarias es mayor que el de los hombres, siendo la diferencia entre ambos sexos más notable en el caso del
PSOE e IU y algo más atenuada en el PP.
Pese a contar con un nivel de estudios más alto que los hombres, las mujeres se ven “obligadas” a demostrar que
son competentes como concejalas o como diputadas. A este respecto resulta significativo lo que comentaba una mujer
asturiana, alto cargo del PSOE, en uno de los grupos de discusión:
(m) “creo que las mujeres que están en política tienen mayor cualificación… y además… se mira el
currículum…Mira el Parlamento regional, que yo lo he analizado… yo sé el nivel de exigencia que se plantea cuando se
hacen las listas y sigo diciendo que el nivel de exigencia para ellas es mayor, porque hay cosas que los hombres no tienen
que demostrar, más que responder a su cuota, a su cuota … y a su círculo, y las mujeres tienen que demostrarlo y entonces a
nivel de concejalas, y de diputadas, y de mujeres que están en órganos de dirección, yo creo que el nivel de exigencia es más
alto”. (PSOE, GD 1)
Pero como se significaba más arriba, pese al mayor nivel de cualificación de las mujeres, los efectos del currículo
oculto transmitido en las escuelas hace mella en las mismas. Las derivaciones de esto no repercute en sus resultados
académicos, aunque sí afecta a su autoconfianza (Subirats y Brullet, 1988). Es por esto, que pese al incremento importante de
mujeres en puestos de toma de decisión como se ha visto anteriormente, de momento, y como se verá en las páginas que
siguen, algunas mujeres de esta generación dedicadas a la política, expresan que muchas compañeras no manifiestan
autoreconocimiento de su valía, si bien, demuestran una falta de asertividad en el desempeño de su rol político. Y, así, en
relación con lo expuesto, resultan sumamente reveladoras las intervenciones de algunas de las participantes en los grupos de
discusión:
(m) “Cantidad de veces que vas a buscar a mujeres para ir en tus listas y…cosa que nunca la verás en un hombre,
jamás de la vida te decían como disculpa “es que…no estoy suficientemente formado” ni “no soy capaz” y la mujer te dice..
“¿tú crees que estoy formada?”, “es que soy incapaz de estar en ese puesto de responsabilidad” (PSOE, GD 3).
(m) “… el hecho de hablar en público, de que las mujeres se atrevan a hablar en público, eso es fundamental,
porque la historia nos ha enseñado, como me decía mi abuela y oía yo en el pueblo toda la vida,” no hay mejor palabra que
la de por decir”, sobre todo en una mujer…la sociedad nos enseñó a callar. Hay que conseguir que las mujeres hablen…”
(PSOE, GD 2)

133
(m) “no la mitad, pero casi la mitad somos mujeres… aunque tengas mucho que decir... ¿que le pasa al grupo?...
que sean, bueno, mitad y mitad, hombres y mujeres... se empiezan a pedir las palabras y los hombres continuamente van a
hablar y para que una mujer hable……” (PSOE, GD 2)
(m)“una mujer que viene de una formación no muy elevada y que nunca pudo desarrollar... o, bueno, nunca
quiso... pero bueno, en muchas ocasiones nunca pudo desarrollar ninguna actividad fuera del hogar, encuentra más
dificultades a la hora de expresarse… también es psicológico ¿no?, pero teniendo titulación universitaria pues encontramos
una dificultad también muy importante “…(IU, GD 2)
Aunque esas mismas mujeres también consideran que probablemente dicha capacidad está siendo en la actualidad
sobrevalorada y hay otras características que poseen de importante valor social:
(m) “a lo mejor yo no tengo una capacidad de expresión pública que es muy necesaria para la política, pero tengo
otras habilidades muy difíciles de demostrar en un primer contacto, o en la elaboración de unas listas, o en el trabajo
cotidiano, que son igual de válidas y no son tan fácilmente medibles en un primer contacto o con el contacto que pueda tener
con el resto de militantes a la hora de elaborar unas listas” (IU, GD 2)
(m) “en la política actual se está, yo creo que incluso sobrevalorando... claro, ya aparte de la posibilidad de
comunicar un mensaje... pero sobrevalorando la capacidad de expresión” (IU, GD 2)
Ciertamente, las mujeres parten de una falta de experiencia en la vida pública que es necesario tener en cuenta. Y se
evidencia para el caso que aquí se está exponiendo lo que expresa San José (2003): las mujeres que han alcanzado un puesto
de alta responsabilidad política cuentan con una amplia experiencia en el ámbito social antes que partidista. Si nos remitimos
al caso asturiano buena parte de las mujeres asturianas fueron promocionadas a partir del prestigio adquirido en el ejercicio
de su labor dentro de la vida política local o municipal, por la militancia y participación en organizaciones sociales
(sindicatos, asociaciones vecinales y feministas):
(m) “es la primera vez que estoy en el parlamento, pero empecé en la política con 17 años… ¿cómo? Pues primero
en el movimiento estudiantil contra el franquismo, luego en el movimiento feminista, después en movimientos culturales,
después en el movimiento asturianista… y eso... está lleno de mujeres... y también una asociación de padres también de
alguna manera contribuye a mejorar la situación social, y entonces yo creo que las mujeres participamos siempre mucho en
todo” (IU, GD 3)
Es verdad que algunos de estos espacios públicos, como las asociaciones de padres de alumnos o las asociaciones
vecinales, pueden proporcionar a las mujeres una mayor experiencia de participación y ayudarles a adquirir confianza en sí
mismas, tal como han puesto de manifiesto algunos de nuestros políticos/as, pero estos mismos grupos alertan de que dichas
asociaciones son, con frecuencia, una forma de tener a las mujeres “entretenidas”, sin estar realmente presentes en la vida
pública, además de considerar poco o nada positivo su paso por ellas como peaje para demostrar destrezas útiles que
consoliden su papel como buenas concejalas o diputadas. Además, no deja de responder a la asignación de roles sexuales
tradicionales realizando actividades a favor de su comunidad (Bernal, 2006).
(v) “la mujer, está participando mucho más que antes, digamos que… en asociaciones de vecinos. Y ahora son las
mujeres las protagonistas, luego la mujer está asumiendo ese rol de abajo hacia arriba y yo eso no lo veo nada negativo, lo
veo muy positivo, el tiempo les dará la razón a esa mayor participación, a ese asumir mayor responsabilidad, a esa toma de
decisiones en los temas más inmediatos, los más cercanos y que seguramente le abren todas las puertas en el futuro, yo lo
que sí sé es que me parece positivo...” (PP, GD 3)
(m) “dejemos poco a poco que la mujer se vaya incorporando, pues se va incorporando y llegará el momento en
que esté en situación de igualdad. Si no presionas, si no se presiona desde ese otro modelo yo estoy segura de que los
hombres seguirán diciendo: “si antes las mujeres estaban en la cocina y era más donde mandaba, ahora dejémoslas en
asociaciones de vecinos o en las asociaciones de padres y ¡hala!” (PSOE, GD 3)
(m) “A mi no me parece correcto eso, es decir, la mujer que vaya poquito a poquito, en asociaciones de vecinos…
(IU, GD 3)
Tampoco se debe descuidar a la hora de entender las dificultades del desarrollo de la actividad política de las
mujeres la limitación que ejercen los estereotipos de género relativos a intereses, conductas o cualidades. Así “virtudes como
la eficacia, competitividad o liderazgo son atribuidas en mayor medida a los hombres” (Vergé, 2008: 126). No está
completamente asumido que una mujer tenga la aspiración de alcanzar y conseguir un puesto de liderazgo, esto se enfrenta al
orden tradicionalmente instituido. Para poder adentrarse en ese mundo vinculado a los hombres tiene que articular distintos
procedimientos viables para superar las directrices exclusivistas propias de esos puestos. Además, si al sexo femenino se le
adjudica una característica positiva para el hombre, por ejemplo, la ambición, esa actitud en la mujer se convierte en algo
cuestionado.
(m)” los estereotipos están ahí todavía y al final nos encontramos muchas veces con que si un hombre es muy
ambicioso pues fantástico, si la mujer es muy ambiciosa es una bruja” (PP, GD 1)
(m) “yo creo que ahí se da la situación de la pescadilla que se muerde la cola: una mujer se ve obligada a ser
más ambiciosa en un proceso de selección dentro de una organización política, o en una empresa, pero cuanto más
ambiciosa es, más cuestionada será su ambición ¿no? porque a una mujer no se le permite eh que tenga esas expectativa(…)
(IU, GD 1)
“Una mujer tiene que llegar a verse a sí misma como una persona y una figura política que resuelve, dirige o
reprime las tensiones entre su imagen emergente de persona capaz de funcionar eficazmente en los niveles políticos más

134
elevados y la visión social generalizada de que ni ella ni ninguna otra mujer tienen esa capacidad” (Genovese y Thompson,
1997: 24). Con el aumento de mujeres en puestos de responsabilidad en política deja de ser característica de las mujeres la
desmotivación a la hora de expresar interés o querer adquirir un grado de compromiso con esta actividad. O como señala
Burin (2003: 46), “la falta de modelos femeninos con lo que identificarse lleva a este grupo generacional a sentir inseguridad
y temor por su eficacia cuando acceden a trabajos tradicionalmente ocupados por hombres”. Así las cosas, no cabe duda de
que la presencia de mujeres en las instancias de toma de decisión favorecerá el cambio estructural, a nivel organizativo y
cultural y serán modelo y fuente de motivación para el resto de mujeres.
Una Consejera del Gobierno del Principado de Asturias, apoyó con argumentos la idea de la conveniencia de que
las mujeres ocupen cargos de responsabilidad política, tanto a nivel regional como local, con el fin de que la sociedad asuma
esa presencia con normalidad:
(m) “es importante la presencia de mujeres en cargos de responsabilidad pública tanto a niveles locales como
niveles regionales, creo más en los locales, porque el trabajo desde el ámbito municipal… la gente, al ver a las alcaldesas o
a las concejalas… con esa normalidad … de lo que significa luego el que la representación política, a nivel de concejalas o
alcaldesas, luego esté relacionado con el ámbito familiar, con el ámbito laboral… yo creo que hay que hacer de la política
también esa otra normalidad que se necesita para que la sociedad y sobre todo las mujeres asuman la posibilidad de poder
estar en puestos de responsabilidad” (PSOE, GD 1).

Conclusiones
En las páginas anteriores se ha demostrado el gran avance que la mujer ha obtenido en el ámbito político, y, en
concreto en puestos de alta responsabilidad a lo largo de los últimos años. El efecto de las garantías formales ha supuesto un
considerable incremento numérico sin embargo, queda dar salida a problemas sociales y culturales que provocan sesgos y
prejuicios contra las mujeres que limitan, de momento, el empoderamiento político de la mujer. En las páginas anteriores se
ha visto como señala García de León (1994: 41) como aún en nuestros días las mujeres en la actividad política debe reunir
características, no sólo en cantidad sino también en calidad, en relación con las que deben aportar los hombres, lo que
provoca discriminación.
Junto a esto, hay que señalar que la transmisión social y cultural de estos estereotipos de género consolidados a
través del proceso de socialización diferencial según sexos, dificulta en gran medida su ruptura, favoreciendo, en el caso de
las mujeres, actitudes que tienden a condicionar subjetivamente sus capacidades de respuesta y actuación ante la
probabilidad de promoción profesional.
Como señala una mujer del grupo de discusión y que resume plenamente lo que se ha querido transmitir a través de
este artículo:
(m) la mujer renuncia no sólo por cuestiones relacionadas con la conciliación…sino también muchas veces
renuncia porque se siente cuestionada en su ambición, en las expectativas que pueda tener. Todavía hay una especie de …
no sé como decirlo de…¿autolimitación?… esa autolimitación todavía existe y se debe a una educación que arrastramos y
que todavía nos limita, una educación y una situación estructural…de la sociedad en general que todavía nos limita” (IU,
GD 1)

METODOLOGIA
Se realizaron tres grupos de discusión4 para obtener un material empírico donde queden reflejadas y representadas
las distintas voces –con la suficiente profundidad– que componen los altos niveles políticos y técnicos en Asturias. Como
tratábamos de indagar en los contrastes entre sexos –de objetivos, de estrategias, de métodos, de afrontamiento de la
competitividad–, los grupos fueron mixtos, aunque con mayor presencia femenina. Esto permitió, con un margen de
seguridad razonable, que se cumplieran los criterios buscados de profundidad y pluralidad en las voces y en las opiniones
expresadas y representadas en los discursos resultantes (Arenas, 2006).
- Estructuraciones principales en la selección de los participantes:
Sexo: Tres grupos mixtos, cada uno de los cuales tuvo una composición aproximada de 2/3 de mujeres y 1/3 de
hombres.
Sector: Representantes y ex representantes políticos de Asturias (parlamentarios, consejeros) y altos cargos de la
administración tanto masculinos como femeninos.
Pertenencia a formaciones políticas y asociativas: Se buscó una representación equilibrada de participantes
pertenecientes a las tres agrupaciones políticas de referencia: PSOE, PP e IU, que abarcan la práctica totalidad del arco
político.
Número de participantes por grupo: entre 7 y 10 participantes. A partir de una selección lo más adecuada y rigurosa
posible se buscará un número alto de componentes en cada uno de los grupos (cercano a las 10 Personas).

4
1º grupo realizado el 13 de marzo de 2006 a las 17 horas en la Sala de prensa del Rectorado de la Universidad de Oviedo; 2º grupo realizado el 16 de marzo de
2006 a las 18:30 en idéntico escenario; y 3º grupo realizado el 21 de marzo de 2006 a las 18:30 en la Sala Schumpeter de la Facultad de Ciencias Económicas y
Empresariales de la Universidad de Oviedo.

135
Edad: Pluralidad de edades tanto en hombres como en mujeres, con preferencia de las que aglutinan a los puestos
de mayor responsabilidad y poder (35–55 años).
Zona: Distribución de participantes procedentes de toda Asturias, aunque con preferencia de la zona central que es
donde se concentran los puestos políticos y técnicos que se investigan.
Clase social: Se buscó una representación plural de los diferentes estratos sociales con preferencia de las clases
medias altas que son las que tienen mayor afluencia en estos puestos.

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Famílias imigrantes portuguesas na cidade do Rio de Janeiro: rupturas e


reconstrução de identidades
Maria Manuela Maia
Faculdade M. J. Mackenzie-Rio
[email protected]

Resumo: Estudo sobre famílias de imigrantes portugueses provenientes da região norte de Portugal que se deslocaram para a cidade do Rio
de Janeiro durante o período compreendido entre o pós 2ª guerra e 1974. A primeira ruptura ocorreu antes da saída de Portugal com o
próprio desmantelamento da sociedade camponesa dentro do contexto do desenvolvimento industrial no século XX. Um segundo momento
de ruptura é percebido durante a viagem e no início da estada em terra estranha. A terceira, através dos embates e conflitos produzidos no
encontro com a cidade, Isto é, na passagem de um mundo rural para o urbano. No Rio de Janeiro desenvolvem e concretizam complexos

136
processos ou estratégias para se estabelecer e se fixar. Estas estratégias configuram-se em tentativas de integração à sociedade de acolhida
por meio de negociação entre conjuntos de valores culturais. Obrigados a se adaptar a novas formas de ver o mundo, os imigrantes tentam re-
significar os seus valores. De um lado consideram a unidade familiar, portadora de recursos (materiais, culturais e simbólicos) e de
necessidades e objetivos. Do outro, o contexto envolvente (físico, econômico, social e político) com seus constrangimentos e oportunidades.
Enfatizam, assim, o papel da família, do trabalho e da religião como estratégias de afirmação de identidade em terra estranha na tentativa de
garantir a coesão familiar e, ao mesmo tempo, integrar-se à cidade.

A análise das práticas e representações geradas nas histórias de vida de imigrantes portugueses considera que os
termos emigração/imigração são faces de uma mesma moeda e apresentam causas e consequências econômicas, políticas e
sociais que se justapõem e acaba por se tornar um mesmo fenômeno. Ou seja, o par emigração/imigração embora pareça
constituído de categorias opostas, no sentido de que uma é ausência (saída) e a outra é,presença (chegada), a saída dos
imigrantes de sua terra natal gera um desenraizamento permanente que começa pela desagregação familiar e atinge toda sua
vida social. Geralmente, o comportamento mais comum é “calar sobre o acontecido”. O silêncio, tanto de um lado como do
outro, naturaliza o processo fazendo com que o fenômeno apareça como normal. No entanto, as consequências que traz para
as vidas das pessoas envolvidas não são tão tranquilas.
Através das histórias narradas emergiram estratégias de (re) organização de vida: projetos, valores, hábitos,
atitudes, sonhos, objetivos e conflitos. Essas histórias levantam problemáticas mais amplas como memória, identidade e
cultura, conceitos que tomam lugar de destaque em debates atuais sobre os processos de globalização ou de
internacionalização da economia e de mundialização das culturas. Esse viés ofereceu uma visão micro social do processo
emigração/imigração e auxiliou a responder a questão que direciona o nosso estudo: Como se deram ou dão os processos de
reconstrução de identidade de imigrantes portugueses na cidade do Rio de Janeiro?
Grande parte das famílias é proveniente das aldeias da região norte de Portugal. Esse fato implica em um duplo
processo de mudança social e cultural: a saída de um país para outro e a passagem de um mundo rural para um mundo
urbano1. Isso certamente influenciou os processos de incorporação sócio-cultural, especialmente a forma de inserção dos
portugueses no mercado de trabalho e na vida social como um todo. Dermatini (2001) também registrou a atração dos
portugueses por grandes centros metropolitanos como São Paulo e o Rio de Janeiro. Segundo a autora “a cidade e não o
campo parecia capaz de realizar os seus desejos de autonomia e enriquecimento”.
Nesse sentido foi preciso entender processos interculturais que se estabeleceram nos encontros campo/cidade.
Embora os portugueses estejam sob a mesma ordem política e social, compreende-se que o sistema de estratificação marca o
entendimento, pois é evidente que as consequências do processo de adaptação à nova cultura também variam de acordo com
o lugar que o imigrante ocupa na sociedade. Dessa forma, consideramos a diversidade dos grupos de portugueses que
migraram para o Rio de Janeiro e o sucesso ou fracasso de seu projeto.
Casos de auto-isolamento e discriminação foram narrados colocando em questão fatores que concorrem para
discriminação étnica, a discriminação de classe e xenofobia. Dessa maneira, a hipótese foi que, em muitos casos, o encontro
intercultural passou por processos nos quais os portugueses são incorporados ou absorvidos no sistema social de forma
desigual e tendem à imposição/aceitação de alguns valores em detrimento de outros.
As consequências disso são múltiplas, sejam de cunho psíquico ou social. Os sujeitos transitam entre a simples
negociação e a perda abrupta da identidade cultural - em certos casos - uma perda irreparável. Foi fundamental, perceber os
embates culturais, dominância ou sobreposição de uma cultura, de um grupo ou de um individuo sobre o outro. Como
ocorreram processos de difusão dos valores dos grupos de cultura majoritária ou dominante, assim como as possíveis
estratégias de resistência ou preservação de elementos culturais, principalmente entre grupos de imigrantes menos
privilegiados da sociedade.
A análise na perspectiva familiar, de certa forma, pode ser considerada importante, uma vez que os estudos sobre os
portugueses, especificamente no Rio de Janeiro, não focaram essa vertente. Essa falta pode ser atribuída à idéia de que, desde
o início do descobrimento, o perfil mais frequente do emigrante é o jovem pobre, do sexo masculino. No entanto a emigração
familiar foi bastante comum após a segunda guerra, seja partindo junto ao chefe da família ou juntando-se a ele alguns anos
depois quando o mesmo estava estabelecido no Brasil.
A literatura sobre a temática das migrações mostra ser comum destacar um caráter peculiar2 do fenômeno da
imigração portuguesa para o Brasil porque, de alguma forma, os portugueses estão unidos ao Brasil pelo passado histórico - o
descobrimento e a colonização do país. Nesse sentido, os imigrantes possuiriam aspectos culturais, em grande parte, comuns.
Além das semelhanças dos traços físicos, as vantagens de falar a mesma língua, ter a mesma religião.
No entanto esses dados, muitas vezes, foram obstáculos ao estudo porque certos aspectos dessa singularidade
dificultaram o reconhecimento do português como imigrante. Lobo3 explica que, no período em estudo, os imigrantes
encontraram no Brasil uma comunidade estabelecida em geral em lugares onde tinham parentes ou conhecidos das aldeias em
que viviam.

1
Ver em LOBO, Maria Eulália L. Imigração portuguesa no Brasil São Paulo: Hucitec, 2001, p.23.
2
A singularidade da imigração portuguesa é mostrada em vários estudos. Entre eles o de Lobo, idem LESSA, Carlos. Rio, uma cidade portuguesa? In Os
lusíadas na aventura do rio Moderno. RJ/ S.P. Editora Record,opus cit. 2002 p 21-62.
3
LOBO, Mª Eulália. Imigração portuguesa no Brasil São Paulo: Hucitec, 2002.. p.23.

137
Em tese, esta facilidade ou proximidade reduziria o distanciamento que faz emergir questões relativas à identidade
de estrangeiro - o de fora - enfrentado por outras etnias. Esta particularidade, conhecida por fenômeno da diluição4 na
sociedade, implicou em os imigrantes portugueses serem ignorados enquanto estrangeiros. Isso acarreta uma indefinição para
o imigrante onde a condição de imigrante não lhe aparece como questão ou problema, sendo socialmente naturalizada. Daí,
poder-se indagar qual seria o resultado dessa visão em termos de organização da sociedade.
O processo de imigração portuguesa para o Brasil é portador de muitas faces. É possível que os estudos que o
analisam de um ponto de vista generalizante assim o façam porque a documentação tradicional não oferece tanta
possibilidade de relativizar quanto à história de vida, pois fica difícil contemplar trajetórias específicas ou singulares. Por isso
mesmo a reflexão que aqui se coloca teve por meta problematizar as consequências da imigração portuguesa, contemplando
não apenas grupos familiares que tiveram projetos de vida bem sucedidos, mas ampliar a análise a outros grupos que, ao
contrário, se encontram em situação de abandono ou exclusão social. Certamente, a responsabilidade por essa situação, deve
recair tanto sobre o país de nascimento, como o de acolhimento, onde trabalharam durante uma vida.
A partir das representações que as diferentes famílias oferecem, a discussão ampliou-se para a influência cultural
dos portugueses sobre a população do Rio de Janeiro.
A análise de vivências e representações de famílias de imigrantes portugueses que chegaram ao Rio de Janeiro a
partir da segunda metade do século XX deu subsídios para o objetivo mais amplo de investigar o processo de (re) construção
de identidade dos imigrantes considerando as trocas culturais no contexto metropolitano. As relações familiares são
importantes para os imigrantes se (re) estabelecem no novo meio? Qual a importância de sua manutenção ou mudança? Que
tipo de relações os imigrantes mantém com suas famílias em Portugal? Igualmente deseja-se perceber a (re) construção de
uma possível cultura lusa. Ouvindo diferentes versões buscaremos o entendimento do que é ser imigrante português no Rio
de Janeiro.
O estudo foi atravessado além da temática familiar, pela questão trabalho e religião. Esses elementos permeiam
todo o seu desenvolvimento porque são complementares e fundamentais para pensar as questões relativas a imigração e a
identidade.

VIVÊNCIA DO PROCESSO PELOS IMIGRANTES.


Os entrevistados se referem às altas taxações estabelecidas sobre as colheitas e a produção, principalmente, de
vinho e azeite. Apesar de todo o cuidado nos comentários sobre o salazarismo, não puderam deixar de mostrar o seu lado
sombrio5. Embora as falas dos imigrantes tenham muito presentes a harmonia da vida campesina. Percebe-se nas lacunas que
o campo não foi tão dócil e, diante das medidas e imposições governamentais, muitos reagiam ao despotismo imposto pela
política salazaristas pois, como lembra Reis (2007) a aceitação das medidas tomadas nem sempre foram consensuais. Dessa
forma, pode-se até pensar na possibilidade do próprio processo de emigrar ser visto como forma de resistência. Neste sentido,
os depoimentos dos imigrantes entrevistados são referências a se considerar.
Suas narrativas deixam claro que a pressão ideológica realizada pelo salazarismo sobre os portugueses deu-se em
todos os campos da vida social. Enquanto a escola e a igreja atuavam no projeto redentor da sociedade portuguesa, o Estado,
através de seus organismos econômicos, com a colaboração e controle da policia, empobrecia um campo já extremamente
extorquido pela expropriação dos seus meios de produção.
As lembranças do Senhor Albano e de Senhor Nelson6 estão marcadas por representações da exploração e
aniquilamento da vida dos pequenos agricultores. Eles contam que durante o pós-guerra, a colheita e todas as formas de
produção de mercadorias eram taxadas e o governo determinava aos agricultores que um décimo do que colhiam ou
produziam seria reservada ao Estado:
“É. Eu vou explicar, porque é um ponto muito interessante. Porque eu gostava de Salazar e sei que até hoje sou muito
dedicado ao meu negócio. Sou muito certinho (por isso). Éramos obrigados a semear milho, batata, azeite. Mas nós não
mandamos naquilo tudo que semeamos. Não, o próprio governo dizia assim: ‘Vocês têm que dar tudo à Lavoura.7
Chegou época em que até as galinhas pagavam impostos. Pagávamos impostos sobre o que semeávamos e vinha um
fiscal, contava o que a gente tinha. Era pequena a produção... Mas eles falavam: ‘Aqui vai dar tantos alqueires de
milho e têm que doar tantos!’ E tiravam um tanto de cada lavoura. Então ficava ali a ordem, que era justamente para
dar para o governo, no caso de sustentar uma guerra. Você vai falar com um português e ele nem vai falar disso,
porque tem vergonha de falar isso. Mas não, eu sei que isso foi verdade. E ia levar a lavoura ainda com ela em pé. A
certos lavradores, perguntavam: ‘Quantos alqueires de milho dão aqui? Quantos litros de azeite têm aí?’ Porque o
azeite era proibido, era um negócio, como a maconha aqui. O azeite não se podia comercializar porque o azeite era do
governo (o azeite, você sabe é da azeitona). Você faz o seu azeite, mas não pode vender um litro sem a ordem do
governo”.

4
De acordo com a análise de Carlos Lessa, a presença portuguesa no Rio de Janeiro atualmente não é estudada justamente devido ao fator da diluição. Diz ele
que “parece que o excesso de exposição gera a invisibilidade do banal” In Os Lusíadas na aventura do Rio Moderno Org. Carlos Lessa. Opus cit. (2002).
5
Foi comum nas entrevistas certa atitude de reserva quanto às referencias a Salazar e ao seu governo. Geralmente abaixavam a voz e se preocupavam com o que
iriam dizer.
6
Albano Branco e Nelson Louzada foram entrevistados em suas residências, no Rio de Janeiro, em 2005.
7
O senhor Nelson refere-se ao Ministério da Agricultura, na época Ministério da Lavoura.

138
O senhor Nelson lamenta:
“Os lavradores que cultivavam aquilo para fazerem dinheiro, para levar os filhos no médico, para qualquer coisa,
tinham que vender. E, então, transportavam as coisas à meia noite. A minha mãe nunca foi, mas meu pai ia... Então ia
se buscar, como daqui (bairro Tijuca) à Central do Brasil (centro do RJ) às costas. Então só iam vender à meia noite. O
meu pai era uma ‘mula’ disso, já a minha mãe nunca foi, mas o meu pai era. Então ia se buscar, como daqui Central do
Brasil, às costas a senhora nunca ouviu falar do odre? 8“.

Dolores faz queixas contundentes ao salazarismo e revela o distanciamento entre Estado e população. Pelo menos,
com a maior parte da sociedade civil:
“Eles obrigaram o meu pai a dar um pedaço de terreno para a escola, porque era o lugar o mais bonito da freguesia -
via-se a serra do Marão todinha! E, por isso, meu pai teve que doar. O governo exigiu. Era o governo do Salazar. O
meu pai tinha uma raiva dele, não gostava nem de falar o nome dele. Porque ele levava tudo que a gente colhia. O meu
pai chegava a enterrar o milho debaixo da terra, para esconder dos oficiais que iam fazer a contagem. Ele queria uma
décima, ou o que eles chamavam... eu não lembro bem... era muito pequena... Eu não sei, chamava o décimo. Meu pai
já morreu, minha mãe já morreu, agora é tudo diferente”.

Tanto Nelson quanto Dolores descrevem ações opressoras, fruto da política nacionalista de Oliveira Salazar. E
mostram que o salazarismo influenciou nos mínimos detalhes a vida das populações das aldeias; impondo-lhes rígida
disciplina, baseada na ética do dever e do trabalho.
Uma das estratégias do governo para divulgar essa ética foi criar associações governamentais ligadas à igreja
Católica, onde pátria, família e catolicismo se confundiam9 E podemos afirmar que esses princípios se fixariam,
decisivamente, às suas subjetividades e fariam parte da “construção da pessoa”. Note-se que os diálogos expressam a ética
paternalista cristã, um bloqueio às liberdades individuais e a outros princípios que compõem a ideologia liberal10 reafirmando
a idéia da dificuldade de incutir no campo o ideário moderno que teoricamente desenvolve-se a partir do ideário
individualista:
“Existia a Mocidade Portuguesa Católica desde o tempo da guerra, do Salazar. Todas as aldeias tinham que participar.
Usavam uma vestimenta... Tinha que o pai e mãe entrar com os custos, comprar a farda. Era uma farda feita a dos
escoteiros. Só não tem o chapéu, nem o lencinho. Só tinha no peito o emblema da bandeira portuguesa. Então se
chamava Mocidade Portuguesa. Faziam parte os colégios públicos e também as faculdades. A gente, como grupos da
aldeia, pertencia aos grupos escolares maiores. Depois havia a festa de 1º de maio, onde todas as escolas eram
representadas com aqueles grupos. Fardas, eu gosto muito... Até hoje adoro o Salazar, embora seja uma época
sacrificada, mas... Eu acho que o excesso de dinheiro traz muitas desgraças. Desgraças porque o dinheiro dá muita
facilidade, quem tem muito acesso ao dinheiro, não tem responsabilidade. Eu gostava do Salazar porque não havia
desigualdades de classe. Todos éramos tratados da mesma forma, tanto o rico quanto o pobre. Tanto faz o filho do rico
como o do pobre. A lei era para todos. Quem mandava naquela época era o Salazar e os padres“.

O senhor Manoel11 complementa essa visão que reafirma a união do Estado Salazarista e a igreja católica,
garantindo-lhe o domínio sobre a vida das pessoas 12:
“Minha religião é católica, e se não fosse não poderia ter vindo pro Brasil. Por quê? Ora, no tempo de Salazar não se
deixava sair ninguém. Naquele tempo se falasse alguma coisa contra, era preso. Era Legião Católica Portuguesa. Meu
pai era legionário. Lá na casa dos meus pais, que ele era chefe da legião lá do lugar, tinha armamento lá que não
acabava mais. E os legionários também não podiam abrir o bico contra Salazar, se falasse alguma coisa ia preso e
mandavam até pra África. Naquele tempo, era ditadura. Lá era ditadura e aqui era a mesma coisa. Eu trouxe uma farda
minha de lá e, quando cheguei aqui me falaram pra não usar, jogar fora. Era a farda da Legião Portuguesa, aí dei fim
nela”.

E o Sr. Carlos critica as ações autoritárias do estado generalizando a forma de ação política do Estado, mas conclui
que Salazar não foi o maior culpado da ditadura:
Eu nunca gostei de políticos, nem de política. Embora hoje, depois da experiência, do que eu conheci, acho que Salazar
não foi o maior culpado disso aí. Os maiores culpados foram os outros que o cercaram. Ele deixou-se cercar por outras
pessoas que não eram corretas iguais a ele, Salazar. Acho que foi um mal necessário a Portugal, naquela época.

Os sentimentos contraditórios em relação a Salazar são comuns:


Sou a favor de Salazar porque o que se diz de Portugal, hoje, deve-se a Salazar. Eu tenho até aí um jornal do dia 27 de
janeiro que eu vi: Qual foi o maior português na história até hoje? Dr. Antônio de Oliveira - Salazar. Foi uma pesquisa

8
O senhor Nelson conta que o odre é uma pele de um carneiro costurada que enchem de azeite, para despistar os guardas da fronteira.
9
Ver o estudo de Heloisa Paulo Aqui também é Portugal. Coimbra: Quarteto, 2000.
10
A ética crista ver em HUNT e SHERMAN. A ideologia da Europa Pré-capitalista. In História do pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Vozes, 1982 p. 9-21.
A idéia de que o camponês daquele período não teria acesso à ideologia individualista porque não interessava a Portugal um acirramento de forças com o Brasil.
HOBSBWAM. A era das revoluções: a revolução industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (p. 43-56)
11
Manoel dos Santos Madureira, opus cit.
12
Salazar e Nossa Senhora de Fátima são símbolos presentes no imaginário de imigrantes portugueses radicados no Rio de Janeiro tornando-se elos de
identidade portuguesa. Ver em Maia, Mª Manuela A. Anais do Simpósio “Imaginário do Brasil Profundo” - ALER, São Bernardo dos Campos, julho 2006.

139
que houve. Quando eu estudei em Portugal a foto dele estava no quadro. Na escola. A escola era simples, na aldeia,
estudei lá. Era muito longe para ir para lá e então atravessávamos uma montanhasinha e chegava. E lá estava a foto do
Salazar. Depois também a do Marechal Carmona. De bigode, já tão velho. Era o Marechal Oscar Carmona. Eu lembro
de tudo isso.

Ele atrasou muito o país, por muitos anos, mas, havia muito respeito. Ele fez muitas coisas boas. Não tínhamos espírito
revolucionário. A gente não queria aquilo, mas engolia. Às vezes no rádio, faziam campanhas contra o governo, mas
ele mandava desligar e sempre tinha aquele que podia dizer o que era e o que não era...Mas tínhamos medo era difícil
para quem era empregado, Realmente foi muito difícil.Era muito difícil. Tinha muita gente até que veio para cá, até por
causa disso, porque iam fazer manifestos e....

De qualquer forma,, embora a percepção da necessidade de viajar está ligada à escolha, à opção, lembrar da
viagem, dos momentos anteriores à viajem mostra contradições. Filha única, D. Maria de Assunção viajou com seus cinco
filhos e a mãe. Ela conta que comprou três malas muito grandes. As malas eram baús que depois serviram para guardar
coisas. Suas reflexões sobre o conteúdo das malas, levanta questões do emigrante:
“Eu trouxe as minhas louças, alguns livros que eu tinha. Eu sempre gostei de ler e tinha meus livros. O amor de
perdição de Camilo Castelo Branco; Outro livro foi um muito bonito que falava da história da aparição de Nossa
Senhora de Fátima. Os livros de santos, catecismos. Muitas coisas assim. As nossas roupas de cama, toalhas de mesa.
Eram feitos lá mesmo, por nós, desde o plantio do linho, fazíamos tudo. Muitas coisas deixamos lá, não podia levar
tudo. Eu fiquei muito triste porque eu queria trazer as minhas coisas e não dava. Eu não tinha irmãos, mas as irmãs do
meu marido foram logo lá para a minha casa para levar as coisas e brigaram por ficar com uma coisa ou outra. Agora
imagina aquelas mulheres todas, elas eram gananciosas, querendo levar tudo, achando que tinham direitos sobre as
coisas. Eu trouxe quase todos os meus santos. Em Portugal temos um oratório em casa e eu trouxe os meus santinhos.
Minha mãe era devota de santa Bárbara e ainda trouxe as palhas bentas na Missa de ramos para serem queimadas em
dia de trovoadas. Lá em Portugal as trovoadas não eram como as daqui. As tempestades metiam muito medo. Por isso
rezávamos para Santa Bárbara nos proteger. A minha mãe trouxe os rosários da irmandade portuguesa. Ela pertencia,
era membro da Ação Católica. Ela era muito religiosa, filha de Maria e usava um avental com as cruzes vermelhas
grandes. Ela trouxe isso tudo. Depois eram as roupas e as minhas jóias. Minha mãe também tinha algumas de muito
tempo na família.”

As despedidas foram evitadas. O senhor Nelson conta que ninguém foi ao seu embarque. E não tinha nada de
despedidas! Corta secamente a pergunta. O que demonstra que o projeto era sofrido, não era apenas individual, mas a decisão
era irreversível.
“O cara queria vir embora, vinha embora... Na mala, o que tinha era roupa e pouca, ou até demais, porque trouxe roupa
que aqui quase não usei. Lá é frio e aqui calor. Exatamente, minha tia mandou a carta de chamada. Ela mandou assim:
‘Olha se quiseres vir mesmo, eu te mando a carta.’ Para o meu pai era menos uma boca. Você tinha que alimentar a
família. Não havia trabalho. Sim, porque cada um tinha as suas terras e cuidava delas, mas só que não havia dinheiro,
não havia indústria, não havia nada. Quer dizer que nos éramos alimentados. Não tem dinheiro, mas tínhamos comida.
O meu caso não era esse, se ficasse lá tinha que ir para a guerra. E se passasse um mês ou dois, ele já não podia vir
mais. Então quando me perguntam se queres vir para o Brasil eu consultei meu pai e minha mãe e ela deixou e me
mandaram a carta... Meu pai e minha mãe decidiram que eu podia vir, mas não consultaram o meu avô! Ele mandou a
carta ao carteiro quando vai entregar a carta, e o carteiro, como conhecia muito a minha tia, reconheceu o nome da tia e
viu que era a carta de chamada. E eu vi, meu pai chorava como uma criança. 15 de agosto, meu pai nem minha mulher
nem meus filhos estão sabendo – 15 de agosto porque também eu não me lembrava que era, então eu vim e minha tia,
coitada, que Deus a tenha em descanso, andou comigo pela mão, pedindo emprego para mim... O meu avô quando
soube que eu viria, chamou meu pai e lhe disse:- Vais perder um filho para o Brasil! Nunca esqueci estas palavras!”.

Adriana concorda com essas previsões de desventura que a idéia da viagem lhes dava:
O problema foi muito grave, tivemos que fazer tudo correndo, tivemos que ser vacinadas... Ninguém entrava no país
sem vacina. A minha avó não queria que viéssemos. Ela dizia que o Brasil era uma terra amaldiçoada porque o filho se
revoltou contra o pai. Então, o Brasil tem uma maldição. Eu não queria vir, queria ficar lá com minha avó.

A necessidade de lutar e de vencer para melhorar de vida era a base. Caso não desse certo, mais tarde, o orgulho,
lhes impedia o retorno -. Afinal, o sacrifício deles e do dos familiares que ajudaram não podia ser desprezado. Emigrar não
havia sido um projeto individual, mas de todos aqueles que acreditaram na viagem como uma forma de salvação da miséria
que chegava a passos largos à aldeia. O imigrante não podia voltar atrás.
Ao que nos parece, os emigrantes trouxeram na mala um bem comum: a lembrança de Portugal. Como nos
confessou o senhor Albano, considerada como o bem mais precioso. Isto é, explica: “apesar de terem vindo em busca de
bens, não repararam que já possuíam um bem, a sua terra”. Consequentemente, a saudade e, para muitos, a sensação de quem
não têm certeza que emigrar tenha sido o melhor caminho. A saudade da terra, sacralizada na expressão “a santa terrinha” é
um elemento que forja e/ou aprofunda o imaginário imigrante português criado, responsável por uma memória do local onde
nasceu. Amiúde é a partir da comparação com o Brasil que classificam Portugal como um lugar ideal. Portanto, chegados à
cidade do Rio de Janeiro, passaram por diferentes processos de adaptação à vida na cidade e ao sabor de diferentes políticas
migratórias, sofrem duplo processo de desterritorialização. Ou seja, expropriados da vida do campo rumam para a cidade
onde sofrem os efeitos de deixar o lugar em que nasceram. A questão que se impõe ao imigrante é de como evitar o

140
desmoronamento psíquico e social dentro de tais condições? Neste sentido o trabalho de reconstrução da memória através de
coisas que à primeira vista parecem não ser relevantes como as emoções, pode contribuir para melhorar a interpretação do
grupo imigrante.
Maria Celeste tinha 12 anos em 1951 quando chegou ao Rio de Janeiro com a mãe e irmã. Foram chamadas pelo
pai que aqui se encontrava havia dois anos. Lembra dos preparos da viagem (diz que não esquece nada do que ocorreu desde
o momento em que seu pai resolveu chamar a família para perto dele). Sente pena porque dos livros que trouxe só lhe restou
o da 4ª classe, já que os outros ficaram estragados pelo vinho derramado dentro do baú no navio, destruindo seus grandes
tesouros. Ela explica que na realidade a 3ª classe do navio impõe maiores restrições às pessoas e ao conteúdo da bagagem.
Existe séria fiscalização e as pessoas não podem levar quase nada. Portanto pode-se indagar qual a diferença entre a
imigração nesses termos, e o degredo? Quais as chances reais que tem uma família de voltar?

O PAPEL DA FAMÍLIA NA FIXAÇÃO DO IMIGRANTE


Segundo estudos de Lobo (2001) até a segunda guerra mundial o perfil do imigrante português era o de homem
jovem que vinha sozinho para ganhar dinheiro e retornar a Portugal. O estudo de “Os imigrantes pobres” é retratado por um
escritor da década de 1820, Raimundo da Cunha Mattos. Diz ele que o português pobre, ao desembarcar nos portos
brasileiros:
Vestia polaina de saragoça, (...) e calção, colete de baetão encarnado com seus corações e meia (...) geralmente
desembarcavam dos navios com um pau às costas, duas réstias de cebolas, e outras tantas de alhos... e... uma trouxinha
de pano de linho debaixo do braço. Eram minhotos que, para sobreviver, dormiam na rua e procuravam ajuda de
instituições de caridade13.

Outro fato que importa é o das mulheres não serem incentivadas à viagem. Essa tradição vem dos primeiros séculos
do descobrimento, quando a emigração ficava restrita aos homens. Eles viajavam com a idéia de enriquecer e retornar para
as mulheres que os esperavam. Essa tradição foi estudada por Boxer (2002:143) e mostra que Portugal “tendia a desencorajar
as mulheres de partir para as conquistas. A questão era a da mortalidade que o clima pretensamente impunha”.
A partir de 1945, esse perfil muda um pouco e a tendência passa a ser a imigração familiar. A idéia de trazer a
família implicava, de alguma forma, em desistir definitivamente da vida em Portugal. No entanto, muitos ainda pensavam em
retornar. Geralmente o homem vinha antes e, mais tarde, se tudo desse certo, mediante carta de chamada, chamava a família
ou a mulher com a qual iria constituir família. Concordando com Seyferth (1990)14, consideramos que é fundamental
perceber a função da família para entender o processo imigratório uma vez que, como mantenedora do controle sobre
casamentos, ela estabiliza, preserva e também atualiza a cultura de origem. Ou seja, é um fator de fixação do imigrante.
Logicamente essa família não teria mais o mesmo padrão da família do mundo camponês aonde prevalece o conceito de
família extensa. Na cidade, ela se reduziria à família nuclear, em princípio.
Muitos, obviamente, não voltavam, arranjavam outra família no Brasil, como foi o caso do Senhor Domingos:
Lá eu não tinha terras. Tinha que ir trabalhar nas terras dos outros. Eu ia ao jornal. O que me valia e o que ainda me
vale aqui, é que eu fazia tamancos. Eu não voltei. Tinha filhas em Portugal, e tenho, mas as coisas mudaram. Ficaram
difíceis com a minha mulher, ela não queria vir, cheguei a lhe mandar a carta de chamada e ela não quis. Eu acabei
arranjando outra aqui, arranjei outros filhos e foi isso. Agora os irmãos são todos amigos e ainda agora, minha filha
daqui vai para Portugal para a casa de uma irmã.

O senhor Antônio chegou com o pai, mandaram buscar a mãe e irmãos.aqui casou-se com filha de portugueses D.
Emília, órfã de mãe, veio com o pai e a tia e madrasta porque esta já havia estado aqui e uma de suas irmãs lhes enviou a
carta de chamada.
Minha mãe morreu em julho e ele (o pai) se casou em janeiro com ela. Mas ela era ruim que só vendo. Irmã de minha
mãe. ela botou na cabeça do meu pai porque ela queria vir para aqui.ela já tinha estado aqui. Meu avô mandou chamar
elas quando minha avó morreu. Venderam, venderam tudo...Vieram morar em Cascadura. Minha tia morava lá e fomos
todos para lá.

O senhor José Temporão conta que emigrou duas vezes. A primeira vez o cunhado lhe enviou a carta de chamada:
Eu tinha um cunhado aqui, irmão de minha mulher que me deu uma assistência. Eu cheguei em 1946, com a minha
passagem em débito lá em Portugal. Tive que mandar dinheiro para pagá-la. Depois de dois anos já tive dinheiro para
chamar minha mulher e filha. Em 1950, voltei para Portugal para ajudar meu pai que estava com problemas financeiros
e retornei em 51 e depois, em 1952, desembarcou na praça Mauá a minha mulher, minha filha com 7 anos e meu filho,
hoje ministro, com um ano de idade.

13
Venâncio Renato Pinto.Brasil 3o. capítulo Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes In Brasil: 500 anos de povoamento /IBGE.
14
A imigração alemã, estudada por Seyferth (1990), apresenta características bastantes diferenciadas quanto a essa questão porque elas ocorrem em tempos e
objetivos diferentes.

141
O processo emigração/imigração foi descrito sempre como uma falta, uma desordem ou falha no sistema que
organiza e estrutura uma comunidade15. Dessa maneira, pode-se afirmar que, no sentido da necessidade em buscar um outro
lugar para sobreviver, essas migrações podem ser consideradas formas de intervenção sobre a vida das pessoas. Como bem
analisou Klein (2000)16, (...) a maioria dos migrantes não deseja abandonar as suas casas nem suas comunidades. Se
pudessem escolher, todos – com exceção dos que anseiam por mudanças e aventuras – permaneceriam no seu local de
origem.
No Rio de Janeiro, tentaram se adaptar conforme podiam. Os homens viam no trabalho a saída para acabar com a
depressão. Eles se uniam, faziam associações no trabalho, nos negócios. Sociedades eram feitas sempre com outro português
ou estrangeiro. Para amizade e lazer as relações, podiam até ser com os brasileiros. As mulheres escolhiam para maior
relacionamento de amizade uma amiga imigrante (poderia ser de outras nacionalidades). Embora, os portugueses tenham
criado associações de ajuda mútua não se percebeu, por parte dos lusos, a preocupação de delimitação de territórios físicos.
Estes se encontravam espalhados pela cidade do Rio de Janeiro. Em termos territoriais, a lógica na ocupação do espaço físico
acompanhou, entre outros fatores, o sucesso e/ou fracasso do projeto imigratório. Por exemplo, os bairros do centro e da
Zona Portuária do Rio de Janeiro constituíram um lugar de abrigo de portugueses recém chegados e pobres17, que tão logo
conseguiram algum dinheiro mudaram-se para São Cristóvão, Tijuca e adjacências ou para os subúrbios do Rio de Janeiro. A
idéia era de adquirir um imóvel. Podiam comprar um terreninho e construir a casa própria, comprar terrenos no entorno da
cidade e construir prédios, ou comprar imóveis como investimento dos lucros dos comércios.
Como analisam os entrevistados, emigrar é um destino ou uma completa falta de opção. Diz Aníbal 18, por
exemplo, com muita convicção:
Eu gosto da imigração voluntária. Aquela que diz: - Eu estou com dinheiro e vou aplicar no Brasil. Imigração é aquela
que os portugueses estão fazendo agora, para o nordeste do Brasil, comprando, investindo. Isso é que é uma imigração
boa! Uma imigração que o sujeito vai e volta quando quer. Agora, uma imigração a que se é obrigado... que se deixa
pai, ou os filhos ... Essa imigração traz chagas terríveis!

As narrativas marcam que a fixação dos imigrantes no Rio de Janeiro seguiu um sistema de redes de parentela19 e
auxílio mútuo. Sem atender à lógica na ocupação dos territórios, os portugueses recém chegados buscam áreas pobres e
marginalizadas. Mas sair ou permanecer nessas áreas deve-se ao sucesso ou insucesso da imigração. Por esse motivo, a área
do porto é um local de forte influência portuguesa. Após a década de 1960, sair de áreas do centro, como a zona portuária,
significou para a maioria mudança de status social e melhores condições de moradia. Geralmente, o imigrante comprava casa
em outro lugar da cidade.
A área portuária havia abrigado, no passado, os imigrantes ilustres. No século XIX, com a transferência da corte
portuguesa (1808) e consequentes melhoramentos urbanos, essa área atraiu uma população abastada, portuguesa ou não. As
explicações desse fato são pensadas pela proximidade com o bairro de São Cristóvão e pela busca por locais mais arejados,
que se contrapunham a um centro da cidade insalubre. Para os portugueses, foi considerada relevante a proximidade do mar,
devido à forte tradição dos portugueses em atividades ligadas ao oceano20. Esse aspecto faz parte de um passado heróico,
descrito por diversos autores, entre eles Cartroga (2002), quando analisa a construção da nação portuguesa. Mostra como o
Estado português, apoiado nas lembranças das grandes navegações, difunde e ajuda a construir um imaginário mítico
responsável pela permanência de estreitos vínculos com o litoral e que os portugueses mantém e ostentam com orgulho. 21
No processo de decadência22 da área, gradativamente o perfil da população também vai se modificar. Pode-se
afirmar que, após as sucessivas restaurações do centro do Rio de Janeiro a área abrigou imigrantes, principalmente
portugueses e espanhóis, recém chegados e pobres23, atraídos para um local em que havia certa possibilidade de emprego nas
indústrias ou no Cais do Porto. Dessa forma, concordamos com Carlos Lessa (2002) quando mostra que, apesar das diversas
e diferentes tentativas de reformar a cidade tendo como base um modelo francês, as origens portuguesas permaneceram.
Como afirma Pedro Nava, a herança colonial é um fator fundamental, determinante para possibilitar a definição da cidade do
Rio de Janeiro como cidade sentimental, cidade autêntica porque genuinamente portuguesa24.

15
Estendo aqui o conceito de comunidade para a nação portuguesa, englobada pelos mesmos usos simbólicos como a religião e pelo fato de terem a mesma
língua e serem regidos pelo mesmo sistema de governo.
16
Klein, In Fazer a América. P.13
17
Essa afirmação depreende-se de vários estudos. Entre outros, ver em MAIA, Mª Manuela Alves. Imigrantes Portugueses no Porto do Rio de Janeiro: trabalho
e cotidiano. In História Oral: Teoria, Educação e Sociedade. (2006) Em Roedel, Comunidade portuguesa na cidade do Rio de Janeiro: mobilidade e formação de
territórios. In Os Lusíadas na aventura do Rio Moderno ( Org) Carlos Lessa. (2002).
18
Aníbal Rouxinol entrevista realizada em 25 de set. de 2006.
19
Ver anexo VI.
20
A Zona Econômica Exclusiva de Portugal no mar é 18 vezes maior que a sua área terrestre.
21
Ver em CATROGA, Fernando. Ritualizações da História. V.II Da historiografia à memória histórica. In História da história em Portugal sécs.XIX-XX..
Lisboa: SIG, INST. Camões e JNITC, 1998. P.220-251.
22
Ver Thesen, I. Barros, L. O C., Santana, M.A (orgs) In Vozes do Porto: memória e história oral. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
23
Essa afirmação depreende-se de vários estudos. Entre outros cito Thesen, I. Barros, L. O C., Santana, M.ª idem.
e a pesquisa de Roendel,H. Comunidade portuguesa na cidade do Rio de Janeiro: mobilidade e formação de territórios. In Os Lusíadas na aventura do Rio
Moderno ( Org) Carlos Lessa. (2002).
24
Pedro Nava In Santos, Afonso Carlos Marques dos. Os Lusíadas na aventura do Rio Moderno ( Org) Carlos Lessa. 2000 p. 83.

142
Portanto, a influência portuguesa nessa cidade pode ser vista sob vários aspectos e dimensões. Atualmente,
inúmeros pontos do centro da cidade são considerados monumentos de preservação da memória do Rio Antigo e,
consequentemente, de tradições portuguesas. Malgrado a visível decadência que ao longo dos anos toma conta da área,
guarda muito dessa identidade sendo possível perceber contornos e marcas dessa cultura nos mínimos detalhes da vida da
cidade.

Bibliografia
LOBO, Maria Eulália L. Imigração portuguesa no Brasil (2001), São Paulo: Hucitec p.23.
LESSA, Carlos. Rio, uma cidade portuguesa? In Os lusíadas na aventura do rio Moderno. .(2002)RJ/ S.P. Editora
Record,opus citp 21-62.
Paulo Heloisa Aqui também é Portugal. (2000).Coimbra: Quarteto,
HUNT e SHERMAN. A ideologia da Europa Pré-capitalista. (1982) In História do pensamento Econômico. Rio de Janeiro:
Vozes, p. 9-21. HOBSBWAM. A era das revoluções: a revolução industrial. (1981) Rio de Janeiro: Paz e Terra, (p. 43-56).
1 Salazar e Nossa Senhora de Fátima são símbolos presentes no imaginário de imigrantes portugueses radicados no Rio de
Janeiro tornando-se elos de identidade portuguesa. Ver em Maia, Mª Manuela A. Anais do Simpósio “Imaginário do Brasil
Profundo” - ALER, São Bernardo dos Campos, julho 2006.
Venâncio Renato Pinto.Brasil 3o. capítulo Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes In Brasil: 500 anos de
povoamento /IBGE.
1Seyferth (1990), apresenta características bastantes diferenciadas quanto a essa questão porque elas ocorrem em tempos e
objetivos diferentes.
Roedel, Comunidade portuguesa na cidade do Rio de Janeiro: mobilidade e formação de territórios. In Os Lusíadas na
aventura do Rio Moderno (2002 ( Org) Carlos Lessa.
CATROGA, Fernando. Ritualizações da História. V.II Da historiografia à memória histórica. In História da história em
Portugal sécs.XIX-XX.. (1998). Lisboa: SIG, INST. Camões e JNITC, P.220-251.
Thesen, I. Barros, L. O C., Santana, M.A (orgs) In Vozes do Porto: memória e história oral. Rio de Janeiro(2005) DP&A, 2.

De Castro Daire a Pernambuco: trajetória de uma família cristã-nova na


economia açucareira e suas agruras com a Inquisição
Angelo Adriano Faria de Assis
Doutor em História. Professor Adjunto – Universidade Federal de Viçosa (Brasil)
[email protected]

Resumo: Implantado em 1536 em Portugal, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição teve nos cristãos-novos a principal justificativa para
sua criação e suas vítimas mais frequentes. Este trabalho tem como objetivo analisar, a partir da documentação produzida pela presença
inquisitorial na América portuguesa durante os séculos XVI e XVII, a trajetória de uma família cristã-nova que mantinha redes de contato e
negócios entre Portugal, Brasil, África e Holanda. Originária de Castro Daire, vila situada nas proximidades da Serra do Montemuro, meio
caminho entre o litoral lusitano e as terras de Espanha, a Família Nunes Correia possuía engenhos e negócios na América portuguesa,
controlando o comércio de açúcar com Portugal. João Nunes Correia, cabeça da família no Brasil, era homem poderoso e temido por seus
negócios e atitudes, tão variadas quanto antagônicas: onzeneiro, cavaleiro d'el rei, mordomo de uma confraria religiosa cristã, rabi dos judeus
de Pernambuco, bem relacionado com as autoridades locais. Ficaria mais conhecido, porém, pelas inúmeras acusações de mau
comportamento religioso, acusado de desrespeitar um crucifixo que mantinha em sua residência, em local imundo. O irmão, Diogo Nunes,
seria processado por afirmar não ser pecado dormir com mulher solteira ou negra. Partindo da análise dos processos movidos pela Inquisição
contra os irmãos Nunes Correia, buscaremos refletir, através do viés da micro-história, sobre as transformações ocorridas nas relações sociais
com a chegada da Inquisição ao Brasil em fins do século XVI, assim como o papel dos cristãos-novos no processo colonizatório.

I. Introdução
Os estudos sobre a Inquisição e a perseguição às suas principais vítimas ganharam largo espaço na Academia nas
últimas décadas. Não são poucas as dissertações e teses defendidas nas universidades brasileiras e portuguesas que têm nos
processos inquisitoriais seu tema de análise. Trabalhos acerca da estrutura e funcionamento da Inquisição, processos contra
casos diferenciados de heresia ou não obediência à norma católica, análises sobre grupos perseguidos socialmente, enfim,
uma variedade de possibilidades de análise que beira o limite do interminável. Positivo, por outro lado, o fato de que
aumentam as interações em pesquisa entre os dois lados do Atlântico, que permite uma saudável circulação entre os estudos
produzidos nos dois países. Para esta análise, focaremos no estudo de caso de uma família de cristãos-novos originária de
Castro Daire, Portugal, os Nunes Correia, que teria alguns de seus membros entre os mais acusados durante a visitação
inquisitorial ao Brasil em fins do século XVI. Esta família, das mais próspera do Brasil quinhentista, envolvida com o
comércio e com a produção açucareira, estenderia seus braços entre Portugal, Espanha, Brasil, Holanda e África, num claro
exemplo das importantes redes de comércio formadas por cristãos-novos e que foram responsáveis pela dinâmica da

143
economia do império português. Oportunidade de, a partir da micro-análise, compreender os meandros da religiosidade
colonial e das práticas do Santo Ofício – material vastíssimo para o olhar do historiador.

II. Os cristãos-novos e o surgimento da Inquisição em Portugal


Em finais do século XV, Portugal assistiria ao fim do milenar convívio existente em seus domínios entre cristãos e
judeus. Em 1496, os interesses que selaram os acordos entre a Coroa portuguesa e os Reis Católicos de Espanha e que
envolviam o matrimônio do monarca lusitano com a infanta espanhola levariam D. Manuel I a tomar medida semelhante
àquela que, em 1492, expulsou os judeus das terras espanholas, fazendo com que muitos destes judeus procurassem refúgio
na face lusa da Ibéria, aproveitando a proximidade e a longa fronteira seca entre os dois reinos. A tranquilidade dos judeus
em Portugal, porém, não duraria muito tempo. O decreto de expulsão dos judeus de Portugal, no entanto, teria desdobramento
diferente dos rumos que tomaram os judeus da Espanha, dando-lhes dez meses de prazo – até outubro de 1497 – para a
partida. Apesar de expulsos de Portugal, os judeus seriam proibidos de deixar o reino, por conta dos interesses estratégicos
que representavam às pretensões expansionistas lusitanas.
Assim, apesar de expulsos, os judeus seriam obrigados a permanecer em Portugal, mas agora como cristãos,
batizados à força, num processo que iniciava o monopólio católico no mundo luso. Embora cristãos, seriam estes antigos
judeus e seus descendentes denominados de cristãos-novos, batizados em pé ou neoconversos, com o intuito de serem
diferenciados dos cristãos de origem, considerados puros ou lindos, e denominados cristãos velhos.
Juntamente com a proibição do judaísmo livre, seria tolida qualquer prática ou representação que fizesse referência
à religião judaica, como livros, escolas, rabinos e sinagogas, festas e jejuns, circuncisões, uso de trajes característicos,
consagração de feriados religiosos, posse de livros sagrados, enfim, todos e quaisquer elementos, materiais e demonstrações
públicas ou provadas de manutenção da antiga fé.
Apesar das proibições, presume-se que um considerável número de judeus convertidos continuaria, ocultamente e
dentro dos limites que lhes eram impostos, a comungar a religião que lhes fora arrancada à força. Eram, por isto,
denominados de criptojudeus – aqueles que judaizavam em segredo. E passavam a ser vistos como a principal ameaça ao
catolicismo dominante e monopolista. Por isto, também serviriam como a principal justificativa para a implantação da
Inquisição lusa.
Quarenta anos depois do decreto de expulsão dos judeus de Portugal, tendo como principal justificativa a
necessidade de controlar as ameaças representadas pelo criptojudaísmo, surgira em Portugal o Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição. Embora instaurada inicialmente em várias cidades do reino, a Inquisição portuguesa concentrar-se-ia em três
grandes centros: Évora, Coimbra e Lisboa – esta última, responsável também pelos domínios de além-mar, aí incluídas as
terras do Brasil, então vivendo os momentos iniciais de seu processo colonizatório.
O Brasil, se por um lado não chegou a ter um tribunal inquisitorial estabelecido – e este é um dos principais
motivos para a grande leva de cristãos-novos que escolheram migrar para a América portuguesa desde as primeiras décadas
do Quinhentos –, receberia representantes da Inquisição, como os familiares e, esporadicamente, visitações oficiais de
inquisidores, que procuravam saber a quantas andava a prática religiosa do outro lado do Atlântico. São três as visitações
mais conhecidas, por conta da documentação que chegou até nossos dias: entre 1591-95 (Bahia, Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba), entre 1618-1621 (Salvador e Recôncavo baiano) e entre 1763-69 (Grão-Pará). A primeira visitação inquisitorial
chegaria ao Brasil em 1591, comandada pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça e pelo notário Manoel Francisco. A
visitação percorria, entre os anos de 1591 e 1595, as capitanias do auge açucareiro à busca de comportamentos considerados
suspeitos de heresia. A partir das confissões e denúncias feitas à mesa do visitador, o visitador, considerando a gravidade dos
casos, decidiria sobre a necessidade de reunir a documentação recolhida (testemunhos, confissões, denúncias), além do
próprio denunciado e enviar tudo para a sede do Tribunal, em Lisboa, onde os inquisidores reinóis tinham autonomia para,
caso julgassem pertinente, abrir processo e julgar o caso.
Neste trabalho, analisaremos uma destas vítimas da Inquisição portuguesa denunciado durante a primeira visitação
inquisitorial ao Brasil. Trata-se do cristão-novo Diogo Nunes, senhor de engenho na Paraíba. A história de Diogo tem início
na vila de Castro Daire, Portugal, em meados do século XVI, onde nasceria nosso personagem.

III. A família Nunes Correia: infortúnios, sucessos e relações sociais


Situada nas proximidades da Serra do Montemuro, meio caminho entre o litoral lusitano e as terras de Espanha, a
vila de Castro Daire se tornara, desde o Medievo, importante região de convergência, localizada “num ponto de cruzamento e
passagem de vias multi-seculares”, servindo de ligação entre Lamego, ao Norte, e Viseu, ao Sul, “as duas principais cidades e
cabeças de diocese desde os primeiros séculos do cristianismo”. Daí, possivelmente, sua propensão muito cedo ao comércio.
Parece ter abrigado no século XVI uma considerável comunidade de cristãos-novos, envolvidos estes com o comércio e
negócios da vila. Prova da influência do núcleo dos neoconversos naquelas terras talvez seja as isenções de impostos e os
favores concedidos pelo rei D. Manoel, o Venturoso, no início dos Quinhentos à comunidade de cristãos-novos.
A Castro Daire dos cristãos-novos vira nascer mais um dos seus, João Nunes Correia, por volta de 1547. Lá mesmo
fora batizado na Igreja Matriz, sendo depois crismado em Lamego pelo Bispo Dom Manoel de Noronha, de quem também
receberia as ordens menores. Vinha de uma família ligada ao comércio e à agricultura. Filho do mercador e lavrador Manoel

144
Nunes, de quem herdara uma das profissões - e, quem sabe, o tino para os negócios - e de sua mulher, Lucrécia Rodrigues,
ambos “cristãos-novos, moradores na dita vila”. Dos avós, só havia conhecido a Manoel Correia, pai de sua mãe, também ele
mercador. Conviveu, contudo, com alguns tios, que acreditava já estarem falecidos: irmãos de seu pai eram Jorge Dias e
Henrique Nunes, ambos lavradores. Já por parte de sua mãe, eram seus tios Leonardo Rodrigues, Janeura Correia, Felipa
Correia, Manoel Correia e Beatriz Correia, “casada em Trancoso com Alvaro Mendes, cristão-novo”, e Ana Rodrigues,
“casada não sabe com quem”. De outros “tios e tias irmãos do seu pai, já defuntos”, que sabia existir, desconhecia o nome.
A família dos Nunes Correia era numerosa. João tinha três irmãos e duas irmãs. Henrique, o mais velho deles, era
mercador e morava em Lisboa, sendo casado com uma mulher de Aveiro, cristã-nova. Cabeça dos negócios que envolviam os
irmãos, controlando a sociedade e os investimentos em conjunto a partir do reino, com ele possuía João “o principal trato de
suas mercadorias”; Diogo, que contava com aproximados quarenta e três anos, dois anos mais novo que João, “morador na
capitania da Paraíba desta costa do Brasil, solteiro”, tinha sociedade com Henrique em um engenho que estavam construindo
e em outro, “moente e corrente”; o “mais moço de todos”, Antonio - que mais tarde, em 1615, seria responsável pelo
recebimento de escravos para os Ximenes em Pernambuco - vivia ainda com os pais. Irmãs eram duas: Branca, que, casada
com o mercador Luís Mendes, sócio dos Nunes nos negócios, também ele cristão-novo, passara a viver na cidade do Porto, e
Florença, também solteira, a exemplo do irmão Antonio, moradora em Castro Daire na casa de seus pais.
João e Diogo não eram os únicos da família a tentarem a sorte no Brasil: “um primo com irmão”, assim como o
irmão mais velho dos Nunes, chamado Henrique, também ele cristão-novo, escolhera a Bahia. Era lavrador e morava em
Matoim, havendo se casado com a meia cristã-nova Isabel Antunes, “de idade de dezoito anos”1. Jerônimo Rodrigues,
“cristão-novo, que foi mercador (...) morador na vila de Itamaracá, cinco léguas de Pernambuco”, vivia problemas com o
primo por razões de dinheiro. João tinha primos também no reino: “Guilherme Rodrigues e Cosmo Rodrigues eram
mercadores em Viana do Lima e Viseu”2. Antonio Rodrigues, por sua vez, casado, atuava como mercador em Castro Daire.
Não se sabe ao certo o ano em que João Nunes Correia chegou ao Brasil, ou as causas que o fizeram atravessar o
Atlântico e aqui fixar residência, nem tampouco a capitania onde primeiro aportou, mas o depoimento de alguns entre aqueles
que perante Heitor Furtado o denunciaram dá-nos a noção de que se encontrava em Pernambuco desde pelo menos 1582,
quando teria então por volta de 35 anos. Possivelmente desempenhara antes alguma atividade no reino - o comércio, função
que dominava em sua família, é boa opção -, chegando ao trópico já possuidor de certa fortuna ou, ao menos, de um capital
inicial com que pudesse dar início aos negócios. Envolvido com a vida na colônia, em meados dos anos oitenta já se
mostrava homem bastante respeitado, o que se devia, em boa parte, a seu empenho, juntamente com o irmão Diogo, nas
guerras lideradas pelo Licenciado Martim Leitão, “ouvidor geral de todo este estado do Brasil”, pela conquista da Paraíba,
com as quais colaborara, inclusive com capitais, como um dos principais, entre os poucos “de cavalo, que a tudo sempre
supriram”.
Sua sagacidade para os negócios tornava-o homem de talento especial. Tinha trânsito entre as atividades mais
rendosas da economia brasileira. Homem do Atlântico, envolvido com as principais rotas de mercadorias e homens, era
membro, como bem definiu Sonia Siqueira, “de uma nova classe intercontinental, burguesa, comercial e atlântica que se
edificava e forçava a sua ascensão social”, fazendo parte de um seleto grupo que “acionava a expansão econômica dos países
ibéricos nos anos da Modernidade. Burguesia portuguêsa, de conexões internacionais”3.
João Nunes devia viajar ou mandar representantes com certa frequência a outras capitanias do Brasil, possessões
ultramarinas lusas, portos de comércio na Europa e na África, tomado por seus variados negócios e sociedades nas mais
diversas partes, a darem conta de suas conexões mercantes. Investindo em várias frentes, mercador de primeira hora,
comerciante de grosso trato, mantinha contatos com o reino, de onde seu irmão controlava os negócios familiares. Fixados
em Lisboa e Antuérpia, a família dos Ximenes - “que tinham contratado o comércio de Angola desde 1582 até 1619” - fazia a
ponte de João com o Norte da Europa.
Apesar do aparente rigor utilizado pelas autoridades - pelo menos no que diz respeito às leis - visando proibir a
atividade onzenária, esta se fazia constante, a ela recorrendo todos que, por um ou outro motivo, se viam endividados,
necessitados de certa quantia para se livrarem de alguma cobrança indesejada ou começarem negócio diverso. Na prática, a
lei pouco incomodava. O ato de onzenar era normal e corriqueiro para nosso personagem. Muitos foram os que a ele
recorreram sonhando conseguir saldar seus antigos prejuízos; muitos, dentre estes, enrolavam-se para cumprir o acordo
tratado com João no empréstimo: adquiriam novas dívidas. Endividados agora com o poderoso onzeneiro, podiam perder
seus bens, hipotecados como garantia de pagamento. Diziam dele não ter “por culpa ou pecado a onzena”, sendo “largo em
seu negocear”, “inventor de ardis e sutilezas de onzenas”, “roubador das fazendas dos homens”. Não perdoava dívidas,
processando-as a quem quer que fosse: era odiado por isso. Nem os parentes que haviam com ele feito empréstimos de
dinheiro tinham melhor sorte: seu primo Jerônimo Rodrigues, cristão-novo “que foi mercador e ora está empobrecido”,
acusava João por suas tragédias pessoais, estando com ódio e inimizade do primo rico, afirmando, diante de seu filho e de

1
Lipiner, E. (1969). Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos séculos XVI e XVII). São Paulo: Brasiliense, pp. 122-
123.
2
Siqueira, S. A. (1971). O comerciante João Nunes. In: E. Simões de Paula. (Org.). Portos, Rotas e Comércio - Anais do V Simpósio Nacional dos Professores
de História - Campinas. São Paulo: USP.
3
Idem, p. 238.

145
alguns conhecidos, “que ainda havia de fazer queimar ao dito João Nunes”4. Seu irmão Diogo também se queixava, em carta
que chegou ao conhecimento do Santo Ofício, dos desentendimentos com João nos negócios, pedindo que fossem feitas suas
contas para que pudesse planejar a forma de pagamento. A história que unia João Nunes a Belchior da Rosa e seu filho
denunciava os abusos e crenças do comerciante onzeneiro: dizia Belchior ao visitador que, por volta de 1590, visitando a casa
de João com o filho, este, ao lamentar com o onzeneiro contratador de escravos a difícil vida de tabelião do público e judicial
que levava e desejava largar, graças às corruptelas e barganhas dos oficiais de justiça, que “fazem erros e falsidades em seus
ofícios, tirando a justiça às partes em favor dos que mais podem”, ouvira de João que se desenganasse, pois assim faziam
todos no mundo, do porteiro ao Papa: escandalizados pai e filho, concluíram que da mesma forma agia Nunes, instruído no
“vício e mau costume da terra”5. De acordo com Ronaldo Raminelli, “Na verdade a denúncia se volta também contra a
administração local, contra os oficiais e todos aqueles participantes do poder judiciário da Colônia”6. E sabia-se de Nunes ter
contato com esta gente, aumentando contra ele os desagrados.
O sucesso nos negócios fez de João Nunes exemplo de empresário com grande astúcia para discernir onde estavam
os bons investimentos. Acumulando dinheiro com os contratos que possuía, multiplicando lucros através de suas onzenas,
ganhando fôlego com os rendimentos do comércio, contando com o auxílio do capital vindo dos acordos de além-mar,
Juntamente com os irmãos, optaria por investir, de forma mais direta, no beneficiamento do açúcar: Henrique e Diogo
tornavam-se senhores de engenho; João, administrador. Aliado à conjuntura pessoal de João - comerciante com ligações
internacionais, tratando dos negócios dos engenhos dos irmãos -, o aumento da procura internacional pelo açúcar contava
com o investimento da burguesia européia na criação de novos engenhos que garantissem o fornecimento do produto. A
vitória na guerra contra a ameaça francesa na Paraíba na década de 1580 possibilitaria o investimento na área conquistada:
Em pouco tempo, a região seria das principais na indústria do açúcar: “a Paraíba possuía excelentes terras para mais de
quarenta engenhos”7.
Derrotados os franceses e seus aliados potiguares, “começou logo a fazer um engenho não longe do de el-rei, com
que corria um Diogo Nunes Correia”8, em sociedade com o irmão morador em Lisboa. O instante era propício para a nova
atividade, tanto no Brasil - onde aumentava a área abrangida pela produção açucareira e crescia o avanço dos neoconversos
nas propriedades rurais, a viverem um momento de transição da predominância dos cristãos velhos para a dos cristãos-novos,
estes cada vez mais presentes - como na Europa - ávida pelo suprimento de seus mercados -, possibilitando lucros em duas
das mais lucrativas frentes da economia colonial: o pau de tinta e a cana-de-açúcar.
O envolvimento de João e dos seus irmãos nesta economia desde a fase produtiva até a distribuição do açúcar
tornavam-nos especiais: eram dos poucos que não dependiam de terceiros para o transporte da safra, o que certamente lhes
gerava melhores preços, levando também à necessidade de organizar contatos e garantir mercados. Formava-se uma rede de
distribuição, da qual João Nunes Correia, à frente, e seu irmão Diogo, eram mediadores no Brasil, produzindo e exportando
açúcar, revitalizando o contato - indireto, via Lisboa - entre o Nordeste brasílico e os Países Baixos, dificultado naquele
momento de União Ibérica, em razão das tensões hispano-flamengas. Distribuía açúcar para a Europa: as ligações com
Henrique Nunes, na capital do reino, com o cunhado Luís Mendes, na cidade do Porto, e com os Ximenes, na Antuérpia,
certamente eram fundamentais para os interesses de João nesta atividade. Assim era a máquina produtiva da família no
Brasil, conforme Gonsalves de Mello: “Diogo Nunes Correia, estava em Pernambuco encarregado e ocupado na instalação e
administração de dois engenhos na Paraíba, dos quais o próprio declarou em 1594 que detinha a metade dos capitais
aplicados e a outra metade pertencia a seu irmão Henrique Nunes. Entretanto estava subordinado a João Nunes,
administrador dos capitais de Henrique em Pernambuco”9.
Embora os engenhos ficassem sob a responsabilidade de Diogo, não raro, era João que se comportava como se
fosse ele o senhor dos engenhos. Alguns assim pensavam, a exemplo de Belchior Mendes de Azevedo que, denunciando-o,
estranhava-lhe o mal vestir “sendo tão rico, que é senhor de dois engenhos na Paraíba”. Todavia, João Nunes Correia
apresentar-se-ia perante o inquisidor apenas como mercador, sem admitir sociedade na propriedade dos engenhos paraibanos,
o que - tudo indica - realmente não existia. Mas levava a fama. Apesar de responder à autoridade do irmão Henrique, tinha
grande poder de influência, responsável pelo andamento dos negócios da família no Brasil. Diogo, embora se declarasse
sócio de Henrique nos engenhos, obedecia às ordens de João, organizador de tudo, a quem cabia a missão de tornar os
investimentos produtivos e rendosos, buscando sempre aumentar seus lucros e os capitais familiares. Não tinha posse nos
engenhos, mas era deles o verdadeiro senhor. Inexistem dúvidas de que Diogo devesse satisfação nos negócios ao irmão
onzeneiro, e certamente não gostava disso. Situação esta que gerava rusgas no entendimento dos negócios e no
relacionamento entre os irmãos, como se pode ver numa carta que Diogo mandou a João, onde reclamava: “por algumas
vezes tenho pedido e rogado muito a vossa mercê deixe de me perseguir com sua teima, afrontando-me, desonrando-me,

4
Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu
desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-593. (1922-1929). São Paulo: Paulo Prado, 3 vols, pp. 555-560.
5
Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil - Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1995. (1984). Recife: FUNDARPE, pp. 28-30.
6
Raminelli, R. (1990). Tempo de Visitações. Cultura e Sociedade em Pernambuco e Bahia: 1591-1620. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de
São Paulo, p. 124.
7
Rodrigues, J. H. (1979). História da história do Brasil - 1ª parte: Historiografia Colonial. São Paulo: Ed. Nacional, p. 449.
8
Frei Vicente do Salvador (1982). História do Brasil (1500-1627). 7ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, p. 258.
9
Mello, J. A. G. (1996) Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. 2ª ed. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, p. 65.

146
acanhando-me, fazendo a cada canto audiências de mim, assim com palavras como com cartas a quem quer”. Após severas
críticas quanto ao comportamento de João, Diogo se despedia, de modo pouco fraterno: “seu irmão que nunca nascera”.
A carta de Diogo mostrava um grande rancor entre os dois irmãos, que se agrediam incentivados pelas dívidas nos
tratos. Depois de reclamar das muitas desonras que o irmão poderoso lhe causava, parecia reclamar do diabrete que Nunes
teria recebido como seu protetor pessoal, e alertava-o: “lembro-lhe como amigo que um homem que anda com os demônios e
apartado de Deus e com as esperanças perdidas de tão cedo tornar para ele, não lhe faça o demônio fazer cousas com que o
diabo ande com Vossa Mercê e com ele e, contudo, não tem necessidade de se doer de mim, nem há para quê, nem eu quero
remédio se da sua mão me há de vir”.
Indignado, o verdadeiro senhor dos engenhos na Paraíba parecia disposto a acabar de uma vez por todas com as
perseguições e afrontas que sofria de João, e procurava livrar-se dele, pedindo condições para quitar suas dívidas com justiça:
O que só quero é que Vossa Mercê, com muita diligência, faça suas contas e mas mande trasladadas de tudo o que deve em
Portugal e eu devo no Brasil, e do que lhe entreguei e do que me deixou. E feito isso, se achar que há dinheiro para eu pagar o
que devo no Brasil, me dê dívidas para as eu cobrar e com elas pagar a quem devo”.
Apesar de João responder pela parte de Henrique, morador em Lisboa, na sociedade dos engenhos da Paraíba, o
excessivo rancor de Diogo contra o mercador da Rua Nova pode também significar um possível envolvimento de Diogo nas
onzenas praticadas pelo irmão, que o escorchava sem nenhum vestígio de sentimento fraternal. E novamente dava mostras da
abalada relação que mantinha com o irmão mercenário, cobrando pressa no acerto de contas: “não quero de Vossa Mercê
outra coisa, nunca a pretendi. Pesa-me fazer Vossa Mercê a tantos verdadeiros, assim em Portugal como no Brasil, mas como
sempre me defendi com todos, com dizer que não lhe queria nada, nem na pretendia, me satisfaço isso: faça Vossa Mercê
com muita brevidade, porque não havendo com que eu possa pagar o que devo, saberei o que hei de fazer”.
A influência dos Nunes Correia na sociedade pernambucana se fazia ecoar tão intensamente que Heitor Furtado de
Mendonça não se limitaria a colher informações que pudessem ser somadas às diversas acusações que sofreriam Diogo e,
principalmente, João: alguns indivíduos, ligados mais diretamente ao círculo de contatos dos irmãos, acabariam também
sendo vítimas do braço inquisitorial. Diogo Nunes, o irmão “que nunca nascera”, seria julgado por declarações que
corrompiam as leis divinas. João, dentre outras acusações, seria denunciado por manter um crucifixo em local impróprio e
imundo, açoitando-o, urinando sobre o objeto sagrado, pendurando-lhe panos sujos e dizendo-lhe impropérios – tudo
presenciado por um pedreiro que lhe retelhava a casa de dois andares na qual morava em Olinda. Os criados de João
sofreriam igualmente processos por não haverem denunciado de livre vontade e na época devida o que sabiam sobre as
práticas anti-cristãs do amancebado comerciante de grosso trato.

IV. A Inquisição no encalço de Diogo Nunes


Diogo Nunes seria denunciado por cinco vezes perante o Tribunal - número ínfimo, se comparado ao fervilhar de
delações contra o irmão poderoso, mas já bastante revelador com relação às suas culpas. Os processos se desenrolariam na
própria colônia, local onde se formariam os autos, seriam julgados, ouviriam as sentenças e cumpririam as penas impostas.
Nestes três casos, o licenciado daria mostras de seu destempero para o exercício do cargo, visto que não tinha autoridade para
abrir processos e julgar os casos, tendo, ao contrário, de enviar as provas reunidas para a Inquisição no reino, onde seriam
tomadas as medidas consideradas necessárias.
O caso de Diogo Nunes Correia seria distinto dos anteriores. O fardo do parentesco com o avaro mercador roubador
das fazendas dos homens lhe trazia problemas. Era proprietário dos engenhos na Paraíba em sociedade com outro irmão
morador em Lisboa, e tornara-se famoso pelos juramentos descabidos e idéias pouco cristãs a respeito das mulheres. A
documentação existente a seu respeito aponta - guardadas as proporções com o irmão apontado como rabi dos judeus de
Pernambuco - para um certo desdém com relação às leis dos homens e da Igreja.
O responsável por boa parte do constrangimento de Diogo Nunes, repetindo o ocorrido no caso de João, seria um
pedreiro, de nome Adrião de Góis, que teria ouvido de Diogo enquanto conversavam, que manter relações sexuais com
mulheres solteiras, desde que recompensadas, não era pecado mortal. O primeiro a acusá-lo da história seria Lopo Soares, na
oportunidade em que havia comparecido perante o Tribunal para contar o que também sabia a respeito de João. Dizia que
tinha ouvido do próprio pedreiro, então preso na cadeia pública da vila, “que a fornicação de dormir carnalmente um homem
com uma negra ou com sua mulher solteira não era pecado”. Acusava também Diogo - apesar de declarar-se um dos maiores
amigos deste - de castigar até a morte um escravo, usando requintes de crueldade: mantivera “um negro amarrado, açoitando-
o”, ao qual dissera: “Jesus Cristo lhe não havia de valer”!
O próprio pedreiro, cristão velho natural de Lisboa, confirmaria com detalhes em seu depoimento a narrativa de
Lopo Soares. Trabalhara cerca de três anos antes nas casas das caldeiras do engenho de Diogo na Paraíba. Certo dia, estando
ambos sós durante o almoço, vieram a praticar sobre o pecado da carne, quando o senhor de engenho lhe dissera que “bem
podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra da aldeia e que não pecava nisso com lhe dar uma camisa ou qualquer
cousa. Então, ele denunciante lho contradisse, dizendo que sim, era aquilo pecado mortal, e o dito Diogo Nunes lhe
respondeu que não era pecado mortal, e que dormir carnalmente com uma mulher solteira não era pecado mortal pagando-lhe
seu trabalho”.
Adrião insistiria na tentativa de fazer Diogo mudar de idéia, contando com a ajuda de alguns carpinteiros que se
aproximaram, mas este “repetiu as ditas palavras mais de dez vezes”, tudo sustentando e afirmando, “fazendo escárnio e

147
rindo-se dele denunciante, dizendo que não sabia ele denunciante o que dizia. E por mais que ele denunciante sempre lhe
contradisse, contudo, ele ficou em seu dito, sem se desdizer”.
Estranhando tal comportamento, o inquisidor indagara ao pedreiro se, por acaso, encontrava-se Diogo “bêbado ou
fora de seu juízo, com alguma perturbação”, ao que o denunciante afirmava que este estava “em seu siso, e é homem que se
tem em conta de discreto”. Adrião de Góis atestava também o descaso religioso que percebera em Diogo, nada insólito se
comparado ao seu irmão herético: “nunca lhe viu contas de rezar nas mãos, nem rezar, e muitas vezes dando ais por ser
enfermo, nunca lhe viu nomear a Jesus, as quais cousas ele notava e lhe pareciam mal”.
De outra feita, continuava Góis, ouvira do carpinteiro Gerônimo Mateus sobre a crueldade aplicada pelo senhor de
dois engenhos na Paraíba para com seus escravos, dando novos detalhes do fato anteriormente denunciado por Lopo Soares:
“pendurado um negro, lhe dizia: não te há de valer Deus, e que teve assim dependurado o dito negro até que morreu”.
Chamados pelo inquisidor, os carpinteiros presentes à cena compareceriam para denunciar Diogo, sendo um pouco
mais reticentes com o senhor que outrora os empregara. Mestre de fazer engenhos, Miguel Pires Landim, relataria o caso.
Segundo conta, a discussão rodava em torno de uma declaração de Diogo afirmando “que não era pecado mortal dormir
carnalmente com uma mulher solteira pagando-lhe (...) e que isto era pecado mas que não era pecado mortal, porquanto as
ditas mulheres solteiras viviam daquilo”.
Irmão de Miguel, o mamaluco Pedro Álvares, filho de “homem branco e dos da governança desta terra e de uma
sua escrava brasila”, descreveria o mal-estar gerado devido à insistência dos presentes em condenar as palavras do “discreto”
profanador: “já que todos eles diziam contra ele em contrário do que ele dizia, que não queria porfiar com eles e que se queria
calar”.
A história se espalhava, chegando a terceiros. Dessa forma, o Padre Antonio André compareceria à Mesa para dar
conta do que ouvira de Gerônimo Fernandes, então carcereiro da cadeia pública da vila: Diogo Nunes fizera o infeliz
comentário sobre ser pecado dormirem um homem e uma mulher solteiros, “em uma roda de homens”. O depoimento,
porém, nada de novo acrescentava ao que já fora dito pelos que testemunharam o ocorrido.
As culpas seriam reunidas a mando de Heitor Furtado. “Doente de boubas”, o senhor de dois engenhos era
notificado, em quatorze de fevereiro, a não sair da vila sem sua autorização, “curando-se em sua casa e reconvalescendo”,
visto que “estava de caminho para Paraíba”. Em quinze de julho, teriam início as sessões com o réu. Interrogado pelo
inquisidor sobre suas faltas, Diogo afirmava haver feito muita diligência com sua memória, aconselhando-se com religiosos,
mas “que não acha em si culpa nenhuma contra Nossa Santa Fé Católica, nem contra Cristo Nosso Redentor, no qual ele crê
bem e verdadeiramente como bom e verdadeiro cristão que é e sempre foi e será até a morte”.
O licenciado questionar-lhe-ia sobre ser ou não, na opinião dele, réu, pecado mortal dormir um homem solteiro com
mulher solteira caso fosse paga pelo trabalho e Diogo, ratificando as acusações contra ele, dava sinais de pouco
conhecimento das leis católicas, como de resto, boa parcela da sociedade colonial, divulgando - “simples e ignorantemente” -
idéia por muitos compartilhada: “ele réu ora não sabe nem entende se é pecado mortal ou não a dita fornicação pagando-se o
trabalho, e que algumas vezes já lhe aconteceu ter ajuntamento carnal com algumas mulheres e negras solteiras, pagando-lhes
seu trabalho”.
Diogo Nunes voltaria à Mesa Inquisitorial cinco dias após. Dizia haver se confessado e aconselhado com seu padre
espiritual, o jesuíta Pero Leitão, que confirmara ser pecado mortal e heresia o tal ajuntamento que erroneamente defendera,
motivo pelo qual agora pedia misericórdia ao Santo Tribunal. Terminado o depoimento, o visitador concluiria os autos e
julgaria o caso. Em 4 de agosto, Heitor Furtado de Mendonça daria a sentença: “o réu Diogo Nunes, em pena e penitência de
tão grave culpa, vá ao auto público da fé em corpo com a cabeça descoberta, cingido com uma corda e com uma vela acesa
na mão, e faça abjuração de levi suspeito na fé. E que trinta dias receba e ouça de um religioso que lhe será nomeado
instrução e doutrina do que lhe releva para salvação de sua alma. E que nas quatro festas principais do ano seguinte, do Natal,
Páscoa, Espírito Santo e Nossa Senhora de Agosto se confesse e comungue de conselho de seu confessor. E pague cem
cruzados para as despesas do Santo Ofício e as custas”.
Novamente discordantes de Heitor Furtado, os representantes da Inquisição lisboeta escreveriam no processo
movido contra Diogo o que pensavam do valor definido como castigo para o réu: “foi muita a pena pecuniária”. A Justiça e
Misericórdia, emblemas do Santo Ofício, pareciam ecoar mais fortes no reino.

V. João Nunes: um Rabi escatológico nas malhas do Santo Ofício


As mais graves acusações sobre os Nunes Correia, porém, seriam dirigidas a João Nunes, irmão mais velho e que
despertava maiores rancores sociais. Acusações de todos os tipos, enumerando seus comportamentos considerados abusivos.
Muito se falava, por exemplo, de seu amancebamento com uma certa Francisca Ferreira. Sem nunca ter se casado, João
acabou por manter um relacionamento com aquela que até então era esposa de Manoel Ribeiro que, por sua vez, trabalhava
como mantenedor dos laços de contato entre João Nunes e seu irmão, Henrique Nunes, no comércio de negros. Para iniciar
uma vida em comum com a mulher de Manoel, conhecida como Barreta, teria traçado o seguinte plano: “ele estava
amancebado com a dita mulher sendo público que para efeito de ficar com ela, lhe mandara o marido para Lisboa dirigido a
seu irmão Henrique Nunes, para dela o mandar a Angola, donde vindo o dito marido ter a esta terra, o dito João Nunes por
ser muito ardiloso e muito rico se pôs por Autor a defender que não era casado com a dita Barreta e assim os fez descasar,

148
coisa que nesta terra deu grande espanto por quanto se sabia serem casados a dita Barreta com o dito seu marido, e como tais,
terem vivido muito tempo pacificamente”.
Dos escândalos que envolveram seu nome o maior, sem dúvida, ocorrera às vésperas da chegada de Heitor Furtado
de Mendonça. Contam em geral seus delatores que, ao fazer obras no sobrado de Nunes na Rua Nova de Olinda, o pedreiro
Pedro da Silva vira estar dependurado na parede, por detrás da cama, um crucifixo, coberto com panos sujos e teias de
aranha, perto do qual se encontrava um servidor para as suas necessidades corporais. Espantado, advertiu ao dono da casa,
perguntando-lhe o porquê de estar a figura de Cristo próxima ao imundo objeto. O mercador afirmou ter sido ali colocado o
crucifixo por suas escravas, mas que ele o guardaria, mandando um carpinteiro construir um oratório para abrigá-lo. Várias
foram as denúncias feitas ao Tribunal sobre o ocorrido, levando o fato a novas proporções, agigantado a cada novo relato.
A primeira das acusações contra João Nunes aconteceu em 24 de agosto de 1591, quando o cristão-velho Belchior
Mendes de Azevedo, morador em Olinda de passagem pela Bahia, relatou o caso que disse ser de fama pública. As denúncias
que se seguiram, multiplicavam o ocorrido, buscando resolver, através de pequenas novas informações, as dúvidas sobre o
verdadeiro acontecido. Em geral, repetiam a história do crucifixo, como o fez o vigário do engenho de São Amaro, em
Pernambuco, Antonio André: “é fama pública que um pedreiro viu, retelhando um telhado de umas casas de João Nunes onde
ele ora pousa, estar em baixo, na sua câmara, um servidor e dentro nele um crucifixo, e que o dito pedreiro fora denunciar
isto no Juízo Secular do ouvidor da terra e que não se procedera nisso”.
Outras denúncias trariam detalhes sobre a história, assunto dos preferidos nas ruas, movido pelas intrigas sociais de
pessoas que, na maior parte das vezes, não tinham contato de nenhuma espécie, nem com João Nunes, nem com o pedreiro
Pedro da Silva, nem com a história do crucifixo, mas eram impulsionadas pela pujança social do acusado, possuidor da fama
de mau cristão, e pelo interesse de Heitor Furtado em conhecer as nuanças do ocorrido. Discutia-se desde o local em que
realmente se encontrava o crucifixo que o pedreiro teria visto, até o material de que se constituía o mesmo, se de vulto ou de
pintura. Cristovão Pais d’Altero, que se dizia muito amigo do acusado, afirmava que era público entre a população que o dito
João Nunes sentava-se no servidor próximo ao crucifixo, quando de suas necessidades corporais, dizendo a este, “tomai lá
esses bofidos”. Felippe Luis, cristão velho, diz ter ouvido que João urinava sobre o crucifixo dependurado em sua parede,
enquanto repetia, “lavai-vos lá”.
Também impressionante fora a denúncia do padre Simão de Proença. Conhecia uma mulher chamada Borges, seca,
com um olho meio piscado, que diziam teria vindo degradada do reino por acusações de feitiçaria. Em conversas com a dita
Borges, o padre Proença ouvira dela própria a respeito de um anel dado a João Nunes, com poderes para protegê-lo de
perigos na vida e nos negócios. Pela jóia mágica, o mercador “lhe dera três mil réis em dinheiro e outras coisas, agradecendo-
lhe tudo o passado”.
As várias acusações contra o senhor de engenho fizeram com que o encarregado da Visitação dedicasse atenção
redobrada na apuração dos fatos. A 22 de fevereiro de 1592, João Nunes Correia era preso na Bahia pelo Santo Ofício,
enquanto o licenciado aguardava novas denúncias que possibilitassem esclarecer os acontecimentos envolvendo o réu. O
visitador, depois da ordem que fez ter Nunes sob controle, mandou, em 24 de fevereiro, que fossem presos os criados que
estavam com Nunes para uma averiguação mais completa do caso, visto que poderiam ajudar a esclarecer detalhes do
ocorrido.
Apesar da infinidade de críticas e acusações sobre os mais diversos comportamentos heréticos que supostamente
mantinha, o que mais incriminou a João Nunes e se tornou determinante para a sua prisão pelo visitador do Santo Ofício
ainda durante sua estada na Bahia fora, sem dúvida, o malsinado episódio do crucifixo, ocorrido às vésperas da chegada de
Heitor Furtado ao Brasil. Afamado como rabi, a atitude de repúdio e desacato ao símbolo cristão mostraria ser outro forte
indício de criptojudaísmo em Nunes, que a todo instante dava provas de desarmonia com o catolicismo dominante. Religião
letrada, baseada no verbo e na palavra escrita, o judaísmo renegava qualquer espécie de adoração idolátrica. Atacando o
principal símbolo do martírio cristão, o comportamento herético do poderoso comerciante parecia encaixar-se com as práticas
da antiga lei.
Corria a fama que, em Olinda, o pedreiro Pero da Silva ao fazer obras de retelhamento no sobrado de João situado à
Rua Nova, vira o comerciante que lhe contratara cometendo ofensas contra uma imagem de Cristo crucificado, coberta com
panos sujos e teias de aranha, dependurada na parede em ambiente imundo, onde Nunes faria suas necessidades corporais.
Perto do crucifixo, haveria um bacio para fins excretórios. O sagrado objeto encontrava-se em local impróprio e recebia
tratamento humilhante. Incomodado com o que vira, Pero da Silva chamou a atenção do comerciante, que lhe repetia que o
crucifixo fora ali posto por algumas negras escravas, mas que o guardaria e providenciaria um local mais digno para a
respeitosa imagem, mandando um carpinteiro construir um oratório para abrigá-la, enquanto determinava ao pedreiro que
retomasse o trabalho, “e que o dito pedreiro fora denunciar isto no Juízo Secular do ouvidor da terra e que não se procedera
nisso”. Pela importância de Nunes e interesse que despertava, não é difícil entender que os boatos sobre o caso se espalharam
rapidamente, tomando novas proporções e contornos agigantados que iam crescendo conforme ganhavam a vila.
Heitor Furtado de Mendonça concentrou considerável atenção e boa parte do tempo em que esteve representando o
Santo Ofício na visitação de final dos Quinhentos às capitanias açucareiras do Nordeste ouvindo acusações relativas ao
mercador cristão-novo João Nunes Correia, que tornou-se figura das mais visadas, acusado seguidamente de diversos crimes
perante a Mesa do Tribunal. Sem poder reagir ao poder e influência do odiado comerciante, descontente com seus frequentes
abusos e pressões, foi necessário esperar o momento certo para enfrentar Nunes e fazer justiça. A visitação inquisitorial
possibilitava esta reação: a população pernambucana valeu-se do momento oportuno gerado pela prisão de Nunes e da

149
situação desfavorável que este enfrentava para se livrar do mercador amancebado por meios legais, agravando suas culpas
perante o Tribunal.
A quantidade de acusações a darem conta dos desvios do onzeneiro habitante da Rua Nova - quarenta e sete ao todo
- é um dos maiores índices a constar nos autos da Visitação, singularizando-o em relação à maioria dos denunciados. Dentre
o grupo de mercadores acusados perante o Santo Ofício, Nunes é certamente o mais rico e poderoso, assim como o possuidor
de maior destaque - o que se comprova pelo alto número de acusações que recebera -, sendo este um dos motivos para que
seus atos despertassem em igual medida o interesse popular e a atenção do inquisidor. Levando em conta todas as etapas da
visitação inquisitorial, e não apenas o caso específico pernambucano, podemos afirmar que o nosso mercador rabi é uma das
figuras mais importantes da sociedade colonial - embora não seja exceção entre eles - a estar presente na papelada trasladada
sob a orientação de Heitor Furtado. É também dos poucos a possuir vários sumários em seu nome movidos pela Inquisição de
Lisboa, todos em bom estado, passíveis de consulta e que se encontram, atualmente - como os demais processos da
Inquisição Portuguesa -, sob o controle do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. São cinco os códices conhecidos que têm
João Nunes como réu, ainda que em parte repetitivos: 87, 88, 885, 1491 e 12464. Os de número 885 e 12464 correspondem
às denúncias da etapa baiana da visitação, enquanto os demais dizem respeito às informações colhidas em Pernambuco.
O caso de João Nunes, se por um lado nos remete ao caso de um indivíduo aparentemente cético ao sistema
religioso oficial, não ratifica, por outro, a sua presença entre os judaizantes que Heitor Furtado procurava. Indícios de má
prática do catolicismo e mesmo de criptojudaísmo existem, e não são poucos. Todavia, também não são poucas as agruras
que João causava aos seus devedores e desagravos. Incertezas coletadas através da disseminação da história, aumentadas a
cada nova delação à Mesa Inquisitorial, trouxeram à tona detalhes sobre o caso que se mostravam incompatíveis com outros
depoimentos. Em 30 de maio, foi enviado para Lisboa, para apreciação do caso pela Inquisição lisboeta, enquanto seus bens
eram sequestrados. Com ele, seguiram os autos de suas culpas para análise do Conselho Geral.
A análise feita pelo Conselho na papelada relativa a João Nunes, julgou improcedentes as culpas a ele endereçadas,
sendo solto em Lisboa, perante o pagamento de uma fiança, enquanto permanecia aguardando novos levantamentos e
investigações feitos pela Inquisição no Brasil, a serem remetidas ao Reino pelo visitador.
Nunes fora acusado de todos os lados. Seus desafetos aproveitaram, inicialmente, a distância do Tribunal, que se
achava na Bahia, longe do habitat do mercador e de suas influências; denunciaram acobertados pelo anonimato que o Santo
Ofício proporcionava a seus colaboradores; buscaram os meios legais de tirar de circulação um homem de vasto poder e
destaque, responsável por importante função na empreitada colonizatória; vingaram-se dos abusos que haviam sofrido;
aliviaram a alma por vê-lo pagar pelas heresias contra a Igreja e suas instituições, contra o casamento e os dias santos;
condenavam-no os cristãos velhos que duvidavam de sua conduta, e os cristãos-novos que ansiavam serem aceitos e vistos
como fiéis católicos; reagiu-se contra o aumento da participação dos neoconversos na sociedade brasílica. A sua ida para
Lisboa, preso pelo Licenciado Furtado de Mendonça, deputado do Santo Ofício da Inquisição, parecia ter agradado a muitos.
No pouco tempo em que ficou encarcerado em Lisboa, talvez manifestasse menos o seu poder. Talvez não: sua
prisão seria considerada injusta. No fundo, era menos herege do que homem do comércio, adaptado às necessidades para
fazer negócios, convivendo entre cristãos e judaizantes, vivendo o tempo do mercador, e não o da Igreja. Livre, continuaria
seus negócios, agora na Espanha, última notícia de seu paradeiro, onde ganharia novamente destaque nas atividades
econômicas, vendendo açúcar nos domínios filipinos. É possível, todavia, procurar novas pistas. Ao que parece, João fixaria
seus negócios na Espanha, responsável pelos negócios da família na região, mas enfrentaria novamente problemas.
De acordo com Jesús Carrasco Vázquez, João Nunes Correia foi um personagem muito destacado nos círculos
comerciais lisboetas e teve especial relevancia, junto com outros mercadores portugueses, ligado às redes clientelares tecidas
pelo Duque de Lerma – o que, posteriormente, o fez cair em desgraça, mais cárcere e ruína econômica. Esta etapa, ocorrida
entre o período de 1606-1625 (ano em que teria falecido, em Madri), esteve marcada por uma contínua disputa judicial contra
os fiscais da Coroa para recuperar o patrimônio que lhe fora expropriado10.
Um outro prisioneiro da Inquisição que viera do Brasil, o célebre Bento Teixeira, nos socorre com suposições que,
se menos realistas, dão boa idéia do imaginário que existia sobre João Nunes. Em sessão vespertina datada de 12 de
dezembro de 1597, nosso poeta, de novo ele, confessaria aos inquisidores conhecer a informação de que João pensava ser
“mandamento de Deus e serviço que se Lhe faz todos os tratos e usuras de que usa e o que junta à Sua Majestade”, contendo
sua ganância uma intenção implícita: “por deter muitos mil cruzados, se há de aposentar na Ilha do Gulfo, e fazer-se senhor
absoluto dela a poder de dinheiro, como foi o Benveniste antigamente, em uma parte da Turquia”.
As histórias de João, todavia, só mostram coerência quando apresentadas na visão dos que os denunciaram ao Santo
Ofício. Sem eles, pouco se saberia de sua importância e da vida que levou. As acusações abrem-nos vários caminhos para a
percepção do funcionamento da sociedade colonial, através de denúncias que envolveram pessoas das mais diversas camadas
sociais. A documentação recolhida por Heitor Furtado de Mendonça dá-nos uma visão ampla da forma de pensar a religião e
os costumes; os hábitos domésticos ou sagrados; as dificuldades de adaptação ao novo espaço colonial; as divisões de poder
existentes, com suas influências e diversidades; as intrigas em uma população heterogênea, a fomentar movimentos na malha

10
Vázquez, J. C. Comercio y finanzas de una familia sefardita portuguesa: los Núñez Correa. In: J. Contreras, B. J. G. García, & Pulido, I. (Org.) (2003).
Familia, Religión y Negocio. El sefardismo en las relaciones entre el mundo ibérico y los Países Bajos en la Edad Moderna, Madrid, 365-372.

150
de poder e seus pretendentes: malha essa modificada a cada nova chegada de colonos nos navios oriundos do reino, no ir e vir
das ondas atlânticas, enquanto o fervilhar de ódios a atender interesses particulares a todos gerava escândalo e incomodava.
As penas impostas, mesmo que “misericordiosas”, enfraqueciam a pujança social da família - já irreversivelmente
marcada pelo sangue impuro -, envolvida com a Inquisição e criticada socialmente por isso. O maior prejudicado com o rigor
do licenciado seria o próprio João Nunes, preso e transferido para a metrópole, afastado de seus variados negócios enquanto
esperava a resolução de seu processo. Para sorte do suposto rabi, seu caso seria julgado na metrópole, onde estaria
paradoxalmente a salvo das pressões populares por sua desgraça e da demonstração de força realizada pelo visitador
Mendonça. Longe do trópico e de seus inimigos, a eloquência dos fatos se empalideceria em Lisboa, e João escaparia da
Inquisição sem maiores problemas, fixando-se na Espanha, onde continuaria a vida de mercador.
O fato é que a documentação produzida pelo Santo Ofício para analisar os desvios de fé e o mau comportamento
religioso dos irmãos Diogo e João Nunes Correia mostrava os conflitos que a família vivia internamente e no seu convívio
social. Se, por um lado, desestruturou a rede de relações tanto econômicas quanto sociais que a família mantinha em
Pernambuco e na Paraíba, assim como prejudicou – ao menos em parte – seus negócios do outro lado do Atlântico, por outro,
permitiu aos historiadores, funcionando como uma lupa potente, uma análise minuciosa da sociedade da época, retratada nas
fontes do Santo Ofício pelo olhar do visitador. Oportunidade rara, com tamanha grandeza e variedade de detalhes, de
mergulhar nas artimanhas do passado com a potente lupa que a Micro-História nos oferece.

Mulheres e direitos humanos: desfazendo imagens, reconstruindo identidades


Nilda Stecanela
Universidade de Caxias do Sul - Prefeitura Municipal de Caxias do Sul - Observatório de Educação, Infâncias e
Juventudes
[email protected]

Pedro Moura Ferreira


Universidade de Lisboa - Instituto de Ciências Sociais
[email protected]

Resumo: Situada no contexto dos estudos de gênero e violência, esta comunicação interpreta casos de violência praticada contra a mulher,
nomeadamente àqueles em que a vítima procura os setores de apoio. É parte de uma pesquisa em desenvolvimento no sul do Brasil.
Problematiza a necessidade de “desconstruir velhas imagens” para dar lugar à “novas identidades” como forma de auxiliar a mulher a sair da
condição de vítima, para protagonizar sua própria vida, como autora de suas escolhas e de sua história. Relaciona a urgência na revisão dos
processos de socialização para imprimir nas práticas cotidianas, com homens e mulheres, outro jeito de perceber, conceber e viver a condição
de mulher e de homem na contemporaneidade. Parte do princípio que não basta garantir direitos e punir agressores. Considera urgente o
testemunho de uma nova cultura sobre as questões de gênero. O problema evidenciado nos primeiros contatos com o campo sinaliza que o
combate à violência de gênero tem íntima relação com as representações que as mulheres têm sobre a violência doméstica, pois a maior
parte delas somente reconhece as violências físicas, ignorando outras formas. Genericamente, consideram naturais as desigualdades de
gênero e acreditam ocupar lugar subalterno em relação aos homens. A violência de gênero é uma construção social que fortalece a
dominação masculina e oprime as mulheres. O desafio que se coloca é, pois, transformar a violência contra a mulher, de um problema
privado, num problema público, ou seja, como um problema de direitos humanos e de igualdade de gênero.
Palavras-chave: identidades de gênero, direitos humanos, violência contra a mulher.

Introdução
As reflexões que apresentamos neste texto compõem uma primeira aproximação à análise dos dados empíricos
resultantes de um estudo exploratório realizado no contexto do projeto de pesquisa “Mulheres e direitos humanos: desfazendo
imagens, reconstruindo identidades”, financiado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), em parceria
com a Prefeitura Municipal de Caxias do Sul (através da Coordenadoria da Mulher) e Universidade de Caxias do Sul.
O banco de dados do estudo é composto por entrevistas realizadas com 27 mulheres vítimas de violência de gênero
e por 31 agentes públicos que, direta ou indiretamente, compõem a Rede de Proteção à Mulher do município de Caxias do
Sul.
A construção dos dados decorre de um programa de formação, articulado com o referido projeto de pesquisa, no
qual participaram 39 agentes das mais variadas formações e atuantes nas áreas da saúde, psicologia, educação, assistência
social, assistência jurídica e segurança. O processo de formação continuada e em serviço foi desenvolvido de agosto a
dezembro de 2008 pelos coordenadores da pesquisa, com base na metodologia proposta no Programa Nossa Escola Pesquisa
Sua Opinião (NEPSO), coordenado em nível nacional pela Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro (braço social
do IBOPE), ambos com sede em SP (www.ipm.org.br). A formação totalizou 100 horas aula, envoltas de reflexões teóricas e
metodológicas, tendo como princípio o uso da pesquisa como ferramenta pedagógica, capaz de sensibilizar os agentes para a
importância do enfrentamento à problemática da violência contra a mulher e à necessidade do aprofundamento das
compreensões conceituais implicadas na temática.

151
Os participantes da formação foram desafiados a conhecer os passos do planejamento de um projeto de pesquisa e a
desenvolverem o trabalho de campo dele decorrente, incluindo: a organização dos dados, com análise, interpretação e
sistematização dos resultados e conclusões. Nossa intenção foi provocar a discussão e trazer à tona as contradições, tanto de
ordem teórica e metodológica, como aquelas relativas às construções sócio-culturais, numa perspectiva de desfazer imagens
cristalizadas e de reconstruir posturas e leituras. Com isso provocamos o enfrentamento de alguns preconceitos que se faziam
presentes no próprio grupo, assim como, de algumas incompletudes conceituais, por exemplo, em relação ao conceito de
gênero e as violências dele decorrentes. No percurso, entre um encontro e outro, propusemos seminários de estudo, com
distribuição de textos que alimentaram as categorias que emergiram das reflexões. Desse processo, decorreram quatro
projetos de pesquisa, desenvolvidos respectivamente por quatro grupos, conforme os seguintes eixos: Representações da
mulher vítima sobre a violência de gênero; Violência contra a mulher: problematizações e representações sobre o perfil do
agressor; Formas de registro e de sistematização dos dados no atendimento à mulher em situação de violência; Violência
silenciosa: o lugar das crianças e jovens em contextos de violência intrafamiliar.
Numa análise transversal da sociografia da amostra que compõe o estudo exploratório e das narrativas produzidas
nas entrevistas com as mulheres e com os agentes, realizadas pelos participantes do curso, apresentamos a seguir algumas
categorias reveladoras de algumas tendências que nos desafiam ao aprofundamento nas fases subsequentes da pesquisa.

1. As múltiplas violências narradas pelas vítimas


Entre os motivos que levam a mulher vítima de violência a procurar ajuda, as agressões físicas, sem dúvida, estão
no topo das denúncias e no limiar da suportabilidade da situação conjugal. Este tipo de violência parece ser o grande
desencadeador do processo que conduz a mulher à “vitimização afirmativa”, da qual nos fala Soares (1999), como forma de
produzir um discurso sobre si mesma, assumindo publicamente, para si e para testemunhas, a emblemática expressão: “eu sou
uma mulher que apanha”. Entretanto, é preciso atenção para os aspectos que circundam e antecedem este movimento e,
muitas vezes, narram justificativas sobre as construções culturais que envolvem as questões de gênero e às representações
que estas mulheres construíram sobre a violência sofrida em seus processos de socialização. Na ótica de Soares (2005), a
violência física ou as ameaças verbais que levam a mulher a pedir ajuda, podem ser apenas a ponta do iceberg da situação de
violência a que as mulheres encontram-se submetidas.
Os testemunhos das entrevistadas indicam que a violência emocional sempre aparece associada à violência física,
mas não configura entre os principais motivos para o pedido de socorro, sendo apenas coadjuvante no processo de denúncia
ou busca por orientação quanto aos seus direitos. Uma das mulheres entrevistadas no momento em que fazia a denúncia
disse: foi só ameaça verbal. O “só” não vem sozinho nesta expressão, mas é carregado das representações que esta mulher
tem sobre a violência de que é vítima, quase justificando que ela própria não teria motivos consistentes para a efetivação da
denúncia. Outra vítima diz: É sempre aquela coisa, começa com um puxão de cabelo hoje, um tapa amanhã, e as mulheres
pensam que é só uma demonstração de ciúmes e depois tenta continuar porque acha que ele vai mudar e assim vai indo. Eu
até me perguntei: o que eu estava fazendo de errado? Sob a categorização “violência emocional” é possível localizar
algumas recorrências nas expressões empregadas pelas depoentes. Entre elas a ameaça e a agressão verbal aparecem com
maior frequência e com derivações que apontam para atitudes de humilhação, coação e chantagem, as quais produzem
sentimentos de menos valia e impotência para a reversão do quadro. A “violência psicológica” decorrente dos
comportamentos do agressor quase não aparece nas narrativas das mulheres vítimas, indicando fortes marcas da “banalização
da violência”.
Chama atenção o depoimento de uma das vítimas ao afirmar que, entre as razões que levam um homem a agredir
sua companheira, está a culpa da própria mulher, pois se apanhou é porque a mulher fez alguma coisa de errado, justificando
que para a coisa chegar neste ponto, quando um casal vive junto, só pode que ela tenha feito alguma coisa de errado. Esse
depoimento retrata as construções culturais envolvidas no fenômeno da violência, entre as quais está o reforço da
naturalização da dominação masculina por parte de muitas mulheres. Isso decorre também de uma construção histórica em
que, “durante muitos séculos, em nossa sociedade, o direito de um homem castigar sua mulher estava assegurado pela lei e
legitimado culturalmente” (SOARES, 1999, p. 25). Embora as mulheres contemporâneas mostrem-se mais encorajadas em
denunciar as violências que sofrem, numa espécie de “saída do armário” (p. 15) percebe-se que o deslocamento e a
redefinição da culpa e da vitimização, muito lentamente, vai assumindo contornos em direção à quebra do silêncio e à
publicização do segredo.
Entretanto, a partir do momento que essas vítimas procuram apoio nas instituições que a Rede de Proteção à
Mulher de Caxias do Sul disponibiliza para a sua orientação, atendimento e encaminhamentos, elas também vão contribuindo
para um processo educativo que, certamente, afetará os processos de socialização de seus filhos e filhas e, quiçá, do próprio
agressor, com a produção de um discurso em torno da experiência da vitimização. As vítimas descobrem os caminhos
tortuosos e dolorosos em direção ao rompimento do círculo da violência. Elas passam a usufruir o direito a um atendimento
especial na Delegacia de Mulheres e começam a conhecer outras instâncias das políticas públicas, voltadas à sua proteção,
como é o caso do Centro de Referência da Mulher e da Rede de Apoio à Mulher, além, sem dúvida, dos benefícios
decorrentes da Lei Maria da Penha. Com isso, algumas narrativas, ainda tímidas, começam a ganhar contornos diferenciados,
tirando-as da passividade e desafiando-as a procurar ajuda como exemplifica o depoimento de uma vítima de 45 anos,
recicladora de resíduos sólidos, no segundo relacionamento e que denunciou o companheiro pela primeira vez após 3

152
semanas sofrendo agressões: Vou dizer uma coisa pra ti, se tu baixar a cabeça na primeira vez, daí vai te bater sempre,
então agressão maior é porque a gente aceita. Porque agride uma vez, agride sempre. O limite externo às agressões dado
pela procura da polícia é apenas um passo que, certamente, se ancora nos limites internos que esta mulher constrói para dar
um basta à violência que sofre. Porém, sem ajuda ela não consegue sair do círculo da violência.
Na sala de espera da Delegacia da Mulher ou do Centro de Referência, durante o trabalho de campo, foi comum
observar mulheres narrando suas experiências de vitimização, descrevendo em detalhes o sofrimento vivido na intimidade,
para outras mulheres que também aguardavam atendimento e orientação, ou para os funcionários do serviço. Segundo uma
recepcionista que fez o curso de formação: as vítimas querem ser escutadas, elas precisam falar para alguém o que elas
sofrem e, ao falar, elas vão construindo justificativas internas para dizer não à situação. Com isso, rompe-se com a
perpetuação do silêncio e o sofrimento deixa de pertencer ao domínio das trajetórias individuais, passa a ser generalizado
como uma forma de violência comum, de uma vitimização que atinge mulheres coletivamente (SOARES, 1999, p. 29).
Como já dito anteriormente, a violência física, tomada no seu sentido estrito, ou seja, como uma violência
mensurável e isenta de contestações, em geral praticada no interior da casa, lugar que deveria ser considerado abrigo e
proteção, é a propulsora da denúncia e do primeiro passo em direção à “vitimização afirmativa”. Me ameaçou com arma, ele
me bateu com ferro, tirou meu braço do lugar. Desta vez ele me ameaçou com faca, daí eu corri e me protegi. Não podemos
deixar de sublinhar que essa violência, embora com as marcas visíveis deixadas no corpo da mulher, com o uso material da
força e as decorrências do ato brutal, em muitos casos, aparece cotidianamente disfarçada, sendo encoberta de forma
intencional ou não, pelas próprias vítimas ou pelos agentes de atendimento. Uma vítima narrou que sofria vários tipos de
violências há dez anos, nomeando-a violência física e psicológica. Segundo essa mulher de 32 anos, os cortes na cabeça, o
roxo das agressões somem, mas o psicológico... Muito nervosa ela afirma que demorou em denunciar, pois tinha medo ...
medo ... medo ... Esse processo caracteriza “vítimas duplamente feridas: pelo ataque do outro e por aquele que impõem a si
mesmas, na tentativa de negar a realidade que é sua” (OLIVEIRA, 1999).
Não se pode negligenciar que a violência física produz outros tipos de violências, como é o caso da violência
psicológica, em geral, encoberta pelo rótulo da agressão verbal e das ameaças e que, felizmente, são violências enquadradas
como crime e, portanto, passíveis de registro (CONRADO, 2001). De ameaçadas, as mulheres passam a ameaçar, com o
poder que têm à mão, ou seja, o direito à denúncia pelas múltiplas violências que sofrem: sexual, física, patrimonial, verbal,
psicológica, emocional. O recurso à denúncia na Delegacia da Mulher ou a procura de ajuda em alguma instituição de apoio,
leva para além da porta de casa a intimidade vivida pelo casal, provocando constrangimentos em ambos, mas, com a
esperança que dar um susto nele possa minimizar ou cessar com as agressões. Nem sempre esta mulher deseja a separação,
dizendo-se afetivamente ligada ao agressor e preocupada com o sustento dos filhos e a manutenção do pequeno patrimônio
que construíram juntos. Ao mesmo tempo em que assume não querer mais a repetição da situação, ela recua e aceita o
companheiro de volta, reiniciando o ciclo: Denunciei depois de apanhar. Eles vieram e levaram ele, mas quando ele voltou,
continuou sendo violento. Muitas sonham em conseguir reverter a situação e dizem que não querem mais ficar com o
agressor porque já deram uma chance e nada adiantou, ele voltou a agredir.
Uma das formas de impedir a construção da autonomia da mulher e de perpetuar a dominação é encoberta pelo
sentimento de ciúmes do agressor. Com esta justificativa, eles não permitem que as companheiras trabalhem ou estudem,
cerceando as relações sociais dessas mulheres, controlando seus movimentos, impedindo que elas vislumbrem outros
cenários para suas vidas. Eu estava trabalhando, parei porque ele não deixou mais. Com o afastamento do agressor, ressurge
uma possibilidade de reconstrução da própria vida e de reencontrar o prazer de viver. Adoro trabalhar, sempre trabalhei. E
agora que vou ficar sozinha, vou fazer um curso, estudar.
Segundo Almeida (2007, p. 25), as violências narradas por essas mulheres e que deixam “inúmeras, diversificadas e
profundas marcas em mulheres, em escala global, ainda não foi nominada apropriadamente”. Para a autora, trata-se de uma
violência “maldita” e de uma violência “mal-dita”. O primeiro enfoque é atribuído a “todas/os que a experimentaram e para
todas/os que tentaram enfrentá-la e mediá-la”. O segundo enfoque é referido “para todas/os que tentam estudá-la”. Com esta
diferenciação, a autora alerta que distintas expressões são utilizadas com sentido equivalente, a citar: violência contra a
mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero. Diz ainda que os diversos significados destas
categorias encerram implicações teóricas e práticas. De forma didática, a autora apresenta as especificidades de cada
denominação, sugerindo algumas diferenciações.
Violência contra a mulher enfatiza o alvo contra o qual a violência é dirigida. É uma violência que não tem sujeito, só
objeto; acentua o lugar da vítima, além de sugerir a unilateralidade do ato. Não se inscreve, portanto, em um contexto
racional.

Violência doméstica é uma noção espacializada, que designa o que é próprio à esfera privada – dimensão da vida social
que vem sendo historicamente contraposta ao público, ao político. Enfatiza, portanto, uma esfera da vida
independentemente do sujeito, do objeto ou do vetor da ação.

Violência intrafamiliar aproxima-se bastante da categoria anterior, ressaltando, entretanto, mais do que o espaço,a
produção e a reprodução endógenas da violência. É uma modalidade de violência que se processa por dentro da
família.

Violência de gênero designa a produção da violência em um contexto de relações produzidas socialmente. Portanto, o
seu espaço de produção é societal e o seu caráter é relacional. (ALMEIDA, 2007, p. 23-24)

153
Essa autora produz argumentos a favor e contra cada uma das categorias de violência empregadas no cotidiano, mas
posiciona-se pelo uso da violência de gênero, pois seria o único qualificativo da violência que ultrapassa o caráter descritivo,
constituindo-se numa categoria analítica e histórica ao mesmo tempo, sendo facilmente assimilável no meio acadêmico.
Marcada por uma incompletude dada pelo seu caráter abrangente, o seu emprego poderia levar ao risco do transbordamento,
porém não da limitação. Suas potencialidades estariam sinalizadas pela abordagem da violência no quadro das desigualdades
de gênero (ALMEIDA, 2007, p. 26-27).

2. A intervenção junto do agressor: intermediação e repressão


Analisando os depoimentos das mulheres vítimas, entrevistadas no espaço da Delegacia Especial de Mulheres,
podemos antecipar que a reivindicação da segurança mostra que a vitimização da mulher é uma experiência que envolve
sentimentos de medo, de insegurança e de ameaça à sua vida.
Percebe-se que a necessidade de defesa está presente noutras categorias. Em primeiro lugar, pelas medidas
repressivas que se defendem. Praticamente preconiza-se a prisão (ou mais). A idéia de uma justiça retaliativa também está
presente (fazer o mesmo com o agressor). Em segundo lugar, a idéia de recuperação e tratamento está praticamente ausente,
como se a idéia de uma segunda oportunidade estivesse morta. As mulheres querem proteção, defesa da sua integridade, e
isso só se torna possível com o afastamento do agressor, se possível encerrado na prisão. O destaque da repressão dá idéia do
sofrimento contido na experiência de vitimação.
Há ainda dois pontos a sublinhar. Se a questão da segurança é a mais importante, outras existem que não devem ser
descuradas. Por exemplo, o apoio legal à vítima no processo de reconstituição de sua vida (defesa dos seus direitos), realça o
aspecto de que a proteção da vítima não se esgota nas questões da segurança, mas deve ser estendido à reconstituição das
suas vidas. Por último, a questão da inação do sistema policial. Algumas mulheres criticam a demora da resposta e a atenção
que é dada ao problema da violência. Há complacência demasiada, ou um menosprezo deste tipo de intervenção, por se
considerar socialmente que é do domínio privado, e, por conseguinte, fora da ação das forças policiais.
Esses aspectos sugerem algumas indagações: Por que razão o sistema tem dificuldade em garantir a segurança da
vítima? Como responde o sistema à questão do agressor? Que apoio tem as mulheres na reconstituição de suas vidas? Como
se dissuade o agressor de recorrer futuramente à violência sobre a mulher? Que sensibilidade há nas forças policiais para a
questão da violência contra a mulher?
As vítimas reclamam uma intervenção por parte das autoridades. A atitude básica é de reivindicar uma proteção,
uma garantia à sua segurança e integridade, por vezes à dos filhos e familiares. O medo da retaliação, da violência repetida é
uma experiência comum de sofrimento. Apesar disso, também em função da experiência de vitimação por que estão
passando, a intervenção que se preconiza não é a mesma. É possível distinguir dois tipos extremos de intervenção. De um
lado, situa-se o que poderia ser visto como uma função de intermediação; do outro uma função repressiva. Estas alternativas
de intervenção da polícia em relação ao agressor emergem das narrativas das mulheres e podem ser categorizadas como
formas de: proporcionar segurança à vítima; garantir ação preventiva; contribuir com o empoderamento e defesa dos
interesses da vítima; produzir uma medida de tratamento obrigatório; efetivar uma ação repressiva contra o agressor. Em
alguns casos aparecem como uma crítica à inação policial e a impotência do sistema ou como falta de opinião formada sobre
o assunto, com fortes marcas do desespero e da descrença de que a situação poderá mudar.
Por função de intermediação entende-se uma intervenção que tem por objetivo chamar o agressor à
responsabilidade dos seus atos e das consequências que deles podem resultar. Não se apela diretamente a uma função
repressiva. É uma intervenção que visa colocar pressão externa sobre o agressor, tornar público o seu comportamento, e,
talvez mais importante, oficializar a agressão, permitindo reforçar a capacidade negocial da vítima e protegê-la de futuras
agressões. Como diz uma mulher: Que conversem com ele para parar as ameaças. Algumas vezes o recurso à delegacia é
usado como forma de pressionar uma divisão justa e equitativa dos bens. Não raramente os bens estão em nome do marido,
que dificulta a divisão, mesmo quando a separação conjugal está de fato consumada. Mas também neste caso o que se
procura é uma função de intermediação, que permita alterar uma situação, que se acredita poder ser resolvida sem recorrer a
meios mais repressivos ou judiciais. Como veremos, o tipo de intervenção requerido pela vítima está diretamente relacionado
com a natureza da vitimação, com a atitude da vítima perante o vínculo conjugal e com a crença quanto à possibilidade de o
agressor alterar o comportamento.
Do lado do pólo repressivo, as medidas preconizadas também não são uniformes. Há nos testemunhos das mulheres
duas idéias. Por um lado, a da segurança, que também está presente na função de intermediação, mas que se revela agora
mais acutilante na medida em que a experiência do medo é mais intensamente experimentada. Por outro, a idéia de justiça,
que apela a uma reparação do sofrimento que é causado. É evidente a existência de um elo entre esta necessidade de justiça e
a experiência de vitimação sofrida. Não custa admitir que a expressão dessa necessidade é, tanto mais intensa, quanto a
impotência e a revolta perante a arbitrariedade da violência. A reivindicação básica é de que a polícia deveria auxiliar na
proteção da vítima contra o agressor. O que se pede não é uma função de intermediação, mas de proteção. O medo da
ameaça está presente. Em alguns casos, talvez menos problemáticos do ponto de vista da violência, pede-se que o agressor
seja afastado do lar, ou seja, obrigado a submeter-se a um tratamento médico. Para estas mulheres, o problema nem sempre é
conseguir uma separação definitiva, mas sim, romper com uma situação que consideram opressiva e que se prolonga através

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de chantagens afetivas, designadamente usando os filhos, e de ameaças veladas ou explícitas, quando não do recurso à
agressão física.
A reivindicação de uma medida de afastamento do lar pode ser conseguida através de meios repressivos. Para uma
parte das vítimas, pede-se a prisão para o agressor. Não se trata apenas de uma forma de se obter a segurança. É mais do que
isso. Reivindica-se uma questão de justiça, a reparação de um dano. Algumas sugerem uma justiça mais retaliativa, sugerindo
que a polícia deveria fazer com o agressor o mesmo que ele faz com a gente e usar também da repressão física. No meu ver
era de pegar e dar um “laço” e descascar na surra, porque a partir do momento que tu cria os filhos dele, e ele te espanca
na frente dos filhos, ele só merece isso mesmo. Outros testemunhos apontam a mesma direção: mas a polícia tinha que tirar o
agressor, tem de botar os vagabundos trabalhar de dia até noite, fazer sentir na pele, pôr na cadeia não adianta!. Mas nem
todas as falas alinham neste diapasão. Há quem não vá tão longe, mas não deixa de expressar o mesmo sentimento de revolta
e de injustiça: acho que devia ter punição…eu não sei…uma multa, alguma coisa para ele pagar, não sei… Assim a
reivindicação de justiça sobrepõe-se nas falas destas vítimas à questão da segurança.
A reivindicação da idéia de justiça poderia fazer supor, mais do que no caso da função de intermediação, uma
consciência mais intensa de direitos, mas é muito duvidoso que seja disso que se trata. Não se vê nas falas das vítimas uma
referência à criminalização da violência nem dos direitos que assistem as mulheres. O recurso à delegacia é um pedido de
auxílio, não um direito a que o cidadão pode recorrer. É o medo que move as vítimas, não a liberdade de defender os seus
direitos.
É evidente que, quer os capitais escolares que, de uma forma geral, são baixos no universo inquirido, quer o peso de
uma tradição que, no mínimo, tende a ser complacente com a violência doméstica, vista ainda como um problema de ordem
privada, inibem o desenvolvimento de uma consciência de direitos e a criminalização da violência conjugal. Apesar destas
inibições, as mulheres sabem que têm na lei um auxílio, mesmo quando não sabem muito bem o que decorre da intervenção
legal. Botei na mão da lei, eu só quero continuar vivendo com o meu filho, cuidar da minha vida. Sofro tanto nas mãos dele,
e homem na minha vida não quero mais. E também não é muito claro até que ponto confiam nesse auxílio. Faz mais de um
ano que fiz essas ocorrências e nunca aconteceu nada, só agora veio a carta de intimação, não sei o que vai dar ainda…Os
queixumes estendem-se à polícia, acusando-a de nada fazer em relação ao agressor. Seja como for, o recurso à delegacia é a
última esperança de procurar pôr cobro a uma situação de opressão, sobretudo quando a vítima encontra pouco apoio na
envolvente familiar e de vizinhança.
O pedido que fazem às autoridades tem por isso pouco a ver com o conhecimento da lei ou da defesa dos direitos.
A intervenção a que apelam, seja a de intermediação ou a repressiva tem, sobretudo, a ver com a experiência de vitimação. Se
a violência se confina ao plano da agressão verbal, normalmente reivindica-se a função de intermediação. Se, pelo contrário,
assume contornos físicos que se repetem e reproduzem o ciclo da violência, apela-se claramente, como vimos à intervenção
repressiva e a um sentimento de justiça muito baseado na lei do talião, que encontra a sua justificação no sofrimento causado.
É porque sofrem que denunciam e exigem proteção e justiça, na proporção direta do sofrimento.

3. A vítima e suas representações sobre a ressocialização do agressor


O tipo de violência sofrida e a sua intensidade moldam as representações das vítimas não apenas à forma das
autoridades lidarem com o agressor, mas também em relação às possibilidades de ressocialização do mesmo. A maior parte
das mulheres mesmo quando não o explicitam dão a entender o desejo de se libertarem do vínculo que as liga ao agressor.
Esse desejo não estará em todas elas, sobretudo nas que estão sujeitas a uma violência mais contida e intermitente, mais
associada, como referimos, a uma intervenção de intermediação. É provável que estas se mostrem mais confiantes na
capacidade de regeneração do agressor. Há, com efeito, dois grupos de atitudes: as que dizem acreditar que o agressor poderá
deixar de ser violento e as que afirmam não acreditar que isso possa vir a acontecer. Como sugerimos, do lado do primeiro
grupo encontram-se as mulheres que sofrem de agressões verbais, mas não físicas, e que apelam, sobretudo, a uma
intervenção de intermediação. No outro grupo estão as mulheres que sofrem de todo o tipo de violência e de forma mais
repetitiva, que são as que preconizam uma resposta mais repressiva.
Mais interessante do que diferenciar estes dois grupos é atender às razões que apresentam quer para o caso de
acreditarem na regeneração do agressor, quer para o caso contrário de descrerem na sua ressocialização. A regeneração do
agressor é considerada possível em duas situações, que, aparentemente, não estão articuladas. Uma delas aponta para o
tratamento. Está, sobretudo, relacionada com o consumo de drogas. Sim (acredita que o agressor pode deixar de ser violento),
se for tratado, pois ele era calmo e tranquilo. O problema é o crack. Mas se o tratamento pode constituir uma razão para crer
na viabilidade da recuperação, não é, contudo, a razão que mais vezes aparece nas falas das mulheres que têm uma crença
positiva. A razão principal reside no controle do agressor, ou seja, essas mulheres acham que os problemas desaparecerão ou
pelo menos diminuirão se o agressor for monitorado de perto pelas forças policiais. Sim, mediante intervenção policial, se
perceber que alguma coisa está sendo feita. Reencontra-se aqui a idéia equacionada, relativa à função de intermediação de
que a vítima pretende um reforço da sua posição de forma a poder controlar a relação que mantém com o agressor e não
condições de segurança, como acontece com outras mulheres, para uma ruptura definitiva. Às vezes, a recuperação é vista
como dependente da capacidade do agressor controlar ou ser obrigado a controlar algumas impulsividades. Sim, que
conversem com ele para que deixe de ser ciumento. Também neste caso a crença na ressocialização do agressor está
dependente do controlo externo do seu comportamento. Se anteriormente dependia do controle médico, agora é visto como

155
decorrente da terapêutica psicológica, que pode, aparentemente, ser substituída por um controle e pressão de natureza
policial.
As razões que justificam o descrédito da ressocialização são também variadas. Podemos reuni-las em três grupos. O
primeiro revela o ceticismo em relação ao tratamento, ou por recusa, ou por desistência. Eu não sei, a não ser que fizesse um
tratamento longo para o álcool, mas ele não quer se tratar. E acho que devia fazer um tratamento espiritual, porque em Ana
Rech1 ele já se internou e voltou. O segundo aponta para o que se poderia designar por natureza humana de cada um, ou seja,
os atributos pessoais que tornam uma pessoa confiável ou não aos olhos de outro. Acho que não porque o jeito dele é assim,
ciumento. Ele já fez outra vez, dei uma segunda chance e ele não mudou. Na hora falam que vão mudar, mas não cumpram o
que prometem. Outra fala vai à mesma direção: Nunca, nunca. Há uns 18 anos atrás minha mãe me disse ”esse cara não
presta” eu não dei bola. Hoje vejo que ela tinha razão. Estes três testemunhos mostram que a descrença reside na
desconfiança, ou seja, pura e simplesmente não acreditam em quem não confiam e a experiência mostrou-lhes que os
agressores fazem o que estiver ao seu alcance para as manterem amarradas às mesmas situações opressivas. A descrença
reflete as mesmas razões por que querem libertar-se das relações que mantêm. O último grupo é talvez o mais inusitado, e
aponta para o plano emocional. Duas situações são referidas. A primeira liga-se à presença de filhos. A separação acontece,
mas a reconciliação volta sempre por causa dos filhos. Por causa deles, ela cede. E tudo volta a reiniciar-se. Mas não por
crença de que desta vez poderá ser diferente, mas porque é uma teia de que não se consegue desenredar. A segunda situação
tem a ver com a manifestação de um amor obsessivo. Acredito que não. Sabe aquele amor desmedido que dá medo? O meu
medo é esse, já que ele diz que me ama, mas tá me obrigando a viver com ele. Também o amor é evocado como causa para
oprimir.
Como vimos em relação ao modo de intervir em relação ao agressor, a crença na sua ressocialização está muito
dependente da experiência de vitimação que as mulheres estão vivendo. Se a idéia é buscar uma proteção que impeça o
agressor de se aproximar delas, a própria intensidade da situação que estão vivendo coíbe qualquer representação positiva em
relação à sua eventual ressocialização. Tudo o que a mulher vítima pede é a possibilidade de recomeçar a vida fora do atual
quadro de relacionamento. Um recomeçar que as proteja, e às vezes aos filhos, da violência que sobre elas é exercida. A
crença na capacidade de regeneração do agressor é partilhada apenas quando a violência é mais contida e intermitente, e se
associa a um relacionamento que talvez seja viável se houver forma de neutralizar as manifestações mais críticas por parte do
agressor. Acredita-se que o recurso a uma forma de controle externo é suficiente para aplanar essas manifestações. Mas uma
coisa é certa, sem uma intervenção protetora não é possível controlar o agressor, e muito menos defender a vítima ou fazê-la
sair do circulo da violência.

4. A denúncia: um pequeno grande passo


O que significa a denúncia na vida das mulheres vítimas? A análise dos testemunhos mostra que sempre alguma
coisa acontece. É um passo de um processo, por vezes longo. As diferenças do testemunho têm a ver com as diferenças que
se encontram na duração desses processos. Algumas estão ainda no limiar. Não sabem o que vem a seguir e muito menos
como acaba este processo aberto pela intenção de denunciar, de pôr fim à violência que as vitima. À pergunta “Depois de
contactar o Centro de Referência /Delegacia da mulher, você conseguiu mudar a sua posição no que se refere à violência?”
uma mulher responde: Acho que não, estou na luta, começando agora. É uma mulher de certa idade, cujos filhos já saíram de
casa e se sente hoje com força para enfrentar a violência do marido que a oprimiu durante anos a fio. Observa-se
frequentemente que a violência de gênero é transversal a todas as classes. Também se deveria referir que está presente em
qualquer idade, podendo afetar tanto as mulheres mais novas como também as mais velhas. A decisão de romper com o ciclo
de violência não é fácil, qualquer que seja a idade, porque a experiência do medo é comum. Mas o fato de denunciar, de
recorrer ao serviço do Centro de Referência ou à Delegacia Especial de Mulheres é uma esperança, um primeiro passo num
processo de emancipação.
O fato de se perceberem numa rede de apoio institucional permite encarar a situação que vivem, numa perspectiva
diferente no sentido em que ganham consciência dos direitos que têm e da intervenção que é possível fazer. O apoio e as
orientações que recebem são muito importantes para devolver às vítimas um sentimento de segurança sem o qual se tornaria
muito difícil uma mudança da situação opressiva que experimentam. Através de encaminhamentos ou ativando o dispositivo
policial, as vítimas recebem provas de proteção de que sempre estiveram carenciadas. Não significa que o processo seja
linear. Nem a ação junto do agressor significa o fim da violência. Há casos em que se repete. Denunciei depois de apanhar.
Eles levaram meu marido e quando ele voltou, continuou sendo violento. A denúncia não estanca automaticamente a
violência e, normalmente, aumenta o receio em relação à reação do agressor. Mas o fato de a situação ter sido denunciada
impede que seja remetida uma vez mais ao silêncio e isso proporciona à vítima, novos meios de defesa e orientação para
enfrentar a violência.
Na maior parte dos casos as medidas de intervenção não são extremas, exceto quando se trata da integridade da
vida da vítima ou dos filhos. A proteção passa por colocá-la fora do alcance do agressor, numa casa de apoio, em que vive

1
“Ana Rech” é uma expressão usada pelos populares para designar uma clínica de repouso e tratamento psiquiátrico localizada numa comunidade afastada da
cidade de Caxias do Sul e denominada Clínica Dr. Paulo Guedes.

156
numa situação protegida a partir da qual procurará reconstituir a sua vida, que passa sempre por uma procura de
independência econômica. Retrospectivamente, percebe-se que estas duas condições, ou seja, o afastamento físico do
agressor, implicando não raras vezes uma mudança de cidade, e o acesso a um trabalho, são, em alguns casos, necessárias
para romper de forma definitiva com o ciclo de violência e restituir à mulher o direito à sua vida, com liberdade. Muitas
mulheres reconhecem que a sua situação melhorou logo que conseguiram aumentar a distância física em relação ao agressor.
Sim melhor porque estou aqui (casa de apoio) e estou longe dele. Quando a distância física não está presente, a violência
tende a prolongar-se, sobretudo através de pressões e ameaças psicológicas, mesmo depois da separação. O fato de não se
interpor uma fronteira física, diminui a segurança que pode ser proporcionada à vítima.
Como dissemos, o fim do ciclo de violência é um processo, por vezes longo, que se inicia com a denúncia. Não
quer dizer que não haja antecedentes, mas a intenção de denunciar marca de forma simbólica todo o processo. O ato da
denúncia reflete, em primeiro lugar, a decisão da vítima em querer pôr termo à violência que a oprime, depois, em segundo,
marca a publicização do ato, o assumir a vergonha que muitas vezes encobre e impede a denúncia, e, por último a recusa de
viver subjugada no e pelo medo, aprendendo a enfrentá-lo através dos recursos que são mobilizados em sua defesa pela Rede
de Proteção à Mulher. Nos testemunhos das mulheres, todo esse apoio é referido como fundamental e sem o qual não se teria
iniciado, na maior parte dos casos, o processo que tem levado um número crescente de mulheres a reencontrar uma liberdade
que tinham perdido ou que nunca julgaram ser possível alcançar.
Estes testemunhos são prova da necessidade de uma política pública que torne as relações de gênero mais
igualitárias. A violência representa a forma mais básica de impor uma relação de poder, razão pela qual se torna intolerável o
seu uso numa sociedade que visa garantir direitos iguais para todos.

5. De parceiro a agressor: o círculo da violência


A agressão eclode num tempo que não tem hora marcada, mas acontece com alguma frequência logo no início dos
relacionamentos. Como refere uma mulher jovem, vivendo maritalmente há menos de um ano: Que ele me bateu? Me bateu
desta vez, mas já foi agressivo outras vezes. Começou depois de vivermos juntos e ele não tem motivos. Outra mulher mais
velha, mas também com um tempo de relacionamento curto, inferior a dois anos, aponta o mesmo: Teve início após seis
meses de relacionamento. Ele vai beber nos bares e volta para casa e quebra tudo. Aqui se denuncia também uma das razões
que leva a violência a se manifestar. Mas seria errado pensar que a agressão não pode surtir mais tarde, mesmo após muitos
anos de relacionamento. Ao fim de um quarto de século casada com o mesmo homem, uma mulher expressa o seu sentimento
de vítima: Já faz algum tempo que a gente não ta mais se entendendo. Agressão, agressão não é muito, mais é com palavras
verbais, humilhação, ele me humilha. Às vezes a violência demora a eclodir, ou porque fica latente durante muito tempo, ou
porque espera por circunstâncias da vida que alteram os comportamentos e os relacionamentos. As pessoas, aparentemente,
deixam de ser o que eram e deixam de agir como agiam, embora se possa perguntar se não acentuam apenas comportamentos
e disposições que, de certo modo, sempre transportaram consigo. Noutros casos, é a vítima que compadece com a violência e
a transporta silenciosamente ao longo de um relacionamento que se vai alongando no tempo: Há 16 anos já existia violência.
Sempre foi controlador e ciumento. Ciúmes, achar que era superior. Também neste testemunho se vislumbra outras razões
para a violência, como se pudesse haver razão para ela, a que voltaremos mais tarde.
Já sabíamos que a denúncia pode permanecer muda e encoberta por longos períodos. Queremos agora fazer notar
que a eclosão da violência não tem hora marcada, nem moldura relacional certa. Partimos do pressuposto de que ocorre
dentro de um quadro conjugal, como se este fosse sempre um invólucro contextualmente delimitado. As texturas relacionais
são por vezes intermitentes e prolongam-se, pelo menos do ponto de vista do agressor, além dos vínculos e das
reciprocidades relacionais. É assim que a agressão, a ameaça, aparece mesmo quando os vínculos formais e subjetivos
cessam ou deixam de ser recíprocos. É ex-marido, mas para ele eu continuo sendo mulher dele, mas da minha parte, não . A
violência acentua-se, em alguns casos, após a separação. O ciúme, tão presente nos testemunhos, é uma referência ao
sentimento de posse, manejado pelo agressor como se de um direito se tratasse para perseguir o outro, então metamorfoseado
em vítima. O agressor não está sempre presente através de um vínculo atual, de marido ou companheiro. Também acontece
entrar em cena a qualidade de “ex”, ex-marido ou ex-companheiro, que denuncia um exercício de violência que ultrapassa as
razões circunstanciais e situacionais da vida e rotinas cotidianas. Esta síndrome da perseguição pode revelar ou não
patologias próprias, mas não pode deixar de ser relacionada com a idéia que os agressores fazem do seu papel enquanto
homens, em particular no que se refere ao seu relacionamento com as mulheres no âmbito de um relacionamento conjugal.
É difícil reconhecer o contrário, e nenhum testemunho o faz: ninguém embarca num relacionamento com violência.
Um ou outro caso aponta comportamentos problemáticos anteriores, mas nada que pudesse ser visto como uma ameaça: Nós
já nos conhecíamos dois anos antes, ele não era violento, ele tinha picos de violência, e nos últimos tempos, piorou . É
evidente que o clima emocional tem também responsabilidade na forma como se olha o comportamento do outro: Ele usa
maconha desde os 15 anos de idade. Tivemos rompimentos, onde acabava saindo de casa. Sempre lhe dava chance de voltar,
acreditando que ele ia melhorar. Mas, mesmo denotando a existência de problemas de comportamento, nenhum testemunho
registra situações de violência. Elas surgem depois, às vezes muito depois, como vimos. Noutras, precipitam-se num ápice:
Agora eu casei e você vai fazer o que quero. Até hoje ele é violento, mesmo separado. E não se julgue que é o único caso: a
agressão começou um ano após estar morando junto, após o nascimento do nosso filho. Outro testemunho corrobora o

157
mesmo: após 45 dias vivendo junto houve a primeira agressão, ameaça verbal contra mim, meu pai, meu irmão. Como
entender um registro anterior quase sem referência de violência e uma eclosão tão prematura no limiar do relacionamento?
Poder-se-ia aventar o calor da paixão como uma forma de obstaculizar o conhecimento do parceiro, mas nenhum
testemunho o evoca. Razão mais prosaica é a intermitência dos encontros, dos envolvimentos e dos relacionamentos. As
circunstâncias em que se conhece um provável parceiro e o tempo que demora a decidir permanecer ou não com ele. Às
vezes os dois acontecimentos quase se fundem num só: um mês antes de morarmos juntos; Não conhecia há muito tempo
não. Apareceu de repente, era uma pessoa boa, ele não bebia; Sim, já nos conhecíamos desde seis meses antes de morarmos
juntos na minha casa. Noutros casos, o conhecimento pré-conjugal é mais dilatado: Quando namorávamos (dois anos e
meio), ele não apresentava comportamentos violentos. Noutro testemunho já referido o conhecimento não era também
recente: Nós já nos conhecíamos dois anos antes, ele não era violento…. O conhecimento anterior não parece ser
determinante. É claro que é mais fácil dissimular uma predisposição violenta num tempo curto do que num mais longo, ou se
a interação for escassa em vez de frequente. Mas o ponto que importa sublinhar consiste no fato de que, do ponto de vista da
vítima, nenhum parceiro a amedrontou ou a ameaçou antes do início do relacionamento. É verdade que, nalguns casos, o
tempo poderá não ter sido suficiente para que essas manifestações tivessem ocorrido, porém, nos testemunhos há outras
imputações que importa inventariar.
Se a violência não era conhecida antes do relacionamento, como explicá-la? O recenseamento dos motivos
apontados pelas mulheres vítimas sugere a existência de duas categorias principais: drogas, incluindo o álcool, e
violência/dominação. No que respeita à primeira categoria os testemunhos sugerem a existência de histórias antigas com o
consumo de drogas, que terá sido retomado em tempos mais recentes, dando origem a alterações comportamentos e
relacionais que surgem associadas às manifestações de violência. As agressões começaram depois que começou a usar
drogas mais pesadas, tipo o crack . Ele era usuário, antes de ter ido viver com ele. Ele tinha parado e faz uns dois anos que
começou de novo. Bom, o drogado como se diz “ele nunca tem remédio”. O álcool não surge tão associado a histórias
passadas, embora possa aparecer referência ao alcoolismo existente na família do agressor. Seja como for, a associação entre
violência e consumo de álcool é muito forte. Ele bebe na sexta, sábado e domingo . Vai beber nos bares e volta para casa e
quebra tudo. Ora nenhum destes comportamentos se manifestou antes do início do relacionamento, mesmo quando era
conhecida a predisposição anterior ou familiar para este tipo de consumos. A partir de certa altura, são retomados ou
reiniciados com mais intensidade, provocando a eclosão da violência.
Na segunda categoria a referência à violência aparece sem qualquer relação ao consumo de substâncias. É por vezes
uma violência gratuita, sem motivo. Como refere uma vítima: Começou (a bater) depois de vivermos juntos, e ele não tem
motivos. Esta formulação é um pouco estranha porque parece sugerir que na idéia da vítima poderiam existir motivos que
justificariam o uso da violência. Esta observação volta a emergir noutro depoimento: mas eu não fiz nada, eu faço tudo
direitinho, cuido da casa e não dou motivos. Noutros casos ainda elas dizem fui eu que o provoquei e aí ele ficou nervoso.
Como se a violência pudesse ter justificação em algumas circunstâncias. Em certas situações, essa violência surge claramente
assumida como uma forma de exercer uma dominação. Convocando de novo um testemunho já reproduzido: Agora eu casei
e você vai fazer o que eu quero. Outra mulher que refere a violência desde o início do relacionamento alega que a separação
não significou o término da violência. Há, nestes casos, um imperativo de controlar a mulher, de impor uma dominação, que
por vezes pode parecer doentia. Por ser obstinada, revela ser, no fundo, uma forma de mostrar poder sobre a mulher, de não
aceitar uma relação igualitária.
Esta forma de conceber o papel do homem, como dominante e dominador, tem consequências violentas quando é
posta a circular nos interstícios das relações de gênero. A dominação normalmente se apresenta como um jogo de força, uma
exteriorização da violência, desde a voz da ameaça até à dor física da agressão. O ciúme a que muitos testemunhos se referem
como causa da violência não pode ser desligado deste contexto de dominação. Por ciúmes. Não podia sair de casa São
sempre suposições imaginárias (anda desconfiado que esteja aprontando para ele, ou seja, traindo com outro homem no
trabalho ), mas com consequências bem reais. Este sentido de controle e de domínio não fica apenas reservado à esfera
emocional. Também se estende a tudo quanto possa ser entendido como ampliando a margem de liberdade da mulher: meu
marido começou a ficar agressivo quando resolvi fazer o curso para trabalhar. Outra mulher diz: Foi quando comecei a
trabalhar. Como se a autonomia profissional da mulher pudesse constituir uma ameaça a uma dominação que se alimenta de
dependências, e que, na ausência delas, não pudesse deixar de substitui-las por aquela que surge como a mais irremediável e
destrutiva: a do medo. Em outra via, com o trabalho da mulher fora de casa, as representações deste agressor podem estar
associadas à falta de exclusividade no exercício das tarefas domésticas e no cuidado dos filhos, requerendo sua participação
na partilha das mesmas e não estando disponível em tempo integral para “servi-lo”.

6. Medo, violência e dominação: os (des)caminhos para a superação


É um traço comum aos testemunhos reconhecer que a experiência do medo acompanha suas vidas. Através dele, o
agressor domina a vítima, exercendo sobre ela um poder que a sujeita. O domínio exterioriza-se, como se viu, pelo uso da
força física, mas reproduz-se através de uma pressão psicológica em que a ameaça ocupa um lugar permanente. O medo a
que as vítimas se referem ultrapassa o da coação física e coloca-se no plano da integridade física, da própria vida. A ameaça
de morte faz parte da dominação psicológica através da qual se procura sujeitar a vítima. A ameaça não se limita à mulher,
estendo-se em alguns casos, a familiares e amigos. A ameaça de morte é levada a sério tanto mais que, por vezes, são

158
reforçadas com a referência a armas. À pergunta sobre o receio que tem em relação ao que o agressor possa vir a fazer, uma
mulher responde: Sim, que ele mate minha amiga, já que porta armas . Outra confessa tenho medo das atitudes violentas que
o agressor possa ter comigo, com os meus filhos, o meu pai e o meu irmão. Este medo que parte da ameaça, mesmo que não
assuma contornos imediatos gera consequências práticas, entre as quais se conta a inibição da ação. A liberdade da mulher é
afetada, deixa de poder fazer o que pretende fazer, as suas decisões são coagidas. Uma mulher diz que evita frequentar a
escola com receio que isso possa desencadear no agressor comportamentos violentos, outra que tem medo de retornar para
casa com medo de ser agredida novamente. A perseguição da vítima leva muitas vezes a que esta abandone a casa onde vive:
ele tem ido ao meu trabalho, por causa disso vim para a cidade, para casa de uma amiga. Esta impossibilidade de voltar
para casa sem ter a certeza de não encarar o agressor está também bem expresso nesta fala: Ele falou que ia trabalhar, mas
tenho medo de lá ir buscar minhas coisas hoje e ele estar escondido. Meu filho também tem medo. Nem sempre os filhos, ao
contrário da mulher, são objeto de ameaças. Há casos, certamente raros, em que podem constituir um invólucro de proteção:
Ontem como ele se drogou, tenho medo de ele me pegar na rua sozinha e me agredir, me matar. Porque em casa na frente
dos filhos ele não vai fazer nada. Outra mulher também é peremptória: Ele pode me matar. Os filhos, ele não ameaça, o
problema é eu. Noutras situações os filhos podem ser usados como pretexto para permitir uma aproximação à vítima: O
maior receio é que ele use o meu filho com mentiras e falsas promessas para conseguir voltar a se relacionar comigo.
A violência é sempre dirigida à mulher mesmo quando não é um alvo exclusivo. É uma relação de poder, de poder
absoluto que se exerce pela coação física e psicológica. Mas debaixo desta violência não se encontra apenas a impulsividade
incontrolável de um “mau gênio” masculino ou os desvarios comportamentais provocados pelo excesso de álcool ou o
consumo de drogas. Por detrás dos atos e das palavras em que a violência se translada radica a idéia de que a mulher pertence
ao homem e se deve sujeitar à sua vontade. Sim, porque ele diz que se eu não for dele, não serei de mais ninguém, porque ele
vai matar meu pai e meu irmão, porque ele não gosta deles. Ele tem um revólver 38 e não tem porte arma. Ou na expressão
de outra mulher: a agressão dele no caso, é por eu não querer mais ele. Esta ameaça traduz um sentimento de posse, de que a
única vontade que conta é a do homem e não resta à mulher outra alternativa que a sujeição. A violência torna-se o meio de
consubstanciar uma relação de poder, que encontra a sua justificação numa cultura de masculinidade que advoga a
superioridade masculina em relação à feminina. Aliás, esta cultura não se manifesta apenas no recurso à violência, mas
também está presente noutros comportamentos já referenciados, designadamente o consumo de álcool e de drogas. Com
efeito, há uma associação entre a aquisição destes consumos e a afirmação viril da masculinidade. Beber, por exemplo, é
transmitido aos jovens como um comportamento masculino, como uma forma de se afirmarem homens, e, por isso, os
excessos são tolerados na medida em que não deixam de ser expressões, certamente por excesso, da masculinidade. O mesmo
comportamento numa mulher seria certamente impensável e alvo de uma censura radical que abanaria irremediavelmente a
sua reputação aos olhos dos outros. Seja como for, o ponto que gostaríamos deixar assinalado é que não é possível desligar a
violência da construção da masculinidade, ou pelo menos de certa forma de entendê-la.
Regressando aos testemunhos das mulheres é possível entender melhor a experiência do medo se considerarmos
que o agressor é agora visto numa perspectiva muito diferente da que tinham quando do início do relacionamento. Conforme
referimos, nenhuma mulher assumiu, pelo menos de maneira explícita, que o parceiro com quem iniciavam um
relacionamento tivesse manifestado irrupções ou impulsividades agressivas e violentas. Tudo, dizem, começou depois, às
vezes logo depois de terem começado a viver juntos, outras depois do nascimento do primeiro filho, noutras ainda muito mais
tarde, ao fim de muitos anos de vivência conjunta. Após a eclosão da violência, todas mudam a perspectiva com que olham o
parceiro. Nele, passa a haver um agressor, alguém que atenta contra a integridade física e psicológica. O parceiro, antes
considerado não violento, passa a ser descrito como violento. Uma violência que encobre, bem entendido, várias intensidades
e que pode ser direcionada exclusivamente contra a mulher ou ter ainda outros alvos derivados.
Mas é importante que se note que a violência raramente é esporádica. Apenas uma mulher assinalou que a sua
manifestação era rara. A violência tende a ser repetitiva e intensa. A maior parte das mulheres sublinha o caráter frequente
(muitas vezes) das manifestações agressivas, ainda que exista um número não negligenciável de testemunhos a assinalar uma
incidência mais moderada (algumas vezes). Obviamente que a intensidade da violência pode variar em função da história de
vitimação de cada mulher ou das características do agressor. Seja como for, a violência não tende a desaparecer e nunca é
constituída por um único ato.
Outra característica da violência, além da intensidade, é a sua direcionalidade. A mulher constitui o alvo central,
mas outros existem. Aliás, já se referiram alguns deles anteriormente, designadamente os filhos. Com efeito, apesar de serem
por vezes poupados às agressões e puderem servir num ou noutro caso de invólucro protetor da mãe, em inúmeras situações
são abrangidos no raio de ação da violência, quer em termos físicos como psicológicos. Mas outros familiares próximos são
também incluídos, pelo menos no campo da agressão verbal. Familiares da vítima, como pais e irmãos, bem como pessoas
que mantêm um laço privilegiado com a vítima, por exemplo, uma amiga, surgem referidos como alvos de possíveis
agressões. Também familiares do agressor, como a mãe, mulheres com quem teve relacionamentos anteriores ou outras
pessoas conhecidas, como vizinhos, são referidos como tendo sido objeto de alguma forma de violência. Bem entendido,
apenas uma parte dos agressores revela uma gama tão variada de vítimas. Muitos dos testemunhos apenas reportam a
violência contra a mulher. Mas eles revelam que a escala da violência tende alargar o raio de ação ao mesmo tempo em que
se intensifica. Os testemunhos não nos permitem descortinar o processo pelo qual o ciclo de violência se desenvolve e se
estende para além do reduto conjugal. Seja como for, não deixam dúvida de que a violência se instalou nos cotidianos das
mulheres sobre as quais é exercida.

159
Considerações finais
Com este texto pretendemos expressar um ponto de vista: o das mulheres que denunciam a violência de que são
alvo a partir de uma situação de denúncia. Já não se está perante a violência silenciosa que permanece circunscrita na esfera
íntima, ainda que por vezes o círculo se alargue à família, mais raramente aos vizinhos. Esta “oficialização” da violência
marca uma mudança na situação das mulheres que são vítimas dessa violência ao mesmo tempo em que contribui
decididamente para acabar com a idéia da “naturalização" da mesma. Sem as políticas de apoio às mulheres, dificilmente,
muitas mulheres teriam condições para denunciar e seria, certamente, mais árduo combater os preconceitos e as construções
culturais que tendem a inferiorizar a mulher e a legitimar a violência. A denúncia protege a vítima não apenas do sofrimento,
mas também da vergonha, essa outra forma de perseguir a mulher. A criminalização da violência representa a ruptura
necessária em relação às interpretações e justificações culturais que de algum modo a pretendem legitimar.
Apesar da mudança do quadro social e legal, a violência de gênero continua a perseguir o cotidiano de muitas
mulheres, articulando outras vulnerabilidades sociais e econômicas e alicerçando-se nas desigualdades das relações de
gênero. São estas relações que em definitivo encerram a mulher numa malha de dependências que marca o seu processo de
vítima e que condicionam grandemente a sua forma de olhar a violência. É esse olhar que procuramos dar conta a partir das
suas narrativas sobre a violência.
A mulher denuncia a violência emocional que se instalou no seu corpo e que acompanha o cotidiano. É para fugir
das ameaças, da agressão verbal ou física, que denuncia. É por não mais suportar as atitudes de humilhação, coação e
chantagem. A mulher denuncia por ter medo, por sofrer. Mas também por não ter mais “vergonha” de ser vítima, por saber
que tem direito a denunciar e por poder contar com o apoio das políticas públicas. É para buscar auxílio que a mulher
denuncia. A procura de apoio mostra que a vitimização é uma experiência de medo, de insegurança e de ameaça à sua vida.
A mulher quer proteção, mas também intervenção. Não quer ser mais vítima, quer sua vida de volta de novo. Exige
por isso que sejam tomadas medidas em relação ao agressor. São necessárias medidas de intermediação, que coloquem
pressão legal sobre o agressor, ou repressivas, que impeçam a aproximação do agressor à vítima. Sem elas, o ciclo de
violência não se quebra, e tudo volta a reiniciar-se mais cedo ou mais tarde. A política pública não pode atuar apenas no
sentido do apoio e da proteção da vítima, necessita também atuar sobre o agressor.
A mulher também clama por justiça, a reparação de um dano, o seu sofrimento. Nada pode justificar a violência que
as vitima. A vítima tem o direito de ser reconhecida nessa qualidade e o agressor na de arguido por causa dos crimes que
cometeu. Não se trata de retaliar, mas sim de reconhecer que a violência de gênero é incompatível com a dignidade e com o
valor da pessoa humana. Os direitos humanos das mulheres têm de ser reconhecidos e, sobretudo, respeitados e cumpridos.
Obstáculos a esse reconhecimento continuam a existir. A “naturalização da violência no cotidiano” é uma das idéias
que necessita ser desconstruída, na medida em que permite encobre muitas situações de discriminação e opressão de gênero.
Muitas das representações da violência apenas enfatizam a violência doméstica, sob a forma de agressões verbais e físicas,
deixando na invisibilidade outras dimensões da violência, como a sexual, a psicológica, a patrimonial, que resultam das
dependências e sujeições tecidas pelas desigualdades de gênero. A naturalização destas desigualdades tem permitido
cristalizar a subalternidade da mulher em relação ao homem e impedido o reconhecimento da dominação que sobre ela é de
fato exercida. Os direitos das mulheres reivindicam outra ordem de gênero, que não se baseia na desigualdade e no exercício
de relações de dominação, mas numa ordem que pressuponha a igualdade como um elemento endógeno das relações entre
homens e mulheres.
A política pública é a ponte entre uma ordem e a outra, entre a opressão e a afirmação dos direitos. Partindo da
vitimação procura criar condições para o empoderamento da mulher, emancipando-a das imagens que a encerram numa
condição subalterna e permitindo a reconstituição da sua identidade fora das amarras da violência de gênero.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Suely Souza (2007), “Essa violência mal-dita”, in ALMEIDA, Suely Souza (org.), Essa violência mal-dita
Violência de Gênero e políticas públicas, Rio de Janeiro, Editora UFRJ.
CONRADO, Mônica Prates (2001), A fala dos envolvidos sob a ótica da lei: um balanço da violência a partir da narrativa
de vítimas e indiciados em uma delegacia da mulher, São Paulo, Universidade de São Paulo.
OLIVERIA, Rosiska Darcy (1999), Prefácio, in SOARES, Bárbara Musumeci, Mulheres invisíveis: violência conjugal e
novas políticas de segurança, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
SOARES, Bárbara Musumeci (1999), Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira.
______ (2005), Enfrentando a violência contra a mulher, Brasília, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
COELHO, Carolina Marra Simões e GAETANI, Rebeca Rohlfs Barbosa (2006), “Metodologias de trabalho em grupos no
enfrentamento à violência contra a mulher”, in Anais do Seminário Internacional Fazendo Gênero 7. Simpósio Temático 5 –
Violência e Gênero, Florianópolis.
VIEIRA, Danúbia Rocha e PALAVEZZINI, Juliana (2006), “Um novo olhar sobre a violência contra a mulher”, in Anais do
Seminário Internacional Fazendo Gênero 7. Simpósio Temático 5 – Violência e Gênero, Florianópolis.

160
Custos Sociais e Económicos da Violência Exercida Contra as Mulheres em
Portugal: dinâmicas e processos socioculturais
Manuel Lisboa
FCSH-UNL Socinova/CesNova
[email protected]

Pedro Pita Barros


Faculdade de Economia - UNL
[email protected]

Dalila Cerejo
Socinova/ CesNova
[email protected]

Resumo: A violência contra as mulheres, em particular a doméstica, é hoje uma problemática à qual a Sociologia não pode deixar de
fornecer o seu contributo, tanto ao nível da compreensão do fenómeno como ao nível da percepção de factores, dinâmicas e processos
socioculturais a ela associados.
Na última década e pese embora as várias pesquisas realizadas sobre a temática, destaca-se o estudo dos custos económicos da violência
exercida contra as mulheres, por ser este o primeiro estudo realizado em Portugal com o objectivo de avaliar esses mesmos custos.
Os resultados que nos propomos apresentar nesta comunicação, correspondem à primeira investigação realizada em Portugal sobre os custos
económicos com a saúde resultantes das situações de violência doméstica. A análise da vitimação será contextualizada em função do espaço
e tempo em que ocorrem os actos, bem como das dinâmicas e processos socioculturais que estão subjacentes à produção e reprodução da
violência. Além das consequências ao nível da saúde física e psicológica em geral, o estudo permitiu ainda quantificar os custos económicos
relacionados com a saúde, tanto ao nível do Serviço Nacional de Saúde como de outros serviços.

1. Introdução
Na maioria dos países da Europa, a violência exercida contra as mulheres é hoje considerado como um problema
social, que, por lado, se situa no âmbito da violação dos direitos humanos e, por outro lado, é visto como um obstáculo ao
pleno desenvolvimento da democracia.
De facto, nas últimas décadas, esta temática tem vindo a ganhar relevância e a preocupar instâncias políticas e
sociais nacionais e internacionais, quer pela dimensão do problema (pelos dados dos últimos estudos de 2002 e 2003,
efectuados em Portugal, a violência contra as mulheres afecta cerca de 1/3 das mulheres com 18 ou mais anos), quer pela
responsabilidade social e política dos governos zelarem pelo bem-estar das suas sociedades.
De um ponto de vista sociológico, este tipo de violência tem recortes de desigualdade económica, política, social e
cultural que nos obriga a equacioná-la, também, como um fenómeno de desigualdade de género, historicamente construída e
culturalmente enraizada nos vários segmentos da sociedade portuguesa.
Historicamente, convém relembrar algumas leis e normas do Estado Novo, onde, por exemplo, a mulher tinha de
pedir autorização ao marido para se ausentar do país, ou era-lhe conferido o direito de abrir a sua correspondência. Se é certo
que, quer no plano legislativo, quer das condutas colectivas, as mudanças são consideráveis, muitos dos recortes das
desigualdades associadas aos papéis de género, bem como do modelo patriarcal que é ainda dominante em diversas
sociedades, ainda prevalecem.
De entre os vários tipos de violência exercida contra as mulheres, a que é praticada no espaço doméstico mantém-se
mais oculta, como diria Michelle Perrot, pelo que o seu combate é também mais difícil. As medidas legislativas tomadas
neste domínio desde 1991, até à última lei sobre a violência doméstica, de 2007, representam um esforço nesse domínio.
Contudo, só uma minoria de vítimas apresenta queixa às forças policias ou recorre aos tribunais, como os mostram os estudos
sobre a saúde e violência contra as mulheres1 e os resultados recentes sobre a violência de género.
Nos últimos anos, a nível nacional e internacional, os estudos efectuados sobre os custos da violência, segundo
critérios de natureza científica, têm contribuído decisivamente para trazer este tipo de violência para o primeiro plano das
agendas políticas dos estados e de instâncias internacionais, como o Conselho da Europa, União Europeia e Nações Unidas.
A Sociologia tem dado um contributo decisivo neste domínio, numa prospectiva de trabalho interdisciplinar com a
Psicologia, Medicina, Economia, Ciências da Educação e Direito. O objecto desta comunicação, e os resultados das
investigações empíricas que a suportam, reflectem todo esse percurso.

1
Lisboa, Manuel; Vicente, Luísa(2005). Saúde e Violência Contra as Mulheres. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde: 23.

161
2. Em torno dos conceitos de: violência e custos sociais e económicos resultantes da violência
O conceito de violência em geral, e em particular a que é praticada contra as mulheres, é objecto de diversas
definições: umas mais centradas nas classificações jurídicas; outras, veiculando a posição de organizações nacionais ou
internacionais envolvidas no seu combate; e, finalmente, as que procuram partir da perspectiva da vítima. Há ainda outras
concepções da violência socialmente construídas em contextos socioculturais particulares que, muitas vezes, legitimam
implícita ou explicitamente a acção do agressor.
Todavia, gostaríamos de deixar aqui três ideias centrais para a explicitação do conceito de violência: na primeira é
que tal conceito remete para a ideia de representação social, nos termos definidos por Jodelet (1989) e por Lourenço e
Lisboa (1992); a segunda é que a violência não constitui uma totalidade homogénea, mas expressa-se sob formas diversas, de
maior visibilidade ao nível físico, sexual, psicológico, de discriminação sociocultural, ou, como surge neste estudo, de um
certo mal-estar social, insegurança e incerteza no futuro que as vítimas explicitam por constrangimento/violência social;
terceiro, um acto considerado violento é sempre representado como uma transgressão, constituindo, pelo menos para quem o
representa, um poder arbitrário não aceite2.
Mesmo nos actos que são criminalizados, como acontece actualmente com os que se inscrevem na violência
doméstica, sob a forma de crime público, é importante distinguir os conceitos de crime e violência. Crimes são os actos que a
lei rotula como tal. Violência corresponde à representação que os actores sociais, individuais ou colectivos, fazem de
determinados actos, estejam ou não identificados na lei como crimes. Nesse sentido, o conceito de violência está mais
próximo dos actores sociais individuais, particularmente das vítimas. Daí resulta, também, a sua importância para o estudo
dos custos sociais e económicos dos actos em que as mulheres são vítimas.
Por outro lado, o conceito de violência é dinâmico, reportando-se genericamente a uma transgressão das normas e
dos valores socialmente instituídos em cada momento. A sua qualificação tem sido assumida em função de normas que
variam consoante os contextos e podem não ser partilhadas por todos, pelo que os mesmos factos não são sempre apreendidos
nem julgados segundo os mesmos critérios, assistindo-se a uma variação temporal e espacial do seu significado3.
Falar de violência contra as mulheres não é apenas abordar as consequências ao nível físico, psicológico ou de
qualquer outro tipo. Quando estudamos o fenómeno mais de perto observamos que a violência exercida contra as mulheres
tem custos de vários tipos: custos que afectam individualmente a vítima, mas custos, também, em relação aos que lhe estão
mais próximos - por exemplo os filhos; custos que incidem directamente sobre as pessoas envolvidas, mas também custos
que são pagos por toda a sociedade, nomeadamente através dos impostos – casas abrigo, polícia, magistrados, técnicos de
apoio social; custos que têm uma expressão económica, mas custos, também, difíceis de quantificar - psicológicos, sociais e
culturais; custos visíveis a curto prazo, normalmente associados aos actos de violência, mas custos, também, que se
prolongam ao longo da vida – como o stress pós traumático - ou mesmo que afectam as gerações futuras – através dos filhos.
Há igualmente custos que, pela sua natureza, num primeiro momento, só se deixam observar com instrumentos qualitativos.
Por exemplo, os aspectos que se relacionam com as dimensões emocionais e afectivas, cujas consequências podem ter
expressão na acção pessoal quotidiana, ou em acções futuras 4.
O que habitualmente costuma designar-se por avaliação quantitativa dos custos diz respeito só a uma das suas
dimensões: a económica. De facto, alguns desses custos podem ser objecto de cálculo macroeconómico. É o caso dos que se
expressam por faltas ao trabalho, perdas salariais devido à não progressão na carreira e a despedimentos, tempo e dinheiro
gastos com divórcios, separações conjugais, médicos, medicamentos e meios suplementares de diagnóstico, idas aos
Hospitais e a Centros de Saúde, internamentos, incapacidades e outros prejuízos económicos resultantes do insucesso escolar
das vítimas e dos filhos. Igualmente são de assinalar outros custos relativos a gastos orçamentais de organizações públicas e
privadas e de instituições do Estado; estes particularmente dependentes da produção de estatísticas oficiais, muitas vezes
insuficientes e, portanto, difíceis de avaliar5.
Em Portugal, o primeiro estudo é feito em 2002, por solicitação da CIDM, o segundo em 2004, com a Direcção
Geral de Saúde e, mais recentemente, uma nova investigação especificamente para avaliar os “custos económicos com a
saúde”, também em colaboração com a Direcção Geral da Saúde. Todas estas pesquisas sociológicas são efectuadas pela
equipa da Universidade Nova de Lisboa, onde se incluem os autores deste estudo.

3. Custos ao nível das relações interpessoais e das actividades profissionais


No primeiro estudo efectuado em Portugal em 2003, sobre os custos sociais resultantes da violência exercida contra
as mulheres, verificou-se que um dos espaços sociais mais afectados são os núcleos afectivamente mais próximos das
vítimas, como sejam o da família e o dos amigos.
Por exemplo, quando se comparam as vítimas com as não-vítimas, verifica-se que as primeiras têm vezes maior
probabilidade de se separarem de uma pessoa que lhes é importante.

2
Lisboa, Manuel (coord.) (2006). Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as Mulheres. Lisboa: Colibri: 16.
3
Lourenço, Nelson; Lisboa, Manuel; Pais, Elza (1997). Violência Contra as Mulheres. Lisboa: CIDM.
4
Lisboa, Manuel (coord.) (2006). Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as Mulheres. Lisboa: Colibri: 19.
5
Ibidem.

162
Por outro lado, a percepção das mulheres inquiridas mostra que cerca de metade das vítimas estabelece uma relação
de causalidade entre a violência e os efeitos negativos junto da família e dos amigos (47,3%). Sem dúvida que os membros da
família se destacam com 40,2 % de casos, sendo na sua maioria filhos (58,8%)6.
Desta forma, também os filhos são, talvez, a seguir às próprias mulheres, as maiores vítimas dos actos de violência.
Os resultados obtidos no mesmo estudo mostram que cerca de um quinto das mulheres tiveram filhos doentes durante os doze
meses anteriores à realização do inquérito (21,2%). Igualmente se verifica que a probabilidade de isso acontecer com as
vítimas é 50% maior do que nas não-vítimas. Aliás, numa parte significativa dos casos são as próprias mulheres vítimas a
estabelecer esse nexo de causalidade7.
Mas, a probabilidade de ter filhos doentes aumenta ainda mais, para cerca do dobro, quando se analisam só os actos
de violência que ocorrem nos últimos doze meses (35,5% e 18,7%); o que é compreensível, já que a proximidade temporal da
doença permitirá também que mais facilmente ela seja relembrada8.
Os actos de violência têm igualmente repercussões ao nível da actividade profissional. Assim, e mesmo ao nível
mais global das percepções, 15,2% das mulheres vítimas afirma claramente que a violência que sofreram tem, ou teve,
manifestas consequências para a sua vida profissional futura.
Os resultados, do mesmo estudo mostram que só 15,6% das inquiridas referem ter tido dificuldades. Destas, 66,2%
dizem respeito a casos em que tal aconteceu mais de uma vez, mas só uma pequena percentagem (9%) admite haver uma
relação de causalidade com a violência. Todavia, quando se analisam as situações de vitimação nos últimos doze meses
verifica-se que nas vítimas há uma probabilidade dupla de tal acontecer face às não-vítimas9..
Mesmo depois de inseridas no mercado de trabalho e quando trabalham por conta de outrem, só uma percentagem
reduzida diz que teve dificuldades em ser promovida (4,7%). Todavia, a probabilidade de isso acontecer entre as vítimas é
cerca do dobro das não-vítimas10. Igualmente, as vítimas têm duas vezes mais probabilidade de despedimento do que as não-
vítimas.
Numa visão mais global, e ao analisarmos as principais dimensões dos custos sociais, verificamos que as vítimas
têm uma maior probabilidade de sofrerem consequências do que as não vítimas: três vezes mais em termos familiares e 54%
ao nível profissional.11
Também o percurso escolar das vítimas parece ser afectado directamente pelos actos de violência dos quais as
mulheres são vítimas. A este propósito podemos referir que, a percepção de insucesso escolar é bastante mais significativa
nas mulheres vítimas de violência12.
Também o absentismo escolar aparece directamente relacionado com os actos de violência: de entre as mulheres
que admitem o absentismo escolar, há uma clara associação às situações de violência: a probabilidade das mulheres vítimas
faltarem é cerca de 72%, no primeiro caso, e de 70%, no segundo, quando comparadas com as não vítimas13.
O percurso escolar dos filhos das mulheres vítimas é, também, directamente afectado pelas situações de violência.
Os resultados do estudo que temos estado a citar mostram algumas dessas dimensões. Assim, no caso das mulheres que têm
filhos a frequentar a escola, enquanto apenas 0,6% das mulheres não vítimas considera que o ambiente de trabalho em casa
não é bom, esta percentagem sobe para 13,6% no caso das mulheres que foram vítimas de violência. Estamos perante um dos
resultados mais significativos desta dimensão, marcando uma situação que é, potencialmente, geradora de factores de mal-
estar e de insucesso escolar14.
À semelhança do que já se tinha verificado para os filhos que ainda frequentam a escola, também em relação aos
que já não a frequentam é notório que os filhos das vítimas têm uma maior probabilidade de ter um mau ambiente de trabalho
em casa. Neste caso, a diferença é ainda mais significativa: 0,8% para as mulheres que não foram vítimas contra 28,5% para
as mulheres que foram vítimas de violência. Nota-se ainda que tal ambiente tende a piorar nas situações em que há vários
tipos de violência15.

6
Lisboa, Manuel, «Custos sociais: família, amigos e actividade profissional», in Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as
Mulheres (2006), Lisboa, Manuel (Coord). Lisboa: Colibri, pp: 69 .
7
Ibidem: 71.
8
Ibidem: 71.
9
Ibidem: 73.
10
Ibidem: 73.
11
Lisboa, Manuel e Roque, Ana, «A violência no plural: olhar os números e procurar as pessoas», in Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da
Violência Contra as Mulheres (2006), Lisboa, Manuel (Coord). Lisboa: Colibri, pp: 135 .
12
Nóvoa, António e Silva, Sofia, «Custos ao nível da Educação», in Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as Mulheres
(2006), Lisboa, Manuel (Coord). Lisboa: Colibri, pp: 113.
13
Ibidem, pp: 113.
14
Ibidem, pp: 116.
15
Ibidem, pp 116.

163
4. Custos com a saúde física e psicológica
Passando à análise dos custos da violência ao nível da saúde física e psicológica, os resultados dos estudos
efectuados em 2003, no inquérito nacional e no inquérito aos Centros de Saúde16 17, mostram claramente a amplitude e
intensidade de tais custos.
Começando pela saúde física, e comparando as vítimas com as não vítimas, constata-se que as primeiras têm uma
maior probabilidade de os seguintes problemas com a saúde18: equimoses/hematomas (82%), feridas (100%), Coma (94%),
hemorragias (94%) ….
 Intoxicações (79%)
 Lesões genitais (73%)
 Obesidade (57%)
 Asma (46%)
 Queimaduras (46%)
 Palpitações (44%)
 Tremores (43%)
 Colite (42%)
 Cefaleias (40%)
 Vómitos frequentes (40%)
 Dermatite (37%)
 Úlcera gastro-duodenal (37%)
 Dificuldades respiratórias (37%)
 Sudação (36%)
 Hipertensão arterial (26%)

No que se refere aos custos psicológicos da violência, os resultados obtidos revelam também um conjunto amplo de
sintomas, doenças e lesões que estão estatisticamente associados à vitimação19. Vejamos só os indicadores de saúde
psicológica mais significativos quanto à probabilidade de ocorrerem mais nas vítimas: consulta de psicólogo/psiquiatra
(200%), sentir desespero – sempre (556%), sentir vazio – sempre (479%) …..
 Desânimo – sempre (368%)
 Sentimento de culpa – sempre (355%)
 Tristeza e pesar – sempre (344%)
 Prazer e elegria –nunca (211%)
 Auto- desvalorização – sempre (128%)
 Ansiedade – sempre (112%)
 Falta de esperança (61%)
 Solidão (58%)
 Alucinações audiovisuais (117%)
 Sensação de desmaio (200%)
 Ideação suicida (300%)
 Tentativas de suicídio (600%)

Estes valores têm uma expressão equivalente no inquérito realizado um ano antes em todo Continente , e
estatisticamente significativo das mulheres com 18 ou mais anos. Os resultados obtidos nos dois inquéritos são uma prova
inequívoca dos custos com a saúde resultantes da violência20.

5. O que se pode medir


Centrando-nos nos custos a nível económico, a estimativa obtida no estudo efectuados nos Centros de Saúde, em
2007, aponta para que o custo médio com a saúde por mulher vítima de violência doméstica é de cerca de 140€ por ano21,

16
Lisboa, Manuel; Carmo, Isabel; Vicente, Luísa; Nóvoa, António; Barros, Pedro P.; Silva, Sofia Marques da; Roque, Ana; Amândio, Sofia (2006). Prevenir ou
Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as Mulheres. Lisboa: Colibri.
17
Lisboa, Manuel; Vicente, Luísa e Barroso, Zélia (2005). Saúde e Violência Contra as Mulheres. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde.
18
Ibidem.
19
Ibidem.
20
Vicente, Luísa, «Custos psicológicos nas mulheres vítimas de violência», in Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as
Mulheres (2006), Lisboa, Manuel (Coord). Lisboa: Colibri, pp: 95-109.
21
Do inquérito realizado às utilizadoras de Centros de Saúde, foram identificados cinco grupos de custos: consultas, tratamentos médicos e terapêuticas, exames
de diagnóstico, medicamentos e custos com transporte. Estes custos foram calculados quer na óptica do SNS, quer na óptica da esfera privada das mulheres
inquiridas. Os custos são obtidos, para cada mulher inquirida, pelo produto dos actos médicos ou de diagnóstico realizado com o respectivo “preço”, para custos
Esta nota continua na página seguinte

164
sendo que desse valor 127€ /ano são suportados pelo Serviço Nacional de Saúde (91%), em que 55% correspondem a
consultas e 30% a medicamentos22.
Em termos globais, os custos económicos suportados directamente pelas mulheres vítima de violência doméstica é
68% devida ao consumo de medicamentos23.
Sendo importante revelar os custos económicos das situações de violência, é também importante realçar que eles
não são meramente económicos, tal como já foi a cima dito. Eles têm igualmente uma expressão na saúda psicológica e física
das mulheres, nas relações familiares e de amizade, no trabalho, etc.

Conclusão
Os resultados aqui apresentados mostram de forma inequívoca, pela primeira vez em Portugal, a amplitude e
intensidade dos custos da violência exercida contra as mulheres, bem como das implicações sociais e individuais daí
resultantes. Quebra das redes sociais e interpessoais, absentismo escolar, dificuldades em promoções, dificuldades em
arranjar emprego, despedimentos, assim como custos variados com a saúde física e psicológica; alguns dos quais pondo em
risco a vida das vítimas.
Todavia, a violência praticada tem também implicações futuras através das novas gerações, quer quando os filhos
são vítimas directas, como o mostra um estudo realizado nos Institutos de Medicina Legal 24, quer quando eles assistem à
agressão das mães e as implicações psicossociais expressam-se no seu desenvolvimento, incluindo o escolar.
De facto, uma das dimensões da reprodução social do fenómeno passa exactamente pela via dos filhos.

Bibliografia
JODELET, Denise (dir) (1989). Les Représentations Sociales. Paris: Presses Universitaires de France;
LISBOA, Manuel; CARMO, Isabel; VICENTE, Luísa; NÓVOA, António; BARROS, Pedro P.; SILVA, Sofia Marques da;
ROQUE, Ana; AMÂNDIO, Sofia (2006). Prevenir ou Remediar - Os Custos Sociais e Económicos da Violência Contra as
Mulheres. Lisboa: Colibri;
LISBOA, Manuel; VICENTE, Luísa; BARROSO, Zélia (2005). Saúde e Violência Contra as Mulheres. Lisboa: Direcção-
Geral da Saúde;
LISBOA, Manuel; VICENTE, Luísa; CARMO, Isabel; NÓVOA, António (2003). Os Custos Sociais e Económicos da
Violência Contra as Mulheres. Lisboa: CIDM;
LOURENÇO, Nelson; LISBOA, Manuel (1993). Representações da Violência. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários.
LISBOA, Manuel; BARROSO, Zélia; MARTELEIRA, Joana (2003). O Contexto Social da Violência Contra as Mulheres
Detectada nos Institutos de Medicina Legal. Lisboa: CIDM.

referentes aos últimos 12 meses. Barros, PP; Lisboa, Manuel Coord. (2008), Relatório Final Os Custos económicos da Prestação de Cuidados de Saúde às
vítimas de Violência doméstica: 67.
22
Barros, PP; Lisboa, Manuel Coord. (2008), Relatório Final - Os Custos económicos da Prestação de Cuidados de Saúde às vítimas de Violência doméstica:
103.
23
Ibidem: 103.
24
LISBOA, Manuel; BARROSO, Zélia; MARTELEIRA, Joana (2003). O Contexto Social da Violência Contra as Mulheres Detectada nos Institutos de
Medicina Legal. Lisboa: CIDM. Pp: 18.

165
Gênero e adoecer feminino: olhares sobre o corpo, a saúde e a doença
Nadia Regina Barros Lima
Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Resumo: Com este trabalho, buscamos tecer uma reflexão sobre o adoecer feminino a partir de um olhar de gênero. Tomando inicialmente a
questão do adoecer sob o olhar bio-psíquico, à luz dos saberes médico e psicanalítico, que tomam, respectivamente, o corpo biológico e o
corpo erógeno como seus objetos de análise, chegamos ao adoecer feminino. Este, à luz do olhar de gênero, é investigado partindo da
construção subjetiva feminina, do corpo bio-político socialmente construído e das patologias femininas, como “patologias de protesto”.

Introdução
O fenômeno do adoecer é uma condição humana tão antiga quanto a presença dos humanos na face da terra e esse
dado aponta para o seu sentido genérico; o sentido particular do adoecer se evidencia no modo, entre outras modalidades,
como se manifesta em determinados grupos sociais, como o adoecer em mulheres. Nesse trabalho, buscamos desenvolver
uma reflexão sobre essa particularidade à luz do olhar de gênero: as implicações de pertencer ao gênero feminino e as
doenças em mulheres. A questão da posição de sujeito e a subjetividade estão implicadas nesse pressuposto, em que
entendemos que na relação entre homens e mulheres, a constituição de sujeito assume formas diversas, em função das
diferentes posições que ocupam na sociedade capitalista e patriarcal. Apreender a constituição da subjetividade feminina,
bem como o modo de adoecer das mulheres, remete para as suas experiências existenciais concretas do “ser mulher”, numa
relação intrínseca com o masculino, com o mundo e consigo mesmas.É nessa relação com o outro, em condições histórico-
discursivas, que as subjetividades são constituídas em suas particularidades, bem como os modos de adoecer: doenças de
mulheres
Entendemos que, como um acontecimento complexus1, o adoecer implica num olhar analítico dirigido para a
unidade soma-psyché, o que justifica uma reflexão de natureza transdisciplinar, que contemple campos de saberes
disciplinares nas suas especificidades, mas dialogando entre si. Na análise de objetos investigativos, leituras múltiplas são
possíveis de realização, dependendo dos fios constituintes que sejam puxados da ampla teia de campos de saberes; em nossa
reflexão, puxamos o fio-matricial dos Estudos de gênero, como aquele que costura a rede discursiva do adoecer feminino
produzindo sentidos no adoecer em mulheres; dialogando com os Estudos de gênero, os saberes médico e psicanalítico
constituem os outros fios da teia reflexiva, como olhares múltiplos capazes de capazes de apreender o adoecer na sua
dimensão complexa bio-psico-social.
Tendo em vista delinear, na questão do adoecer, a diversidade de olhares sobre o sentido da saúde/doença,
traçaremos inicialmente uma breve trajetória panorâmica dessa questão, em seus aspectos básicos; em seguida nos deteremos
na discussão em torno do corpo biológico e erógeno, a partir dos olhares médico e psicanalítico. Enfim, o adoecer feminino
sob o olhar de gênero, a relação corpo e poder – o bio-poder – e as patologias ditas femininas em relação com a feminilidade:
as “patologias de protesto”.

1. O fenômeno do adoecer, um breve histórico: da unidade à fragmentação


É mais importante conhecer a pessoa que tem a doença do que conhecer a doença que a pessoa tem.
(Hipócrates, 460 a.C.)

Tão antigo quanto a existência humana é o fenômeno do adoecer e, de acordo com o contexto histórico, as razões
atribuídas a seu aparecimento, variam no tempo e no espaço; por outro lado, se os humanos só se colocam questões que têm
condições de responder, as respostas às doenças vão variar de acordo com a inserção sócio-cultural em que se encontram,
seja do ponto de vista das condições existenciais objetivas, seja das aspirações, desejos e visão de mundo, subjetivamente
falando. É no sentido de apreender como esse fenômeno vem se pondo através dos tempos, que buscamos traçar uma
panorâmica histórica, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, Moderna e desembocando na Contemporânea. Nesse
percurso, nos apoiamos em Volich, 2000; Cairus e Ribeiro Jr., 2005; Jaeger,1986.
Ao nos reportarmos às brumas do tempo, em busca dos primeiros passos em torno da construção de saberes sobre a
saúde e a doença, vamos encontrar na Antiguidade, quando o sagrado imperava com toda a sua pujança, o adoecer como
resultante de forças do mal; para combatê-lo, se apelava para o poder sobrenatural através de figuras religiosas, atuando
através de rituais mágicos. Além de se associar às forças do mal, outro aspecto básico já estava presente nessa época,
relacionado ao adoecer: tratava-se da existência de uma visão integrada sobre saúde/doença, em que corpo e mente eram
vistos como entidades intimamente relacionadas. Dados históricos dão conta de destacáveis figuras humanas que se
preocupavam, já nos tempos antigos, com essa visão integrada da saúde/doença; entre tantos, um deles porém, pelo lugar

1
O sentido de complexus aponta para “o que é tecido junto”, conforme a concepção do Paradigma da Complexidade, de Edgar Morin (1996).

166
extraordinário que ocupa na história da Medicina, merece destaque especial: trata-se de Hipócrates, nascido na pequena ilha
de Cos, onde viveu e ensinou na mesma época de Sócrates, por volta de 460 A.C. e que, a partir da observação das doenças,
vai dar um passo adiante, em relação ao que até então vigorava sobre o adoecer.O período florescente dessa escola médica
começa em meados do séc.V e está associado ao nome de seu mestre Hipócrates, a quem Platão, já nos princípios do séc. IV,
o vê como a personificação da Medicina, bem como Aristóteles que, também reconhecendo esse lugar a ele atribuído,
invocava-o como o protótipo do grande médico.
Sob a influência da filosofia jônica da natureza, a Medicina grega se tornou uma arte consistente e metódica,
fundamentando sua prática em procedimentos metodológicos fincados na observação; de acordo com Jaeger (1986), sem a
influência jônica, jamais teria essa medicina conseguido chegar ao estatuto de ciência, influência essa resultante de sua
inserção na cultura grega.
No período medieval, com a hegemonia da doutrina aristotélico – tomista (síntese da filosofia de Aristóteles e
Teologia ética cristã), predominava uma visão de mundo ancorada na natureza orgânica, em que a terra era concebida como
uma mãe nutriente; essa concepção, obviamente, vai repercutir na explicação do adoecer. Socialmente, as relações humanas,
contribuíam para esse ideário vigente: vivendo em comunidades pequenas, havia entre as pessoas uma interdependência de
fenômenos espirituais e materiais, bem como uma subordinação à comunidade, sob a regência de duas autoridades máximas:
Aristóteles (384-322 a.C.) e a Igreja. São Tomás de Aquino (1225-1274) era o mentor máximo da sistematização ideológica
que explicava a ordem do kosmos e da sociedade, através de uma ciência, cuja natureza tinha como base a razão e a fé e,
como finalidade precípua, compreender o significado das coisas em torno dos fenômenos: Deus, alma humana e ética. O
universo, portanto, era visto a partir de um olhar orgânico, vivo e espiritual, regido pela égide da sacralização, seja do mundo
natural, seja do mundo social. E o feminino, como era apreendido nessa época?
Se o discurso religioso era o hegemônico e a moral cristã associava prazer e sexo à pecado, eram as mulheres –
através de seus corpos e artimanhas sedutoras – associadas ao veículo que conduzia à perdição, seja do corpo, seja da alma. É
disso que fala Teresa Joaquim, quando trata do discurso religioso em relação ao corpo, especificamente em relação ao corpo
feminino, cuja visão é fortemente trabalhada pela “(. . .) idéia de pecado, de impureza e de doença,tornando o encontro sexual
um momento de tensão e de culpabilidade (....) o corpo, tanto do ponto de vista médico como ético, era visto na oposição, na
distância enorme entre carne e espírito.”(1997, p.135).
A partir do século XVI, culminando no século XVIII, esse discurso religioso vai sofrer interferência do discurso
científico; tanto a visão orgânica em comunhão com a natureza, como a visão de mundo, vão começar a mudar, passando por
reviravoltas sem precedentes na história humana. Se antes, fora o sagrado a explicação central para dar conta da ordem do
mundo – seja do natural, seja do social – agora, as descobertas e transformações técnico-científicas emergentes, vão começar
a colocar em cheque verdades até então intocadas. Entre essas, a concepção geocêntrica da terra defendida por Ptolomeu e
pela Igreja que, com a descoberta de Nicolau Copérnico (1473-1543), passa a ser questionada e substituída pela
heliocêntrica; Kepler (1571-1630) e Galileu (1564-1642) vêm dar continuidade ao arranco dessa largada inicial e, no campo
filosófico, duas figuras de proa entram em cena: Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650). Ambos iriam
fundamentar os novos rumos de explicação de mundo, sistematizando novos métodos de investigação que viriam servir de
bússola para descobertas futuras, seja na ciência física, seja na ciência social, com sérias implicações não só para a visão
sobre o adoecer, mas também para o lugar das mulheres na sociedade. Nesse aspecto, vale ressaltar as implicações do olhar
da ciência moderna em relação à natureza e à condição das mulheres pois a partir da Revolução Cientifica, o ethos de
respeito à natureza deixou de vigorar: se antes se falava de terra-mãe, agora se fala de mundo-máquina. Esta vai ser
devidamente sedimentada por René Descartes, fundador da Filosofia Moderna e que, através de seu método analítico de
raciocínio, vai colocar a última pá de cal naquela visão harmônica de natureza, inaugurando um novo tempo, no campo do
saber: natureza agora é máquina e o objetivo da ciência é o domínio e o controle da natureza, tendo em vista a produção.
Com o Cogito, ergo sum são alicerçadas as bases intelectuais desse novo mundo, dessa nova visão de mundo que tinha na
análise – decomposição, fragmentação – o caminho para se chegar à verdade abstrata na ciência, tendo em vista a explicação
causal (causa-efeito).
No interior da própria ciência porém (fazendo jus ao movimento dialético sempre tão presente na construção do
conhecimento), as reações começam a emergir; e, em se tratando do fenômeno do adoecer, o movimento de resistência se
dirigia à busca de uma visão de totalidade, no sentido de resgatar a visão da unidade hipocrática do corpo humano como “um
todo cujas partes se interpenetram (....) e possui um elemento interior de coesão, a alma.”(Kamieniecki, 1994, p.7); essa visão
de unidade, no percurso da história, foi se perdendo, pela implementação de uma construção epistemológica fundamentada,
inicialmente, na divisão sujeito versus objeto mas, que depois, se disseminou para outros campos de realidade.A separação
corpo versus mente foi apenas um desses campos, em que o corpo passou a corresponder a um conjunto de peças, a uma
máquina perfeita, sujeita às mesmas leis das ciências ditas positivas; a doença, por sua vez, seria resultante do mau
funcionamento desse mecanismo, cujas peças podem ser substituídas e/ou trocadas e, o ser humano, por sua vez, acaba por
ser reduzido a um corpo – o corpo humano – sujeito às leis da física e da química (visão biofísicoquímica). Após traçar
algumas das coordenadas teóricas básicas sobre a concepção do adoecer no seu sentido amplo através da História, veremos a
seguir, particularmente, como são apreendidos o corpo, a saúde e a doença, a partir de campos de saberes específicos: o
médico e o psicanalítico.

167
1.1. O saber médico e o corpo como organismo: a dimensão anatômica e o res extensa cartesiano
(. . .) na medida que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na
medida que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que
eu sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que .ela pode ser ou existir sem ele. (Descartes,
1641/1973, p.142.)

Como estamos constatando no decorrer de nossa reflexão, o saber médico moderno alicerça suas bases teórico-
práticas em premissas cartesianas e, a partir destas, constrói sua concepção sobre o adoecer e o corporal. Em “Meditações”
(1973 )2, o corpo para Descartes é identificado como res extensa, ou seja, aparece como um recorte da substância extensa e
dicotomicamente separada da alma; apoiando-se nessa dimensão de corpo (res extensa cartesiano) e voltado precipuamente
para o biológico universal (princípio da universalidade cartesiana), o saber médico restringe seu campo de interesse ao
organismo e, quando se trata do adoecer, às regularidades orgânicas da afecção, o que em termos de procedimento, vai dar
lugar aos diagnóstico, estudo e tratamento.Desde que o programa da clínica médica se fundamenta em premissas cartesianas
e positivistas, o conhecimento racional é sempre tomado como verdade (formal) – biológica, genética, fisiológica –,
referenciado ao real do corpo (formal) e, como tal, não se refere à mente.
Se para o modelo bio-médico, o corpo humano é visto como uma máquina, as doenças são resultantes do mau
funcionamento das peças desse maquinário biológico, cabendo ao médico o papel de desenguiçar esse mecanismo. Desde
Descartes, a maior mudança ocorrida na Medicina Ocidental se deve, por um lado à divisão corpo versus mente e, por outro,
à profissionalização da Medicina. Os progressos da Biologia, durante o século XIX, foram acompanhados pelo avanço da
tecnologia médica, à medida que eram inventados novos instrumentos de diagnóstico – estetoscópio, aparelho de tomada de
pressão sanguínea, além de uma diversidade de tecnologia cirúrgica cada vez mais sofisticada; simultaneamente a esse
processo, a atenção de profissionais da área médica, pouco a pouco, vai se afastando cada vez mais do doente, para se deter,
cada vez mais, na doença. No bojo desse processo, a ocorrência cada vez maior da classificação das doenças estudadas em
hospitais: antes tratadas nas medievais Casas de Misericórdia, e agora o são em Centros de diagnósticos, terapia e ensino.
Foi dessa forma que teve início o processo de especialização que, no século XX, atingiu o apogeu, não só na
Medicina, mas também nas Universidades em geral, com a contínua e constante proliferação de disciplinas acadêmicas
(funcionando isoladamente); na indústria, com o galopante processo de especialização e produção em série e na sociedade em
geral, com a acelerada divisão social do trabalho se disseminando em todas as áreas. O processo de especialização portanto,
estava posto e inserido num contexto maior, desde a implantação do modo capitalista de produção que, apesar de inicialmente
estar centrado no processo industrial, aos poucos, tal qual uma mancha de óleo, vai se espraiando e dominando todas as
áreas de convivência humana. Neste contexto, a prática médica já era questionada pelos movimentos que resistiam à
separação corpo versus mente, pela tendência ao afastamento do espírito hipocrático rumo ao modelo médico “especialista”;
no entanto, o paradigma cartesiano seguia hegemônico.
É nesse clima de resistência que, no século XVIII, em contraponto ao modelo biomédico cartesiano, contra-
movimentos entram em cena, questionando o conhecimento médico disponível, muitas vezes insuficiente para elaboração de
uma “nosologia consistente, sendo as doenças descritas apenas como montagem de sintomas.”(Volich, R.M.,2000,p.40).
Para fazer frente à lógica bio-médica vigente, os contra-movimentos vão se apoiar em Kant (1724-1804), que coloca o sujeito
como centro da teoria do conhecimento e defende que o conhecimento do homem comporta duas partes: a fisiológica (o
Homem feito pela Natureza) e a pragmática (o que Homem faz dele mesmo). Comentando esse pensamento, Kamieniecki
cita Kant: “Corpo e alma compartilham o bem e o mal que lhe acontece. O espírito é incapaz de funcionar quando o corpo
está cansado, e uma dedicação exclusiva ao espírito destrói o corpo, incapaz de regenerar e de fazer o trabalho de reparação.
(1994, p.21)
No âmago dessa argumentação, se apreende a idéia de unidade e visão integrada do organismo e do processo do
adoecer, base para a emergência de contra-movimentos3 à visão cartesiana, que apreende o corpo tão-somente na sua
dimensão orgânica.Já no século XX, também se colocando na contramão da visão bio-médica cartesiana,uma nova leitura de
corpo e adoecer vai emergir; nesta, além da articulação soma-psyché , um novo ingrediente vai ser acrescentado articulação e
concepção de corpo: a dimensão bio-política. Trata-se da leitura de Foucault, quando argumenta que o corpo uma realidade
culturalmente construída, permeada por relações de poder e arranhado pela História; é dessa visão que vai emergir a noção de
“Cultura Somática”, que se fundamenta no pressuposto da desnaturalização do corporal: corpo como uma construção sócio-
cultural-política. Nessa linha de raciocínio, a concepção de saúde/doença por sua vez, também é marcada pela cultura; alem
lado do componente somático, se acrescenta o político (bio-poder), o sentir (sentir-se sadio ou doente), o aprender (a
sensação doentia em si é um comportamento aprendido e, como tal, varia de cultura para cultura, de acordo com a “cultura
somática” particularmente circundante).
Detentora de uma posição ímpar de prestígio e autoridade, a Medicina, através da história, sempre gozou de poder,
enquanto ocupante de um lugar para onde se dirige sempre uma demanda de saber. Desde fins do século XIX porém, esse
lugar, enquanto marcado pelo reducionismo biológico vem sendo questionado diante de constantes desafios advindos do

2
Também no Discurso do Método, Descartes afirma que “(. . .) não sendo o corpo senão extensão, a extensão que separasse duas partes de matéria seria, ela
própria, um corpo” (1973, p.56).
3
Entre alguns dos contra-movimentos destacamos o Vitalismo, a Homeopatia e a Psicossomática.

168
interior do próprio campo científico; entre estes, os contra-movimentos que questionam princípios e idéias que fragmentam o
conhecimento e a concepção de corpo, donde a emergência de passos inovadores no interior do próprio saber médico.É nesse
sentido que destacamos um tipo de escuta médica que foi para além do anatômico; perscrutando para além das queixas do
corpo biológico, outras queixas, que sinalizavam para um outro corpo de natureza imaginário-simbólica e potencializador de
paralizações e conversões histéricas, esse saber médico escutou para além do res extensa.Foi graças a essa escuta – que soube
escutar/reconhecer sentido na aparente fala “sem-sentido”em vozes emergentes e diferentes – que nasceu um novo campo de
saber: a Psicanálise.

1.3. O saber psicanalítico e o corpo erógeno: de como o organismo se transforma em corpo


(. . .) a “complacência somática” que proporciona aos processos psíquicos inconscientes uma saída corporal. (Freud,
S.,1905[1901]/1980, p.46)

Diante do fenômeno do adoecer, além do olhar médico, um outro olhar: o olhar psicanalítico. Foi esse outro olhar
que um médico vienense veio a construir, a partir do nascimento da Psicanálise; debruçado diante do enigma que mobilizava
as manifestações somáticas da “conversão histérica”, o médico neurologista Sigmund Freud (1856-1939) foi um dos
questionadores de sua época, a perscrutar o corpo a partir de sua natureza anatômico-imaginária. Atento às manifestações
orgânicas e, ao mesmo tempo, insatisfeito com a etiologia médica, por entender que não estava dando conta daquela
manifestação somática, Freud rompe com a visão vigente da época; com essa ruptura, vai além do corpo biológico, escutando
a apreendendo o corpo erógeno, investido/ movido pela libido (energia da pulsão sexual). Esse corpo, simbolicamente,
sinalizava para algo novo a ser investigado: a manifestação era no corpo, mas sua etiologia estava para além dele.
Na questão do adoecer, essa nova visão de corpo vai revolucionar o modelo médico de estudos sobre Histeria e seus
pilares teóricos se fundamentavam na concepção de uma anatomia imaginária e na função da sexualidade, como constituinte
do aparelho psíquico. De acordo com essa construção teórica, a fronteira entre o normal e o patológico se torna muito tênue,
donde se poder falar tanto de uma psicopatologia da vida cotidiana (sonhos, atos falhos, chistes), tanto das psicopatologias
propriamente ditas (neurose, psicose, perversão). Na base etiológica dessas psicopatologias, a sexualidade representa o motor
primordial que move o processo de constituição do aparelho psíquico e, na relação entre este e o somático, a hipótese
freudiana gira em torno da existência de um conflito no âmbito psíquico, que se manifesta na esfera do somático; diante deste
conflito estabelecido desde a infância – força libidinal, controle da censura, resultando no recalque –, o sintoma, enquanto
expressão de um conflito inconsciente, tem uma função simbólica. A dinâmica psico-sexual vai ser estabelecida por uma
situação de conflito, quando entram em jogo o afeto e a representação; o acesso à consciência é determinado pela quantidade
de afeto ligada a uma representação. Quando ao invés dessa ligação há separação, em decorrência de um conflito entre
representação e censura, ocorre o recalque: este pressiona a representação em direção ao inconsciente4.
Assim sendo, os sintomas corporais manifestos na conversão histérica, por exemplo, são uma transposição do
conflito psíquico para o campo somático, isto é, expressão simbólica e substitutiva do conflito recalcado. Porém, nem toda
manifestação corporal segue esse modelo, com a atuação desses elementos (caráter simbólico do sintoma em decorrência de
um conflito originado na infância, proibição na consciência e recalque), pois há outras manifestações em que o caráter
simbólico, a expressão infantil e os mecanismos conversivos não estão implicados. É o caso, por exemplo, das neuroses
atuais, definida como manifestações de ordem somática ligada a fatores da vida sexual contemporâneos. Desde 18985, Freud
já observava estas manifestações em pacientes que apreciam em sua clínica e, paralelamente ao conceito psiconeuroses,
formulava o de neuroses atuais que, clinicamente, estava ligada a formas de atividade sexual desencadeadoras de reações de
angústia, neurastenia e, depois ele acrescentou hipocondria.Apesar de traços específicos que a diferem das psiconeuroses,
Freud as percebia articuladas pois, conforme ele “a etiologia da neuroses atual tornou-se uma etiologia auxiliar das
psiconeuroses.” (1898, p.265).
Nos primórdios do nascimento da Psicanálise, a posição desta em relação à Medicina era de extraterritorialidade,
um lugar marginal, em que acolhe o recém-nascido campo do saber, a partir de uma relação externa. Não por acaso, nasce
exatamente como um ato de subversão ao saber médico, arrastado pela tecnologia e cientificismo; com sua dimensão calcada
no desejo, em tudo e por tudo, a Psicanálise inaugura um novo olhar para o corpo e o adoecer.
Se organicamente, não havia distúrbio patológico que justificasse as limitações físicas manifestadas, onde estaria a
origem?
Estaria para além do corpo e, para além deste existiriam outros corpos em ação, funcionando através da pulsão
erógena. E foi nessa direção que a Psicanálise foi sendo erigida, nos seus primeiros passos, na medida que escutava outros
corpos, o padecimento corporal através da linguagem, corpo recortado pelo desejo, atravessado pela linguagem, se buscando
a “cura pela palavra”: o corpo do discurso, habitado pela linguagem.Ao reconhecer este fato, o tratamento psicanalítico seria
identificado como “talking-cure”, “limpeza de chaminé”: a cura pela palavra que, ao a ser dita (sai do corpo),tanto “limpa”,
quanto entra no corpo, trazendo à tona experiências psíquicas “esquecidas” mas, manifestadas somaticamente. A dimensão

4
No capítulo VII d’ A Interpretação dos sonhos (1900-1901/1980), Freud apresenta o primeiro modelo espacial do aparelho psíquico (primeira tópica):
Inconsciente, Pré-consciente e Consciente.
5
Freud, S.(1898/1980), A sexualidade na etiologia das neuroses.

169
nova desse campo do conhecimento em relação ao adoecer está no fato de inserir a subjetividade na emergência das doenças,
pela ênfase na articulação intrínseca entre manifestação somática e psiquismo. É nesse sentido que se fala no corpo do
discurso porque as manifestações somáticas são marcadas pelo simbólico e a Psicanálise consiste, fundamentalmente, numa
teoria da subjetividade; reconhecendo o corpo como atravessado pela linguagem – o corpo do discurso – a Psicanálise vai
entender as manifestações corporais, através do adoecimento, como intrinsecamente vinculadas à palavra e daí a premissa
psicanalítica de que quando a palavra não vem, o sintoma aparece. Em nossa reflexão sobre o adoecer feminino, essa
premissa é fundamental, na medida que a subjetividade é histórico-discursivamente construída, diferindo assim a masculina
da feminina, bem como o modo de adoecer.
Vê-se assim como estão distanciadas as concepções de corpo/adoecer para a Medicina e a Psicanálise e isto se
constata no sentido atribuído a vários conceitos e procedimentos, como por exemplo: corpo para Medicina corresponde a
organismo, enquanto para Psicanálise é o corpo do discurso, atravessado pelo desejo, o corpo erógeno; a direção da cura para
a Medicina se sustenta sobre os conceitos de normal e patológico, que podem se confundir com o bem e o mal e curar
corresponde à extinção da doença, enquanto para a Psicanálise, diante do inconsciente, da repetição e da pulsão, não intervém
nenhum juízo de valor e o que se busca é que analisantes desvendem seu próprio inconsciente. Embora com olhares dirigidos
para o corpo, suas concepções tendem a divergir no que se referee à relação entre o corporal, a linguagem que o constitui e o
organismo. Para Shiller (2006, p.91), “O corpo e o organismo sofrem porque existe um obstáculo que barra o acesso do
sujeito à sua história e à origem de sua angústia. Habitamos um organismo aprisionado por uma malha de linguagem que
transforma a força dos instintos em uma outra energia”. Nessa relação entre corpo e organismo, afirma ele que “As
necessidades biológicas são modificadas, transformadas em pulsões – ecos das palavras sobre o corpo.” (2006, p.91).
Eis portanto, o ponto nodal de distinção entre a concepção de corpo e do adoecer para os saberes médico e
psicanalítico: na concepção deste, nascemos imersos em um campo de linguagem, mergulhados num universo simbólico,
que adere a cada poro de nosso organismo. Se para o dualismo cartesiano, que fundamenta o saber médico, há uma separação
entre mente e corpo, para a leitura psicanalítica a separação é de outra ordem e diz respeito à distinção existente entre
organismo e corpo, entre consciente e inconsciente. O corpo é constituído a partir de um conjunto de representações forjadas
pelo entrelaçamento associativo de símbolos e imagens, construída desde a mais tenra infância; se corpo para o saber médico
diz respeito à anatomia, à concretude dos órgãos e, portanto, a organismo, já para a Psicanálise, desse organismo recebemos
sinais fragmentados. Já em relação ao adoecer, por sua vez, para o saber médico o que importa é a intimidade da fisiologia,
possíveis interpretações e leituras efetuadas a partir de tabelas, estatísticas que comprovam e/ou relacionam dados
generalizados, baseados (de preferência) em casos clínicos; já para o saber psicanalítico, o que interessa é a teoria/fala das
pessoas, que apresentam queixas e o que têm a dizer sobre elas, sobre o sintoma, e isso através da linguagem, que vai
funcionar como um canal de desvelamento da estrutura psíquica.

2. O adoecer feminino, um olhar de gênero


Entre os olhares dirigidos ao adoecer e ao corpo, além do olhar médico (corpo anatômico), do olhar psicanalítico
(corpo erógeno), destacamos um outro olhar que, para nossa reflexão, ocupa uma posição fundamental: trata-se do olhar de
gênero, que apreende o corpo na sua dimensão bio-política. Este vem sendo objeto de estudos por parte da abordagem
feminista nos Estudos de gênero, quando busca apreender o sentido de algumas patologias significativamente incidentes em
mulheres, caracterizando o adoecer como feminino, donde serem designadas como patologias femininas de protesto.
Nessa configuração de olhares diversificados de acordo com seus específicos focos teóricos de análise, entendemos
que o olhar de gênero funciona como um fio organizador unificando na diversidade e isso em função do sentido do feminino,
que se impõe no adoecer em mulheres: que lugar ocupa a construção subjetiva do feminino nesse modo particular de adoecer
das mulheres?
No amplo leque de produção investigativa realizada pelos Estudos de gênero, o adoecer feminino vem ocupando
um lugar de destaque; nessa produção, o olhar de gênero para determinadas doenças que incidem significativamente em
mulheres vem sendo denominadas por algumas estudiosas como “Patologias de protesto”, como é o caso de Sandra Bordo
(1996, 1997) ao analisar a anorexia nervosa a partir de uma leitura foucaultiana do corpo; já outras teóricas, também lendo
as doenças femininas como um forma de protesto, usam a denominação “feminismo espontâneo”, como é o caso de Emilce
Dio Bleichmar (1988), no seu estudo sobre histeria.
Nessa perspectiva de análise de gênero, as ditas patologias femininas são desencadeadas por situações de conflito
diante de padrões sociais de gênero historicamente gestados e produzidos pela cultura patriarcal impostos às mulheres como
modelo a ser seguido; tais padrões correspondem ao discurso da feminilidade, à “convenção vigente” (Dio
Bleichmar,1988).Diante dessa imposição, se algumas mulheres se adaptam, já outras se rebelam e com isso se instala uma
situação de conflito, vindo algumas a adoecer. Sendo o corpo uma das bases primordiais para o exercício do controle
estabelecido na imposição de padrões, é nele também que vai se estabelecer um arena de conflitos; nesse confronto de
forças, as patologias emergem e vão funcionar como expressão desses conflitos, como uma das “soluções” possíveis ao
dilema: aceitar ou rejeitar a “convenção vigente”.
É nesse sentido que o adoecer feminino, longe de uma leitura individualista presa ao corpo biológico, é inserido
numa rede complexa de relações sócio-político-cultural em que uma determinada categoria dominante – os homens, sob a

170
égide de valores patriarcais – exercem seu domínio em relação às mulheres e seus corpos, particularmente pela via da
sexualidade e reprodução biológica.Nessa leitura, o corpo é um instrumento de poder, de controle social: o bio-poder.
Fundamentando-se nesse referencial, abordamos a seguir como as patologias femininas constituem assim expressão
de um conflito estabelecido entre as mulheres e os padrões de feminilidade tradicionalmente forjados e dirigidos ao feminino,
como um modelo a ser seguido pelas mulheres; apesar de ter suas raízes no passado, estes padrões continuam a vigorar na
sociedade ocidental capitalista patriarcal, patriarcalismo este que, nas palavras de Castells (1999, p.278), “dá sinais no mundo
inteiro de que ainda está vivo e passando bem [...]”. Inicialmente, discutiremos a feminilidade como uma construção tecida
pelo fio da ordem patriarcal de gênero e produtora de posicionamentos subjetivos femininos. Em seguida, discutiremos
gênero e corpo, como uma relação de poder: bio-poder; tendo em vista a natureza do conflito presente no desencadeamento
do adoecer feminino ser de ordem patriarcal, a categoria gênero é um instrumento teórico básico à nossa análise, enquanto
relação social e relação de poder, premissas básicas na análise efetivada por Joan Scott (1990). Enfim, relacionando poder e
corpo, as patologias femininas serão discutidas como expressão de conflitos estabelecidos entre as mulheres e os padrões de
feminilidade, quando a relação de poder se evidencia como uma arena de conflitos, protestos e recuos, conforme os estudos
de Bordo (1996,1997) e Dio Bleichmar (1988,1996); a leitura do adoecer feminino, que apreende as ditas patologias como
gestadas nessa arena de conflitos, se abastece em fontes teóricas diversificadas, mas que se interconectam com os Estudos de
gênero em torno de um tema comum: a construção subjetiva feminina. Entre estas interconexões, trazemos as tentativas de
diálogo estabelecida entre Gênero e Psicanálise, cujos estudos vêm sendo desenvolvidos por algumas teóricas como Mabel
Burin (2002); Emilce Dio Bleichmar (1988).

2.1. Feminilidade, uma construção masculina


Os discursos prevalecentes de feminilidade frequentemente constroem as mulheres como dando apoio e suporte
afectivo, cuidando de outros, ligados à natureza, emocionais, empáticas e vulneráveis. (Nogueira, C., 2001, p. 100).

Os estudos sobre o adoecer em mulheres à de luz de um olhar de gênero têm como ponto de partida a análise dos
discursos sobre feminilidade – produção masculina que constrói as mulheres – que revelam as relações existentes entre a
concepção construída do “ser mulher” e o lugar do corpo como instrumento de controle social; tais relações têm no cerne o
exercício do poder e a reprodução do discurso da feminilidade. É este que faz com que a mulher seja identificada como
portadora da tão propalada “natureza feminina”, que lhe aprisiona na condição de mãe virtuosa, rainha do lar e,
consequentemente, objeto de uma produção discursiva de autoria masculina; é enquanto sujeitos de discursos – filosófico,
médico, científico, religioso –, que os homens, enquanto ocupantes do lugar que a ordem patriarcal de gênero lhes atribui, são
produtores da subjetividade moderna. Vista a partir de um olhar discursivo, essa produção simbólica não é rigidamente fixa,
pois a inscrição dos sujeitos homens e mulheres nos discursos passam por modificações ao longo da história, o que possibilita
deslocamentos, mudanças nas posições que a cultura confere e atribui aos sujeitos e isso em decorrência das ações
discursivas. Embora esses deslocamentos venham acontecendo ao longo da história, com as mulheres se posicionando e
produzindo respostas, é na modernidade porém, que esse campo se amplia. É disso que fala Geneviève Fraisse e Michelle
Perrot na História das Mulheres no Ocidente (1995, p.9), ao caracterizar o século XIX como “o momento histórico em que a
vida das mulheres se altera, ou mais exatamente o momento que a perspectiva de vida das mulheres se altera”.
O conjunto de mudanças (urbanização, industrialização, moralidade burguesa, nascimento da família nuclear e
nítida separação entre espaço público e privado) que, em menos de cem anos, modifica a sociedade, vai corresponder um
novo tipo de sujeito e desencadear novos e distintos discursos; sobre estes, necessário se faz buscar o que diz Foucault n‘ A
História da Sexualidade, precisamente no volume A Vontade de Saber (1976 /1977), quando analisa como o discurso unitário
da Idade Média veio a ser substituído por uma multiplicidade de discursos sobre como os sujeitos deveriam se comportar,
particularmente, em relação à sexualidade, rompendo assim pontos de vista universalisantes sobre o sujeito. Nesse contexto,
o processo de adequação das mulheres às novas funções, de acordo com o padrão de feminilidade (conjunto de funções,
predicados e restrições atribuídos ao feminino) é fruto de uma bem elaborada produção discursiva, em que a idéia de
feminilidade se fundamenta numa história que faz parte da construção dos sujeitos modernos, a partir do final do século
XVIII e ao longo de todo o século XIX. Esses discursos fazem parte do campo simbólico e chegaram aos sujeitos como parte
do discurso do Outro: educação formal, expectativas parentais, senso comum, bem como a produção científica e filosófica da
época que prescrevia como cada mulher deveria ser, para corresponder verdadeiramente ao “ser mulher”. No entanto, como o
campo simbólico não é unívoco, discursos outros entram em cena e se chocam com este discurso da feminilidade, como por
exemplo: aos ideais de submissão feminina contrapõem-se os de autonomia, valor típico do sujeito moderno; aos ideais de
domesticidade, os de liberdade; à idéia de uma vida predestinada ao casamento e à maternidade, a também idéia moderna de
que cada pessoa deve construir sua caminhada existencial, de acordo com a sua vontade e escolhas.
Em suma, a partir desse cenário, o ideário da modernidade se espraia pelos mais diversos espaços e, no privado, vai
fazer tremer as bases de suporte da família, instituição considerada a célula-mater da sociedade e nela, a viga-mestra de
sustentação: a feminilidade, seja no ideal esperado, seja no real vivido. E isso porque, à feminilidade como estrutura –
conjunto de funções socialmente necessárias à manutenção social e reprodução familiar – vão se opor os emergentes ideais
humanos de autonomia, personalidade individual e diferenciada, traços estes valorizados e vistos como necessários à
construção das subjetividades nos tempos modernos. Tais requisitos vão repercutir também na vida das mulheres,

171
contribuindo assim para que a construção da subjetividade feminina passe a ser também influenciada por estes valores. No
bojo desses acontecimentos, pouco a pouco, vão se rompendo laços com valores tradicionais, sinalizando para rupturas com
antigas imagens da feminilidade atribuída às mulheres.
Dirigir um olhar de gênero ao resgate desse percurso de constituição da feminilidade, a nosso ver, é de fundamental
relevância, na medida em que, entre outras razões, identifica os mecanismos ideológicos atuantes na construção da relação de
gênero; se não resgatada historicamente e permanecer no esquecimento, o processo social constitutivo da feminilidade poderá
vir a ser apreendido a partir de um olhar naturalizante (dimensão imaginária), quanto às instituições, aos conceitos e discursos
que comandam nossas vidas.Resgatar a tradição que, há dois séculos vem constituindo o que conhecemos como feminilidade
e posição feminina atribuída às mulheres, significa romper com a barreira ideológica naturalizante da constituição dos
gêneros. Se cabem aos mecanismos ideológicos naturalizar o socialmente construído, desnaturalizar esse processo
corresponde a uma postura crítica e transformadora das relações sociais. Conhecer a origem do que confere às mulheres o seu
lugar na cultura – fixado pela tradição – é a primeira condição para se pensar sobre ele e como poderá ser modificado.
Dizer que a feminilidade constrói as mulheres aponta, por um lado, para a premissa de que há um discurso que
disciplina e regula6 a relação diferenciada entre homens e mulheres, privilegiando a natureza na constituição subjetiva
feminina e a necessária adequação das mulheres à essas atribuições ditas naturais; por outro, que essa regulamentação não é
efetivada de modo absoluto e estático, tendo em vista a reação das mulheres a esses dispositivos: enquanto umas chegam a
aceitar essa condição, funcionando como elos no processo de reprodução dos mecanismos ideológicos de gênero, já outras
resistem e reagem, gerando desajustes entre a posição atribuída aos sujeitos femininos e o ideal de feminilidade instituído na
sociedade burguesa.É nessa arena de forças em conflito, que algumas mulheres vêm a adoecer. Eis pois os pontos
norteadores dirigidos à feminilidade que, a partir das lentes de gênero e de uma concepção de poder como prática discursiva,
consiste numa prática discursiva masculina que constrói as mulheres. E é enquanto uma noção-chave articulada com
mulheres e posição feminina, que adquire poder na consolidação na nova ordem social implantada com a Modernidade.

2.2. Gênero e Corpo, uma relação de poder: o bio-poder


O que é uma mulher domesticada? Uma fêmea da espécie. Uma explicação é tão boa quanto a outra: uma mulher é
uma mulher.Ela só se torna uma doméstica, uma esposa, uma mercadoria, uma coelhinha, uma prostituta ou ditafone
humano em certas relações. (Rubin, G., 1993, p.2).

Na assertiva acima Rubin, corroborando a premissa de Beauvoir, que não se nasce mulher (nem homem), mas
torna-se, aponta para o princípio de que esse “tornar-se” depende de determinadas relações em que machos e fêmeas da
espécie humana estão inseridos. Entender como socialmente se constroem e se mantêm as relações entre homens e mulheres
através da história é objeto de análise dos Estudos de gênero, que afirma como através desta categoria os humanos pensam a
atividade social e, a partir deste pensar, organizam-na. Isso se justifica porque, ao lado das categorias classe, raça e etnia,
gênero constitui também uma categoria básica em nossa reflexão.
É disso que fala Joan Scott (1990), quando desenvolve sua análise conceitual de gênero como uma categoria de
análise histórica, análise esta que adotamos como base teórica de nossa reflexão; em sua construção conceitual, Scott adota
uma postura teórica que inter-relaciona os processos estrutural, simbólico e individual, fundamentando-se em duas premissas
básicas que atribuem ao gênero um caráter social e político. Considerando o nosso objeto de reflexão – o adoecer feminino –
esta construção conceitual oferece subsídios teórico-metodológicos ao processo investigativo, na medida em que contempla o
contexto histórico (estrutura ocidental capitalista patriarcal) em que as mulheres, como categoria social, estão inseridas e
recebem a influência dessa estrutura, que contribui para a construção da subjetividade feminina, não só pela via da divisão do
trabalho social, mas também pela via do simbólico. À inter-relação dos processos simbólico e estrutural, por sua vez, se
acrescenta o individual, em que as mulheres, nas suas singularidades, respondem de modo diversificado à essa
contextualização; é em função disso que, apesar das condições sócio-politico-culturais serem comuns às mulheres, nem todas
porém, vêm a adoecer e isso se pode justificar pela singularidade da constituição bio-psico-social.
Como o fenômeno adoecer acontece no corpo e entendemos o adoecer feminino como atravessado pela condição de
gênero, adotamos uma concepção de corpo político; neste sentido, as premissas básicas constituintes da categoria de gênero
para Scott – relação social e relação de poder – são ferramentas teóricas para a apreensão do corpo a partir desse olhar
político, do bio-poder. Para essa análise, sobre o adoecer feminino a partir da concepção de corpo político, adotamos o
referencial teórico de Susan Bordo (1996,1997), que concebe o corpo como agente de cultura e lugar de exercício de controle
social; em sua análise, a partir de uma concepção foucaultiana de poder, trabalha com os conceitos de corpo e feminilidade
para fundamentar as patologias femininas por ela designadas como “Patologias de Protesto”. A seguir, desenvolvemos uma
reflexão sobre “Gênero e Corpo, uma relação de poder: o bio-poder”, ancorada na concepção de gênero em Scott (1990) e na
abordagem de Bordo sobre corpo e feminilidade à luz de Foucault..
Historicamente, o ponto de partida da concepção de gênero ocorreu por volta dos meados da década de 50, do
século XX, quando John Money (1955) propôs o termo gender role (papel de gênero) para descrever o conjunto de condutas

6
Em Vigiar e Punir (1975/1977, p.31), Foucault afirma que “os procedimentos disciplinares se exercem sobre os processos de atividades e a sujeição constante
de sua força (....) impõe uma relação de docilidade – utilidade.”

172
atribuídas aos homens e às mulheres; a partir de seus estudos pioneiros sobre hermafroditismo, ele e seus associados
inferiram a necessária distinção entre sexo e gênero. Mais tarde, Robert Stoller, no livro Sex and Gender (1968), vai
estabelecer com mais nitidez a diferença conceptual entre sexo (qualidade de fêmea e macho) e gênero (feminino e
masculino).
Vemos assim, que a concepção de gênero já pairava, desde a década de 50 do século XX, nos estudos preocupados
com a relação social entre homens/mulheres, masculino/feminino; como categoria de análise porém, sua emergência vai
acontecer em torno da década de 70 do século XX e, basicamente no campo das ciências sociais. Nos dias atuais, gênero é
uma categoria difundida por uma multiplicidade de áreas do conhecimento e vem sendo apropriada de modo diverso e por
campos de saberes diversificados. Em linhas gerais porém, diz respeito à construção social do sexo, enfatizando a sua
radical oposição a leituras biologizantes da constituição/lugares de homens e mulheres no socius; insistindo na condição
sócio-histórico do processo organizativo da diferença sexual, constituinte da organização social e também nela/dela
constituída, a relação de gênero é tão relevante à apreensão do mundo social, como o são as relações de classe, de raça/etnia e
constitui também uma das primeiras formas de relação de poder.
É disso que trata Scott (1990) numa produção considerada das pioneiras nos Estudos de gênero em que, ao
considerar esta categoria como um dos pilares básicos constituintes da organização social, contribui para apreendermos a
sociedade, além de burguesa e branca, também androcêntrica. Gênero, enquanto uma categoria de análise que busca
apreender como as relações de dominação entre homens e mulheres são socialmente construídas, além de peça-chave em
nosso processo reflexivo, o é também na apreensão da dinâmica social, na medida que, historicamente, se encontra
entrelaçada com as demais formas de dominação, reforçando-as e reproduzindo-as. A dinamicidade da relação de gênero, no
que concerne aos efeitos sociais e políticos, pode ser apreendida a partir de sua conceituação que, para Scott é constituída por
duas proposições fundamentais: uma primeira, Gênero como elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos; atua através dos processos simbólico (simbolismo de gênero), estrutural (estrutura de
gênero/ divisão sexual do trabalho) e individual (identidade de gênero), intrinsecamente relacionados; como tais, atribuem
significados à masculinidade e à feminilidade, caracterizando o convívio humano como, além de marcado pelas condições de
classe, raça/etnia, também o seja pelas de gênero, donde a constituição da vida social como genderizada.
Como sistema simbólico, a diferença de gênero se destaca como uma das mais antigas, universais e poderosas
fontes de conceptualizações morais existentes e, nas mais diversas culturas, as diferenças de gênero têm sido o pivô a partir
do qual os humanos se identificam como pessoas, se organizam nas relações sociais e simbolizam eventos/processos naturais
e sociais.Quanto ao processo estrutural, a estrutura de gênero concerne à divisão sexual do trabalho que, ao lado da diferença
de classes, raça e etnia tem seu lugar de relevância na organização social; tanto quanto essas outras determinações, é marcada
por mecanismos ideológicos que contribuem para reforçar relações de dominação e para que apreendamos o mundo, como
afirmam Marx e Engels, na Ideologia Alemã (s/d, p.25), de modo invertido pois “se em toda ideologia os homens e as suas
relações nos surgem invertidos, tal qual acontece numa camera obscura, isto é apenas o resultado do seu processo de vida
histórico.”É na esteira do aforismo marxiano (s/d.,p.26) de que “não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida
que determina a consciência”, que a simbolização se perpetua, como acontece com imagens e simbolismos de gênero, em
que as mulheres são representadas numa condição de dependência em relação ao masculino, não somente no espaço privado,
mas se estendendo pelas instâncias de dominação econômico-política, contribuindo para a manutenção e reprodução de
relações de poder de gênero.
Em relação ao processo individual, a identidade de gênero, enquanto constitutiva da identidade social, é construída
a partir da articulação com os demais processos simbólico e estrutural, a partir de um discurso social que mediatiza a
construção do masculino e do feminino, tanto quanto da realidade como todo, que é discursivamente construída. Entendemos
que isto significa que as formações de linguagem não só precedem a existência de homens e mulheres na sua individualidade
empírica, mas os inscrevem em posições da ordem do simbólico muito antes de terem eles consciência de existirem. Nesse
sentido, “homem” e “mulher” são os primeiros significantes que nos designam, logo que chegamos ao mundo, pois é assim
que designa a cultura e que o social nos acolhe, logo na chegada (ou mesmo antes dela), através do núcleo familiar, nas
figuras parentais dos pais e das mães. Sobre essa designação primordial, lembramos Kehl (1998) quando afirma ser ela
estabelecida a partir da “mínima diferença” inscrita em nossos corpos e é exatamente a partir desta que, no grupo humano,
somos categorizados, etiquetados como “homem” ou “mulher”; essas injunções discursivas são marcas que nos acolhem
desde o nascimento e vão nos acompanhar pela vida afora. Tais marcas, que se fazem presentes antes de qualquer outra
construção subjetiva, apontam para um sentido atribuído, sentido este que, mesmo sendo feito a partir de nossos corpos, é
efeito (e-feito) de um discurso já previamente estabelecido: trata-se do discurso genderizado. Apreender como a cultura vem
respondendo “O que é ser mulher?” implica pois identificar os discursos que vêm sendo estabelecidos pela cultura ocidental
ao longo da história e, entre estes, o genderizado é dos mais antigos que temos notícias, senão um dos primeiros a nos acolher
lá nas brumas dos tempos.
É a partir desse discurso (genderizado), que diferencia os sujeitos masculino e feminino, investindo-os de valores
atributos que a cultura lhe conferem, que homens e mulheres, categorizados a partir da diferença anatômica, já vão ser
posicionados de acordo com parâmetros de ordem simbólica. É isso que vai definir a posição discursiva do sujeito, ou seja,
sua alocação simbólica. A “mínima diferença” anatômica que distingue meninos e meninas, logo ao nascerem (e mesmo,
antes disso) está, desde tempos históricos, concebida simbolicamente; de acordo com os saberes androcentricamente
construídos a diferença é lida pelo viés das lentes da desigualdade; isto significa que, se culturalmente a tradição

173
androcêntrica estabeleceu que uma das metades das categorias constituintes do grupo humano é valorativamente superior à
outra metade, tudo que for estranho e/ou diferente a este padrão, será apreendido como inferior. Assim sendo, se a posição
masculina e feminina é da ordem do simbólico – na medida que vão sendo compostas as identificações com a masculinidade
e a feminilidade – homens e mulheres vão sendo estruturados segundo o modo como cada cultura organiza os ideais para
seus gêneros. É nesse sentido que homens e mulheres, enquanto sujeitos, estão opostamente posicionados (mulheres, posição
feminina, feminilidade/ homens, posição masculina, masculinidade), o que porém não significa que tais posicionamentos
sejam fixos, nem fixas também são as construções identitárias, que se efetivam de modo relacional.
Esse aspecto relacional, que dá sentido à categoria gênero, é intrinsecamente atravessada por determinações de
poder, conforme argumenta Scott, na sua segunda premissa: Gênero como primeiro modo de dar significado às relações de
poder. Isso implica que, através da história, o masculino vem sendo mais valorizado que o feminino e remete para a
hegemonia do patriarcado como um modo de relação social que vem predominando na história humana e na
contemporaneidade, se articula com o modo de produção capitalista; enquanto neste as classes sociais (burguesia e
proletariado) constituem os sujeitos antagônicos por excelência, na relação de controle das forças produtivas, no patriarcado,
o antagonismo se estabelece entre o masculino e feminino historicamente construídos. A articulação entre estes modos de
relação social de poder caracteriza a estrutura social (constituinte das subjetividades masculina e feminina) como capitalista
patriarcal, cujas formas de dominação fortalecem e legitimam a manutenção e reprodução da ordem social vigente.
Particularmente, em relação à ordem patriarcal de gênero, o poder patriarcal constitui o conceito-chave na apreensão da
dinâmica constitutiva do feminino e do masculino, historicamente construídos.
Com base nessa construção histórica, se pode apreender padrões culturais próprios de homens e mulheres, em que o
feminino (posição) e a feminilidade (forma particular de identidade, enquanto conjunto de atributos próprios das mulheres em
função da particularidade de seus corpos) são construções masculinas. A abordagem sobre o poder de gênero é de
fundamental importância em nossa reflexão, na medida que trabalhamos o corpo como lugar de exercício de controle social (
o bio-poder) o que, necessariamente, aponta para o conceito de patriarcado e suas implicações ideológicas nas instâncias
familiares e religiosas, no que se refere ao lugar das mulheres e do adoecer feminino.
Entre outras teóricas que vêm investigando o Patriarcado destacamos a contribuição de Pateman (1988), que o
apreende como um contrato sexual, atuante no âmbito privado, mas também com desdobramentos para o espaço público; este
é um dos aspectos relevantes da análise, visto que permite evidenciar a presença do poder patriarcal no capitalismo e de toda
sociedade civil. Em se tratando do adoecer feminino, permite apreender como o corpo é usado como instrumento de controle
social, não só nas relações privadas, pelo controle do corpo das mulheres através da sexualidade e da reprodução, bem como
no espaço público, pelas imagens do corpo feminino simbolicamente manipuladas. Para Pateman, a “lei do pai” e a “lei do
marido” vêm garantindo a perpetuação de uma história de liberdade e submissão entre homens e mulheres; a relevância desse
conceito se justifica nos Estudos de gênero, entre outras razões, porque é através dele que são atribuídos direitos aos homens
sobre as mulheres, configurando uma relação de natureza hierárquica e, portanto, de poder. Se literalmente se entende
patriarcado como “Lei do pai”, historicamente o sentido desse termo está associado a uma espécie de pacto masculino para
garantir a opressão das mulheres.
Nesse sistema de governo, o corpo da mulher (sexualidade e reprodução) constitui o cerne a partir do qual o poder
masculino é exercido funcionando como lugar prático de controle social e reprodução da feminilidade. É neste sentido que o
corpo é apreendido como instrumento de controle social e as doenças significativamente incidentes em mulheres, como
expressão desse controle; é disso que trata Susan Bordo, quando se apropria do conceito de poder em Foucault e analisa essas
doenças como “patologias de protesto, “ (. . .) os corpos femininos tornam-se o que Foucault chama de ‘corpos dóceis’: (....)
habituados ao controle externo, à sujeição, à transformação e ao aperfeiçoamento.” (Bordo, S.1997, p. 20). Mediante a
imposição de mecanismos variados de poder sobre o feminino, o corpo vai constituir mais um desses mecanismos em que as
mulheres são interpeladas para responder a padrões culturais estabelecidos, ditos próprios da feminilidade. É em resposta a
essa interpelação que o corpo vai funcionar como um instrumento de controle.
Em seu artigo “O corpo e a reprodução da feminilidade: uma apropriação feminista de Foucault” (1997), Bordo
reconstrói o discurso feminista sobre o corpo, apreendendo-o como um texto/uma metáfora da cultura e, como tal, funciona
como um lugar prático direto de controle e de reprodução da feminilidade.Nessa perspectiva, corpo, longe de constituir uma
dimensão essencialista de caráter bio-universal é, na verdade, uma construção simbólica, um agente de cultura; enquanto tal,
através dos atos mais corriqueiros que compõem os rituais diários – o que e como comemos, vestimos, cuidamos de nós e de
outrem – expressamos valores e crenças e, nesse sentido, a cultura se faz corpo, na medida em que este é submetido às
normas culturais, se tornando disciplinado, dócil, regulado, domesticado. É disso que trata Foucault em Vigiar e punir:
nascimento da prisão (1975/1977), apontando para a primazia das práticas, que funcionam como disciplinadoras e
normatizadoras dos corpos, funcionando como um lugar prático de exercício do poder.
Tal prática é exercida com tamanho poder que chega a colocar em risco a própria saúde e a vida das pessoas, como
vem ocorrendo na contemporaneidade, por meio das dietas, exercícios físicos, cirurgias plásticas, ingestão de medicamentos
para fins estéticos, entre outros dispositivos tão em voga, tendo em vista moldar o corpo a determinados padrões culturais. As
mulheres têm sido presas fáceis dessas prescrições – moda, dieta, maquiagens, terapias capilares e estéticas em geral – que
tendem cada vez mais a proliferar, moldando/disciplinando o corpo feminino aos ditames normatizadores de padrões de
beleza estabelecidos. Com o passar do tempo, estes acabam funcionando como um mecanismo externo de sujeição, pelo
disciplinamento e normatização do corpo feminino; na medida que são regidos por princípios que organizam o tempo e o

174
espaço da vida das mulheres, impingem-lhes uma (auto) modificação existencial ao ponto de serem caracterizados como
“práticas de feminilidade”, podendo resultar na debilitação físico-emocional e até em morte. Estes riscos em relação às
mulheres dizem respeito à condição de gênero que as subordina e aprisiona num lugar de objeto – o “outro” em relação ao
“um” – de acordo com o padrão de feminilidade culturalmente construído e imposto. Em função disso, direta e indiretamente,
a normatização tende a se tornar mais danosa. E o corpo feminino, presa mais fácil e dócil ao exercício desse poder: o bio-
poder.
Assim sendo, essas práticas fazem com que o corpo funcione como um instrumento de produção / reprodução da
feminilidade – “práticas de feminilidade” – e, consequentemente, um lugar de controle social, exercício do poder
generificado. Isso implica que se reveja a concepção de corpo e também de poder, de um modo distinto daquela em vigor lá
pelos fins dos anos dos anos 60 e início de 70 do século XX, quando apontava para uma relação antagônica entre sujeitos em
oposição – opressores versus oprimidos, vilões versus vítimas; nessa nova visão, de caráter foucaultiano, poder é entendido,
nas palavras de Bordo (1997, p.21), como “(. . .) rede de práticas, instituições e tecnologias que sustentam posições de
dominância e subordinação dentro de um âmbito particular (....) cujos mecanismos centrais não são repressivos mas
constitutivos”.
Estas práticas de poder são tratadas por Foucault na História da sexualidade (1976/1977), quando atribui ao poder
capacidade de gerar forças, organizando-as e fazendo-as crescer, ao invés de outros sentidos, que vêem poder como uma
força impeditiva, que tão-somente subjuga e destrói.Dando continuidade à reflexão de Bordo (1997), essa concepção de
poder é fundamental na questão da feminilidade, na medida que possibilita identificar mecanismos que, em vez de reprimir
desejos, os moldam e multiplicam, ao tempo que permite detectar/confrontar dispositivos “(. . .) pelos quais o sujeito se torna
às vezes enredado, conivente com forças que sustentam sua própria opressão.”(Bordo, S.,1997, p.21). Nesse sentido, sujeitos
alocados no pólo dominado, enredados na relação de poder, podem vir a contribuir para sua própria submissão, numa relação
dialética em que podem se entrecruzar gestos/movimentos contraditórios, vindo o corpo a funcionar como lugar de controle
social e, ao mesmo tempo, de resistência a este controle. É nesse sentido que se pode abordar a questão do adoecer feminino
e das “patologias de protesto”, quando no corpo é escrito um texto – o texto da feminilidade –, bem como as doenças – a
escrita da doença no corpo, conforme veremos a seguir, na abordagem sobre as patologias femininas e feminilidade.

3. Patologias Femininas e Feminilidade: uma arena de conflitos, protestos e recuos


Não é de espantar, então, que um motivo constante na literatura feminista sobre desordem feminina seja o da patologia
com protesto – inconsciente, incipiente, contraproducente, sem recorrer à linguagem, à voz ou à política – mas ainda
assim protesto. (Sandra Bordo, 1997, p.27)

Desde a década de 70 do século XX, os Estudos de gênero vêm se debruçando sobre um tema cuja relevância
concerne à vida e à saúde das mulheres: trata-se da incidência de determinados tipos de patologias prevalentes em mulheres.
Sem desconhecer, nem desconsiderar as implicações de ordem biológica (hormonais, por exemplo), o que vem prendendo a
atenção desses estudos, pesquisas e produção teórica é o traço subjetivo comum que parece particularizar tais patologias que,
para além de explicações individuais e/ou anatômicas, apontam para relações simbólicas e estruturais; nessas, estão presentes
condições sócio-político-culturais próprias de uma determinada sociedade – ocidental capitalista patriarcal – em que relações
de poder entre grupos implicam que os situados numa posição dominante imponham seus valores aos dominados, sendo estes
valores incorporados também pela sociedade como todo (inclusive pelos grupos dominados) como da ordem do universal.
Esse arranjo e manutenção estrutural é assegurado pelos mecanismos ideológicos, cuja função consiste exatamente em
justificar e legitimar situações construídas socialmente como se fossem naturais, ou seja, leva atores sociais a tomarem o
social como se fosse naturalmente posto e, como tal, da ordem da normalidade.
É disso que tratam os Estudos de gênero, quando buscam apreender como padrões culturais produzidos pelo
patriarcado traçam o perfil a ser incorporado por homens e mulheres no convívio social, delimitando o que é da ordem do
masculino e do feminino, a partir de convenções concernentes à masculinidade e à feminilidade. É no bojo desse quadro
convencional de gênero que determinadas patologias incidentes em mulheres – histeria, anorexia nervosa, bulimia,
agorafobia, neurastenia – vão ser designadas femininas e de protesto. Estes estudos, enquanto uma série de análises e
especulações que apontam para causas diversas, não contando assim com uma única unidade teórica de análise, apresentam
todavia um ponto comum de convergência, caracterizando as patologias femininas numa categoria: a de “Patologias de
protesto”.
E que traço comum seria esse?
Nos estudos desenvolvidos sobre as “Patologias de protesto”, um traço central na análise é a questão do conflito,
em que as mulheres portadoras dessas patologias, como que confrontadas em arenas múltiplas de controle, acabam por
adoecer em decorrência da luta estabelecida com os padrões de feminilidade produzidos pela cultura patriarcal, acabando
também por entrar em conflito com seus próprios corpos. Nesse sentido, o adoecer é apreendido não a partir de um olhar
individual e biológico (como o faz o saber médico preso ao corpo biológico), e sim a partir de condições sociais de um
contexto estrutural político-histórico da sociedade ocidental capitalista patriarcal.É esse o espaço contextual em que são
produzidas as “Patologias de protesto”.

175
Na sua análise sobre Anorexia Nervosa como cristalização da cultura, Bordo (1996) configura a síndrome dessa
patologia a partir do que ela denomina de “três eixos de continuidade” – dualístico, de controle e de gênero-poder – e é a
partir dessa configuração que o conflito constitui o cerne no desencadeamento das patologias femininas. No eixo dualístico,
Bordo, contextualizando a concepção do humano a partir da tradição epistemológica ocidental, ressalta a relação de forças
entre o corpo (material) e a alma (espiritual); essa tradição, construída desde a antiguidade judaico-cristã, se fortaleceu com a
filosofia greco-romana e assumiu o estatuto de ciência na sociedade moderna com o cogito cartesiano. Nesse eixo dualístico,
convém ressaltar que o estabelecimento da dualidade corpo-espírito se efetiva com um atravessamento de gênero, visto que
enquanto o corpo material é associado ao feminino (paixões, descontrole), o espiritual, por sua vez, está ligado ao masculino
(razão, disciplina, controle).
Dando continuidade à sua argumentação sobre os eixos, quando trata do eixo de controle, Bordo se refere ao
controle sobre o corpo material, que é submetido através do exercício de dispositivos disciplinares: padrões rigorosos de
aperfeiçoamento para modelar o corpo, de acordo com princípios de saúde, perfeição e pureza.É sobre este lastro valorativo
que os corpos são submetidos a exercícios compulsivos através do exercício da vontade; é sob a égide desse controle que a
autora, buscando um encadeamento entre os eixos, chega ao eixo gênero-poder, configurando a Anorexia Nervosa como uma
patologia prevalente em mulheres (90%) e significativamente feminina.
O que destacamos nesse modelo dos “três eixos” de continuidade é a posição nuclear do conflito presente em todos
eles e, é baseando-se neste, que ela estabelece a relação entre Anorexia Nervosa e gênero, quando “dois eus entram em
guerra”: por um lado, o “eu” moldado pelos padrões de Feminilidade e, por outro, o que se rebela a ele, gerando um estado de
insatisfação e protesto.Na base dessa reflexão, aponta a autora para dois significados de gênero que estariam relacionados
com o desencadeamento da Anorexia nervosa em mulheres: por um lado, a desvalorização do tradicional papel atribuído às
mulheres na sociedade, às suas limitações valorativas, bem como ao medo de assumi-los, incorporando-os; por outro, o
profundo medo que desperta nas mulheres a imagem da “Fêmea”, associada à voracidade, tanto no ato de comer
(alimentação), quanto na sexualidade ( insaciabilidade sexual).
É nesse campo de forças em conflito, com arenas de controle social e mecanismos ideológicos em ação que a autora
caracteriza a sintomatologia da Anorexia nervosa como uma textualidade, isto é, uma construção feminina escrita no corpo,
construção esta que em que a doença emerge como uma espécie de “solução” possível para um dilema insolúvel presente na
sociedade calcada em valores gendradamente dualistas, donde o estabelecimento da relação existencial conflitante das
mulheres: de um lado, o lugar estabelecido tradicionalmente pelo discurso da feminilidade ( no lar, como esposa, mãe e
dona-de-casa); de outro, as emergentes oportunidades oferecidas pela sociedade moderna, no espaço público, com as
possibilidades de inserção das mulheres no mercado de trabalho, acenando para o “ser moderno”, para a imagem da “mulher
moderna”.Em suma, o já posto e conhecido conflito entre domesticidade feminina versus espaço público masculino. Eis pois,
os pilares básicos de uma relação conflituosa implantada pela dualidade contextual que, em determinadas situações, assume
o caráter de um dilema insolúvel, se não para todas as mulheres, mas pelo menos para algumas delas e são estas que acabam
por adoecer; nestas, as doenças funcionam como mecanismos ou “soluções” possíveis para esses dilemas.Um aspecto ainda
destacar é o sentido da contradição embutido nessa busca de “solução”; ao mesmo tempo que as mulheres portadoras das
“Patologias de protesto” resistem à feminilidade, acabam por reproduzi-las, na medida que regridem na sua condição de
adultez, se infantilizando seja pela dependência ocasionada pela doença, seja pela negação do corpo feminino.
Diante desse quadro teórico sobre o adoecer feminino como uma reação de protesto a uma situação de controle
imposto às mulheres aos padrões de feminilidade, estabelecendo assim uma relação de conflito, levantamos uma questão
tendo em vista problematizar a teorização: se a o cenário da sociedade ocidental capitalista patriarcal que cria condições para
estabelecer a relação mulheres – corpo – adoecer é comum à todas as mulheres, por que só algumas delas adoecem?
Poderíamos ensaiar uma argumentação acenando para a lógica da particularidade em que, apesar dessas condições
serem comuns (atingem no âmbito geral todas as mulheres), há na singularidade (predisposição biológica, estrutura mental,
história de vida, relação familiar) traços que vão estabelecer uma diferença em articulação com a particularidade de gênero; é
dessa articulação, que as respostas serão distintas e, diante por exemplo, da condição de poder patriarcal exercida, dos
acontecimentos de perdas que desencadeiam situações de estresse, enquanto algumas se adaptam, outras respondem se
rebelando mas não necessariamente se estressando e adoecendo.Entendemos que o divisor de águas nesse processo diz
respeito ao efeito de sentido do adoecer; no âmbito do humano a imprevisibilidade e o indeterminismo vai caracterizar as
ciências humanas e a natureza da pesquisa qualitativa, que está direcionada não para a causalidade dos fatos, e sim para
sentido da ação humana.
Os estudos sobre a “Patologia de protesto” buscam em que aspectos os conflitos se evidenciam nas mulheres e a
rebelião contra a feminilidade, principalmente a maternal doméstica, tem sido um ponto comum; se como um discurso
construído pelo patriarcado, a feminilidade está disseminada em todas as instâncias sociais, como base institucional, está
enraizado na família. É aí que a matriz conflitante se estabelece, corporifica, finca raízes, se consolida e é desencadeada,
começando pela rejeição ao papel de submissão ao homem-marido por parte da mulher (esposa, mãe, dona-de-casa); no seio
da estrutura familiar são vivenciados os primeiros conflitos de gênero, diante da posição assumida pelo pai e pela mãe.
Não só na Anorexia nervosa, mas também na Histeria, esse dado já fora apontado desde meados do século XIX, por
olhares provenientes não só do feminismo; no alvorecer da Psicanálise como campo de conhecimento, o conflito travado
contra a feminilidade já dava seus primeiros sinais, marcando presença naquelas mulheres que, para serem escutadas, parecia
que precisavam recorrer a mensagens corporais. É disso que trata Dio Bleichmar (1988) no Feminismo espontâneo da

176
histeria, para quem o sintoma também era expressão do conflito diante de um padrão de feminilidade imposto. Enquanto um
corpo de “convenções vigentes”, diz a autora que esta feminilidade haveria de ser aceita ou rejeitada e, no caso da histeria,
significou a solução encontrada como um grito de rejeição; esse fato também era apontado por médicos em meados do
século XIX, quando pesquisavam a etiologia das psiconeuroses, como o fez Breuer, que chega a levantar a hipótese de uma
associação dessa patologia em mulheres como um protesto contra a vida doméstica.Embora não concordando muito com
esse argumento, Freud reconhece todavia a particularidade das mulheres que escutava em seu divã, a quem se refere como
portadoras de um potencial intelectual e de um nível de aspirações que destoava da média das mulheres da época; num de
seus relatos sobre uma cliente portadora de histeria – Elizabeth von R. – Freud (1895/1988, p.175), comenta que ela “(…)
sentia-se muito descontente por ser mulher. Tinha muitos planos ambiciosos; queria estudar ou receber educação musical e
ficava indignada com a idéia de ter de sacrificar suas inclinações e sua liberdade de opinião pelo casamento.”
Diante disso, parece que, apesar do saber psicanalítico não entender feminilidade como o entendem as feministas,
há todavia também o reconhecimento de um conflito estabelecido entre as mulheres e o padrão socialmente a ser seguido;
para o olhar feminista de gênero, em se tratando de adoecer feminino, este conflito resulta em acontecimentos patológicos: as
“Patologias de protesto”. Privilegiando o olhar de gênero, entendemos que algumas das patologias incidentes em mulheres
têm a ver com um tipo de mal-estar – o mal-estar feminino – forjado na cultura patriarcal, ou seja, é no processo da
construção social subjetiva feminina que se encontra as raízes de muitas patologias ditas femininas. Tomando a construção da
subjetividade como multideterminada, percebemos a condição saúde-doença das mulheres, neste contexto patriarcal
intrinsecamente entrelaçada com as relações de poder, onde entram em jogo a repressão sexual, a divisão dos espaços público
e privado, sendo reservado às mulheres o interior do lar e as funções ligadas à maternidade como “naturalmente” femininas;
também entram em jogo nessa divisão de espaços e funções de gênero, fatores concernentes aos tipos de poderes próprios a
um ou ao outro gênero: aos homens , por exemplo, lhes cabem o poder racional e econômico, enquanto às mulheres é
destinado o poder dos afetos, particularmente no âmbito familiar, pela regulação e controle das emoções.
É sobretudo nesse circuito doméstico, sob a regência do poder, que os sentimentos de perda, de dor (pelas rupturas
e separações), de culpa vão moldando a subjetividade feminina e tornando-as vulneráveis às situações de estresse e,
consequentemente, às patologias ditas femininas. É contextualizando as mulheres nesse espaço destinado ao feminino, com
toda a carga de padrões culturais que lhes moldam corações/mentes/corpos que os Estudos de gênero vêm investigando a
histeria, a anorexia nervosa, a bulimia, a agorafobia, bem como determinadas sintomatologias como: “síndrome do ninho
vazio”, “mães patógenas”, “neurose de dona-de-casa”.
Nesse processo, a feminilidade como uma construção masculina de base patriarcal, é uma fonte primordial
constitutiva do feminino; enquanto uma abstração criada para caracterizar padrões de condutas e o posicionamento subjetivo
de quem se identifica com o lugar assimilado às mulheres, feminilidade corresponde àqueles papéis de gênero
especificamente entendidos como femininos (papel de mãe, de esposa, de dona de casa), todos marcados pelos sentimentos
de amor, altruísmo, contenção emocional, generosidade, desapego, renúncia, servilismo, receptividade; estes papéis de
gênero especificamente feminino implicam condições afetivas de aceitação social e, quem deles discordar, está fadada a
sofrer rejeição e censura e, consequentemente, mal-estar psíquico. Estes atributos definem o “ser mulher” e, assumir tais
papéis, é corresponder à identificação com a “natureza feminina”.
O imaginário coletivo moderno instituiu uma forma de ser mulher, que se sustenta, como afirma Fernández (1996),
numa trilogia narrativa: o mito de Mulher igual à Mãe, o mito do amor romântico e o mito da passividade erótica das
mulheres. Estes mitos, articulado com o ordenamento dos espaços público e privado, constituem o caldo de cultura propício à
construção subjetiva própria do feminino; entre outras características, o “ser do outro” em detrimento do “ser de si”,
contribuem também para a fragilização /vulnerabilidade emocional das mulheres, cujas subjetividades são atravessadas por
esta dimensão política de gênero, historicamente construída.Acrescentamos a essa trilogia alguns traços que são
lidos/sentidos como “naturalmente” femininos e que tem implicações na vida das mulheres e na sua condição de adoecer,
como por exemplo: o sentimento de culpa, herança histórica desde as narrativas mais antigas da história humana; a vaidade
feminina, como lembra Dio Bleichmar (1988, p.95), resultante do lugar de objeto para o outro, históricamente atribuído às
mulheres: “Quanto mais bela, mais apreciada, mais amada, mais desejada”.
Sintetizando os pontos chaves que discutimos sobre o adoecer feminino sob um olhar de gênero, destacamos o
conflito que se estabelece entre as mulheres e os padrões de feminilidade resultando, em algumas delas, nas ditas “Patologias
de protesto”. Um outro ponto que destacamos é a necessidade de uma abordagem que articule os saberes de gênero e
psicanalítico, sobretudo pela presença do componente psico-sexual e de mecanismos inconscientes no processo de
construção subjetiva; esse dado já vem sendo reconhecido pelo feminismo como elemento importante na manutenção das
condições desiguais entre os gêneros.O poder dos afetos e a trilogia narrativa que constrói os mitos sobre o feminino são
outros pontos a serem considerados, tanto na subjetividade, quanto na construção discursiva do adoecer feminino.

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Vida conjugal, curso de vida e sexualidade


Pedro Moura Ferreira
Instituto de Ciência Sociais - Universidade de Lisboa
[email protected]

Resumo: Com base em dados de um inquérito nacional sobre comportamentos sexuais, o objectivo desta comunicação é de analisar a
sexualidade conjugal entendida como um sistema de interacção que evolui ao longo do tempo. A sexualidade não pode ser restringida a um
conjunto de pulsões ou de desejos instintivos, desligados da envolvente social. As interacções sexuais têm de ser entendidas a partir de um
sistema de interacções mais vasto que envolvem as trajectórias de vida dos indivíduos. A vida de um casal conhece diversas etapas, e mesmo
que a natureza transversal dos dados não permita verdadeiramente descrever trajectórias, proporciona uma caracterização das interacções
sexuais em função dessas etapas e do seu funcionamento. Deste modo, pretendemos descrever a dinâmica sexual do casal em função de
diferentes timings e constrangimentos do curso de vida. De entre os eventos da vida conjugal que poderão ter mais impacto sobre a dinâmica
da vida sexual, a procriação e a longevidade da relação conjugal parecem incontornáveis. Parte importante da análise que desenvolvemos tem

178
a ver com o papel que estas duas variáveis ocupam no funcionamento da vida sexual, dando relevância não apenas às práticas sexuais mas
também às interpretações e descrições dos indivíduos sobre a vida sexual. Neste sentido, parece absolutamente necessário separar o ponto de
vista masculino e o feminino na medida em que o ciclo de vida sexual do casal é influenciado pelas posições distintas que homens e
mulheres mantêm em relação à vida conjugal e à sexualidade

Os estudos sobre a sexualidade têm identificado um conjunto de variáveis que condicionam e formatam a
actividade sexual dos indivíduos (Bajos, 1998, 2008; Kinsey, 1948; Laumann, 1995; Welling 1994). De entre essas variáveis,
uma das que mais contribui para explicar a variabilidade e intensidade da actividade sexual é a conjugalidade, entendida
como a vivência conjunta em casal. Há várias especificidades que a distingue do papel desempenhado por outras variáveis,
como a educação ou a idade. Uma delas tem a ver com o facto de constituir a unidade da organização social em que a maior
parte da actividade sexual adulta ocorre. Além disso, é em torno do casal que a reprodução e o consumo estão organizados. E
convém ainda referir que a situação conjugal afecta o posicionamento do indivíduo no mercado afectivo e sexual,
condicionando a sua elegibilidade enquanto potencial parceiro.
O facto de a conjugalidade enquanto prática normativa de organizar a vida sexual da população adulta estar tão
presente na sociedade fez com que Kinsey a elegesse como modelo da sexualidade, em relação ao qual outras práticas de
organização sexual eram referenciadas. Por exemplo, a sexualidade pré-conugal, que se refere sobretudo à experiência sexual
dos jovens, parte do pressuposto de que o casal, até há bem pouco tempo pensado exclusivamente em termos de casamento,
constitui a principal forma de organização social da sexualidade, o lugar predominante onde a actividade sexual se desenrola.
O uso do conceito de «sexualidade pré-conjugal» implica o casamento, pelo menos implicitamente, como destino final e
como principal fonte de significação da actividade sexual. Na mesma linha surge o conceito de relação extraconjugal, para
designar a existência de relações ilícitas com outros parceiros em contraponto à relação legítima. Ainda que hoje seja difícil
aceitar uma referência focalizada na instituição do casamento e considerar os outros modelos de actividade em função dela,
não se pode negar que a sexualidade para a maioria da população adulta se desenrola no quadro conjugal. O facto de a
actividade sexual ser em grande parte de natureza relacional, envolvendo na maioria das situações duas pessoas, e a tendência
para a conjugalidade se afirmar como um modelo de relacionamento dominante na população adulta, torna o modelo da
sexualidade conjugal, uma referência obrigatória na compreensão da sexualidade da população adulta.
A perspectiva que assumimos é, portanto, de analisar as mudanças da sexualidade ao longo das fases e durações do
ciclo conjugal (Kafmann, 1993), focando em especial o papel das relações de género na formatação da conduta sexual de
homens e mulheres. Além da consideração destas relações, pareceu-nos imprescindível ter em conta o papel da segunda (ou
terceira) conjugalidades. Na realidade, uma das dificuldades em avaliar o impacto das diferentes durações do ciclo conjugal
na actividade sexual reside no facto de essas durações estarem correlacionadas com o envelhecimento. Se a actividade sexual
declina com o aumento do tempo de vivência conjunta, esse declínio está não apenas relacionado com o envelhecimento, mas
também, ainda que, porventura, menos intensamente, com a dinâmica relacional e emocional dos casais. Ora, atendendo a
que os indivíduos que entram numa nova relação conjugal após a dissolução ou a ruptura de uma anterior são, em média e
para a mesma duração conjugal, mais velhos, a divisão dos casais de acordo com a conjugalidade em que se encontram
permitirá dissociar, pelo menos em parte, a colagem estreita entre a duração conjugal e o envelhecimento dos indivíduos e
destacar o impacto das diferentes durações do ciclo conjugal, especialmente as que se relacionam com a fase inicial, na
actividade sexual do casal.
Os dados em que iremos basear esta incursão à actividade sexual da população que vive em casal são retirados do
projecto sobre os comportamentos sexuais da população portuguesa e a infecção HIV/Sida, cujo trabalho de campo decorreu
ao longo do ano de 2007. Tendo por objectivo geral estudar as relações entre os comportamentos sexuais e os
comportamentos de risco associados à transmissão do HIV na população residente em Portugal, o projecto assentou em
termos metodológicos na realização de um inquérito baseado numa amostra representativa (3643) dos indivíduos com idades
entre os 16 e os 65 anos residentes em Portugal Continental. Embora este inquérito tivesse sido em grande medida formatado
por questões e preocupações relacionadas com a epidemia do hiv/sida, os dados recolhidos proporcionam informação
detalhada sobre a vida sexual dos portugueses, que nos permite sustentar a abordagem que pretendemos desenvolver.
O objectivo principal é assim de caracterizar as mudanças da sexualidade ao longo do ciclo conjugal, tendo em
considerações as relações de género e a distinção entre a primeira e as conjugalidades subsequentes, que, na amostra, não vão
além da terceira. Como indicadores da actividade sexual tomaram-se em consideração os seguintes: a frequência, a
satisfação, o interesse, a diversificação das práticas, o número de parceiros, a iniciativa e as disfunções sexuais.

Uma sociografia breve


À luz dos dados do inquérito aos comportamentos sexuais dos portugueses, a maior parte da população portuguesa
vive em casal (64,7%). Esta seria só por si uma razão de peso para justificar uma atenção particular à sexualidade conjugal no
âmbito dos comportamentos da população portuguesa. A parte restante divide-se entre os que já viveram em casal (12%) e os
que nunca viveram (22,4%). Referindo apenas os que vivem actualmente em casal, a maior parte deles está (86,7%) na
primeira conjugalidade, enquanto os restantes 35,3% estão noutra, sendo a segunda a que largamente predomina. Do ponto de
vista dos filhos, a maior parte dos casais não tem filhos a viver com eles (57,3%). Nos que os têm, a repartição entre filhos
pequenos (abaixo de 12 anos) e maiores (só filhos de mais de 12 anos) é sensivelmente a mesma. A distribuição é de,

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respectivamente, 22,5% e 20,2%. É também interessante notar que apesar de a grande maioria dos que vivem em casal estar
casada, muitos casais entraram na conjugalidade pela coabitação (37,2%), tendo uma parte deles sido posteriormente
cooptada pelo casamento, e outra permanecido na coabitação (15% dos casais).
Para o propósito da análise, a variável mais importante é, contudo, a duração da vivência conjugal. A distribuição
revela que o período até 15 anos é o que concentra o número mais elevado de casais (38,2%), com 12,4% nos primeiros cinco
anos, seguido depois do período de 16 a 30 anos (35,5%). Acima desta duração existem 26,3% de casais. Há, portanto, uma
tendência de diminuição em função da longevidade do casal, perfeitamente compreensível atendendo a que a longevidade
conjugal tende a acompanhar a idade das pessoas. No entanto, não há sobreposição perfeita, devido, por um lado, ao facto de
a conjugalidade ser tardia para alguns indivíduos, e, por outro, devido à existência de casais recompostos, que tendem,
naturalmente, a provocar um desfasamento maior entre a idade dos indivíduos e a longevidade da relação conjugal.
Esse desfasamento pode ser comprovado através das idades médias (Quadro 1). Comparando homens e mulheres de
acordo com a situação conjugal em que se encontram, constata-se que a primeira conjugalidade apresenta idades actuais e de
início da relação mais baixas. Por exemplo, os homens que estão numa relação conjugal há menos de cinco anos têm, em
média, 29 anos, uma idade bastante mais baixa da dos homens que reiniciaram uma outra conjugalidade (36 anos). As idades
ao início do relacionamento são também bastante distintas, e directamente relacionadas com a idade actual dos inquiridos.
Quanto mais novos são, mais as idades ao início do relacionamento tendem a ser baixas. Os dados comprovam assim que a
duração conjugal não resulta de uma forma imediata da idade dos indivíduos. É necessário ter também em conta as
trajectórias conjugais. Esta distinção etária entre os casais recompostos e os outros permitir-nos-á diferenciar a influência que
resulta do envelhecimento e que é correlativo à idade dos indivíduos, e a que advém da dinâmica do casal, que se encontra
relacionada com a sua duração.

Quadro 1
Idade actual, idade ao início da relação conjugal e o número de efectivos por períodos
do ciclo conjugal, segundo o sexo e a conjugalidade

Duração da vida em casal (em anos)


0-5 6-15 16-30 30 > Total
1ª Conjugalidade
Homens 95 210 347 269 922
% 10,3 22,8 37,7 29,2 100,0
Idade 29 34 45 58 42
Idade ao início da relação conjugal 25 23 22 21 23
Mulheres 74 252 356 261 943
% 7,8 26,7 37,8 27,6 100,0
Idade 27 33 43 57 40
Idade ao início da relação conjugal 24 22 21 20 21
2ª ou outra conjugalidade
Homens 56 55 28 20 159
% 35,3 34,5 17,7 12,5 100,0
Idade 34 41 49 60 41
Idade ao início da relação conjugal 33 27 26 21 29
Mulheres 45 40 25 10 120
% 37,7 33,1 21,1 8,2 100,0
Idade 36 36 47 58 40
Idade ao início da relação conjugal 31 31 28 22 30

A longevidade conjugal e o declínio da frequência sexual


A frequência sexual do casal pode ser captada através de dois indicadores: o número de relações sexuais relativas
ao último mês e a duração da última relação sexual.
A leitura do número de relações sexuais revela a suposição comum de que a actividade sexual tende a declinar ao
longo da vida do casal. No período inicial a actividade é intensa. O número médio anda em torno de dez relações, sendo um
pouco superior nos homens. Esta média vai progressivamente baixando à medida que aumenta a duração conjugal, sendo a
partir de 30 anos, na primeira conjugalidade, cerca de metade.
Este declínio da actividade sexual pode também ser sustentado quer com base na diminuição do número de
indivíduos que reportam uma actividade sexual intensa, acima de dez relações mensais, quer no aumento da inactividade
sexual. Do primeiro período da duração conjugal (menos de 5 anos) para o último (mais de 30 anos), a percentagem de
homens que afirmam ter tido mais de dez relações sexuais cai de 44,8% para 15,9%, enquanto a mesma queda é nas mulheres
mais abrupta: de 37,6% para 4,8% (Quadro 2). A queda é assim mais significativa nas mulheres do que nos homens. Do lado
da inactividade os resultados são também expressivos, sobretudo quando comparados por sexo. Nos homens quadruplicam,

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passando de 4,8% para 19,5%. Nas mulheres, partindo de uma base semelhante à masculina (5,5%), a inactividade sextuplica
(30,7%).
Que razões poderão explicar esta disparidade da actividade sexual conjugal reportada por homens e mulheres?
Apesar de a unidade de análise ser o casal é evidente que os indivíduos não estão emparelhados, pelo que a frequência sexual
reportada dificilmente poderia ser simétrica. Variações de alguma amplitude seriam de admitir, mas dificilmente se esperaria
que estivessem todas elas enviesadas no sentido masculino. Uma explicação para esta «anormalidade» passa por admitir que
a actividade sexual não ocorre toda ela no âmbito da conjugalidade, sendo a actividade extraconjugal, como poderemos
constatar mais adiante, mais comum nos homens. No entanto, a actividade extra-conjugal apenas poderia contribuir
significativamente para colmatar o hiato entre homens e mulheres se assumisse proporções bastante expressivas, o que parece
não acontecer. As diferenças têm de ser entendidas a partir do facto de «a actividade sexual não poder ser dissociada dos
pontos de vista, dos interesses e das interpretações dos actores, nem dos cenários nos quais adquirem sentido» (Bozon, 1998,
p. 181). Reportar a actividade sexual é activar descrições e interpretações não apenas sobre as relações de troca e o
funcionamento do casal mas também sobre a sexualidade e as relações de género. E, atendendo aos dados, parece seguro
dizer que as descrições e as interpretações masculinas e femininas estão longe de coincidirem.
O segundo indicador que se seleccionou no sentido de dar conta da actividade sexual do casal ao longo do tempo
reporta a duração da última relação sexual. A pergunta ventilava um conjunto de intervalos de tempo, indo de menos de 15
minutos a mais de duas horas, dos quais se reteve o intervalo acima de meia hora. Através dele é possível observar uma
descida do número de indivíduos que o reportam. Nos homens, a percentagem cai de quase de metade (47,6%) para 14%; nas
mulheres, a descida é ainda mais acentuada: de 37,1% para 8,3%. Também aqui os tempos masculinos e femininos são
bastante díspares, apontando os primeiros para uma actividade mais intensa. É evidente que é sempre uma questão algo
subjectiva saber quando se inicia e quando acaba a relação sexual, mas essa subjectividade existe independentemente da
duração da vida conjugal, pelo que a diferença tem mais a ver com a forma como homens e mulheres reportam e interpretam
a vida sexual. Seja como for, ambos convergem no sentido de um encurtamento do tempo da relação sexual ao longo da vida
do casal. Não é apenas a frequência de relações que diminui, mas é também a duração da própria relação sexual que
diminuiu.

Quadro 2
Frequência sexual no último mês e duração da última relação sexual por período do ciclo conjugal, segundo o sexo e a conjugalidade
Duração da vida em casal (em anos)
0-5 6-15 16-30 30 > Total
1ª conjugalidade
Homens (total)
Frequência mensal (média) 11 10 8 6 8
Mais de 10 relações (%) 44,8 34,3 19,4 15,9 25,7
Nenhuma relação (%) 4,8 4,3 3,8 19,5 8,4
Duração da última relação sexual acima de 30 minutos 47,6 35,1 17,6 14 24,9
(%)
Mulheres
Frequência mensal (média) 10 8 6 4 6
Mais de 10 relações (%) 37,6 26,1 15,5 4,8 18,1
Nenhuma relação (%) 5,4 4,8 15,1 30,7 15,3
Duração da última relação sexual acima de 30 minutos 37,1 31,5 13,9 8,3 20,5
(%)
Outra conjugalidade
Homens
Frequência mensal (média) 12 12 * * 10
Mais de 10 relações (%) 41,8 44,7 36,4
Nenhuma relação (%) 2,7 1,6 7,9
Mulheres
Frequência mensal (média) 11 9 * * 9
Mais de 10 relações (%) 37,2 26,4 27,3
Nenhuma relação (%) 1,2 7,0 1,2
(*) Número insuficiente de efectivos

Atendendo a que a duração da vida conjugal tem uma óbvia associação à idade, há o risco de entender o declínio
da actividade sexual como um efeito exclusivamente resultante do processo de envelhecimento, desconsiderando a dinâmica
própria da relação conjugal. É verdade que a idade do indivíduo aumenta em função da vivência conjugal, mas o inverso não
é necessariamente verdadeiro. As durações curtas ou relativamente curtas das vivências conjugais são compatíveis com
idades mais elevadas do que a duração dessas vivência tenderia sugerir, seja por causa dos processos de recomposição que
ocorrem após separações e rupturas conjugais, seja por causa de entradas tardias na conjugalidade. Estas situações

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proporcionam uma oportunidade para diferenciar o impacto do envelhecimento e o da duração da vivência relacional. No
entanto, os efectivos que se encontram envolvidos não são suficientemente numerosos para permitir uma distribuição
consistente pelas quatro durações da vivência conjugal desdobradas por sexo. Retivemos por isso a situação que nos pareceu
do ponto de vista numérico mais consiste: os dois tempos mais curtos relativos aos indivíduos que integram os casais
recompostos. Como referimos anteriormente, eles tendem a apresentar uma idade mais elevada em ambos os sexos em
relação aos indivíduos que se encontram na primeira conjugalidade. Por exemplo, na duração de menos de cinco anos, a
idade média destes últimos de, respectivamente, de 29 e 27 anos contrasta com a dos casais recompostos, cujos valores
correspondentes são de 34 e 36 anos (Quadro 1). Ora, se a frequência sexual dependesse apenas da idade, estes indivíduos
mais velhos deveriam apresentar para a mesma longevidade conjugal uma actividade sexual tendencialmente menos intensa
do que a dos indivíduos mais novos. Mas, de facto, não é isso que acontece.
Nos casais com uma duração inferior a quinze anos, a frequência sexual é menos intensa nos que se encontram na
primeira conjugalidade do que nos casais recompostos, em que a idade média é bastante mais elevada. Reportando a
frequência das mulheres cuja vivência conjugal é inferior a cinco anos, o diferencial entre as duas situações conjugais é de
duas relações sexuais. Estas diferenças são suficientemente expressivas para sublinharem a necessidade de se ter em conta a
dinâmica própria do casal na actividade sexual e de a não reduzir a um mero efeito do processo de envelhecimento. A
actividade sexual é sempre mais intensa nos primeiros anos do relacionamento conjugal e esta intensidade, sendo em certa
medida independente da idade, tende a opor-se ao efeito recessivo da idade.
O facto de os casais recompostos registarem uma frequência sexual superior à dos outros poderia ficar a dever-se a
diferenças no que respeita à existência de filhos pequenos, sendo de esperar uma presença mais forte no casais que se
encontram na primeira conjugalidade, atendendo a que são bastante mais novos. A comparação entre os casais com filhos
pequenos de menos de 12 anos e os casais sem filhos nas duas situações conjugais mostra, no entanto, as mesmas diferenças
(Quadro 3). Se bem que a presença de filhos pequenos refreie a frequência sexual nas duas situações conjugais, a diferença
entre elas mantêm-se, sendo a frequência sexual sempre superior nos casais recompostos. É possível, portanto, concluir que
essa actividade sexual mais intensa tem de resultar da dinâmica destes casais, pelo menos dos que têm uma vivência conjunta
inferior a quinze anos. Mas outro ponto que merece ser destacado releva que o envelhecimento está longe de constituir a
única explicação para a variação da actividade sexual através das múltiplas situações que atravessam os percursos conjugais.

Quadro 3
Frequência sexual nos dois primeiros períodos do ciclo conjugal, segundo o sexo,
a conjugalidade e a existência de filhos de menos de 12 anos
Duração da Frequência mensal (média) Filhos
vida em 1ª conjugalidade Outra conjugalidade 1ª conjugalidade Outra conjugalidade
casal (em Homens Mulheres Homens Mulheres Filhos de Sem Filhos de Sem
anos) < 12 anos filhos < 12 anos filhos
0-5 11 9 12 11 9 11 11 12
6-15 9 8 12 9 8 10 10 12

A longevidade conjugal e a satisfação sexual


É um ponto assente que a frequência sexual declina com a longevidade da vida conjugal. Como é que a longevidade
afecta outras dimensões da vida sexual, como o prazer, as práticas eróticas, a iniciativa ou o interesse sexuais? A acção do
tempo vai sempre no sentido de provocar uma contracção da actividade sexual, ou haverá dimensões que resistem a esse
efeito devastador, permitindo até novas atribuições de sentido, pelo menos de algumas das suas dimensões? As marcas do
tempo na actividade sexual não reflectem apenas o indelével processo de envelhecimento, mas também as reconfigurações da
identidade ao longo do curso de vida. Estas mudanças não podem deixar de se articular às relações de género e marcar de
forma diferenciada as atitudes de homens e mulheres perante a sexualidade. Mas também é necessário convocar a dinâmica
do casal. A diferenciação entre a primeira e a segunda ou terceira conjugalidades permite cortar com a linearidade entre a
idade individual e a longevidade do casal. Para a mesma duração conjugal é possível confrontar duas situações conjugais em
que a idade média é significativamente distinta, permitindo diferenciar entre os efeitos induzidos pela dinâmica do casal e os
do processo de envelhecimento. É também possível supor que as recomposições conjugais impliquem trocas e interacções
entre os parceiros, e até formas de assumir a identidade do nós que o casal representa, bastante distintas das que se encontram
na primeira conjugalidade.
A incursão que será de seguida realizada percorre alguns trilhos da sexualidade do casal, desdobrando-os pelas
linhas do género e das conjugalidades. O desdobramento não as cruza, ou seja, não contempla as diferenças entre homens e
mulheres nas duas situações conjugais contempladas. Não por alguma consideração teórica, que, a existir, advogaria
precisamente o contrário, mas porque, por vezes, o número de casos com que se está confrontado, especialmente no que se
refere aos casais recompostos, é demasiado baixo para assegurar uma fidedignidade mínima aos valores médios ou
percentuais obtidos. Deste modo, consideraremos de forma separada as diferenças, por um lado, entre homens e mulheres, e,
por outro, entre a primeira e as conjugalidades subsequentes.

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A dimensão da satisfação é uma das dimensões centrais para aferir da qualidade da vida sexual. Indagou-se, por
isso, a frequência com que os indivíduos associam o prazer à prática de relações sexuais (sempre, quase sempre, na maior
parte das vezes, algumas vezes, pouca vezes, nunca). A leitura das diferenças entre homens e mulheres pode dar uma ideia de
um distanciamento bastante maior do que, na realidade, existe. Com efeito, os homens dizem muitas mais vezes do que as
mulheres que têm sempre prazer. A resposta delas é mais comedida e optam maioritariamente por dizer que têm prazer na
maior parte das vezes (resultados não apresentados). A consideração desta segunda resposta conjuntamente com a primeira
permite reduzir consideravelmente a diferença entre homens e mulheres.
Um exemplo apenas. Na duração de menos de cinco anos, essa diferença é de menos de 10%: 90% nas mulheres,
contra praticamente a totalidade nos homens (Quadro 4). O ponto relevante é que os homens tendem a assinalar menos
insatisfação do que as mulheres, embora a diferença não seja tão pronunciada como a que decorre quando se compara a
resposta tenho sempre prazer nos dois sexos. No entanto, o enviesamento que pode resultar do facto de estarmos apenas a
considerar uma categoria de resposta não pode escamotear a tendência para a insatisfação crescer muito mais depressa nas
mulheres do que nos homens. Com efeito, a percentagem de homens que dizem ter sempre prazer ou na maior parte das vezes
nunca desce abaixo de 90%, enquanto nas mulheres a percentagem começa a descer logo a partir de cinco anos de vivência
conjugal para se situar num valor inferior a 50% na última categoria da longevidade. Se consideramos, nesta última categoria,
apenas a resposta ter sempre prazer, a enorme diferença entre homens e mulheres (respectivamente, 60,3% e 18,3%) permite-
nos questionar se não estaremos perante uma interpretação masculina da sexualidade, que tende a considerar o prazer como
sinónimo de uma certa virilidade entendida como «a disponibilidade total para a realização da actividade sexual e está
associada ao lugar simbólico como lugar da iniciativa sexual» (Machado, 2004, p. 43).

Quadro 4
Dimensões da actividade sexual nos diferentes períodos do ciclo conjugal,
segundo o sexo e a conjugalidade
Duração da vida em casal (em anos)
0-5 6-15 16-30 30 > Total

Tenho sempre prazer


Homens (total) 74,7 68,7 66,9 60,3 66,7
Mulheres 43,8 37,6 32,8 18,3 31,9
1º conjugalidade 56,4 49,8 50,1 38,9 47,5
Outra conjugalidade 68,9 60 49,8 * 61,4

Sexo oral (nunca fez)


Homens 13,8 21,1 33,7 57,9 34,4
Mulheres 25,2 28,5 48,0 72,3 46,3
1º conjugalidade 18,4 24,0 40,0 64,7 41,1
Outra conjugalidade 18,5 28,2 47,4 51,8 30,0

Pensar em sexo diariamente


Homens 68,2 57,3 39,9 29,6 45,6
Mulheres 28,1 21,1 9,9 3,1 13,3
1º conjugalidade
Outra conjugalidade 48,7 37,7 24,2 16,3 27,7
53,1 40,5 28,6 18,7 41,1
Mais de um parceiro no último ano
Homens 19,2 11,2 9,7 * 10,7
Mulheres 6,9 2,8 * * 3,2
1º conjugalidade 10 5,1 5,6 4,3 5,6
Outra conjugalidade 19 15 12,1 * 15,2

Iniciativa sexual mútua


Homens (total) 56 66,7 54,8 48,4 56,2
Mulheres 77,6 69,7 64,2 54,4 65,3
1º conjugalidade 56,2 69,8 57,9 53,4 59,5
Outra conjugalidade 80,4 59,2 73,6 * 68,7

Desinteresse pela actividade sexual


Homens (total) 7,4 7,0 6,2 24,4 11,1
Mulheres 26,9 26,4 28,9 49,0 33,0
1º conjugalidade 14,5 14,4 16,4 36,8 21,2

183
Outra conjugalidade 18,3 32,6 29,5 47,3 28,0

A comparação entre a primeira e a segunda (ou terceira) conjugalidades mostra que o prazer, além de variar de
acordo com o género, também depende da dinâmica conjugal, em especial nas primeiras etapas do ciclo conjugal. Com
efeito, constata-se que os indivíduos que estão num casal recomposto tendem a referir mais vezes do que os que estão na
primeira conjugalidade que têm sempre prazer. Estas diferenças são sobretudo evidentes quando a longevidade não é ainda
muito longa. É possível que o início de uma nova relação conjugal corrija aspectos menos satisfatórios existentes na
conjugalidade anterior, levando, portanto, a um aumento do índice de satisfação, mas não existe certeza de que essa melhoria
persista nas fases subsequentes do casal.
A observação dos períodos mais longos da vivência conjugal, mesmo que a informação disponível não os cubra
completamente, sugere não apenas que o efeito do tempo se repercute negativamente na satisfação sexual, como, aliás, já o
havíamos constatado anteriormente, como também tende, aparentemente, a anular as diferenças entre as conjugalidades.
Apesar de a evidência numérica disponível não ser muito forte, parece que o efeito da duração tende a sobrepor-se ao da
dinâmica do casal. Se o início de um novo relacionamento exerce um efeito positivo na satisfação sexual do casal, com o
tempo esse efeito tende a dissipar-se e a satisfação aproxima-se da dos outros casais. A dinâmica conjugal dá assim lugar à da
longevidade, tornando a curva da satisfação regressiva em função do tempo.

A longevidade conjugal e o interesse sexual


Paralelamente à satisfação encontra-se o interesse pela actividade sexual. Embora não sendo dimensões sobrepostas
não deixam de ter aspectos que se interceptam. É possível pensar, por exemplo, que a insatisfação ou a ausência de prazer
seja acompanhada, em muito casos, mas não necessariamente em todos, de um interesse reduzido ou nulo pela actividade
sexual. Como acontece com a satisfação, o interesse não está distribuído de uma forma uniforme. São essas variações que
importam registar. No inquérito, o interesse foi medido a partir da frequência com que se pensa em sexo, medida através de
um conjunto de categorias que variam de várias vezes por dia a nunca. Os dados reportados referem as duas categorias de
intensidade mais elevadas (várias vezes ao dia e todos os dias).
A constatação mais óbvia é a intensidade masculina. Os homens manifestam um interesse pela actividade sexual
muito superior ao das mulheres, em qualquer duração do ciclo conjugal. Mesmo as percentagens relativas ao total (Quadro 4)
são muito expressivas (respectivamente, de 45,6% e 13,3%). Uma segunda constatação também muito clara assinala que o
interesse pela actividade sexual regista um recuo muito evidente em função da longevidade conjugal. Quer nos homens, quer
nas mulheres, o interesse diminui muito significativamente. Obviamente que este recuo não significa que desapareça. Como
estamos a reportar as duas categorias de maior intensidade, o interesse passa a manifestar-se pelas categorias mais
moderadas, como algumas vezes por semana ou algumas vezes por mês. Seja como for, a intensidade do desejo diminui em
função da duração conjugal, como, aliás, se verificou quer em relação à satisfação quer em relação à frequência sexual. O
interesse é neste sentido uma outra forma de reflectir o declínio da actividade sexual.
Se o papel do envelhecimento é escusado de referir, interessa averiguar em que medida a dinâmica conjugal
interage com a diminuição do interesse sexual. A observação da distribuição entre a primeira e as outras conjugalidades
sugere, de facto, que nem tudo depende da idade. Ainda que as diferenças não sejam abismais, há uma diferença consistente
entre elas. O interesse pela actividade sexual é mais elevado nos casais recompostos em qualquer duração considerada, apesar
da curva descendente que descreve. Ora sabendo, que a média de idade desses casais é mais alta, sobretudo na primeira
metade do ciclo conjugal, esse interesse renovado que manifestam em relação ao sexo tem de provir do facto de se
encontrarem noutra relação conjugal e dos padrões de troca e de organização que dela emerge. O interesse sexual não decai
apenas em função da idade, vista a partir da longevidade, mas também em função da dinâmica e da intensidade da troca que
ocorrem no casal.

A longevidade conjugal e a diversificação do reportório sexual


É difícil não aproximar entre si as dimensões analisadas. Quanto mais elevada for a frequência sexual mais a
satisfação e o interesse tenderão a manifestar valores mais altos. Se bem que uma frequência pouco elevada não seja
necessariamente acompanhada de insatisfação (ou de desinteresse), faz sentido que se incentivem entre si, qualquer que seja a
direcção. O racional consiste em admitir que os indicadores de actividade sexual tendem a estar correlacionados entre si. A
questão é de saber se essas correlações se manifestam nas situações em que desdobramos a actividade sexual, ou seja, por
género e conjugalidade. É o que procuraremos aferir com a dimensão que agora será analisada e que procura equacionar a
diversificação da prática sexual, tendo-se socorrido da prática do fellatio ao longo da vida. A observação dos números,
independentemente de se referirem ao sexo ou à conjugalidade, revela um forte declínio em função da longevidade. É
preciso, no entanto, ter em conta que a prática de sexo oral é mais susceptível do que qualquer outra de ser afectada por
efeitos de geração. Se hoje pode ser considerada uma prática banalizada do repertório sexual dos indivíduos, não o era há
algumas décadas atrás (Bozon, 2005). Por isso, o recurso menos frequente em função da longevidade conjugal não pode ser
encarado apenas como consequência do envelhecimento, cuja consequência seria de limitar ou condicionar as manifestações

184
das práticas sexuais, mas também, e principalmente, do facto de o sexo oral não figurar no repertório sexual dos casais das
gerações mais velhas, sobretudo na vertente feminina. Com efeito, acima da duração de trinta anos, a percentagem das
mulheres que dizem nunca tê-lo praticado é bem mais significativa do que a dos homens, sendo, respectivamente de 72,3% e
57,9% (Quadro 4). Este efeito de geração não quer dizer que a duração não tenha também um impacto. Se tivéssemos
reportado a prática de sexo oral relativa ao último ano, e considerado apenas os que responderam afirmativamente, teríamos
verificado que a frequência tende a diminuir em função da longevidade (dados não apresentados). Ou seja, mesmo quando a
prática figura no repertório sexual, a tendência é de descida à medida que aumenta o tempo da vivência conjugal.
A diferença de género aporta, assim, variações importantes. Por um lado, os homens, reportam uma prevalência
mais elevada de sexo oral ao longo da vida, que resulta num repertório sexual mais diversificado. Por outro, tendem a
assinalá-lo no último ano mais frequentemente quando se encontram ainda na primeira metade da longevidade conjugal, e a
aproximar-se dos valores que são reportados pelas mulheres quando entram na segunda metade do ciclo conjugal. Mais uma
vez se observa que o activismo mais intenso manifestado pelos homens, mais não seja que em termos interpretativos, tende a
perder furor com o aumento do tempo conjugal.
Um resultado que não seria de todo expectável é verificar que a diversificação da prática sexual é alheia à dinâmica
conjugal. Esperar-se-ia que os indivíduos que se encontram noutra conjugalidade apresentassem um repertório mais
diversificado. Os números não revelam diferenças consistentes em função da longevidade do casal. As prevalências são
semelhantes nos primeiros anos da vida conjugal, depois divergem um pouco nas categorias seguintes, primeiramente a favor
da primeira conjugalidade, e, na última categoria de duração, a favor dos casais recompostos. Seja como for, a conclusão
possível não atesta que a mudança de conjugalidade contribua decididamente para o enriquecimento do repertório sexual,
nem tão pouco a duração conjugal que tende, devido a um efeito de geração, como vimos, a apresentar uma diversificação
mais limitada das práticas sexuais. No entanto, esta relação começará a inverter-se a partir do momento em que as gerações
mais novas socializadas no âmbito de práticas sexuais mais diversificadas forem substituindo as gerações mais velhas. Mas
este alargamento do repertório sexual não significa que esteja presente, ou venha a estar presente, com a mesma intensidade
por todo o ciclo conjugal. Os dados analisados sugerem que a diversificação da práticas sexuais ocupa um lugar mais
importante nos primeiros anos da vida conjugal do que nos anos subsequentes.

A longevidade conjugal e as relações multiparceiros


Em todas as dimensões sexuais, como se tem constatado, os homens reportam uma actividade sexual superior à das
mulheres. Sustentamos que essa diferença poderia em parte provir da interpretação e da representação que os homens fazem
da sexualidade que os levaria a reportar um activismo sexual porventura superior ao que, na realidade, acontece. Mas outra
parte da explicação dessa diferença poderia também residir na actividade extraconjugal. Por exemplo, a frequência sexual
mostrou que a abstenção feminina relativa ao último mês é bastante superior à masculina, independentemente da trajectória
conjugal. Ora, pode pensar-se que os homens são mais resistentes ao reconhecimento da abstenção sexual na medida em que
isso poderia mais facilmente afectar-lhes a auto-estima e a sua representação da masculinidade. Esta interpretação, que pode,
evidentemente, ser mais adequada em certas situações de que em outras, não é incompatível com a existência de relações
extraconjugais, que representa outra explicação possível para a diferença verificada entre a população masculina e a feminina
que vive em casal.
A consideração das relações extraconjugais não resulta apenas da necessidade de colmatar o hiato que existe na
forma de homens e mulheres reportarem a actividade sexual com outra explicação que complemente a que recorre à
constituição das identidades de género. Igualmente importante é tomar as relações extraconjugais como um indicador da
desintegração do nós conjugal, pelo menos em termos de uma unidade afectiva, eventualmente prenunciador de uma
mudança no clima e na organização do casal, que pode, mas não necessariamente, precipitar a ruptura conjugal. Neste
sentido, essas relações funcionam como um termómetro da qualidade relacional, constituindo também um indicador para se
apreciar a fase do ciclo conjugal em que se encontra o casal. Seguindo Kaufmann (1993), é evidente que os encontros
fortuitos ou as relações paralelas que se prolongam no tempo acontecem mais frequentemente quando o casal se instala nas
rotinas da conjugalidade do que na fase inicial em que a focagem no outro e um certo sentimento de exclusividade constituem
componentes essenciais do laço que une e funde os dois elementos do casal numa unidade relacional e organizacional.
Indo ao encontro das representações que a maior parte das pessoas têm da infidelidade, as respostas dos inquiridos
também não deixam dúvidas em relação à suspeita que deixamos antever há pouco: os homens reportam efectivamente mais
parceiros sexuais do que as mulheres no último ano (Quadro 4). Em bom rigor, este indicador não é totalmente equiparável à
existência de relações extraconjugais, na medida em que é possível, no mesmo ano, ter tido um relacionamento com outra
pessoa que não aquela com quem se passou a viver. É, no entanto, uma possibilidade que apenas se verifica em alguns casos
não muito numerosos, pelo que a sobreposição do número de parceiros no último ano e a existência de relações
extraconjugais é quase completa, não havendo espaço para se cometer uma distorção significativa.
A diferença entre homens e mulheres é considerável, qualquer que seja a longevidade conjugal considerada, ainda
que não tenha sido possível obter um número suficiente de efectivos na categoria de mais de trinta anos. Para o conjunto, os
homens reportam três vezes mais casos de relações extraconjugais do que as mulheres (respectivamente, 10,7% e 3,2%). Esta
diferença é mais ou menos constante ao longo do tempo conjugal. O resultado mais surpreendente é constatar que a
existência de relações extraconjugais predomina nos primeiros anos e tende a diminuir à medida que aumenta a duração da

185
vida do casal. Ora não seria mais expectável que o relacionamento extraconjugal se intensificasse a partir das rotinas
quotidianas que se instalam na vivência do casal e que tendem a aumentar com o tempo de vivência conjunta? Com efeito, é
necessário atender que o período de duração mais curto contemplado na análise (cinco anos) pode constituir um tempo mais
que suficientemente para ultrapassar as fases iniciais do relacionamento amoroso e alcançar a fase designada por Kaufmann
(1993) de conforto, que seria a mais propensa para a eclosão da procura sexual fora do âmbito conjugal. Se esta interpretação
for correcta, então o período de cinco anos não revela plenamente a fase inicial da vida do casal. Seja como for, a perda de
importância do relacionamento extraconjugal acima do período de cinco anos pode significar o abandono da procura de
outros parceiros que, aliás, seria reforçado pelo declínio da actividade sexual em função da idade do indivíduo, ou então, a
dissolução de muitas das uniões em que pelo menos um dos membros se envolveu em relacionamentos extraconjugais. Nesta
última hipótese, a descida percentual que se verifica ao longo da idade seria também provocada pelo facto de os indivíduos
envolvidos nesses relacionamentos, ou pelo menos parte deles, terem posto termo à conjugalidade em que se encontravam,
passando a viver sozinhos ou iniciando novo relacionamento conjugal, reduzindo drasticamente o peso dos relacionamentos
extraconjugais em função da longevidade.
A dinâmica extraconjugal tende a manifestar-se relativamente cedo na vida do casal. Não quer dizer que se
manifeste logo nas fases iniciais em que o relacionamento é mais intenso e em que o envolvimento afectivo tende a exprimir-
se através da fusão emocional e sentimental. Mas não é necessariamente preciso muito tempo para que a relação entre numa
fase de estabilização em que o sentimento de fusão abranda, dando, em alguns casos, origem a um certo distanciamento e
desilusão emocionais que abrem oportunidade para novas procuras. Qualquer que seja o caso, é talvez por isso que o
relacionamento extraconjugal mostre tendência a diminuir em função da duração conjugal. Ou porque a trajectória conjugal
se interrompe de forma definitiva, ou porque o declínio da actividade sexual decorrente do envelhecimento desincentive a
procura de novos parceiros sexuais.
A comparação entre a primeira e a segunda (ou terceira) conjugalidades introduz novos elementos na dinâmica
extraconjugal. Há uma diferença considerável entre elas que se mantém constante ao longo da longevidade do casal, se bem
que, como observamos acima, a procura de outros parceiros tenda a diminuir em função do tempo. A propensão superior dos
indivíduos que passaram por processos de recomposição conjugal para relacionamentos extraconjugais pode advir de duas
razões. A primeira leva a pensar que as normas de interacção remetem para padrões de relacionamento distintos consoante a
conjugalidade. A hipótese subjacente advoga alterações no funcionamento do casal não só à medida que aumenta o tempo de
vivência conjunta, mas também em função da mudança de uma conjugalidade para outra, que aporta outra forma de
organização e de relacionamento. A segunda razão sustenta que a propensão mais elevada para as relações extraconjugais
pode resultar do facto de os casais recompostos serem constituídos, pelo menos em parte, por indivíduos que já revelaram
essa propensão em conjugalidades anteriores, podendo admitir-se que reactivam um comportamento anterior ou que estão em
ruptura com o relacionamento actual ou em vias de emigrarem para outro. Seja como for, é muito claro que as trajectórias
que abarcam processos de recomposição conjugal são bastante mais propensas a essas manifestações extraconjugais, ainda
que evoluam segundo o padrão mais facilmente identificável da actividade sexual, de acordo com o qual se observa um
declínio dessa actividade em função do tempo conjugal percorrido.

A longevidade conjugal e as disfunções sexuais


As dimensões sexuais que têm vindo a ser analisadas convergem no sentido de revelarem que a actividade sexual é
sistematicamente mais intensa nos homens em relação às mulheres e, tendencialmente, mais presente na segunda ou terceira
conjugalidades do que na primeira. Esta convergência é, no entanto, questionada quando se equacionam dois outros domínios
da sexualidade do casal: as disfunções sexuais e a manifestação do desejo na duração conjugal. O primeiro tema é formulado
através do desinteresse sexual e o segundo, analisado posteriormente, por meio de uma pergunta sobre quem tomou a
iniciativa na última relação sexual.
A questão através da qual se abordou o tema da disfunção — o desinteresse sexual no último ano — constitui um
dos indicadores de uma bateria mais ampla de indicadores que incluía também perguntas sobre o desempenho, a dificuldade
em atingir o orgasmo, a ejaculação e a erecção (estas duas últimas só para os homens), e a lubrificação e as dores durante a
penetração (só para as mulheres). O facto de se ter constatado existirem associações entre os indicadores permitiu a escolha
do desinteresse sexual como o mais representativo das disfunções sexuais. Ainda que não necessariamente sobreposto, o
problema das disfunções é um aspecto subterrâneo do declínio da actividade sexual no sentido em que tende a proliferar com
o aumento da idade, contribuindo para acentuar esse mesmo declínio. Seria, portanto, expectável verificar, como, na
realidade, acontece, um aumento do desinteresse sexual à medida que o tempo da vivência conjugal se alonga. Mais
interessante é atentar nas diferenças entre homens e mulheres e entre as conjugalidades.
As mulheres reportam um desinteresse sexual bastante superior ao dos homens e fazem-no em qualquer dos
períodos considerados. As diferenças são sempre bastante significativas (Quadro 4). Logo no primeiro período de menos de
cinco anos, a manifestação feminina de desinteresse é três vezes superior à masculina (respectivamente, 26,9% e 7,4%). Esta
diferença mantém-se mais ou menos constante nos outros períodos, apesar de o desinteresse se agravar para ambos os sexos
no último, ou seja, quando a longevidade conjugal ultrapassa os trinta anos. Se o agravamento ao longo da idade, sobretudo
no último período, pode ser directamente imputável ao processo de envelhecimento, as diferenças entre homens e mulheres
dificilmente se poderão restringir ao âmbito biológico. Desde logo, porque não se pode assumir que homens e mulheres

186
reconheçam do mesmo modo a falta de desejo sexual. Pelo contrário, como temos vimos a sustentar, os modelos dominantes
da masculinidade podem constituir um obstáculo a esse reconhecimento, na medida em que promovem uma identificação
entre a masculinidade e o desempenho sexual. As mulheres, menos sujeitas a esses condicionalismos, teriam menos razões
para reconhecerem o desinteresse sexual. Aliás, o desinteresse é compatível com o facto de reportarem índices mais baixos de
actividade sexual. Estas diferenças tendem a revelar articulações distintas entre os géneros e a sexualidade, que passam no
masculino pela instrumentalização da sexualidade a favor de um reforço identitário, enquanto no feminino parece assumir-se
como uma função que por vezes concorre com, e noutras complementa, outras funções que não podem ser desligadas de um
contexto mais amplo. Por isso, as interpretações e as significações que se atribuem à sexualidade e aos contextos que a
envolvem são também parte da explicação para a falta de desejo, e, num sentido mais abrangente, para as restantes
disfunções, que afectam diferencial e precocemente os homens e as mulheres.
A distribuição da falta de desejo segundo a conjugalidade é mais intrigante na medida em que assumimos que os
processos de recomposição conjugal estavam associados a uma actividade sexual mais intensa. No entanto, verifica-se que
são precisamente os casais recompostos que apresentam índices mais elevados de desinteresse sexual, que tendem aumentar,
como acontece com a distribuição de género, com a longevidade do casal. Mas não haverá uma contradição entre o facto de
reportam, por um lado, um desinteresse superior ao dos casais que estão na primeira conjugalidade e, por outro, apresentarem
índices mais elevados de actividade sexual? Uma forma possível de ultrapassar esta contradição é admitir que apenas uma
parte desses casais sofrem desse tipo de problemas. O facto de menos de 30% reconhecerem a existência de desinteresse,
permite sustentar que os outros auferem de uma vida sexual bastante mais satisfatória. Em comparação com os casais que não
se dissolveram, os casais recompostos acentuam os extremos, ou seja, manifestam simultaneamente mais actividade e mais
desinteresse. Enquanto para uns o sexo assume um papel importante no novo relacionamento, para outros, aparentemente, é o
contrário que sucede. Poder-se-ia argumentar que a idade mais elevada dos casais recompostos, sobretudo nas duas primeiras
categorias da duração conjugal, contribuiria para o agravamento das manifestações disfuncionais. Porém, nas outras duas
categorias de duração mais elevada em que a idade média é praticamente a mesma ou bastante mais próxima, as diferenças
relativas ao desinteresse mantêm-se. Não é a idade, portanto, que a pode explicar. A entrada numa nova conjugalidade parece
ser acompanhada, pelo menos para a maioria, por um renovamento do interesse sexual que se traduz numa actividade mais
intensa. Porém, esse interesse parece que se dissipa a um ritmo mais rápido do que nos casais que se encontram na primeira
conjugalidade, fazendo aumentar as manifestações minoritárias do desinteresse sexual, logo a partir do primeiro período do
ciclo conjugal.

A longevidade conjugal e a iniciativa conjugal


A manifestação do desejo sexual pode também ser vista numa outra perspectiva, que é relevante para aferir da
paridade existente nas relações de género, que consiste em saber de quem partiu a iniciativa sexual — do próprio, do
parceiro, de ambos. A grande maioria dos entrevistados reconhece que na maior parte das vezes a iniciativa é conjunta e que,
quando isso não acontece, ela parte normalmente do homem. Apesar de a iniciativa conjunta ser maioritária, expressando um
certo igualitarismo no campo da iniciativa sexual, existem variações importantes quando se analisam a distribuição de género
e a conjugal. Referindo as primeiras, verifica-se que os homens tendem a ser menos igualitários do que as mulheres. O facto
de reconhecerem menos a iniciativa conjunta, significa implicitamente que a iniciativa partiu deles. As diferenças são
relevantes e mantêm-se constantes em função da duração. Há, portanto, uma certa divergência na forma como homens e
mulheres interpretam a iniciativa sexual. Elas tendem a assumir uma iniciativa bilateral, enquanto eles resvalam mais para o
lado unilateral, não obstante o facto de maioritariamente assumirem uma iniciativa conjunta. Deste modo, apenas uma parte,
ainda que significativa, de homens continua a atribuir a si mesmo o protagonismo da iniciativa sexual.
O padrão mais igualitário parece também estar mais presente nos casais recompostos do que nos outros. Ainda que
as diferenças não sejam sempre consistentes ao longo da longevidade conjugal, inclinam-se mais claramente no sentido de
revelarem uma iniciativa conjunta mais frequente por parte dos casais que têm mais de uma conjugalidade. Este igualitarismo
no campo da iniciativa contribui para corroborar a ideia de que a organização e a natureza das interacções nos casais
recompostos configuram uma dinâmica específica que os diferencia dos restantes casais.
É também conveniente sublinhar que a tendência para o igualitarismo no campo da iniciativa sexual é mais
protagonizado pelos casais cujo tempo de vivência conjunta é ainda relativamente curto. O aumento da longevidade significa
uma quebra da iniciativa partilhada a favor da masculina. No entanto, é também possível considerar esta tendência mais um
efeito de geração do que da passagem do tempo. Se a interpretação da iniciativa conjunta como um reflexo de uma orientação
igualitária for correcta, não se vê por que razão esse igualitarismo tenderia a dissipar-se com o aumento da longevidade. O
predomínio da iniciativa masculina é mais compatível com um modelo de relações de género desigual que estaria mais
disseminado pelas gerações mais velhas, precisamente as que estão mais representadas nos períodos mais longos da
longevidade conjugal. A menos que, e seria uma outra hipótese a explorar se não extravasasse em demasia o campo a que
circunscrevemos esta análise, a iniciativa masculina fosse o corolário do declínio mais acentuado da actividade e do interesse
sexuais que, como reportado anteriormente, atingiria mais intensamente as mulheres do que os homens ao longo da duração
da vivência conjunta do casal.

187
Conclusão
O ponto de partida que sustentamos defendeu que a sexualidade não pode ser reduzida a um ímpeto ou uma pulsão
orgânica que se manifesta de um modo incontrolável e segundo um calendário pré-definido. A sexualidade integra
condicionantes sociais que moldam a sua expressão e significado. Deste ponto de vista, a sexualidade conjugal tem de ser
vista a partir da dinâmica pela qual a interacção do casal passa ao longo do ciclo conjugal. É uma dinâmica simultaneamente
temporal e situacional. Numa relação ao longo do tempo existem fases, que não envolvem necessariamente qualquer
encadeamento linear, determinadas por aproximações, crises, estabilizações, que são acompanhadas por mudanças na
organização e no funcionamento do casal. O nosso propósito foi analisar a forma como essa dinâmica se repercute na
sexualidade conjugal.
As relações de género revelaram-se cruciais. Desde logo, devido às diferenças na actividade sexual reportada.
Atendendo a que nos restringimos à população que vive em casal, o padrão da resposta deveria ter alguma simetria, mesmo
sabendo que os respondentes de ambos os sexos não estão emparelhados. Há razões, como as relações extraconjugais, que
podem contribuir para colmatar o hiato entre as respostas masculinas e as femininas, mas as diferenças são bastante grandes
para se satisfazerem completamente com essas razões. De facto, homens e mulheres reportam valores distintos para a
actividade sexual, na medida em que interpretam a sexualidade de forma distinta. Não é possível referir a actividade sem
vincular interpretações e significados que reforçam a importância da sexualidade na constituição das identidades. As
diferenças encontradas destacam o lugar que os conteúdos sexuais têm na formatação das masculinidades e feminilidades. É
através e por meio da sexualidade que essa identidades se expressam e se diferenciam.
A dinâmica do casal também é um dos elementos a ter em conta na compreensão da sexualidade conjugal. Com
efeito, a distinção entre a primeira e a segunda (ou terceira) conjugalidade permitiu mostrar que a actividade sexual não
depende apenas da idade dos indivíduos, mas também da dinâmica que resulta dos processos de recomposição conjugal. É
verdade que a actividade sexual declina com a idade, mas as mudanças nas situações conjugais, até certo ponto independentes
da idade, podem refrear o ritmo a que esse declínio ocorre. É pelo menos o que sugerem os índices de actividade dos casais
recompostos, sobretudo os que têm uma ainda uma duração relativamente curta. A dinâmica conjugal, de que a duração
constitui um indicador, exerce uma influência própria na actividade sexual dos indivíduos, contrariando o efeito recessivo do
tempo.

Bibliografia
Bajos, N., & Bozon, M. (2008). La sexualité en France. Paris: La Découverte.
Bajos, N., Bozon, M., Ferrand, M., & Giami, A. (1998). La Sexualité aux Temps du Sida. Paris: PUF.
Bozon, M. (2001), Sexuality, gender, and the couple : a sociohistorical perspective. Journal of Sex Research, 38, 1-32.
Bozon, M. (2005). Sociologie de la sexualité. Paris: Armand Colin
Kinsey, A., Pomeroy, W., & Martin, C. (1948). Sexual Behaviour in the Human Male. Philadelphia e Londres: Saunders.
Kaufmann, J-C. (1993). Sociologie du couple. Paros: PUF.
Machado, Lia Z. (2004). Masculinidades e violências: género e mal-estar na sociedade contemporânea. In Mónica Raisa
Schpun (Org.), Masculinidades, São Paulo Santa Cruz do Sul, Boitempo, Edunisc.
Laumann, E., Gagnon, J., Michael, R., & Michaels, S. (1994). The Social Organization of Sexuality. Sexual Practices in the
United States. Chicago: University of Chicago Press.
Wellings, K., Field, J., Johnson, A. M., Wadsworth, J. (1994). Sexual behaviour in Britain. Londres: Penguin.

Homoparentalidade, Discriminação e Direitos Humanos: O caso Silva Mouta na


Justiça portuguesa e no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
Cecilia MacDowell Santos
Centro de Estudos Sociais e Universidade de São Francisco (EUA)
[email protected]
Teresa Maneca
Centro de Estudos Sociais
[email protected]

Madalena Duarte
Centro de Estudos Sociais
[email protected]

Ana Cristina Santos


Centro de Estudos Sociais
[email protected]

188
Resumo: Esta comunicação examina o direito homoparental à luz do caso Salgueiro da Silva Mouta, iniciado nos tribunais portugueses em
1991 e encaminhado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) em 1996. O caso ganhou grande repercussão nos meios de
comunicação social em Portugal e ilustra a situação de discriminação por orientação sexual em matéria de direitos de família. Demonstra a
posição contraditória dos tribunais nacionais relativamente aos direitos sexuais, mostrando, ainda, como o TEDH tem vindo a influenciar o
direito de família nacional. O caso nacional diz respeito a um pedido de regulação do poder paternal. Em 1991, o requerente divorciou-se,
passando a viver com um outro homem. Fez um acordo com a ex-mulher, que ficou com a guarda da filha menor, cabendo ao requerente o
direito de visita. Todavia, este acordo não foi cumprido pela ex-mulher. Em 1992 o requerente solícitou nova regulação do poder paternal ao
Tribunal de Família de Lisboa, o qual confiou a guarda da menor ao requerente. Em 1995, a menor foi raptada pela mãe e o Tribunal de
Relação conferiu a guarda da menor à mãe. O requerente tentou ver a filha mas não conseguiu. Em 1996, o requerente apresentou queixa
junto do TEDH, onde censurou o Tribunal de Relação por ter atribuído o exercício do poder paternal à mãe com base na sua orientação
sexual. O TEDH considerou que existiu violação do art.8.º (respeito pela vida privada e familiar) e do art.14.º (diferença de tratamento/
discriminação), determinando indemnização por danos morais.

Introdução
Em 1999, o Estado português foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por
discriminação em função da orientação sexual. Em causa estava um caso de regulação do poder paternal intentado nos
tribunais nacionais por um pai homossexual. O caso Salgueiro da Silva Mouta (daqui em diante Silva Mouta) foi iniciado nos
tribunais nacionais em 1991 e encaminhado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) em 1996. Em 1991, Silva
Mouta divorciou-se, passando a viver com um outro homem. Fez um acordo com a ex-esposa, que ficou com a guarda da
filha menor, cabendo a Silva Mouta o direito de visita. Todavia, este acordo não foi cumprido pela ex-esposa. Em 1992, Silva
Mouta solicitou nova regulação do poder paternal ao Tribunal de Família de Lisboa, o qual confiou-lhe a guarda da filha. Em
1995, a mãe raptou a filha e o Tribunal de Relação conferiu a guarda da menor à mãe. Silva Mouta tentou ver a filha mas não
conseguiu. Em 1996, Silva Mouta apresentou queixa junto do TEDH, onde censurou o Tribunal de Relação por ter atribuído
o exercício do poder paternal à mãe com base na sua orientação sexual. O TEDH considerou que existiu violação do art. 8.º
(respeito pela vida privada e familiar) e do art. 14.º (diferença de tratamento/discriminação), determinando indemnização por
danos morais.
O caso ganhou grande repercussão nos meios de comunicação social em Portugal e ilustra a situação de
discriminação por orientação sexual em matéria de direitos de família1. Este caso constituiu um marco histórico na justiça
portuguesa e europeia, na medida em que foi o primeiro caso a reconhecer explicitamente o direito à não-discriminação e a
introduzir, na sociedade portuguesa, o debate sobre a homoparentalidade. A sua importância advém também do facto de ter
mostrado uma posição contraditória dos tribunais nacionais relativamente aos direitos sexuais, mostrando, ainda, o modo
como a mobilização jurídica transnacional junto do TEDH influenciou o direito de família nacional e contribuiu para a
reconstrução dos direitos humanos das minorias sexuais.
O objectivo deste artigo é analisar a mobilização judicial e o papel dos tribunais nacionais e transnacionais na
reconstrução de direitos humanos. No caso em questão, examinamos a forma como a justiça portuguesa e europeia respondeu
às demandas das novas formas de família, definiu o conceito de não-discriminação e a própria noção de direitos humanos.
A reconstrução de direitos e identidades sexuais é, segundo Richman (2002), feita através de lutas interpretativas e
de lutas de poder, “onde os discursos e as representações de poder e saber contribuem para a construção de espaços dos
possíveis” (Foucault, 1996: 9). Nesta perspectiva, procuramos perceber de que modo, na justiça portuguesa e europeia, e à
luz do caso Silva Mouta, reconstruíram-se noções sócio-legais sobre os direitos de família e espaços de cidadania.
Procuramos analisar a forma como os juízes e as partes em conflicto construiram, negociaram, negaram e/ou confirmaram
identidades sexuais, a sua relação com a família e os seus direitos. Para além do espaço nacional, centramos a nossa análise
também a nível das mobilizações jurídicas transnacionais no campo dos direitos humanos.
Partindo, então, dos argumentos desenvolvidos por Richman (2002 e 2007) sobre a construção de identidades
sexuais no caso de disputas do poder paternal envolvendo pais e mães homossexuais, analisamos a forma como os tribunais
definem e avaliam conceitos como família e parentalidade e como estas avaliações redefinem as identidades de pais e mães
gays ou lésbicas e a própria noção de direitos humanos.
A homoparentalidade ilustra de forma evidente a relação entre sexualidade, família e direitos. Fineman (1995)
discute a lei enquanto instrumento criado com o intuito de preservar a família, entendida apenas como família heterossexual.
Em consequência da hegemonia de uma ideologia heteronormativa, o direito e as suas instituições apresentam dificuldades
em incluir famílias que saiam dos parâmetros da heterossexualidade.
O reconhecimento jurídico e a visibilidade social de famílias compostas por pessoas do mesmo sexo é um
fenómeno recente, que faz confluir o conceito de homossexualidade com o de família, através do conceito de família

1
De que são exemplo a notícia da TVI de 05.10.96 que dava conta de um processo contra Portugal junto do TEDH, da notícia do Jornal de Notícias, “E se fosse
antes o dia dos Direitos dos Homens?”, de 19.03.2005, e da noticia publicada no Jornal Portugal Diário de 25.07.2007, “Ficar sem o filho por ser gay”. Estas
notícias mostram como este caso foi ocupando algum espaço na impressa escrita e falada ao longo dos anos, sendo referido em jornais de tiragem nacional, bem
como de tiragem regional.

189
homoparental2. O caso que procuramos abordar reporta-se a este conceito de família homoparental, uma vez que diz respeito
à relação entre um pai homossexual e a sua filha biológica e a forma como o seu direito parental foi negado pela justiça
portuguesa. Esta negação baseou-se na sua orientação sexual, mas também no não reconhecimento da diversidade de formas
de família. Apesar de diversos estudos (Henneron, 2002; Viel, 2003; Almeida, 2005; entre outros) demonstrarem a
diversidade de famílias nas sociedades contemporâneas, os tribunais portugueses não reconhecem a legitimidade desta
diversidade. Apesar de existir, a nível europeu, algum reconhecimento jurídico face ao direito das pessoas lésbicas, gays,
bissexuais e transgênero (LGBT), estas continuam a ser discriminadas em diversos campos da vida social e pessoal,
nomeadamente no que concerne ao direito à família.
O debate trazido pelo caso Silva Mouta c. Portugal põe em evidência como a orientação sexual pode influenciar o
exercício da autoridade parental. Ilustra a forma como a orientação sexual é usada enquanto argumento na atribuição do
poder parental e como elemento de condenação/contestação (Richman, 2002: 303). Contudo, para autores como Gouron
Mazel (2002), a orientação sexual não deveria interferir na autoridade parental. Certo é que juízes parecem continuar a
fundamentar as suas decisões com base em argumentos relacionados com a concepção tradicional de família e com o bem-
estar da criança, que não são mais do que justificações para a negação de direitos e justificação de uma prática
discriminatória. Esta prática judicial ilustra o modo como o direito e a sociedade se influenciam mutuamente, e o poder que a
lei tem em alterar significados e identidades, uma vez que os aplicadores do direito, os juízes, detêm um poder e posição que
lhes permitem decidir quem tem legitimidade enquanto actor legal (Richman, 2002). No caso do direito de família, os
tribunais definem e avaliam conceitos e concepções, como a de família, de parentalidade e até de perigo. É exactamente esta
a posição que os Juízes do Tribunal da Relação assumiram ao invocarem os valores sociais e educativos dominantes na
sociedade portuguesa, como veremos adiante.
Este artigo procura contribuir para a literatura sobre a homoparentalidade e a mobilização jurídica transnacional dos
direitos humanos a partir da análise de conteúdo dos processos nacionais relativos ao caso Silva Mouta, da sentença do
TEDH e das entrevistas realizadas com as partes envolvidas no caso. Através da análise dos diversos discursos ficou patente
o carácter simbólico do caso e a ambiguidade e contradição existente no direito português no que toca à homoparentalidade e
ao direito à não-discriminação com base na orientação sexual, e a forma como o direito europeu, por via da jurisprudência do
TEDH, passou a reconhecer o direito homoparental e a legitimidade de vida familiar entre pessoas do mesmo sexo.
O artigo está dividido em três partes. Na primeira, apresentamos os discursos das partes envolvidas no caso Silva
Mouta no tribunal de primeira instância – o Tribunal de Família de Lisboa, analisando a argumentação que esteve na base da
decisão, onde os juízes deste tribunal privilegiaram o discurso do “bem-estar da criança” e da “igualdade”. Na segunda parte,
analisamos a decisão do Tribunal da Relação, onde se assiste a um volte-face e toda a argumentação surge em torno do
“desvio” e da “negação” do direito à homoparentalidade. A terceira parte, centrada na decisão do TEDH, procura mostrar a
importância fundamental que este caso teve em termos de defesa e promoção de direitos humanos, tendo permitido uma
dupla reconstrução de direitos, por um lado dos direitos humanos e por outro dos direitos sexuais, aparecendo os direitos
humanos como frame de reconstrução mais ampla dos direitos sexuais, e estes transformando e alargando a compreensão e
concepção dos direitos humanos. Concluímos com considerações finais sobre o impacto que a decisão do TEDH teve em
Portugal, reflectindo sobre as potencialidades e os limites da mobilização jurídica transnacional para a promoção de
mudanças sociais.

O reconhecimento da não-discriminação na justiça portuguesa: a decisão do Tribunal de Família


João Silva Mouta casou em 1983 e dessa união nasceu uma filha. Em 1990 separa-se e passa a viver com outro
homem. O seu divórcio é decretado pelo Tribunal de Família de Lisboa em 1993. No âmbito do processo de divórcio, em
1991, Silva Mouta estabelece um acordo com a ex-mulher relativo à regulação do poder paternal, onde a menor ficou a cargo
da mãe, beneficiando o pai do direito de visita. Contudo, este direito nunca foi exercido por recusa da mãe da menor. Em
Março de 1992, Silva Mouta solicitou ao tribunal nova regulação do poder paternal, alegando que a sua filha não se
encontrava a viver com a mãe, tal como tinha ficado estabelecido no acordo anterior, e sim com os avós maternos. A mãe da
criança ao ser informada pelo Tribunal que o requerente pede a guarda da sua filha, contesta esse pedido alegando práticas de
abuso à integridade física e moral da menina, primeiro por parte do pai e, posteriormente, por parte do seu companheiro.
O Tribunal de Família, após a realização de exames à menor, ao pai e seu companheiro, à mãe e aos avós maternos,
decidiu atribuir a guarda da criança ao pai, tendo concluído que os argumentos usados pela mãe para contestar o pedido não
tinham encontrado fundamentos nos exames psicológicos. O Tribunal afirmou mesmo que:
“A mãe mantém a sua postura pouco colaborante, sendo de todo improvável que a mude, desrespeitando,
sucessivamente, as decisões do Tribunal. Forçoso é concluir-se que a mesma (a mãe) não se mostra, nesta altura, capaz
de propiciar a M. a vivência equilibrada e tranquila que esta necessita. O pai mostra-se, nesta altura, mais capaz de o
fazer. Para além de dispor de condições económicas e habitacionais para a ter consigo, mostra-se capaz de lhe

2
As relações homoparentais estabelecem-se por inúmeras vias: filiação natural, o filho biológico de um dos membros do casal, reprodução assistida, fecundação
in vitro, inseminação artificial e adopção monoparental ou conjunta. Homoparentalidade é um neologismo criado em 1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais
Gays e Lésbicas (APGL), em Paris, nomeando a situação na qual pelo menos um adulto que se autodesigna homossexual é (ou pretende ser) pai ou mãe de, no
mínimo, uma criança.

190
transmitir os factores de equilíbrio de que esta necessita e respeitar o direito da menor em continuar a conviver regular
e assiduamente com a mãe e os avós maternos, a quem se mostra, indubitavelmente, bastante ligada” (Sentença do
Tribunal de Família de Lisboa).

Apesar de toda a argumentação da mãe baseada na homossexualidade do requerente e na má condução sexual, o


Tribunal de Família e Menores confia a guarda da criança ao pai, em sentença de 14/7/1994.
Quando analisamos a documentação constante no processo, nomeadamente a produzida pelo Gabinete de Apoio
Psicológico, constatamos que em momento algum as decisões têm em conta a orientação sexual do requerente, mas sim o
bem-estar físico e psíquico da menor:
“Embora nos seus convívios com o pai, a M. tivesse constatado que este vivia com um outro homem, as figuras
parentais, não apresentando qualquer problema relacionado com a identidade psico-sexual sua ou dos seus
progenitores.” (Relatórios do Gabinete de Apoio Psicológico do Tribunal de Família de Lisboa)

Esta decisão do Tribunal de 1.ª instância mostra a forma como os juízes reconhecem o direito à não discriminação,
optando por colocar o debate em torno do interesse da criança. Apesar de não ser discutido o conceito de família, esta decisão
deixa implícito o seu reconhecimento, sustentando ainda que o facto do pai viver com uma pessoa do mesmo sexo não
diminuiu a capacidade de cuidar e a qualidade do relacionamento com a filha. Tal decisão vai ao encontro de alguns dos
argumentos presentes na literatura internacional sobre a homoparentalidade e a associação entre a homossexualidade dos
pais/mães e o cuidado com os/as filhos/as. Vários estudos sublinham como determinante de boa parentalidade a capacidade
de cuidar e a qualidade do relacionamento com os/as filhos/as, independentemente da orientação sexual dos pais (Donavan e
Wilson, 2005; Gartner, 2007; Norri, 2005). Boa parte das discussões sobre a homoparentalidade é, assim, realizadas em torno
do argumento do bem-estar da criança.
A decisão do Tribunal da 1.ª instância mostra o que tem vindo a ser a tendência desde os finais dos anos 1980, com
os tribunais a agirem em nome do “melhor interesse da criança” (Kleber et al., 1986), e a concederem a aguarda de menores,
em caso de divórcio, a mães lésbicas, indo contra os debates em torno do estigma social que as crianças no seio das famílias
compostas por pessoas do mesmo sexo poderiam alegadamente sofrer (Gesing, 2004). Neste sentido, esta decisão torna-se
inovadora e desafiadora dos discursos e práticas instituídas, uma vez que a orientação sexual de uma das partes não foi
utilizada como argumento, por parte dos decisores, na atribuição da guarda da menor. Contudo, o que o requerente nos refere
é que apesar de a sua orientação não ter sido usada como argumento por parte dos juízes, ele sentiu necessidade de provar
que a sua orientação sexual não era incompatível com os seus direitos de pai:
“O meu processo tem a ver com uma especificidade dentro da regulação do exercício do poder paternal, que é a
questão da orientação sexual. (…) E portanto, um dos meus trabalhos (…) foi demonstrar ao tribunal de família que a
minha orientação sexual não era de forma alguma impeditiva para poder ter, no mínimo, visitas. Depois eu percebi que
não era impeditivo de coisa nenhuma”. (Silva Mouta, entrevista realizada a 27/09/2008)

Podemos então afirmar que neste espaço de litigação a homossexualidade não foi usada como argumento de
negação, mas antes como argumento de negociação (Richman, 2002), uma vez que o pai sentiu necessidade de provar que as
suas capacidades para cuidar da sua filha eram independentes da sua orientação sexual.
Do nosso ponto de vista, para além de inovadora, esta decisão facilitou a visibilidade da homoparentalidade na
sociedade portuguesa, permitindo também o reconhecimento da não-discriminação em função da orientação sexual – incluida
enquanto principio constitucional desde 2004 – e, de um modo mais abrangente, o reconhecimento dos direitos LGBT.
Se nos centrarmos nas questões em torno dos direitos LGBT constatamos, que à data dos acontecimentos, o texto
da Constituição da República Portuguesa no que concerne à não-discriminação, o seu art. 13.º não incluía de forma explicita
a orientação sexual3. Aliás, nenhum dos diplomas internacionais de protecção dos direitos humanos apresentava nos seus
textos, de forma explícita, a referência à proibição da discriminação com base na orientação sexual. A Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 1948, não refere a protecção de direitos sexuais, e o mesmo é válido para os tratados que nasceram
desta convenção. Apenas a Convenção para os Direitos das Crianças, de 1989, contém referência, embora que limitada, aos
direitos sexuais, uma vez que obriga os Estados a combater a exploração sexual de menores (Helmut-Graupner, 2005: 109).
Mas esta ausência de protecção explícita não significava que a orientação sexual não estivesse contemplada. Por exemplo, e
no que se refere ao direito constitucional, uma vez que a discriminação com base na orientação sexual é uma forma de
discriminação, aspecto que o artigo 26.º proíbe4, poderíamos a firmar que esta discriminação estava já contemplada no nosso
texto constitucional. Aliás esta foi precisamente a argumentação utilizada pelo requerente em sua defesa:
“[já] na constituição estava tudo garantido…uma das coisas que eu utilizei logo, no processo de família, foi
exactamente a desmontagem dessa ausência, ou seja, o elenco que está no artigo 13.º [CRP], assim como o elenco das
diferentes motivos de discriminação que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou na Convenção
Europeia, não é exaustivo…é meramente indicativo, e a interpretação subjacente do legislador, à data, refere-se ao

3
Em 24 de Julho de 2004, foi publicada em Portugal a Lei n.º1/2004, que alterou a Constituição da República Portuguesa, tornando explícita na nossa
constituição a discriminação com base na orientação sexual, até então não contemplada.
4
Este artigo foi alterado em 1997 de forma a reconhecer a qualquer indivíduo o “direito a…protecção legal contra qualquer forma de discriminação. No entanto,
o princípio da igualdade e não-discriminação não é considerado por si, e de forma geral, um direito fundamental. Apenas é tido como um princípio norteador dos
direitos protegidos constitucionalmente.

191
nomeadamente, e essa expressão diz tudo. Portanto, aqueles são alguns dos itens, talvez os mais utilizados, os mais
gritantes, os mais aplicáveis à data da feitura do documento, mas não são exaustivos, logo outros motivos de
discriminação estão lá, no meu entender. Portanto eu peguei nisso, esta foi também uma das bases da minha
argumentação [no processo nacional]”. (Silva Mouta, entrevista realizada a 27/09/2008)

Analisando também os princípios gerais relacionados com a igualdade, e de acordo com o artigo 13.º da CRP
“todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei”. Assim sendo, estamos perante um princípio
constitucional onde nenhum indivíduo pode ser privilegiado, favorecido ou discriminado ou privado de nenhum direito (n.º2
do art. 13.º) 5. Por outro lado, não podemos deixar de referir que Portugal é parte de vários tratados internacionais que contêm
disposições relativas à igualdade e que, enquanto Estado-contratante, tem obrigação de cumprir.

Na contra-mão da história: o Tribunal da Relação e a discriminação com base na orientação sexual


Se a decisão do Tribunal da 1.ª Instância pareceu bastante inovadora e desafiadora face aos saberes e discursos
instituídos, certo é que com o recurso da mãe da menor para um tribunal superior assistimos a um volte-face na história. Após
a decisão do Tribunal da 1.ª instância, a menor permaneceu com o pai até Novembro de 1995, data em que alegadamente terá
sido raptada pela mãe. Durante este período, a mãe recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa. Em 9 de Janeiro de 1996,
este tribunal atribuiu a guarda da menor à mãe e fixou os termos do direito de visita ao pai. Pode ler-se no acórdão o seguinte:
“Contestou a requerida não só a pretensão do requerente como invocou factos tendentes a demonstrar que a criança não
deve estar na companhia do pai por este ser pederasta e viver em mancebia com outro homossexual.” (Acórdão do
Tribunal da relação de Lisboa, processo n.º 441/95)

Para fundamentar a sua decisão o Tribunal da Relação fez valer-se de alguns dispostos legais, nomeadamente os
respeitantes ao processo de divórcio e constantes no Código Civil – art. 1905.º, n.º 1 –, onde poderemos ler que:
Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, destino
do filho, os alimentos devidos e a forma de os prestar serão regulados por acordos dos pais, sujeito a homologação do
Tribuna. A homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse da menor, incluindo o interesse deste
em manter com aquele progenitor a quem não seja confiado, uma relação de grande proximidade.

Acrescenta o n.º2 que, na falta de acordo, o Tribunal decidirá de acordo com “os interesses da menor, incluindo o
de manter uma relação de grande proximidade com o progenitor a quem não seja confiado, podendo a sua guarda caber aos
pais ou, (…), a terceira pessoa ou estabelecimento de educação ou assistência”.
Perante todos os factos e a regulamentação portuguesa relativa aos direitos de menores e família, o Tribunal da
Relação de Lisboa entendeu que a menor deveria ficar com a mãe. Ao analisarmos o texto do acórdão do Tribunal da Relação
constatamos que esta decisão não foi tomada porque terem sido provadas as alegações da mãe, mas porque o pai era
homossexual e vivia com outro homem. Os juízes sustentam esta decisão afirmando ser pacífico que em matéria de regulação
do poder parental deve, acima de tudo, prevalecer o interesse do menor com total abstracção dos interesses, por vezes
egoísticos, dos seus progenitores. Mas como é definido este interesse? Ora, nas palavras dos juízes, o julgador deve em cada
caso atender aos valores familiares, educativos e sociais dominantes na comunidade em que o menor se acha inserido.
O que poderemos inferir destas afirmações é que o interesse da criança é definido de acordo com os valores
dominantes da sociedade e não com o que poderá ser, de facto, o melhor para a criança. Mas, os juízes deste tribunal vão
ainda mais longe em nome da defesa dos interesses da menor, e na ponderação da homossexualidade do pai enquanto factor
determinante para a decisão sobre a atribuição do poder parental. Neste sentido pode ler-se:
“Que o pai da menor, que se assume como homossexual, queira viver em comunhão de mesa, leito e habitação com
outro homem, é uma realidade que se terá que aceitar, sendo notório que a sociedade tem vindo a mostrar-se cada vez
mais tolerante para com situações deste tipo, mas não se defenda que é um ambiente desta natureza o mais salutar e
adequado ao normal desenvolvimento moral, social e mental de uma criança, designadamente dentro do modelo
dominante na nossa sociedade (…): A menor deve viver no seio de uma família, de uma família tradicional portuguesa,
e esta não é, certamente aquela que seu pai decidiu constituir, uma vez que vive com outro homem, como se de marido
e mulher se tratasse. (…) Estamos perante uma anormalidade e uma criança não deve crescer à sombra de situações
anormais
(…) A circunstância de a menor ficar privada de contacto com o pai, constitui um factor de risco para o seu bom
desenvolvimento e equilíbrio psicológico, actual e futuro. E bom será que a mãe compreenda e aceite esta realidade,
sob pena de, afinal, ficar em causa a sua própria idoneidade para exercer o poder paternal (…)” (Acórdão do Tribunal
da relação de Lisboa, processo n.º 441/95)

Este discurso mostra que apesar de não quererem discutir a noção de família, os juízes acabam por reconhecer a
existência de famílias de pessoas do mesmo sexo, mas que em termos jurídicos ela não é reconhecida. Esta posição vai ao

5
Referir novamente, que esta é a redacção anterior à revisão constitucional de 2004, onde no mesmo, se pode ler “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado,
prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) orientação sexual”.

192
encontro de muitas das discussões apresentadas na literatura sobre a concepção jurídica de família. Alguns estudos
demonstram que a noção de família natural, apesar de dominar o pensamento religioso, tem sido também juridicamente
naturalizada (Ryan-Flood, 2005; Zambrano, 2006. Para discutir esta proposta é necessário compreender que o termo “família
natural”, como esclarece Martha Nussbaum (2001), é uma forma de argumento que está longe de ser unívoco, nomeadamente
se atendermos ao termo natural. Porém, muitos juristas propõem uma concepção de família assente no casamento. De facto,
como demonstrado por Elisabeth Kukura (2006), a família continua a ser percebida como a mais natural das instituições,
correspondendo ao modelo da família nuclear e heterossexual: um pai, uma mãe e filhos. Contudo, os contributos dos estudos
antropológicos têm mostrado que a instituição família vem sofrendo muitas mudanças ao longo do tempo, passando a ser um
local privilegiado de afectividade (Ariés, 1981; Donzelot, 1986, Almeida, 2005; entre outros).
O grande contributo que a literatura tem dado e que os juízes parecem esquecer nos seus discursos e decisões é que
a família, mas também a filiação, têm sido alvo de profundas transformações (Ryan-Flood, 2005; Zambrano, 2006 e
Zambrano et al., 2006), o que levou a repensar as relações paterno-filiais e os valores que as moldam, desenvolvendo a
família diversas formulações, discursos e significados. Ora, é dentro destes novos arranjos que surge a família homoparental,
propondo um modelo alternativo, no qual o vínculo afectivo se dá entre pessoas do mesmo sexo (Zambrano et al., 2006).
Com a alteração do modelo tradicional de família surgem desafios ao próprio direito, no sentido de o impelirem a
acompanhar estas novas configurações criando novas possibilidades legais de conjugalidade e filiação de forma a não deixá-
las à margem da protecção do Estado. Dito de outro modo, os estudos sobre a temática da homoparentalidade, procuram
relacionar este debate com a temática do direito à família, dos direitos das crianças, e em última análise, o direito à não-
discriminação, debates estes que os juízes do Tribunal da Relação parecem esquecer. Por outro lado, Dias (2001a, 2001b) e
Figueiredo (2003), afirmam que apesar de estas mudanças serem uma realidade, o campo jurídico não as expressa. Deste
modo, estes autores sugerem que o campo jurídico e judiciário terá que rever o direito de família, a fim de dar o devido
respaldo a situações reais (Bruns e Santos, 2006). Estamos perante o que Boaventura de Sousa Santos (1995) designa de
desfasamento entre as normas jurídicas e as práticas sociais.
A análise das práticas sociais associadas à homoparentalidade é atravessada por duas grandes discussões. Por um
lado, autores que a definem como uma união homossexual baseada em laços de afecto, sendo incluída no direito de família
(Dias, 2001). Por outro, discussões que colocam as famílias homoparentais sob a tutela dos direitos humanos e direitos
constitucionais, no princípio da igualdade e não-discriminação (Heimut-Graupner, 2005; Sander, 2002). Na nossa óptica estas
são duas abordagens que não podem ser analisadas separadamente. Contudo, a decisão do Tribunal da Relação parece ignorar
estas mudanças e centra a sua argumentação na orientação sexual do pai e na forma como a sua opção familiar irá
condicionar o futuro desenvolvimento da criança, que à luz da realidade portuguesa deverá crescer no seio de uma família
tradicional.
Esta decisão parece também legitimar e legitimar-se nos debates em torno do bem-estar da criança, debates esses
realizados ao nível das ciências sociais (Uziel, 2004). Por exemplo, pesquisas realizadas nos Estados Unidos e no Canadá
(Sullivan, 1995 e Norri, 2000, respectivamente) apontam para o facto de as preocupações judiciais sobre famílias
homossexuais serem dirigidas para os impactos dos pais sobre as crianças e ao comportamento das mesmas. Neste primeiro
grupo estariam a saúde mental dos pais, motivação e habilidades para serem pais, qualidade de relacionamento e adequação
de sua rede de apoio social. No segundo, foca-se o desenvolvimento das crianças criadas por pais gays e lésbicas, mais
especificamente aspectos intelectual, emocional, comportamental, social, moral, bem como o desenvolvimento psico-sexual
referente à identidade de género, comportamento conforme o sexo e a orientação sexual.
Deste modo, podemos afirmar que a problemática da homoparentalidade desafia o direito (Gesing, 2004 e Infanti,
2008), e toda a argumentação em torno do princípio do “melhor interesse para a criança”. Estudos comparativos entre
crianças que conviviam diariamente com apenas um dos progenitores, heterossexuais e homossexuais, não evidenciaram
diferenças significativas no que tange à escolha de objecto sexual por parte dos filhos, o mesmo tendo sido observado em
pesquisas dos anos 1990 (Sullivan, 1995). Outros grupos de crianças que conviviam apenas com a mãe, lésbica ou
heterossexual, foram comparados sem diferenças significativas, apenas um factor comum tendo chamado a atenção: a
tranquilidade das crianças variava em função do tipo e do grau de atrito entre os pais. Em Portugal, um estudo acerca das
consequências para as crianças da homoparentalidade (Lavadinho et al., 1994) argumenta-se:
“As características das famílias e filhos de homopais, que foram, até agora, objecto do nosso estudos e intervenção, no
Tribunal de Família, enquadram-se, de forma geral, nos estudos realizados nos Estados Unidos, o que permite concluir
que as crianças não serão certamente prejudicadas, se forem confiadas aos seus homopais, desde que estes apresentem
características que referimos6, como sendo as que melhor contribuem para o bom desenvolvimento das crianças e que
sejam assegurados convívios regulares e frequentes com o outro progenitor.
Não existe um único estudo efectuado que tenha encontrado nos filhos dos homossexuais quaisquer desvantagens, em
aspectos significativos do seu desenvolvimento…É sabido relevante, o facto de todos os estudos feitos, quanto à
identidade e preferências sexuais, não revelarem quaisquer distúrbios significativos no processo de identificação sexual
desses indivíduos” (Lavadinho et al., 1994)

6
As características que, no âmbito do estudo, são consideradas as que melhor contribuírem para o bom desenvolvimento afectivo e adaptação psico-social das
crianças, foram: (1) afecto, (2) a existência de regras, bem definidas e não paradoxais, (3) a valorização, sobretudo dos aspectos positivos, (4) a capacidades para
permitir a progressiva autonomização dos filhos, de acordo com a idade destes, (5) as relações com amigos e família alargada, e (6) o não só permitir, como
fomentar, a relação dos seus filhos com o outro progenitor.

193
Tais conclusões vão ao encontro de um parecer emitido pela Academia Americana de Pediatria (2002) no qual se
defende que dois pais gays ou duas mães lésbicas podem proporcionar um desenvolvimento emocional, cognitivo, social e
sexual das crianças, equiparado ao desenvolvimento de filhos de casais heterossexuais. A forma estrutural particular da
família não influencia o desenvolvimento da criança. De notar que este estudo vai ao encontro dos resultados apresentados
pelo tribunal de primeira instância. Relativamente ao argumento do melhor interesse das crianças convém relembrar que a
Convenção para os Direitos das Crianças deixa claro que todas as crianças têm o direito de crescer num ambiente familiar
seguro e saudável, contudo em momento algum a Convenção define o conceito de família (Stanyté, 2007).
Olhando novamente para o processo e para a decisão do Tribunal da Relação, podemos ler no acórdão que os juízes
aconselham o requerente a evitar que a sua filha conviva com o seu companheiro e que perceba que o seu pai vive com outro
homem “em termos análogos às dos cônjuges”, quando esta o for visitar. Esta afirmação é mais uma prova do
reconhecimento de que a relação que o requerente mantém com o seu companheiro é uma relação familiar, ou seja trata-se de
uma família. Aliás o próprio requerente afirma que:
“Na minha opinião os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa fizeram uma interpretação [de família], ele vive com
um homem e tem uma filha, que lhe foi confiada pelo tribunal de família, e isto é a família dele. Dizem isto, sem
querer dizer. Aquilo escapou”. (Silva Mouta, entrevista realizada a 27/09/2008)

Analisando o discurso proferido pelo colectivo de juízes, constatamos que em causa não estava o interesse da
criança, mas o facto de o pai ser homossexual e manter uma relação com outro homem. E que tal decisão vai contra o
referido no art. 180.º da Lei sobre a Organização Tutelar de Menores onde se lê que:
(…) O exercício do poder paternal será regulado de harmonia com os interesses do menor, podendo este, no que
respeita ao seu destino, ser confiado à guarda de qualquer dos pais, de terceira pessoa ou de estabelecimento de
educação ou assistência.

Por outro lado, está também em causa o direito à família, cuja decisão nega ao requerente com base na sua
orientação sexual:
“ (…) pura e simplesmente o preconceito prevaleceu e o colectivo de juízes fechou os olhos (…) Dadas as
circunstâncias da sociedade portuguesa em concreto e à data., isto para responder à questão da proximidade que o
tribunal de família tinha”. (Silva Mouta, entrevista realizada a 27/09/2008)

De referir, ainda, que um dos juízes que subscreveu o Acórdão do Tribunal da Relação vez a seguinte declaração de
voto:
“Votei a decisão, sem prejuízo de entender que não é constitucionalmente legítimo afirmar, como princípio, o de que
alguém pode ser preterido nos seus direitos familiares em função das suas orientações sexuais. Por conseguinte, estas,
em si, nunca poderão ser qualificadas como uma anormalidade. O direito à diferença não deve transformar-se num
falso direito ao gueto. Não se trata, pois, de desvalorizar a assumpção pelo recorrido da sua sexualidade e,
consequentemente, denegar o seu direito à educação da filha. Trata-se de, tendo de decidir, em consciência não se pode
dizer, nesta sociedade e neste momento, que uma criança consegue, sem o risco de perda dos seus padrões de
referência, assumir a homossexualidade dos pais”.

Apesar desta não ser uma decisão dissidente, contrária à maioria, este juiz procurou de alguma forma justificar o
seu voto e o facto de este ter discriminado um pai em função da sua orientação sexual, alegando que essa discriminação teve
por base a defesa do interesse da criança e a não estigmatização da mesma.
Todo este caso trouxe também para a cena política e social o debate em torno dos direitos LGBT e o direito à não-
discriminação. Este debate marcou os anos 1990 um pouco por todo o mundo. Por exemplo, em 1994, o Parlamento Europeu
emitiu uma recomendação destinada a todos os Estados-membros, recomendando conceder aos casais homossexuais os
mesmos direitos dos casais heterossexuais casados. Em diversos países, a união civil homossexual foi reconhecida, tendo
como ápice a legislação holandesa que entrou em vigor em Maio de 2001, permitindo e regulamentando não apenas o
casamento entre pessoas do mesmo sexo, como a adopção de crianças. Com essa lei, duas novidades são implementadas: o
estatuto de casamento, até então privilégio das uniões heterossexuais, e o reconhecimento do direito à constituição de família,
em função do estabelecimento do vínculo de filiação do casal. A conquista deste direito é o que parece gerar maior temor nos
diversos países. Judith Butler (2000), em uma aula em Paris em Maio de 2000, refere-se a uma pesquisa realizada na
Califórnia em que 63% das pessoas aprovavam a ideia de que o casamento deveria significar a união entre um homem e uma
mulher e estende-se, mesmo que não claramente, para o campo da legitimidade concedida pelo Estado. Esta afirmação insere-
se num universo mesclado entre essa legitimação estatal, a sanção da conjugalidade heterossexual e a bênção religiosa, sem
que os sujeitos sejam capazes de identificar a que forças respondem.
É neste cenário de mudança e transformação que a decisão dos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa tem lugar,
parecendo de alguma forma contrariar todas as discussões em torno dos direitos sexuais, por um lado, e por outro sustentando
uma decisão discriminatória com base no argumento “terão as crianças filhas de pais homossexuais maior propensão para
virem a ser homossexuais” (Gesing, 2004). Para esta autora, o judiciário tem usado este tipo de argumentação para
discriminar os casais homossexuais e negar o direito à constituição de uma família. Por outro lado, diversos são os estudos,
nomeadamente na área da psicologia, mostram não existir diferenças entre as crianças criadas por pais heterossexuais e pais

194
homossexuais (Paterson, 1995; Wardle, 2001; entre outros). Julie Shapiro (1996) afirma que estas pesquisas demonstraram
que o argumento não tem fundamento e, portanto, não poderá ser usado pelos juízes e tribunais para decidirem sobre qual o
melhor interesse para a criança.
Gostaríamos, ainda, de fazer referência a toda a argumentação da estigmatização social, referenciada em Gesing
(2004: 860 e ss.). Para esta autora alguns tribunais têm concluído que o estigma da homossexualidade é demasiado grande
para conceder custódia ou adopção a casal ou indivíduo homossexual. Mais uma vez, estamos perante uma tipo de
argumentação que serve de sustentação às decisões judiciárias, e que permite fundamentar uma decisão discriminatória.
Porém, Shapiro (1996), demonstra que apesar dos homossexuais serem frequentemente objecto de discriminação, oposição
política e alvos de violência, baseados na sua orientação sexual, não é necessariamente verdade que as suas crianças sofram o
mesmo tipo de discriminação. Deste modo, para Shapiro (1996), os Tribunais têm agido de acordo e com base “no potencial
risco” e não no melhor interesse da criança.
De referir também que o desconhecimento dos juízes portugueses sobre a literatura e os estudos realizados sobre a
temática da homoparentalidade pode encontrar justificação na escassa literatura existente em Portugal. Não obstante, importa
reconhecer que até mesmo este cenário de escassez científica tem vindo a mudar em anos recentes, como atestam estudos nas
áreas da antropologia (Almeida, 2005), comunicação (Caldeira, 2006; Cascais, 2004; Gouveia, 2005), direito (Corte-Real et
al., 2008; Múrias e Brito, 2008), psicologia (Carneiro e Menezes, 2007; Moita, 2001) e sociologia (Santos, 2005, 2006, 2008;
Santos e Fontes, 2001), entre outras.
Após a explanação dos argumentos presentes na decisão do Tribunal da Relação e a forma como este discurso
assente no manto do bem-estar da criança permitiu discriminar com base na orientação sexual, passaremos à análise da
decisão do TEDH, por forma a demonstrar o modo como o direito constrói identidade sexuais e de família e como a sua
mobilização ao nível transnacional permitiu reconstruir direitos humanos.

O caso Salgueiro Silva Mouta no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos


É com base na argumentação anterior que poderemos enquadrar a queixa de Silva Mouta junto do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos. Silva Mouta recorre ao TEDH censurando o Tribunal da Relação por ter atribuído à ex-
mulher, em seu detrimento, o exercício do poder paternal relativo à sua filha, fundamentando a decisão unicamente na sua
orientação sexual. Violando assim o disposto no artigo 8.º (respeito pela vida privada/familiar) e artigo 14.º (não
discriminação) da CEDH.
Nos termos do artigo 8.º da Convenção pode ler-se:
“1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver
prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança
nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das
infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”:

Em primeiro lugar, de referir que o TEDH considerou a anulação da decisão do Tribunal de primeira instância, por
parte do Tribunal da Relação, como uma ingerência no direito ao respeito pela vida familiar. Em segundo lugar, o TEDH
considerou existirem factos para poder enquadrar a questão no âmbito do artigo 8.º conjugado com o artigo 14.º, que refere:
“O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções,
tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a
pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”.

Segundo a argumentação apresentada pelo requerente foi sustentado que o acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, ao atribuir o exercício do poder paternal à mãe, para além de ter ido contra a decisão do tribunal de 1.ª instância, o
que demonstra uma clara contradição nos tribunais nacionais, baseou a sua decisão apenas na orientação sexual do
requerente. Por outro lado, o requerente argumenta ainda que esta decisão do Tribunal da Relação se baseou apenas no que
estava escrito no processo, não tendo conhecimento directo dos factos em causa.
“No meu caso, as coisas tornam-se ainda mais gritantes porque o Tribunal da Relação não admite a junção de mais
factos, é uma verdade, mas todos os acontecimentos que consubstanciem a decisão de primeira instância podem ser
aduzidas no processo” (Silva Mouta, entrevista realizada a 27/09/2008)

O Estado português apresentou também a sua argumentação, defendendo a decisão do Tribunal da Relação e a
interpretação do colectivo de juízes. Desta forma, o Estado não reconhece que tenha existido alguma interferência quanto ao
desenvolvimento da sua personalidade ou forma como este desenvolve o seu projecto de vida, em particular em matéria
sexual7. Por outro lado, argumenta que, tratando-se da vida familiar, os Estados contratantes dispõem, em matéria de poder
paternal, de uma larga margem de apreciação no prosseguimento dos fins legítimos previstos no n.º2, do mesmo artigo.
Argumenta ainda que toda a decisão do Tribunal da Relação se baseou no interesse da criança. Deste modo, somos levadas a

7
Cf. Caso Silva Mouta c. Portugal (queixa n.º 33290/6,), acórdão de 21 de Dezembro de 1999.

195
concluir que o Estado português coloca a discussão em torno do argumento do “melhor interesse da criança” e do bem-estar
desta para justificar o acto discriminatório relativo ao exercício paternal., indo mais longe ao afirmar que o Tribunal visava
um fim legítimo necessário numa sociedade democrática. Em suma, e perante esta argumentação o Estado português conclui
que o Tribunal da Relação não discriminou o requerente em função da sua orientação sexual, mas apenas agiu no interesse da
menor.
A posição do Tribunal Europeu, por sua vez, e apesar de se limitar à interpretação da Convenção Europeia, refere
que o art.14.º da CEDH proíbe tratar de modo diferente, salvo justificação objectiva e razoável. Na análise dos factos, o
TEDH não nega que o Tribunal da Relação tenha tido em conta o interesse da menor na apreciação dos vários dados, porém
ao anular a decisão do Tribunal de primeira instância, e atribuiu o poder paternal à mãe em detrimento do pai, o Tribunal da
Relação introduziu um novo elemento, o facto de o requerente ser homossexual e viver com outro homem. Aliás poderemos
ler no acórdão do Tribunal da Relação que este defende que “a menor deve viver no seio (…) de uma família tradicional
portuguesa” e “não é este o lugar próprio para averiguar se a homossexualidade é ou não uma doença ou uma orientação
sexual que preferência as pessoas do mesmo sexo. Em qualquer dos casos estamos perante uma anormalidade e uma criança
não deve crescer à sombra de situações anormais”. Para o TEDH existiu uma diferença de tratamento entre o requerente e a
sua ex-mulher, que não se baseou numa justificação objectiva e razoável, ou seja, não se prosseguiu um objectivo legítimo e
não existiu uma relação de razoável proporcionalidade entre os meios empregues e o fim visado.
Podemos afirmar que a decisão do Tribunal Europeu vai ao encontro das alterações que aconteceram em termos
jurídicos relativamente à homossexualidade. Para Daniel Borrillo (2005), passou-se da penalização da homossexualidade à
penalização da discriminação dos/as homossexuais (Borrillo, 2005: 68). Esta mudança é entendida, segundo Hale (2005),
como um reconhecimento legal e gradual da homossexualidade. Segundo estes autores esta mudança ocorreu de forma
gradual, sendo que os primeiros passos foram dados ao nível do direito Penal, despenalizando as relações sexuais entre
homens adultos, passando-se depois para o campo do direito civil, proibindo a discriminação contra homossexuais no
emprego8, e por fim, para o campo do direito de família, com o aparecimento de leis aplicáveis a casais homossexuais e com
o reconhecimento de relações parentais entre pais homossexuais e os seus filhos. Estas mudanças têm, segundo Brenda Hale,
contribuído para a igualdade de tratamento entre casais heterossexuais e casais do mesmo sexo. De facto, o grande debate ao
nível do direito prende-se com a evolução do direito à não-discriminação (no plano penal), que colocou em evidência uma
transformação da geografia da discriminação (Borrillo, 2005: 73), que passou para o espaço de criminalização dos
comportamentos ou dos ditos anti-homossexuais.
Perante estas evoluções, a decisão do Tribunal Europeu revelou-se bastante importante na consolidação da
proibição da discriminação em função da orientação sexual, e um passo também relevante no enquadramento destes direitos
enquanto direitos humanos.
“Foi extremamente importante por duas razões. Uma foi porque significou o começo de um alargamento dos
julgamentos para além do direito criminal (…) é um caso muito, muito importante porque nos transporta para o direito
da família, para o direito à paternidade. Mas foi também imensamente importante porque o Tribunal olhou para o caso
e (…) a sua única preocupação foi “terá o tribunal português discriminado com base na orientação sexual?”. E o
governo português defendeu-se, dizendo que não. Mas o Tribunal Europeu disse “discriminou sim, e a discriminação
com base na orientação sexual não é aceitável no âmbito da Convenção”. E ponto final. (…)” (Entrevista a Nigel
Warner, dirigente da Ilga-Europa, in Santos, 2005)

Dito de outro modo, o caso Silva Mouta permitiu, para além da discussão sobre o conceito de família, uma
discussão em termos dos direitos humanos. Esta discussão conduziu a uma abertura dos direitos humanos a direitos que
anteriormente não estavam contemplados nos textos internacionais. Esta não foi contudo uma acção pacífica, uma vez que
assistimos a batalhas judiciais nacionais e regionais, onde os tribunais desempenharam um papel importante nesta
transformação. Por outro lado, permitiu que a orientação sexual per si seja, em principio, inteiramente irrelevante para todas
as questões que perpassam do direito de família (Norrie, 2001), forçando o legislador, o juiz e outros aplicadores da lei e do
direito a esvaziarem-se das suas assumpções pessoais e particulares que ou discriminam directamente ou assumem a
hegemonia da heteronormatividade e negam igualdade de tratamento a pessoas LGBT.9
Esta decisão mostra também a alteração nas decisões dos juízes, pautadas inicialmente pela argumentação de que ao
entregar uma criança a um pai ou mãe gay se seria estar a pôr em risco o bem-estar da criança. De resto estas suposições
estão bem documentadas na literatura. Helen Reece (1996, apud Norrie, 2001), por exemplo, refere que o medo das crianças
serem “contaminadas”com a homossexualidade dos pais era até finais da década de 1970, a preocupação principal que

8
Não queremos com isto afirmar que a proibição da discriminação em funcao da orientacao exual e da identidade de genero tenha sido totalmente alcançada por
todos os paises da União Europeia. Para alem da legislacao laboral, onde persistem discriminacoes, o direito de familia permanece uma area fortemente
heteronormativa, como temos vindo a defender ao longo deste texto.
9
Tal principio coexiste, como sabemos, com leituras enviesadas do direito ilustradas por sentenças posteriores de são exemplo o acórdão proferido em 2003 pelo
Supremo Tribunal de Justiça em que se afirmou que a natureza dos actos homossexuais entre adultos e menores “é (...) objectivamente mais grave do que a
prática de actos heterossexuais com menores” [porque] “são substancialmente mais traumatizantes por representarem um uso anormal do sexo, condutas
altamente desviantes, contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental,
intelectual e social futuro da vítima”. Para uma discussão deste tema no âmbito do movimento LGBT, ver http://portugalpride.org/elgebete/2004/txt11.asp
(consultado a 21/11/2008).

196
condicionava as decisões dos juízes na atribuição da custódia dos menores. Contudo, este fundamento foi dando lugar ao
argumento da estigmatização. A respeito desta argumentação podemos afirmar que permite um acto discriminatório ao privar
os pais homossexuais da guarda dos seus filhos. No entanto, este argumento continua a ser usado pelos juízes como
fundamento da negação da custódia a um pai gay ou mãe lésbica (Norrie, 2001), bem patente no discurso dos juízes do
Tribunal da Relação de Lisboa.
De facto, até meados dos anos 1990, os tribunais um pouco por todo o mundo mostravam-se relutantes em conceder
a custódia de uma criança a uma mãe lésbica, utilizando para tal a argumentação em torno do bem-estar da criança. Todavia,
em finais desta década, os tribunais mudaram as regras legais que excluíam os casais do mesmo sexo de benefícios que os
casais heterossexuais detinham, nomeadamente nos países do mundo ocidental (Norrie, 2005). Pela mesma altura, a
interpretação judicial dos instrumentos de direitos humanos trouxe a orientação sexual para o campo da não-discriminação.
Esta alteração é então confirmada pela decisão do TEDH nesta caso em particular.

A reconstrução dos direitos sexuais e da definição de família na jurisprudência do TEDH


Apesar do sucesso deste caso para a luta e reconhecimento dos direitos sexuais e da homoparentalidade, nem todos
os direitos sexuais reclamados perante as instituições judiciais europeias tiveram sucesso. Para gays e lésbicas, a privacidade
reclamada obteve algum sucesso, enquanto as reivindicações baseadas no respeito pela vida familiar e igualdade,
historicamente, não obtiveram os mesmos resultados (Walker, 2001: 123). Por muito tempo os pais gays e mães lésbicas
foram confrontados com os diferentes problemas relacionados à filiação. Em numerosos litígios familiares, quer se tratasse da
guarda dos próprios filhos, do direito de visita aquando de um divórcio ou do exercício da autoridade paterna, a justiça
decidia contra o pai ou a mãe homossexual (Borrillo, 2000). De facto, durante os anos 1950 e 1960, nove foram os casos
apresentados ao TEDH respeitantes à criminalização das relações sexuais entre homens. Nestes casos a Comissão considerou
as queixas inadmissíveis e “manifestamente infundadas”. Somente nos anos 1980 o TEDH passou a defender que as leis que
criminalizavam as relações sexuais consensuais entre homens adultos violavam o respeito pela vida privada, direito protegido
pelo art.8.º da CEDH. Tornando o primeiro órgão internacional de defesa dos direitos humanos a considerar os direitos
sexuais como direitos humanos.
Relativamente à constituição de família, o art.8.º da CEDH protege a família da interferência do Estado, bem como
a vida privada individual. Contudo, as relações homossexuais nunca foram consideradas como fazendo parte da concepção de
família, dentro dos propósitos do art.8.º. Muitos foram os casos trazidos perante a Comissão e o Tribunal, mas nenhum deles
com sucesso. De facto, a Comissão repetidamente tem defendido que as relações entre pessoas do mesmo sexo não são
equivalentes às relações heterossexuais. Para autores como Infanti (2004), o TEDH tem desenvolvido um direito
internacional de direitos humanos na área da sexualidade de lésbicas e gays. Contudo, ao longo do último quarto de século
nem sempre teve decisões uniformemente positivas no que diz respeito à orientação sexual. Somente em finais dos anos 90 o
TEDH se tornou mais receptivo aos direitos humanos traduzidos pelos requerentes homossexuais. Por exemplo, o TEDH
considerou violação da Convenção Europeia as seguintes situações: a) existência de diferentes idades de consentimento para
relações sexuais, sejam heterossexuais ou homossexuais; b) a situação de o Reino Unido não permitir homossexuais nas
forças militares; c) o caso de Portugal ter negado a custódia de menor a pai homossexual; d) criminalização de relações
sexuais homossexuais como mais do que dois homens, em privado; e) direitos de sucessão e de herança.
Portanto, perante esta breve resenha histórica constatamos que é somente em 1999, com o julgamento Salgueiro
Silva Mouta c. Portugal, que o TEDH pôs fim a essa jurisprudência ao considerar que a negativa dada a um pai homossexual
ao exercício de seus direitos de pai é contrária ao respeito e protecção da vida privada e familiar (art. 8.º da CEDH) e
constitui uma discriminação que contraria o art. 14.º da CEDH (Dumitriu-Segnana, 2006; Infanti, 2004; Kurura, 2006; entre
outros).
De referir, ainda, a propósito da análise do papel do TEDH na reconstrução de direitos e da própria noção de
família, que apesar de ter aumentado o reconhecimento de que a discriminação com base na orientação sexual constitui uma
violação dos direitos humanos, os grandes instrumentos de protecção dos direitos humanos estão comprometidos com a
protecção de uma nocao restrita e heteronormativa de família, descrita como "grupo natural e fundamental da sociedade"
(Kurura, 2006). Por outro lado, a análise de alguns casos respeitantes ao direito de família ilustram a forma como o TEDH
tem sido cauteloso na protecção dos direitos dos indivíduos em família não tradicionais. Evidências são encontradas em casos
relacionados com uniões de facto – coabitação entre pessoas não casadas; filhos nascidos fora do casamento entre casais
heterossexuais10, seguindo-se casos onde o TEDH considerou os direitos paternais de homossexuais.
O primeiro caso levado ao TEDH por homossexuais foi apresentado em 1983 contra o Reino Unido. Neste caso a
Comissão Europeia para os Direitos Humanos negou a existência de vida familiar entre pessoas do mesmo sexo. Num outro
caso, contra a Holanda, a Comissão não considerou existir violação do art.8.º, quando a Holanda negou autoridade paternal
conjunta de uma criança nascida através de inseminação artificial a uma lésbica, afirmando que uma relação homossexual

10
O TEDH examinou primeiramente um caso de coabitação entre indivíduos não casados em 1977, num caso apresentado contra a Suíça, onde considerou a
existência de vida familiar entre pessoas que vivem na mesma casa, mesmo que não casados. Num outro caso, desta vez apresentado contra a Irlanda, o TEDH
considerou a existência de vida familiar mesmo quando o casal, não tendo casado e tendo-se separado, planeou o nascimento de um filho, enquanto viviam
juntos. Contudo, todos estes casos envolveram indivíduos heterossexuais.

197
entre duas mulheres não entra dentro da concepção do respeito pela vida privada (isto em 1989). Porém, no caso Silva Mouta
contra Portugal, o TEDH considerou que o pai homossexual gozava de vida familiar com sua filha. Neste sentido, esta
decisão representa alguma esperança para o reconhecimento das famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. No
entanto, convém salientar que neste campo, o que estava em causa não era o reconhecimento da relação homossexual, mas
sim o direito de um pai homossexual a relacionar-se com a sua filha. Porém, este caso não deixa de ser um passo muito
significativo para os direitos humanos LGBT. O TEDH susteve que a orientação sexual entra sem dúvida alguma dentro do
âmbito do já mencionado artigo, uma vez que não existiu nenhuma justificação razoável, por parte do Estado Português, para
o tratamento diferenciado das partes no caso da disputa pela custódia da menor. Segundo Walker (2001) e Sanders (2002)
este caso é o virar de uma longa história de negação de queixas com base na discriminação apresentadas ao abrigo do art.14.º
da CEDH.

Considerações finais
Apesar da existência de diversos debates sobre o modo como as decisões judiciárias permitem construir e
reconstruir identidades e comportamentos, não encontramos reflexões sobre o papel dos tribunais e do direito na reconstrução
de direitos humanos. Esta é a lacuna que o nosso estudo pretende preencher. Por outras palavras, a análise deste caso nos
diversos espaços de direito, permite-nos contribuir para a reflexão em torno da mobilização do direito dos direitos humanos, e
permite-nos perceber de que forma o discurso reconstrói conceitos como o de família, o de discriminação e o de direitos
humanos. Esta análise permite-nos ainda descortinar o modo como as partes têm usado os tribunais para mudar os discursos e
argumentos dominantes, mesmo que estas não tenham tido tal mudança por objectivo.
Por outro lado, quando olhamos para a luta pelo reconhecimento de direitos, nomeadamente direitos sexuais, no
contexto português (Santos, 2005, 2006 e 2008; Santos e Fontes, 2001), verificamos que parece existir “gradual valorização
da via jurídica como instrumento de legitimação pública e de reconhecimento político para exigências anteriormente
formuladas mais por indignação individual do que pela acção colectiva” (Santos, 2004). Portanto, o uso dos tribunais permite
legitimar e reconhecer determinados direitos, no entanto este reconhecimento reveste-se de alguns limites. No caso do direito
à homoparentalidade, e apesar dos principais debates teóricos se centrarem em torno do bem-estar da criança, algumas das
decisões judiciais e da jurisprudência europeia têm providenciado uma protecção considerável dos direitos sexuais. Têm
garantido protecção da autonomia da vida sexual, protecção dos menores e protecção contra a discriminação baseada na
orientação sexual (Helmut-Graupner, 2005). Contudo, e na contra-mão destes desenvolvimentos, os tribunais nacionais têm
tido um fraco desempenho na defesa dos direitos sexuais (ibidem: 111), o que demonstra de algum modo a forma como o
direito está a ser usado para a defesa e a promoção de direitos.
No que concerne ao uso do direito, nomeadamente internacional, na defesa e promoção dos direitos LGBT, Ana
Cristina Santos afirma que “a colagem dos direitos LGBT à grelha jurídica internacional, converte-se numa espécie de
extensão do conceito amplo de direitos humanos usado, desta feita, como ferramenta de indignação na esfera nacional”
(Santos, 2005). Porém, esta autora vai mais longe ao questionar se o aumento da intervenção jurídica assegura
necessariamente um maior reconhecimento dos direitos LGBT, identificando aqui alguns dos limites desta mobilização. De
facto, numa sociedade onde o jurídico é o terreno de resolução dos conflitos por excelência, a expansão dos direitos das
minorias sexuais decorre do reconhecimento que esta demanda é tão legítima e justa quanto as de outras minorias (Santos,
2004). Todavia, tal como Sengupta (2003) refere, este grupo tem que exigir protecção jurídica para direitos que o casamento
heterossexual tradicionalmente assegura. Ou seja, quando na própria sociedade não existe espaço de afirmação de
determinados direitos, a mobilização do direito, por si só, não conduz a uma reconstrução de discursos e ou comportamentos.
Assim sendo, e partindo de uma posição, nos anos 1980, onde os tribunais consideravam as relações entre pessoas
do mesmo sexo como “desvio”, perante as quais as crianças deveriam ser protegias, chegámos no virar do século XXI a uma
posição onde as relações do mesmo sexo não são mais vistas como moralmente inferiores para o bem-estar das crianças, e
onde parece haver uma maior reconhecimento da existência de laços e de vida familiar entre casais do mesmo sexo (Kilkelly,
2004). Neste sentido poderemos afirmar que no campo jurídico aparece como um espaço de redefinição do conceito de
família e de sexualidade, campo este que tanto se apresenta aberto como fechado. Esta característica permite também que se
reconstrua o direito da família, das minorias sexuais e, em última análise, os próprios direitos humanos. Tal como Kimberly
Richman aponta, não poderemos esquecer o poder que a lei tem em alterar significados e identidades (2002: 286). Contudo,
são as alterações sociais e culturais que permitem a alteração do modo como os tribunais lidam com a inter-relação entre
sexualidade e direito de família.
Voltando à realidade portuguesa, a condenação do Estado português por discriminação com base na orientação
sexual poderia levar a acreditar que a nossa sociedade estaria mais aberta a reconhecer que lésbicas, gays, bissexuais e
transgeneros têm os mesmos direitos e deveres, e receberam tratamento igual perante a lei. No entanto, convém recordar que
em Portugal a questão dos direitos sexuais teve um trajecto irregular e pautado pela colagem aos direitos reprodutivos. De
referir que no ordenamento jurídico nacional, as questões dos direitos sexuais e reprodutivos são tratadas de forma directa

198
apenas em três documentos, datados respectivamente de 1984, 1999 e 200111, e a “inclusão do direito à não discriminação
com base na orientação sexual ou na identidade de género na agenda internacional de direitos humanos tem pouco mais de
vinte anos” (Santos: 2005: 63). Por outro lado, e de acordo com o relatório de 2004 do Grupo Europeu de Peritos no Combate
à Discriminação segundo a Orientação Sexual, a sociedade portuguesa parece apresentar uma realidade ambígua e até
contraditória, já que segundo Miguel Freitas (2004) não é certo que os tribunais portugueses analisem a orientação sexual
dentro do (actual) art. 13.º da CRP, e também não está garantido o momento quando estes aplicarão a garantia constitucional
da igualdade e não discriminação em questões relacionadas com lésbicas, gays, bissexuais e transgeneros. “A experiência tem
revelado que a protecção jurídica não garante, por si só, o respeito por direitos previamente estabelecidos. É sobejamente
reconhecido que mentalidades não se mudam por decreto e que, como tal, são frequentemente morosos os processos que
conduzem a transformações socioculturais efectivas. Acresce que, mesmo após ocorrerem mudanças na esfera jurídica, as
atitudes vigentes continuam a reportar-se ao quadro legal precedente por via do hábito ou da atribuição de valor moral
independentemente da evolução dos códigos legais.” (Santos: 2005: 168-169).
Esta realidade está fortemente presente na trajectória pessoal e profissional de Silva Mouta, que depois de ganhar a
luta pelo reconhecimento da homoparentalidade e da não-discriminação se filiou não numa associação de defesa dos direitos
sexuais, mas sim numa associação de defesa dos direitos de pais. O requerente diz-nos que o lugar que ocupa hoje na
associação está em muito relacionado com o processo, e com as dificuldades que enfrentou na justiça e sociedade
portuguesas.
Assim sendo, e apesar de reconstrução por parte do TEDH dos direitos humanos, dos direitos sexuais e dos direitos
de família e apesar desta reconstrução ter criado precedentes e marcos jurídicos importantes, não foi suficiente para uma
mudança de práticas, mentalidades e discursos instituídos.

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Tensões e assimetrias de género – Processos de ruptura conjugal e poder paternal


Manuel Carlos Silva
Universidade do Minho
[email protected]

Ana Reis Jorge


Universidade do Minho
[email protected]

Aleksandra Queiroz
Universidade do Minho
[email protected]

Resumo: A comunicação que se pretende apresentar tem por base alguns resultados preliminares do projecto “(Des)igualdades de género no
trabalho e na vida privada: das leis às práticas sociais” (PTDC/SEDE/72257/2006) bem como do projecto de doutoramento de uma das
autoras desta comunicação intitulado “Desigualdades de género: processos de ruptura conjugal e subsequente tutela das crianças”
(SFRH/BD/41950/2007). Este projecto parte da hipótese global de que as formas de desigualdade e dominação de género, embora tributárias
de mecanismos macro-económicos e institucionais, reproduzem-se também a nível micro (família, empresa, instituições públicas e privadas),
implicando uns e outras diversas variáveis, designadamente a presença/ausência de determinado grau de poder de disposição (empowerment)
sobre recursos e recompensas por parte dos actores sociais. Imbricando os conceitos de classe e género, numa combinação crítica das
perspectivas (neo)marxista, weberiana, foucaultiana e interaccionista-simbólica mas tendo como pano teórico de fundo uma abordagem
feminista pluridimensional, cruzam-se metodologias de ordem quantitativa e qualitativa no sentido de produzir novos conhecimentos
empíricos e teórico-analíticos relativamente à administração da justiça nos processos de divórcio e regulação do poder paternal. Atendendo
às tensões e estratégias que envolvem tais processos, esta comunicação incide na análise de estatísticas oficiais e sentenças judiciais
recolhidas em Tribunais de Família e Menores em concelhos do distrito de Braga.
Palavras-chave: Género; Família; Divórcio; Sistema Judicial; Poder paternal;

1. Introdução e problema
Portugal conheceu, particularmente após Abril de 1974, uma redução das desigualdades de género, nomeadamente
pela acção de movimentos sociais de mulheres e determinadas forças políticas. Apesar dos relativos avanços, em termos
legais e políticos, na defesa dos princípios de tratamento igualitário nas relações entre homens e mulheres, diversos estudos
nacionais demonstram a permanência de importantes assimetrias em diversas dimensões da vida social: na divisão sexual do
trabalho, no controlo do espaço doméstico e nos códigos de honra-vergonha (Silva 1993, 1998; Wall et al. 2005); na
segmentação sexual dos mercados de trabalho, na matriz de oportunidades e nas remunerações (Ferreira 1993); nos percursos
profissionais e na participação/liderança em actividades políticas (Viegas e Faria 1999); nos sistemas de herança e casamento
(Torres 2001); nos contextos/ interacções quotidianas; nas mundividências simbólicas e nos contextos institucionais,
inclusive ao nível do poder judicial. Efectivamente, ainda que o Direito se socorra, conceptualmente, das ideias de
impessoalidade e neutralidade, diversos autores demonstram o desfasamento entre aquelas e a acção judicial (Silva 2005;
Machado 2005). Vários autores/as feministas evidenciam, inclusive, que os estereótipos binários sobre feminino-masculino
são amiúde acentuados no Direito e na administração da justiça (Smart in Abbott e Wallace 1991). Se, nos mais variados
sectores tal ocorre em desfavor da mulheres, também no grosso dos processos de separação/divórcio e subsequente tutela das

201
crianças, tal pesa negativamente sobre as aquelas – o que as obriga a socorrer-se de estratégias defensivas amiúde apenas
detectáveis em ´registos ocultos´ (Scott 1990), sem ser de excluir casos, ainda que minoritários, como veremos, em que
homens possam sentir-se lesados nos seus direitos de pais.
Após um breve enquadramento teórico, no qual procuramos um fio condutor de análise, apresentamos uma análise
respeitante a quinze processos de divórcio iniciados na modalidade litigiosa e onze processos de regulação do poder paternal
em caso de desacordo dos progenitores e na sequência daquele mesmo tipo de processos, transitados em julgado no distrito
de Braga entre 1990 e 2005. Privilegia-se aqui, numa perspectiva de género, uma análise das motivações inerentes ao pedido
de divórcio/ regulamentação do exercício do poder paternal, bem como tendências ao nível da decisão judicial nestes casos.

1. Desigualdade e conflito de género: breve enquadramento teórico


Neste texto, após uma breve revisitação, de modo sintético e critico, dalguns paradigmas teóricos para explicar as
desigualdades de género (o estruturo-funcional, o (neo)marxista e o (neo)weberiano), procuramos cruzar o marxismo, o
weberianismo e o feminismo, com base no conceito de género mas implicando também a condição de classe. No projecto de
investigação “Desigualdades de género no trabalho e na vida privada: das leis às práticas sociais” (PTDC/SDE/72257/2006) a
nossa hipótese de trabalho sustenta que, para além dos interesses macro-económicos e dos mecanismos de dominação
institucional, o controlo da força de trabalho feminina e subsequentes fenómenos de segregação e discriminação salarial se
reproduzem a diversos níveis: sócio-estrutural, organizacional-institucional e interactivo.
Ao nivel micro e meso, o poder da mulher difere em função de diversos factores tais como recursos disponíveis e
recompensas; participação nos processos produtivos; ordenação hierárquica de papéis sexuais na divisão sexual do trabalho,
bem presente nas relações conjugais e pós conjugais (divórcio e guarda dos filhos); o lugar ocupado na organização da(s)
respectiva(s) corporação ou instituição; lugar nas esferas reprodutivas da unidade familiar e, eventualmente, respectiva
dissolução e recomposição; papéis nas interacções e negociações.
Antes de expor o nosso ponto de vista, façamos uma breve revisitação das abordagens teóricas correntes sobre as
desigualdades de género nas sociedades contemporâneas, de modo a num segundo momento debater as suas dificuldades e
hiatos. O modelo estruturo-funcional, que tem sido descrito como “a sociologia dos papéis sexuais”, para uns intencional e
para outros não necessariamente, comporta uma orientação antifeminista e talvez a principal instância dramática da falta de
envolvimento da sociologia convencional para com o feminismo desde os anos sessenta (Ritzer 1996:444). A melhor
ilustração desta teoria convencional no seio da sociologia é representada por Parsons (1956) que não presta qualquer atenção
às questões de género, a não ser reproduzindo o modelo dominante nas ditas classes médias e apresentando-o como
exemplares para as demais classes. Segundo Parsons (1956), a instituição familiar representa um contributo indispensável
para a estabilidade social e interiorização do controlo social. As funções diferenciados na família por sexo – a ‘instrumental’
por parte do homem e a ‘expressiva’ por parte da mulher – assentariam nas diferenças biológicas e anatómicas. Nesta óptica,
a ‘função instrumental’ detida pelo homem faria dele o ganha-pão da casa e a ‘função expressiva’ da mulher, asseguraria o
funcionamento interno da família, em ordem a cuidar material e emocionalmente dos filhos e dos homens adultos. Se os
homens e mulheres forem demasiado semelhantes a competição surgirá e com ela o enfraquecimento da família como esteio
da estabilidade social.
Num pólo oposto à visão estruturo-funcional, a perspectiva interaccionista simbólica considera que as
desigualdades de género devem ser contextualizadas, devendo relevar-se as práticas e interacções, os modos de desempenho
e expressão cultural codificada na linguagem, nos gestos e na capacidade de negociar as identidades masculinas e femininas
(cf. Goffman, 1974).
Por seu turno, as explicações de tipo organizacional ou institucional baseiam-se no conceito de poder e focalizam as
desigualdades de género com base na desigual distribuição de poder não só na família, como também nos meios laboral,
educacional e político. Por outro lado, esta perspectiva centrada no poder é partilhada por bastantes feministas (Roberts,
1984) e apresenta pontos de convergência com a conceptualização weberiana da autoridade e do poder (Weber 1978), e com
vários teóricos mais recentes sobre este tema tais como Segalen (1980), Flandrin (1984), Bourdieu (1972, 1980), Silva
(1993), Machado (2007) que sustentam que a instituição familiar é um dos principais lugares de controlo político e
económico do património e da sexualidade, onde as relações de poder e autoridade provocam tensões e conflitos que podem
romper a unidade e a integração doméstica.
A par de situações de convergência de interesses, de partilha solidária de emoções e afectos entre homens e
mulheres, o conflito entre homens e mulheres, não só fora como dentro de própria família, tem desempenhado um papel
central que reflecte as situações de desigualdade de género ao longo dos séculos. Já no século XIX Engels (1980) insistia que
as estratégias masculinas no sentido de consolidar o controlo sobre as mulheres, assentes na divisão sexual do trabalho,
contribuem para explicar a origem da propriedade privada e do Estado. Todavia esta linha de conflito, na perspective
marxista tradicional, fixava-se mais na explicação de classe e prestava pouca atenção ao conflito de género, descurando o
papel das instituições (para)estatais e da própria estrutura de poder no seio da família. Ou, assumindo a conflitualidade no
seio da família, sobrepunha a convergência de classe entre homens-pais-maridos e mulheres-mães-esposas na mesma
situação de classe. Além disso, o marxismo tradicional não deu atenção suficiente ao trabalho doméstico como base de
dominação de género e inclusive, em várias situações, de exploração de classe.

202
Nos anos setenta, o feminismo radical endereçou a crítica mais incisiva à concepção marxista tradicional
defendendo que as mulheres são mais oprimidas pelo sistema patriarcal do que pelo sistema de classes. O patriarcado seria
não só historicamente a primeira estrutura histórica de dominação e submissão, como continua a ser o sistema mais pervasivo
de desigualdade, enfim, o modelo básico de dominação (Firestone, 1976, Walby, 1997).
Na nossa perspectiva, assumimos que a reconstrução do marxismo, designadamente nesta área, e a articulação entre
os conceitos de género e classe é possível e pode ser frutífera para a análise das relações de género. O conflito, a diversidade
e heterogeneidade estão embebidas nas relações de género, na divisão sexual do trabalho, nos discursos e ideologias sobre
maternidade, masculinidade e feminilidade e, como tal, moldam o carácter das famílias contemporâneas. Instituições e
programas sobre protecção social, a concretização ou não de principios de cidadania e a disponibilidade de serviços públicos
relativos ao dito Estado-providência afectam as relações de género de diversos modos e, por certo também, nos processos de
divórcio e tutela de menores após o divórcio.

3. Divórcio em Portugal: os números e a lei aplicada


É sabido que a promulgação da primeira lei do divórcio em Portugal remonta à implantação da I República,
significando um esforço de laicização do divórcio por parte do Estado, bem como a ampliação dos direitos e liberdades
individuais. A sua enunciação por diversas vezes foi considerada como uma das mais avançadas da Europa, nomeadamente
pela instauração da possibilidade do divórcio por mútuo consentimento e dado o seu cariz igualitário em termos de género.
Porém, comparativamente com outros países com idêntica legislação, o número de divórcios apresentados em Portugal, após
a promulgação de tal lei, não se configurou particularmente relevante, circunscrevendo-se em larga medida às zonas urbanas
e aos sectores mais escolarizados da população, de nível económico médio e alto.
Tais avanços legislativos verificados com a I República sofreram um grave revés, restaurando-se as velhas e
retrógradas concepções com a consolidação do Estado Novo, com a assinatura da Concordata entre o Estado e a Santa Sé em
1940. Este acordo, ao nível do casamento católico, extingue a separação entre a Igreja e o Estado e, consequentemente,
instaura a indissolubilidade legal do casamento católico. É pois expressiva, nomeadamente após o ano de 1946, em que são
decretados 1181 divórcios, uma diminuição acentuada e graficamente rectilínea dos mesmos, sendo que em 1970 se atinge o
número de 509, não fosse o casamento católico a forma predominante de união conjugal em tal período. De qualquer forma,
não deixa de ser relevante o número de separações judiciais de pessoas e bens. Se em 1959 elas atingiam o valor de 373 em
1974 passam a 878, com um acréscimo particularmente visível a partir de 1970. Donde, pode inferir-se destes números a
efectiva intenção de divórcio, o que todavia não era possibilitado pela lei. Esta conclusão reforça-se mediante a constatação
de um número elevado de conversões de separação de pessoas e bens em divórcio logo após a promulgação do Decreto-Lei
de 1975.
Se em diversos países da Europa, bem como nos E.U.A. a década de 60 é marcada por um aumento espantoso do
número de divórcios, em Portugal o Código Civil de 1966 vem limitar ainda mais as possibilidades do mesmo, impedindo o
divórcio por mútuo consentimento nos casos de casamento civil. Nestes casos, as soluções possíveis passavam a ser a via
litigiosa ou a separação de pessoas e bens, quer litigiosa, quer por mútuo consentimento, com a possibilidade de conversão
em divórcio passados 3 anos, esta exclusiva dos casamentos civis.
Efectivamente, só após a Revolução de Abril de 1974, mais concretamente com o Decreto-Lei de 27 de Maio de
1975 é que se consagra novamente o direito generalizado ao divórcio, ressurgindo também a modalidade de mútuo
consentimento, sendo que em 1977 um novo Decreto-Lei vem efectivar uma série de direitos relativos à família,
nomeadamente ao nível da igualdade de género. Tal como Torres (1996) assinala, aquando a I República “quem defendia este
tipo de programa era uma burguesia cultivada, que propunha nova legislação em nome de uma nova ética. Em 1974, os
argumentos são de natureza mais pragmática e imediatista. (…) São os próprios atingidos que se movimentam no sentido de a
implementar (…) de acabar com uma situação estigmatizante, de exprimir o desejo de estar dentro da lei e de salientar a
dificuldade de viver fora dela” (1996:39).
Entre os anos de 1975 e 1978 verifica-se pois uma subida impressionante do número de divórcios, em parte
explicável pelo volume de regularizações da situação de separação de pessoas e bens. A partir desta data, assiste-se a um
crescimento regular até ao ano de 2002, ano no qual, em termos de valor absoluto, se verificou o aumento mais elevado e,
proporcionalmente, a maior variação anual verificada desde 1977 até ao ano de 2007. Neste ano registaram-se 25255
divórcios1, o segundo valor mais elevado da década actual, na qual se verificaram algumas oscilações (pelos ligeiros
decréscimos em 2001, 2003 e 2005). A este pico não estão certamente alheias as alterações do quadro jurídico para o
requerimento e a tramitação processual do divórcio, nomeadamente a tendência para a sua desburocratização.
Relativamente à modalidade de divórcio (Gráfico 1.), é notório que se entre 1975 e 1979 os divórcios litigiosos
eram maioritários (48%), seguindo-se, com valor aproximado, os por mútuo consentimento (44%), e por fim, mas com
alguma expressão, a conversão de separação em divórcio (8%), a partir da década de 80 os divórcios por mútuo
consentimento passam a ser claramente maioritários, atingindo os 67,8% nessa mesma década, 77,3% na década de 90,
90,9% em 2002. Os processos de separação para divórcio tornaram-se, no período em análise, muito pontuais. Importa, no

1
Dados ainda provisórios segundo o INE.

203
entanto, aqui referir que estes números dizem respeito a processos findos, sendo certo que uma parte considerável de
divórcios inicialmente litigiosos se convertem em mútuo consentimento.

Gráfico 1.

Fonte: INE

Este aumento progressivo do divórcio no nosso país levou a uma aproximação aos valores europeus. Durante as
décadas de 80 e 90, em termos gerais, Portugal, embora apresentasse taxas de divórcio tendencialmente superiores aos
restantes países da Europa do Sul – o que se explica em parte pelo enquadramentos jurídico mais avançado em Portugal no
pós 25 de Abril e o lastro republicano e laico em comparação, por exemplo, com a Espanha e a Itália –, detinha valores muito
inferiores aos países do Norte e Centro da Europa. No entanto, já no ano de 2002 a taxa de divorcialidade (2,7‰) –
proporção entre o número de divórcios decretados e a população residente – colocou Portugal a par de países da União
Europeia que possuíam os indicadores mais elevados (2,4‰ na Suécia, 2,5‰ Finlândia, 2,7‰ na Dinamarca e na Bélgica
2,9‰).
Os últimos dados de 2007 apontam para uma taxa de 2,4‰ em Portugal, mantendo-se a tendência para a ocupação
de um lugar cimeiro em contexto europeu.
A esta surpreendente subida nos últimos anos não serão certamente alheias as amplas transformações sociais no
nosso país, materializadas em importantes reformas jurídicas, tendentes à consecução da igualdade ao nível do género e da
família. Efectivamente, num curto espaço de tempo, os constrangimentos sociais para o divórcio diluíram-se, não fossem as
mudanças na forma de encarar o casamento e ao nível das práticas e concepções familiares, com o crescente aumento da
valorização do bem-estar individual e da autonomia e liberdade na condução da vida privada. Para tal contribuiu, em larga
medida, a afirmação das mulheres ao nível do trabalho remunerado e aspirações profissionais, tornando-se a dependência
económica cada vez menos um entrave para o pedido de divórcio. A par de uma menor dependência económica da mulher e,
provavelmente, a correlativa perda de poder masculino no seio de diversas famílias, é de salientar um aumento exponencial
de obtenção de recursos científicos e culturais expresso num acentuado taxa de mulheres formadas (licenciadas, mestres e
doutoradas), tal como o evidenciam as estatísticas. Num contexto de crescimento urbano nas grandes e médias cidades em
Portugal, a relativa libertação feminina do controlo social dos meios rurais tradicionais, não só entre as ditas classes médias,
como entre filhas de classes trabalhadoras veio desinibir esta nova geração de jovens e aliviar os constrangimentos sociais de
ordem aldeã e familiar. Por fim, a perda da capacidade sancionatória da Igreja e de seus representantes locais, a influência
dos media na mudança de mentalidades e costumes vieram também afrouxar a pressão sócio-moral sobre os moradores e, em
particular, sobre as mulheres e, em especial, as mais jovens, relativizando ou, pelo menos, tolerando a dissolução conjugal.
De qualquer modo, tais avanços, como foi dito anteriormente, não significaram a anulação das assimetrias,
verificando-se que a propensão para o divórcio e a vivência do mesmo tende a variar consoante a região, o sexo, a classe e o
grau de instrução, o que nos remete para a importância da presença/ausência de determinados recursos. Neste sentido, a
dissolução conjugal surge com maior incidência em áreas urbanas, verificando-se, regionalmente, taxas de divórcio
particularmente acentuadas na região de Lisboa e Vale do Tejo, seguindo-se, ainda que em termos proporcionais, as regiões
do Norte e do Alentejo, que passaram de 0,8‰ em 1993 para 2,2‰ em 2002. Note-se que, embora se tenha assistido a um
decréscimo generalizado dos casamentos católicos no país, é na região norte que esta modalidade assume valores mais
elevados, sendo visível que a ruptura conjugal é superior nos casamentos civis. Esta modalidade, ainda que numa margem
pouco relevante em relação aos casamentos católicos, configura-se hoje como maioritária.
Em termos de socioprofissionais, ainda que a tendência seja o crescimento da taxa de divórcio seja transversal aos
vários grupos, verifica-se uma preponderância de indivíduos divorciados nos grupos de empregados, profissionais liberais,
quadros médios e superiores, supostamente com credenciais escolares relativamente elevadas e uma margem elevada de
autonomia financeira no casamento.
No que toca ao sexo, é verificável que as mulheres vão sendo sempre superiores no conjunto de indivíduos
divorciados. Para tal parecem contribuir não só factores demográficos como o número mais elevado de mulheres a partir dos

204
25 anos de idade, como também sócio-culturais, nomeadamente o facto de, no caso dos homens, ser notório um mercado
matrimonial mais amplo e também distinto das mulheres. Os homens não só recasam mais, como também o fazem
tendencialmente com mulheres mais novas e solteiras, o que não acontece no caso das mulheres, menos
propensas/predispostas a segundos casamentos, seja por serem mais autónomas que os homens nas tarefas do quotidiano, seja
sobretudo por eventualmente terem tido experiências conjugais negativas. Porém, por parte das mulheres, é sobretudo o facto
de deterem ou ser-lhes atribuído, na maior parte dos casos o poder paternal que tende a configurar-se como um desincentivo a
empreender uma nova e durável relação conjugal ou mesmo de união de facto. E, por fim, em vários casos constatados, a
permanência na situação de divorciadas é tributária da vontade de uma vivência mais independente.
Também relativamente à idade aquando o divórcio, evidenciam-se diferenças entre homens e mulheres, sendo que
aqueles assumem valores proporcionalmente mais elevados nos escalões etários superiores e elas nos inferiores. Ora estes
dados apontam para as diferenças etárias aquando o casamento mas que também pode sugerir uma estratégia, por parte das
mulheres, para minimizar as dificuldades ou mesmo entraves a novas relações.
Ao nível da duração do casamento a tendência dos últimos 10 anos é a de um crescimento importante dos divórcios
nos casamentos mais recentes (dos 0 aos 4 anos) – 12,2% em 1993, para 19,7% em 2002 – embora nos casamentos com
maior durabilidade, também se tenha observado uma tendência de crescimento. De qualquer forma, é o grupo dos 5 aos 9
anos que continua maioritário, embora em termos relativos tenha sofrido uma descida.
Relativamente à presença/ausência de filhos no casamento, é notório que tal não parece condicionar de forma
efectiva a dissolução conjugal, verificando-se a este nível alguma estabilidade em termos temporais. Importa contudo realçar
que a frequência dos divórcios tende a diminuir à medida que o número de filhos aumenta, podendo tal ocorrer por razões
económicas conjugadas com preocupação, ainda largamente partilhada, que o divórcio é mais prejudicial que o casamento a
custo suportado.
Ainda no concernente ao sexo é notório, nos casos de litígio, que são as mulheres quem mais solicita o divórcio
(62%), sendo que os processos analisados sugerem também diferenças ao nível das motivações/ alegações, bem como
conduta das partes durante os processos.
Dos quinze processos de divórcio iniciados em litígio analisados, dez são da autoria de mulheres, sendo que em 7
casos a decisão remeteu para a culpa exclusiva do réu e em 3 houve conversão para mútuo consentimento. Já nos processos
de autoria de homens, verifica-se em três casos a conversão para mútuo consentimento, num caso é provada a culpa exclusiva
do réu e noutro a culpa é atribuída a ambos os intervenientes. Outro dado interessante é que nos processos da autoria de
mulheres, apenas em dois casos é apresentada contestação (um deles finalizado na modalidade de mútuo consentimento),
sendo que em todos os processos levados a cabo por homens, há contestação por parte das mulheres. Tal parece prender-se,
em larga medida, com as motivações/ alegações inerentes ao pedido.
Por parte das mulheres os motivos alegados para o divórcio e atribuição da culpa (em larga medida também
aquando as contestações), foram, por esta ordem, a ausência de contribuição para o sustento da família e a violência física,
verbal e psicológica empreendida às mesmas (aspectos apontados em 8 casos, sendo em dois casos associados ao alcoolismo
do réu e em três à toxicodependência), seguindo-se a ausência prolongada de relações sexuais (em 4 casos), o adultério (em 3
casos) e abandono de lar e a separação de facto por período superior a um ano (3 casos), havendo, em grande parte das
situações, a conjugação de várias acusações. É de notar que em todos estes processos tais factos foram dados como provados,
independentemente das contestações efectuadas, dados estes que obrigam a recolocar o problema da violência conjugal em
Portugal.
Relativamente aos homens, os motivos alegados revelam-se distintos dos das mulheres. O aspecto mais alegado por
parte dos homens (em 4 casos) tratou-se da separação de facto por período superior a um ano – aspecto que não conflui
directamente para a consecução de culpa – seguindo-se a falta de zelo nos cuidados com a casa e família (em 2 casos), sendo
apontados uma única vez o adultério, ausência de contribuições para o sustento da família, abandono de lar, conduta moral
duvidosa, falta de carinho e agressões físicas, verbais e psicológicas. É de notar que o único processo em que fica provada a
culpa por parte da ré mulher, se trata de uma situação tratada enquanto processo-crime de atentado à integridade física,
somando-se o completo alheamento da ré ao quotidiano familiar, tanto na sua componente afectiva quanto económica.
Quanto ao processo cuja culpa é atribuída a ambos os intervenientes, às alegações do autor de abandono de lar, separação de
facto, adultério e conduta moral duvidosa, a ré respondeu alegando o completo alheamento do autor ao contexto familiar, a
não contribuição para as despesas correntes da família, as agressões físicas, verbais e psicológicas, associadas ao alcoolismo
e a infidelidade do mesmo, vendo-se provadas estes últimos argumentos e o abandono de lar por parte da ré.

4. A regulação do exercício do poder paternal


No que toca à educação e à socialização das crianças no seio da família, nas últimas décadas também se verificaram
importantes transformações, nomeadamente no sentido da democratização das relações familiares e primazia à dimensão dos
afectos ao invés da autoridade, nomeadamente do chefe-de-família. Este novo sentido dado à criança na família repercutiu-se
numa ampla legislação no sentido da garantia da protecção e do bem-estar das crianças, designadamente nos casos de
divórcio e subsequente regulação do exercício do poder paternal.
Nos últimos 15 anos o número de processos de regulação do exercício do poder paternal sofreu um acentuado
aumento, acompanhando a tendência do número de divórcios, ainda que aqui sejam também contabilizadas situações que,

205
embora em menor número, não remetem para a dissolução conjugal. Efectivamente, se em 1993 se verificavam 10267
processos de regulação do exercício do poder paternal, em 2006 eles atingem o valor de 26697, passando-se de 14217
menores envolvidos para 30939.
Desde o Código Civil de 1977 e até à recente Lei nº61/20082 a determinação do progenitor a quem era atribuída a
guarda e o exercício do poder paternal podia ser feita de duas formas – por acordo dos pais, caso se tratasse da modalidade de
divórcio ou separação judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento, ou mediante decisão judicial em caso de divórcio
litigioso, sempre que não tenha havido acordo por parte dos pais, podendo assumir a forma de guarda maternal ou paternal3.
No entanto, importa realçar que, embora se verifique uma clara maioria de divórcios por mútuo consentimento, que no caso
da presença de filhos menores implica o acordo quanto ao exercício do poder paternal, tal não significa necessariamente “a
ausência de conflito parental e conjugal mas antes a vontade de não expor a vida pessoal no tribunal e a procura de um
processo mais rápido de obter o divórcio, em contraposição com a demora e os custos dos divórcios litigiosos” (Sottomayor,
2001:32). Por outro lado, ainda que tal acordo esteja sempre sujeito a controlo judicial, “na prática, os tribunais raramente
exercem os poderes de investigação que a lei lhes confere, limitando-se a confirmar sistematicamente os acordos dos pais”
(idem).
Segundo o art. 1905.º do Código Civil, o destino dos filhos deve ser regulado de harmonia com o interesse do
menor, sendo confiada a guarda ao progenitor que mais contribui para promover o desenvolvimento físico, intelectual e
moral, com maior disponibilidade e aquele cujo menor tem maior proximidade. Tal não deixa de implicar uma certa
subjectividade na acção judicial, apelando-se a uma variedade de factores relativos à criança e aos pais para a decisão.
Importa, no entanto, aqui realçar algumas regras específicas que têm sido aplicadas em Portugal e em grande parte dos países
ocidentais – a preferência maternal para crianças de tenra idade, a não separação de irmãos e a preferência do progenitor que
tem o mesmo sexo da criança.
Se inicialmente o critério da preferência maternal apenas se aplicava a crianças até aos três anos de idade, com a
reforma de 1977 tal critério passou a ser generalizado, partindo-se do pressuposto de que a mãe, salvo raras excepções, seria
insubstituível na educação das crianças. Se, por um lado, parece ter-se contrariado o critério patriarcal do pai enquanto chefe-
de-família e valorizar-se a mãe enquanto sujeito de afectos e maior proximidade no quotidiano e crescimento dos filhos, por
outro tal não deixou de significar um reforço do estereótipo relativo ao papel social da mulher e a sua estreita ligação à
maternidade, numa lógica claramente patriarcal. A década de 90 é, todavia, marcada por uma viragem, em termos de
jurisprudência a este nível, para o qual contribuíram certamente não só as mudanças ocorridas ao nível da família,
nomeadamente a maior paridade nas relações familiares, como também a pressão de movimentos/ associações de pais
divorciados que reivindicavam e reivindicam igualdade na consecução da guarda dos filhos.
De qualquer forma, alguns estudos demonstram que as atribuições de guarda aos pais homens respeitam a situação
bem particulares, tratando-se basicamente, como afirma Sottomayor (2001:48), de homens com trabalho flexível, por
comparação a mulheres com trabalho a tempo inteiro, homens a residir com os avós paternos dos menores, com irmãos ou
com uma companheira pré-disposta a cuidar dos menores. Tal tende também a sugerir a mesma visão estereotipada face à
mulher, que se vê penalizada pelo facto de exercer uma actividade remunerada a tempo inteiro, pelos menores rendimentos
ou, em alguns casos, pela sua conduta social, nomeadamente nos casos de coabitação.
Pese embora a dita evolução no sentido de uma maior abertura à consecução do poder paternal, as estatísticas
mostram que grosso modo a guarda de menores e o exercício do poder paternal são atribuídos às mães, não se verificando
sequer alterações significativas ao longo do tempo, tal como demonstra a fig.2., respeitante aos processos tutelares cíveis de
poder paternal findos entre 1993 e 2006.

Gráfico 2: Tutela/guarda de menores

2
Esta lei vem pôr fim ao divórcio litigioso, prevendo a possibilidade de divórcio por quaisquer factos que, independentemente da ruptura dos conjugues,
mostrem a ruptura definitiva do casamento bem como consagra um novo regime de responsabilidades parentais, tendente a privilegiar formas de exercício
partilhado dessas mesmas responsabilidades, salvo nos casos em que tal comprometa o interesse do menor.
3
Relembre-se que no código civil de 1966 a lei era omissa em relação ao exercício do poder paternal em caso de divórcio ou separação, sendo, em termos gerais,
atribuído ao pai o poder de representar o filho, administrar os seus bens e decidir sobre todas as questões ao nível da instrução, trabalho e emancipação. A mãe
tinha apenas direito de consulta e participação, podendo exercer o poder paternal apenas no caso da ausência ou impossibilidade paterna. Tal permitia uma
dissociação entre a guarda e o poder paternal, estando a mãe sempre dependente da autorização do pai para qualquer decisão. No entanto, a impraticabilidade em
muitos dos casos desta situação levou a que na mesma altura se previsse, aquando a situação de divórcio ou separação, o desaparecimento da figura do chefe de
família e dessa forma a possibilidade da mãe exercer o poder paternal.

206
Atribuição de guarda de menores
14 000 Pai
12 000
10 000


8 000 Mãe
6 000
4 000 Família idónea
2 000
Ano Terceira Pessoa

Fonte: Ministério da Justiça, 1993-2005

Se isolarmos os casos em que a guarda de menores é atribuída à mãe, ao pai, ou remete para guarda conjunta, ainda
que tal não corresponda com exactidão a situações de ruptura conjugal, a percentagem de processos em que o exercício do
poder paternal é atribuído à mãe tem ainda uma subida significativa, atingindo no ano de 2006 os 91%, representando os
casos em que é atribuído ao pai 6% e a guarda conjunta 3%. No que respeita a esta última modalidade é de relevar que apenas
a partir de 2001 ela assume expressão, manifestando um aumento quase constante até ao ano de 2006 (à excepção do ano de
2005, em que se assiste a um decréscimo no volume global de processos). A possibilidade de os pais optarem pelo exercício
conjunto do poder paternal ou por decisões acordadas em determinados assuntos respeitantes aos menores surge apenas em
1995 mediante a lei nº84/95, que sustenta o princípio unilateral do exercício do poder paternal pelo progenitor a quem a
guarda foi atribuída, quando não há acordo em sentido contrário. Esta lei, resultante do entendimento da necessidade de
garantir o interesse da criança, quer pela manutenção de laços estreitos com ambos os pais (aspecto encarado como de suma
importância para o seu desenvolvimento), quer pela tendencial sobrecarga psicológica e financeira a que se viam votadas as
mães, quer ainda pelas reivindicações de pais no sentido da igualdade de direitos no que toca à educação, proximidade e
cuidado dos filhos, não levou, de qualquer forma, a resultados estatísticos espantosos. Donde, se infere que, não havendo
condições objectivas de vida e não se alterando os padrões sócio-culturais em torno da responsabilidade efectiva de ambos os
ex-cônjuges nos cuidados, deveres e tarefas para com os filhos, reproduz-se a lógica da divisão sexual do trabalho não só na
pendência do casamento como nos arranjos reais nas situações de ruptura conjugal e subsequente divórcio.
Por outro lado, ainda que a atribuição do poder paternal se configure claramente assimétrica, não se verificam
números particularmente elevados de recursos à mesma, como demonstra o quadro seguinte.

Gráfico 3.
Recursos ao exercício do poder paternal

350
300
250
200

150
100
50
0

Ano

Fonte: Ministério da Justiça, 1993-2005

O próprio crescimento do número de recursos, ao longo do período considerado, parece pois resultar mais do
aumento geral de processos de regulação do poder paternal que de uma qualquer mudança de comportamento face às
decisões judiciais. A título ilustrativo, é notório que o número de recursos ao exercício do poder paternal no ano de 2006 não
foi mais do que 1% do total de regulações nesse mesmo ano. Importa ainda realçar que estes recursos nem sempre se fazem
por parte do pai face à mãe (ou viceversa) e na sequência de processos de dissolução conjugal, podendo envolver terceiros.
Por outro lado, atendendo ao facto de que a grande parte dos divórcios em Portugal se faz através da modalidade do mútuo
consentimento, não parece haver um efectiva mobilização por parte dos homens na obtenção do poder paternal, e mesmo nos
casos em que tal acontece não se pode descartar a hipótese de que em alguns deles se trate de uma forma de fugir ao
pagamento de alimentos ou obter vantagens a nível económico. De qualquer forma, as rotinas instaladas da referida divisão
de trabalho em que o homem prefere comparticipar em numerário, a provada morosidade dos processos e mesmo uma certa
descrença face às decisões judiciais, bem como as dificuldades em expor publicamente aspectos do foro privado, para que
apontam alguns estudos, podem também contribuir para o número reduzido de recursos por parte dos pais homens.

207
No que toca às acções de alimentos entre adultos importa lembrar que em 82% dos casos elas são requeridas por
mulheres, verificando-se também no caso das acções relativas a menores grandes dificuldades no seu pagamento voluntário e
mesmo coercivo, dado o paradeiro incerto do progenitor, desemprego, trabalho clandestino e em algumas situações detenção.
A título de exemplo, é de notar que entre Janeiro de 1996 e Julho de 1997, se registaram 421 processos de incumprimento na
pensão de alimentos.
Atendendo aos dados estatísticos aqui apresentados importa questionarmo-nos em que medida a justiça reproduz ou
mesmo reforça os estereótipos binários sobre o feminino-masculino na condução destes processos. A análise de processos de
regulação do poder paternal dá algumas pistas a este respeito.
Foram analisados cinco processos em que, na sequência de divórcios iniciados em litígio, a guarda e poder paternal
foram pedidos pela mãe, outros cinco da autoria do Ministério Público e um a pedido do pai e desde logo se verificam alguns
aspectos interessantes, ainda que sujeitos a verificação mediante a análise de um maior número de processos. Em quatro dos
cinco casos em que a guarda e poder paternal foram requeridos pelas mães, os mesmos foram-lhe atribuídos, verificando-se
alegações um tanto homogéneas por parte das mesmas, tendo ficado provado em 3 casos a violência física, psicológica e
verbal por parte dos réus homens à cônjuge (e num também em relação aos filhos), associados em dois casos à
toxicodependência daqueles e num ao alcoolismo, não sendo, em nenhum dos casos, apresentada contestação por parte do
réu.
Nestes casos, trata-se essencialmente de alegações feitas pela negativa, assentando na incapacidade moral e
psicológica do cônjuge homem para cuidar e educar os menores, não fosse o seu comportamento violento e negligente no
seio da família, ficando inclusive em três casos também provada a ausência de contribuição por parte do pai para as despesas
correntes da família, encontrando-se apensados processos de incumprimento do pagamento das pensões de alimentos devidos
aos menores na sequência da dissolução conjugal. Embora num quarto processo tenha sido também alegada a violência
empreendida pelo réu homem, bem como a ausência de contribuições para as despesas familiares, este termina em mútuo
consentimento, não tendo sido feita investigação judicial para prova dos factos, mas tendo também processo apenso de
incumprimento no pagamento da pensão de alimentos.
Alegações pautadas pela valorização da conduta da mãe no seio da família e a sua participação privilegiada na
educação e cuidado dos menores surgem pois, nestes casos, apenas a título secundário.
O único caso em que o pedido de tutela por parte da mãe não culmina com o poder paternal exercido
exclusivamente pela mesma remete para uma situação em que não parece existir fundamentação efectiva para uma negação
desse poder ao pai. Apenas se alega que o menor em causa teria ficado na companhia da mãe, aquando a separação de facto, a
ausência de residência fixa por parte do pai e a idade do menor (11 anos) e, consequentemente, a maior “necessidade do
afecto imediato e directo da mãe e dos seus cuidados”. Também este caso termina no mútuo acordo por parte dos pais,
decretando-se o poder paternal partilhado e a guarda a ser exercida pela mãe.
Relativamente aos cinco casos em que a regulação do exercício do poder paternal é requerida pelo Ministério
Público, em três casos aquele é também atribuído à mãe. Em dois destes casos, em que não constam do processo quaisquer
alegações/ contestações por parte dos progenitores, é de realçar que a decisão é apenas fundamentada pelos cuidados
prestados em exclusividade pelas mães após a separação de facto. No outro processo, verifica-se que, embora nas alegações
do curador de menores, se aponte para a existência de condições para que o filho mais velho seja confiado ao pai e os mais
novos à mãe, a guarda e poder paternal acabam por ser atribuídos em exclusividade à mãe dos menores, não se verificando no
processo uma justificação efectiva para esse facto. Também neste processo, as alegações dos progenitores para obtenção do
poder paternal, se fazem mediante alegações marcadas pela negatividade – alegando a mãe o facto de o pai ter já constituído
nova família e a falta de condições habitacionais do mesmo e o pai argumentando a falta destas mesmas condições associadas
à grande debilidade económica da mãe. De qualquer modo, também aqui não foi apresentado qualquer recurso à decisão.
Nos outros dois processos em que a regulação do poder paternal foi solicitada pelo Ministério Público a decisão foi
a de partilha do poder paternal por ambos os progenitores com a guarda dos menores, dividida pelos mesmos, com regime
livre de visitas. Trata-se, porém, de dois casos um tanto diferentes, sendo que num fica expresso o pedido por parte de uma
menor para ficar a residir com o pai, com quem permaneceu após a separação, e no outro, pese embora as alegações da mãe,
nomeadamente a falta de assistência económica por parte do pai aos menores e a manutenção dos mesmos com aquela
durante os três anos de separação, decide-se pelo poder paternal partilhado e guarda segundo o critério do sexo da criança.
O único caso em que o poder paternal e guarda de menores são atribuídos ao pai e a pedido do mesmo remete para
uma situação um tanto particular, tendo ficado provado, para além da negligência quanto aos cuidados e educação dos
menores e alheamento ao quotidiano da família, as agressões verbais, psicológicas e físicas aos menores e ao cônjuge,
encontrando-se inclusive apenso ao processo uma pena de prisão suspensa (pela submissão a tratamento médico) por crime
de atentado à integridade física com consequências irreversíveis ao mesmo.

Conclusão
Estes dados, ainda que sem permitir uma generalização assente numa amostra mais ampla, sugerem que, para além
das particularidades de que se revestem os divórcios litigiosos, existem diferenças consideráveis consoante o autor seja o
homem ou a mulher. Os casos em que o pedido é efectuado pela mulher surgem, na maioria dos casos, como resultado de
situações-limite como sejam a da sujeição à violência continuada e a ausência de contributo efectivo do homem para o

208
sustento da família, o que, relativamente aos homens, ocorre de forma muito restrita e minoritária. No caso dos homens, os
pedidos aparentam o padrão corrente no sentido da regularização de situações de separação, não sendo de estranhar o facto de
estes casos de separação, na sua maioria, serem convertidos em divórcios por mútuo consentimento. Por outro lado, as
responsabilidades da mulher na família, no que concerne a execução das diversas tarefas domésticas são assumidas de modo
estereotipado pelos homens como exclusivas das mulheres. Quando estas tarefas são dadas como inconstantes ou não
cumpridas pela mulher, ainda que tal não seja consignado nem valorizado nas decisões escritas, tais factos são aduzidos pelos
homens nas suas alegações. Um próximo passo na pesquisa será confrontar estes dados com variáveis como a profissão e as
habilitações literárias, embora nem sempre os processos forneçam este tipo de informações. A aplicação de questionários e
entrevistas poderão dar a este respeito uma ajuda importante.
Ainda que aqui não seja analisado um número particularmente elevado de processos, pode constatar-se que no caso
das tutelas atribuídas à mãe, situações um tanto diversas parecem tender para decisões semelhantes, ainda que alguma
subjectividade não declarada pareça permear a acção judicial nestes casos, revelando-se mais exigentes os critérios para
atribuição das mesmas aos homens, naquilo a que poderíamos denominar situações de excepção. De qualquer forma, se é
certo que as decisões judiciais a este nível têm de alguma forma seguido em favor das mulheres, nem sempre ficando claros
os critérios para não atribuição do poder paternal e guarda aos pais homens, por outro lado, a mobilização das mulheres neste
contexto surge de forma claramente mais efectiva, nomeadamente pelos pedidos expressos pelas mesmas, verificando-se no
caso dos homens, para além de baixos índices de contestação às alegações ou decisões, valores elevados no que toca ao
incumprimento no pagamento das pensões de alimentos. Tal não deixa de sugerir a permanência de certos padrões patriarcais
ao nível da família e da sociedade em geral, com as mulheres a manterem um vínculo privilegiado à educação e cuidado dos
filhos, senão mesmo das tarefas domésticas. Se situações de “favorecimento” legal daqui podem advir, tal não deixa de ser
penalizador em termos da obtenção de uma igualdade de género, sendo que o papel estereotipado da mulher e o seu vínculo à
ideia de maternidade, parecem continuar a significar diferentes condições perante o trabalho e a sociedade em geral, ainda
que a sua presença nas diferentes esferas sociais seja hoje um dado incontornável.

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Os jovens, os ventos secularizantes e o espírito do tempo1.


Regina Novaes2
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)
[email protected]

Resumo: Resultados de pesquisas quantitativas e qualitativas motivam novas reflexões sobre a religiosidade dos jovens brasileiros. Há
evidências que apontam para a diminuição da transmissão geracional do catolismo e para as conversões de jovens às denominações
evangélicas pentecostais. Por outro lado, crescem os jovens que se definem como "sem religião", mas que não se confundem com os que se
definem como ateus ou agnósticos. "Sem religião", no contexto desta geração, não significa necessariamente ser atingido por processos ou
ventos secularizantes. Isto é, não significa necessariamente negar a existência de Deus ou simplesmente se abster nesta matéria. Pode
significar apenas negar a existência vínculos institucionais. Um jovem pode dizer, "sou religioso, mas não tenho religião"; "tenho fé, mas não
tenho Igreja"; "sou espiritualizado à minha maneira". Neste cenário, há espaço para para sincretimos, bricolages, sínteses pessoais. Ou seja,
para o "espirito do tempo", bastante afeito aos hidridismos culturais. A globalização e as novas tecnologias de informação também incidem
sobre o campo religioso fazendo mais ampla e variada oferta de bens e símbolos religiosos. Por outro outro lado, quando os jovens de hoje
ampliam seu campo de escolha religiosa, eles também experimentam novos pertencimentos institucionais e fazem aumentar o número das
famílias pluri-religiosas. Novas convivências religiosas na vida privada e no espaço público estão a exigir novas abordagens que dêem conta
das relações entre as religiões e as sociedades de hoje. De certa forma, para comprender a experiência religiosa desta geração é preciso
revisitar conceitos e relativizar pares de oposição consagrados na sociologia da religião.

Em tempos de globalização, a religião - como fonte distribuidora de imagens do mundo - está em crise. É o que
afirma o sociólogo italiano Enzo Pace (1997). Segundo o autor, foi-se o tempo em que as religiões eram as principais fontes
distribuidoras de sentido e de imagens estáveis entregues, de geração a geração, pelas autoridades religiosas reconhecidas
como tal. Isoladamente, esta constatação poderia ser compreendida como falência de mecanismos de reprodução simbólica e,
por consequência, como um anúncio do fim da religião.
Entretanto, na realidade atual, o noticiário e as pesquisas acadêmicas constatam que a religião está muito presente
tanto na esfera pública quanto na biografia concreta de milhões de pessoas que buscam de um sentido religioso fora, à
margem ou dentro de sua religião de origem.
Aparentemente contraditórias, as duas idéias - “crise da religião como fonte distribuidora de imagens estáveis do
mundo” e “presença das religiões no espaço público e nas biografias” - convivem na experiência dos jovens de hoje. De fato,
por um lado, os jovens estão menos submetidos a tradicionais autoridades religiosas, vivem um momento de desaparecimento
de fronteiras simbólicas rígidas entre cosmologias religiosas, entre campo religioso e campo mágico esotérico, entre religião
e novas crenças seculares e para religiosas. E, por outro, convivem com uma nova e acentuada tendência: tanto as grandes
religiões mundiais históricas quanto as novas religiões se apresentam ao mundo em com mensagens que podem ser
traduzidas em termos éticos (a paz no mundo, os direitos humanos, a defesa do eco-sistema, etc...).
Nas palavras de Enzo Pace, a forma atual das religiões apresentarem suas mensagens ao mundo evidencia um
processo de “secularização interna” no qual prevalece um “espírito mundial, certamente não santo, que obriga as grandes
religiões a fazerem pactos com o mundo”. Ou seja, entre as crises e as novas sociabilidades do século XXI, as religiões
adotam expedientes que respondem e correspondem aos “sinais dos tempos”. Que sinais seriam estes? Em que contexto
social os jovens de hoje vivem sua juventude?
Nos anos de 1980, o fim da guerra fria e a descrença na possibilidade de mudanças radicais, produziram mudanças
de formas e de conteúdo das utopias. Os anos 1990 evidenciaram crises de paradigmas que atingiram tanto as instituições
políticas quanto as religiosas. No campo político,reinventam-se temas, espaços e formas de fazer política, motivações
subjetivas e questões da vida privada são trazidos ao espaço público através de redes, fóruns, manifestações3. No campo
religioso, convivem velhos e novos fundamentalismos e ampliam-se os espaços para assumidos sincretismos. Ofertas de
"orientalização" das crenças ocidentais convivem com uma difusa negação do dualismo cristão. Em outras palavras, na
emergência de um mundo religioso plural, cresce a presença de grupos e indivíduos cuja adesão religiosa resulta tanto na
reinvenção das tradições (em uma perspectiva identitária exclusivista, própria aos fundamentalismos) quanto re-arranjos
provisórios entre crenças e ritos com ou sem fidelidades institucionais.

1
Uma primeira versão deste texto – com o título Os jovens “sem religião”: ventos secularizantes, espírito de época e novos sincretismos. Notas preliminares - foi
publicada na Revista Estudos Avançados 18 (52), 2004. Agradeço à Marilena Cunha e a Solange Rodrigues as críticas e sugestões a este trabalho.
2
Antropóloga.
3
O Forum Social Mundial é um bom exemplo. Segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2005), o FSM é, inquestionavelmente, o primeiro
grande movimento progressista internacional após a reação neoliberal no início dos anos 80 do século XX. Com cinco edições já realizadas, quatro no Brasil e
uma na Índia, o Fórum Social Mundial se apresenta para os jovens como uma possibilidade de combinar desejos e preocupações planetárias, uma vocação
internacionalista e a valorização de pequenos espaços da vida cotidiana como trincheiras a impulsionar a transformação global.

210
É claro que estas possibilidades não estão restritas aos jovens. Todas as faixas etárias estão expostas a ofertas de
símbolos religiosos através do rádio, da televisão, da Internet, nas lojas de produtos esotéricos, nas feiras especializadas,
etc...De fato, no mundo mais globalizado as crenças religiosas circulam mais amplamente, são apropriadas e reapropriadas de
diferentes maneiras e no ritmo condizente com os (desiguais) acessos às velhas e novas tecnologias de informação.
Mas, certamente, vivenciá-las como crianças, jovens ou adultos faz diferença. Para além das desigualdades sociais e
diferenças culturais, são os jovens que tem maiores chances de atualizar os novos sentidos e funções da religião na sociedade.
A condição juvenil – socialmente compreendida enquanto momento do ciclo de vida de transferência para a fase adulta -
favorece a experimentação dos novos sentidos da religião como fonte de imaginação simbólica. Desta forma, a juventude,
vista como espelho retrovisor da sociedade atual, explora as várias possibilidades, faz novos arranjos e dá nova visibilidade à
religião, ressemantizando-a “sem pudores e ocultações”, para usar uma feliz expressão de Pace (1997). Para isto contribui
todo o contexto societário.
O desenraizamento cultural/religioso, que caracteriza o processo de globalização, produziu um peculiar efeito para
aqueles que nasceram nos anos 70, são eles que estão mais predispostos a: libertar-se das religiões de origem; vivenciar novas
escolhas religiosas que não faziam parte da experiência de gerações anteriores; fazer sínteses pessoais sem vínculos
institucionais, isto é “ser religioso sem religião”. Se é verdade que, estatisticamente falando, a maioria deles reproduz
tradições familiares, não há como negar que para os jovens desta geração, no que diz respeito à dimensão religiosa,
ampliaram-se as possibilidades de liberação do controle institucional e gestão da livre iniciativa individual.
Contudo, há muito a ser feito ainda para poderemos compreender como se combinam os “ventos secularizantes” e o
“espírito de época” nas trajetórias e biografias dos diferentes segmentos juvenis em um tempo que conjuga crise de
instituições religiosas e presença das religiões nas biografias individuais e espaço público. Tanto a comparação entre passado
e presente, quanto a vivência atual das religiões pelos jovens estão a exigir inovações teóricas e muita pesquisa de campo.
Mesmo assim, por ora, vale refletir a partir das informações e dados disponíveis. O objetivo deste artigo é explorar algumas
fontes de informação sobre as religiões dos jovens brasileiros e, particularmente, buscar compreender alguns dos significados
das respostas daqueles que se declararam “sem religião”.

1 – Por onde sopram os ventos secularizantes?


São três as principais mudanças que caracterizam o campo religioso brasileiro hoje, a saber: diminuição percentual
de católicos (de 83,76% em 1991 para 73,77% em 2000), crescimento dos evangélicos (de 9,05% em 1991 para 15, 45% em
2000) e aumento dos “sem religião” (de 4,8% em 1991 para 7,4 % em 2000). Sobre os dois primeiros aspectos muito se tem
escrito, sobre o terceiro bem menos.
Como se sabe, os "sem religião" eram 0,2% no Censo de 1940. Em cinquenta anos houve o crescimento na ordem
de 52%. Como compreender este aumento? Que mudanças de significados estariam presentes na resposta “sem religião”
nestas décadas?
A rigor, ainda pouco se sabe sobre quem são os brasileiros “sem religião” que adentram o século XXI. Porém,
algumas informações disponíveis permitem começar uma reflexão sobre o assunto. Este é o objetivo das presentes notas, nas
quais focalizaremos, particularmente, os jovens brasileiros de 15 a 24 anos.
Relacionando religião e transferência intergeracional no Rio de Janeiro, o demógrafo René Decol (2001) afirmou
que o fluxo atitudinal de católicos para outros grupos ganhou proporções de "mudança social" na medida em que está
alterando significativamente e de forma definitiva o perfil religioso da população. Segundo o mesmo autor, o processo tem
um componente demográfico: à medida que os grupos populacionais (coortes) se sucedem no tempo, menos adultos em idade
de reprodução se declaram católicos, resultando em número cada vez menor de crianças recebendo influência desta natureza.
A tendência é, portanto, um menor número de católicos no interior de cada coorte, fazendo com que a percentagem de
católicos no conjunto da população decline de forma cada vez mais acentuada. Segundo o demógrafo, a estrutura social
tradicional, onde valores e normas são transmitidos verticalmente, de geração em geração, passa a ser afetada cada vez mais
por processos culturais, que atuam em planos horizontais, agindo sobre os coortes de forma diferenciada. Em sua
interpretação Decol (2001) destaca a influência dos “ventos secularizantes” que têm soprado pela sociedade e, no mesmo
sentido, sobretudo entre os jovens.
De certa forma, o último Censo do IBGE confirmou tais observações. Vejamos alguns de seus resultados. A
tendência de diminuição dos que se declaram católicos se confirma entre os jovens, de 15 a 24 anos (que somam 73,6%). O
crescimento evangélico é um pouco menos acelerado entre os jovens (os jovens evangélicos somam 14,2%, sendo 3,9% de
denominações tradicionais e 10,2% de denominações pentecostais) em relação a outras faixas etárias. E, finalmente, é entre
os que se declaram “sem religião” que os jovens (9,3%) se destacam em relação ao conjunto da população (7,4%).
É bom lembrar ainda que no Censo de 2000, para uma pergunta única e aberta - "qual é sua religião?" - , o IBGE
recebeu 35 mil respostas diferentes, o que dá uma idéia da variedade com que o brasileiro define sua fé. Diferenciando-se do
Censo, algumas pesquisas não utilizam a questão aberta sobre religião, mas oferecem alternativas que enumeram as
principais religiões; que abrem espaço para “outras” e, ainda, oferecem opções para "agnósticos", "ateus" e para quem
"acredita em Deus, mas não tem religião".

211
No que diz respeito aos jovens, três anos depois do Censo, os resultados de uma pesquisa nacional realizada pelo
Projeto Juventude/Instituto Cidadania4, abordando a questão religiosa através de uma pergunta com as alternativas indicadas
acima, confirmaram as mesmas tendências. Enquanto 65% dos jovens entrevistados nesta pesquisa em todo o país se
declaram católicos, 20% se declaram evangélicos (sendo 15% pentecostais e 5% não pentecostais)5. E foram 10% os jovens
que declararam “acreditar em Deus, mas não ter religião” e mais 1% identificaram-se como ateus e agnósticos.
Em uma amostra de 3500 entrevistados, a partir destes resultados é possível saber quem são estes 10% de jovens
que tem fé sem vínculos religiosos institucionais e destes 1% dos agnósticos e ateus? Certamente em termos estatísticos
podemos questionar a validade de um esforço de caracterização com percentuais pouco representativos em relação ao
universo real dos jovens brasileiros. Contudo, como já lembrava Bourdieu (1963:10), a estatística é uma das formas de
representar a vida social, suas evidências não substituem o desafio da interpretação sociológica que deve funcionar com
“costura” produtora de inteligibilidade. Nesta perspectiva, este reduzido número de casos revelados pela pesquisa do Projeto
Juventude, mesmo sem a força da “evidência” dos grandes percentagens, podem ser “bons para pensar”, para levantar
hipóteses, para aumentar a compreensão sobre processos sociais em curso. Sempre com caráter hipotético, no mínimo, as
informações disponíveis podem permitir que formulemos novas perguntas e parâmetros de comparação. Neste sentido, é
importante explorar alguns os resultados da pesquisa Perfil da Juventude Brasileira.

Regiões, aglomerados urbanos e religiões: correlações possíveis?


Vejamos onde moram os jovens que participaram da pesquisa. Nas regiões Nordeste e Sul predominam os jovens
católicos, já os evangélicos estão mais presentes no Norte/Centro-Oeste e no Sudeste. No Sudeste também estão a maioria
dos jovens espíritas Kardecistas e os jovens adeptos das religiões afro-brasileiras que responderam o questionário da
pesquisa. Por fim:
os ateus, agnósticos e aqueles que “acreditam em Deus, mas não têm
religião”, mesmo aparecendo com algum destaque para a região Sudeste,
se distribuem por todas as regiões do país.
Por outro lado, a mesma pesquisa acima citada identificou mais agnósticos
e ateus em cidades do interior do que nas capitais.

Esta distribuição espacial pode apontar para duas virtualidades: seja como interregno em um processo de
experimentação, seja como ponto de chegada os jovens de hoje incluem entre suas alternativas a possibilidade de se definir
como ateu- atéia e/ou agnóstico (a) e, principalmente, ser “religioso sem religião”. Morar (ou não) nas grandes cidades pode
interferir (ou não) nestas definições? Não temos elementos para responder com profundidade tal indagação.
Contudo, considerando as mudanças no mundo atual, talvez seja a hora qualificar melhor a equação secularização e
urbanização. Em outras palavras, as ciências sociais estão sendo desafiadas a formular questões e buscar respostas que
exigem algum distanciamento de certos pares de oposição e equações consagradas.

O que quer dizer hoje ser ateu ou agnóstico, sobretudo, entre 18 e 20 anos?
Os ateus e agnósticos somam 1%,
entre os quais 69% são homens e 31% são mulheres,
e a faixa etária 18 a 20 anos (50% dos entrevistados) é predominante.
Já os que se declaram "acreditar em Deus, mas não ter religião" somam 10% dos entrevistados,
entre os quais 64% de homens e 36% de mulheres,
distribuindo-se por todos os grupos de idade e um pouco mais entre os jovens mais velhos (21 a 24 anos).

No que diz respeito às relações de gênero, entre agnósticos, ateus e aqueles que “acreditam em Deus, mas não têm
religião” predominam jovens homens. O que não é novidade: como na população em geral, são as jovens mulheres que se
declaram mais vinculadas às instituições religiosas.
Já no que diz respeito às idades, diferenciam ateus ou agnósticos e aqueles que declaram “acreditar em Deus, mas
não ter religião”. Chama a atenção o fato não serem os mais jovens (14 a 17 anos), nem os jovens mais velhos (21 a 24 anos)
aqueles se declararam “ateus” ou “agnósticos”. Os que se declaram “ateus” e “agnósticos” são, predominantemente, jovens
de 18 a 20 anos. No interior da faixa etária considerada como juvenil, é justamente este momento mais desafiante para a
afirmação de identidade e construção de vínculos extra- familiares. Fazer “dezoito anos” tem consequências jurídicas,
culturais, emocionais. A busca de emancipação atinge hoje também os vínculos religiosos e crenças familiares. Assim sendo,
levantamos a hipótese de que o sub-grupo etário de 18 aos 20 anos – momento crucial da construção de identidade em nossa
sociedade - teria maior predisposição para se auto-definir como ateu ou agnóstico.

4
A metodologia, os critérios da amostra e os principais resultados desta pesquisa podem ser encontrados em www.projetojuventude.org.br
5
Na mesma pesquisa - Perfil da Juventude Brasileira - outros 1% dos jovens entrevistados indicaram igrejas classificadas como neo-cristãs, tais como
Testemunhas de Jeová, Mórmons, Legião da Boa Vontade. Os espíritas e os jovens que se declaram adeptos das religiões afro-brasileiras somaram 3%. Somam
1% os jovens que fizeram referência a outras minorias religiosas como judeus, islâmicos, budistas, etc....

212
Minoritários segmentos juvenis de gerações passadas mudaram de religião nesta fase da vida ou, mais
frequentemente, aderiram a filosofias ou ideologias políticas que valorizavam o ateísmo. O que haveria de novo para esta
geração? Primeiramente, a ampliação quantitativa do fenômeno é congruente com a tendência de diminuição da transferência
religiosa intergeracional apontada por Decol (2001). Em segundo lugar, com a ampliação das alternativas religiosas
(institucionais ou não), definir-se como ateu (atéia)/agnóstico (a) passa a ser uma possibilidade nesta fase da vida (sobretudo
entre os 18 e 20 anos) que precede escolhas posteriores.

O que quer dizer hoje “acreditar em Deus, mas não ter religião”, sobretudo, entre os 21 e 24 anos?
Nos resultados da pesquisa Perfil da Juventude Brasileira os jovens que “acreditam em Deus, mas não tem religião”
distribuem-se por todos os grupos de idade e estão um pouco mais entre os jovens mais velhos (21 a 24 anos) inscrevendo-se,
assim, no campo de possibilidades religiosas desta geração com virtualidades distintas.
Na primeira virtualidade, tal como “ser ateu” ou “ser agnóstico”, “acreditar em Deus, mas não ter religião” hoje
pode representar um momento específico na trajetória religiosa de um jovem brasileiro. Neste sentido, também seria a
tradução de um “estado provisório” frente às suas possibilidades de escolha. Tal formulação indicaria um estado de busca
pessoal, interregno entre pertencimentos religiosos.
Na segunda virtualidade pode se revelar “um estado permanente”, isto é para esta geração está socialmente
legitimada a possibilidade de ser “religioso sem religião”, neste contexto, para traduzir sínteses pessoais, arranjos e
combinações entre cosmologias e práticas religiosas, surgem novas palavras tais como “espiritualista”, “buscador”, esotérico.
Mas há ainda uma terceira virtualidade a ser considerada. No Brasil, no momento atual, jovens nas pesquisas
respondem “acreditar em Deus, mas não ter religião” poderiam ser encontrados também nos terreiros de umbanda, do
candomblé ou nos centros espíritas.
Em nosso país, sempre foi comum dizer sem constrangimento: “sou católica e da umbanda” ou “sou católica e do
santo”. O que pode ser explicado tanto como estratégia de apresentação social frente aos preconceitos e perseguições sofridas
pelos adeptos das religiões afro-brasileiras ao longo da história, como também pela vivência do “duplo pertencimento”
religioso.
Haveria algo novo acontecendo entre os jovens? Os números continuam restritos. Apenas 1,4% de espíritas
Kardecistas e 0,3% de umbandistas e candomblecistas aparecem no Censo de 2000. Na pesquisa Perfil da Juventude
Brasileira os números foram um pouco maiores (2% e 1% respectivamente). O que pode ser, por um lado, indicar que jovens
entrevistados – como em gerações anteriores - continuam se definindo como católicos, sem deixar de ir a centros espíritas e a
terreiros.
Porém, hoje parece haver outras combinações possíveis. Algumas pesquisas registram novas combinações entre o
chamado universo “nova era” e crenças e práticas mediúnicas, o que pode ser observado em lojas esotéricas que vendem
produtos afro-brasileiros, e vice e versa. Cada vez mais podemos observar jovens que exibem em seus corpos e no vestuário
certos símbolos da cosmologia esotérica e afro brasileira e, também, há sondagens atestam um consumo crescente de
literatura Kardecista entre jovens.
Assim, podemos levantar a hipótese de que esta geração vivendo em um tempo em que tanto a obrigação social
quanto partilha dos sentimentos de pertencimento católico se enfraqueceram, podem estar engrossando as fileiras dos “sem
religião” sem deixar de frequentar dos centros espíritas, da umbanda e do candomblé. Para tanto, no que diz respeito às
religiões afro-brasileiras, contribui a não exigência de vínculos institucionais para todos os frequentadores de terreiros e
centros. E, no que diz respeito aos espíritas Kardecistas, para a auto-definição como “sem religião”, contribui valorização do
“caráter científico” da doutrina de Alan Kardec em seu parentesco com o racionalismo francês. Ou seja, em um contexto de
enfraquecimento na equação brasileiro=católico e de ampliação do chamado universo nova era, ao falar sobre o futuro incerto
das tradições afro-brasileiras não basta apontar para a evidente escalada pentecostal, é preciso também considerar as suas
novas possibilidades de combinação.
Enfim, se é verdade que hoje e ontem há jovens de diferentes religiões, há jovens que se definem como "ateus" e
"agnósticos", certamente em nenhuma outra época houve tantos jovens que se identificassem com a alternativa “acreditar em
Deus, mas não ter religião”. Não por acaso, atualmente, esta última alternativa se tornou obrigatória nas pesquisas sobre
religião.
Em outras palavras, ao buscar compreender o que significa hoje um jovem se definir como “sem religião”,
podemos nos deparar com uma boa oportunidade para relativizar o pressuposto dos “ventos secularizantes”, identificando o
que há de novo no ar: o chamado “espírito do tempo”.

2- E quanto pesa o espírito do tempo?


Os efeitos e repercussões das definições religiosas em termos de valores e vínculos sociais é um tema clássico das
ciências sociais das religiões. Voltando à mesma pesquisa, vejamos as respostas dos jovens sobre os valores que seriam mais
importantes em uma sociedade ideal.

213
A maioria (56%) dos jovens que declararam “acreditar em Deus, mas não ter religião” se dispersou entre vários valores
propostos destacando “igualdade de oportunidades” (17%). O “temor a Deus” (13%) e a “religiosidade” (4%) também
foram incluídos em suas respostas.
Os ateus e agnósticos concentraram-se, sobretudo, no “respeito ao meio
ambiente” (48%). Porém, 14% elegeram “temor a Deus”, outros 14%
deles escolheram "religiosidade".

Comparando estas respostas com a dos ateus e agnósticos acima transcritas vemos que os jovens que “acreditam em
Deus, mas não têm religião” valorizaram mais a “igualdade de oportunidades” do que os ateus dos quais sempre se espera
“crítica social”. O que não deixa de ser um convite para desnaturalizar o pressuposto do antagonismo entre religião e
participação social, tão presente no imaginário da chamada geração de 68.
Por outro lado, é preciso analisar os diversos significados da expressão “respeito ao meio ambiente”6 entre os
jovens de hoje, entre os ateus e/ou agnósticos. Como sabemos, os jovens de hoje fazem parte de uma geração que já recebeu
como legado o vocabulário da ecologia com suas consignas e seu sistema classificatório (que hoje frequenta currículos
escolares e meios de comunicação.) Neste sentido, “respeito ao meio ambiente” pode se apresentar parte do vocabulário
secular.
No entanto, no mundo atual, a consigna “respeito ao meio ambiente” pode evocar espiritualidade. Neste contexto, a
ênfase ao “respeito à natureza” pode remeter à chamada "espiritualidade ecológica" e com as novas possibilidades de (com)
sagração da natureza. Por exemplo, em entrevistas que realizei entre alunos do Curso de Ciências Sociais encontrei jovens
que, ao evocar “respeito ao meio ambiente”, faziam uma criativa conexão entre práticas da ecologia e do candomblé. Enfim,
no espírito do tempo, os vocábulos (ateu e agnóstico) combinados com “respeito ao meio ambiente” podem apontar para
outros pares de oposições e outro repertório de crenças e valores.
Outros exemplos poderiam ser dados. Mas o que é fundamental aqui é atentar para os possíveis novos sentidos das
palavras “ateu” ou “agnóstico” que, como já foi dito, para gerações passadas elas, via de regra, remetiam ao existencialismo
filosófico ou ao materialismo histórico. Na realidade, apreender estes sentidos é difícil porque as pesquisas oferecem apenas
fotografias instantâneas da experiência dos jovens entrevistados que só permitem apreender percursos e momento específicos
de suas trajetórias, sobretudo quando se faz apenas uma pergunta sobre o tema religião.
Tanto no Censo Demográfico quanto na pesquisa Perfil da Juventude Brasileira só havia uma pergunta sobre
religião. Em outra pesquisa desenvolvida pelo ISER no Rio de Janeiro, em 2001, intitulada Jovens do Rio (Novaes e Mello,
2002), fizemos outras perguntas sobre religião, tais como religião dos pais, influências de pessoas e instituições na escolha da
religião, crenças que não obedecem fronteiras doutrinárias.
Vamos explorar aqui alguns destes aspectos. A amostra considerava as diferentes regiões administrativas da cidade
com suas características sócio-econômicas. De maneira geral, os resultados da pesquisa Jovens do Rio não se afastam do
Censo de 2000 e da Pesquisa Perfil da Juventude Brasileira (Instituto Cidadania). Isto é, evidenciaram que o menor índice de
transferência da religião dos pais para os filhos não resultam em negação da religião. Segundo a pesquisa, na cidade do Rio
de Janeiro, parte significativa dos jovens que não seguem as religiões de seus pais católicos buscam outras religiões: não
apenas os índices crescentes de evangélicos corroboram esta afirmação, como também a dispersão do item “outras religiões”
indicam na mesma direção.
Mas isto não é tudo. Na pesquisa Jovens do Rio, 50% dos entrevistados que declararam ter pais ateus ou agnósticos
declararam ter eles próprios uma religião. Se é verdade diminuição da transferência intergeracional da religião atinge o
histórico catolicismo brasileiro, também não há garantia de “transferência intergeracional” do ateísmo ou do agnosticismo.
De fato, frente à diminuição da influência da família na escolha religião, a mesma pesquisa revelou outras
influências nesta área: para os entrevistados na pesquisa Jovens do Rio, a influência da família na escolha da religião pesou
apenas para cerca de 50% dos entrevistados, para o restante a escolha da religião passava por outras justificativas, tais como,
“motivos pessoais”, “influência de amigos” e “influência de agentes religiosos”.
Estas múltiplas influências tornam cada vez mais precoces as experiências de trânsito religioso entre os jovens. É
como se – independente das desigualdades e diferenças sociais que caracterizam a juventude – houvesse uma marca
geracional que favorecesse a experimentação religiosa. E, é preciso salientar, estas buscas se restringem a apenas aqueles
jovens que têm acesso aos bens educacionais e culturais.
Neste aspecto, vale a pena trazer mais um dos resultados da pesquisa Jovens do Rio: mais da metade dos
entrevistados - caracterizados como classe C - declarou já ter mudado de religião. No que diz respeito às opções de mudança,
focalizando o extrato ainda mais pobre, ali caracterizado como classe D, dois fenômenos se destacaram simultaneamente:
neste segmento mais jovens se declararam evangélicos pentecostais do que católicos praticantes e quase 1/3 deles se
declararam “sem religião”.
Por outro lado, para além do trânsito entre pertencimentos, há crenças que perpassam fronteiras doutrinárias. Na
mesma pesquisa, buscou-se apreender quais eram as crenças dos entrevistados, para além de suas auto-definições religiosas.
Os resultados apontaram para pouca ortodoxia. Por exemplo, entre os jovens se fizeram presentes entrevistados afro-
brasileiros que crêem tanto em Orixás como no Espírito Santo, assim como se apresentaram jovens evangélicos pentecostais

6
"Respeito ao meio ambiente" teve destaque também entre evangélicos históricos não pentecostais e adeptos da umbanda e candomblé (35%), e jovens de outras
religiões (21%).

214
que afirmam acreditar em Orixás. Foram entrevistados católicos que afirmaram acreditar na reencarnação, mas também
católicos e espíritas afirmaram suas crenças em orixás e energias esotéricas. E, finalmente o que mais interessa neste artigo,
os jovens que se auto -classificaram como "sem religião" afirmaram acreditar praticamente em todos os itens do elenco
oferecido: “energia”, astrologia, orixás, duendes e gnomos...
Em resumo, mesmo considerando as diferenças e as desigualdades sociais entre os jovens, a partir das pesquisas
disponíveis7, podemos identificar o entrelaçamento de três tendências que se fazem presentes na experiência desta geração, a
saber: a- forte disposição para o trânsito religioso e para novas combinações sincréticas; b- diminuição da transferência
religiosa inter-geracional e ênfase na escolha individual (seja para declara-se ateu ou agnóstico; seja para mudar de religião e
seja, até, para permanecer na religião dos pais); c- ampliação das possibilidades para o desenvolvimento de religiosidade sem
vínculos institucionais (como interregno entre pertencimentos religiosos ou como ponto de chegada).

3- Meu nome é Thogun


O Censo de 2000 revelou que no Brasil que os seguidores da doutrina do profeta Maomé (Islamismo)
correspondem a 18,5 mil brasileiros. O Censo detalha também grupos que não apareciam nas estatísticas, como os praticantes
de religiões esotéricas (69,2 mil) e de tradições indígenas (10,7 mil). Nas informações do Censo, chama a atenção o número
de praticantes de religiões orientais. Temos hoje mais budistas (245 mil) do que adeptos da religião judaica (101 mil).
Os jovens budistas hoje de não se tem se circunscrevem a um grupo seleto de jovens tal como aconteceu nos anos
60 e até 70. Naqueles anos, os jovens budistas faziam parte de um mesmo segmento que tinha acesso ao ideário do
movimento hippie, às lojas de consumo alternativo, aos livros de comida “macrobiótica” e ás viagens internacionais. Nos dias
de hoje, o budismo - e outras forças do oriente - chega nos subúrbios e nas chamadas periferias brasileiras.
Vamos a um exemplo. Sérgio André Teixeira é carioca de Cavalcante, tem hoje 32 anos, há 15 anos milita no rap,
meio em que é conhecido como Thogun. A origem de seu nome artístico vem do candomblé. Segundo ele próprio revela em
entrevistas, o nome Togun (ainda sem agá) lhe foi dado por uma velha mãe de santo durante um almoço. Ela, que sempre ria
ao vê-lo, explicou que este era um escravo que traíra Xangô e roubara-lhe o reino. Ao recuperar o que era seu, Xangô foi
benevolente e não cortou a cabeça de Togun.
Depois de conhecer o movimento hip –hop paulista, tornou-se Thogun e participou da formação da primeira
associação de hip hop do país, a Aticon (Associação Atitude Consciente). É conhecido como um rapper crítico e com
compromisso social. Nos últimos dois anos, Thogun tem sido convidado para algumas palestras pelo Brasil afora: ganhou
uma certa notoriedade, pois teve sua trajetória retratada no documentário “Fala tu”, de Guilherme Coelho e Nathaniel
Leclery. O filme relata a luta de Thogun para “se fortalecer”, o ingresso na Faculdade de Comunicação, atualmente com
matrícula trancada, e a venda de produtos esotéricos para sobreviver. O filme nos leva também até a casa de Thogun no
subúrbio carioca. Lá o que mais chama a atenção é um caprichado altar budista. Tendo um mantra como música de fundo, no
filme o personagem explica:
“ Esta filosofia budista é baseada na linha de causa e efeito. Tudo que você
faz de bom, você recebe de bom. Tudo que você faz de ruim, você recebe
de ruim. E em vida. Então você tem sua vida para mudar seu meio.”

Em matéria publicada pela imprensa, o jornalista Alfredo Boneff que relata como Thogun, aos 24 anos, se tornou
budista:
“Thogun já foi adepto do candomblé, mas converteu-se ao budismo há oito
anos. A conversão veio por intermédio de um episódio marcante. Ele tinha
uma entrevista de emprego marcada em uma grande empresa. Quando
encaminhava-se para lá, percebeu um corpo na linha de trem, em
Cavalcante. Ajudou a retirar o cadáver, crivado de balas, para que não fosse
esfacelado. Depois, foi à casa da mãe do rapaz baleado, a quem já conhecia,
e encontrou as pessoas recitando um mantra. “Tomei aquela massa de
energia pelo meio da cara e decidi: quero isso aí também”, lembra. Perdeu a
entrevista, mas ganhou um novo sentido de vida e mesmo uma influência
para suas composições”.

De fato, nos últimos anos, seja expressando vínculos velhos e novos institucionais ou apenas crenças mais difusas,
a linguagem religiosa também se faz presente na área de arte e cultura. O Prêmio Hutus, hoje considerado o mais importante
na área de Hip Hop da América Latina, é um bom exemplo. Além de instituir uma categoria específica, o Hip Hop Gospel,
recebe uma anualmente músicas concorrentes cujas letras falam de Cristo, de Oxalá e citam salmos bíblicos.
Já a Banda Afro Reggae traz para este cenário outro personagem divino: Shiva, da tradição hindu, o deus da
transformação, da reconstrução. Um filme recente – Favela Rising, dirigido por Jeff Zimbalist e Matt Mochary, – retrata a
realidade das favelas do Rio de Janeiro e destaca a trajetória de Anderson, um dos integrantes da banda AfroReggae. O
documentário mostra como a morte rondou de perto a vida de Anderson. E mostra também como diferentes crenças e rituais

7
Para uma visão do “estado da arte” do debate sobre juventude e religião, ver a importante contribuição de Tavares e Camurça (2004).

215
se combinam em busca de esperança e reconstrução. Nesta luta pela vida, “sem pudores ou ocultações”, tornam-se aliados os
santos católicos, mães de santo com suas oferendas e Shiva, que se tornou uma espécie de símbolo da banda.

4- Famílias plurireligiosas: as várias escolhas dos netos de Dona Iracy


Os exemplos acima apontam para um maior pluralismo religioso na sociedade, para novos encontros e apropriações
culturais. Como estas possibilidades se apresentam no interior das famílias brasileiras?
Em 2002 tive a oportunidade de orientar a dissertação de Mestrado de Elen Barbosa dos Santos intitulada Religiões
em família: continuidades e mudanças em tempos de “nova era” (IFCS- UFRJ). O trabalho de Elen, como ela mesma
resumiu, “abordou a diversidade de crenças religiosas no seio de uma mesma família de classe média baixa dó Rio de Janeiro
ao longo de quatro gerações”. Partindo das décadas de 50 e 60 - quando não havia dúvidas sobre a hegemonia do catolicismo
no campo religioso brasileiro -, o estudo enfoca suas transformações nas décadas seguintes até os dias atuais, através das
trajetórias religiosas dos membros da segunda e da terceira geração da família de D. Iracy, uma brasileira católica praticante.
Um de seus filhos, Manoel, que não nega que também vai ao terreiro de umbanda, recorda sua socialização
católica:
Da minha infância eu lembro que nós éramos muito católicos. Naquela época, na época da quaresma a gente nem
escutava rádio. A (...) minha avó, mãe do meu pai, ela não deixava a gente escutar rádio. Cobria os santos com um
pano roxo. Na semana santa mesmo, não podia nem varrer casa, não comia carne de jeito nenhum (...) A gente comia
era ovo, sardinha, feijão mulatinho (...) Mulher nem penteava o cabelo.

Outros filhos, quando convocados por Elen Barbosa dos Santos (2002) a falar de seu passado, lembram da missa
obrigatória no domingo. A missa é lembrada também como lugar que exigia “que a gente se arrumasse para encontrar
pessoas”, como diz tia Adelaide; pra arrumar namorado, para paquerar, na missa das seis que era a missa dos jovens,
completa tia Marilda. As aulas catecismo eram obrigatórias e todos os filhos de D. Iracy as frequentaram para fazer primeira
comunhão e se crismar. Também, como ocasiões para reunir a família e os vizinhos, foram lembradas as festas da Páscoa, o
Natal e as outras festas que remetem às devoções aos santos.
Hoje nesta família, que reúne 36 membros, encontramos sete opções religiosas diferentes: católicos, budistas,
evangélicos, messiânicos, espírita Kardecista e há, ainda, quem se defina como ecumênico e como “sem religião”.

Pais:
D. Iracy, Católica – Sr. Manuel, Católico, frequentador de umbanda

7 Filhos:
3 católicos; 2 budistas, 1 messiânica, 1 espírita

17 Netos:
7 católicos; 3 budistas (+um bisneto); 2 evangélicos; 1 messiânica;
4 “acreditam em Deus, mas não tem religião” (um se define como ecumênico e 3 como “sem
religião”).

Na segunda geração, o catolicismo continuou sendo o elemento agregador da família que batizava os novos
membros, que se reunia nas festas católicas. Ainda assim, paralelamente, dos sete filhos quatro se aproximaram de
instituições budista, messiânica e espírita. Neste processo, para jovens netos de Dona Iracy se ampliaram significativamente
as possibilidades de experimentação religiosa.

Os netos católicos: (re) escolhas e novas complementaridades


Para a terceira geração a transmissão intergeracional da religião não é vista mais como natural. Embora todos
tenham sido batizados no catolicismo, enfraqueceu-se a “obrigatoriedade” da primeira comunhão e crisma. Hoje entre os 17
netos, apenas 7 se definem como católicos. E, mesmo entre estes que se definem como católicos, há sentimentos e
comportamentos que espelham o mundo em que vivem hoje.
Para caracterizar a experiência religiosa da geração dos netos de Dona Iracy é preciso considerar a intensificação do
trânsito religioso. Vejamos exemplo de Eduardo que se define como negro e católico, tem 28 anos, segundo grau incompleto
e é filho de mãe católica:
No fundo sempre fui católico. Porque mesmo participando de cultos de outras Igrejas como espiritismo, passei pela
umbanda, pela Igreja Universal, participei e voltei para o catolicismo...Hoje não vou à Igreja, mas sou católico. Ser
católico para mim é acreditar em Deus (...). Gosto das festas católicas, então me considero católico. Vou à Igreja de
São Jorge, lá acendo minha velinha...

216
O catolicismo continua sendo um território de referência. Mas, as formas do “ser católico” se modificam. Eduardo
se movimenta no campo religioso e revaloriza as festas e devoções. Já Teresa, outra neta, encontra sua maneira própria de
“ser católica” enfatizando novas complementaridades.
Teresa tem 22 anos, se define como “morena”, terminou o ensino médio, seu pai é Evangélico e a mãe budista. Foi
batizada, fez primeira comunhão. Hoje define-se como católica, que “confia no esoterismo”.
Eu confio no esoterismo... de você limpar o seu espírito , de você ter energia boa... Conheci o esoterismo quando
estava de “baixo astral” e comprei a Revista Bom Astral. Eu não sei se é porque minha mãe Yara resolveu acabar com
o Centro... Então, eu não quis me apegar à religião nenhuma. Eu gosto do Budismo, mas não virei budista até hoje,
porque para mim vira uma obsessão. Ter que ir para casa rezar na frente do meu oratório. No momento eu não quero
religião nenhuma, Feng Shui é uma seita e eu pratico Feng Shui8. Não é uma seita, é um tipo de estudo. Você tem que
estudar para poder viver.Então, se você pratica Feng Shui em sua casa, na sua vida, você vive com mais harmonia,
você vive de bem com seu espírito, você vive bem com você mesma, você vive bem com o mundo. Então eu pratico
Feng Shui, volta e meia eu acendo incenso pela minha casa. O Feng Shui ensina que sua casa deve estar sempre limpa,
para sua vida estar em harmonia, ele ensina várias coisas. Ensina a posição dos móveis dentro de casa. Eu tenho o
mensageiro do vento que faz parte do Feng Shui.

O caso de Tereza revela novas possibilidades de combinar crenças religiosas e recursos culturais. Ela, que se
ressentiu porque “mãe Yara resolveu acabar com o centro” (de umbanda), encontrou no FENG SHUI outra fonte para
complementar seu catolicismo. Como no caso do centro de mãe Yara, o “esoterismo” por ela encontrado também não exige
exclusividade, não é necessário que ela deixe o catolicismo e, por outro lado, nem que faça escolha e se dedique tanto quanto
seria necessário no budismo.
Ou seja, em sua trajetória, após experimentar a convivência pacífica entre catolicismo e uma das vertentes das
religiões afro brasileiras, a entrevistada mostra desenvoltura para fazer uma outra combinação condizente com o espírito do
tempo em que vive. As expressões “meu astral”, o “astral da mina casa”, com “minha espiritualidade”, que não poderiam
estar na boca da avó Iracy, fazem parte de seu vocabulário religioso. O FENG SHUI, com seus banhos de essências e aromas,
exemplifica o tipo de oferta que chega aos jovens desta geração.
Já Paulo Henrique, um outro neto que se define como católico, afirma rezar antes de dormir para ter bastante saúde;
vai à Igreja de vez enquando... E, no sábado e domingo, “que é dia de jovem” frequenta, “às vezes”, a Igreja Nova Vida
(evangélica pentecostal). Paulo Henrique estaria predisposto a experimentar a possibilidade de ser exclusivamente
evangélico? Ou seria esta combinação apenas mais uma forma de viver seu catolicismo? Não há como responder. O
importante a destacar aqui é que mesmo entre católicos, mesmo quando se trata da alternativa evangélica, concorrente que
pressupõe adesão exclusiva, não é mais visto como necessário silenciar-se sobre buscas pessoais.
Ainda no âmbito do catolicismo vivido, alguns dos netos de D. Iracy afirmaram gostar de ouvir a oração do Padre
Marcelo Rossi9, transmitida diariamente pela Rádio Globo. Nesta família em que não há jovens engajados em Pastorais
sociais católicas ou em grupos de jovens católicos carismáticos10, a palavra dos padres chega fundamentalmente pelas ondas
de rádio e pela telinha da TV.

Os netos evangélicos pentecostais


Na geração dos filhos de Dona Iracy, tornou-se evangélico aquele filho que teve – por assim dizer – menor
ascensão social, o que condizente com o momento de expansão pentecostal nas áreas mais pobres do Rio de Janeiro. Da
mesma forma, não é por acaso que entre os netos de Dona Iracy, dois que são evangélicos são os que tem menos recursos
financeiros e moram em regiões mais empobrecidas. Para ambos a conversão se coloca como um divisor de águas que
redefine todas as áreas da vida social. Paulo Roberto tem 31 anos, se define como negro, tem primeiro grau incompleto, é
garçon, filho de pais católicos. Ele diz:
antes eu era conturbado, hoje estou calmo, tranquilo, estou feliz (...) Quando eu era católico, eu não fui praticante no
caso eu só ia para a missa às vezes (...) Agora a minha fé entra em tudo. Eu necessito Deus para viver (...). O meu Deus
é o meu dinheiro. O meu Deus é a minha empresa. O meu Deus é a minha imagem.

Hoje, não há como negar que o crescimento pentecostal disputa “nas bases” católicas e em aberta disputa com as
religiões afro-brasileiras. Não é por acaso, diga-se de passagem, que a neo-pentecostal Igreja Universal do Reino de Deus
elege entidades e orixás como seus adversários mais poderosos. O exorcismo – ali denominado de libertação – pressupõe a
crença no poder do inimigo.

8
Tradição milenar chinesa, propõe comunicação e condicionamento constante entre a energia do lugar e a energia das pessoas. Inclui o convite á ampliação da
consciência de estar presente, da consciência ecológica profunda, é visto como um facilitador da vivencia em abundancia.
(http://www.dmais.com/tengshut/tengsht.htm)
9
Segundo dados do IBOPE, com programas diários na Rádio Globo, conquistou um público de 430 mil ouvintes em São Paulo e cerca de 7 milhões no Brasil.
Padre Marcelo, considerado o maior expoente da Renovação Católica Carismática no Brasil, tem participações diárias ou semanais em outros programas de
Rádio e TV.
10
O filme “o Chamado de Deus”, dirigido por José Joffily, que foi exibido em circuito comercial de cinema e pode ser encontrado em locadoras, traz muitos
elementos para a reflexão sobre o engajamento de jovens nas vertentes da teologia da Libertação e da Renovação Carismática. Sobre os jovens nos movimentos
de Renovação Carismática em Fortaleza ver Nicolau, 2005.

217
Priscila tem 20 anos, diz que é preta, estudou até a quarta série, é filha de pais católicos e está casada com um
jovem de religião evangélica e logo vai ser batizada. Ela comenta:
Eu me sinto bem como evangélica. Vou á igreja quando estou com problemas e parece que aquele peso sai de cima de
mim. E eu me sinto bem.

As pesquisas mostram que hoje há no Brasil pentecostalismos para todos jovens de todos os gostos e classes.
Assim, é preciso evitar respostas fáceis que automaticamente equacionam pentecostalismo, pobreza e baixa escolaridade. No
entanto, de uma maneira menos mecânica, podemos indagar até que ponto os acessos a bens culturais- condizentes com as
desigualdades sociais e econômicas – afetam escolhas no universo religioso? Nesta linha, quem são os membros da família
que frequentam as religiões orientais?

A neta Messiânica
De um certo oriente, vêm a alternativa messiânica. De origem japonesa, a Igreja Messiânica Mundial foi fundada
em 1926 pelo filósofo Mokiti Okada. Segundo os seus documentos oficiais, seu objetivo é construir o “paraíso Terrestre”.
Para eles, em um mundo em que tudo se tornou mundial, as religiões devem seguir o mesmo caminho. A religião precisa ser
universal.
A expressão da gratidão é fundamental na Igreja Messiânica. Para eles “gratidão gera gratidão”. Através da gratidão
o indivíduo se aproxima de Deus e produz melhorias na sua vida material e espiritual. A Igreja Messiânica reconhece a
existência de outras religiões, outros caminhos. A idéia é que “um dia todos vão se encontrar numa mesma religião”. Por isto
mesmo Magna não se sente rompendo com o catolicismo, mas escolhendo seu caminho pessoal, sem interferências da
família. De certa forma, esta religião que vêm do Oriente trouxe para Magna um incentivo para o exercício do auto exame e
da iniciativa individual, valores tão caros ao individualismo contemporâneo ocidental.
Elen tem 29 anos, é negra, professora de inglês e, por meio da dissertação sobre sua própria família tornou-se
mestre em ciências sociais. Vejamos trechos que ela escreveu sobre sua trajetória:
Faço parte da terceira geração. Fui batizada na Igreja Católica e fiz primeira comunhão. Meu pai é católico não
praticante. Quando eu era criança frequentávamos também um Centro espírita (de tradição afro-brasileira) de uma
amiga da família. Ainda na minha adolescência fui no Templo Budista com a minha tia e em casamentos na Igreja
Evangélica. Na minha adolescência minha saúde não era muito boa. A minha mudança de religião aconteceu quando
conheci uma doutora (...) messiânica (...) Quando eu ia ao consultório, ela ministrava Johrei11. Além de me consultar
ela falava da Igreja Messiânica Mundial, aconselhando-me a receber Johrei na própria igreja. (...) Hoje frequento a
Igreja Messiânica Mundial, mas nem por isto deixei de ir à Igreja Católica sempre que sinto vontade e/ou em algum
evento como batizado, casamento, aniversários, etc...(...). Quando iniciei na Igreja Messiânica minha mãe12 não se opôs
à minha crença religiosa, na minha família ninguém ficou sabendo. No início eu escondia porque não queria mogoar a
“mãe de santo” (Yara) do centro que frequentávamos. Após cinco anos minha mãe se tornou membro da Igreja
Messiânica mundial e hoje eu a considero muito mais atuante na fé do que eu.

É interessante notar que, segundo as lembranças de Elen, sua preocupação não era em relação à aceitação da
família ou ao padre, mas à possibilidade de magoar a “mãe de santo”. Haveria aí uma nova disputa pelo lugar de “segunda
religião” antes pertencente, de maneira inquestionável, às religiões afro-brasileiras? Esta indagação nos faz pensar na solidez
do lugar do catolicismo na cultura brasileira. Neste sentido, certas ofertas orientais poderiam ser pensadas como fontes para
novos sincretismos e renovação do catolicismo vivído, enquanto outras exigiriam maiores rupturas. Neste último caso parece
estar o Budismo na família em questão.

Os netos Budistas: novas práticas e estilo de vida


Segundo a autora (Santos,2002:42) os budistas da família iniciaram sua vida religiosa no catolicismo e todos foram
batizados na Igreja Católica, exceto o mais jovem membro da família que tem doze anos e “já nasceu budista”. Na segunda
geração duas filhas de Dona Iracy se tornaram budistas: Maria Adelaide (negra, 53 anos, tem faculdade incompleta) e Marisa
(41 anos, tem segundo grau, também é budista. Pertencem ao Budismo Soka Gakhai13, em seus depoimentos, pode-se
identificar uma passagem da teodicéia tradicional ocidental em direção ao modelo oriental. Tal opção modifica a maneira de
“estar no mundo”, como explica Marisa:

11
Johrei: método de canalização de infinita energia vital do universo para o aperfeiçoamento espiritual e físico do ser humano restaurando sua condição original
de verdadeira saúde, prosperidade, paz e nobreza de sentimentos, (cf Santos, 2002)
12
Magna, filha de Dona Iracy e mãe de Elen, a autora da dissertação, é pedagoga aposentada. Define-se como messiânica e diz que vai à Igreja católica quando
dá vontade de entrar, pensar e orar. Diz que reza diariamente. Mas na Messiânica ela se dedica ao agradecimento.“Agradeço sempre à Deus e a Meishu Sama a
oportunidade de estar ali dedicando e agradeço também as graças recebidas”. Na verdade foi a filha que influenciou na sua aproximação à Igreja Messiânica.
Para maiores detalhes sobre as religiões dos filhos e filhas e das netas e netos, ver Santos (2002)
13
Movimento fundado no Japão, na década de 30, por um professor de escola primária, Tsunesaburô Makiguchi (1871-1944). Hoje sua atuação tem o objetivo
de “solucionar os problemas da humanidade através da conversão do maior número possível de pessoas a seu ensinamento que enfatiza a educação para a paz”.

218
Não vejo nada melhor do que o budismo. A lei última da vida. É muito bom. Faço prática todo o dia: são cinco orações
de manhã e três à noite. E o daimoku que você faz na hora que quiser, o tempo que você tiver para fazer. Mas nós que
somos budistas temos gohonzon em casa, o mínimo é uma fora de prática todo dia. Faço duas três, tem dia que eu tiro
para fazer três horas por dia”.

Na terceira geração eles são três: Jeová (32 anos, ensino superior incompleto); Adelaide (31 anos,
universitária);Taiguara (19 anos, segundo grau incompleto), e há ainda o bisneto Luciano (de 11 anos que se considera
budista). Todos são filhos de mães budistas, mas têm outros irmãos que não aderiram ao budismo. Vejamos o que diz
Adelaide, uma das netas de Dona Iracy:
Hoje não vejo Deus como um ser sobrenatural ou fora do alcance do ser humano. Vejo sim vários deuses budistas
contidos no universo (...) As mudanças não ocorreram de uma hora para outra, mas aos poucos eu vivenciei a sabedoria
que o daimoku nos proporciona...voltei a ter contato com meu pai, quem eu não via há anos. Comecei formar minha
personalidade que até então eu não tinha (...).

Adelaide evita frequentar outras instituições ainda que seja em momentos de festa. Lembremos aqui o que disse a
prima Teresa: “Eu gosto do Budismo, mas não virei budista até hoje, porque para mim vira uma obsessão. Ter que ir para
casa rezar na frente do meu oratório”.
É interessante notar como alternativas reconhecidas como de tradição oriental, podem resultar em diferentes
arranjos de continuidades e rupturas. Em uma mesma família observamos:
a- A prima Teresa, que se confessa uma católica que confia no esoterismo ( FENG SHUI) desde que “a mãe Yara”
fechou o terreiro.
b- Elen e a mãe são membros da Igreja Messiânica Mundial, se distanciando das religiões afro-brasileiras e sem ver
a necessidade de romper com a Igreja Católica.
c- Os budistas que, segundo os seus parentes, parecem ter feito maiores rupturas institucionais e mudanças de estilo
de vida.
A variedade de situações observada na família, e certamente também no entorno social, parece favorecer que nesta
terceira geração publicamente se apresentem os “sem religião”.

Os netos “sem religião”


Vejamos quem são e o que diz cada um deles.
Marcio Roberto se define como negro, tem 26 anos, chegou ao ensino médio, é auxiliar administrativo. Filho de
mãe católica, foi batizado, se benze e diz não ter religião. Diz que não sente falta de ter uma religião e que não sente “vontade
de voltar à Umbanda (...)”. Também contou: “fui à Aparecida do Norte em novembro de 2000 e voltei no ano passado”.
Junior, 14 anos estudante, sétima série, filho de mãe católica, diz que não sabe qual é a sua religião. Afirma: “na
certidão eu sou católico. Mas religião eu acho que não tenho. Acho que acredito em Deus. Não sou frequentador de
nenhuma instituição religiosa. Acredito na Messiânica que tem a ideologia parecida com a minha, você não precisa sair de
casa para sentir Deus. Deus está lá todo o momento. (...) Conheço a Igreja Católica, a Igreja Messiânica, a Renascer
conheço só de Revistas... Não consigo diferenciar, para mim é tudo Universal”.
Ulisses tem 14 anos, está na sétima série, sua mãe é católica e ele diz que “não tem religião certa”.
Ugo tem apenas 11 anos, define seus pais são “macumbeiros” e se define como “ecumênico”. “Eu acho que todas
as religiões mostram um pouco de sinceridade”, diz ele.
Se, estes netos de D. Iracy, primos de Elen, no mesmo período, fossem entrevistados pelo Censo, diriam apenas que
“acreditam em Deus, mas não têm religião”. Entrevistados pela prima socióloga, expressaram a socialização católica, e se
sentiram livres tanto para defender posturas ecumênicas quanto para apreciar e estabelecer afinidades com outras religiões.
Definitivamente, não mencionaram as autoridades religiosas que lhes entregaram “de geração para geração” as imagens do
mundo...
Isto não quer dizer que o catolicismo não seja o principal pano de fundo da sociabilidade da família. Como mostra a
autora, embora a conversão evangélica de familiares, a presença do espiritismo, as diferentes adesões às práticas orientais
tenham produzido mudanças de estilos de vida de filhos e netos, enquanto a avó era viva era o catolicismo que ditava o
calendário e fornecia o amalgama para as reuniões familiares.
Contudo, quando D. Iracy ficou doente filhos e netos convocaram Jesus, Buda, Meishu, Nossa Senhora e muitos
santos para curá-la. Foi levada a um Santuário católico. Tomou “garrafadas” caseiras e água purificada pelas orações
radiofônicas do Padre Marcelo Rossi. Recebeu Johrei, ministrado por sua filha messiânica e daimaku feitos por suas filhas
budistas.
Depois de sua morte, membros da família foram convidados para diferentes rituais: Culto de falecimento na Igreja
Messiânica Mundial, Cerimônia de Sétimo dia no Templo Budista, missa de sétimo dia na Igreja Católica, cultos de dez, de
vinte, de trinta dias e de quarentena na Igreja Messiânica; Prece de Elevação Espiritual no Centro Espírita Ramatiz. Filhos e
netos de diferentes religiões participaram de diferentes rituais. Se é verdade que a missa católica foi a mais concorrida,
também é verdade que uns visitaram templos de outros, assim como os netos “sem religião” estiveram presentes em
diferentes celebrações religiosas.

219
Enfim, para os jovens netos de D. Iracy, “ser católico” deixou de ser natural. Em um tempo em que aumentam
ofertas religiosas e os meios de comunicação para divulgá-las, os jovens de hoje convivem e fazem suas escolhas em um
cenário inédito de pluralismo religioso intra-familiar.

5- Para concluir
Os jovens brasileiros, nascidos do final da década de 1970 para cá, já encontraram o mundo mudado. Eles fazem
parte de uma geração pós industrial, pós guerra fria e pós descoberta da ecologia. Vivem as tensões do avanço tecnológico, os
mistérios do emprego, da violência urbana. Já encontraram questionada a histórica equação: "brasileiro"="católico".
O declínio histórico do catolicismo no Brasil - relacionado com o crescimento evangélico, com a ampliação das
alternativas religiosas e com o aumento daqueles que se declaram "sem religião" – refletem mudanças fundamentais nas
maneiras de estar no mundo e nas estratégias de apresentação social. De maneira geral, podemos dizer que diminui o peso da
autoridade religiosa e aumentam as possibilidades de escolha e sínteses pessoais e inéditas. Por exemplo, para ter acesso à
Bíblia os jovens brasileiros de hoje não precisam desconsiderar a autoridade dos padres ou pastores, nem precisam a eles se
submeter14. A Bíblia pode ser comprada em qualquer esquina e seus versículos são cantados nas letras de rap e aparecem
escritos em outdoors no centro das cidades, nos muros das favelas e periferias. Não por acaso, presente em diferentes espaços
de comunicação, disponível em papel, fitas e CDs, sujeita às livres interpretações, a Bíblia tornou-se um dos best seller do
nosso tempo.
Sem dúvida, as chamadas “novas tecnologias de comunicação” foram incorporadas e contribuíram para a
globalização do campo religioso. A despeito das desigualdades sociais e da chamada “exclusão digital”, as técnicas de
comunicação e os avanços da tecnologia de ponta fazem parte das várias dimensões da vida dos jovens de hoje, inclusive a
dimensão religiosa. Se é verdade que a linguagem e a presença da mídia, da internet e de outras tecnologias de informação
mudaram as maneiras de “estar no mundo” elas mudaram também as formas das religiões se apresentarem ao mundo.
Assim como “não há política sem símbolos” (Geertz, 1991) hoje “não há religião sem mídia”. No mundo
contemporâneo as religiões fazem uso profissional da mídia. Como afirma Pace (1997), as tecnologias - aceitas e usadas com
profissionalismo - empurram as religiões “a liberar-se do aparato hard de suas mensagens e escolher a via soft” pois assim
entram melhor em circulação, conseguem, efeitos especiais de breve duração. Neste contexto, o uso da linguagem soft,
ancorada nas emoções e nos afetos, estaria substituindo aparato hard da complexidade da mensagem teológica e escatológica.
Esta é, sem dúvidas, uma discrição do presente com suas rápidas e constantes absorções tecnológicas.
No entanto, é sempre preciso tomar cuidado com comparações entre as religiões no passado e no presente. No
tempo e no espaço, as apropriações e vivencias das religiões nunca foram homogêneas, sempre se deram de maneiras
bastante diferenciadas marcadas por posições na hierarquia religiosa, por diversas apropriações culturais e por disputas entre
correntes de interpretação doutrinaria e pastoral. Quando a literatura sociológica anuncia (e denuncia) a existência de um
“supermercado de bens religiosos”, ou os efeitos especiais de uma “via soft”, pode estar implicitamente colocando um sinal
negativo sobre o presente e um sinal positivo sobre o passado. Generalizações idealizadas sobre o passado deixam de lado a
face autoritária e repressora das religiões culturalmente hegemônicas e podem impedir que vejamos novas formas de
espiritualidade que podem surgir da busca pessoal dos jovens, mesmo por via das novas tecnologias. Generalizações
idealizadas sobre o passado também tendem a minimizar sua face lúdica, festiva, lócus de agregação social, tão importante
para a sociabilidade juvenil ontem e hoje.
Para os jovens de hoje existem novas possibilidades de combinar elementos de diferentes espiritualidades em uma
síntese “pessoal e intransferível” e assim se abrem novas possibilidades sincréticas. Expande-se o fenômeno de adesão
simultânea a sistemas diversos de crenças, combina-se práticas ocidentais e orientais, não apenas na dimensão estritamente
religiosa, mas também como recurso terapêutico e medicinal.
Com efeito, é preciso analisar as religiões dos jovens de hoje cotejando-as com as maneiras de estar no mundo de
hoje. Isto significa que as auto-definições dos jovens de hoje têm que ser pensadas em suas inter-relações entre o campo
religioso e a sociedade em transformação. Nada nos assegura que os usos das mesmas palavras sejam os mesmos entre
gerações e segmentos sociais diferentes de uma mesma geração. Por isso é preciso sempre indagar sobre os sentidos e as
múltiplas apropriações das palavras "ateu”, "agnóstico" e “religioso”. É por meio de indagações como estas que poderemos
perceber como, neste mundo secularizado, o crescimento dos que se definem "sem religião" expressa o espírito do tempo, e é
uma marca inédita da experiência religiosa desta geração.
De fato, são várias as dimensões desta possibilidade de resposta “não tenho religião, mas acredito em Deus” que a
estatística está a registrar. Como já foi dito, pode traduzir um intervalo entre escolhas e adesões religiosas ou pode revelar
uma nova possibilidade de ter fé sem vínculos institucionais. Assim, definir-se como “sem religião” pode expressar tanto
momento de um processo, um estado provisório, quanto significar uma escolha religiosa, um porto de chegada.
Nesta dinâmica, provavelmente, no presente momento, uma parcela dos jovens citados neste trabalho - através do
Censo de 2000, dos surveys, da dissertação de Mestrado de Elen dos Santos - que se classificaram como ateus ou agnósticos

14
Ver Cunha (1993) onde a autora relata o caso de um grupo de jovens que, na favela da Gamboa em Salvador, após conflito com pastores, realiza
autonomamente seus cultos pentecostais combinando a leitura da Bíblia com o protesto étnico contido no reggae e no rastafaranismo.

220
ou declararam “acreditar em Deus e não ter religião”, já tenham feito novas escolhas. Estariam eles saindo ou se
aproximando das igrejas evangélicas, das novas religiões japonesas, do Budismo, de grupos católicos ligados à Teologia da
Libertação ou à Renovação Carismática? E quantos deles estarão fazendo suas “sínteses pessoais”, negando-se a aceitar
qualquer “pacote pronto” presente no mercado de bens religiosos?
Nenhuma destas alternativas é tranquilizadora ou preocupante em si. Tais escolhas, inseridas em feixes de relações
sociais tem efeitos diversos na sociabilidade e nos vínculos societários dos jovens de hoje. Os jovens podem ser pensados
como um espelho retrovisor que reflete as ambivalências e as contradições da sociedade. Em uma sociedade que enfatiza
inúmeras possibilidades de escolhas para os jovens, mas que, ao mesmo tempo, restringe acessos e oportunidades de inserção
produtiva, cultural e política são múltiplos os significados e os efeitos sociais dos pertencimentos religiosos.
Por um lado, "o medo de sobrar" (proveniente da insegurança para planejar o futuro profissional frente a um
mercado de trabalho restritivo e mutante) e, por outro lado, o “medo de morrer de forma violenta” (proveniente da
experiência de vivenciar precocemente a morte de amigos, primos e irmãos) podem produzir uma em intensificação da busca
de recursos sobrenaturais tanto para fazer face aos obstáculos da inserção social quanto para dar sentido à vida. Esta busca
não está livre do consumismo, do modismo, do individualismo ou da simplesmente alienação presente na sociedade. Mas
nesta mesma busca, também, pode predominar a afirmação da ética, da ecologia, da paz e do pertencimento religioso como
locus de agregação social.
Na virtualidade da agregação social, é sempre bom lembrar também que velhas e novas instituições religiosas
continuam produzindo grupos e espaços de e para jovens. As duas pesquisas citadas acima – Jovens do Rio e Perfil da
Juventude Brasileira – indicaram a predominância dos grupos religiosos nas formas de participação juvenil. Uma boa parte
destes grupos atua no espaço público e pode ser contabilizada na composição do cenário da sociedade civil que constrói o
espaço público. Tais grupos, motivados por valores e pertencimentos religiosos, têm fornecido quadros militantes para
sindicatos, associações, partidos políticos, redes e movimentos juvenis. Neste sentido, a escolha religiosa pessoal pode ser um
elemento produtor de identidade impulsionador no processo de emancipação dos jovens.
Enfim, para além das crises pelas quais passam as Igrejas tradicionais, a religião está hoje muito presente na esfera
pública e também na biografia concreta de milhões de jovens que buscam um sentido religioso fora, à margem ou dentro da
religião de origem. Como já foi dito: partilhando das possibilidades culturais de nossa época, os jovens desta geração estão
sendo chamados a fazer suas escolhas em um campo religioso mais plural e competitivo. Neste cenário, os jovens que têm fé
e são "sem religião" podem ser pensados como expressões locais de um global espírito de tempo. Em uma inédita conjugação
entre “ventos secularizantes” e um “espírito do tempo”, ampliam-se hoje as possibilidades de experimentação com o sagrado.
No entanto, talvez nos faltem ainda categorias analíticas apropriadas para bem compreender o significado e as repercussões
de tais religiosidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, P. et alli. (1963), Travail et travailleurs em Algérie. Paris: La Haye, Mouton.
CUNHA, Olívia Maria G. (1993) “Fazendo a coisa certa: rastas, reggaes e pentecostais em Salvador”, Revista Brasileira de
Ciências Sociais, número 23, ano 8.
DECOL, René. (2001), “Imigração Internacional e mudança religiosa no Brasil”. Comunicação apresentada na Conferência
Geral sobre População, Salvador.
GEERTZ, Clifford (1991). Negara O Estado teatro no século XIX. Lisboa, DIFEL.
NICOLAU, Roseane F. Um “novo Católico”. Cura, emoção e reconstrução de identidades na Renovação Carismática
Católica. Tese de Doutorado. Programa de Pós Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, 2005.
NOVAES, Regina. (1994), “Religião e Política: sincretismos entre alunos de Ciências Sociais”. In A dança dos sincretismos.
Rio de Janeiro: Comunicações do ISER, nº45, ano 13.
_____ e MELLO, Cecília. (2002), Jovens do Rio. Rio de Janeiro: Comunicações do ISER, nº 57, ano 21.
NOVAES, Regina (2004) Os jovens “sem religião”: ventos secularizantes, espírito de época e novos sincretismos. Notas
preliminares - Revista Estudos Avançados 18 (52).
PACE, Enzo. (1997), “Religião e Globalização”. In Religião e Globalização. ORO, A. P. e STEIL, C. A. (orgs.). Petrópolis:
Vozes.
TAVARES, M. F. e CAMURÇA, Marcelo. (2004), “Balanço dos Estudos sobre Juventude e Religião”. Universidade Federal
de Juiz de Fora. Artigo inédito.
SANTOS, Boaventura O futuro do Fórum Social Mundial: o trabalho de tradução, Revista Democracia Viva 25, Edição
Especial, IBASE, jan/fev 2005
SANTOS, Elen Barbosa Religiões em família: continuidades e mudanças em tempos de “nova era”. Dissertação de
Mestrado. PPGSA, IFCS/ UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.

221
Privilégios e Direitos: Territórios sem Fronteira na Violência Doméstica?
Dália Costa
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa
[email protected]

Resumo: O paradigma de intervenção na problemática da violência doméstica está em mudança em função da mudança de paradigma de
interpretação do fenómeno numa moldura de género e dos Direitos Humanos. A finalidade é a promoção e a prática efectiva de direitos
fundamentais, colocando a questão do exercício de práticas profisionais que não só traduzem direitos como são, elas próprias, potenciadoras
de um alargamento e aprofundamento dos mesmos.
No que diz respeito à mudança de paradigma na intervenção em situações de violência doméstica, de um processo focado no sujeito e
orientado por um modelo clinico e uma abordagem terapêutica, para um paradigma de intervenção em rede, as repercussões reflectem-se na
participação a dois níveis: a nível do sistema-interventor, por via da interacção com outros actores sociais; e no sistema-cliente, que, para
além de lhes ser dada ‘voz’, lhes são dados ouvidos, sendo o seu ponto de vista (sobre as necessidades, as percepções, as expectativas)
integrado nas decisões que lhes dizem directamente respeito e que afectam a sua vida. As redes são novos mecanismos de opinião (formação
e partilha), de participação política, e de construção de conhecimentos e inovação.
A hipótese da associação entre mudança de paradigmas (de interpretação do fenómeno e de intervenção sobre o mesmo) é testada em
diferentes modelos de resposta a mulheres vítimas de violência doméstica, assentes em estruturas em rede (N=5 correspondendo ao universo
de casos existentes em Portugal Continental em Abril de 2008). Apresentam-se alguns resultados deste estudo empírico.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Violência doméstica; Parceria

1. A Violência Doméstica no quadro dos Direitos Humanos


Nos anos 70 do século XX, o reconhecimento colectivo do problema da violência doméstica, o envolvimento de
defensores das mulheres na abertura de abrigos para mulheres maltratadas, a formação de grupos de apoio às mulheres nos
abrigos e na comunidade, foi dando visibilidade pública ao problema definindo-o como problema social de grande dimensão,
implicando a acção através de um leque de serviços sociais.
A história mais recente orienta a nossa compreensão sobre o percurso que tem vindo a ser feito na protecção das
mulheres vitimas1 de violência doméstica para o contexto social e familiar em que predominam crenças culturais que
influenciam fortemente a efectiva capacidade protectora dos mecanismos e dos dispositivos existentes.
A Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (adoptada em Dezembro de 1993 pela
Assembleia-geral das Nações Unidas) identifica a violência contra as mulheres enquanto manifestação da desigualdade
histórica das relações de poder entre sexos, que conduziram à dominação sobre as mulheres e à discriminação contra as
mulheres por parte dos homens, criando obstáculos ao seu pleno progresso.
A acção das Nações Unidas teve impacto a meados dos anos 70 ao instituir a Década das Mulheres (1976-1985)
associando-lhe objectivos de direitos humanos.
A CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women, adoptada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 e implementada a partir de 1981) é considerada como a Carta dos Direitos das
Mulheres (a bill of rights for women) por instituir uma agenda para orientar as acções nacionais no combate à violência
contra as mulheres. O valor da Convenção é reconhecido por ser o primeiro documento internacional a abranger, de forma
compreensiva, os direitos (humanos) das mulheres nas áreas civil, política, cultural, económica e social.
Em 1999, o Comité da CEDAW amplia o papel das ONG para além do controlo da prossecução do objectivo geral
da CEDAW pelos Estados. Ao alargar a vigilância ao nível da implementação da Convenção, aumenta a possibilidade de as
ONG aproveitarem o seu potencial enquanto mecanismo indutor de mudança social. A adopção do Protocolo Opcional à
CEDAW (pelas Nações Unidas, em Outubro de 1999, com entrada em vigor a partir de 22 de Dezembro de 2000) veio
‘aumentar’ a obrigatoriedade da Convenção.
Para além disto, a violência doméstica passa a estar incluída numa gama vasta de violências contra as mulheres, as
quais têm em comum o facto de se manifestarem na esfera da vida privada com causas identificadas na esfera pública. A
adopção de uma perspectiva culturalista significa assumir que os mecanismos básicos da socialização e aprendizagem actuam
como reprodutores das estruturas sociais e a persistência da actuação daqueles mecanismos será politicamente sustentada,
mantendo as mulheres destituídas de poder, logo, susceptíveis ou vulneráveis ao exercício de domínio por parte dos homens.
O marco no reconhecimento claro da violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos é,
todavia, a Conferência dos Direitos Humanos, em Viena (1993). Foi aí que se estabeleceu de uma forma inequívoca, a
responsabilidade dos Estados em relação à prevenção da violência contra as mulheres e à sanção dos agressores,
independentemente do facto de a violência ser cometida em contexto privado ou público. Na sequência foram produzidas

1
A opção por usar o termo ‘vitima’ decorre da necessidade de deixar claro que num quadro de direitos e de reconhecimento criminal da sua violação há vitimas
e transgressores à lei penal. Estes são ‘agressores’. Mulheres e homens podem ser vitimas e agressores nas situações de violência doméstica apesar de, à luz dos
estudos realizados, as mulheres serem proporcionalmente mais vítimas e os homens mais agressores. o termo não se refere ao aspecto passivo de se ser vitima
mas a uma condição em que se está numa situação em que outro usa de violência com a qual se vive no quotidiano e à qual nem sempre se sobrevive.

222
declarações internacionais que aprofundaram esta ideia da responsabilidade dos Estados quanto ao desenvolvimento de
políticas e de programas destinados a erradicar a violência contra as mulheres e a providenciar recursos adequados ao
cumprimento desse objectivo.
Alguns autores identificam este marco com a designação do conceito de violência contra as mulheres junto da
comunidade internacional conferindo unicidade ao que era tratado até aos primeiros anos da década de 90 do século XX num
enquadramento de saúde pública (identificando o fenómeno com uma pandemia com uma vasta prevalência) ou enquanto
problemática associada ao desenvolvimento das culturas, ou ainda constituindo uma violação dos direitos humanos. A partir
de 1993 estas perspectivas foram reunidas com a identificação da origem e das consequências da violência contra as mulheres
sobre todos os seres humanos, no desequilíbrio de poder entre homens e mulheres.
É na Declaração sobre Eliminação da Violência contra as Mulheres (1993) que aparece uma definição oficial de
violência de género, como todos os actos de violência contra as mulheres que resultam, ou podem resultar, em danos ou
sofrimento físico, sexual e psicológico (ou psíquico), incluindo ameaças, coerção ou privação arbitrária de liberdade, quer
ocorra na vida privada ou pública. A Declaração é abrangente ainda no que concerne aos contextos de violência, reportando-
se ao lar e à família, à comunidade e à violência exercida pelo Estado contra as mulheres, podendo ser perpetrada pelo Estado
ou ser violência não condenada pelo Estado.
Estabelece-se que os Estados têm o dever de prevenir, investigar e punir os actos de violência contra as mulheres.
Conferindo-lhes esta responsabilidade, a Declaração como que coroa o esforço dos movimentos de mulheres em dotar a
problemática de um estatuto de questão publica e implicando todas as pessoas na sua resolução, ao identificá-la,
definitivamente, como uma questão de direitos humanos. Em 1992 ‘a comunidade internacional ainda estava relutante em
perspectivar a violência contra as mulheres como um tema público em vez de privado’ (UNIFEM).
O paradigma dos direitos humanos estruturou-se recentemente embora algumas dimensões que o integram tenham
raízes longínquas. A unicidade e coerência da perspectiva é o seu aspecto mais inovador servindo de orientação para a
investigação em termos da identificação e selecção dos factores a estudar, da formulação de problemas sociológicos e da
adequação de metodologias de pesquisa. O reconhecimento por parte da comunidade científica dos conceitos e elementos
explicativos congregados nesta perspectiva, assim como da sua aplicabilidade prática, para além daquela capacidade
heurística, interligou um conjunto de pressupostos aplicando-os ao tema da violência de género.
A Plataforma para a Acção de Pequim (1995) na IV Conferência Mundial sobre as Mulheres estabelece que os
Governos estão obrigados a dar resposta às exigências das mulheres de viverem uma vida livre de violência, a actuarem na
prevenção da violência e a adoptarem medidas de sanção dos perpetradores nas situações em que os direitos humanos (das
mulheres) sejam violados. A plataforma de Acção de Pequim representa o envolvimento dos Estados em plataformas
internacionais estabelecendo padrões morais que implicam e responsabilizam os Governos. Para além disto, dotam as ONG
de uma ferramenta que podem usar junto das instâncias (governativas ou com outros poderes de decisão) no âmbito nacional
e oferecem aos activistas uma possibilidade de se organizarem no âmbito transnacional, dotando-as de um poder negocial
maior para obrigar os Estados a cumprirem o que ficou estabelecido.
Numa análise da problemática na perspectiva dos direitos, estabelece-se que à medida que as mulheres
conquistaram direitos civis e direitos sociais, a família e o lar, enquanto território doméstico e privado, deixaram de ser
‘muralhas intransponíveis’ e ‘a ordem familiar passou a ter que conviver com os direitos individuais dos seus membros’
(Portugal, 2000:239) os quais eram, por vezes, conflitantes com os seus interesses. O papel dos autores de teorias e
abordagens que se inscrevem numa perspectiva feminista não pode ser escamoteado na análise de uma tendência para
‘desnaturalizar’ actos e comportamentos da família tradicional, na mesma sucessão em que são considerados exercícios de
poder, controle e dominação. Neste sentido, Portugal (2000) considera que a extensão do sentido da individualidade ao
interior da família a tornou mais democrática e mais aberta à intervenção exterior. O enquadramento do indivíduo enquanto
sujeito de direitos mais do que enquanto membro de uma unidade familiar parece ter repercussões sobre a definição dos
limites do privado e do público.
A ONU e o Conselho da Europa consideram a violência contra as mulheres como um obstáculo à concretização da
igualdade entre mulheres e homens. Este tipo de violência decorre das relações de força desiguais entre mulheres e homens e
conduz a uma discriminação grave contra o sexo feminino tanto na sociedade como na família; viola os direitos das pessoas e
as suas liberdades fundamentais, impedindo o seu exercício e o seu pleno gozo, parcial ou totalmente; e atenta contra a
integridade física, psíquica e/ou sexual das mulheres.
No último relatório da UNFPA (2008) afirma-se que a violência de género é perpetuada por meio de normas
socioculturais e tradições, reforçando estruturas de poder dominadas pelos homens. Considerando a sua origem, desde a
infância que as mulheres aprendem que são inferiores aos homens e, em geral, que elas são as responsáveis pela violência
perpetrada contra elas. A sua obrigação, como esposas ou parceiras, é manter a família unida, a qualquer custo. O normativo
social faz com que ‘mulheres e homens aprendam a fazer vista grossa’ ou a aceitar a violência associada ao género. Nessas
circunstâncias, ‘a violência doméstica torna-se naturalizada e invisível’ (UNFPA, 2008:34).

2. Moldura interpretativa de género


O tema da igualdade de género foi apresentado como um dos cinco objectivos principais da cooperação europeia
para o desenvolvimento na comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu e ao Conselho Europeu acerca da

223
ajuda ao desenvolvimento (em Agosto de 20072). A atribuição de prioridade a este tema tem promovido o seu
reconhecimento como objectivo transversal pela maior parte dos Estados-membros da União Europeia tornando o género um
tema central (mainstreamed) nas políticas e nas acções dos Estados. Esta tendência por uma opção política explícita acarreta
a disponibilidade de linhas de financiamento para projectos que incidam sobre temáticas de igualdade de género e
empowerment de mulheres. No Roteiro para Igualdade entre Homens e Mulheres (2006-2010) a questão da violência contra
as mulheres em todas as suas formas é definida como uma violação dos direitos fundamentais, fazendo-se apelo à urgência de
os Estados-membros a eliminarem.
As teses de interpretação das relações interpessoais com base no género permitem compreender as formas de
organização das famílias observando as desigualdades entre homens e mulheres que se materializam no quotidiano ao nível
da distribuição de tarefas. O enquadramento teórico e conceptual de género permite compreender os papéis sociais de homens
e de mulheres numa relação conjugal de uma perspectiva em que a cultura tradicional se reconhece nas práticas projectando-
se no quotidiano da vida em família. Independentemente das condições sociais e do desempenho de papéis por cada um dos
indivíduos na esfera pública da vida em sociedade.

3. Como lidar com a violência doméstica?


Questionar o que se tem feito e quais têm sido as formas dominantes de lidar com as situações de violência
doméstica remete para uma abordagem dos direitos dos sujeitos. Das vitimas que têm uma série de direitos ofendidos pelo
agressor e pela comunidade quando os atribui, reconhece mas não os torna efectivos. Os direitos (neste caso os sociais) são
construções sociais. Isto significa que são as sociedades que os elaboram e lhes dão sentido e significado. Os momentos
históricos alteram as formas como são interpretados e agidos e como são exigidos. Sendo algo construído, dinâmico e
relativo, está em constante processo de defesa, caso contrário torna-se algo cristalizado e sem produção contínua de
significado.
Na área da violência doméstica a cooperação entre serviços tem uma história recente que é situada nos anos 1990
(Bridging, 2004). Na génese da adopção desta estratégia esteve o reconhecimento, sustentado por factos empíricos e pela
reflexão acerca da experiência de intervenção em situações de violência doméstica, de que esta é uma problemática
transversal, envolvendo várias áreas da vida em sociedade. Daqui veio o reconhecimento de que a intervenção dirigida a uma
problemática com esta natureza exigia a cooperação efectiva implicada e empenhada de todas as instituições que lidassem de
alguma forma com uma ou mais das dimensões e/ou manifestações da violência doméstica.
Actualmente, as parcerias correspondem a uma nova tendência no desenvolvimento de programas sociais (Wolff,
2003). Aparecem enquadradas num processo em que as modalidades e os objectivos de intervenção vão sendo incorporados
enquanto resultado de valores, exigências, necessidades, práticas sociais que são consequência do funcionamento das
sociedades e da sua organização política e do seu funcionamento institucional (Mozzicafreddo, 1997).
Enquanto estratégia de intervenção, a parceria pode ter diversas origens. As Nações Unidas, com base num critério
de classificação de âmbito territorial, distinguem as parcerias quanto à iniciativa (Estratégias, 2003) considerando:
 a acção de grupos situados na comunidade, dando lugar a uma coordenação de âmbito local;
 a acção de grupos interorganizacionais, que tendem a ser intersectoriais também, desenvolvendo trocas no âmbito
regional; e
 a acção governamental, originando coordenação ao nível nacional.
A coordenação de base comunitária (com origem e integrada por grupos e/ou organizações situados na
comunidade) é identificada com o reconhecimento da dimensão pública do fenómeno da violência doméstica, implicando o
Estado no combate ao problema. É desta forma que os actores sociais institucionalmente organizados e implementados nas
comunidades são considerados recursos na resposta pública. Enquadra-se nesta, a situação de Portugal (Estratégias, 2003)
uma vez que o envolvimento do Estado, com a promoção de políticas publicas, foi posterior ao envolvimento de grupos e/ou
organizações de base comunitária, cuja acção contribuiu para o reconhecimento publico do problema e sequente actuação.
Noutras situações em que o reconhecimento público não impulsionou o Estado na definição de políticas sociais ou
esta não ocorreu de forma generalizada, as instituições e/ou grupos existentes na comunidade envolvem-se de forma
autónoma no combate ao problema e organizam-se, articulando-se entre si para dar resposta às necessidades sociais. Seja de
uma ou de outra forma, a comunidade é o sangue da parceria (Wolff, 2003) e o bem-estar geral da comunidade a bússola que
orienta as formas de intervenção.
Na sociedade portuguesa o envolvimento de âmbito comunitário é estimulado ao nível institucional.
Designadamente definindo as organizações como os principais interessados num esforço desta natureza e com estas
características e expectativas de realização. No preâmbulo do diploma legal em que se publica o III Plano Nacional Contra a
Violência Doméstica (2007-2010) (Resolução do Conselho de Ministros n.º 83/2007) afirma-se como finalidade
programática ‘a prossecução de uma acção concertada que mobilize as autoridades públicas nacionais e as organizações não

2
Communication from the Commission to the European Parliament and the Council: Gender Equality and Women Empowerment in Development Cooperation,
Commission of the European Communities, 3 August 2007 (http://ec.europa.eu/development)

224
governamentais para que todos, de uma forma sustentada, unam esforços e combinem iniciativas multiplicadoras de novas
metodologias e abordagens ao fenómeno.’
A eficácia na intervenção é identificada com a dinamização de um trabalho conjunto entre as estruturas existentes.
Na introdução afirma-se que o plano ‘é um desafio à articulação entre as várias instituições que trabalham nesta área,
nomeadamente as que prestam apoio às vítimas e as que dirigem a sua intervenção aos agressores’ (capitulo I).

4. O Paradigma na Intervenção em situações de Violência Doméstica


4.1. Estratégia de Intervenção: Parceria
Uma parceria é um processo de construção de relações entre pessoas que expressam a sua vontade, disponibilidade
e empenho para encetar transformações nas formas de actuar na intervenção social; nas formas de organizar a resposta à
violência doméstica; e na abordagem ao problema social, valorizando a ética da intervenção social na promoção e na
condução de mudança social.
A abordagem sistémica dá o enquadramento teórico à implementação das parcerias enquanto estratégia para lidar
com a violência doméstica. A meta consiste em estabelecer uma rede de apoio que esteja disponível e seja acessível a vítimas
directas de violência doméstica e às suas famílias (com destaque para as crianças); que aproveite o sistema legal na sua
máxima capacidade de protecção; que reforce a intolerância social na comunidade em relação à violência doméstica; e que
aumente o nível de responsabilização do agressor, envolvendo a sociedade na mudança de normas e de atitudes que
contribuem para a persistência da violência doméstica (Pence e Shepard, 1999).
O principal objectivo das parcerias é melhorar a eficiência do sistema de respostas às situações de violência
doméstica que afectam as famílias; garantir que as vitimas têm acesso a bens e serviços capazes de aumentar a sua protecção
e de tornar efectivos direitos sociais garantidos; minimizar a revitimização decorrente da necessidade de a vítima ter que
relatar a sua situação a cada um dos profissionais que vai sendo envolvido no processo de intervenção; aumentar a segurança
da vítima através da activação e do envolvimento efectivo dos vários órgãos e mecanismos de contenção do risco e de
protecção da sua segurança e que estão ao seu dispor; evitar que a vitima ‘caia entre as falhas do sistema’ (Troy, 2001) e
estimular a prossecução do processo de ajuda até estarem asseguradas as condições de segurança e promovido o bem-estar da
vitimas; e aumentar a responsabilização do agressor em relação ao seu comportamento de violência. Quer assegurando que o
agressor é criminalmente responsabilizado, quer incentivando a comunidade a envolver-se na contenção dos comportamentos
de violência na família exercendo controlo social denunciando este crime público3.
O desenvolvimento de políticas e de práticas de intervenção coordenadas fazem parte de um processo de mudança
da intervenção em que se passa de uma acção de protecção individual da vítima para se lidar com a problemática da violência
doméstica no seu todo. As parcerias são indicadas como uma abordagem estratégica e como uma prática de intervenção com
potencial para gerar mudanças sobre a forma como a violência contra as mulheres é interpretada pelos cidadãos. A finalidade
é reduzir a tolerância social face a estas situações implicando mudança no normativo social.
O propósito das parcerias também é o de que a base das políticas sejam as realidades humanas e não ‘o raciocínio
abstracto, teorias grandiosas e suposições generalizadas sobre preferências e objectivos humanos’ (UNFPA, 2008:92).
Enquanto prática de intervenção, a parceria assume diferentes modelos (conjugando estruturas e modos de agir) que variam
em função dos contextos locais em que se desenvolvem.
Uma das questões que representa um desafio na concepção de respostas dirigidas a esta problemática é a co-
ocorrência de vários problemas complexos numa única situação. Este desafio faz com que uma intervenção segmentada e
desarticulada seja inadequada, podendo mesmo agravar potenciais perigos para as vitimas numa das áreas. É no seguimento
deste pressuposto que os modelos de resposta coordenada se afirmam como essenciais.
No relatório que contém os primeiros resultados da avaliação de acompanhamento da Rec(2002)5 efectuada em
2005, a ‘cooperação sistemática inter-agência’ é definida como uma coligação orientada que inclui todas as entidades
relevantes, da administração ou voluntárias, às quais a mulher recorre para obter apoio e procurar ajuda, e que têm como
finalidade garantir uma intervenção rápida e eficaz’. A sua importância é atribuída a um reconhecimento das limitações
encontradas nas respostas singulares.
O significado atribuído à violência doméstica e às formas tidas como adequadas para lidar com a mesma é a base da
definição de intervenção social. O paradigma é distinto de uma abordagem em que se supõe que todos devem organizar-se e
agir de acordo com o que alguém define como mais funcional, correcto, adequado ou útil para toda a sociedade. Esta
definição e opção política estão presentes na intervenção social e representam o etnocentrismo das instituições. As Nações
Unidas afirmam que este tipo de etnocentrismo é particularmente desafiador (UNFPA, 2008:92) e difícil de por em causa.
Difícil para a população, sustentado por outras instituições e, tantas vezes, com consequências úteis para as administrações.
Uma das dimensões mais promissora da resposta comunitária que reúne em rede os diferentes actores sociais é o
confronto entre perspectivas particulares em relação à mesma problemática. Estabelece-se uma oportunidade para emergir a
diversidade de interpretações, mais ou menos influenciadas por mitos e estereótipos em relação à problemática, aos agentes

3
A violência doméstica constitui crime público no ordenamento penal português desde 27 de Maio de 2000, através da Lei n.º 7/2000 que altera o artigo 152º do
Código Penal.

225
envolvidos na intervenção, às formas e aos processos usados na intervenção. Ao mesmo tempo que se confrontam pontos de
vista e se comparam métodos e processos de intervenção torna-se mais fácil identificar as boas práticas substituindo
procedimentos identificados como ineficientes.
Na intervenção social é clássico reconhecer que a organização do trabalho em comum é ‘uma actuação
recomendável no sentido da maior eficácia da actuação de cada um’ (Silva, 2001:140). O objectivo é dotar este principio com
força de compromisso definindo-se meios para controlar e exigir o seu efectivo cumprimento. Porém, a parceria pode ser uma
estratégia que fique aquém na realização do potencial do sistema, no sentido da maior eficiência e da optimização dos
recursos na resposta à problemática.

4.2. Objectivo da Intervenção: Empowerment das mulheres


Desde a Declaração de Pequim e da Plataforma de Acção de Pequim (1995) que a igualdade de género é associada
ao empoderamento da mulher. Associando-o à plena participação da mulher em todas as esferas da sociedade, incluindo o
acesso ao poder e a tomada de decisão. Nestes documentos estabelece-se que mulheres e homens devem desfrutar de igual
estatuto; ter o mesmo reconhecimento e consideração por parte da sociedade; e estarem em condições iguais para poderem
realizar plenamente o seu potencial.
O modelo de empowerment parte da interpretação da violência sobre as mulheres como uma violência de género
que se traduz no exercício de poder e de controlo que, sendo feito a um nível pessoal com recurso à violência dirigida a
vitimas particulares, tem impacto capaz de produzir efeitos ao nível social, designadamente na manutenção da superioridade
masculina.
Os pressupostos que sustentam este modelo são:
. a definição da variável poder enquanto uma capacidade. Isto significa que o poder não é um bem que se dá e que
pode ser exercido de forma diferencial pela mesma pessoa em diferentes contextos e no exercicio de diferentes papeis sociais;
e que é algo que se define em função do seu exercício efectivo. Uma das teses fundamentais da interpretação da violência
doméstica é que o poder é apropriado de forma abusiva pelos homens enquanto categoria social, que o usam de uma forma
hegemónica contra as mulheres e que perpetuam as posições de superioridade que ocupam na sociedade através de estratégias
contínuas de subalternização e inferioridade das mulheres. As interpretações de Bourdieu (1999) e de Elias e Scotson (2000)
permitem elaborar este pressuposto no sentido de interpretar o poder enquanto recurso distribuído de forma desigual e usado
de forma abusiva com consentimento, ainda que tácito e nem sempre consciente, por parte de categorias de subordinados;
. a possibilidade de os sujeitos estarem destituídos desse poder, encontrando-se numa situação de disempowerment.
Estas situações criam e geram ao mesmo tempo situações de falta de acesso ao exercício efectivo de cidadania e à realização
dos direitos (incluindo a possibilidade de exigir o seu cumprimento). A proximidade do conceito com o de cidadania é
assinalável, contudo, o conceito de cidadania remete para uma dimensão macro (sobretudo política) do relacionamento do
indivíduo com a sociedade. As dimensões meso (do relacionamento interpessoal) e micro (ao nível pessoal, integrando-se
aqui a satisfação da auto-realização e/ou a realização do valor próprio e o exercício de controlo sobre a sua vida) ficam mais
reflectidas no conceito de empowerment;
. a vontade e a realização de mudança decorrerá da (re)união colectiva de vontades e da conjugação de acções
individuais. Do ponto de vista teórico é a perspectiva crítica que mais sustenta esta possibilidade de mobilização social a
partir da identificação com o outro (por via das experiências de vida). Este pressuposto tem sido alvo de crítica teórica e na
prática parece o mais difícil de concretizar. A mobilização de massas em torno de causas comuns verificou-se no movimento
operário em que as condições de trabalho conduziram à mobilização colectiva agregando os indivíduos em instituições que
representavam os seus interesses (sindicatos ou outras em sociedades do tipo industrial). No que diz respeito à família e às
situações de violência conjugal em específico, a ‘passagem’ da (eventual) identificação com o outro a uma mobilização social
parece mais difícil. Este tema tem sido pouco abordado teoricamente na área da violência doméstica.
A prática de empowerment consiste em desenvolver nos indivíduos, grupos, famílias e/ou comunidades a
capacidade para alcançar ou ganhar poder. Esta capacidade integra vários elementos:
(1) ser capaz de agir a seu favor: ter e exercer controlo sobre a sua vida e ter consciência do seu valor próprio;
(2) aperceber-se que a experiência pessoal não é única, evitando o sentimento de isolamento e contribuindo para
validar a experiência pessoal através da experiência do outro e, dessa forma, reduzir o sentimento de culpa que possa existir;
(3) exercer consciência critica sobre os factores, internos (crenças, valores, atitudes) e externos (estruturas sociais)
que influenciam os problemas que afectam as pessoas;
(4) assumir a responsabilidade pelas suas acções e agir no sentido da mudança.
As estratégias de intervenção social baseadas no empowerment referem-se a intervenções dirigidas a aumentar os
sentimentos de força e de capacidade pessoal para a tomada de decisão na realização de projectos individuais de mudança. As
estratégias de intervenção são dirigidas ao sujeito, influenciando-o no plano cognitivo, das capacidades, da motivação para a
mudança e dos sentimentos. A mudança ao nível dos comportamentos e dos recursos materiais (ou tangíveis) está associada a
um reforço dos recursos internos e é suscitada como efeito do seu fortalecimento.
O conceito de empowerment, enquanto processo de aumentar o poder, serve a definição dos objectivos da
intervenção psicossocial e do trabalho social em geral através de uma estratégia que inclui a utilização dos recursos existentes

226
e a criatividade na forma de os usar, gerando a organização de respostas adequadas à situação em causa (Silva,2001) e
promovendo uma sinergia entre os recursos mobilizados.

5. A intervenção social
Canastra (2008 in Carmo, 2008) observa a complexidade crescente dos papéis associados à intervenção social
referindo que a lógica industrial homogeneizadora do trabalho social tem vindo a perder consistência, dando lugar a três
novas tendências:
 o nascimento de novas modalidades de intervenção social mais flexíveis, próximas e personalizadas, mais situadas,
menos intermediadas e mais concertadas, visando o desenvolvimento pessoal e social dos sistemas-cliente;
 uma mudança de paradigma de intervenção, mais orientado para a reconstrução das capacidades de acção dos
actores (empowerment) e para o desenvolvimento das suas competências e menos orientado para a promoção de
qualificações formais;
 a emergência de novos actores na área da intervenção social, como os agentes de desenvolvimento local, os agentes
de inserção social, os mediadores sociais, os mediadores interculturais, entre outros. Diversificando os profissionais
e os arranjos que suportam a actuação profissional institucionalizada.
O modelo de intervenção em que cada sub-sistema está habilitado para lidar com necessidades específicas faz com
que a intervenção seja mais centrada sobre os problemas e menos sobre os sujeitos, orientando-se para a identificação das
fraquezas e disfunções e não das forças e dos recursos do sistema-cliente (como a sua rede de suporte social, por exemplo).
Isto para além de a fragmentação do processo de intervenção acabar por afectar directamente a coordenação no processo de
intervenção. Este modelo valoriza pouco a interacção dentro do sistema-interventor e entre este e o sistema-cliente. Trata-se
de um modelo bem-intencionado, o que pode contribuir para a sua persistência. Todavia, pode também contribuir para um
agravamento da situação do sistema-cliente, principalmente quando as necessidades são vastas e implicam várias respostas
dos diversos sectores. Pode ainda contribuir para aprofundar uma imagem de dispersão e de falta de coordenação do sistema-
interventor.

5.1. O Processo de Intervenção Social


Um processo de intervenção social corresponde a um processo de interacção que envolve o sistema-cliente que
apresenta um conjunto de necessidades sociais (percepcionadas enquanto tal ou não, manifestas ou não, e expressas num
pedido de ajuda que não é necessariamente formulado pelo sistema que tem a necessidade) e o sistema-interventor4, que
representa um conjunto de recursos para dar resposta a necessidades sociais (incluindo as que são identificadas com o
sistema-cliente e expressas no pedido de ajuda, podendo ir para além destas). Este processo de interacção está assente na
comunicação, pressupondo trocas entre os sistemas (Carmo, 1998).
No processo de ajuda psicossocial estas trocas tendencialmente ocorrem no relacionamento. A interacção ocorre
num contexto (ambiente ou meio) com o qual existem trocas e influências mútuas. O contexto é integrado por elementos
(variáveis contextuais e situacionais) que fornecem o enquadramento social (político, económico, cultural) e representam
condições promotoras (favoráveis e facilitadoras) e constrangedoras (desfavoráveis e de bloqueio) à mudança, que constitui a
finalidade da intervenção social. A mudança pode ter efeitos (impacto) limitados ao que estava em causa no pedido de ajuda
ou que podem ir para além disso, quer de forma intencional (planeada e estabelecida no objectivo da intervenção) ou
inesperada (não prevista no objectivo da intervenção) e prolongando-se ou não no longo prazo.
O conceito sociológico de intervenção social e as dimensões operativas que o compõem revelam que os sistemas
envolvidos (o sistema-interventor, o sistema-cliente e o sistema social, enquanto meio e contexto) são perspectivados
segundo a abordagem sistémica. Cada sistema integra sub-sistemas e faz parte de outro(s) sistema mais vasto; cada um dos
sistemas pode corresponder a uma unidade distinta (com diferentes graus de integração e de coesão) que corresponda a
pessoas, grupos, organizações, comunidades ou redes, ligadas por fluxos que envolvem trocas. Os processos de interacção
que os ligam são realizados através dessas trocas, as quais, sendo constantes e negociadas, não têm necessariamente que ser
bidireccionais nem regulares e que assentam em processos de comunicação que não são necessariamente explícitos nem
envolvem necessariamente os protagonistas directamente envolvidos num processo de interacção especifico (podendo existir
antes deles e sobrepor-se na comunicação). Estas trocas decorrem de forma não necessariamente directa prevendo-se
desfasamento na comunicação e/ou nas trocas propriamente ditas, gerando reciprocidade diferida.
O termo pessoa-cliente mantém presente que um utente ou cliente dos serviços é, antes de mais, uma pessoa (Silva,
2001). O termo sistema-cliente pretende ampliar a representação mental e a consciencialização de que uma pessoa é um
sistema em interacção com outros sistemas no presente e que mantém interdependências ou efeitos das mesmas, mesmo que

4
O sistema-interventor é integrado por um conjunto de instituições (que correspondem fundamentalmente a serviços sociais e humanos). O conceito de
instituição está mais ligado à noção de relações sociais reguladas por valores, normas e usos, enquanto o conceito de organização tem subjacente a especificidade
das estruturas, que são a base das normas e regras de pertença e de funcionamento. Apesar disto o termo organização tem vindo a vulgarizar-se na área da acção
social pela divulgação do conceito de ONG acabando por incluir uma dimensão de cultura organizacional que não nos impede de recorrer também a este termo
em vez do termo instituição.

227
não tenha consciência de que fazem parte do que é enquanto pessoa. Por exemplo, o facto de ser mulher, a circunstância de
ser imigrante, a escolha de professar determinada religião.
O sistema-interventor é composto por um conjunto de agentes ou actores sociais que se institucionalizam em
organizações que prestam serviços sociais de proximidade e relacionais. O conceito de serviços sociais adoptado é o que foi
usado no programa de pesquisa realizado em França nos anos 1990 sobre as várias profissões e domínios de actuação da
intervenção social (Chopart, 2003) e que remete para a prestação de cuidados relacionais ou de proximidade.

5.2. A Intervenção Social nas situações de Violência Doméstica


Na sociedade portuguesa a intervenção sobre a violência doméstica ‘não tem sido pensada numa estratégia de
emancipação das mulheres’ (Magalhães, 2002:4) que envolve a finalidade de acabar com a opressão das mulheres e se
identifica com uma ‘consciência’ feminista. A intervenção na violência doméstica caracteriza-se por um predomínio de
concepções ‘relativamente caridosas, aparentemente neutras em termos de género e de classe’ e que identificam a violência
como má. Esta interpretação influencia o trabalho de intervenção reforçando o escamoteamento das questões de poder entre
homens e mulheres e a desvalorização da intervenção junto das comunidades, onde as relações de desigualdade se
materializam no quotidiano.
A interpretação da problemática da violência doméstica modificou-se substancialmente redefinindo-se à luz de um
paradigma criminal. Com esta alteração o que é socialmente representado como estando em causa é a garantia de direitos
humanos em relação à mulher; a responsabilização do comportamento agressivo e violento em relação ao agressor; e a
identificação do contexto da família e a comunidade, como promotores de bem-estar, ordem e paz social em todo o tipo de
relacionamentos (incluindo o familiar).
O estudo em profundidade sobre a violência contra as mulheres (Violence, 2006) conclui que em Portugal tem
existido um desfasamento entre o desenvolvimento da moldura legal e política e a sua implementação. As falhas na
implementação da legislação e no sistema de justiça contribuem para a persistência de violência. As melhorias na actuação do
sistema de justiça criminal, com a implementação de políticas adequadas de sentença e a detenção efectiva dos perpetradores
deste tipo de violência, transmitiria à sociedade uma mensagem clara de intolerância face a este comportamento. Estando
definindo como um crime deve ser objecto de uma actuação em conformidade com esta definição.
A falta de correspondência entre o ‘progresso legal’ verificado nos últimos anos e o grau de concretização das
medidas tem duas consequências: os direitos previstos são privilégios, correspondem a ‘esperanças’ (Rodrigues e
Stoer,1998:15) que ficam ao nível das expectativas e não da concretização efectiva; e a interiorização (publica) dos direitos
(sociais) básicos vai permanecendo adiada.
Os esforços desenvolvidos no âmbito local na adopção de directrizes nacionais e internacionais para erradicar e
lidar com as diferentes manifestações de violência contra as mulheres em geral e com a violência doméstica em particular
têm que ser reconhecidos. No entanto, a efectiva tradução do empenho político e as manifestações de vontade da sociedade
civil que se organiza para dar resposta a situações de violação grosseira dos direitos humanos mais elementares, não é fácil de
avaliar. Esta lacuna faz com que seja impossível afirmar até que ponto não se situa a acção ao nível das intenções e não se
mantêm os direitos no plano dos privilégios, sem controlo sobre a sua garantia.

5.3. Os Parceiros: Quem participa nas Parcerias?


Na actualidade, um dos desenvolvimentos mais significativos nas políticas públicas é o incentivo formal a um
aprofundamento do grau de organização da sociedade civil. Este envolvimento é apresentado como uma forma mais eficiente
de participar na concepção, desenvolvimento e avaliação das políticas. Por outras palavras, é apresentado como uma maneira
viável para participar.
Este conceito de envolvimento da sociedade civil é adequado num modelo de Estado com capacidade para
assegurar os direitos dos cidadãos. Partindo deste pressuposto, as organizações da sociedade contribuem para tornar efectivo
o acesso aos direitos.
O que se manifesta nas parcerias é que a iniciativa de mudança pertence ao sistema formalmente organizado para
prestar apoio à população nas situações de violência doméstica. Esta é a parte visível que se traduz numa representação em
arranjos institucionais que podem ser tomados como modelos únicos. A mudança pretendida, todavia, não se limita ao
sistema-interventor. A expectativa de mudança abrange o sistema-cliente e as comunidades (na representação social de
violência doméstica e na alteração de sistemas de poder).
O que parece estar em mudança é uma reafirmação do compromisso das pessoas e das organizações para com as
causas que defendem, para com a visão que têm para a sociedade e que procuram concretizar por uma via legitima nas
sociedades plurais e que implica constituir organizações para actuar no espaço público e exercer uma forma de acção política
especifica.
Organizar diversas entidades num sistema único implica (re)descobrir a identidade de cada uma (o seu papel,
posição e funções sociais); os valores que orientam a sua actuação; a trajectória que as conduziu até aquele ponto, lidando
com influências externas e factores incontroláveis para além das decisões internas; a identificação das forças mas também da
fragilidade e dos desafios que continuam presentes (alguns com dezenas de anos e aos quais é mais difícil dar resposta do que

228
a outros mais recentes); com processos de troca, de partilha e de comunicação que envolvem negociação e cedência,
produzindo efeitos sobre estruturas, modos de funcionamento e dinâmicas de atribuição de poder e de responsabilidades.
Observando a realidade político-institucional da sociedade portuguesa, a sociedade civil está muito presente. Na
área da acção social é, aliás, predominante em relação à Administração. Aprofundar o grau de organização significará, afinal,
criar rearranjos organizacionais. Mesmo assim, permanece a questão: aprofundado o grau de organização da sociedade civil,
aprofunda-se o grau de participação da sociedade civil?
A questão que se coloca é perceber como se realizam efectivamente ou se concretizam as orientações estratégicas
dominantes para lidar com a violência doméstica. A intervenção em parceria é uma intenção ou verifica-se efectivamente no
seu potencial de empowerment das mulheres realizando direitos humanos?
O modelo de empowerment serve a definição dos objectivos da intervenção psicossocial (Silva, 2001) e consegue
efectivamente associar-se à igualdade de género?

6. Procedimentos Metodológicos
A hipótese da associação entre mudança de paradigmas (de interpretação e de intervenção) é testada em diferentes
modelos de resposta a mulheres vítimas de violência doméstica, assentes em estruturas em rede.
Do universo de respostas formalmente organizadas para lidar com a violência doméstica seleccionaram-se as
parcerias, enquanto manifestações de arranjos institucionais e enquanto forma de intervenção social, implicando processos de
constituição, métodos e procedimentos de intervenção especificos. Cada parceria é tomada como um caso de estudo. Os casos
de parceria existentes em Portugal continental em Abril de 2008 foram todos incluídos (N=5). Os procedimentos de pesquisa
envolveram a pesquisa documental e a realização de entrevistas.
A parceria é entre as respostas comunitárias coordenadas aquela que faz parte de várias recomendações de
organismos internacionais e que é considerada uma boa prática de intervenção nas situações de violência contra as mulheres.
Nesta linha de orientações, o Governo português tem vindo a adoptá-la enquanto estratégia inscrevendo-a no Plano Nacional
contra a Violência Doméstica que está actualmente em vigor.

7. Os Casos de estudo
As parcerias possuem cumulativamente as seguintes características:
 a sua missão é dar resposta e lidar com situações de violência doméstica incluindo a intervenção social directa;
 a iniciativa de intervenção social está formalmente institucionalizada num protocolo que sustenta o processo de
colaboração; traduz o compromisso assumido pelas entidades signatárias; dota a iniciativa de carácter
organizacional; define as entidades que se constituem como parceiras e que assumem publicamente um objectivo
comum; atribuí-lhes um papel e funções sociais definindo-lhes um estatuto no seio da parceria e reforçando a noção
de interdependência;
 são parcerias activas, com prestação de serviços de atendimento e de acompanhamento no desenvolvimento de
processos de intervenção directa. Assim, excluem-se da análise situações de existência de um protocolo de
colaboração mas que não passa do plano da intenção; e situações em que existem processos de colaboração
denominados redes ou parcerias mas cujo referente é o encaminhamento da pessoa-cliente entre organizações sem
que estas promovam trocas efectivas entre si e/ou assumam publicamente esse compromisso (umas perante as
outras e perante a comunidade);
 a intervenção desenvolvida é de âmbito comunitário, o que implica uma delimitação precisa do território geográfico
da acção e significa que a origem (as raízes) das iniciativas se situa nas comunidades, independentemente da
entidade que teve a iniciativa no processo de organização.

7.1. Quais são as parcerias na resposta à Violência Doméstica?


A Rede de Apoio a Mulheres em Situação de Violência formou-se por iniciativa da Câmara Municipal de
Montijo. É composta por 17 parceiros, sendo 13 da Administração publica e quatro do sector não-lucrativo. A entidade de
suporte, que fornece supervisão e realiza formação é a Associação de Mulheres contra a Violência (AMCV). Tomando como
referencial o ano de 2008, a Rede tem sete anos de existência. O protocolo de colaboração é de 2005.
O Fórum Municipal de Cascais contra a Violência Doméstica é uma iniciativa da Câmara Municipal de Cascais.
É composto por 28 parceiros, sendo 15 da Administração publica e 13 do sector não-lucrativo (correspondendo à parceria de
maior dimensão). A entidade de suporte, que fornece supervisão, realiza formação e coordena estudos de investigação é a
Centro de Estudos para a Intervenção Social (CESIS). O Fórum Municipal tem 10 anos de existência. O primeiro protocolo
de colaboração é de 2004.
A Rede Inter-Institucional de Apoio a Mulheres Vitimas de Violência Doméstica é uma parceria cuja iniciativa
pertence ao Centro Social Comunitário Casa Nossa Senhora do Rosário (IPSS de cariz religioso integrada na ordem religiosa
das Irmãs Doroteias, situada na Figueira da Foz). A Entidade de suporte e que fornece supervisão é o Grupo V!!! (Violência:

229
Informação, Investigação, Intervenção). Esta rede é composta por oito entidades, sendo quatro da Administração publica e as
outras quatro do sector não-lucrativo. Este é o caso em que a parceria tem uma duração mais prolongada, com 17 anos de
existência. O protocolo de colaboração é de 2004.
O Grupo Violência: Informação, Investigação, Intervenção (Grupo V!!!) formou-se enquanto grupo de
investigação-acção. Institucionalmente é identificada com o Hospital Sobral Cid, em Coimbra, no entanto, a Faculdade de
Psicologia da Universidade de Coimbra e a Fundação Bissaya Barreto estiveram envolvidas na iniciativa a par com o
Departamento de Psiquiatria do Hospital. Esta parceria é composta por onze parceiros. O Grupo tem 13 anos de existência. O
protocolo de colaboração é de 2003.
O Grupo de Trabalho de Violência e Maus-Tratos é uma iniciativa do Departamento de Psicologia do Centro
Hospitalar de Torres Vedras. É composta por nove parceiros. Dos casos de estudo é o mais recente, com cinco anos de
existência. O protocolo de colaboração é de 2004.
O caso de parceria que não foi estudado é a Rede de Apoio Integrado à Mulher em Situação de Risco.
Esta Rede localiza-se na ilha de São Miguel, na Região Autónoma dos Açores.

7.2. O que mudou na intervenção social em parceria?

 Todas as parcerias adoptam definições de violência doméstica com base no género, inspiradas em definições
formais de organismos internacionais ou do Governo (adoptando a definição do Plano Nacional contra a Violência
Doméstica).
 Todas se propõem desenvolver a sua acção tendo como finalidade o empowerment das mulheres.
 Todas dirigem a prestação de serviços de apoio para as mulheres vítimas directas de violência doméstica,
justificando a opção com base na vulnerabilidade das mulheres e na insuficiência das condições disponíveis para que aquelas
possam ultrapassar situações de desvantagem associadas à situação de violência doméstica e que contribuem para a agravar.
 Todas definem os processos de intervenção e estruturam a acção em parceria a partir das necessidades tal como
são apresentadas pelo sistema-cliente.
 O planeamento da intervenção é realizado em reuniões de parceiros (sem a presença da vitima) sendo o caso
apresentado pelo profissional com qual o relacionamento se estabeleceu (podendo ou não coincidir com o profissional com o
qual a vitima estabeleceu o primeiro contacto com o sistema de apoio).
 Todas as parcerias orientam a sua actividade para o apoio à mulher vítima de violência conjugal. Em nenhuma se
verifica acompanhamento de crianças (vitimas directas ou vicariantes da violência infligida sobre a sua mãe). As Comissões
de Protecção de Crianças e Jovens são entidades parceiras nos casos do Fórum Municipal de Cascais contra a Violência
Doméstica e da Rede de Apoio a Mulheres em Situação de Violência. A intervenção junto de agressores não se verifica em
nenhuma parceria.
 Os serviços de apoio comuns a todas as parcerias são a intervenção na crise, o diagnóstico das necessidades das
vítimas; o acompanhamento; o planeamento da intervenção originando um processo pessoal.
 Todas as parcerias facilitam ou asseguram o acesso das vítimas de violência doméstica a um conjunto de serviços
pertencentes a diversos sectores.
 As forças policiais colaboram em todas as parcerias, no entanto, não são formalmente entidades parceiras em dois
casos (a Rede Inter-Institucional de Apoio a Mulheres Vitimas de Violência Doméstica e o Grupo de Trabalho de Violência e
Maus-Tratos). Os sectores da justiça e da saúde são os menos representados em todas as parcerias, apesar de as trocas com
magistrados do Ministério Publico se manterem informalmente, com carácter pontual, nos casos em que não fazem parte da
parceria. Em nenhum caso se verifica a presença de juizes. No sector da saúde, o envolvimento dos Centros de Saúde é
referido pelos dinamizadores das parcerias como mais fácil do que o envolvimento dos Hospitais e a participação de
profissionais de enfermagem e de serviço social é mais fácil do que a participação de médicos. O Instituto de Segurança
Social está presente em todas as parcerias.
 A participação das mulheres vítimas não se verifica nas parcerias, nem ao nível do planeamento da acção nem da
avaliação dos serviços prestados. O envolvimento das mulheres vítimas de violência doméstica que recorrem aos serviços de
apoio fornecidos em parceria circunscreve-se ao seu processo de intervenção pessoal. Este facto faz com que o empowerment
seja individual. A acção sociopolítica pode ser sustentada no conhecimento resultante da intervenção mas é sempre mediada e
representada pela organização e pelos profissionais.
 O impacto positivo das parcerias é assinalado pelos profissionais que fazem a coordenação das mesmas em
relação ao aumento da coordenação entre as várias unidades do sistema-interventor e da intervenção partilhada entre
profissionais e organizações do sistema-interventor. Isto significa partilha no planeamento do processo de intervenção e na
responsabilidade pelo seu desenvolvimento.
Teoricamente não deve esperar-se que a prestação directa de serviços às vítimas produzam diminuição da violência
na vida das mulheres. A não ser nas situações em que a avaliação da exposição ao risco implique uma intervenção imediata
com retirada da(s) vitima(s) da residência com afastamento físico em relação ao agressor (Sullivan, 1997). Este tipo de
intervenção requer recurso à actuação das forças policiais e uma colaboração eficaz do sistema judicial. Estes elementos
poderão contribuir para a diminuição do risco ao qual as mulheres estão expostas, controlando os níveis de segurança da

230
vítima e promovendo estratégias para que estes aumentem. Nas situações em que a avaliação de risco configura perigo
eminente, a protecção fornecida pelas casas-abrigo é um elemento importante. No entanto, esta não tem que ser a estratégia
de intervenção para todas as situações.
O que se verifica nas parcerias estudadas é que a actuação concertada das entidades judiciais tende a verificar-se
nos casos de emergência e que envolvem risco de vida. As parcerias não têm capacidade para responsabilizar directamente o
agressor. A ausência da actuação regular do sector da justiça das situações às quais é prestado apoio pelas parcerias ainda as
debilita mais neste domínio. Uma intervenção comunitária coordenada que, em complemento, responsabilize o agressor pelo
seu comportamento é a estratégia mais adequada para diminuir o risco de continuação do abuso (Sullivan, 1997).
Uma resposta limitada à vítima é necessariamente parcelar. Por ambas as vias, o efeito do esforço das parcerias na
intervenção em situações de violência doméstica pode estar aquém do pretendido e do potencial que as mesmas representam.
No domínio particular da intervenção envolvendo os agressores, a questão é perspectivada do ponto de vista dos
direitos ao questionar um agressor como ‘merecedor’ de intervenção (psicológica ou de outra natureza) e a opção de uma
intervenção orientada apenas para as vítimas em nome de um princípio de justiça social cuja interpretação é limitada ao caso
específico.
Na intervenção em situações de violência doméstica, o atendimento a vítimas é mais consensual do que o
atendimento a agressores (Manita, 2002). Manita diz que esta opção é mais fácil para o profissional, quer num plano afectivo,
quer cognitivo. Ao decidir que não assume esta intervenção não se responsabiliza pela mesma, ‘passando a pasta para o
domínio judicial sob o labelo de que estes indivíduos cometeram crimes’ (Manita, 2002:289) e não tem que lidar com
dilemas éticos. Esta acaba por ser uma opção ‘apaziguadora’.

8. Conclusões
As parcerias existentes para lidar com a violência doméstica representam processos de intervenção centrados na
vítima de violência doméstica. Na prática, fornecem apoio, informação, aconselhamento e acompanhamento psicológico e
social, contudo, não estão projectados para fazer diminuir a ocorrência de abusos por parte dos agressores nem têm
capacidade efectiva para garantir a segurança imediata para as mulheres e para as crianças.
O desenvolvimento de um sistema integrado, coeso e eficaz na intervenção em situações de violência doméstica
poderá passar por uma orientação mais centrada na comunidade e não tanto nos serviços. A actuação dirigida às pessoas
implica directamente a acção de entidades fundamentais na organização das sociedades e que são as únicas com capacidade
para gerar impacto colectivo na defesa dos direitos das mulheres enquanto bens juridicamente protegidos. A ideologia
subjacente à identificação da violência doméstica como crime público envolve duas faces: a intolerância da sociedade a
situações que configuram ofensas a direitos humanos elementares e o envolvimento da sociedade (das comunidades e dos
cidadãos) no impedimento de que estas formas de violência continuem a existir.
A mensagem da promoção e da necessidade de protecção constante dos direitos humanos é difícil de transmitir.
Sobretudo quando as sociedades se representam como tendo atingido níveis de desenvolvimento social satisfatórios. Também
quando se identificam com sistemas de organização democrática, assente no direito e nas garantias de liberdades para todos
os seres humanos.
Contando com um quadro de intenções que tem dificuldades em concretizar-se no plano quotidiano das relações
sociais e com um quadro de representações que dificilmente admite a existência de situações que são violações de liberdade,
autodeterminação, igualdade, bem-estar, a mensagem transmitida por quem possui poder de coerção não pode ser ambígua.
Neste sentido, a contradição entre o discurso e as práticas judiciais e entre a produção legislativa e a actuação do
Estado e dos órgãos da Administração constituem obstáculos reais à efectiva transição de privilégios de bem-estar social para
os direitos que compõem o bem-estar e que são direitos humanos elementares.

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Violência Psicológica contra a Mulher: Dor Invisível


Tânia Rocha Andrade Cunha
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
[email protected]

Resumo: A violência psicológica é toda ação ou omissão destinada a produzir sofrimento moral a outra pessoa. Essa forma de violência
causa danos irreparáveis na vida de uma mulher, pois ocorre lentamente, e é de difícil reconhecimento, na medida em que não deixa marcas
visíveis no corpo da vítima. Além de não deixar marcas aparentes, é tão sutil que pouco a pouco vai destruindo o bem-estar e a auto-estima
da mulher, criando um estado de confusão e incapacidade de reação e produzindo nela, sentimentos de ansiedade, insegurança, frustração,
medo, humilhação etc. Apesar desse sofrimento, é difícil acreditar que a mulher vitimizada faça algo para deter o abuso psicológico, que,
desafortunadamente, as próprias mulheres que o sofrem, permanecem nessa situação porque acreditam que a violência emocional não é
suficientemente séria ou daninha a ponto de necessitar de uma denúncia ou intervenção na relação. A violência psicológica pode ainda
despertar na vítima o sentimento de culpa, pois uma mulher que ama o companheiro, quase sempre não o identifica como uma pessoa capaz
de arquitetar ou praticar atos violentos que possam prejudicá-la. Assim, tendo como pano de fundo, leituras sobre gênero/violência e os
relatos de mulheres que sofrem violência na relação conjugal, este artigo pretende apontar as consequências da violência psicológica na vida
das mulheres, bem como suscitar reflexões que nos faça compreender as razões que dificultam às mulheres, romper os laços com os seus
agressores.

1- Introdução
A violência psicológica é toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano a outra pessoa, incluindo todas as
condutas que tenham como propósito ofender, controlar e bloquear a autonomia, o comportamento, as crenças e decisões do
outro. Pode ocorrer por meio de agressão verbal, humilhação, intimidação, desvalorização, ridicularização, indiferença,
ameaça, isolamento, controle econômico ou qualquer outra atitude que interfira nesse direito básico de autodeterminação e
desenvolvimento pessoal.
Escrever sobre a Violência Psicológica é um desafio, pois essa forma de violência está inscrita no campo da
subjetividade no qual se alojam os aspectos emocionais, espirituais, enfim, elementos que tem o caráter da invisibilidade.
Apesar de ser constituída de aspectos invisíveis, essa violência altera substancialmente a rotina das pessoas e, no caso
específico, das mulheres que a sofrem.
Ante o exposto, pretendemos realizar um estudo de caráter qualitativo com o objetivo principal de investigar como
a violência psicológica afeta a vida de mulheres que vivenciaram ou vivenciam relações conjugais conflituosas. Como
desdobramento desse objetivo, traçamos alguns objetivos específicos como: identificar as diferentes formas de manifestação
dessa violência; conhecer as causas e consequências da violência psicológica bem como identificar as prováveis razões para a
permanência de muitas mulheres em relações conjugais marcadas pela violência.
Visando alcançar tais objetivos, nos apoiamos em abordagens teóricas de autores como Saffioti, Arendt, Hirigoyen,
Walzer-Lang, dentre outros, que trazem importantes contribuições para a análise das questões de gênero e violência,
possibilitando-nos uma reflexão que nos permite repensar a condição da mulher na sociedade. Para a coleta dos dados

232
empíricos, entrevistamos 17 mulheres utilizando a técnica qualitativa da entrevista semi-estruturada, com um roteiro
previamente estabelecido. Utilizamos este recurso por compreender que, por meio dele, haveria garantia relativa de maior
objetividade, com flexibilidade e liberdade para explorar aspectos da experiência de vida não previstos no roteiro, mas
relevantes para o trabalho. Assim, a função do roteiro foi facilitar a conversa e não restringi-la.

2- A Violência contra a mulher: fenômeno histórico


A Declaração das Nações Unidas define a violência contra a mulher como “qualquer violência de gênero que
resulta em danos psicológicos, físicos e sexuais, incluindo ameaças, coerção ou de privação arbitrária da liberdade, seja na
vida pública ou privada” (UNITED NATIONS, 1993, p.6). Esta definição explica os tipos de danos que a violência pode
causar na vida das mulheres que convivem com ela, trate-se da física, da psicológica ou da sexual.
Segundo Grossi (1996), o fenômeno da violência contra a mulher não deve ser analisado considerando apenas os
atos individuais isolados. Essa violência é antes de tudo, reflexo da desigualdade social, econômica e política, que as
instituições sociais perpetuam, recebendo o reforço das ideologias sexistas, classistas e racistas. Apesar de todas as mulheres
correrem o risco de, em algum momento de suas vidas, sofrer violência, a dimensão da violência contra a mulher está
relacionada ao status social e grupo étnico-racial a que ela pertence, assim como a sua condição física.
De acordo com Carrillo (1997), estudos sobre a violência doméstica, baseados em informações de noventa
sociedades em todo o mundo, sugerem que existem quatro fatores que determinam fortemente a prevalência da violência
contra a mulher na sociedade: 1) desigualdade econômica entre homens e mulheres; 2) um padrão de sociabilidade que
implica o uso da violência física para resolver conflitos; 3) autoridade masculina; 4) controle da tomada de decisões e
restrições quanto à capacidade das mulheres para assumir sua própria vida e se desvincular da família.
Para esse autor, enquanto esses fatores podem parecer claros por si mesmos, frequentemente são camuflados pela
prevalência de mitos sobre a violência contra mulheres, tais como: a) o poder do homem sobre a mulher é parte inerente ao
sexo masculino e um exercício aceitável das prerrogativas masculinas; b) a violência contra mulheres tem o saudável efeito
de aliviar a tensão masculina, durante períodos de pressão; c) reflete uma tendência natural masculina para a agressão sexual;
que reflete a inferioridade das mulheres e seu desejo de que os homens as dominem; d) é uma característica inevitável e
permanente das relações masculino-femininas.
Numa cultura patriarcal como a que vivemos, esses fatores representam mitos, e os homens, são até mesmo
aplaudidos e estimulados a se comportar como donos do poder. Esses mitos são reproduzidos pelo senso comum como
justificativa para as agressões praticadas pelos homens contra mulheres, bem como contra crianças e contra adolescentes.
Como em toda parte, no Brasil, a violência de gênero está presente nas relações entre homens e mulheres, pois aqui
o homem tem a prerrogativa de ditar regras e exigir que as mesmas sejam cumpridas pelas mulheres. Esse é um tipo de
violência que se pratica corriqueiramente, como se fosse a coisa mais natural. Isto sem contar que, muitas vezes, as próprias
instituições, como a polícia e a justiça, decidem a favor de homens, considerando legítimas as atitudes de ‘castigo’ por eles
praticadas contra mulheres, quando estas deixam de obedecer a suas ordens.

3- Violência Doméstica
Em termos gerais, a violência doméstica consiste no abuso físico, sexual e/ou emocional de um indivíduo que
coabita no mesmo domicílio, independentemente da existência de parentesco, aí incluída a violência conjugal contra
mulheres. Podem ser vítimas deste tipo de violência, tanto empregadas domésticas - ainda muito encontradas entre as vítimas
de violência sexual cometidas pelos patrões, quanto afilhadas (os) e/ou agregadas (os).
Se o espaço da casa, como se refere Smigay (2000) é o lugar seguro para os homens, o mesmo não pode ser
afirmado com relação às mulheres e às crianças, pois os dados têm demonstrado que é na casa que essas pessoas correm o
maior risco. A sacralização da família e da casa, veiculada durante séculos pela ideologia, vem sendo desmistificada e, aos
poucos, vêm ganhando visibilidade os processos violentos que ocorrem em seu interior.
Como postula Saffioti (1997), esse caráter sagrado de que se reveste a família há muito tempo e o incontestável
poder do homem sobre a mulher e filhos, impedem as pessoas de denunciar a violência intrafamiliar e a violência doméstica,
praticadas em todas as sociedades.
Se a casa constitui o locus privilegiado do atendimento das necessidades básicas dos indivíduos, também é um
campo, no qual muitas lutas são travadas. Segundo Welzer-Lang (1998), a violência doméstica é, na maioria das vezes, a
forma individualizada que, no interior de cada casa, assume a dominação coletiva dos homens sobre as mulheres ou dos
adultos sobre as crianças.
O fator de risco mais importante para ser vítima de violência doméstica é ser mulher, já que aproximadamente 95%
das vítimas de violência doméstica o são, e os agressores dessas mulheres, na maioria das vezes, são os próprios
companheiros ou ex-companheiros. Bachman (1995) informa que, comparadas com os homens, as mulheres experimentam
10 vezes mais abusos de violência doméstica por seus companheiros íntimos.
Conforme Saffioti (2001), a violência de gênero bem como a violência doméstica não define o vetor da agressão,
muito embora sejam raros os casos de mulheres que agridem física e sexualmente homens do que o oposto. Existem mulheres
que podem fazê-lo, e certamente o fazem, verbalmente, o que não constitui sua exclusividade, pois homens também

233
procedem assim. Além da violência física, muitas mulheres sofrem com os maus-tratos causados pela violência sexual e pela
violência psicológica ou emocional, objeto deste trabalho.

4- A Violência Psicológica (ou emocional)


A violência psicológica é um fenômeno muito presente nas relações conjugais e se caracteriza por comportamentos
sistemáticos que seguem um padrão de comunicação, verbal ou não, com a intenção de causar sofrimento em outra pessoa.
Normalmente, essa violência começa com as tensões vivenciadas cotidianamente pelo casal: desemprego, problemas
financeiros, opiniões diferentes quanto à educação dos filhos, ciúmes etc. consideradas normais na maior parte dos
relacionamentos. Com o tempo essas tensões tendem a aumentar, passando às agressões psicológicas, violências físicas,
podendo chegar, até mesmo, às vias de fato.
A violência psicológica ocorre lentamente e é de difícil reconhecimento na medida em que não deixa marcas
visíveis no corpo da vítima. Entretanto, os danos causados por essa forma de violência são irreparáveis, a exemplo do caso
relatado por Maria Luiza, que durante muito tempo foi humilhada pelo marido por causa do seu cabelo. Ela dizia: “ele me
pirraçava porque o meu cabelinho era modesto, ralo, fino e enrolado”. Esse fato, aparentemente sem importância, somados a
outros aborrecimentos, trouxe consequências psicológicas sérias para a vida de Maria Luiza, deixando nela, marcas
profundas:
[...] Com o casamento eu adquiri uma fobia que se manifestou alguns anos mais tarde, através de medos, medos e
medos. Foi preciso um tratamento para curá-la. Eu tinha medo de ficar sozinha, medo de olhar no espelho, etc. (Maria
Luiza, 63 anos, 2o Grau).

Além de não deixar marcas aparentes, a violência psicológica é tão sutil que, na maior parte das vezes, a mulher
fracassa em reconhecê-la como tal, embora pouco a pouco vá destruindo o seu bem-estar e a sua auto-estima, criando um
estado de confusão e incapacidade de reação. Situação facilmente percebida na fala de Amélia que, mesmo insatisfeita com a
vida que levava ao lado do marido, não conseguia entender porque mantinha aquela relação. Ela relata: “com apenas dois
anos de casada o meu marido já tinha outra mulher e eu não sabia”. Nessa época ela brigou, reclamou, ele prometeu romper
com a mulher, mas, pouco tempo depois, ela descobriu que ele mantinha a relação. Dessa vez, ela se revoltou com o
comportamento do marido, e, como ela diz: “Peguei o revólver dele, botei na cintura e fiquei andando na porta da casa da
mulher esperando ele sair, até quatro horas da manhã. Foi Deus que ele não saiu”. Após esse episódio, ela falou para o
marido: “agora eu vou embora”, mas não foi, pois “tanto ele fez que eu fiquei”.
O casamento de Amélia, que durou mais de quarenta anos, manteve-se nesse mesmo ritmo. Não obstante as suas
reclamações e queixas, o seu marido tinha sempre outra mulher. E é por meio da sua fala e da sua experiência de vida que
tentamos compreender a condição dessa mulher que, como a maior parte das mulheres da sua geração, foi educada em uma
sociedade que via como natural o fato de o homem exercer o domínio na relação conjugal e ainda manter relação afetiva com
outra mulher. Tentando justificar seu comportamento de dependência afetiva e submissão, ela fala sobre a sua vida de casada:
“Eu não era muito de ficar reclamando, não. Eu ficava muito calada e não me considerava uma mulher submissa, me calava
porque fui criada assim”.
Nesse contexto, resgatamos a violência psicológica tomando como parâmetro as palavras de Hirigoyen (2006,
p.28), “não se trata de um desvio ocasional, mas de uma maneira de ser dentro da relação: negar o outro e considerá-lo como
um objeto.” Este comportamento tem a pretensão de obter a total submissão da mulher, o controle da sua vida e a
manutenção do poder. E é assim que podemos compreender o comportamento de Amélia.
Essa forma de violência tem um caráter tão sutil que nem sempre é percebida como violência por quem a sofre. As
razões que dificultam o reconhecimento da violência psicológica estão atreladas ao fato de que suas vítimas, em geral, sofrem
em silêncio; as suas feridas não são visíveis. Ana Lúcia relata a sua experiência:
A violência maior para mim era ele me anular como ser humano. Era não deixar que eu tivesse a minha identidade, que
eu desenvolvesse a minha personalidade, ele não deixar que eu tivesse o meu CPF, uma conta bancária minha, que eu
não pudesse ser essa pessoa, eu tinha que ser o prolongamento dele. Porque a coisa física passa, a agressão física passa,
ela pode depois ser esquecida, e isso não me marcou (Ana Lúcia, 53 anos, 2o Grau).

No Código Penal Brasileiro não existe artigo específico, criminalizando a violência psicológica. Mas, o crime de
lesão corporal (art. 129) inclui também a ofensa à saúde de alguém, portanto, à saúde mental. Isso se confirma por meio da
decisão judicial que reconhece que tanto é lesão a desordem das funções fisiológicas, quanto a das funções psíquicas, como é
o caso da vítima que desmaia em virtude de forte tensão emocional, produzida por agressão do réu. Assim, algumas vezes, é
possível enquadrar a violência psicológica no crime de lesão corporal, na parte que trata da lesão à saúde (MELO, 2001).

5- Formas de manifestação da Violência Psicológica:


Existem mulheres que nunca tiveram seus corpos marcados pela violência física. Todavia, seus direitos humanos
foram muitas vezes violados. Nem todos os homens utilizam a violência física para castigar as mulheres, no entanto, eles se

234
valem da violência psicológica para exercer o seu poder e destruir a auto-estima das vítimas por meio de: ameaças, medo,
controle, humilhação, desqualificação, intimidação, tortura entre outras.

Ameaças
A ameaça é uma face da violência psicológica que merece atenção especial, dada a sua importância e à repercussão
que provoca na vida das mulheres que a sofre. Esta forma de manifestação da violência psicológica é a segunda maior queixa
das mulheres nas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), no Estado de São Paulo. Em 1998, de um total de 240.128
atendimentos, foram registrados 36.653 casos de ameaças.
A mulher que sofre ameaças é mantida sempre com medo e em constante estado de alerta, pois ela não sabe se a
ameaça vai ser colocada em prática e quando isso vai acontecer. Ela é como um fantasma: invisível e amedrontador. A
ameaça estava sempre presente na vida conjugal de Maria Luiza e Cláudia:
No dia que meu marido saiu de casa, a última cena foi essa: ele falou que ia ao trabalho buscar o revólver para voltar
para me matar (Maria Luiza, 63 anos, 2o Grau).

Muitas vezes ele já me ameaçou. Ele diz assim: “Se você me colocar chifre ou se der ousadia a algum homem, eu lhe
mato” (Cláudia, 33 anos, 2o Grau).

Como uma das mais eficazes manifestações da violência psicológica, a ameaça consiste em manter a mulher-vítima
sempre com medo das atitudes do companheiro agressor, tanto em relação a ela própria, quanto em relação ao que ele possa
fazer contra seus familiares, sobretudo, seus filhos.
A antecipação de uma agressão pode fazer tanto mal à saúde mental quanto um golpe desferido contra a parceira.
Na experiência de vida das mulheres que contribuíram para a realização dessa pesquisa, as ameaças eram frequentes e tinham
um caráter de intimidação, pois além de serem dirigidas a elas próprias, algumas mulheres temeram pela vida de seus filhos,
que eram ameaçados como represália às suas atitudes. Experiência vivida por Ana Lúcia (53 anos, 2º Grau) e Cláudia (33
anos 2o Grau):
Um dia ele me falou que quando brigava comigo, sentia vontade de matar minha filha, e me pediu: “pelo amor de
Deus, quando eu brigar com você, fecha a porta do quarto da menina”. (Ana Lúcia,).

[...] Acontecia que, às vezes, eu me contrariava com alguma coisa e queria separar, então ele ameaçava matar as
crianças. Pegava um revólver cheio de balas, ficava dentro do quarto com as crianças dizendo que, se eu fosse embora,
ele ia matar as crianças.

A manutenção desse estado de suspense é uma dentre outras maneiras que o homem tem de garantir o controle de
todos os passos e atitudes da mulher. O que importa para ele é que o seu poder seja mantido sobre a parceira. Em nossa
pesquisa de campo, algumas mulheres, a exemplo de Cleide e Cláudia, se viam acuadas o tempo todo pelas ameaças verbais,
pelos telefonemas etc.
Ele não queria mais que eu tivesse amigos, não queria que eu saísse, não queria que vestisse determinadas roupas... E
eu com a minha ingenuidade achando que aquilo fosse normal, que o ciúme era normal, que o ciúme era por causa do
amor e tal... (Cleide, 44 anos, 3º Grau) .

Ele agora me controla pelo telefone. Me liga o tempo todo. (Claudia, 33 anos 2o Grau).

Existem outras formas de ameaças menos graves, mas nem por isso, menos nocivas feitas às mulheres como: a
ameaça de tomar os filhos, de negar dinheiro, de se suicidar, de procurar outras mulheres, de ir embora, etc., relatadas pelas
entrevistadas:
Ele é uma pessoa muito pão duro. Teve uma vez, que as meninas fizeram uma vaquinha para eu comprar um sapato.
(Juliana, 45 anos, 3o Grau).

Depois das nossas brigas ele entrava numa paranóia de que ia se suicidar. Muitas e muitas vezes, aconteceu isso. Ele
vestia um casaco, botava o revólver na cintura e saía de casa. Um dia depois voltava e dizia que tinha ido ao cinema
etc. (Ana Lúcia, 53 anos, 2º Grau)

Ameaça de ir embora, ele fazia sempre, era uma constante. Ele falava muito que ia embora, só falava, nunca agiu.
(Cecília, 62 anos 2º Grau)

Além das ameaças de ir embora, o marido de Cecília a ameaçava também pela não aceitação e pelo questionamento
de certas práticas sexuais (sexo oral) que ele exigia dela. Ele dizia: “se você não aceitar eu vou para a rua procurar mulher”.
Ainda muito machucada com a vida que levou ao lado do marido, Cecília externou esse sentimento dizendo: “Se (o sexo
oral) fosse uma coisa que estivesse dentro do meu querer, da minha vontade, eu faria, mas era uma coisa que ele estava me
obrigando a fazer. Não estava dentro dos meus princípios isto. E isso era uma coisa muito constante, sempre, principalmente
quando bebia”.

235
Tendo sofrido muitas formas de violência sexual, Cecília relata ainda, que, em outro momento, após sofrer um
aborto natural, ainda perdendo sangue, o seu marido quis ter relação sexual, como ela não aceitou, ele a derrubou fazendo
ameaças: “então eu vou para o mulherio, eu vou para o magasapo” (prostíbulo).
Cecília fala de sua vida sexual como algo que lhe causou muita amargura e sofrimento, não como algo prazeroso.
Podemos perceber na sua narrativa que as feridas abertas nesse relacionamento não foram cicatrizadas, mesmo após alguns
anos da morte do marido e tendo se casado novamente. Como ela mesma diz:
Hoje não consigo mais ter relações... E esse homem me aceita assim [...]. Eu sinto que ele tem necessidade de sexo,
porque ele ainda é forte, é novo ainda... Mas não há meio... Eu durmo na cama de casal e ele dorme na de solteiro. Já
tentei várias vezes. (Cecília, 62 anos 2º Grau)

Essas ameaças, tomadas separadamente, retratam uma situação que é bastante comum na vida dos casais, mas
quando passam a fazer parte do cotidiano e por um longo período de tempo, transformam-se em violência. E a violência
psicológica, como vimos, constitui um processo e obedece a um roteiro: “ela se repete e se reforça com o tempo”, tendo
como meta o aniquilamento total da (o) outra (o). (HIRIGOYEN, 2006, p.42).
A violência psicológica, ao cumprir esse roteiro de repetição e constância, tende a aprofundar a baixa estima das
pessoas que a sofre, provocando nelas um quadro de autodestruição, como a depressão, a tentativa e até mesmo o suicídio.
Cleide (44 anos, 3º Grau), na tentativa de dar um basta às repetidas acusações, cenas de ciúmes, bebedeiras e
agressividades protagonizadas pelo companheiro, decidiu tomar uma caixa de tranquilizantes para pôr fim à sua vida. Ela
mesma relata:
Eu cheguei ao ponto de tomar remédio pra morrer. [..,]Eu não morri por que eu dormi antes de acabar o remédio. Aí
quando ele chegou, eu estava desmaiada nas almofadas, e ele me levou para o hospital. Eu só me lembro de estar de
volta, em casa.

As consequências da Violência Psicológica como as que vemos no relato de Cleide são muito graves e deixam
marcas na vida das mulheres que convivem com parceiros violentos. Como consequência dessa situação, elas acabam
adquirindo doenças psicossomáticas ou tomando medidas drásticas contra si próprias como a que Cleide tomou.

Medo
Outra característica da violência psicológica é o medo. Este sentimento que paralisa a vítima, deixando-a ainda
mais vulnerável à violência. Para melhor entendermos este sentimento, é importante resgatar a afirmação de Arendt (1989): o
medo e a esperança são os sentimentos mais perigosos na vida do homem. O medo porque acua, impede que o ser humano
modifique suas ações, reduz a possibilidade de plasticidade; acovarda-o, fragiliza-o, e coloca-o na dependência e submissão
ao outro.
Esse é o retrato da vida conjugal de Cecília (62 anos, 2o Grau), uma mulher que apesar das constantes agressões
sofridas, conviveu durante 40 anos com um homem, que, segundo ela, mantinha sempre uma postura de segurança e
superioridade que lhe dava medo e a fazia sofrer. Sofrimento que era indiferente ao seu companheiro. Sobre esse medo que
sentia do marido, Cecília fala:
Era um medo tão grande que, quando o portãozinho fazia o ruído, que eu sabia que ele estava chegando, eu já estava
tremendo. [...] Eu fui violentada de várias maneiras. Em pequenos detalhes eu senti violentada a minha dignidade. No
fim, eu fui me perdendo, me perdendo, e aí veio o medo depois, de perdê-lo. Se eu o perdesse... Eu ficava perdida
(Cecília, 62 anos, 2o Grau)

Podemos perceber que o discurso de Cecília, contém, além do medo, uma enorme dependência afetiva em relação
ao companheiro, faceta da Violência Psicológica que remete à subjetividade, e como escreve Barros (2000), as marcas da
violência psicológica provocam feridas mais difíceis de tratar do que as deixadas pela violência física.
Ao definir o medo e a esperança, Espinosa (1973, p.59) nos permite compreender por que é tão difícil para as
mulheres agredidas superarem a violência. Para ele “O medo é uma tristeza instável nascida da idéia de uma coisa futura ou
passada, de cujo desenlace duvidamos em certa medida”. Segundo Espinosa, o homem tem três formas fundamentais de
afeição: desejo, alegria e tristeza, as demais são decorrentes dessas três. Já a esperança, ele define como “uma alegria
instável, nascida de uma idéia de uma coisa futura ou passada, de cujo desenlace duvidamos em certa medida”.
Dessa forma, tanto o medo quanto a esperança estão marcados pela dúvida, pela incerteza. Em relação ao medo,
desejamos que algo (a violência) não aconteça, mas, ao mesmo tempo, (a não violência), mas duvidamos do seu desfecho.
(Barros, 2000)
Assim, Espinosa conclui: “... não há esperança sem medo, nem medo sem esperança” (1973 p. 60). Essa
ambivalência que muitas mulheres vivem na relação conjugal é o contexto característico para a manutenção da mulher num
lar violento.
Para manter a mulher-vítima neste estado, o agressor pode usar palavras, gritos, simples olhares e expressões
faciais, mostrar ou mexer em objetos (como limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão etc.),
perseguir a mulher na rua ou no emprego, atribuir-lhe amantes, fazer comparações entre ela e outras pessoas, de modo e

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desvalorizá-la, fazer referência negativa a seu aspecto físico e a tudo quanto ela faça ou diga etc. O agressor pode, ainda,
fazer uso da sua estatura física (quando superior à da mulher) para intimidá-la e mantê-la sob o seu controle.

Controle
Forma de manifestação da violência psicológica encontrada pelo homem para manter sua parceira sob seu domínio.
A obediência da mulher às suas ordens é a maior demonstração desse poder. Situação que pode ser confirmada por meio dos
depoimentos de Maria Luiza e Lourdes:
Ele não me permitia nem trabalhar, nem estudar. Ele me proibia até de sair na porta de casa. (Maria Luiza, 61 anos, 2º
Grau)

Ele não queria de jeito nenhum que eu trabalhasse fora. Ele falava assim: “tem que comer feijão puro, mas é o que eu
dou, eu não como um grão de feijão que uma mulher põe dentro de casa”. (Lourdes, 59 anos, 1º Grau)

Humilhação
Essa é, talvez, uma das faces da violência psicológica mais presentes na relação conjugal, principalmente quando
nela a linguagem que vigora é a do desamor e do desrespeito. Neste tipo de relação já não há mais limite para as agressões,
pois o outro, no caso específico, a mulher, torna-se a válvula de escape da raiva do parceiro, que procura atingir seus pontos
mais vulneráveis, uma vez que, desfrutando de total intimidade com a vítima, sabe perfeitamente qual a melhor maneira de
atingi-los. O relato de Alice ilustra bem essa questão:
Ele me humilhava muito. Nas discussões ele falava que eu não tinha pedigree, que eu era de uma família de negros
alforriados, que eu não tinha emprego bom e nem ganhava dinheiro. (Alice, 43 anos, 3º Grau).

Nesse tipo de relação, o agressor corrói pouco a pouco, a auto-estima da mulher, anulando ou desclassificando suas
emoções, desqualificando tudo o que ela faz ou tenta fazer e ridicularizando-a, tanto no seio da própria família como nos
ambientes em que o casal costuma frequentar.
Juliana também experimentou muitas humilhações do marido, muitas delas, diante dos filhos, tanto que, segundo
ela, o seu relacionamento com o filho, até hoje, não é bom. [...] Ele se tornou o “clone do pai”. Segundo ela, o seu marido a
criticava muito:
Ele sempre tentava me diminuir... um dia minha irmã estava em minha casa e eu falei que a casa estava precisando de
uma pintura, ele respondeu: “eu não sei por que você quer pintura se eu tirei você de trás do matadouro”. (Juliana, 45
anos, 3º Grau)

Esses e outros tipos de comportamento são humilhantes para qualquer pessoa. Especialmente, quando existe um
laço afetivo entre os envolvidos. Ser deixada do lado de fora, como quando se fecha a porta para o cão não entrar e perturbar
a paz do ambiente. Era assim que Isabel se sentia, e o comportamento do seu marido em relação a seu sentimento era de total
indiferença.

Indiferença
Processo de afastamento e desinteresse por tudo que o outro deseja ou gosta de fazer. A maior demonstração dessa
forma de violência acontece quando um dos cônjuges torna-se insensível ou desatento para com a parceira ou parceiro. Isabel
(42 anos, 2º Grau), que viveu de perto essa situação, fala do comportamento do seu marido: “Ele era silencioso e indiferente,
e isso me matava, era como se eu não existisse, era como se eu não representasse nada ali, não valesse nada”. Em
consequência dessa indiferença, relata:
Eu chorava muito, às vezes perdia a noite com insônia e ele não estava nem aí. Se eu passasse a noite inteira fora da
cama, ele passava a noite inteira dormindo. Às vezes eu levantava e ia pra sala, bebia pra ver se conseguia embebedar e
dormir. Nada o abalava, ele era indiferente. (Isabel, 42 anos. 2º Grau)

Entendemos que a indiferença numa relação afetiva tem por objetivo o aniquilamento do outro. Nesse estado, a
pessoa passa a se sentir inútil, imprestável, pois tudo o que faz é visto com menosprezo e, muitas vezes, com certo desdém.
Na relação conjugal marcada por essa forma de violência, a mulher se torna invisível, pois é completamente ignorada pelo
parceiro. Suas tentativas de aproximação podem ser transformadas em motivo para o desencadeamento de mais discussões.
Alice também viveu de perto a indiferença. Uma indiferença que começou desde o início do casamento, com a
ausência de sexo na relação.
O sexo não existiu em nosso relacionamento, era uma coisa muito distante, muito distante, de ficar anos sem qualquer
relação. Passei uns três anos, quatro anos assim. Mas eu não queria me separar.

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Sempre que tentava conversar com o seu marido sobre essa questão e sobre a importância de ter um filho, que ela
tanto queria, especialmente por que entendia que já não poderia esperar, em função da idade, ele não dava importância e
continuava com a mesma postura de indiferença:
Cansei de chegar na sala chorando e pedir pelo amor de Deus para ele ir para a cama. Eu falava com ele: “você sabe
que eu estou no período fértil”, ele simplesmente virava para o outro lado. (Alice, 42 anos, 3º Grau)

Essa situação foi algo tão forte e tão marcante na vida de Alice que no inicio (início) do casamento ela pensou até
em pedir a anulação do casamento. Não teve coragem e no íntimo acreditava que a relação entre eles pudesse melhorar, mas
o tempo passou e a distância entre eles só fez aumentar. Durante o tempo em que permaneceu casada, esperou ansiosa pela
atenção do marido, “eu sentia muito a ausência dele”, mas seu marido estava sempre com o pensamento voltado para o
trabalho, para os problemas financeiros, fazendo-a se sentir ainda mais rejeitada:
Ele chegava em casa e só tinha o trabalho na cabeça. Chegava, comia alguma coisa e voltava para o sofá e dormia. Eu
queria engravidar, eu não podia mais perder tempo, então muitas vezes aconteceram de ele estar deitado no sofá e
quando eu ia sentar, ele gritava: “sai, sai, sai”. (Alice, 43 anos, 3º Grau)

Segundo Lieven (2008), a indiferença tem um poder devastador. Ela é a companheira doentia do dominador e
opressor, e também daqueles que preferem as desigualdades, a violência, o ódio e a morte. Os indiferentes, de uma forma ou
de outra, ferem, rejeitam, excluem, matam. Está correta a conclusão: o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença.

Desqualificação
Outra forma de violência psicológica que se manifesta por meio de palavras cruéis e atitudes mesquinhas e tem por
finalidade atingir a auto-estima da mulher, deixando-a se sentir pequena e sem forças para reagir. A desqualificação é uma
maneira que o agressor encontra de depreciar o jeito de ser da parceira, o seu físico, como ela se veste, tudo o que ela faz. É
também uma maneira de acusá-la de depressiva, de expressar dúvidas quanto à saúde mental etc. Alguns relatos se encaixam
nessa descrição:
Ele me considerava como um objeto, eu tinha que trabalhar e dar para ele. Ele sempre questionava por eu não saber
conduzir bem o negócio, não saber comandar uma equipe de trabalho, não saber me impor diante dos funcionários.
(Isabel, 42 anos, 2º Grau)

A violência maior era a crítica impiedosa que me levou a ter complexo de inferioridade, de me considerar incapaz
como mãe, como cozinheira, como parceira. De tudo ele desfazia e eu acreditava. No início eu absorvia tudo isso com
muita mágoa. (Maria Luiza, 61 anos, 2º Grau)

Intimidação
Essa modalidade de violência psicológica tem a intenção de ferir o outro por meio de atitudes como a destruição de
seus objetos pessoais: roupas, livros, maquiagens, animais de estimação etc,. Eventos dessa natureza acontecem com muita
frequência e para o agressor essa é uma maneira de punir a sua companheira, como demonstram os episódios vividos por
Cleide (44 anos 3º Grau), Ana Lúcia (53 anos 2º Grau):
Um dia, eu tinha saído para a casa da minha mãe e, quando voltei para casa, ele tinha rasgado todas as minhas roupas,
eu fiquei com a roupa do corpo. Justamente para eu não sair .

Ele era agressivo. Muitas vezes, ele chegava em casa e me achava maquiada, então, [...] pegava os batons e todas as
outras coisas, quebrava tudo, e ainda trazia para eu ver, rasgava minhas roupas, cortava de tesoura, porque eram curtas.

Tortura
No contexto da violência doméstica, a violência psicológica pode ter característica de tortura quando for movida
por objetivo definido da qual a vítima é o meio. Atrelada à dificuldade financeira, a tortura psicológica tem implicado sérios
problemas para as mulheres como: a dependência, o medo de não suprir as necessidades materiais básicas, o medo de não
conseguir suprir as demandas dos filhos para sobreviver etc.
Cleide vivenciou situações de violência psicológica que podem ser comparadas à tortura infligida a presos políticos.
Como ela mesma diz, eram cenas e mais cenas protagonizadas pelo seu marido, nas quais prevaleciam as ameaças constantes
para que ela não levasse adiante a idéia da separação.
Eu tinha medo que ele me matasse, porque ele falava: “Se você se separar de mim, eu lhe mato. Eu lhe mato e mato as
crianças também.” Isso me dificultava tomar uma decisão (Cleide, 44 anos, 3º Grau).

Juliana também experimentou um tipo de violência que pode ser considerada uma forma de tortura, pois nela o que
prevaleceu foi o medo, como pode ser observado:

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Todas as vezes que saíamos, a volta terminava em briga. As brigas mais escabrosas, coisas inimagináveis. Lembro-me
de uma vez que voltávamos para casa e ele sabia que eu tinha muito medo de velocidade, aí, então, ele imprimiu no
carro uma velocidade bem grande, para eu ficar com medo. (Juliana, 45 anos, 3º Grau).

Mackinnon (1994), ao tentar enfatizar o caráter político da violência doméstica, estabelece uma comparação entre a
violência doméstica e a tortura. Ela argumenta que se admite que o objetivo da tortura é controlar, intimidar ou eliminar
aqueles que criticam, desafiam ou colocam em risco um regime. Esse é tido como o princípio da tortura, enquanto
instrumento político.
A autora argumenta que a dimensão política da qual a tortura se reveste é um pretexto fácil para as práticas de
sadismo, as quais são políticas em si mesmas. E, quanto à violência contra mulheres, ela afirma que “[...] deve-se falar de um
sistema de violências exercidas por um grupo sobre outro grupo. É sobre este fundamento que se definem as regras em vigor
na vida em comunidade e que se distribui o poder na sociedade” (MACKINNON,1989, p.9).
Cláudia relata uma cena de tortura por desejar a separação:
[...] Acontecia que às vezes eu me contrariava com alguma coisa e queria separar. Então ele ameaçava matar as
crianças. Pegava um revólver cheio de balas, ficava dentro do quarto com as crianças, dizendo que, se eu fosse embora,
ele ia matar as crianças. (Claudia, 33 anos 2o Grau).

A situação de violência vivida por Cláudia se encaixa perfeitamente no argumento de MacKinnon (1994), no qual
ela afirma que o objetivo da tortura é controlar, intimidar ou eliminar aqueles que contrariam e que desafiam o poder
estabelecido. O castigo que Cláudia recebia por desejar a separação era em forma de tortura mental. De acordo com o seu
relato, a partir do momento em que as ameaças se tornaram constantes e que as atitudes do marido eram cada vez mais
descontroladas, ela passou a ter “pensamentos negativos e entrou em depressão”.
Devido ao medo e a angústia que vivia por não saber o que poderia acontecer a ela a aos filhos, Cláudia pediu ao
seu marido para retirar a arma de casa.
Ele tirou a arma de casa, mas, só que quando a gente brigava e eu ameaçava ir embora, ele passou a me bater, dava
murros em mim etc. (Claudia, 33 anos 2o Grau).

Marcus (1994, p.31), ao estabelecer um paralelo entre a violência doméstica e o terrorismo político, reconceitua a
violência doméstica como “terrorismo em casa”. Assinala que o terrorismo está ligado a “táticas bem desenvolvidas de
intimidação e coerção, reforçadas pela violência física”.
A autora afirma, ainda, que as reações das pessoas vítimas do terrorismo são diversificadas, embora possua uma
gramática própria: negação, seguida de racionalizações defensivas, e eventual internalização do terror. No caso da violência
perpetrada contra mulheres em relações conjugais, os efeitos são similares (ALMEIDA, 1996).
Retomando o paralelo estabelecido entre terrorismo político e violência doméstica, Marcus (1994) ressalta que os
alvos desses dois fenômenos divergem-se, basicamente, pelo fato de que a violência sofrida pelas mulheres não evoca
respeito nem simpatia; muito pelo contrário, faz surgir estereótipos fortemente culpabilizadores. Sob esse ponto de vista, a
autora atribui um caráter político à violência doméstica, enfatiza os seus efeitos devastadores e mostra que se trata de um
problema com ampla extensão, que conjuga violência física e psicológica, fazendo vítimas reais e deixando toda a população
como vítima potencial. (ALMEIDA, 1996).
A tortura é a violência perversa em seu estado mais bruto. Na relação conjugal, como vimos, ela equivale ao
terrorismo político, pois tem o poder de penetrar no espírito da vítima e corroer lentamente a esperança da mesma, a fim de
levá-la à autodestruição.
Os maus-tratos imputados às mulheres em seu cativeiro doméstico, como a humilhação, o isolamento, a privação de
sono, são tão angustiantes quanto a maioria dos métodos de tortura física. Essa forma de violência tem como objetivo gerar
medo e ansiedade na vítima, tirando o controle de sua vida e criando nela uma total falta de defesa.

6- Danos causados pela violência conjugal


Os danos provocados pela violência conjugal são devastadores. Eles deixam graves sequelas tanto na saúde física
quanto na saúde mental das mulheres e de seus filhos. Embora as consequências físicas sejam mais fáceis de reconhecer, as
de ordem psicológica são mais graves, pois as suas marcas residem na subjetividade da mulher e lidar com elas é sempre
mais difícil que com as marcas físicas que, em alguns casos, desaparecem.
Apesar de a violência conjugal ser um problema comum a muitas mulheres de todo o mundo e poder ser
identificado como um sistema cíclico. Este fato não implica que todas as mulheres-vítimas reajam da mesma forma aos
maus-tratos sofridos. Cada mulher é uma pessoa singular, com identidade e experiências próprias, ainda que tenham vidas
muito parecidas. A forma de cada mulher reagir ao problema da violência, mesmo que parecida com a das demais mulheres
vítimas, é sempre uma reação de cunho pessoal. Mesmo reconhecendo que a reação é uma questão individual, Antunes
(1998) afirma que é possível identificar alguns traços comuns a todas elas:

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- distúrbios cognitivos e de memória;
A mulher-vítima pode apresentar disfunções cognitivas sob a forma de recordações, pesadelos, dificuldades de
atenção e concentração, confusão mental, falsas crenças sobre si própria e sobre outras pessoas etc. Estas reações podem
trazer dificuldades, sobretudo, quanto à tomada de decisões. Essa situação pode ser observada no seguinte depoimento de
Maria Luiza (62 anos, 2º Grau):
[...] Se eu não aceitasse ter relação sexual, ele me agredia. Depois de algum tempo, passei a ter grandes enxaquecas,
vômitos, tudo em consequência do medo, do pânico, além da fobia que eu adquiri, que foi a coisa mais terrível para
mim nos últimos anos de casada. Durante muito tempo eu fiquei com a sequela do espelho.

- comportamentos depressivos ou de grande esquivamento;


A mulher-vítima desenvolve um estilo cognitivo pessimista, associado à depressão, tendo vergonha de revelar seu
problema a outrem; encontra-se muito confusa e emocionalmente fragilizada, sente-se culpada pelo que está vivendo, isola-
se, tem poucos relacionamentos sociais, desvaloriza-se enquanto pessoa, tem baixa auto-estima etc. Os relatos de Cecília e
Isabel ilustram esses comportamentos:
Eu era uma mulher que gostava de sexo, mas cheguei a ponto de não ser eu mesma, de fingir o que sentia. E é isso que
adoece a mulher, que mata. Hoje eu sou liberta para sentir, para fazer o que quiser, ao mesmo tempo eu sou
condicionada a um sentimento de culpa, a uma depressão, e a uma desvalorização de mim mesma de ter aceitado a
situação.

Às vezes, eu me achava culpada por tudo, planejava chamá-lo para conversar, pedir para me perdoar. [...] Houve vezes
até que eu pedi a ele que me ajudasse se eu tivesse errada, que ele procurasse sentar para conversar comigo, que eu
precisava muito da ajuda dele [...] (Isabel, 43 anos, 2o Grau).

O sentimento de culpa que muitas vítimas têm quanto ao fracasso da relação é também uma das consequências da
violência psicológica. A mulher-vítima, que ama o companheiro, quase sempre não o identifica como uma pessoa capaz de
arquitetar ou praticar atos violentos que possam prejudicá-la. Para ela, é difícil acreditar que o seu parceiro a faz sofrer
deliberadamente, fazendo-a sentir o sabor do poder que ele detém.

- distúrbios de ansiedade;
A mulher-vítima de violência fica desorganizada, torna-se altamente vigilante a quaisquer pistas de perigo, tem
fobias e ataques de ansiedade, tem sintomas psico-fisiológicos, associados ao estresse e à ansiedade como os de Maria Luiza
e Cláudia:
Era sempre: “vou matar você e as meninas”. Eu tinha muito medo, o revólver vivia cheio de bala e ele, alcoolizado. Eu
não fazia nada, só tinha medo e ficava acuada em cima de uma cama, com medo de acontecer qualquer coisa comigo e
com minhas filhas (Maria Luiza, 63 anos, 2o Grau).

Ele já usou meus filhos. Uma vez ele colocou todos nós no carro, apagou os faróis, e foi lá para a estrada de uma
cidade vizinha, andando na contramão, me ameaçando, dizendo que ia matar todo mundo. E meus filhos lá no meio,
vendo tudo isso (Cláudia,33 anos 2o Grau).

Outro tipo de distúrbio muito encontrado nas mulheres que sofrem violência conjugal é o sexual. O sofrimento que
elas experimentam na relação com o companheiro é tão grande que, muitas delas, chegam a desenvolver uma espécie de
aversão ao sexo e a acreditarem que são frígidas e incapazes de ter desejo sexual. Essa situação pode ser ilustrada pelos
depoimentos de Celeste e de Cecília:

Era uma violentação porque era uma abordagem direta, muito específica e utilitária. A afetividade não existia, o clima
não existia [...]. Quando eu dormia, ele vinha me abordar sem nenhuma palavra, sem nenhum carinho e eu me sentia
usada. [...] Uma vez eu o mordi de tanta raiva, no íntimo, tratava-se de rejeição. [...] Eu não aguentava me submeter a
uma relação sexual na qual não tinha afetividade nenhuma. [...] A partir daí, comecei a me enrijecer, [...] a me trancar,
me fechar e fui perdendo a minha individualidade, [...] fui perdendo a libido a ponto de pensar que eu tinha deixado de
ser mulher. Eu levei anos e anos acreditando que eu tinha entrado num processo de frigidez (Celeste, 55 anos, 3o
Grau).

Para Vieira (2001), a “confusão” sentida e vivida pelas mulheres vítimas de violência psicológica, está, muitas
vezes, no equivoco de “confundir” sentimentos como: desvalia, ódio, rejeição etc. Essa confusão é reforçada por outros
motivos como: o medo de enfrentar outra realidade que ela pensa ser mais difícil de alcançar; o medo da separação e do
divórcio; o medo de ter fracassado no casamento e não conseguir reconstruir a vida e, por fim, a possibilidade de ela
confundir-se no sentimento de culpa e perder-se no desconhecimento da autopunição ou autodestruição.
Segundo Melo (2001), quando as mulheres procuram os centros de saúde com problemas de saúde mental, tais
como ansiedade, depressão, disfunções sexuais, transtornos de alimentação, comportamento sexual de alto risco,

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comportamentos compulsivos, problemas múltiplos de personalidade etc., muitas vezes, eles sequer chegam a ser
identificados e, muito menos, sua ligação com a situação de violência é estabelecida, pois esta é vista como uma questão de
polícia. E quando se refere à violência psicológica ocorrida no âmbito da violência conjugal, torna-se tarefa ainda mais difícil
de identificar, em virtude de seu caráter cultural e privado.
A agressão psicológica normalmente é camuflada pela sutileza das relações intrafamiliares, mas causa sofrimento à
mulher e, Esse tipo de violência pode ainda levar essa mulher, acossada, maltratada, diminuída em sua auto-estima, a
reproduzir nos filhos, mesmo que involuntariamente e inconscientemente, todo o amargor, levando a manutenção, igualmente
perversa, deste tipo de violência para a vida adulta dos filhos (VIEIRA, 2001).

7- Porque muitas mulheres permanecem com os parceiros violentos?


Muitas pessoas ficam horrorizadas com o fato de que existem mulheres que suportam o sofrimento e a degradação
provocados pelo abuso, quando o que elas poderiam e deveriam fazer era pegar suas coisas e os seus filhos, quando tiverem,
e ir embora. Vista de fora, essa parece uma decisão fácil, entretanto, as razões que levam muitas mulheres a permanecer num
relacionamento violento são tão complexas e tão difíceis de serem compreendidas, que poucas conseguem explicá-las, até
mesmo para si mesmas.
Para Cunha (2007), essa é, talvez, a questão mais difícil de responder para as próprias mulheres e para quem estuda
ou tenta entender a problemática da violência conjugal. Por que as mulheres, apesar de viverem em condições tão desiguais e
estarem em constante estado de medo, permanecem com os parceiros violentos?
Apesar da violência que sofre, é difícil acreditar que a mulher vitimizada faça algo para deter o abuso. No caso dos
maus-tratos psicológicos, desafortunadamente, muitas vezes, as próprias mulheres que o sofrem permanecem voluntária e
silenciosamente nessa situação, por acreditarem que a violência emocional não é suficientemente séria ou daninha a ponto de
necessitar de uma denúncia ou intervenção na relação.
A partir dos estudos e das conversas com as mulheres da nossa pesquisa, muitas questões foram levantadas na
tentativa de explicar o porquê de as mulheres permanecerem em relações violentas, dentre as quais destacamos:
A dependência econômica: muitas mulheres são presas da situação econômica (vírgula) pois têm medo de perder
seus lares, suas contas no banco e quase tudo o mais, se abandonarem seus parceiros violentos; outras mulheres, por sua vez,
têm pouco ou nenhum acesso ao dinheiro. São mulheres que não trabalham ou encontram-se desempregadas, e o único
dinheiro de que dispõe é o do parceiro, quase sempre o suficiente para as despesas da família. Quanto mais pobre uma mulher
que sofre violência conjugal, menores são suas possibilidades de abandonar a relação, o que quer dizer, que quanto mais
presa a mulher estiver ao casamento, mais obstáculos ela encontrará para terminá-lo. Evidentemente, esta afirmação só pode
ser feita, porque, para efeito de análise, o fator dependência econômica foi isolado. Ocorre que a violência conjugal tem
múltiplas causas.
A dependência emocional: esta dependência faz com que a mulher suporte as agressões perpetradas pelo parceiro
na vida cotidiana. Elas costumam ser chantageadas e, frequentemente, cedem a essas chantagens, incapazes de reagir. Seus
sentimentos são mesclados entre a culpa, o medo e a vergonha. Muitas protegem o agressor e a relação, justificando o
comportamento violento do mesmo. Ao mesmo tempo em que sentem raiva por terem sido agredidas, elas sofrem com a
possibilidade de ficarem sós. O medo prevalece, paralisando-as. O relato de Cecília é uma expressão desses sentimentos:
Mesmo com a violência, eu não podia guardar mágoa, porque eu ainda ficava com medo dele sair. Esse era o meu
drama maior. [...] Eu tinha que aceitar tudo com medo de perdê-lo. (Cecília, 62 anos, 2o Grau).

A Onipotência das Mulheres: Existem mulheres que acreditam no velho sonho do poder transformador do amor.
Sentem uma emoção muito forte pelo parceiro violento, que ela chama de amor, e acredita, que se ela o quiser com todo seu
amor, o parceiro poderá mudar, transformando-se no homem que ela tanto deseja.
Eu senti assim, com uns dois anos de casada... ele era muito farrista, as amizades... ele não dava atenção nenhuma à
casa, de jeito nenhum. Ele saía, passava dias na rua, voltava. Ele jogava muito, bebia muito. Mas o problema pior foi
mulher. Ele era muito namorador. E eu ficava em casa, sempre na espera, achando que ia melhorar (Stella, 62 anos, 2o
Grau).

A Pressão familiar: mais uma razão para a mulher violentada em seus direitos humanos permanecer com o
companheiro agressor. Muitos pais costumam pressionar suas filhas para não denunciar o parceiro, alegando a importância da
manutenção do casamento e a preocupação com os filhos. Não é raro em situações de violência se ouvir dos pais e/ou de
pessoas mais velhas expressões de resignação: “casamento é isso mesmo”, “eu já passei por isso”, “ruim com ele, pior sem
ele”, etc. Esta situação pode ser ilustrada com o depoimento de Cecília:
Com uns seis meses de casada descobri que estava grávida de três, e aí falei para minha mãe: “Oh! Mãe eu não aguento
mais, estou sofrendo muito, não aguento essa prisão, [...] aí, ela falou: “agora é tarde, antes sofrer do que ficar
separada, você tem que aguentar o sofrimento”. Eu não encontrei apoio na minha família, porque naquela época uma
mulher separada não tinha valor. Ela falava:” (Cecília, 62 anos, 2o Grau).

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8- Ambivalência
Além destas questões, há uma outra razão que contribui para a permanência da mulher ao lado do parceiro violento:
a ambivalência. Nestas situações, a imagem do agressor está situada justamente no conflito entre a repulsa da violência e a
afeição que a mulher continua mantendo por ele.
A maioria das mulheres costuma falar de homens que são, ao mesmo tempo, “bons” e “maus”, parecendo não
perceber que os atos de violência que são perpetrados contra elas, não são fatos isolados, mas que estão inseridos na dinâmica
da relação que configura a vida do casal. O mesmo homem que desrespeita, humilha, ameaça e bate na sua companheira, é
também o que afaga, sustenta, protege, é bom profissional, bom pai e bom amante, como podemos verificar no relato abaixo:
Ele bebia muito, ele tinha seus vícios, mais era muito trabalhador. Vicio não empatava ele de ganhar dinheiro. Hoje,
ele tem um patrimônio bom. Se não servir para mim vai servir para os filhos (Amélia, 72 anos, 2o Grau).

Segundo Moreira, et al. (1992), essa ambivalência, presente na maior parte das relações afetivas, parece ser um dos
elementos que dificultam o enfrentamento da violência. As virtudes e qualidades do parceiro, isto é, o seu lado positivo
alimentaria a esperança, quase sempre presente nas mulheres, e reforçaria o medo da perda. De um lado, as características
positivas parecem ter a finalidade de justificar as atitudes do parceiro violento, fortalecendo na mulher a esperança de
mudança, tanto do companheiro quanto do relacionamento do casal. Estas características estão diretamente atreladas à
sociabilidade: ao respeito que o homem violento inspira na comunidade; à sua boa reputação profissional ou ao papel que ele
desempenha como bom provedor e como bom pai, a exemplo dos casos apresentados:
[...] Ele é muito inteligente, extremamente competente. Ele é um homem que desperta a admiração da mulher. [...] Era
o protótipo do homem sério, maravilhoso, trabalhador, bem sucedido. Então, na separação, todo mundo apoiou ele e
quiseram me crucificar. Como é que ela larga um homem daquele, que é maravilhoso? (Ana Lúcia, 53 anos, 2o Grau).

Por outro lado, esse mesmo homem, portador de qualidades e capaz de comportamentos considerados socialmente
sadios e bons, é também portador de características negativas, que dizem respeito a dificuldades emocionais. Algumas
mulheres descrevem essas dificuldades, tomando por referência uma linguagem psicológica, definidoras desses
comportamentos, como resultantes de traumas, dupla personalidade, alcoolismo, etc. Essa interpretação, segundo as autoras
citadas acima, retira a culpa do agressor e, ainda, confere ao seu comportamento um caráter de impulsividade, de
inconsciência (“parece outra pessoa”), inocentando-o da responsabilidade de suas ações:
[...] Acho que meu ex-marido foi muito cedo para a Marinha, deve ter sofrido assédio sexual muito grande de homens,
porque eu não acredito que o seu comportamento fosse normal. [...] Ele era sozinho, bonito e jovem. [...] Eu deduzo
que muito do comportamento dele tenha sido consequência da sua passagem pela Marinha (Maria Luiza, 63 anos, 2o
Grau).

As características positivas, bem como as negativas do homem violento, parecem proteger as mulheres das
dificuldades em romper a relação violenta, ao mesmo tempo em que reafirmam na vítima a capacidade de perdoar, de
compreender e de suportar as adversidades da relação. Nesse contexto, os agressores ganham traços de vítima: doentes,
descontrolados, impulsivos, perdem a cabeça, vítimas de si mesmos, etc.
Outra razão que mantém muitas mulheres presas ao agressor é a vergonha. Muitas se envergonham de ter que
informar sobre algo que elas mesmas têm permitido que se mantenha. Essas mulheres, em geral, sofrem de problemas
emocionais, de baixa auto-estima e de uma incapacidade para estabelecer limites.

9- Considerações Finais
Embora a violência conjugal constitua o tema mais amplo deste trabalho, tomou-se especificamente como objeto
deste estudo a violência psicológica, isto é, aquela modalidade específica de violência que provoca graves repercussões na
saúde mental da vítima. A violência psicológica é sutil, suas marcas não são visíveis e as testemunhas desses eventos tendem
a interpretá-los como resultado de conflitos entre pessoas de personalidades fortes, que se desentendem por razões que fazem
parte do cotidiano de qualquer casal. Pode-se considerar que essa forma de violência, silenciosa em sua essência e vivenciada
pelas mulheres casadas no dia-a–dia, é ainda muito pouco considerada.
A violência doméstica, em que pese todos os avanços conquistados pelas mulheres, apresenta, ainda hoje, um
quadro estarrecedor. Essa forma de violência enfrentada por muitas mulheres na relação conjugal é vista, cada vez mais,
como um sério problema de saúde pública, além de constituir violação aos direitos humanos.
A violência doméstica, seja física, sexual ou psicológica perpetrada contra a mulher pelo parceiro ou ex-parceiro é
um fenômeno transversal, atinge mulheres de todas as idades, de todos os níveis de escolaridades, de todas as raças/etnias e
todas as camadas sociais, em âmbito mundial. É um grave problema social porque diz respeito às condições nas quais se
desenvolve a vida cotidiana de milhões de casais, a qualidade de suas relações e à maneira como constroem a dinâmica
familiar.
A partir dos relatos ouvidos, constatamos que as mulheres entrevistadas sofreram as mais variadas formas de
manifestação da violência psicológica como ameaças, ciúmes, indiferença, controle, etc. Constatamos também que, embora

242
sofrendo violências, o tempo médio de convivência dessas mulheres com os companheiros foi de dezenove (19) anos e
algumas razões contribuíram para que elas permanecessem nesse tipo de relação.
Para algumas mulheres entrevistadas, o fator mais importante para a sua permanência ao lado do marido era a
questão financeira, pois elas se preocupavam muito com o fato de se separarem e não garantir o sustento da família. Como
disse Juliana: “Eu tinha medo que o meu salário não desse para eu viver, e passar fome”. Para outras mulheres, a dificuldade
maior estava no fato de que ainda nutria a esperança de a relação melhorar. Dentro delas, esse desejo e os poucos momentos
vividos em “lua de mel” com o companheiro, certamente, reascendiam nelas a esperança de voltar a ter uma relação conjugal
estável. Medo de ser uma mulher separada, medo de ficar só, medo de ter que tomar as decisões sozinhas, medo da violência
e dependência afetivo-emocional, também foram motivos que dificultaram o rompimento dos laços conjugais.
Outra razão que contribuiu para a manutenção de algumas mulheres ao lado de parceiros violentos foi a
ambivalência, isto é, a imagem de respeito que o homem inspirava na comunidade como bom profissional e bom pai e a de
parceiro violento que no ambiente doméstico, agredia a mulher. Das 17 mulheres entrevistadas, 13 se separaram. Notamos,
aí, que essa foi a única saída encontrada pela maior parte das mulheres e que elas só romperam os laços após esgotar todas as
possibilidades de reconstruir a relação.
De acordo com Taube (1992), mesmo nos casos de extrema violência ou abandono existentes, tanto na favela
quanto entre os mais abastados, muitas mulheres encontram grandes dificuldades em decidir pela separação.
Indiscutivelmente, a violência agride a identidade das mulheres, bem como provoca nelas instabilidade orgânica e
mental. A violência na relação conjugal significa que foram rompidos os laços afetivos, não necessariamente dos dois
membros do casal, pois muitas mulheres continuam amando seus agressores, mesmo que racionalmente elas preferissem não
ter este sentimento. Quando a relação atinge este estágio, é porque as desigualdades entre eles alcançaram o ponto de não-
retorno.
O impacto da violência psicológica é múltiplo e profundo e, como já foi dito, difícil de ser reconhecido,
principalmente quando o agressor é alguém que pertence ao ciclo de convivência da vítima e por quem ela aprendeu a
relacionar-se afetivamente, pois, nesse caso, “as mensagens contidas na violência psicológica têm valor de verdade e, por
isso, fragilizam psicologicamente a mulher” (Barros, 2000, p.142).
Assim, concordamos com Chesnais (1981), que diz que o constrangimento e humilhação produzidos pela violência
psicológica tornam a violência doméstica oculta. A mulher, além de sofrer a violência perpetrada por alguém que ama e que
supostamente a amava, ainda é constrangida pela censura social das pessoas com quem convive, pois ao invés de mostrarem-
se indignados com a violência e censurarem o agressor, transferem essa indignação à própria violentada.
Considerando a importante relevância social deste tema, acreditamos que seja necessário um olhar mais atento do
Estado, por meio da criação e desenvolvimento de políticas públicas voltadas para o combate da violência, bem como para a
implementação de uma assistência mais adequada às vítimas dessa violência, além de uma maior implicação dos
pesquisadores no que tange ao desenvolvimento de estudos e pesquisas em torno desta problemática, almejando identificar o
que ocorre com as mulheres vítimas de tal violência, especialmente a violência psicológica.

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A imbricação entre a violência física contra a mulher e a posição que ocupa na


organização familiar
Joseneide Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]

Hilderline Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]

Eduardo Cruz
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]

Carlos Eduardo Araújo


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]

Resumo: Esta pesquisa teve por objetivo investigar a imbricação entre a posição que a mulher ocupa na organização familiar em relação à
violência física que sofre de seu companheiro. Na coleta de dados, utilizou-se de observações diretas, entrevistas abertas e formulários junto
às mulheres que deram queixa policial na Delegacia Especializada de Defesa da Mulher em Natal-RN. Os dados da pesquisa revelaram que é
ainda bastante expressiva a violência física contra a mulher, apesar do esforço e a cobertura empreendida sob a forma da lei que vem sendo
implementada nas últimas décadas no contexto brasileiro. No tocante aos nexos relacionais da imbricação entre a violência física contra a
mulher com a sua posição na organização familiar destacaram-se as discussões sobre o direito à liberdade, autonomia e ao reconhecimento da
participação da mulher na esfera familiar. Esses aspectos relacionados a partir da análise dos discursos das mulheres entrevistadas são os
elementos conflituosos que aparecem camuflados na desculpa socialmente aceita de que a dependência química, a falta de emprego do
companheiro, a condição econômica da mulher são os maiores causadores da violência, o que concorre para fragilidade das análises sobre a
violência física contra a mulher.

Introdução
Esta pesquisa teve por objetivo investigar a imbricação entre a posição que a mulher ocupa na organização familiar
em relação à violência física que sofre de seu companheiro. Na coleta de dados, utilizou-se de observações diretas,
entrevistas abertas e formulários junto às mulheres que tiveram audiência/entrevista e outras que prestaram a queixa policial
na Delegacia Especializada de Defesa da Mulher [DEAM], localizada no município de Natal, do estado do Rio Grande do
Norte, Brasil, no período março a dezembro do ano de 2000. A população investigada foi dividida em dois grupos pelas
categorias: um grupo formado por mulheres (agredidas) que trabalhavam e o outro grupo de mulheres (agredidas) que não

244
trabalhavam. Os nomes utilizados nos depoimentos são fictícios, exemplificam as percepções de algumas mulheres, as quais
foram imprescendíveis para a investigação e a partir deste, originou uma segunda fase do projeto de intervenção social no
âmbito da DEAM junto às mulheres e aos seus parceiros que voluntariamente participaram das atividades.

1.1 Mulher, Gênero e Família


A partir da década de 1980, com a ampliação dos espaços de pesquisa na área das questões femininas, os estudos
ganham um enfoque mais analítico com o intuito de compreender as relações entre o masculino e o feminino, buscando
resgatar a construção social e histórica, as práticas e representações nas relações de gênero, que se expressam nas relações
entre homem x mulher, mulher x mulher, homem x homem com a ênfase dada aos papéis; a construção da identidade de
gênero; a inclusão da questão da sexualidade; as diferentes formas de masculinidade e feminilidade, etc. O recorte está mais
voltado para os aspectos subjetivos e suas relações com a objetividade das relações.
O enfoque de gênero possibilita analisar as relações em suas diversidades históricas e culturais diferentes, bem
como em tipos de sociedades e regiões, assim como em situação de classe, cor/raça, idade. Nestes termos, há uma
ultrapassagem dos estudos sobre a “mulher” para as “mulheres” no conceptual das relações de gênero.
Na área de estudos sobre a violência contra a mulher, segundo Grossi (1998), existem pelos menos quatro
tendências diferentes: A primeira deriva da escola neo-evolucionista que inclui várias teorias, dentre elas a marxista, e aborda
questões sobre a desigualdade, a opressão, a subordinação a partir de um viés evolucionista. A segunda escola compreende as
abordagens culturalistas, que distinguem sexo de gênero, apontam as diversidades culturais do planeta e as diferentes
concepções de feminino e masculino em distintos grupos. Esta vertente inclui também a corrente da história das
mentalidades e do cotidiano, corrente francesa influenciada pelo pensamento de Michel Foucault. As teorias feministas
usadas no Brasil têm inspiração em uma mistura da visão culturalista com o evolucionismo marxista, porque ambas lidam
com a reflexão sobre a mudança cultural. Tem-se também uma terceira escola, a chamada escola estruturalista, que vê a
problemática de gênero a partir de alguns pontos, como por exemplo, a proibição do incesto e o dualismo feminino e
masculino.
Por fim, temos a quarta escola, chamada de pós-moderna, bastante lida e criticada no Brasil, que chega ao campo
de gênero principalmente a partir de alguns estudos literários que preferem ser chamados de pós-estruturalistas, para falar da
desconstrução das categorias ocidentais de pensamento. Esta escola é a que mais tem produzido uma reflexão sobre gênero,
segundo a autora supramencionada.
No caso brasileiro, quando lidamos com a violência contra a mulher, ou melhor, com as minorias de modo geral,
não podemos negar a origem de um país com uma formação burguesa fundada no patriarcalismo - capitalismo - escravocrata.
Esta simbiose, segundo Saffiotti (apud Silva, 1992), traz no seu seio configurações convergentes na base política, econômica,
cultural e ideológica em sua constituição social, produzindo valores, símbolos e representações bem particulares, que foram e
ainda são vivenciadas no cotidiano das vidas das pessoas.
Nesse sentido, a violência física é, para nós, apenas uma das expressões de uma violência maior que está alicerçada
nas relações assimétricas de poder entre gênero, constituindo um jogo ambíguo de poderes, entretanto, com uma forte dose de
desigualdade entre o homem e a mulher, a qual é socialmente aceita, devido aos padrões, normas, símbolos, ideologias e
crenças, que são repassados através das instituições (escola, família, cultura popular, etc.).
A família é um dos redutos de violência, por ser uma construção histórico/cultural e, portanto sofre modificações
tanto em termos de divisão de papéis, direitos, deveres, membros constituintes quanto em termos de valor. Não existe um
modelo único ou mais correto de família, existem na verdade diversas formas de organização, sendo a família
formada/estruturada de acordo com as necessidades dos indivíduos nos variados momentos históricos, podendo coexistir num
mesmo momento modelos de famílias diferentes.
A família nuclear burguesa era o modelo de família predominante em nossa sociedade, começa a delinear-se a
partir do séc. XVIII. Segundo Szymaski (1997, p.24), o processo se deu através do “surgimento da escola, da privacidade, a
preocupação da igualdade entre os filhos, manutenção das crianças junto aos pais e o sentimento de família valorizado pelas
instituições (principalmente a Igreja)”. Esse tipo de família é formado pelo pai, mãe e filhos morando debaixo de um mesmo
teto, tendo como característica básica a hierarquia entre os seus membros e uma delimitação de espaço, oriunda da divisão
sexual e etária do trabalho, sendo o espaço doméstico o da mulher e o público destinado ao homem, cabendo a este uma
autoridade e poder maior na família.
Segundo Romanelli (1995), a autoridade masculina neste modelo hegemônico funda-se nas relações de parentesco
(pai-marido) com os outros membros da unidade familiar. No fato de ser o único ou principal provedor financeiro e no
caráter institucional de representante da unidade doméstica. É uma autoridade considerada natural, assim como o papel
desenvolvido pela mulher e pelo homem e os atributos a eles conferidos. A mulher por sua vez também possui uma
autoridade (de mãe e de esposa), só que esta aparece de forma complementar e subordinada ao do marido, sendo a mesma
legitimada pelo seu saber acumulado a respeito das tarefas domésticas.
A família nesta forma de pensamento possui uma íntima relação com o parentesco, podendo este advir da relação
estabelecida através do casamento, da relação pai-filho, mãe-filho e da relação entre irmãos, sendo a família o local de
concretização destes vínculos. Dessa forma a família pode ser visualizada como uma unidade biológica formada pelo marido-
mulher e seus descendentes.

245
Lévi-Strauss (apud Sarti, 1995, p.41) ultrapassa essa visão da família biológica ao visualizar o sistema de
parentesco como um todo o instituindo como um fato social e não como uma unidade biológica. A família deixa então seu
caráter natural, como elemento essencial de sua formação e entra no terreno da cultura, isto é, o fundamento da família sai da
natureza biológica do homem e passa a centrar-se em sua natureza social, constituindo as famílias a partir de alianças
formadas entre os grupos.
Se atentarmos para o tipo ideal de família adotado pela nossa sociedade e a multiplicidade de organizações
percebidas que fogem em alguns aspectos relacionados à sua estrutura ou as regras de sociabilidade, podemos distinguir
então, assim como Szymaski (1995), uma família pensada de uma família vivida. A família pensada está no nível do ideal é
aquela formada a partir da união legítima entre um homem e uma mulher do qual resultam o nascimento de filhos, existindo
entre os mesmos um conjunto de normas que estabelecem a relação entre seus membros ressaltando um caráter hierárquico.
A respeito da família pensada Gomes (apud Szymaski, 1995, p. 25) afirmou:
Uma união exclusiva de um homem e uma mulher, que se inicia por amor, com a esperança de que o destino lhes seja
favorável e que ela seja definitiva. Um compromisso de acolhimento e cuidado para com as pessoas envolvidas e
expectativa de dar e receber afeto, principalmente em relação aos filhos. Isto dentro de uma ordem hierárquica
estabelecida num contexto patriarcal de autoridade máxima que deve ser obedecida a partir do modelo pai – mãe –
filhos estável.

A família pensada impõe, portanto, um conjunto de normas, valores, crenças e padrões emocionais que devem ser
acatados pelos indivíduos que a compõe. Devido às solicitudes da vida infringem essas regras/normas, então, a família passa
a ser vista pela sociedade como desestruturada.
A família vivida segundo Szymaski (1995), é como ela se apresenta na prática do dia-a-dia. Não necessariamente é
formada pela união de um homem e uma mulher, nem pelo princípio de consanguinidade. O princípio básico é a existência de
uma ligação afetiva entre as pessoas que a compõem, assim como o cuidado de um para com outro. A família vivida é
fundada no compromisso entre seus membros, existindo também um princípio de hierarquia nas suas relações, só que com
possibilidade de mudança de protagonista.
Outra característica importante neste tipo de família é que não é mais norma o homem estar no alto da escala
hierárquica, isto é, apesar de essa estrutura familiar continuar hierarquizada, o poder e a autoridade podem ser deslocados
para outros atores, assim como podem também ser mais bem distribuídos.
Convivemos em nossa sociedade com uma gama de rearranjos familiares com características organizacionais -
estruturais diferentes do modelo padrão de família burguesa nuclear, mais que nem por isso devem ser percebidas e tratadas
como desestruturadas /fragmentadas. Para isso torna-se necessário deslocarmos o foco da estrutura da família e voltarmos
nossa atenção para a qualidade das relações estabelecidas entre os componentes nos diversos modelos de família. Devido ao
fato de que é na base da estrutura familiar, tendo como norma o padrão da família nuclear burguesa, que se levanta a questão
de que está acontecendo uma crise na família ou uma desestruturação familiar.
Sarti (1995), para explicar as mudanças ocorridas na família utiliza como fio condutor o princípio da
individualidade. O que ocorre segundo a autora é que, ao contrário das sociedades tradicionais, nas sociedades modernas há
uma valorização da dimensão da individualidade, o que por sua vez põe abaixo o direito do indivíduo de não ter escolha, de
somente acatar ao já estabelecido. O princípio da individualidade na família trás em si um desafio que é o de compatibilizar
os interesses individuais de todos os componentes da organização com o interesse coletivo de manutenção da convivência em
grupo.
Nesse ínterim, ocorrem conflitos, mais podem ocorrer também acordos e alianças que darão um novo sentido às
relações familiares tornando-as mais democráticas tanto no que diz respeito à tomada de decisões quanto à divisão dos papeis
e responsabilidades dentro da esfera do lar.
O fato das mulheres contribuírem financeiramente para manutenção do lar lhes conferiu uma nova posição na
estrutura familiar. Primeiro, devido à queda dos sustentáculos da autoridade masculina, que se centrava no papel de chefe de
família (único ou principal provedor), possibilitou uma ampliação significativa da autoridade feminina no que diz respeito ao
seu papel de esposa. Segundo, ao adentrarem a esfera pública, antes só destinada aos homens, a mulher passa a exigir que
eles compartilhem com elas afazeres e responsabilidades domésticas, ocorrendo então um redimensionamento da divisão
sexual do trabalho, contribuindo para uma relação mais equilibrada entre os sexos.
Entendemos que a entrada da mulher na vida pública além de influenciar a relação conjugal, incentiva também às
mulheres a lutarem pelos seus direitos trabalhistas e políticos, lhe dá condições de rever seus papéis, questioná-los, lutarem
pela sua ampliação, e acima de tudo põe em cheque a supremacia masculina e seu poder exercido na esfera privada. De
acordo com Lopes (1994, p.12): “[...] a mulher coloca em perigo não somente as relações sociais de poder mais amplamente
estruturada, mas, acima de tudo põem em cheque as relações mediadoras de poder exercidas pelo homem”.
O movimento feminista também teve uma participação importante nas mudanças de posicionamento da mulher
frente à família e à sociedade, pois foi o grande responsável pela publicização da questão da mulher, questionando o caráter
hierárquico das relações estabelecidas entre homens e mulheres, abordando questões a respeito da sexualidade feminina,
lutando pela igualdade entre os gêneros e denunciando violências e discriminações sofridas pela mulher tanto no âmbito
público quanto no privado.

246
Se mudanças ocorreram nas formas de sociabilidade da família, muito mais ocorreram na sua composição/estrutura.
De acordo com Goldani (1993) as mudanças deram-se em termos de número, tamanho e organização interna.
No que diz respeito ao número de unidades domésticas, do início da década de 1970 até o final da década de 1980,
este pulou de 18,4 para 36,6 milhões, aumento que pode ser associado a um aumento no número de pessoas casadas como
também ao crescimento do número de unidades chefiadas por mulheres viúvas, separadas e divorciadas com filhos.
Quanto ao tamanho, neste mesmo período ocorreu uma diminuição de 22% (cerca de uma pessoa em média por
domicílio), fator este que se deve a queda da fecundidade e da mortalidade, a viuvez e as separações e divórcios. Ao mesmo
tempo em que ocorreu um decréscimo no tamanho das unidades domésticas, ocorreu também um aumento no número de
pessoas exercendo atividades lucrativas para complementar a renda familiar.
Levantamentos realizados pelo IBGE, demonstram que o tipo de família constituída por casal com filhos, vem
sofrendo desde década de 1970 para cá um decréscimo, ao mesmo tempo em que aumentam o número de outras formas de
organização familiar, destacando-se a família constituída por mães e filhos (unidades monoparentais chefiadas por mulheres)
e as unidades unipessoais (caracterizadas como não-família).
Segundo Lopes (1994) o crescimento da organização formada por mãe e filhos deve-se, em grande parte, a entrada
da mulher no mercado de trabalho, o que lhe proporcionou uma maior autonomia e favoreceu a ultrapassagem de valores
tradicionais que tem o casamento como modelo de vida mais adequado à mulher. Outro fator está relacionado ao crescimento
do índice de desemprego que tem deixado à margem significativas parcelas de homens pais de família, o que macula o seu
papel de provedor, na medida em que este já não consegue suprir as necessidades básicas de sua família, gerando por sua vez
conflitos na esfera doméstica podendo redundar em separações/divórcios, ficando a mulher com a guarda dos filhos. Têm-se
ainda como fatores a viuvez, a “produção independente” e o fato de as mulheres optarem por formas de vida doméstica
independentes da figura masculina, seja a do pai ou a do marido.
Oliveira (1996) aponta também como mudança o significativo aumento da proporção de famílias conjugais
originadas de segundas núpcias de um ou de ambos os cônjuges e de famílias recombinadas onde os cônjuges trazem filhos
de relacionamentos anteriores para fazerem parte do novo arranjo.
A partir de todas essas transformações por que vem passando a família, tanto em termos de relações entre seus
membros como em termo de composição/estrutura, podemos dizer que, ao contrário do que alguns autores colocam, a família
não está em crise, ela permanece sob novas roupagens, acordos e recombinações mais condizentes com as necessidades
apresentadas pelos indivíduos que a compõe.
O que está em crise, portanto, é o modelo hegemônico de família nuclear burguesa. Lopes (1994, p.17) a respeito
das mudanças colocou: “A família ainda se mantém, mas sob outros acordos e novas alianças, recombinando-se numa
diversidade de relações que cresce proporcionalmente ao número de negociações entre homens e mulheres e entre eles e seus
filhos”.
Dessa forma, o território familiar é um lugar de conflitos e de interesses que exige de cada indivíduo que compõe
essa estrutura a introjecção de formas alternativas de relações, onde não seja preciso anular ou desmerecer o direito e a
liberdade de escolha e de decisão do outro.

1.2 Organização Familiar e Violência


Na esfera da divisão de responsabilidades e direitos na organização familiar, verifica-se a preponderância de
aspectos arraigados no padrão societário burguês, conforme o gráfico 01.

247
GRÁFICO 01
OPINIÃO DAS MULHERES NO TOCANTE A DISTRIBUIÇÃO DAS
RESPONSABILIADES NA ESFERA FAMILIAR

Sim
95,0%
As vezes
100,0% Não
80,0%
90,0%

80,0% 60,0%
55,0% 55,0%
70,0%
Percentuais (%)

60,0% 45,0%
40,0%
0,0%
50,0% 0,0%
25,0%
40,0% 20,0%
20,0%
30,0%
5,0% 0,0%
20,0% 0,0%

10,0%

0,0%
Contribuição econômica da Educação e cuidados com os Os serviços domesticos são Tem autonomia para resolver Tem liberdade de sair com
mulher em casa filhos são realizados realizados conjuntamente questões sem o companheiro amigos (as) sem permissão do
conjuntamente presente companheiro

Discriminação das Atividades

Fonte: DEAM - Natal/RN -

Mesmo a mulher contribuindo economicamente para a manutenção material da família, assumindo em alguns casos
mencionados pelas informantes o total provimento da família, elas não detém o mesmo nível de direitos da esfera pública,
principalmente no que concerne dentre vários aspectos, a liberdade/autonomia de saírem sozinhas sem a permissão de seus
maridos/companheiros para ambientes festivos por exemplo.
Das mulheres pesquisadas, 95% afirmaram que tal conduta de controle por parte de seus companheiros acontece de
forma mais sutil e em outras de forma mais declarada, gerando discussões entre o casal pela falta de confiança depositada na
mulher por parte de seus cônjuges. Sobressaem-se ainda neste dado, o fato das informantes quase sempre em suas falas
relatarem/questionarem a individualidade do marido/companheiro, em ter uma vida social fora da família sem a sua
participação.
Demonstrando o caráter da relação estabelecida entre o público e privado nas relações de gênero, apesar da
conquista de muitas mulheres neste aspecto, há ainda uma violência permeando estas relações que se traduzem em visões
preconceituosas contra as mulheres, sejam através de uso de violências explícitas (física) ou na forma de repressão verbal ou
moral.
Outra questão visualizada se refere a pouca participação masculina nos afazeres domésticos, 80% das informantes
afirmaram que seus maridos/companheiros não colaboravam com ela nestas atividades, preponderando-se desta forma os
limites educacionais impostos no processo de socialização e aprendizado de gênero, onde o homem está direcionado para o
público e as mulheres ao setor doméstico, onde lhe cabe realizar todas as atividades já que este é o seu território, onde ela
desenvolve as suas habilidades domésticas ditas “naturais”. Esse pensamento conflui para a separação entre as esferas
público e privado, no âmbito da valorização do trabalho, ou seja, a produção e reprodução do trabalho são espaços
condicionantes para a formação de gênero na sociedade burguesa.
Mostra ainda, por outro lado, que a mulher avançou em termos de romper com os papéis tradicionais, pois estão
ensejando-se cada vez na esfera produtiva formal, enquanto, boa parte dos homens está resistindo às mudanças de participar
na esfera doméstica, principalmente em uma realidade de capital periférico, como é o caso brasileiro. Nos países mais
desenvolvidos já ocorre uma divisão mais igualitária, ou ainda as condições econômicas favorecem as mulheres em terem
eletrodomésticos, pagarem serviços a terceiros para manutenção dos cuidados domésticos. Neste sentido, a cultura modifica
essas relações a partir das próprias mudanças do contexto sócio-econômico. Contudo, não se pode esquecer que as mulheres
continuam a ser os atores mais relacionados com a socialização das crianças, apesar de ocorrerem incentivos de práticas
pedagógicas na escola, nos meios de comunicação a favor das relações de gênero mais democráticas.
Mudar o padrão/papel deste homem tradicional significa mudar a educação inicial dada aos filhos, bem como
superar a falta/deficiência da participação masculina na criação dos filhos. Estes são os principais fatores que dificultam
mudanças mais significativas nas relações de gênero.
Em relação à participação masculina nos cuidados com os filhos, 55% das informantes colocaram que ocorreram
algumas mudanças neste aspecto, pois seus maridos/companheiros estão participando com elas nesta responsabilidade. Já
25% colocaram que não é sempre que eles participam da educação dos filhos. Esse quadro de resistência da participação dos

248
homens na educação dos filhos é repassado pela cultura, principalmente nas regiões em desenvolvimento, como no Nordeste
do país em que as heranças conservadoras são mais registradas no seio da cultura.
Quanto mais avançado for o processo produtivo mais ocorrem alterações no meio urbano que favorecem as
mudanças nos padrões societários de aprendizado de gênero. Não são apenas esses pontos que concorrem para essas
mudanças, mais estes influenciam diretamente às famílias. Contudo, a própria dinâmica de carga horária de trabalho do casal,
dificulta esse quadro. Hoje as famílias jogam à educação dos filhos mais para as escolas que é segundo Scott (1990), outro
campo institucional de reforço da construção da identidade de gênero que precisa ser trabalhado para democratizar ainda
mais no futuro as relações entre homens e mulheres no geral.
Outro aspecto do gráfico 11 que consideramos relevantes foi que 55% das informantes colocaram que na esfera do
lar só possuem poder de decisão em algumas questões, e outras destacaram, com (45%) que não têm poder para resolver
nenhuma situação mais séria em casa sem a permissão de seu marido/companheiro. Essa questão representa bem o
conservadorismo das relações de gênero no interior da família, mostrando que apesar dos re-arranjos familiares estarem
acontecendo, o padrão de domínio ainda está fortemente ligado à presença masculina no que tange ao poder nas decisões de
caráter mais abrangentes relacionadas à família. Podemos apresentar de forma ainda mais didática essa questão a partir das
falas representantivas dessas mulheres que participaram deste estudo como informantes da pesquisa. Elas demonstram
melhor os conflitos no plano conjugal e a posição que ocupam na família, aspectos que quase sempre são motivos para
iniciarem as brigas e violência entre o casal, e por fim, resultam no uso da violência física direta por parte de seus
maridos/companheiros contra elas para fazer calar ou parar a iniciativa e/ou posicionamento da mulher, principalmente
quando esses são contrários aos dos seus maridos/companheiros. Ou seja, quando não há uma abertura para o dialógo, o uso
da força física é prepoderante contra as mulheres. E socialmente, a mulher é ainda acusada pela comunidade mais próxima ou
pelos parentes em muito casos como as causadoras daquilo que lhes acontecem. Naturalizando-se assim, a violência física
contra à mulher.
O resultado da pesquisa nos permitiu identificar três tipos de posicionamento feminino frente à organização
familiar. Em primeiro lugar está um grupo de mulheres que trabalham e reivindicam a divisão das responsabilidades
domésticas e da educação dos filhos, lutando também por uma maior liberdade e pelo reconhecimento de seu papel de
provedora. A seguir seguem-se dois depoimentos, dentre os vários relatados na pesquisa, enfocando este tipo de
posicionamento.
Não estou satisfeita com a divisão de papeis. Eu faço tudo sozinha, desde os serviços da casa. Ele tem direito de sair e
quando é a minha vez ele recrimina dizendo que não é coisa de mulher de bem. Não aceita minha posição e é
exatamente isso que faz com que a violência aconteça. Ele quer que as decisões seja ele que as tome, não aceita minhas
reclamações e não conversa comigo (Depoimento de Rosa)

Ele vai para uns cantos e não me leva, sai com os amigos e eu fico em casa, também não sai com os filhos (...) ele diz
que não coloco nada dentro de casa, ele não está vendo que tudo que pego é pra dentro de casa? (Depoimento de
Francisca).

Percebe-se nos depoimentos dessas mulheres que elas estão buscando um relacionamento mais igualitário com seus
cônjuges, chamando/exigindo do homem sua participação em responsabilidades tidas socialmente como exclusivamente
femininas.
Essa busca começa a partir do momento em que começam a questionar alguns direitos possuídos pelo homem,
como, por exemplo, sua liberdade de frequentar o espaço público, de dar a palavra final nas decisões e etc. O que está por trás
é a assimetria dos papéis contidos no modelo de socialização fundado nos moldes da família patriarcal que estabelece o
espaço público como domínio dos homens, seu território, assegurando-lhe total superioridade frente às mulheres,
estabelecendo uma desigualdade/hierarquia entre os papéis.
Em outros depoimentos ficou claro que ao adentrar o mercado de trabalho, a mulher se deparou também com outro
problema, que se traduziu no fato de alguns homens terem se retraído do seu papel de provedor, transferindo para a mulher
mais uma responsabilidade. Observe o depoimento: “Só eu coloco alimento dentro de casa, dificilmente ele coloca alguma
coisa. Quando peço qualquer coisa a ele, ele pergunta pelo meu dinheiro [...] queria que ele combinasse comigo para
comprar, mais ele fica em casa, vê faltar às coisas e não compra nada”. (Depoimento de Aparecida).
Segundo os depoimentos, essa postura assumida pelas mulheres gera conflitos entre o casal, pois por um lado a
mulher questiona seu lugar e exige relações mais democráticas no lar e por outro lado, o homem visualiza isso como uma
ameaça a sua soberania na esfera doméstica, já que vê o seu poder ameaçado pelos questionamentos e reivindicações das
mulheres, e ainda mais, pela precarização do seu espaço de participação aviltrado na esfera pública produtiva.
A precariedade dos papéis entre a posição da mulher e do homem na sociedade vêm dando novas funcionalidades
nas relações de gênero. Uma delas, é que a família pode ser sustentada sem a provisão do homem-econômico, provedor
principal, e nesse tipo, a mulher representa os dois papéis na manutenção da família. Por outro lado, isso nega a idéia de
família desestruturada, como motivo de muitos problemas sociais, segundo o padrão burguês de explicação sobre a crise atual
da sociedade. Ao mesmo tempo, em que engendra alterações profundas com a mudança dos papéis masculino e feminino
provenientes de suas próprias contradições oriundas também do universo econômico e cultural.

249
Em segundo lugar, concentram-se um grupo de mulheres que se posicionaram de forma mais subalternizada,
dependem economicamente do marido/companheiro, não exercendo nenhuma atividade lucrativa (com exceção de uma
mulher, mas que se encaixa neste tipo).
Essas mulheres aceitam bem os seus papéis de dona de casa, mãe e esposa, bem como as suas limitações, elas não
questionam a forma como estão divididas as responsabilidades/ deveres com os seus cônjuges, pelo contrário, elas exigem
dele seu papel de provedor, já que cumprem com o seu de boa mãe, esposa e dona de casa. Esse ‘cobrar’ do outro o
cumprimento de sua responsabilidade de provedor é acatar o papel tradicional de que apenas os homens devem ter
responsabilidade com a família, e em alguns casos, negam a própria condição de maior abertura feminina. Segundo Neto
(1980), as mulheres, assim como os homens introjectam papéis conservadores, autoritários com elas próprias, dificultando a
sua emancipação no plano político e social. A partir dessa visão, revela-se o posicionamento mais conservador das relações
de gênero baseadas na manutenção dos papéis tradicionalmente articulados, destacou-se três depoimentos, dentre outros que
relatam essas questões:
Não estou satisfeita, pois ele não me dá nada para comprar minhas coisas pessoais [...]. (Depoimento de Maria).

Só não estou satisfeita por causa da bebida, senão, não tinha nada a reclamar. Pois ele não deixa faltar nada dentro de
casa. Ele bota as coisas dentro de casa, mais isso não é suficiente, pois ele me esculhamba. Ele é um homem bom,
nunca deixou eu passar fome com meus filhos, mais quando bebe [...]. (Depoimento de Joana).

Me satisfaço com a forma como estão dividas as responsabilidades/ direitos/deveres, se ele não fosse agressivo não
teria problema, não me incomodaria de me vestir da forma como ele quer, como também de não poder sair de casa com
amigas/vizinhas [...]. (Depimento de Cristina).

O que se revela nessas falas? Partimos da compreensão de que essas mulheres não colocaram em relevo a sua
situação de subordinação econômica ou de condutas frente aos agressores, mas questionam nas entrelinhas: por que sou
agredida se não coloco em questão a vontade dele em dirigir a minha vida? A necessidade de romper com a violência começa
a fazer eco e sentido mesmo neste grupo de mulheres que tradicionalmente aceitam um papel menos significativo
economicamente no interior da relação, não é isso, o principal para elas, mas o fato de não mais aguentarem serem
violentadas fisicamente. Pode parecer frágil, mas o nosso argumento é que essa visão rompe com aquela velha máxima de
que a subordinação econômica da mulher leva a ela aceitar mais a violência sofrida por seus maridos.
Elas na realidade da pesquisa, não questionam o fato de dependerem economicamente do marido, elas questionaram
é o fato de aceitarem o mecanismo da submissão cultural e ainda assim, são violentadas.
Outra questão denotada, é que algumas mulheres ao mesmo tempo em que denunciam a violência sofrida pelos seus
cônjuges, tentam justificar, por outro lado, as atitudes do agressor, classificando-os como bom pai, bom provedor colocando a
culpa na bebida. O último depoimento citado, no entanto, foge a regra no que diz respeito ao fato de a mulher não trabalhar,
porém, exemplifica muito bem que a subordinação da mulher é muito mais cultural do que econômica.
E isso é mais vísivel no depoimento a seguir, em que outra informante que trabalha, possui certa independência
financeira do seu cônjuge e, no entanto, recebe ainda recursos do parceiro, não questiona a divisão dos papéis, mas sente falta
de liberdade para se vestir ou sair de casa sozinha, se não fosse à agressão ela estaria satisfeita com a forma de sua relação.
Me sinto satisfeita em alguns aspectos e em outros não. Me satisfaço por que ele suprir tudo dentro de casa e eu tomo
conta das coisas dentro de casa, no entanto, sinto falta de maior liberdade. Ele não me deixa fazer um curso, trabalhar,
fazer ginástica etc. Ele me dá tudo, tudo que eu compro ele paga, por ele suprir todas as minhas necessidades acha que
devo ficar debaixo dos pés dele. É como se ele procura-se cada dia mais espaço para crescer e eu ter que diminuir. Ele
acha que as mulheres que trabalham, fazem curso e ginástica, passam chifre no marido e querem vadiar. (Depoimento
de Isabel).

Em último lugar vem um terceiro grupo, compreendendo mulheres que em alguns aspectos assemelham-se ao
primeiro grupo e em outros, ao segundo tipo. As semelhanças com o primeiro grupo correspondem basicamente à
reivindicação por maior liberdade em sair de casa, em estudar, trabalhar, frequentar à casa de parentes e vestir-se como
quiser.
Com o segundo grupo assemelham-se por que dependem economicamente do marido/companheiro e não
questionam a divisão das responsabilidades na esfera doméstica. Abaixo destacamos um depoimento que reflete este tipo.
Não estou satisfeita por que ele me bate. Ele tem liberdade de sair com os amigos, beber e eu não tenho. Quer que me
vista da forma como ele quer, ele reclama se eu visto um vestido ou calço uma sandália. Quer que eu use somente tênis
e calça. Quando saio com ele e com as crianças, tenho que vestir a roupa que ele escolher [...] ele se confia que eu
tenho quatro filhos dele e não tenho para onde ir [...]. (Depoimento de Celeste)

O questionamento que essa mulher levanta é baseado na dicotomia entre o público e o privado na relação de
gênero, mais precisamente, há um questionamento da liberdade que o homem tem de sair, se vestir, trabalhar, beber, etc e ela
não.
Há uma evidência cultural que cada vez mais as mulheres tendem a se rebelarem contra os cercos dominadores que
as impendem de ter maior autonomia e liberdade, e isso passa necessariamente pela refinição cultural do poder na relação
conjugal, bem como, na sociedade.

250
Considerações Finais
Concluímos que a partir desses três tipos de posicionamento detectados, podemos considerar que a violência física
contra à mulher independe dela trabalhar ou não. Ou seja, o argumento econômico da subordinação como fator principal de
aceitação e/ou de convívio com a violência por um tempo maior não têm base de sustentação sólida por si só.
Percebemos durante o período de convívio (que foi de um ano) na DEAM, ouvindo as queixas, reclamações das
mulheres, que um dos aspectos centrais sobre violência física contra à mulher tem como base fundamental a dominação
cultural-ideológica que se apresenta no plano econômico por ser mais fácil detectar as diferenças de poder quando observado.
No entanto, ficamos diante de diversos tipos de mulheres, seja em sua situação econômica, e as mais atingidas
economicamente também revelaram a necessidade de romper com a violência por um sinal de sua indignação contra seu
opressor, que culturalmente se coloca e historicamente é aceito sua prevalência, e cada vez mais está em suspensão esse
poder.
E numa abordagem geral há por trás uma impotência de ser reconhecida pelo ‘outro’ em termos de autonomia, de
pode manifestar as suas opiniões, de ter liberdade e de repartir igualitariamente os deveres e os direitos, tanto nos espaços da
esfera pública e da privada. Essa é nova face da reinvidação da mulher contra a violência, é uma luta pelo seu espaço de
reconhecimento, assim, as agressões físicas espelham a luta física e cultural que está acontecendo no interior das relações
conjugais.
Ou seja, é o movimento de violência que também revela enquanto fenômeno o outro lado, da libertação das
mulheres, elas estão denunciando cada vez mais que querem um mundo privado e público menos opressivo às mulheres,
como membros integrantes da sociedade.
Assim, a posição que a mulher ocupa na sociedade está diretamente ligada à violência no lar, seja por ela lutar,
reivindicar e não aceitar mais os padrões estabelecidos socialmente, ou seja, por estar aprendendo a queixar-se mesmo
conservando alguns valores contrários a sua própria emancipação pessoal e coletiva, pois isso é parte do movimento da
contradição dialética.
Esses aspectos foram trabalhados no processo de coleta de dados com o intuito de relacionar alguns pontos de
conflitos de gênero no interior da organização familiar, percebemos estes dados como comuns nas queixas das mulheres
atendidas na Delegacia, onde boa parte delas reclama da desigualdade dos papéis, da falta de reconhecimento por parte de
seus companheiros/maridos.
E suas queixas apontam também para as mudanças que começam a brotar na relação conjugal, a partir de
questionamentos por parte das mulheres que estão percebendo a sua condição na sociedade, e em relação ao outro. Forjando
nesse processo conflituoso, um novo ser ‘mulher’, um novo ser ‘homem’.

Referências
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Carvalho (Org.). São Paulo: Editora. Cortez, (pp. 23-27).

251
Os discusos que construiram as mulheres brasileiras, africanas e portuguesas
Ana Maria Colling
UNILASALLE
[email protected]

Resumo: Ser mulher no Brasil, em Portugal ou no continente africano carrega das marcas da cultura ocidental falocrática. Os discursos que
nomearam os gêneros de Aristóteles a Freud inculcaram profundamente a preponderância do masculino e a subordinação do feminino. Abrir
os discursos, mostrar como e quando foram arquitetados, desconstruí-los, tem sido uma tarefa árdua e difícil. Trabalhar com a história das
mulheres exige que nós a entendamos como uma invenção – política, social, cultural. Se as mulheres, e também os homens, são
simplesmente um efeito de práticas discursivas e não discursivas, como nos ensina Michel Foucault, reconhecer os discursos e as práticas
que nomearam as mulheres, o lugar social, as tarefas, as atribuições, e também a subjetividade feminina é tarefa primeira para a
democratização e a igualização nas relações entre os gêneros.
Palavras Chave: discurso-gênero- mulheres-desconstrução

A desigualdade entre homens e mulheres é uma marca cultural que aparece em todo o ocidente. As questões de
gênero que são relacionais e plurais, tem se constituído em objeto de estudos e pesquisas em todas as academias. A radical
desigualdade entre os sexos – a violência contra a mulher, manifesta-se como chaga mundial e caso de saúde pública. O que
faz com que mulheres brasileiras, portuguesas e africanas, apesar da distância geográfica, sofram da mesma maneira o signo
da desqualificação em todos os segmentos? O que faz com que, apesar das normativas legais e ações públicas, as diferenças
transformadas em desigualdades insistam em permanecer? O que faz com que mulheres e homens consintam nas
representações de gênero historicamente constituídas.
Se as mulheres, e também os homens, são simplesmente um efeito de práticas discursivas e não discursivas, como
nos ensina Michel Foucault, reconhecer os discursos e as práticas que nomearam as mulheres, o lugar social, as tarefas, as
atribuições, e também a subjetividade feminina é tarefa primeira para a democratização e a igualização nas relações entre os
gêneros. As práticas discursivas não são pura e simplesmente modos de fabricação de discursos. Elas tomam corpo, no
conjunto das técnicas, das instituições, dos esquemas de comportamento, dos tipos de transmissão e difusão, nas formas
pedagógicas que, por sua vez, as impõem e mantém. As práticas não discursivas são também parte do discurso, à medida que
identificam tipos e níveis de discurso, definindo regras que ele de algum modo atualiza.
Foucault encara o discurso como prática social. Em sua célebre aula A Ordem do Discurso, sublinha a idéia de que
o discurso é produzido em razão das relações de poder. Por outro lado o discurso numa relação saber x poder produz
realidade, produz verdade:
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao
mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o
sistema de livros, das edição , das bibliotecas, como as sociedade de sábios de outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é
reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é
valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído (FOUCAULT, 2006: 17)

A desigualdade entre os sexos é um assunto que tem tomado a a atenção de governantes e organizações não
governamentais em todo o ocidente. Todos fazem coro ao propalar que um verdadeiro desenvolvimento pressupõe relações
igualitárias entre os sexos. A face mais cruel da desigualdade – a violência contra a mulher é uma chaga mundial e assunto
de saúde pública em todos os países. Ela atravessa todas as classes sociais, raças e gerações.
Apesar das normativas legais e das ações públicas, que são unânimes em defender a igualdade entre os sexos e
atacar todos os tipos de preconceitos, os discursos que nomearam o masculino e o feminino se inculcaram profundamente na
cultura ocidental e estabeleceram a preponderância do masculino e a subordinação do feminino. Em sua História da
Sexualidade e Hermenêutica do Sujeito, Foucault se ocupa da função do discurso como formador da subjetividade. Esta
função consistiria em ligar o sujeito à verdade. Ele explica que “a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que
a produzem e a apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”. Se a verdade existe numa relação de poder e
o poder opera em conexão com a verdade, então todos os discursos podem ser vistos funcionando como regimes de verdade.
Combater estes discursos que transformaram-se em práticas discursivas e não discursivas é um trabalho árduo que
exige a atenção de todas as instituições. Família, escola, mídia, igreja e outras devem reconhecer o trabalho “eficiente” que
foi efetivado durante séculos e proporcionar a sua desconstrução. Abrir os discursos, mostrar como e quando foram
arquitetados, desconstruí-los, tem sido uma tarefa árdua e difícil. Trabalhar com a história das mulheres exige que nós a
entendamos como uma invenção – política, social, cultural.
Não basta ser mulher para ter clareza das relações de gênero, que são antes de tudo relações de poder. A
representação do que é ser homem e o que é ser mulher atravessou os séculos e incorporou-se na cultura. Se não fosse pelo
trabalho de representação, que faz com que eu me assuma pelo olhar do outro, como explicar que as mulheres, maioria da
população, que parem filhos e filhas, e são responsáveis pelos primeiros cuidados, são na sua maioria as atendentes do ensino
pré-escolar e também na maioria professoras do ensino fundamental não conseguem realizar um trabalho de desconstrução

252
dos papéis sexuais e sociais de homens e mulheres? Por que as mulheres, em sua imensa maioria, aceitaram e interiorizaram
o modelo construído de relação entre os sexos?
Para responder a esta questão nos valemos de Pierre Bourdieu que nos lembra que não basta ser do sexo feminino
para ter uma visão da história das mulheres. Porque a visão feminina é uma visão dominada que não vê a si:
É óbvio que, se admitirmos que a violência simbólica se exerce prioritariamente sobre as mulheres, não poderemos
supor que basta ser-se mulher para ter uma visão verdadeiramente histórica das mulheres. A visão feminina é uma
visão dominada, que não se vê a si própria (...) Como reconstruir os olhos das mulheres, como tratar enquanto sujeitos
de percepção essas mulheres que são sempre objectos de percepção – até para si próprias, durante todo o tempo em
que apliquem a si mesmas as categorias de percepção dominantes, ou seja, masculinas, e se vejam com um olhar
masculino? (BOURDIEU, 1995:p.59)

Recomenda que um objeto maior da história das mulheres deve ser o estudo dos discursos e das práticas que
garantem que as mulheres consintam nas representações dominantes da diferença entre os sexos . É preciso descolonizar o
feminino diz ele.
Também Michel Foucault em sua crítica ao universalismo e ao essencialismo, nos mostra em suas obras que não há
objetos naturais, não há sexo fundado na natureza, mas sim uma visão histórica do corpo, modelado pela cultura. Para
Foucault a historicidade governa a relação entre os sexos e através de suas pesquisas tenta romper com o eterno feminino dos
médicos e dos biólogos cujos discursos, nos séc. XVIII e XIX, reforçavam a sujeição das mulheres ao seu corpo e a seu sexo
(FOUCAULT, 1979).
Tabu durante milênios, a violência doméstica é tão preocupante que a Conferência realizada em Viena em 1993,
além de repudiar e condenar veementemente todas as formas de violência contra a mulher, colocou-a no mesmo estatuto de
importância de outras violações brutais dos direitos humanos como o genocídio, a limpeza étnica, as torturas, a
discriminação racial e o terrorismo. Portanto, enfrentar a violência contra a mulher, é historicizar a construção do masculino e
do feminino, reconhecer as práticas discursivas e não discursivas que construíram a natureza feminina, a sexualidade
feminina e masculina, o lugar social de cada sexo.
Por que é tão difícil transformar nossa visão sobre homens e mulheres? Apesar das leis igualitárias, as mudanças
são lentas. Que discursos poderosos foram estes que se estabeleceram na cultura desta maneira? Se nos causa surpresa
Aristóteles ter anunciado o tamanho dos cérebros masculino e feminino há 2.500 anos, causa-nos estupor ao ver este
argumento ainda ser utilizado para discriminar o feminino. Quem definiu o que é ser homem e ser mulher, através dos
tempos?

Discursos Históricos
Filósofos, médicos, psiquiatras, padres e pedagogos desenvolveram argumentos que atingiram as mulheres. Foram
elevadas à categoria de rainhas, de deusas, responsáveis pela sociedade; as que se recusavam a cumprir seus deveres, de
esposa e mão exemplar, eram consideradas más e psicologicamente doentes. Todos estes discursos, incansavelmente
repetidos, tiveram um efeito decisivo sobre as mulheres construindo inclusive o consentimento feminino.
Segundo Chartier, a construção da identidade feminina enraíza-se na interiorização pelas mulheres de normas
enunciadas pelos discursos masculinos. Por isso, segundo o autor, um objeto maior da história das mulheres é o estudo dos
discursos e das práticas que garantem que as mulheres consintam nas representações dominantes da diferença entre os sexos:
Assim a divisão das tarefas e dos espaços, a inferioridade jurídica, a inculcação escolar dos papéis sociais, e exclusão
da esfera pública, etc. longe de afastarem do “real” e de se limitarem a indicar as figuras do imaginário masculino, as
representações da inferioridade feminina, incansavelmente repetidas e mostradas, inscrevem-se nos pensamentos e nos
corpos de uns e outras. (CHARTIER, 1995: 39)

A inferioridade feminina é demonstrada desde os mais remotos discursos. Por suas condições biológicas, seu sexo,
sua “natureza”, é transformada em pura afetividade, movida somente pelo coração e pelas paixões e por isso deve ser
subordinada ao homem, caracterizado como ser racional, que lhe prestará assistência e proteção. Por causa de sua fragilidade
é encerrada entre as quatro paredes do lar. Esta subordinação parecia formar parte da ordem natural das coisas, tanto para os
homens como para as mulheres. Estudos envolvendo a filosofia e a medicina, hoje todos superados, constroem a
desvalorização do feminino.
O pensamento grego com Platão que denomina a natureza feminina, ligada ao seu útero,à sua capacidade de
reprodução foi definidor a tantos discursos posteriores que enclausuraram a mulher no mundo privado, sem voz e sem poder:
E agora a tarefa que nos foi imposta a começar, de fazer a história do universo até a geração do homem, parece quase
realizada.(...) Entre os homens que receberam a existência, todos os que se mostraram cobardes e passaram a sua vida a
praticar o mal foram, conforme toda a verossimilhança, transformados em mulheres na segunda encarnação.(...) Eis
porque nos machos os órgãos genitais são naturalmente insubmissos e autoritários, como animais surdos à voz da razão
e, dominados por apetites furiosos, querem comandar tudo. Nas mulheres também e pelas mesmas razões, o que se
chama matriz ou útero é um animal que vive nelas com o desejo de procriar. Quando ele fica muito tempo estéril
depois do período da puberdade, ele tem dificuldade em superar isso, indigna-se, erra por todo o corpo, bloqueia os
canais de sopro, impede a respiração, causa um grande incómodo e origina doenças de toda espécie, até que, o desejo e

253
o amor unindo os dois sexos, eles possam colher um fruto,como numa árvore, e semear na matriz, como num sulco (...)
Tal é a origem das mulheres e de todo o sexo feminino”. (PLATÃO, 1993:220)

Mas, atemporal e poderoso é o discurso aristotélico. Em seu tratado sobre os animais Aristóteles examina os
corpos femininos e conclui entre tantas outras coisas que a mulher possui uma voz mais fina que o homem, pelo mais fino,
carnes mais moles, pernas mais finas. Seus seios são intumescências esponjosas, capazes de se encherem de leite, mas moles
e rapidamente flácidos. Os homens também possuem seios, diz ele, mas rijos e duros. Doente por natureza, a mulher
envelhece e chega ao fim mais rapidamente que o homem.
No seu tratado comparativo entre machos e fêmeas no mundo animal, entre eles homens e mulheres Aristóteles
analisa o tamanho do cérebro. A desqualificação advinda da diferença é capturada pelo pensamento ocidental e tem efeitos
devastadores sobre o feminino. Cérebro menor na mulher a desqualifica para o saber:
Entre os animais é o homem que tem o cérebro maior, proporcionalmente ao seu tamanho, os machos têm o cérebro
mais volumoso que as fêmeas.(...) São os machos que têm o maior número de suturas na cabeça, e o homem tem mais
do que a mulher, sempre pela mesma razão, para que esta zona respire facilmente, sobretudo o cérebro, que é
maior”.(ARISTÓTELES, 1957:41)

Apropriando-se de Aristóteles o discurso da tradição cristã judaica ainda hoje é lembrado justificando a
superioridade masculina e a mulher como fonte de todos os males. O relato da criação da mulher, bem como o da sua parte na
tentação de Adão e sua consequente condenação por Deus, danando toda a humanidade, teve efeitos devastadores muito
duradouros sobre a imagem da dignidade do feminino.
Nunca se perdeu a oportunidade de lembrar ás mulheres o mito do Éden e a condenação com que Deus a fulminou:
“À mulher lhe digo: tantas serão tuas fadigas, quantos sejam teus embaraços: com trabalho parirá teus filhos. Teu marido te
dominará.”
A revolução científica do séc. XVIII não serviu para demonstrar a falsidade dos argumentos filosóficos e religiosos
sobre a inferioridade das mulheres. Pelo contrário, a autoridade bíblica é substituída pela autoridade biológica. Na hora de
estudar a anatomia e a fisiologia femininas, os médicos, revestidos de uma capa cientificista, reafirmaram a tradição baseada
em Aristóteles e Hipócrates.
A maternidade é a causa dos males e o útero é o órgão que dá identidade à mulher e toma conta de seu intelecto.
“Vós mulheres não são nada além de seu sexo”. E este sexo, acrescentavam os médicos, é frágil, quase sempre doente e
indutor de doenças. Vós sois a doença do homem. No século XVIII o corpo da mulher se torna coisa médica por excelência.
No séc. XIX, a mulher ainda é representada como um ser doentio, com crises frequentes, escrava das paixões, dos
romances, pura sexualidade. A literatura acompanha esta representação. Anna Karenina e Madame Bovarie são exemplos
clássicos da literatura recolhendo saberes e cristalizando-os no social. Machado de Assis, um dos maiores escritores
brasileiros também representa em seus escritos a mulher no século XIX, doentia e escrava das paixões.
O discurso de Freud emprestando mais uma vez um caráter científico à delimitação dos papéis sociais, é
reconhecido pela originalidade de pôr em evidência a importância da sexualidade na constituição da personalidade feminina.
Por outro lado, sua concepção da psicologia das mulheres não fica nada a dever aos padrões e valores culturais patriarcais e
falocráticos.
Sua teoria da psicologia feminina deu novo alento à antiga tradição do domínio masculino com a autoridade que
lhe dava ser a mais nova das ciências, Freud será o primeiro a tomar a diferença entre os sexos como objeto e teremos o
nascimento da mulher histérica. Pela inveja da falta de um pênis, a mulher é ausência, não terá senso de justiça e sofrerá do
sentimento de inferioridade.
As leis que normatizaram a vida dos homens e das mulheres seguiram muito de perto os discursos que relatamos.
Estes e outros, exerceram influência decisiva tanto na elaboração de Códigos como nas Constituições de todo o ocidente. O
código napoleônico, monumento de misoginia, decreta a irresponsabilidade jurídica da mulher que é igualada a loucos e
menores, e é a matriz dos códigos em todo o Ocidente.
O conceito de honra é inaugurado neste código e é sexualmente localizado. O homem é o legitimador, uma vez que
a honra é atribuída pela sua ausência, através da virgindade, ou pela presença no casamento. Os crimes em defesa da honra,
são perpetrados e justificados tendo como base nestes códigos.
As constituições estabelecem a igualdade como princípio fundamental vetando todas as distinções. Mas sabemos
que a igualdade constitucional não acaba com a discriminação entre homens e mulheres que tem acompanhado a história da
civilização. A desigualdade entre os sexos é historicamente construída e sua face mais cruel é a violência praticada contra a
mulher.
A violência doméstica é um dos delitos mais complexos que enfrenta a sociedade brasileira e um dos maiores
desafios ao Estado e ao Direito porque acontece dentro da família, instituição que sempre se caracterizou como a célula
fundamental da sociedade e propiciadora de relações saudáveis entre seus membros. Situação complexa também porque
envolve mitos, presentes inclusive entre as próprias mulheres, como por exemplo de que é restrita à pessoas de classes
populares; que as mulheres gostam de ser agredidas senão separariam; de que violência e amor não coexistem na família.
Mas dentre estes, o mito mais enraizado é o de que as pessoas que sofrem violência fizeram algo para provocá-la. Isto
encaminha a culpar quem sofre a violência. É a Eva-tentadora, justificando, ou quase, a brutal agressão masculina.

254
Desconstrução
O processo de fazer homens e mulheres, a designação de seus papéis sociais, a hierarquização entre os dois sexos
subordinando o gênero feminino ao masculino são construções, invenções históricas. Demonstrar sua construção é um
trabalho pedagógico. A educação que mulheres e homens recebem e o comportamento que apresentam em sociedade são um
fenômeno cultural que pode e deve ser mudado.
Ser mulher no Brasil, em Portugal ou no continente africano é diferente temos certeza. As cargas culturais que
perpassam homens e mulheres são definidoras na constituição de suas subjetividades. Os códigos sexuais, as relações
familiares, as relações amorosas mudam de continente à continente. As relações de colonizado/colonizador por certo
interferiram na construção de sujeitos com autonomia e liberdade. Os Olhos do Império como nomeia Marie Louise Pratt são
definidores na feitura de nossos eus. Mas para além das fronteiras – geográficas e culturais, as relações de gênero possuem
um lastro comum. A definição do que é ser homem e ser mulher foi estabelecida “eficientemente” para todo o ocidente. Os
lugares sociais e sexuais que compete a cada gênero não possuem geografia.
Desconstruir os discursos que estabeleceram historicamente o que é ser homem e o que é ser mulher é uma tarefa
urgente e libertadora. Se nem sempre foi assim, poderá ser diferente. Após a desconstrução, novas bases poderão ser
estabelecidas para a igualdade na diferença. Desconstruir como sinônimo de “abrir os discursos”. Silviano Santiago,
estudioso de Derrida nos morstra como o que era dado por universal nos compêndios de filosofia nada mais era do que a
confusão entre universalidade e masculinidade. Era universal tudo o que recalcava o que não era masculino. Para Santiago,
Uma das principais atividades da pós-modernidade é a de tentar compreender, por meio do que Jacques Derrida
chamou de leitura desconstrutora, as questões relativas que foram recalcadas para que os diversos sistemas do
pensamento ocidental, universalizantes, existissem em toda sua plenitude. Esses sistemas universais da razão histórica
... estão sendo questionados sob o crivo da desconstrução. (p.100)

Ao falar sobre arte masculina, Santiago analisa o novo lugar que agora deverá ocupar o homem dialogando com as
forças plurais que o cercam e o questionam e, a partir daí, construir sua identidade sem detrimento das identidades de outros
grupos em “nome dos quais egoística e autoritariamente falava”. Isto tudo será possível após a desconstrução dos discursos
sobre o feminino e o masculino, historicamente construídos:
Desconstruir não significa negar, anular ou subestimar os valores dados como universais pelo século XUIX, valores
que visavam colocar o homem, racional ou utopicamente, face a face com o seu presente, com o intuito de aperfeiçoar
a ambos, o mundo e o homem, pelo conhecimento da história daquele neste. Trata-se antes de abalar, num primeiro
gesto, o alicerce em que se assenta o já-pensado pelo Homem, tal qual esse já-pensado foi posto em prática e se tornou
dominante. Abalado o alicerce pela leitura desconstrutora, segue-se a tarefa de avaliá-lo com a intenção de enxergar o
que ele escondeu, escamoteou e recalcou, para possibilitar que, em cima do escondido, do escamoteado e do recalcado,
ou seja, do que é dado como pura negatividade (o feminino ou o masculino tanto faz) se construísse o belo edifício
sólido, justo por um lado e injusto por outro, das categorias universais (SANTIAGO, 1995:102)

Historicizar é desconstruir o discurso para localizar o ponto de início e depois reconstruir em bases igualitárias. É
somente vendo que nem sempre foi assim, que isto não faz parte da ordem natural das coisas, para mudar. Se nem sempre foi
assim, se é uma construção histórica, entremeada de relações de poder/saber, podemos fazer e pensar diferente do que
pensamos. Se o lugar das mulheres, brasileiras, portugueses e africanas foi decidido por discursos milenares e poderosos,
transformando-as em mulheres sem fronteiras, com uma única natureza a lhes dar sentido, e as mulheres o receberam como
seus, num trabalho de representação, o exercício pedagógico agora é fazer uma arqueologia, uma genealogia de sua
construção, demonstrando as suas singularidades.

Bibliografia
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255
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As mulheres e a vivência pós-cárcere


Elaine Cristina Pimentel Costa
Universidade Federal de Pernambuco
[email protected]

Resumo: O pós-cárcere é certamente um dos maiores problemas da estrutura de justiça penal brasileira, sobretudo porque há um forte
contraste entre o que é estabelecido pela legislação – ressocialização do condenado – e a realidade vivenciada pelos egressos da prisão. Para
as mulheres, a condenação penal e a experiência na prisão representam uma ruptura com a aura de sacralidade que marca o lugar e os papéis
femininos, acarretando, então, uma violação da expectativa de comportamento desses sujeitos. Além disso, a própria vivência no cárcere
desencadeia processos de deterioração da identidade que têm importantes implicações nas vidas das mulheres, de modo que, ao alcançarem a
liberdade, as egressas do cárcere deparam-se com o desafio de refazerem seus vínculos familiares, afetivos e sociais, rompidos pela
segregação. O propósito deste texto é demonstrar, através de dados quantitativos e qualitativos, que mulheres condenadas pelo cometimento
de um crime vivenciam, ao longo do cumprimento da pena privativa de liberdade, experiências de deterioração da identidade e mutilação do
self, acentuadas pela condição feminina, de tal forma que, quando egressas do cárcere, buscam construir novos vínculos afetivos e familiares,
diante da fragmentação desses laços pela segregação e procuram alternativas inadequadas de sobrevivência e reinserção social, a exemplo do
trabalho informal, da prostituição e do retorno ao crime, que as inserem em uma situação de marginalidade incompatível com a idéia de
ressocialização presente na legislação brasileira. O texto apresenta os resultados parciais da nossa pesquisa de Doutoramento em Sociologia.

1. Introdução
Este texto apresenta os delineamentos teóricos de minha Tese de Doutoramento em Sociologia pela Universidade
Federal de Pernambuco (Brasil), que tem por objetivo estudar a experiência feminina pós-cárcere. A pesquisa de campo está
sendo realizada no Estado de Alagoas, que possui uma população carcerária feminina de aproximadamente 120 (cento e
vinte) mulheres1. Escolhemos Alagoas porque entendemos que se trata de um dos Estados brasileiros com maior crescimento
da população carcerária feminina e que apresenta uma grande circulação – entrada e saída – de presas no sistema
penitenciário, dado fundamental para a nossa pesquisa. A pesquisa contempla as mulheres que voltaram à liberdade durante
os anos de 2005 e 2006, pois é nosso intuito estudar aquelas que já vivenciaram, pelo menos, 2 anos de liberdade.

2. À margem e na marginalidade
A condição de marginalidade das mulheres é identificada em quase todos os momentos da história humana, mas
somente através de movimentos de resistência encampados a partir da década de 1960 isso se tornou visível e problemático.
Fruto do conteúdo moral das sociedades historicamente dadas, o papel secundário das mulheres na divisão sexual do trabalho
ultrapassa a esfera das atividades sociais corriqueiras e chega a atingir espaços mais complexos de sociabilidade, a exemplo
das práticas criminosas.
Embora as lutas feministas tenham conseguido alguns avanços em termos de cidadania, não se pode negar que
ainda convivemos com os resquícios de uma cultura sexista e excludente. Se a marginalidade sempre foi o espaço reservado
às mulheres ao longo da história, quais serão as consequências de uma condenação penal e da experiência em uma prisão
feminina? Em outras palavras, é possível reconstruir os vínculos afetivos e profissionais de mulheres condenadas a penas
privativas de liberdade? A resposta a esses questionamentos permite uma compreensão das vicissitudes da vida pós-cárcere
dentro de uma perspectiva de gênero e contribui com uma releitura da idéia de ressocialização presente na legislação
brasileira.
Os números do sistema prisional brasileiro, publicados periodicamente pelo Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, sinalizam que os homens cometem mais crimes que as mulheres. Enquanto
a população carcerária feminina, em junho de 2008, era de cerca de 20.224 mulheres, a masculina ultrapassava a cifra dos
360.850 presos2. Esses números englobam presos e presas condenados em todos os regimes de cumprimento de pena
(fechado, semi-aberto e aberto), além dos submetidos à medida de segurança e os que esperam julgamento.

1
Dados colhidos no Estabelecimento Prisional Feminino Santa Luzia. Apresentamos números aproximados porque a população carcerária muda diariamente.
2
Pesquisado em http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm, em 16/10/2008, às 18:42h.

256
A disparidade entre o número de mulheres e homens presos guarda estreita ligação com as relações de gênero. A
compreensão desse fenômeno, porém, não se situa exclusivamente nas esferas biológica e psicológica, mas sim nas
construções sociais e históricas dos campos de atuação feminino e masculino. Da mesma forma, questões de gênero tornam-
se centrais na configuração da sociabilidade no interior dos estabelecimentos prisionais femininos e nas relações das presas
com seus companheiros e familiares, durante e após o cumprimento da pena privativa de liberdade.
Muito embora o universo do crime seja preponderantemente masculino, é preciso reconhecer que há mudanças nas
formas de atuação feminina que implicam em participações cada vez mais expressivas de mulheres nas práticas delituosas.
Por isso, o que outrora justificava a densidade dos estudos criminológicos com ênfase no protagonismo dos homens,
transforma-se em necessidade crescente de pesquisas que tomem como foco a participação feminina.
Os silêncios acerca da presença da mulher nas diversas dimensões do crime – em práticas delituosas, na justiça
penal, no sistema penitenciário e como egressa do cárcere – sugerem a negação das diferenças de gênero presentes em
qualquer sociedade e ofuscam aspectos ideológicos fundamentais para a compreensão a dinâmica do mundo contemporâneo.
Afinal, nem mesmo os avanços em termos de igualdade entre mulheres e homens na legislação, sobretudo no Ocidente,
foram suficientes para alcançar uma satisfatória mudança desse panorama.
O pós-cárcere é certamente um dos maiores problemas da justiça penal brasileira, sobretudo porque há um forte
contraste entre o que é estabelecido pela legislação – ressocialização do condenado – e a realidade vivenciada pelos egressos
da prisão. Para as mulheres, a condenação penal e a experiência na prisão representam verdadeira ruptura com a aura de
sacralidade que marca o lugar e os papéis femininos, acarretando, então, a violação da expectativa de comportamento desses
sujeitos. Além disso, a própria vivência no cárcere desencadeia processos de deterioração da identidade (Goffman, 2004)
com importantes implicações para a vida das mulheres que, uma vez egressas da prisão, deparam-se com o desafio de refazer
vínculos afetivos e profissionais, rompidos pela segregação.
Diante dessa problemática, nosso estudo analisa as consequências do cárcere para as mulheres, no intuito de
averiguar se os processos de deterioração da identidade vividos durante o cumprimento da pena privativa de liberdade
contribuem para a marginalização feminina pós-cárcere, influenciando nos caminhos percorridos para a reinserção social,
seja na dimensão afetiva ou na profissional. Entendemos que as formas de reintegração social das mulheres egressas do
cárcere nem sempre são frutos de suas próprias escolhas, uma vez que as desigualdades de gênero, aliadas ao passado de
práticas criminosas e à experiência da prisão, potencializam a marginalização da mulher egressa do cárcere.

3. Gênero e dominação masculina


O tema da experiência feminina pós-cárcere leva-nos a trilhar diversos caminhos teóricos que, quando articulados,
formam um conjunto de reflexões aptas a explicar a problemática a ser estudada: gênero, identidade, cárcere, socialização,
ressocialização, intolerância, reconhecimento, criminalidade, dentre outros que certamente surgirão ao longo da pesquisa.
É muito vasta a literatura voltada para as questões de gênero. Cientistas sociais e historiadores enfrentam o tema
nas suas mais diversas expressões, problematizando a atualidade da questão, tendo em vista as desigualdades entre mulheres
e homens nas práticas cotidianas.
Joan Scott (1995), ao problematizar a noção de gênero, demonstra como essa categoria relacional, fundada na
reciprocidade da construção do masculino e do feminino ao longo da história humana, serviu para dar cientificidade aos
estudos sobre as mulheres. Erguida sobre as bases de estruturas de poder das sociedades, a idéia de gênero aparece como a
negação de determinismos biológicos fundados nas diferenças sexuais entre mulheres e homens. Scott sintetiza o termo
gênero como “uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (SCOTT, 1995: 75).
Como categoria relacional, a noção de gênero está na base da construção das identidades femininas, historicamente
relacionadas ao masculino, seja de forma subsidiária ou complementar. Por isso, o termo gênero sugere que toda informação
sobre o feminino pressupõe também uma informação sobre o masculino e nega a validade das esferas interpretativas
exclusivas das mulheres ou dos homens. Esse pressuposto implícito em todos os estudos de gênero está nas bases das lutas
pelo fim das desigualdades, que têm como cerne a constatação de que mulheres e homens vivenciam experiências muito
distintas nas práticas sociais, tanto na órbita pessoal como na profissional.
A concepção de gênero apresentada por Joan Scott fornece o suporte necessário para a perspectiva de gênero que
está na centralidade da pesquisa proposta, já que a experiência feminina pós-cárcere parece ser permeada por questões de
gênero que marcam as sociedades contemporâneas, mesmo à revelia da tendência mundial de formalização da igualdade na
legislação. Além disso, essa noção de gênero fundamenta outros conceitos importantes para estudos sobre mulheres, a
exemplo de patriarcado, trabalhado por Heleieth Saffioti (2004) com o propósito de compreender a violência de gênero. Para
ela, “qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a natureza do
patriarcado continua a mesma” (SAFFIOTI, 2004: 107).
As reflexões de Saffioti sobre o patriarcado permitem uma abordagem das situações práticas e concretas
vivenciadas pelas mulheres no mundo contemporâneo, sobretudo no que diz respeito à dominação masculina, que se
apresenta numa ordem dialética em que a subordinação está pressuposta. “Portanto, está dada a presença de, no mínimo, dois
sujeitos. E sujeito atua sempre, ainda que situado no pólo de dominado” (SAFFIOTI, 2004: 118). Essa afirmação nos leva a
refletir sobre a complexidade da condição das mulheres nos processos de dominação masculina, situada não apenas nas
formas concretas de violência, mas na sua dimensão simbólica.

257
É na obra de Pierre Bourdieu (1995) que encontramos respaldo teórico para compreender o caráter simbólico da
dominação masculina. Inserida no contexto mais amplo do pensamento de Bourdieu, a idéia de dominação masculina deriva
daquilo que o autor chama de violência simbólica, conceito amplo e complexo, que aponta para diversas expressões da
violência, exercidas de forma suave, insensível e invisível pelas próprias vítimas. Na centralidade da noção de dominação
masculina está o paradoxo da “transformação da história em natureza, do arbítrio cultural em natural” (Bourdieu, 1995: 8).
Nesse sentido, Bourdieu problematiza a “socialização do biológico” e a “biologização do social”, ampliando o campo de
reflexão da dominação masculina para espaços mais complexos de sociabilidade, como a escola e o Estado, “lugares de
elaboração e de imposição de princípios de dominação que se exercem dentro mesmo do universo mais privado” (Bourdieu,
1995: 9).
A perspectiva de Bourdieu proporciona um importante diálogo com as teorias contemporâneas de gênero,
sobretudo porque toma como foco as construções culturais. Assim, é possível estabelecer uma articulação teórica entre a
noção bourdieusiana de dominação masculina e o conceito de gênero apresentado por Joan Scott, que focaliza o caráter
relacional dessa categoria história, não dissociada dos elementos de poder existentes em qualquer sociedade (Scott, 1995).
Em Bourdieu, o poder é pensado como algo permeado pelo simbólico, tornando-se habitus dentro dos diversos
campos das práticas sociais. Bourdieu define habitus como um sistema de disposições duráveis, que tanto são estruturas
estruturadas como estruturas estruturantes, dotadas do poder de gerar práticas e representações que podem ser objetivamente
reguladas e regulares sem ser o produto da obediência a regras (BOURDIEU, 2007: 61). Por isso, no cerne do conceito de
habitus está o esforço de Bourdieu em unir objetividade e subjetividade. A história, a experiência, as condições materiais de
existência e outros elementos que transitam entre estruturas objetivas e estruturas cognitivas compõem a ampla noção
bourdieusiana de habitus. Ao tratar a dominação masculina como um habitus, Bourdieu reafirma o caráter social e histórico
das desigualdades entre mulheres e homens nas sociedades.
Essas reflexões teóricas sobre gênero e dominação masculina são fundamentais para o estudo da experiência das
mulheres egressas do cárcere, pois permitem uma análise mais ampla da condição da mulher nas sociedades contemporâneas
e de como isso se relaciona com a quebra de vínculos sociais e profissionais, resultado da segregação social inerente à pena
privativa de liberdade.

4. Deterioração do self e estigmatização


O estudo da vivência feminina pós-cárcere tem como objetivo compreender os efeitos da prisão sobre as mulheres,
bem como as possibilidades de reconstrução de seus vínculos afetivos e profissionais perdidos em virtude da segregação.
Em Vigiar e Punir (2002b) Foucault proporciona um panorama da história do nascimento das prisões,
contextualizando os micropoderes que estão nos processos diários de identificação, adestramento e punição dos presos, que
recaem sobre o corpo. A prisão seria, para Foucault, um espaço de poder apto a adestrar não apenas os corpos, mas também
os comportamentos, através de uma mecânica de poder:
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia
política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio
sobre o corpo dos outros, não apenas para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as
técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis” (FOUCAULT, 2002b, 119).

Mais do que apenas uma prática a ser empregada dentro do espaço penitenciário, a disciplina surge como
verdadeiro método, que também está presente nas escolas e nos hospitais. Ela se configura como uma multiplicidade de
microprocessos cotidianos vigentes em todas as sociedades, adestrando corpos e mentes de acordo com as exigências das
estruturas. Nas prisões, especificamente, o exercício de docilização dos corpos e dos comportamentos é o principal objetivo.
Por isso, o cumprimento de pena em uma prisão proporciona experiências singulares nas vidas das mulheres presas,
produzindo efeitos sobre sua vida pessoal e profissional. Por um lado, a maternidade e as relações afetivas não são
vivenciadas em plenitude; por outro, há a perda dos referenciais profissionais existentes antes da prisão, normalmente
substituídos por trabalhos artesanais que não têm valor venal. Tudo isso resulta de um trabalho lento de docilização dos
corpos no interior das prisões, tal como explicado por Foucault.
O pensamento foucaultiano aparece como uma importante fonte para o estudo da dinâmica do cárcere, sobretudo
porque, articulado com o sentido mais amplo da idéia de poder, presente em toda sua obra, permite um diálogo não apenas
com as questões de gênero que estão na base da pesquisa proposta, mas, sobretudo, com o pensamento de Erving Goffman.
A obra de Goffman está no contexto das chamadas microssociologias e encontra no cotidiano o cenário ideal para o
estudo das práticas sociais. O empirismo que marca suas pesquisas proporciona uma atenção especial às trocas simbólicas
que acontecem nos processos de interação social. Através das noções de representação teatral e dramaturgia, Goffman analisa
os processos de interação na vida cotidiana, detendo-se nos papéis sociais desempenhados nos mais diversos espaços de
sociabilidade e partindo do pressuposto de que, ao comunicar-se com os outros, o ser humano emite expressões com o intuito
de obter determinadas impressões, fundamentais para a sua aceitação nos grupos sociais. Ao mesmo tempo em que
proporciona meios para a compreensão do que se passa com os indivíduos nas práticas interativas cotidianas, Goffman

258
fornece ao pesquisador o suporte necessário para abordar seus interlocutores. Sua obra, então, está na interface do teórico
com o metodológico.
Segundo Goffman, os espaços de sociabilidade aparecem como importantes elementos para a configuração da
representação teatral. Apresenta, então, as prisões como exemplos típicos das chamadas instituições totais – assim como os
manicômios, os conventos e os internatos –, locais separados da sociedade mais ampla, onde indivíduos residem, trabalham e
“levam uma vida fechada e formalmente administrada” (Goffman, 2003: 11). A principal característica das instituições totais,
portanto, é a segregação social. As mulheres e os homens que ocupam aquelas instituições são separados da dinâmica social
cotidiana, passando a compor um cenário diferenciado de sociabilidade. Eles deixam de vivenciar práticas que sempre
fizeram parte de suas vidas e passam a viver novas experiências, que, em certa medida, quebram os vínculos com o mundo
exterior e acarretam a perda dos referenciais originários dos sujeitos.
Para compreender esses fenômenos, Goffman apresenta conceitos como “enquadramento”, “mortificação dos
indivíduos”, “mutilação do self” e “desculturamento” que, em conjunto, acarretam o que chama de deterioração do self. Esses
conceitos dizem respeito aos processos pelos quais passam cotidianamente os sujeitos no cárcere e estão relacionados,
sobretudo, ao que vivenciam e ao que sentem esses sujeitos. Trata-se, portanto, de algo no campo da experiência subjetiva,
mas que guarda estreita relação com a idéia de “estigmatização”, embora dela seja distinta.
Goffman define o estigma como “uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social
real” (GOFFMAN, 2004: 12). Enquanto os processos de deterioração do self são experiências dos próprios sujeitos, a
estigmatização é algo exterior a esses sujeitos, pois relaciona-se ao olhar do outro. Vivenciado quando as presas conquistam a
liberdade, o estigma aparece como uma verdadeira nódoa na identidade da ex-presidiária, remetendo-a constantemente ao
tempo em que esteve no cárcere e tornando-se, portanto, sua marca distintiva.
Em franco diálogo com o pensamento de Goffman está Howard Becker (1977), autor da labelling theory (teoria dos
rótulos), que toma por base a análise de condutas desviantes e da marginalização, apresentadas no texto Outsiders. Assim
como Goffman, o pensamento de Becker, inserido nas tradições da Escola de Chicago, é considerado mais uma expressão da
perspectiva interacionista, que tem como bases teóricas os pensamentos de Georg Simmel e Alfred Schutz.
A rotulação, segundo Becker, é um artifício social intimamente relacionado às condutas desviantes e acarreta “a
mudança drástica na identidade pública do indivíduo” (BECKER, 1977: 78). Uma vez rotulado, o sujeito passa a ter um outro
status social, capaz de inseri-lo ou retirá-lo de determinado grupo, de acordo com sua ”nova” identidade desviante. Se violou
uma norma penal, por exemplo, a mulher passa a ser “criminosa” e essa rotulação tanto pode se sobrepor a qualquer outro
traço relevante de sua identidade – mulher, mãe e profissional –, como pode sugerir outras características também
marginalizantes. Para Becker, “a posse de uma característica desviante pode ter um valor simbólico generalizado, de tal
forma que as pessoas supõem automaticamente que seu portador possui outras características indesejáveis supostamente
associadas a ela” (BECKER, 1977: 79). A teoria dos rótulos, de Becker, apresenta elementos que se aproximam, em certa
medida, da idéia de estigmatização apresentada por Goffman. A rotulação que recai sobre uma pessoa favorece o processo de
estigmatização, pois atribui elementos de deterioração da identidade dos sujeitos.
Os reflexos da estigmatização são sentidos tanto nos vínculos afetivos quanto nas relações profissionais das
mulheres presas. As egressas do cárcere nem sempre conseguem resgatar os vínculos sociais existentes antes da prisão, o que
favorece, sobretudo, o retorno à criminalidade.

5. Considerações finais
Este texto teve por propósito apresentar os principais delineamentos teóricos de uma pesquisa em andamento, que
tem por objetivo compreender os processos de deterioração do self e de estigmatização pelos quais passam mulheres egressas
do cárcere.
O pressuposto inicial das reflexões apresentadas é o de que as peculiaridades da experiência feminina pós-cárcere
não estão dissociadas da própria condição da mulher na história da humanidade. Por isso, trata-se de uma pesquisa no campo
de estudos de gênero, que tem como ponto de partida as contribuições de Joan Scott, em articulação com Pierre Bourdieu,
especialmente quando trata da dominação masculina como habitus. Em Erving Goffman, por outro lado, encontramos
conceitos como deterioração do self e estigmatização, centrais para a compreensão dos processos pelos quais passam as
mulheres durante e depois do cumprimento da pena privativa de liberdade.
No Brasil, a prisão é uma instituição que precisa ser sempre repensada, principalmente porque já não responde aos
propósitos de prevenção da criminalidade e de ressocialização do infrator. Através do estudo da vivência feminina pós-
cárcere, alcançamos dois grandes objetivos: questionar as prisões brasileiras e compreender os efeitos do cárcere a partir de
uma perspectiva de gênero.

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A arte da amizade na cultura digital: blogs femininos e feministas


Marilda Ionta
Universidade Federal de Viçosa
[email protected]

Resumo: Esta comunicação aborda as práticas de amizade e a pedagogia relacional que acompanham os blogs escritos por mulheres. Os
blogs entendidos como texto e como espaço específico de interação, oriundo da cultura digital, estão deslocando as fronteiras entre o público
e o privado, interioridade e exterioridade e transformando nossa experiência de intimidade. Por essa razão, realizo algumas reflexões sobre
como essas mudanças na maneira de vivenciar a privacidade, a intimidade e a interioridade estão moficando as práticas de amizade
constuídas na modernidade ocidental. O projeto moderno que levou vários séculos para se efetivar teve como consequência a simplificação
das diversas formas de sociabilidade, pois valorizou a sociabilidade familiar e a esfera do privado, seu contraponto foi o declínio da
ressonância política da amizade na sociedade, que na antiguidade clássica era considerada virtude cardinal e modalidade ideal de relação com
o outro. Além disso, a modernidade afirmou políticas de amizades centradas na igualdade, semelhança e proximidade. Como apontou
Jacques Derrida, reafirmou-se discursos de amizade prenhe de significação política que alimentaram políticas falocentricas, nacionalistas,
populistas e xenófobas. A emergência do ciberespaço e as diversas formas de intersubjetividade nele tecida tem modificado nossas práticas
de amizade?

Este texto busca refletir sobre as relações intersubjetivas construídas nos weblogs escritos por mulheres e está
associado a outros estudos sobre a história da amizade. Os blogs podem ser entendidos como um programa, um texto, bem
como um espaço de interação social. Eles expressam um dos fenômenos mais recentes da escrita na cultura digital que tem
provocado deslocamentos significativos na comunicação entre as pessoas, especialmente nas relações de amizade.1
Vale dizer que a amizade nem sempre se constituiu numa relação privada e íntima, escolhida individualmente e sem
ressonância política como a que conhecemos atualmente. Percorrendo os discursos e as práticas da amizade ao longo do
tempo, pode-se observar que esse tipo de relação tem uma história própria, marcada por continuidade e rupturas (Ionta,
2007). Na Antiguidade Clássica, a amizade era considerada uma virtude cardinal e definia as relações políticas na pólis

1
Os blogs surgiram em 1999 com o desenvolvimento do software, da Empresa do norte-americano Evan Willians. Tal programa foi concebido como uma
ferramenta popular de publicação de texto on-line. É considerado popular porque é de fácil edição, atualização e manutenção dos textos, e quem deseja ter um
blog não demanda os conhecimentos os conhecimentos técnicos de um especialista. Além disso, ele é “gratuito”, não se paga pela hospedagem do blog no site
que oferece o serviço. Essas facilidades tornariam os blogs populares e facilitaram o acesso a esse tipo de escritura on-line. Em agosto de 2008 foram registrados
pela www.technorati.com, empresa especializada em monitoramento de blogs na Internet 133 milhões de blogs e os número continuam a crescer.

260
grega. Para Aristóteles, por exemplo, a política era uma forma de amizade, assim como a família. Aliás, na visão aristotélica
contida na Ethica Eudemia, era na família que se localizavam as fontes e as origens da amizade, da organização política e da
justiça. Ele comparava a amizade entre irmãos à democracia; por ser um processo de fraternização, a amizade era, em
princípio, democrática. Nesse sentido, esse vínculo intersubjetivo forneceu aos gregos referências para vida pública, os
cidadãos são amigos entre si ou irmãos como nos faz crer Aristóteles. Em Roma também a amicitia era o valor que presidia
ao funcionamento da vida pública e ligava-se à política por complexas relações, como a do patrocinium (relações entre
patrões e clientes), a fides (boa-fé) e officium (confiança). Como escreveu o senador romano Cícero em seu conhecido texto
Lélio, ou A Amizade, essa relação funda-se na virtude da concórdia, ela é unanimidade em todas as coisas; acompanhada de
benevolência e junto com a sabedoria é o que os homens herdaram de melhor dos deuses imortais. Como se pode notar, nas
sociedades antigas ocidentais a amizade estava extremamente codificada e era regida por normas sociais de caráter informal
cuja violação era passível de poderosas sanções sociais (Ionta; Campos, 2008).
Cabe sublinhar, como fez Jacques Derrida (2003), que esses tradicionais discursos sobre amizade são prenhes de
significado político. De acordo com o filósofo, o cânone aristotélico-ciceroniano da amizade ilustra uma ordem social
fundada no poder masculino, na veiculação de um modelo político democrático, ou seja, uma sociedade de irmãos onde as
irmãs estão excluídas; são ficções falogocêntricas da fraternidade, fantasmagorias democráticas que geraram diversas
estratégias que alimentaram as políticas nacionalistas, eugenéticas, populistas e xenófobas.
Contemporaneamente em nossa sociedade, a amizade perdeu sua ressonância política; é vivida e concebida como
um ornamento afetivo compensatório às promessas frustradas de realização individual no amor romântico, à crise da
instituição familiar e à solidão vivenciada na denominada “modernidade líquida”, para usar a expressão consagrada por
Zygmunt Bauman (2004). Nesse contexto histórico, esse vínculo social merece ser repensado, especialmente, no que se refere
a seu potencial transgressivo, político e público esquecidos nas esquinas da história.
Partindo desse campo de reflexão, é que pergunto o que temos a dizer hoje sobre a amizade tecida no ciberespaço?
Quais são as políticas de relação com o outro, empreendidas nas sociedades de informação, onde o blog, embora com sua
especificidade, é apenas um entre outros dispositivos técnicos que possibilitam interatividade, como o Orkut e seus similares,
as listas de discussão, os chats e os e- mails. Quais são as possibilidades e os limites das relações intersubjetivas criada no
ciberespaço? É evidente que não existem respostas acabadas sobre essas questões, especialmente porque se trata de relações
sociais em curso em nossa atualidade, mas podemos ensaiar alguns caminhos de reflexões entrando no acaso dos blogs. Neste
texto, utilizaremos para análise o blog português denominado www.cuscasdasgajas.blogspot.com, cuja página inicial é
reproduzida a seguir.

Esse blog coletivo é editado por seis jovens, que utilizam o anonimato para se apresentarem publicamente.
Recursos verbais e imagéticos são mobilizados pelas escreventes para construir uma cenografia cuidadosa e expressar as
imagens de si que o grupo de escrevente deseja tornar pública. Não há fotografias das gajas, das jovens, mas elas exibem um
desenho cuja imagem aciona no imaginário a noção de jovens descoladas, abertas, modernas. Na falta de uma palavra
melhor, poderíamos dizer que são jovens “pós-modernas”; usam colares, brincos, são diversas quanto à etnia e estilos, as
roupas marcam contornos de corpos femininos. O rosa, tradicionalmente atribuído à feminilidade e ao feminino, é a cor
escolhida para compor a cenografia do blog. Pois, como elas escrevem em sua apresentação, “cusca que se preze tem banda
sonora e é cor-de-rosa”. É bom lembrar que a palavra cusquices em Portugal está associada a conversas de mulheres, no
sentido pejorativo do termo, cuscar está ligado a fofocas de mulheres. Entretanto, ao lado dessa conversa de mulheres,

261
culturalmente desvalorizada, encontramos uma agenda de eventos relacionados às atividades feministas tais como
congressos, colóquios e eventos sobre educação sexual, entre outros de natureza acadêmica, cultural e política. Filtrado pela
identidade do grupo, consta no blog tudo o que elas julgam importante para ser divulgado, tanto do ponto de vista político
quanto do social, cultural e acadêmico.
Logo no início da página encontra-se um logotipo da UMAR (União das Mulheres Alternativas e Respostas),
indicando a vinculação do blog a um feminismo ativista em Portugal, como se lê nessa frase: “Associa-te UMAR não mata”,
e assim elas convidam seus leitores e leitoras a feministizarem-se. Nesta encenação construída pelo centro e pelas margens do
blog, ou seja, por seu conteúdo e outras indicações, como link, hiperlinks, agenda, sites e imagens, o que sobressai são
mulheres jovens, politizadas, atentas aos problemas contemporâneos de gênero e, acima de tudo, buscando resignificar aquilo
que tradicionalmente se atribuiu as noções de feminino, feminismo e feminista. Para isso utilizam uma narrativa crítica, ácida
e irônica, onde o rosa e o feminismo combativo não se excluem, mas, ao contrário, compõem um novo cenário de luta para as
mulheres.
Trata-se de uma relação entre um grupo de amigas que habita a fronteira entre o público e o privado e exibe uma
nova modalidade de ativismo feminista em Portugal. Uma militância marcada, entre outras coisas, pela leitura crítica das
relações de gêneros, da sexualidade, dos direitos humanos, dos direitos sexuais, da violência doméstica, da homofobia, da
heterossexualidade, da maternidade, da literatura feminista, como exemplificam os marcadores do blog que podem ser
acessados com facilidade na rede. A crítica a tradição e uma reescrita feminista podem ser observadas, por exemplo, na
divulgação e nos comentários de um post cujo tema é a personagem feminina de um livro infantil que narra às aventuras de
Anita. Esse livro foi uma espécie de cartilha que perpassou a alfabetização de diversas gerações de meninas em Portugal. Sua
narrativa é talhada pela ideologia da domesticidade feminina; do ponto de vista político-pedagógico, pode-se dizer que está
comprometido com formação das fadas do lar como diria Virgínia Woolf. As cuscas divulgaram e se divertiram com uma
nova versão de Anita a partir das capas produzidas por Gilbert Delahaye e Marcel Maruer. As imagens a seguir foram
postadas por Cuscavel, uma das escreventes, em 16.09.2008:

Como apontam as imagens, às escreventes dão aos seus leitores outras histórias das boas meninas, divulgam uma
nova enunciação sobre o controle e a normatização da subjetividade feminina, sem recorrer aos discursos políticos
tradicionais. Assim, longe de um discurso ressentido, elas apresentam uma narrativa feminista mais leve, mais irônica, sem
ser menos combativa por isso. A ironia parece ser a forma privilegiada das cuscas para atribuir sentido e significação às lutas

262
empreendidas pelas mulheres contemporaneamente. Como afirma Linda Hutcheon (1985), na paródia há uma imitação com
distanciamento crítico tanto do texto original como do reescrito, ela é uma forma de (des) locar, (in) tranquilizar ou (des)
confortar e, certamente, esse é um dos objetivos desse blog.
Vale ressaltar que a escrita contida nos blogs e os recursos técnicos disponibilizado pelo programa permitem
colagens, bricolagens, enfim, infinitas resignificações e reescritas de texto, sons e imagens colocando em cena, ou melhor,
radicalizando a morte do autor anunciada por Barthes e Foucault nos anos 1960, isto é, muito tempo antes da generalização
da cultura digital. Uma nova linguagem com diferentes recursos tecnológicos produzem intertextualidades que são utilizadas
pelas escreventes das mais variadas formas, provocando as mais diversas sensações e sentimentos nas leitoras (es). Além
disso, o dispositivo técnico do comentário contido no programa blog permite acompanhar as relações intersubjetiva
estabelecida nesse espaço virtual e apreciar as interações entre escreventes e leitoras (es).
A partir da observação dos blogs e de suas caixas de comentário e, mais especificamente, do blog cuscas das gajas,
nota-se que há uma relação interblog, uma conversação e uma relação entre as escreventes e outra extrablogs, delas com
demais leitoras/es, ou seja, com amigos virtuais. Vejamos um exemplo de comentário do blog, a propósito de uma declaração
do político português Mário Crespo sobre as mulheres de 09.03.2007. Diz ele: Para mim, é a repetição do milagre que as
mulheres portuguesas continuam a fazer. Estão nas filas dos transportes públicos às seis da manhã para ir para o trabalho e
depois, à noite, em casa, vão mantendo tudo como se lá tivessem estado todo o dia. Face ao que fazem todos os dias, tudo o
mais no País é realmente banal.
Eis os comentários do post:

Os comentários aqui expostos são das escreventes e se misturam com o de outros leitores também escreventes de
blogs. Como se pode observar, eles são feitos por homens e mulheres; via de regra se caracterizam pela brevidade e sua
narrativa pode ser irônica, de rejeição e/ou elogio.Vêm associados a exposição de crenças pessoais e frequentemente estão
colados a lugares-comuns, a generalidades e redundâncias. Não é dito nada de novo, ou melhor quase nada de novo nos
comentários, uma vez que eles são muito mais opinativos do que informativos. Porém, eles criam uma conversação rápida,
uma co-presença, a constituição imediata de um clima de intimidade, transparência e proximidade entre escreventes e
leitores.
O que se pode notar até agora na pesquisa de alguns blogs e também no caso específico do blog cuscas das gajas é
que as interações intersubjetivas realizadas mediante o dispositivo do comentário seguem a velocidade da ferramenta técnica,
são instrumentais, da ordem do reflexo, rápidas e curtas. A relação com o outro é instantânea, e ao que tudo indica, a questão
fundamental para os (as) bloguistas parece ser o simples fato de estar junto, em partilharem sensações atribuindo ao real time
uma importância crucial. Em outras palavras, a co-presença produz a sensação de que se desfruta de uma relação íntima, não
formal, portanto, verdadeira, já que o íntimo, supostamente, pressupõe relações autenticas. Nesse sentido, essas relações são
sentidas como verdadeiras e em nome da autenticidade tudo pode e deve ser falado.
O tempo e a privacidade que outrora foram fundamentais para se construir a intimidade e consolidar o elo entre
amigos, especialmente na modernidade, não possuem nenhuma função nos novos ambientes virtuais. A ética do sigilo, da
privacidade e da permanência tão propalada pelos românticos e que regeram as relações de amizades até bem pouco tempo
atrás, como aponta a literatura epistolar, fazem parte de um passado recente e distante ao mesmo tempo.

263
Na experiência atual nada tem permanência, na “rede” não se faz necessária qualquer gênese histórica, para que se
possa entrar ou estar nas relações intersubjetivas. Na rede encontramos um estado permanentemente provisório de fruição,
sensação, onde os recursos técnicos disponíveis estimulam nervos e corpos, enfim, o biológico, o somático e o corporal, ou
seja, radicaliza-se a biologização da vida e dos elos sociais. O que isso significa? Michel Foucault foi quem melhor explicou
esse fenômeno, ele utilizou noção de biopoder para designar uma forma de poder cujo objetivo mais elevado é investir sobre
a vida. De acordo com ele, dever-se-ia falar de biopolítica
para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-
saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas
que a dominem e gerem; ela lhes escapa continuamente. (...) Mas, o que se poderia chamar de “limiar de modernidade
biológica” de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias
estratégias políticas. O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso,
capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão.
(1988, p.130)

Atualmente, na sociedade da informação parece ocorrer uma significativa intensificação – globalizada e privatizada
– da biopolítica da sociedade industrial descrita por Foucault, que visava administrar por meio de políticas públicas e do
engajamento produtivo dos indivíduos a vida e a sua reprodução planejada de acordo com parâmetros bem definidos. Como
apontaram Hard e Negri (2004), inspirados em Foucault e Deleuze, as redes contemporâneas de produção biopolítica se
fazem no interior de uma “sociedade de controle”, nas quais o trabalho de produção e de manipulação dos afetos em sua
forma produtiva do corporal e do somático é vital para o capital; capturar os afetos é crucial na “era das sensações”. Nessa
sociedade, as relações rápidas, fragmentadas, onde impera o real time e impõe-se a ideologia da novidade a qualquer preço,
têm provocado deslocamentos significativos no valor outrora atribuído à privacidade, à intimidade e ao estatuto do passado e,
consequentemente, na constituição das subjetividades dos indivíduos. Nesse contexto, o corpo e o afeto são cada vez mais
objetos de produção e exibição pública, como indicam certas práticas ligadas aos novos meios de comunicação em rede, onde
o blog é apenas um entre outros dispositivos tecnológicos como os novos produtos da TV e do cinema, a exemplo dos reality
shows e documentários da “intimidade”. Segundo Lyotard (1999) a privatização da vida pública e a publicização da vida
privada são próprias do sujeito na pós-modernidade.
O processo apontado por Lyotard parece marcar também as relações intersubjetivas da atualidade, na medida em
que, observa-se uma de privatização da amizade e ao mesmo tempo sua exibição pública. Além disso, parece estar ocorrendo
um desinvestimento nas amizades longas e duradouras que em um passado recente criavam possibilidade para os indivíduos
encontrarem artes próprias de lidar com a vida. Essas reflexões não devem ser interpretadas como uma condenação aos
avanços tecnológicos, mas como uma problematização dos processos de subjetivação atrelados a eles. Não quer dizer
também que a partir dos dispositivos como os blogs e seus similares não se podem gerar relações intensas e modos de
intervenção no espaço público, mas o estatuto dessa nova forma de ativismo merece ser questionada.
Cabe ressaltar que o ciberespaço é demasiadamente amplo e qualquer generalização pode gerar equívoco. Na
blogosfera existem forças desterritorializantes, acentradas, dispersas, com tonalidades democráticas que teoricamente
possibilitam a comunicação instantânea e troca de informação e afetos entre as pessoas. Porém, há também forças
territorializantes, oligopolística, destinadas a reproduzir a políticas de grupos identitários e colocar em cena os valores de
uma sociedade capitalista e individualista. Ademais, no contexto da web 2.0 temos uma vitrine que oferece uma pluralidade
de modos de viver, sentir, pensar e se relacionar, identidades “pret-a-porter”.
Como exemplifica o blog cusquices de gajas existem fluxos de forças que reanimam o feminismo, resignificam a
história das mulheres e permitem a comunicação e a troca de afetos. Enfim, estimulam a relação entre elas e seu ativismo e
outras destinadas a reproduzir a cultura do narcisimo. Trata-se de um espaço de interação onde é possível manter relações já
estabelecidas e dar continuidade a amizades já existentes e também de tecer laços novos sem os grandes investimentos de
tempo e presença exigidos nas tradicionais relações intersubjetivas.
Segundo Castells (2004), a sociabilidade nas sociedades contemporâneas caracteriza-se por um “individualismo em
rede”, um novo modelo de interação social e não uma coleção de indivíduos isolados. A internet fornece o suporte material
para esse novo tipo de interação e dá visibilidade ao processo de privatização da sociabilidade no auge da sociedade do
individualismo. Do nosso ponto de vista, essa rede não é apenas um suporte material, mas expressão técnica de uma trama e
de desejos sociais que dá visibilidade ao processo paradoxal de privatizatização e exposição pública das relações sociais, bem
como de um sujeito que pretende-se soberano, autônomo e que é causa de si mesmo.
Atualmente, a escrita do blog indica uma atitude nova diante da vida, de um sujeito que se protege pela tela em
espaços resguardados, não tem tempo para o outro, mas que busca alguma forma de conexão com mundo. A pergunta que se
impõe é sobre o lugar e os efeitos político, afetivo e social desse tipo de ligação com o outro. As relações tecidas nos blogs
são simultaneamente privatizadas e teatralizadas publicamente; são próprias dos tempos do fast-forward e do real time que
encenam informalidade, transparência, intimidade e proximidade, minimizando o sentido do tempo, do espaço e da
privacidade nas relações de amizade. Além disso, a exibição das relações, o tudo falar ou o falar livremente, nomeados por
muitos como autenticidade e pluralidade de opinião parecem estar gestando uma nova servidão: a de nada esconder. Isso,
evidentemente, não ocorre apenas nos blogs, mas há uma linha de força que atravessa a atualidade nesse sentido.

264
Fabiana Komesu, à propósito de analisar a relação entre o público e o privado na escrita dos escreventes de blogs na
internet, afirma que o desenvolvimento tecnológico não é neutro; ao contrário, ele é constitutivo de um modo de enunciação e
de uma escritura que substituiu a busca de si mesmo, a volta do sujeito sobre si mesmo por outra forma de escritura fundada
na busca do outro. Fazer ver e ser visto seria a função dessa nova modalidade de escrita. Para a autora, trata-se de um jogo
enunciativo entre “a publicização de si e a intimidade construída na escrita dos blogueiros” (2005, p. 29).
A autora sublinha que, a despeito da grande diversidade de blogs,2 há uma prática discursiva fundada em modo
específico de enunciação, uma palavra de ordem fundada no dispositivo da exposição que pressupõe a existência de um
sujeito vaidoso e narcisista. É o se pode extrair também do depoimento de uma bloguista, que diz, “ninguém escreve para
gavetas”. Assim, seja um blog pessoal, profissional ou os híbridos, os bloguistas escrevem para serem lidos e buscam
capturar o leitor, eliminar a distância e criar o cenário de intimidade.
Nesse sentido, concordamos com Sibila (2003) e Schithine (2004), que na esteira da tradição de pensamento de
Richardt Sennett, afirmam que o sucesso dos blogs está associado ao desenvolvimento da sociedade intimista e ao
individualismo moderno da atualidade. Segundo Sennett (1998), nessa sociedade, onde impera a cultura do narcisismo a
relação com o outro será tanto melhor na medida em que for mais auto-reveladora do ser de cada um, ou seja, se destitua a
alteridade.
A meu ver, a forma de enunciação dos blogs fundada na publicização de si e na construção da proximidade e
intimidade com os leitores se traduz em relações intersubjetivas que buscam a intimidade, a transparência, o consenso, a
identificação, ou seja, aciona feixes de força das políticas de amizades pautadas na igualdade, semelhança e proximidade,
como propunha a tradição discursiva aristotélica-ciceroniana da amizade. Vale lembrar com Nieztsche (1987) que onde há
igualdade, semelhança, fusão e proximidade não há amizade, mas devoção e idealização. O jogo enunciativo presente nos
blogs ao estimular a proximidade e buscar minimizar a distância, se faz não apenas no sentido físico, mas comprime a
distância entendida como alteridade, como heterogeneidade, diferença, gestos fundamentais para formação e transformação
das subjetividades dos indivíduos-sujeitos.
Assim, se potencialmente a internet e, mais especificamente, os blogs, podem ser interpretados como uma
comunicação que põe em contato diversos sujeitos, cidadãos, ou movimentos sociais, numa comunicação descentralizada e à
margem das corporações midiáticas, numa dinâmica de comunicação de muitos para muitos, como sublinha Castells (2004),
de modo geral, o que se viu nos blogs pesquisados até agora, e no caso do blog das cuscas de gajas, é a formação de grupos,
ou seja, a privatização das relações sociais construídas com base nos interesses, valores, afinidades e projetos como apontam
também os links e hiperlinks desses blogs.
Nesse sentido, a despeito do potencial de encontrar o outro em sua radical alteridade, o diferente, o dissenso e o
conflito parecem promover o encontro com o semelhante. Surge uma nova intersubjetividade, que independentemente do
corpo, espaço e tempo, aciona subjetividades semelhantes em rede. Essas estão atreladas a hardware e software disponíveis
no mercado, sobretudo para aqueles possuem acesso a esses bens. A princípio, vale destacar que as desigualdades de classe,
gênero ou raça são elementos caracterizadores de uma fratura digital e estruturante da agência dos sujeitos e da maneira como
essas subjetividades se conectam.
Assim, as relações de amizade tecidas virtualmente, própria da modernidade líquida, de um lado se aproximam dos
tradicionais discursos aristotélicos-ciceronianos da amizade, apontados por Jacques Derrida como ficções falogocêntricas da
fraternidade e responsáveis por políticas que estimulam a criação de grupos, da conversa entre iguais e que no limite
alimentaram o nacionalismo e a xenofobia; de outro, tais relações rompem com essa tradição ao minimizar a questão do
tempo e do espaço, são sócio-espacialmente deslocalizada, tornam-se velozes, proporcionam encontros fugazes de muitos
para com muitos, eliminando os “espinhos” que muitas vezes perpassam a convivência das relações cotidianas e geram
relações impermeabilizadas, livres de riscos e pretensamente controladas pelo indivíduo. Criam-se relações glocalmente
assépticas.
Para as escreventes do blog www.oregabofe.blogspot.com trata-se de criar interações sociais onde o desejo é se
proteger do corpo do outro. Em um post intitulado, “Masturbação,” de 11.09.2008, uma de suas escreventes, miss Woody,
escreve: A masturbação é o melhor dos autolinques. Vivida no recato, não provoca vasqueiro nem inveja. E um comentador
escreve, “o que você diz sobre a masturbação não se aplicaria a amizade tecida na internet?” Infelizmente as escreventes do
blog não responderam, mas poder-se-ia dizer que amizade vivida e mediada pela tela, envoltas de prótese de proteção, não
provocam “vasqueiro nem inveja”. Ou melhor, podem ser vividas sem grandes paixões, no recato e higienicamente sem
contaminação. Em outras palavras, as relações de amizade controladas pelo mouse e pelos links a critério do navegador,
evitam o indesejado e deletam-se com mais facilidade o outro, favorecendo uma espécie de engenharia genética das relações
sociais, onde se escolhe a composição de gene que dará o melhor resultado final, e se podem combinar as virtudes e os
defeitos das espécies, uma nova eugenia perversamente ligada ao mercado assente nos produtos tecnológicos.
Tais relações expressam de certa forma o desejo de segurança e controle dos indivíduos em relação ao outro nas
sociedades contemporâneas, onde o espaço público, espaço por excelência de contato com o outro, tornou-se o espaço do

2
De acordo com os dados apresentados pela tecnoratti, em agosto de 2008, dos 133 milhoes de blogs indexados, 54% eram de lifestyle. Talvez seja por essa razão
que, ainda hoje, o uso dos blogs como diário pessoal é visto por muitos autores como o uso mais popular da ferramenta, embora se reconheça uma multiplicidade
de apropriações e a existência de diversos tipos de blogs. Veja-se no Brasil, os trabalhos Raquel Recuero (2003 e 2004); Alex Primo e Ana Smaniotto (2006);
Alex Primo (2008), entre outros.

265
medo e da insegurança. As relações intersujetivas nos blogs exibem a sua maneira a materialidade do discurso do sujeito
liberal autônomo, que, supostamente, pode regular e administrar sua vida e suas relações, e do sujeito que se pretende
“liberado” e é causa de si mesmo, o que leva a aumentar a pressão sobre si e minimizar as exigências em relação ao espaço
público.
A valorização dessa autonomia do sujeito traduz-se na “ação de escolher” seus interlocutores na rede, ou seja,
aqueles com quem se quer manter relações. Isso quer dizer que não se trata apenas de uma modulação de relacionamento,
mas de uma modificação na experiência da amizade e na forma de ver e se relacionar com o outro; ou seja, queremos ter
amigos, partilhar sensações em comum, consenso, “cum-sensualis”, evitar a solidão sem grandes esforços e, ao mesmo
tempo, desejamos emoções e sentimentos intensos. Atualmente, a humanidade está dotada de poderes que outrora era
imaginada apenas nas ficções científicas, como escreve Paula Sibila (2003,15-16):
Essas novas potências dos homens contemporâneos parecem estar marcando uma ruptura, que muitos começam a
apontar como fim da humanidade (seja celebrando-o ou condenando-o), e o início de uma nova era: a pós-humanidade.
Pois somente agora a criatura humana passaria a dispor, de fato, das condições técnicas necessárias para se autocriar,
tornando-se um gestor de si na administração do seu próprio capital privado e na escolha das opções disponíveis no
mercado para modelar seu corpo e sua alma.

É utopia da tecnociência prometendo pílulas milagrosas que facilitam nossa vida e nossa convivência. Vale destacar
que a ausência de qualquer sociabilidade que implique na convivência com o outro, inclusive com o indesejado, anula a
experiência de alteridade estimulando cada vez mais a cultura do narcisismo. Além disso, aciona feixes de forças que põe em
ação um individualismo liberal que não intensifica a relação ética consigo mesmo, individualismo esse entendido como um
cuidado de si e do outro, no sentido apontado por Michel Foucault em seu livro História da sexualidade I; ou seja, um
individualismo que exige a volta sobre si mesmo, onde se é chamado a tomar o si mesmo como objeto de conhecimento e
campo de ação para esculpir-se singularmente e a realizar uma construção individualiza de si para agir no espaço público
como se deve.
Pautada na crescente transparência, intimidade, habitando as fronteiras entre o público e o privado, nômade e
deslocalizada, as relações intersubjetivas tecidas nos blogs são cada vez mais efêmeras, mutáveis e espetacularizadas sem,
com isso, sem menos reais. Certamente, são novas relações que nos impõem o desafio de perguntar se ainda é válido e
possível falar em amizade, ou se é necessário formular novas ideias sobre as relações entre as pessoas capazes de conter as
novas possibilidades que estão se abrindo.

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266
A importância da ampliação de discussões referentes à violência masculina após
um ano de Lei Maria da Penha no Brasil.
Maria Juracy Filgueiras Toneli
Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]

Name: Simone Becker


Universidade Federal da Grande Dourados
[email protected]

Resumo: No contexto latino-americano os trabalhos de investigação e de intervenção no campo das violências de gênero têm se mostrado
cada vez mais expressivos. Do ponto de vista da compreensão do fenômeno é possível identificar mudanças conceituais importantes, em
geral sustentadas pela busca da superação da lógica binária que separa em pólos inconciliáveis agressores e vítimas. A despeito do maior
entendimento dos aspectos envolvidos nas situações de violência, o atendimento tem se centralizado nas vítimas e suas famílias, o que tem se
mostrado insuficiente no sentido da diminuição ou mesmo extinção dos episódios. Em agosto de 2006 foi sancionada, no Brasil, a lei
11.340/2006, popularmente conhecida como Lei da Maria da Penha. Esta lei altera o Código Penal Brasileiro triplicando a pena para
agressões domésticas contra mulheres e aumentando os mecanismos de proteção às vítimas. Possibilita que agressores sejam presos em
flagrante e extingue penas alternativas. Medidas preven tivas para proteger a mulher em situação de agressão também estão previstas como:
a saída do agressor da casa, a proteção dos filhos e o direito da mulher de reaver bens e também de cancelar procurações feitas no nome do
agressor. Um outro avanço é que a violência psicológica passa a ser considerada juridicamente como violência doméstica. No entanto, torna-
se necessário monitorar conceitual e empiricamente sua implantação. A crítica feminista é imprescindível aqui e pode contribuir para o
avanço da discussão de políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência contra a mulher em todos os seus aspectos.

Introdução
A violência contra a mulher, apesar de ser incontestavelmente frequente (com algumas estatísticas apontando entre
20% a 50% de prevalência no mundo todo), é ainda uma das formas de violência mais abafada e de difícil solução. Por
acontecer majoritariamente no interior do lar e tendo como o autor da agressão o próprio parceiro, essa forma de violência é
usualmente envolvida em uma névoa de invisibilidade social. O motivo dessa invisibilidade não pode ser mais justificado
pela antiga crença de que essa seria uma violência “menor”, com danos mais “leves” do que as violências públicas.
O termo violência contra a mulher engloba todas as formas de agressão - física, sexual ou psicológica - contra a
mulher, independente da idade, classe, ou lugar onde ocorreu a violência. Refletindo um dos aspectos da desigualdade de
gênero, a violência contra a mulher é com frequência uma violência doméstica e intrafamiliar, ou seja, ocorre no espaço do
lar e em geral o autor da agressão guarda alguma relação de parentesco com a vítima (cônjuge – ou ex -, pai, irmão etc.).
(Day,Telles, Zoratto, Azambuja, Machado, Silveira et al., 2003; Lemes, 2002).
A confusão entre a violência contra a mulher, violência doméstica e violência intrafamiliar se dá pelo fato da
mulher ter sido relegada historicamente aos espaços privados, com atuações restritas ao cuidado do lar e da família, e o
homem ter sido o protagonista da vida pública, tanto profissionalmente, quanto na política, na ciência e na História de uma
forma geral. Justamente pela agressão ocorrer, majoritariamente, em um espaço privado e no seio da família - instituição de
base, quase que “sagrada”, de toda a vida social – é que se torna tão difícil o acesso a essas informações, bem como uma
intervenção qualificada e eficiente. (Deslandes, Gomes & Silva, 2000; Schraiber & D’Oliveira, 1999; Njaine, Souza, Minayo
& Assis, 1997; Griffin, 1994)
Diversas pesquisas mostram a gravidade das agressões, não só físicas, mas também com agravos psicológicos de
longa duração (Mota, Vasconcelos & Assis, 2007; Monteiro, Araujo, Nunes et al., 2006; Porto, 2006; Heise, 1994). A
invisibilidade é muitas vezes mantida pelas relações assimétricas entre os gêneros (tanto economicamente quanto
socialmente), que se expressam nas “vistas grossas” dos vizinhos, no medo e na insegurança da mulher em romper o vínculo
e no próprio homem que continua atuando segundo esse padrão relacional. Portanto, apesar de se expressar como um
problema do âmbito “privado”, a violência contra a mulher é um problema social e público, e por isso exige uma solução
também pública. O que é necessário fazer, no âmbito das políticas públicas, para prevenir e intervir nessa forma de violência,
tão frequente e grave, e ao mesmo tempo tão invisível?

A legislação brasileira
Em um movimento que se inicia na década de 1980, o Brasil começou a implementar leis mais rígidas relacionadas
à violência contra a mulher e a estruturar casas-abrigo e delegacias especializadas no atendimento de mulheres vítimas de
violência. As Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) surgiram nessa época como uma das formas de tornar pública a
violência que antes era privada. Uma das principais reivindicações do movimento feminista era a de que os crimes cometidos

267
contra as mulheres tivessem as mesmas consequências que as formas de violência cometidas no âmbito público e entre
desconhecidos, alegando que os direitos deveriam ser iguais para todos (Schraiber & D’Oliveira, 1999).
Segundo Schraiber & D’Oliveira (1999), a instituição das DDMs foi um grande avanço, pois
permitiu que delegacias especiais para crimes contra a mulher, com funcionárias exclusivamente mulheres e
devidamente treinadas, fossem implantadas, dando enorme visibilidade ao problema. O Brasil foi o primeiro país no
mundo a propor este tipo de intervenção. Hoje em dia, já são mais de cem DDMs só no Estado de São Paulo, mais de
180 em todo o país e inúmeras delegacias do mesmo tipo em diversos países da América Latina. (Schraiber &
D’Oliveira, 1999, p. 12).

Apesar do grande avanço que as DDMs representam, nestas se abordam somente o caráter judicial do problema:
detectam as transgressões da lei, averiguam sua procedência e encarceram o autor de violência. A violência contra a mulher
sai da invisibilidade e da “aceitação social” para se tornar um crime. Essa visão demasiadamente restrita acabou tirando de
cena a saúde pública como forma de intervir no problema, que poderia garantir não só o atendimento, mas também a
prevenção da violência.
Um dos intensos debates dessa área tem sido sobre a Lei dos Juizados Especiais Criminais (9.099/95), que julga e
processa infrações de “menor potencial ofensivo”, na qual a violência contra a mulher geralmente é enquadrada (excluindo
homicídios e lesões corporais graves). A possibilidade dos homens autores de violência julgados pela Lei 9.099/95 terem
suas penas convertidas em penas alternativas e, principalmente, a maneira como isso ocorria (geralmente, através do
pagamento de cestas básicas), foi criticada pela maioria dos setores que lidam com a violência contra a mulher.
O cenário brasileiro recentemente foi modificado, com a aprovação da lei nº 11.340 em agosto de 2006. Esta nova
lei que foi sancionada altera em muito o caráter da punição por ofensas de violência contra a mulher, violência sexual e
admite uniões homoafetivas estáveis, reconhecidas como familiares em sua aplicação (Dias, 2007).
Segundo Lessa a lei pretende
que o réu acusado da prática de qualquer crime resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher,
independente da pena cominada, seja julgado por tal infração penal e, na hipótese de condenação, seja-lhe aplicada
uma pena que, ainda que venha a ser substituída por pena restritiva de direitos, possa, em caso de descumprimento
injustificado, ser convertida em prisão, de modo que o apenado se sinta afligido com a sanção penal imposta e, deste
modo, seja demovido da idéia de persistir na prática de infrações penais deste jaez. (Lessa, 2006, p. 8-9).

A Lei 11.340 também é conhecida como “Lei Maria da Penha”. Esta nomeação baseia-se no caso emblemático de
Maria da Penha Maia que há aproximados vinte anos foi vítima de agressões praticadas por seu então marido, um professor
universitário. Em razão das violências físicas Maria da Penha ficou paraplégica. Somente depois de dezenove anos e seis
meses o agressor foi condenado a oito anos de prisão, tendo cumprido dois destes anos. No dia 07 de julho de 2008, Maria da
Penha recebeu uma indenização de sessenta mil reais do Governo do Estado do Ceará, face à sua omissão pelo retardo na
condenação do agressor.
Ao longo deste tempo, Maria da Penha dedicou-se à luta junto ao movimento de mulheres e feminista, com o
objetivo de defender os direitos das mulheres que são vítimas destas espécies de violências tão corriqueiras em nosso país.
É neste contexto de embates políticos que a categoria gênero emerge, galgando o status de termo legal graças aos
movimentos feministas brasileiros. Aliás, uma conquista amparada nas diretrizes da Convenção do Belém do Pará, ratificada
pelo Brasil em 1995, cujo artigo 1º assim define a violência contra a mulher:
Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher a qualquer ação ou conduta, baseada
no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como
no privado.

Há décadas, a antropóloga Mariza Corrêa em sua precursora obra intitulada “Crimes de paixão” (Corrêa, 1983),
trouxe à tona o tratamento judicial/processual desigual atribuído pela Justiça Criminal paulista (mas não apenas) às mulheres
que agrediam seus (ex-)companheiros e (ex-)cônjuges em comparação às mesmas atitudes praticadas pelos homens em
relação às suas (ex)esposas e (ex)namoradas. Para a autora, esses últimos geralmente eram beneficiados com a retórica dos
operadores do direito que entendiam suas condutas como “legítima defesa da honra”, por mais que tal expressão não tivesse –
ou algum dia tenha tido – abrigo no Código Penal brasileiro.
Assim, de um lado, vê-se que esta etnografia aponta para as assimetrias ou desigualdades produzidas socialmente,
entre homens e mulheres (Heilborn, 1995; Silva, 1985). Neste sentido, o uso da categoria gênero:
Rejeita explicitamente explicações biológicas como aquelas que encontram um denominador comum, para diversas
formas de subordinação, no fato de que as mulheres têm as crianças e que os homens têm um força muscular superior.
O gênero torna-se, antes, uma maneira de indicar “construções sociais”- criação inteiramente social de idéias
sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. (...). O gênero é, segundo esta definição, uma categoria
social imposta sobre um corpo sexuado. (Scott, 1995, p. 7). (Grifos nossos).

De outro lado, o próprio “gênero” enquanto uma categoria analítica, somente apresenta sentido quando pensada em
termos de “relações sociais”. Desta forma, um dos grandes avanços gestados na década de 90 no tocante aos estudos de
gênero, reside na transcendência da vitimização posta na dicotomia homem/agressor versus mulher/agredida (Soares, 1999;
Gregori, 1993). Em outros dizeres, não somente os homens são tidos como agressores nas diversas relações sociais travadas

268
com as mulheres, mas essas também passam a ser percebidas como agentes que perpetuam e iniciam as relações violentas.
Entende-se assim que
As mulheres vivem em relação e a identidade é criada em meio a um processo de espelhamentos e contrastes, e que
não se esgota. Não existe uma categoria genérica que imponha o traçado ou o perfil dessa identidade. A identidade se
perfaz na trajetória, nas relações. É equivocado incorrer num procedimento de “essencializar” e generalizar a
experiência de vida das mulheres a partir do fato de que são oprimidas. (Gregori, 1993).

Vê-se que se o movimento dos acadêmicos e teóricos tende a romper com a vitimização, há que se destacar que ao
falarmos em políticas públicas voltadas às mulheres, uma das estratégias da militância é o de enfatizar ou de “essencializar” a
mulher como o “pólo passivo” nas e das relações sociais e conjugais. Isto porque se entende que o problema das
desigualdades às quais as mulheres são submetidas, incluindo as várias formas de violência, configura um cenário
especialmente crítico que não deve ser minimizado ou invizibilizado. Com o objetivo precípuo de garantir os avanços destes
sujeitos em termos de acesso à cidadania e a direitos legislados - sujeitos de direitos - as mulheres se tornam portadoras de
visibilidade e detentoras de poderes a serem negociados na arena judicial, graças à transformação de reivindicações em
políticas públicas e, sobretudo, graças à transformação de reivindicações em projetos de leis.
Quanto à negociação na arena do judiciário, destacamos que é esse um lócus de produção de sujeitos por
excelência, em especial, se tomarmos o contexto das relações processuais como discursos ilocutórios no sentido de Austin.
Isto é, como aqueles que ao serem proferidos por quem seja legitimado a fazê-lo produzem eficácia tanto real quanto
simbólica. Então quando o juiz afirma: “je vous condamne”, isso não diz outra coisa senão que: “son dire est en lui-même
une sorte de faire” (Butler, 2004, p. 43), constituindo uma espécie de conduta do destinatário, ou de um habitus, se fôssemos
pela via bourdiana.
Por conseguinte, desembocamos no principal avanço da Lei Maria da Penha, à medida que pela primeira vez uma
legislação brasileira traz em seu corpo a relevância e a importância do “gênero”. Nesse sentido, há o entendimento de que a
violência contra a mulher encontra seu lócus privilegiado em contextos culturais e históricos nos quais os padrões de
relacionamento, hábitos, costumes e valores mantêm a assimetria fundamental de gênero. Trata-se de relações de poder que
se objetivam, nos casos previstos pela Lei, em várias formas de violência. Ademais a utilização da ótica do gênero permite o
avanço da compreensão da problemática, uma vez que uma das medidas previstas é a do encaminhamento do agressor a
centros/programas de reabilitação e reeducação. Outro avanço segundo a ótica do gênero é o do reconhecimento da mulher
como agressora, e, portanto, da visibilidade das relações homossexuais mesmo que sob a égide da violência doméstica.
E mais: todos estes possíveis avanços, à luz dos estudos de gênero e de sexualidade, caminham de mãos dadas com
os aspectos instrumentais ou jurisdicionais da Lei 11.340/2006. Afinal, outro importante propósito almejado pelos juristas e
teóricos que se debruçaram sobre o projeto de lei convertido em lei, voltava-se para a ressignificação dos crimes praticados
pelas mulheres que na vigência da Lei 9.099/95 eram interpretados na prática jurisdicional como “crimes de bagatela” e/ou
de “menor potencial ofensivo”.
A utilização da legislação penal pelas mulheres tem-se mostrado, pois, fator de alto risco. A reversão da vítima em ré
nos processos é a regra pela qual o sistema penal opera, sendo sempre acionada a “lógica da suspeita” quando as
mulheres nele ingressam. É assim que o sistema penal tem operado em delitos graves como o estupro ou homicídios,
onde é julgada a moralidade feminina e não o delito cometido ou a violência praticada. O sistema penal inverte o ônus
da prova, não escuta as vítimas, recria estereótipos, não previne novas violências e não contribui para a transformação
das relações hierárquicas de gênero nem para uma nova compreensão da própria lei penal. A utilização do sistema
penal, por isso, duplica a vitimação feminina (Andrade, 1996; Karam, 1995). A clássica proposta feminista de
criminalização de condutas deve, então, ser vista com reservas. (Campos, 2001, p. 319).

Sob esta perspectiva, as pesquisas voltadas aos Juizados Especiais Criminais brasileiros apontam que as lesões
corporais leves e ameaças que chegam às portas de tais instituições são conciliadas visando o restabelecimento da harmonia
familiar, desconsiderando a mulher enquanto sujeito de direitos. Como afirma Debert (2007),
Os operadores do direito, raramente, reconhecem que esse é um crime altamente sexualizado, no qual prevalecem a
hierarquia de gênero e os preconceitos, ou seja, que a maioria das vítimas desses crimes são as mulheres e que são
vitimadas simplesmente pelo fato de serem mulheres! Desse modo, a violência contra a mulher ganha novamente
invisibilidade. (...). A mulher não é pensada como sujeito de direitos, diferente da DDM, onde lhe perguntam se ela irá
ou não exercer seus direitos. O que importa é a conciliação do casal, que implica a dissolução da figura de vítima e de
réu, em que a vítima está litigando pela punição de um crime no qual foi lesada. No caso da violência entre casais, a
família é interpelada para resolver um problema que não deveria ter chegado ao âmbito do Judiciário. (Debert, 2007, p.
329).

À luz deste breve retrospecto, pode-se dizer que desde a vigência da Lei Maria da Penha, tanto elogios quanto
críticas são despendidas ao citado ordenamento.
Quanto aos aspectos positivos, além da inserção do termo gênero no texto legal, bem como, da visibilidade das
relações conjugais homossexuais entre mulheres, outros aspectos formais ou processuais podem e devem ser ressaltados em
comparação à lei antes aplicada a estes conflitos, denominada de Lei dos Juizados Especiais. São eles:

269
1º - O flagrante delito é admitido, fazendo com que seja retomada a caracterização – ao menos no papel, dos pólos
ativo e passivo na relação estabelecida no âmbito do Executivo – Polícia Civil. Desta forma, a mulher enquanto vítima
(res)surge desde o início do chamado inquérito policial – fase imediatamente anterior ao processo penal no Brasil.
2º - Com o restabelecimento do inquérito policial deixa de existir no plano legal a figura do “termo
circunstanciado” que outrora era adotado face à violência contra a mulher na Lei 9.099/95.
3º - O atrelamento da violência à ação penal pública condicionada à representação, porém, com o adendo de que a
desistência por parte da mulher somente se concretizará na presença do Juiz, em uma audiência destinada a este ato (artigo 16
da Lei 11.340/2006). Detalhe: a renúncia só poderá ser feita antes do recebimento da denúncia com a oitiva do Ministério
Público. Tal dispositivo tenta evitar a pressão do agressor sobre a vítima, e também tenta evitar a pressão do Judiciário sobre
a vítima, para que ela venha a negociar a desistência.
4º - O aumento da pena máxima para o patamar de três anos, o que retira essa violência do rol dos crimes de menor
potencial ofensivo, não sendo mais enviada aos Juizados Especiais.
5º - A impossibilidade de transação penal e, então, de pagamento de “cestas básicas” como resultado da conciliação
antes corriqueira sob a guarida da Lei 9.099/95 (artigo 17 da Lei 11.340/2006).
6º - A impossibilidade de a vítima entregar intimação ou notificação ao agressor (artigo 21, parágrafo único da Lei
11.340/2006).
7º - A possibilidade de criação dos Juizados de Violência Familiar e Contra a Mulher por parte da União, Estados e
Municípios (artigo 14 da Lei 11.340/2006).
8º - A possibilidade de o agressor(a) ser preso (a) em flagrante pelo período de até dezoito meses, e se houver risco
à integridade física da vítima o agressor poderá ter a prisão preventiva decretada em até três anos.
9º - Enquanto medidas cautelares o judiciário poderá decretar a saída do agressor de casa, e a vítima poderá retirar
seus pertences do espaço doméstico com o acompanhamento da polícia. Além destas, ainda podem ser anuladas quaisquer
procurações que a vítima tenha assinada em favor do agressor/a, devendo os direitos da mulher ser a ela informados
constantemente, inclusive se o agressor/a for liberado após prisão.
10º - A modificação do artigo 152 da Lei de Execuções Penais, com a inserção do parágrafo único que faculta ao
magistrado obrigar o agressor a comparecer a programas de recuperação e de reeducação.
11º - Para que a mulher agredida recupere-se das agressões, ela poderá ficar afastada do emprego pelo período de
até seis meses, sem, contudo vir a perdê-lo.

Os limites da Lei
Schraiber e D’Oliveira (1999) afirmam que foi a partir dos anos 90 que o movimento de mulheres dá uma guinada
estratégica, realocando a discussão da violência contra a mulher do judiciário para três campos principais: os direitos
humanos, a saúde e o desenvolvimento social. Estes três campos além de já consolidados e reconhecidos internacionalmente,
reverteram definitivamente a discussão para a necessidade de se pensar a prevenção, incluindo a violência contra a mulher na
esfera da saúde pública.
Dados recentes possibilitam constatar que, apesar de todas as iniciativas de punição contra autores de violência
contra a mulher, ela ainda continua presente. A comparação dos dados alarmantes da pesquisa de Heise (1994) nas décadas
de 80 e 90 com os dados dos anos 2000 mostra que eles não chegam a diferir muito. Os dados da pesquisa de Heise indicam
que no Brasil 70% das ocorrências de uma DDM de São Paulo ocorreram no lar e, em aproximadamente 100% dos casos, o
agressor era o parceiro, sendo que 40% das ocorrências resultaram em danos físicos sérios à vítima. Outros dados mais atuais
de Schraiber, D'Oliveira, França Jr., I. & Pinto (2002) mostram que a violência contra a mulher, na vida adulta e tendo como
o autor o próprio parceiro, atinge cerca de 20% a 50% das mulheres em todo o mundo, ao menos uma vez na vida. No Brasil,
o padrão é o mesmo, também restrito à forma da violência doméstica, e tendo o parceiro ou ex-parceiro o principal agressor
em 77,6% dos casos registrados nas DDMs.
Welzer-Lang (2004), ao pesquisar homens violentos, constata que não há responsabilização para os atos destes,
assim como estes homens não identificam o grau e a extensão da dor que causam às suas vítimas, ou seja, os homens não
entendem os efeitos corporais e psíquicos da dominação que exercem. Para os homens que pesquisou, a violência se
caracteriza apenas como algo que ocorre em um momento específico, sem relação com uma historicidade de vida ou com um
ciclo de violação dos direitos das mulheres, e se liga a uma modificação da conduta da companheira, algo que se instaura em
um nível quase “educativo” e que mantém e reproduz as relações de poder encontradas na sociedade, mesmo em um nível
íntimo. Welzer-Lang indica uma saída do androcentrismo para a escuta do que as mulheres têm a dizer sobre os homens e,
então, uma melhor identificação do que realmente ocorre, algo como uma ruptura epistemológica que todo pesquisador de
masculinidades deveria propor-se a realizar.
Autores como Welzer-Lang (2004) apóiam a tese de que o gênero se mantém e é tanto definido como regulado
através de violências. Compreendem que, assim, se perpetua a estrutura de poder atribuída coletivamente e individualmente
aos homens às custas das mulheres. As relações homens/homens também são marcadas por desníveis e por violências
simbólicas e concretas.
De acordo com Connell (1997), a masculinidade não é um objeto coerente ou generalizável, e toda tentativa de
definição deste deve estar inserida numa estrutura maior, de modo a possibilitar, assim, a compreensão de suas dinâmicas,

270
colocando-o sempre em uma rede de significantes, na qual se incluem “as práticas que comprometem homens e mulheres
com essa posição de gênero, e os efeitos destas práticas na experiência corporal, na personalidade e na cultura” (p. 35).
Almeida (1995, apud Costa, 2003) enfatiza que a masculinidade não deve ser encarada como o simples colorido cultural de
um dado natural, uma vez que ela é marcada por assimetrias (como heterossexual/homossexual) e por hierarquias (de mais a
menos “masculino”).
Messerchmidt (2000), apoiando-se na teoria de Connell, afirma que o lar é geralmente o lugar onde os jovens do
sexo masculino se apropriam de definições e de valores de masculinidade, de maneiras singulares, mas que, a partir dessas
internalizações, os jovens se engajam com a propagação do que Connell chama de masculinidade hegemônica, que os
homens sentem como se fosse parte de si.
A cultura simultaneamente define quando e como utilizar a violência, e a violência masculina é historicamente
aceita como um meio aceitável de se resolverem conflitos, principalmente quando existe um contexto de auto-defesa em
relação a algum fator exterior. Esse contexto de auto-defesa onde existe a possibilidade de se perder o status de masculino é o
que Messerchmidt (2000) chama de “masculinity challenges”. Sendo que a generificação do corpo é um interesse de enorme
importância na adolescência, estes “masculinity challenges” podem motivar ação social para recursos de masculinidade que
corrijam a subordinação a outros homens que ocorre em determinadas situações, como a escola. Este movimento pode tomar
muitas características diferentes, mas uma que se sobressai como sendo entendida como “inerente” ao masculino é a
violência – e, a partir disso, o crime pode ser a solução, ainda mais em um caso de agressão sexual, no qual a subordinação
feminina é reiterada.
A Lei Maria da Penha prioriza aspectos punitivos em relação ao agressor (termo recorrente no texto da lei),
especialmente nas Seções II e III. Nos artigos 35 e 45, o texto prevê a criação de centros de educação e reabilitação para os
agressores (Disposições Finais do Art. 35) e a possibilidade do juiz “determinar o comparecimento obrigatório do agressor a
programas de recuperação e reeducação” (Art. 45). Ou seja, ainda que focalize os homens e guarde um caráter punitivo, a
Lei, a partir de uma perspectiva de gênero, reconhece a necessidade do trabalho que inclua os homens de outra maneira que
não apenas como aquele que deva ser punido.
Face a tudo isso, podemos argumentar que a Lei Maria da Penha ainda deixa lacunas e apresenta limites como:
1º - A definição da violência contra a mulher como restrita à esfera “doméstica” ignora outros espaços onde as
agressões são praticadas. Como bem coloca a socióloga e pesquisadora Eva Blay:
Constatamos, através dos dados aqui analisados, que a violação não se limita ao espaço físico da casa, mas ocorre na
rua, no local de trabalho, em áreas de lazer, em todos os lugares em que a mulher exerce suas atividades cotidianas.
(Blay, 2008, p. 214).

De qualquer maneira, deve-se relativizar esta possível interpretação da Lei Maria da Penha e da compreensão da
violência doméstica. Se, por um lado, a citada lei define a violência doméstica e familiar como aquela que se dá no âmbito
da unidade doméstica, por outro lado, ao defini-la como vinculada ao âmbito da família e das relações afetivas estabelecidas
pelas mulheres, não nos parece que espacialmente a violência doméstica e familiar encontra-se circunscrita ao âmbito da
casa.
2º - Redução da categoria “gênero” à mulher ou ao sexo feminino, isto é, ausência de possibilidade da Lei Maria da
Penha vir a ser estendida às violências domésticas perpetradas contra crianças do sexo masculino. Portanto, a ressalva que o
artigo 13 da Lei 11.340/2006 faz no tocante ao “conflito de normas” quando o Estatuto da Criança e do Adolescente pode e
deve ser acionado, tenderia a cair por terra em se tratando de agressões praticadas contra meninos. Da mesma forma, as
mulheres autoras de violência não têm sido problematizadas como a Lei permite. Como a socióloga Eva Blay analisa a
agressão contra a mulher está enraizada em uma cultura da violência “inscrita em nossa história” (Blay, 2008, p. 222). E
mais:
Desta cultura de violência não escapam as mulheres: agridem filhos, filhas ou companheiros. São guiadas por padrões
de educação baseados na agressão. Há também as que matam filhos recém-nascidos ou crianças por inúmeras razões,
desde problemas econômicos, abandono pelo companheiro, ódio, reações emocionais descontroladas. (Blay, 2008, p.
217).

3º - A criação por si só de outro órgão competente para o julgamento das violências domésticas contra a mulher não
garante a mudança de postura dos operadores do direito. Muito pelo contrário, uma vez que a maioria dos estados e dos
municípios vem aplicando a Lei Maria da Penha por meio de “bricolagens” de material físico, espacial e humano das Varas
Criminais e/ou dos Juizados Especiais Criminais, que outrora eram responsáveis pela banalização e/ou invizibilização da
violência contra a mulher.
4º - Na esteira do tópico anterior, destaca-se que a postura conciliatória dos juízes togados tenderá a continuar nos
momentos destinados à desistência da ação, caso não haja investimento em termos de capacitação dos operadores do direito.
5º - A punição aumentada para três anos de prisão ainda pode ser considerada uma pena branda, considerando a
gravidade a que chegam determinados casos, como o da própria Maria da Penha.
6º - Quanto à modalidade de atenção voltada aos autores de violência, a Lei utiliza termos distintos (centros e
programas, educação e reabilitação, recuperação e reeducação) que, por sua vez, implicam em dinâmicas, estruturas e metas
distintas.

271
7º - Quanto ao encaminhamento para os serviços de atenção, a Lei é omissa em relação ao momento do processo
penal em que deverá ocorrer, o sistema e/ou setor ao qual estarão vinculados, os profissionais que ofertarão o serviço e o
caráter obrigatório ou não do comparecimento do agressor.
Ou seja, o avanço na discussão de suas contradições e lacunas, bem como na sua implementação que deverá incluir
capacitação ampla dos profissionais envolvidos na situação (operadores do Direito, da Segurança Pública, da Saúde, da
Educação, etc.), é imprescindível para que a Lei Maria da Penha alcance seus objetivos.
Neste sentido, no nosso entender, os programas multidisciplinares previstos para o atendimento de vítimas e de
agressores devem ser coordenados por profissionais capacitados, pois é insuficiente que estes tomem os homens/agressores
como afeitos a patologias e as mulheres como desvinculadas da engrenagem da violência. Individualizar problemáticas de
ordem sócio-cultural por meio de processos de psicopatologização, assim como negligenciar a subjetivação das próprias
mulheres na cultura, constitui um dos grandes problemas do próprio direito moderno.
A Lei Maria da Penha, articulada com o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e o Programa de
Enfrentamento da Violência contra a Mulher – ambos do governo brasileiro – prevê medidas integradas que deverão ser
implementadas por setores diversos como os da educação, justiça, saúde e mídia. O entendimento é o de que o enfrentamento
da violência contra a mulher requer ações a curto, médio e longo prazo na direção da equidade de gênero. Ou seja, requer de
toda a sociedade esforços articulados para que haja de fato mudanças nos padrões culturais que perpetuam as desigualdades.
Para que a cultura da violência possa ser erradicada no Brasil, além dos motivos macrossociais já conhecidos, há
que se tentar entender como tal cultura é significada por cada um destes homens, mulheres e crianças em suas trajetórias de
vida. Deve-se, portanto, compatibilizar uma responsabilização e uma punição que são individuais à compreensão de um
problema que é também da ordem social e que deve assumir um viés educativo com estratégias combinadas. Assim sendo, o
avanço desta lei se circunscreve também, entre outras estratégias, aos incentivos à propagação do ensino de gênero e do
feminismo.

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Poder e representação política de mulheres brasileiras - as cotas legislativas entre


instituições e cultura*
Clara Araújo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ
[email protected]

Resumo: O trabalho apresenta os resultados da pesquisa sobre o impacto das cotas eleitorais sobre das mulheres brasileiras ao poder,
sobretudo o legislativo. Durante dois anos foi feita uma investigação empírica de abrangência nacional, procurando avaliar a experiência dos
12 anos da Lei de Cotas no Brasil, comparando-a com a experiência na Argentina. Foram entrevistados diversos atores do campo político
brasileiro e argentino, coletados materiais de campanhas e de Programas partidários e coletados dados estatísticos de modo a compor uma
série histórica.
Os resultados quantitativos indicam a pequena eficácia das cotas. Os resultados qualitativos apontam para uma diversidade de fatores
associados à cultura política, ao sistema eleitoral e às condições estruturais adversas que as brasileiras enfrentam em termos sócio-
econômicos. Após apresentar algumas evidências, o trabalho problematiza dois aspectos: a necessidade de articular de forma mais
consistente as abordagens sobre discriminações de gênero e instituições políticas e as características que as construções de carreiras e o
associativismo e a participação política têm adquirido no país na última década. Por fim, questiona a abordagem centrada apenas na
perspectiva “intra-gênero” e aponta para a importância de incorporar o debate sobre instituições políticas e associativismo nos estudos sobre
mulheres e poder representativo.

Introdução
A adoção de cotas como estrategia de ampliação do acesso das mulheres às instâncias de decisao politica
institucional, sobretudo ao orgãos de representação legislativa, é um fenômeno digno de estudos neste inicio de século.
Dados apresentados por diversos orgaõs internacionais que de alguma forma trabalham com a temática de gênero e poder(
governamentais e nao-governamentais a exemplo da UNIFEM, IPU, Conselho da Europa, IDEA, Cepal, entre outros),
mostram evidências quantitativas nesse sentido.
As cotas começaram como experiências isoladas na decada de 80, em alguns paises da Europa e da Asia. Durante a
década de 90 elas se disseminaram, impulsionadas sobretudo, pela Conferência da ONU conhecida como conferencia de
Beijing em 1995.1 E, na presente década, é possivel dizer que se tornaram o principal tipo de estratégia de acesso ao poder
legislativo. São adotadas por diferentes tipos de regimes politicos e diferentes culturas, nas quais as posições das mulheres
podem tanto ser mais igualitarias como profundamente desiguais (Dahlerup, 2006; Matland, 2006; IDEA, 2008). Apesar
deste cenário, permanece como uma proposta controversa e geradora de debates, sob diferentes ângulos (Diaz-Mateo,2002;
Squires, 2007). Ainda assim, fala-se de cotas quase como sinônimo de via de inclusão das mulheres às arenas de competição
por representação politica, sobretudo, à representacao legislativa.
Alguns fatores mais gerais respondem pelo desencadeamento desse processo: a constatação de que as mulheres
permaneciam sub-representadas e que esta sub-representacao era significativa, bem como nao correspondia às suas
conquistas em outras esferas e espaços. Varios estudos analisaram o seu surgimento como estratégia que se insere no
contexto mais recente de crítica aos limites de inclusão da democracia representativa e da emergência de novas formas de
identidade política e de demandas por reconhecimento (Phillips, 1995/1998; Fraser, 1997; Miguel, 2002). Em trabalhos que
procuraram discutir os aspectos relacionados com contexto gerador dessas propostas, foram identificadas, também, algumas
situações que teriam criado um ambiente propício para a sua adoção: em diferentes paises, contextos associados aos

*
Agradeço ao CNPq/br o apoio recebido, através do Edital Universal, para a realização da pesquisa. Esta é uma primeira versão do trabalho, ainda sujeita a
revisões.
1
Vale lembrar que outros paises foram de fato pioneiros nesta experiencia, conforme foi discutido em Araujo (1999).

273
processos de democratizção geraram dois tipos de movimento, não necessariamente conectados ou existentes
simultaneamente: propostas de mulheres, liderancas politicas, de partidos e/ou parcelas de movimentos sociais; e/ou,
iniciativas de lideranacs isoladas que encontraram em governantes preocupados em ober legitimidade institucional um leito
propicio. Adoção e implementacao constituiram processos relativamente rápidos e, por isto, definidos como fast-track
(Dhalerup, 2003; 2006).
Ao lado da adoção, o significado e as expectativas em relacção a essa politica foram aspectos tambem discutidos,
incluindo-se a maneira como as cotas se vinculam aos sentidos classicamente conferidos à representacao politica, à natureza
desta representação e ao grau em que tal estrategia questiona, ou não, os principios dominantes que definem os desenhos
institucionais dos governos representativos ( Araujo, 2005 ; Araupo e Garcia, 2006 ;Miguel 2002 ; Phillips,1998 ;
Fraser,1997 ; Mansbridge, ; Lovenduski ;Archenti, 2003 , Squires, 2007 ; Diaz-Mateo, 2002).
Mais de uma década após o inicio desse processo, várias analises começam a tentar observar os seus impactos,
sobretudo os quantitativos. De outra parte, os possíveis olhares sobre os impactos qualitativos, correspondendo aos
argumentos que sustentaram a adoção das cotas, envolvem, por exemplo, observar mudancas na dimensao: i) simbólica tendo
como indicador maior estímulo e aumento substancial mulheres querendo concorrer; ii) mudanca na qualidade da
representação: seja pela via da maior igualdade de genero; ou ainda da qualidade mesma da politica. Neste caso, seriam
certos (discutiveis) pressupostos –mulheres seriam menos corruptas, mais conciliadoras, menos ambiciosas, entre outras
qualificacções, e poderiam reorientar as práticas no parlamento. O olhar sobre os procedimentos, formas de distribuição de
cargos, votações, facilitaria essa análise.
O sentido simbólico, que sustentou vários dos argumentos por cotas, pode ser um caminho de avaliação de
impactos. Neste caso, trata-se de investigar em que medida mulheres que adentraram a politica mais recentemente o fizeram
por influência da maior visibilidade ou presença de outras mulheres. Outro caminho são possíveis mudanças na agenda ou na
predominância dos conteudos da agenda parlamentar e do s debates.
Contudo, dado que historicamente se trata de um processo ainda recente, o caminho que oferece evidências mais
consistentes e abrangentes (embora não resolva o problema da avaliação desses outros impactos), é o da avaliação
quantitativa e de suas possíveis influências em aspectos e dinâmicas qualitativas. Ou seja, efetivamente, procura-se saber, por
exemplo, quanto o perfil do parlamento mudou em relação ao genero. A presença é, portanto, o indicador principal. E o foco
das análises tende a estar mais centrado na representação democratica do que propriamente na igualdade de genero como
politica (Squires, 2007).
As avaliações sobre a adoçãao confirmam a generalização dessa medida como um recurso privilegiado por
diferentes atores em diferentes paises e regimes politicos. Tanto a analise da literatura como a observação mais empírica dos
indicadores dos varios países que a adotaram, permitem dizer que, no aspecto quantitativo, as cotas , cumpridos alguns
requisitos, podem ser consideradas como uma ferramenta eficaz para o aumento da presenca de mulheres no parlamento (
Araujo e Garcia, 2006; Lovenduski, 2005; ). Se esta presenca altera ou não o formato da politica ou se funciona como uma
ferramenta simbólica, ainda nao é possivel afirmar de modo categórico, uma vez que são poucos os trabalhos que ja
apresentam algum resultado quanto as outras formas de impacto.
Já em se tratando de sua implantação há controversais, embora se reconheça a influência das cotas no crescimento
da participação das mulheres. Algumas análises têm destacado situações nas quais cresce a presença de mulheres sem que as
cotas tenham sido adotadas; ou de paises em que estas nao surtiram muito efeito (Matland, 2005). Nas palavras de Squires
(2007) a adoçãoo das cotas tem sido significativa, ao passo que sua implementação tem sido errática. Análise relativamente
semelhante é feita por Jones (2008).
Em suma, conquanto haja certo consenso sobre essa eficácia numérica, constata-se também que alguns paises
fogem a esse padrão de resultado. E o Brasil é um deles. Em outras palavras, se é possivel visualizar o inicio de um terceiro
momento de balanço das cotas, o de avaliação de seus impactos, no caso do Brasil, ainda estamos lidando com o segundo
momento: esperando seus impactos ou tentando entender o que ocorre com a sua implementação. Por quê? Passados 12 anos
de adoção, quais as conclusões que se pode tirar sobre as tendencias desse processo no país? E por que a representação
importa ?
Este paper procura avançar um pouco mais sobre as reflexões que foram desenvolvidas em trabalhos anteriores
(Araujo, 1999; 2001; 2005; 2007; Araujo e Garcia, 2006; Araujo e Alves, 2007). Primeiro, inicia retomando o debate que
permite pensar a ultima pergunta. Sem isto, torna-se dificil compreender o processo e todas as tentativas de implantação das
cotas. De forma resumida, refaz o percurso teórico do debate, a fim de que possamos resgatar o porquê de as cotas se
colocarem na ordem do dia e a presença das mulheres ser considerada demanda relevante. Em seguida problematiza alguns
conceitos e explicações que têm sido trabalhadas para o caso brasileiro. Depois apresenta alguns dados mais recentes de
pesquisa. Concentra em dados quantitativos que ajudam a avanças na compreensão dos fatores institucionais de sistema
político, e enuncia alguns dos achados da parte qualitativa da pesquisa. Por fim, delineia alguns questionamentos à guisa de
conclusão. Embora várias problematizações sejam explicitadas, nem todas serão objeto de análise neste trabalho. Primeiro
porque várias delas já o foram em outras oportunidades (Araújo. 2001; 2002; 2005; Araújo e Alves, 2007). Segundo porque,
para os propósitos de apresentação num congresso, não é possível cobrir todos os aspectos sistematizados na investigação . E
terceiro, porque muitas questões ainda estão em análise.

274
Notas Metodológicas
A parte empirica deste trabalho está baseada em: a) dados quantitativos coletados no TSE ao longo destes 10 anos
de pesquisa; e b) dados qualitativos coletados em pesquisa conduzida durante os anos de 2006 e 20082. A parte qualitativa
será pouco exlorada neste paper. A rigor, serão feitos apenas algun comentários iniciais sobre os resultados da análise,
focados nos aspectos que permitem estabelecer um vínculo entre os resultados quantitativos, sobretudo os dados de votação e
partidos pelos quais as mulheres são eleitas, e os relatos de trajetórias e razões de ingresso na política institucional. Esta breve
análise está baseada, sobretudo, em seis partidos – PSDB, PT, DEM, PDT, PMDB e PP. Estes foram os partidos trabalhados
no primeiro momento da pesquisa e se pretende estabelecer algum grau de comparação temporal. No entanto, outros partidos
foram acrescentados para considerar o contexto mais atual. 3 Os dados quantitativos mais gerais tiveram como fonte principal
o setor de informática do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil. Aqui é importante registrar que mesmo os dados
disponibilizados pelo TSE apresentam diferentes resultados, a depender do caminho/enunciado por onde se acesse a sua
página da web. Tais resultados, embora não comprometam a análise mais geral, apresentam discrepâncias que necessitam ser
consideradas. Nesse sentido, optou-se pelas vias que pareceram mais factíveis e lógicas, dentro do conjunto oferecido pelo
TSE.
Os dados qualitativos, aqui apenas enunciados, utilizados estão baseados em entrevistas presenciais, com roteiros
estruturados, realizadas com diferentes atores do campo político, dirigentes partidários nacionais e, eventualmente regionais;
dirigentes nacionais dos movimentos de mulheres dos partidos analisados; deputados e deputadas e candidatos e candidats
nao eleitos, além de um representante do TSE. Apos o trabalho de campo os dados vem sendo analisados por blocos, uma vez
que que envolvem diferentes aspectos associados à representação politica, desde as trajetorias até as experiências
parlamentares.

Alguns Problemas Teóricos e Conceituais e seus Desafios


Por que a representação continua importando?
No debate sobre a representacao política,4 em geral, parte-se do clássico e, pode-se dizer, insuperavel trabalho de
Pitikin (1967)5 e de sua tipologia basica para se compreender o que está em jogo nas cotas. Outros trabalhos mais recentes
também têm se tornado referência (Urbinati, 2006 ), porém, mesmos estes autores ainda vão buscar inspiração em Pitikin.
Esta autora constriu uma tipologia para pensar a natureza da representação, baseada em quatro sentidos ou
dimensões. Três dessas dimensões sao distintas e, segundo a autora, em princípio, excludentes quanto à possibilidade de
serem tomados como referência. O primeiro principio é o da representação formal, que diz respeito a normatização e
estruturação dos mecanismos legais e procedimentias de representação. De certa forma, este princípio perpassa todos os
outros, pois sua definição pode ser compreendida como os arranjos institucionais que expressam a natureza propria do que é
representar e ser representado. Os outros três tipos sao: representação descritiva; representação simbólica; e representatção
substantiva ou de interesses, já explictada em trabalhos anteriores (1999; 2001) Tomando-se a tipologia de Pitikin como
base, há certo consenso de que as politicas de cotas tratam da representação descritiva (Lovenduski, 2007; Squires, 2007;
Archenti, 2008; Mateo-Diaz, 2002). Por diversos caminhos, as cotas sao associadas e defendidas através da construção de
uma correspondencia entre espaco mais democrático e presença de mulheres. Este caminho, conforme demonstrou Phillips
(1995; 1998; 1999), está assentado num certo deslocamento do sentido da representacao, algo que emerge junto com novas
políticas de identidade, novos atores e movimentos sociais demanadando inclusão e reconhecimento. Segundo sua análise,
antes a ênfase estava nas idéias que o representante defendia, ou no que ele faz (ou, nos termos de Pitikin, na representação
substantiva ou de interesses). A partir da década de 90, sobretudo, há um deslocamento e uma ênfase na presença ou na
correspondência de certas características do representantes, com as caractersiticas de uma parte da população. É a idéia de
representação como um micrcosmo da sociedade e onde as caracterisiticas relevantes (politicamente) de um grupo devem
estar representadas .
Dado que, como foi mencionado, há um enorme debate em torno da tipologia de Pitikin, é de certa forma natural
que isto se reflita nas propostas de cotas, suas justificativas e nos argumentos pró e contra.6 Em linhas gerais, foram

2
A pesquisa “Dez anos de cotas no Brasil – avaliando a eficacia do “caminho curto’ para o acesso das mulheres a representacao politica nos legislativos” foi
financiada pelo CNPq, atraves de seu Edital Universal. Seu objeto central e avaliar e comparar o caso brasileiro com o caso argentino.
3
Alguns desses partidos mudaram de nomes durante o periodo analisados. O PP trocou de nome duas vezes antes de chegar a atual sigla e o DEM e o antigo
PFL. Alem destes, em alguns pontos trabalhou-se com todos os partidos que elegeram mulheres, ou ainda com todos os partidos (para efeito de avaliacao do
cumprimento das cotas ou de eleicao de mulheres em geral). As entrevistas foram prioritariamente realizadas entre informantes destes seis partidos mas tambem
se acrescentou algumas outras consideradas importantes. Uma entrevista nao pode ser realizada presencialmente e foi feita atraves de resposta ao questionario. E
uma deputada de um dos 6 partidos mais importantes na análise nao pode marcar a entrevista.
4
Vale lembrar que existem varios trabalhos mais criticos em relacao a democracia representativa que a opoem a democracia participativa como espaco
privilegiado de deliberacao. Contudo, as cotas constituem demandas por inclusao nos meios de se disputar um lugar na representacao ou nos proprios espacos
desta. Por isto, e de demandas por ou de producao academica em torno da representacao que estamos tratando aqui. A titulo de registro, merece destaque tambem
o trabalho mais recente de Urbinati (2006) que ao mesmo tempo que tece uma serie de consideracoes sobre as debilidades da democracia representativa
contemporanea, reconhece a inevitavel necessidade da representacao como via de decisao diante de um mundo diversificado em termos de populacao, interesses
e caracteristicas sociais.
5
O termo “insuperavel” aqui não tem conotação valorativa, no sentido de definer se o trabalho e bom ou nao. Trata-se mais de uma constatacao de que, apos a
publicacao deste trabalho, em geral as analises partem dele, seja para tentar ampliar, reforcar ou corroborar seus argumentos e sua estrutura analitica, sejam para
critica-lo e/ou tentar apresentar caminhos alternativos ao mesmo.

275
identificados três grandes grupos de argumentos a favor das cotas: aqueles com base na “justica”; aqueles utilitarios e/ou
pragmaticos; e os “essencialistas” (Phillips, 1995; Barero, 2003; Araújo 1999; Squires, 2007. Uma vez que as cotas têm por
objetivo ampliar a representação descritiva das mulheres nessas instâncias, pode-se dizer que se encontra presente, seja de
modo explícito ou sbjacente, a questão de saber se a quota é um fim em si mesmo, por uma questão de justiça; ou seja, se ela
serve como reparação de uma situação histórica de injustiça e, nesse sentido, para ampliar a igualdade de gênero e ponto; ou
se ela, alem de justiça, é tambem um meio para aprimorar, melhorar a qualidade da representação. Neste caso, em geral, ha
duas suposições: i) a de que a democracia pressupõe a equidade ou o equilibro entre homens e mulheres na participação, o
que claramente remete a uma concepção descritiva e de correspondência entre o que o indivíduo é e o que ele faz ou pode
fazer nas assembléias; ou seja, a de que só as mulheres podem defender os interesses daas mesmas; e /ou ii) a de que a
legitimidade da democracia depende do grau de presença e de correspondencia entre as caractersiticas do representante e do
representando. Em ambos os casos é a concepção descritiva que subjaz.
Nao cabe aqui retomar em detalhes o importante argumento de Phillips (1995;1998) por cotas, uma vez que este
tem sido bastante discutido. Para o momento nos parece suficiente lembrar que seu empreendimento teórico consistiu em
tentar articular os argumentos por justiça com uma noção não essencialista de interesses –fluidos, mutávies, construidos em
processos e expêriencias e, sobretudo na política, dinâmicos e relacionais. Com isto, a presença passa a importar nao porque
expresse interesses ja dados e consolidados, mas, sobretudo, porque estes se encontram em constante redefinição e têm
vínculos com as condições de vida e experiências dos indivíduos.
Ter em conta esses argumentos importa porque, a depender do que constitua a base para a defesa da cota, as
expectativas que serão criadas ou o caminho através do qual seus impactos serao mensurados poderão variar. Pode-se analisar
seus resultados apenas sob o ângulo do incremento quantitativo, ou pode-se observar o que isto significou em termos, por
exemplo, de ações legislativas ou empoderamento das mulheres em espaços estratégicos do parlamento. Ademais, para além
de outras expectativas, permanece central a premissa de que, por alguma das razões a presença das mulheres importa. E por
isto necessita ser avaliada ou considerada.
Ainda não existem muitos estudos de diagnóstico de impactos, mas estes, necessariamente, terão que definir qual
(s) o tipo(s) de impacto (s) está sendo mensurado. E onde: só no parlamento? Nos partidos também?Isto remete à segunda
reflexão mais teorica e, de alguma forma, vinculada à parte empírica.

Sobre termos e conceitos


Como foi dito acima, vários estudos demonstraram que as cotas nao funcionaram ate o momento no Brasil. Ou
seja, elas não têm sido eficazes como mecanismo de incremento do número de mulheres (Araujo, 2001; 2002; 2005; 2006).
Os resultados das eleições federais demostram isto, conforme se nota na tabela 1 anexa.
Em geral não há consenso sobre as razões que explicariam tais resultados (Alves, 2005; Araujo, 2004; Miguel,
2002; Alvarez, 2004). Mas ha três dimensões de respostas possíveis para as cotas, não necessariamente excludentes: aquelas
centradas nos fatôres institucionais, aquelas centradas nos fatôres sócioeconomicos e as que tomam os fatores culturais como
as bases para possiveis explicações. No caso brasileiro, um balanço da literatura que tem se dedicado a entender esse
processo permite sugerir que a ênfase tem sido na cultura, e, mais especificamente, na cultura de gênero que impera dentro
dos partidos. Por cultura entenda-se aqui a referência aos valores e percepções como elementos centrais para definir ou
conduzir a eficácaia desse processo. Um discurso recorrente é o de que há uma resistência masculina/partidária à inclusaõ
das mulheres. Não se pretende discutir neste paper o signifcado do termo ou suas diversas interpretações. Por ora é suficiente
dizer que uma consequência desta ênfase pode ser definida como a subestimação de fatores institucionais relacionados com
o sistema político-eleitoral.
Bem, uma vez que se suponha e se assuma o argumento da resistencia com a centralidade que lhe tem sido
conferida, caberia ainda perguntar: como ela opera e se é ou nao dependente da variavel sexo. Em outros termos, se há
resistência, ela e masculina? Alguns dados da pesquisa apresentados a seguir mostraram que essa não é uma relação tão óbvia
como se costuma supor e que a dimensão do sistema politico e eleitoral é variável importante a ser considerada.

Influência das Dimensões Institucionais


Aqui, a intenção é aprofundar o que foi dito e sugerido em outros estudos, sobretudo em Araújo e Alves (2007)
sobre as variáveis intervenienetes do sitema politico-eleitoral e sua importância.
Nunca é demais lembrar que o objetivo dos partidos disputam é o Poder. E nas democracias modernas, os partidos
são os canais legitimos de acesso ao poder (Katz e Mair, 1992). Então, como pensar o caso brasileiro em relação ao que tem
sido assumido pela literatura como padrões ou traços gerais de condições de elegibilidade das mulheres? Em geral, duas
correlações têm sido tomadas como fortes: maiores chances em em sistemas proporcionais; e dentro destes, em distritos de
elevada magnitude (Polanco, 2008; Norris, 1993, 1996; Jones e Htun, 2002). Mas ao lado disto, alguns estudos destacam
tambem a interação entre magnitude dos distritos e magnitude dos partidos (Matland, 2006; Schmidit, 2004). As cotas

6
Sobre criticas às cotas ver, entre outros, Varikas (1996),

276
seriam um fator interveneniente importante, contudo estes e outros estudos têm demonstrado que seus impactos dependem
em grande parte das condições institucionais e do sistema político-eleitoral.
Dados apresentados em trabalhos anteriores (Araujo,2001;2006; 2007), e neste paper sugerem que o Brasil foge,
em muitos aspectos, aos padrões identificados na litetaratura. Neste trabalhos, mostrou-se que as caracteristicas do sistema
eleitoral brasileiro tendem a ser reforçadas por certos limites ja constatados na lei de cotas, notadamente: a) a ausência de
sanções para os partidos que não cumprirem a cota; b) a lista aberta com possibilidade de apenas um voto, ao contrario de
outros países de lista aberta (Archenti, 2008; Schmidit, 2004); c) o grande número de vagas para candidaturas- 150% do total
de cadeiras em disputa- o que implica em oferta de vagas em geral maior do que a demanda de candidatos/as. Apesar de
algumas evidências e tentativas de avançar na comparação interna ao país, ou seja, entre os distritos/estados que elegem,
algumas variáveis ainda não tinham sido exploradas de modo mais sistemático. Notadamente, a influência do fator “ peso do
partido político nos estados” ou aquilo que Matland definiu como Magnitude dos Partidos. Araújo e Alves (2007)
exploraram um pouco isto através de uma análise de regressão que mostrava que as chances de eleição das mulheres eram
maiores se estas já eram parlamentares e/ou se concorriam por grande partidos. Contudo, foram incluidos apenas 4 grandes
partidos7 e não se explorou propriamente a magnitude do partido em cada estado e a possível relação com as chances das
mulheres. Mas era possível notar que não havia uma correspondência tão direta entre candidaturas e eleições, ou seja, quanto
mais candidaturas, mais eleitas. Sergipe foi um dos estados com maior percentual de candidaturas, mas não elegeu deputadas.
Já alguns dos estados que mais elegeram não necessariamente estavam entre aqueles com maiores índices de candidaturas.
Mostrou-se que, conforme a literatura, os partidos pequenos e novos tendem a estar mais abertos a participação de mulheres,
dado que nao tem ainda mauitos “caciques” ou lideranças partidarias mais consolidadas e necessitam se expandir.
Neste trabalho, procurou-se avançar um pouco mais na compreensão desss fatores. Explorou-se, particularmente, a
hipótese de Matland, ou seja, que a magnitude dos partidos, isto é, o peso e a força do partido nas eleições, evidenciados pela
quantidade de cadeiras que cada um deles obtém em relação ao toal de cadeiras do estado, é fator importante nas chances das
mulheres. Uma segunda variável, esta ainda pouco explorada, diz respeito ao grau de proporcionalidade e correspondência
entre eleitores e representantes. Isto porque, há uma distorção entre alguns estado pequenos e, de outro lado, São Paulo. Uma
terceira variável explorada foi a fragmentação partidária. Sobre isto, não há consenso na literatura. Há uma crítica grande
sobre uma suposta excessiva fragmentação existente no Brasil, com um número elevado de partidos, mas muitos autores têm
mostrado que, comparativamente, não há essa fragmentação se considerarmos o sistema proporcional como um todo. De
igual modo, não há consenso sobre a influência disto para as chances das mulheres. A pergunta feita aqui foi a de saber se
onde mais patidos concorrem (estados) as mulheres são mais o menos prejudicadas. Uma terceira variável explorada foi
aquela definida em estudo anterior (2007ª) como “densidade da disputa”, ou seja, a possível influencia da relação candidatos
vagas sobre as chances das mulheres. Por fim, explorou-se a variável “peso político eleitoral” de forma mais objetiva,
mensurando-se a relação entre as mulheres que concorreram, a quantidade de votos obtidos e a proporção de votos das que se
elegeram. Este variável permite observar se as mulheres que concorrem e inclusive entram no parlemanto, o fazem em
posições mais fracas no interior das listas ou em posições de mais vantagem. Em seguida, possibilita aprofundar de modo
qualitativo (o que está em andamento) como estes pesos políticos.
Como foi dito, os dados usados foram os do TSE. Para efeito de análise neste artigo, foram tomados,
fundamentalmente, os dados quantitatvos de 2006. Com isto pretendeu-se avançar nas correlações evidenciadas em Araújoe
Alves (2007), que focaram no ano eleitoral de 2002.

Resultados
Testando a magnitude dos distritos e a magnitude dos partidos
A tabela 2 mostra os distritos eleitorais agregados. Ao contrario do que tem sido afirmado na literatura, distritos
menores parem oferecer mais chances às mulheres.
Os dados da tabela 3 revelam ainda que, em muitas circunstâncias, sao os partidos mais tradicionais e os estados
onde os valores tendem a ser mais conservadores aqueles nos quais as mulheres obtêm melhores resultados, o que é, de certo
modo, surpreendente. Ou ainda, que mesmo em partidos supostamente menos conservadores e organizados em estados
considerados dos mais avançados pode-se encontrar logicas reveladoras de uma pratica que se poderia denominar de pouco
republicana.
Por que no Brasil, as mulheres tendem a ter melhores performances em estados pequenos, se comparados aos
considerados grandes? Aqui, algumas possiveis razões são levantadas como hipótese: revelariam práticas e estilos políticos
ainda bastante assentados em lealdades pessoais, lideranças individuais e organização política débil na sociedade civil;
expressaria também o custo financeiro de uma campanha e a complexidade de concorrer em estados mais populosos, mais
diversificados e que exigem capiatais mais substantivos; a distorção existente em relação às cadeiras que os distritos grande
detem em relação aos totais de suas populações seria uma possibilidade. Neste caso, independentemente de outros fatores,
estados(distritos eleitorais no Brasil) mais populosos implicam uma disputa maior porque não ha uma corespondência entre o
eleitorado e o número de representantes. A tabela 5 anexa apresenta essa distribuição. Para efeito de análise, procurou-se

7
Os outros foram agregados na categoria “demais partidos”.

277
organizar uma tabela com os estados agregados em três grandes blocos 8e com as seguintes variáveis: percentual do
eleitorado, percentual de cadeiras no congresso, percentual de candidatras feminnas, percentual de eleitas. A agregação não é
uma forma muito acurada pois não captura os contextos e nem as caracter´siticas dos estados. Entre estados grandes se
encontram alguns considerados mais desenvolvidos e menos tradicionais e outros mais tradicionais e menos desenvolvidos.
O mesmo ocorre com os pequenos e médios.De todo modo, permite uma comparação geral em relação ao olhar institucional.
Os dados comprovam a distorção mencionada e mostram, mais uma vez, que os melhores resultados entre as mulheres
tendem a ser nos estados menores. E enquanto o estado do Amapá detém 0,28% do eleitorado e 1,56% das vagas, o estado de
São Paulo detém 22,27% do eleitorado e 13,64% das vagas. O Amapá foi o estado que, proporcionalmente, mais elegeu
mulheres – 50,0%- e São Paulo elegeu um número relativamente pequeno e proporcionalmente menor do que o esperado.
Passando a seguir à magnitude dos partidos, procurou-se identificar quantos partidos elegeram deputados em cada
estado/distito, a proporção de vagas que obtiveram em relação ao total de vagas que o estado tinha direito na Câmara Federal
e os partidos que elegeram mulheres.
Segundo Matland (2002, 2006) a chance de eleição das mulheres estaria condicionada, também, ao potencial e ao
tamanho do partido nos estados. Em trabalho anterior se levantou a hipótese de que talvez a quantidade de partidos que
disputassem uma eleição fosse maior nos grandes distritos. A verificação dos dados mostrou que não. Primeiro, há uma
razoável nacionalização dos partidos, mesmo dos pequenos, na medida em que eles concorreram na maior parte dos estados.
Segundo, muitos estados pequenos apresentavam elevadíssimo numero de partidos concorrendo, em comparação com o
número de vagas a que tinham direito. Entretanto, isto não parece tem influencia. Ou seja, aqui estamos falando de uma outra
variável: a fragmentação partidária. Perguntariamos, será que mais partidos concorrendo dificulta a eleição de mulheres?
Tomando por base os dados eleitorais do Basil em 2006, a resposta é não. Isto, importa dizer, corrobora alguns achados da
literatura que indicam que a ao contrario do que tem sido assumido, a fagmentação, ou seja, a relação entre o número de
partidos e as vagas, até beneficiaria setores out-siders, já que abrbriria mais espaços e um leque maior de oportunidades para
concorrer. E uma vez que o consciente eleitoral importa para definir quem se elege, a distribuição tende a ser mais
proporcional. Mais partidos disputando não parece implicar maiores dificldades para as mulheres mas parace facilitar certa
democraização na distribuição de vagas. Esta também não é uma relação matemática e linear, mas é possivel notar que a
combinação entre mais partidos e maior proporcionalidade (ou seja , mais vagas) resulta em mais partidos adquirindo
cadeiras, menor concentração de vagas nas mãos dos partidos maiores e tradicionais e chances para os out-siders. Ademais,
vale acrescentar, tende a dissolver a tensão e a concentração da disputa por vagas em poucos partidos, bem como a permitir
maior diversificação da agenda de nteresses e de ações a serem defendidas.
Mas isto não parece ajudar tanto as mulheres. É provavel que a interação entre os diversos fatores e a dimensão
financeira da disputa – custos muito elevados e ausêcia de financiamento de campanha – interfiram de modo a não só
dificultar as chances das pessoas com menor poder aquisitivo e menos redes de apoio (e as mulheres tendem a estar mais
entre estas), como também a operar em termos racionais como uma pré-filtragem, na qual os possíveis competidores avaliam
a sua chance de entrar na disputa.
O trabalho avaliou 19 estados brasileiros que elegeram mulheres para a Cãmara Federal em 2006. Constatou que: i)
em 5 estados as mulheres foram integralmente eleitas nos partidos que obtiveram mais cadeiras para a Câmara Federal;ii) em
7 estados isto se confirmou parcialmente, ou seja, a maior parte das eleitas o foram através de partidos que mais elegeram, ao
passo que uma menor parte se elegeu por partidos que não tiveram as melhores performances no estado; iii) em 5 estados isto
não se confirmou, ou seja, não foram nos partidos que ficaram com mais cadeiras que as mulheres se elegeram, mas sim
naqueles com percentuais menores. A partir da análise, pode-se sugerir então que a Magnitude do Partido influencia as
chances das mulheres. Ou seja, a potencialidade de eleição dos partidos através dos quais as mulheres estão concorrendo em
cada estado tem um peso nas suas chances de eleição. Contudo, como estes fatores não operam isoladamente, outros asectos
também precisam ser notados.

Densidade da disputanos estados e peso dos partidos


Por densidade da disputa entende-se aqui a relação entre candidaturas e vagas em disputa. Aqui se está observando
a relação entre o número de candidatos disputando e de vagas existentes. Neste caso, procurou-se identificar se: i) há uma
relação de causa e efeito entre mais candidaturas e mais eleitas. Este, vale lembrar, é o ponto central da cota. De certa forma
se supõe que aumentando o universo de candidaturas há mais chances de mais mulheres serem eleitas. Embora
estat´sticamente esta seja uma tendencia possível, de fato, no caso das listas abertas, parece não ser uma variável
enterveniente. Em estudo realizado há alguns anos( IPU, 2000), antes da “onda das cotas” já se constatou que em muitos
paises, um número menor de mulheres tendia a ter mais chances de se eleger do que listas nas quais apareciam muitas
mulheres. A explicação é razoável: revelaria uma situação de conservadorismo politico e/ou cltural, na qual as mulheres
tinham que ter um grade cacife para chegar a concorrer e esperar ganhar. É possivel dizer que o caso do Brasil apresenta
alguns indícos neste sentido. Não se encontrou uma relação entre mais candidaturas e mais eleitas já em regressão relizada

8
Os estados com 30 cadeiras e mais foram considerados grandes. Os estados entre11 até29, médios e aqueles com até 10 cadeiras, pequenos. O número mínimo
de cadeiras é 8 por estado.

278
para o ano de 2002 (Araújo e Alves, 2007). E mais uma vez, para 2006, esta relação também não aparece. Maior ou menor
número de mulheres disputando e o número de vagas existentes não estão relacionados. Mas é possível sugerir, com
parcimônia e como uma hipótese sujeita a verificaçã mais acurada, que tende a existir certa relação entre o número total de
candidatos disputando e as chances das mulheres. Ou seja, entre os estados brasleiros, quando observamos a relação entre
candidatos e vagas, notamos que onde a densidade da disputa é menor tende a haver resultados sistemáticos melhores para as
mulheres, ao passo que onde a densidade é mais elevada, em egral, torna-se mais dificl. Contudo, como não estamos aqui
trabalhando com causalidades diretas e entre duas variáveis apenas, mas tentando incluir as possíveis variáveis
interbevientes, vale ressaltar que também foram encontradas importantes exceções. Por exemplo, o caso do Rio de Janeiro,
um dos estados com maior densidade de disputa, mas com um dos melhores resultados numéricos, embora não
proporcionais.

O peso da personalização do voto, o capital eleitoral e o acesso à elite


Ao avaliarmos a relação entre votos de candidatos,9 votos de eleitos e posição das mulheres, dois aspectos
chamaram atenção. A proporção dos votos obtidos pelas mulheres em relação ao total de votos, em geral, não apresenta um
quadro muito desanimador. Em boa pate dos estados as mulheres tieram % de votos maiores do que os seus pecentuais de
candidaturas. Em outros, menores. Mas o interessante é observar a distribuição desses votos nternamente às mulheres. Surge
então uma concentração razoável de votos entre poucas candidatas, notadamente aquelas que se elegeram. Explicando
melhor: em alguns estados 5 a 10 % das candidats se elegeram, mas esta pequena parcela detinha 70 a 80% dos votos. Em
um estado uma única candidata obteve mais de 90% dos votos e ela correspondia a cerca de 4% do total de mulheres eleitas.
Certamente que a pacela de homens que se elegeu também obteve uma proporção razoável de votos. Contudo, a comparação
dos dados mostrou que isto é amplamente mais forte entre as mulheres. Revela, por um lado, que as mulheres que se
candidatam tendem a ser aqueleas que têm um capital, ou um cacife eleitoral razoável. E vai ao encontro do que foi
mencionad mais acima: as chances de se obter scesso no enfrentamento de uma disputa como essa, sobetudo em competições
com listas abertas, depende em grande parte do capital que se tem e do qual se parte. A competição é altamente personalizada
e individualizada e por isto, partidos pequenos, centralizados e que centram suas forças em um candidato podem ter mais
chances de sucesso, ao passo que mulheres em partidos pouco centralizados têm mais dependem mais desses capitais
políticos.
Mas há um segundo e importante aspecto a destacar. Essa concentração de votos revela, também, que as mulheres
que entram o fazem em posições de relativa força, e não em posições mais frágeis. Explicando: a fórmula de eleição no país
permite smar os votos do candidato com todos os votos obtidos pelo partido, de modo que os últimos candidatos eleitos o são
mais pelo “rescaldo” dos votos partidários do que por força própria de seus votos. Estes, que são chamados os eleitos pelo
voto de legenda, são mais homens do que mulheres. A maior parte das mulheres , até porque necessita ter uma força razoável
para concorrer, tende a se eleger com seus próprios votos. Há, claro, uma parcela que depende mais do voto de legenda, mas
esta não é tão considerável e, ainda assim, a soma dos votos de legenda tende a ser residual, com algumas exceções como por
exemplo o da deputada do PRONA.
Uma vez constatado que o perfil eleitoral das mulheres que conseguem obter cadeiras tende a ser, em geral,
bastante representativo em termos de votos, a pergunta seguinte é então saber e explorar quais são estes perfis, de onde vêm,
como constróem suas carreiras, e,por fim, comparativamente, em que medida os padrões de carreiras estão se modificando
ou não.
Lamentavelmente, por questão de tempo e també de espaço, não é possível adiantar aqui as conclusões já retiradas
da análise qualitativa. De todo modo, algumas pistas podem ser apontadas. Elas estão sendo exploradas através de análises de
discursos e de trajetórias, tanto numa perspectiva institucional como pessoal e subjetiva. Tenta-se mapear se os cursos de
ação de suas trajetórias politicas são macados por aspectos mais ou menos institucionais ou pessoais (inclusive familiar). que
conduziram essas mulheres à disputa eleitoral.

Sobre Trajetórias Políticas e Seus Agentes


Corroborando o que foi encontrado por Marx Et. all. (2006) em comparação entre Brasil e Argentina, também foi
constatado que o parentesco continua algo bem enraizado nas práticas políticas brasileiras, sobretudo entre as mulheres, mas
não só. Tanto as informações das entrevistadas como a análise do perfil parlamentar e das trajetórias das deputadas, feita
através da página da Câmara Federal e apoiada em outras fones de informação, corroboram os vínculos de parentesco forte
com políticos: maridos e pai, sobretudo, mas também irmãos. Uma deputada é irmã de um bispo da igreja evangélica e entrou
por sugestão do mesmo, outra entrou na política para substituir o irmão que era candidato e faleceu num acidente de carro,
outra, filha de um grande político que decidiu que ela seria candidata; de igual modo outra deputada relatou que foi idem, só
que foi seu marido que tomou a decisão.

9
Co base nos dados do TSE, foram computados os votos nominais dados à todos os candidatos. A partir disto, selecionaram-se, também, os votos dados aos
eleitos e procurou-se estabelecer as relações possíveis.

279
Por sua vez tais percursos também foram encontrados entre os homens, porém em menor proporção. Deputados
também vinham de famílias com parentes próximos que eram políticos e que influenciaram suas trajetórias direta ou
indiretamente.
É interessante notar e possível sugerir que tais vínculos, recorrentes, definem, também, certas práticas de ingresso
e de exercício do poder político no país . A política surge, ainda, como propriedade familiar. Observa-se a manutenção dos
feudos políticos, nos quais o patriarca ou o líder decide se candidatar a um cargo considerado mais importante e necessita
assegurar o espaço – de lealdade, de confiança e de poder. E quem mais a não ser seus familiares próximos seriam tão leais?
Este foi um traço mais forte nas falas das mulheres, mas de modo menos explicito foi possível identificar homens com
inspirações similares. O traço de gênero, além do viés efetivo nas construções práticas de carreiras, parece também estar aí,
na fala, na forma de “se explicar” ou de apenas relatar. As mulheres tendem a explicam como e porque foram “alçadas” à
condição de candidatas por seus familiares. Ao passo que os homens não assumem tão claramente essa relação: a família
entra como um capital que facilitou a sua intenção e o seu projeto. Um entrevistado chega a dizer que exigiu que não
houvesse outros familiares políticos. Apenas uma mulher explicitou que o capital familiar, ao mesmo tempo em que ajudou-
boa avaliação da administração do marido e seu trabalho na área de assistência social- sofreu resistência do próprio, que
declaradamente não queria a sua inserção na política. Esta parlamentar terminou por se separar do esposo.
É interessante observar que as origens das trajetórias, no que diz respeito à formação dos capitais e viés ideológico
mudaram pouco nestes dez anos. Partidos definidos como mais de centro/centro-direita têm formação claramente mais
familista do que partidos de esquerda.

A política como uma circunstância e a política como um projeto


O que as entrevistas sugerem a esse respeito? Aqui as observações serão apenas pontuadas, a título de enunciação
da análise em curso. Primeira, o desejo ou a ausência de desejo e altruísmo surgem como duas características fortes nos
discursos das mulheres. Em parte desses discursos é possível perceber, ou inferir, que o desejo é do “outro”, e não próprio.
De igual modo, a forma como explicitam suas “qualidades polítcas”, ou suas características por terem se tornado
políticas têm um forte componente moral: altruísmo. Este vem, em geral, a seguir à explicação sobre a indicação para a
disputa, seja por familiares ou por grupos e coletivos. O desejo de “fazer algo” pela população; a seriedade no trato da
política, surgem como se fossem qualidades intrínsecas que justificam a indicação pelo “outro” e as diferenciam da “política
como vala comum”.
Assim, ao lado do lugar nos quais se colocam um aspecto muito presente, ainda que de forma subliminar, é o lugar
da política como algo vergonhoso, deslegitimado ou desacreditado pela população. E, de fato, se observarmos as listas de
candidatos, veremos que as mesmas, em geral, não são preenchidas, nem pelas mulheres e nem pelos homens.
Que implicações isto tem para a construção de um caminho viável? Em geral (nas entrevistas) , o poder não se
apresenta como um desejo próprio ou um projeto. Quase todas as entrevistadas disseram terem sido alçadas à condição de
candidatas por circunstâncias. “Ao passo que homens assumem de modo mais claro “queria ser candidato” “ queria ser
político”;
A política surge como circunstância, o desgaste do político no momento em que as mulheres estão tentando nela
ingressar. Explicando melhor o que está sendo sugerido: ao lado das várias dificuldades atinentes ao jogo político da disputa,
é provável que o desgaste do “político” e, portanto, a tendência da população à resistência nas campanhas ajude a inibir os
pretendentes. E, uma vez que são as mulheres as “retardatárias” isto é, aquelas que estão entrando mais tardiamente na
política institucional (aqui não está em questão o porquê), é muito provável que tais obstáculos subjetivos também lhes
prejudiquem mais do que aos homens. Isto tanto em termos dos discursos como dos investimentos. Planejamento,
organização prévia e investimentos derivam das disposições, que são, por sua vez, socialmente construídas, conforme muito
bem mostrou Bordieu (1989) .

Um novo tipo de capital?


Um dado que pôde ser observado de modo sistemático e que pode ser definido como um tipo de capital que se torna
importante à medida que as instituições vão se solidificando e a articulação entre executivo e legislativo se faz de modo mais
perene, é o capital institucional. Efetivamente, o exercício de um cargo executivo, ou de cargos anteriores, surge como
decisivo, como elementos importantes para viabilizar uma candidatura federal, sobretudo se não se é “colocado” como
herdeiro político direto. Dessa constatação derivam duas reflexões. Primeiro, em que medida o peso da trajetória institucional
prévia não indica, também, a fraqueza da participação cívica e do associativismo como práticas políticas e práticas
formadoras de capitais políticos e estimuladoras de ingressos institucionais? Segundo, considerando ser este um percurso
cada vez mais importante, convém perguntar: onde estão as mulheres nesses canais institucionais? Que cargos estão
ocupando? Quais suas posições no âmbito do executivo, por exemplo? Ou ainda em espaços de organizações públicas que
têm peso entre a população? Considerando o que foi discutido em outros contextos por Bourdieu (1989), assim como por
Matland (2002), neste caso em relação às disposições prévias das mulheres para concorrer, não seria o caso de investigarmos
mais a fundo esses processos de “pré-seleção” que ocorrem e definem de antemão quem vai querer disputar um lugar na
disputa?

280
Algumas conclusões e desdobramentos da pesquisa
Os dados apresentados sugerem, mais uma vez, que as diâmicas institucionais, inclusive as eleitorais, contam e se
mesclam como elementos obstaculizadores, ou estimuladores, do ingresso das mulheres na política. No que diz respeito ao
sistema eleitoral, este artigo procurou avançar um pouco mais na compreensão de fatores como influência (Magnitude) dos
partidos nos respectivos estados e chances de ter sucesso eleitoral em campanhas legislativas. Ficou claro que isto conta. De
igual modo, mostrou-se que o processo de filtragem, em geral mais difícil para as mulheres, termina por conferir àquelas que
conseguem atravessar o filtro uma posição azoavelmente confortável em termos de poder na engrenagem político partidária,
dado pelo voto. Foi sugerido, também, que uma vez que neste processo prévio o fator experiência institucional conta, torna-se
importante oservar onde estão as mulheres e estimular a sua paticipação institucional. Por outro lado, tal peso poderia revelar
uma fraqueza cívica na participação política, gerando poucos cursos de ação que estimulem e formem lideranças políticas.
Retomando o que foi apresentado, de acordo com os dados disponiveis, é possível dizer que o sexo é uma variavel
independente para definir resultados de ações no campo político na contemporaneidade, nos países estudados. Sugere-se
aqui ser bastante plausivel pensar na reproducao de uma cultura politica que implica uma visao patrimonialista de partido e
de poder. Assim, o partido nao é algo tao público e impessoal, ao contrario. Esta visão patrimonialista, por sua vez,
garantiria lugares aos pares/membros de confiança ou aos atores estratégicos para este patrimônio, sejam eles mulheres ou
homens. E se há, nitidamente, tracos patriarcais e os homens sao os agentes centrais, fica tambem evidente que as mulheres
participam, corroboram e, de certo modo, se beneficiam de tais praticas. Ou seja, mulheres não são só out-sideres o vítimas,
são também agentes que operam no interior da lógica existente.
Disto resulta uma outra questão : como conciliar a abordagem que enfatiza as mulheres como vitimas do poder
masculino com essas situacões nas quais elas aceitam, ingressam e gostam da experiência? Muitas das mulheres
entrevistadas, se referem “às mulheres” como exteriores às mesmas, como “outras”, E estas “outras” nao teriam vontade
politica ou disposicão e garra para “meter a cara” e competir.
Pergunta-se, seriam muitas dessas mulheres apenas um “instrumento” masculino, como até mesmo seus discursos
muitas vezes nos fazem supor? Uma análise mais sociologica em torno do sentido de “agencia” e “agentes” poderia nos
ajudar a ampliar o foco deste tipo de análise.

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TABELAS E GRÁFICOS

Tabela 1 – % de Candidatas e de Eleitas à Câmara Federal , Brasil, 1994-2006


Situação 1994 1998 2002 2006
Candidatos 6,5 10,3 11,4 12,6
Eleitas 6,2 5,6 8,2 8,8
Fonte: Araújo, 2006

Tabela 2 – Taxa de Sucesso de Mulheres por tamanho de distritos eleitorais, entre partidos que elegeram deputadas em 2006.
Distritos 1994 1998 2002 2006
Grandes 106,8 49,9 74,2 60,4
Médios 64,8 39,1 47,8 46,4
Pequenos 117,4 68,1 86,4 98,3
Total 98,4 52,0 69,3 65,1
Fonte, Araújo, 2008

Tabela 3 - Taxa Relativa de Sucesso de mulheres entre partidos que elegeram deputadas em 2006
% de eleitas/total dos % candidatas/total no Ranking Ranking
Partido Taxa
partido partido % candidatas % eleitas
PRONA 403,70 50,0 19,9 2º. 1º.
PSOL 281,03 33,3 15,1 9º. 3º.
PC do B 202,21 41,7 23,6 1º. 2º.
PTC 258,33 25,0 16,2 8o. 4º.
PSB 184,13 22,2 13,4 11º. 5º.
PMDB 90,87 10,1 11,1 22º. 6o.
PP 92,48 7,3 7,9 26o. 10o.
PPS 68,46 9,1 12,8 14o. 7o.
PT 65,94 8,4 12,3 18º. 8o.
PFL 60,42 7,6 12,1 19º. 9o.
PL 36,0 4,3 11,2 21º. 12o.
PDT 37,01 4,2 10,5 24º. 13o.
PSDB 27,25 4,6 14,9 10º. 11º.
Fonte: Araujo, 2008 com base em dados do TSE, 2006

Tabela 4 – Proporção de eleitores, cadeiras e presença de mulheres por tamanho de estado-Brasil


Prop. de Candidatas Candidatas
Tam. Dist. Cad.CF Eleitas %
votos/eleitores Numero %
Grandes 60,84% 52,44% 269 48,6% 42,22
Medios 23,63% 24,74 211 25,02% 20,00
Pequenos 15,53% 22,81% 172 26,03% 37,78
Total 100 513=100 652
Fonte de dados: TSE, 2008.

Para além do "Teto de Vidro": As Representações do “Ideal” de Mulher


Executiva no Brasil
Silvana Andrade
Fundação Getúlio Vargas
[email protected]

Resumo: De acordo com as estatísticas oficiais do Ministério do Trabalho e Renda (RAIS), em 2004, cerca de 31% dos 19.167 cargos de
diretores de empresas no Brasil eram ocupados por mulheres. No campo acadêmico de ciências sociais no país, tal reflexo ainda não é
expressivo, considerando que são poucos os estudos sobre esse grupo de mulheres. Grande parte da produção científica, até o presente

282
momento no país, concentra-se no grupo que conseguiu a inserção no mercado formal em cargos não-executivos, com contratos de trabalho
precários, ou que ainda permanecem na informalidade. Em contrapartida, o mercado editorial brasileiro já dá indícios do crescimento da
participação feminina nesses cargos de prestígio. Em junho de 2004, foi lançada no Brasil, a revista Vida Executiva, com o slogan: “para as
mulheres que buscam o sucesso com equilíbrio.” Com publicação mensal, o periódico foi direcionado para as mulheres que ocupam cargos
executivos e abordou questões relativas às estratégias de carreira, à conciliação família e trabalho e os conceitos do mundo empresarial.
Considerando a hipótese de que essas trabalhadoras fazem parte de uma representação recente da mulher no mercado de trabalho brasileiro,
este estudo tem como objetivo investigar as representações dessas trabalhadoras nas sete primeiras publicações da revista Vida Executiva, ou
seja, de junho a dezembro de 2004 e que essa análise poderá auxiliar na investigação da formação de um “ethos”, de um “estilo de vida” e
principalmente de um “habitus” próprio de um campo com frequentes disputas e tensões.

A inserção da mulher no mercado de trabalho brasileiro foi crescendo significativamente a partir da década de
1990, com um avanço expressivo no período compreendido entre 1993 e 2005, que contou com um registro de crescimento
de 28 para 41,7 milhões de mulheres no mercado de trabalho formal (Bruschini, 2007).
O avanço registrado nesse período é igualmente reflexo das mudanças ocorridas no contexto econômico do país,
como a abertura nesta área iniciada no governo Collor (1990-1993) e aprofundada nas gestões dos presidentes Itamar Franco
e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), as estratégias econômicas de estabilização do Plano Real e o processo de
globalização (Costa & Neves, 2002).
Ao acompanhar algumas dessas tendências, é possível identificar que foi nesse mesmo período que o grupo de
mulheres que hoje ocupa cargos executivos no Brasil se inseriu com maior expressão no mercado de trabalho formal,
assumindo cargos hierarquicamente superiores e contribuindo para a construção de uma nova representação da mulher
trabalhadora. Em 2004, cerca de 31% dos 19.167 cargos de diretores de empresas no Brasil tinham à frente mulheres
(Bruschini & Puppin, 2004). Estamos falando de um percentual significativo, ao considerarmos que o grupo de executivos no
Brasil engloba diretores e gerentes de empresas e que tradicionalmente esses cargos são ocupados por homens.
Com esse contexto favorável, em junho do mesmo ano foi lançada no Brasil, pela editora Símbolo, a revista Vida
Executiva, abordando questões, símbolos e significados compartilhados por esse grupo de mulheres que ocupa posição de
chefia.
A editora Símbolo, em 2004, já se firmava como uma editora de publicações de revistas direcionadas a um público
feminino mais amplo, como as revistas Uma, Corpo a Corpo, Dieta já, Vida Saúde e Meu Nenê, voltadas para saúde, beleza e
maternidade. A redação e o corpo editorial da revista Vida Executiva eram compostos majoritariamente por mulheres, que
ocupavam os cargos de editora-chefe, repórter, diretora de divisão, revisora e editora de arte. Ao todo eram oito profissionais
do sexo feminino e apenas um homem participando da produção gráfica, ou seja, mulheres escrevendo e editando para
mulheres. Esta equipe se manteve durante as sete edições e contou com a participação de outras pessoas como colaboradores.
Neste grupo havia mais equidade, inclusive abrangendo, ao longo do período, um maior número de homens, em média 14
para 13 mulheres.
A partir da análise das sete primeiras publicações da Revista, de junho a dezembro de 2004, este estudo busca
refletir sobre “os dispositivos materiais e formais” (Chartier, 1989) da revista, como capa, contracapa, títulos, disposição e
estrutura das seções. São informações importantes para entendermos melhor o “sentido das formas” (Idem) com que essas
trabalhadoras foram representadas e apresentadas nessa primeira fase da revista.
A escolha por iniciar este estudo a partir de tais suportes materiais, antes mesmo de analisarmos com profundidade
o conteúdo textual presente nas narrativas dos artigos, visa à interpretação dos símbolos e dos significados atribuídos por uma
revista ao “ideal” de representação da mulher executiva.
Serão estas informações iniciais que irão marcar a “identidade” da revista nas bancas e auxiliar na captação da
atenção dos leitores. As informações presentes nessas seções serão um “convite” para o leitor (neste caso, provavelmente
para as leitoras) e irão influenciar a sua escolha em meio às disputas dos inúmeros títulos disponibilizados em um mercado
editorial cada vez mais efervescente.
As capas – No período de publicação das sete edições da revista Vida Executiva, as capas foram destinadas às
pioneiras. Cada edição deu exclusividade e destaque a uma única pioneira que havia conseguido romper o “teto de vidro”,1
possivelmente sinalizando a abertura de espaço para as seguintes. É importante ressaltar o slogan que permaneceu ao longo
das sete primeiras edições – “a revista da mulher de sucesso” – o que reforça esta hipótese.
Da primeira à sétima edição aparecem algumas mulheres que ocupavam em 2004 um cargo de grande prestígio em
empresas privadas de diferentes segmentos, como de presidência ou de diretoria, além de algumas empresárias. É importante
diferenciar estas duas categorias: executivas2 e empresárias. Apesar de ambas partilharem alguns significados atribuídos ao
“mundo” empresarial, são categorias diferentes, considerando-se que as empresárias, por serem donas do próprio negócio,
possuem um outros tipos de inserção, atuação e relações de poder em um campo com diversidade de disputas. Enquanto a
empresária busca a inserção e o bom posicionamento do seu negócio no mercado, a mulher executiva é empregada de uma
empresa em um cargo de prestígio e vivenciará disputas no campo por esses postos.

1
“Diz respeito àqueles postos-chave na hierarquia superior das empresas e instituições, considerados como ainda não ultrapassáveis e inatingíveis pelas mulheres
[...] termo cunhado pelo Wall Street Journal em 1985” (Rocha, 2006: 102).
2
Sobre a construção da categoria “executivos” na França, ver Boltanski (1982).

283
As relações de poder, as disputas e as tensões são diferentes, se levarmos em consideração que a relação de trabalho
das mulheres executivas é regida por um contrato entre empregado e empregador, ou seja, uma relação mediada pelas leis
trabalhistas vigentes no país. É importante sinalizar as diferenças dessas categorias e reforçar que a concentração da análise
proposta está pautada na categoria “executivas”.
Para construir esta análise, partimos da hipótese de que as executivas fazem parte de representações recentes da
mulher no mercado de trabalho; consideramos também o fato de que essas trabalhadoras não se enquadram em uma situação
de informalidade (como ocorre com outros grupos de trabalhadoras), pois possuem um espaço significativo na esfera pública,
em especial nas empresas e em algumas mídias, a impressa e a eletrônica.
É importante ressaltar que esse espaço nos meios de comunicação é muito diferente do anteriormente ocupado pela
mulher na imprensa brasileira na passagem do século XIX para o XX, quando as lutas pela emancipação feminina eram
representadas com descrédito (Soihet, 2004), e muito menos remete ao conceito de “mulher trabalhadora” associado ao
“trabalho não-qualificado”, elaborado por Joan Scott em 1988 (Scott apud Weinstein, 1995). Este conceito, apesar de fazer
parte do mundo do trabalho, não encontra legitimidade nesse grupo específico. Na revista Vida Executiva, essas trabalhadoras
ocupam um espaço de destaque, geralmente valorizando a sua conquista e a sua atuação em cargos tradicionalmente
ocupados por homens, muitas vezes em representações e narrativas próximas àquelas de “heroínas”.
Mas como essas mulheres são representadas e apresentadas nas capas da revista? Como a primeira edição foi
destinada a uma empresária (Cristiana Arcangeli), começamos a análise a partir da edição de julho, na qual aparece a
executiva Eneida Bini anunciando o seu novo cargo de diretora na Herbalife3 depois de 23 anos na Avon4. Ela ressalta: "nem
sempre o cargo de mais glamour é o que oferece melhores oportunidades”. A terceira edição foi destinada a Amália Sina que,
“presidente da Walita5 aos 40 anos, fez crescer as vendas em mais de 16% desde 2002: falamos hoje com uma mulher de
verdade”.6 Na edição de setembro, aparece Cheiko Aoki, filha de imigrantes japoneses de São Paulo: “uma das maiores
executivas de hotelaria, a presidente da Rede Blue Tree7 é uma verdadeira encantadora de hóspedes”. Na quinta edição, Rose
Koraicho, “presidente da Koema Empreendimentos Imobiliários, um imenso império moldado em sonhos e concretos”.
Maria Sílvia Bastos, “a dama de aço8 que teve coragem de trocar o cargo de presidente da CSN9 por qualidade de vida”, é o
destaque da edição de novembro. A última edição do ano também foi destinada a uma empresária, Cristina Carvalho Pinto, e
por este motivo não realizamos uma análise mais detalhada deste exemplar.
Percebe-se que há uma diversidade nessas representações: trabalhadoras atuando em diferentes segmentos da
economia, com inserções e trajetórias distintas no campo. Mas há também algumas semelhanças: mulheres de pele clara, com
uma grande projeção no campo, aparentando cerca de 40 anos, bem vestidas e maquiadas, sempre com um estilo clássico e
sofisticado de vestuário, a maioria delas usando jóias e um terninho que acompanha a cor de fundo do título da revista. Na
primeira página podemos ter acesso às informações sobre as origens das roupas, normalmente de lojas de grifes
internacionais que fazem parte de um mercado de luxo, como Empório Armani, Chanel, Dolce & Gabbana e Daslu, além de
jóias da H. Stern, algumas delas do acervo pessoal das executivas.
Essas formas de consumo apresentadas podem refletir e auxiliar no sentido da formação de um ethos, de uma
“visão de mundo” (Geertz, 1989) e principalmente de um habitus (Bourdieu, 1989), que contribuem para aumentar as
possibilidades de inserção, distinção e ascensão em um campo com frequentes disputas. Segundo Bourdieu (2007), grupos
considerados “dominantes” afirmam-se a partir de três formas principais de consumo para se distinguirem dos demais grupos:
“alimentação, cultura e despesas com apresentação de si e com representação (vestuário, cuidados de beleza, artigos de
higiene e pessoal de serviço)” (op. cit.: 174)
Em relação às chamadas das capas dessas primeiras publicações, a maioria enfatiza uma postura e um
comportamento de protagonista das mulheres na construção de suas carreiras, principalmente nas chamadas principais em
destaque durante esse primeiro ano (2004), como “a primeira impressão fica” (junho), “promova-se!” (agosto),
“atitude=sucesso” (setembro) e “arrisque mais, tome a iniciativa” (outubro).
Além das formas de apresentação e representação de si presentes nas capas das revistas, podemos avaliar esses
símbolos e significados em outros dois espaços do periódico: na contracapa destinada ao anúncio publicitário e na própria
estrutura das seções.
A estrutura das seções – Em relação a esta última, temos a seguinte disposição: a primeira seção é intitulada “na
capa”, com informações de algumas chamadas apresentadas na capa da edição. Em seguida, a seção “informação”, que traz
dicas de comportamentos mais aceitáveis no ambiente empresarial, com uma subseção intitulada “etiqueta básica”, que irá

3
Empresa americana de comercialização de produtos de redução de peso e nutrição.
4
Empresa de produtos de beleza, fundada nos Estados Unidos. A sua segunda maior unidade no mundo encontra-se no Brasil.
5
Empresa voltada para produção de eletrodomésticos, fundada no Brasil em 1930. Atualmente é uma das empresas do grupo Philips.
6
Alusão a uma marchinha clássica do carnaval brasileiro, composta por Mário Lago e Ataulfo Alves em 1941, na qual descrevem a saudade que tinham de uma
mulher chamada “Amélia”. Segundo a música, “Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia é que era a mulher de verdade”. Até hoje, no Brasil, o termo
“Amélia” é usado para representar a mulher que não trabalha em atividades consideradas produtivas e “apenas” destina o seu tempo para cuidar da casa e da
família.
7
Empresa do ramo de hotelaria.
8
Como a CSN é uma empresa de produção de aço e Maria Sílvia Bastos possui a fama no mercado de trabalho de ser uma executiva mais rigorosa, a revista faz
uma associação a Margareth Thatcher (a dama de ferro).
9
Empresa de produção de aço, fundada em 1941 no Brasil.

284
discorrer sobre como agir em várias situações do cotidiano de trabalho. Alguns exemplos são: um almoço de negócios;
reuniões de trabalho; como usar corretamente o celular; como se deve proceder, ao sair de férias, com os pertences pessoais
que estão na mesa de trabalho; como se vestir se tiver que trabalhar no final de semana, entre outros. A sessão está
organizada no estilo de perguntas e respostas para situações corriqueiras do ambiente de trabalho.
As duas subseções seguintes apresentam dicas para auxiliar na ascensão da carreira. Com os subtítulos “evolução”
e “tendência”, apresentam recomendações de atitudes e comportamentos necessários para um melhor posicionamento no
“campo” (Bourdieu, 1989), entre eles, o desenvolvimento de competências como criatividade, iniciativa e inovação, além da
importância de compartilhar conhecimentos e delegar atividades, administrar o tempo e a forma correta de fazer
apresentações de trabalho, entre outros.
As subseções hi tech e “tecnologia”, abordam as tendências de novas tecnologias em informática e telefonia celular.
Por último, temos a subseção intitulada “contexto”, que trata de questões políticas da atualidade, como na edição de outubro
de 2004, em que faz uma breve análise das eleições americanas com os perfis das candidaturas de George W. Bush e John
Kerry.
A terceira seção é destinada à executiva retratada na capa e narra a sua trajetória e experiência no ambiente
empresarial, além de trazer uma entrevista com um consultor de recursos humanos do mercado que apresenta, mais uma vez,
algumas dicas de como se inserir e permanecer no campo; esta seção tem o título de “perfil”.
A penúltima seção, “imagem em alta”, é dedicada às tendências da moda – vestuário, maquiagem, perfumes,
cosméticos e cortes de cabelos direcionados a um público mais clássico e sofisticado – contemplando algumas poucas
páginas para dicas de nutrição e cuidados com a saúde.
A última seção, intitulada “relacionamento”, expõe questões em sua maioria voltadas para a conciliação família-
trabalho e as relações com colegas e chefe. Um exemplo é o artigo da edição de julho de 2004, que tratou do conflito do
aumento da carga horária de trabalho, com o título “mulheres que trabalham demais – ser workaholic10 pode prejudicar o seu
desempenho”.
A edição de novembro de 2004, seguindo esta mesma proposta, aborda os dilemas da maternidade e os cuidados
com os filhos, com o título “a hora de ter filhos – é preciso considerar as necessidades do casal e o momento profissional”; já
a edição de julho de 2004, com o artigo “socorro! crianças em casa”, recomenda roteiros de atividades para o período de
férias dos filhos.
Por fim, ao final da revista, de forma destacada em um quadro, mas em letra menor, temos as “seções básicas”, com
carta e e-mails de leitoras, dicas de investimentos financeiros, endereços dos produtos listados e informações sobre o que
fazer no tempo livre e também uma seção de astrologia voltada para a carreira profissional.
Esta estrutura das seções permaneceu a mesma no decorrer das sete primeiras edições da revista. A diversidade dos
temas enfocados encontra convergência na representação de uma categoria similar a um guia de auto-ajuda, possivelmente no
intuito de auxiliar novatas e aspirantes na criação de um habitus (Bourdieu, 1989) e fazendo alusão a um “processo
civilizador” (Elias, 1994), o que contribuirá na formação de estratégias de inserção e de manutenção em um campo que
possui regras e costumes próprios.
As contracapas – Durante as sete primeiras edições, as contracapas trouxeram propagandas com variedade de
produtos, como novos modelos de celulares (junho), travesseiros mais confortáveis (julho e agosto), tintas para o cabelo
(outubro) e bolsas sofisticadas (dezembro). Um dado importante que nos chamou a atenção em duas propagandas de
contracapa foi a afirmação do poder da mulher sendo usado como uma estratégia de marketing em detrimento da diminuição
do poder e da “utilidade” dos homens na vida dessas mulheres. Como exemplo, vê-se a propaganda de um seguro de
automóvel, que inclui serviços de pequenos reparos e consertos em residência, com o slogan: “seu marido acaba de perder
uma utilidade” (novembro). Na edição de setembro, a contracapa é destinada à propaganda de um seguro de vida direcionado
às mulheres, com cobertura extensiva para câncer de mama. É apresentado o slogan publicitário: "se as mulheres já eram
seguras de si, agora então nem se fala", escrito à mão em um guardanapo com um beijo de batom, e que tem ao seu lado uma
bolsa e um brinco expostos em uma mesa, caracterizando que foi escrito por uma mulher. Em uma outra propaganda de
carro, no verso da capa da edição de outubro do mesmo ano, está a descrição da chamada: “controle CD player no volante de
carro. Os homens estão cada vez com menos utilidade”, reafirmando tal característica.
A partir desta análise inicial da revista, percebe-se a diversidade de símbolos, formas e sentidos atribuídos à nova
mulher trabalhadora. Uma reflexão complementar a respeito das demais edições e a análise textual das narrativas a ser
acrescida poderão nos permitir um melhor entendimento das construções e das mudanças presentes nessas representações.
Como esta pesquisa contemplará em futuros estudos a realização de entrevistas com algumas executivas, teremos a
oportunidade de avaliar mais adiante as “apropriações” (Chartier, 1989) que essas mulheres fazem de tais leituras e símbolos
e, principalmente, as ressignificações e os sentidos que atribuem a essas representações em suas práticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Boltanski, Luc (1982). “Les cadres. La formation d’un groupe social”, Paris, Minuit.

10
Expressão utilizada no meio empresarial para designar as pessoas viciadas em trabalho.

285
Bourdieu, Pierre (2007). “A distinção – crítica social do julgamento”. São Paulo: EDUSP, Porto Alegre, RS: Zouk.
____________ (1989). “O poder simbólico”. Rio de Janeiro, Difel/ Bertrand Brasil.
Bruschini, Cristina & Puppin, Andréa Brandão (2004). “Trabalho de mulheres executivas no Brasil no final do século XX”.
Cadernos de Pesquisas da Fundação Carlos Chagas, v.34, n. 121, jan.-abr. 2004, pp. 105 a 138.
Bruschini, Cristina (2007). “Trabalho e gênero no Brasil nos últimos 10 anos”. In: Seminário Internacional Mercado de
Trabalho e Gênero: Comparações Brasil-França. Rio de Janeiro, UFRJ/IFCS, 09 a 12 de abril de 2007. Disponível em
http://www.fcc.org.br/mulher (consultado na internet em 10/07/07).
Chartier, Roger. “Le monde comme representation”. Annales ESC, novembre-decembre 1989, n.6, p. 1505-1520.
Costa, Delaine Martins & Neves, Maria da Graça Ribeiro (orgs.) (2002). “A condição feminina nos países do Mercosul.
Sistema integrado de indicadores de gênero nas áreas de trabalho e educação”. Rio de Janeiro, IBAM.
Elias, Nobert. “O processo civilizador: uma história dos costumes” (1994). Rio de Janeiro, Edit. Zahar, vol.1.
Geertz, Clifford (1989). “A interpretação das culturas”. Rio de Janeiro, Editora LTC.
Revista Vida Executiva (2004). Ano 1, N. 1 a 7. São Paulo, Editora Símbolo, jun.-dez. de 2004.
Rocha, Cristina Tavares da Costa (2006). “Gênero em ação? Rompendo o ‘teto de vidro’? Novos contextos da tecnociência”.
Santa Catarina, 2006, Tese de doutorado, UFSC. Disponível em http://www.cfh.ufsc.br/~dich/tese_cristinadarocha.pdf
(consultado na internet em 20/07/2007).
Soihet, Rachel (2004). “Pisando no ‘sexo frágil’”. In: Nossa História, ano 1, n. 3, janeiro de 2004, p. 14-20.
Weinstein, Bárbara (1995). “As mulheres trabalhadoras em São Paulo”. Cadernos Pagu, vol. 4, Núcleo de Estudos de
Gênero/ Unicamp.

Homens e Mulheres: Identidade Militar


Emilia Takahashi
AFA - Academia da Força Aérea
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Resumo: Os estudos sobre gênero, em sua maioria, são provocadores de temas bastante importantes, especialmente no que se refere à
reflexão que a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho gera. Discute-se, por exemplo, a noção de construção dos sexos
(Laqueur, T., 1994); questões de política e poder (Butler, J., 1990; Haraway, D., 1994 e Scott, J., 1994), pesquisa científica (Behar, R. 1993
e Golde, P. 1986) dentre outros. Durante a década de 70, as forças armadas de vários países do mundo começaram a admitir mulheres em
suas fileiras e elas passaram a receber uma formação idêntica a dos homens. Ao analisar as consequências da participação feminina nos
exércitos, Carreiras (1997), aponta para algumas razões que fizeram com que as instituições militares portuguesas se abrissem como novo
espaço de atuação para mulheres. No Brasil, apesar da extensa produção acadêmica sobre militares na área das ciências sociais, poucos são
os trabalhos que tratam dos valores, crenças e atitudes que permeiam a caserna, e em menor número ainda, os estudos acerca da participação
feminina neste espaço. D´Araújo (2000) analisou a percepção que as autoridades militares têm sobre a atuação das mulheres na caserna e
observou que muitas das restrições impostas à essa atuação decorrem da idéia predominante de fragilidade e debilidade feminina que permeia
o imaginário dos militares. Neste trabalho, apresentamos os resultados de um estudo pioneiro sobre o processo de formação da identidade
militar de homens e mulheres numa academia das Forças Armadas do Brasil.
Palavras-chave: Forças Armadas, Gênero, Estado

Introdução: Gênero e Poder


Nos últimos anos, o estudo dos impactos da globalização econômica e social na vida cotidiana das pessoas tem
possibilitado novas leituras das relações sociais, dentre elas, aquelas que valorizam a dimensão de poder embutida nas
relações de gênero.
As relações sociais começaram a ser valorizadas como base da reflexão sobre as implicações geradas pela divisão
social dos papéis sexuais, principalmente com a participação crescente das mulheres no mercado de trabalho. Estudos na área
de gênero começaram a buscar respostas para explicar questões relacionadas à naturalização da discriminação sexual, às
condições de trabalho desiguais para homens e mulheres, à feminização e desvalorização de algumas profissões e às
modificações na dinâmica das relações sociais entre outras.
Cabe ressaltar que os estudos sobre gênero, em sua maioria, são provocadores de temas bastante importantes,
especialmente no que se refere à reflexão que a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho gera.
Problematiza-se, por exemplo, a noção de construção dos sexos (Laqueur, T., 1994); a questão da política e do poder (Butler,
J., 1990; Haraway, D., 1994 e Scott, J., 1994), a questão religiosa (Bynum, C., 1994) e a pesquisa científica (Behar, R. 1993 e
Golde, P. 1986) entre outros.
No Brasil também há diversos estudos que relacionam gênero e poder e suscitam discussões em diversas áreas de
conhecimento como na política (Avelar, L., 1996); pesquisa científica e antropologia (Corrêa, M., 1997); trabalho (
Bruschini, C. e Sorj, B., 1994; Oliveira, E. M. e Scavone, L., 1997); e linguagem e representação (Siqueira, M.J.T., 1997 e
Soihet, R., 1997), dentre outras.

286
Sem esquecer o pensamento pioneiro de Simone de Beauvoir (1960) de que "não se nasce mulher, mas transforma-
se", entendemos que gênero, longe de ser natural ou biológico, é algo que se constrói histórica, social e culturalmente que
define, assinala e vem demarcando limites na participação social de homens e mulheres.
Como outros marcadores sociais, gênero torna-se algo que existe somente na medida em que as pessoas o
operacionalizam, e as questões levantadas pelas pesquisadoras feministas parecem uma boa porta de entrada para
compreender o jogo de poder que as relações sociais engendram, inclusive no interior das instituições militares.

Mulheres e forças armadas: considerações iniciais


Durante a década de 70, as forças armadas de vários países do mundo começaram a admitir mulheres em suas
fileiras e elas passaram a receber uma formação idêntica a dos homens nos setores onde era permitida a sua participação. Este
fato é marcante na história dos exércitos ocidentais, pois assinala uma ruptura no esquema tradicional de recrutamento,
alistamento e participação das mulheres apenas em tempos de guerra e abre espaço para a reflexão sobre uma atuação que vá
além das funções auxiliares.
Stiehm (1996), ao analisar a situação das mulheres nas forças armadas norte-americanas, assinala dois fatores
principais que ampliam o espaço da participação feminina nos exércitos.
O que é a rotina do trabalho das mulheres militares? Quais são as dificuldades, o que motiva sua participação nas
Forças Armadas? Compreender e articular aquilo que durante muito tempo a história militar relegou às notas de rodapé
inspiraram a coletânea organizada por Stiehm: a estrutura social das Forças Armadas dos EUA, as dificuldades de adaptação
e comunicação à vida militar, os entraves à participação, os elementos afetivos e emocionais, e uma atenção especial dada à
questão de gênero e à especificidade gerada por militares do sexo feminino. A organizadora procura deixar bem claro de onde
vem sua inspiração e quais são seus objetivos com a coletânea: a partir dos relatos profissionais e pessoais de mulheres
(militares e civis) sobre a instituição militar, pretende-se encorajar especialmente mulheres civis a aceitar e exercer sua
responsabilidade em saber o que é e qual é o papel das Forças Armadas.
Assim, apesar do discurso tradicional de que este campo é exclusivo dos homens, o comandante das Forças
Armadas dos EUA é um oficial eleito, e a maioria dos eleitores é constituída por mulheres. O volume valoriza diferentes
experiências (o combate; as representações de mulheres que vivenciaram a guerra em seus lares; o preconceito gerado pela
opção homossexual; o papel da mulher na evolução do militarismo; entre outras) como base para a reflexão sobre a
participação das mulheres no campo das instituições militares e pretende, através das reflexões geradas pelos artigos,
sensibilizar os leitores sobre a questão dos papéis sexuais, permitindo um leque de "insights" sobre o tipo de socialização
diferenciada que se faz nos EUA (ou no mundo ocidental) entre homens e mulheres.
Cada relato apresenta passagens que descrevem a dificuldade de se reagir diante de padrões comportamentais que
restringem a ação de mulheres, homossexuais, militares, civis, combatentes, enfermeiras..., mas também revela como muitas
vezes é possível romper com comportamentos esperados e superar preconceitos dado que se trata de questões relacionadas ao
poder.
A maioria das autoras reunidas na coletânea de Stiehm (Miriam Cooke, Rhonda Cornum e Susam Jeffords dentre
outras) assume uma posição firme quanto ao pensamento de que tanto as mulheres quanto os homens são motivados a
participarem das Forças Armadas por motivos semelhantes. As performances entre homens e mulheres também não são tão
diferentes - há mulheres que podem ser desastrosas e frágeis em suas ocupações, mas a grande maioria simplesmente
executará seu trabalho de forma bem-feita, e as porcentagens nestas categorias deverão ser semelhantes à dos homens.
Segundo a maioria dos relatos das oficias que participaram da Guerra do Golfo, o que pesou para o sucesso em suas
atividades na condição de militares, foram os valores que regem a instituição como lealdade, integridade, coragem, senso de
humor e a dedicação, e não algo que poderia ser melhor representado por qualquer um dos sexos. Neste sentido, ainda há na
coletânea organizada por Stiehm (1996), relatos de mulheres militares que, sob a proteção de pseudônimos, denunciam a
discriminação sexual que ocorre no interior das Forças Armadas e que se sobrepõe aos valores militares essenciais como
dever, honra e pátria.
Segundo dados coletados por Stiehm, as militares americanas servem em uma ampla lista de ocupações, em 93,
quase a metade das oficiais serviam em ocupações de saúde e 17% delas estavam vinculadas à área administrativa das Forças
Armadas. Isto significa que pelo menos 1/3 das oficiais americanas atuavam em campos diferentes destes tradicionais,
mesmo com todos os obstáculos que as leis e regulamentos impõem.
Uma das razões para a ampliação do espaço às mulheres militares seria a alteração nas leis que proibiam as
americanas de atuarem em aviões e navios de combate, neste sentido, os anos 90 foram especialmente propícios a uma
revisão das políticas que consideram a participação das mulheres em combate.

Forças Armadas e gênero: fronteiras simbólicas da participação feminina.


A idéia de gênero como um fator biológico que justifica a desigualdade da divisão social dos papéis sexuais ainda é
amplamente difundida nos meios militares e apesar de alguns avanços, ainda limita a atuação das mulheres nestes espaços.
Além da restrição imposta por leis e regulamentos, as mulheres militares vivenciam dificuldades e angústias
específicas na conciliação da vida afetiva com a profissional, há um conflito evidente entre as exigências familiares e aquelas

287
de disponibilidade total que caracterizam a profissão militar 1. De acordo com Carreiras, a vida familiar da mulher militar é
especialmente afetada pois tanto as Forças Armadas como a família, são instituições que dependem em larga escala da
disposição e empenho de seus membros e ambas "lhes impõem um elevado nível de exigências em termos de lealdade, tempo
e energia, por contraposição a outras instituições que tendem a limitar essas pressões normativas, possibilitando aos
indivíduos a conciliação de diferentes tipos de actividade e pertenças" (1997, p. 71).
Cabe ressaltar que surge com relevância nos estudos sobre a participação das mulheres nas Forças Armadas, a idéia
de contraposição entre a vida militar e a vida afetivo-familiar, o que reforça a tese de limitação da participação na caserna
quando se trata de mulheres.
Entre outras dificuldades das mulheres conciliarem trabalho e família, a maternidade é apontada por Carreiras como
o fator que causa as maiores baixas entre as mulheres militares, o casamento também representa uma forte limitação às
ambições das mulheres que atuam nas Forças Armadas, pois há dificuldades em se manter relações de namoro "harmoniosas"
devido às exigências de distanciamento e disposição de tempo integral próprias da vida militar. Estas dificuldades
enfrentadas pelas mulheres acabaram por provocar um fenômeno: o aumento de namoro e casamento entre militares, que
trazem consequências para ambas instituições devido às dificuldades de se compatibilizar as carreiras. A solução tem sido o
sacrifício da carreira de um dos cônjuges ou a opção do casal em não ter filhos, alguns dados sobre a participação feminina
nas Forças Armadas dos EUA confirmam esta possibilidade: 70% das militares não possuíam filhos e apenas 26% das
oficiais eram casadas em 1985 (Carreiras, 1997, p. 73)
Apesar da admissão de mulheres nas Forças Armadas de vários países do mundo (EUA, França, Inglaterra, Israel,
Portugal, Canadá, Chile e Argentina entre outros), atuando em diferentes setores e recebendo uma formação idêntica à dos
homens, sua participação ainda é bastante limitada. Dentre os países membros da OTAN, atualmente apenas o Canadá tem
uma alta porcentagem de mulheres militares comparável à dos EUA - em torno de 12% - segundo a análise de Stiehm, isto
significa que as mulheres são sub-representadas nas esferas militares, tanto no círculo de oficiais 2 como naquelas dos
círculos hierárquicos inferiores.
Seja por mecanismos legais ou não, o fato é que a participação das mulheres nas Forças Armadas mundiais vêm
acompanhada de limitações e polêmicas, dada as modificações que impõem nas relações sociais em geral.

Brasil: o segundo guerreiro


No Brasil, apesar da extensa produção acadêmica sobre militares na área das ciências sociais, poucos são os
trabalhos que tratam dos valores, crenças e atitudes que permeiam a instituição militar, e em menor número ainda,
encontramos estudos acerca da participação feminina nas Forças Armadas.
Celso Castro – pioneiro dos estudos antropológicos sobre militares no Brasil (1990 e 2000) - enfatiza a importância
da realização de estudos na área das ciências sociais sobre os processos de profissionalização e socialização vividos pelos
militares no interior da caserna, concordamos com este autor que estes são temas essenciais para se avançar no conhecimento
empírico sobre a cultura específica dos militares mas frequentemente passam despercebidos pelos pesquisadores que
preferem privilegiar a atuação dos militares no campo político nacional.
Nancy Leonzo (1998) atribui a carência de estudos sobre a cultura militar ao que ela chama de patrulhamento
ideológico cultivado entre historiadores e intelectuais brasileiros que excluem do debate acadêmico as atividades cotidianas
que ocorrem no interior da caserna. Seja devido ao difícil acesso às instituições militares ou a algum trauma causado pelas
intervenções dos militares na política (especialmente nos vinte anos do regime militar, de1964 a 1984), o fato é que há
poucos estudos realizados no sentido de compreender e articular temas que remetem à cultura militar.
Além dessa problemática que envolve o estudo da instituição militar no Brasil, Leonzo ainda aponta para o descaso
dos historiadores, especialmente aqueles responsáveis pela historiografia militar brasileira, que relegaram às notas
secundárias e mesmo desprezaram a participação das mulheres neste campo tradicionalmente masculino. Não foram poucas
as mulheres que romperam com as regras impostas pela sociedade patriarcal de sua época para atuarem em campos de
combate e foram esquecidas pela história.
Entre outras, a historiadora enfatiza o pioneirismo de Maria Quitéria de Jesus Medeiros que fugiu da casa dos pais
para tornar-se guarda de um quartel e participou da Guerra da Independência, conduzindo um grupo de baianas que repeliu as
tropas metropolitanas. Sua bravura e coragem foram reconhecidas e à ela foi concedido um soldo equivalente ao recebido por
um soldado, sendo também condecorada por D. Pedro com a Imperial Ordem do Cruzeiro.
O episódio da Guerra do Paraguai também levou aos campos de batalha centenas de mulheres brasileiras que
atuaram ao lado dos homens e foram esquecidas pela maioria dos historiadores brasileiros. Sobre este aspecto, Leonzo
valoriza a conduta dos historiadores paraguaios que registraram em suas obras a valentia das mulheres paraguaias - retratadas
como heroínas e que mereceram inclusive um monumento em sua homenagem localizado na cidade de Assunção.

1
Obviamente, este conflito não é um privilégio das mulheres militares, em geral, a alteração do padrão de participação social das mulheres provocou mudanças
nos modelos familiares tradicionais.
2
O acesso ao oficialato nos E.U.A. pode ocorrer através da formação nas Academias militares como West Point, Annapolis, Air Force... ou através dos
programas de ROTC (Reserve Officer Training Program), abertos para profissionais formados em universidades que desejam seguir a carreira militar.
Entretanto, Stiehm é enfática ao afirmar que é das Academias militares que saem a maioria dos oficiais que atingem o generalato, daí a alta taxa de competição
para se entrar nestas escolas.

288
Há casos individuais, narrados pelo General-de-Brigada Joaquim Silvério de Azevedo Pimentel que, segundo
Leonzo, registrou episódios da Guerra que não constavam nas comunicações oficiais, como os de "Florisbela" e "Maria
Curupaiti", lembradas como corajosas guerreiras que atuaram como combatentes na Batalha de Tuiuti, mas é sem dúvida
lamentável o descaso dos historiadores com a participação de grande número de mulheres brasileiras que estiveram nos
campos de batalha da Guerra do Paraguai.
Segundo a historiadora, na marcha em direção ao Mato Grosso, por exemplo, há relatos de que aproximadamente
200 mulheres participaram acompanhando os homens, sendo que apenas cerca de sessenta sobreviveram ao final do episódio
conhecido por "Retirada da Laguna". Em sua maioria, estas mulheres eram esposas ou companheiras dos soldados que
levavam seus filhos e ainda participavam ativamente do combate, adentrando nos campos de batalhas sob fogo cruzado para
levar alimentos, fazer curativos ou ainda conduzir os soldados para os hospitais.
Em outro episódio da mesma Guerra do Paraguai resgatado por Leonzo, consta que cerca de 70 mulheres
participaram ativamente do combate, fabricando cartuchos para a infantaria durante uma noite inteira, auxiliando os soldados
brasileiros na defesa do Forte de Coimbra - uma parte da província de Mato Grosso - localizado às margens do rio Paraguai.
Apesar das participações femininas serem diversificadas e cruciais em muitos combates, historicamente, os feitos
heróicos que ocorreram nos campos de combate são creditados aos homens e às mulheres reserva-se no máximo a menção de
funções de cunho assistencial, desvinculadas das atividades bélicas. Esta tendência histórica não se restringe ao Brasil,
segundo D'Araújo (2000), algumas restrições impostas às mulheres militares dos EUA têm como base estereótipos baseados
na diferença de gênero que desconsideram o papel crucial desempenhado por mulheres em vários momentos da história da
humanidade, como por exemplo, na resistência ao nazifascismo (2000, p. 4).
Entre as funções assistenciais que a história exalta como próprias do grupo feminino, a enfermagem destaca-se
como a ocupação mais nobre e valorizada que uma mulher poderia desempenhar nos campos de batalha. Não é de se
estranhar, portanto, que a figura feminina, tratada como heroína na historiografia brasileira, seja a de Ana Neri - que partiu
para os campos de batalha para socorrer seus filhos e ficou conhecida como "Mãe dos Brasileiros" ao estender seus cuidados
aos demais combatentes feridos na Guerra do Paraguai.
Durante a II Guerra Mundial, o caráter assistencialista da colaboração feminina foi bastante difundido
especialmente pela cinematografia norte americana (Leonzo, 1997, p. 76). No Brasil, as mulheres eram cada vez mais
atraídas pela enfermagem, motivadas pela valorização da profissão que a figura de Ana Neri provocou ou pela dimensão dada
pelo cinema ao trabalho feminino realizado junto à Cruz Vermelha.
O quadro de enfermeiras da reserva do Exército foi criado em dezembro de 1943 e segundo o relato de Elza
Cansação (1987) - enfermeira-chefe das voluntárias da FEB - Força Expedicionária Brasileira - fora criado não por uma
iniciativa dos militares brasileiros, mas sim por uma imposição dos americanos. As dificuldades das enfermeiras que
participaram da FEB não se restringiram às condições precárias e perigosas que encontrariam nas proximidades das zonas de
combate, elas também enfrentaram preconceitos por decidirem adentrar num campo predominantemente masculino e
sentiram os efeitos da falta de reconhecimento às suas atuações:
As primeiras voluntárias do Brasil sofreram difamações e pechas horríveis. Até a mulher de um militar de alta
patente do Exército tachou-nos de "prostitutas que queriam ir para a guerra para fazer a vida". A nossa guerra, na realidade,
começou aqui mesmo... É doloroso sentir que ainda hoje, passados mais de 40 anos, ainda se encontrem pessoas maldosas
que procuram minimizar o nosso trabalho, daquelas jovens que não titubearam em trocar o conforto de seus lares pela
incerteza da guerra. (Cansação, 1987, p. 224)
Ainda que a participação feminina durante a II Guerra, junto às Forças Armadas Brasileiras, tenha se restringido ao
campo assistencial, vale ressaltar que aquelas mulheres romperam padrões sociais da época e se deslocaram às zonas de
combate, subvertendo, mesmo que temporariamente, o paradigma tradicional da divisão social dos papéis sexuais que
permeia a instituição militar.
Ao analisar a percepção que as autoridades militares brasileiras têm sobre as mulheres, D'Araújo (2000) observou
que as restrições impostas à sua participação nas Forças Armadas decorrem da idéia predominante de fragilidade e debilidade
feminina que permeia o imaginário dos militares. Tanto as características femininas como as masculinas são percebidas como
exclusivas, o que favorece uma classificação desigual com consequências igualmente desiguais no desempenho das funções.
Segundo a autora, as mulheres são vistas pelas autoridades militares brasileiras como seres emotivos, pacificadores,
delicados, doces, ternos, maternais, vulneráveis, indefesos, que necessitam de proteção, já os homens são tidos como seres
rudes, fortes, frios, impessoais, agressivos, brutos, guerreiros, portanto, representantes legítimos de uma instituição que por
definição lida com o monopólio da violência.
A relação homens - vida militar sempre esteve associada a perigos, mobilidade geográfica, treinamentos
intensivos, desprendimento de tempo e sentimentos em função das obrigações, ao contrário da relação mulheres - vida militar
que durante muito tempo esteve associada exclusivamente ao papel de esposas de militares.

289
A profissão militar sempre foi associada à uma alta periculosidade e mobilidade geográfica que poderiam
prejudicar 3 a família, decorre daí os regulamentos e procedimentos que tradicionalmente visam proteger esta instituição e em
particular as mulheres4 dos militares brasileiros.
As consequências desta percepção de que mulheres e homens são portadores de características diferentes e de que
mulheres são seres frágeis e carecem da proteção dos homens, influiu sobremaneira o processo de admissão de mulheres nas
Forças Armadas do Brasil. A grande ironia deste discurso de proteção às mulheres é que ele acabou servindo de justificativa
para que elas tivessem uma atuação limitada como profissionais no campo militar.
Nas entrevistas realizadas por D'Araújo, as autoridades militares brasileiras se mostraram contrárias à participação
feminina no combate e se baseiam em duas razões principais para sustentar este pensamento, a proteção “natural” que elas
inspiram em seus colegas homens – o que poderia causar atrasos e distrações e permitir o avanço dos inimigos. E também a
reação “natural” dos próprios inimigos (homens), que, por uma questão de “superioridade” ou de “proteção” às mulheres, não
aceitariam a idéia de lutar contra uma mulher e avançariam com mais ferocidade sobre os homens, o que tornaria o conflito
mais sangrento entre os homens.
Com o surgimento de novos direitos e a crescente participação social feminina na década de 80, no Brasil, as
Forças Armadas, inicialmente através da Marinha, abriram-se para as mulheres, que passaram a receber formação e a integrar
os quadros militares, vivenciando dificuldades não muito diferentes daquelas que caracterizaram a entrada das mulheres nas
Forças Armadas mundiais.
Os procedimentos adotados pelas três Forças para a admissão das mulheres foram semelhantes, inicialmente elas
foram inseridas em quadros "temporários", "complementares" e de "reserva", desempenhando funções administrativas e
ligadas à saúde, diferente dos homens, que podem se dedicar àquelas consideradas mais "nobres" na instituição militar,
ligadas ao setor operacional e aos cargos de comando. Isto equivale dizer que elas foram admitidas desde que limitadas a
algumas funções consideradas de "natureza" feminina, não podendo ocupar funções ligadas ao combate ou aquelas que
exigem longos períodos longe do lar5.
Cabe ressaltar que a tendência das autoridades militares brasileiras em classificar o mundo feminino como
essencialmente diferente e mais frágil do que o mundo masculino se transformou em limitações às atuações das militares,
assim, sob o argumento da proteção, a inserção das mulheres nas Forças Armadas veio acompanhada da sua exclusão em
certas atividades consideradas essencialmente masculinas.(D'Araújo, 2000).
Dentre outras transformações, a admissão de mulheres na caserna gerou uma preocupação com o corpo da mulher e
a construção de novos espaços bem delimitados para homens e mulheres, o objetivo era salvaguardar a mulher dos olhares
dos homens, desacostumados com a presença feminina na instituição militar. Segundo a percepção das autoridades militares,
a mulher seria "naturalmente" o objeto do desejo masculino enquanto a recíproca - homens vistos como objetos do desejo
feminino - não foi considerada.
Segundo Carvalho (1990) o sentimento de carinho e proteção, a forma polida de tratar assuntos referentes ao corpo
da mulher, a criação de ambientes privativos para receber a mulher nas unidades militares, revelam parâmetros de uma
cultura onde homens e mulheres requerem certos comportamentos estereotipados e, portanto, presentes no setor militar.
O fator da vulnerabilidade frente ao desejo de terceiros ganha uma interpretação interessante quando analisado sob
a ótica do discurso dos militares em relação aos homens homossexuais. Segundo a análise de D'Araújo (2000), as razões
apresentadas pelas autoridades militares para a exclusão dos homossexuais das Forças Armadas estão baseadas na idéia de
que os homossexuais não controlariam seus desejos frente aos homens heterossexuais e constituiriam focos de distúrbio
comportamental no interior da caserna. Este seria o único aspecto em que mulheres e homens militares se apresentariam em
igualdade de condições, ou seja, quando expostos à libido de terceiros, ambos necessitam da proteção da instituição.
Os limites da atuação da mulher não são legitimados apenas através desta cultura militar tradicional que visa
proteger as mulheres, os dispositivos legais - leis e decretos também são claros quanto aos limites da atuação feminina, que
dentre outras restrições, prevêem: que a incorporação da mulher tem por objetivo suprir recursos humanos necessários à
substituição e ao recompletamento de funções de natureza técnica e administrativa ( lei nº 6.807 de 07/07/80 - Marinha); que
em tempos de guerra as militares participam apenas através do serviço auxiliar sobretudo na área de saúde (decreto nº 86.325
de 01/09/81- Aeronáutica); que o ingresso é restrito à conveniência e a participação como reserva revela o caráter transitório
da carreira militar (item 1 do artigo 11º do Estatuto dos militares). Mesmo com o advento de quadros permanentes para
mulheres, elas só podem chegar ao posto de vice-almirante na Marinha, de coronel no Exército e até 1996, também só
poderiam chegar ao posto de coronel na Aeronáutica.
Segundo Carvalho, todas estas limitações impostas às militares evidenciam que as Forças Armadas do Brasil não
constituíam na prática um espaço novo de atuação da mulher pois, apesar da novidade de inserção, esta se apresentava dentro

3
Por exemplo, a impossibilidade que as esposas de militares teriam em desenvolver uma carreira profissional e a instabilidade que os filhos apresentariam na
escola face à alta mobilidade geográfica que a profissão militar requer.
4
Dentre estes procedimentos, destacamos três que foram descritos por D'Araújo: o primeiro se refere à proteção às filhas solteiras que, no caso da morte do pai
militar teriam assegurado o direito de receber pensões; no caso da deserção de um militar, sua esposa receberia pensões e auxílios como viúva - o crime do
marido não a comprometeria e a instituição militar continuaria protegendo sua família; quando os maridos saem para cumprir suas missões e precisam ficar muito
tempo longe da família, a instituição militar assume medidas para a sua proteção.
5
A justificativa para a restrição de embarque de mulheres na Marinha, por exemplo, deve-se especialmente à percepção das autoridades de que seria desumano
pedir para que uma mulher se ausentasse durante longo período de tempo de seu lar, especialmente se tiver filhos (D'Araújo, 2000, p. 5)

290
do paradigma que define os lugares tradicionalmente exercidos por homens e mulheres na "sociedade contemporânea" (grifo
nosso).
Além disso, na análise da autora, no final da década de 80, as relações entre homens e mulheres militares foram
marcadas por uma característica específica, de subordinação para a mulher, e não havia espaço para a equivalência, pois na
caserna, o ser-mulher sobrepõe-se ao ser-militar, e à mulher militar restaria apenas se constituir como inferior e não como
sujeito.

Disciplina e Hierarquia: pilares da identidade militar


A proposta de Celso Castro (1990) sobre o estudo da construção do espírito militar embasado na não-
substancialidade e na contrastividade são consoantes à nossa proposta em considerar a identidade como resultante da
comparação entre diferenças e semelhanças. Como Castro, entendemos que a identidade militar não é um traço estático, mas
sim é constituída a partir de um sistema que é ao mesmo tempo homogeneizador e segmentário, e em relação ao qual se
define o valor de cada uma das múltiplas identidades.
Em 1996, contrariando os precedentes históricos e rompendo com este esquema tradicional de participação, as
mulheres foram admitidas como cadetes na Academia da Força Aérea do Brasil e começaram a receber uma formação
idêntica a dos homens no Curso de Formação de Oficiais da Intendência. A Academia da Força Aérea foi a primeira e
atualmente é a única academia das Forças Armadas do Brasil a incluir mulheres em um de seus cursos de formação de
oficiais.
Concordamos com Castro (1990) de que é no interior das academias militares que os futuros oficiais aprendem os
valores, crenças, atitudes e comportamentos apropriados à vida militar. Assim, nosso interesse principal consistiu em estudar
o processo de construção da identidade social dos/as oficiais que se formam na única Academia das Forças Armadas do
Brasil que passou a admitir mulheres em seus cursos de formação de oficiais (Curso de Formação de Oficiais Intendentes,
1996 e Cursos de Formação de Oficiais Aviadores, 2004) e em articulá-lo com as relações de gênero decorrentes da
participação feminina. Neste sentido, concentramos esforços em observar as interações que ocorrem dentro da instituição
militar, e em identificar eventos, crenças, atitudes e estruturas que se destacam no processo de formação da identidade
militar.
O interesse foi sobre as interpretações que os cadetes fazem de sua condição social e dos outros na Academia e não
em aspectos formais da formação do Oficial das Forças Armadas. Com este recorte metodológico não pretendemos
minimizar a importância de outros aspectos da formação de oficiais, mas sim privilegiar uma perspectiva pouco estudada na
área das ciências sociais que é o processo de formação da identidade social que ocorre em uma Academia das Forças
Armadas que passou a admitir mulheres.
Quando chegam à Academia, os cadetes vivem o “período de adaptação” em que são considerados todos “iguais” -
independente dos marcadores que anteriormente os identificavam como família, classe social, região geográfica de
procedência, gênero, raça ou credo religioso entre outros. Neste período, a disciplina é o elemento mais enfatizado, todos
devem “pagar” juntos, todos devem apresentar-se como iguais nas atividades propostas, todos devem ser tratados igualmente.
A disciplina como elemento homogeneizador entre os cadetes, e utilizada como instrumento de sobreposição de
uma vontade coletiva à vontade individual, revela apenas o eixo de ligação e de união entre os integrantes da caserna. Ela
revela atividades e situações em que o sentimento de pertença de grupo predomine, como no caso das competições esportivas
entre os 4 esquadrões, quando os cadetes de cada turma se unem para competir com os demais, das olimpíadas entre as
Forças – Navamaer - quando os cadetes de toda Força Aérea se unem “contra” os cadetes do Exército e da Marinha, no caso
dos “exercícios de campanha” em que o sucesso do grupo depende da união. Entretanto, como elemento que ressalta o
sentimento de pertença de grupo, a disciplina por si só, não possibilita à explicação dinâmica do processo de construção de
identidade militar, assim, consideramos o outro pilar da vida na caserna - a hierarquia - elemento que ressalta a segmentação
entre grupos e indivíduos na Academia.
Se a disciplina é o elemento homogeneizador entre os cadetes, a hierarquia constitui o elemento que permite o
conhecimento das diferenças entre eles, o elemento que define posições de status como lideranças, ou àquelas definidas pelo
sistema de classificação que determina o futuro do cadete após a formação na Academia.
Considerando o sistema de classificação que envolve todos os cadetes, ele resulta dos méritos individuais
(conceitos obtidos principalmente através das avaliações na Divisão de Ensino, e das fichas horizontais e verticais do Corpo
de Cadetes) que determinam a posição dos cadetes em relação à sua turma (Esquadrão) e dentro de seu Quadro de pertença e
onde se destacam os cadetes “zero-um” (melhor classificado).
A hierarquia entre os cadetes também se baseia em regras e regulamentos como a que diz respeito à antiguidade
entre os Esquadrões, que designa que cadetes do 4 são mais antigos que os do 3, que são mais antigos que os do 2, que são
mais antigos que os do 1 - os mais “modernos” dentre todos os cadetes do Corpo de Cadetes. Os regulamentos também
definem a antiguidade entre os Quadros, que designa que entre os cadetes do mesmo esquadrão, os aviadores são mais
antigos que os intendentes, e estes são mais antigos que os cadetes de infantaria, segmentando o esquadrão.

291
Homens e mulheres: militares
Como é possível perceber, a questão dos papéis permeia toda instituição militar, um cadete aviador do quarto ano
pode ser mais antigo que uma cadete de sua turma, porém se ela for a “zero-um” da intendência, ocupará o posto de cadete
líder da Intendência, e ocupando uma posição no Estado Maior do Corpo de Cadetes. O cadete “zero-um” do curso de
Infantaria também ocupará uma posição de destaque no Estado Maior do Corpo de Cadetes, neste caso, o status dos cadetes
independem da antiguidade dos Quadros. Há outros casos em que o status do cadete independe da antiguidade entre os
Quadros e mesmo entre os esquadrões como por exemplo, os atletas que se destacam em competições esportivas. Os cadetes
podem vivenciar uma multiplicidade de papéis no decorrer de sua formação na Academia, de acordo com o sentimento de
pertença a determinados grupos – esquadrão, Quadros, equipes esportivas, mulheres, Estado Maior, Cadeia de Comando,
Conselho de Honra, Sociedade dos Cadetes da Aeronáutica, grupo de teatro, de vôo a vela, bandas, etc., com as
características próprias – filhos de militares, religião, gênero, classe social, etc., mas também segundo a posição que ocupam
em determinadas situações, através de um processo que implica em comparações e diferenciações sociais.
Todos estes papéis vivenciados pelos cadetes na Academia através da comparação ou contraste entre o próprio
grupo e outros grupos, constituem as múltiplas identidades que os cadetes vivenciam no processo de formação na Academia,
entretanto, a comparação e diferenciação fundamental, que faz emergir a identidade militar comum aos cadetes, consiste na
oposição entre militares e civis, e na oposição entre militares e “inimigos da Pátria”, brasileiros e estrangeiros.
Esta constatação confirma a tese de Castro realizada na Academia do Exército - AMAN - de que a comparação e
oposição entre militares e civis ou entre os “inimigos da Pátria” é o que define o “espírito militar” e revela-se fundamental no
sistema de orientação que ajuda o cadete a definir sua posição de militar na sociedade, é o que permite ao cadete sentir-se
como militar.
As relações de gênero e poder vivenciadas pelos/as cadetes no interior da AFA revelam espaços que permitem a
subversão do paradigma tradicional ou mesmo a igualdade entre homens e mulheres. Estes espaços são garantidos por
mecanismos tradicionais como por exemplo, a hierarquia e a disciplina, ou por novas formas de relação entre homens e
mulheres dentro da instituição militar. Tradicionalmente, estas relações se constroem de forma diferente para homens e para
mulheres militares, legitimando a divisão social dos papéis sexuais.
Entretanto, a admissão das mulheres, apesar de toda discriminação que ainda existe na instituição, parece também
reforçar o espírito do Quadro ao qual elas pertencem, da turma (Esquadrão) e da própria Força – quando elas se destacam
individualmente como no caso das atletas, das cadetes “zero-um”, ou coletivamente, no caso da elevação geral das médias do
curso de Intendência, inaugurando um novo espaço e uma nova forma de participação da mulher nas instituições militares.
As primeiras cadetes sofreram os impactos do pioneirismo, lutando para conquistar o status de cadete e não da
cadete, luta esta que se traduziu em suportar dores físicas, pressões psicológicas, esforçando-se ao máximo para que sua
condição de mulher não fosse sobreposta à de cadete. O resultado de tanto esforço não fora em vão, ao final dos primeiros
quatro anos de formação de mulheres na Academia, tanto elas como eles (cadetes), apesar de todas as diferenças notadas, se
identificam em última instância como profissionais militares, o que dilui todas as diferenças entre sexo, Quadro, procedência
geográfica, origem escolar para se perceberem todos como militares ao final do curso.

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O Cotiadian de Crianças Residentes em Espaços de Reforma Agrária –


Assentamento Nova Alvorada do Sul
Giana Amaral Yamin
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
[email protected]

Resumo: O presente trabalho integra os resultados de uma investigação realizada no âmbito da reforma agrária brasileira, subsidiado nos
estudos de Vigotski, Leontiev e Luria. Enfoca o cotidiano de crianças que vivem em um assentamento no estado de Mato Grosso do Sul,
desocultando o tempo das suas infâncias a partir das suas condições objetivas. Os dados foram coletados por meio da observação participante
e da História Oral de Vida. As crianças, atores protagonistas, externalizam suas percepções acerca da terra, da escola, do trabalho e do
brincar. A pesquisa revela que a especificidade das infâncias das crianças assentadas é condicionada por questões comuns entre os
agricultores (qualidade do solo, condições de comercialização, ausência do trabalho coletivo, qualidade da escola, distanciamento do
movimento social) e por especificidades familiares (estrutura, questões de gênero, condições econômicas). Os estudos comprovam que essa
fase da vida quando passada no campo (comumente idealizada como tranquila, bucólica e segura) traz implicações diversas às crianças,
condicionadas pela interação, pelo contexto e pela atividade principal desenvolvida por cada uma delas. As conclusões revelam que os
sentidos da infância no Mato Grosso do Sul têm sido historicamente marcados pela desigual da divisão das terras e pela ineficácia das
políticas de reforma agrária. Concomitantemente, destacam as aprendizagens importantes conquistadas pelas crianças do campo, geralmente
desvalorizadas pelos ambientes urbanos. Revelam suas características próprias, que resultam em infinitas e importantes capacidades.
Palavras chaves: infâncias- crianças – espaços rurais- reforma agrária.

Apresentação
Compreender a vida das crianças que moram nos assentamentos rurais do estado de Mato Grosso do Sul nos dias
atuais implica considerar os aspectos que circundaram a sua construção histórica, calcada na política de concentração das
terras brasileiras, desde o período colonial. Sua constituição territorial, formada por vastas extensões de terra reservadas à
elite, foi delineada pelo modelo exportador da monocultura em detrimento da cultura de subsistência que era efetivada pelo
pequeno proprietário.
Tal contexto, de caráter excludente e gerador de miséria às famílias rurais, foi permeado por uma série de conflitos,
alguns liderados por movimentos sociais1. A luta travada pelas minorias foi movida por vários motivos: pela expulsão de
camponeses e dos arrendatários após o término do desbravamento e da preparação do pasto, pela expropriação desencadeada
pelas consequências da modernidade no campo, pelas dificuldades dos arrendatários para conseguirem terra para produzir e
pela impossibilidade de acesso a uma terra com sentidos de trabalho familiar e não de lucro.

1
Como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

293
Atualmente, mesmo depois de terem sido assentadas, as famílias enfrentam novos embates no estado, oriundos do
modo de produção capitalista, como a política agrícola que prioriza o grande produtor e a insegurança quanto ao futuro de
seus filhos no espaço do campo. Toda essa situação desigual tem afetado as infâncias das suas crianças na medida em que
elas participam ativamente de seu contexto familiar em dois momentos interligados entre si: primeiramente, no período de
luta PELA terra (vivido nos acampamentos), e, posteriormente, na luta que as famílias travam NA terra conquistada (que
contempla a superação das dificuldades para que se mantenham na reforma agrária).
Diante disso, este texto apresenta o resultado de uma Tese de Doutorado2 que esclarece alguns aspectos desse
segundo momento, desocultando as condições das infâncias vividas pelas crianças que moravam no Assentamento Nova
Alvorada do Sul, no período de 2004 a 2006. Essa discussão, que elucida a etapa da vida de meninos e meninas assentados/as
enquanto uma categoria social criada no interior do um processo de disputa pela retomada da terra no Mato Grosso do Sul,
acredita que “(...) que não existe ‘a’ criança, mas sim indivíduos de pouca idade (...) afetados diferentemente pela sua
situação de classe social” (KRAMER, 1984, p. 24).
O processo de coleta de análise de dados da investigação foi subsidiado na psicologia histórico-cultural, que
desocultou os motivos que direcionam os diferentes tempos de infâncias das crianças participantes da pesquisa, relacionado
às suas condições objetivas. Foi amparado no estudo particular da palavra no seu aspecto dinâmico, concreto, discutido por
Vygotsky e seus colaboradores, que se altera a partir do contexto onde está inserida, fundando uma possibilidade de libertar o
“(...) homem de sua condição de objeto (FREITAS, 1996, p. 70).
A metodologia adotada contemplou a observação participante, de cunho longitudinal, o registro de imagens pela
pesquisadora e a coleta da História Oral de Vida. Desocultou os aspectos que condicionam a vida das crianças nas atividades
que realizam no seu cotidiano: o trabalho na terra, suas atividades escolares e seus momentos de brincar.
As técnicas de pesquisa, aplicadas de forma conjunta e complementar, se revelaram um caminho favorável para
delimitar ações coerentes com os anseios da investigação. Permitiram que os dados coletados evidenciassem sentimentos,
emoções e detalhes acerca da vida das crianças, imperceptíveis com a simples aplicação de entrevistas. Possibilitaram a
externalização dos seus desejos e necessidades e trouxeram “(...) à luz as realidades” indescritíveis”, (...), aquelas que a
escrita não consegue transmitir; (...)” (JOUTARD, 2000, p. 33).
Subsidiada em uma relação dialógica, que considerou pesquisador e pesquisado como aprendizes no processo, a
pesquisa encontrou na palavra o apoio concreto para a compreensão da vida das crianças, desvendando e respeitando suas
subjetividades. Os dados e as análises socializados não almejam, portanto, a padronização de suas infâncias, mas, resgatar os
motivos que condicionam a condição objetiva de cada uma delas, em cada momento histórico.
De acordo com Leontiev (1983), o sentido particular da palavra exige uma contextualização ampla, criada e vivida
socialmente, ligada à situação objetiva de cada sujeito, em cada momento histórico. O sentido é “[...] a soma de todos os
eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias
zonas de estabilidade desigual” (VIGOTSKI, 2003, p. 181). Por isso, para que compreendamos os sentidos da terra para as
crianças assentadas buscou-se, primeiramente, entender os motivos que levaram as famílias das crianças investigadas a
acreditar que a reforma agrária seria a saída para os enfrentamentos da condição sócio-econômica em que viviam.
Antes de chegarem ao PANA, suas famílias exerciam o trabalho de bóia-fria, uma atividade laboral que se infiltrou
no estado de Mato Grosso do Sul durante a construção de sua história, como consequência das negociatas da elite para a
concentração de terra. Enquanto sem-terra, elas lutavam contra um contexto que desestruturou sua sobrevivência em
pequenas áreas cultiváveis. Por isso, nos dias de hoje, estar incluído como assentado da reforma agrária indica que elas
protagonizaram um passado de luta contra a força e o poder de latifundiários. Essa herança, embora seja apropriada pelas
novas gerações, é por eles continuamente ressignificada, já que o seu cotidiano é permeado pelas dificuldades de
sobrevivência nos assentamentos.

[...] antes eu trabalhava de bóia fria e era aquele sofrimento. Tinha semana que chovia e tinha que passar mal,
porque não tinha serviço. E agora não (Sra. Silvana)

Nessa perspectiva, as famílias foram vistas pela pesquisa como agentes interventores, como sujeitos questionadores
que se mobilizaram para atingir seus objetivos e que, de certa forma, conseguiram superar as causas que as oprimiam (pelo
menos no que diz respeito à conquista de um lote para poderem trabalhar). A compreensão dialética da determinação social
do sujeito com-terra aliada à sua capacidade de transformação social foi, portanto, imperativa para a construção teórico-
metodológica da investigação.

O assentamento investigado
Parte da história do estado de Mato Grosso do Sul, o Assentamento Nova Alvorada do Sul, conhecido como
PANA, é fruto da luta das famílias expropriadas pela desigual distribuição de terras travada no Brasil. Foi criado oficialmente

2
Crianças com-terra (re) construção de sentidos da infância na reforma agrária, defendida em 2006, na Universidade Federal de São Carlos, sob orientação da
professora Roseli Rodrigues de Mello. Financiamento FUNDECT e Cnpq (estágio no exterior).

294
no ano de 1997, organizado pelo movimento social da Comissão Pastoral da Terra, após a desapropriação da Fazenda Paulo
Afonso Meneguel.
O “PANA” localiza-se a 55 km do município de Nova Alvorada do Sul, distante da capital Campo Grande
aproximadamente 113 quilômetros. Nele, 86 famílias foram assentadas pela política de reforma agrária brasileira para
atuarem como bovinocultores. Como ponto em comum, adquirir um pedaço de terra significou a construção do ideal de
fortalecimento da sua dignidade. Os sem-terra possuem contextos familiares, origens e experiências de vida específicos,
considerando diferentes agrupamentos que habitam o mesmo lote/morada.
- famílias que participaram do acampamento sem-terra e que se envolveram com a CPT.
- famílias que se instalaram no assentamento adquirindo um lote que foi comprado de um assentado desistente.
- famílias que, apesar da posse da terra, ainda vivem na condição do assalariamento.
- famílias oriundas das cidades e que não possuem experiência com a lida rural.

As especificidades do PANA geram às suas crianças infâncias com características diferentes das infâncias vividas
pelos meninos das cidades ou de outros assentamentos rurais. Suas infâncias também são particulares quando as comparamos
entre si e entre seus pares devido às condições concretas nas quais ocorre o desenvolvimento de cada uma delas.
Ser criança com-terra depende da situação de vida, da estrutura nuclear e política na qual os meninos e as meninas
estão inseridos, das questões de gênero e das conquistas econômicas de sua unidade familiar. Essa premissa é elucidada pela
teoria histórico-cultural, para a qual “[...] a infância tem um caráter histórico concreto e as particularidades, as especificidades
de cada idade também são historicamente transformadas” (FACCI, 2006).
As categorias definidas como direcionamento da pesquisa: família-terra-trabalho - foram adotadas por
configurarem-se como geradoras de sentidos ambíguos acerca do trabalho na terra para as famílias investigadas:
possibilidade de trabalho familiar ou de continuidade do assalariamento; distância ou reaproximação das imposições do
patrão e afastamento ou distanciamento das constantes migrações e incertezas.
Leontiev (1998) também acredita na importância da família, da escola e do trabalho como instâncias formativas na
vida das crianças. De acordo com a psicologia histórico-cultural, o desenvolvimento humano inicia-se no mundo familiar e
social, quando as crianças assimilam/reproduzem as ações de forma lúdica. Na sequência, o acesso à escola proporciona-lhes
o estágio subsequente da vida psíquica, oferecendo-lhes novos vínculos e deveres que transferem para as relações sociais o
papel dominante das ações. Finalmente, a atividade laboral é a etapa que impulsionará a mudança do lugar que ela ocupará no
sistema de relações humanas.
Todas essas atividades, em todas as etapas do seu desenvolvimento, configuram-se nas crianças com papel
principal ou secundário. Quando alteradas, representam uma transição para outro estágio, desencadeada por uma necessidade
interior, quando elas se defrontam com tarefas que extrapolam suas potencialidades em mudança e para uma nova percepção.
Atualmente, no espaço do lote, as crianças da reforma agrária são parte da categoria dos agricultores familiares.
Lutam para sobreviver com pouca extensão de terra e trabalham para/com sua família. São filhos e filhas de atores ativos que
conseguiram seu objetivo de vida (a terra), apoiados por um movimento social3 e que, no momento presente, se unem no
âmbito familiar para manter a sobrevivência como patrões de si mesmo em uma terra que está no seu nome, sob sua
responsabilidade. A luta pela sobrevivência é constante, dinâmica e conflituosa, pois nela, “O caboclo aqui só pára a luta
daqui desse mundo quando o cara morre, mas, enquanto ele tiver mexendo com as pestanas dos olhos ele está lutando direto”
(Sr. Orlando).
No espaço da casa, as crianças são atores que vivenciam processos de apropriação da cultura, é considerada
como“[...] um processo mediador entre o processo histórico de formação do gênero humano e o processo de formação de
cada indivíduo como um ser humano” (DUARTE, 2004, p. 50). De acordo com a psicologia russa, tal categoria demanda que
elas realizem atividades que reproduzam os traços essenciais da atividade acumulada nos objetos.
No entanto, no PANA, tal experiência revela-se ambígua e contraditória: de um lado, suas atividades no campo são
mediadas por ensinamentos e valores de ex-trabalhadores que (re)agiram politicamente diante do cenário de expropriação que
os imputava a uma situação de pobreza. De outro, elas vivem em seu cotidiano situações que reconstroem essa luta, à medida
que suas vidas são condicionadas pelas dificuldades e por retrocessos no tempo presente, imputando sentidos diferentes para
as atividades de trabalhar, de brincar e do estudar. Por isso, nos dias de hoje, esses/as meninos/as reconstroem sentidos da
terra a partir de uma herança familiar que não foi concluída, que mescla valores internalizados da experiência lutadora dos
pais e se confundem com as atuais “batalhas” para permanecerem NA terra prometida.

“É melhor ter, com um pedaço na mão do que 04 voando “4


Além da escola, das igrejas, a casa/lote está entre os contextos onde a criança assentada passa grandes momentos de
sua vida. A família é apontada por Dantas (1998) como a promotora da base que solidifica a luta pela reconstrução da vida
dos trabalhadores na terra. Nesse espaço ocorrem cenas importantes de suas infâncias, a experiência de vivências e emoções.

3
Concebidos por Siqueira (2001, p. 07), como um “(...) conjunto de ações coletivas dirigidas tanto à reivindicação de melhores condições de trabalho e vida, de
caráter contestatório, quanto inspirado pela construção de uma nova sociabilidade humana (...)”.
4
(Adriana, 10 anos de idade).

295
De diferentes maneiras, no seu lugar de morada, os filhos e filhas com-terra brincam, apreendem aspectos
relacionados à lida rural, estudam e trabalham. Compreender como eles percebem sua casa implica transcender o espaço
privado que ela ocupa (MORAES SILVA, 2004).
As infâncias das crianças com-terra são delineadas pelas determinações do conteúdo e da motivação no seu
cotidiano. Nos espaços dos lotes, elas são consideradas pelos adultos como parceiros experientes. Mesmo que tenham pouca
idade, têm suas potencialidades valorizadas. O lugar que cada uma ocupa nas relações familiares é regido pelas condições
objetivas que a terra lhes proporciona ou que lhes nega. Por isso, encontramos crianças envolvidas em atividades
semelhantes, mas que lhes provoca sentidos diferentes.
No período da investigação, as atividades com a bovinocultura promoviam a subsistência da comunidade. Quando
pequenas, a maioria das crianças dedicava-se ao estudo. Nessa fase da vida, seu envolvimento no trabalho dos lotes era pouco
solicitado, principalmente se os adultos pudessem contar com a atuação das filhas/os mais velhos.
Contudo, quando necessário, após atingirem os 08 anos de idade, as crianças eram inseridas no labor, trabalhando
nos momentos de ordenha e da entrega do leite. A escola, nessa fase, continuava sendo uma prioridade, mas era efetivada no
período vespertino, após a conclusão das tarefas matinais. A aprendizagem da lida rural era vista pelos adultos como um
mecanismo propedêutico que garantiria o futuro dos filhos.
Na rotina diária dos lotes, as crianças acompanhavam os pais em muitos momentos: quando efetivam as
negociações de animais, nas tarefas diárias da ordenha, no pastoreio à beira do asfalto. Nesses casos, configurando-se como
uma atividade principal, o trabalho executado lhes ensinava os meandros das atividades do campo e lhes ajudavam construir
sentidos positivos em relação a permanecer na reforma agrária, estabelecendo uma relação de confiança com os adultos. Isso
lhes garantia aprendizagens e a percepção das necessidades dos seus familiares, assegurando e ampliando a propriedade
familiar, tal qual como discute Martins (1991).
Dessa forma, trabalhando no cotidiano do lote, as crianças apossavam-se do mundo concreto do campo quando
reproduziam as ações laborais ensinadas pelos adultos. Visualizavam na terra uma oportunidade de lucro e de sobrevivência
longe dos perigos trazidos pela cidade. Aprendiam que, por meio da reforma agrária, seria possível conquistar uma vida
melhor, uma perspectiva para seu futuro.

Criança da cidade fica presa dentro de casa, só tem colega em volta assim, tem medo de ladrão, de sair, senão o
carro atropela. Não tem a liberdade que a criança do sitio aqui tem (Adriana).

Prefiro o sítio, mil vez. Você controla mais, n/e? Porque, sempre assim, você tem serviço. E na cidade não. É vinte
e quatro horas numa bicicletinha, na rua. Ali apronta tudo (Sra. Lucimar).

Nesse contexto, as perspectivas da criança em relação ao mundo rural se construíam positivamente. Fortaleciam-se
na medida em que se apropriavam dos sentidos e dos significados da terra que lhes eram ensinados pela difusão e
internalização dos conhecimentos e das experiências da prática social dos mais velhos. Devido a essa realidade, importantes
fatores determinavam e fortaleciam positivamente seus sentidos da terra: períodos nos quais que o clima impulsionava a
engorda do gado, a cotação favorável do litro do leite, a estrutura familiar, a experiência administrativa e agrícola dos
adultos, os contatos sociais e políticos, as concepções acerca de gênero, as possibilidades de financiamento, entre outros.
O trabalho desempenhado pelas crianças nos lotes permitia que elas internalizassem conhecimentos e valores que
lhes possibilitava o aprender e o ensinar novos conhecimentos. Configurava-se como uma atividade que lhes permitia a
constituição da consciência e da realidade rural. Por isso, as crianças criavam mecanismos que favoreciam sua atual e futura
atuação com o gado e com a produção de subsistência a fim de satisfazer suas necessidades.
Segundo Vigotski, algumas atividades desempenhadas pelos sujeitos durante as varias fases de suas vidas podem se
configurar como fundamentais ao desenvolvimento do seu psiquismo. Desencadeiam a mediação entre o mundo objetivo e o
subjetivo, com a função de reorientá-los no mundo objetivo por meio da linguagem, do pensamento, das emoções e pela
presença do outro.
No caso das crianças com-terra que viviam condições econômicas favoráveis, o trabalho com o gado permitia que
elas apropriassem diferentes significados transmitidos pelas experiências dos adultos, que foram produzidos e recriados
historicamente pela linguagem quando aprendiam a lidar com os ensinamentos rurais. Tais significados permitiam que elas
tomassem para si as referências socializadas que foram generalizadas no âmbito do assentamento em relação à terra: como
medicar os animais ma impossibilidade de se obter apoio veterinário, a transmissão da técnica familiar que ajudava a
separação dos bezerros no momento da ordenha e a utilização de técnicas para melhorar a pastagem.
Com tais perspectivas positivas em relação à terra, além do trabalhar, as condições objetivas de tais crianças lhes
permitiam que elas tivessem possibilidades para vivenciar o jogo enquanto ludicidade como uma atividade que concentrava
as relações entre as pessoas, de ações de brincar e desenhar. Essa experiências são importantes porque “(...) traços extremante
importante da personalidade da criança são desenvolvidos (...) e, sobretudo, sua habilidade em se submeter a uma regra,
mesmo quando um estímulo direto a impele a fazer algo de muito diferente” (LEONTIEV, 1998, p. 139).
Da mesma forma, ao representar papéis sociais do com-terra (faz-de-conta), as crianças apossavam-se do mundo
concreto dos objetos do campo, desvendavam suas regras e adquiriam domínio dos vários comportamento daquele espaço

296
social. Ao tentar agir como um peão, elas reproduziam as ações realizadas pelos adultos manuseando os instrumentos
disponíveis: a vestimenta do “vaqueiro”, o laço, as botas, o chicote. Nesse momento, reproduziam as ações que estavam
implícitas a tal atividade, cujo conteúdo era determinado pela percepção que elas tinham do mundo dos assentados rurais:
gritavam, espantavam, organizavam os animais. Apoiavam-se no cão como guia. Ao operar os instrumentos e as técnicas
usados pelos assentados mais experientes elas tomavam “[...] consciência deles e das ações humanas realizadas com eles”
(FACCI, 2004, p. 69).
Apesar de a brincadeira de peão nem sempre ser bem sucedida (em um dos momentos da observação os animais
fugiram para o pasto do vizinho, necessitando da intervenção dos adultos), a experiência das crianças permitia que elas
ingressassem no mundo mais amplo, se esforçando para ser um com-terra. Por meio da brincadeira, elas resolviam a
contradição entre a sua necessidade de agir como o modelo adulto e a impossibilidade de executar tal tarefa.
Consequentemente, como expectativa para o futuro, elas construíam sentidos da terra que iam ampliando a vontade
de permanecer no mundo rural, de ser dono de um pedaço de terra para serem patrões de si mesmas. Brincando, elas
retomavam as experiências dos adultos ensaiando atividades não domináveis: exploravam o ambiente, criavam regras, faziam
construções. Movidos pela fantasia, tinham o desenvolvimento de seu psiquismo possibilitado.

(...) o brinquedo fornece ampla estrutura básica para mudanças das necessidades e da consciência. A ação na esfera
imaginativa, numa situação imaginária, a criação das intenções voluntárias e a forma de planos da vida real e motivação
volitivas - tudo aparece no brinquedo, que se constitui, assim, no mais alto nível de desenvolvimento pré-escolar. A criança
desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedos. Somente neste sentido o brinquedo pode ser considerado
uma atividade condutora que determina o desenvolvimento da criança (VIGOTSKI, 2000, p. 135).

No seu cotidiano, esses meninos/as também tinham oportunidades para desenhar, construir casinhas/estradas,
correr, pular corda, nadar nos córregos e negociar situações com regras. Em contato com os adultos, eles/as construíam
sentidos subjetivos em relação à terra, que eram (re)construídos a partir do contato de cada uma delas com o seu lote de
trabalho. Por meio dos sentidos, elas conseguiam internalizar e interpretar e a realidade. Isso lhes gerava aprendizagens e
experiências de vida que são desconhecidas por crianças que moram na cidade: tornavam-se autônomas em relação à sua
sobrevivência, alcançavam liberdade e instâncias de decisão pessoal, aprendiam um ofício, não eram infantilizados e
desenvolviam habilidades linguísticas e lógico-matemáticas.

O pai do Douglas não quer deixar ele estudar de manhã cedo por causa do trabalho”5
Enquanto que a reforma agrária é significada pela sociedade como um sistema de caráter coletivo no qual a divisão
de terras tem como meta amparar famílias expropriadas, por meio do apoio e do incentivo governamental, em muitas
situações seus sentidos se revelaram extremamente conflituosos para as famílias, indo de encontro a tal significado. Isso
ocorre porque a qualidade da vida que ela lhes proporciona é incerta, o que afeta a vida de suas crianças e dos seus jovens.
Nos espaços dos lotes, por menor que seja o grau de envolvimento do/a filho/a no trabalho, a contribuição da
criança é sempre necessária, contingência de um meio familiar no qual a adoção do assalariamento é inviável. As crianças
com-terra ‘[...] ajudam em tudo: tiram leite, roçam pasto, fazem cerca... (Sr. Sinvaldo).

Se o pai e a mãe, por exemplo, têm filhos, em casa eles dividem a tarefa. Por exemplo, na tarefa de pastorar o gado,
tem uns que não tem filho homem e coloca as meninas pra pastorar o gado porque só têm menina. Se tiver menino e menina
acho que dividem assim. Se na hora que tivesse na escola aquele o outro ia pastorar e na hora que o outro viesse prá escola
seria o outro (Sra. Rosa).

O ingresso da criança ao mundo do trabalho no lote pode se efetivar como uma estratégia de socialização
complementar à escola que expressa valores específicos da comunidade, decorrentes da sua organização social, das formas de
sobrevivência e de representações, tal qual a discutida por Dauster (1992). As famílias do PANA que apresentam melhores
condições financeiras podem ser inseridas nessa situação. Concebiam o trabalho executado pelos filhos como um leve
período de aprendizado e amadurecimento. Já as famílias mais pobres, impotentes para abrir mão desse trunfo, lamentavam a
negatividade da situação que envolvia a criança trabalhadora:

Esse neto meu, a gente tem dó. Além de ficar sem mãe e a gente judiar, é danado (D. Fabíola- avó).

A gente trabalha mais aqui no sítio do que brinca. Brincar assim, a gente tem os bezerros. O pai vai dormir, aí nós
brinca. Tem vez que é meio dia, uma hora, três horas, quatro horas, quando ele acorda. Ele não gosta de esperar. Quando ele
acorda a gente espera lá no banco ele acordar e manda a gente tocar as vacas lá para baixo. Aí, a gente vai e toca, toma banho
e vai dormir (Diogo- neto).

5
Adriana, 10 anos de idade.

297
Ruim aqui no sítio é ficar no sol quente fazendo um monte de coisas (Diogo).

A situação da infância do menino acima citado era condicionada pela própria política de reforma agrária. As
famílias reivindicavam maior atenção por parte das autoridades para com sua condição de vida. Para isso, almejavam a
implantação de políticas públicas nos vários âmbitos: na educação, no transporte, na saúde e, principalmente, de mecanismos
que melhorem a produção, entre eles, alguns incentivos para financiamentos de adubos, sementes e maquinários.
O atraso para liberação dos financiamentos foi citado entre as famílias como um fator agravante. A falta de verba
impedia os assentados de iniciassem as plantações nos momentos adequados, aproveitando os períodos favoráveis para a
adubação e para a semeadura. Também inviabilizava o contrato de aluguel de um trator para preparar a terra, condição para
iniciar a produção.
A qualidade do solo e a falta de água eram outros fatores que interferiam negativamente na produção do lote e,
consequentemente, na vida das crianças. As famílias foram assentadas sob uma terra que não favorecia o cultivo de produtos
que poderiam ampliar sua renda ou melhorar sua sobrevivência. Com característica extremamente arenosa, o solo do
Assentamento teve suas propriedades prejudicadas pelas atividades executadas por uma usina de cana-de-açúcar que
funcionava no local, desativada na década de 1990.
Nesse contexto, a ausência de apoio técnico agravava a situação. As famílias com-terra não contavam com
orientações para que realizarem um trabalho agrícola coletivo ou para melhorar a qualidade do rebanho. O movimento social
da CPT, que direcionou a desapropriação de luta pela terra, não atuava mais na região, movido pelo estabelecimento de
outras prioridades.

[...] eu vou plantar cana sem adubo? Que nem essa zona aqui está com dois anos que foi plantada, [...] era pra ter
nascido tudo embutido. Daí, senhora vai e bate o enxadão e está a cana comprida, mas, quando olha dentro é só morada de
cupim. Eles vão comendo o miolo da cana [...]. .Então, não tem como plantar (Orlando).

Além dos problemas elencados, a instabilidade do mercado era um impedimento que atravancava a prosperidade
dos produtores até nos momentos positivos, permeados pela fartura da produção. As famílias eram altamente prejudicadas
pelas condições de comercialização e pela variação do preço do leite, pois todo o produto entregue ao laticínio era pago com
60 dias retroativos, sem que fosse estabelecido previamente o preço do litro. Isso impedia que os assentados soubessem qual
a quantia que teriam direito a receber e impossibilitava o planejamento de custos e lucros.
Essa condição é contemplada em uma análise da sociedade realizada por Martins (1999), que se fortalece com a
força de trabalhadores “livres” dependentes dos meios de produção, dos instrumentos e materiais. Nesse caso específico,
parece que tal mecanismo se fortalecia em um contexto de dependência e desconhecimento dos direitos. Além disso, com a
inexperiência como gerenciadores, as famílias desconheciam fórmulas que lhes permitiriam calcular seus rendimentos nos
moldes da produção capitalista, esclarecidas por Tedesco (1999).
Essa realidade afetava a vida das crianças que, tendo que enfrentar uma jornada de trabalho exaustiva e alienante,
acabavam afastadas das experiências do brincar e do estudar, fundamentais no seu desenvolvimento. Tais crianças tinham
suas necessidades infantis sufocadas, por isso elas construíam sentidos da terra de carência, de insegurança e de
impossibilidade de alteração no seu modo de vida. Essa “ajuda” da criança pode ser avaliada como um processo de alienação
pois, não proporcionava o desenvolvimento de suas capacidades, não criava habilidades cognitivas e não favorecia o
pensamento abstrato. A superação dessa condição dependeria da alteração das condições objetivas e das condições de
trabalho existentes, que permitiria a mediação pela busca de relações mais conscientes.
Somada a essa problemática, o excesso de trabalho realizado pelas mesmas crianças nos lotes interferia na
conclusão da educação formal, que acabava secundarizada, já que a garantia da sobrevivência era o primordial naquele
momento histórico. Por isso, para as crianças, ao invés de ser um espaço para adquirir conhecimentos, a escola era tinha
sentidos de ser o lugar onde elas poderiam (parcialmente) brincar. Era o espaço que as retirava do trabalho braçal, que se
configurava com possibilidades de livrar-se das tarefas cotidianas.
Contudo, essa “liberdade” era restrita a um período do dia, pois, ao retornar para casa, a jornada recomeçava, já
que a ordenha era contínua e não permitia que elas usufruíssem os feriados, das férias ou dos finais de semana. Após o
retorno do laticínio, restava-lhes higienizar os recipientes e atuar nos afazeres domésticos.
O excesso de responsabilidade imposta a algumas crianças desse assentamento gerava revolta e intenções de êxodo
rural. Como consequência, o sonho de construir um futuro longe da terra revelava uma diferença de sentidos para as duas
gerações: se para os adultos a reforma agrária trazia sentido de liberdade, para os meninos trabalhadores, outras profissões
lhes vislumbravam possibilidades de uma nova vida.
Devido à essa incerteza, é importante discutir que a falta de apoio aos assentados sul-mato-grossense acabava
afetando as expectativas dos pequenos com-terra em relação ao seu futuro. Quando são menores, o tempo que virá é uma
incógnita. Contudo, no tempo presente, são incentivadas pelas famílias a concluir a aprendizagem escolar e a colaborar no
trabalho que frutificará a terra conquistada para que vivam uma vida melhor do que aquela que tiveram:

298
O futuro ninguém sabe. O futuro quem sabe é Deus. Quero que sejam educado pelo menos, inteligente, isso aí é o
importante. Que seja pobre, mas que seja uma pessoa educada, inteligente. Quero que eles estuda, que sejam assim, um rapaz
de um futuro (Jacira).

Eu quero para eles que eles estudam para ter uma vida melhor, ter uma vida muito diferente da nossa. Para mim
viver está bom, n/e? Mas, eu, pelo menos, quero que eles estuda, se forma, ter uma profissão melhor (Carlos).

Em outro momento, depois que os filhos estão crescidos, a etapa da chegada da juventude desencadeava um
dilema: continuar na escola, constituir-se como um assentado da reforma agrária ou inserir-se a um trabalho assalariado?
Nesse contexto, as duas últimas opções acabavam prevalecendo, pois a inviabilidade de o jovem permanecer no lote familiar
devido à parca extensão da terra do pai, uma situação agravada pela proibição de comprar uma terra de um desistente da
reforma agrária, acabava inserindo os filhos jovens a um acampamento de sem-terra ou aos rumos da cidade.

Então, qual vai ser a saída dos sem-terra? Igual meu filho: tem 02 anos que ele casou. E tem um 01 que ele está
(acampado) nos sem-terra, 01 ano que ele está lá embaixo da lona. Você não cria os filhos para o campo porque não vai ter
como ele sobreviver com a família dele (Fernanda).

Importante ressaltar que as famílias investigadas aspiravam por um futuro promissor aos filhos ligado a sentimentos
de progresso, não de acumulação. Os pais e mães queriam que eles construíssem uma vida melhor que a que tiveram e
acolhê-los no seu lote seria uma solução paliativa, porque acabariam “(...) só comendo igual lagarta?” (Fátima). Contudo, a
aglomeração existia. Encontramos muitos lotes que abrigavam pais-filhos e netos, mas isso somente agrava as suas
dificuldades devido à insustentabilidade da atividade pecuária extensiva. Para que tal situação fosse alterada, seria necessária
a adaptação de elementos/práticas já incorporadas, um grau de profissionalismo e conhecimento dos recursos do ambiente.
Esse modelo é mais complexo do que o comumente utilizado6 pelo pequeno agricultor.

(Re)pensando
Os problemas que as crianças do PANA enfrentavam no seu tempo presente não eram isolados e restritos ao
período de assentados. Foram construídos desde o momento da efetivação do PANA, no ano de 1997, marcado por um
contexto de reforma agrária centralizadora e com alto custo. Nesse momento histórico essa política não priorizou, em alguns
casos, a qualidade e a localização das áreas que foram desapropriadas. Também ofereceu pouca infra-estrutura e apoio
financeiro/técnico aos assentados. Teve caráter paternalista que, segundo Schiavi (2003, p. 70), “(...) além de não estimular a
recuperação de custos, não incentiva a capacidade dos indivíduos, pobres e excluídos, de participar, negociar, mudar e apoiar
as instituições responsáveis pelo seu bem estar, estimulando a dependência do Estado”.
Da mesma forma, é preciso salientar que, apesar de estarem incluídas em um programa de assentamento rural da
reforma agrária, as crianças têm suas infâncias interligadas com as consequências da sua inserção na sociedade capitalista e
têm suas relações permeadas por diferentes graus de exploração. Procurando sobreviver em um sistema desigual, juntamente
com os adultos, elas enfrentam inimigos tão poderosos quanto os latifundiários do tempo passado: a imposição do mercado,
as dificuldades escolares, as impossibilidades de brincar são fatores que impedem que elas exerçam totalmente sua cidadania.
Suas condições objetivas as engessam e as controlam, construindo sentidos da infância resultantes das “(...) práticas básicas
da atividade humana e pelas formas de cultura existente” (LURIA, 1990, p. 17).
Em relação às consequências do excesso de trabalho desempenhado por algumas das crianças, percebe-se que os
adultos não se aproveitavam da mais-valia da atividade infantil. Pais, mães, avôs e avós só precisavam somar esforços para
permanecer na terra conquistada, buscavam alternativas para dar continuidade a um projeto familiar, que, por sua vez,
também tinha seus sentidos de infância e da terra alterados quando o sistema capitalista incluía seus filho/as e netos/as na
lógica da produção.
As famílias investigadas lutavam em um contexto no qual imperavam condições sociais de desigualdade, cujas
regras de sobrevivência impunham submissão às infâncias de suas crianças. O receio de ficar sem a contribuição dos mais
novos tinha sentido de manutenção da sobrevivência e de dependência. Tal imagem desencadeia uma reflexão sobre o
cotidiano de crianças que mantêm a sobrevivência de adultos agindo COMO adultos. Trabalhando em excesso, elas não
perdiam sua infância, contudo, tinham essa etapa de suas vidas permeada por características que se afastam da nossa imagem
ideal de infância.
A permanência das crianças investigadas no espaço da reforma agrária pode ser uma intenção não efetivada por
todas daqui a alguns anos, pois o sentido da terra terá grandes chances de ser alterado. Dependerá da sua experiência na
infância e dos seus anseios juvenis. Essa mudança é esclarecida por Leontiev (s.d), que afirma que ocorre quando o lugar
ocupado pelos sujeitos nas relações sociais não corresponde mais às suas necessidades e eles tentam modificá-lo. No caso do

6
No modelo extensivo o gado é alimentado apenas com sal e água, gerando uma produção insignificante (100 litros diários em média). Esse “lucro”
impossibilita a permanência dos jovens e de suas famílias. Uma maior viabilidade econômica dependeria da implantação de um sistema intensivo, que
demandaria tecnologia, alimentação confinada com nutrientes, plantação de cana, milho e sorgo, máquinas e equipamentos (ABRAMOVAY, 1994).

299
PANA, ela se efetivará se os filhos/as não visualizarem no trabalho rural um verdadeiro sentido. Seu futuro, calcado no
trabalho no campo ou na cidade, dependerá de como será estabelecida sua inserção na sociedade, ou seja, se a reforma agrária
lhes oferecer motivos/necessidades que afastem as “luzes da cidade” como principal meta de suas vidas.

Referências Bibliográficas
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Martins Fontes, (pp. 171-189).

Patrilocalidade, matrifocalidade e adaptabilidade no mundo rural de Santiago de


Cabo Verde
Carlos Ferreira Couto
CEAUP-FLUP
[email protected]

Resumo: Ao longo desta comunicação os dados empíricos expostos pretenderão demonstrar a relação entre o enquadramento ecológico e a
capacidade dos camponeses mobilizarem espaço de manobra para a reprodução social. Nesta relação é possível evidenciar implicações na
estruturação social camponesa quanto ao padrão da residência (patrilocal) e da mobilidade geográfica do agregado familiar. A mobilidade
residencial surge aqui como factor crucial na capacidade adaptativa e de auto-organização do agregado familiar e da fundação da localidade e
mantém laços estruturais com a principal estratégia da subsistência familiar e que consiste em assegurar a alimentação. A “plasticidade”
(mutabilidade e não necessariamente variedade) da residência, da família e da alimentação dos rurais santiaguenses constitui o elemento
chave na capacidade que os agregados familiares mantêm, de modo a ajustar os limites da sua subsistência às condições produzidas pelo
“entorno” ou ambiente. Neste sentido podemos falar de adaptabilidade quando o que está em questão é a capacidade de uma estruturação
social responder às condições (constrangimentos) externas ou ambientais (auto)determinando-se. A matrifocalidade não surge como traço
típico de um padrão cultural ou como um resíduo de um comportamento padronizado mas como capacidade de adaptabilização ou
capacidade de produção de si mesmo ou o modo de manter alguma constância e estabilidade perante condições externas que suscitam
distúrbios profundos. A matrifocalidade constitui o elemento compensatório que não necessariamente repara, mas que capacita a subsistência
num contexto de recursos mínimos.
Palavras-chave: patrilocalidade, matrifocalidade, adaptabilidade

300
1. Da fundação de uma comunidade
Na Ribeira da Baía, a jusante do Vale de S. Domingos (Santiago) e na freguesia de N. Sra. da Luz encontramos
duas povoações de agricultores-pastores: Tinca com aproximadamente 17 famílias e Dobe com cerca do mesmo número de
famílias. Situadas entre o Monte Dobe e o Monte Vermelho, estas povoações tiveram como fundadores, agricultores-pastores
oriundos da povoação de Chaminé, que procuravam naquela zona (Tinca-Dobe), condições propícias para a criação de gado.1
O pai de Ego, pastor-agricultor, nasce em 1884. Vive na povoação de Chaminé (S. Domingos) com a sua mulher e,
em 1942, junta o seu gado e vem para Dobe com alguns dos seus filhos, deixando a mulher na Chaminé onde viria a falecer
em 1948. O pai de Ego, estado civil solteiro, em 1947 tinha juntado em Dobe os seus nove filhos. Nesta mesma data, Dobe
possuía três agregados familiares. Esses agregados eram constituídos por um homem “solteiro” e seus filhos, um casal
“junto” com um filho e Isidoro e os seus nove filhos. O homem “solteiro” e seus filhos tinham o mesmo nome da família de
pai de Ego.2
Ego, quinto filho a nascer, refere que seu pai saiu de Chaminé por causa dos animais, dos problemas com os
agricultores da Chaminé, pois seu pai era criador de animais e procurava Dobe pelo gado. Já na altura era hábito os
agricultores/criadores levarem os animais para o montado de Tinca onde um pastor que habitava em Dobe tomava conta dos
animais em troca do leite que tirava. Mas em 1938 nascem dois gémeos, irmãos de Ego, e seu pai “desculpa” (despede) o
pastor para ficar com o leite que este retirava dos animais em troca da guarda destes.
O leite era crucial para a sobrevivência dos gémeos recém-nascidos. Por isso o pai de Ego, vem para Dobe guardar
os animais estabelecendo-se definitivamente em 1942, sem sua mulher que ficara na povoação de Solé (monte Chaminé). À
medida que os filhos adquiriam idade para o trabalho juntavam-se ao pai que pastoreava o gado em Dobe/Tinca. Na azágua
(tempo das águas, das actividades de preparação das parcelas) fazia sequeiro nas terras do Monte Chaminé, em Vilela e Solé,
povoação de onde é originário.
Nos meados dos anos 50 surge água em Dobe e mais tarde, no início da década de 60 o governo abre um furo na
zona3 que fornecia 12 toneladas de água por hora, segundo Ego. Na altura surgem os conflitos entre pastores e agricultores
devido aos animais que invadiam as culturas, provocando estragos. Ego que, na altura, era essencialmente pastor e cuidava
dos animais de seu pai, juntamente com seu irmão mais velho, decide abandonar Dobe e construir uma casa perto do montado
de Tinca (junto a Dobe).
Com a autorização e ajuda de seu pai, Ego constrói a primeira casa de Tinca e convence o companheiro de sua irmã
mais velha a construir perto da sua, a segunda habitação da povoação.
Mais tarde juntar-se-ia uma segunda irmã, em 1970, com os seus cinco filhos. Vem sozinha, pois estava separada
do seu companheiro. Estes três irmãos, construíram o núcleo fundador da povoação de Tinca.
A quase totalidade da população de Tinca é constituída pelos descendentes destes três irmãos obedecendo à regra
da patrilocalidade. As mulheres dos filhos e sobrinhos de Ego são oriundas de várias povoações circundantes como Baía
Baixo, Móia-Móia, Mendes Faleiro Rendeiro, Porto Madeira e outras. Mais tarde vem juntar-se a Tinca um segundo primo da
segunda mulher de Ego originária de Mendes Faleiro Rendeiro. Este segundo primo vivia com sua mulher que no ano de
2002 residia em Tinca com suas filhas solteiras e um filho casado. Duas das filhas “solteiras” (com filhos) viviam em sua
própria casa. Uma outra, costureira, vivia em casa própria com seus filhos. O filho casado vivia em casa própria com a
mulher e filhos. Um filho vivia na Praia, um outro emigrou e uma filha vivia em Móia-Móia, casada e com dois filhos de uma
relação anterior com “amigo.”

Figura. 2: Ego, fundador de Tinca, e descendência


G2
Dobe EGO
G3
G G
Tinca
a) b) c) d) e) g) h) j) m)

f) l)
G Gémeos

Legenda:
a) Emigrou para Portugal;
b) Vive em Tinca com a sua mulher;
c) Emigrou;
d) Vive na Praia com a mãe, estado solteiro, e com a actividade de professor do Ensino Básico;

1
Ver Anexo nº 2, mapa com as localidades da Ilha de Santiago.
2
Arquivo Histórico Nacional, ACP (B1) Cx 111 (Cadastro geral da freguesia de Nª Sª da Luz, 20 de Novembro de 1947).
3
Arquivo Histórico Nacional, ACP (B1) Cx nº78 (Processo relativo à agricultura na Província de Cabo Verde, Jan.-Dez. 1957).

301
e) Vive na Praia com a mãe. Solteiro, 14 anos de idade;
f) Vive em Tinca
g) Tem 20 anos;
h) Vive na Praia com a mãe, estado solteiro;
i) Vive na Praia com a mãe;
j) Vive na Praia;
l) Vive na Praia;
m) Vive na Praia;

O irmão mais velho de Ego, pastor e guarda de animais, junta-se aos irmãos em Tinca, vivendo sozinho e em casa
própria, sem mulher e sem filhos. Este seu irmão considera-se o primeiro habitante de Tinca, pois era pastor no montado da
zona, antes de Ego construir sua casa naquele lugar.
Depois Ego juntou-se à sua segunda mulher (1956), teve um filho que “gastou muito medicamento”, e um dia disse
para si próprio: “- Vou trabalhar de carpinteiro e pedreiro para mulher ficar garantido.” Segundo ele, naquele tempo,
“dinheiro tinha mais valor mas era pouco” ganhando 14 ECV por dia no serviço dos Estados. Ganhou este salário de 1956 a
1960. Em 1960 Ego consegue um lugar de chefe de pedreiro na frente de trabalho (“quinzena”) ganhando 25 ECV por dia.
Trabalhou como chefe de pedreiro de 1960 a 1975, mas nunca deixou de fazer cultivo e criação de animais.
A “deslocação” do gado ou transumância resolvia não só este problema mas também o da falta de palha e a fuga ao
ataque da “mosca”4. Na altura a zona de Tinca/Dobe era zona de pastoreio onde o gado podia pastorear “ solto” enquanto que
em Monte Chaminé o gado era “preso”. A falta de pasto, o ataque da “mosca” (em Setembro), os conflitos entre pastores e
agricultores na zona sub-húmida, o pastoreio “solto” nas zonas do montado das terras mais baixas, são as razões que
sustentam a transumância ou “deslocação” entre Tinca/Dobe e as povoações de Chaminé, Mendes Faleiro Rendeiro, S.
Domingos (S. Nicolau Tolentino) e Porto Madeira. Os animais vêm para Tinca no mês de Julho e voltam em Fevereiro. Esta
deslocação faz-se na base da amizadi (amizade) e quem toma os animais tira proveito do leite como foi referido supra.
Contudo, Ego refere que seu pai vem para a zona de Dobe/Tinca pela primeira vez quando nasceram os seus irmãos
gémeos pela razão de que estes necessitavam do leite para melhor sobreviverem, dada as circunstâncias de penúria alimentar
na altura. Por isso ele acompanha o gado e “desculpa” o pastor de Dobe para ter acesso ao leite dos animais. Deste modo, o
elemento alimentação de base proteica e de origem animal tornou-se um factor de grande premência para a mobilidade
residencial, se bem que os outros factores referidos em supra, não sejam de menor importância.
Com a vinda da água e a actividade agrícola em Dobe os conflitos entre pastores e agricultores tornam-se muito
frequentes, mantendo-se ainda na actualidade.

2. A regra da patrilocalidade
A patrilocalidade constitui-se como a regra que determina a residência na sociedade camponesa santiaguense.
Joaquim Segurado5 no seu estudo sobre a região do Serelho (Santiago) refere o que nos parece ser paradigmático no conjunto
da ilha:
“Em condições normais, o pai ajuda o filho ainda solteiro a levantar parede para a construção da sua casa num assento
que lhe dá ao lado da sua própria casa. A casa ficará a maior parte das vezes inacabada (em pardieiro) até ao momento
em que, tendo escolhido já uma noiva, o filho marca a data do seu casamento. Nessa altura a casa é coberta, rebocada e
leva as portas e janelas...”6.

Para Segurado as condições normais são aquelas em que permitem ao pai dispôr de terreno para assento de casa do
filho que vai a casar ou já é casado e ainda meios para ajudar aquele a construir a casa. Quando assim não acontece, segundo
Segurado, o filho já casado continua a viver na casa dos pais juntamente com a sua mulher7. Após o casamento a primeira
residência obedece ao princípio da patrilocalidade mesmo que o pai não disponha de um terreno junto da sua habitação pois
este liberta numa pequena parcela de cultivo para a construção da casa do seu filho.
Mas, esta forma de patrilocalidade, frequentemente com um mesmo antepassado na origem das ocupações, nem
sempre sustenta a herança dos assentos de casa e em muitos casos estes são vendidos de geração em geração sendo difícil por
vezes distinguir os compradores dos assentos, vendidos geralmente nos tempos de crise, dos herdeiros dos primeiros
ocupantes. Por isso, Segurado no seu estudo sobre o Serelho refere que nos povoados de Cutelo Celada e de Cutelo Duarte
“por exemplo, as origens comuns não se conseguem mais reconhecer”.8 As crises cíclicas podem originar a venda das

4
Segundo Ego, este tipo de mosca agarra-se aos animais e nomeia-se de laxa (vernáculo).
5
SEGURADO, Joaquim Bivar, Relatório Interino sobre o trabalho antropológico realizado no quadro do projecto “Estratificação social e necessidades
básicas num ecosistema frágil”, na região do Serelho, Ilha de Santiago, República de Cabo Verde, Novembro de 1982 e Agosto de 1983, Instituto Gulbenkian de
Ciência, Centro de Estudos de Economia Agrária, Outubro de 1983, Oeiras.
6
Ibidem, p. 22.
7
Ibidem, Id.
8
Ibidem, Id.

302
habitações e uma nova residência. O pai pode esgotar os seus recursos em assentos de casa para os mais novos (codê) e o
sogro pode, “o que é raríssimo” como refere Segurado9, convencer o genro a ficar em sua casa o que traduz a residência
uxorilocal. Existem várias razões para a raridade deste fenómeno na sociedade camponesa santiaguense.
Um homem badio nestas circunstâncias, coabitando a casa do seu sogro, tem a palavra depois do seu cunhado mais
novo, o codê da família, vendo assim diminuído o seu poder e capital social o que gera conflitos que originam a procura de
uma nova casa e sítio pelo jovem casal. Segundo a regra da patrilocalidade, que caracteriza a sociedade camponesa
santiaguense, a mulher sai da casa paterna e vai viver para a povoação dos sogros o que não invalida a possibilidade de
relações tensas sogra-nora que poderão afastar o jovem casal da casa ou da povoação patrilocal. Para Segurado estes
potenciais conflitos poderão fazer emergir a “natural” preferência pelos casamentos endogâmicos na região do Serelho
porque tendo ambos os esposos da mesma localidade haveria menos “problemas de conveniência”.10 Mas Segurado acaba por
referir que não deixam de existir “...homens do Serelho casados com mulheres vindas de regiões longínquas e mulheres do
Serelho que foram casar bastante longe.”11
O nascimento dos filhos na sociedade cabo-verdiana marca a diluição da dependência e subordinação do casal em
relação aos pais e sogros, afirmando-se gradualmente a sua independência como unidade de produção e consumo autónoma12.
Mas o que nos parece consensual afirmar sobre esta matéria é o que Segurado refere como constatação de facto, no seu
estudo:
“As unidades residenciais marcam assim os próprios limites das unidades de produção e consumo. A casa corresponde
pois a uma unidade de produção e consumo autónoma. A família alargada constituída pelos pais e filhos casados
habitando casas contíguas, não forma de maneira nenhuma uma grande unidade de produção estável sob a autoridade
de um pater famílias”13

Entre as unidades de produção autónomas estabelecem-se relações de inter-ajuda ou entre-ajuda hierarquizadas


entre pais e filhos e horizontalizadas entre irmãos. Estas relações estendem-se às famílias das esposas originárias de outras
regiões mais ou menos afastadas.
A casa surge assim neste contexto como um elemento que ultrapassa a sua natureza funcional pois ela é condição
das mudanças de estruturação das relações de sociedade entre os diferentes agregados familiares. O pai ajudando o filho a
“levantar parede” distribui recursos que propiciam mais autonomia ao filho enfraquecendo a sua própria unidade de produção
em recursos autonomizadores mas libertando o fardo da sustentação do novo casal e respectiva prole.
A casa é também um meio de codificação do estatuto socioeconómico e deste modo adquire uma valorização social
acrescida na altura do casamento. Assim pelo casamento adquire-se não só a casa mas também a terra como parcela de
cultura iniciando-se um ciclo, segundo Segurado, cujo desenvolvimento requer “uma estabilidade residencial onde a ligação
com a unidade de produção do pai é reservatório de terra.”14
De geração em geração o objectivo é não só construir um “stock de terra” como manter os mecanismos da sua
redistribuição pelo casamento dos filhos e que é complementada ou “completada” pela parte trazida pela mulher do filho.
Para Segurado, os princípios de acesso à terra são independentes da natureza das parcelas e permanecem os mesmos de
geração em geração.15
Partindo das “histórias pessoais” da população estudada, Segurado constata que a “mobilidade da população é
bastante elevada”16 mas desde logo avisa da sua impossibilidade de analisar o fenómeno da mobilidade no “seu todo” por
razões de carácter metodológico17. Mas quanto às razões da própria mobilidade Segurado refere o seguinte:
“...são, quanto a nós fundamentalmente decorrentes da incapacidade (no meio familiar, na região de origem) de
fornecer as condições de residência e de acesso à terra. Mas essa incapacidade tanto pode dar origem a um movimento
de emigração como ao de mudança de região.”18

Na sociedade santiaguense esta regra surge como o princípio comum mais frequente de estabelecer a residência. No
entanto vários factores poderão ser desde já esclarecidos e que determinam em rigor o desvio à norma ou prática costumeira.
Em boa verdade o que se pratica na sociedade camponesa santiaguense é o princípio da residência em casa do homem na
proximidade ou mesmo na povoação do pai deste. Quer isto dizer, que tendo como fio condutor a patrilocalidade, um
santiaguense fará a sua casa na povoação do pai se tiver acesso ao lugar de casa e possibilidades de construí-la quase sempre
com a ajuda do pai. Contudo um homem santiaguense poderá herdar uma parcela ou duas com o seu casamento e nesse caso
construir casa junto as parcelas. Se assim acontecer temos uma residência virilocal, em terras próprias. Se bem que a

9
Ibidem, p. 23.
10
Ibidem, Id.
11
Ibidem, Id.
12
Ibidem, p. 24.
13
Ibidem, Id.
14
Ibidem, p. 31.
15
Ibidem, Id.
16
Ibidem, p. 32.
17
Ibidem, Id.
18
Ibidem, Id.

303
matrilocalidade e a uxorilocalidade (junto às terras da mulher, herdadas por ela) sejam bem mais raros, um homem filho de
“parceiro” que não pode dar lugar de casa ao seu filho na zona onde habita, irá construir num outro local e quase sempre na
cidade onde mais facilmente encontrará trabalho. Neste caso, a residência é neolocal e nem sempre é consequente à pobreza
do pai. A cidade fornece diversas vantagens tanto no início da vida do casal como quando a prole está na idade escolar
(ensino secundário) diminuindo despesas substanciais com os transportes e alimentação. Na residência neolocal os pais dos
conjugues não interferem na decisão do casal.19 Alguns autores como C. Ghasarian20, defendem ser este (residência neolocal)
o tipo de residência “das sociedades industrializadas e nas sociedades em mutação”21 mas, pensamos também que se
constituem nuclearmente em zonas rurais com centros urbanos relativamente próximos e no caso santiaguense com forte
vocação emigratória.
Para o caso de Tinca, os filhos dos três irmãos fundadores desta povoação estabeleceram residência segundo a regra
da patrilocalidade: os filhos que não emigram vivem na povoação do pai com as suas respectivas mulheres; as filhas depois
de casadas foram na sua grande maioria viver para a cidade da Praia junto dos seus companheiros.
Mas existem outros factores que podem contrariar esta regra e que demonstram o “pano” complexo que tecem as
relações sociais dos camponeses santiaguenses. Refiro-me á forte instabilidade do agregado familiar que produz
frequentemente a mãe “solteira” que pode ao longo do ciclo reprodutivo ter vários “amigos” (mancebia) e filhos destes. A
tendência configura a prática das mães “solteiras” coabitarem na casa da mãe viúva ou mesmo “solteira” ou, de qualquer
modo, isolada (ex: mulher de emigrado que não retorna, no vulgo “viúva”) quando os filhos machos já não convivem na casa
materna, depois de se juntarem, casarem ou emigrarem. Uma mãe “solteira” viúva ou “viúva”22 pode albergar na sua própria
casa uma ou mais filhas “solteiras” e respectiva prole destas últimas.

Figura 3: Mulher “solteira” de Tinca e descendência


G2 S

G3 J
S S
b) c) e)
G4

S
a) d) f)

G G

J Juntos
Filhos de outra união

Legenda:
a) É "solteira", tem dois filhos e uma sobrinha que tomou de seu irmão ainda bébé. Vive em Tinca com a mãe e
outra irmã "solteira", que tem um filho;
b) É "solteira", e vive na casa de sua mãe com a irmã. Tem um filho que vive consigo. O "amigo", pai do seu filho é
de Móia-Móia mas “embarcou” para Portugal;
c) Vive em Tinca em casa própria. É costureira e vende roupa para vizinhos e escola;
d) Vive em Tinca com sua mulher;
e) Vive na Praia com a mulher;
f) Tem dois filhos de uma relação anterior com “amigo”.

O fenómeno “solteira” reproduz-se neste âmbito e enquadra-se na matriz complexa que define a família camponesa
santiaguense e a grande frequência de lares matrifocais. Como factores amplificadores deste fenómeno sublinhamos a
emigração e o acesso ao “lugar de casa” (residência). No seu estudo sobre o Serelho, Segurado refere quanto ás famílias
matrifocais:
“O leque das situações inerentes aos diferentes estratos tende a reproduzir as condições do modelo embora se possa
falar de capacidade de reprodução diferenciadas com orientações situadas para além ou para aquém de uma média

19
GHASARIAN, Christian, Introdução ao Estudo do Parentesco, Ed. Terramar, Lisboa, 1999, p. 156.
20
Ibidem, Id.
21
Ibidem, Id.
22
Mulher de emigrante sem retorno

304
“regular”. Isso sem falar das situações numericamente importantes das famílias matrifocais (mães solteiras e mulheres
de maridos emigrados que, longe de construírem casos marginais face à dinâmica do sistema doméstico, representam
situações de bloqueamento no acesso aos recursos devido á incapacidade de poderem justamente desenvolver
estratégias inerentes ao sistema doméstico.” 23

Segurado sustenta, partindo do seu estudo na região do Serelho, que o sistema doméstico santiaguense é flexível e
adaptativo quanto às condições de coexistência de diferentes estratos no seio dos camponeses mais pobres. Essas condições
diferenciadas são compatíveis com o sistema doméstico e não sendo este um sistema igualitário é “um sistema igual na
estruturação das unidades de produção”24.
A hipótese de trabalho de Segurado sobre a estratificação socio-económica no Serelho assenta numa grelha
interpretativa que apresenta as clivagens dessa estruturação. Assim aquele autor descreve uma zona de “gente pobre” de forte
densidade populacional e uma zona de “morgadios”. Na terra de “gente pobre” distinguiam-se três estratos socio-económicos
designados por “mais proprietários”, “gente pobre propriamente dita” e os “parceiros”25. No interior dos “morgadios”
surgiram os estratos constituídos pelo “morgado” ou grande proprietário, o “encarregado” ou feitor e os “rendeiros”.
Segurado parte do princípio da existência do “parceiro” dentro dos “morgadios” que utilizavam “as parcerias de
subarrendamento para residirem e subsistirem”26. Não possuindo casa nem parcela de cultivo estes parceiros dependiam, para
se reproduzirem (residência e subsistência), da existência de várias parcerias que nas terras de sequeiro era a única forma de
subarrendamento autorizada. Um rendeiro dava em parceria uma parcela arrendada por si, sendo vedada a possibilidade de
este arrendar de novo essa parcela e beneficiar dessa renda.27 Assim o acesso à residência e à terra através da parceria conduz
a uma situação de precariedade do parceiro e à necessidade imperativa da mobilidade residencial e a residência, é o factor
determinante para o desenvolvimento do ciclo de vida da unidade de produção28. O acesso à terra e à casa são deste modo
interdependentes. A tendência para a habitação patrilocal e a cedência da primeira parcela de cultivo pelo pai do homem tinha
como obstáculo, no interior dos morgadios, as restrições e exigências que eram impostas aos rendeiros para a construção de
novas habitações, impossibilitando a prole de permanecer no lugar do pai do marido após a união do casal.29 Segurado
encontra aqui a explicação para a fraca densidade nas terras de “morgadios”.
Não contesto que os elementos trazidos pelo estudo de Segurado revelam os fios com que se cose o tecido (a
complexidade) da estruturação social camponesa santiaguense. Nem sequer contesto que esses sejam os fios mais longos
desse tecido mas o seu padrão não se esgota aqui.
O caso de Tinca/Dobe, no nosso estudo, surge relevante para encontrar outros elementos que explicam o fenómeno
da mobilidade residencial e como este pode relacionar-se com a tendência para a regra da patrilocalidade. Como havíamos
referido supra, o pai de Ego, que não era proprietário mas parceiro no Monte Chaminé, vem com os seus animais no início
dos anos 40 para Dobe entregando-os a um pastor que lá vivia, o único habitante daquela zona. Os animais ficavam soltos no
montado que é uma zona de vocação silvo-pastoril. O pastor em troca da guarda dos animais ficava com a produçaõ do leite.
Em 1938 nascem os irmãos gémeos de Ego e o seu pai decide dispensar os serviços do pastor de Dobe deslocando-
se para lá para guardar os seus próprios animais uma vez que o leite surge crucial para a sobrevivência dos gémeos. A partir
desta decisão, por volta de 1940, os irmãos de Ego com capacidade para trabalhar acompanham o pai enquanto a mãe fica em
Vilela (Monte Chaminé) com os filhos mais novos. À medida que vão crescendo, juntam-se ao pai em Dobe. A mãe de Ego
não acompanha o seu companheiro, pai de Ego. Em 1947 o pai de Ego vivia em Dobe com sua filha mais velha (fruto de uma
outra união) e mais oito filhos. Ego tinha na altura quinze anos e os seus irmãos gémeos nove anos. O pai de Ego cultivava
com os seus filhos terras de sequeiro obtidas em parceria no Monte Chaminé junto á sua povoação de origem que era Vilela.
A mobilidade de residência do agregado familiar foi acompanhada de ruptura da união do casal: em Dobe o pai de
Ego tinha o estado de solteiro e coabitava somente com os seus filhos vindo a falecer inválido, em 1967 na povoação de
Dobe. Quatro anos antes Ego havia iniciado o reboco da sua casa em Tinca instalando-se aí com sua irmã mais velha e o
companheiro desta. Ego vivia uma segunda união e tinha três filhos desta mulher. Em 1970 vem para Tinca uma segunda
irmã que vivia com um homem na Chaminé. Esta sua irmã vem sozinha com os seus cinco filhos pois havia se “zangado”
com o seu companheiro.
O aglomerado de Tinca desenvolve-se então com novas casas dos filhos destes três irmãos na altura do casamento
ou união de facto dos filhos de sexo masculino. As restantes habitações são o resultado da fixação em Tinca da mulher de um
segundo primo da segunda mulher de Ego. Esta mulher vive em Tinca coabitando com duas filhas “solteiras “ e netos. Uma
outra filha “solteira” vive em casa própria assim como um filho casado, ambos em Tinca. Um filho emigrou e uma outra filha
vive em Móia-Móia com um homem de uma segunda união de facto. De todas as filhas de Ego e das suas irmãs só uma ficou
em Tinca vivendo em união de facto com um homem que é de Tinca, e com seus filhos.

23
SEGURADO, Joaquim, op. cit., p. 20.
24
Ibidem, Id.
25
Ibidem, p. 13.
26
Ibidem, Id.
27
Ibidem, p. 14.
28
Ibidem, p. 15.
29
Ibidem, p. 18.

305
O desvio à regra da patrilocalidade surge relativamente às filhas “solteiras” e aos filhos que têm acesso a um
emprego certo e estável (ex: funcionário) geralmente encontrado na cidade da Praia e que permite o acesso a um lugar de
casa (construção de casa própria, quase sempre, ou aluguer).
Se bem que a regra da patrilocalidade prevaleça a qualquer outra estratégia de residência, o fenómeno da
mobilidade residencial surge como um problema distinto da regra da patrilocalidade e só a história ao longo de várias
gerações da mesma família poderá trazer alguma clarificação quanto aos factores da mobilidade residencial, ou seja, ao nível
da fundação das próprias povoações. No caso de Tinca/Dobe os recursos que sustentam as subsistências parecem factores
determinantes para definir a estratégia da mobilidade residencial que deve ser transversalizada pela natureza das actividades
económicas e estratificação social das famílias.
Tinca surge num contexto genealógico em que os fundadores exercem uma actividade económica de vocação
pastoril, não proprietários, parceiros e que estabelecem várias uniões de facto ao longo da história familiar e geracional. Mas
não bastam os limites deste contexto genealógico e de estratificação social pois surgem como relevantes outros factores
históricos externos á família, como o surgimento da água em Dobe (nos anos cinquenta) que fez surgir os conflitos entre
pastores e horticultores (de rêgo) que originaram a decisão de Ego se instalar em Tinca. Um outro factor externo que parece
relevante é o contexto socio-económico nos anos 40 (de crise alimentar) em Cabo Verde e a diminuição do número dos
barcos vindos da metrópole com géneros alimentares e outros devido à conjuntura internacional (2ª Guerra Mundial). Neste
contexto, o nascimento dos irmãos gémeos de Ego condicionou a decisão de seu pai de se instalar em Dobe de modo a
assegurar os alimentos cruciais para a sobrevivência da prole.

3. Da natureza da união de facto: a matrifocalidade


O fenómeno das “solteiras” em Santiago poderá estar relacionado com as condições através das quais se processa a
reprodução social, as capacidades de reprodução relacionadas com os fenómenos que determinam a mobilidade regional
como por exemplo, a situação do “parceiro” cujo acesso á terra depende do acesso a um lugar de casa (residência). Como
referimos supra, J. Segurado sustenta no seu estudo do Serelho que o factor residencial é determinante para o
desenvolvimento do ciclo de vida da unidade de reprodução30.
O conceito de família no contexto cabo-verdiano não representa uma categoria unívoca e dada a sua complexidade
deverá ser analiticamente decomposta de forma a caracterizarem-se diferentes situações dos respectivos chefes de família.
Sobretudo deve-se ter em conta a estrutura matrifocal reproduzida ao longo da história individual de cada uma das mulheres
assim como o carácter estrutural da matrifocalidade que para nós constitui um fenómeno complexo que exige a explicação de
outros fenómenos complexos.
A “plasticidade” da família nuclear cabo-verdiana não é um fenómeno de conjuntura nem mesmo a expressão de
uma regra ou preferência cultural mas o efeito das condições económicas que levam um homem a não poder manter o
estatuto de chefe de famíla seja por indigência, ou pelo facto de já possuir outra mulher e prole, ou pela ausência enquanto
emigrante ou outro factor como o desemprego crónico. A família matrifocal resultante daquela “plasticidade” consiste na
mulher e os seus filhos e por vezes os filhos das filhas, sem marido co-residente ou qualquer outro homem adulto. A
matrifocalidade ou matricentralidade entendida como traço da “cultura da pobreza” é um fenómeno cada vez mais frequente
nas sociedades pós-industriais31 sugerindo do ponto de vista da antropologia a expressão de uma forma de adaptação a
constrangimentos económicos severos que interferem na capacidade dos actores sociais assumirem valores culturais
partilhados na família. Mas estes fenómenos supõe outros complementares ou co-evolutivos como as redes de ajuda inter-
residencial (vizinhos, amigos ou familiares) e, para além disso, expressam situações do ciclo doméstico.
È necessário lembrar que as estatísticas escondem frequentemente a possibilidade do carácter estagiário da
matrifocalidade (enquanto forma de residência), principalmente nas jovens mães, pois no ciclo doméstico a coabitação com
um homem ou a inserção numa unidade de parentesco mais alargada, pode efectuar-se periodicamente. A matrifocalidade co-
evolue com as redes de inter-ajuda mas, são geralmente as mães das jovens solteiras que tomam a guarda dos filhos destas,
seus netos. Estas avós, frequentemente, são elas próprias mães solteiras ou “viúvas”32 desenvolvendo-se a matrifocalidade de
tipo inter-geracional e uma mãe solteira pode ter no seu agregado uma ou mais filhas (geralmente jovens) e respectivos
filhos, seus netos. Esta situação de mãe solteira inter-geracional pode incluir no seu agregado um ou outro filho de um filho
solteiro ou “separado” (união de facto).
Contudo devemos entender que não só as condições económicas determinam a matrifocalidade mas que esta surge
na configuração de constrangimentos a que o agregado familiar está submetido. Nesta configuração, a matrifocalidade é o
fenómeno mais recorrente (estaticamente) mas poderão surgir outros. Isto leva-nos a considerar um outro tipo de dados
recuando até o ano de 1947, altura em que convergem constrangimentos demolidores no entorno da família rural
santiaguense: a crise alimentar (local) e o impacto da 2ª Guerra Mundial (global).

30
SEGURADO, Joaquim, op. cit, pp. 31-36.
31
cf. STACK, Carol, “The kindred of Viola Jackson”, in WHITTEN, Norman, SZWED, John F., Afro-American anthropology, Glencoe, The Free Press, 1970;
Cf. ainda STACK, Carol, All our kin. Strategies for survival in a Black community, Harper and Row, N.Y., 1974.
32
Não necessariamente mulher de um marido que faleceu mas cujo “marido” (união de facto) emigrou e nunca voltou ou jamais enviou qualquer ajuda ou
remessa.

306
A crise alimentar de 1947-1948 foi antecedida pela de 1941-1943 que havia ceifado 24 463 pessoas, 22,4% da
população total o que nos leva a considerar esta década como aquela onde a sociedade santiaguense viveu sob um
desmesurado stress, obrigando as estruturas sociais a níveis de resiliência limites, até a exaustão da sua “plasticidade” e
capacidade de adaptação. Os rurais santiaguenses são exímios gestores de recursos mínimos e com larga experiência de uma
existência do incerto que os obriga a enveredar pela dinâmica da sua estruturação social: neste sentido a família é o tabuleiro
das mudanças mais privilegiado.
O Cadastro Geral da freguesia da N.ª S. da Luz (concelho de S. Domingos)33 actualizado em 20 de Novembro de
1947 recenseou 291 agregados familiares na freguesia caracterizando os chefes do agregado quanto ao sexo, profissão, idade,
estado civil e número de pessoas por família. Cerca de 70% dos agregados foram classificados como trabalhadores e 20%
como proprietários e 79% classificados como solteiros34. A análise destes dados leva-nos a uma aproximação quanto á forma
da unidade residencial da população da freguesia num momento histórico de grandes constrangimentos no entorno da
estrutura familiar.

Quadro 2 : Tipo de lar na freguesia de Nª Sª da Luz em 1947


Frequência (n) Percentagem (%)
Casado 42 14,4
Isolado 20 6,9
Junto 81 27,8
Matrifocal 101 34,7
Patrifocal 47 16,2
Total 291 100,0

A primeira aproximação que se faz é relativa ao tipo de lar surgindo da análise as seguintes categorias de tipos de
lares relativamente à situação do chefe de agregado: casado, junto, isolado, matrifocal e patrifocal (homem e seus filhos,
netos, enteados ou sobrinhos):
Aproximadamente 35% dos chefes de família surgem como mulheres chefes de família não coabitando com
homem adulto ou cônjuge tendo à sua responsabilidade filhos e/ou netos e/ou sobrinhos e/ou enteados. Os casados
representam metade do número dos que vivem juntos sem união formal. Contudo 16% desses chefes de família representam
homens não coabitando com mulher adulta ou cônjuge mas tendo á sua responsabilidade filhos e/ou netos e/ou sobrinhos e/ou
enteados. Se cruzarmos estes dados com a extensão da família obtemos o seguinte:

Quadro 3 : Tipo de lar segundo a extensão da família e sexo do chefe


Sexo Família Lar Total
Casado Isolado Junto Matrifocal Patrifocal
Masculino Extensa 15 - 20 - 23 58
Isolada - 13 - - - 13
Nuclear 27 - 57 - 25 109
Total 42 13 77 - 48 180
Feminino Extensa - - 1 51 - 52
Isolada - 7 - - - 7
Nuclear - - 3 49 - 52
Total - 7 4 100 - 111

Através da leitura do quadro acima podemos inferir que as mulheres chefes de família vivem numa unidade
residencial matrifocal e, dentro desta categoria, com maior expressão inseridas numa família extensa. No caso dos homens a
patrifocalidade propícia a inclusão numa família extensa se bem que a representatividade dos homens chefes de família é
mais forte na família do tipo nuclear enquanto as mulheres chefes se distribuem mais equilibradamente entre a família do tipo
extenso e a família do tipo nuclear. Quando cruzamos o estado civil com a forma da unidade residencial o que surge mais
relevante é que os homens são maioritariamente solteiros, embora grande parte deles viva com um cônjuge, seja em união de
facto ou em matrimónio, enquanto as mulheres chefes, na sua esmagadora maioria, são solteiras ou viúvas e vivem sem
cônjuge, numa unidade residencial do tipo matrifocal.
O Recenseamento Geral de Agricultura de 2004 (Dados Globais) configura uma situação relativa à mulher chefe de
família bem marcante e denunciante do fio condutor da evolução da estrutura familiar. Segundo a mesma fonte de dados a
Ilha de Santiago regista os valores mais elevados da percentagem de mulheres chefes de exploração com diferenças entre

33
Arquivo Histórico Nacional, ACP(B1) cx 111.
34
Ver Anexo nº 4.

307
concelhos: os concelhos de Tarrafal, Santa Catarina e S. Miguel atingem 60,8% para os dois primeiros e 58,9% para o de S.
Miguel.
A Ilha de Santiago constitui deste modo um universo onde as iniciativas na economia rural são no feminino, isto é,
são maioritariamente as mulheres (57%) que dirigem o destino das pequenas explorações agrícolas e gerem os recursos que
lhes são disponíveis. Esta situação está intimamente relacionada com o fenómeno das mulheres “solteiras”, chefes de
agregados familiares mulheres com filhos e/ou netos mas sem conjugue. Na ilha de Santiago o número de mulheres chefes de
família ultrapassa a média nacional que é de 50%. São Domingos, na mesma ilha, é o concelho com menor percentagem de
chefes de família mulheres (44,7%) como podemos observar no quadro seguinte, relativo ao ano de 2004.
Estas mulheres chefes de família, “solteiras” com filhos ou “viúvas” são maioritariamente analfabetas,
representando a grande fatia (80%) das famílias vulneráveis, o grande exército das FAIMO (60% do total da mão-de-obra) e
o mais barato (95% dos serventes, categoria mais baixa).35 São ainda rabidanti36, mais ou menos bem sucedidas, vendendo
geralmente pequenas quantidades de produtos agrícolas, nas ruas da Praia ou às mulheres com “assento na pedra”, nos
mercados da capital. Fazem as “mondas” e com alguma sorte criam um porco ou cabra para além da galinha. Quando se lhes
pergunta a actividade profissional dizem-se “domésticas”. Estas mulheres, ao longo da sua vida e na sua grande maioria,
vivem ou viveram em “união de facto” com os pais de seus filhos. Esta união (ou uniões ao longo do ciclo da sua vida) é
aceite pela sociedade como se de um casamento se tratasse com deveres e obrigações mútuas por parte dos “unidos”.
Para a ilha de Santiago, o Recenseamento Geral da Agricultura de 200437 dá os valores mais elevados para os
chefes de família mulheres. Tendo em conta uma média nacional de 50,5% de mulheres rurais chefes de família, superior à
do Recenseamento Geral de 2000, a ilha de Santiago surge com 57% mas os concelhos de Santa Catarina e Tarrafal
aproximam-se dos 61% e o concelho da Praia os 58,4%. O concelho de S. Domingos aparece com a percentagem mais baixa
de 44,7%.
As mulheres chefes de família solteiras representam sem dúvida o grupo mais desfavorecido38, situação agravada
com o facto de estas mulheres possuírem uma prole muito jovem e não terem acesso ao rendimento ou contribuição
económica do homem. Para além disso os rendimentos dos agregados familiares não são os mesmos para a zona árida, semi-
húmida e húmida. Um estudo de M. Quinto39 sobre os efeitos da emigração e das remessas no modo de vida das mulheres
rurais nas zonas húmidas, semi-húmidas e áridas em Santiago, leva-nos a considerar diferenças substanciais dos rendimentos
dos agregados familiares nestas três diferentes zonas ecológicas. A zona árida representava rendimentos mais baixos e menor
auto-suficiência alimentar40.
Existe uma certa heterogeneidade dos agregados familiares chefiados por mulheres. Por outro lado, deve ser
avaliada convenientemente a frequência de mulheres chefes de família mais velhas virem a constituir famílias extensas, com
uma prole integrada de forma mais ou menos regular no mercado de trabalho, contribuindo assim economicamente, para as
despesas do agregado familiar.
Por outro lado várias mulheres, no contexto santiaguense testemunham coabitar com a mãe, avó ou irmã colocando-
se o problema da extensão destes agregados familiares e uma possível tendência para a constituição de um certo tipo de
famílias extensas chefiadas por mulheres mais velhas. Os exemplos encontrados ao longo da nossa pesquisa levam-nos a
sustentar a possibilidade de mulheres “solteiras” com filhos frequentemente recorrerem à coabitação com a mãe ou a irmã
mais velha (elas também mães “solteiras” ou “viúvas”, em muitos casos) de modo a acederem a uma área habitacional ou,
menos frequentemente, a uma parcela de cultivo. As mães “solteiras” mais jovens vêem-se por isso obrigadas a integrarem-se
em núcleos familiares já constituídos e distribuídos conforme uma gestão das áreas habitacionais, o que constitui para
Segurado (como havíamos constatado supra) o elemento revelador da capacidade e da orientação dada à reprodução
doméstica41.
M. Depraetere no seu estudo sobre o Serelho (ilha de Santiago) apresentou as seguintes categorias, para as
mulheres chefes de família, quanto ao seu estatuto em relação à ausência do elemento masculino: separadas, viúvas, solteiras
com ou sem filhos e mulheres de maridos emigrados.42
A “união de facto” é largamente consentida e preferida, mas apesar disso, o casamento, principalmente o religioso,
constitui como o estado supremo da união familiar, aliás como M. Depraetere havia já observado na ilha de Santiago
(Serelho): “Segundo os informantes o casamento é visto como a instituição de mais valor”43.

35
CABO VERDE, Relatório do Desenvolvimento Humano, 1998, pp. 59-60.
36
Rabidantes são quase sempre mulheres que vendem qualquer tipo de produto ou bem de consumo a retalho nas ruas, nos mercados ou porta a porta.
Constituem um fenómeno rurbano generalizado em África. Na Guiné-Bissau estas mulheres são denominadas bideras. (Cf. GRASSI, Márcia, Rabidantes.
Comércio espontâneo transnacional em cabo verde., ICS, 2003.
37
CABO VERDE, Recenseamento Geral da Agricultura 2004 – Dados Globais, MAAA, Praia, 2005.
38
Cf. Couto, Carlos Ferreira, Estratégias familiares de subsistências Rurais em Santiago de cabo Verde, Instituto de Cooperação Portuguesa, Lisboa, 2001, pp.
116-117.
39
Quinto, Marilyn, Some Effects of Emigration and Remittances on the Lives of Rural Women in Selected Areas of the Cape Verde Islands, CID/WID, 1984,
mimeo.
40
Ibidem, p. 37.
41
Segurado, J., op. cit., pp. 31-36.
42
Depraetere, M., Estudo monográfico sobre o papel da mulher rural na organização dos recursos e consumo, Centro de Estudos de Economia Agrária,
Instituto Gulbenkian de Ciência, Oeiras, 1983, p. 2, Mimeo.
43
Ibidem, p.15.

308
A “união de facto” constitui uma espécie de “estádio” anterior ao casamento e este vem reforçar a integração social
na comunidade, porque traduz uma maior efectividade do elemento masculino no agregado familiar e, este, por sua vez,
favorece a sociabilidade exterior ao núcleo familiar, de natureza comunitária e institucional. Nos lares matrifocais, a ausência
do elemento masculino limita o acesso da mulher a recursos fundamentais como a terra em parceria ou o crédito. Para obter
este último, a mulher necessita de um “avalista” ou fiador e geralmente (ou quase sempre) na sociedade rural santiaguense
um homem é fiador de um outro homem. O homem é “solto” e “cabeça de família” e a mulher é “de casa”.44
As mulheres com mais experiência e mais velhas são unânimes quando afirmam “o casamento é uma coisa para
toda a vida...” que pode dar para o “mel” ou para a “babosa” (fel). Nas zonas rurais uma pessoa “separada” (divorciada) era
“uma coisa que se contava, apontava o dedo”. O enquadramento desta matriz reproduzida na memória dos mais velhos pode
ser definido pelo folclore poético da Ilha de Santiago e relacionado com os “batuques” na sua expressão mais corrente, a
finaçom45.
A estrutura familiar Cabo Verdiana enquadra-se num pano de fundo de condições históricas que António Carreira
definiu como o reflexo das “características específicas que lhe (sociedade insular) foram imprimidas pela intensa
miscigenação”46 de homens europeus de diferentes estratos sociais com mulheres africanas. Para Carreira aquelas exibiam a
“superioridade da cultura”47 que desde a formação da sociedade insular normalizou a prática do concubinato num processo de
“desequilíbrios e desajustamentos”.48 Estes (des)equilíbrios e (des)ajustamentos de uma sociedade em contínua mutação
ganhavam um outro sentido sob o ponto de vista ético europeu que através da via institucional tentavam em vão regular o
comportamento “irregular” aos homens brancos que ricos ou pobres se entregavam ao “vício” da concubinagem assumindo, a
prole daí resultante.
Para Carreira este princípio de liberdade que denominou de “poligamia de facto, que não de direito”49 seria regra
generalizada do mundo rural e que supostamente, uma vez que não lança comentários descritivos relevantes, não se teria
generalizado nas zonas urbanas.50 Nestas, segundo Carreira, predominava a família nuclear em oposição ás zonas rurais onde
se expande a amancebia generalizada e o que nos parece ser pertinente no momento citar:
“O homem exerce um papel de relevo no seu agregado familiar e esse papel projecta-se na vida da segunda ou das
outras amázias. Por seu lado, a mulher tem a sua acção definida sobretudo no tocante à orientação e educação dos
filhos próprios e dos da comborça (ou comborças), quando necessário, e por vezes dos próprios afilhados desde que
orfãos, as lides da casa, carreto de água, apanha de lenha, auxílio nos trabalhos da lavoura, vigia do gado, criação de
porcos e de aves, etc.”51

A questão que se coloca no momento é se a mancebia se constitui como um instrumento vital para a reprodução do
agregado da mulher “solteira” e do seu acesso a recursos que só o homem tem acesso numa sociedade onde o papel da
mulher é remetido para a esfera doméstica invisibilizando-a como agente económico autónomo. Como já referimos supra a
dificuldade das mulheres solteiras obterem parceria ou crédito assenta no princípio que a mulher “é de casa” e o homem
“cabeça de família”. Raramente um homem, na sua sociedade rural santiaguense, é “avalista” ou fiador de uma mulher.
Como M. Depraetere havia constatado na zona do Serelho:
“Se a ausência do homem não é pertinente para a definição do papel da mulher em relação ao interior da sua unidade
residencial em relação ao exterior, ela é determinante. Com efeito a mulher do emigrante, tal como a viúva, não
participa em nenhuma festa de baptizado ou casamento. A participação nos grandes momentos da vida social
representados por essa festa, são incompatíveis com o afastamento do marido.” 52

Para Depraetere, o papel do homem geralmente é de “trazer dinheiro de fora para a unidade residencial” e por isso
“ligado ao dinheiro” enquanto a mulher fica pelo “papel dado à comida”.53
Largamente aceite e tolerada pela sociedade cabo-verdiana, na “união de facto” o homem pela sua contribuição
económica regular, assume-se pública e socialmente como chefe de família do seu lar sem oficializar (registo ou religioso) a
união, sendo reconhecido pela sua comunidade (família e vizinhos) como tal.
Contudo a “união de facto” rege-se por códigos de honra muito claros. Em 1950, uma mulher declarou, junto da
Administração do Concelho da Praia54, que não desejava receber a “pensão” do homem com quem vivia maritalmente e na
altura, a trabalhar fora de Cabo Verde, pois havia se juntado a um outro homem residente na sua cidade. A mulher havia

44
Cabo Verde, Recenseamento Agrícola de 1988, Vol. 2, Setembro 1995, p. 72.
45
“Mocinhos, vocês oiçam um conselho/eu sou velho, eu conheço o mundo.../com casamento não se brinca/é uma corda fraco que amarra rijo./ Antes de vocês
se casarem cuidem bem/ cuidem bem antes de começarem a ir./Alguém (o homem) é burro, casamento é carga/ quem não pode não carrega/ vocês cuidem bem,
eu conheço o mundo/ marido é parede/ mulher é cumeeira/ filho é telhado.”(Gabriel Mariano, “Casamento”in Claridade, nº 6, Julho de 1948.
46
Carreira, António, Cabo Verde (aspectos sociais. Secas e fomes no séculoXX) , Ulmeiro, 2ª ed., 1984, p.145.
47
Ibidem, Id.
48
Ibidem, pp. 147-148.
49
Ibidem, p. 155.
50
Ibidem, id.
51
Ibidem, p. 156.
52
Depraetere, M., op. cit., p. 3.
53
Ibidem, Id. .
54
Arquivo Histórico Nacional (A.H.N.), Repartição Central dos Serviços de Administração Civil, Praia, 1950.

309
informado o seu ex-amante (por carta e uns meses antes) da sua situação e pretensão, mas aquele fez questão de continuar a
mandar a pensão. A mulher não viu outra via senão a de apresentar um “auto de declaração” junto da Administração do
Concelho de forma a suspender a pensão que o seu ex-amante teimosamente lhe enviava. Para todos os efeitos a continuação
do envio da “pensão” anulava a “oficialização” perante a sociedade do “divórcio” que a mulher havia já consumado e
assumido. Numa outra altura, em 1948, um homem defendia-se de uma acusação de agressão por parte de uma mulher que
vivia maritalmente com um homem emigrado numa outra colónia. O acusado e a acusadora tinham sido amantes em tempos e
no momento a mulher era lavadeira do acusado. Um dia esta mulher manda a sua filha menor pedir três escudos ao ex-
amante, funcionário na Praia. Este por sua vez reage, em declaração por escrito ao Administrador do Concelho da Praia e a
acusação da ex-amante, nos seguintes termos:
“E seguidamente o informante passou a aconselhá-la que evitasse perturbar o viver dele; pois não era a vez primeira
que esse conselho lhe era dado, quer particularmente e ainda publicamente o que tem sido debalde, está-se isso a
demonstrar. Então este porte é admissível a quem se tem em conta de senhora casada, com seu esposo ausente?”55

A sua ex-amante somente lhe havia pedido os três escudos, contudo o homem só poderia aceitar o pedido caso
decidisse reactivar a antiga relação o que não era o caso. Para todos os efeitos e perante a comunidade, a contribuição
económica por parte do homem era sinal que a relação de a mancebia, “união de facto” ou amizadi ainda existia.
Sobre a estrutura familiar cabo-verdiana, D. Meintel refere a formação de dois tipos de lares matrifocais. No
primeiro tipo, particularmente nas classes mais baixas, o homem é afastado e a sua marginalização deve-se, directa ou
indirectamente, à fragilidade da situação económica do homem.56 O “amigo” ou o “rapaz”, sendo parceiro sexual da mulher,
não contribui regularmente com dinheiro para as despesas da casa, contribuindo no entanto de uma forma esporádica com
presentes ou serviços. Neste caso o tipo de lar matrifocal a mulher tem a seu cargo o poder de decisão e a sobrevivência
económica do agregado familiar. O segundo tipo de lar matrifocal, segundo Meintel, resulta da emigração e embora possua
uma estrutura semelhante ao primeiro tipo, no57 segundo tipo o elemento masculino assumido como chefe do agregado
familiar ausente por longos períodos, contribui de forma “substancial” para as despesas do agregado. Neste caso as decisões
mais importantes relativamente à prole dependem do consentimento do chefe de família ausente.
Meintel correlaciona o segundo tipo de lar matrifocal como “ethos patriarcal” no qual assenta a autoridade
masculina. Sem mesmo existir casamento legal, no segundo tipo de lar matrifocal é exigida à mulher a fidelidade sexual,
mesmo que não haja reciprocidade por parte do homem. Segundo Meintel esta situação permanece estável enquanto se
mantiver a contribuição económica do homem. Por exemplo, se o homem morrer e a mulher começar a receber ajuda da
família do falecido, esta assistência cessará se a “viúva” arranjar novo companheiro. Dependendo das circunstâncias poderá
surgir uma mudança de um tipo de lar matrifocal para outro tipo, mudando assim a efectividade ou estabilidade do elemento
masculino no lar. Ainda segundo Meintel, dentro de cada tipo de estrutura matrifocal poder-se-ão encontrar múltiplas
variantes58.
As referências a estes autores permitem-nos alargar o âmbito da descrição cujos comentários possibilitem a
comparação de pontos de vista especializados, uma maior abrangência dos comentários descritivos. A existência ou
frequência do fenómeno “solteira” e a tendência generalizada da “união de facto” não implica a desvalorização simbólica do
casamento (oficial ou religioso) mas paradoxalmente a sua sobrevalorização. A oficialização da união do casal sempre está
condicionada por factores históricos supra mencionados mas ainda por exigências de carácter formal que as instituições
(civis, culturais, religiosas, etc.) da época colonial impunham para a celebração do casamento. As mulheres mais velhas
referem que geralmente eram as pessoas “mais evoluídas, que achávamos mais evoluídas” que faziam o casamento pelo
registo. As pessoas do povo raramente o faziam (ou amancebavam ou casavam pela Igreja). As pessoas diziam que é
“preferível ficar amancebado” do que casar mal. A amancebia consistia no “viver a experiência” antes do passo final como
irreversível “uma coisa de uma vez” ou “corda fraca que amarra rijo” onde a mulher “não tem ouvidos” perante a infidelidade
conjugal do homem.
Por outro lado as instituições religiosas exigiam reuniões aos noivos antes do casamento (ex: católico) a
“preparação para o casamento” no que diz “respeito não só à preparação espiritual, moral e humana dos noivos, como
também à vida dos casais”59. Os missionários contactavam os camponeses na vila e aí formavam um verdadeiro exército de
militantes (“laicistas”) e estes promoviam nas aldeias as “campanhas” do arranjo da casa, dos noivos, do berço ou enxoval.
Esta organização laica de catequistas (Liga de Acção Católica) exercia grande influência no modo de organização da vida
doméstica, do mundo “interior” da mulher cabo-verdiana. O “viver a experiência “antes do passo para uma “coisa de uma
vez” (casamento religioso) torna frequente o casamento em idades avançadas como por exemplo, o casamento geralmente
religioso na altura do baptizado do primeiro ou segundo filho, juntando as duas bodas.

55
A.H.N., Administração do Concelho da Praia, (B1) Cx. 49, Participações e queixas, Janeiro-Dezembro, 1948.
56
Meintel, Deidre, “Emigração em Cabo Verde: solução ou problema?”, Revista Internacional de Estudos Africanos, nº 2, Junho-Dezembro, 1984, p. 112.
57
Ibidem, Id.
58
Ibidem, p.113.
59
V. Arquipélago, Boletim dos Cabo-verdianos Cristãos em França, Julho-Agosto de 1978.

310
A nupcialidade no contexto Cabo-Verdiano é manifestamente baixa. O Inquérito às Famílias 1988-198960
apresentava a seguinte “situação”:
“A maioria da população encontra-se no estado civil solteiro, contudo sabe-se que embora declarando-se solteiros,
muitos desses vivem em união de facto que ocupa um lugar de grande peso dentro da sociedade Cabo-Verdiana.”61

Os homens casam com mulheres mais novas numa idade relativamente avançada registando-se no grupo 55+
homens solteiros que casam com mulheres solteiras do mesmo grupo etário. Os cabo-verdianos casam essencialmente no mês
de Julho com uma frequência quatro vezes superior ao mês de Novembro62. Dificilmente, os rurais, casam em Agosto63.
O Recenseamento Geral da População e Habitação de 1990 estipulava que 69% da população de 15+ anos
masculina era solteira ou vivia em união de facto e 62% da população feminina de 15+ anos encontrava-se nesta situação. Só
aproximadamente 28% dos cabo-verdianos e cabo-verdianas com 15+ anos se encontravam casadas.64 Contudo em 1998 um
inquérito demográfico se saúde reprodutiva65 sobre uma amostra de 6 250 mulheres dava-nos a seguinte distribuição
percentual: 45,9% das mulheres declararam-se solteiras, 26,2% em união de facto e 16,3% como casadas; dos homens (2450
inquiridos) 60,1% declararam-se solteiros, 25,2% em união de facto e somente 9,7% como casados66.
Para o mundo rural de Santiago e a população residente de 12 ou mais anos de idade os dados do Recenseamento
Geral da População-2000 denunciam a fraca expressão da nupcialidade. As mulheres casadas representam 23% do total de
mulheres residentes nas zonas rurais com 12 ou mais anos de idade. A união de facto, o estado de solteiro e o estado separado
englobam 70% da população total residente com 12 ou mais anos de idade.
O problema deste tipo de inquéritos ou recenseamentos tem relação com a não univocidade das categorias como
“casado”, “viúvo” ou “separado” e para além disso com a tendência das respostas segundo o sexo: as mulheres têm tendência
a esconder a situação de “solteira” explorando a ambiguidade de uma relação com o “amigo” ou a ruptura recente de uma
união de facto; os homens tendem a exacerbar a sua situação de homens “soltos” declarando menos “casamentos” ou mesmo
sobrevalorizando o número de uniões de facto, isto é, o número de mulheres havidas de união de facto. Para quem conhece o
contexto rural santiaguense é fácil reconhecer o estatuto diminuído da mãe “solteira” ou mesmo solteira e o prestígio que
advêm do facto de um homem ter várias mulheres. Para um homem mais velho declarar-se casado é prestigiante e, em idades
avançadas, o casamento é uma excelente estratégia de solidificação da união com uma mulher cabo-verdiana do meio rural.

3.6. Conclusão
Ao longo deste capítulo, os dados empíricos expostos pretenderam demonstrar a relação entre o enquadramento
ecológico e a capacidade dos camponeses mobilizarem espaço de manobra para a reprodução social. Nesta relação é possível
evidenciar implicações na estruturação social camponesa quanto ao padrão da residência (patrilocal) e da mobilidade
geográfica do agregado familiar. A mobilidade residencial surge aqui como factor crucial na capacidade adaptativa e de auto-
organização do agregado familiar e da fundação da localidade e mantém laços estruturais com a principal estratégia da
subsistência familiar e que consiste em assegurar a alimentação. A “plasticidade” (mutabilidade e não necessariamente
variedade) da residência, da família e da alimentação dos rurais santiaguenses constitui o elemento chave na capacidade que
os agregados familiares mantêm, de modo a ajustar os limites da sua subsistência às condições produzidas pelo “entorno” ou
ambiente.
Neste sentido podemos falar de adaptabilidade quando o que está em questão é a capacidade de uma estruturação
social responder ás condições (constrangimentos) externas ou ambientais (auto) determinando-se. A matrifocalidade não
surge como traço típico de um padrão cultural ou como um resíduo de um comportamento padronizado mas como capacidade
de adaptabilização ou capacidade de produção de si mesmo ou o modo de manter alguma constância e estabilidade perante
condições externas que suscitam distúrbios profundos. A matrifocalidade constitui o elemento compensatório que não
necessariamente repara, mas que capacita a subsistência num contexto de recursos mínimos. A família é estável porque é
capaz de se modificar e esta capacidade é condição necessária para a família se manter nos seus próprios termos. Do mesmo
modo, a mobilidade residencial constitui o elemento compensatório para a manutenção do vínculo que o agregado familiar
tem que manter na sua relação com o ambiente e na produção das subsistências.

60
Cabo Verde, Situação Demográfica, Direcção Geral de Estatísticas Demográficas e Sociais – DGE, Julho de 1995.
61
Ibidem, p. 14.
62
Ibidem, p.20.
63
Trata-se de uma superstição muito comum no meio rural relativamente ao 1 de Agosto.
64
Ibidem, p.14.
65
Cabo Verde, Inquérito Demográfico e Saúde Reprodutiva – Cabo Verde 1998, Instituto Nacional de Estatística, Março, 2000.
66
Ibidem, pp. 74-75.

311
A violência doméstica contra crianças e adolescentes e o trabalho com as famílias
no Brasil
Chris Giselle Pegas Pereira da Silva Chris Giselle
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
[email protected]

Resumo: O Conselho Tutelar foi instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei Federal Brasileira n° 8069. Esse órgão é
responsável pela aplicação de medidas protetivas em caso de ameaça ou violação dos direitos infanto-juvenis. Através da análise qualitativa
do levantamento de dados referente aos atendimentos realizados em 2007, no Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca no Rio de
Janeiro, constata-se que ainda há muito que se avançar para efetivação desses direitos, principalmente no que se refere às políticas públicas
nessa área. De acordo com o resultado do levantamento, a maior demanda atendida refere-se à violência doméstica perpetrada contra crianças
e adolescentes e esse tipo de violência pode gerar consequências como mudanças de comportamento, evasão escolar, envolvimento com o
tráfico entre outras. Essa realidade se insere em um contexto de violência intrafamiliar a nível nacional e internacional. Diante do exposto,
esse artigo se propõe a sinalizar a importância das políticas públicas que têm como proposta realizar um trabalho efetivo com a família a fim
de romper com o ciclo da violência doméstica. Dentro dessa perspectiva, é tematizado, inicialmente, um breve histórico do Estatuto da
Criança e do Adolescente e a instituição do Conselho Tutelar no Brasil. Posteriormente, são apresentados os conceitos das diferentes formas
de violência doméstica contra crianças e adolescentes abordados pela literatura. Para enfim, ressaltar a política pública nacional que visa à
transformação da realidade da violência doméstica em busca da garantia efetiva dos direitos infanto-juvenis.

Introdução
O Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal n°8069 estabelece a concepção da criança e do adolescente
como sujeitos de direitos e institui o Conselho Tutelar como órgão encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento
desses direitos. Esse órgão não é executor de políticas públicas, mas sim aplica medidas protetivas na forma de
encaminhamentos para rede de atendimento que visem o rompimento da violação de direitos.
Considerando essa perspectiva, foi realizado um levantamento e análise de dados no âmbito do Conselho Tutelar de
Jacarepaguá e Barra da Tijuca no Rio de Janeiro – Brasil que demonstrou que a violência doméstica perpetrada contra
crianças e adolescentes é uma das principais demandas atendidas, enquanto violação de direitos infanto-juvenis, e que essa
realidade se insere em um contexto nacional e internacional de violência.

1. Breve Histórico do Estatuto da Criança e do Adolescente e a instituição dos Conselhos Tutelares


Tendo como base o referencial legislativo, Andrade (2000) afirma que o Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA rompe definitivamente com a doutrina da situação irregular, até então admitida pelas Leis n°4513 de 1964 e n° 6697 de
1979 (Código de Menores), que ficaram revogadas. Esse Estatuto estabelece, como diretriz básica e única, a doutrina de
proteção integral como princípio ordenador das políticas públicas para infância e adolescência. Assim, eram deixados para
trás os momentos nos quais o direito infanto-juvenil era marcado pela execução de normas e diretrizes repressivas e
discriminatórias (1927-1973) e o período que se caracterizou por uma política nacional baseada pela proteção e amparo
paternalistas (1973-1989). Mendes (2006) destaca que a conquista histórica dos direitos das crianças e dos adolescentes na
década de 1980 foi influenciada pela redemocratização do país e pela mobilização da sociedade civil.
O Estatuto derrubou as concepções anteriores para adentrar ao momento histórico no qual se funda a concepção da
criança e do adolescente como sujeitos de direitos, isto é, cidadãos passíveis de proteção integral com absoluta prioridade no
que se refere à efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Com o propósito de caminhar na
perspectiva da garantia desses direitos que os Conselhos Tutelares foram instituídos pelo art. 131 do ECA. Esses órgãos são
permanentes, autônomos, não jurisdicionais e são responsáveis pela aplicação de medidas protetivas em caso de ameaça ou
violação de direitos de crianças e adolescentes (artigos 98, 101, 105 e 129 do ECA). São compostos por cinco conselheiros
tutelares escolhidos pela sociedade para um mandato de três anos.
Segundo o art. 136 do ECA, são atribuições do Conselho Tutelar:
“I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no
art. 101, I a VII;II - atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII;III -
promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação,
serviço social, previdência, trabalho e segurança;b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento
injustificado de suas deliberações.IV - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa
ou penal contra os direitos da criança ou adolescente; V - encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência; VI
- providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente
autor de ato infracional; VII - expedir notificações;VIII - requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou
adolescente quando necessário; IX - assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e

312
programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; X - representar, em nome da pessoa e da família, contra a
violação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição Federal; XI - representar ao Ministério Público,
para efeito das ações de perda ou suspensão do pátrio poder”. (Brasil, 1990).
Apesar das atribuições do Conselho Tutelar serem definidas no ECA, há inúmeras situações de equívocos nos
atendimentos desse órgão, conforme Souza (2007) é tão grande a falta de conhecimento das atribuições dos Conselhos
Tutelares que, em muitas situações, a criança ou o adolescente vítima, ao invés de ser encaminhado aos programas ou
serviços adequados ( e por isso é necessário que exista uma rede de atendimento) é encaminhado(a) para o Conselho Tutelar,
como se este fosse lhe prestar o devido atendimento especializado naquele momento (cuidados médicos, psicológicos, de
segurança, de apoio e etc.) Souza (2007) acrescenta que tal prática em determinados casos podem agravar o trauma já
existente na vítima provocando a sua revitimização.
Nesse sentido, Seda (1995) acrescenta que:
“o Conselho Tutelar não é pronto-socorro. Se alguém está batendo em alguém, há a necessidade de um pronto
socorro de segurança pública (e não de um conselheiro que vá de madrugada brigar com o agressor); se alguém já bateu em
alguém que está ferido, o que se necessita é de um pronto socorro médico (e não de um conselheiro que vá, solidariamente,
chorar o braço quebrado da vítima); se alguém está desvalido (perdido, abandonado, desprotegido), essa pessoa precisa de um
pronto socorro social (abrigo). Muitos municípios criam Conselhos Tutelares para fazer esse trabalho de pronto socorro. Não
é essa sua função. Sua função é intervir depois que o pronto socorro cumpre sua tarefa, ou quando o pronto socorro ameaça
ou viola direitos. Em muitos casos, o conselheiro se transforma em transportador de pessoas para delegacias, prontos-
socorros, abrigos ou para (!) sua própria casa (que, de residência privada, se transforma em abrigo público). Cada município
deve organizar as formas (os programas) para socorrer crianças e adolescentes que necessitem de proteção policial, médica e
social. E criar um Conselho Tutelar, cuja incumbência é corrigir os desvios desses serviços.” (pp.179-180)
Conforme o artigo 5° do ECA : “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,
aos seus direitos fundamentais”. Sendo assim, o Conselho Tutelar, deve aplicar as medidas protetivas através de
encaminhamentos para a rede de atendimento e realizar o acompanhamento sistemático à família em casos, por exemplo, de
violência doméstica contra crianças e adolescentes.

2. A violência doméstica contra crianças e adolescentes


A violência doméstica contra crianças e adolescentes é “todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou
responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima –
implica, de um lado, numa transgressão de poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto
é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento”(Guerra,2001). Portanto, a violência doméstica pode se apresentar em diferentes formas como a
negligência, a violência física, a violência psicológica, a violência sexual.

2.1. Definições
Dadas as enormes divergências de conceituação serão tomadas como referência as definições adotadas pelo
National Information Cleringhouse (NIC), organismo americano ao qual o governo americano atribui a função de formular os
parâmetros técnicos e jurídicos de intervenção e está entre os organismos pioneiros no trato da violência contra criança em
todo o mundo (Gonçalves, 2003). Além disso, serão utilizados também os conceitos que complementam as informações do
NIC referentes às diferentes formas de violência doméstica abordados pela literatura brasileira.
Negligência
Segundo o National Information Clearinghouse,
“A negligência se caracteriza pelo fracasso em prover as necessidades básicas da criança. A negligência pode ser
física, educacional ou emocional. A negligência física inclui recusa ou postergação na busca dos cuidados de saúde,
abandono, expulsão do lar, e supervisão inadequada. A negligência educacional inclui a permissão de vadiagem crônica,
fracasso em matricular na escola a criança em idade de ensino obrigatório, e fracasso em atender a uma necessidade
educacional específica. A negligência emocional inclui ações de desatenção acentuada para as necessidades afetivas da
criança, a recusa e o fracasso em prover os necessários cuidados psicológicos, abuso contra a mulher na presença da criança,
e a permissão do uso de drogas ou álcool pela criança” (NIC, 2000 apud Gonçalves, 2003).
Azevedo e Guerra (1989) reafirmam esse conceito, mostrando que a negligência representa uma omissão em termos
de prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. Configurando-se quando os pais (ou
responsáveis) falham em termos de prover as necessidades físicas de saúde, educacionais, higiênicas de seus filhos e/ou
supervisionar suas atividades de modo a prevenir riscos e quando tal falha não é o resultado das condições de vida além do
seu controle.
Violência Psicológica
A violência psicológica é a violência que humilha, rejeita, fere moralmente a criança ou adolescente. Envolve a
indiferença e a rejeição afetiva. Exemplos: “Você é um burro!”, “Você é um inferno em minha vida!”, “Eu ainda vou te

313
matar!”. Assim como colocar a criança de castigo em um quarto escuro ou amedrontá-la de outras formas. Estas frases e
atitudes causam danos que prejudicam o desenvolvimento psicológico e social da criança (Azevedo e Guerra,1989).
De acordo com o National Information Clearinghouse,
“O abuso emocional inclui atos ou omissões pelos pais ou responsáveis que causaram, ou podem causar, sérios
danos comportamentais, cognitivos, emocionais ou mentais. Em alguns casos de abuso emocional, atos isolados de pais ou
responsáveis, sem nenhum dano evidente no comportamento ou na condição de criança, são suficientes para garantir a
intervenção dos serviços de proteção à criança” (NIC, 2000 apud Gonçalves, 2003).
Violência física
A violência física corresponde ao emprego da força física no processo disciplinador de uma criança ou adolescente
por parte de seus pais ou responsáveis. Os estudos científicos mais recentes vêm enfatizando com veemência que toda ação
que causa dor física numa criança ou adolescente, desde um simples tapa até o espancamento fatal, representam um só
continuum de violência (Azevedo e Guerra,1989).
Conforme o National Information Clearinghouse,
“O abuso físico se caracteriza pela produção de injúria física como resultado de socar, bater, chutar, morder,
queimar, sacudir ou outras formas de ferir a criança. Os pais ou responsáveis podem não ter tido a intenção de machucar a
criança; na verdade, o dano pode ser resultante de excessos disciplinares ou punição física” (NIC, 2000 apud Gonçalves,
2003).
Existe certa unanimidade quanto à presença de consequências psicológicas associadas à violência física; elas falam
de comportamentos autodestrutivos, envolvimento em conflitos de rua, uso de substâncias tóxicas as mais variadas e maior
exposição ao abuso sexual (Nelson et al, 1995).
Violência sexual
A violência sexual é todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, entre um ou mais adultos (com
relação de parentesco e/ou de responsabilidade legal) e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular
sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra
pessoa. (Azevedo e Guerra,1989)
Segundo o National Information Clearinghouse,
“O abuso sexual inclui a manipulação dos genitais da criança, o intercurso sexual, o incesto, o estupro, a sodomia,
o exibicionismo, e a exploração comercial na prostituição ou através da produção de material pornográfico. Muitos
especialistas acreditam que o abuso sexual é a forma mais subnotificada de maus tratos contra criança, por causa do segredo
ou da conspiração do silêncio que normalmente caracteriza esses casos”. (NIC, 2000 apud Gonçalves, 2003).

3. Violência doméstica e o Conselho Tutelar de Jacarepaguá no Rio de Janeiro: dados quantitativos e qualitativos.
O Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca no Município do Rio de Janeiro – Brasil atua na área
programática da Coordenadoria de Assistência Social – CAS 7, que, conforme dados pesquisados no site do IBGE, relativos
ao CENSO 2000, trata-se de uma área muito extensa, na qual se concentra uma população de mais de 180 mil habitantes
menores de 19 anos de idade. Esse Conselho Tutelar é composto por cinco conselheiros, quatro funcionários administrativos
e a equipe técnica composta por três assistentes sociais e uma psicóloga.
O Conselho Tutelar supracitado atende a 20 bairros, a uma área de extensão de 350 mil hectares, funciona em
Jacarepaguá, na sede da Colônia Juliano Moreira, que é complexo de atendimento na área da Saúde Mental, localizado na
Estrada Rodrigues Caldas, 3400, sala: 204. É um local de difícil acesso à população e conta com três linhas de ônibus e duas
linhas de transporte alternativo. No ano de 2007, até agosto, foram atendidos um total de 2.444 casos; dentre estes 905 casos
novos. Cabe ressaltar a complexidade da demanda atendida, tais como: Violência Física, Violência Sexual, Violência
Psicológica, Negligência, Exploração do Trabalho Infantil, Exploração Sexual, criança / adolescente em situação de rua,
conflitos familiares, etc.
A violência doméstica contra crianças e adolescentes é a principal demanda atendida no Conselho Tutelar de
Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Com o objetivo de conhecer de forma quantitativa essa demanda, analisou-se 280
atendimentos realizados por uma das assistentes sociais desse Conselho, durante todo o ano de 2007. Utilizaram-se as
informações obtidas nos atendimentos sociais às famílias que foram registradas em fichas de atendimento da equipe técnica e
inseridas nos procedimentos. Nesse estudo, foi considerado o primeiro atendimento social.
Sendo assim, de acordo com na figura1 a seguir, podemos perceber que o principal tipo de violência doméstica
abordada é o abuso físico que corresponde a 22% do total de atendimentos, seguido pela negligência com 18%. Nas
entrevistas, observa-se que a violência física é justificada como forma de impor limites às crianças e aos adolescentes e que
essa violência é transgeracional no sentido que os pais agridem os filhos porque dizem ter recebido esse tipo de educação e
“sobreviveram”. Mas o contexto histórico e social entre as gerações é diferente e certamente a violência não favorece o
respeito aos pais e ainda gera uma série de consequências. Além disso, a inserção crescente da mulher1 no mercado de

1
Ressaltando que tanto o pai quanto a mãe tem a responsabilidade legal com relação aos seus filhos, segundo o artigo 21 do ECA, mas atualmente um grande
número de mulheres são provedoras do lar.

314
trabalho, o número insuficiente de creches, a ausência de unidades escolares em tempo integral, os baixos salários
(impossibilidade de pagar creches e atividades extracurriculares para seus filhos, deixando os infantes sozinhos em casa), a
precarização do trabalho (há pais que trabalham de dois a três turnos) também contribuem para a questão da negligência.

Demandas atendidas

4% abuso físico
9%
24% negligência
10% abuso psicológico

suposto abuso sexual


10% Informações sobre
17% guarda
abrigamento
12% precária situação sócio-
14%
econômica
sem documentação

Figura1: Principais demandas atendidas por uma das assistentes sociais do Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca durante o ano de 2007

Apesar da peculiaridade do abuso físico ser mais frequente do que a negligência no âmbito de abrangência do
Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, esses dados se projetam em um contexto macro de violência. Conforme
mostra a tabela 2, na pesquisa nacional realizada sobre a violência doméstica notificada nos últimos 11 anos, a negligência é
a principal forma de violência doméstica (41,1%) seguida pela violência física (31,0%).

Violência Doméstica Notificada


no Brasil de 1996 à 2007
Violência física

31% Violência
41% sexual
Violência
11% psicológica
17% negligência

Figura 2 - Quadro Síntese de Violência Doméstica Notificada - Fonte: LACRI/IP/USP

Na figura 3, verificamos os possíveis desdobramentos das violências constatadas onde a principal consequência
seria a evasão escolar com 35% seguido pela situação de rua com 20%. Mostrando a importância de uma ação preventiva, em
conjunto, com as unidades escolares, uma vez que a violência contra crianças e adolescentes no âmbito familiar pode
propiciar a evasão escolar e motivar a situação de rua entre outras consequências. Nas entrevistas com essas crianças e
adolescentes, observa-se as fragilidade do vínculo familiar, a ausência do afeto e da preocupação por parte dos pais. Já os
genitores justificam essa ausência através da falta de tempo de cuidar dos filhos porque trabalham e dizem que, após a
jornada de trabalho, chegam em casa cansados e estressados para dar atenção aos infantes. Em alguns atendimentos, foi
possível observar que os pais desconheciam várias informações referentes a seus filhos como: série escolar, amigos,
diversões preferidas e até mesmo a idade. Se os pais não conhecem os filhos e os filhos não os reconhecem como pais, que
referência de educação eles terão? Esse é um grande desafio para a atualidade.

315
Possíveis conseqüências

evasão escolar
14%
situação de rua
34%
14%
comportamento
da cça/adol.
situação de risco
18% na comunidade
20% uso de drogas

Figura 3 – Possíveis consequências da violência doméstica

Nesse sentido, Silva (2007) sinaliza a importância da criação e do fortalecimento de serviços com o objetivo de
atender às famílias vítimas de violência doméstica, tanto na elaboração do diagnóstico, que subsidiará a responsabilização do
agressor, quanto no atendimento terapêutico “pós trauma” em prol do respeito à trajetória de intervenção proposta pelo ECA
e, consequentemente, à efetivação dos direitos da criança e do adolescente. Além da relevância do trabalho de prevenção
com as famílias para evitar as referidas consequências.
Com relação ao perfil das crianças/adolescentes atendidos, observa-se nas figuras 4, 5 e 6, que predomina o sexo
masculino e que a violência doméstica perpassa por crianças e adolescentes, sendo mais frequente na faixa etária de 7 à 12
anos incompletos e na escolaridade de primeira à quarta série do ensino fundamental das escolas municipais. As crianças
dessa faixa etária estão cada vez mais cedo tendo acesso a informações e se julgam capazes de responder por seus atos, não
obedecendo nem respeitando os pais. Nas entrevistas com os genitores dessas crianças, percebe-se que os conflitos da pré-
adolescência estão latentes e que o os pais tentam impor limites através da violência. Esses genitores procuram o Conselho
Tutelar em busca de uma “autoridade” que possa mostrar que os filhos devem respeitar os pais, que tem direitos segundo o
ECA, mas também tem deveres e que quando realizam atos ilícitos podem cumprir medidas sócio-educativas.
Esses dados convergem para realidade nacional e global, pois segundo o relatório Situação Mundial da Infância em
2007 do UNICEF, no mundo, 1,8 milhão de crianças são exploradas sexualmente por ano e 275 milhões de crianças são
vítimas de violência doméstica, entre abusos físicos e psicológicos. No relatório de 2000, consta que cerca de 18 mil
crianças, sobretudo entre os sete e catorze anos, sofrem maus-tratos físicos todos os meses no Brasil.

Sexo da criança ou adolescente

46% Sexo masculino


54% Sexo feminino

Figura 4 – Sexo da criança/adolescente

Idade

0 a 6 anos
29% 31%
7 a 12 anos
incompletos
12 a 18 anos
40%

Figura 5 – Idade das crianças/adolescentes

316
Escolaridade das crianças/
adolescentes

1° à 4° série
3%
19%
5° à 9° série
49%
creche/ pré-
29% escolar
Ensino Médio

Figura 6 – Escolaridade das crianças e adolescentes atendidos

Outro fator importante é a composição familiar, em que 57% das crianças e adolescentes residem com a mãe
conforme a figura 7. Destacando assim que a tradicional família nuclear (pai, mãe e filhos) sofre transformações e que esses
dados refletem a realidade brasileira, pois segundo o Censo 2000, as mães solteiras chefiam uma de cada três casas em
algumas cidades do Brasil. Essa nova configuração familiar precisa se tornar referência central nas políticas públicas de
intervenção, não se deve atribuir somente à família a responsabilidade pela educação dos infantes, pois esta também é um
dever do Estado. Principalmente, porque essas novas configurações estão inseridas em um contexto de uma grave crise
econômica no Brasil, onde há o aumento do desemprego, a flexibilização do trabalho, a desregulamentação dos direitos
sociais, o crescimento da pobreza. Sendo assim, Alencar (2006) destaca que há uma fragilidade da família para cumprir seu
papel no âmbito da reprodução social e que o Estado não deve simplesmente devolver para a família a responsabilidade dessa
reprodução, sobrecarregando-a com papéis que são responsabilidade do poder público.

Composição familiar

9% mãe
10% pai
14% casal
57%
outros
10%
abrigo

Figura 7 – Composição familiar

No que tange ao perfil sócio-econômico, constata-se na figura 8 que em 33 % dos casos a renda familiar é
proveniente do trabalho informal, que 19% dos responsáveis pelas crianças/ adolescentes trabalham formalmente, que 12%
não trabalham e têm como renda: pensão alimentícia, doações, são dependentes de companheiro(a)s ou parentes. 10%
trabalham informalmente e recebem o beneficio do Programa Bolsa Família, 7% recebem pensão ou aposentadoria, 6%
representam as pessoas que dizem realizar eventualmente “biscates”, tendo uma renda variável. 5% dos responsáveis
recebem Benefício de Prestação Continuada e 4% estão inseridos no mercado formal de trabalho e recebem o beneficio do
Programa Bolsa Família ou sobrevivem somente com esse benefício.
A inserção no mercado de trabalho informal é uma característica presente na reestruturação produtiva influenciada
pelos ideais neoliberais dos tempos contemporâneos. Essa reestruturação “visa privatizar empresas estatais, tercerizar, demitir
trabalhadores e aumentar a produtividade em 100%” (Mota, 1998:35). Os trabalhadores excluídos do emprego formal estão
sujeitos ao trabalho desprotegido através da subtração de direitos sociais e trabalhistas. Segundo o IBGE, em 2006, mais da
metade da população ocupada (49,1 milhões de pessoas) continuava formada por trabalhadores sem carteira assinada O
aumento das atividades no setor informal e a precarização do trabalho se mostram como alternativa ao desemprego e/ou
complementação da renda familiar e afetam a inserção nas classes sociais.

317
Perfil sócio-econômico dos reponsáveis
trabalho informal

formal

4% não trabalha
4%
5% trabalho informal +
33% bolsa família
6%
pensão/
7% aposentadoria
"biscate"

10% BPC

12% 19% formal + bolsa


família
bolsa família

Figura 8 – Perfil sócio-econômico das famílias atendidas pela assistente social

Conforme o IBGE, as classes sociais no Brasil estão definidas como: Classe A: acima de 30 salários mínimos,
Classe B: de 15 a 30 s.m.; Classe C: de 6 a 15 s.m. ; Classe D: de 2 a 6 s.m.; Classe E: até 2 s.m. O salário mínimo
correspondia à R$ 380,00, em 2007, quando esse levantamento de dados foi realizado.
Baseando-se nesses parâmetros observa-se na figura 9 que 51% das pessoas atendidas estão inseridas na Classe
Social E, 25% não possuem renda fixa (relatam que realizam eventualmente “biscates”), 14% das pessoas possuem renda
variável, ou seja, dependem da quantidade de horas que vendem suas forças de trabalho. Já 6 % das famílias enquadram-se na
Classe D e 4% pertencem à Classe B. As classes A e C não foram encontradas nessa pesquisa.
É importante ressaltar que esse levantamento de dados é referente aos atendimentos realizados pela assistente social
no âmbito do Conselho tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Sendo assim, apesar da maior parte dos atendimentos se
referirem à classe E, isso não significa que a violência doméstica contra crianças e adolescentes seja uma característica dessas
classes. Esse tipo de violência perpassa por todas as classes sociais que encontram nessa forma de educar um forte mote na
construção de um do relacionamento intrafamiliar. Esse relacionamento geralmente é silenciado, mantido em segredo e
promove um isolamento social e com os demais familiares caracterizando a violência doméstica como algo pertencente ao
privado e, consequentemente, retirando seu caráter público, principalmente nas classes mais altas.

Renda familiar
até dois salários
4%
mínimos
6% não tem renda fixa
14%
renda variável
51%

de 2s.m. à 6 s.m.
25%
de 15 s.m. à 30
s.m.
Figura 9 – Renda Familiar

Quando uma criança ou um adolescente vítima de violência doméstica é atendido no Conselho Tutelar de
Jacarepaguá e Barra da Tijuca, há várias medidas protetivas que podem ser aplicadas pelo conselheiro tutelar. Uma delas é o
acompanhamento sistemático, o termo de responsabilidade e o termo de advertência aos pais. Outra medida é o abrigamento
em caso provisório e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, conforme
preconiza o artigo n°101 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Além disso, pode se inserir o infante no Programa Família
Acolhedora que tem por objetivo garantir à criança e/ou adolescente a convivência familiar e o atendimento personalizado de
acordo com o ECA. Esse programa pode representar uma possibilidade de construir um novo planejamento de vida e apoio
familiar a partir do trabalho interdisciplinar desenvolvido com a família de origem. Mas, na prática, essas duas últimas
medidas protetivas são evitadas, pois quando a criança é retirada do contexto familiar e inserida em uma instituição ou no
referido Programa, os vínculos familiares que já estão fragilizados podem se romper e assim certamente será mais difícil o
retorno para a família de origem. Por isso, se faz necessário um trabalho interdisciplinar em “lócus” com essas famílias,
evitando assim, a ruptura dos laços familiares. Além disso, esse trabalho deve ser integrado a uma rede de serviços que
garantam os direitos básicos dos componentes da estrutura familiar.
Antes de descobrimos nesse trabalho se há alguma política pública nacional que trabalhe a questão da violência
doméstica contra crianças e adolescentes, cabe destacar como o Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca em
conjunto com os equipamentos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e a rede de serviço local estão enfrentando esse tipo
de violência.

318
3.1. Estratégias encontradas pelo Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca para minimizar a violência
doméstica
O Conselho Tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca criou estratégias através da articulação com a rede de serviços
disponíveis a fim de desenvolver um trabalho intersetorial. Em 2007, esse trabalho foi realizado através de reuniões de estudo
de casos, semanalmente, com instituições como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), 7° Coordenadoria
de Assistência Social (CAS), unidades escolares, abrigos, Organizações Não-Governamentais (ONG’s), etc. Cada instituição
manteve contato com o Conselho solicitando o estudo dos casos que estivessem sendo atendidos em conjunto e agendavam
uma reunião no dia do CRAS de referência da localidade dos referidos casos. Nessas reuniões, eram discutidos os casos que
eram atendidos em conjunto com rede de serviços na perspectiva de entrelaçar informações que contribuíssem para a
efetividade da garantia dos direitos infanto-juvenis. Essas reuniões se mantiveram até o final de 2007, quando por motivos
internos do Conselho Tutelar, não foi possível dar continuidade a esse trabalho
Essa experiência propiciou uma ação integrada da rede de serviços à família vítima de violência fazendo com que,
como diz Sodré (2001), o sujeito passe a ser compreendido e a se sentir como fazendo parte de uma cadeia cada vez maior de
relações e informações que permitam transformações, não só no espaço pessoal e familiar, mas também no contexto social.
Ressaltando também que o trabalho com famílias em situação de violência pressupõe o valor multidisciplinariedade,
conjugando, prioritariamente, ações de diferentes disciplinas (Serviço Social, Psicologia, Direito, etc) em prol de uma visão
mais completa da situação apresentada. A cooperação atrelada a uma finalidade comum configura um trabalho integrado
onde se conta com a disponibilidade dos profissionais de se articularem.
Apesar da integração com a rede, há muitos desafios que precisam ser transpostos. A dificuldade de rompimento da
violência doméstica perpetrada contra crianças e adolescentes é um desses desafios. Alguns casos discutidos nas reuniões
tiveram prognóstico favorável através do acompanhamento integrado das instituições (posto de saúde, abrigo, CRAS entre
outras) e conseguiram se desligar desses equipamentos. Já outras famílias necessitavam de um atendimento especializado, de
um acompanhamento mais concreto e por isso a importância das políticas públicas que promovam esse atendimento.

4. A violência doméstica e a política pública no Brasil


Segundo Taveira (2007), faz-se urgente uma discussão para que as políticas públicas tornam-se abrangentes e
universais, através de um trabalho permanente de conscientização acerca dos direitos infanto-juvenis para o imaginário
social, repleto de velhos preconceitos e comportamentos arraigados, não se cristalize impedindo uma ação positiva de
enfrentamento à violência.
Os cidadãos e famílias em situação de risco pessoal e social por ocorrência de negligência, abandono, ameaças,
maus tratos, violações físicas e psíquicas, discriminações sociais e infringência aos direitos humanos e sociais, ou seja,
particularmente no que tange a crianças e adolescentes, quando há violação do artigo 4° e 5° do Estatuto da Criança e do
Adolescente, têm assegurados os serviços de proteção especial pela Política Nacional de Assistência Social
A Política Nacional de Assistência Social – PNAS, aprovada pela Resolução n°145, de 15 de outubro de 2004 visa
incorporar as demandas presentes na sociedade no que se refere a responsabilidade política na busca pela efetivação da
assistência social como direito de cidadania e responsabilidade do Estado. Ressaltando que essa política refere-se à
importância da “matricialidade sociofamiliar” e argumenta que a rede socioassistencial deve estar voltada para atender às
necessidades da família, seus membros e indivíduos e é organizada por tipo de proteção - básica e especial, conforme a
natureza da proteção social e por níveis de complexidade do atendimento (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome/ Secretaria de Assistência Social, 2004).
Na perspectiva de promover maior efetividade das ações dessa Política, aumentando sua cobertura, que configurou-
se o Sistema Único da Assistência Social – SUAS. No SUAS, os serviços, programas, projetos e benefícios da assistência
social são reorganizados por níveis de proteção, na Proteção Social Básica (voltada à prevenção de situações de riscos
pessoal e social, fortalecendo a potencialidade das famílias e dos indivíduos) e Proteção Social Especial (voltada à proteção
de famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social), tendo por base o território, de acordo com sua complexidade,
respeitada a diversidade regional e local.
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, como integrante do Sistema Único de
Assistência Social, deve se constituir como pólo de referência, coordenador e articulador da proteção social especial de média
complexidade, sendo responsável pela oferta de orientação e apoio especializados e continuados de assistência social a
indivíduos e famílias com seus direitos violados, mas sem rompimento de vínculos.
O CREAS deve ofertar atenções na ocorrência de situações de risco pessoal e social por ocorrência de negligência,
abandono, ameaças, maus tratos, violência física/psicológica/sexual, discriminações sociais e restrições a plena vida com
autonomia e exercício de capacidades, prestando atendimento prioritário a crianças, adolescentes vítimas de abuso e
exploração sexual; vítimas de violência doméstica (violência física, psicológica, sexual, negligência); e suas famílias. Sendo
assim, esse equipamento pode se tornar um grande aliado do Conselho Tutelar e de outros órgãos de defesa de direitos da
criança e adolescente em prol da prevenção e superação da violência doméstica e o regate da cidadania.
Na perspectiva da efetivação dos referidos CREAS, Taveira (2007) afirma que os direitos infanto-juvenis não
passam a ser concretizados apenas pela imposição de uma legislação ou de uma resolução, existindo a necessidade de o

319
Estado assumir o compromisso de representação dos cidadãos, com as correspondentes atribuições de deliberar políticas
públicas integradas e se responsabilizar também pelos meios, principalmente recursos orçamentários, para sua efetivação. É
necessário que haja investimento nos programas intersetoriais de atenção integral, a fim de prevenir situações de risco e
garantir, realmente, os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Além disso, é necessária a mobilização da
sociedade em prol do controle e fiscalização das políticas públicas.

5. Considerações finais
Ao estudar a literatura referente aos Conselhos Tutelares, observa-se ter ocorrido um amadurecimento significativo
da análise sobre as atribuições desses órgãos, seja do ponto de vista legal, seja na atuação institucional, principalmente
conforme Souza (2007) e Seda (1995). Esses autores têm uma produção de conhecimento que contribuiu para o
entendimento das atribuições dos Conselhos Tutelares, não como órgãos executores para solucionar “emergências” na área
infanto-juvenil, mas sim como órgãos de garantia do acesso de crianças e adolescentes à proteção contra violação de seus
direitos, proteção concebida como direito de cidadania.
No que se refere à violência doméstica contra crianças e adolescentes, constatamos que há sim uma política pública
nacional que busca realizar trabalho com famílias: a Política Nacional de Assistência Social que estabelece a criação do
Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Essa Política está em implantação em vários
municípios. No Município do Rio de Janeiro, por exemplo, há sete desses centros de referência (CREAS Maria Lina de
Castro Lima, CREAS Arlindo Rodrigues, CREAS Nelson Carneiro, CREAS Stella Maris, CREAS Dina Sfat, CREAS
Aldaíza Sposati, CREAS Padre Guilherme Decaminada).
Diante do levantamento de dados analisado nesse trabalho, observa-se que a violência doméstica está inserida no
contexto das novas configurações da questão social (a mãe como provedora do lar, o crescimento do mercado informal, os
baixos salários, a precarização do trabalho, entre outros). Por isso, as políticas públicas não devem ser focalizadas e
segmentadas, devem sim reconhecer as novas determinações das desigualdades sociais, proporcionando a garantia efetiva dos
direitos não só de crianças e adolescentes, mas de toda a sociedade.

6. Referências
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M.A. SALES & M.C. LEAL (orgs), Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, (pp. 61-
81).
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Azevedo, M. A. (1985). Mulheres Espancadas: A violência Denunciada. São Paulo: Cortez & Associados.
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Gonçalves, H. S. (2003). Infância e violência no Brasil. Rio de Janeiro: NAU Editora – FAPERJ.
Guerra, V. N. A. (2001). Violência de Pais Contra Filhos: a tragédia revisitada. 4. ed. Revista e ampliada. São Paulo:
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000. Rio de Janeiro: IBGE.
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/ Secretaria de Assistência Social (2004). Política Nacional
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MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/ Secretaria de Assistência Social (2004). Centro de
Referência Especializado de Assistência Social – CREAS - guia de orientação. http://
www.mds.gov.br/suas/publicacoes/GUIA_CREAS.pdf (consultado na Internet em 21 de Janeiro de 2008).
Mendes, A. G. & Matos, M. C. (2006) Uma agenda para os conselhos tutelares. In M.A. SALES & M.C. LEAL (org.),
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Seda, E. (1995). A Proteção Integral: Um Relato sobre o Cumprimento do Novo Direito da Criança e do Adolescente na
América Latina. São Paulo: Ed. Adês.
Sodré Teixeira, S. B. (2001). Reflexões sobre famílias em situação de violência: é possível ajudá-las? In O Social em questão
n°6, Ano V, Rio de Janeiro: PUC-RIO.
Souza, G. L. B. de. (2007). Conselho tutelar: desafios no entendimento, desafios no atendimento. In Oliveira, A. C. (org.),
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Assessoria em Educação, (pp. 39-54).
Silva, C.G.P.P., Brandão, A.C.M., Souza, A. L., & Santos, A. V. dos (2007). O fenômeno da violência doméstica perpetrada
contra crianças e adolescentes e a atuação do conselho tutelar de Jacarepaguá e Barra da Tijuca no Rio de Janeiro. In Anais
do XII Congresso Brasileiro de Serviço Social e IV Encontro Nacional de Serviço Social e Seguridade, 2001, Foz do Iguaçu:
Centro de Convenções do Hotel Rafain Palace.

320
Modos de vida, corpo e sexualidades

Momentos queer no contexto educacional: desafios na construção de


performances alternativas para os corpos
Luiz Paulo Moita Lopes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected]

Branca Falabella Fabricio


Universdiade Federald o Rio de Janeiro
[email protected]

Resumo: Se as sexualidades têm sido questionadas como verdades das quais não é possível escapar, uma das funções da educação
contemporânea deve ser apresentar performances alternativas para aquelas que muitos corpos foram levados a repetir continuamente, ou seja,
deve ser abrir nossos repertórios de sentidos para viver as sexualidades. Deste modo, a sexualidade é compreendida aqui como dinâmica e
fluida, o que implica que podemos construir objetos diferentes de desejo em momentos diferentes da vida ou em práticas discursivas
diferentes: podemos performar sociabilidades sexuais diferentes. Isso coloca uma indagação para qualquer performance de gênero e
sexualidade construída como clara, homogênea e sem ambiguidade. Com base em teorias queer, este trabalho focaliza pesquisa no contexto
educacional em que letramentos queer estão sendo implementados. O objetivo da proposta é colaborar na construção de outros sentidos sobre
quem podemos ser: um desafio ético, político e epistêmico ao qual a educação no mundo contemporâneo precisa responder. A pesquisa é de
cunho etnográfico-intervencionista e descreve pequenas desestabilizações queer em sala de aula, na qual alunos e alunas são convidado(a)s a
compreender a natureza performativa dos gêneros e das sexualidades ao analisarem performances de gêneros e sexualidades na mídia. Tal
empreendimento possibilita que aprendam a questionar o que é considerado normal, legítimo e correto para as performances sexuais.

“Que possibilidades políticas se constituem como consequência de uma crítica radical às categorias de identidade?”
(Butler, 1990: ix).

Introdução
Se as sexualidades, tradicionalmente concebidas como verdades das quais não é possível escapar, têm sido
questionadas, a educação contemporânea não pode deixar de problematizar as performances cristalizadas que muitos corpos
são levados a repetir continuamente. Tal problematização pode colaborar para abrir nossos repertórios de sentidos em
relação às sexualidades de modo a compreender que nossos corpos podem se envolver em múltiplas performances. Está
implícita nessa visão a compreensão de que a sexualidade é dinâmica e fluida, o que implica que podemos construir objetos
diferentes de desejo em fases diferentes da vida ou que, em práticas sócio-discursivas dissemelhantes, podemos nos envolver
em performances sexuais variadas. Esse posicionamento teórico coloca uma indagação para qualquer performance de gênero
e sexualidade construída como clara, homogênea e sem ambiguidade.
Ao relatar nossa pesquisa em contexto de letramento educacional com turmas de 5ª. série, em que criamos
“momentos queer” (Doty, 1993) ou pequenos momentos de desestabilização em relação aos gêneros e as sexualidades em
que esses são re-narrativizados, este trabalho tem o objetivo de mostrar a possibilidade de inaugurar novos sentidos sobre
quem podemos ser: desafio de natureza ética, epistêmica e política que reputamos como fundamentais de serem enfrentados
no mundo atual. A primeira parte situa a re-narrativização dos gêneros e das sexualidades nas práticas sociais
contemporâneas; a segunda discute a base teórica sobre gênero e sexualidade em que a investigação se assenta, apresentando
assim os princípios teóricos subjacentes à construção de momentos queer. A terceira apresenta, brevemente, o contexto e a
metodologia de pesquisa de natureza intervencionista-etnográfica-colaborativa em sala de aula em que tais “momentos
queer” são implementados; e a quarta analisa alguns “momentos queer” em que alunos(as) analisam performances de gêneros
e sexualidades na mídia, aprendendo a questionar o que é considerado normal, legítimo e correto para as performances
sexuais.

Praticas sociais e re-narrativização dos gênero e das sexualidades


Provavelmente, a questão dos gêneros e das sexualidades tenha se transformado em um dos grandes temas de
reflexão de nossos tempos, o que talvez possa ser explicado pelo fato de que as certezas que orientam nossa compreensão de
sentidos sobre a vida social terem sido, talvez como nenhuma outra, colocadas sob suspeita. Crenças sobre sua estabilidade e
homogeneidade têm caído continuamente por terra, por assim dizer, e temos sido levados, nas práticas sociais, a repensá-las
em outros termos, ou, pelo menos, temos sido convocados a refletir sobre elas – sobretudo acerca de explicações tradicionais
de natureza meramente biológica. Talvez não seja exagerado dizer que é raro o dia em que o tema dos gêneros e das
sexualidades não seja pautado pelos canais midiáticos no Brasil (assim como em outras partes do mundo). Produtores de

321
jornais, revistas, textos televisivos e hipertextos parecem compreender que este é um tópico sobre os quais as pessoas querem
conversar e, assim, agem como interlocutores que sabem sobre o que suas audiências querem falar, ouvir, ler e ver.
Assim, compreensões bem nítidas, delineadas e biologizantes das possibilidades para nossas performances
corpóreas convivem com visões que as questionam, levantando dúvidas sobre tal nitidez e chamando atenção para o caráter
ambíguo e incerto dos gêneros e das sexualidades. Se, por um lado, essa tendência não implica que no passado a vida
generificada e sexualizada era vivida necessariamente em formas bem marcadas nas quais todos tinham de se encaixar como
mulheres, homens, heterossexuais, homoeróticos etc.; por outro, a sociedade contemporânea hipersemiotizada – que
continuamente se auto-tematiza – tem ampliado horizontes discursivos sob os quais muitos vivem, possibilitando o
esmaecimento das fronteiras entre os gêneros e as sexualidades, ao apresentar questionamentos sobre elas.
Especificamente, em relação a performances homoeróticas, é possível dizer que tem aumentado consideravelmente
a presença de casais homoeróticos nas telas da TV, principalmente nas novelas brasileiras que são assistidas praticamente por
todas as classes sociais. As novelas são, no Brasil, o lugar onde o país se encontra, por assim dizer, constituindo tópicos de
conversa em inúmeras comunidades e contextos. É assim que muitos temas considerados tabus (como relações homoeróticas)
são trazidos para o centro de atenção à mesa do jantar, mostrando modos de viver a vida social e de expressar o desejo
sexual, que, tradicionalmente, eram verdadeiros esqueletos ocultados no armário. E mais ainda: frequentemente a mídia
apresenta narrativas que questionam modos bem cristalizados dessas mesmas performances ao mostrar, por exemplo, homens
casados, pais de família bem equilibrados – ou ainda mulheres femininas, delicadas e sensuais – no exercício de
performances homoeróticas. Tais retratos da vida social colaboram na descristalização de compreensões essencializadas e
naturalizadas sobre o que nossos corpos dizem-fazem ou podem dizer-fazer. Isso não significa que a mídia, por outro lado,
como parte crucial da vida social contemporânea, não apresente também visões essencializadas para nossas performances
corpóreo-discursivas, fazendo circular textos raivosos em relação às alternativas que se constituem cada vez mais como
possíveis de serem vividas ou experimentadas, inclusive apelando para discursos essencializados que demonizam tais
alternativas1.
Essas práticas sociais que desessencializam os gêneros e as sexualidades têm sido teorizadas por visões discursivas
que argumentam que esses são construídos com base nos discursos com os quais operamos. Ao passo que tais visões dão
conta de que nossas histórias de gênero e sexualidade são oriundas dos discursos a que fomos expostos e dos processos de
identificação que propiciam, elas possibilitam também entender que podemos nos re-descrever em outros discursos, que
tornam possíveis outras performances. Isso significa dizer que os significados com os quais operamos, inclusive aqueles
sobre quem somos, não são dados no mundo (ou seja, não existem antes do uso da linguagem), embora haja muito empenho
de forças macro sócio-históricas para que sejam compreendidos somente como pré-existindo ao uso da linguagem sem
colocar um lugar para a agência social e para a reconfiguração contínua de tais significados.
Esse posicionamento teórico, de fato, desafia muito da pesquisa no campo da linguagem (assim como em outros), a
qual, ao operar com paradigmas representacionistas da linguagem, que basicamente se pautam na idéia de que falamos como
homens porque somos homens, ou como mulheres porque somos mulheres (ou seja, a linguagem reflete o que somos), nos
leva a caminhar por compreensões teóricas diversas ao entender que a linguagem nos constrói. Ou seja, somos homens e
mulheres porque agimos corpórea e discursivamente como tais: o nosso dizer-fazer nos constrói assim (Pennycook, 2007:
71). Ao compreender nossas sociabilidades como projetos, performances, posicionamentos em práticas discursivas
específicas, essa visão entende que nossas sociabilidades podem se apresentar de um modo para, a seguir, se transformar em
outras performances. Entendendo os gêneros e as sexualidades como sendo feitos e re-feitos em performances, em uma
ambiguidade que lhes é constitutiva, essa teorização, queremos crer, tem ganhos éticos, políticos e epistêmicos que vamos
explorar aqui. São esses os objetivos dos momentos queer que enfocamos nas práticas de letramentos escolares.
A relevância ética e política de tal posicionamento teórico se prende à necessidade de que é fundamental
intensificar a luta pela democracia em todos os sentidos, ampliando as narrativas com as quais podemos nos engajar para
viver a experiência humana. Questionar narrativas aprisionadoras de quem podemos ser em nossas performances de gêneros
e de exercício do desejo sexual é uma forma de colaborar na abertura de nossos horizontes em relação a quem podemos ser
ao re-narrativizarmos nossas vidas sociais, culturais, afetivas e sexuais2. Tais re-narrativizações e suas explicações teóricas,
ao passo que possibilitam uma re-configuração de quem podemos ser ao ampliar nossas histórias de vida, questionando os
limites daquelas que nos contaram, permitem que nos defrontemos com nossos desejos, sofrimentos e medos que nos
cerceiam na vida privada (Couze, 2000) e pública, inaugurando perspectivas que transformem nossas culturas ou que criem
outras possibilidades para o futuro (Scott, 1999): um desafio que, ao prestigiar significados emergentes na vida social, ainda
que embrionários, a pesquisa precisa enfrentar (Santos, 2006).

1
Não seria este o motivo pelo qual, nas últimas eleições para prefeito (2008) de duas grandes cidades do Brasil (Rio e São Paulo) e de uma pequena (Juiz de
Fora), a possível bi/homossexualidade de alguns candidatos tenha sido usada pelos adversários, em propagandas políticas, para criticá-los? Não seria essa uma
reação raivosa sobre a quebra de fronteiras ao parecer questionar nossos tempos em que se pode aventar a possibilidade de votar em homens e mulheres
homoeróticos/bissexuais?
2
Não seriam as narrativas tradicionais de masculinidades muito exacerbadas e fechadas sobre o que os homens são e podem fazer-dizer em relação às mulheres
que continuam a conduzi-los à violência doméstica e crimes contra as mulheres que a mídia não cansa de mostrar? Como desafiar tais narrativas é um das tarefas
que temos que enfrentar em nossas práticas contemporâneas, notadamente, no campo da educação.

322
Teorias queer: gêneros e sexualidades como performances
Ainda que Judith Butler, em uma entrevista publicada em Radical Philosophy em 1994, tenha registrado sua
surpresa quando se viu colocada entre os teóricos queer, seu pensamento, que classifica como fundamentalmente feminista,
tem sido crucial na formulação do que se convencionou chamar de teorias queer. Sua teorização no livro Problemas de
Gênero (1990), assim como em outros que se seguiram em 1993, 1997, 2004, é central na formulação dos gêneros e das
sexualidades como performances, desconstruindo, radicalmente, visões essencialistas que os vêem como parte da biologia
dos corpos. Seu entendimento é que a ação na performance constitui o sujeito, sendo ele então um efeito de tal ação e não a
sua causa. Argumenta que é a ação que constitui o sujeito, não sendo ele, portanto, a expressão de uma essência inata
(Sullivan, 2003: 82 e 83).
Com base no pensamento de vários filósofos (Beauvoir, Foucault e Derrida, por exemplo), mas, principalmente, no
de John Austin (1962), em seu livro “How to do things with words”, que apresenta uma visão da linguagem como ação ou
performance produtora de efeitos semânticos, Butler constrói uma compreensão performativa dos gêneros e das sexualidades.
Entende que os gêneros e as sexualidades não são reflexos de uma identidade inata, mas “são [,ao contrário,] performativos
no sentido de que a essência ou a identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e meios discursivos. A idéia de que o corpo generificado/gendrado é performativo sugere que ele não tem nenhum
status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade” (Butler, 1990: 136).
São as repetições contínuas desses atos, performativamente e de acordo com certas regras rígidas específicas, que
produzem efeitos de sentido determinados, acabando por produzir uma aparência de substância para o que é, de fato, feito no
aqui e no agora na performance (Butler, 1990). É esse processo que essencializa e naturaliza o gênero e a sexualidade.
Assim, nossas performances não são reflexos de uma essência de quem somos, que pré-existiria à performance, uma vez que
é na performance que o sentido de quem somos é construído ao passo que essa produz os efeitos do significado que descreve,
construindo um sentido de essência para o que é, na verdade, ficção - ou “ficção regulatória”, como diz Butler (1990: 141).
É, deste modo, que é possível dizer que quem somos não decorre de uma essência interior, mas do que fazemos na ação
(Pennycook, 2007: 70).
Essa visão do gênero e da sexualidade como performance possibilitou compreensões que viam as performances
simplesmente como atos determinados pela substituição contínua de máscaras, as quais, estando ao nosso dispor no guarda-
roupa, por assim dizer, permitiriam que ora nos dedicássemos à performance x ou y (um dia posso experimentar uma máscara
de homem; em um outro dia outra de mulher etc.). Essa visão reducionista pode ser facilmente criticada uma vez que não dá
conta do fato de que a teorização do gênero e da sexualidade como performance envolve a repetição contínua de atos que
produzem efeitos específicos de sentido, solidificados na cultura, e que, como tais, apagam a natureza fabricada dos gêneros e
das sexualidades.
Por outro lado, é necessário compreender que os construtos de performance e de performatividade (discutidos logo
abaixo) são iluminadores de outras narrativas sobre quem podemos ser, já que é na performance que outros sentidos podem
ser gerados. Tais construtos incluem a possibilidade de inaugurar outros significados para a vida social, desconstruindo e
transgredindo significados cristalizados e limitadores (Pennycook, 2007): uma compreensão essencial nesta pesquisa, tendo
em vista seu foco em provocar momentos queer. Dessa forma, a visão voluntarista da performance (você pode ser quem você
quer ser) deve ser evitada; contudo, a compreensão de que não se pode inaugurar performances inovadoras e somente
confirmar aquelas já sedimentadas deve ser deixada de lado, já que é aí que repousa a possibilidade de (re-)invenção e
transgressão da vida social (Pennycook, 2007). Essa posição envolve “compreender o porquê da identidade não ser nem
nunca radicalmente aberta nem inteiramente auto-criada (criada pelo sujeito), e, ainda, compreender o porquê e como
resistência e mudanças são possíveis” (Sullivan, 2003: 97).
Tal dimensão teórica é crucial e abarca a distinção entre o performativo e a performatividade. O performativo
explicita a repetição contínua de significados já dados sobre quem podemos ser, já a performatividade dá conta do fato de que
novos sentidos podem ser construídos na performance, incluindo a necessidade imperiosa de que um outro mundo é possível
uma vez que, como as performances são feitas para outros, nunca são exatamente iguais. Elas dependem, fundamentalmente,
de como a alteridade compreende o que está ocorrendo na performance (Dimiatridis, 2001; Sullivan, 2003), trazendo à tona o
imprevisível, o ambíguo e a incerteza.
Essas teorizações desessencializadoras que o trabalho de Butler possibilita têm sido cruciais na formulação do que
se entende por teorias queer. Vêem as sexualidades para além dos limites do binômio hetero-homo, prestigiando uma
categoria – queer - que, escapando de tais fronteiras, re-significa a sexualidade ao entendê-la como “um contínuo tornar-se”
(Jagose, 1996: 131) ou como estando continuamente sendo feita e re-feita. Essa visão desestabiliza qualquer sentido de
essência, estabilidade, certeza, homogeneidade e universalidade para os gêneros e as sexualidades, não colocando nenhum
lugar claro, determinado e nítido para a posição queer. Estamos diante de uma outra ótica para compreender a sexualidade,
que desarticula as certezas e os limites do binômio hetero-homo, abrindo o leque para outras performances de nossos corpos.
Contrariando explicações biológicas, fundamentais nos discursos de especialistas que, a partir do século XIX
(Sedgewick, 1994), construíram toda uma lógica biológica para explicar e justificar cada membro do binário hetero-homo, as
teorias queer almejam desarticular o principio da heteronormatização (ou da “matrix heterossexual” - Butler, 1990: 136) em
que se fundamentam compreensões biologizantes, nas quais a homossexualidade era compreendida como um desvio da
norma heterossexual. Ou, como diz Butler (1990: 136): “a ilusão de uma base de gênero interior e organizadora é construída

323
discursivamente para os propósitos de regular a sexualidade dentro de um enquadre obrigatório da heterossexualidade. Se a
‘causa’ do desejo, gesto e ato pode ser localizado no ‘si-mesmo’ (self) do sujeito, então as normas políticas e as práticas
disciplinares que produzem ostensivamente o gênero coerente desaparecem efetivamente”. Foram essas explicações, ainda
balizadoras de muitos dos discursos na medicina, na justiça e na educação, que inventaram a heterossexualidade e a
homossexualidade (Plummer, 1981; Katz, 1996).
A categoria queer, então, que não estipula um lugar fixo, legítimo, adequado para sexualidade, não alude a um
referente explícito uma vez que não prestigia nenhuma essência para a sexualidade. Ao ter como propósito desconstruir
qualquer sentido de normatividade para as posições homo e hetero (as categorias essencializadas de homo e
heterossexualidade são ficções), essa categoria objetiva dar conta de um leque aberto de possibilidades para vivenciar a
sexualidade, cuja extensão é definida na performance (Halperin, 1995). São esses insights teóricos que nos convidam a
articular momentos queer em sala de aula de modo que outras performances possam ser compreendidas como possíveis,
experimentáveis e legítimas.
O conceito de momentos queer aparece em Doty (1993) em relação a como é possível construir leituras queer da
cultura popular em uma tentativa de mostrar os elementos queer que constituem a heteronormatividade. O objetivo é deixar
claro como a sexualidade é discursivamente construída com base em visões hegemônicas de gênero e sexualidade, uma
estratégia que Sullivan (2003) chama de “tática de guerrilha” em relação à heteronormatividade e que tem semelhanças com
o que Moita Lopes (2006) chamou de letramentos queer no contexto educacional. O que a pesquisa relatada a seguir então
faz é criar momentos queer na escola em que performances corpóreo-discursivas habitualizadas possam ser de alguma forma
abaladas ao indicar, por meio da análise de textos midáticos, como os gêneros e as sexualidades são performativos.
Doty (1993), especificamente, almeja mostrar como textos que são considerados constitutivos da lógica
heteronormativa “contêm elementos queer, e / ou que pessoas identificadas como heterossexuais podem e, de fato,
experimentam o que ele chama de ‘momentos queer’ quando se engajam com tais textos” (Sullivan, 20003: 191). Nesses
momentos, a lógica da heteronormatividade é desestabilizada ou desnaturalizada, assim como os significados de gênero e de
sexualidade que estão nelas implícitos, ao se compreender como tal lógica é construída. Os momentos queer, portanto,
ressaltam como os significados de gênero e sexualidade sob os quais operamos se tornaram invisíveis na lógica da
heteronormatividade, abrindo os horizontes de significados para outras performances.

Contexto e metodologia de pesquisa


Os dados desta pesquisa foram gerados em uma escola pública, em uma turma de 5ª. série do ensino fundamental,
em 2005. A professora de história da turma, Lívia, aceitou colaborar com nossa pesquisa uma vez que ela própria já tinha
inquietações em relação a questões de natureza identitária e estava desenvolvendo um projeto intitulado “Os outros” com a
turma. Tinha interesse em trabalhar com os significados sexistas e racistas com os quais seus alunos(as) operavam, e,
portanto, se mostrou, desde o início, muito interessada no projeto. Os alunos têm entre 10 e 12 anos de idade e se encontram
em uma fase de transição entre o mundo da infância e da adolescência, ao mesmo tempo em que se deparam com uma outra
fase da educação escolar em que o currículo começa a apresentar um número maior de matérias ministradas por professores
diferentes, o que acarreta outras demandas cognitivas e vivências em práticas pedagógicas diferenciadas.
Trata-se, portanto, de um momento de muitas descobertas e novidades, inclusive sobre a questão da própria
sexualidade, que, neste contexto, em geral, vão ao encontro dos significados essencializados e biologizados do gênero e da
sexualidade, especialmente por serem frequentes no mundo evangélico, um ramo religioso em franco desenvolvimento no
Brasil, abraçado por muitos alunos, professores e técnicos nessa escola. Não foram raros os comentários de desagrado ou
surpresa que a professora teve que enfrentar de colegas sobre seu foco em questões de gênero e sexualidade, inclusive alguns
que a alertavam para o perigo de os alunos entenderem que a homossexualidade era normal. Apesar disso, Lívia não
esmoreceu. Estava, de fato, ancorada nos Princípios dos Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Sexualidade do Ministério
da Educação assim como em textos da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do mesmo ministério
e no Programa Brasil sem Homofobia da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República; além disso,
era movida, principalmente, pela sua própria vontade de construir outros significados para a vida social.
Com a permissão da diretora da escola, os pesquisadores e a professora trabalharam em conjunto na elaboração de
tarefas para o ano letivo, que incluíam conteúdo e atividades pedagógicas que pudessem construir momentos queer na escola.
Assim, a metodologia de pesquisa era intervencionista e colaborativa e incluía instrumentos etnográficos como gravação em
áudio e vídeo e elaboração de diários de campo de modo a poder gerar dados que possibilitassem compreender o que estava
acontecendo neste contexto.
As ações pedagógicas planejadas pelos três participantes incluíram decisões não só em relação ao conteúdo
curricular, mas também em relação às atividades de sala de aula – possibilitadoras de “momentos queer” em relação a
diferentes identidades sociais –, e à interação, como sinalizam os seguintes procedimentos pedagógicos vigentes durante toda
a intervenção:
1) reformulação do conteúdo das disciplinas da grade curricular, abrindo espaço para temas e discussões
inicialmente sobre sexualidades e gêneros, e depois sobre linguagem, cultura, raça, etnia, idade, padrões de beleza etc. –
temas que foram articulados, de alguma forma, ao currículo oficial;

324
2) historicização desses conceitos, construindo a percepção tanto de sua procedência sociocultutral e histórica como
de sua polissemia;
3) introdução dos temas para discussão a partir de uma variedade de textos e imagens da mídia em geral (revistas,
internet, jornais, gibis, televisão etc.) com potencial de desestabilização de conceitos essencializados;
4) estímulo à comparação de textos que construíssem os fenômenos sociais focalizados de maneira diferenciada e
incentivo à pesquisa de textos culturais sobre os temas em debate;
5) atuação cooperativa em sala de aula entre a professora e um dos pesquisadores (que anteriormente já havia
observado e gravado as aulas de Lívia durante duas semanas), com salvo conduto para tomar a palavra e interagir com os
alunos e colaborar na problematização de sentidos cristalizados.
Norteando o conjunto dessas estratégias / procedimentos, encontra-se a necessidade de redescrição da lógica escolar
vigente, em direção 1) à criação de momentos queer; 2) à maximização do contato com a alteridade e com a possibilidade de
atribuição de significados plurais para as experiências sociais; e 3) a melhor organização quanto às diferenças,
problematizando a gramática usual implicada nos estereótipos, estigmas, e processos de discriminação. É nosso juízo que
desenvolver uma atitude questionadora e reflexiva quanto à percepção essencializada das sexualidades e dos gêneros –
objetivo precípuo do presente trabalho – não pode ser um movimento descolado da totalidade da lógica orientadora da sala de
aula. Percepções solidificadas sobre sexualidade fazem parte de um repertório de idéias naturalizadas sobre a vida social em
geral, que discrimina padrões de normalidade e desvio em relação a um conjunto amplo de identidades. Por isso, não faz
sentido trabalhar com a perspectiva da desestabilização de abordagens essencialistas de forma aditiva, restrita a temas
específicos (como sexualidades e gêneros) e a certos momentos da ação pedagógica, sob o risco de criar obstáculos às visões
que ser quer inaugurar. Estereótipos de sexualidade e de gênero obedecem a um mesmo paradigma fundacional que
compreende os fenômenos sociais da linguagem, identidade, cultura, raça, etnia, religião etc. como sendo unos, isomórficos e
universais, independentes dos atores e contextos que os produzem.
Foi com base nessa perspectiva que a pesquisa geradora do presente estudo se desenvolveu ao longo de um ano, na
instituição focalizada. A investigação produziu uma grande quantidade de dados, mas, para fins do presente trabalho,
concentramos-nos no material relativo a nove aulas consecutivas (total de 10 horas de gravação e 20hs de observação) que
inauguraram o ano letivo tratando dos temas da sexualidade e do gênero. A motivação para o início do trabalho, com base em
temas tabus, advém da nossa compreensão de ser a sexualidade, e o gênero, ou melhor dizendo, a lógica da
heteronormatividade, crucial no modo como historicamente aprendemos a nos definir uns em relação aos outros, com base
em padrões de pureza e de ideais de reprodução – acarretando a produção da idéia de desejo legítimo e ilegítimo. Crenças em
noções de natureza biológica, impulso e instinto (normais ou pervertidos), que decretam a anomalia, desordem e
subalternidade do outro desviante, subjazem tanto a visões racistas como a sexistas e homofóbicas (Sullivan, 2003:59). Eis o
porquê de um programa de ensino voltado para a outridade ter muito a ganhar ao já começar centrado no tema da
sexualidade, entendida, na tradição, como a sede da essência de nosso ser. Cremos que dar início ao projeto criando
momentos queer em relação ao que é considerado o cerne de nossa identidade pode facilitar o caminho para a criação de
“momentos queer” em relação a outras crenças socioculturalmente solidificadas acerca de quem somos.
Cabe lembrar que a idéia norteadora dos procedimentos acima se afasta da perspectiva da simples aceitação ou
tolerância da diferença já que, com base nos princípios da teorização queer, se deseja questionar a lógica da
heteronormatividade, não havendo lugar, portanto, para a idéia de tolerância fundada na legitimidade da norma heterossexua
(Moita Lopes, 2008). Ao contrário, as estratégias propostas visam a conduzir jovens alunos aos primeiros passos em direção
ao exame dos processos de nomeação, construção, classificação e hierarquização das diferenças bem como dos modos pelos
quais certas características físicas, comportamentais e socioculturais passam a defini-las. Além disso, elas têm por objetivo
familiarizar alunos de 10-12 anos com a idéia de que as sexualidades e os gêneros são produzidos em nossas práticas
discursivas, tendo uma natureza fluida – na verdade, uma tentativa de engajar crianças em uma prática problematizadora dos
efeitos e embates de sentido implicados em nossas escolhas semióticas diárias e na forma como usamos a linguagem.

Co-construindo momentos queer na sala de aula


A partir do objetivo precípuo do estudo em tela – a exploração dos efeitos da criação de momentos queer na sala de
aula – encontramos no conceito de posicionamento de (Davies & Harré, 1999) um construto teórico pertinente à análise da
mudança de posição dos participantes da pesquisa. Argumentamos que, a criação de momentos queer leva à redefinição dos
posicionamentos interacionais dos alunos, acarretando a negociação de novas compreensões e significados e permitindo
variados níveis de desestabilização local de percepções solidificadas da sexualidade. Embora essa movimentação seja
discreta, como a análise mostrará, ela aponta para a dinâmica implicada na fricção de discursos referentes ao par
tradição/inovação que as estratégias utilizadas em sala de aula mobilizam.
Assim, nos excertos abaixo focalizamos alguns momentos do processo discursivo colaborativo envolvendo
professor, pesquisador (P) e alunos, possibilitados por duas atividades pedagógicas geradoras, no contexto em questão, de
momentos queer. A primeira delas consistiu em um texto, extraído de uma mensagem eletrônica, intitulado “Coisa de
bichinha” e apresentado à turma em uma apostila, na forma constante no Anexo 1. A segunda, se tratava da observação e
análise de textos midiáticos (publicados em diferentes revistas e jornais) retratando tanto casais gays que escapam às

325
construções estereotipadas usuais quanto diferentes tipos de masculinidades que convivem na contemporaneidade, com foco
1) no processo de tessitura de textos multimodais; 2) na diferença; e, 3) na multiplicidade de formas de vida.
Voltemos-nos, então, para as ações discursivas intersubjetivas3 propiciadas pelo processo de intervenção
colaborativa descrito anteriormente que possibilitaram momentos queer na sala de aula focalizada. Os excertos 1 e 2 abaixo
se referem a uma conversa na sala de aula travada entre a professora, P e os alunos da turma. O diálogo acontece depois que
os alunos haviam lido a mensagem de e-mail acima referida (intitulada “Coisas de bichinha”), conversado sobre ela, e tentado
localizá-la no mundo social através das perguntas 1-7 listadas no Anexo 1. Assim que eles terminaram de preencher a tabela
“coisas de heterossexual” / “coisas de homossexual”, o pesquisador toma a palavra e pergunta aos alunos se eles concordam
com o conteúdo dualista da tabela:
Excerto 1
01 P: Vocês concordam com isso aqui? Sim ou não?
02 Alunos: Sim!
03 Professora: Então toda pessoa que tem gato é gay?
[
04 Professora: Todo mundo que tem gato é gay?
05 Alunos: Não!
(falando ao mesmo tempo)
[
[apontando para o colega do lado]
06 Oh professora! Ele gosta de estudar aqui oh mas não é bicha.
[
07 Você gosta de estudar, mas não é gay.
[
08 É gay.
09 Professora: Gente! Atenção. Olha aqui! Ele levantou a questão de que ele é gay. Então, um
10 minutinho. Antes de a gente continuar aqui, primeiro o seguinte, TÁ muito tumulto! A
11 gente precisa fechar essas questões de uma forma mais organizada.
12
13 Carlos: Tia, eu tenho cachorro.

Inicialmente (linha 02), os alunos se posicionam em acordo com as descrições estereotipadas de heterossexuais e
homossexuais presentes na tabela. À medida que professora e P estimulam os alunos a construírem posturas mais reflexivas
(linhas 03-04), um momento queer é criado: enquanto alguns alunos são levados a um reposicionamento (linha 05),
começando a problematizar as identidades fixas em jogo (linhas 06 - 07), outros, oscilam entre ratificar essas identidades
(como o aluno na linha 08 que lança dúvidas sobre a performance de masculinidade do colega) ou se apressam no
engajamento em performances asseguradoras da masculinidade, como o faz Carlos (linha 13).
O fato de os alunos falarem ao mesmo tempo opera, a princípio, como um obstáculo à comunicação, embora
sinalize a sua ânsia em participar e contribuir com idéias (linhas 05 - 08). Apesar dessas dificuldades – que motivaram a
professora a utilizar estratégias de comunicação como ênfase, aumento do volume da voz e marcadores discursivos (linhas
09-12) na tentativa de organizar a interação – Lívia e P insistem em engajar o grupo em um processo de reposicionamento,
responsáveis pela geração de novas situações queer. Tal atuação conjunta sinaliza uma possível forma de apropriação e
operacionalização das “táticas de guerrilha” sugeridas por Sullivan (2003). Esses posicionamentos táticos podem ser
observados na continuação da sequência acima, quando professora e pesquisadora convidam os alunos a refletir sobre
“rótulos”:
Excerto 2
34 P: Mas olha só, a pergunta é, a gente pode dizer que TODO comportamento ...
35
[
36 Professora: que todo mundo é assim?=
37 P: = que TODO mundo é assim?
38 Alunos: Não.
39 P: Tem gato ... gay. Tem cachorro ... isso é um rótulo
40
[
41 Carlos: Eu tenho cachorro.

3
Foram utilizadas as seguintes convenções de transcrição: (=) indica engatamento da fala; (.) indica pausa breve e (...) pausa mais longa; ([) indica sobreposição
de falas; sublinhado indica ênfase e MAIÚSCULAS sinalizam ênfase acentuada; (parênteses) identificam comentários do pesquisador ou sinalização não verbal e
(?) refere-se à transcrição impossível.

326
42
43 Alunos: (falam ao mesmo tempo)
(...)
(dirigindo-se a P que estava perto dele)
44 Francisco: Oh professora, eu tenho quase trinta revistas Playboy e não fico vendo toda
45 hora.
46 Professora: Então olha só! Gente, nós estamos nos dispersando. Temos aqui um trabalho
47 pra dar continuidade. Aí, continuando. Se, na verdade, ela tá dizendo, dando o
48 rótulo TODO gay é assim ... quem não é gay tem que ser assado. Não é, a
49 brincadeira do assim e assado. Então, TODO heterossexual NÃO GOSTA de
50 estudar ou arrumar a casa. Vem cá?
51
52 João: Eu gosto de estudar.

O dueto “guerrilheiro” presente nas linhas 34-39, cuja tática é o ataque por meio de uma série de “formulações-
torpedo”, tem como alvo as percepções calcificadas em jogo no “campo de batalha” discursivo. Tal “embate” deflagra novos
posicionamentos à medida que alguns alunos percebem a inadequação do uso de rótulos para descrever sexualidades (linha
38) e que outros – como Francisco (linha 44) e João (linha 52) abordam de maneira mais crítica a visão essencialista presente
no texto (“Coisas de bichinha”) e no exercício. O “combate” dá origem a um outro momento queer no qual há um tímido
movimento de desestabilização; ele não é consensual, contudo. Enquanto esses dois meninos são capazes de perceber as
inconsistências presentes na proposta dualista “heterossexual vs. homossexual”, a única coisa em que Carlos consegue pensar
é defender e sublinhar sua posição de “heterossexcual” (linhas 41-42).
Dessa forma, o aspecto relevante destas primeiras sequências é que, ao se engajarem em momentos queer, que
possibilitam embates discursivos, os alunos estão aprendendo sobre sexualidades de formas diversas. O esquema de
“guerrilha” lança novos discursos na direção de discursos naturalizados; o impacto de tal ofensiva é diferenciado. Alguns
alunos reificam a heteronormatividade; outros já começam a desenvolver uma postura mais reflexiva em relação à idéia de
identidades essencializadas. Em qualquer um dos casos, é importante sublinhar que esses movimentos são discursivos e
envolvem uma rede de significados, que orientam os atores sociais em seus posicionamentos. Se partirmos do princípio de
que esta trama é flexível e modulável, ela pode ser reconfigurada por nossas práticas linguísticas.
Tal aspecto também pode ser observado nos próximos excertos contendo momentos queer que desalojam o
conceito de sexualidade hegemônica. As interações a seguir ocorreram durante outra aula na qual a estratégia pedagógica de
“guerrilha” empregada engloba 1) a análise de textos imagéticos retratando diferentes tipos de homens homossexuais e
heterossexuais; e 2) a comparação desses textos com as idéias estereotipadas construídas no texto discutido nas aulas
anteriores (“Coisas de bichinha”).
Excerto 3
01 P: Professora,deixa só eu fazer uma pergunta. Se a gente voltar nesse quadro aqui (aponta
02 para o quadro na apostila: coisas de heterossexual), esses todos são homens (aponta para a
03 imagem dos homens de saias na transparência). Eles se encaixam aqui? (volta a apontar
04 para o quadro na apostila: coisas de heterossexual) em algum desses dois quadros?
05
06
07 Alunos: Não!
[
08 Encaixa!
09 P: Aonde?=
10 Professora: Aonde?=
11 Maria: Aqui no heterossexual.
12 P: Encaixa no heterossexual? Usa saia, põe brinquinho, usa calcinha
13
[
14 Professora: usa saia, põe brinco, usa calcinha, usa maquiagem
15
[
16 Cláudio: Usar saia até tudo bem, mas usar calcinha é demais!

Cooperativamente, P e a professora continuam a incentivar os alunos a problematizarem os binarismos


homossexual / heterossexual e masculino / feminino (linhas 1-16) e a se engajarem em performances reflexivas. Fica claro
que os posicionamentos dos alunos oscilam entre o questionamento destas etiquetas (linha 07) e a sua reificação (linhas 08 e
11), confrontando-se com possíveis vazamentos entre os domínios da feminilidade e masculinidade, cujos limites aprenderam

327
socioculturalmente a delinear de forma rígida. O comentário de Cláudio na linha 16 parece apontar nessa direção, quando o
menino expõe o seu desconforto em face do atrito de discursos provocado pelas imagens.
Paulatinamente, no entanto, essa idéia de desconforto é mitigada e redefinida à medida que os alunos, respondendo
colaborativamente ao posicionamento desafiador da professora e P, co-constroem momentos queer ao se reposicionarem:
Excerto 4
20 P: Mas também não se encaixa aqui (apontando para a caixa coisas de “homossexual”)

21 Alunos: (falam ao mesmo tempo)


(apontando para a tabela coisa de “heterossexual” vs. coisa de “homossexual”)
Então, olha só a pergunta pra gente fechar. Se encaixa aqui nesse rótulo de gay?
22 P:
23
24 Alunos: NÃO
25 P: Se encaixa aqui nesse rótulo de heterossexual?
[
26 Alunos: NÃO
27 P: Então, qual é a conclusão que a gente pode tirar disso tudo com relação à diferença?
28 Primeiro, somos todos iguais ou somos todos diferentes?
29
30 Alunos: Todos diferentes!
[
31 Somos todos diferentes!
32 P: Então algum rótulo fica de pé? Alguma receita de remédio, quando a gente aplica ao
33 comportamento humano, fica de pé ... ou cai por terra?
34
35 Alguns Cai por terra.
alunos:
36 P: Cai por terra, né? Por enquanto, a conclusão é essa.

As respostas em coro nas linhas 24, 26, 30, 31 e 35 sinalizam a performance coletiva de posicionamentos mais
críticos, com alto grau de performatividade atestado pela chancela do grupo (linhas 27-36). Tal movimento conjunto faz
espaço para um processo reflexivo no qual os alunos elaboram uma série de contra exemplos empíricos que abalam o
equilíbrio semântico dos rótulos com os quais vinham trabalhando:
Excerto 5
37 Professora: Bom fala que eu quero fechar uma coisa.
38 Marina: Não, eu acho que ... o meu tio ele usa creme no rosto ...
39
40 Professora: Hum
41 Kleber: E daí?
42 Marina: E daí que nada.
43 Professora: Tá, então olha aqui gente ...
(falando ao mesmo tempo; parte das falas pôde ser captada pelos gravadores posicionados
em diferentes carteiras)
44 Carolina: O meu pai usa xampu no cabelo.
[
45 João: arrumo a casa, mas tô a fim de estudar =
46 Maurício: = arrumar a casa é coisa de=
47 João: = eu sei, mas senão minha vó me bate

As contribuições dos alunos nas linhas 38-39, 44 e 45, referentes a experiências pessoais dos mesmos, ilustram o
engajamento destes jovens em um processo investigativo que os leva a explorar práticas familiares envolvendo performances
de gênero e sexualidade e abordá-las sob uma ótica menos estereotipada. Podemos dizer, assim, que uma série de manobras e
embates intersubjetivos rearranjou a rede discursiva habitualizada destes participantes, constituindo um outro mosaico de
sentidos, que, mesmo frágil e momentâneo, sinaliza um alto grau de performatividade local.

Construindo novas performances identitárias para os corpos


A análise nos fornece elementos para reflexão sobre os desafios implicados na co-construção de momentos queer
no contexto educacional, quando tentamos questionar /desnaturalizar visões solidificadas da vida social. Os modos de dizer-

328
fazer dos alunos mostram que, aos 10-12 anos, os aprendizes já estão envolvidos em performances cóporeo-discursivas bem
sedimentadas sobre as sexualidades e os gêneros, sabendo operar dentro do binário heterosexual-homossexual – que
distinguem claramente. Fica claro, assim, que a perturbação do repertório de sentidos usualmente atribuído à sexualidade e ao
gênero que os momentos queer possibilitam vai de encontro à lógica da heteronormatividade sob a qual os alunos operam,
mostrando a força das normas e regras sócio-culturais na construção da aparência de substância que os sentidos de gênero e
sexualidade têm. É justamente para combatê-las que a criação de situações queer se faz necessária. Elas podem provocar
movimentação dos sentidos que, como apontado na análise das interações, ocorre em meio a múltiplas persistências e
“rupturas” sutis de discursos essencializados, ora desafiando ora reproduzindo idéias dominantes sobre gênero e sexualidade.
Contudo, as várias performances acima analisadas apontam para a plasticidade das identidades dos alunos os quais,
apesar dos movimentos oscilatórios detectados, podem ser levados a gerar novos sentidos em relação às sexualidades e aos
gêneros, problematizadores de regimes binários e crenças culturais. Tais significados, ao serem sancionados por todo o grupo
(alunos, professora e P), legitimam as performances reflexivas em jogo, apontando para a possibilidade de micro-resistências.
Apesar de discretas, o fato de elas ocorrerem em solos aparentemente bem sedimentados indica a potencialidade da criação
estratégica de momentos queer na inauguração de percepções anti-essencialistas das identidades sociais, com alto grau de
performatividade no contexto educacional.
Por causa da relevância dos discursos educacionais na construção de quem somos, se por nenhuma outra razão, por
causa da quantidade de tempo que passamos na escola e do fato de que os contextos escolares são os primeiros que podem
apresentar uma alternativa para os limites discursivos que as crianças viveram até então, a criação de momentos queer em
práticas escolares têm um papel a desempenhar na possibilidade de inauguração de outras performances e performatividades
em relação a lógicas identitárias e alteritárias que, extrapolando o nível local, possam gerar performances corpóreo-
discursivas menos aprisionadoras de forma mais ampla. Esperamos que o desafio epistêmico que perseguimos nesta
investigação possa contribuir, juntamente com outros estudos de natureza similar, para a construção de ordens sociais
alternativas, nas quais a vida social e os desejos possam ser concebidos como processos de trânsito contínuo, pois a idéia de
fluxo permanente, pode colaborar para mitigar assimetrias calcificadas sobre quem somos, gerando a possibilidade de
politizar nossas práticas sociais assim como de construir sentidos mais éticos.

Referências
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Venn, C. (2000) Occidentalism. Modernity and subjectivity. Londres: Sage

329
Anexo 1

De: “Adolfo da Silva” <[email protected]>


Para: Roberto Barbosa
Data: Seg, 10 de Mai 2004 09:18:26
CC:
Assunto: Coisas de Bichinha!

Coisas de bichinha:

 Ficar mais de 6 minutos na Internet sem ver mulher pelada. Não colam as desculpas de estar
estudando ou arrumando a casa. Estudar e arrumar a casa é coisa de mulherzinha!
 Pedir meia porção.
 O nome é porção porque já vem calculado, ou seja um homem
 come uma porção de gororoba. Então quem come meia porção é meio homem.
 Ter como bicho de estimação um gato
 O gato por si só, não passa de um cão afeminado. O gato fica se lambendo todo e é cheio de
frecuras: faz pipi e popó depois esconde debaixo da terrinha!

Trabalhando com um colega, responda às perguntas abaixo:


 Quem escreveu o texto?
 Para quem?
 Onde o texto foi publicado?
 Quando?
 Que tipo de texto é?
 Qual objetivo do texto: mandar notícias para alguém? contar uma história? informar sobre um assunto? provocar?
fazer graça?
 Como a questão da homossexualidade é construída no texto:
 o texto aborda a homossexualidade masculina ou feminina?
 que palavras são utilizadas para se referir ao homossexual?
 que idéia(s) o sufixo –inha em “bichinha”, “mulherzinha” e “terrinha” sugerem: positiva? negativa? cômica?
 O homossexual e construído em contraposição a quem? Observe e complete o quadro abaixo:

Coisas de “homossexual” Coisas de heterossexual

- não fica toda hora vendo mulher pelada - gosta de ver mulher pelada toda hora
- gosta de estudar e arrumar a casa - não gosta de estudar ou arrumar a casa
- pede meia porção - pede uma porção de gororoba
- gosta de gatos - ___________________
- é cheio de frescura - ___________________

 Observe o quadro novamente. Você acha que todo homossexual e heterossexual é exatamente assim?
 O que essa caracterização de homossexuais tem em comum com as imagens abaixo, retiradas da mídia?

(imagens: Pitchbicha, transsexual vestido de Carmem Miranda etc.)

Desigualdades Sociais e Dissidência Sexual Feminina


Ana Maria Brandão
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho.
[email protected]

Resumo: Esta comunicação baseia-se nos resultados empíricos de uma investigação que tomou como objecto teórico o processo de
construção social da identidade de um conjunto de mulheres, incidindo especificamente sobre a sua articulação com o homo-erotismo e o
género. Pretende-se apresentar as principais conclusões obtidas no que se refere concretamente ao modo como uma dimensão particular da
vida dessas mulheres – a da sexualidade e dos afectos que lhe estão associados – se constitui como um traço central das suas identidades e
dos seus modos de vida, ilustrando o modo diferencial como as desigualdades sociais estruturadas operam a estes níveis. A metodologia
adoptada possui um carácter eminentemente qualitativo, recorrendo ao estudo de casos e cruzando os contributos das técnicas de observação

330
directa, entrevista e questionário. De acordo com os resultados obtidos, o género, o habitus de classe e a posição que lhe corresponde, a
pertença geracional, a origem geográfica e a trajectória pessoal surgem como factores particularmente discriminantes dos modos de fazer e
representar a relação entre a identidade global do actor e a sua identidade sexual.
Palavras-chave: Homo-erotismo feminino; dissidência sexual; identidade sexual.

Introdução
Esta comunicação baseia-se nos resultados empíricos obtidos numa investigação de doutoramento, que tomou como
objecto teórico o processo de construção social da identidade, incidindo especificamente sobre a sua articulação com e entre
homo-erotismo e género. O objecto empírico da investigação consistiu num conjunto de mulheres que haviam mantido, ao
longo das suas vidas, pelo menos uma relação amorosa com outra mulher, a despeito de adoptarem, ou não, para si próprias,
qualquer definição particular em termos de identidade sexual. Todas as mulheres, num total de dezoito, residiam, à data de
realização do trabalho de campo, nos distritos do Porto e de Braga, tendo sido localizadas através de um procedimento em
bola de neve a partir do contacto inicial com informantes privilegiados.
A metodologia adoptada no estudo assumiu um carácter eminentemente qualitativo, assente no estudo de casos e
cruzando os contributos das técnicas de observação directa, entrevista e questionário. No caso específico dos resultados aqui
discutidos, assumiram particular relevo o questionário e a entrevista de história de vida. Através do primeiro, foi possível
recolher um conjunto de informações que permitiram determinar a origem e a pertença de classe, bem como a idade e as
habilitações escolares das mulheres em causa. A entrevista de história de vida gerou o acervo fundamental de informação
relativa aos processos de construção social da identidade, posteriormente articulada com e analisada em ligação com os
indicadores recolhidos através do questionário.
Pretende-se apresentar as principais conclusões obtidas no que se refere concretamente ao modo como uma
dimensão particular da vida das mulheres – a da sexualidade e dos afectos que lhe estão associados – se constitui como um
traço central das suas identidades e dos seus modos de vida, ilustrando o modo diferencial como as desigualdades sociais
estruturadas operam a estes níveis. Os resultados obtidos no estudo sugerem que o género, o habitus de classe e a posição que
lhe corresponde, a pertença geracional, a origem geográfica e a trajectória pessoal são factores particularmente discriminantes
dos modos de fazer e representar a relação entre a identidade global do actor, a sua identidade de género e a sua identidade
sexual.

1. Excurso: Pressupostos teórico-metodológicos de partida


As modificações estruturais associadas ao advento da modernidade incluíram não só a progressiva constituição da
sexualidade como esfera autónoma de produção de sentido, mas, mais do que isso, fizeram do sexo o locus da identidade
(Elias, 1989; Foucault, 1994; Giddens, 1997). A sexualidade tornou-se num domínio central de auto e hetero-classificação ao
associar, de modo indelével, práticas ou actos sexuais e identidades. Especialmente com a constituição da sexologia como
área privilegiada de intervenção de médicos e peritos vários, assiste-se a uma proliferação de tipos de pessoas cujas
identidades passam a ser definidas de acordo com as suas práticas e/ ou preferências sexuais. Esta alteração de quadros
perceptivos e explicativos culminou na formulação da noção de “orientação sexual”, entendida como “uma característica de
um indivíduo que descreve as pessoas por quem é atraído para a satisfação de necessidades afectivas e sexuais – pessoas do
mesmo género, do género oposto, ou de ambos os géneros” (Anastas & Appleby, 1998: 49). Daqui decorreria a existência,
portanto, de categorias sociais específicas, a saber: homossexuais, heterossexuais e bissexuais.
Tem sido, entretanto, extensamente demonstrado, nomeadamente sob a égide de Foucault (1994), que este sistema
de classificação, para além de relativamente recente, surge como produto de transformações históricas particulares e não tem
(o mesmo) sentido quando aplicado ao passado ou a contextos socioculturais, temporais e geográficos diversos dos ocidentais
modernos. Por esta razão, mas também porque não existe uma relação linear entre sexualidade e identidade, optou-se por
falar em “homo-erotismo”1 e não em “homossexualidade” ou “lesbianismo”, para designar a presença de um acto, de um
desejo ou de uma preferência erótico(a) entre ou por alguém do mesmo género, respectivamente, exclusivamente ou não,
abarcando subcategorias e contingentes populacionais diversos e independentemente das identidades reclamadas e/ ou
atribuídas pelos ou aos indivíduos em causa. O uso das noções de homossexualidade, lesbianismo, homossexual, gay ou
lésbica – em especial, em termos substantivos, como em “os gays” ou “as lésbicas” –, são, assim, reservados aos contextos
em que se entende ser social e culturalmente legítimo o seu uso, e aos casos em que tais designações são reclamadas pelos
próprios actores.
Isto pressupõe, entretanto, uma concepção particular da identidade e uma forma específica de olhar para a realidade
social.
As identidades pessoais são construídas em contextos socioculturais particulares. Os actores servem-se de um
conjunto de recursos que lhes permitem aceder a uma existência pessoal e social reconhecida. No caso particular do homo-
erotismo, estão, nomeadamente, em causa, um conjunto de representações e “discursos” (Foucault, 1969: 66-67), produzidos

1
O conceito é derivado de Brooten (1996) e permite cobrir (e, portanto, estabelecer alguma comparação) entre épocas históricas e sistemas de classificação
social diversos. Tem, ainda, a vantagem de não impor ao actor uma definição identitária com a qual pode não se identificar.

331
em domínios tão diversos como o religioso, o científico e o político, que enformam um sistema de classificação social
particular. É no âmbito destes discursos, umas vezes complementares, outras conflituais, que se joga a construção das
identidades.
Sendo a dimensão estrutural e institucional uma parte importante dos fenómenos identitários, existe, no entanto,
uma outra dimensão a que importa atender e que é, justamente, a do actor que se espera que incorpore as identidades
propostas2, mas que não só nem sempre o faz, como, quando o faz, nem sempre o faz nos moldes presumidos. Dito de outro
modo, as práticas, os sentimentos e/ ou as preferências eróticas dos actores não sustentam, obrigatoriamente, nem identidades
particulares, nem a sua eleição como elemento central de definição identitária. Indubitavelmente, no entanto, numa sociedade
onde tais pressupostos são assumidos como verdadeiros, os actores terão que se defrontar com eles. O modo como o fazem e
o saldo desse “trabalho identitário” pode, todavia, assumir configurações distintas.
Assim, por um lado, e considerando que tanto a identidade heterossexual, como as identidades gay e lésbica são
construções, o propósito da investigação consistia menos em verificar a conformidade dos actores às mesmas do que em
compreender o modo como ela se processava – ou não. Por esta razão, o objecto empírico foi definido tendo como critério o
envolvimento, por parte das mulheres entrevistadas, em pelo menos uma relação erótica-amorosa com alguém do mesmo
género, independentemente de se definirem ou não como lésbicas. Por outro lado, considerou-se que a dimensão mais
propriamente estrutural e a sua influência nos processos de construção da identidade poderia ser melhor apreendida a partir
da análise de um conjunto de variáveis “externas” susceptíveis de estarem associadas a diferenças a este nível, em especial: a
idade, assumindo, nomeadamente, a sua ligação a contextos geracionais e, portanto, históricos, políticos e socioculturais
diversos (cf. Plummer, 2001); e a classe3, intimamente ligada às diferentes concepções de género e sexualidade (cf. Bourdieu,
1979; Skeggs, 2002), bem como aos recursos – materiais, mas também culturais – a que é possível, em cada momento,
aceder.
Em termos teóricos, parte-se de uma abordagem dos processos de construção identitária que, numa linha próxima
da de Dubet (s.d.), considera que estes operam a três níveis: por um lado, a identidade remete para os mecanismos de
socialização, surgindo como o resultado da acção das estruturas sociais, das instituições e das agências de socialização. Trata-
se daquela dimensão através da qual se produz a identificação com uma sociedade e, no seio desta, com determinados outros,
e que remete para as pertenças sociais. Por outro lado, a identidade possui uma dimensão pessoal, voltada para a afirmação de
uma unicidade distintiva face aos outros e que, construindo-se, de certa forma, num sentido contrário à influência
socializadora, permite ao actor afirmar-se como ser único e inconfundível com os demais. Trata-se da identidade pessoal,
construída num processo de tensão entre o Eu, o Nós e o Outro. Finalmente, a identidade pode também ser usada como
recurso estratégico na afirmação desse Eu autónomo e singular. Neste caso, a racionalidade do actor e a sua margem de
autonomia relativa, que permitem o exercício da reflexividade, implicam considerar que aquele se pode servir do
conhecimento que detém sobre a realidade social para atingir certos fins, conscientemente ou não, designadamente pela
manipulação da imagem de si que veicula e que mais lhe interessa.
A identidade é, pois, entendida como o resultado de uma actividade, de um trabalho levado a cabo pelo actor, que
procura relacionar mundos, lógicas e princípios de acção heterogéneos e móveis, pontualmente estabilizada e continuamente
refeita, através da qual ele exprime a sua pertença, tanto como a sua singularidade. Neste sentido, a identidade não é o que
permanece idêntico, mas o resultado de uma identificação contingente (Dubar, 2000: 3), que decorre, simultaneamente, do
exercício da subjectividade e das características particulares de cada formação social.

2. Incurso: A construção da identidade


A construção da identidade decorre no contexto de um quadro normativo geral que inclui uma definição dos papéis
de género intimamente ligada à imposição da heterossexualidade e à sua eleição como padrão de comportamento “normal”.
Aquilo a que Rich (1980) chamou a “heterossexualidade compulsória” traduz-se, assim, na presença de um conjunto de
expectativas relativas à conduta que tem como consequência eliminar do horizonte das possibilidades primárias de expressão
formas alternativas de relacionamento amoroso e sexual. Essas expectativas são veiculadas e reforçadas pela acção do Outro,
significativo e generalizado. Por um lado, as instituições publicitam o modelo de conduta “normal” através de diversos
mecanismos e agências; por outro, a acção de indivíduos próximos – amigos, família, colegas de trabalho – recordam ao
actor, frequentemente de forma directa, o eventual não cumprimento das expectativas associadas aos seus papéis.

2
E às quais se espera, de resto, nomeadamente em contextos “clínicos”, mas não só, que o indivíduo se “ajuste”. Para uma crítica ao uso clínico dos pressupostos
e das etapas implícita ou explicitamente presentes nos modelos e tipologias de desenvolvimento da identidade gay ou lésbica, especificamente, consulte-se o
artigo de Hart (1996). Para um conhecimento aprofundado das tipologias mais influentes, podem consultar-se Troiden (1988), Gonsiorek & Rudolph (1991),
Appleby & Anastas (1998), Mallon (1998), Moita (2001), bem como a tese de Pereira (2005), que inclui uma extensa revisão da literatura neste domínio.
3
A determinação da origem e do lugar de classe das entrevistadas obedeceu aos critérios usados por Machado, Costa, Mauritti & Martins et al. (2003: 46), cuja
proposta cruza os contributos das abordagens tradicionais das classes sociais que atendem, sobretudo, ao “plano das qualificações e certificações de alcance
profissional” com abordagens como a de Bourdieu, que permitem integrar “o plano dos recursos culturais e dos status simbólicos”. Ainda na linha dos mesmos
autores (idem: 53), e atendendo, como eles, a alterações recentes nas sociedades economicamente desenvolvidas, a determinação da origem de classe atendeu ao
“critério da «dominância» ou o da «conjugação» (neste, com a criação de novas categorias), em qualquer caso integrando na classificação, sem hierarquia
apriorística, ambos os sexos”. Note-se que a pertença de classe, ao contrário da origem de classe não revelou pertinência explicativa. Assim, é apenas indicada
aqui a origem de classe de cada entrevistada. Para evitar sobrecarregar o texto da comunicação, a origem de classe é indicada por recurso às mesmas siglas
adoptadas pelos autores referenciados, a saber: EDL (Empresários, Dirigentes e Profissionais Liberais); PTE (Profissionais Técnicos e de Enquadramento); EE
(Empregados Executantes); OI (Operários Industriais).

332
É neste contexto que o reconhecimento de sentimentos homo-eróticos vem a constituir, para muitas mulheres, um
“momento crítico”, ou “decisivo” (Giddens, 1997), um momento a partir do qual nada voltará a ser como dantes. A sua
“atitude natural” é rompida, gerando condições particularmente favoráveis à reflexividade, ao questionamento e a uma certa
desorganização interior e da conduta (Schutz, 1962, 1964; Strauss, 2002). Num universo de sentido de onde estão
praticamente ausentes referências a modelos de relacionamento alternativos ao heterossexual, ou onde estes surgem
intermitentemente e dotados de uma elevada carga estigmatizante, o género do objecto de desejo sexual é determinante
porque impede a ordenação da realidade nos moldes em que ela se encontra, usualmente, ordenada. Quando isto acontece,
pode ocorrer uma perda do sentido do próprio lugar no mundo, traduzida no uso de termos como “confusão” ou “luta”.
Assim, na maioria dos casos, a primeira paixão homo-erótica tende a desencadear um processo de reflexão que implica a
reconstrução da própria história de vida, promovendo uma revisão de eventos passados à luz de acontecimentos presentes,
mas passando, igualmente, por uma antecipação do que o futuro pode ser. Trata-se de um processo de reinterpretação do
sentido identitário que visa acomodar os novos eventos e repor o sentimento de continuidade que sustenta a identidade pela
eliminação da sensação de alienação, de perda de si próprio. Neste processo, os dados do contexto são fundamentais porque
enformam as possibilidades de leitura desses eventos nos momentos em que ocorrem.
Socializadas nos princípios que definem o género em estreita ligação com o exercício da (heteros)sexualidade, a
atracção homo-erótica começa por ser sentida pela maior parte das entrevistadas como elemento “anómalo” (Douglas, 1994),
i.e., como não fazendo parte nem da sua trajectória de vida esperada, nem da sua identidade, sensação que pode prolongar-se
por um período de tempo mais ou menos longo. Alexandra (37 anos, EDL), e.g., lembra-se que “pensava: «Meu Deus! Como
é que eu estou a fazer uma coisa destas?! Eu não tenho nada a ver com isto! Eu não sou homossexual. Eu já namorei com
rapazes. Eu gosto de rapazes. Eu sinto-me bem com os rapazes»…”, e Paula (23 anos, EDL) recorda ter pensado, “primeiro,
«Não sou lésbica!»; segundo, «Não posso ser lésbica!»; terceiro, «Vês? Eu não posso ser lésbica, eu até ando com fulano!...»;
depois, «Gaitas! Se calhar, sou mesmo lésbica…»; depois, «Não sou nada lésbica!»… E andei três anos nisto,
sistematicamente”. Em muitos casos, associada ao reconhecimento do desejo homo-erótico, surge a sensação de “fugir à
normalidade, […] o grande peso de fugir à normalidade”, “a tudo aquilo que era aceitável e normal e natural que
acontecesse…” (Margarida, 33 anos, EE), a “Vergonha, pelo que nos é incutido a vida inteira” (Leonor, 35 anos, EE) ou,
ainda – nos casos em que a herança católica está mais presente –, a sensação de se estar a cometer um “pecado” (Carolina, 43
anos, EE). Mesmo entre as entrevistadas que não sentiram o seu homo-erotismo como interiormente problemático ou
desagregador, tende a emergir o sentimento de uma certa “estranheza”. Sofia (24 anos, PTE), e.g. declara: “tenho uma vaga
ideia de pensar: «Que estranho! Por que é que havia de ser com uma mulher?»”.
Uma vez que a identidade assenta, de um modo fundamental, em sentimentos de continuidade e coerência, a
integração do elemento estranho desencadeia, então, um trabalho destinado a situá-lo a ambos os níveis. Este trabalho
identitário tende, entretanto, a ter lugar, como nota Markowe (1996: 194), “num contexto social que inclui percepções
negativas das pessoas das lésbicas; um estereótipo das lésbicas como masculinas, anormais, agressivas e não atraentes; e a
invisibilidade lésbica”. Além disso, associada a estas percepções, encontramos também a ideia de que existe um estilo de
vida próprio da lésbica, caracterizado pela promiscuidade sexual e pela guetização. Neste sentido, definir-se como lésbica
inclui, neste imaginário, uma alteração de estatuto significativa não só em termos de condições de vida presentes, como
também de possibilidades de vida futuras (Plummer, 1996).
Isto mesmo é intuído pelas próprias entrevistadas, independentemente do grau de acomodação interior dos seus
sentimentos. Margarida (33 anos, EE), e.g., recorda-se que, quando começou a aproximar-se da mulher que viria a ser a sua
primeira namorada, “havia pessoas que já sabiam da orientação dela e, pelo facto de me começarem a ver muito com ela,
começaram a desenhar um bocadinho o meu trajecto, e lembro-me disso me ter assustado muito na altura”, entre outras
razões pela consciência de que “a homossexualidade era, e ainda é, uma opção recriminada”, “alvo de crítica e de não
aceitação”. Mesmo nos casos em que os sentimentos homo-eróticos não parecem levantar questões de maior ao nível pessoal,
estas mulheres apercebem-se “que não era uma coisa muito fácil. Quer dizer, aí, ia levantar problemas, ia ser chato. E, aí, dei-
me conta que tinha que ser pragmática na gestão da situação relativamente aos outros. Para mim, não tinha que gerir nada.
Nunca tive” (Catarina, 35 anos, PTE).
Em conjunto, estes factores tendem a contribuir para a desidentificação face à categoria da lésbica, pelo menos num
primeiro momento, tanto como para a dificuldade de aceitação emocional da dimensão homo-erótica das suas experiências e/
ou das suas identidades. Markowe (1996: 195) defende que há um conjunto de factores que pode contribuir para ultrapassar
essas dificuldades, nomeadamente a percepção do lesbianismo como opção, ligada às representações sociais disponíveis
sobre o género e a natureza humana, e a capacidade de lidar com a ameaça identitária. As narrativas recolhidas parecem
suportar esta leitura. Todavia, elas indiciam, igualmente, que essa capacidade está também intimamente associada às
condições particulares de socialização e às características das redes de sociabilidade dos actores. De facto, encontramos
algumas dissemelhanças e proximidades entre o conjunto das entrevistadas que estão, igualmente, ligadas a um conjunto de
variáveis intervenientes que traduzem a presença de certas condicionantes estruturais, em particular, a pertença geracional, a
vivência em meios urbanos ou rurais e a origem de classe. Estas variáveis prefiguram um potencial explicativo das diferenças
encontradas quer na eventualidade de equiparação da admissão de sentimentos homo-eróticos a um momento crítico, quer
nos modos de lidar com esse momento crítico e com o seu desfecho.
De um modo sintético, pode afirmar-se que os resultados obtidos indiciam que um contacto mais precoce com o
homo-erotismo, incluindo a presença de modelos positivos para além da estereotipia e do anedotário comum, bem como a

333
pertença ou o acesso a grupos de pares que não excluam a partilha de sentimentos e experiências alternativos à
heterossexualidade, reduzindo, assim, a sensação de isolamento, actuam no sentido quer da ausência de ruptura do Eu, quer
da menorização dos impactos do estigma na identidade pessoal, algo também notado por Jensen (1999) e Markowe (1996).
Assim, Catarina (35 anos, PTE), e.g., além de ter um “irmão [que] também é homossexual”, recorda que “tinha uma vida, no
que diz respeito já à frequência de um mundo marginal, não é marginal, mas – percebes o que eu estou a dizer? – específico,
já muito natural”. Estes “mundos” dizem respeito, precisamente, a contextos e grupos de socialização que incluem indivíduos
com estilos de vida menos convencionais e no seio dos quais o homo-erotismo é, quando não parte da vivência quotidiana,
pelo menos, parte do universo de possibilidades de expressão aceites pelos seus membros. Também Teresa (52 anos, PTE)
recorda que, quando se apaixona pela primeira vez por outra mulher, o homo-erotismo “Faz parte da minha vida, do meu
quotidiano. Nessa altura, colegas meus, que agora até estão casados, iam com colegas! Na escola, havia várias situações,
havia vários grupos de raparigas, gays e lésbicas, em Belas Artes. Umas mais assumidas, outras só pelo namoro, mas topava-
se tudo isso”.
Se a pertença geracional é, sem dúvida, um factor diferenciador dos processos de construção identitária destas
mulheres – constituindo a invisibilidade lésbica um entrave à interpretação do próprio elemento homo-erótico e à sua
vivência entre as gerações mais velhas –, a sua influência é mediada por outras variáveis, que revelam condições – e
configurações – de apropriação diferenciais. Assim, a despeito da diferença de idades, tanto Catarina, como Teresa partilham
de um conjunto de características: por um lado, são ambas originárias da classe dominante – o que, desde logo, parece
condicionar o acesso a recursos (culturais, mas não só) que permitem ler e lidar de outro modo com as suas experiências; por
outro, ambas se movem e/ ou passam a mover em círculos sociais relativamente restritos – no caso, associados aos meios
académicos e, em especial, ao meio artístico; finalmente, ambas vivem as suas primeiras paixões homo-eróticas em meios
urbanos, caracterizados quer por uma maior diversidade cultural, quer por um maior anonimato.
Estes dois casos contrastam, pois, claramente com os de outras mulheres das mesmas gerações, porém provenientes
de fracções de classe mais baixas, residentes em meios rurais ou não tão urbanizados e que vivem as suas primeiras paixões
sem a possibilidade de as partilhar com os seus pares. Assim, Beatriz (33 anos, EE), e.g., recorda que “Frequentava muito a
biblioteca lá da minha cidade, mas tinha vergonha de requisitar ou de procurar o que quer que fosse”. Este sentimento de
vergonha traduz a interiorização do quadro normativo dominante e o medo do opróbrio resultante da possível rotulagem
como lésbica num meio pequeno. Zulmira, uma das entrevistadas mais velhas, que, como Beatriz, também residia numa zona
afastada dos grandes centros urbanos, recorda a escassez de informação que caracterizou a vivência da sua geração, bem
como a impossibilidade de partilhar tais sentimentos. Ao contrário do que aconteceu com Beatriz, na sua geração, nem
através da televisão havia acesso a qualquer tipo de informação. Assim, Zulmira (47 anos, EE) recorda-se que, quando
começou a tentar perceber os seus sentimentos, “não sabia nada! Não sabia nada! // Não havia muita literatura e não havia
muito conhecimento pessoal para se falar dessas coisas... // Não havia nada. // Livros, se calhar, eram escritos, mas eram
recolhidos, possivelmente... // A informação era tão escassa, tão escassa... Em casa, não se falava nessas coisas. Os livros,
não havia. A informação não chegava. Dificilmente a gente tinha uma noção concreta do que era isso”. Em ambos os casos,
as primeiras paixões homo-eróticas são vividas em quase isolamento: Zulmira (47 anos, EE) nota que “Nunca partilhei isso
até à altura de sair da cidade” e Beatriz (33 anos, EE), que “O meu único medo era estar isolada, era estar sozinha e não poder
dizer isso a ninguém, ou, pelo menos, não partilhar”.
Note-se, entretanto, que embora as entrevistadas mais jovens também se refiram à dificuldade de partilhar as suas
vivências, sobretudo quando vivem longe das cidades, como Beatriz, elas tendem a recordar esse período de tempo como
sendo menos longo, i.e., mais rapidamente procuram combater essa situação, também porque têm acesso a outros recursos
(como, e.g., a Internet).
Ultrapassar tais sentimentos implica, frequentemente, uma reconstrução das redes de sociabilidade destas mulheres,
nalguns casos acompanhada pela sua deslocação para os (ou aos) grandes centros urbanos, onde frequentemente conseguem
inserir-se nas comunidades lésbicas aí existentes. O contacto com outras pessoas que mantêm relações homo-eróticas e/ ou
que se definem como lésbicas surge como um contexto fundamental de apoio, especialmente pelos efeitos produzidos. Nas
narrativas, essa importância é sublinhada a três níveis: a redução dos sentimentos de raridade, isolamento e solidão; o acesso
a redes sociais de apoio e de pertença; e a possibilidade de se situarem do ponto de vista identitário. Vários estudos têm, aliás,
salientado esta função de reforço (Jensen, 1999; Gagnon & Simon, 1977, Ponse, 1978; Gonsiorek & Rudolph, 1991;
Faderman, 1992). Uma comunidade lésbica funciona como um contexto onde a pessoa se sente confiante para falar dos seus
sentimentos, mas oferece, igualmente, muitas vezes, um encorajamento à sua partilha com outros – família e amigos,
sobretudo. Além disso, ela actua, igualmente, como um ambiente protector que contraria o peso da opressão e as mensagens
negativas sobre o homo-erotismo que afectam a representação de si dos indivíduos. Mas esse contacto fornece, igualmente,
normas e instrumentos específicos ligados ao trabalho de (re)construção identitária – entre os quais, o guião privilegiado das
comunidades gays e lésbicas: a “trajectória gay” (Ponse, 1978).
A “trajectória gay” constitui “o princípio da construção identitária no mundo lésbico” e gay e “funciona de modo
semelhante ao princípio de consistência4, a assunção implícita da construção social das identidades ligadas ao sexo na

4
O “princípio de consistência”, subjacente a uma “teoria popular [...] ancorada nas visões judaico-cristãs religiosa e legal da sexualidade”, refere-se à crença de
que “os elementos da atribuição de sexo, a identidade de género, os papéis sexuais (ou papéis de género), a escolha do objecto sexual e a identidade sexual
variam no mesmo sentido” (Ponse, 1978: 24).

334
sociedade mais vasta” (Ponse, 1978: 124-125), e a sua presença não pode ser negligenciada na explicação dos processos de
reinterpretação biográfica. Estabelecendo-se como uma grelha de leitura da experiência, a “trajectória gay”, geralmente
divulgada através da publicitação de múltiplas histórias de “saída do armário”, cria as regras de enunciação do discurso da
própria comunidade e atribui a cada uma delas uma certa linearidade, um sentido inequívoco, que nunca corresponde, no
entanto, às biografias reais. A “trajectória gay” não deixou de ser influenciada pelas classificações geradas no campo
científico, designadamente pela importação de uma certa ideia de congenitalidade da homossexualidade e do
desenvolvimento progressivo de uma identidade gay ou lésbica que procede por fases mais ou menos sequenciais5.
Os resultados que obtivemos ilustram a importância deste guião, porquanto o uso desse tipo de explicação tende a
ser dominante não só entre as mulheres mais velhas, como também entre aquelas (maioritariamente originárias de fracções de
classe mais baixas) cujo meio privilegiado de sociabilidade é o meio gay e lésbico. Os seus contextos de socialização, quer
em termos geracionais, quer de grupos de pares podem, portanto, contribuir para explicar o facto de privilegiarem teses
realistas mais ou menos moderadas. Assim, por um lado, ao longo da história, evidentemente, as “psicologias” vão sendo
substituídas, quer devido a alterações profundas na estrutura social, conducentes a mudanças nas realidades psicológicas,
quer devido ao desenvolvimento das próprias teorias que exigem essas modificações (Berger & Luckmann, 1989: 179-180).
À data em que têm lugar os primeiros envolvimentos homo-eróticos das mulheres mais velhas, as teorias realistas eram, de
facto, dominantes. Por outro lado, a inserção da maior parte destas entrevistadas em comunidades lésbicas a partir do
momento em que reconhecem os seus sentimentos pode ter actuado quer como factor de reforço, quer de acesso a essas
teorias explicativas, precisamente na medida em que tanto a sua constituição, como a narrativa de “saída do armário”, que se
tornou num instrumento fundamental de mobilização dos indivíduos em torno de uma causa “comum”, as privilegiam. É
precisamente entre estas mulheres que encontramos uma maior tendência de conformidade às expectativas implícitas da
comunidade gay e lésbica acerca dos seus membros. Elas tendem a considerar que o seu lesbianismo traduz um self autêntico
que se trata de “descobrir”, uma “verdade” interior que aguarda revelação (Stein, 1997; Ponse, 1978). O termo “descoberta”
é, aliás, recorrente nas narrativas. Margarida, e.g., diz-nos que “Acho que nasceu comigo! Não houve nada, nenhuma
situação, que me tivesse causado isso. // Nasceu, veio cá para fora… Podia nunca ter vindo! Podia nunca ter descoberto!”
(Margarida, 33 anos, EE).
Ao mesmo tempo, todavia, este tipo de discurso aponta, simultaneamente, para a presença de contextos que podem
ou não propiciar a descoberta – daí a referência de Margarida à ideia de que também poderia não ter “descoberto” o seu
lesbianismo. Os factores ambientais são considerados como potencialmente facilitadores ou inibidores do processo de
actualização de um lesbianismo latente. Assim, ainda segundo Margarida, apesar de não ter vivido “num ambiente
homossexual... Eu, mais tarde, vim a contactar com ele e tive a hipótese, pelo facto de me ter também despertado uma
curiosidade, de ter a experiência. Eu acho que, se não tivesse tido esse contacto, nem essa experiência, ainda hoje viveria com
«amizades especiais». Se calhar, ter-me-ia casado...” (Margarida, 33 anos, EE).
Inversamente, entre aquelas mulheres que defendem uma perspectiva que poderíamos classificar como
construtivista da identidade, os factores ambientais são preponderantes. Nestes casos, a crença num homo-erotismo essencial,
tal como defendido pelas outras entrevistadas, está, geralmente, ausente, ou a postura acerca da sua essencialidade poderia ser
melhor caracterizada como de agnosticismo, i.e., elas não conseguem decidir-se nem afirmativa, nem negativamente pela sua
presença. Apenas quatro entrevistadas, no entanto, colocam a tónica quase exclusivamente em factores ambientais, em
sentido lato. Não é apenas o seu peso na formação da identidade e da preferência sexual que é diverso, mas é, antes de mais, a
consideração de que se trata de factores que não são claramente identificáveis, mas que têm a ver com o trajecto de vida, as
experiências vividas e os contextos de socialização, vindo a desembocar numa certa representação de si, quer esta seja
definida de forma mais restrita (lésbica ou homossexual), ou não (definição circunstancial ou indefinição).
Marisa (37 anos, PTE), e.g., defende “que, de alguma maneira, é como se isto fosse um percurso. Eu, ainda hoje,
não penso que só poderia ter sido lésbica. Não acho. Acho que houve ali momentos da minha vida em que aquelas atracções
que eu senti já em fases posteriores, mais velhita, dezasseis, dezassete, dezoito, dezanove, vinte, nessas idades, se algum
daqueles homens a quem eu achei piada me tivesse achado piada, eu acho que, se calhar, hoje podia estar casada e com
filhos! Poderia ter acontecido! Não sei! Ou até poderia ter tido uma relação com eles e, entretanto, ter vindo a gostar na
mesma de mulheres... // Eu não vejo como uma coisa que era aquilo! Só depois é que despoletou, mas era aquilo e sempre
esteve... Não! Eu, hoje, olho para essa realidade como um percurso que se vai construindo, uma coisa aqui, outra ali! // De
alguma maneira, eu acho que mesmo algumas amigas minhas olham para o meu percurso um bocado como se «Coitada, a
Marisa, também, com os homens, aquilo nunca deu, portanto, virou-se para as mulheres...” e eu acho que não passa bem por
aí, mas também não passa por «Isto com os homens também nunca deu porque eu já gostava de mulheres!” Acho que é uma
mistura, é um percurso, vai sendo naquele sentido. // Não acho que seja uma coisa muito decidida – «Agora, vou decidir
assim!» –, mas aconteceu, foi acontecendo naturalmente”.
A tónica na construção de um caminho que não é propriamente predeterminado, mas fruto das circunstâncias está
também presente na narrativa de Catarina. Deve notar-se, no entanto, que Marisa passou por um processo de terapia que não

5
Appleby & Anastas (1998: 55) sugerem que esta visão da homossexualidade presente na “trajectória gay”, que, não sendo a única, parece ser a mais aceite, “é
politicamente aliciante para muitos activistas do movimento pelos direitos dos gays porque sugere que as pessoas gays, lésbicas e bissexuais têm que ser tratadas
como as outras que apresentam diferenças face à maioria que não conseguem mudar e são, assim, mais similares a vítimas do que a rebeldes empenhados ou
subversivos”.

335
será, certamente, alheio à sua reflexividade acerca da identidade sexual e do seu próprio trajecto de vida. Nos outros casos, o
discurso das entrevistadas surge menos articulado, mantendo-se, no entanto, a ideia central de uma história de vida que se vai
construindo muitas vezes pelo mero embarque no curso do presente. Olhando para o seu trajecto, Catarina (35 anos, PTE),
e.g., considera que “Têm-me atraído coisas diferentes, em alturas diferentes da vida, conforme as circunstâncias que eu estou
a viver, e só a posteriori é que eu me dou conta. // [...] é quase como se fosse um pragmatismo inconsciente, que eu não
domino, é quase uma deliberação não consciente: passas a estar atenta a outros fenómenos numa pessoa, e, nessa altura... //
Não é uma opção, sequer. E, portanto, fui-me deixando atrair, ou deixando que coisas diferentes me chamassem mais a
atenção, em períodos diferentes da minha vida, conforme, também, o momento biográfico e a conjuntura e as circunstâncias.
Não consigo precisar melhor”.
Assim, para estas mulheres, o seu lesbianismo é o resultado de um processo de construção gradual. Apesar de se
tratar de um modelo explicativo avançado apenas por uma minoria, é de notar que todas elas são originárias da classe
dominante. Trata-se de um tipo de discurso que não encontramos entre nenhuma das entrevistadas com outras origens de
classe, e que é, certamente, alvo de menor divulgação e publicitação pública e de menor aceitação por parte do próprio
activismo gay e lésbico. As suas narrativas são perpassadas por referências a recursos literários e/ ou plásticos, que são
também, por definição, recursos narrativos, de carácter erudito e/ ou académico. Além disso, os recursos narrativos alteram-
se com a própria transformação social e têm impactos nas possibilidades de definição identitária das diferentes gerações. As
teses construtivistas são, a este respeito, relativamente recentes na história da sexualidade e, portanto, podemos estar na
presença do resultado de um processo de filtragem do acesso ligado quer à posição de classe, quer à pertença geracional. O
conjunto de propriedades que definem estas mulheres e as suas trajectórias particulares de vida podem, portanto, ter-lhes
facultado recursos que apontam para a relativização dos factores mais propriamente “naturais” do homo-erotismo e da
formação da identidade nas suas explicações.

Conclusão
A análise das histórias de vida de um conjunto de mulheres com relacionamentos homo-eróticos apontam no
sentido de o desejo homo-erótico constituir, frequentemente, um momento crítico nas suas vidas, desencadeando um trabalho
de reconstrução identitária e propiciando a reflexividade. As dificuldades em lidar com o desejo homo-erótico na primeira
pessoa são, entretanto, socialmente variáveis, indiciando que a capacidade de lidar com o que ainda constitui uma ameaça
identitária está intimamente associada às condições particulares de socialização e às características das redes de sociabilidade
dos actores. Assim, os resultados apresentados ilustram algumas dissemelhanças e proximidades entre o conjunto das
entrevistadas que estão, igualmente, associadas à presença de um conjunto de variáveis intervenientes, que traduzem a
presença de certas condicionantes estruturais, em particular, a pertença geracional, a vivência em meios urbanos ou rurais e a
origem de classe. Estas variáveis prefiguram um potencial explicativo das diferenças encontradas quer na eventualidade de
equiparação da admissão de sentimentos homo-eróticos a um momento crítico, quer nos modos de lidar com esse momento
crítico e com o seu desfecho. Por outro lado, trata-se de variáveis que se prefiguram especialmente relevantes em termos de
acesso aos recursos de que o actor se pode socorrer para levar a cabo esse trabalho identitário. Estes recursos referem-se,
especificamente, tanto à presença, como à possibilidade de acesso a modelos de representação e de vivência da sexualidade e
dos afectos alternativos ao heterossexual. A influência daquelas variáveis é, a este respeito, dupla: ela liga-se às
características incorporadas do género, associadas, por um lado, aos contextos socio-históricos que definem o período de
adolescência e início da idade adulta destas mulheres e, por outro, aos padrões típicos da classe e às possibilidades
diferenciais de acesso a esses recursos que a posição de classe faculta. Existem, ainda, outras variáveis intervenientes neste
processo, ligadas a trajectórias de vida particulares, ainda que apresentem ligação às primeiras. Neste caso, estão,
nomeadamente, em causa, os contextos microssociais em que as entrevistadas se movem ou passam, a partir de determinado
momento das suas vidas, a mover-se, incluindo, em particular, a formação e as características dos seus grupos de pares, que
se podem revelar mais ou menos favoráveis à expressão e à vivência do homo-erotismo.

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Corpo e Ambiguidade Genital: o estranho e o peso do olhar


Susane Vasconcelos Zanotti
Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Hélida Vieira da Silva Xavier


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Camila Teófilo de Castro Amorim


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Resumo: A presente proposta aborda algumas questões relacionadas ao corpo em sujeitos que portam a marca da ambiguidade genital,
definido pelo saber médico como anomalia na diferenciação sexual. Freud demonstra com sua teoria que a sexualidade humana não se
restringe à anatomia e, portanto, não basta ter nascido sob o signo de um sexo para que este seja escolhido pelo sujeito. A assunção subjetiva
não segue a definição anatômica e dessa forma, é preciso considerar a singularidade e a história subjetiva de cada um. Os resultados de
nossas pesquisas sobre o tema corroboram com as contribuições psicanalíticas de que a intervenção cirúrgica, por perfeita que resulte, não
tem controle sobre os efeitos simbólicos no sujeito e ressaltam que o diagnóstico de genitália ambígua é acompanhado por questões delicadas

337
na relação dos pais com o filho. Em casos de ambiguidade genital, existe uma especificidade no modo pelo qual o sujeito é afetado pela
complexidade da relação com seu corpo? Freud aponta o corpo como uma das três fontes de onde provém o sofrimento do homem e Lacan
afirma que a relação com seu corpo não é simples para nenhum homem. Consideramos a importância dos pais na constituição subjetiva e a
importância do corpo nesse processo. O peso do olhar e o corpo como estranho são os aspectos que nos propomos discutir a partir de uma
leitura em Freud e Lacan.

Anomalias da diferenciação sexual


As anomalias da diferenciação sexual, de acordo com Damiani (2002), “referem-se a uma discrepância entre os
diferentes sexos que um indivíduo apresenta: genético, gonadal, fenotípico” (p. 426). Exemplo: um pseudo-hermafroditismo
feminino apresenta virilização dos genitais externos, cariótipo 46, XX, e as gônadas são ovários. As anomalias da
diferenciação sexual abrangem “qualquer alteração no desenvolvimento sexual, quer em termos de gônadas, quer em termos
de estruturas internas e em termos de genitália externa” (idem, p. 426). Determinação e diferenciação sexuais contribuem
para o desenvolvimento dos genitais externos e internos, bem como para o amadurecimento sexual durante a puberdade.
Para compreender o que caracteriza as anomalias da diferenciação sexual é necessário conhecer o desenvolvimento
sexual, os processos de determinação e diferenciação sexual normais. Segundo Maciel-Guerra & Guerra-Júnior (2002) “o
processo de determinação sexual pode ser definido como que resultante na formação de testículos ou ovários, enquanto o de
diferenciação sexual diz respeito aos processos subsequentes à formação das gônadas, ou seja, o surgimento dos ductos
genitais e da genitália externa” (p. 5).
Nos seres humanos, os dois processos estão associados à presença ou ausência do cromossomo Y no cariótipo. Até
aproximadamente a sétima semana após a fertilização o embrião humano é um organismo bissexual, provido com primórdios
gonadais e genitais idênticos nos dois sexos, sendo impossível fazer a distinção macro ou microscópica entre embriões com
predestinação masculina ou feminina. Até esse período, “o que existe são rudimentos gonadais (gônadas bissexuais ou
indiferentes), primórdios dos condutos genitais internos masculinos e femininos e rudimentos genitais externos” (MACIEL-
GUERRA & GUERRA-JUNIOR, 2002, p. 5).
O processo como um todo é dividido em quatro etapas: definição do sexo cromossômico (XY ou XX), instituída na
fertilização; diferenciação das gônadas em testículos ou ovários; diferenciação dos genitais internos e externos, masculinos
ou femininos, a partir das estruturas indiferenciadas presentes no embrião; e diferenciação sexual secundária, que caracteriza
a “resposta de numerosos tecidos aos hormônios produzidos pelas gônadas para completar o fenótipo sexual” (HACKEL, et
al., 2002, p. 18). A ambiguidade genital compromete a avaliação do sexo fenotípico da criança.
Com variados critérios para diagnóstico, segundo Damiani (2002) uma genitália é considerada ambígua “sempre
que ofereça dificuldades para o médico (supostamente conhecedor das variantes da normalidade de uma genitália externa)
atribuir o sexo a essa determinada criança” (p. 426). O critério diagnóstico mais utilizado, tanto na literatura quanto na
prática médica, foi proposto por Danish em 1982. De acordo com ele, pode-se considerar a genitália ambígua quando se
observa as seguintes características: em genitália de aparente aspecto masculino: a) gônadas não palpáveis; b) tamanho
peniano esticado abaixo de - 2,5 desvios padrão em relação à média para a idade; c) gônadas pequenas, ou seja, maior
diâmetro inferior a 8 mm; d) presença de massa inguinal que pode corresponder a útero e trompas rudimentares; e)
hipospadia. Em genitália de aparente aspecto feminino: a) diâmetro clitoriano superior a 6 mm; b) gônada palpável em
saliência labioescrotal; c) fusão labial posterior; d) massa inguinal que possa corresponder a testículos.

Condutas em casos de ambiguidade genital


As condutas adotadas em casos de ambiguidade genital têm variado através das décadas. No fim do século XVIII e
início do século XIX, os hermafroditas eram considerados por muitos como anormais e maléficos. Criando-se estratégias de
eliminação dos mesmos como, por exemplo, os gregos e latinos, que os levavam para o mar, sem que pudessem tocar no solo.
A mitologia e outras crenças permitem a manutenção de um espanto/ horror a um corpo que não pode ser incluído no quadro
classificatório da diferença sexual, não pode ser nomeado. Na Idade Média, obrigava-se a partir das regras do direito
canônico e civil uma determinação do sexo, geralmente realizada pelo pai ou padrinho (ANSERMET, 2003).
No entanto, deve-se ressaltar que nem sempre foi atribuída ao hermafroditismo uma imagem negativa. Em algumas
culturas, como os Inuits, o hermafrodita é tido como um xamã, representante de um terceiro sexo. Há, ainda hoje, um
movimento nos Estados Unidos contrário à intervenção médica nos casos de hermafroditismo – apoiam-se na afirmativa de
que "é melhor ser um hermafrodita verdadeiro que um falso homem ou uma falsa mulher" (ANSERMET, 2003, p.150).
Atualmente, a ambiguidade genital é considerada pelo saber médico uma emergência pediátrica (DAMIANI, 2002).
Segundo a literatura médica sobre ambiguidade genital (DAMIANI, 2002; MACIEL-GUERRA & GUERRA-JUNIOR,
2002), imediatamente após o nascimento de uma criança com um distúrbio da diferenciação sexual o principal objetivo é o
diagnóstico preciso da etiologia do distúrbio para definição do sexo de criação. Nos casos em que a criança recém-nascida
apresenta genitália ambígua é crucial que o diagnóstico preciso seja realizado antes que os pais definam o sexo social e
psicológico da criança (MACIEL-GUERRA & GUERRA-JUNIOR, 2002). Segundo estes autores a avaliação diagnóstica
“deverá ser o mais ágil possível, evitando algumas possíveis situações de risco de vida para o paciente, como no caso da
hiperplasia congênita das supra-renais na forma perdedora de sal” (idem, p. 161).

338
Vale ressaltar, contudo, que mesmo sem a premência da morte, a indefinição do sexo biológico de um sujeito pode
acarretar prejuízos irreparáveis ao mesmo. Isso porque os casos de ambiguidade genital apresentam uma má-formação, e
diante disso, dessa degradação física, o corpo fica passível de ser transformado em um inimigo para o sujeito (ANSERMET,
2003, p.156). Considerando tal aspecto, escolhemos o filme XXY como um bom caminho para que se possa abordar o
sofrimento de uma jovem, marcada pelo peso do olhar e do corpo como estranho. XXY é um longa metragem argentino,
lançado em 2007, dirigido por Lucía Puenzo, premiado no Festival de Cannes, também em 2007. Apresenta a trajetória da
vida de Alex, uma adolescente de 15 anos que mora com seus pais numa praia isolada do Uruguai.
No site oficial do filme (http://xxylapelicula.puenzo.com/) há uma nota da Sociedade Espanhola de Ginecologia e
Obstetrícia acerca do diagnóstico de Alex. O título XXY, se remete à síndrome de Klinefelter – estado intersexual com
cariótipo 47 XXY. Segundo o saber médico, a Síndrome de Klinefelter é a anomalia cromossômica sexual que mais
frequentemente afeta indivíduos do sexo masculino. Nesta síndrome, o indivíduo não apresenta genitália ambígua, e o
aspecto dos genitais externos é masculino. A síndrome de Klinefelter corresponde a uma forma de deficiência testicular
primária, com elevados níveis de gonadotrofias (MARQUES-DE-FARIA, 2002).
No entanto, a Sociedade Espanhola de Ginecologia e Obstetrícia esclarece que esse não é o caso de Alex, trata-se
de um caso de hiperplasia supra-renal congênita. O diagnóstico correto da jovem do filme é de pseudo-hermafroditismo
feminino. O pseudo-hermafroditismo feminino (PHF) configura-se pela virilização dos genitais externos de indivíduos com
constituição cromossômica 46, XX, cujas gônadas são ovários (MARINI & MELLO, 2002). Deixando de lado essa questão
diagnóstica, o que nos interessa ressaltar com o uso desse filme como exemplo é a especificidade do modo como um sujeito
com genitália ambígua é afetado pela complexidade da relação com seu corpo.
Ao relatar o nascimento de Alex, seu pai, enfatiza: “era perfeita, desde o primeiro momento em que a vi, perfeita”.
Alex tomava regularmente corticóides para evitar sua virilização, ou seja, o desenvolvimento do fenótipo masculino durante a
adolescência. O tratamento em casos de hiperplasia supra-renal congênita consiste em substituição com glicocorticóides
visando: à supressão da hipersecreção de 17-OHP e de andrógenos, bloqueio da virilização, e avanço do crescimento, sem
causar efeitos colaterais como, hipertensão e retorno do crescimento (MARINI & MELLO, 2002).
Além da discussão sobre a anomalia da diferenciação sexual que Alex apresenta, o filme lança uma discussão sobre
a definição de seu sexo. A quem cabe esta decisão, a Alex ou a seus pais? Antes do nascimento de Alex, os médicos
solicitaram a seus pais autorização para filmar o parto, estes recusaram. No segundo dia de nascida vários profissionais se
ofereceram para fazer as correções cirúrgicas necessárias para definição do sexo no recém-nascido. Os médicos alegaram que
Alex não se lembraria de nada, apenas das cicatrizes. Os pais de Alex se abstiveram, delegam à filha tomar a decisão de seu
sexo quando ela tiver idade para resolver essa ambiguidade.
Ao nascimento de uma criança com genitália ambígua a pergunta circunstancial é: qual será o sexo da criança? Está
interrogação baliza as decisões que determinarão as condutas clínicas e cirúrgicas dos profissionais de saúde. O objetivo dos
profissionais é responder a esta questão, ou seja, definir o sexo da criança. A definição do sexo de criação é um processo que
envolve a equipe profissional e a família, e está sujeita a variáveis como: constituição cromossômica, tipo de tecido gonadal,
risco de malignização destas gônadas, capacidade para futura função sexual, época e tipo de correção cirúrgica reconstrutiva
da genitália externa, previsão do desenvolvimento de caracteres sexuais secundários espontâneos, a necessidade de terapia de
reposição hormonal, a possibilidade de fertilização futura (MACIEL-GUERRA & GUERRA-JUNIOR, 2002). Maciel-Guerra
e Guerra-Júnior (2002) enfatizam que independente da opção de sexo de criação, é crucial que as correções cirúrgicas de
genitália interna e externa sejam realizadas o mais precocemente possível.
Com a evolução tecnológica na área da saúde, novas técnicas e instrumentos disponíveis forneceram possibilidades
de intervenções cirúrgicas aos profissionais de saúde (MACHADO, 2005). Segundo Silva & Miranda (2002) a correção
cirurgia deverá levar em consideração três aspectos: a genitália externa, a idade de apresentação do paciente e o sexo de
criação. A atual tendência na condução de casos de genitália ambígua é a correção cirúrgica precoce, com o objetivo de
minorar e até eliminar os problemas psicossociais ocasionados pela ambiguidade genital, com o intuito de impetrar um
“órgão genital externo de aparência anatômica apropriada e sexualmente funcional” (SILVA & MIRANDA, 2002, p. 222).
Para tanto, a Associação Americana de Pediatria indica que, sob a ótica do desenvolvimento emocional, “o período
compreendido entre seis semanas e quinze meses é adequado para realização do tratamento cirúrgico” (idem, p. 222).
Em pesquisa realizada em um hospital universitário sobre a atenção a paciente com genitália ambígua constatamos
que o diagnóstico e posterior tratamento nem sempre são ágeis. Ambos podem permanecer suspensos por um tempo
indefinido, do qual irá depender do serviço e exames realizados no hospital. Durante esse período, a angústia é crescente para
família, assim como para os profissionais. Uma das psicólogas entrevistadas relata que
“a família fica ansiosa, com muita expectativa. A nível emocional e psicológico quer saber o sexo”.
“Os pais também passam muita ansiedade um pra o outro. Ás vezes, culpabilizam um ao outro e se desesperam. É
como se fosse outro nascimento, um nascimento psicológico. Mas a família não quer esperar mais, não entende que
não é possível fazer tudo rápido”.
“A gente tenta amenizar esse tempo de avaliação, que é a época mais difícil porque cobram muito e tem que esclarecer
as dificuldades”.

Segundo Bittencourt & Ceschini (2002) neste período o elemento mais significante na atenção aos pacientes e
familiares é o apoio emocional, o que demanda dos profissionais envolvidos sensibilidade e habilidade. É de suma

339
importância que a família sinta-se apoiada e orientada no enfrentamento dessa problemática para que “possa entender a
importância de adiar algumas decisões até que tenham sido coletados todos os dados necessários para a definição e
atribuição do sexo” (BITTENCOURT & CESCHINI, 2002, p. 194). Os pais devem ser informados e esclarecidos sobre o
problema, diagnóstico, prognóstico, de como ocorre o processo de diferenciação sexual e do problema de seu filho.
Visto esta preocupação, como um dos procedimentos iniciais, os pais são orientados pelos profissionais do hospital
a não registrar seu filho. Segundo Maciel-Guerra & Guerra-Junior (2002) o registro civil num determinado sexo não deve ser
liberado enquanto não houver certeza sobre o sexo de criação, e à família deve-se fornece todas as informações necessárias
para obter sua colaboração.
Bittencourt & Ceschini (2002) enfatizam a importância de que estas orientações sejam claras e objetivas. A equipe
profissional deve preocupar-se em comunicar informações seguras “com sensibilidade para perceber o grau de compreensão
e entendimento e, sempre que necessário, decodificar a mensagem, ou seja, interpretá-la adequadamente para transmitir
segurança aos pais” (idem, p. 193).
Segundo as autoras citadas acima, fatores como a classe social de origem dos pais, seu nível cultural, grau de
escolaridade, repertório linguístico precisam ser considerados nesta tarefa. Tais fatores determinarão o grau de entendimento
do problema e das orientações e informações transmitidas aos pais. Outros fatores também são enfatizados como: ignorância
e estigma social, situação conflitivas às quais os pais estão expostos, atitudes machistas da sociedade, o local de moradia da
família (se residem na zona rural ou urbana, em cidade grande ou cidade pequena). Quanto a ouvir esta família é cogente que
suas opiniões, dúvidas, angústias, valores, sejam respeitados, para que assim esta possa ser auxiliada na condução dessa
problemática (BITTENCOURT & CESCHINI, 2002).
Feitas estas considerações, os pais são aconselhados pelos médicos a definirem o mais rápido possível o sexo para a
criança. Definido o sexo de criação pela equipe profissional e família, o cirurgião pediátrico irá traçar um planejamento dos
procedimentos cirúrgicos para reconstrução da genitália (SILVA & MIRANDA, 2002). Contrário a essa conduta médica
atual, o pai de Alex convenceu sua esposa a recusar as disposições médicas, não fazerem nada a respeito e decidiram criar
Alex com a genitália ambígua. Saíram de Buenos Aires, mudaram-se para um lugarejo isolado no Uruguai, afastado do olhar
de muitos, com o corpo velado, longe de qualquer influência que pudesse intimidar Alex e rotulá-la como um estranho. Alex
foi criada como menina, seu nome é ambíguo, suas bonecas apresentam bitucas de cigarro como pênis, desenha corpos nus e
ambíguos. Em um de seus desenhos um corpo híbrido está pendurado pelo pênis a sangrar.
É notável a grande dificuldade existente em se lidar com o impasse instalado pela ambiguidade genital. O qual “irá
percorrer todas as decisões que os pais deverão tomar nessa situação – da escolha do nome ao modo de tratar a criança”
(FERRARI, 2002, p.465), perpassando, ainda, pela atuação dos profissionais envolvidos.

A importância dos pais na constituição subjetiva


O diagnóstico de ambiguidade genital, recebido pelos pais provoca a emergência de uma oscilação na relação pais-
filho, relação esta, nodal na constituição subjetiva da criança. Podemos supor, como uma primeira análise da negação dos
pais de Alex em tomar a decisão sobre a definição do sexo da filha que não estava evidenciado o desejo de ter uma filha ou
um filho. É importante lembrar que seus pais souberam da suspeita que o feto poderia apresentar ambiguidade genital ainda
durante a gestação. O desejo dos pais de Alex atravessa a decisão de não interferir não escolha futura da filha. O desejo do
pai de Alex, por exemplo, apresenta-se em alguns trechos do filme tão ambíguo quanto a condição da jovem. Ele comete
lapsos de linguagem: “tenho uma filha...um filho”, ou “se você voltar a tocar em meu filho...”. Este último lapso poderia
sinalizar seu desejo de ter um filho?
O pai de Alex, confuso quanto à sua decisão não-cirúrgica e as escolhas de sua filha, vai procurar um sujeito que
aos 18 anos decidiu mudar de sexo (de mulher para homem). Questiona o sujeito se este sempre soube que não era mulher,
como foi sua mudança. Por fim, buscando respostas ou confirmações de que fez a escolha certa para sua filha/filho pergunta:
“e se não deve ser assim? E se me equivoquei?”. Segundo Bittencourt e Ceschini (2002) “é a família quem absorve o maior
impacto com o nascimento de uma criança com tal problema: o núcleo familiar fica extremamente fragilizado e inseguro
diante da nova situação, sem saber como agir” (p. 191).
Ferrari (2002) afirma que o ponto essencial para que a criança venha a ser “sexualmente adequada” ao longo de seu
desenvolvimento será o reconhecimento pelos pais de que essa criança tem esse ou aquele sexo. A ambiguidade genital toca a
identidade sexual e não somente frustra o desejo dos pais. Assusta-os e os paralisa em relação também à futura orientação
sexual do filho. Trata-se também de uma perda. A mesma autora relata, ainda, que, “[Os pais] Sofrem não só pela
responsabilidade da decisão que devem tomar em nome da criança real, mas também pela perda da criança imaginária,
aquela com a qual já vinham estabelecendo um vínculo desde a concepção” (FERRARI, 2002, p.467).
A mãe parece não aceitar a perda da filha. Diante do encontro com o fantasma da escolha de Alex sua mãe convida
um casal de amigos para passar um tempo na casa da família. Um dos convidados é cirurgião e a pedidos da mãe avalia o
caso de Alex, sem que esta e o pai tivessem tomado conhecimento disto. Parece uma última tentativa por parte da mãe de
manter ou mesmo ter a filha desejada desde o nascimento. O pai confronta o desejo da mãe e demonstra a impossibilidade de
realização deste: “sabíamos que isto ia acontecer, não vai ser mulher a vida toda”, “não se iluda, jamais será uma mulher
mesmo que o cirurgião lhe corte o que sobra”. A mãe insiste: “converse com ele (o cirurgião). E se ela quiser?”.

340
A mãe de Alex relata em um momento de desabafo sua angústia ao casal de convidados: “todo tempo lhe
perguntam ‘é homem ou mulher?’. Na clínica é a primeira coisa que perguntam: se é menino ou menina”. O filme é marcado
por contradições, conflitos, indecisões, dúvidas e sofrimentos. A indefinição sexual de Alex suscitada pela ambiguidade
genital direciona olhares, cria silêncio, traz à tona conflitos familiares, receios e, angústia. Antes de nascer ou mesmo antes
de sua concepção a criança habita o imaginário de seus pais. A gravidez é um período repleto de expectativas, anseios,
angústias, sonhos, ideais parentais que são depositados na linguagem e que irão marcar a criança antes de seu nascimento
(FREUD, 1914/1976). Estes desejos parentais depositados na linguagem e olhar representarão as primeiras projeções com as
quais a criança irá identificar-se ao longo de seu desenvolvimento. A mãe sonha com um filho saudável, menino ou menina.
Segundo Zalcberg (2003) “a mãe atribui ao feto a forma acabada de uma criança assim que sabe estar grávida” (p. 157).
Esta imagem simboliza o investimento libidinal materno, e representa a maneira pela qual a criança será amparada logo ao
nascer (ZALCBERG, 2003).
Entretanto, ao nascimento, a criança da realidade se apresentará diferente da criança idealizada pela mãe. Cabe a
esta “aceitar” e fazer o luto da criança ideal de suas fantasias narcísicas (CECCARELLI, 2003). Quando a criança nasce com
uma genitália ambígua, a discrepância entre a criança da realidade e a criança idealizada é tamanha que ultrapassa os limites
do “aceitável” e choca os pais com o real. Entendemos por real um dos três registros conceituais lacanianos introduzidos em
1953. O registro do real caracteriza o impossível de ser simbolizado (JORGE, 2005). O diagnóstico de ambiguidade genital
se interpõe a nível do real e faz fracassar o “edifício simbólico” e imaginário construído pelos pais, crucial para o
desenvolvimento físico e subjetivo da criança (ANSERMET, 2003).
A ambiguidade genital provoca a emergência de delicadas questões referentes à relação pais-filho, esta fundamental
na constituição subjetiva da criança. Tkach (2007) refere-se a um golpe que sacode “uma estrutura simbólica desejante”, o
narcisismo dos pais (p. 303).
“É algo próprio que se destruiu. Aquilo que se busca realizar num filho. A continuidade numa filiação. A
transcendência na descendência, apesar da morte. O narcisismo e a transmissão em outra geração. Este filho, corpo
disforme, amorfo, feio, torpe, lento, monstruoso e imóvel, não concretizará nenhum destes sonhos e ilusões. [...] Não
se pode reconhecer nele. Então, não há onde situá-lo. E o primeiro lugar atribuído pode ser o de um refugo” (TKACH,
2007, p. 303-4).

Na tentativa de resolver tais questões, a medicina toma para si a possibilidade de intervir no real através das
correções cirúrgicas precoces (ANSERMET, 2003). No entanto, a intervenção cirúrgica, por perfeita que resulte, não tem
controle sobre os efeitos simbólicos na família e na criança. Não há como prever nem mensurar tais efeitos, pois ao tratar-se
de questões subjetivas conhecer as premissas não nos dá certeza dos resultados. Mesmo que a criança passe por correções
cirúrgicas nos primeiros meses de vida, a marca da ambiguidade genital já imprimiu significantes em seu corpo, marca que
irá “tomar algum lugar na mitologia familiar” (TKACH, 2007, p. 304). “Se mal elaborados de início, esses aspectos do
corpo ou das condutas estarão sempre presentes no discurso dos pais, a cada pergunta que eles se fizerem sobre o futuro do
filho [...] e a cada silêncio sobre aquilo que acreditam poder apagar de sua história com essas condutas” (FERRARI, 2002,
p.467). Como cicatrizes esta marca está lá, embora se queira encobrir, dissimular (TKACH, 2007).

A escolha sexual
Freud demonstra com sua teoria que a sexualidade humana não se restringe à anatomia e, portanto, não basta ter
nascido sob o signo de um sexo para que este seja escolhido pelo sujeito. Em seu texto Além do princípio do prazer, Freud
(1920/1994) constata que "o conceito de 'sexualidade' e, ao mesmo tempo, de pulsão sexual, teve, é verdade, de ser ampliado
de modo a abranger muitas coisas que não podiam ser classificadas sob a função reprodutora [...]" (p. 71). A esse respeito,
Ansermet (2003) afirma "seja qual for o sexo biológico, é a posição de cada um em relação ao falo que o situa como homem
ou como mulher" (p. 147). O referido autor enfatiza, assim, a primazia do falo na ordem simbólica em contraposição aos
corpos definidos como de homens e mulheres.
Em Três Ensaios sobre uma teoria da sexualidade (1905/1994) Freud apresenta como equivalente à teoria popular
sobre a pulsão sexual a fábula da divisão do ser humano em duas metades - homem e mulher - que aspiram unir-se
novamente no amor. Esclarece que, inicialmente, todos apresentam certo grau de hermafroditismo anatômico. A partir desse
hermafroditismo, espera-se que apenas resquícios do aparelho do sexo oposto persistam sem nenhuma função como órgão
rudimentar ou se modifiquem, ficando responsável por outras funções. Esse processo de diferenciação pode ser dividido em
dois momentos distintos: a determinação gonodal, onde há a transformação da gônada bipotencial, indiferenciada em
testículo ou em ovário; e a diferenciação sexual, a qual leva o sujeito ao seu fenótipo final a partir da gônada diferenciada.
Freud, ainda nos Três Ensaios, sinaliza que esses fatos anatômicos apontariam para uma predisposição
originalmente bissexual que, no decorrer do desenvolvimento, transforma-se em monossexualidade com resíduos ínfimos do
sexo atrofiado. Portanto, estaríamos falando de um fator comum a todos os sujeitos. E, nesse contexto, pode-se compreender
que o sujeito com ambiguidade genital depara-se com a mesma predisposição bissexual dos sujeitos que não apresentam
genitália ambígua. A ambiguidade genital toca o sexo morfológico, atingindo a própria diferença. Ansermet (2003) ressalta
que se a secção não é feita, desabam-se os sinais entre o mesmo e outro, entre o idêntico e o diferente. A ausência de
diferença dá início a um processo de segregação. Reforçando, pois, o efeito de obstáculo do desconhecido característico de

341
toda busca sexual. Portanto, mesmo diante da “escolha” de um sexo através da correção cirúrgica, cabe ao sujeito tornar-se
menino ou menina. Essa operação é concretizada na puberdade. O sujeito vivencia a mudança de objeto quanto à libido – do
auto-erotismo à escolha de objeto (FREUD, 1905).
No filme, a transformação do corpo da infância para um corpo adulto, desencadeada pela puberdade confronta Alex
com exigências pulsionais. Como qualquer adolescente ela se depara com o surgimento de algo novo, que tem repercussões
na vida e no discurso do adolescente (LACADÉE, 2001). Alex para satisfazer as pulsões sexuais revisita seu corpo na busca
de prazer e relata masturbar-se com frequência. Após ter relação sexual com Álvaro, o qual imaginava ser Alex uma garota, é
questionada por ele sobre sua anatomia, sobre seu corpo. Alex responde que é homem e mulher. O garoto exclama: “mas isso
não pode ser!”. Alex responde: “vai me dizer agora o que posso ser ou não ser?”. Álvaro pergunta sobre sua orientação
sexual e Alex responde não saber se gosta de garotos ou garotas.
Alex, aos 15 anos, parece tomar uma decisão: para de tomar os corticóides e diz a sua mãe: “Não quero mais! Não
quero mais comprimidos, nem operações, nem mudanças de colégio”. Alex não se define como homem ou mulher, nem
define sua sexualidade, apenas decide que quer que tudo continue igual. Um diálogo com o pai reflete este desejo de Alex.
Seu pai a observa dormindo, Alex acorda e pergunta o que ele está fazendo, ao que ele responder: “cuidando de você”. Alex
diz ao pai que este não vai poder cuidar dela para sempre. Seu pai relata que irá cuidar dela até que ela possa escolher. Alex
indaga o pai: O quê? Seu pai responde: “O que vai querer”. Alex encerra o assunto questionando: “e se não houver
escolha?”. Seu pai abaixa a cabeça em silêncio.
A ambiguidade genital diz respeito não somente ao sexo morfológico do sujeito, como já mencionamos, mas
principalmente ao caráter estruturante do sexo. Nesse sentido, será a marcação simbólica a determinar a escolha sexual do
sujeito – “o importante é a assunção subjetiva do sexo. Essa assunção implica o sexo atribuído, a partir do lugar que a
criança ocupará no lugar do Outro. Não são os caracteres sexuais secundários, sobretudo uma marca simbólica do corpo
inscrita pelo Outro?” (ANSERMET, 2003, p.151).

O peso do olhar e o corpo como estranho


A questão do olhar perpassa todo filme XXY. A ausência de diálogos em algumas cenas é acompanhada por troca
de olhares entre as personagens. Alex é questionada por Álvaro: “por que as pessoas te olham assim? Por que todos te olham
assim? O que você tem? Você não é normal”. É diferente e sabe disso. Podemos conjecturar que para essa insuficiência
simbólica recorre-se a muletas imaginárias. Miller (2005) observa este aspecto ao afirmar que: “cada vez que se produz uma
falha na dimensão simbólica alguma coisa da ordem do imaginário é convocada para remediá-lo.” (p. 306).
O exemplo do que acontece com Alex que ora é vista como um “monstro”, ora como uma “espécie em extinção”,
“anormal”, “estranha” chamou nossa atenção. Alex é agredida e molestada por três rapazes com a justificativa de que só
queriam ver seus genitais, “nada mais”. O episodio é marcado pelo desespero de Alex, que luta contra os agressores e chora e
pelos sentimentos dos rapazes que vão de uma exaltação perversa (a ponto de masturbá-la) à repulsa ao observar seus
genitais. Após o ocorrido, o pai diz que a filha precisa ir ao médico e a mãe enfática pronuncia: “não quero que ninguém a
examine!”.
O que mobiliza o sujeito a olhar? Ou pelo contrário, o que lhe mobiliza a evitar o olhar? O que provoca o desejo
dos pais de Alex de esconder a filha do olhar dos outros? Aqui, faz-se oportuno referir a diferença entre ver e olhar. O
primeiro é função dos órgãos da visão, já o segundo é objeto da pulsão escópica (QUEIROZ, 2007). Para Lacan (1964-65) o
olhar corresponde a uma das cinco formas de objeto a, logo, como objeto a, não está do lado do sujeito, mas do lado do
objeto. Para Queiroz (2007) “significa que nunca se pode ver a imagem do ponto de onde ela nos olha. Há outro que nos
olha e nos captura. O olhar é exterior ao sujeito, olhar advém, primeiramente, do outrem” (p. 56). Como objeto pulsional o
olhar assume a identidade de objeto a, perdido, separado do sujeito, objeto do desejo do Outro.
O olhar é condição para existência do sujeito, o olhar é estruturante, “na ausência do olhar não existimos, mas a
maneira como somos olhados define um destino” (QUEIROZ, 2007, p. 61). O manto imaginário tecido pela mãe assegura
antes do nascimento uma primeira identidade para criança, a mãe aponta a imagem de sua fantasia narcísica como ideal e a
criança se identifica. Zalcberg (2003) afirma que identificar-se com o objeto imaginário do desejo materno torna-se condição
universal de existência. Podemos complementar com o que afirma Queiroz (2007): “sem a imagem, não há representação
possível, nem aparelho psíquico, não há como o ser humano reconhecer seu corpo” (p. 66-7). A criança é tomada como
objeto de gozo na fantasia materna e antes de falar e ver é falada e vista pelo Outro. O desejo da mãe se interpõe, são as
primeiras impressões visuais apreendidas na relação com a mãe que a criança vê, integra, desenvolve-se e deseja, ao fazer-se
objeto do desejo do Outro materno (ibid, 2007). “O olhar é o primeiro objeto de desejo e pode ser concebido como um
primeiro objeto transicional do bebê na sua relação com a mãe” (ibid, p. 63). É a partir da fala e do olhar da mãe que o bebê
passa de um corpo real com o qual veio ao mundo, a um corpo sexuado, erógeno.
O diagnóstico de ambiguidade genital, como já mencionado, tem certo impacto sobre o olhar, conferindo a este um
peso. Ele configura-se como impactante para família, que não sabe como agir diante do filho que não reconhecem
(BITTENCOURT & CESCHINI, 2002). “Os pais são tomados de enorme frustração e estranhamento diante do filho que
não podem identificar como o de suas expectativas” (FERRARI, 2003, p. 465).
Freud, em 1919 aborda a questão do estranho em seu texto O estranho. Segundo ele tomamos por estranho aquilo
que indubitavelmente assusta e causa horror. O autor, inicialmente, faz um exame etimológico das palavras alemãs heimlich e

342
unheimlich, que significam respectivamente familiar e estranho e conclui que “o estranho é aquela categoria do assustador
que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (FREUD, 1919/1994, p. 277). Nesse sentido, “o estranho
provém de algo familiar que foi reprimido” (ibid, p. 307). Freud toma duas vias para origem do sentimento de estranheza,
uma é a via do estranho ligado a complexos infantis recalcados. Segundo ele “uma experiência estranha ocorre quando os
complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão” (ibid, p. 310).
“‘Unheimlich’ é o nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz” (ibid, p. 281).
Devido à raridade do nascimento de crianças com ambiguidade genital, a visão desta causa um sentimento de
estranheza, podendo remeter a algo monstruoso, quimérico.
“A idéia de monstruosidade evoca o efeito de exibição de um fenômeno irregular, excepcional, diferente das
manifestações comuns da natureza, da ordem das coisas. Uma má-formação genital é uma realidade que faz efração,
impondo ao sujeito uma questão insolúvel, impossível de ser pensada.” (ANSERMET, 2003, p. 155).

Ceccarelli (2003) aborda o estranho no encontro do profissional de saúde com o paciente com genitália ambígua.
Segundo o autor, “muitos profissionais são tomados por um sentimento de estranheza (Unheimlich) [...]. Não é raro,
ocorrem atitudes defensivas - por vezes um diagnóstico apressado - contra as moções pulsionais recalcadas que este
encontro desperta” (p. 17).
Considerando o peso do olhar podemos afirmar que a ambiguidade genital assinala sua marca no corpo do sujeito.
Alex tem um corpo que se revelou diferente dos corpos dos manuais de anatomia que lê, diferente do corpo dos amigos, um
corpo que suscita o olhar do outro. As mudanças ocorridas na puberdade a levam a revisitar seu corpo, ao observar-se nua
frente ao espelho, ela chora em silêncio. O espelho apresenta-se como “um lugar de registro do engodo das imagens ideais
introjetadas e sedimentadas pelo Outro” (QUEIROZ, 2007, p. 71).
Frente ao espelho Alex é observada por sua imagem, numa dupla atividade de olhar-se e ser olhada pelo Outro
convertido em seu próprio corpo. A este respeito Ansermet (2003) sintetiza: “a má-formação, a degradação física, tornam o
corpo passível de ser transformado em um inimigo para o sujeito. O corpo se torna uma das formas de Outro” (p. 156-7). A
ambiguidade genital torna passível a transformação do corpo em Outro, experienciado como estranho.

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A Lógica Perversa do Consumo, a Apatia e Depressão como Efeitos da


Globalização
Rita Maria Manso de Barros - UERJ/UNIRIO
[email protected]

Francisco Ramos de Farias – PPGMS/UNIRIO

Resumo: O corpo e o sexual adquirem novo estatuto no âmbito teórico-clínico da psicanálise, campo de saber que evidencia a discursividade
decorrente de uma nova ética: a ética do desejo. Trata-se de evidenciar a existência de algo além da objetividade física e dos sintomas
orgânicos na perspectiva de um olhar sobre a relação do sujeito com sua corporeidade. O sexual exige ser ouvido noutra dimensão tendo
como referência outro saber. Afinal, para que serve um corpo? Para o discurso médico, o corpo atrela-se à vida (máquina composta de órgãos
com funções específicas integradas por intermédio de um mecanismo de reajuste). Na psicanálise, a instância corpórea está a disposição do
gozo compreendido, ação que indica a satisfação da pulsão. O modo como cada um destes discursos confronta-se com essas dimensões é
próprio. Entre o discurso médico e o psicanalítico há uma antinomia recíproca. O médico designa um lugar para o corpo e o sexual a partir da
clínica do olhar-contemplação, no sentido de adequá-los a certa norma, inscrevendo numa categoria previamente estabelecida. Como o
sujeito busca resposta à sua incompletude, não abandona a posição de ser insatisfeito. A prática médica se caracteriza pela exclusão da
subjetividade e pela tentativa de legislar o sexual. Em contrapartida, a clínica psicanalítica reconhece a dimensão das implicações psíquicas
indicando que sujeito deverá ser ouvido num lugar que faça ressonâncias aos ruídos oriundos da pulsão. Assim, pode-se pensar a
singularidade e a irredutibilidade do corpo aos parâmetros reprodutivos: nele impera o sexual impossível de ser adestrado.

1. O indiferente cotidiano
Discute-se, nesse ensaio, a impulsividade no consumo, o vício e o esvaziamento subjetivo bem como seus efeitos
mais diretos agrupados no âmbito da experiência contemporânea sob a rubrica de novos sintomas. Dentre estes se destacam:
a apatia com que o homem atual reveste suas vivencias e a depressão como a possível resposta aos efeitos da globalização,
especialmente, no processo em que os limites são praticamente ignorados aliado à efemeridade da experiência. No intuído de
abordamos densa questão, lançamos mao de operadores teóricos de campos diversos, mas sobretudo focalizemos o âmbito da
experiência clínica da psicanálise, campo de saber que é convocado para problematizar a posição ética do sujeito na
atualidade frente ao desejo diante da imperiosidade do consumo. Além disso, procuramos pensar o lugar desse campo de
saber, tendo como pano de fundo o estado atual da cultura na contemporaneidade ou, como alguns preferem chamá-la, na
pós-modernidade, era marcada por ações de cunho impulsivo.
Acreditamos que muitas são as formas de negociação que o homem empreende para lidar com as agruras do
presente cotidiano que tem como matriz uma lei tirânica e, até certo ponto inegociável. As respostas decorrentes da
negociação do sujeito ganham cores diferentes em nomenclaturas como bulimia, anorexia, alcoolismo, toxicomania,
depressão entre outras formas de adoecimento bem frequentes na cultura atual. Em todas, além do caráter impulsivo, tem
lugar ocorrências do âmbito da ação. Aliás, “trata-se de formas de padecimento que podem ser consideradas patologias do
ato, tanto na sua vertente de inibição quanto de realização ”(Gondar, 2001, p. 27).
Iniciemos com a inquietante indagação: como dissolver a monotonia do consumo no sujeito cujo incremento de
angústia se escoa pela impulsividade? Em princípio, ressaltamos que a diversidade do consumo (existem vários objetos a

344
serem consumidos, mas em todos o que está em pauta é o imperativo categórico: consuma!), sombreia uma espécie de
monotonia que pode ser pensada em termos de uma posição de sujeito na estrutura e também um corpo necessário para
instaurar uma espécie de economia de gozo. Da diversidade que aponta para a singularidade, parece que o sujeito nada quer
saber, neutralizando de maneira ilusória pela crença de que o consumo traz felicidade. Estamos diante da presença da
ferocidade superegóica pela qual o sujeito tenta consumir de forma impulsiva, evitando qualquer meio de saber próprio de
sua divisão subjetiva.
A impulsividade entendida como patologia do ato, pode ser considerada como a modalidade de produção subjetiva
(por mais apagada que seja), na qual o sujeito parece estar sendo abandonado pela palavra, visto tal alternativa conduzi-lo ao
território silencioso onde experimenta, de forma contundente, o inexpressável sobre o que nada há para dizer. Assim
comparecem à clínica determinados sujeitos que, aparentemente, não formulam uma demanda de mudança por não se
sentirem acossados pelo sintoma como modalidade de prejuízo em suas vidas. Assim produz um tipo de experiência que
torna a vida insuportável sem o recurso impulsivo de um dado objeto. Tal objeto idolatrado vislumbra para o sujeito o acesso
a um tipo de gozo indiferenciado em que prevalece a sensação de plenitude num estado de fusão. Provavelmente, interessa ao
sujeito um recurso que pacifique sua relação com o objeto de consumo, ou seja, tem interesse de que o clínico possa garantir
meios de sustentar a impulsão. Desse modo, recorre à clínica, não para pedir ajuda, mas para tentar restaurar um estado
anterior.
Este tipo de demanda parece não estar assentado numa falta, ou seja, articulado a um tipo de vazio que impulsiona
o sujeito a buscar algum recurso por meio do saber. Tudo ocorre como se a única alternativa possível fosse e decaimento do
sujeito devido ao seu engajamento em situações que se traduzam em excesso de gozo. O vazio estruturante é vivido como o
demasiadamente cheio, pondo assim o maior obstáculo no empreendimento das estratégias clínicas, uma vez a posição do
sujeito é a de quem possui um saber sobre um mundo maravilhoso e secreto, mas sobremodo, um saber indizível que somente
pode ser compartilhado no ritual do consumo voraz. A impulsividade adotada como caminho imediato para a felicidade se
traduz pelo querer superar, a todo custo, um limite de modo a se ter acesso ao proibido. Mas disso decorre que quanto mais o
sujeito se aproxima desse objeto disponível, mais tem reduzido a sua condição desejante. Tal redução é bastante perigosa,
pois culmina no anestesiar por completo o sujeito, confinando-o num estado apático. Este estado de apatia requer uma
espécie de dique de significação para fazer aparecer lampejos de subjetividade, sendo esse o pórtico de entrada da clínica que
enfrenta duas ordens de dificuldades: a) O sujeito, na sua indiferença, não se mostra em conflito entre os ideais do Eu e as
exigências pulsionais. Tudo leva a crer que o sujeito vive um tipo de unificação produzida por um tipo de gozo desmedido.
Isso quer dizer que não se observa, no sujeito, nenhuma disposição a renuncia. b) O objeto, por sua vez, reveste de emblemas
atrativos de gozo, sem alusão à castração, seguindo os ditames da ciência moderna do que resultou um mercado comum e o
imperativo de consumir como os efeitos diretos do novo laço social que produzindo marcando uma nova posição do sujeito
com o saber.
O novo cenário apresentado ao mundo pela eficácia da técnica criou todas as condições ideais para que o sujeito se
enuncie sem o colorido de seu desejo formulado na aparência de ausência de conflitos. Eis o modo como afirma sua condição
subjetiva. Esse empreendimento de alto custo subjetivo atende a finalidade de alcançar a espécie de universalidade
promulgada nos dias atuais. Mas isto, sem dúvida, conduz o sujeito à sua autodestruição ao invés de representar uma
alternativa viável de singularidade. O esvaziamento da subjetividade pelo nivelamento da singularidade conduz às formas
marcantes de patologias do ato, como a resposta mais direta a um imperativo ao qual o sujeito sequer vislumbra a
possibilidade de questionar. Ou seja, não vê outra alternativa, a não ser a obediência cega àquilo que é da ordem de uma
impossibilidade. Obviamente, na condição de cumprir um imperativo que ordena o impossível de ser realizado, o sujeito
responde, de forma impulsiva, com a passagem ao ato. Eis o impasse com o qual se depara o sujeito no presente cotidiano: a
exigência de uma modalidade de gozo sem qualquer esboço de renúncia. Há somente a exigência de gozo impossível diante
da qual a única saída do sujeito é a destruição. Seja a sua ou de quem encarna um tipo de injunção cruel e obstinada. Diante
de tais circunstâncias, não é oferecido lugar ao desejo de modo que, na aparência, o sujeito fica petrificado, paradoxalmente,
numa espécie de dinamismo desenfreado.
Somente podemos entender a adoção da postura impulsiva como a forma última de recusa empregada pelo sujeito
para não obedecer às injunções. Certamente esta recusa é realizada de forma vazia, estando excluídos os argumentos e atos
que poderiam servir de barreiras às imperiosidades das exigências.
Os comentários que se seguem foram inspirados pelo filme Trainspotting (1). Este título, que apareceu em
português como “Sem limites”, faz referência a um lugar por onde os trens passam. Nesse lugar não há outra coisa a fazer a
não ser drogar-se para ver a vida passar como se fosse um trem. O título em português é restritivo no sentido em que aponta
tão somente para o caráter avassalador da droga, no caso a heroína, sem atentar para o fato de que a droga é o meio de
entorpecimento encontrado para se buscar uma modalidade de satisfação plena, idealizada como possível, e desse modo
sustentar, na forma mais precária e destrutiva, o chamado viver.
O filme conta a história de jovens da classe trabalhadora, sem trabalho, sem perspectiva de futuro, que buscam na
droga heroína uma forma de se alienar desta realidade. Não difere muito da realidade brasileira a não ser pela droga à qual
têm acesso. Em nosso país, a cocaína, o crack ou o álcool são as drogas privilegiadas. Para alguns o filme é maçante,
repetitivo. Pensamos que tenha sido mesmo esta a intenção de seu diretor: passar a idéia da ausência de horizontes, da
repetição do mesmo, da absoluta falta de saída, da indiferença do outro, da impossibilidade da criação do novo e da violência

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que essa mistura gera. Apesar deste coquetel Molotov existencial, o filme trata destas questões com uma relativa leveza e
humor sutil. Para nós, expectadores, não deixa de fazer minar o horror.
Então, para caracterizar o nosso cotidiano, seremos obrigados a recorrer a uma trilogia que certamente nos espanta:
a impulsividade no consumo, o vício e o esvaziamento subjetivo. É sobre esta trilogia que desenvolvemos nossos argumentos
para pensar o lugar da psicanálise, tendo como pano de fundo o estado atual da cultura (Lyotard, 1986) na
contemporaneidade ou, como alguns preferem chamá-la, na pós-modernidade.

2. A impulsividade no consumo
Iniciemos situando o consumo no campo de uma racionalidade que se norteia tanto por parâmetros econômicos
quanto por não deixar de ter uma relação muito estreita com o panorama sociopolítico. Sabemos seguramente que consumir
faz parte de um sintoma social em função do qual o sujeito participa de um cenário, disputando no mercado, com seus
semelhantes, aquilo que a sociedade pós-moderna produz e coloca à disposição do homem. A sociedade pós-moderna não
somente produz os bens de consumo como também os mecanismos e os métodos de consumi-los. Desse modo, tudo o que é
produzido é justificado como estritamente necessário. Essa justificativa se dá pelos mecanismos de sedução que conduzem o
sujeito a ser atraído de forma incontrolável para os bens consumíveis.
Contudo, devemos prosseguir na análise desta questão com certa prudência para não esquecermos que o sujeito não
é totalmente passivo nesse processo, uma vez que o solo propício para o consumo já se encontra nele: a vontade de consumir.
Os mecanismos que levam à exacerbação do consumo somente dão corpo a esta característica do sujeito (a vontade de
consumir) sem, no entanto tê-la criado.
Sabendo dessa tendência para o consumo, que em dadas circunstâncias impele o sujeito a consumir de forma
impulsiva, tudo o que é produzido parece estar justificado sem que sejam medidas as consequências. Uma vez que o sujeito
busca incessantemente, frente ao estado de desamparo que se acentua com o final do milênio, uma forma de diferenciar-se
simbolicamente, o que o consumo desmedido oferece é uma ambiguidade no que concerne à diferenciação do sujeito no
interior dos grupos em que circula. Vale destacar a velocidade (2) com que os produtos de consumo aparecem e desaparecem,
e também o excesso em termos de quantidade que parecem ter um efeito nefasto no sujeito no sentido da tentativa de
preencher todos os vazios, a ponto de colocá-lo num estado de sufocamento, aniquilamento e angústia insuportáveis. Dito em
outras palavras, não há tempo para que seja elaborada a relação do sujeito com um bem e muito menos com sua perda, já que
é a efemeridade aquilo que impera de forma contundente: tudo é descartável e algumas coisas, às vezes, são recicláveis.
O consumo impulsivo já assumiu proporções tão gigantescas e incontornáveis que não restaria outra opção ao
sujeito senão consumir, o que nos leva a pensar numa espécie de ritual no consumo de bens como forma de demarcar limites
identificatórios e preservar, até certo ponto, um mínimo de privacidade e individualidade. Não obstante, o sujeito, ao ser
tomado pelo consumo, acaba por seguir uma direção oposta à diferenciação, tornando-se tão igual aos demais modelos
ditados pelo consumo como condições ideais e, por isso mesmo, torna-se um sujeito extremamente vazio e aniquilado. Como
encontrar uma saída para enfrentar as consequências dos monstros que são produzidos pela ciência, eficazmente utilizada
pelo discurso capitalista?
Levantar uma questão como essa é lembrar de uma particularidade dos nossos tempos. Tudo indica que estamos
vivendo numa época em que o nosso desejo parece estar muito bem regulado e ajustado aos acontecimentos, de modo que se
falamos numa impulsividade em relação ao consumo é de fundamental importância salientar que não podemos ser ingênuos
em pensar que essa ação desmedida e excessiva do homem para o consumo seja tão somente o resultado de algo de natureza
irracional. Baudrillard nos alertou para não cairmos nesse engodo (Baudrillard, 1981).
Ora, se sabemos que o consumo, enquanto uma das modalidades de sintoma social, faz parte da matriz relativa
àquilo que denominamos cidadania, é provável que ele seja uma das formas encontradas pelo sujeito de pertencimento ao
tecido social. Poderíamos mesmo nos encorajar a dizer que a posição do sujeito seria a seguinte: “consumo para existir e para
dar sentido à minha vida e vivo visando quase que exclusivamente ao consumo”. É neste ponto que encontramos toda a
ambiguidade do consumo para o sujeito, pois além de ser demasiadamente massificador, representa possivelmente a última
esperança de o homem reafirmar sua singularidade num cenário em que a ciência, com seu tecnicismo, e o discurso
capitalista, com uma maior sofisticação e produção de bens, abalaram limites que até então eram intocáveis. De que limites
falamos? Em primeiro lugar, sabemos que a ciência na atualidade diversificou não somente a produção de bens na tentativa
de oferecer objetos que representassem adequações para todos os tipos de necessidades, como também pretendeu adentrar no
sujeito para lhe oferecer tentativas de saídas contra circunstâncias inevitáveis, como a morte e o desfalecimento do corpo.
Além disso, a aplicação máxima do discurso capitalista representou, por outro lado, uma facilidade na aquisição de bens que
até então era negada ao sujeito já que não tinha condições para obtê-los.
Que o cruzamento do capitalismo com a ciência facilitou o alcance de determinados bens não podemos duvidar.
Tomemos a droga heroína como uma ilustração. Essa droga, a partir de uma fórmula precisa e muito bem estudada, foi,
durante muito tempo, de difícil acesso pelo seu alto valor. No entanto, a ciência produziu instrumentos para que essa
produção fosse barateada com a finalidade de que a droga pudesse atingir a um maior contingente de consumidores, o que
efetivamente ocorreu. Mas em que ponto residiria o engodo? Para pensar em uma resposta poderíamos começar situando a
questão da escolha. O sujeito pensa que escolhe seus carros, seus apartamentos, suas roupas, seus roteiros de turismo e outras
tantas coisas, mas não tem a menor noção de que tudo já se encontra previamente escolhido e determinado, sendo oferecida

346
apenas a ilusão de que há escolhas. O máximo que cabe ao sujeito é optar por uma ou por outra via que são igualmente
idênticas, sendo o diferencial criado e divulgado pela mídia como se realmente existisse já que as “atividades de lazer, a arte
e a cultura de modo geral são filtradas pela indústria cultural: a recepção é ditada pelo valor de troca à medida que os valores
e propósitos mais elevados da cultura sucumbem à lógica do processo de produção e do mercado” (Featherstone, 1995).
Mas devemos aqui nos alertar para não apresentar somente uma visão pessimista, pois se o consumo faz parte dos
mecanismos que respondem pela cidadania, consumir é de alguma forma estabelecer trocas, firmar laços sociais e fazer parte
de um contexto que é marcado por uma determinação surgida em função da revolução que nos chega e que mal sabemos
ainda de seus efeitos: a revolução da informática. Com isso queremos salientar que não realçamos somente a perspectiva
coisificante do consumo, embora saibamos que esta é, na maioria das vezes, o que vigora. Isto porque, em razão do consumo,
o sujeito promove uma organização de seu mundo ou tenta a ponto de se ver refletido naquilo que se materializou quando
consumiu.
O consumo poderia muito bem ser pensado como uma modalidade de exercício da cidadania do final do século XX,
uma forma de tentar recuperar as perdas subjetivas causadas pelos grandes massacres ocorridos na primeira metade deste
século. Provavelmente, em decorrência de todas as transformações decorrentes dos efeitos nefastos dos regimes totalitários
que tiveram sua hegemonia neste século, o sujeito espera encontrar no consumo um ideal: a liberdade. Liberdade para que
possa exercitar sua condição de livre arbítrio e também exercer seus direitos de cidadão, quer dizer, colocar em pauta o
exercício da identidade-alteridade.
É claro que o consumo pode oferecer este tipo de alternativa como também pode colocar o sujeito num circuito
repetitivo onde impera somente a reprodução. Mas não devemos esquecer que por mais impulsivas e mais alienantes que
sejam as formas de consumo há nelas um ponto de extrema importância a ser destacado: o consumidor encontra-se implicado
naquilo que consome e, desse modo, pode sair do circuito reprodutivo apelando para o mecanismo que o colocaria em
direção à criação. Esta seria a pretensão. Se é alcançada ou não só podemos saber se tivermos condições de avaliar o que se
passa ao nível subjetivo. Estamos com isso destacando uma função positiva do consumo e também assinalando que o
consumo representa muito mais do que meramente uma pura distorção da realidade, uma vez que o sujeito, ao consumir,
ainda que de forma impulsiva, está antes de mais nada fazendo um apelo, um pedido de proteção, de amparo e de suporte.
Sendo assim, o consumo é o mais poderoso aliado na regulação das relações entre os sujeitos no contexto contemporâneo, o
que nos leva a pensar numa cultura do consumo na qual determinados sujeitos organizam-se em pequenos grupos em função
de uma dada forma de consumir ou mesmo em razão de um dado produto.
Mas não seria descabido salientar que o consumo não nos oferece a paz perpétua (um dos nomes da felicidade) tão
esperada neste final de milênio. Certamente somos constantemente tentados a nos enganar em relação às mágicas promessas
que nos impõem como imagens-signo de felicidade. Estas promessas nos chegam cotidianamente através de todos os meios
de comunicação: retardamento da velhice, fim da questão da impotência sexual, alívio imediato para a depressão, esta última
sendo a forma de mal-estar mais frequente de nossos dias. O que queremos apontar é que essas imagens-signo são apenas
parcialmente potentes no que diz respeito à minimização de nossas frustrações, pois não conseguem de nenhum modo
entorpecer a grave dor de existir, o desamparo que faz parte do nosso destino trágico e inexorável, para o qual as defesas que
dispomos são quase sempre ineficazes. É certo que os avanços tecnológicos modificam a estética, criando novos padrões de
modus vivendi, promovendo novos ideais, além de prometer caminhos de realização em sonhos e devaneios como é bastante
veiculado pela publicidade, que em alguns casos assume proporções que beiram a destrutividade. Este reino da falsa
felicidade oferecida como um bem autêntico faz o sujeito desembocar num círculo vicioso em que quanto mais tem mais
busca, e quanto mais dispõe de bens mais estes perdem seus valores de troca.

3. O vício
Não estaríamos assim tão longe de pensar encontrar-se aí uma das mais marcantes tendências do homem que é o
vício. Aliás, não é somente o vício que nos fascina, mas os mecanismos que sustentam-no e exercem em nós atração
irresistível a ponto de sequer pensarmos em controlá-los, mesmo porque, a maior parte das vezes, nem dispomos de
condições para este fim. Poderíamos mesmo dizer que vícios têmo-los todos.
Nesse campo, e mais precisamente do vício de consumir, panorama tipicamente contemporâneo, principalmente
quando o que está em jogo é um excesso oferecido como forma de tamponamento da falta estruturante do sujeito, nos
deparamos com as mais intrigantes perplexidades. Estas últimas, longe de serem somente vistas como formas de adoecimento
psíquico, trazem a marca de um tempo em que se assiste à banalização e à naturalização de formas de violência, à negação da
insuportabilidade da dor, à desvalorização crescente da vida, à tênue ligação nos laços de fraternidade e ao estranhamento do
homem frente ao seu semelhante. Este estranhamento se dá em razão de preconceitos raciais e religiosos acirrados que quase
sempre acabam em confrontos mortais, valendo-se da eficácia do tecnicismo da ciência e do poderio advindo da expressão
máxima do capitalismo.
O que nos aponta o vício, senão uma narrativa quebradiça e entrecortada, fruto do esfacelamento de uma vida sem
perspectivas e sem projetos? Quer dizer, de uma vida em que se apagam os limites entre o passado e o futuro, dando-nos, em
certo sentido, uma vivência de imutabilidade e de perda. Não seria então o vício o pórtico que nos levaria a um tipo de
aprisionamento? Dito em outras palavras: no vício o sujeito se encontra preso e confinado nas malhas de sua própria
existência, vivida de uma forma arbitrária, sem ter no entanto qualquer dimensão de responsabilidade acerca do seu próprio

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viver ou do viver do semelhante. O fascínio desta forma específica de obter “felicidade” é a intoxicação pelo uso de
substâncias químicas, drogas, que modificam o estado do organismo (Tarré de Oliveira, 1996). O vício seria comparável a
uma grande correnteza que ao fazer parte dela o sujeito não consegue mais detê-la, a ponto de oferecer-se a todo tipo de
sacrifício, não somente em termos da autodestrutividade como também da destruição do semelhante. Esta correnteza assume
proporções de tal natureza que representa o aprisionamento e aniquilamento do sujeito dando-lhe a falsa impressão de
liberdade e inclusive liberdade de escolha. A busca de liberdade através do consumo impulsivo, transformado em vício, ao
invés de possibilitar uma consolidação em termos de laço social, somente produz um tipo de fragmentação dos frágeis
vínculos que, a duras penas, são tempestivamente mantidos. Em tais circunstâncias encontramos o sujeito diante de si mesmo
enquanto aquele que se retrata como uma interioridade feita em pedaços, sendo a exterioridade corpórea apenas uma
aparência. Não estaríamos diante da lógica da fragmentação, tão presente na contemporaneidade, representando a vida como
uma série de acontecimentos estanques e aparentemente atemporais?
A fragmentação é um dos mais poderosos conceitos utilizados pelos teóricos da pós-modernidade para explicar a
subjetividade atual. Ela consiste na existência dos opostos, das contradições sem que se exija uma solução. Tudo é atenuado,
des-afetado, o conflito é amortecido, nada é radicalizado no sentido lato, levado até suas raízes, suas bases. Perde-se o sentido
de vida em comunidade mas alcança-se o anonimato, a velocidade. O sentimento dominante é o de perda dos referenciais
teóricos: científicos, artísticos, políticos, religiosos. Na era das incertezas nada mais é seguro do que o efêmero. Multiplicam-
se calamidades e profetas, perde-se a crença exacerbada em um futuro (Rouanet e Maffesoli, 1994). Daí a busca exagerada
por experiências de saturação, que possam demarcar alguma diferença marcante entre um antes e um depois, como a que
proporciona a droga. Mas para não ficarmos presos a um cenário pessimista, é preciso que se entenda que a relação entre
moderno e pós-moderno não é nem de ruptura total nem de continuidade linear, ela corresponde muito mais a um momento
de transição. Além disso, como diz Souza Santos, “a fragmentação maior e mais destrutiva foi-nos legada pela modernidade”
(Souza Santos, 1997). A modernidade impunha uma racionalidade única, universal; a pós-modernidade denuncia o fracasso
desse projeto já que não se deixa mais iludir pelos metarrelatos que buscavam explicar o mundo de forma totalizada. A crítica
pós-moderna sabe que o maior inimigo está dentro de nós, ao contrário do que pensa a crítica moderna, e apenas os sujeitos
podem alterar o rumo da vida no planeta, ainda quando são alterados por ela.
No universo pós-moderno do consumo excessivo, o sujeito faz parte de um grupo de personagens que não se dispõe
a representar um papel diferenciado: todos representam o mesmo papel. Os personagens que saem de cena são os mesmos
que entram, caracterizados como aqueles que não têm história e tampouco referenciais. Somente poderíamos pensar esta
questão em termos da falta de uma anterioridade construída por um passado que tenha qualquer significação e por uma
esperança projetada para as incertezas de um futuro. Se por um lado, falta uma dimensão de prosperidade, por outro os laços
de uma herança, mesmo cultural, não são eficazes para servirem de suporte ao sujeito. Talvez seja este o motivo pelo qual o
vício geralmente é vivido de forma furtiva, anônima e também fragmentada em que apenas temos corpos que se tocam e se
misturam, sem que a palavra seja um fator preponderante, pois a palavra poderia representar uma tipo de ameaça frente a
indiferenciação e mistura dos corpos que têm lugar nesses rituais. Em outras palavras: o vício encerra um tipo de segredo, de
mistério que deve ser mantido intacto, inviolável, num tipo de contexto que deve se manter a todo custo imutável. Daí a
exigência do silêncio, para não se correr o risco da abertura para outras dimensões, pois esse espaço que se constrói para além
e para aquém da palavra é uma forma de gozo somente sustentada por uma lei selvagem que, por ser imperativa ao sujeito,
ordena-lhe a descida aos lugares fúnebres num repetido jogo de sombras, onde fica numa posição flutuante sem
pertencimento, tentando realizar a todo custo um impossível: a satisfação imediata do desejo.
Quando tudo passa há um retorno à superfície, o que faz o sujeito se voltar para uma miragem de si mesmo, sendo
apenas isto o que lhe resta: uma imagem longínqua e distorcida de si próprio. É desse modo que o sujeito vai-se esvaziando,
na crença de estar cada vez mais se preenchendo, ou seja, a busca de uma afirmação tem como contrapartida uma espécie de
soterramento simultâneo num tipo de túmulo que sistematicamente aumenta de profundidade, túmulo escavado no próprio
sujeito. O consumo de substâncias entorpecentes é então o lugar comum desse tipo de experiência que na contemporaneidade
é representada pela experiência do vício.
Há três décadas o uso de drogas era visto como uma abertura para novas possibilidades, como uma forma de
negação frente a valores estabelecidos e também uma espécie de libertação de um poder autoritário, aniquilador e
aprisionante que somente se ocupava do enquadramento do sujeito e de seu pensamento. O drogar-se, para a geração dos
anos sessenta, a geração do pós-guerra, representava uma forma de dizer não aos ideais fossilizados de uma antiga sociedade.
Parecia ser uma revolta pacífica e não a promoção de uma desordem. O que se pretendia era tão somente uma mudança de
mentalidade, de costumes, e enfim de relações sociais dirigidas como advertência aos homens do poder, numa reivindicação
de respeito e direitos. Poderíamos mesmo nos aventurar a admitir que o contexto se caracterizava por uma revolta da
esperança, pois se acreditava na política, na ação coletiva, nos programas e nos projetos. O consumo de drogas era, por assim
dizer uma tentação que tinha sobretudo um sentido poético, utilizada pelos jovens frente ao medo de ser totalmente engolidos
pelo sistema. De igual maneira pode ser pensada a violência que era muito mais uma espécie de mito utilizado para se exercer
pressão pela democracia.
O cenário dos anos noventa é bastante diferente. Tudo indica que o lugar ocupado pela violência e pelo uso de
drogas representa algo desesperador quando comparado ao contexto das três últimas décadas, pois não mais se tem
esperanças na política, nem na ciência pelos monstros que tem produzido, e se vive a efemeridade com sua marca mais
assustadora: o desvencilhamento muito rápido dos objetos. Não somente o desemprego, como também a falta de opções de

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vida diante de tantas falsas alternativas contribuem para agudizar o mal-estar de nossos dias: a depressão, o desespero e a
angústia por não mais ter-se tempo de vivenciar o nosso próprio desamparo e nosso estado de carência enquanto vazio
estruturante. Tudo se encontra devidamente preenchido ou prestes a sê-lo. O mercado dispõe de todos os tipos de objetos
oferecidos como adequados a qualquer tipo de carência. Quer dizer: é prometido um fim para os estados de desamparo já que
se produzem os mais diversificados e aperfeiçoados tipos de objetos, desde a fabricação de um utensílio até os métodos de
inseminação artificial. Vemos mulheres tornando-se cobaias nas mãos dos médicos, grandes Outros da inseminação, sem
questionaram-se, como faria a psicanálise, se é este mesmo seu desejo (Chatel, 1995). A medicina contenta-se com a fome
porque esta é conveniente à sua vontade de comer.

4. Esvaziamento subjetivo
A que custo enfrentar a “catástrofe do nosso cotidiano”, conhecida como esvaziamento subjetivo, face às inúmeras
opções disponíveis e que, por serem tantas, acabam por produzir uma espécie de aniquilamento e angústia? Contudo, o
“vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais
pessimismo” (Lipovetsky, 1989, p. 35), mas a um surto de apatia da massa. Para ela as categorias de plenitude e decadência,
de afirmação e negação, de saúde e de doença são incapazes de dar conta. É um sentimento de indiferença que conduz a
desmobilização da massa, muito longe do absurdo ou do desespero, como se todos se lixassem para o que ocorre às suas
voltas. Neste cenário, é possível ao sujeito encontrar meios de garantir e afirmar sua singularidade?
Acreditamos que tocamos aqui num ponto bastante crítico. Se outrora o homem buscava diferenciar-se, no atual
contexto, embora parta de um discurso em nome de uma afirmação em direção à individualização, não pode e nem consegue
escapar ao medo sempre presente quando o que está em jogo é a diferença. Daí então o cuidado de tudo seja tão igual, pois
assim não haveria ameaças. É como se o homem buscasse gozar do seu semelhante, mas como um interior de si mesmo
indiferenciado. Quer dizer, o apelo ao diferente esvai-se na busca de uma exigida igualdade que tem na repetitividade do
vício o seu expoente máximo. Querendo ou não, todo o esforço empreendido pelo sujeito no sentido de diferenciar-se através
do vício seria apenas uma forma de aprisionamento e de lançamento ao infinito de uma maneira incessante e também
incontrolável, em que desfalecem todos os balizamentos que sustentariam minimamente condições diferenciadoras. O vício
seria então fazer o que todos fazem para tentar ser diferente. O que se consegue com isso é a manutenção de uma igualdade
desconhecida, mas que é oferecida como algo promissor para o sujeito no sentido da busca de meios asseguradores de sua
singularidade.
O medo que outrora era vivido ante a ameaça de o sujeito ser engolido pelo sistema é vivido nos anos noventa em
termos da possibilidade de exclusão. Fazer parte do sistema, estar integrado já não representa nenhum tipo de ameaça,
mesmo que para isso se tenha aberto mão do espaço de singularidade em relação ao pensar. Aliás, até mesmo o pensamento
sofre a interferência dos objetos produzidos que parecem ditar o seu padrão. O drogar-se adquiriu um sentido de
entorpecimento e não mais de revolta, ou seja, uma danação que controla e direciona o pensar do sujeito e suas ações. Não se
trata de rebeldia ou de abertura para o novo e sim da busca ilusória de um êxtase, mesmo que para isso sejam adotadas as
medidas de submissão, de submetimento e a prática frequente da violência que pelas ocorrências constantes produzem
dezenas de mortos colocados no âmbito social como objetos descartáveis, quase sempre como uma espécie de lixo atômico
para o qual não é pensado nenhum tipo de reciclagem. A violência não é mais um ato militante como se caracterizava nos
anos sessenta, tendo-se tornado, como também ocorreu com a droga, uma aventura perigosa. Trata-se de um jogo jogado sem
nenhuma regra que encontra um certo “patrocínio” através da cobertura dada pela mídia, seja pelos noticiários, seja pelo
trabalho cinematográfico em que se tem a difusão de “gangs” como ilustrações exemplares e até mesmo referências. Basta
que pensemos no cinema americano e situemos as ruas de Los Angeles para sabermos que as “gangs” são uma referência. No
Brasil não é desconhecida a menção feita aos vários “comandos” divulgados como a matriz padrão da violência, do tráfico de
armas e do comércio de drogas. Não devemos esquecer que há toda uma produção musical que também se encarrega da
difusão da violência e do drogar-se como circunstâncias naturais. Basta para isso que nos reportemos às letras do gênero
musical “rap” em que são exaltadas as armas de fogo e o consumo de drogas. A que atribuir essa tamanha transformação?
Poderíamos admitir que o sujeito, no mundo contemporâneo, é fortemente atingido por um tipo de desencantamento
representado pelo fim das esperanças em dias mais prósperos, além da acentuada crise dos grandes sistemas de pensamento
que imperaram na primeira metade deste século. Sendo assim, o entorpecimento, a violência desenfreada e a desvalorização
do semelhante podem muito bem estar representando o antídoto para esse desencanto tão marcante devido a angústia que
assola o homem frente as incertezas da virada do século e também do milênio. Não estaríamos vivendo diante da
possibilidade de uma dupla perda de identidade? Não estaríamos nos sentindo obrigados a buscar novos modelos
identificatórios sem deles nada saber? Não adotaríamos uma identidade globalizada meramente por falta de parâmetros que
nos levem a pensar numa outra? Não estaríamos nos sentindo, no maior engano possível, senhores e mestres de nós mesmos,
uma vez que o erotismo e o entorpecimento nos leva a uma sensação de poder?
O que podemos pensar frente a essas indagações (e outras tantas) é que o caráter impulsivo do vício, a propagação
da violência, o sexo vivido como vício, a droga sendo usada como um jogo sem regras, a banalização da dor e a ruptura dos
laços de fraternidade encontram-se presentes na vida cotidiana do chamado homem contemporâneo. Não estamos propondo
que haja nisso uma espécie de condenação ou mesmo a presença de forças do mal e sim que há uma ligação estreita entre
entorpecimento, consumo excessivo e modus vivendi configurado em termos de poder e que, às vezes, não se distancia muito

349
do chamado delírio de autonomia. A sociedade pós-moderna acentua o individualismo ao modificá-lo por meio da lógica
narcísica do “seja você mesmo”, enaltecendo o “ego”, tendo como consequências a multiplicação das tendências
autodestrutivas e a promoção de um tipo de personalidade cada vez menos capaz de afrontar as exigências da realidade.
A positivação maciça dessas particularidades da vida contemporânea estaria provocando uma exacerbação do poder
pessoal e um desconhecimento da existência dos limites, tendo como resultado o esvaziamento subjetivo. Esse é encoberto
pela tão promulgada e pretendida identidade absoluta que não passa de um recrudescimento mórbido do narcisismo,
divulgado como uma camisa de força para o sujeito, como uma ordenação de que tem que ser dono de si mesmo,
concorrendo para o aparecimento de verdadeiros rompantes de poder pessoal, sem qualquer mediatização possível e
submetimento às leis que regem o funcionamento social.
Castoriadis (1992) chama o momento atual da cultura de a época do conformismo generalizado, caracterizada,
sobretudo, pela evanescência do conflito, social, político e ideológico a partir dos anos 50, dando um peso crescente ao
individualismo. Um exemplo disto pode ser visto no racismo, que cresce perigosamente na atualidade. O racismo é uma
transformação ou um descendente especialmente violento e exacerbado, uma especificação monstruosa, de uma característica
empiricamente universal das sociedades humanas. Freud o incluía no que chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”.
Para Castoriadis (1192, p. 32), trata-se, “em primeiro lugar, da aparente incapacidade de constituir-se como si mesmo, sem
excluir o outro; em seguida, da aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo, chegando, finalmente, a odiá-
lo”. Os outros são iguais a nós, os outros são inferiores. Mas nos dizem (e passamos a querer) que devemos ser nós mesmos e
que, para isso, vale destruir tudo que nos impeça de executar esta máxima. Com uma subjetividade esvaziada de valores
sociais, onde o conflito encontra no consumo formas de se amortecer, o outro se constitui como descartável, inoportuno,
odiável, destrutível. O outro é responsabilizado pela infelicidade do desemprego, da falta de moradia, pelo time que perdeu,
enfim, pelo desamparo. O esvaziamento subjetivo do sujeito pós-moderno parece tê-lo privado da capacidade crítica e
reflexiva sobre seus atos, ao mesmo tempo que aponta, como nunca, para as consequências deles.

5. O encastelamento no vazio de existir: felicidade?


No mundo de hoje, da pressa, da informatização, da globalização, os humanos têm, cada vez mais, procurado saídas
para seus sofrimentos em terapias alternativas, em drogas, em seitas e religiões. São promessas que se valem do estado atual
da cultura para vender a salvação em reais ou a cura em florais. Rápido e barato como está sendo considerada a vida. No
mundo atual — quer vivamos o declínio do modernismo ou o ingresso na pós-modernidade —, o útero pode ser alugado, a
cor da pele alterada, o coração doado, um rim vendido, o sexo biológico trocado. A tecnociência supõe o corpo como uma
rede de informações, ordenado e programado. Substâncias químicas e leis biológicas reduzem o homem a ser um corpo
mudo, mas se este corpo se manifesta então se convoca a rede de informações bioquímicas para amordaçá-lo. Aliás, não é
outro o motivo que leva os órgãos de informação a trabalharem não pela memória, mas pelo esquecimento: o que hoje se lê,
amanhã se esquece (Jameson, 1993).
O que se chama comumente tendência para o consumo podemos, enquanto psicanalistas, chamar o aproveitamento
do desejo humano para fins outros que não a sua realização. A realização do desejo, de forma súbita, corresponde à definição
de felicidade dada por Freud em o Mal-estar na cultura. Relembrêmo-la:
O que chamamos felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades
represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer
situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão somente um sentimento de contentamento muito
tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado
estado de coisas (Freud, 1929/1976, p. 95).

Para obter esta satisfação repentina, o homem utiliza várias técnicas de afastamento do sofrimento. Freud
enumerou-as: o uso de substâncias químicas, o aniquilamento das pulsões, a arte, a alienação, o amor, a estética e o trabalho
(3). Não vem ao caso retomarmos uma à uma mas apenas realçar que, talvez apenas com exceção do trabalho, para todas
Freud apresenta senões enquanto modalidades exclusivas de obtenção de felicidade, não se devendo depositar todas as
expectativas de felicidade em uma única técnica. De qualquer modo, sabemos que Freud tinha para si, no início (1895), que o
compromisso ético da psicanálise era transformar o sofrimento neurótico em infelicidade comum. Era tudo o que podia
prometer ao homem de sua época. E não era pouco. O conceito de mal-estar (Unbehagen) que Freud quis inicialmente
chamar de infelicidade (Ungluck), diz respeito ao antagonismo irremediável entre as exigências pulsionais e as restrições
impostas pelo processo civilizatório. Este impõe uma perda da felicidade pela exigência de renúncia constante à satisfação
pulsional e, em consequência, produz uma intensificação do sentimento de culpa (Freud, 1929/1976, p. 160). O próprio Freud
chega a afirmar que as religiões não desconhecem tal motivação uma vez que propõem formas de redimir os sujeitos de seus
pecados. A questão é que muitas propostas terapêuticas prometem eliminar este desconforto que é estrutural, e fazendo assim,
negam uma fundamental descoberta freudiana. Como o ser humano sói evitar todo o caminho que tome tempo na satisfação
pulsional, as substâncias químicas, no mundo da velocidade, são as que respondem com mais presteza a esta tendência.
Seguindo o pensamento freudiano, o drogar-se é a forma mais eficaz de alcançar este estado súbito de satisfação, que
contrasta com o anterior, e que se denomina felicidade.

350
Lacan (1988) afirmava que aquilo que os pacientes demandam à psicanálise é a felicidade. Mas como a felicidade,
naquele momento histórico (1959/60), tinha-se tornado um fator de política, a etapa prévia para qualquer sujeito alcançá-la
implicava na satisfação das suas necessidades básicas: alimentação, moradia, educação, saúde; tudo que poderia reverter do
trabalho valorizado e justamente remunerado. Nesta época, o marxismo ainda era porta-voz de uma poderosa promessa de
felicidade, desde que se cumprissem as etapas prévias e necessárias da passagem pelo socialismo. Esse sonho, ao que as
evidências do mundo globalizado insistem em indicar, acabou. O ideal da inexorabilidade da história com a vitória do
proletariado sobre os porcos burgueses naufragou. Onde buscar a felicidade do mundo utópico, mesmo sabendo que ela não é
sinal de impossibilidade, mas apenas de um lugar outro?
Mesmo sendo um homem de seu tempo, como todo criador, Freud foi além dele. Seu pensamento é perfeitamente
cabível, mais do que nunca, aos dias atuais, com toda a carga subversiva que o acompanha. Como explicar o grande ataque
que a psicanálise continua sofrendo da farmacologia, a indústria do narcotráfico legalizado? Já foi bastante difundido pela
mídia a intenção da ciência quando chamou o Prozac de “pílula da felicidade”. Difundiu-se menos as sequelas deixadas com
a sua retirada: de depressão leve a tentativas de suicídios. Desta forma, a ciência segue a técnica do drogar-se como meio
colocado ao alcance de qualquer mão para cessar a angústia, dando a isso o nome de felicidade. Para alguns esta é a idéia
fundamental da contemporaneidade: a felicidade. As imagens identificatórias da felicidade orientam e dividem nosso
cotidiano: propriedade privada, viagens, família, distrações, roupas entre outras (Benasayag, 1992, p. 53). Ícones da
sociedade de consumo servem para paliar a angústia, atribuir um sentido à existência, e são os mesmos em Paris, no Rio de
Janeiro ou em Moscou. Entretanto, o homem só busca estas imagens na tentativa de preencher o vazio de sua existência
deserta de ideais.
A cultura pós-moderna abre caminho entre os escombros da sociedade pós-industrial. Vários ideais do modernismo
mostraram-se incapazes de dar conta da expectativa humana de alcançar a felicidade: do comunismo ao avanço da tecnologia.
Entre ruínas vemos surgir os temas que alimentam a problemática pós-moderna, e entre eles se destaca fundamentalmente a
incredulidade - que poderíamos equivaler à idéia de desamparo da psicanálise. Diante da incredulidade, este modo de
desilusão, podemos ver que a felicidade não é nem projeto, nem futuro, mas interrupção do tempo, interrupção sobre a
imagem, estado mítico que sofre o maciço alarde dos meios de comunicação de massa. Esta idéia corresponde como um anel
ao dedo numa época de visão estática de uma realidade imutável e cristalizada. Então o que faz com que as pessoas fiquem
satisfeitas na medida em que podem evitar a infelicidade? Justamente aquilo que se converteu na ideologia dominante: evitar
o pior.
Aniquilamento, desinvestimento, desafetamento. Existem inúmeros nomes do deserto 4): Hiroshima, apartheid,
camada de ozônio, Aids, angústia, Bósnia, genocídios, campos de extermínio, envenenamesto de ursos pela poluição no Pólo
Norte etc. Também desertificado, o homem contemporâneo assiste a tudo como se nada o afetasse, mas às vezes sofre em sua
impotência. Na maioria das vezes a idéia de felicidade é tomada como um bloco de cimento que por esta peculiaridade lida
mal com o desejo, sempre móvel. Então, pode a idéia de felicidade produzir outra coisa que alienação e abostamento do
desejo? O sujeito humano, enquanto sujeito desejante e de falta, pode alienar seu desejo em proveito das necessidades criadas
pela sociedade de consumo sem deixar, nesta manobra de renúncia, a essência do que o constitui enquanto sujeito? O mundo
da ficção se converte na vida verdadeira, enquanto no mundo do cidadão, espectador alienado, nunca acontece nada. O
mundo regido pela idéia unidimensional de felicidade condena-o a representar um papel de extra, já não há como ser herói
em sua própria vida. Como uma criança, ele não deve envolver-se com os assuntos de adultos. Produz-se a infantilização e a
impotência, já que a realidade espetacular, ou a vida convertida em espetáculo, põe no mesmo nível as aventuras amorosas de
uma princesa e a guerra do Golfo. Tudo é igual, tudo, em especial, está muito distante. Para Benasayag, “opera-se uma
potente e perigosa retirada ou retração narcísica, e a felicidade, em sua natureza irracional e inquestionável, se converte em
causa suficiente (e única) para justificar os atos dos homens e das mulheres” (Benasayag, 1992, p. 9).
O sistema dominante conta com a convicção do cidadão espectador de que a vida social e política, sobretudo, não
lhe concerne, ele não tem nada a ver com isso ou isso não lhe diz respeito. O dinheiro iguala a tudo, mas não a todos: uns são
emergentes, outros aristocratas. Um real na mão de um mendigo não é o mesmo que um real na mão de um Monteiro de
Carvalho. Como modificar tal estado de coisas? Seria preciso, antes de mais nada, ler e estudar para questionar o excesso de
informação separando os pontos de não sentido. Seguindo esta seara é também preciso precaver-se contra a armadilha da
urgência, para diferenciar-se do coelho de Alice, sempre apressado, pois não se pode passar a ator por uma passagem ao ato
contra-fóbica. Devemos poder pensar na criação de novos laços sociais já que, como “numa caricatura da dialética “luto e
melancolia”, tudo ocorre como se tivéssemos perdido o objeto do nosso amor, do nosso interesse, da nossa razão de viver”
(Benasayag, 1992, p. 9). Isso talvez dimensione a dor e o estado de indiferença, o ar “blasé” do homem pós-moderno.
Quando tudo já foi perdido nada mais há a perder.
Ora, quando lidamos com a cultura do consumo desmedido estaríamos no reino da falsa felicidade oferecida como
um bem autêntico. O homem procura, no consumo, medidas paliativas para lidar com o desamparo tão terrível de não ver
suas necessidades básicas (alimentação, moradia, educação, saúde) serem realizadas. Mas, como sabemos, mesmo quando
estas necessidades são atendidas, resta ainda (sempre resta algo) que o conduz à insatisfação. Consumir parece entorpecer
este plus que incomoda, fustiga, inquieta.
Por fim, poderíamos dizer que o homem contemporâneo parte em busca da unidade, da unificação da experiência,
da ausência de conflitos e da não diferença recorrendo a santos, demônios, deuses e líderes. Mas à medida que avança não
pode escapar do odor de seus restos nem das marcas de seus passos: libere-se e morra são pois os odores dos pensamentos

351
que lhe atormentam. Diante da impossibilidade de unificar as experiências díspares e contraditórias, o sujeito se encastela
ignorando-as através da busca de um poder absoluto e massacrador, em que somente importa a ausência de conflitos e a
negação da finitude. É como se o sujeito se inclinasse para além do vazio e enquadrasse forçosamente o abismo, para
sustentar a esperança de que a vida não tenha nunca um fim. É então essa busca de eternidade e de um gozo lançado ao
infinito que encontramos no nosso mundo contemporâneo, em que o sujeito quer a todo custo garantias de imortalidade,
mesmo que seja pelo entorpecimento ou pelas formas mais cruéis de violência. Entre Deus e a ciência, sempre podemos
encontrar outra coisa que indique-nos que a vida é mais que um momento fugaz e vazio entre a pulsão e a sua satisfação.
Quando o desejável era impossível foi entregue a Deus; quando o desejável se tornou possível foi entregue à ciência;
hoje, que muito do possível é indesejável e algum do impossível é desejável temos de partir ao meio tanto Deus como a
ciência. E no meio, no caroço ou no miolo, encontramo-nos, com ou sem surpresa, a nós próprios (Souza Santos, 1997,
p. 106).

Notas
(1) O filme é baseado na novela de Irvine Welsh, com roteiro de John Hodge e direção de Danny Boyle. Provocou enorme
polêmica no Festival de Cannes de 1996. Entre os atores destaca-se Robert Carlyle, que vimos recentemente em “Ou tudo ou
nada”, história de ingleses desempregados que, para ganhar dinheiro, fazem striptease.
(2) Ver a este respeito a interessante teoria de Paul Virilio em que propõe que o humano está subjugado, cada vez mais, à
vertigem da aceleração.
(3) Já tratamos desta questão em outro texto, aprofundando em relação às características traçadas por Freud em relação a
expectativa de felicidade humana.
(4) Estamos usando a feliz expressão de Lipovetsky no capítulo II, A indiferença pura, do livro já citado.

Referências Bibliográficas
Barros, R. M. M. (1997) Psicanálise e pós-modernidade. Tempo Psicanalítico. 29.
Baudrillard, J. (1981). A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70.
Benasayag, M. (1992). Critica de la felicidad. Buenos Aires: Nueva Visión.
Castoriadis, C. (1992). A encruzilhada do labirinto III: O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e
Terra.
Chatel, M-M. (1995) Mal-estar na procriação. Rio de Janeiro: Campo Matêmico.
Featherstone, M. (1995). Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel.
Freud, S. (1929/1976) O mal-estar na cultura. Rio de Janeiro: Imago.
Jameson, F. (1993). O pós-modernismo e a sociedade de consumo. In: (org.). O mal-estar no pós-modernismo. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
Gondar, J. (2001). Sobre as impulsões e o dispositivo analítico. Ágora. 4(2).
Lacan, J. (1988). A Ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lipovetsky, G. (1989). A era do vazio. Lisboa: Antropos.
Lyotard, J-F. (1986) O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio.
Rouanet, S. P. & Maffesoli, M. (1994). Moderno e pós-moderno. Rio de Janeiro: UERJ.
Souza Santos, B. (1997). Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez.
Tarré de Oliveira, G. (1996). Do gozo em ato ao ato do analista: uma abordagem psicanalítica da
toxicomania. In: Freud, o interesse científico de uma filosofia inquieta. Rio de Janeiro: Revinter.
Virilio, P. (1996). Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade.

Amor, intimidade e sexualidade: roteiros amorosos e sexuais na época


contemporânea
Glícia Gripp
Universidade Federal de Ouro Preto
[email protected]

Ana Luiza Ladeia Prates Correia


Universidade Federal de Ouro Preto
[email protected]

Resumo: A recente sociologia da sexualidade tem mostrado que a conduta sexual envolve um esquema cognitivo organizado (“roteiro”),
utilizado pelos atores sociais para o reconhecimento de uma situação potencialmente sexual. Tal reconhecimento envolve uma interação
complexa entre a pessoa e o contexto, descartando, assim, a existência de uma simples reação a sinais sexuais universais. A conduta sexual

352
seria provocada mais pelo contexto do que impulsionada por estados internos, ou seja, é mais negociada do que movida por impulsos. Os
roteiros servem aos indivíduos para a aprendizagem do reconhecimento de estados internos, para a organização das práticas sexuais, para a
decodificação de novas situações, para o estabelecimento de limites para as respostas sexuais e para a vinculação de sentidos a aspectos não-
sexuais e à experiência sexual. A estruturação e a organização tanto da vida sexual quanto das práticas sexuais acontecem a partir desses
roteiros. Esses seriam projetos cognitivos organizados ou recursos heurísticos para nortear e corrigir a ação. Neste trabalho, fruto de uma
pesquisa em andamento, tenta-se analisar os roteiros – ou scripts – sexuais em relação com roteiros amorosos (a relação entre sexo e amor)
que são encontrados nas revistas femininas e masculinas, nos filmes e na literatura contemporâneos. O objetivo é traçar tipos-ideais de
comportamento amoroso e sexual que são divulgados pela mídia, no Brasil, para compreendermos as representações sociais da intimidade e,
em última instância, os modelos que contribuem para a construção social da sexualidade. Tentamos compreender os modelos de intimidade
veiculados por determinadas instituições sociais para as pessoas.

Introdução
O foco desta comunicação é o conhecimento social sobre a sexualidade e a circulação desse conhecimento. Insere-
se, assim, antes no campo da sociologia do conhecimento e apenas secundariamente naquilo que se denomina sociologia da
sexualidade. Em última instância, interessa-nos aqui a maneira como as pessoas tratam, distribuem e representam o
conhecimento. Como e porque as pessoas partilham o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, e como
elas transformam o conhecimento sobre a sexualidade e as práticas sexuais.
A sociologia do conhecimento ocupa-se com tudo aquilo que passa por “conhecimento” em uma sociedade,
independentemente da validade ou não-validade última desse “conhecimento”. E na medida em que todo conhecimento
humano desenvolve-se, transmite-se e mantém-se em situações sociais, a sociologia deve procurar compreender o processo
pelo qual isto se realiza, da maneira que esta realidade é admitida como certa e se solidifica para o homem ordinário, o
homem comum. A existência humana é essencial e inevitavelmente uma atividade na qual os homens conferem significado à
realidade. Toda sociedade humana é um edifício de significados que tendem a uma totalidade inteligível. Toda sociedade está
empenhada na empresa nunca completada de construir um mundo de significado humano.
É possível distinguir duas fontes do conhecimento social. Em primeiro lugar, nós partilhamos aquilo que
experimentamos diretamente e de cuja validade estamos certos: nós sabemos, no sentido estrito da palavra. A segunda fonte
de conhecimento é aquela pela qual nós acreditamos em algo que alguém disse e temos boas razões para acreditar na pessoa.
Este conhecimento, que partilhamos com os outros, introduz um novo elemento: a confiança. A confiança está na origem e no
limite do conhecimento social (Moscovici,2001).
Essa confiança está relacionada a um processo que Berger e Luckmann (2000) denominam de legitimação. A
função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessível e subjetivamente plausível os significados socialmente
construídos da realidade. A legitimação explica a ordem institucional dando validade cognoscitiva a seus significados
objetivados e justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos práticos, ela tem um elemento
cognoscitivo e um elemento normativo, ou seja, não é apenas uma questão de valores, mas implica também “conhecimento”.
Porém, a legitimação do conhecimento não implica em que o significado será mantido. A manutenção da realidade está
relacionada à organização social para a manutenção do universo. Tal realidade é socialmente definida, mas as definições são
“encarnadas”, isto é, indivíduos e grupos de indivíduos servem como definidores da realidade. Para entender o estado do
universo socialmente construído em qualquer momento, ou a variação dele no tempo, é preciso entender a organização social
que permite aos definidores fazerem sua definição. Não nos interessa apenas “o que”, mas também “quem diz”.
Deste modo, a manutenção ou conservação da realidade se relaciona também à conversa. Na verdade, a conversa é
o veículo mais importante da conservação da realidade. Pode-se considerar a vida cotidiana do indivíduo em termos de
funcionamento de um aparelho de conversa, que continuamente mantém, modifica e reconstrói sua realidade subjetiva. A
conversa significa que as pessoas falam umas com as outras. A fala conserva uma posição privilegiada no aparelho total da
conversa, sem negar a rica comunicação não-verbal. A maior parte da conservação da realidade na conversa é implícita, não
explícita, elanão define em muitas palavras a natureza do mundo, ao contrário, ocorre tendo por pano de fundo um mundo
que é tacitamente aceito como verdadeiro. A maior parte da conversa cotidiana conserva a realidade subjetiva ou a ajusta face
às mudanças sociais. Seu caráter maciço é realizado pela acumulação e coerência da conversa casual, conversa que pode se
dar ao luxo de ser casual justamente porque se refere a rotinas de um mundo julgado verdadeiro.
Ao mesmo tempo em que o aparelho de conversa mantém continuamente a realidade, também continuamente a
modifica. Certos pontos são abandonados e outros acrescentados, enfraquecendo alguns setores daquilo que ainda é
considerado como evidente e reforçando outros. Assim, a realidade subjetiva de uma coisa da qual nunca se fala torna-se
vacilante. Inversamente, a conversa dá contornos firmes a questões anteriormente apreendidas de maneira vaga e pouco clara.
O aparelho de conversa mantém a realidade “falando” de vários elementos da experiência e colocando-os em um lugar
definido do mundo real.
Este trabalho, que é somente uam reflexão iniciais de uma pesquisa ainda em andamento, considera que os meios
de comunicação de massa fazem parte desse aparelho de conversa cotidiano e funcionam de modo a manter a realidade
objetiva das pessoas, e a legitimar um determinado tipo de conhecimento. Na primeira parte da pesquisa, que trataremos
nessa comunicação, buscamos construir o modelo dos roteiros sexuais que aparecem nos meios de comunicação. A segunda
etapa, que ainda se realizará, tratará da investigação desses roteiros na população, através de entrevistas e aplicação de
questionários.

353
Nosso propósito último é contribuir à análise sociológica da realidade da vida cotidiana, mais precisamente, do
conhecimento que dirige a conduta na vida diária, como esta realidade pode aparecer aos intelectuais em várias perspectivas
teóricas e como esta realidade do senso comum pode ser influenciada pelas construções teóricas dos intelectuais e outros
comerciantes de idéias. Para operacionalizar a pesquisa sobre o conhecimento sexual e a circulação desse conhecimento em
nossa cultura, lançamos mão de alguns conceitos que serão discutidos a seguir.

Script sexual, esquemas cognitivos, representação social, habitus


Na perspectiva dos scripts sexuais, perspectiva central na denominada “sociologia da sexualidade”, não há um
estado “natural” da sexualidade humana, já que todas as nossas experiências sexuais são construídas como scripts, foram ao
mesmo tempo aprendidas, codificadas e inscritas na consciência, estruturadas e elaboradas como relatos.
Gagnon e Simon (1998:29) e Simon (1996) sublinham que scripts são uma metáfora para conceituar a produção do
comportamento sexual na vida social. Para os autores, a maior parte da vida social, na maior parte do tempo, opera sob a
condução de uma sintaxe operante, já que a linguagem é uma pré-condição para a fala.
A perspectiva dos scripts sublinha os seguintes pontos (Gagnon e Simon, 2003; Gagnon, 1999, 2006): (1) Que uma
conduta sexual pressupõe um esquema cognitivo estruturado, denominado de script, sem o qual os atores não poderiam
reconhecer o caráter particularmente sexual da situação; (2) Que tal reconhecimento supõe uma interação complexa entre um
ator e um contexto antes que uma resposta simples a sinais sexuais universais; (3) Que a conduta sexual encontra suas fontes
no contexto, e não é resultado de pulsão interna. É um arranjo e não o efeito de um automatismo ou de um instinto.
Os scripts teriam um papel na aprendizagem da significação dos estados mentais internos, na organização
sequencial das práticas sexuais e na decodificação das situações inéditas. Eles fixariam os limites das respostas sexuais e
religariam as significações dos aspectos não sexuais da existência às experiências propriamente sexuais.
São os scripts que colocam em relação as sensações de desejo e de prazer ou, inversamente, de desgosto e de
náusea com as práticas corporais, com os contatos físicos e os signos psicológicos de excitação. Para que possa ocorrer a
sequência das práticas componentes de uma relação sexual, deve-se pressupor a existência de um script que defina o que se
deve fazer com tal ou tal pessoa, em tal ou tal circunstância ou a tal ou tal momento, e que signifique os sentimentos e
motivações apropriadas à situação. Ao mesmo tempo, o script informa sobre o que constitui ou não constitui uma situação
sexual e fornece os elementos que relacionam a vida erótica à vida social em geral. Os scripts fazem, necessariamente, parte
integrante de uma estrutura social. O script é a forma organizada de convenções mutuamente partilhadas que permite a dois
atores ou mais participar de atos complexos implicando dependência mútua.
A teoria dos scripts se complica quando os teóricos tentam explicar a passagem de algo que é cultural a algo
individual. Como cenários coletivos se tornam cenários individuais e atualizam as práticas sexuais cotidianas? Para
responder a isso os autores tratam de tipos diferentes de scripts, de acordo com seu campo de ação (Simon, 1996:40-43;
Simon e Gagnon, 1998:29-31): scripts intrapsíquicos, scripts interpessoais e scripts culturais mais gerais ou cenários
culturais. Os scripts intrapsíquicos seriam compostos de elementos de origens diversas – elementos simbólicos fragmentários,
cenários culturais amplamente compartilhados e elementos de experiência pessoal –, organizados em esquemas cognitivos
estruturados, tomando a forma de sequências narrativas, planos e fantasias sexuais. Coordenam a vida mental e o
comportamento social, operando o reconhecimento das situações sexuais e dos estados corporais. Os scripts interpessoais,
presentes em estado prático nas interações entre parceiros, são compostos de sequenciais ritualizadas de atos que intervêm
nos encontros, no estabelecimento e na manutenção dos relacionamentos, provocam a excitação e coordenam a realização
prática das relações sexuais. Os scripts de ordem cultural ou cenários culturais são prescrições coletivas que dizem o que é
possível fazer, mas também o que deve ser feito em matéria sexual e constituem o pano de fundo simbólico do sexual, e só
funcionam como objeto de interpretação (teatral) dos atores sociais no plano intrapsíquico e no plano interpessoal no
momento de negociação das condutas.
Há aqui um problema: a razão para se dividir os “scripts” em três tipos diferentes, operando em três níveis
diferenciados – intrapsíquico, interpessoal e cultural – é a busca da explicação de como a cultura (ou a sociedade) intervém
na vida individual. Essa explicação traz em seu bojo o pressuposto da existência na realidade de três níveis diferenciados: o
indivíduo, as relações interpessoais e a cultura (ou sociedade) de forma quase estanque, e a cultura pairando sobre os
indivíduos, normatizando e funcionando apenas nos momentos de práticas sexuais.
Além disso, se se fala de esquemas cognitivos, tem-se que levar em consideração que eles operam no conhecimento
e no reconhecimento de situações sexuais e são, assim, por definição, uma codificação das práticas possíveis. Os scripts
individuais são aprendidos, como dizem os autores, ou incorporados, como defendemos aqui neste trabalho, e como
aprendidos ou incorporados, claro que fazem parte do estoque cultural de scripts, digamos assim. E, claro, o indivíduo
atualiza esses scripts em sua prática cotidiana. Ou seja, há regras culturais, mas os indivíduos “obedecem às regras quando o
interesse em obedecer a elas suplanta o interesse em desobedecer a elas” (Bourdieu, 1990:96). Assim, a perspectiva dos
scripts faz uma conexão ingênua entre indivíduo e cultura, deduzindo diretamente o comportamento individual das regras
culturais.
Há outros problemas nessa teoria dos scripts. Entre eles, o que parece mais grave, é que se faz da regularidade de
uma prática – ou de características – isto é, do que se produz com uma certa frequência estatisticamente mensurável, o
produto do regulamento conscientemente editado e conscientemente respeitado (o que supõe que expliquemos a gênese e a

354
eficácia), ou da regulação inconsciente de uma misteriosa mecânica cerebral e/ou social, e isto é escorregar do modelo da
realidade para a realidade do modelo (Bourdieu, 1983:59).
Outra questão surge quando os autores fazem deslizar automaticamente o comportamento na vida social da sintaxe
e, em última instância, da linguagem. A linguagem tem um papel na percepção humana, e, logo, na conduta social, claro, mas
não há nada que prove que seja determinante. Na maior parte das condutas cotidianas somos guiados por esquemas práticos,
ou seja, princípios que impõem a ordem na ação. Trata-se, principalmente, de princípios de classificação, de hierarquização,
que são também princípios de visão, mas são práticos, corporais e não necessariamente conscientes para os indivíduos.
Outro problema dessa teoria dos scripts aparece exatamente na forma de se operacionalizar a pesquisa: para
encontrar os scripts sexuais, as pesquisas desse enfoque utilizam relatos de indivíduos (entrevistas e questionários) e esses
relatos são utilizados para construir os scripts sexuais culturais. E esses scripts sexuais culturais são utilizados para explicar a
sexualidade individual. Mas, na verdade o que se obtém em pesquisas desse tipo são as representações sociais (compostas
por crenças, ideologias, etc., não necessariamente a prática real dos indivíduos) sobre a sexualidade dos indivíduos.
Apesar desses problemas, o aproveitamento da noção de script é importante, pois nos lembra algumas questões
fundamentais: (1) Que uma conduta sexual pressupõe um esquema cognitivo estruturado, denominado de script, sem o qual
os atores não poderiam reconhecer o caráter particularmente sexual da situação; (2) Que tal reconhecimento supõe uma
interação complexa entre um ator e um contexto antes que uma resposta simples a sinais sexuais universais; (3) Que a
conduta sexual encontra suas fontes no contexto, e não é resultado de pulsão interna1. Dessa forma, utilizarei script sexual no
sentido de esquemas cognitivos estruturados, como parte do estoque de conhecimento social, que é atualizado pelos
indivíduos nas suas relações interpessoais. Mas outros conceitos e noções serão importantes para refinar a idéia de script
sexual que será utilizada.

A teoria das representações sociais aparece na obra de Serge Moscovici, A representação social da psicanálise, em
1961. As características das representações sociais, para o autor, são as seguintes: (a) A representação social tem a dimensão
coletiva, dos grupos sociais; (b) ela é produzida, engendrada, coletivamente, em cujo processo intervém a situação histórica
ou econômica, as motivações sociais ou individuais; (c) têm por função a contribuição para os processos de formação de
condutas e de orientação das comunicações sociais.
As representações sociais são multifacetadas. O conceito envolve comunicação e discurso, ao longo do quais
significados e objetos sociais são construídos e elaborados. Isso é crucial e importante: as representações sociais surgem na
interação de “eu´s”.
Ao definir um procedimento para medir qualquer processo em ciências sociais, o pesquisador define em que nível o
fenômeno em questão será mapeado. A decisão sobre método, em uma investigação empírica, determina qual aspecto do
fenômeno pode aparecer como real. Wagner (1995) observa dois níveis de avaliação (construto metodológico) que
desempenham um papel crucial na pesquisa em representações sociais:
a) nível de avaliação individual, que se refere a fenômenos de domínio subjetivo, tais como compreensão,
sentimentos e práticas individuais. Esses conceitos são avaliados, medidos e teorizados a partir do sujeito individual. Ao ser
definido em termos de métodos de pesquisa, compreende percepções, lembranças, atitudes, intenções, pensamentos,
comportamentos, mas também crenças que são compartilhadas entre atores sociais e comuns a grupos sociais. Essas crenças
pertencem a um nível de análise social e ideológico, mas essas opiniões, representações e ideologias socialmente partilhadas
são parte do nível de avaliação individual, na medida em que são avaliadas e medidas no sujeito individual.
b) As variáveis e conceitos no nível de avaliação social ou cultural compreendem fatos que aparecem para o
indivíduo como um tipo de material a priori. Se variáveis e conceitos são avaliados nesse nível é porque eles refletem
qualidades de sociedades, culturas, grupos, subgrupos. Instituições sociais, fenômenos econômicos e sistemas coletivos
simbólicos pertencem a esse nível. Conceitos nesse nível não possuem propriedades que possam ser atribuídas a um
indivíduo específico, mas somente a um agregado de indivíduos com propriedades próprias.
Além disso, no campo da pesquisa em representação social, observam-se dois usos distintos do conceito de
representação (Wagner, 1995), que dependem do interesse explicativo e do procedimento de avaliação do pesquisador. O
primeiro se refere ao sistema de conhecimento dos indivíduos enquanto representativos de grupos específicos (característica
de elementos de um determinado conjunto). Este primeiro uso está interessado nas características das representações sociais
distribuídas entre os sujeitos. O segundo se refere aos atributos das unidades sociais (características do conjunto) e se
interessa pelo processo coletivo e pelo produto social do discurso e da comunicação.
Para as pesquisas que se interessam na distribuição das representações sociais, os dados são obtidos a partir da
avaliação individual. Envolve amostra de vários indivíduos. O ponto de interesse em tais estudos é o conjunto de elementos
constantes em uma representação, que pode ser identificado através da amostragem de vários indivíduos. A representação, tal
como é avaliada por esse tipo de pesquisa, constitui-se de elementos comuns do conhecimento que é produzido pelas pessoas
na amostra. A representação resultante será então a representação prototípica individualmente distribuída de elementos
comuns.

1
Acrescenta-se aqui, não apenas de pulsão interna, pois não podemos negligenciar os fatores biológicos que, nesse trabalho, não nos interessa. Os fatores sociais
e culturais são fundamentais, mas há toda uma “série complementar” de fatores desencadeantes do comportamento sexual, que incluem os biológicos.

355
Se o pesquisador está preocupado com as características coletivas de uma representação social, ele avaliará a
representação pertencente a grupos através de documentos, análises da mídia ou sondagens. Isso garante que a visão coletiva
da representação social resultante contenha não somente opiniões de subgrupos mais ou menos importantes, mas também que
tome em consideração as diferentes versões, pontos de vista e profundidade na elaboração de um objeto social em um grupo
social, mais abrangente.
As representações sociais em grupos revelam uma divisão do trabalho que pode ser chamada linguística, cognitiva
ou representacional. Em consequência, as representações de um único e mesmo objeto social estão presentes em diferentes
subgrupos e incluem aspectos diferenciados do objeto que variam na relevância que tem para cada subgrupo. O pesquisador
procura, então, avaliar a totalidade das versões existentes de uma representação, em uma unidade social mais ampla. A
representação global resultante é a representação coletiva completa, com elementos que não são comuns a todos os grupos,
mas que são típicos ou relevantes para um ou outro grupo social. Ela representa uma macro-estrutura própria, não redutível
aos indivíduos.

As condições sociais em que um grupo vive delimitam o espaço da experiência de seus membros. A configuração
social determina, em grande parte, o que e como os membros de um grupo pensam, ou seja, a condição mental dos membros
de um grupo reflete uma determinada configuração social. Bourdieu (1983) denomina essa relação de homologia estrutural.
Mesmo que os indivíduos pertencentes a um mesmo grupo social sejam diferentes, eles se aproximam uns dos outros no que
diz respeito à estrutura básica de sua experiência social comum, de seu pensamento e de sua ação. Eles se assemelham em
relação ao habitus que incorporam, aos padrões de linguagem que compartilham, às representações sociais. Essas disposições
mentais são variações de um padrão comum subjacente, possível dentro de dadas condições histórico-sociais. A relação
estrutural entre condições mentais coletivamente partilhadas e condições sociais é homológica por causa da história comum.
Explicar uma representação social no nível da avaliação social significa determinar a condição social que a originou
e caracterizar e justificar a relação estrutural entre ambas. A tarefa é demonstrar como as representações sociais, enquanto
variáveis dependentes, podem ser explicadas nesse nível social de avaliação. Certamente não constitui uma explicação
suficiente apenas afirmar que o grupo possui uma determinada representação, sem justificar em detalhes a relação
homológica entre estrutura social e mentalidade individual. Essa prática pretensamente científica é muito comum na
atualidade. A medição de características e práticas sociais e o tratamento estatístico delas é o início e o fim de muitas
pesquisas em relação à sexualidade (mas também na sociologia da educação e em outras sub-áreas da sociologia).
Por outro lado, existe um outro interesse no estudo das representações sociais. São aquelas investigações que usam
as representações como uma variável independente para explicar fenômenos subsequentes. Isto é, explicar, por exemplo,
comportamentos individuais a partir do estudo das representações sociais. Esses estudos partem do pressuposto de que
crenças e intenções de sujeitos sociais podem ser usadas como explicações causais para o comportamento e para a ação.
Análises epistemológicas e teóricas, entretanto, colocam em dúvida se representações, entendidas como conteúdos mentais
racionais, são legítimas nessa função de explicação do comportamento e da ação a elas relacionadas (Wagner, 1995). De um
lado, pode-se supor que representações, sendo disposições racionais para comportamento social, implicam comportamentos e
ações específicas como uma consequência lógica necessária (analítica) e não como uma consequência contingente empírica
(sintética). Assim, as representações e os comportamentos a elas associados são entidades altamente integradas e mutuamente
dependentes, que não podem ser justapostas a explicações causais.
As pesquisas que explicam o comportamento a partir das representações coletivas deslocam aquilo que é uma
crença dos sujeitos para o nível de uma afirmação teórica. Essas pesquisas consideram aquilo que é o conteúdo mental dos
sujeitos como algo que pode ser integrado em uma teoria sobre o conteúdo mental dos sujeitos.
Considerando, como Wagner, as representações sociais como disposições racionais para o comportamento social,
aquelas se aproximam da noção de habitus da obra de Boudieu, que a define como um sistema de disposições duráveis e
transferíveis que integram todas as experiências passadas e funciona a todo o momento como matriz de percepção, apreciação
e ação. É a mediação universalizante que proporciona às práticas sem razões explícitas e sem intenção significante, de um
agente singular, seu sentido, sua razão e sua organicidade (Bourdieu, 1972). As representações sociais estão no reino das
idéias, e o habitus é disposição. Há uma diferença que não pode ser negligenciada. Enquanto as representações sociais
almejam um estatuto teórico, a noção de habitus de Bourdieu é analítica, uma ferramenta para a pesquisa. Mas a noção de
representação social é útil para nos lembrar a cada passo da pesquisa que esse estoque de conhecimento acerca da
sexualidade que está à disposição dos indivíduos em dada sociedade e que, a partir dele, cada indivíduo estruturará suas
práticas cotidianas, e as significará, é criado e mantido na interação entre os indivíduos.
A noção de habitus de Bourdieu nos é útil para lembrar a cada momento que, (1) ao lado da norma expressa e
explícita ou do cálculo racional, há outros princípios geradores de práticas; (2) a conformidade da prática com a regra traz um
lucro simbólico suplementar, aquele que advém do fato de estar em dia, de render homenagem à regra e aos valores do grupo;
(3) a prática cotidiana dos indivíduos é guiada por um esquema prático (não totalmente linguístico) que não se origina numa
regra ou numa lei explícita; (4) o modo de percepção que está implícito na idéia de script se aproxima mais de um conjunto
de princípios de visão e divisão, incorporados a partir da posição no campo social que cada indivíduo ocupa, e não
aprendidos.
Assim, utilizaremos neste trabalho a noção de “roteiros sexuais” ou esquemas cognitivos estruturados sobre
sexualidade, com as seguintes características:

356
(1) Uma conduta sexual pressupõe um esquema cognitivo estruturado, denominado de roteiros sexuais, sem o qual
os atores não poderiam reconhecer o caráter particularmente sexual da situação;
(2) Tal reconhecimento supõe uma interação complexa entre um ator e um contexto antes que uma resposta simples
a sinais sexuais universais;
(3) A conduta sexual encontra suas fontes no contexto, e não é resultado apenas de pulsão interna;
(4) Esses roteiros fazem parte do estoque social de conhecimentos à disposição dos indivíduos de uma determinada
cultura e cada indivíduo os atualiza em sua prática cotidiana;
(5) Esses roteiros são produzidos, criados, engendrados, atualizados, mantidos e legitimados coletivamente, em
cujo processo intervém a situação histórica, econômica, e as motivações individuais, ou seja, através das relações entre os
diversos “eu’s”, ou na interação entre os indivíduos de determinada sociedade;
(6) Esses roteiros têm por função a contribuição para os processos de formação de condutas e de orientação das
comunicações sociais;
(7) Na atualização individual desses roteiros, ao lado da norma expressa e explícita ou do cálculo racional, há
outros princípios geradores de práticas;
(8) A conformidade da prática com a regra traz um lucro simbólico suplementar, aquele que advém do fato de estar
em dia, de render homenagem à regra e aos valores do grupo;
(9) O modo de percepção que está implícito na idéia de roteiro sexual se aproxima mais de um conjunto de
princípios de visão e divisão, incorporados a partir da posição no campo social que cada indivíduo ocupa, e não aprendidos.
(10) Esses roteiros são incorporados pelos indivíduos através dos aparelhos de conversa (incluído aqui a mídia). A
inclusão dos aparelhos de conversa ajuda a compreender os desvios

A terminologia utilizada será a de “roteiros sexuais”, já que se quer isolar a representação social da sexualidade
como variável dependente. Não nos interessa o que o indivíduo está fazendo de sua vida sexual, mas sim o que é a
sexualidade em nossa cultura contemporânea. Nosso interesse não é no “intrapsíquico”, mas sim no cultural, no estoque de
conhecimentos em geral acerca da sexualidade socialmente válidos, legítimos e legitimados que estão à disposição dos
indivíduos em determinada cultura.
Os documentos analisados foram os seguintes: revistas femininas e masculinas, sites da internet (portais femininos,
blogs, Orkut), filmes (cinema), música popular, programas de televisão, livros de auto-ajuda e literatura. Classificamos o
material da seguinte forma, para efeitos de análise: material para público masculino, feminino e gay; material para
adolescentes, adultos e terceira idade, e material para público com maior capital cultural e para público com menor capital
cultural.

Alguns dados obtidos na pesquisa


Em 1990, a brasileira Hilda Hilst publica uma trilogia pornográfica, iniciada com "O Caderno Rosa de Lory
Lambi". Escritora reconhecida e premiada, no final dos anos de 1980, decide escrever textos pornográficos como “uma coisa
que, de repente, eles gostassem de ler”. Sua decisão foi de “fazer umas coisas porcas” (Hilst, 1999: 30) para ser consumida.
Sua originalidade não está apenas em expor – isto outros fizeram antes dela, inclusive Nelson Rodrigues –, mas, sobretudo
em expor-se.
A francesa Catherine Millet, diretora da revista Art Press, após ter publicado uma série de livros sobre arte,
publicou, em 2001, "A Vida Sexual de Catherine M.", ou seja, a sua própria. O que Catherine revela não é inédito, mas
surpreende pela naturalidade com que conta seu prazer em participar de orgias e ter relações com dezenas de desconhecidos
numa única noite – tudo isso abertamente e durante seus 21 anos de casada. No livro, que vendeu mais de 2 milhões de
cópias e foi traduzido em mais de 40 línguas, a autora não consegue precisar a quantidade de parceiros que teve em sua
trajetória sexual. O número de amantes identificados chega a 49. Catherine deixa claro que gosta mesmo é de homens - no
sexo grupal, às vezes, ela acariciava mulheres e chamava as mais tímidas para a roda. Catherine não fala de paixão, não fala
de afetos, mas só de desejo puro em seus relacionamentos extraconjugais.
Na edição número 149, de dezembro de 2001 da revista Marie Claire, uma revista feminina, encontra-se a
reportagem com o título A modelo brasileira Ira Barbieri, 26 anos, não esconde de ninguém ter transado com todos os
homens que quis desde a perda de sua virgindade, aos 15. Calcula ter se deitado com mais de 200 parceiros.
Bruna Surfistinha, garota de programa egressa da classe média, criou um blog2 no qual narra sua vida, o que fazia
com seus clientes. Esse blog atingiu cerca de quinze mil visitas diárias ao site. Em pouco tempo, atraiu a atenção da
imprensa. Imitando diários de adolescentes, ela deixa ali anotadas suas experiências. O jornal The New York Times publicou
em 27 de abril de 2006, um artigo sobre ela e, em seguida, gravou uma entrevista para a BBC de Londres. Publicou, em
2005, um livro com o relato de sua vida: O doce veneno do escorpião- O diário de uma garota de programa. O livro foi um
fenômeno editorial, já traduzido em vários países, alcançou rapidamente a lista dos mais vendidos, com noites de autógrafos
concorridas em Portugal e na Espanha e tornou sua autora um ídolo de adolescentes escolarizados e conversa obrigatória em

2
http://www.brunasurfistinha.com/, consultado em 29/11/2008.

357
todos os espaços sociais. Um filme baseado na história de Bruna Surfistinha foi aprovado pelo Ministério da Cultura para
financiamento e deverá ser lançado em 2009.
Na periferia do Rio de Janeiro, desde a década de 80, o funk carioca reina em bailes gigantescos, frequentados pelos
jovens. As músicas têm, atualmente, um forte apelo sexual.
De Tati Quebra-Barraco, temos os seguintes trechos de letras de música:
“Eu fiquei 3 meses sem quebrar o barraco, / Sou feia, mas tô na moda,/ tô podendo pagar hotel pros homens / isso é
que é mais importante”/ “Não adianta de qualquer forma eu esculacho / Fama de putona só porque como seu macho /
Não adianta de qualquer forma eu esculacho/ Fama de putona só porque como seu macho / Não adianta de qualquer
forma eu esculacho / Fama de putona só porque como seu macho”
“69 frango assado, de ladinho a gente gosta / 69 frango assado, de ladinho a gente gosta / se tu não tá aguentando para
um poquinho tá ardendo assopra/ 69 frango assado, de ladinho a gente gosta / se tu não tá aguentando para um
poquinho tá ardendo assopra / então tá ardendo assopra / tá ardendo assopra / fica de joelho faz um biquinho chupa
minha .../ tá ardendo assopra / tá ardendo assopra / fica de joelho faz um biquinho chupa minha ...”

Da “Gaiola das popozudas”, temos, entre várias outras, as seguintes letras de músicas:
“Eu vou pro baile sem calcinha / agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar! / Daquele jeito / Eu vou pro baile
procurar o meu negão / Vou subir no morro ao som do tamborzão / Sou cachorrona mesmo e late que eu vou passar/
Agora eu sou piranha e ninguém vai me segurar / dj aumenta o som!”
“Fiel é o caralho,/ você é empregadinha, / lava passa e cozinha, mas a pica dele é minha,/ lava passa e cozinha, mas a
pica dele é minha”

Ao lado de relatos de experiências e de produtos culturais auto-biográficos com conteúdos sexuais, as revistas e a
televisão apresentam conselhos para a vida sexual. Na revista feminina on-line au-feminin3, francesa, há uma reportagem na
qual um sexólogo ensina como atingir o orgasmo. Uma leitora confessa:
« Du coup, à chaque fois que je rencontre un homme, je me demande : "est-ce que c’est le bon ? Est-ce que c’est avec
lui que je vais découvrir l'orgasme ?". Et à chaque fois, je suis déçue. Mais pas question de simuler. Je ne jouis pas, un
point c'est tout. Ceci dit, comme je ne leur en parle pas directement, ils ne se posent pas trop de question. Quand je
sens que je pourrais m’attacher à l'un d'eux, je le quitte sous un autre prétexte. Parce que je ne me sens pas pleinement
épanouie avec lui. Résultat: j’enchaine les conquêtes et je n’ai jamais eu d’histoire sérieuse. Je ne vais quand même pas
faire ma vie avec un homme qui ne me donne pas d’orgasme ».4

A resposta do sexólogo à leitora:


« (...) Pour résoudre son problème, il faudrait qu'elle explore son corps par la masturbation. Cela lui permettrait
de découvrir le plaisir. C’est extrêmement important de se connaître soi-même pour pouvoir guider l’autre vers son
plaisir. Si on ne sait pas soi-même ce que l’on aime, comment l’autre pourrait-il le deviner ? Mais pour cela, elle doit
accepter le fait que la masturbation n'a rien de ridicule et qu'elle prend une part importante à la sexualité et à la vie à
deux. Dans un second temps, il faut que Clara arrête, même si c’est sans doute plus facile à dire qu’à faire, d’être dans
l’attente. Elle attend trop de chaque homme. Cela crée chez elle l’anxiété de la performance qui empêche justement
l’orgasme. Elle se met la pression. Pendant le rapport, il faudrait que son cerveau ne se focalise que sur le plaisir
qu'elle reçoit au lieu de tergiverser ».5

Na sessão Mulher, do site Terra, encontramos uma reportagem com o título “Razões para fazer sexo” 6:
Perda de peso 1- É possível queimar até 560 calorias em uma relação sexual. / 2- O sexo é um dos exercícios mais
completos que existe, já que entram no jogo todos os músculos do corpo.
Mais feliz 3- A prática do sexo ajuda a curar as depressões leves, pois faz circular a endorfina por meio do sistema
sanguíneo, o que produz uma agradável sensação de euforia e bem-estar./ 4- Um encontro sexual ajuda a aumentar a
auto-estima, uma vez que a pessoa se sente muito desejada.
Relaxe 5- A desculpa de que "hoje não porque estou com dor de cabeça" é uma grande mentira. Fazer amor relaxa a
tensão que comprime os vasos sanguíneos cerebrais, por isso, alivia as dores de cabeça./ 6- É um ótimo remédio contra
a insônia, já que com as mudanças bioquímicas que ocorrem durante o ato sexual o corpo relaxa e entra em um estado
de sono profundo.

3
http://www.aufeminin.com/, consultado em 08/11/2008
4
“A cada vez que encontro um homem, eu me pergunto: “será que este será o bom? Será com ele que vou descobrir o orgasmo?”. E a cada vez eu me
decepciono. Mas, fora de questão simular. Eu não gozo, ponto e isto é tudo. Dito isto, como eu não falo diretamente, eles não colocam nenhuma questão.
Quando sinto que eu poderia me ligar a um deles, eu o deixo sob um outro pretexto. Porque eu não me sinto plenamente satisfeita com ele. Resultado: coleciono
conquistas e jamais tive uma história séria. Não terei uma vida junto a um homem que não me dá orgasmos”.
5
“(...) Para resolver seu problema, ela deve explorar seu corpo através da masturbação. Isto a permitirá descobrir o prazer. É extremamente importante conhecer
a si mesma para poder guiar o outro em direção ao seu prazer. Se não se conhece aquilo que se gosta, como o outro poderá adivinhar? Mas, para isto, ela deve
aceitar o fato de que a masturbação não tem nada de ridículo e que tem um papel importante na sexualidade e na vida a dois. Em um segundo momento, Clara
deve parar, mesmo se isto seja, sem dúvida, mais fácil de falar do que de fazer, de estar em estado de espera. Ela espera demais de cada homem. E isto cria nela
uma ansiedade de desempenho que impede o orgasmo. Ela pressiona a ela mesma. Durante a relação, seu cérebro não deve focalizar mais do que sobre o prazer
que ela recebe em lugar de tergiversar”.
6
http://mulher.terra.com.br/interna/0,,OI2728021-EI4788,00-Confira+as+razoes+para+fazer+sexo.html, consultado em 08/11/2008.

358
Menos irritada e mais atraente 7- Um corpo sexualmente ativo agrega maiores quantidades de feromônios - os
hormônios da atração./ 8- Fazer amor alivia as tensões nervosas. E por estar menos irritada, você consegue
desempenhar melhor as atividades de sua rotina.
Saúde mental em dia 9- O sexo é o melhor tranquilizante do mundo, muito mais eficiente que qualquer prescrição
médica./ 10- A prática com regularidade melhora notavelmente sua saúde mental, já que o sexo permite a liberação do
excesso de adrenalina.
Beleza acentuada 11- Ao se envolver no ato sexual, a mulher produz o dobro da quantidade de estrógenos - hormônio
responsável por manter a pele macia e o brilho no cabelo. Além do mais, retarda o processo da osteoporose e protege
contra a hipertensão./ 12- Suar (resultado inevitável do sexo) é saudável para a pele, pois contribui para a limpeza dos
poros. Além de eliminar as possíveis dermatites, erupções e manchas cutâneas.
Lábios e pernas mais lindas 13- Beijar com frequência permite que os lábios melhorem sua forma, cor e aparência.
/14- Fazer amor ajuda a prevenir as celulites, uma vez que ativa a circulação dos fluídos linfáticos, que são os
encarregados de eliminar bactérias, toxinas e outras substâncias que se acumulam especialmente nos músculos.
Treino esportivos 15- O sexo é divertido, excitante e, acima de tudo, grátis./ 16- As relações sexuais frequentes
melhoram o condicionamento físico./ 17- O sexo é um antihistamínico natural: pode desbloquear narinas
congestionadas.
Cura de todos os males 18- A prática do sexo protege contra os problemas digestivos. Mas isso sempre e quando não
venha logo depois de uma "atração gastronômica"./ 19- As relações sexuais constantes podem aliviar as dores de
artrite, melhorar a circulação e a produção de glóbulos vermelhos.

Na televisão a cabo, no canal GNT, num canal com forte apelo feminino, para o público feminino das classes
médias, há um programa denominado Falando de sexo, apresentado por Sue Johansson, uma senhora canadense que faz
aconselhamentos sobre a vida sexual. No site na internet do canal de televisão, a propaganda do programa diz o seguinte:
“Sue Johanson, uma simpática canadense (que já passou dos 70), acumula as funções de terapeuta sexual, mãe e avó. Ela
responde perguntas sobre sexo, sem constrangimento e preconceito - e muito bem humorada!” 7 Johanson tem um site na
internet, Talk sex with Sue Johansson. A senhora, com uma aparência completamente comum, de uma senhora idosa,
responde a cartas de telespectadoras com diversos problemas sexuais, e, mais especificamente, fala sobre brinquedos sexuais,
que ela mostra, faz demonstrações de como se deve usar, de uma forma tão natural como se estivesse falando de uma receita
de culinária.
Desde os anos de 1960 assiste-se a uma transformação progressiva da representação do sexual, através do cinema,
como por exemplo o filme John and Mary, no qual uma jovem se encontra com um homem em um bar de solteiros em Nova
Iorque, e passam a noite juntos. Nesse filme, ainda com uma certa ingenuidade, os personagens são reflexivos, pensam sobre
o comportamento, e estão em conflito entre a entrada em uma relação afetiva ou não. Duas décadas depois, o filme brasileiro
Eu te amo, dirigido por Arnaldo Jabor, e o filme norte-americano Nove e meia semanas de amor, mostram relações
puramente sexuais, nas quais encontramos uma desesperada busca de prazer sem nenhum envolvimento afetivo, sem
reflexão. Já em O declínio do Império Americano, uma década depois, já existe a busca do sexo casual, com desconhecido,
como algo natural, como “uma caça”, como diz uma das personagens ao contar a amigos a “delícia” que é encontrar alguém
desconhecido na rua, enquanto faz jogging, e ter relações sexuais rápidas e anônimas.

A construção do objeto: os esquemas cognitivos sobre sexualidade


As ciências sociais, como qualquer ciência, extraem dos fenômenos uma parte da totalidade vivida e a subsume a
um conceito específico. Dissipa as existências individuais para novamente reuni-las segundo um conceito que lhe seja
próprio e faz as seguintes perguntas: o que acontece com os seres humanos e segundo quais regras eles se movimentam? Essa
é a regra metodológica ensinada por Simmel (2006:19) e que seguiremos neste trabalho. A tarefa nesta sessão será delinear
um modelo aproximativo dos comportamentos sexuais e dos valores associados a eles, observados nos sujeitos desta
pesquisa. Trata-se da construção de um modelo ideal-típico ou, na linguagem bourdieusiana, da construção do objeto da
pesquisa. Para se obter o tipo ideal, a regra é a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o
encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se pode dar em maior ou
menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim
de formar um quadro homogêneo do pensamento.
O que se irá construir nesta conclusão é um “esquema cognitivo estruturado” ou um “roteiro sexual” a partir dos
dados empíricos. Dos dados da pesquisa, encontramos alguns fenômenos recorrentes e, entre eles, os seguintes: a
proeminência do corpo e da busca de prazer, uma “economia” dos afetos, ou seja, a evitação de compromissos , a
ultravalorização da “liberdade” e a vivência da sexualidade de forma “individual”, a presença cada vez mais e mais
valorizada de “encontros sexuais fortuitos”, a desvalorização do “casal” oficial (casados, namorados ou noivos), uma
aproximação dos valores sexuais femininos e masculinos (o comportamento dos sexos se aproximam), assim como daqueles
dos homossexuais, valorização de práticas antes consideradas “perversas”: sexo oral, sexo anal, sexo com mais de um
parceiro ao mesmo tempo, vários parceiros em um mesmo dia. Passa-se agora à descrição e à compreensão de cada uma
dessas características encontradas. O conjunto dessas características nos dá o modelo ideal (ideal no sentido puramente

7
http://globosat.globo.com/gnt/temas/tema.asp?fid=544 Consultado em 29/11/2008.

359
lógico do termo), uma construção de relações que parecem suficientemente motivadas pela nossa imaginação objetivamente
possíveis, e que parecem adequadas ao nosso saber nomológico. Vamos tentar compreender as relações entre homens e
mulheres em nossa sociedade, especificamente, as relações de afeto e sexualidade em nossa sociedade.

1. O corpo e o prazer do corpo


Desde fins do século XIX, o corpo chega ao cenário social e vai se tornando, cada vez mais, mais importante. Não
que o corpo não tenha tido uma proeminência em outras épocas e em outras sociedades.
A concepção de corpo em Platão8 chama a atenção dos estudiosos. Para ele, o homem é, em duas dimensões,
constituído por dois componentes, sob certos aspectos em nítida antítese entre si. Deu grande importância à “ginástica” e à
“medicina”, julgando essencial o cuidado com o corpo. Utiliza as metáforas de “túmulo” e de “concha” para se referir ao
corpo, uma prisão da alma. Os sentidos são um impedimento à alma no que se refere tanto à vida moral quanto à vida
cognoscitiva. O corpo é apresentado como fonte de paixões, de medos, de todo gênero de vaidade. Para conhecer o ser e para
emancipar-se das paixões, a alma deve libertar-se do corpo. Para Reale (2002), só podemos compreender o texto platônico
quando somos capazes de nos situarmos na ótica adequada: no seu valor intencionalmente provocador. Em alguns textos, a
concepção de Platão é amenizada, por exemplo, em Timeu, e o corpo é considerado um instrumento a serviço da alma ou um
veículo da alma. De qualquer forma, o corpo humano era admirado na cultura grega e foi representado, nu, em centenas de
vasos gregos.
Já na Idade Média, havia a concepção de que a pessoa era formada por corpo e alma, carne e espírito. De um lado, o
perecível, o efêmero, aquilo que voltará ao pó; do outro lado, aquilo que é imortal, o que aspira à perfeição divina. O corpo é
considerado perigoso, é o lugar das tentações. Dele surgem as pulsões incontroláveis, nele se manifesta o mal. Junto a isso,
há, no centro da moral cristã, uma desconfiança em relação aos prazeres carnais, pois estes aprisionariam a alma ao corpo,
impedindo que aquela se elevasse a Deus (Flandrin, 1987). A união sexual só era permitida e considerada legítima no
casamento e, mesmo assim, se fosse realizada para gerar filhos e para lutar contra o desejo. Mas havia o princípio de respeitar
o corpo, já que este era o templo do espírito e ressuscitaria. Devia-se cuidar dele, mas com prudência, amá-lo ternamente
como, segundo São Paulo, os maridos devem ter afeição às mulheres, guardando distância, desconfiando, pois o corpo é
tentador como a mulher, ele leva os outros ao desejo, leva a desejar os outros. O pensamento cristão se depara com duas
verdades paradoxais: a encarnação e a ressurreição. Como conciliar o divino com o corpo? Santo Agostinho encontra na
carne a resposta que conjuga tanto a natureza divina quanto a material de Cristo, e a “carne” assume um sentido mais
abrangente que meramente a matéria de que seria feito o corpo. Diante da perspectiva de Santo Agostinho, a carne também
pode ser salva, pois se a alma é corruptível pode corrompê-la também. Há uma forte tendência a temer o corpo, e dele
libertar-se, levando aos extremos do ascetismo (Duby, 1990). Uma diferença entre o pensamento cristão e o antigo se
encontra na maneira como cada um entendia a possibilidade de felicidade. Enquanto na Antiguidade Clássica, a felicidade
poderia ser encontrada no mundo terreno, desde que se mantivessem os impulsos do corpo afastados da alma ou funcionando
a favor do logos, para o cristianismo a felicidade não pertenceria a este mundo, de modo que o indivíduo encontrava-se em
uma tensão entre o corpo e a alma e a sabedoria não estava em anular o corpo, mas em harmonizar corpo e alma (Mammi,
2003).
No século XIX encontram-se dois discursos: aquele do higienismo e o da limpeza. O primeiro, saído da medicina e
o segundo das novas camadas sociais médias urbanas. Para um, trata-se de sanear, de limpar, de purificar. A cidade é vista
como um “suicídio coletivo”, a medicina deplora a poeira, as fumaças, as imundícies. Deve-se urgentemente arejar, clarear,
limpar. Para outro, não convém ultrapassar os limites (Corbin, 1988). É necessário ficar dentro das fronteiras de seu corpo, de
não incomodar com seu odor, de respeitar a privacidade do outro. A limpeza é assim uma nova relação ao corpo que se
relaciona à disciplina. É um discurso social que não se reenvia à higiene, mas ao controle de si. É no encontro desses dois
discursos que nasce o higienismo, que escorrega do higiênico ao moral.
O higienismo realizará seu projeto moral se inscrevendo no espaço – e singularmente no espaço urbano – e nos
corpos. Traz consigo um poder de gestão da vida, que circula entre os indivíduos, em procedimentos de normalização
intersubjetivos. Presente por todo lugar e por todo o tempo, o higienismo segue o ator social e o controla para seu próprio
bem, passa pelas instituições e indivíduos, pelos discursos e atos.
A medicina social, através da política higienista, insinuou-se na intimidade das vidas das famílias. A higiene impôs
aos indivíduos uma educação física, moral, intelectual, sexual e intelectual. A educação física criou o corpo saudável, robusto
e harmonioso. A educação moral secularizou medicamente as mentalidades. Criou o indivíduo contido, polido, “bem
educado”, cuja norma ideal é o comportamento reprimido e disciplinado. A educação intelectual conduzida pela higiene
ajudou a refinar e a cultivar cientificamente a sociedade. A educação sexual, segundo a higiene, deveria transformar os

8
Não se toma, aqui, a obra de Platão como a realidade grega. Isso seria incorrer em um erro, já que Platão é um comentador de sua sociedade e um propositor de
um modelo de funcionamento social e de comportamento humano. Ele trata do real, em sua interpretação, e do ideal, de seu ponto de vista. Mas, ele nos dá
indícios sobre as idéias e os comportamentos de seu tempo. Não se pode afirmar que o homem grego era da forma como está em seus textos, mas pode-se afirmar
que essas são as idéias que perpassavam a cultura da Grécia Antiga. Da mesma forma que não podemos afirmar que nossos contemporâneos vivem os padrões de
comportamento que estudamos nos filmes, nas músicas, nas revistas, mas que essas são as idéias de nossa contemporaneidade.

360
homens e mulheres em reprodutores e guardiães de proles sãs. As condutas sexuais foram sendo reduzidas às funções sócio-
sentimentais do “pai” e da “mãe” (Costa, 1983).
O fato novo, em nossa época, parece se relacionar a um novo discurso sobre o corpo e ao surgimento de uma
determinada representação social sobre o corpo e ao uso do corpo pelos indivíduos. O corpo se divorcia da alma, e a
preocupação com esta desaparece da nossa sociedade. O fato novo é o surgimento de profissionais da cura do corpo e da
alma. Esse surgimento é possibilitado pela secularização da sociedade.
Por secularização Berger (1985) entende o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à
dominação das instituições e símbolos religiosos. É o processo pelo qual a religião perde sua autoridade tanto no nível das
instituições quanto no nível das consciências humanas. Os efeitos sócio-estruturais e socioculturais da secularização seriam a
"individualização" e o pluralismo religioso. Individualização diz respeito ao fato de que a religião se privatizou e mantém sua
expectativa apenas no nível dos indivíduos ou das realizações pessoais, familiares e de pequeno grupo. O pluralismo religioso
diz respeito à ruptura do monopólio religioso, que instaura um regime de concorrência entre os diversos agentes religiosos.
As consequências do pluralismo levam a uma situação análoga ao mercado livre na economia - uma situação de mercado
religioso. A secularização está em estreita relação com o processo de pluralização das escolhas, isto é, com a oferta
diversificada de modos de vida, tornada possível pela multiplicidade de instituições, cada qual com finalidades diferentes e
normas específicas, que caracteriza a sociedade moderna. As transformações da sociedade moderna - pluralismo das
concepções de mundo, privatização e subjetivação do fenômeno religioso - obrigam a todos a realizar uma "livre escolha"
entre as religiões e as concepções de mundo existentes em uma dada sociedade. Há um esvaziamento da religião como
fornecedora de valores de orientação para a vida social. Bourdieu (1990) acrescenta a isso com sua noção de campo, que, na
verdade, o que acontece é a dissolução do campo religioso, pois além da concorrência entre as diversas instituições do campo
religioso, os agentes enfrentam a concorrência de tipo novo que certos leigos fazem indiretamente, como por exemplo, os
psicanalistas, os psicólogos, os médicos.
Desse modo, hoje se passa dos padres à moda antiga aos membros das seitas, aos psicanalistas, aos psicólogos, aos
médicos, aos sexólogos, aos professores de expressão corporal, de esportes de lutas marciais, aos conselheiros da vida, aos
assistentes sociais, aos enfermeiros, nutricionistas, aos fisioterapeutas: todos esses fazem parte do novo campo de lutas pela
manipulação simbólica da condução da vida privada e da orientação da visão de mundo, e todos colocam em prática na sua
ação definições concorrentes, antagônicas, de saúde, do tratamento, da cura dos corpos e das almas. Como bem nos mostra
Bourdieu (1990:121), esses agentes que estão em concorrência no campo de manipulação simbólica têm em comum o fato de
exercerem uma ação simbólica. São pessoas que se esforçam para manipular as visões de mundo, e desse modo, para
transformar as práticas, manipulando a estrutura de percepção do mundo (natural e social), manipulando as palavras, e,
através delas, os princípios de construção (princípios de visão e divisão, de hierarquização e classificação) da realidade
social.
Dentro desse campo ampliado de cura de almas e de corpos, surge, a partir dos anos 70, um novo fenômeno, tanto
em relação à cura das almas quanto à cura do corpo. É a medicalização, que aparece na literatura das ciências sociais.
Significando literalmente “tornar algo médico”, o termo é utilizado na sociologia para descrever as novas práticas sociais de
medicalização e supermedicalização. Illich (1976) utiliza a concepção de “medicalização da vida”. Parece que nas décadas
seguintes, esse processo se intensifica.
Parece que no campo dos estudos – e tratamentos – da sexualidade acontece algo semelhante ao que ocorreu no
campo da psiquiatria. Na clínica psiquiátrica, da década de 1950 até a década de 1980, conviveram juntos o discurso teórico
da psicanálise e os dispositivos terapêuticos dos medicamentos psicotrópicos, estes últimos utilizados até então como
“potencializadores” da psicoterapia9, que era considerada o tratamento principal. Nos anos de 1980, surge um instrumento
diagnóstico que invade toda a área da cura psíquica, incluindo a psicologia, o Manual de Diagnóstico e Estatística dos
Transtornos Mentais, ou DSM-III, que, embora declarado como ateórico, é tomado como um dos principais fatores
responsáveis pela supremacia do modelo médico na psiquiatria contemporânea.
Segundo os estudos de Aguiar (2003), o aparecimento do DSM-III constituiu um corte fundamental na clínica
psiquiátrica, tornando o seu funcionamento totalmente diferente da etapa anterior, quando a psiquiatria psicodinâmica
liderava o campo. Daí em diante a pesquisa e a clínica psiquiátrica se organizam em função da intervenção direta sobre os
sintomas. O DSM tornou possível na psiquiatria o mesmo processo de abstração que permite à medicina classificar e tratar
doenças como entidades universais, transcendentes ao organismo vivo individual dos pacientes. Os transtornos mentais são
reduzidos, assim, aos seus sintomas manifestos através de uma abordagem descritiva e passam a ser tomados como entidades
mórbidas, podendo ser classificados e analisados independentemente das particularidades dos sujeitos que os sofrem. A
ênfase se desloca da análise do sujeito para o tratamento de casos. Enquanto os sujeitos são definidos pela sua singularidade,
os casos são constituídos pela sua semelhança na apresentação de sintomas. O foco passa dos sujeitos singulares para os
transtornos universais. A querela histórica da psiquiatria a respeito da etiologia dos transtornos mentais (psicogênese versus
organogênese) é abandonada em favor da classificação, abstração e da universalização dos sintomas. A psiquiatria, a partir de
então, passa a ser descrição e classificação “ateórica”.

9
Ver Aguiar, 2003.

361
O DSM-III funciona em relação a outros dispositivos sociais: a invenção dos medicamentos modernos e a história
da constituição da indústria farmacêutica, a criação do FDA e dos processos regulatórios sobre a produção de medicamentos,
a metodologia dos estudos controlados com placebo e o funcionamento particular do mercado mundial de medicamentos.
Todos esses domínios articulados são fundamentais para se compreender a constituição da psiquiatria contemporânea, a
psiquiatria “biológica”, e a progressiva “medicalização da sociedade”.
No bojo desse mesmo fenômeno, relacionado diretamente ao crescimento das indústrias farmacêuticas e à pesquisa
na área de medicamentos, está a medicalização da sexualidade (Viagra e semelhantes, hormônios femininos, contraceptivos
orais, etc.), a medicalização do envelhecimento e a medicalização da beleza.
Em nossa sociedade, os “corpos perfeitos” invadem progressivamente os espaços da vida cotidiana. A expectativa
de corpo das pessoas está em relação a padrões de beleza que provavelmente interliga uma variedade de fenômenos cada vez
mais comuns, como a maior incidência de bulimia e anorexia, a prática da “malhação” 10 e as cirurgias estéticas. O
crescimento da cirurgia plástica estética merece destaque pelo impacto das alterações corporais causadas em relação à
imagem corporal e pela posição que a medicina ocupa na sociedade, divulgadora de “verdades” científicas. É a primeira vez
que a beleza surge como objeto único e central de uma área médica. A aparência física começa a ter uma outra conotação na
sociedade ocidental, que Eco (2004) denomina de “beleza de consumo”, em que os ideais de beleza são determinados pelo
interesse econômico. As indústrias de cosméticos e de dietas estão entre as que mais crescem em todo o mundo e com a
medicina da beleza não é diferente. Poli Neto e Caponi (2007) nos fornecem os dados:
“Nos EUA, em 2003, segundo a American Society For Plastic Súrgeons - ASPS (2004a), foram realizados mais de 8,7
milhões de procedimentos estéticos, dentre os quais: quase três milhões de injeções da toxina botulínica, 320 mil
lipoaspirações e 254 mil aumentos de mamas. A tendência de 1992 a 2003 aponta para um grande crescimento no
número de cirurgias plásticas cosméticas: aumento de mamas 657%, lift nas nádegas 526%, lipoaspiração 412% e
injeções de botulina 153% de 2002 a 2003 (ASPS, 2004b). Uma outra tendência é o aumento dessas intervenções em
faixas etárias cada vez mais precoces. Nos EUA, foram realizadas 3.841 cirurgias para aumento de mamas em meninas
menores de 18 anos em 2003, um aumento de 24% em relação a 2002. No mesmo ano, as adolescentes americanas se
submeteram a 5.606 intervenções para injeção de botulina, um aumento de 950% em relação a 2002 (ASPS, 2004c). O
Brasil é o terceiro país do mundo em número de cirurgias plásticas, atrás apenas dos EUA e do México; foram 400.000
intervenções em 2003, sendo metade delas puramente estéticas e, dentre essas, 40% de lipoaspiração, 30% de mamas e
20% na face”.

É esse corpo “perfeito” que se põe a serviço da sexualidade. O desejo sexual é, de agora em diante, desejo da
forma, desejo da imagem, mas de uma imagem pré-definida, a beleza de consumo, utilizando a expressão de Eco (2004).
Segundo este autor, o modelo de beleza proposto pelo mass media é atravessado por uma dupla cesura:
o cinema propõe nos mesmos anos o modelo da mulher fatal personalizado por Greta Garbo e por Rita Hayworth e
aquela da ‘mocinha da casa ao lado’, personalizado por Claudette Colbert ou por Doris Day. Oferece como herói do
Oeste o maciço e virilísimo John Wayne e o mansueto e vagamente feminino Dustin Hoffman. São contemporâneos
Gary Cooper e Fred Astaire, e o grácil Fred dança com o vigoroso Gene Kelly. A moda oferece roupas femininas
suntuosas, como aqueles que vemos desfilar em Roberta, e ao mesmo tempo os modelos andróginos de Coco Chanel.
Os mass media são totalmente democráticos, oferecem um modelo para quem já é dotado de uma graça aristocrática e
outro para a proletária de formas opulentas (...). Os meios de comunicação repropõem uma iconografia oitocentista, o
realismo fabulístico, a opulência juncional de Mae West e a graça anoréxica das últimas modelos; a beleza negra de
Naomi Campbell e a nórdica Cláudia Schiffer; a graça do sapateado tradicional de A Chorus Line e as arquiteturas
futuristas de Blade Runner.” (Eco, 2004:428).

A sexualidade não ficou de fora dessa nova onda. Medicamentos para contracepção, prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis, medicalização da menopausa e da sexualidade adolescente, medicamentos e tratamentos para
problemas de concepção, e, por último, para problemas de frigidez e impotência masculina. A relação entre a química e a
sexualidade não é novo. Há mitos e lendas, sem mencionar a literatura (Shakespeare, por exemplo), que tratam de pessoas
que ingeriram alimentos, especiarias, flores, bebidas e frutos para alterar o desejo sexual e seu desempenho. O fato novo é a
racionalização “científica” desse desejo humano, causando mudanças significativas na prática social e no significado da
sexualidade.
Matthey e Walther (2005) defendem a idéia de que assistimos ao surgimento de um “novo higienismo”, um estado
de espírito que é, antes de tudo, de bem-estar, preocupado com a saúde, com a duração das existências dos indivíduos, da
inserção feliz destes em um mundo caloroso e aberto ao outro ou cada um em seu lugar. O “novo higienismo” surge quando a
sociedade ocidental é confrontada pela imposição de novas normas sociais, forjando o “cidadão responsável”. É de natureza
conservadora, paradoxalmente, apesar as aparências, pois ele se afasta pouco dos valores e instrumentos antigos,
notadamente aquele de uma preocupação com a saúde de forma moralizada. Assim, segundo os autores, a universidade, por
exemplo, será a configuração social típica desse “novo higienismo”. Aqui se vê desenvolver simultaneamente a proibição de
fumar, as políticas de valorização da atividade física tendo por alvo os estudantes e os funcionários da instituição e uma auto-
organização da vida coletiva se organiza em torno das atividades de lazer normalizadas ao excesso. Tudo isso em um

10
Há, inclusive, um programa da televisão brasileira, há mais de uma década, com esse nome, programa esse criado para o público jovem, para os adolescentes,
em um horário vespertino, ao final da tarde.

362
contexto que insiste na necessidade de todos participarem, que ninguém se esqueça de “fazer a festa”. Esses princípios se
aplicam à universidade, mas igualmente às empresas e às sociedades, engajadas em uma configuração típica do “novo
higienismo” no qual uma nova arrumação do espaço e dos corpos se coloca no momento no qual essas instituições entram em
uma fase de recomposição e de reforma de suas estruturas.
Em relação aos corpos, o “novo higienismo” parece promover a época das plásticas perfeitas e dos prazeres não-
tóxicos. De um lado, através da cirurgia, do esporte e dos regimes alimentares (divulgação e consumo de alimentos
orgânicos, vegetarianismo, alimentos saudáveis utilizados da forma de medicamentos, que trazem em sua embalagem a sua
composição química, etc.), tendem a manter uma linha que se parece a um conjunto de curvas estereotipadas. Seios, ventres,
lábios, nádegas, nariz: o corpo inteiro está sendo recriado e singularmente aquele da mulher. Por outro lado, milita-se, e cada
indivíduo já está imbuído desse espírito militante – pelo risco zero em matéria de saúde, ou mais exatamente, pelo “direito de
estar ao abrigo do risco”. Essa obsessão da segurança marca profundamente os corpos, à medida que as substâncias e os
comportamentos de risco são proibidos na cena pública e privada. Gorduras perigosas, açúcar e álcool são acusados de
perverter um corpo são. Mas é o cigarro que sofre o mais duro golpe. O “novo higienismo” abolirá o cigarro e a fumaça em
todo espaço público: universidades, aviões, salas de espera de todos os tipos, trens, ônibus, repartições públicas. Esse
combate ao cigarro e à fumaça de cigarro é feita em nome de valores sanitários. O “novo higienismo” também se consagra ao
combate aos corpos gordos: a magreza começa a ser relacionada não só à saúde, mas também à moral. A “reeducação
alimentar” está nos discursos médicos e também na mídia. Mas também a ginástica e as dietas. O higienismo é uma forma de
regulação que aspira a se ocupar de tudo, é uma forma de controle social que tende à normalização sem limites e à eliminação
dos argumentos alternativos em uma pretensão à universalidade de uma norma histórica.
Assim, o corpo desejável, se não tem um modelo definido de beleza, já que esse modelo não existe, de acordo com
Eco, não deixa de ter um padrão, que é o padrão colocado pelo novo higienismo, a magreza e a saúde. É o corpo sem
gorduras, sem “celulite”, “malhado”, que passou por cirurgias corretivas, sem rugas, sem sinais de envelhecimento, sem
cheiros (de fumaça), perfumado por cremes e perfumes, é esse o corpo desejado. É aquele das capas das revistas masculinas e
femininas. Numa sociedade de abundância que considera a gordura “ruim” e a obesidade vulgar, a estética da magreza é
imposta pela mídia, que intima as mulheres a seguir dietas e fazer ginásticas sempre novas (aeróbica, antiginástica,
musculação, alongamento, etc.). Mas também pelos médicos, que pesam os pacientes a cada consulta, indicam dietas e
remédios para tirar o apetite.
A proeminência do corpo em relação à alma tem como corolário a busca do prazer, do prazer desse corpo. Pode-se
observar essa busca do prazer em relação a várias experiências individuais: a) A busca desse corpo perfeito, do
aperfeiçoamento e do aprimoramento desse corpo parece se tornar uma fonte de prazer em si. Exercícios físicos, esporte, e
mesmo as cirurgias estéticas parecem se revestir da idéia da busca do prazer para esse corpo. b) A alimentação se torna
ambígua: ao mesmo tempo que tem que ser controlada, no sentido de se seguir uma dieta saudável, para o prolongamento da
vida e para a evitação de doenças, também se torna fonte de prazer. Revistas e inúmeros programas televisivos de culinária
atestam isso. Há programas e receitas para todos os tipos de gostos e de estilos de vida. É paradoxal o fato de que se deve
emagrecer e, ao mesmo tempo, ter prazer em comer. Para resolver esse paradoxo, a indústria farmacêutica desenvolveu
medicamentos que tiram o apetite e medicamentos que eliminam do organismo as gorduras ingeridas, sem deixá-las acumular
no organismo. Desse paradoxo também aumentam os casos de anorexia e de bulimia. c) O prazer sexual deve ser buscado a
qualquer preço. E esse prazer é relacionado exclusivamente ao orgasmo, tanto para homens quanto para mulheres.

2. “Biologização” da sexualidade
A proeminência do corpo no mundo ocidental contemporâneo traz consigo aquilo que podemos denominar de
“biologização” da sexualidade. A sexualidade torna-se uma função biológica que deve ser praticada, como a alimentação.
Nas duas últimas décadas muito esforço tem sido dedicado a definir, descrever e analisar a socialização sexual
feminina e a construção da sexualidade da mulher (Tiefer, 1991). Entre os fatores que contribuíram para isso, está a
“medicalização”, incluindo a ideologia e a prática médica em relação à menstruação, à menopausa, à gravidez, à síndrome
pré-menstrual, à aparência física e à fertilidade. Não há mocinhos e bandidos nessa história, todos têm responsabilidade e
colaboram: as mulheres por causa de suas próprias necessidades e interesses; e outros grupos sociais com seus interesses
econômicos.
Tiefer (1994) mostra que os homens e seus corpos também têm sido objeto do sistema de observação e controle e
que a medicalização perpetua uma definição falocêntrica da sexualidade e do prazer masculinos. Hoje, o falocentrismo é
perpetuado pela florescente construção médica que focaliza exclusivamente a ereção peniana como a essência da função e da
satisfação sexual masculina. A medicalização é promovida pelos urologistas, pela indústria médica, pela mídia e por
empresários. Homens e mulheres formam uma audiência pronta para esta construção por causa da ideologia masculina e da
socialização de gênero. Embora tenha vantagens nessa construção, há muitas desvantagens para os homens em termos da
falha inevitável da ereção perfeita prometida e a perpetuação da visão falsamente universalizada da experiência sexual.
Qualquer interesse sexual da mulher em outro comportamento sexual além do modelo falocêntrico é negado.
Para a medicalização funcionar, a área comportamental particular deve ser dividida em aspecto bom (saudável) e
aspecto mau (doente) e ser de alguma forma relacionada a normas de funcionamento biológico. Dois tipos de medicalização,
de acordo com Tiefer (1994), podem ser descritas. O primeiro tipo ocorre quando um comportamento ou evento desviante

363
prévio tal como um pecado, um crime ou um ato anti-social é redefinido como um problema médico; o segundo tipo ocorre
quando um evento da vida cotidiana (por exemplo, a gravidez, a calvície, um problema de memória) é redefinido como um
problema médico, frequentemente focalizado nas mudanças físicas associadas ao envelhecimento. A medicalização
transforma o desempenho erétil inaceitável em um objeto de análise e gerenciamento médico. De forma surpreendente, como
bem mostra a citada autora, definições e normas para ereções estão ausentes da literatura médica. A afirmação de que todo
mundo sabe o que é uma ereção normal é central à universalização e à reificação que suporta tanto a medicalização quanto o
falocentrismo. A autora identifica quatro grupos sociais ativos na crença da medicalização da função sexual masculina: os
urologistas, a mídia, a indústria farmacêutica e empresários, e uma grande audiência constituída por homens e suas parceiras
sexuais. Os novos estudos sobre o homem ocasionalmente fazem referência a uma descontinuidade entre o pênis real e
vulnerável e o phallus místico e todo poderoso (Tiefer, 1994). A tecnologia moderna parece determinada a fazer desaparecer
essa descontinuidade ou, pelo menos, a manter viva a esperança de que todos possam atingir uma biologia perfeita. As
novas tecnologias e a medicalização reduzem a sexualidade à neurologia e a fluxo sanguíneo: a ereção não é um meio, mas o
fim. A medicalização reifica a ereção. A mensagem subjacente é que o pênis e a ereção é o que conta e é tudo o que conta.

3. Naturalização e valorização de práticas antes consideradas “perversas”, como o homossexualismo, o sexo anal, o sexo
oral, sexo com mais de um parceiro ao mesmo tempo, vários parceiros em um mesmo dia, etc.
Esse ponto já tem uma história: começa com Freud, com a publicação em 1905 dos Três ensaios sobre a
sexualidade. Este livro combate o pensamento médico da época, retirando do indivíduo a “culpa moral” por comportamentos
sexuais “desviantes”. O primeiro capítulo dessa obra trata das “aberrações sexuais”, quais sejam, a inversão
(homossexualismo), pessoas sexualmente imaturas e animais como objetos sexuais, a supervalorização do objeto sexual (uso
sexual da membrana mucosa dos lábios e da boca, do orifício anal, outras regiões do corpo), do fetichismo (substitutos
inadequados para o objeto sexual),o sadismo e o masoquismo. Ao final das reflexões sobre as “aberrações”, Freud conclui
que nenhuma pessoa normal pode “deixar de adicionar alguma coisa capaz de ser chamada de perversa ao objetivo sexual
normal, e a universalidade desta conclusão é em si suficiente para mostrar o quão inadequado é usar a palavra perversão
como um termo de censura. Na esfera da vida sexual, defrontamo-nos com dificuldades peculiares e, na verdade, insolúveis,
tão logo tentamos traçar uma linha nítida para distinguir os sintomas patológicos de meras variações dentro da escala do que
é fisiológico”. (Freud, 1972: 163).
Béjin (1987) lembra um autor controvertido e, atualmente, pouco lembrado, Reich. Em seguimento a Freud, unindo
a psicanálise ao marxismo, Wilhelm Reich publica o clássico A revolução sexual. Aí a sexualidade é colocada no centro da
análise, não só dos indivíduos como também da sociedade. Para ele, “A repressão da vida amorosa infanto-juvenil provou,
graças às pesquisas da economia sexual e individual, ser o mecanismo básico da criação de indivíduos submissos e escravos
econômicos” (Reich, [1930] 1982:18). Além disso, afirma, na mesma obra, a motivação sexual do crime e da doença
emocional. Indo mais além, Reich, no prefácio da quarta edição da mesma obra, escrito em 1944, afirma que a transformação
da sociedade se dará através da mudança da sexualidade humana: “A economia sexual é revolucionária no sentido das
reviravoltas causadas pela descoberta dos micróbios e da vida psíquica inconsciente, na medicina; da descoberta das leis
mecânicas e da eletricidade, na técnica; da descoberta da existência da força produtiva, da força de trabalho, na economia. A
economia sexual age de forma revolucionária porque revela as leis da formação do caráter do homem e porque baseia os
esforços humanos no sentido da liberdade não mais em slogans empíricos, mas nas leis funcionais da energia biológica”. O
âmago do funcionamento mental é, para o autor, a função sexual; a organização social dos homens é decorrente de
necessidades biológicas, a alimentação e o desejo sexual. Assim, a sexualidade torna-se central, tanto no estudo dos
indivíduos quanto no estudo da sociedade. Para ele, a política se desenrola na pequena vida cotidiana e, por isso, a vida
sexual do homem deve ser investigada em entrosamento com as questões da sociedade autoritária. Foi a subjugação milenar
da vida sexual que criou as condições para o temor patológico das massas à autoridade e a submissão a esta e foi com base
nisto que a economia capitalista pode expandir-se e sobreviver.
A importância desse autor parece ser muito mais cultural do que científica, já que traz à nossa cultura a idéia tanto
da necessidade da liberdade sexual quanto a do orgasmo, como bem mostra Béjin (1987). O orgasmo é, a partir de então, o
valor máximo a ser alcançado para a felicidade e a saúde sexual, física e mental, assim como para o funcionamento perfeito
da sociedade. A alma se retrai e o corpo torna-se mais importante. Ou melhor, a cura dos problemas da alma não passa mais
nem pela oração, nem pela busca de uma vida ascética, mas pelo correto funcionamento da sexualidade o qual significa ser
capaz de ter orgasmos.
Em 1948 é publicado o primeiro relatório Kinsey, “O comportamento sexual dos homens”. Este assimila a idéia de
energia orgásmica de Reich com a pesquisa qualitativa da sexualidade humana, e introduz, no universo da sexualidade, a
“contabilidade dos orgasmos” (Béjin, 1987:213). Os achados de Kinsey surpreenderam o público em geral e foram foco de
controvérsia e visibilidade. As suas conclusões causaram escândalo não só porque desafiaram idéias convencionais sobre a
sexualidade, mas também porque discutiam questões que eram até então tabu. O senso comum que a heterossexualidade e a
abstinência eram a norma quer ética quer estatística foi seriamente posto em causa.
A junção das idéias de Reich a respeito da sexualidade humana, assim como a importância e a centralidade do
orgasmo para este autor, com os relatórios de Kinsey levou ao nascimento da sexologia atual, que circunscreve e define o
orgasmo como seu problema central.

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As idéias freudianas que trazem à cultura ocidental do século XX uma narrativa reflexivamente ordenada do eu,
junto às novas práticas dos sexólogos, possibilitadas justamente por aquelas, libertam todas as práticas antes consideradas ou
doenças ou pecados. Assim, o sexo oral, a masturbação, o sexo anal, o homossexualismo, tudo isso passa a fazer parte do
cotidiano das revistas e dos programas de televisão. Libertada a sexualidade pelas idéias freudianas, trata-se então de
“desreprimir” os indivíduos e de buscar o valor máximo, a nova salvação dos homens: o orgasmo. Essa é a tarefa dos
sexólogos. A sexologia acaba por substituir a psicanálise, inspirando-se na teoria behaviorista segundo a qual o
comportamento neurótico é “aprendido”. Ao sexólogo cabe a responsabilidade de fazer com que os pacientes desaprendam
esse comportamento. Trata-se de eliminar os sintomas atuais e não os recalcamentos passados, descondicionando e
recondicionando o organismo do paciente. As revistas femininas e os programas de televisão passam a ter sexólogos como
consultores.

4. Encontros fortuitos, “Economia dos afetos”: evitação de compromisso, ultravalorização da “liberdade”. Intimidade
anônima.
Como já vimos, a busca do prazer sexual torna-se uma injunção em nossa sociedade contemporânea. A sexualidade
vivida pelo casal, permitida antes apenas após o casamento, começa a se separar deste último. As revistas e os programas
televisivos dedicam-se a tratar da sexualidade para os adolescentes, no sentido preventivo: prevenção de doenças,
especialmente a Aids, mas também prevenção da gravidez das jovens. Essa campanha preventiva, tarefa também dos
ministérios da saúde, traz consigo a liberalização das relações sexuais fora do casamento. Os encontros fortuitos, a prática
sexual com estranhos, passam a ser um comportamento permitido socialmente.
Acompanhamos, no Brasil, as seguintes transformações das relações amorosas entre jovens:
a) Até os anos 50 e meados dos anos 60, existia o namorar, que significava cortejar, galantear, apaixonar-se,
enamorar-se. O namoro era algo pré-nupcial, com regras definidas, e padrão aceito comumente. Alguém, ao sentir-se atraído
por outro do sexo oposto, procurava-o e propunha-lhe namoro. Esse consistia em encontros constantes, com diálogo entre os
dois, momentos de romance, abraços, beijos, com alguma reserva e planos para o futuro.
b) Com as transformações dos anos 60, especialmente, com o surgimento do movimento hippie (jovens que
lutavam pela liberação das drogas, extinção das famílias, e amor livre), o namoro se transformou. Seus limites foram
ampliados, os encontros passaram a acontecer sem o consentimento da família, e as carícias íntimas e atos pré-sexuais
encontraram espaço livre.
c) Na década de 1980, surgiu a “amizade colorida” 11. Tratava-se de um outro tipo de relação entre os jovens de
sexos diferentes, diferente do namoro. Rapazes e moças mantinham encontros com conotação sexual, sem nenhum
compromisso (o compromisso era não ter compromisso). Geralmente identificada com a década de 80, ainda parece existir
em nossa época.
No site da Rede Globo12, pode-se ler uma reportagem, datada de 11/08/2008, sobre esse tipo de relacionamento:
“O amigo é um cúmplice, a pessoa com quem você desabafa, e no meio dessas conversas calorosas ou nos momentos
de carência pode acontecer uma 'ficada'. Isso pode se repetir quando um dos dois se sente sozinho e não impede outros
relacionamentos”, afirma Mara Pusch, psicoterapeuta e sexóloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Ou em letras de música, como, por exemplo,


“Não posso mais Andar contigo / Te Olhar me traz Recordações do que Rolou !/ A Posição de seu Amigo / - Cansei
!(haa) Não é bom!/ Mas se não ver perigo nisso / Pra mim está tudo bem mais Preste atenção / Eu não me
responsabilizo / Se o seu coração bateu mais Forte / Ao Tocar a minha Mão / Trazendo a Tona o que foi Bom. / Se o
seu coração bateu mais Forte / Ao Tocar a minha Mão / E Lembra de nós dois/ Nós dois Fazendo AMOR / Ai Não vai
dá Mais pra Segurar/ Mas Não se preocupe estou aqui / E pra sempre vou Estar / Quando me Quiser , se Você Quiser /
NOSSA AMIZADE COLORIDA / VIRA HOMEM E MULHER”13

Em meados da década de 70, Ramey (1975) mostrava uma tendência a um crescimento nas relações afetivas entre
homens e mulheres em direção à não-monogamia tanto no casamento quanto na co-habitação; um crescimento da tendência à
sexualidade aberta e à intimidade sexual entre amigos, vista como suporte positivo para o crescimento pessoal; erosão
significativa das barreiras entre casados e não-casados e um aumento da intimidade sexual através dessas barreiras,
especialmente entre não casados.
d) Na década de 1990, aparece o “ficar”. A prática do “ficar” surge nos anos 1990, e significa um encontro de um
dia ou uma noite que pode ir desde uma troca de beijos até uma relação sexual (Chaves, 1994). É um código de
relacionamento também marcado pela falta de compromisso, pela pluralidade de desejos, regras e usos. É um exercício de
sedução e de prática sexual, no qual o parceiro deixa de existir como singular, pois o importante é “ficar”.

11
“Amizade colorida” foi um seriado da televisão, que estreou em 21 de abril de 1981, no qual jovens casais mantinham relações sexuais sem qualquer
compromisso afetivo ou responsabilidades. Ficou apenas 03 meses no ar, com 11 episódios.
12
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL717116-5598,00.html, consultado em25 de novembro de 2008.
13
http://letras.terra.com.br/na-pegada/1198985/, acessado em 25/11/2008. Não se conseguiu obter nem a data da composição ou da gravação da música, nem o
autor, apenas o grupo musical de pagode que a canta, “Na pegada”.

365
Assim, podemos observar que há, em nossa cultura, nos últimos anos, uma tendência à separação da sexualidade e
do afeto e da sexualidade e do compromisso.
Esse fato, que retira a sexualidade da obrigatoriedade da conjugalidade, tem por efeito levar a sexualidade ao centro
da conjugalidade. Segundo nos mostra Bozon (2003), o que caracteriza a conjugalidade contemporânea não é só a referência
ao sentimento amoroso, mas também a importância crescente que assumiram, ao lado de um domínio conjugal em relativa
decadência, os domínios e interesses individuais dos que se unem, e também o papel essencial que assume a sexualidade,
primeiro, na constituição e, depois, na manutenção da relação conjugal. A relação de dependência que ligava a sexualidade ao
casamento foi completamente invertida: da instituição matrimonial que dava direito à atividade sexual passou-se ao
intercâmbio sexual como motor interno da conjugalidade. A sexualidade, que era ontem um dos atributos do papel social do
indivíduo casado, tornou-se uma experiência interpessoal indispensável à existência da união.

5. Valores femininos e valores masculinos se aproximam, assim como os modelos de comportamento: sexualidade entre
gêneros
Embora Tiefer (1994) se refira à centralidade do “falocentrismo” e da dominação masculina nos roteiros sexuais
contemporâneos, observa-se desde a década de 90 um fenômeno interessante: os relatos tornados públicos de experiências
sexuais femininas. Essas experiências relatadas por mulheres de várias faixas etárias e de várias camadas sociais mostram um
comportamento sexual antes considerado válido culturalmente apenas para os homens. O livro de Catherine Millet foi um
best seller tanto na França quanto no Brasil, assim como o livro de Bruna Surfistinha e as músicas de Tati Quebra-Barraco
são cantadas por diversas adolescentes na periferia do Rio de Janeiro nos bailes funk. Nada podemos afirmar, mas podemos
fazer conjecturas para a próxima etapa da pesquisa. Será que há uma aproximação das representações sexuais ou dos cenários
sexuais dos homens e das mulheres? A literatura corrente separa os cenários sexuais dos homens e das mulheres. Consideram
as mulheres mais românticas, preocupando-se mais com a relação afetiva do que com a sexualidade. Será que essa visão da
sexualidade dividida em sexualidade feminina e sexualidade masculina ainda pode ser mantida?

6. Aproximação dos modelos de práticas sexuais entre as diversas camadas sociais


Como já se mencionou anteriormente, as representações sociais da sexualidade parecem atravessar as diversas
camadas sociais. Da sofisticada intelectual francesa à cantora dos bailes funk da periferia do Rio de Janeiro, os relatos
contêm os mesmos ingredientes sexuais, e, embora a linguagem de uma seja muito mais sofisticada que a da outra, as
mesmas palavras cruas são utilizadas, há descrição de práticas sexuais antes consideradas perversão, há infidelidade, há o
desligamento da sexualidade e da conjugalidade, há a busca do prazer pelo prazer em si.

Conclusão
Uma conjunção de fatores parece levar às novas formas de vivência da sexualidade. O surgimento da psicanálise
em fins do século XIX, a mudança na concepção do corpo devido ao higienismo de fins do século XIX, mas também ao
“novo higienismo”, o desenvolvimento da indústria dos “farmasex”, os movimentos feministas e gays, as mudanças no
mundo do trabalho (em primeiro lugar, o fordismo e, recentemente, a acumulação flexível), entre outros fatores.
É importante não adotarmos um discurso com conteúdo moral ou normativo, já que não é um aumento de práticas
sexuais antes consideradas pervertidas ou um aumento da permissividade social apenas que se analisa. Antes, trata-se de um
aumento da conversação (social) sobre sexualidade, que certamente tem, por efeito, legitimar e transformar as práticas
cotidianas dos indivíduos. Aquilo que não era falado publicamente torna-se assunto de conversas entre os indivíduos, nos
jornais, na televisão, nas revistas, na internet. Nessa rede de conversação, a sexualidade e os modelos de práticas sexuais são
legitimados pelo discurso médico, que tem uma aura de cientificidade. Esse é influenciado grandemente pelas pesquisas da
indústria farmacêutica, que, juntos, levam a um conhecimento “sem teoria”. A sexualidade é tratada como entidade universal,
transcendente ao organismo vivo dos indivíduos; ela é recortada e afastada dos afetos e emoções.
O que pudemos observar através dos estudos dos roteiros sexuais é que, enquanto o debate popular se preocupa
com a legalidade do casamento gay, redes médicas, discursos jurídicos e políticos produzem e situam a sexualidade em um
campo de conhecimento que está constantemente sob exame e administração. A racionalização da sexualidade, iniciada em
fins do século XIX, alcança um nível mais elevado nos inícios do século XXI, com o “novo higienismo” e a medicalização,
separando as práticas sexuais da conjugalidade, biologizando a sexualidade, retirando-a do âmbito relacional. Além disso, a
sua dispersão em múltiplos campos de conhecimento, tem se tornado parte de um sistema de relações de poder que produzem
identidades e as administram.

Referências bibliográficas
AGUIAR, Adriano A (2003). “Entre as ciências da vida e a medicalização da existência: uma cartografia da psiquiatria
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O corpo como projecto: modos de vida orientados para padrões de beleza


Maria João Cunha
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - Universidade Técnica de Lisboa
[email protected]

Resumo: A partir do conceito de ‘projectos corporais’ avançado por Shilling pretendemos saber como estes ‘projectos’ se sustentam nas
acções desenvolvidas para alcançar ideais de beleza corporal que dominam as sociedades de consumo ocidental.
A nossa ideia base é a de que o corpo é construído, decorado e que se expressa consoante as emoções individuais e as necessidades de cada
um – é um projecto pessoal, flexível e adaptável aos desejos do indivíduo. Este projecto, que Giddens denominou reflexivo, consiste em
fazer narrativas biográficas revistas à medida que se escolhem estilos de vida entre uma diversidade de opções. Estas opções não são, porém,
completamente livres, no sentido em que existem grandes pressões em relação ao corpo e à imagem, que deverão corresponder a ideais pré-
definidos de beleza. Nas sociedades ocidentais e contemporâneas todo o tipo de desfiguração física, marcas ou incapacidades são
estigmatizadas, por comprometerem noções que são extremamente valorizadas, como a de ‘corpo belo’ ou a de ‘atraente’.
Desta forma, propomo-nos então avançar uma reflexão sobre a noção de corpo como projecto que está em permanente construção e, a partir
de uma análise empírica em adolescentes, identificar e explorar as várias possibilidades de investimento dos indivíduos, face a ideais de
beleza padronizados.

1. Introdução
Na sociedade de consumo, as convicções e convenções são substituídas pela flexibilidade e pela mobilidade, que
permitem através do próprio consumo transformar as representações da ‘boa vida’ em realidade (Falk, 1994). Por isso, a
construção do ‘eu’ traduz-se na posse de bens desejados e na perseguição de estilos de vida artificialmente forjados.
A questão da reflexividade da vida social contemporânea e da pluralidade de opções em termos de estilos de vida
tem merecido uma grande atenção por parte dos teóricos e analistas. Os estilos de vida, apesar de englobarem uma
componente de rotina, são reflexivamente abertos à mudança, devido à natureza mutável da auto-identidade (Giddens, 1997).
Pode parecer então que a questão da ‘disciplina’ ou rigidez dos estilos de vida ficou um pouco perdida na sociedade de
consumo, sobretudo porque os padrões de consumo com base nas classes sociais também enfraqueceram – o que em certa
medida contradiz Bourdieu (1979). De facto, esta visão pode consolidar-se, sobretudo, se pensarmos em certos bens que há
algumas décadas só poderiam ser adquiridos pela classe alta e que hoje são adquiridos pela classe média como forma efectiva
de se promoverem socialmente, ‘copiando’ de certa forma estes padrões de consumo, como a aquisição de certas marcas de
vestuário ou mesmo cosmética e operações plásticas. Pode, assim, ascender-se socialmente de forma real ou aparente, através
do consumo.
A questão do consumo torna-se fundamental a nível da construção da imagem corporal. Um corpo mal cuidado
torna-se uma vergonha da classe – a que se pertence ou a que se aspira – projectada sobre o corpo e, consequentemente, o
corpo torna-se o signo de status mais estreitamente associado à pessoa, sendo a ocasião e o pretexto de um número sempre
crescente de consumos (Maisonneuve e Bruchon-Schweiter, 1981). Simultaneamente, a aparência e a apresentação do corpo
tornam-se centrais na construção da auto-identidade, através do desenvolvimento da consciência do corpo, que se deve
aproximar o mais possível das imagens ideais de juventude, beleza, saúde e boa forma, para aumentar o seu valor, em termos
de bem negociável e ‘vendável’ (Fox, 1997). Os corpos passam assim de produtores a produtos de consumo, apesar de não
serem objectos passivos. Na esteira de Giddens (1997), pode-se afirmar que a relação entre o corpo e a auto-identidade é cada
vez mais dinâmica, como consequência do crescimento da reflexividade social1 e do factor risco2. Os estilos de vida e o
planeamento do corpo são uma parte da vida em ambientes sociais pós-tradicionais e reflexivos. O culto do corpo e da
aparência encobre a preocupação com o controlo activo e com a construção do corpo através das várias opções de estilos de
vida que a modernidade reflexiva possibilita (Giddens, 1997).
Dá-se então uma espécie de fusão entre a preocupação interna com a saúde e a preocupação externa com a
aparência, o movimento e o controlo do corpo. Por isso, hoje ter-se um corpo musculado, tonificado, firme, simboliza uma
atitude social correcta, uma vez que corresponde a uma preocupação com a maneira como se ‘parece’ aos outros. Para mais,
esta pertença envolve controlo, força de vontade e energia, a tradução de uma imagem de auto-suficiência e sucesso que é o

1
A vida social é moldada por preocupações modernas o que implica sobretudo a reorganização reflexiva das relações sociais e dos aspectos naturais através de
critérios que são ‘internamente referenciais’ (Giddens, 1990).
2
O conceito de risco encontra-se num novo regime de doença, que envolve uma reconfiguração crítica do espaço corporal e das fronteiras corporais (Turner,
1996). Na viragem do século, o corpo é o principal alvo de ameaças que passam pela contaminação, pela catástrofe, pela toxicidade e pelo lixo, necessitando
então de constante vigilância, regulação e controlo. “Os poderes, perigos e riscos do corpo social estão assim simbolicamente espelhados e reproduzidos à
pequena escala do corpo humano” (Williams e Bendelow, 1998: 71). A SIDA surge como o exemplo de uma nova doença que mostra as analogias entre a
poluição corporal e as ameaças e os perigos para a ordem social, onde o teste do HIV pode ser encarado como uma forma de regular e controlar os indivíduos em
sociedade. O macro-social e o ambiente global tornam-se mais instáveis e incertos, à medida que novos sistemas de vigilância e de governo são postos em prática
para regular e controlar o ambiente social e natural, incluindo o próprio corpo. A disciplina, vigilância e controlo do corpo podem servir como tentativa ou
alternativa de resolução de perigos e ameaças mais globais na cultura consumista, onde a preocupação com a saúde e a forma física, são factores essenciais.

368
ideal das sociedades (pós-) modernas. O recurso crescente à cirurgia estética para reconstruir os corpos acentua esta
tendência3. Os corpos tornam-se assim objectos para serem comprados e vendidos de acordo com a moda.
Neste estudo, para além de avançarmos uma reflexão sobre a noção de corpo como projecto que está em
permanente construção, propomo-nos partir de uma análise empírica em adolescentes para identificar e explorar as várias
possibilidades de investimento dos indivíduos, face a ideais de beleza padronizados.

2. O corpo como projecto


Ao traçar-se uma evolução do pensamento sobre o corpo do início do capitalismo para o que se denomina
‘capitalismo tardio’, é possível sustentar que enquanto no início havia uma relação “entre a disciplina, o ascetismo, o corpo e
a produção capitalista, (...) no capitalismo tardio existe uma ênfase completamente diferente e corrosiva no hedonismo, no
desejo e no divertimento (...) numa cultura que reconhece que o corpo é um projecto” (Turner, 1996: 4). No sistema
capitalista, a indústria exerce o poder dominante sobre os consumidores enquanto estes expressam as suas auto-identidades
através de bens (Hattori, 1997). Aliás, o mito de que os indivíduos criam as suas próprias identidades deve ser questionado,
uma vez que os consumidores confiam em critérios externos como os mass media e os outros, quando organizam as suas
identidades (idem). Em nosso entender, esta visão poderá acentuar em demasia o papel dos media e deverá ser testada.
De qualquer modo, será fundamental realçar a ideia de Shilling (2000), que avança o conceito de ‘projectos
corporais’, ao afirmar que existe uma tendência no Ocidente para o corpo ser visto como uma entidade que está no processo
de se tornar um projecto que deve ser trabalhado e acompanhado como parte da auto-identidade do indivíduo. Isto significa
que o corpo é construído, decorado e que se expressa consoante as emoções individuais e as necessidades de cada um – é um
projecto pessoal, flexível e adaptável aos desejos do indivíduo. Este projecto está ainda profundamente relacionado com a
sociedade de consumo. Assim, a construção de um sentido de identidade pode ser vista como um processo que pode fazer uso
de itens de consumo como as roupas, o calçado, a música popular ou as actividades desportivas (Hattori, 1997).
Por outro lado, também a sociedade “deve ser entendida como um processo construído historicamente por
indivíduos que são construídos historicamente pela sociedade” (Abrams, 1982: 227). Existe, numa perspectiva construtivista,
uma interligação entre o plano social e o plano individual, como aspectos de uma mesma realidade humana, ambos
construídos enquanto processos – ou projectos – contínuos: a individualidade, tal como a sociedade, só pode ser construída
historicamente (idem).
No pensamento ocidental, o ‘eu’ (self), enquanto noção determinante, tem sido abordado por várias perspectivas
psicológicas, sociológicas e, no seu cruzamento, psicossociais. Existe mesmo o que se pode denominar uma obsessão na
psicologia e filosofia ocidentais com o ‘eu’, que contrasta com doutrinas filosóficas e religiosas orientais, como as crenças
Budistas sobre existência, karma e desinteresse em ganhos pessoais – o indivíduo é apenas uma sequência de pensamentos,
sensações e elementos materiais (Forrester, 2000). Assim, a compreensão da construção do ‘eu’ reveste-se de uma
importância central nas sociedades contemporâneas ocidentais, e o projecto de construção da identidade passa também pelo
entendimento do ‘eu’ em relação aos outros, e da forma como os outros vêem o indivíduo, na interligação dos planos
individual e social – como mencionado acima.
No cruzamento destes planos surge a ideia de auto-imagem, enquanto termo que se foca na concepção do ‘eu’
sempre em relação aos outros, sugerindo que as concepções e representações internas estão relacionadas com um conjunto de
sistemas de signos produzidos externamente. A ideia de auto-imagem está também relacionada com a noção de identidade, na
medida em que as narrativas identitárias constituem um projecto formado interdependentemente com o contexto social e as
interacções com os outros (idem).
À medida que se avançava do século XX para o século XXI, o sujeito – enquanto entidade estável e unificada –
fragmentava-se, na medida em que ia construindo várias identidades contraditórias (Hall, 1996). Mesmo aquelas identidades
que permitiam responder em conformidade com os objectivos da cultura estão agora em crise, devido às rápidas mudanças
estruturais e institucionais – Hall sugere, então, que o próprio processo de identificação através do qual o sujeito se projecta
se torna mais aberto e problemático e, consequentemente, a identidade mais instável (idem). No entanto, é natural que cada
indivíduo continue a sentir que tem uma identidade unificada do nascimento à morte, o que pode ser explicado pela
construção de uma história ou de uma auto-narrativa confortável (cf. Elias, 1989).
Assim, é aceite que o ‘eu’ é socialmente construído, emergente e plural, e que vai adquirindo identidades num
processo que implica a aquisição de signos, os quais se podem manifestar no discurso, na postura, no vestir ou no tipo de
corpo, levando a respostas nos outros e no indivíduo, à medida que se reflecte neles (Sparkes, 1997).
Numa visão pós-modernista, o ‘eu’ mantém-se, embora as identidades estejam a desaparecer, à medida que os
signos que dão valor a um indivíduo vão perdendo a força. Para além da perda da sua força, esses signos são substituídos e
que se pode verificar no seguinte exemplo: se o tamanho ou forma corporais deixarem de ter significado num indivíduo, a
identidade ‘gordo’ ou ‘magro’ irá desaparecer (idem). A ilusão de uma identidade unificada será necessária para o caminho
de construção (e reconstrução) do ‘eu’ e para uma compreensão do mundo, combinando assim estabilidade e mudança. A

3
A cirurgia estética pode ser vista como algo que, paradoxalmente, permite às mulheres sentirem-se sujeitos corporalizados e não ‘corpos objectivados’,
vivenciando o corpo de uma forma plena, na medida em que agem sobre eles e os transformam, transformando-se também a elas próprias (Williams e Bendelow,
1998).

369
própria personalidade é criada pelo reforço de um conjunto de motivos ou propósitos constantes no indivíduo, através da
imaginação de uma unidade por entre a multiplicidade do self (Celtel, 2005)
Uma das grandes referências contemporâneas neste campo é o trabalho de Giddens (1997), que defende que o
período da alta modernidade4 é caracterizado pela incerteza e atravessado por uma dúvida radical, na qual o conhecimento
sobre o corpo toma a forma de hipóteses abertas a revisões. Neste âmbito, os indivíduos iniciam um projecto reflexivo do eu
(self) que consiste em fazer narrativas biográficas revistas à medida que se escolhem estilos de vida entre uma diversidade de
opções. Por isso o autor sustenta que o corpo não é só uma entidade física que se possui, mas um sistema de acções.
Tem-se pois assistido a uma individualização do corpo, que é possível alterar: o indivíduo tem-se tornado
responsável pelo ‘desenho’ do seu corpo, por exemplo através de desenvolvimentos tecnológicos na medicina. Na
denominada alta-modernidade, o corpo torna-se mais relevante para o projecto reflexivo da auto-identidade, num cenário de
múltiplas expectativas, que implicam uma maior complexidade. Uma vez que os tradicionais sistemas de significado e de
ordem social se dissolveram de uma forma sem precedentes, nesta nova era a auto-identidade tornou-se deliberativa. Isto
sucede no sentido em que não emerge automaticamente da posição social do indivíduo, mas de uma permanente reordenação
de narrativas de identidade, onde a preocupação com o corpo é central (Klesse, 2000).
Para além disso, a natureza do individualismo e do projecto identitário estão também relacionadas com as
alterações sociais e com as alterações científicas, na medida em que comportam novas tecnologias médicas, como a
fertilização in vitro, a indústria de transplante de órgãos, o desenvolvimento da cibernética e a microcirurgia, que permitem a
alteração de partes do corpo humano. Todas estas mudanças, do ponto de vista médico e científico, trouxeram também novos
problemas no que toca à relação entre o corpo e a alma, a consciência e a identidade. É por tudo isto que Turner (1996)
defende que se criou, no século XX, uma ‘sociedade somática’, “uma sociedade na qual os nossos maiores problemas
políticos e morais são expressos através da conduta do corpo humano” (idem: 6).
Do ponto de vista do construtivismo social, também o corpo físico é socialmente construído e não tem um
significado intrínseco. Por exemplo, segundo Synnott (1993) as construções do corpo no século XX têm estado dominadas
por noções do ‘corpo mecânico’ (influenciadas pelo desenvolvimento das intervenções da medicina, concretamente da
cirurgia de reconstrução, com partes artificiais, pacemakers, implantes, transplantes e ainda da engenharia genética,
‘desenhando’ e seleccionando o corpo) e do ‘corpo belo’ (um corpo que pode também ser moldado e desenhado em
aparência, tamanho e forma, por dietas, exercício, cirurgia plástica e outras formas de investimento, adiante analisadas) – as
que mais interessam para este estudo.
Quando se fala em corpo como projecto, é preciso percebê-lo num quadro de projecto identitário, como analisamos
de seguida.
As identidades podem ser entendidas num contexto mais geral, enquanto identidade nacional, como “fonte de
significado e experiência de um povo” (Castells, 2003: 2) – embora nos interesse um contexto mais restrito de identidade
pessoal, que também é social, porque é construída em sociedade por referência aos outros.
Castells considera importante estabelecer a diferença entre identidade e papéis sociais, na medida em que a primeira
constitui fonte de significado para os próprios actores – originada e construída através de um processo de individualização – e
os segundos são definidos por normas estruturadas pelas organizações sociais. Porém, algumas auto-definições podem
coincidir com alguns papéis sociais, como por exemplo quando ser pai ou mãe é o mais importante na definição da identidade
(idem). No entanto, devido ao processo de construção pessoal que envolvem – no fundo um projecto pessoal – as identidades
são mais importantes que os papéis, que se relacionam com funções atribuídas. Assim, concordamos com Castells quando
afirma que, do ponto de vista sociológico, toda e qualquer identidade é construída. Essa construção tem origem em factores
que compreendem a história, a geografia, a memória colectiva, instituições, aparelhos de poder e religiosos, mas também a
biologia e as fantasias pessoais (idem).
A identidade parece ser, então, o elemento chave para articular a realidade subjectiva e objectiva numa interacção
onde o sujeito pode encontrar a sua ‘unicidade’ ou coerência, activando-a no comportamento e através da linguagem
(Costalat-Founeau, 1995). A sociedade, como defendemos, possui uma história e uma cultura que se traduzem no sujeito e no
seu discurso (Berger e Luckmann, 1999) e as identidades sociais são por seu lado produzidas pela história dos indivíduos: “a
identidade constitui-se a partir de uma interacção entre o indivíduo e a sociedade, no interior de um universo simbólico
interiorizado com legitimações que variam de indivíduo para indivíduo. A noção de identidade não é compreensível senão
numa interacção com o ambiente social, o meio onde o sujeito vive, fala, mora e evolui, no seu contexto” (Costalat-Founeau,
1995: 2). E, quanto a nós, é nesta vivência do sujeito que se pode enquadrar a perspectiva da ‘corporalização’ – a identidade
forma-se num sujeito que também é corpo, um projecto construído e reconstruído. No dizer de Lipovetski (1989: 58) “o
corpo já não designa uma abjecção ou uma máquina, designa a nossa identidade profunda da qual não há motivo para ter
vergonha e que pode, portanto, exibir-se”.
No entanto, é possível encontrar críticas às ideias de extrema liberdade do indivíduo nas sociedades ocidentais em
termos da construção da sua auto-identidade. O projecto reflexivo de construção do ‘eu’, no qual o corpo desempenha um
papel central, pode estar comprometido na sua individualização. As críticas prendem-se então com a dificuldade de
generalização de certas experiências a certos grupos nas sociedades ocidentais: a “identidade não se tornou uma opção livre

4
Outros autores preferem o termo pós-modernidade (por exemplo Falk [1994] e Featherstone [1994])

370
para todos os sujeitos, em todas as situações e em todos os contextos” (Klesse, 2000: 20). Klesse afirma que as grandes
teorias da modernidade tardia (ou alta modernidade) tendem a negligenciar certas experiências. Dá o exemplo do racismo
como forma de opressão estrutural nas sociedades ocidentais, que opera como uma ‘imposição forçada de identidades‘: as
minorias étnicas têm de lidar com uma sobredeterminação das suas identidades no contexto desta racialização, e não com
uma indeterminação (idem). Também a teoria dos ‘projectos corporais’ de Shilling (2000) merece o mesmo tipo de
comentário: embora o autor reconheça que os projectos devam ser teorizados como fenómenos de género, etnia e classe, as
dimensões da escolha e desenho pessoais parecem universalizadas ou demasiadamente enfatizadas. Já Klesse (2000) defende
ainda que a perspectiva de uma dimensão de escolha circunscrita por complexas articulações de género, etnicidade,
capacidades, classe, localização ou espaço deveria ser central em qualquer teoria do corpo e da identidade.
Neste ponto, acrescentamos que a liberdade de escolha para a construção das identidades e dos projectos corporais
poderá estar ainda comprometida pela acção dos meios de comunicação de massa, ao fornecerem padrões sociais que podem
servir como ‘molduras’ para um leque de escolhas afinal finito. Não estará a construção de um projecto corporal relacionada
com os padrões de beleza que reinam na sociedade e que operam em termos de género, mas também através dos media,
reduzindo à partida as possibilidades de escolha? Não será, então, esta liberdade individual de construção identitária apenas
aparente porque desde logo condicionada pela sociedade de consumo? A própria preocupação crescente com o corpo, que
enfatiza a aparência, o ‘look’, está repleta de novas funções identitárias relacionadas com o consumo de bens e serviços; já no
dizer de de Beauvoir (1949: 28), “a aparência providencia as identidades, os valores, as disposições e as atitudes das
pessoas”.
Deste modo, na sociedade e cultura de consumo “a ‘exibição’ e o ‘desempenho’ das propriedades e estilos do corpo
não se tornam uma opção, são cada vez mais esperadas (…). A cultura de consumo reforça a noção de que o corpo é um
veículo de prazer e de auto-expressão (…) e a auto-realização e a cultivação de estilo consciente aparecem assim como um
requisito normativo” (Klesse, 2000: 21).
Numa sociedade onde o consumo e os estilos de vida são cada vez mais importantes, a aparência corporal parece
desempenhar um papel central. A construção e a propagação de ideais de beleza – que, como veremos, correspondem a
formas corporais magras – estão aliadas ao sucesso e ao poder. Existe a exaltação de corpos magros nas nossas sociedades de
consumo ocidentais, embora a magreza excessiva seja considerada um estigma e entendida como sinal de exclusão social, o
que acontece, por exemplo, ao termos contacto com imagens de magreza infantil provenientes de países do denominado
“terceiro mundo” e derivadas de fome extrema. No entanto, a magreza fora de situações de pobreza tem sido exaltada no
ocidente, o que nos leva a questionar sobre o tipo de investimentos que fazem parte do modo de vida actual sobretudo para o
género feminino. Estas formas corporais ideais variam com as épocas, como analisamos de seguida.

3. Padrões de beleza corporal


Para já, torna-se importante perceber que, de facto, a construção do conceito de ‘magreza’ pode ter significados
diferentes consoantes as épocas e as sociedades. Referimo-nos acima à evolução das formas femininas nas modelos, passando
de corpos com curvas mais acentuadas, mas voluptuosos, a corpos mais longilíneos.
Fazendo uma muito breve resenha histórica, foram os gregos os grandes impulsionadores da perseguição de um
ideal de beleza, embora estivesse aqui relacionado com o sexo masculino (Silva, 1999). Tal como os Gregos, também os
Romanos, embora famosos pelas suas orgias gastronómicas, desprezavam a obesidade e combatiam-na através de
comportamentos que hoje são sintomáticos de bulimia. Já na Idade Média, uma vez que a mulher era um ser eminentemente
reprodutor, o ideal era o de um corpo feminino robusto, que reproduzisse a espécie, ameaçada como estava pela elevada taxa
de mortalidade existente. O corpo preferido pelos homens deixa de ser linear e atlético e passa a ser mais gordo, com grandes
seios (idem).
Mais tarde, as alterações sociais de finais do século XIX, nomeadamente a nível da prática desportiva, vieram
também modificar o conceito de corpo ideal. Especificamente em Portugal, a segunda metade deste século trouxe uma
valorização da saúde e da higiene, em torno de uma ideia de regeneração que resultou na eleição de um corpo vigoroso e
perfeito, tipicamente desportista, como ideal. “Forte, belo, saudável e enérgico, era este o modelo de corpo a construir e que o
desporto permitia alcançar. Era esse o corpo do sportsman: um corpo atraente, sólido, robusto, garantia de poder enfrentar
com sucesso os obstáculos da própria sobrevivência sem ser derrubado nos primeiros embates.” (Hasse, 1999: 332). No
entanto, havia desportistas com corpos mais magros, mas que não eram por isso vistos como fracos: o importante era a
prática do desporto e os benefícios deste na vida global do indivíduo e não apenas na sua constituição física. Este entusiasmo
pelo desporto contagiou também o universo feminino, destacando-se aqui a força, a segurança, o perfeito domínio de si
próprio e a competência, sinais que estavam ainda associados à sedução (Hasse, 1991). No entanto, a partir da I Guerra
Mundial as provas desportivas mais violentas foram consideradas impróprias para senhoras. A nível de ideal de beleza, o
corpo feminino mantém até aqui os traços anteriores, com peito e coxas largas, mas já com características de uma linha mais
elegante.
O período dos anos vinte trouxe um corpo feminino mais linear, sem formas muito marcadas. Nas duas décadas
seguintes, as curvas foram recuperadas, enfatizando primeiro o busto e depois as pernas (Silva, 1999). De facto, a visão
actual de que o belo é a mulher magra colide com a relação cultural existente até aos anos de 1930 entre a gordura, o poder e

371
a beleza: “obesa é a figura tradicional do patrão; forte significa gordo e fraco, magro; bebé com regueifas é lindo, mulher
torneada é interessante” (Peres, 1996: 15).
A partir desta altura, as classes mais elevadas da Europa passaram a demarcar a sua diferença social por um corpo
sem gordura, atlético, vestido de forma condicente. A gordura deixa de ser formosura e as mulheres são as primeiras a
adaptarem-se a esta nova moda (idem).
Na década de 1950, é Marilyn Monroe quem personifica o corpo ideal, combinando um busto bastante grande com
uma cintura fina, representando duas características essenciais: a voluptuosidade e a elegância. Nos anos seguintes, procurou
manter-se a cintura fina e alcançar a simetria entre as ancas e o busto – as medidas enfatizadas hoje são, aliás, os célebres 86-
60-86.
Nas décadas seguintes verificou-se uma tendência para uma figura ideal ainda mais magra, cujo exemplo poderá ser
a modelo Twiggy. Esta tendência para a magreza acentua-se ao ponto que chega a comprometer os valores de peso
considerados normais pelos médicos, o que hoje se denuncia nas passarelas de Espanha, Itália, Inglaterra ou no Brasil. Garner
e Kearney-Cooke (1996) compararam as medidas das concorrentes a Miss América entre 1959 e 1978 e concluíram que
existia um decréscimo substancial no peso corporal e nas medidas das concorrentes. Os mesmos autores registaram também,
noutro estudo, uma diminuição significativa do tamanho corporal das mulheres que ocupam as páginas centrais da revista
‘Playboy’.
Nas últimas décadas, enquanto a mulher média com menos de 30 anos aumentou de peso, as mulheres que
representam o ideal de beleza ocidental tornaram-se mais magras, verificando-se um aumento na prevalência de desordens
alimentares e de perturbações relacionadas com a imagem corporal (Silva, 1999). Este contraste atesta o desfasamento entre a
realidade e o ideal e a consequente insatisfação com a imagem corporal. Por outro lado, os problemas levantados pela pressão
da obtenção de um tipo de corpo quase impossível para a maioria da população suscitaram uma atenção redobrada por estes
assuntos, que se repercutiu numa recente preocupação com a defesa de um ideal mais proporcional e uniforme, que possa ser
traduzido num corpo ainda magro, mas sobretudo saudável.
Assim, e de acordo com a tipologia de Sheldon (1950) – ver Figura nº 1 – Os somatótipos de Sheldon, o tipo de
corpo que actualmente é apresentado como o ‘modelo’ feminino a seguir nas sociedades ocidentais contemporâneas será o do
ectomorfo moderado, segundo um estudo desenvolvido por Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer (1981). Este tipo de corpo é
delgado mas não demasiadamente magro.

Figura nº 1 – Os somatótipos de Sheldon

Fonte: Sheldon, W. H. (1950) Les variétés de la constitution physique de l'homme: introduction a la psychologie constitutionnelle, PUF, Paris

Reportemo-nos ainda ao referido estudo de Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer (1981): este procurava saber quais
os tipos de corpo preferidos junto a uma população entre os 19 e os 25 anos, a partir de doze nús extraídos de obras de arte
famosas ao longo dos séculos. Concluiu-se que os preferidos eram os corpos pertencentes à época contemporânea e à beleza
grega clássica – corpos magros e lineares, mas tonificados. Por oposição, os mais rejeitados eram os corpos de figuras mais
gordas e pesadas, associando-se o tipo mesomorfo a uma mulher autoritária e masculina e o endomorfo a uma mulher velha e
nada atraente (idem). Estas conclusões parecem assim apontar para uma conformidade de preferências estéticas, segundo os
autores acima mencionados. Defendemos assim que existe um processo de “verdadeira standardização actual dos cânones
estéticos, sob a influência original da civilização grega e depois da cultura ocidental, que é provavelmente imputável à
erupção de símbolos altamente valorizados pelos media e pela publicidade (juventude, saúde, desporto, moda) e encarnados
por personagens de prestígio (estrelas, heróis, atletas, manequins) ” (idem: 85). No entanto, é de salvaguardar que o referido
estudo data da década de 1980 e que entretanto as modas mudaram substancialmente. Contudo, permanecerá no início do
século XXI a tendência para um corpo feminino ideal mais próximo do ectomorfo moderado.
Com base no exposto, continuamos a defender (Cunha, 2004) que a pressão social para a obtenção do corpo ideal
se tem acentuado e que este é um corpo tendencialmente magro.

372
Ora para construir um corpo que corresponda a estes padrões de beleza é preciso investir. É sobre os investimentos
que incidimos a nossa análise para depois passarmos a apresentar os resultados do nosso trabalho empírico.

4. O investimento no corpo
O investimento na imagem corporal refere-se aos comportamentos desempenhados pelos indivíduos para manter ou
realçar a sua aparência (look) (Morrison, Kalin e Morrison, 2004).
A crescente individualização e privatização dos corpos na sociedade de consumo tende a deixar as pessoas sozinhas
com os seus corpos, investindo mais tempo e esforço na sua monitorização, controlo e aparência (Sparkes, 1997). Ora muito
deste investimento circunscreve-se ao que se denomina ‘look’ (Featherstone, 1994, Craik, 1994).
No entanto, este investimento assume várias formas, que expomos de forma sistemática no quadro nº 1 – Formas de
investimento na imagem corporal, da nossa autoria. Considera-se aqui a relação entre o comportamento e o corpo. Em
relação ao comportamento, este pode envolver uma acção externa ou uma acção interna, ou seja, o indivíduo pode estar mais
ou menos dependente de outros para realizar determinada acção. A forma como afecta o corpo pode referir-se mais ao que se
denomina ‘superfície’ do corpo, ou seja, uma dimensão exterior ou ao corpo designado ‘interno’, tamanho e forma, ou seja,
uma dimensão interior. Estes eixos funcionam em contínuo e em combinação e não por oposição, para além de coexistirem
vários investimentos quer no mesmo indivíduo como no mesmo tempo.
Os vários comportamentos, que podemos considerar formas de investimento no corpo, compreendem as roupas, os
acessórios – o que é considerado necessário para estar ‘na moda’ (Campbell, 1992, Craik, 1994) – as tatuagens e os piercings,
que nas sociedades de consumo perderam o seu papel tribal (cf. Featherstone, 2000) e assumem um papel de distinção (cf.
Bourdieu, 1979), e outros comportamentos que nos merecem um maior destaque, como a dieta e o exercício. O exercício
físico trabalha a superfície do corpo, mas também o seu interior, relacionando os dois extremos. Já a dieta e outros
comportamentos que se destinam a perder peso podem ser considerados parte de uma ‘técnica’ de investimento mais
individual, mais ‘privada’. Outra forma de investimento que pode ser apontada é a cirurgia estética, esta obviamente
dependente de acção externa.

Quadro nº 1 – Formas de investimento na imagem corporal

Comportamento dependente
de acção externa Cirurgia
Tatuagens
Roupa estética
Piercings
Acessórios Dieta e
outros comportamentos
Exercício/ de perda de peso
Comportamento dep. Cosmética Desporto
de acção interna
Corpo exterior Corpo interior

Para o nosso estudo interessam-nos particularmente os comportamentos que dependem exclusivamente dos
indivíduos (comportamento dependente da acção interna) e que se destinam à obtenção de um determinado tamanho e forma
corporal, conforme às expectativas sociais que eles interiorizam (corpo interior). Destinam-se assim sobretudo à perda de
peso.
A escolha destas dimensões deve-se à constatação de que os comportamentos mais frequentes e mais conhecidos
para a obtenção da aparência corporal ‘ideal’ são a dieta e o exercício físico (Bissell, 2004, Brenner e Cunningham, 1992,
Cash e Pruzinsky, 1990, Emmons, 1996, Cusumano e Thompson, 1997, Harrison e Fredickson, 2003, Paxton et al., 1991).
Para além dos mencionados, outros comportamentos são também desempenhados com o objectivo de conseguir perder peso e
obter o ideal de corpo magro imaginado pelas mulheres. Estes são comportamentos que podem envolver diversos riscos para
a saúde, no sentido em que alguns são mesmo sintomáticos de perturbações alimentares. Incluem, para além do exercício
físico, beber muita água, saltar refeições, contar calorias ou fumar e, num grupo considerado de comportamentos extremos,
no sentido de serem perigosos para a saúde, jejuar, fazer dietas rápidas, tomar diuréticos, vomitar, tomar comprimidos para
emagrecer e laxantes (Paxton et al., 1991). Aliás, os últimos três comportamentos – vomitar, tomar comprimidos para
emagrecer e usar laxantes para perder peso – pertencem ao grupo das práticas patogénicas de controlo de peso (PWCP –
Pathogenic Weight Control Practice) (Morrison, Kalin e Morrison, 2004) – que iremos igualmente considerar na nossa
investigação empírica.
Todas as formas de investimento na imagem corporal mencionadas podem ser utilizadas simultânea ou
isoladamente, embora os estudos apontem para uma conjunção de factores (por exemplo: Brenner e Cunningham, 1992, Cash
e Pruzinsky, 1990, Emmons, 1996, Cusumano e Thompson, 1997). No que respeita às adolescentes, as formas mais
importantes de investimento baseiam-se nas que têm por objectivo perder peso e que dependem essencialmente do próprio
indivíduo.
Assim, partindo da análise da literatura sobre o problema, formulamos a seguinte hipótese:

373
O ideal de corpo magro existente nas adolescentes está associado a investimentos corporais no sentido da perda
de peso.

5. Metodologia
Para testar a nossa hipótese, definimos o universo de estudo como o das estudantes adolescentes do sexo feminino
do ensino regular das escolas secundárias públicas do concelho de Sintra, ou seja, entre o 10º e o 12º ano de escolaridade (das
nove escolas existentes, duas decidiram não participar no estudo). A partir deste universo foi constituída uma amostra
aleatória de adolescentes. Para o efeito, partiu-se do princípio que os sujeitos da população se encontram inseridos em grupos
naturais que são as turmas, as quais constituem assim unidades finais de amostragem, em ‘clusters’ ou agrupamentos. A
partir daqui, seleccionaram-se aleatoriamente duas turmas por ano de escolaridade em cada escola, sendo que participaram no
estudo um total de 42 turmas (2 turmas x 3 anos de escolaridade x 7 escolas), que representaram 627 sujeitos, tendo sido
inquirido só o sexo feminino.
Analisados estes 627 inquéritos obtidos, foram anulados dois por conterem um número de resposta muito
insuficiente, apurando-se então para efeito de tratamento de dados 625 inquiridas. Assim, para um nível de confiança de
95,5% obteve-se uma margem de erro de +/- 0,16.
O inquérito foi aplicado em sala de aula, em disciplinas ministradas pelos directores de turma, que distribuíam os
inquéritos e desenhado para administração directa, respeitando-se o anonimato das respondentes e a confidencialidade das
respostas. A aplicação dos inquéritos decorreu entre os dias 10 e 14 de Dezembro de 2007 em todas as escolas que
participaram no estudo. Para além das questões aqui em análise, outras integravam o inquérito.
Uma das dimensões importantes neste estudo prende-se com o conceito de ‘corpo ideal’, o qual, como aliás tivemos
oportunidade de discutir, será um corpo tendencialmente magro (por exemplo Craik, 1994, Cunha, 2004, Maisonneuve e
Bruchon-Schweitzer, 1981, Silva, 1999).
Ora para percebermos a atitude das adolescentes em relação a este corpo dito ideal, utilizámos uma escala utilizada
por Botta (1999) e desenvolvida por Stice et al. em 1994 (cit. in Botta, 1999). Nesta escala de seis itens é aplicada uma escala
de Likert de cinco pontos, entre o um que corresponde a forte discordância e o cinco que corresponde a forte concordância.
Os resultados à fiabilidade interna da escala foram bastante favoráveis, com um alfa de .80. Para o nosso estudo, traduzimo-la
para os mesmos seis itens e testámo-la igualmente em termos de fiabilidade interna.
Para além desta, a outra dimensão corresponde às práticas de investimento na Imagem Corporal. Em relação a estas
abordamo-las no questionário através da frequência de comportamentos de perda de peso. Esta tem sido avaliada através de
um conjunto de questões, agrupadas em métodos extremos e não extremos. Este conjunto foi delineado à luz da tradução de
um estudo realizado por Paxton (1991), tendo sido perguntado aos sujeitos qual a frequência de adesão a esses métodos, que
implicam comportamentos individuais sintomáticos de perturbações alimentares. Assim, e como defendemos no ponto 4,
sobre o investimento na imagem corporal, estes comportamentos de perda de peso dependem exclusivamente dos indivíduos
(são comportamentos dependentes da acção interna) e que se destinam à obtenção de um determinado tamanho e forma
corporal, conforme às expectativas sociais que eles interiorizam (relacionadas com o corpo interior).
Por outro lado, os comportamentos referidos podem ser agrupados em métodos extremos, ou seja, comportamentos
que podem envolver diversos riscos para a saúde, no sentido em que alguns são mesmo sintomáticos de perturbações
alimentares. Incluem-se neste grupo de comportamentos denominados extremos, no sentido de serem perigosos para a saúde,
os seguintes: jejuar, fumar, fazer dietas rápidas, tomar diuréticos, vomitar, tomar comprimidos para emagrecer e laxantes
(Paxton et al., 1991). Aliás – e como também já referimos – os últimos três comportamentos – vomitar, tomar comprimidos
para emagrecer e usar laxantes para perder peso – pertencem ao grupo das práticas patogénicas de controlo de peso
(Morrison, Kalin e Morrison, 2004). Os outros comportamentos referidos podem ainda agrupar-se em métodos considerados
não-extremos, que representam um menor risco para a saúde e que englobam, para além das dietas e do exercício físico – os
comportamentos mais frequentes e mais conhecidos para a obtenção da aparência corporal ‘ideal’ (Bissell, 2004, Brenner e
Cunningham, 1992, Cash e Pruzinsky, 1990, Emmons, 1996, Cusumano e Thompson, 1997, Harrison e Fredickson, 2003,
Paxton et al., 1991) tais como: beber muita água, saltar refeições e contar calorias. A análise em componentes principais que
efectuámos corroborou a divisão entre conjuntos de métodos – extremos e não-extremos.

6. Resultados
Começando então pela dimensão do corpo ideal e da escala de ideal de magreza utilizada, com a pontuação 1-
Discordo totalmente; 2-Discordo; 3-Não concordo nem discordo; 4-Concordo; 5-Concordo totalmente (cf. Botta, 1999),
verificamos pela tabela nº 1 – Ideal de magreza (médias dos indicadores) que as médias mais altas de resposta são atribuídas
à ideia da associação entre trabalhar o corpo e ter sucesso (média=2,59) e da rejeição do excesso de peso (média=2,54).
Analisando cada indicador mais pormenorizadamente – tabela nº 31 – Ideal de magreza (% por indicador) verificamos como
estas médias se traduzem na atribuição de concordância ou discordância em relação aos vários itens.
De uma forma geral, as adolescentes discordam com a exigência de magreza e dieta para o ideal de mulher, embora
apenas cerca de 15% concorde que o ideal de mulher é um corpo magro e que as mulheres seriam mais felizes se perdessem
peso. Por outro lado, mais de um quinto concorda que as mulheres com excesso de peso não são atraentes e que deviam

374
trabalhar o corpo se querem ter sucesso – o que reforça a tese da teoria sociocultural, de que na cultura ocidental
contemporânea existe a promoção da figura magra.
Tabela nº 1 – Ideal de magreza (médias dos indicadores)
N Média
O ideal de mulher é um corpo magro 622 2,31
As mulheres deviam estar sempre em dieta 621 1,48
As mulheres devem ser magras se querem melhores oportunidades 622 1,88
As mulheres com excesso de peso não são atraentes 622 2,54
As mulheres seriam mais felizes se perdessem peso 621 2,39
As mulheres deviam sempre trabalhar o corpo se querem sucesso 622 2,59

Tabela nº 2 – Ideal de magreza (% por indicador)


N % válida
O ideal de mulher é um corpo magro Discordo totalmente 181 29,1%
Discordo 185 29,7%
Não concordo nem discordo 159 25,6%
Concordo 76 12,2%
Concordo totalmente 21 3,4%
As mulheres deviam estar sempre em dieta Discordo totalmente 410 66,0%
Discordo 150 24,2%
Não concordo nem discordo 45 7,2%
Concordo 9 1,4%
Concordo totalmente 7 1,1%
As mulheres devem ser magras se querem Discordo totalmente 290 46,6%
melhores oportunidades Discordo 177 28,5%
Não concordo nem discordo 103 16,6%
Concordo 42 6,8%
Concordo totalmente 10 1,6%
As mulheres com excesso de peso não são Discordo totalmente 124 19,9%
atraentes Discordo 191 30,7%
Não concordo nem discordo 183 29,4%
Concordo 94 15,1%
Concordo totalmente 30 4,8%
As mulheres seriam mais felizes se Discordo totalmente 164 26,4%
perdessem peso Discordo 161 25,9%
Não concordo nem discordo 203 32,7%
Concordo 75 12,1%
Concordo totalmente 18 2,9%
As mulheres deviam sempre trabalhar o Discordo totalmente 140 22,5%
corpo se querem sucesso Discordo 150 24,1%
Não concordo nem discordo 189 30,4%
Concordo 113 18,2%
Concordo totalmente 30 4,8%

No entanto, se a maioria das adolescentes discorda com o ideal de corpo magro, é importante compreender se isso
significa que não investem no seu corpo com o objectivo de perder peso.
Os comportamentos de perda de peso (investimentos com vista à magreza) podem ser avaliados através de uma
análise simples das médias de respostas [tabela nº 3 – Comportamentos de perda de peso (médias)]. Ora sendo que a escala
variava entre 1-Nunca e 7-mais de uma vez por dia, os comportamentos mais verificados são o fazer exercício (média=2,97)
e beber muita água (média=2,85).
Tabela nº 3 – Comportamentos de perda de peso (médias)
N Média
Fazer dieta 620 1,91
Fazer exercício 619 2,97
Beber muita água 616 2,85
Saltar refeições 615 1,86
Contar calorias 616 1,70
Fumar para controlar peso 618 1,26
Dietas rápidas 618 1,42
Comprimidos para emagrecer 617 1,14
Jejuar 618 1,42
Vomitar 618 1,14
Tomar laxantes ou diuréticos 610 1,12

Pelas tabelas nº 4 e 5 verificamos assim que a maioria das adolescentes (74,9%) já utilizou algum método dos que
são identificados como menos perigosos, o que ainda assim denota o investimento realizado para perder peso; por outro lado,
28,5% já utilizou pelo menos um dos métodos classificados como perigosos. Embora estes sejam valores relativamente
baixos, a percentagem que revelam é muito superior aos valores de prevalência de distúrbios alimentares identificados na
realidade nacional.
Tabela nº 4 – Utilização de métodos não extremos para perder peso

375
N % % válida
Sim 468 74,9 74,9
Não 157 25,1 25,1
Total 625 100,0 100,0

Tabela nº 5 – Utilização de métodos extremos para perder peso

N % % válida
Sim 178 28,5 28,5
Não 447 71,5 71,5
Total 625 100,0 100,0

Face a estes resultados, utilizámos o teste do qui-quadrado para avaliarmos da associação entre as duas dimensões
em análise.
Verificámos então uma associação estatisticamente significativa a nível p<,005 entre a escala do Ideal de Magreza
e os comportamentos de perda de peso, extremos ou não.

Tabela nº 5 – Associações entre a escala do ideal de magreza e os métodos para perder peso
Comportamentos não-extremos Comportamentos extremos
Ideal de Magreza ,005 ,000

Desta forma, percebemos que, embora haja uma desvalorização aparente do ideal de magreza por parte das
adolescentes, os comportamentos se manifestam a níveis significativos e é possível encontrar associações entre as variáveis
em análise, o que nos permite confirmar a nossa hipótese de trabalho.
Esta confirmação da hipótese sugere o reforço da teoria sociocultural. Esta teoria advoga que a insatisfação
feminina com a aparência física provém de três factores principais, sendo um deles o ideal de corpo magro promulgado nas
sociedades ocidentais, para além da tendência para as mulheres verem o corpo como objecto e não como um processo e da
assunção de que ser magra é bom (Morrison, Kalin e Morrison, 2004). Uma possível explicação para os relativamente baixos
índices de concordância em relação a estes ideais de magreza poderá corresponder à existência de uma noção do que é
correcto em termos de saúde, o que não passará por atitudes que valorizem a magreza, ou pelo menos uma magreza
pronunciada.

Conclusões
Propusemo-nos neste artigo partir da noção de ‘projectos corporais’ avançada por Shilling (2000), no sentido de
uma tendência no Ocidente para o corpo ser visto como uma entidade que está no processo de se tornar um projecto que deve
ser trabalhado e acompanhado como parte da auto-identidade do indivíduo. Através deste conceito foi possível perceber que é
construído, decorado e que se expressa consoante as emoções individuais e as necessidades de cada um – é um projecto
pessoal, flexível e adaptável aos desejos do indivíduo, que se torna responsável pelo ‘desenho’ do seu corpo.
Ora por outro lado é possível, como vimos, encontrar críticas às ideias de extrema liberdade do indivíduo nas
sociedades ocidentais em termos da construção da sua auto-identidade, na medida em que a construção dos projectos
corporais está relacionada com um conjunto de padrões sociais que servem como ‘molduras’ para um leque de escolhas
delimitado. Em termos da construção da imagem corporal, avançámos na nossa hipótese que os investimentos a serem
realizados estariam relacionados com um ideal de corpo magro.
Face à problemática levantada, desenvolvemos um trabalho empírico com adolescentes do sexo feminino – por
serem elas as mais visadas por este tipo de ideal. Neste âmbito examinámos os comportamentos que dependem
exclusivamente dos indivíduos (comportamento dependente da acção interna) e que se destinam à obtenção de um
determinado tamanho e forma corporal, conforme às expectativas sociais que eles interiorizam (corpo interior). Isto significa
que analisámos um conjunto de comportamentos destinados à perda de peso.
Verificámos então que, embora de uma forma geral as adolescentes inquiridas discordem com a exigência de
magreza e dieta para o ideal de mulher, o facto é que três em cada quatro (75%) já utilizou algum método dos que são
identificados como menos perigosos, o que ainda assim denota o investimento realizado para perder peso e 29% já utilizou
pelo menos um dos métodos classificados como perigosos.
No entanto, parece-nos importante em futuros estudos compreender se a desvalorização deste ideal de magreza
corresponde à realidade – o que, a avaliar pela percentagem de adolescentes que indicou desempenhar investimentos para
perda de peso, não nos parece corresponder à verdade – ou se esta desvalorização corresponde à existência de uma noção do
que é correcto em termos de saúde, que não passará por atitudes que valorizem a magreza.

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Metamorfose de um corpo andarilho: busca e reencontro do algo melhor


Carlos Alberto de Andrade Coelho Filho
Universidade Federal de Juiz de Fora

377
[email protected]

Resumo: Esta pesquisa se estrutura no horizonte da consciência corporal, do homem biopsicossocial. A justificativa para o seu
desenvolvimento está nas contribuições epistemológicas e metodológicas que, espera-se, ela venha a trazer para os estudos dos aspectos
subjetivos do corpo. O elemento organizador do corpo teórico da tese é a hipótese de que a teoria psicanalítica, através dos conceitos de seus
representantes máximos, Freud e Lacan, pode fornecer uma base importante para a compreensão do corpo que carece de atividade física, ou
que pratica atividade física. O método utilizado, num primeiro momento, foi o de análise da narrativa teórica. Foram privilegiados alguns
textos psicanalíticos cujos referenciais estão voltados para o entendimento dos conceitos teóricos fundamentais para o trabalho, tais como
inconsciente, narcisismo e imaginário. A idéia foi articular esses conceitos ao objeto principal da pesquisa, que é o corpo em movimento.
Temas do cotidiano (descrições de situações, pessoas, interações e comportamentos observados), o discurso do corpo na publicidade,
entrevistas individuais, além da nossa própria imersão no universo da prática das atividades físicas, nos permitiram aproximações
significativas para que pudéssemos concluir a jornada. A tese sustentada, de natureza qualitativa, está baseada na compreensão de que o
corpo andarilho, aquele que pratica atividade física regular, entra em contato com algo que proporciona um bem-estar fugidio, um estado de
consciência que precisa ser constantemente reencontrado, re-elaborado. Os resultados indicam que o andarilho é fruto das marcas do
inconsciente que se expressam, fundamentalmente, através do imaginário; a metamorfose acontece no tempo e no espaço do afeto.

Apresentação
Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim
de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar.
(FREUD [1914], 1974, v. 14, p. 101)

Inicio este texto indicando o propósito de transitar pelo campo do afeto, que traz em si o amor e a agressividade, e
pelo imaginário do corpo sensível, resultado da interação do sujeito com o seu meio. Como escreve Andrade (2003), “o amor
só se sustenta porque o imaginário entra em ação a cada passo da relação entre as pessoas” (p. 75). Contudo, considerações
sobre as características psicológicas do imaginário nem sempre foram privilegiadas. Quase que restrita aos estudos da arte e
da poesia, somente na segunda metade do século XIX a imaginação é acolhida pelas ciências sociais como conceito de valor
científico.
Ainda segundo a autora, por ser considerada “a louca da casa” a imaginação foi discutida e rechaçada pelos
sistemas filosóficos marcados pela razão, nos quais as obras de Hegel e de Descartes ocupam lugar privilegiado.
Demonstrando a existência de falsas consciências, chegando a afirmar que verdadeiro e ilusório são opostos de uma mesma
moeda, as tendências positivistas influenciaram − e ainda influenciam  decisivamente a ciência. Os primeiros investimentos
científicos que se dão no campo do imaginário, quando a criatividade é valorizada, partem de estudos que provocam
deformações no real mediante a produção de ilusões.
No esteio da ilusão e da criatividade − portanto, do imaginário −, a pesquisa aqui apresentada se estrutura no
horizonte da consciência corporal, do homem biológico, psicológico e social. A justificativa para o seu desenvolvimento está
nas contribuições epistemológicas e metodológicas que, espera-se, ela venha a trazer para os estudos dos aspectos subjetivos
do corpo.
Em outros termos, a objetivo deste texto é apresentar os principais resultados das pesquisas por mim realizadas com
a temática do corpo, por ocasião do Doutorado em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que
evoluíram para o livro cujo título é Metamorfose de um corpo andarilho: busca e reencontro do algo melhor (COELHO
FILHO, 2007).
Procurei, no trabalho acima citado, me situar no interior da imensidão dos estudos sobre corpo. Como diz Jeudy
(2002),
[...] imagina-se que a sobreoferta nas maneiras de falar do corpo possa não ter fim; o desafio é o de sempre: encontrar
uma linguagem inédita para afastar a ameaça de modelação que cada ritual impõe por seus próprios códigos. (p. 143)

Minha visão é, obviamente, a de um trabalho que fez escolhas, quando considerei os possíveis caminhos a percorrer
e/ou aprofundar.
O elemento organizador do corpo teórico da tese é a hipótese de que a teoria psicanalítica, através dos conceitos de
seus representantes máximos, Sigmund Freud e Jacques Lacan, pode fornecer a base inicial necessária para a aproximação,
compreensão e trato do corpo que carece de atividade física, ou que pratica atividade física regular: corpo em movimento, o
corpo que, como se diz popularmente, malha.
O método utilizado, num primeiro momento, foi o de análise da narrativa teórica. Selecionei autores devido às suas
contribuições correlatas ao tema. Foram privilegiados alguns textos psicanalíticos cujos referenciais estão voltados para o
entendimento dos conceitos teóricos básicos necessários para o trabalho, tais como inconsciente, narcisismo e imaginário. A
idéia foi articular esses conceitos ao objeto principal da pesquisa, que é o corpo em movimento.
Evidentemente, como destaca Andrade (2003), esta referência teórica conota efeitos secundários que nos levam a
uma compreensão da teoria psicanalítica semelhante à de Serge Leclaire:
Somente uma teoria verdadeira pode promover uma formalização que mantenha, sem reduzi-la, o domínio da
singularidade. A dificuldade sempre nova da psicanálise, que nenhuma instituição poderá jamais resolver, consiste no
fato de se expor ou à degradação de uma sistematização fechada ou à anarquia dos processos intuitivos. A teoria da

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psicanálise deve manter-se atenta simultaneamente a essas duas escolhas tanto para evitá-las quanto para por elas se
guiar. (LECLAIRE apud ANDRADE, 2003, p. 20)

Tendo em vista as complexidades teóricas e metodológicas, tive que me deter enquanto avançava no horizonte
infinito das informações levantadas. Temas do cotidiano (descrições de situações, eventos, pessoas, interações e
comportamentos observados), o discurso do corpo na publicidade, entrevistas em profundidade (“pouco estruturadas”,
assemelhando-se mais a conversas informais), entrevistas “rápidas” (quando abordei os “corpos de passagem”), além da
minha própria imersão no universo da educação física e da prática das atividades físicas, me permitiram aproximações e
aprofundamentos significativos para que pudesse concluir a jornada.
A tese sustentada, de natureza qualitativa (ALVES, 1991), está baseada na compreensão de que o corpo andarilho,
aquele que pratica atividade física regular, entra em contato com algo que proporciona um bem-estar fugidio, um estado de
consciência que precisa ser constantemente reencontrado, re-elaborado. O andarilho é fruto das marcas do inconsciente que
se expressam, fundamentalmente, através do imaginário.
Para exemplificar o resgate teórico e metodológico nesta escritura, volto ao conceito do imaginário em busca de
uma sustentação teórica e original para o tema de tese. A riqueza desta instância imaginária, como consideram alguns
autores, sobretudo Jacques Lacan (1900-1981), é percebida, segundo Andrade (2003), da seguinte forma:
Multiplica a subjetividade porque na estrutura psíquica existem tipos de desejos poderosos e perturbadores que dizem
respeito à sexualidade e à agressividade que tocam o âmago da vida humana. Muitos desses desejos, essências de nossa
libido, conservam-se potentes e insatisfeitos, expressando-se através de sonhos e fantasias que funcionam como
verdadeiras válvulas de escape produzindo arte, estimulados pela cultura ou pela religião quer através da sublimação
quer através da repressão. (p. 21)

Dividi o livro (ou a tese) em seis capítulos, conforme indico abaixo:


1) O corpo em movimento, subdividido em: Atividade física e corpo sensível (com os subtítulos: A noção de pulsão
em psicanálise e Estudos sobre o corpo) e Estratégias sobre o corpo: uma experiência vivenciada;
2) Estética e concretude do corpo, subdividido em: Uma aproximação da estética e da identidade do corpo (com o
subtítulo: Da metáfora do “malhar” à concretude do sadomasoquismo) e A cidade e a disciplina do corpo (com o subtítulo:
Políticas do espaço urbano);
3) O corpo freudiano, subdividido em: Corpos em desfile (com o subtítulo: O ego corporal), O movimento do
corpo e o inconsciente e O pensamento e o corpo;
4) Narcisismo e corpo, subdividido em: O sujeito narcisista (com os subtítulos: Limites de idealização do corpo,
Ego ideal e auto-estima e O nº Um);
5) Narcisismo e sociedade, subdividido em: O narcisismo manifesto no contexto social urbano (com os subtítulos:
O ultrapassado e a velhice, Milimétricos da ilusão e Narcisismo, psicanálise e educação física);
6) Imaginário do corpo “andarilho”, subdividido em: Conceito lacaniano sobre o estádio do espelho ou
sucumbindo à captura (com os subtítulos: Identificações imaginárias: o imaginário corporal, O repouso e o movimento do
herói e Atividade física, jogo e imaginário social).
No primeiro e segundo capítulos, me aproximei do tema do corpo e estabeleci relações com o movimento.
Apresento, de forma resumida, questões que fazem parte de uma problemática mais ampla que os limites do próprio trabalho.
Portanto, encontramos, também nesses capítulos, possibilidades de aprofundamentos futuros.
O corpo se apresenta como uma complexidade singular e subjetiva de estar no mundo que merece ser descoberta.
Ela pode fornecer importantes referências para análise e reflexão, ajudando-nos a situar alguns pressupostos que se
apresentam como modelos explicativos tanto do comportamento social, de uma maneira mais geral, quanto, em especial, da
aderência à prática da atividade física.
Esta complexidade emerge da tensão entre o indivíduo e a sociedade, entre o desejo e a necessidade, entre a
voluntariedade e a obrigação, entre a presença e a ausência. É, do ponto de vista psicanalítico, a complexidade do corpo
pulsional.
Retomei algumas dessas questões nos demais capítulos, conferindo-lhes a maior acuidade possível.
Marquei, no terceiro capítulo, a partir das idéias de um corpo tecido na encruzilhada dos destinos pulsionais e de
“ego corporal” de Freud, o conceito de inconsciente e seus desdobramentos. Procurei mostrar um corpo andarilho que é
prazer/dor.
Em vista da complexidade dos conceitos freudianos que fundamentam o inconsciente, reconheço que o texto deste
capítulo apresenta uma configuração demasiadamente clássica, mas, a meu ver, essencial para deixar firmemente
estabelecidas as bases das discussões que o estudo empreende a seguir.
No quarto e quinto capítulos, aprofundei as relações do corpo andarilho com o conceito de Narcisismo. Parti do
narcisismo como condição de subjetividade, conforme encontrado em Freud [1914] (por exemplo, a idéia de “onipotência de
pensamentos” e a atitude de auto-estima; de certo modo, a idéia de que a auto-estima expressa o tamanho do ego,
independentemente dos elementos que irão determinar esse tamanho), e cheguei a um narcisismo “mais social”, quando me
apropriei das formulações de Lasch (1983) sobre a existência de uma cultura do narcisismo. O objetivo foi realizar uma
leitura de algumas das novas formas de subjetivação.

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Teci no sexto e último capítulo considerações concernentes ao imaginário do corpo andarilho. Sobretudo através
dos olhares de Lacan (1998) e de Bachelard (2001), compreendi que a metamorfose desse corpo acontece no tempo e no
espaço do afeto.
Caminho na tese com o problema da constante tensão entre a sensibilidade e a racionalidade do corpo
contemporâneo. Nesse sentido, revelar a memória do corpo andarilho me levou a uma analise de sua dinâmica em relação ao
mundo. O fundamental em sua atividade (corporal) é o trabalho de transformação simbólica a que se submete, elaborando a
fantasia na experiência afetiva (que também denominamos de estética, ou lúdica). Diante da possibilidade de desprender-se
do cotidiano nas atividades físico-esportivas, mas podendo, depois, reencontrá-lo, o andarilho se percebe, após essa
transformação, “mais esclarecido”, “mais simplificado”, “mais fortalecido”.
Aponto, enfim, para o racionalismo como obstáculo à compreensão da vida em seu desenvolvimento.
Parafraseando Morin (2000), ressalto que o princípio de redução leva naturalmente a restringir o complexo ao simples; ele
aplica às complexidades vivas e humanas a lógica mecânica e determinista da máquina artificial. Pode também cegar e
conduzir a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável, eliminando, dessa forma, o elemento humano do
humano, isto é, paixões, emoções, dores e alegrias.

Resultados
A infância e a adolescência, como a juventude, pobres de realidades, desajeitadas e pretensiosas, e mesmo estúpidas
[...], são incomparavelmente ricas da maior e mais decepcionante das riquezas: a possibilidade. Como criar um
“habitar” que dê forma sem empobrecer, uma concha que permita à juventude crescer sem prematuramente se fechar?
Como oferecer uma “morada” a esse “ser humano” ambíguo que só sairá da ambiguidade pela velhice, pouco formado
e magnífico como tal, contraditório, mas de tal modo que nenhum dos lados da contradição pode vencer o outro sem
mutilação grave, e considerando, no entanto, que “o ser” deve sair da situação contraditória? Desde já, esses problemas
implicam um pensamento subversivo que derrube o “modelo” de adulto, que abata o mito da Paternidade, que destrone
a maturidade como “fim”.
(LEFEBVRE, 1999, p. 83)

Ao final da jornada, quando avalio a experiência labiríntica constato, de um lado, as inúmeras vias trilhadas e
entreabertas; de outro, o movimento ou a caminhada, mais madura, mais consciente, de um “corpo sensível”. Coloco-me
nesse lugar, com a ilusão da “onipotência madura”, próximo ao das “nossas personagens”1  o nº Um, o Psicólogo, a
Professora e a Avó , porque fui auxiliado por teóricos que me permitiram compreender a metamorfose que se deu em
“nosso corpo” andarilho, no tempo e no espaço do afeto.
O andarilho reencontra o repouso, que o recoloca em movimento.
A prática regular da atividade física faz com que o sujeito, vivendo o ciclo de prazer/desprazer, entre em contato
com algo que proporciona um bem-estar fugidio, um estado de consciência que precisa ser constantemente reencontrado, re-
elaborado.
Quando o sujeito mexe o corpo, produz, a partir de um impulso de tensão, uma aparência que, pelo olhar e pela
própria percepção, retorna a ele, estimulando nova tensão. Mexer com o corpo é brincar com o corpo, que brinca conosco.
A interpretação dos dados me fez relacionar este jogo, em certo sentido, à erogenicidade (e à hipocondria, quando o
desprazer se manifesta e o exercício é o remédio), que, segundo Freud (em Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914),
explica a possibilidade de qualquer parte do corpo enviar estímulos sexualmente excitantes à mente. Assim, o jogo torna-se
dono do jogador, ele o mantém escravizado (GADAMER, 1999).
O corpo andarilho, ao jogar com a imaginação, dialetiza o repouso e o movimento  respectivamente, a gruta e o
labirinto. O labirinto, na complexidade corporal por mim estudada, pode representar a pluralidade de vias que povoam o
imaginário contemporâneo. Diferentemente da gruta, no labirinto nós seguimos sonhos mais tumultuosos, mais tortuosos,
menos tranquilos, provindos de uma camada inconsciente mais profunda, que dialetizam o sonho dos refúgios mais
espaçosos. “Sob muitos aspectos, os sonhos da gruta e os do labirinto são contrários. A gruta é um repouso. O labirinto repõe
o sonhador em movimento” (BACHELARD, 2001, p. 11).
E assim, a personagem reencontra o repouso, o afago materno, quando, por exemplo, não falta à academia de
ginástica, senão fica “com dor na consciência”. Essa dor tortuosa, da falibilidade do corpo, em contraponto à potência erótica
latente da “sua majestade, o bebê”, repõe o andarilho em movimento. E ele se supera, se excita, se exercita, sai em busca do
melhor estado psicológico. As qualidades da imaginação o confortam, a ilusão o acolhe e o move.
A prática da atividade física proporciona ao sujeito a constituição de efetivas possibilidades de sublimação e de
criação, pela energia ligada a um campo de objetos interiores de satisfação, pelas imagens que afloram na consciência e que
renovam conteúdos inconscientes.
Foi assim que reconheci, numa imagem que me reenviou às personagens do nosso trabalho, a figura do herói.

1
Baseado em depoimentos (histórias de vida) reais, criei na tese quatro personagens, o nº Um, o Psicólogo, a Professora e a Avó, vidas-que-estão-sendo-vividas,
no emaranhado das relações sociais.

380
Lembremos o que disse Lacan: os traços que dão forma à personalidade são transmitidos ao homem em suas
relações humanas, em especial através da identificação parental. E Freud: o id tem material herdado, resíduo das existências
de incontáveis egos, que pode nos ser transmitido ontogenética e/ou filogeneticamente. Em outras palavras: os traços
“individuais” nos são transmitidos, por um lado, em nosso próprio desenvolvimento e processo interacional desde a
fecundação até a maturidade; por outro lado, correlativamente à história evolucionária da espécie humana.
O reencontro do algo melhor desejado, quando o sujeito pensa na atividade física, ou mesmo durante a prática
dessa atividade e através dela, é com o ego do herói que triunfou na batalha, e não com aquele que foi derrotado. A re-
elaboração do prazer da ascensão heróica, ou o desprazer da queda (com os respectivos subterfúgios), manifesta-se, como
vimos, em enunciados tais como: “a malhação faz bem para o ego” (vitória); “não faço ginástica porque não tenho tempo...”
(subterfúgio); “me dá uma preguiça!” (derrota). É a experiência afetiva que é re-vivida, inconscientemente. A metamorfose
do corpo andarilho acontece, assim, no tempo e no espaço do afeto, isto é, do amor e da agressividade.
Nessa perspectiva, nosso estudo aponta a necessidade de olhar e escutar com cuidado e respeito o fazer dos
indivíduos em educação física. Algo maior está em pauta, já que os malhadores evocam em suas ações não apenas um
“corpo”, “biológico”, mas que a existência é práxis, não se restringindo, também, aos registros do pensamento e da
linguagem.
É preciso ir além do que o discurso hegemônico da racionalidade biológica da educação física, assim como o
discurso do senso comum, concebem, hoje, como “consciência corporal”. Possuímos uma natureza biológica a ser
considerada; no entanto, temos ainda, determinando os destinos (esta é a questão fundamental que pude responder com o
nosso trabalho), um corpo sensível, que possui consciência, porém limitada. Nossas identificações e práticas são certamente
mediadas pela cultura e determinadas, em grande medida, pelo inconsciente postulado pela psicanálise.
Sendo assim, aprendi com o movimento do andarilho, tanto pelas vias do assujeitamento à falácia universalista (o
lugar do universal, do incontestável, que nos dias de hoje passa a ser ocupado, sobretudo, pelo mito cientificista), conforme
impera na racionalidade da educação física contemporânea, quanto pelas da conscientização e transformação.
Por um lado, no que denominei de performance “bio-psico-assujeitada-ao-especialista”, verifiquei o desejo de se
adequar à norma, ao estereótipo, a qualquer custo. Nesse nível de desenvolvimento psicossocial do sujeito constatei o
objetivo de “treinar o corpo” de maneira “mais-agressiva-infantil-inconsciente”  em certo sentido, sadomasoquista.
Verifiquei também a “fantasia da onipotência infantil”, o jogo imaginário do “jovem-ingênuo-herói”, sua
experiência narcisista de corpo ideal.
A subjetividade desse “jovem-ingênuo” apresenta uma configuração “estética”, superficial, atrelada a medidas,
onde o olhar do Outro ocupa posição estratégica em sua economia psíquica. É um corpo que vive relações turbulentas com o
seu desejo, permanecendo nos limiares da morte, do gozo e da violência, “que se entreabrem para o que existe de horror no
universo das delícias eróticas” (BIRMAN, 2001, p. 26).
Constatei que essa “onipotência infantil”, ou esse “corpo infantil”, pode não sobreviver, literalmente, mas que
também sobrevive “todo quebrado”, após o jogo jogado, que, em certo sentido, é pesado demais, excessivo, demasiadamente
intenso. Mas isso se justifica, já que esse “corpo infantil”, assim como Narciso, imaturo, se aliena em sua própria imagem,
segundo o mito, se fascina pela imagem de si próprio e por ela morre.
Nesse sentido, minhas interpretações me levaram a apontar para a hegemonia da aparência, que define o critério
fundamental do ser e da existência. O cuidado excessivo com o próprio eu se transforma em objeto permanente para a
admiração do sujeito e dos outros, de tal forma que o malhado-narcisista realiza polimentos intermináveis para alcançar o
Olimpo. Na cultura da “estetização” do eu, o sujeito vale pelo que parece ser, mediante as imagens produzidas para se
apresentar na cena social. O corpo que come, ou que não come, que trabalha, que usa drogas, que morre cotidianamente, que
tem medo, justamente esse corpo legítimo, não está lá (BYNUM, 1995). O que se destaca para o indivíduo é a exigência da
performance.
Essa performance, no seio da educação física e das práticas “corporais” a ela vinculadas, é marcada pelo narcisismo
perverso, onde o importante é que o eu seja glorificado, sobretudo segundo os valores axiais de uma visão biológica de corpo
e de mundo. Desse cenário, destaquei as más imagens que o narcisista interioriza, que o tornam cronicamente inseguro
quanto à sua saúde.
Como cliente da academia de ginástica/musculação, por exemplo, o narcisista é candidato “maduro” para a
dependência do ambiente especular e do especialista. Ele procura nos “centros de fitness” uma “religião” ou modo de vida, e
espera encontrar nessa “relação terapêutica” o apoio externo para suas fantasias de onipotência e de eterna juventude. A força
de suas defesas torna-o resistente à orientação que o faça reconhecer sua singularidade e seu lado sombrio. Ele busca a
superação sem fim dos limites, até com o uso de drogas (próteses) que obliteram-lhe a consciência.
Por outro lado, as teorias, as interpretações, e o depoimento das “nossas personagens” me levaram a considerar que
a transformação produzida no corpo ao longo do tempo, o desenvolvimento da consciência corporal, proporciona ao sujeito a
realização do “ideal do ego do desejo” mais próximo do “ego real”, minimizando, consequentemente, a possibilidade de
frustração imediata ou futura.
O corpo andarilho, mais maduro, olha, com critério, para a pressa que leva a plantar o que não se espera no futuro
colher, ou a pressa que leva a colher o imaturo e o ainda “verde”. Sua atividade diária de busca e reencontro do algo melhor
representa uma atitude de auto-estima saudável, de amor, de equilíbrio, no que se liga ao “inchaço e ao desinchaço do ego”, à
vida e à morte, ao ciclo de prazer/desprazer.

381
O andarilho, “mais-amoroso-maduro-consciente”, já percebe e valoriza as “qualidades da imaginação”
(BACHELARD, 2001). Uma simples caminhada na praia, como mostram nossas personagens, acalma. É o reencontro do
algo melhor no contato, na ligação, no jogo contemplativo com a “mãe natureza”. Esse jogo contemplativo pode acontecer,
também, com a “natureza” humana. Contudo, independentemente da “natureza” contemplada, o movimento de ida até a
praia, ou mesmo até a academia de ginástica, para o movimento no corpo na “caminhada” e o reencontro do repouso (do algo
melhor), não deixa de ser uma coragem, e o mundo contemplado é o cenário de uma vida de herói.
Verifiquei que nossas personagens “flutuam” porque se fortalecem na brincadeira com o corpo. Essa é uma das
imagens fortes que se nos apresentam. Em certo sentido, é uma imagem de luta, de liberdade, de superação, de conquista: é
uma imagem de “flutuabilidade”. Esse é o corpo da “não-transformação”, é o corpo que enfrenta o Minotauro, que “ataca”
conscientemente a matéria, que se renova com o “movimento”.
Os depoimentos das personagens me permitiram constatar que o “ataque” é consciente, “maduro”, na medida em
que nos aponta para o “combatente imaturo”, quando avaliam os limiares do prazer/dor, tanto na performance “assujeitada-
ao-especialista” quanto na complexidade das relações do corpo que vê com o corpo que é visto, ou ainda, em outras palavras,
na transformação que é produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.
Caminhando por essas questões, destaco o “progresso” do corpo andarilho, a quebra das dependências, a ilusão da
“onipotência madura”, o domínio de si, a autonomia. Nesse sentido, o exercício físico autônomo passa, nas suas devidas
proporções, pelo entendimento de liberdade da norma e/ou da autoridade do especialista. Ser autônomo “significa libertar-se
de todos os vínculos de subordinação, sagrados ou humanos” (ROUANET, 2003, p. 41). Para o autônomo, a aceitação da
autoridade é sempre relativa, na medida em que coopera enquanto conserva seu direito particular de julgamento e ação. O
andarilho, autônomo, observa o autômato, ou seja, o “homem-máquina”, o performer que se submete à moral e ao
determinismo da mercantilização do corpo.
Observei, portanto, que a caminhada do “corpo andarilho”, ou a prática da atividade físico-esportiva, neste início
do terceiro milênio, acontece no fio da navalha quanto aos valores do bem e do mal, quanto à produção das subjetividades.
Chego à “tese do corpo sensível”, entre os elementos de uma determinação positiva, assim introduzida entre as
realidades psíquicas que uma definição relativista permita objetivar.
Como diz Freud [1933],
Os senhores sabem como o pensamento popular lida com os instintos. As pessoas supõem existirem tantos e tão
diversos instintos quantos aqueles de que elas necessitam no momento um instinto de auto-afirmação, um instinto
de imitação, um instinto lúdico, um instinto gregário e muitos outros semelhantes. (1974, v. 22, p. 119)

Em qualquer fase vivida, transitamos imaginariamente entre a frustração concernente à perda daquilo que buscamos
e que não conseguimos reter (ego ideal), e a sublimação normativa que apazigua essa frustração libidinal. E assim nos
identificamos com certas imagens que nos tranquilizam no tempo e no espaço cultural. Contudo, o que quer que cubra a
imagem, e agora com base em Lacan, ela apenas centra um poder enganador de desviar a alienação, que já situa o desejo no
campo do Outro.
Sendo assim, a “tese do corpo sensível” se desdobra com a questão: Quais e/ou quantos eus o corpo andarilho pode
desenvolver ou reencontrar?
O problema é de apreensão do outro, a importância de sua localização, o seu valor subjetivo. É que as estátuas em
que nos projetamos, antes mesmo de habitarem nosso imaginário ou se inscreverem em nosso inconsciente, visaram a
captação do nosso interesse, da atenção, ou, como nos diz Guerra Neto (2002), “o engendramento da reverência pela sutileza
de suas posições ou posturas simbólicas, pelo poder e pela ação do símbolo sobre a sensibilidade dos homens” (p. 26).
Resta então informar, ou formar o sujeito consciente de si: a agressividade é inerente ao viver em sociedade. No
que concerne à educação, e em especial à educação física e à prática da atividade físico-esportiva regular, duradoura e
madura, a busca do “corpo perdido” ou “primário” pelo viés do corpo performático pode ser perigosa e arrastar a “criança”
para “a hýbris, o descomedimento, fazendo-a ultrapassar o métron, que é a medida de cada um, o limite próprio do ser
humano” (BRANDÃO, 2003, p. 175).
Os sofrimentos da neurose e da psicose, diz Lacan, são, para nós, a escola das paixões da alma, assim como o fiel
da balança psicanalítica; quando calculamos a inclinação de sua ameaça em comunidades inteiras, dá-nos o índice do
amortecimento das paixões da pólis. Nesse ponto de junção da natureza com a cultura, acrescenta Lacan (1998), “apenas a
psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor sempre tem de redesfazer ou deslindar” (p. 103).
Os princípios psicanalíticos podem, portanto, nos ajudar a acompanhar nossos “alunos” até a “autonomia madura”,
ou a “onipotência madura”, até a atitude de auto-estima saudável, de amor, parafraseando Lacan, até o limite extático do “Tu
és isto” em que se revela a cifra de seu destino mortal. Mas não está só em nosso poder de praticantes, ou de andarilhos,
levá-lo a esse momento em que começa a verdadeira viagem, da identidade humana, das metamorfoses, da vida.

Referências
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Carlos Chagas, n. 77, 53-61.

382
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Paulo: Companhia das Letras, (pp. 37-64).

Corpo, subjetivação, ética e poder


Walter Matias Lima
Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Resumo: Nossa comunicação pretende apresentar algumas questões sobre o corpo, a partir de uma leitura foucaultiana e dusseliana,
enfocando a história cultural afro-brasileira, como consequência de nossas pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Em um
primeiro momento, perguntamos qual importância tem o corpo: ele é uma metáfora? Ele é um lugar onde confluem várias categorias que
supomos o manifestam, ou onde essas categorias se constituem como unidade e até ao corpo se dirigem ensejando docilização, controle,
classificação e repressão? Noutro momento, discutimos o corpo como espaço de experimentação e auto-realização. Mas, também
apresentamos o corpo como espaço de sofrimento e de desejo, âmbito de aniquilação e de expectativas de libertação. Portanto, falar de
espaço não significa que o corpo aconteça como espaço neutro aos processos históricos e às lutas de poder, mas que tais processos e lutas
tornam-se visíveis no devir-corpo como acontecimento existencial. Entendemos o corpo como lugar de existência e não há existência sem
lugar. Se quisermos compreender o que está em jogo nas políticas do corpo, convém atentar para um dado importante: o poder político é
especialmente efetivo ali onde aparentemente não parece ter o que ver em primeira instância com a política, onde aquilo do que se trata é
“homem”, “vida”, ou “corpo”. Desta maneira, sugerimos uma estética da existência em que o corpo se converta na matéria ética que funda a
resistência às docilizações e aponta para novas formas de resistência política.

Para uma abordagem de maneira crítica que trate do tema do corpo e da educação ou, de uma educação do corpo,
remeteremos nossa perspectiva para a dimensão da obra do filósofo francês Michel Foucault. Podemos dizer que o tema do
corpo, ou da corporeidade, ficou em plano menor durante o transcurso da Idade Média e em parte da própria modernidade e
foi tema reticente em muitos autores da filosofia desde, pelo menos, o século XVII ao XIX. O dualismo psíco-físico tanto de
tendência platônico, quanto cartesiano exerceu grande influência no pensamento ocidental moderno, onde se constituiu uma
hierarquia ente alma e corpo, tendo a primeira característica como superior e, assim sendo, os projetos educacionais
modernos (pelo menos os de tendência Iluminista, calcados no ideal da bildung), suas pedagogias, insistiram em manter a
dualidade hierárquica entre corpo e alma.
Nossa comunicação versará em torno das investigações realizadas por Foucault, especialmente nos Cursos do
Collège de France (1981-1982) e publicado com o título A Hermenêutica do Sujeito.
Logo na primeira aula, Foucault mostra que na cultura grega, pelo menos antes do helenismo, perdurou a noção de
“cuidado de si mesmo” (epiméleia heautoû) que caminhou junta com a noção de “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) e
que essas noções vão se afastar a partir de uma interpretação filosófica, iniciando com a filosofia platônica e se ramificando
no estoicismo e nas consequências desse para a cultura latina. Um dos objetivos de Foucault (2004: 04-24), é demonstrar
como a cultura ocidental, a partir de determinado momento da história da cultura grega, transformou o “conhecimento de si

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mesmo” em “ tecnologias do eu” que se constituíram como formas de ação do indivíduo sobre si mesmo, onde o corpo
(sujeito) será concebido como o lugar de entrelaçamento de atos de regulação. Essa regulação dar-se-á por diversas práticas
sociais de subjetivação onde o corpo será moldado e acoplado à vários mecanismos de agenciamentos do sujeito no mundo.
Nessa perspectiva, as práticas educativas, principalmente aquelas inseridas em atividades formais de ensino,
aparecerão como instâncias de docilização do corpo que renunciará ao desejo, para salvar a alma. Assim, podemos arriscar a
idéia de que, no ocidente, perdurou por muitos séculos uma concepção negativa do corpo, onde a própria educação foi
pensada e realizada a partir dessa negatividade, do corpo entendido apenas como biologia, mas também como velamento da
carne. Talvez o melhor exemplo seja dado pelo próprio Foucault no primeiro volume da História da Sexualidade, quando
discute a pedagogização da sexualidade da criança. A criação de um discurso pedagógico que ensejou práticas educativas
disciplinares e criadoras de dispositivos de controle do saber sobre o corpo e, por conseguinte, da sexualidade e de processos
de subjetivação.
Partindo do exposto acima, podemos fazer uma pequena abertura para algumas considerações sobre o transcurso da
noção de corpo no ocidente a partir da Grécia: se considerarmos que a história filosófica da cultura ocidental começa na
Grécia, a construção da noção de corpo passa pela cultura helênica. Na Grécia democrática, principalmente na democracia
ateniense, no período que vai de Sócrates a Aristóteles, a concepção de corpo gira em torno da relação entre soma e psiquê,
onde esta relação é concebida como um processo, mesmo que visto de maneiras diferentes pelos filósofos, como é o caso de
Platão (como já anunciado acima) que vai privilegiar a dimensão “espiritual” do corpo propondo uma das primeiras
concepções dualistas da vida: o corpo que está em maior relação com o efêmero, isto é, a diversidade de entes, uma vez que
ele pertenceria ao mundo sensível; e a alma que está em maior relação com o eterno, isto é, a unidade do ser, vez que a alma
pertenceria ao mundo inteligível. Mas mesmo na concepção platônica não há uma distância intransponível entre corpo e alma
(mas uma prevalência do “conhece-te a ti mesmo” sobre o “cuidado de si mesmo”) , pois o homem é visto como uma unidade
em transformação conjuntamente com a Physis e o nomos. O corpo é uma totalidade sempre em processo de totalização que
vive as contradições da polis e as exigências da natureza. Para a maioria dos filósofos - dessa época - a existência humana
deve ser caracterizada pela busca da vida virtuosa e a prática da virtude (dike) é a coisa mais preciosa para o homem.
No que diz respeito ao corpo, a vida virtuosa é a busca de uma harmônia entre ele como uma unidade orgânica
interagindo com o cosmos e, ao mesmo tempo, uma entidade que, para exercer a virtude, deve buscar âmbitos de harmonia e
proporção, uma vez que a harmonia individual e social é uma imitação da ordem cósmica.
Assim, o corpo do ser humano deve transmitir as características espirituais, morais e éticas do sujeito,
principalmente através dos seguintes valores: justiça, prudência e temperança - valores esses que são adquiridos através do
exercício da razão, pois o corpo virtuoso é o corpo que busca o equilíbrio.
Para os gregos havia apenas a delimitação entre corpo ativo e corpo passivo, o que lembra muito a delimitação
aristotélica do ser entre atividade e passividade. Essa denominação de ativo e passivo vai exercer uma influência marcante na
história do corpo na cultura ocidental.
Ativo e passivo diz respeito, na Grécia, à relação entre amante e amado, o que necessariamente não significa uma
distinção de gênero - não havia uma delimitação precisa de quem seria o passivo ou ativo, isto é, se o homem ou a mulher, ou
ainda, uma delimitação de hetero ou homossexualidade, mas apenas no sentido de que o ativo é o amante e o passivo é o
amado.
As práticas do corpo, na Grécia, estavam diluídas naquilo que os gregos chamavam de economia, erótica e
dietética, ou seja, o cuidado com a casa (economia); o cuidado com a vida sexual (sexualidade) e o cuidado com a saúde - a
utilização do pharmacon: aquilo que cura é, também, aquilo que mata, é um exemplo do que se pode entender pelo cuidado
do corpo, como cuidado de si mesmo. No entanto, na vida nada pode ser vivido em excesso e o homem sadio é aquele que
busca a justa medida e procura conhecer a si mesmo.
O amálgama entre as culturas grega, romana e hebraica, que resultará na cultura cristã, vai transformar
consideravelmente a noção de corpo a partir da atribuição do conceito de ativo ao corpo masculino (apolíneo) e do conceito
de passivo ao corpo feminino (dionisíaco). Desse dualismo, nasce a correlação entre corpo masculino e razão, tanto quanto a
correlação entre corpo feminino e instintos e paixões. A mulher aparece como sendo o outro da razão, isto é, o sujeito que
adquire sua subjetividade através de outro sujeito, ou melhor, do sujeito por excelência: o homem.
Sabemos que esse transcurso apresentado, no momento, carece de simplificação, mas não é aqui o lugar para
verticalazar as assertivas colocadas nos parágrafos precedentes. No entanto, a sugestão que depreendemos de A
Hermenêutica do Sujeito é a de que Foucault provoca uma discussão onde os processos de subjetivação do sujeito são
entendidos como processos de constituições de corporeidade, onde esta acontece como redes de vínculos corporais que se
cruzam por linhas de agenciamentos, pois os corpos de transversam para além do biológico, como múltiplas relações de
práticas intersubjetivas.
É nessa perspectiva que compreendemos os agenciamentos entre corpo e política: colocar o corpo (sujeito) no
espaço da experiência, não como norma constituinte, mas como forma constituída de maneira incompleta. O corpo não é uma
invariante, uma essência fixa, acabada e idêntica a si mesma, mas uma derivação, uma forma constituída com e pelas
experiências históricas. Falar de corpo é falar das complexas relações que os indivíduos mantêm consigo mesmo, com os
outros e com problematizações que sua época põe à vivência da corporeidade. O sujeito se constitui como corpo na
experiência e através de práticas e tecnologias de saber, de poder e de si.

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No que diz respeito a relação entre corpo e política, as indicações de Foucault apontam para problematizações que
serão resolvidas ou continuadas nos embates das correlações de forças nos diversos contextos políticos em que nos
encontramos na contemporaneidade, tais como: problematizar os estímulos, as regulações, disciplinarização e implicações de
nossa sexualidade; problematizar as condições contemporâneas de estratificação do saber normalizado que ensejam técnicas
de controle sobre os corpos.
Nessa perspectiva, a modernidade e seus modernismos, é uma experiência do espaço e do tempo, do eu e dos
outros, das possibilidades e dos perigos de vida - que é partilhada por homens e mulheres no mundo atual. Ser moderno é
encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformações de si e do mundo - e, ao
mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Ser moderno, isto é, ainda moderno
(contemporâneo) é viver metamorfoses do corpo.
Ao mesmo tempo, a modernidade procurou efetivar um projeto que equivalia a um singular esforço intelectual dos
pensadores iluministas dos séculos XVIII e XIX, para delimitar a ciência objetiva, o campo da moralidade e os princípios
universais que regem a arte. A idéia de usar o acúmulo do conhecimento produzido por muitas pessoas trabalhando livre e
criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária levou a uma racionalização do corpo que
exigiu uma, no mais das vezes, obliteração da sensibilidade e da sensualidade, o que proporcionou o avanço, no dizer de
Foucault, de uma ciência da sexualidade que tece um discurso sobre o corpo para poder evitar uma “ação” sobre o corpo.
Se de um lado, o projeto da modernidade partia da certeza de que o domínio científico da natureza levava à
libertação da escassez, da necessidade, e acreditava, também, que com a elaboração e o desenvolvimento de forma racionais
de organização social e de maneiras racionais de pensamento alcançaríamos a emancipação do uso arbitrário do poder, em
todas as suas instâncias, prevalecendo, dessa forma, as características universais e imutáveis de toda humanidade, por outro
lado, esse projeto durante os últimos cinquenta anos do século XX, só tem demonstrado que a crença avassaladora numa
razão universal, não realizou os princípios do projeto da modernidade. Primeiro a razão, que se apresentou como
esclarecedora, transformou-se em razão instrumental (razão tecnicizada); segundo, a dificuldade da realização dos
principais princípios da própria modernidade, tais como: autonomia do sujeito e dignidade ética (princípios normativos de
caráter universais como, por exemplo, os imperativos categóricos de Kant) diante dos direitos constituídos pela revolução
burguesa. Revolução esta que não pode realizar (dentro da dinâmica do capital e enquanto houver capitalismo) os direitos
instituídos no âmbito da universalidade, ou seja, tornar os direitos efetivos na praxis dos sujeitos historicamente situados.
Essas características da cultura moderna encontraram respaldo até os anos setenta quando começaram a surgir
novas tendências de agir e de pensar que despontaram das novas formas de produção e acumulação de capital, o que já se
costuma chamar de acumulação flexível de capital ou modelo pós-fordista, e que muitos já chamam de pós-modernidade.
Caracteriza-se a pós-modernidade como uma tendência na vida social e cultural, onde não mais se vê a cidade
vitimada por um sistema racionalizado e autonomizado de produção e consumo de massa de bens materiais, mas por uma
produção de signos e imagens. Essa tendência procura rejeitar a concepção de uma cidade rigidamente estratificada por
ocupação e por classe, descrevendo em vez disso, um individualismo e um empreendimentismo disseminados em que as
marcas da distinção social eram conferidas em larga medida à posse e à aparência.
A tendência pós-moderna tem levado à dispersão e à fragmentação da produção dos serviços e do consumo, o que
encontra correspondente na cultura (cultura entendida como modo de pensar e de agir, como conjunto de valores, idéias,
imagens, signos, parábolas, práticas e comportamentos). Trata-se da cultura pós-moderna ou pós-modernista, que glorifica a
dispersão e a fragmentação, o narcisismo, a aparência ou a superfície das coisas, a velocidade tecnológica e temporal,
despedaçando o espaço, em suma, a fragilidade da utopia. A conjugação da informática, do marketing e da publicidade são
exemplos de técnicas e tecnologias que podem ser usadas nessa prática cultural.
Para a cultura atual parece tender ao desaparecimento alguns valores e conceitos que fizeram a modernidade:
racionalismo universalista, movimento imprescindível da história, contradições do modo de produção capitalista expressas
nas lutas de classes e nas transformações sociais e políticas, submissão da natureza às imposições do desenvolvimento da
cultura, as idéias urbanísticas de funcionalidade, planejamento e permanência, o romance e o cinema como abordagens
artísticas em que encontraríamos o sentido do real mostrado pelo imaginário.
Para o pós-moderno os traços que parecem caracterizar o final do século podem ser chamados de volátil, veloz,
efêmero, fragmentado e descentrado e o ser humano caracteriza-se por ser narcisista, inseguro, isolado e gregário.
Características essas que são paradoxais, mas que dizem muito dos comportamentos do homem e da mulher nos últimos
trinta anos.
Ao suposto domínio do planejamento racional, apela-se para uma imagem da cidade como um amálgama de estilos
em que todo o sentido de hierarquia e até de homogeneidade de valores está em vias de dissolução. Aquele que mora na
cidade não se dedica à racionalidade (como prática de orientação no espaço e no tempo), pois a cidade parece mais um
labirinto e um teatro onde os indivíduos representam uma multiplicidade de papeis.
Se a vida moderna está de fato tão permeada pelo sentido do constante e do fugidio; do eterno e do efêmero; do
composto e do fragmentário; do necessário e do contingente, há algumas profundas consequências. A modernidade não pode
considerar sequer o seu próprio passado, nem qualquer ordem social pré-moderna. A transitoriedade das coisas dificulta a
preservação de todo sentido de continuidade histórica. Se há algum sentido na história, há que descobri-lo e defini-lo a partir
de dentro do turbilhão da mudança, um turbilhão que afeta tanto os termos da discussão como o que está sendo discutido. A
modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas

385
precedentes, como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes a ela. Em
geral, as vanguardas sempre desempenharam um papel vital na história do modernismo, interrompendo todo sentido de
continuidade através de alterações, recuperações e repressões radicais. Como interpretar isso, como descobrir os elementos
“universais” em meio a essas disrupções radicais, é o problema: aqui está o paradoxo das tendências pós-modernas, uma vez
que procuram, em geral, resgatar apenas as características transitórias da modernidade, amalgamando em um composto
eclético a própria fragmentação da cultura atual.
Nessa transitoriedade e nessa fragmentação encontra-se o corpo. Contudo, pode-se dizer que, ninguém vai ao
homem senão pelo corpo.
O narcisismo, que impera nas últimas décadas no mundo tem colocado uma questão premente para as pessoas, de
um lado, o corpo humano é um corpo no mundo e com o mundo, um corpo concreto, um corpo que conscientemente, adota
práticas não para se proteger, mas também para se reconhecer e ser reconhecido e preservar e ser preservado o corpo humano
transcende como construção de sentido através de diversas formas de linguagens; por outro lado, o narcisismo advindo dos
processos atuais de fragmentação da vida, tem levado os sujeitos à uma ânsia de auto-afirmação exagerada e infantil. Esta
auto-afirmação constitui-se “sobre modelos consagrados pela mídia: uma mulher fatal, o guerreiro indestrutível, o encanto da
Cinderela ou o tipo irresistível. Assim o/a narcisista vive substancialmente em uma condição de irrealidade, regado pela
propaganda, pelos modelitos de consumo do momento. Nessa idolatria ao próprio corpo esconde-se muitas vezes uma
perigosa rejeição de si mesmo”. (Souza Neto, 1996:26) Essa corpolatria tem um caráter extremamente religioso, ou melhor,
guarda uma religiosidade anti-religiosa: se no passada, pelo menos no passado - onde imperava a moral cristã -, o corpo
sempre tendeu para o lugar do profano, hoje, há uma espécie de sacralização do corpo travestida de corpolatria, o que gera
um conflito entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser, aquilo que temos e aquilo que gostaríamos de possuir: o
corpo que somos e que temos e o corpo que gostaríamos de exibir.
O início do século impõe respostas para novas situações do corpo: desde o corpo que aparece como um produto que
se vende, se negocia e, por isso mesmo, gera moda, até o corpo metamorfo e múltiplo que é constituído e que constitui
através dos diversos agenciamentos maquínicos de desejos. Quer seja o corpo feminino ou masculino, passando pelo corpo
que busca uma identidade na diversidade - onde encontramos aqueles que continuam um exercício de reflexão constante
sobre sua própria condição no mundo atual, não se deixando tragar pela avalanche de superficialidade que as dipersões-
fragmentações proporcionam; até aqueles que estão alertas para as novas tecnologias genéticas que colocarão no mercado
futuro os corpos clonados, e a pergunta é: os clones, que poderão existir em um futuro muito breve, poderão construir um
sentido próprio (antropológico e ontológico) para seus corpos ou terão apenas os sentidos que seus criadores quiserem? Ou
esta questão não importará porque serão apenas mais corpos-mercadorias jogados nos fragmentos das nossas novas
virtualidades sociais? Teremos, nós, ainda corpos? Uma política do corpo não exigiria um corpo-político e uma pedagogia da
diferença, da multiplicidade?
O que Foucault privilegia é a invenção deum novo sentido histórico para o corpo, o qual deixa de ser uma evidência
e passa a poder ser pensado como uma diferença na história e como o movimento desta própria diferença, já que o próprio do
corpo é o contínuo deixar de ser, mas que na tradição, pelo menos cartesiana, e visto como busca contínua da identidade.
Neste movimento ele reconhece a introdução da necessidade de pensar as condições históricas de possibilidade e regularidade
que tomam possíveis aos homens constituírem-se a si mesmos como objeto de reflexão, para nosso propósito, pensar-se
sendo corpo como constructo sócio-histórico.
O corpo a ser pensado deve ser visto como fluxo de descontinuidades, onde nos concebemos como uma
multiplicidade de relações com o tempo e com o espaço, uma confluência de linhas e pontos de fugas distintos que ligam
aquilo que não somos mais, nossa arqueogenealogia, com aquilo que estamos sendo, mais aquilo que estamos nos tornando,
nosso devindo.
Quando falamos em corpo, nos referimos principalmente à existência de um acontecimento filogenético e histórico-
social a partir do qual são dispensados e coordenados os mecanismos de controle sobre o mundo natural e social. Este
acontecimento corpo é, também, controlado peloo Estado, gerente da organização racional da vida humana, atualmente.
“Organização racional” significa, em nossa perspectiva, que os processos de desencantamento e desmagicalização do mundo,
na acepção de Weber, começam a ser regulamentados pela ação diretriz do Estado sobre o corpo. E o Estado é entendido
como a esfera onde todos os interesses encontrados na sociedade podem chegar a uma “síntese”, ou seja, o lócus capaz de
formular metas coletivas, válidas para todos. Mas isto requer a aplicação estrita de “critérios racionais” que permitam ao
Estado canalizar os desejos, os interesses e as emoções dos cidadãos até as metas definidas pelo próprio Estado. Isto significa
que o Estado moderno não apenas adquire o controle do corpo, mas o monopólio da violência, como também usa dela para
“dirigir” racionalmente as atividades dos cidadãos, de acordo com critérios estabelecidos cientificamente de antemão.
Fazendo um aporte com o sociólogo Immanuel Wallerstein (1991), este mostra como as ciências sociais se
converteram em uma peça fundamental para este projeto de organização e controle da vida humana. O nascimento das
ciências sociais não é um fenômeno aditivo aos marcos da organização política definidos pelo Estado-nação, mas constitutivo
dos mesmos. Era necessário gerar uma plataforma de observação científica sobre o mundo social que se queria governar. Sem
o recurso das ciências sociais, o Estado moderno teria diminuído sua capacidade de exercer o controle sobre a vida das
pessoas, definir metas coletivas a longo e curto prazo, nem de construir e apontar para os cidadãos uma “identidade cultural”.
Além da reestruturação da economia de acordo com as novas exigências do capitalismo internacional, como também a
redefinição da legitimidade política, e inclusive a identificação do caráter e os valores peculiares de cada nação, demandavam

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uma representação cientificamente avaliada sobre o modo em que “funcionava” a realidade social. Somente sobre a base
desta informação era possível realizar e executar programas governamentais.
As taxonomias elaboradas pelas ciências sociais não se limitavam, então, à elaboração de um sistema abstrato de
regras chamado “ciência” – como ideologicamente pensavam os fundadores da sociologia -, mas que tinham consequências
práticas na medida em que eram capazes de legitimar as políticas regulativas do Estado. A matriz prática que dará origem ao
surgimento das ciências sociais é a necessidade de ajustar a vida dos homens ao aparato de produção. Todas as políticas e as
instituições estatais (a escola, as constituições, o direito, os hospitais, as prisões, etc.) seriam definidas pelo imperativo
jurídico da ‘modernização”, isto é, pela necessidade de disciplinar as paixões e orientá-las até o benefício da coletividade
através do trabalho. Tratava-se de ligar todos os cidadão ao processo de produção mediante o submetimento de seu tempo e
de seu corpo a uma série de normas que estavam definidas e legitimadas pelo conhecimento. As ciências sociais ensinam
quais são as “leis” que governam a economia, a sociedade, a política e a história. O Estado, por sua parte, define suas
políticas governamentais a partir desta normatividade cientificamente legitimada.
Sendo assim, este intento de criar perfis de subjetividade estatalmente coordenadas levou ao fenômeno que
denominamos ‘a invenção do outro”. Ao falar de “invenção” não nos referimos apenas ao modo em que certo grupo de
pessoas se representava mentalmente a outras, mas que apontamos até os dispositivos de saber/poder a partir dos quais essas
representações são construídas. Para além do “ocultamento” de uma identidade cultural preexistente, o problema do “outro”
pode ser teoricamente abordado a partir da perspectiva do processo de produção material e simbólica em que se viram
envolvidas as sociedades ocidentais a partir do século XVI.
No contexto dos processos disciplinares que forjaram os cidadãos latino-americanos e, ao mesmo tempo
inventaram o “outro”, no século XIX; as constituições, os manuais de urbanidade e as gramáticas da língua, onde estas
tecnologias de subjetivação possuem um denominador comum: a legitimidade descansa na escritura. Escrever era um
exercício que, no século XIX, respondia à necessidade de ordenar e instaurar a lógica da “civilização” e que antecipava o
sonho modernizador das elites coloniais. A palavra escrita constrói leis e identidades nacionais, desenha programas
modernizadores, organiza a compreensão do mundo em termos de inclusões e exclusões. Assim sendo, o projeto
fundacionista da nação é levado avante mediante a implementação de instituições legitimadas pela letra (escolas, hospícios,
prisões) e de discursos hegemônicos (mapas, gramáticas, constituições, manuais, tratados de higiene) que regulamentam a
conduta dos atores sociais, estabelecem fronteiras entre uns e outros e lhes transmitem a certeza de dentro ou fora dos limites
definidos por essa legalidade posta pela escritura.
A formação do cidadão como “sujeito de direito” só é possível dentro do marco da escritura disciplinatória e, neste
caso, dentro do espaço de legalidade definido pela constituição. A função jurídico-política das constituições é, precisamente,
inventar a cidadania, ou seja, criar um campo de identidades homogêneas que tornem viável o projeto moderno da
governamentabilidade. Por exemplo: a aquisição da cidadania torna-se um exercício de direitos adquiridos pelas pessoas cujo
perfil se ajuste ao tipo de sujeito requerido pelo projeto da modernidade: varão branco, pai de família, católico, proprietário,
letrado e heterossexual. Os indivíduos que não cumprem estes requisitos (mulheres, loucos, analfabetos, negros, hereges,
escravos, índios, homossexuais, dissidentes) ficarão fora da “cidadania letrada”, reclusos no âmbito da ilegalidade,
submetidos ao castigo e a terapia por parte da mesma lei que os exclui.
Mas se a constituição define formalmente um tipo desejável de subjetividade moderna, a pedagogia é a grande
artífice de sua materialização. A escola se converte em um espaço de internamento onde se forma esse tipo de sujeito que os
“ideais regulativos” da constituição estavam reclamando. O que se busca e introjetar uma disciplina sobre a mente e o corpo
que capacite a pessoa para ser “útil à pátria”. O comportamento da criança deverá ser regulamentado e vigiado, submetido à
aquisição do conhecimento, capacidades, hábitos, valores, modelos culturais e estilos de vida que lhe permitam assumir um
rol “produtivo” na sociedade.
Surgem no século XIX, em vários paises latino-americanos os manuais de urbanidade, que se convertem na nova
bíblia que indicará ao cidadão qual deve ser seu comportamento nas mais diversas situações da vida, pois da obediência fiel a
tais normas dependerá sua maior ou menor êxito na civitas terrena, no reino material da civilização. A ‘entrada” no banquete
da modernidade demandava o cumprimento de um receituário normativo que servia para distinguir os membros da nova
classe urbana que começava a emergir em toda América Latina durante a segunda metade do século XIX. É a consagração do
cidadão burguês, o mesmo a que se dirigiam as constituições republicanas; o que sabe falar, comer, utilizar as roupas, tratar
os serviçais, conduzir-se na sociedade. É o sujeito que conhece perfeitamente o teatro da etiqueta, a rigidez da aparência. A
urbanidade e a educação cívica aparecem como taxonomias pedagógicas que separavam a capital das províncias, a república
da colônia, a civilização da barbárie.
Como consequência, o projeto de construção da nação requeria a estabilização linguística para uma adequada
implementação das leis e para facilitar, portanto, as transações comerciais. Existe, pois, uma relação direta entre língua e
cidadania, entre as gramáticas e os manuais de urbanidade; em todos estes casos, do que se trata e de criar o homo
oeconomicus, o sujeito patriarcal encarregado de impulsionar a levar a cabo a modernização da república. Desde a
normatividade da letra, as gramáticas buscam gerar uma cultura do “bem dizer” com o fim de evitar as práticas viciosas da
fala popular e os barbarismos grosseiros da “plebe”. Estamos pois diante de uma prática disciplinatória onde se refletem as
contradições que terminariam por desgarrar o projeto da modernidade: estabelecer as condições para a “liberdade” e a
“ordem” implicava o submeter os instintos, a supressão da espontaneidade, o controle sobre as diferenças. Para ser civilizado,
para entrar a formar parte da modernidade, para ser cidadão, os indivíduos não apenas deviam comportar-se corretamente e

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saber ler e escrever, mas também adequar sua linguagem a uma série de normas. O assujeitamento à ordem e à norma conduz
o indivíduo a substituir o fluxo heterogêneo e espontâneo do vital pela adoção de um fluxo linear, arbitrariamente constituído
através da letra.
Por conseguinte, criar a identidade do cidadão moderno na América Latina implicava gerar uma contracorrente a
partir da qual essa identidade pudesse ser medida e ser afirmada como tal. A construção d imaginário da “civilização” exigia
necessariamente a produção de sua contraparte: o imaginário da “barbárie”. Trata-se, em ambos os casos, de algo mais que
representações mentais. São imaginários que possuem uma materialidade concreta, no sentido de que se encontrar inseridos
em sistemas abstratos de caráter disciplinar, como na escola ou a partir da introjeção da lei, ou, ainda, o Estado, as prisões, os
hospitais e as ciências sociais. É neste sentido em que falamos do projeto da modernidade como o exercício de uma
“violência epistêmica”.
Conciliando, aqui, a análise genealógica, inspirada arqueogenalogia de Michel Foucault e fundindo esta perspectiva
com a da macroestruturas de longa duração, de inspiração em Immanuel Wallerstein e Enrique Dussel, de tal maneira que
permita visualizar o problema da “invenção do outro” desde uma perspectiva geopolítica, para podermos ampliar nosso leque
de preocupações.
Se estivermos certos, uma boa contribuição para pensar as ciências sociais é assinalar que o surgimento dos Estados
nacionais na Europa e América durante os séculos XVII ao XIX, não é um processo autônomo, mas uma contrapartida
estrutural: a consolidação do colonialismo europeu para além mar. A constante negação deste vínculo entre modernidade e
colonialismo por parte das ciências sociais tem sido um das maracás mais claras de sua limitação conceitual. Amalgamadas
desde suas origens por um imaginário eurocêntrico, as ciências sociais projetaram a idéia de uma Europa ascética e
autogerada, formada historicamente sem contato algum com outras culturas. A racionalização – no sentido weberiano – havia
sido o resultado de um desdobramento de qualidades inerentes às sociedades ocidentais – a passagem da tradição à
modernidade -, e não da interação colonial da Europa com a América, Ásia e África a partir de 1492. Partindo deste ponto de
vista, a experiência do colonialismo resultará completamente irrelevante para entender o fenômeno da modernidade e o
surgimento das ciências sociais. Significando que, para os africanos, asiáticos e latino-americanos o colonialismo não
significou primariamente destruição e exploração mas o começo do tortuoso caminho até o desenvolvimento e a
modernização. Este é o imaginário colonial que tem sido reproduzido tradicionalmente pelas ciências sociais e a filosofia em
toda a América Latina.
As teorias pós-coloniais têm mostrado, contudo, que qualquer redescrição da modernidade que não traga em conta
o impacto da experiência colonial na formação das relações propriamente modernas de poder resulta não só incompleta como
também ideológica. Pois foi precisamente no seio de uma rede de saber/poder marcada pela colonialidade, que se gerou esse
tipo de poder disciplinar que, segundo Foucault, caracteriza as sociedades e as instituições modernas. A colonialidade não
deve confundir-se com o colonialismo. Embora que este faça referência a uma época histórica, a colonialidade faz referência
a uma tecnologia de poder que persiste até hoje, fundada no “conhecimento do outro”. A colonialidade não é o “passado” da
modernidade, mas sua “face epistemológica”. É a isto que faz referência a categoria de “colonialidade do poder”. A
exploração colonial é legitimada por um imaginário que estabelece diferenças incomensuráveis entre o colonizador e o
colonizado. As noções de “raça” e de “cultura” operam aqui como um dispositivo taxonômico que gera identidades opostas.
O colonizado aparece assim como o “outro da razão”, o qual justifica o exercício de um poder disciplinar por parte do
colonizador. A maldade, a barbárie e a incontinência são marcas “identitárias” do colonizado, embora que a bondade, a
civilização e a racionalidade são próprias do colonizador. Ambas identidades se encontram em ralação de exterioridade e se
excluem mutuamente. A comunicação entre elas não pode dar-se no âmbito da cultura – pois seus códigos não são
intercambiáveis – mas no âmbito do controle ditado pelo poder colonial. Uma política “justa” será aquela que, mediante a
implementação de mecanismo jurídicos e disciplinares, consiga “normalizar” o outro mediante sua completa ocidentalização.
O conceito da “colonialidade” do poder amplia e corrige o conceito foucaultiano de ‘poder disciplinar”, ao mostrar
que os dispositivos panópticos erigidos pelo Estado moderno se inscrevem numa estrutura de saber/poder mais ampla, de
caráter mundial, configurada pela relação colonial entre centros e periferias a raiz da expansão européia. Pois, a criação desta
estrutura se produz no período da ‘primeira modernidade”, que corresponde à hegemonia da Espanha sobre o circuito do
Atlântico. O conceito de poder disciplinar que trabalha Focault se refere à “segunda modernidade”, a da biopolítica estatal
dos séculos XVIII e XIX, e pode ser visto como uma “modalidade” da colonialidade do poder.
Portanto, depreendemos que a modernidade é um “projeto de governo” que emerge no século XVI, cujos
dispositivos de saber/poder ficam ancorados numa dupla colonialidade: a exercida por dentro dos estados nacionais –
Europeus e americanos – em seu intento por criar identidades homogêneas mediante políticas de subjetivação, e a exercida de
fora pelas potências hegemônicas do sistema-mundo/colonial, com seu intento de garantir o fluxo de matérias primas desde a
periferia até o centro. Ambos processos formam parte de uma só dinâmica estrutural.
Assim, afirmamos que as ciências sociais se constituem neste espaço de poder moderno/colonial e nos saberes
ideológicos gerados por este espaço. Deste ponto de vista, as ciências sociais não efetuaram jamais uma “ruptura
epistemológica” – no sentido althusseriano – frente à ideologia, senão que o imaginário colonial impregnou desde suas
origens todo o sistema conceitual. Assim, a maioria dos teóricos sociais do século XVII e XVIII coincidiam em que a espécie
humana sai pouco a pouco da ignorância e vai atravessando diferentes “períodos” de desenvolvimento até, finalmente, obter a
“maior idade” à que tem chagado as sociedades modernas européias. O referente empírico utilizado por este modelo
heurístico para definir qual é o primeiro período, o mais baixo na escala do desenvolvimento humano, é o das sociedades

388
indígenas americanas tal como estas eram descritas pelos viajantes, cronistas e navegantes europeus. A característica deste
primeiro período é a selvageria, a barbárie, a ausência completa de arte, ciência e escritura. Assim, o último período do
progresso humano, o alcançado já pelas sociedades européias, é construído como “o outro” absoluto do primeiro e de
encontro a este. No primeiro mundo, reina a civilidade, o Estado de direito, o cultivo da ciência e das artes. O homem chegou
ali a um estado de “esclarecimento” em que, como dizia Kant, pode autolegislar-se e fazer uso autônomo de sua razão.
Europa marcou o itinerário civilizatório pelo qual deveriam transitar todas as nações do mundo.
O âmbito conceitual com o qual nasce as ciências sociais nos século XVII e XVIII, foi sustentado por um
imaginário colonial de caráter ideológico. Conceitos binários tais como barbárie e civilização, tradição e modernidade,
comunidade e sociedade, mito e ciência, infância e maturidade, solidariedade orgânica e solidariedade mecânica, pobreza e
desenvolvimento, entre muitos outros, têm permeado os modelos analíticos das ciências sociais. O imaginário do progresso
segundo o qual, todas a sociedades evoluíram no tempo segundo leis universais inerentes à natureza ou ao espírito humano,
aparecem como um produto ideológico construído desde o dispositivo de poder moderno/colonial. As ciências sociais
funcionam estruturalmente como um “aparato ideológico” que, legitimava a exclusão e o disciplinamento das pessoas que
não ajustavam aos perfis de subjetividade que necessitava o Estado para implementar suas políticas de modernização;
contudo, as ciências sociais legitimavam a divisão internacional do trabalho e a desigualdade dos termos de intercâmbio e
comércio entre o centro e a periferia, isto é, os grandes benefícios sociais e econômicos que as potências européias estavam
obtendo do domínio sobre suas colônias. A colonialidade do poder e a colonialidade do saber se encontravam fundidas em
uma mesma matriz.

Chegamos ao momento de perguntar pelas transformações sofridas pelo capitalismo uma vez consolidado o final do
projeto da modernidade e pelas consequências que tais transformações podem ter para as ciências sociais e para a teoria
crítica da sociedade.
Conceitualizado a modernidade como uma série de práticas orientadas até o controle racional da vida humana, entre
os quais aparecem a institucionalização das ciências sociais, a organização capitalista da economia, a expansão colonial da
Europa e a configuração jurídico-territorial dos estados nacionais. Podemos ver também a modernidade é um “projeto”
porque esse controle racional sobre a vida humana é exercido, em todas as dimensões dessa vida, por uma instância central
que é o Estado-nação. Por conseguinte, perguntamos: a que nos referimos quando falamos da seguinte forma: a modernidade
deixa de ser operativa como “projeto” na medida em que o social começa a ser configurado por instâncias que escapam ao
controle do Estado nacional. O projeto da modernidade chega a seu “fim” quando o Estado nacional perde a capacidade de
organizar a vida social e material das pessoas. Neste caso, já podemos falar de globalização.
O projeto da modernidade teve sempre uma tendência para a mundialização da ação humana, cremos que o que
hoje se chama de “globalização” é um fenômeno sui generis, pois carrega uma mudança qualitativa dos dispositivos mundiais
de poder.
A modernidade retira as relações sociais de seus contextos tradicionais e as coloca em lugares pós-tradicionais de
ação coordenados pelo Estado. A globalização desloca as relações sociais de seus contextos nacionais e as coloca no âmbito
pós-moderno de ação que já não são coordenados por nenhuma instância em particular.
Dessa maneira, a globalização não é um “projeto”, porque a governamentalidade não necessita de um “ponto
arquimedianao”, isto é, de uma instância central que regule os mecanismo de controle social. Existe, portanto, uma
governamentalidade sem governo, indicando o caráter virtual e nebuloso. Contudo, eficaz, o que mostra a realização do poder
em tempos de globalização. A sujeição ao sistema-mundo não se assegura mediante o controle sobre o tempo e sobre o corpo
exercido por instituições como a fábrica ou a escola, mas pela produção de bens simbólicos e pela sedução irresistível que
estes exercem sobre o imaginário do consumidor. O poder libidinal do pós-modernismo pretende modelar a totalidade da
psicologia dos indivíduos, de tal maneira que cada qual possa construir reflexivamente sua própria subjetividade sem
necessidade de opor-se ao sistema. Pelo contrário, são os recursos oferecidos pelo sistema mesmo os que permitem a
construção diferencial do “si mesmo”. Para qualquer estilo de vida que qualquer um escolha, para qualquer projeto de
autoinvenção, para qualquer exercício de escrever a própria biografia, sempre haverá uma oferta no mercado e um “expert”
que garanta sua confiabilidade. Antes de reprimir as diferenças, como se fazia com o poder disciplinar da modernidade, o
poder libidinal do pós-modernismo as estimula e as produz.
Portanto, no marco do projeto moderno, as ciências sociais atuaram basicamente como mecanismos produtores de
alteridades. Isto aconteceu porque acumulação de capital tinha como requisito a geração de um perfil de “sujeito” que se
adaptara facilmente à exigências da produção: homem branco, casado, heterossexual, disciplinado, trabalhador, dono de si
mesmo. Tal como tem mostrado Foucault, as ciências humanas contribuíram para criar este perfil na medida em que
formaram seu objeto de conhecimento a partir de práticas institucionais de reclusão. Prisões, hospitais, manicômios, escolas,
fábricas e sociedades coloniais foram os laboratórios onde as ciências sociais obtiveram a imagem do “homem” que devia
impulsionar e sustentar os processos de acumulação de capital. Esta imagem do “homem racional”, se obteve mediante o
estudo do “outro da razão”: o louco, o índio, o negro, o desadaptado, o preso, o homossexual, o indigente, o anormal. A
construção do perfil de subjetividade que requeria o projeto moderno exigia então a supressão de todas estas diferenças.
Contudo, se estamos certos, no momento em que a acumulação de capital já não demanda a supressão, mas a
produção de diferenças, também deve mudar o vínculo estrutural entre as ciências sociais e os novos dispositivos de poder.
As ciências sociais e as humanidades se vêm obrigadas a realizar uma mudança de paradigma que lhes permita ajustar-se às

389
exigências do capital global. Aparece a fragilização das metanarrativas da humanização da Humanidade e, ao mesmo tempo,
aparece o nascimento de outro relato legitimador: a coexistência de diferentes “jogos de linguagens”. Cada jogo de
linguagem define suas próprias regras, que não necessitam ser legitimadas por um tribunal da razão.
Quando se afirma que não existem regras definidas de antemão, isto pode aparecer como um obscurecimento do
sistema-mundo eu produz as diferenças que sustentam as regras definidas para todos os jogadores do planeta. A morte das
metanarrativas de legitimação do sistema-mundo não equivale à morte do sistema-mundo. O que mudou foram as relações de
poder do sistema-mundo, o qual gera novos relatos de legitimação. Apenas a estratégia de legitimação é diferente: não se
trata de metanarrativas que mostrem o sistema, projetando-o ideologicamente num macrosujeito epistemológico, histórico e
moral, mas de microrrelatos que deixam por fora da representação, ou seja, que o obscurecem.
Nos estudos culturais, um dos paradigmas mais inovadores das ciências sociais, têm contribuído para flexibilizar as
rígidas fronteiras disciplinares que fizeram de nossos departamentos um aglomerado de guetos epistemológicos. A vocação
transdisciplinar dos estudos culturais tem sido altamente saudável para as instituições acadêmicas que, no âmbito da América
Latina, tinham se acostumado a “vigiar e administrar” o cânon de cada uma das disciplinas. No entanto, o problema não está
tanto na inscrição dos estudos culturais no âmbito universitário, e nem sequer no tipo de perguntas teóricas que abrem ou nas
metodologias que utilizam, como no uso que fazem destas metodologias e nas respostas que dão a essas perguntas. Por
exemplo, a planetarização da indústria cultural tem posto em interdição a separação entre erudita cultura e cultura popular, à
que, todavia, se apegavam pensadores de tradição “crítica” domo Horkheimer e Adorno. Mas, neste intercâmbio
massmediático entre o erudito e o popular, nesta negociação planetária de bens simbólicos, os estudos culturais pareceram
ver nada mais que uma explosão liberadora das diferenças. A cultura urbana de massas e as novas formas de percepção social
geradas pelas tecnologias midiáticas são vistas como espaços de emancipação democrática, e inclusive como um lócus de
hibridação e resistência frente aos imperativos do mercado. Ante este diagnostico, surge a suspeita de se os estudos culturais
não haviam hipotecado seu potencial crítico à mercantilização fetichizante dos bens simbólicos.
Consideramos que o desafio das ciências sociais consiste em aprender a nomear a totalidade sem cair no
essencialismo e no universalismo dos metarrelatos. A possível tarefa de uma teoria crítica da sociedade é tornar visíveis os
novos mecanismos de produção colonial das diferenças em tempos de globalização. Mas o lugar latino-americano, o desafio
maior radica em uma “descolonização” das ciências sociais e da filosofia. E, para nós, este não é um programa novo. Pois
entendo que já não é possível conceitualizar as novas configurações do poder com a ajuda exclusiva do referencial teórico da
modernidade. Dessa perspectiva, as novas agendas dos pesquisadores poderiam contribuir para revitalizar a tradição da teoria
crítica em nosso meio, diminuindo assim as constantes violências epistemológicas, psicológicas e físicas que sofremos nos
últimos duzentos anos.

Referências
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DELEUZE, Gilles. (1977). Dialogues, Paris: Flammarion.
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GIL, José. (1980).As metamorfoses do corpo, Lisboa: A Regra do Jogo.
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Andrade. São Paulo: UNESP.
SANTOS, Boaventura de Sousa. (2002). A globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez.
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Unthinking Social Science. The Limits of Nineteenth-Century Paradigms. Londres: Polity Press.

Hábitos Alimentares da Terceira Idade: um estudo comparativo entre as Classes


AB x CD em São Paulo - Brasil.
Nadia Wacila Hanania Vianna
Universidade Ibirapuera
[email protected]

Jorgina Francisca Severino dos Santos


Universidade Paulista
[email protected]

390
Maria de Lourdes Bacha Bacha
Universidade Presbiteriana Mackenzie
[email protected]

Vivian Iara Strehlau


Escola Superior de Propaganda e Marketing
[email protected]

Resumo: O presente artigo busca identificar e comparar hábitos alimentares de idosos pertencentes às classes AB e CD, residentes em São
Paulo.
Depois de revisão da literatura, foi conduzida uma pesquisa descritiva do tipo survey, em 2006 e 2007, junto a duas amostras não-
probabilísticas por conveniência, formadas por indivíduos na terceira idade, residentes na cidade de São Paulo (Brasil); uma amostra
constituída por 700 pessoas pertencentes às classes AB e outra, por 700 pessoas pertencentes às classes CD, de acordo com o Critério Brasil.
Para a coleta dos dados utilizou-se questionário estruturado, constituído por perguntas fechadas. Os dados obtidos foram analisados com base
em técnicas da estatística descritiva e inferência estatística (testes para independência e associação) e cluster.
Alguns resultados encontrados surpreenderam: revelaram expressivo percentual (47%) de pessoas das classes mais abastadas (AB) com
padrão alimentar, em termos calóricos, abaixo daquele preconizado pela Organização Mundial de Saúde para o segmento da terceira idade e
a totalidade dos entrevistados de AB consome alimentos que ajudam a melhorar a aparência. Por outro lado, mais da metade dos
entrevistados das classes CD desconhece a quantidade de calorias que consome e apenas 88% preocupa-se com o binômio alimentação-
aparência. Através de análise de cluster os entrevistados foram agrupados em: glutões, saudáveis, gastrônomos e vaidosos É possível admitir,
embora com base em pesquisa não-probabilística, que os resultados sinalizam para a existência de campo fértil, voltado para o
desenvolvimento de programas de saúde alimentar direcionados aos idosos de todas essas classes.
Palavras-chave: terceira idade, hábitos de consumo de alimentos; comportamento do consumidor.

1. Introdução
O envelhecimento mundial vem se tornando um desafio para a maioria das nações, desenvolvidas ou não. Segundo
estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge), o Brasil chegou em 2008 com 190 milhões de habitantes e
uma taxa de crescimento populacional em torno de 1,2% ao ano. Vale ressaltar que a taxa de fecundidade da população
brasileira vem recuando, se o atual ritmo de natalidade no Brasil for mantido, dentro de 20 anos a população vai parar de
crescer. A última medição da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), relativa a 2007-2008, indicou que a taxa
de fecundidade brasileira voltou a cair no País em 2007 atingindo 1,95 filho por mulher, em média. Segundo projeção do
Ibge (2008), se a tendência se mantiver, em 2030 a taxa será de 1,59 filho por mulher em idade fértil. O Ibge explica que
alguns grupos populacionais no País já experimentam taxas negativas de crescimento, como o das pessoas com menos de 3
anos de idade. Entre 2030 e 2035, os únicos grupos populacionais que deverão apresentar crescimento positivo, de acordo
com o estudo, são formados por pessoas com idade superior a 45 anos.
Previsões indicam que para 2030, a expectativa de vida do brasileiro - atualmente por volta de 73 anos - deve
chegar a 78,3, isto pode significar que a população idosa tende a ocupar um espaço cada vez maior na demografia brasileira.
Dessa forma, fatores como aumento da expectativa de vida e melhores condições de sobrevivência têm contribuído
para maior longevidade dos brasileiros, além disso, nos últimos 10 anos houve melhora no nível de instrução e na renda dos
idosos. Ainda de acordo com o levantamento do IBGE (2008), sete em cada dez brasileiros com 60 anos ou mais recebem
benefício da previdência social, como aposentadorias e pensões e entre os idosos com pelo menos 65 anos, a proporção sobe
para oito em cada dez. Quase seis milhões de idosos com 60 anos ou mais ainda trabalham, representando 30,9% do total e na
faixa com 70 anos o mais, o percentual é ainda mais significativo (18,4%).
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), elaborados com base na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) 2007, indicam que a população idosa já representa mais de 10% do total. O estudo também
mostra que, além do envelhecimento da população total, a proporção de pessoas com idade superior a 80 anos aumentou. O
percentual de brasileiros nesse grupo passou de 1%, em 1992, para 1,4%, no ano passado, o que representa um universo de
1,6 milhões de pessoas, ou seja, como consequência haverá maior demanda por cuidados de longa duração e por pagamento
de benefícios previdenciários e assistenciais (Ipea, 2008; Ibge, 2008).
A questão referente a hábitos alimentares tem ganhado espaço na mídia. De um lado, estudos sobre a população
brasileira indicaram que entre indivíduos maiores de 60 anos de idade houve aumento da prevalência de obesidade.
Atualmente, a proporção de brasileiros acima do peso considerado ideal (40%) é dez vezes maior que a parcela da população
que sofre de desnutrição (4%) (Agencia Brasil, 2006). De outro lado, foi feita em 2008 a divulgação de pesquisa sobre
insegurança alimentar na baixa renda. Verificou-se que, entre entrevistados inscritos no Programa Bolsa-Família, 87%
empregam o dinheiro na alimentação e 83% revelaram insegurança alimentar, isto é, falta a realização do direito de todas as
pessoas ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, que não se concretiza entre a
baixa renda (Arruda, 2008).
No entanto, segundo Relvas (2006) a alimentação da terceira idade ainda constitui área que recebe pouca atenção
dos pesquisadores. Apesar de haver empresas dispostas a explorar este novo segmento, o mercado maduro ainda é um
fenômeno novo no qual pouco se conhece sobre o comportamento, desejos e necessidades de seus componentes.

391
A revisão da literatura revelou lacuna no que se refere aos estudos comparativos entre hábitos alimentares dos
indivíduos da terceira idade (ou seja, com 60 anos ou mais, de acordo com Estatuto do Idoso, 2003), pertencentes às
diferentes classes sócio-econômicas, no caso deste estudo, entre as classes AB e CD. Apesar de Moschis & Curaci &
Bellenger (1994) já terem argumentado que os idosos não são iguais, acredita-se este artigo poderá contribuir
substancialmente para o estabelecimento de políticas públicas diferenciadas de educação e orientar a oferta de pelo setor
alimentício, além de facilitar o diálogo com o público idoso.

2. Alimentação: muito além da sobrevivência


O tema terceira idade vem sendo trabalhado por estudiosos em várias óticas e perspectivas. Gomes (2008)
classificou os trabalhos acadêmicos em onze grandes temas: saúde, patologias, cuidados (qualidade de vida, longevidade,
processos patológicos); sociedade e cultura (intergeracionalidade, relações familiares, acessibilidade e alimentação); políticas
sociais (governos e entidades em ações pelo público idoso); educação e socialização (atualização do idoso e projeto de vida);
subjetividade (criatividade); moradia (forma e políticas); sexualidade; comunicação (meios ou mídias); trabalho e
aposentadoria; corpo e atividades físicas; e morte e finitude. Assim, pode-se incluir alimentação entre temas de interesse de
pesquisadores.
No entanto, o envelhecimento pode vir acompanhado de mudanças na composição corporal, como o aumento
gradual do peso durante a meia-idade, seguido por estabilização ou até declínio em idades mais avançadas. Alimentação da
terceira idade exige atenção porque as funções normais são alteradas influenciando diretamente os hábitos alimentares
(Relvas, 2006).
Os hábitos alimentares podem ser definidos ou como: as formas como os indivíduos ou grupos selecionam,
consomem e utilizam os alimentos disponíveis, incluindo os sistemas de produção, armazenamento, elaboração, distribuição
e consumo de alimentos ou como os meios pelos quais os indivíduos ou grupos de indivíduos, ao responder a pressões sociais
e culturais, selecionam, consomem e utilizam proporções do conjunto de alimentos disponíveis (Borges & Oliveira Lima
Filho, 2005).
Souza & Hardt (2002) realizaram levantamento sobre a evolução dos hábitos alimentares dos brasileiros concluindo
que há ocorrência de transição nutricional no Brasil, ou seja, há mudanças nos padrões nutricionais resultantes de
modificações na estrutura da dieta dos indivíduos, que se correlacionam com mudanças econômicas, sociais, demográficas e
relacionadas à saúde. Essas mudanças podem ser relacionadas às variações no preço relativo de gêneros alimentares (levando
a substituição de carnes, feijão e outros gêneros industrializados) e pelo aumento do interesse em relação à nutrição e saúde.
Outras características observadas no comportamento do consumidor brasileiro, especialmente nos grandes centros urbanos,
fora: aumento da alimentação fora de casa e preferência pela compra de gêneros alimentícios em supermercados, fatores que
favorecem a diversificação de gêneros e o consumo de alimentos industrializados. Essas tendências devem ser relacionadas à
mudança no estilo de vida da população, que busca diminuir o tempo gasto em compras e no preparo e/ou consumo de
alimentos e também relacionado ao papel do abastecimento de certos produtos em detrimento de gêneros alimentícios. A
diferença que existe entre diferentes classes sociais da população em relação ao acesso a gêneros alimentícios, tanto em
termo qualitativos como quantitativos, são enfatizadas, assim como o aparecimento de um novo desequilíbrio nutricional ao
lado da continua prevalência das formas tradicionais de desnutrição.
Borges & Oliveira Lima Filho (2005) realizaram revisão bibliográfica sobre estudos relacionados com
comportamento alimentar, encontrando trabalhos referentes a uso, preferência, gosto, rotinas alimentares formadas na
infância, fatores que influenciam e determinam hábitos alimentares, assim como o perfil de pessoas que fazem dieta. Os
referidos autores consideram que alterações relacionadas com estilo de vida da população podem ser refletidas em seus
hábitos alimentares, como por exemplo, o aumento do consumo de alimentos fora de casa e semi-prontos.
Em 2000, a ONG Watchworld publicou um relatório denominado “Subnutridos e supernutridos: a epidemia
mundial da má nutrição”, segundo o qual, pela primeira vez na história da humanidade o número de pessoas mal alimentadas
é igual ao número de obesos. Segundo Porto et al (2002), sabe-se que a obesidade nos indivíduos de qualquer população é
resultado de um longo período de balanço energético positivo, estudos têm apontado interação de fatores genéticos e
ambientais, entre eles fatores socioculturais, nutricionais, tabagismo, etilismo e atividade física.

3. Hábitos alimentares na sociedade brasileira


A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2002-2003 revelou um comportamento alimentar diferenciado –
quanto aos nutrientes - entre as famílias brasileiras. Aquelas com maiores rendas tendem a consumir um maior teor de
gorduras e menor de carboidratos. No caso dos carboidratos, o percentual recomendado pela OMS (55%) não é atingido pelas
famílias com rendimentos superiores a cinco salários-mínimos, com o agravante de que cerca de um quinto (ou 11%)
correspondem a açúcar. No caso das gorduras, observou-se que o limite máximo de 30% das calorias totais é ultrapassado nas
famílias com renda acima de dois salários-mínimos e as gorduras saturadas tendem a aumentar ainda mais intensamente com
o rendimento do que as demais gorduras. O limite máximo de 10% para a proporção de calorias provenientes de açúcar é
ultrapassado em todas as classes de rendimentos, notando-se que a situação mais crítica corresponde às classes intermediárias
de rendimentos, onde a participação deste componente na dieta alcança quase 15%. Embora o teor de proteínas na dieta

392
aumente conforme os rendimentos, a proporção de calorias protéicas foi adequada em todas as classes de rendimento.
Destaca-se, ainda, que a fração de proteínas de origem animal (de maior valor biológico) consumidas, aumenta com o
rendimento.
Em 1989, foi realizada Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN), com o objetivo central de avaliar o
estado nutricional da população brasileira mediante a coleta de dados antropométricos. Essa pesquisa, de âmbito nacional
revelou que a situação nutricional dos adultos e idosos sofreu grande alteração nos últimos 15 anos, e que a população adulta
e idosa apresentava alta predominância de extremos: baixo peso e obesidade.
Campos & Monteiro & Ornelas (2000) revelam que, no início da década de 90, a frequência do baixo peso atingia
21% dos homens e 17% das mulheres e os idosos de baixa renda eram os mais atingidos, visto que, à medida que aumentava
a renda per capita, reduzia o percentual de baixo peso. No entanto, estudos posteriores, em regiões metropolitanas no Brasil,
têm demonstrado um aumento do peso na população idosa, em ambos os sexos. Esses resultados seriam decorrentes das
condições de vida em que os idosos se encontram (vida em família, solitária, ou em residências de Terceira Idade), agravadas
pelas condições socioeconômicas, pelas alterações fisiológicas inerentes à idade e pela progressiva incapacidade para realizar
sozinhas suas atividades cotidianas. Nesse contexto, os efeitos da alimentação inadequada, tanto por excesso como por déficit
de nutrientes são expressivos, comprometendo em maior ou menor grau a saúde do idoso.
Atualmente, 51% dos brasileiros têm sobrepeso, 14% são obesos e 3% são obesos mórbidos, porém, a obesidade
não atinge de modo diferenciado classes sociais ou nível de escolaridade. Aproximadamente 67% dos entrevistados
afirmaram não realizar refeições formais fora de casa, sendo que, em média, suas refeições duram em torno de 20 minutos, e
43% as fazem assistindo televisão. Quanto ao tipo de cozimento, cozidos com óleo representam 81%; frituras, 50%;
grelhados, 18%. Cerca de 60% dos entrevistados com sobrepeso ou obesidade alteram suas refeições para alimentos mais
calóricos e em maior quantidade nos finais de semana (Abeso, 2008).

4. Alimentação na terceira idade


Sally (1995) efetuou revisão bibliográfica com base em estudos acadêmicos, realizados a partir da década de 90,
sobre alimentos e o comportamento da terceira idade. Dentre as categorias de estudos encontrados, citem-se:
 Modelos de escolha de comida: escolha consciente ou inconsciente, estudo de fatores incluindo os pessoais, sócio-
econômicos, educacionais, biológicos, psicológicos, culturais; escolha individual como função de aspectos inter-
relacionados de personalidade e saúde mental.
 Expectativas de desempenho dos alimentos: para alguns autores, a intenção de selecionar alguns alimentos não
seria tão importante quanto a sua expectativa de desempenho do alimento, podendo decrescer à medida que
aumenta a idade.
 Personalidade: vários estudos sugerem que os traços de personalidade têm impacto na escolha de alimentos,
independentemente da idade.
 Auto-estima e autoconceito: enquanto auto-estima parece não apresentar correlação significante, os estudos
mostraram que autoconceito influencia a escolha quanto às melhores dietas, alimentos energéticos e de baixa
nutrição.
 Sintomas de depressão podem influenciar a escolha da comida e a qualidade da dieta em populações idosas,
principalmente entre viúvas.
 Significados atribuídos à comida: estudos mostram que as escolhas podem ser afetadas pelo significado atribuído
ao alimento;
 Influências pessoais: o hábito de comer sozinho ou acompanhado, estado civil ou composição familiar; profissão ou
ocupação, também podem ter influência nas escolhas.
 Fatores sócio-econômicos: tipo de sociedade, classe social, recursos materiais, status.
 Quantidade de refeições: quanto maior a idade maior a importância dada à alimentação no quesito saúde.
 Fatores educacionais: mudanças nas crenças de consumidores mais idosos; relação entre escolaridade e qualidade
da dieta; educação e status social e conhecimento dos nutrientes.
 Fatores Biológicos, psicológicos ou fisiológicos (sexo; idade e as influências biológicas do envelhecimento no
olfato, fome e sede, mobilidade, deficiência física, baixa atividade física; problemas dentários e de mastigação,
dentre outros).
A seguir são resumidos alguns resultados de trabalhos acadêmicos referentes à alimentação e nutrição na terceira
idade.
Silva (2006) estudou os aspectos simbólicos da comida em idosos. Reis (2006) realizou pesquisa com idosos
obesos, verificando que em face de dificuldades de mastigação, há necessidade de alimentos menos consistentes e mais
nutritivos. Felix (2006) considera que a maioria dos idosos apresenta risco nutricional sob o aspecto antropométrico.
Nascimento (2005) elaborou estudo sobre vitamina A em idosos, que são particularmente suscetíveis à desnutrição, cujas
principais causas são: ingestão alimentar diminuída, necessidades alteradas de nutrientes, má absorção, flora bacteriana
anormal, droga, alcoolismo, catabolismo e menor conversão de vitaminas em formas ativas. Silva (2005) analisou condições
de dinâmica alimentar de idosos internados, concluindo ser essencial a orientação para que seja feita eficiente higienização

393
oral e incentivados os cuidados com os dentes. Os estágios de deglutição sofrem modificações durante o envelhecimento
podendo interferir diretamente no estado físico e emocional do indivíduo, cujos efeitos podem ser de três tipos: efeitos
primários, decorrentes do próprio envelhecimento; efeitos secundários oriundos das enfermidades ou medicação; e efeitos
terciários, que envolvem alterações relacionadas a fatores ambientais, sociais e psicológicos.
Segundo Costa & Silva (2005), tornam-se relevantes analisar de que forma a condição bucal pode interferir na
escolha dos alimentos, bem como no hábito alimentar do individuo e, trazer consequências ao seu estado nutricional e à sua
saúde geral. A saúde e qualidade de vida podem ser comprometidas por problemas dentários e muitas queixas dos idosos
como fadiga, indigestão ou doenças crônicas podem ser relacionadas a diferenças nutricionais. Fatores como classe social,
renda, nível educacional também influenciam a maneira como os idosos têm acesso aos alimentos (Costa & Silva, 2005).
Na opinião de Campos & Monteiro & Ornelas (2000), os fatores que afetam o consumo de nutrientes nos idosos
são: socioeconômicos; alterações fisiológicas, como, por exemplo, aquelas que comprometem o funcionamento do aparelho
digestivo; alterações no pâncreas, na estrutura e na função do fígado e vias biliares; diminuição da sensibilidade à sede e
efeitos secundários dos fármacos.
Vilaça (2006) explica que a desnutrição se constitui em um dos distúrbios mais comuns em idosos e está associada
ao aumento da mortalidade, suscetibilidade às infecções e redução na qualidade de vida. Ruga (2003) investigou a
alimentação de idosas, revelando hábitos alimentares inapropriados para a idade; a pesquisa constatou que 66,5% das
entrevistadas não se alimentam adequadamente e apenas 6% consomem carne diariamente; tais percentuais são considerados
baixos para um universo de pessoas de classe média e com bom nível de escolaridade. Essa pesquisa também revelou um
baixo consumo de energéticos, em média 900 calorias, sendo que o recomendado para esta faixa etária é de 1.500 calorias.
Para Ruga (2003), a falta de motivação para preparar a alimentação e também em relação ao aspecto nutricional,
causada por isolamento, depressão e perdas poderiam explicar o baixo índice de consumo de alimentos essenciais para a
terceira idade seria o fator social (Ruga, 2003).
Tchakmakian & Frangella (2003) argumentam que especialmente quando se trata de idosos, é necessário partir do
pressuposto de que falar em alimentação (e/ou transformá-la) envolve questões socioeconômico-culturais e afetivas que
precisam ser identificadas adequadamente pelos nutricionistas para realizarem seu papel de agente de mudanças das práticas
alimentares. Ainda segundo as autoras acima, a população grisalha não é homogênea, o que não permite afirmações gerais.
Perez & Bacha & Vianna & Souza (2006) analisaram hábitos alimentares da terceira idade das Classes AB em São
Paulo, concluindo através de análise de correspondência que existe associação entre as variáveis auto-classificação de peso
e auto-avaliação de saúde. Os respondentes que se auto avaliaram acima do peso médio estão mais associados a um consumo
de calorias abaixo de 900 calorias e a uma saúde entre as categorias regular e bom, assim considerando que a a população
brasileira vem envelhecendo de forma rápida, então seriam necessários investimentos na conscientização e educação da
população quanto à adoção de dietas mais saudáveis.
Morgan & Levy (2002), estudaram grupos psicográficos referentes à alimentação e nutrição dos baby boomers,
dividindo-os em:
 Preocupados com nutrição: este segmento está cônscio de que a alimentação e saúde estão relacionadas. Estão
convencidos de que alimentação influencia o modo como a pessoa se sente. Monitoram o que comem, evitam
refeições em restaurante, e chefs. O preocupado com nutrição lê sobre alimentos, procura produtos novos com
baixas calorias, substitui adoçantes artificiais e presta atenção às propagandas.
 Saudáveis: este grupo está interessado em convenience food, novas idéias sobre embalagens e restaurantes. A
maturidade significa cozinhar poucas refeições. Para estes, as refeições efetuadas no restaurante oferecem, além de
um valor nutricional bom, a possibilidade de socialização com amigos. Embora preocupados com a nutrição e o
impacto do alimento em sua saúde, estes têm foco na conveniência, sendo o microondas sua ferramenta principal
na cozinha.
 Adeptos da cuponagem: alimentam-se de acordo com o padrão adotado desde sempre, e não têm interesse por
nutrição ou ingredientes saudáveis. Provavelmente não prestam atenção naquilo que comem, sendo mais
importante o dinheiro economizado com descontos e cupons.
Najas et al (1994) estudaram idosos de ambos os sexos, estratificados por nível socioeconômico em três regiões do
Município de São Paulo, mostrando que os idosos analisados apresentam o mesmo padrão alimentar de outros grupos
populacionais no tocante aos alimentos energéticos, porém, diferem quanto aos protéicos e reguladores. Quanto ao grupo de
alimentos energéticos, mais especificamente, os resultados indicaram que mais de 90% dos indivíduos das três regiões
ingerem fécula (arroz, pão e macarrão), porém, apenas o arroz e o pão são utilizados diariamente. No que se refere ao grupo
de alimentos protéicos, 70% ou mais dos idosos consomem feijão, carne de boi, aves, leite e ovos, entretanto, no consumo
diário, existe uma diferenciação entre as regiões analisadas. Dos reguladores, mais de 85% dos indivíduos têm por hábito
consumir frutas, verduras folhosas e legumes, mas ao se avaliar o consumo diário, verifica-se que a prática é maior na região
de melhor nível socioeconômico.
Na revisão de artigos internacionais, Auty (1992) revela que, embora declarem que o tipo de comida e sua
qualidade sejam determinantes na escolha de restaurantes, idosos com renda mais baixa dão importância para imagem e
atmosfera de restaurantes na Inglaterra. Nesse contexto Knutson & Elsworth & Beck (2006) descobriram que os descontos
não são os principais fatores na decisão de compra/consumo de comida. Herne (1995) fez uma revisão sobre escolhas

394
alimentares e nutricionais entre idosos, enfatizando que desde o início da década de 1990, educação alimentar e promoção de
saúde têm sido fatores influenciadores da qualidade de vida na velhice, sendo importante conhecer como os idosos fazem
suas escolhas nutricionais e alimentares. As conclusões de Herne indicaram que grau de instrução, renda, classe e acesso à
boa saúde são fatores que impactam a qualidade de vida na velhice.
Hare & Kirk & Lang (1999, 2001) identificaram expectativas de idosos no consumo de alimentos, verificando que
há vários fatores negativos que influenciam o comportamento de compra deste segmento, e há mais nessas escolhas do que
uma simples lista de compra, além do fator social extremamente importante. Os fatores críticos estão relacionados com
esforços de merchandising (aspectos dos produtos), práticas varejistas (preços e mão-de-obra) e aspectos relativos à
comunidade que afetam o transporte.
Moschis & Curasi & Bellenger (2004) argumentam que o consumidor idoso gasta mais dinheiro em média com
alimentos do que os mais novos, identificando quatro segmentos que melhor descrevem o comportamento de compra do
idoso:
 Indivíduos com boa saúde, mas retraídos socialmente, estimados em 20 milhões de americanos.
 Indivíduos com saúde relativamente fraca, determinados permanecem ativos socialmente, número estimado em 18
milhões.
 Inativos, passam a maior parte de seu tempo em casa e são muito interessados com segurança pessoal e física. Este
grupo inclui 18 milhões de americanos mais idosos.
 E o grupo que mais têm em comum com os Baby Boomers, relativamente ricos e são centrados em aproveitar a
vida, estimativa de 7 milhões, segmento com taxas altas de crescimento.
Ainda nesse contexto Pettigrew & Mizerksi & Donova, (2005) enfatizam os seguintes fatores: qualidade do
atendimento, funcionalidade dos equipamentos, colocação adequada dos produtos na gôndola, entrega em domicílio,
amenidades na loja, acesso adequado. Existem relações íntimas entre afetividade, conhecimento e o comportamento do ser
humano, incluindo-se o alimentar. Cabe lembrar também que o comportamento alimentar tem suas bases fixadas na infância,
transmitidas pela família, e são sustentadas pela cultura, tradições e crenças (Pettigrew & Mizerksi & Donova, 2005).
Abdel-Ghany & Sharpe (1997) verificaram que há diferenças significativas no consumo de comida (seja em casa ou
fora), bebida e fumo, entre as pessoas que estão na faixa etária de 65 a 74 anos (young-old) e aquelas com 75anos ou mais
(old-old), o que é revelador de um perfil sócio demográfico não uniforme para o segmento da terceira idade.

5. Metodologia de Pesquisa
Esta pesquisa, de nível exploratório, foi conduzida junto a indivíduos residentes na cidade de São Paulo, sendo
setecentos pertencentes às classes sócio-econômicas AB e setecentos indivíduos às classes CD (critério Brasil antigo, porque
os trabalhos de campo foram realizados em 2006 e 2007, respectivamente). Para a seleção das amostras foi utilizado o
critério não-probabilístico por conveniência. Os dados e informações foram obtidos a partir de questionários constituídos por
perguntas fechadas.
As respostas aos questionários foram registradas em um arquivo de dados eletrônico e analisadas com auxílio do
programa SPSS (Statistical Package for the Social Science), versão 13.0. Cabe notar que, preliminarmente, foram feitas
investigações quanto à exatidão da entrada dos dados, a distribuição dos casos omissos, o tamanho da amostra efetiva, os
casos extremos e a distribuição das variáveis. Subsídios da estatística descritiva e inferencial foram buscados para a análise
dos dados.

6. Apresentação e análise dos resultados


6.1 Perfil das amostras
As amostras pesquisadas foram compostas por 700 indivíduos das classes socioeconômicas AB e 700 das classes
CD, com base em critério não–probabilístico (por conveniência), e apresentaram os seguintes perfis:
Tabela 1: Perfil das amostras
Características Classe AB Classe CD
Sexo masculino 63% masculino 43%
feminino 37% feminino 57%
Faixa etária 60 a 65 anos – 45% 60 a 65 anos – 42%
66 a 70 anos – 35% 66 a 70 anos - 26%
71 a 75 anos - 14% 71 a 75 anos – 17%
76 anos ou mais - 6% 76 anos ou mais- 15%
Grau de instrução até fundamental completo –32% até fundamental completo – 62%
médio incompleto - 33% médio incompleto - 26%
médio completo - 14% médio completo - 5%
superior incompleto - 14% superior incompleto - 5%
superior completo. - 7% superior completo. - 1%

395
Complementando,os entrevistados foram classificados segundo estado de espírito ou forma como se sente em
relação à terceira idade e independência. Vários fatores resultarão na forma como cada indivíduo pode lidar com as perdas e
as transformações decorrentes do processo de envelhecimento, levando-o a adaptar-se às transformações ocorridas em si e no
meio em que está inserido. Uma velhice bem-sucedida é retratada em idosos que mantêm autonomia, independência e
envolvimento ativo com a vida pessoal, com outras pessoas, com o lazer e com a vida social. Ela resulta em produtividade,
conservação de papéis sociais adultos, auto-descrições de satisfação e de ajustamento. Os idosos com um envelhecimento
bem sucedido são reconhecidos socialmente porque contribuem para com a sociedade ou grupo familiar ou de amigos, sendo
vistos como modelos de velhice boa e saudável. Embora seja um número pequeno de pessoas que conseguem atingir
completamente esse padrão, é possível envelhecer bem (Irigaray, 2006). A forma como os entrevistados vêm se sentindo nos
últimos tempos foi avaliada segundo uma escala adaptada de Burns & Lawlor & Craig (2004), incluindo 27 frases, para as
quais se pedia para o entrevistados escolherem aquelas que melhor representassem seus sentimentos.
Tabela 2: Forma como se sente – terceira idade
AB CD
Assertivas % %
Em geral, você está satisfeito com sua vida? 93 83
Atualmente, acha que é maravilhoso estar vivo? 85 71
Você tem prazer em se levantar de manhã? 82 77
É fácil para você tomar decisões? 72 53
Sua mente continua tão clara quanto antes? 70 44
Você se sente cheio de energia? 68 32
Você se sente feliz a maior parte do tempo? 66 71
Você fica bem-humorado a maior parte do tempo? 61 83
Você acha a vida muito excitante? 55 55
Você tem ficado chateado com alguns pensamentos que não consegue tirar da mente? 44 49
Você teme que alguma coisa ruim lhe aconteça? 35 61
Você se preocupa muito com o passado? 27 31
Você frequentemente se preocupa com o futuro? 23 60
É difícil para você começar novos projetos? 23 48
Você prefere ficar em casa ao invés de sair e fazer coisas novas? 22 39
Você fica agitado frequentemente? 17 44
Você tem dificuldade em se concentrar? 10 49
Você sente que sua vida está vazia? 7 40
Você tem vontade de chorar frequentemente? 6 53
Você abandonou várias de suas atividades ou interesses? 6 49
Você sente que tem mais problemas com sua memória do que as outras pessoas? 4 43
Você considera sem esperança a situação em que se encontra? 2 46
Você considera que os outros estão em melhor situação? 1 42
Fonte: escala (GDS)

A partir dos resultados mostrados na tabela acima, foi utilizado critério adotado por Burns, Lawlor e Craig (2004, p.
3), que estabeleceram pontuação para respostas sim e não para cada assertiva. De acordo com esse critério, os entrevistados
que obtiveram um total até 10 pontos foram denominados ups e os outros cujos pontos somaram mais de 11 pontos foram
denominados downs. Com base no exposto, foram criadas duas variáveis “ups” e “downs”, separando os entrevistados em
dois grupos: ups (de bem com a vida) e downs (insatisfeitos e deprimidos). Foram então feitos cruzamentos utilizando-se as
variáveis descritas.
Tabela 3: Perfil da amostra por estado de espírito e grau de independência
Perfil da amostra Total % AB CD
Estado de espírito
Ups 49 84 21
Downs 51 16 79

6.2 Principais resultados


A seguir são apresentados os principais resultados referentes a várias questões: numero de refeições diárias, auto
classificação do peso, alimentação balanceada, consumo de calorias diário e auto-classificação da saúde.

396
6.2.1 Número de Refeições Diárias
Inicialmente foram comparados os dados referentes ao número de refeições diárias. Os dados da tabela abaixo
revelam que não há diferenças significativas entre o percentual de idosos das classes AB e CD quando a fazerem três
refeições por dia, o percentual é igual para os dois grupos e é igual a 3 (42%). A maior diferença se refere àqueles que fazem
4 refeições ao dia: na classe AB, mais da metade da amostra se alimenta quatro vezes ao dia (53%), percentual que cai para
35% nas classes CD. Observe-se que o percentual obtido em AB (53%) supera em muito aquele calculado para as duas
amostras consideradas como um todo (44%). Quando mais de 4 refeições diárias são mencionadas, há uma diferença
acentuada nos percentuais, pois as classes CD apresentam percentual igual a 14% , e as classes AB de 2%.
O número de refeições diárias tende a variar significativamente com relação a estado de espírito e grau de
dependência dos idosos entrevistados, principalmente entre aqueles que fazem quatro refeições. Mais da metade dos ups
(52%) fazem quatro refeições comparados com 37% dos down.
Tabela 4: Número de Refeições Diárias
Número de Refeições Total AB CD Up Down
Diárias % % % % %
1 refeição 1 0 1 0- 1
2 refeições 5 3 8 3 8
3 refeições 42 42 42 42 40
4 refeições 44 53 35 52 37
Mais de 4 refeições 8 2 14 2 13

6.2.2 Auto Classificação do Peso


A Tabela 3 mostra que mais da metade dos respondentes classificam seus pesos como sendo normal. Entre os
entrevistados das classes AB verifica-se maior percentual de bem acima da média (12%) comparados com 3% das classes
CD. Vale ressaltar que o percentual apresentado pela classe AB é bem maior do que aquele verificado para as duas amostras
como um todo (7%). Entretanto, quanto ao peso ser abaixo da média, os respondentes das classes CD apresentaram 8%
comparados com 2% das classes AB.
A auto classificação do peso está ligada à percepção do corpo, que de acordo com Brandão (2007), se refere à
consciência corporal também, definida como a maneira pela qual a atenção sobre o corpo é distribuída. As pessoas diferem
no quanto estão conscientes de seus corpos e de todas as maneiras que as pessoas possuem para perceberem seus corpos, a
mais proeminente seria a imagem que têm de seus corpos. A imagem corporal seria um caminho para as pessoas perceberem
a si mesmas e como os outros a vêem, embora não se pode esquecer que a história de vida, o contexto social em que nasceu,
cresceu. O crescimento biológico e circunstâncias de vida também influenciam a percepção que os indivíduos têm de seu
próprio corpo. O envelhecimento também influencia na percepção do próprio corpo e o corpo do idoso se relaciona de
maneira diferente com o meio ambiente e consigo mesmo.
Tabela 6: Auto-classificação do peso
Classificação do peso AB CD Up Down
% % % %
Acima da média 39 30 29 38
Normal 59 62 63 59
Abaixo da média 2 8 9 3

Verifica-se entre os entrevistados classificados como down (deprimidos ) tendência de maior percentual de
classificação do peso acima da média, no entanto vale observar que a classificação de peso como normal é preponderante
entre todos os segmentos de idosos entrevistados.

6.2.3 Alimentação balanceada


Do ponto de vista de alimentação balanceada, observam-se diferenças entre os idosos das classes AB e CD,
principalmente com relação ao consumo de nutrientes básicos (99% em AB comparados com 79% em CD), consumo de
produtos para melhorar aparência (100% das classes AB contra 88% das classes CD) e consumo de alimentos com efeito
laxativo (88% para AB contra 65% em CD). Quanto às vitaminas ou suplementos vitamínicos não se observam diferenças.
Do ponto de vista de ups e dows, pode-se dizer que os deprimidos são mais preocupados com alimentação balanceada,
consumindo em maior proporção os nutrientes básicos e produtos com efeitos laxativos, além daqueles que ajudam a
melhorar aparência.
Os componentes das duas amostras revelam preocupação com a aparência, o que pode ser indicativo de um elevado
nível de autoconceito desses idosos, pois conforme Sally (1995), o autoconceito influencia as escolhas das melhores dietas e
de alimentos energéticos.

397
No caso da população idosa, estudos sobre consumo alimentar indicam que apesar das melhorias do estado
nutricional da população em geral, novos padrões de comportamento e consumo ainda não têm garantido adequação de
alimentos necessária à população idosa. Isto é, não bastam segurança, qualidade e a quantidade nutricionalmente exigidas dos
alimentos, sem que o rito alimentar se dê em ambiente favorável à absorção dos nutrientes ou não se considere a influência de
vários condicionantes da saúde e, assim como, a qualidade de vida do indivíduo (Penteado, 2003).
Tabela 8: Alimentação balanceada
AB CD Ups Downs
% % % %
Consumir os nutrientes básicos (ex. cálcio, ferro 99 79 76 90
etc.)
Consumir produtos com efeito laxativo 76 79 66 97
Consumir produtos para melhorar a aparência 100 88 71 95

Pesquisas mostram que a dieta tipicamente ocidental é responsável por mais de 30% dos ataques cardíacos no
mundo (Staut, 2008). A assimilação das proteínas pode ser afetada pela ingestão de calorias, existência de feridas, perda de
peso e infecções porque grande parte dos músculos e massa muscular é crítica para realização de atividades da vida diária
como levantar-se, comer, vestir-se, banhar-se e a manutenção do índice de proteína de determinados tecidos e os órgãos,
como pele, coração e fígado, são essenciais para a sobrevivência. O excesso de peso tende a aumentar com a idade, de modo
mais rápido para os homens e, de modo mais lento, porém mais prolongado, para as mulheres. (Em estudos epidemiológicos,
tem sido aceito como obeso pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o indivíduo que apresenta índice de massa corporal
(IMC) ou "índice de Quetelet", que relaciona peso com altura ao quadrado, igual ou maior do que 30kg/m2,
independentemente do sexo e idade). Apesar da divulgação de várias tabelas de recomendações nutricionais diárias (RDA,
FNB ...), sabe-se, entretanto que os idosos necessitam tanto ou mais proteínas do que os mais jovens, mas por causa de falta
de apetite pode ser difícil a ingestão de proteínas na quantidade necessária (Castellanos, 2008).

6.2.4 Consumo de calorias diário


No que tange ao consumo de calorias, conforme apresentado na tabela 5, o dado que chama atenção é seu
desconhecimento (55%) por mais da metade dos entrevistados das classes CD.
O consumo de calorias aparenta ser mais alto nas classes CD, pois 22% declararam consumir mais de 1500 calorias
diárias, enquanto que em AB encontrou-se apenas 10%. Além disso, o consumo abaixo das 900 calorias/dia foi apontado por
47% dos entrevistados das classes AB contra 15% de CD, e vai ao encontro das conclusões de Ruga (2003). Embora este
último resultado possa sinalizar que indivíduos de AB apresentam características psicográficas que os enquadram no grupo
dos preocupados com a nutrição, conforme proposto por Morgan e Levy (2002), é um resultado preocupante, pois se revela
muito inferior àquele recomendado para os idosos pela Organização Mundial de Saúde (1500 calorias).
Em outro contexto, recente pesquisa realizada nos Estados Unidos mostra que embora estejam conscientes e
conheçam os riscos de uma dieta calórica, ainda assim a maioria dos americanos não segue as prescrições devidas contidas no
“The nation's new dietary guidelines - revised in 2005”. O relatório mostra que os consumidores acreditam em alguns
princípios relativos a alimentação, mas na realidade comem o que não deveriam do ponto de vista de alimentação saudável
(MITTEL REPORT, 2007). A tabela abaixo mostra que há tendência de maior desconhecimento quanto ao consumo diário
de calorias tende a ser alto entre os downs (deprimidos), no entanto os ups (de bem com a vida) apresentam maiores
percentuais de consumo calórico abaixo de 900 calorias.
Tabela 10: Consumo de calorias diário
Consumo de calorias diário Total % AB% CD% Up Down
Abaixo de 900 calorias 41 47 15 41 17
Entre 901 e 1500 calorias 9 10 8 2 18
Mais de 1501 20 10 22 34 5
Não sabe 30 23 55 23 60

6.2.5 Auto-classificação de saúde


Complementando a análise feita com relação aos hábitos alimentares, foi indagado aos respondentes como
classificam sua saúde. Os resultados mostram que mais da metade da amostra (57%) dos respondentes das classes AB
classificam sua saúde entre ótima e boa, comparados com 36% das classes CD. Quanto à classificação da saúde como regular
são maiores os percentuais entre as classes CD (60%). É baixo o percentual daqueles que classificam sua saúde como ruim e
péssima tanto entre a classe AB como CD. Estes dados corroboram estudos realizados pelo Ministério da Saúde, nos quais a
metade considerou sua saúde regular, 36% boa ou ótima e somente 13% má ou péssima (Ministério da Saúde, 2002). Os

398
percentuais obtidos para ups e downs são mostrados abaixo e confirmam a tendência geral de classificação da saúde entre
regular e ótima e boa, em detrimento dos que classificam com ruim e péssima.
Tabela 12: Auto-classificação da saúde
Auto-classificação da saúde Total AB CD Up Down
% % % % %
Ótimo 11 19 9 9 12
Bom 27 38 26 27 26
Regular 58 40 60 60 59
Ruim 2 3 3 3 3
Péssimo 1 - 2 1 -

Vários outros cruzamentos em cada classe sócio-econômica foram testados quanto à independência/ associação,
com base no qui-quadrado (χ2), sendo possível admitir, ao nível de significância de 5%, que:
 classes AB - o peso (auto-classificação), a faixa etária e a quantidade de calorias ingeridas estão associados ao
número de refeições diárias (χ2 igual a 69,60, 59,23 e 16,86, respectivamente). Assim, níveis baixos de calorias
diárias são consumidos em quatro ou mais refeições diárias; o peso é declarado mais próximo do normal por
aqueles que fazem até três refeições diárias; e, a referência a mais de três refeições é mais frequentemente efetuada
por pessoas com idade superior a 66 anos.
 classes CD – o peso (auto-classificação) está associado ao sexo (χ2 igual a 14,92), havendo mais homens do que
mulheres com peso admitido como normal.

6.2.6 Análise de conglomerados


Complementando foi realizada análise de conglomerados, verificando-se quatro grupos com perfis diferenciados:
glutões, saudáveis, gastrônomos e vaidosos
 glutões (representam 35% do total pesquisado), maior percentual de mulheres, grupo mais idoso (72% com 76 ou
mais); maior percentual dos fazem 4 ou mais refeições, maior percentual dos que declaram desconhecer o consumo
de calorias, classificam o próprio peso como bem acima da média e declaram percentual alto de consumo de
nutrientes para melhorar aparência, de maneira geral têm escolaridade baixa, predominam idosos das classes CD.
 saudáveis (21% do total), percentual ligeiramente superior de homens, apresentam o consumo declarado mais
baixo de calorias, 22% na faixa de 66 a 70 anos, maior percentual de entrevistados com superior completo, ingerem
entre 3 e 4 refeições diárias e apresentam o maior consumo de nutrientes básicos, classificam peso abaixo da media
e predominam entrevistados das classes AB, e tem o segundo maior percentual de idosos de bem com a vida.
 gastrônomos (17% do total) menor consumo de nutrientes basicos, distribuidos por todas as faixas etárias,
percentual ligeiramente superior de mulheres em relação aos homens, escolaridade predominante até colegial
completo, percentual alto de consumo acima de 1500 calorias, classificam peso como normal, predominam classes
AB, têm o maior percentual de ups (de bem coma vida).
 vaidosos (27%), grupo mais jovem (71% 60 a 65 anos), predominam homens, maior percentual de consumo
voltado para melhorar aparência, percentual elevado de 3 refeições diárias, segundo maior percentual dos que não
sabem a quantidade de calorias consumidas diariamente, escolaridade até primeiro grau completo, predominam
classes CD e alto percentual de downs ou deprimidos (42%).
Tabela 13 : Síntese dos agrupamentos obtidos
Cluster Sexo Idade Classific. Escolar Alimentação
Sócio- idade
econômica
glutões (35%) maior grupo classes CD  maior percentual dos fazem 4
percen- mais ou mais refeições,
tual de idoso  maior percentual dos que
mulheres (72% declaram desconhecer o
com 76 consumo de calorias,
ou mais)  classificam o próprio peso
como bem acima da média
 declaram percentual alto de
consumo de nutrientes para
melhorar aparência
saudáveis 22% na classes AB maior  consumo declarado mais
(21% total) faixa de percen- baixo de calorias,
66 a 70 tual de

399
an superior  ingerem entre 3 e 4 refeições
complet diárias;
o  apresentam o maior consumo
de nutrientes básicos,
classificam peso abaixo da
media
gastrônomos Mais Distri- classes AB até cole-  menor consumo de nutrientes
(17% ) mulheres buidos gial basicos,
por complet  percentual alto de consumo
todas as o acima de 1500 calorias,
faixas classificam peso como
etárias, normal
vaidosos Predo- grupo classes CD escolari  maior percentual de consumo
(27%), minam mais dade até voltado para melhorar
homens jovem primei- aparência,
(71% 60 ro grau  percentual elevado de 3
a 65 comple- refeições diárias,
anos) to  segundo maior percentual dos
que não sabem a quantidade
de calorias consumidas
diariamente

7. Considerações Finais
Este artigo teve como objetivo principal comparar hábitos alimentares de idosos das classes AB e CD (antigo
critério Brasil). Sua principal limitação está ligada ao processo de amostragem não-probabilístico que não permite
generalizações para o total do universo, embora haja indícios de que os dados possam descrever o comportamento desse
segmento.
A análise descritiva dos dados mostrou que 77% da classe CD e 95 % da AB se alimentam regularmente e com
frequência superior a três vezes ao dia. Os resultados revelam que não há diferenças significativas entre o percentual de
idosos das classes AB e CD quando o número de refeições feitas por dia é igual a 3 (42%). A maior diferença se refere
àqueles que fazem 4 refeições ao dia, nas classes AB, mais da metade da amostra se alimenta quatro vezes ao dia (53%),
percentual que cai para 35% nas classes CD. Observe-se que o percentual obtido em AB (53%) supera em muito aquele
calculado para as duas amostras consideradas como um todo (44%). Quando mais de 4 refeições diárias são mencionadas, há
uma diferença acentuada nos percentuais, pois as classes CD apresentam percentual igual a 14%, e as classes AB de 2%.
O consumo declarado de calorias está, em sua maior parte, abaixo das 900 calorias/dia, na opinião de 57% do total
de entrevistados; 30% de todos os respondentes não sabem responder a esta pergunta. Observe-se que mais da metade dos
entrevistados da classe CD desconhece a quantidade de calorias que consome, levando a admitir, embora dentro dos limites
da amostragem não-probabilística, que esta pesquisa sinaliza para a existência de fértil campo voltado para o
desenvolvimento de programas de saúde alimentar, direcionados aos idosos dessa classe.
Do ponto de vista de alimentação balanceada, observam-se diferenças entre os idosos das classes AB e CD,
principalmente com relação ao consumo de nutrientes básicos (99% em AB comparados com 79% em CD), consumo de
produtos para melhorar aparência (100% das classes AB contra 88% das classes CD) e consumo de alimentos com efeito
laxativo (88% para AB contra 65% em CD). Quanto às vitaminas ou suplementos vitamínicos, não foram observadas
diferenças entre as classes mencionadas. Os componentes das duas amostras revelam preocupação com a aparência, o que
pode ser indicativo de um elevado nível de autoconceito desses idosos, o que segundo a literatura, influencia as escolhas das
melhores dietas e de alimentos energéticos.
Complementando a análise feita com relação aos hábitos alimentares, foi indagado aos respondentes de que modo
classificam a própria saúde. Os resultados mostraram que quase a metade da amostra total (46%) classifica sua saúde entre
ótima e boa, contra 50% que consideram sua saúde regular e apenas 3% dos entrevistados dizem que sua saúde é ruim.
Se de um lado, as análises descritivas dos dados confirmam o que a literatura nacional e internacional traz, de outro
lado a contribuição deste trabalho está na proposta de tipologia, estabelecia diferenciando hábitos alimentares da terceira
idade. Dessa forma podem ser considerados quatro grupos com perfis diferenciados: glutões (das classes CD), saudáveis
(classes AB); gastrônomos (classes AB) e vaidosos (classes CD). Os glutões (representam 35% do total pesquisado) têm o
maior percentual de mulheres, constituem o grupo mais idoso (72% com 76 ou mais); maior percentual dos fazem 4 ou mais
refeições, maior percentual dos que declaram desconhecer o consumo de calorias, classificam o próprio peso como bem
acima da média e declaram percentual alto de consumo de nutrientes para melhorar aparência, de maneira geral têm
escolaridade baixa, predominam idosos das classes CD. Os saudáveis (21% do total) apresentam percentual ligeiramente
superior de homens, apresentam o consumo declarado mais baixo de calorias, 22% na faixa de 66 a 70 anos, maior percentual

400
de entrevistados com superior completo, ingerem entre 3 e 4 refeições diárias e apresentam o maior consumo de nutrientes
básicos, classificam peso abaixo da media e predominam entrevistados das classes AB, e tem o segundo maior percentual de
idosos de bem com a vida. Os gastrônomos (17% do total) aprsentam menor consumo de nutrientes básicos, distribuidos por
todas as faixas etárias, percentual ligeiramente superior de mulheres em relação aos homens, escolaridade predominante até
colegial completo, percentual alto de consumo acima de 1500 calorias, classificam peso como normal, predominam classes
AB, têm o maior percentual de ups (de bem coma vida) e finalmente os vaidosos (27%),constituem o grupo mais jovem (71%
60 a 65 anos), predominam homens, maior percentual de consumo voltado para melhorar aparência, percentual elevado de 3
refeições diárias, segundo maior percentual dos que não sabem a quantidade de calorias consumidas diariamente,
escolaridade até primeiro grau completo, predominam classes CD e alto percentual de downs ou deprimidos (42%).
Considerando as especificidades do comportamento do consumo dos idosos, buscou-se apresentar um quadro
detalhado de alguns de seus hábitos alimentares, adotando-se uma tipologia a partir de dados tradicionais do perfil sócio-
demográfico e hábitos de alimentação. A análise dos dados a partir do referencial teórico permitiu a constatação de diferenças
significativas entre as classes sociais estudadas

Referências Bibliográficas
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O corpo e o sujeito na contemporaneidade: signos de memórias e traços de


identificação nas transformações corpóreas
Francisco Ramos de Farias
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/PPGMS)
[email protected]

Rita Maria Manso de Barros


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
[email protected]

Cristina Monteiro Barbosa


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
[email protected]

Resumo: Pretende-se analisar a impossibilidade de conservação da experiência; as novas modulações de experiências sexuais, o movimento
repetitivo; o apelo à construção de arranjos subjetivos singulares e a monotonia decorrente da transitoriedade e da indiferença relativas às
exigências do mundo globalizado. O processo de modificações corporais com valor de signos identificatórios traz as marcas da
contemporaneidade: experiência transitória que denuncia a radicalidade das vivências ante um passado nostálgico e um futuro incerto. Nesse
espaço de transição os diversos usos do corpo (artístico, sexual, político, entre outros) insinuam-se como resposta aos ditames delimitadores
dos suportes do viver, além de profunda crítica aos critérios que primam pelo nivelamento da subjetividade. Indubitavelmente, tal estilo
existencial embutido corporeidade indica que a monotonia, causada pelo esgarçar devido aos movimentos culturais vigentes que tentam
nivelar as diferenças, produz apatia e indiferença, afetos bem conhecidos do homem na atualidade. Provavelmente a tem-se nas modalidades
de sexualidades da atualidade e nas expressões corpóreas um alerta desesperado, dirigido tanto à banalização dos objetos produzidos em série
quanto à possibilidade de aniquilamento frente às tendências do progresso científico aliado ao discurso capitalista. Sendo assim, configuram-
se vivências corpóreas radicais em que a dor é transformada em prazer e o horror é eleito como parâmetro estético. Eis o recurso empregado
pelo homem para manter sua singularidade e confrontar os espectadores com uma produção descartável que não circula em cifras
económicas.

1 – Situando a questão
Enveredar pela era que denominamos de contemporaneidade, não é tarefa fácil, principalmente, quando tomamos as
categorias corpo e sujeito como pontos de reflexão. Analisando esse binômio, interessa-nos saber de que maneira as
experiências corpóreas são elaboradas em signos de identificação, num sujeito que toma o imediatismo como norma de vida e
o corpo como lugar de transformação contínua. Eis o objetivo de nossa reflexão: traçar linhas de pensamento sobre a
compreensão da instancia corpórea e do sujeito, considerando os diferentes vetores que regem cada época histórica, ou seja,
no mundo antigo, tínhamos a organização ditada pelo critério religioso; no mundo moderno o científico e nos dias atuais a
imperiosidade do consumo. São essas as circunstâncias que incidem sobre o sujeito às quais responde com os dispositivos, ao
seu alcance, em cada contexto marcado pelas transformações históricas.
Ao longo da história dos costumes, o corpo conheceu diversos sentidos. No âmbito do sagrado, no mundo antigo,
temos o corpo que encerra algo inacessível pelo fato de ser considerado um mistério que não poderia ser desvendado,
especialmente no que concerne ao seu interior. Assim o corpo representava o caminho mais curto da evidência ao mistério

403
em razão de conter um vazio. Eis o saber singular sobre o corpo estruturado em termos de suas atividades, exibições e enfim
seus valores morais. Assim, o corpo é uma constituição simbólica que poderia ser o lócus da possessão e parte constitutiva da
pessoa. Sendo assim, o corpo pertenceria ao domínio divino apresentando uma estreita correspondência com os quatro
elementos que compõem o universo (água, ar, terra e fogo). Quer dizer, o homem do mundo antigo não era discernível de seu
corpo da mesma forma que o mundo não era discernível do homem.
O advento da ciência moderna apresentou ao mundo outra ordem do corpo, implicando num corte radical entre o
sujeito e os outros, ou seja, o corpo moderno seria uma estrutura social do tipo individualista; também um corte com o
cosmo, pois postula que os diferentes componentes do corpo não têm qualquer correspondência com o que se encontra no
mundo e, enfim, corte com o próprio sujeito, visto que ter um copo é mais que sê-lo. Não obstante, uma representação
moderna do corpo produziu-se com o homem na mesa de dissecação anatômica. Considerado, em razão desse corte, o corpo
representa uma abstração intocável uma vez que os professores universitários intervêm nele no sentido de curar as doenças;
os cirurgiões que aventuram a olhar o seu interior (cabe salientar que esses cirurgiões não eram médicos) e, enfim, os
barbeiros que eram peritos em sangrias. Disso tem-se um passo para o corpo tornar-se um fator de individuação à medida que
a natureza é dessacralizada. O corpo passa então a ser um resto, ou seja, o resíduo dos três cortes operados: com o
semelhante, com o cosmo e com o próprio homem.
Devemos recuar no tempo e situar o momento revolucionário que desmoronou as pilastras erguidas no cosmo
organizado pelo pensamento aristotélico, onde o critério de ordenação dependia do aval das doutrinas religiosas. O ato que
fundou a ciência moderna foi responsável pela introdução de outro critério ordenador do mundo, desta vez, ditado pelo
discurso científico, em virtude da mudança de posição subjetiva do sujeito de passivo-contemplativo, para ativo-reflexivo,
além do surgimento de uma nova relação do homem com a natureza pela quantificação e não mais assentada nas qualidades
captadas como dados sensoriais e, enfim, pela produção de um sujeito, esvaziado das contingências sensoriais e das
profundezas referidas às faculdades mentais o qual opera no âmbito do discurso científico,
O novo discurso é o científico. Eis o momento em que a ciência recém-fundada produz seu discurso que teve um
desenvolvimento lento, mas determinou do modo de relacionamento conhecido como civilização científica que repercutiu,
significativamente, por muito tempo, no Ocidente, para depois, pouco a pouco, atingir praticamente todo o planeta.
Enveredando nessa direção somos levados a pensar que, na atualidade, o discurso que ordena o tecido social, não é o
religioso que predominou por muitos séculos; nem o discurso filosófico que, de certo modo, perdeu sua supremacia: é o
discurso científico aquele que ordena o laço social.
A consequência mais imediata disso são os efeitos no contexto social e nas relações sociais: primeiro, na quebra das
fronteiras da comunicação (a informação através da mídia); segundo, pela duração efêmera do valor dos objetos, o que
repercutiu diretamente no mercado de bens; terceiro, no processo contínuo de deslocamento do homem do campo para os
centros urbanos. Trata-se de efeitos que invadem o sujeito em sua relação com o mundo externo e com seu corpo. O homem
da nossa época é excessivamente blasé que adere facilmente ao vício, mas com o auxílio da técnica. Nada de fabricar, tudo já
está pronto.
No tocante à ciência moderna, temos o surgimento de um laço social radical que produziu a subversão na relação
do sujeito com o saber, pela implicação direta à técnica. Quer dizer, o saber, decorrente da unificação produzida pela ciência
moderna, planifica o desenvolvimento de todas as forças para o controle e para o mercado. Indaguemos: o que precisamente a
técnica tem a ver com o saber? Somos cônscios de que as imperiosas exigências da tecnologia e da técnica instrumental
obrigaram o homem, sem nenhuma escolha, a produzir um novo tipo de saber. O instrumento por si conclama o homem a
pensar, a produzir conhecimento para que seja possível a sua utilização.
A era da ciência moderna, a chamada modernidade, ou já conheceu seu vertiginoso declínio, ou não já mais existe.
A marcante era que se inicia com um radical movimento na moral e na filosofia com a obra de Montaigne; na literatura com a
poesia de Brant e com o conhecido texto de Erasmo de Roterdã “Elogio da Loucura” conheceu seu ocaso de forma
peremptória. Encontramos nesses sábios os alicerces daquilo que será organizado pela credencial de pensadores que tiveram
significativa participação na fundação da ciência moderna: René Descartes, na Ontologia e Galileu no âmbito da Física. Essa
era conheceu seu zênite com Newton pela matematização dos fenômenos da natureza. A subversão operada por Descartes
pode ser pensada em vários níveis. Em primeiro lugar, a invenção de um sujeito a partir do res cogitum (Descartes, 1973, p.
54) sugere a transferência de responsabilidade. O que até então fazia parte do domínio absoluto de Deus, doravante estará nas
mãos do homem: Deus como garantia última de todas as ocorrências cedeu lugar à razão argumentativa no pensamento da
ciência moderna. Ao homem cabe então responder pelos seus atos. O panorama político do século XVIII, tinha como projeto
uma reforma com o objetivo de propiciar a homogeneização dos direitos e deveres de todos os cidadãos de acordo com a lei
pelo ideal que defendia a existência de um saber de validade universal, livre do domínio da Igreja.
Se considerarmos que a fundação da ciência moderna produziu uma relação inteiramente nova ao subverter a
posição do sujeito frente ao saber, pois é apresentado ao mundo, um ser como coisa pensante, temos de pensar que esta
novidade concerne à técnica. Com isso, houve um deslocamento do topos referido ao saber: do noûmeno para o psiquismo
como produtor de idéias. Com a técnica operando em decorrência do arranjo propiciado pela ciência, grandes transformações
se produziram e disso novas modalidades de saber vieram a lume. Por outro lado, as engrenagens criadas no âmbito da
tecnologia impuseram que a ciência se encarregue da produção de novas formas de saber. De certo modo, o saber produzido
se mostra como uma exigência para a produção de mais saber: a técnica opera na produção de saber e a tecnologia exige que
a ciência produza saber. Teríamos nisso um circuito fechado?

404
Obviamente, não! Mesmo porque o cenário introduzido com o advento da ciência moderna, a era que recebeu a ata
credencial com o sujeito cartesiano e com a física galileana, tendo conhecido seu zênite com Newton e Kant, já indica sinais
de desmoronamento. Essa era da introdução do discurso científico que fundou e ancorou a experiência subjetiva já está em
franco declínio desde que, na segunda década do século XX, foi escrita a última página da obra Além do princípio do prazer
(Freud, 1920/1993), momento em que é selada a “cova” da modernidade, na era científica.
O fim da modernidade remonta à força da escrita nietzschiana. Em a Gaia Ciência, Nietzsche anunciou, ao mundo
em alto e bom tom, que Deus está morto, provocando-nos a pensar que “Deus mesmo pode vir a se demonstrar como a nossa
mais longa mentira” (Nietzsche, 1887/1983, p. 320). Amém disso, Walter Benjamim nos advertiu, no que concerne às artes e
à literatura, que o passado e a tradição sucumbiram irremediavelmente, sendo quase impossível haver memorização da
experiência visto que: “uma miséria totalmente nova se abateu sobre o homem com esse desenvolvimento monstruoso da
técnica” (Benjamim, 1996, p. 195). A esperança que nos deu pode ser resumida na seguinte afirmação: só restam cacos!
Nesse mundo de fragmentos, o homem tem que construir sua identidade. Trata-se de uma desconstrução a ser considerada o
ponto de partida para uma nova construção, ou seja, com esses cacos temos de lidar com o nosso cotidiano.
É conveniente convocar mais um dos que contribuíram para nesse movimento. Martin Heidegger trabalha, numa
fecunda investigação, para depreender da obra de Nietzsche o que significa essa espécie de niilismo: Deus está morto. Disso
resulta um de seus mais estonteantes ensaios, denominado: Chemins qui ne mènent nulle part, onde nos convida a pensar
qual o mundo novo após esse fim? (Heidegger, 1980). Entramos no ocaso da modernidade, embora muitos pensadores falem
apenas de crise. Isso nos quer dizer que o homem não pode mais ser tomado como a medida de todas as coisas, devido ao fato
de ser agora manipulado por forças de maior envergadura, como a mídia, a economia, o mundo das imagens, a eficiência da
técnica, os rápidos progressos da ciência e as expressões dos movimentos artísticos surgidos na atualidade.
Se estivermos pensando numa morte da modernidade da era científica, que panorama se afigura diante de nós? De
uma coisa estamos certos: somos obrigados a lidar com um estado de caos e dirigir nossas reflexões focalizando o surgimento
do impensado, em princípio, porque nossa relação com o saber sofreu uma mudança radical e também porque as verdades
sacralizadas já não nos servem mais.
Estamos diante de uma difícil caminhada: descobrimo-nos frente a um dilema em que oscilamos entre duas grandes
correntes de ilusões e nos esforçamos para tentar, de algum modo, dar-lhes corpo, através da possibilidade de inscrevê-las na
história. A primeira é a de que cada um tem que construir todas as condições de sobrevivência, ilusão pautada no paradigma
da auto-suficiência; a segunda, igualmente problemática, que nos coloca em direção oposta: é a de que deve existir um senhor
soberano, desconhecido, estranho, anônimo e onipotente que se interesse e se preocupe com o nosso bem estar. Em
decorrência desses abalos, qual novo arranjo surgiu no mundo com esse ocaso? Certamente, adveio uma era: a que
conhecemos pela denominação de contemporaneidade. As discussões em torno desse termo, para caracterizar o cenário atual
do mundo em que vivemos, apontam um sério problema, da mesma forma que o emprego do termo pós-modernidade. No
tocante ao termo pós-modernidade temos a indicação imprecisa para situar uma época cujo advento teria ocorrido com o
desaparecimento da modernidade, ou seja, caracteriza apenas uma era que vem após o término de outra e nada mais, sem
especificar o arranjo estrutural, os vetores e os balizadores das transformações que produziram o novo estado de coisas.
Argumenta-se pelo fim de uma forma de racionalidade centrada no cogito cartesiano e no ideal de cientificidade
dele decorrente que determina “o modo de constituição do sujeito da ciência moderna”. (Milner, 1996, p. 29). Sustentar o
ocaso da modernidade como forma de racionalidade não é parâmetro suficiente para afirmar que nos encontramos numa
forma radical de irracionalidade. Sem dúvida, advoga-se por explicações que sugerem a existência de novos paradigmas que,
de certo modo, são evidências contundentes das crises da racionalidade, mas não, o seu total desaparecimento.
Mas, o que depreendemos da idéia de um fim da era moderna como característica do nosso cotidiano? Em primeiro
lugar, devemos assinalar que o discurso técnico-cientifíco-eficaz é dotado de um poder do qual não conhecemos sua
magnitude, pois, por um lado, ordena e encaminha o sujeito na direção de um universal e, por outro, quando o sujeito se
aventura a atender a essa exigência acaba por se tornar esvaziado subjetivamente e esquecido de si próprio. A consequência
mais grave é a perda de sentido do particular, quando essa voracidade em direção ao universal tem seu peso maior do que as
aspirações ao particular, pois “não há mais a confiança de, por si mesma, a ciência trabalhar para o bem da humanidade”
(Miller, 1997, p. 332). Fica então sem sentido o existir em termos de singularidade e, por extensão, perde-se também o
sentido da morte. A difícil travessia que é o viver conhece nesse ponto o seu contorno mais delicado uma vez que, nesse
processo de esvaziamento subjetivo e de banalização, o sujeito constrói a idéia de que “a vida não está em outro lugar. Por
esta razão, afunda-se na cotidianidade e tenta fazer-se com fibras de calor, de sociabilidade. Na medida em que sente o
silêncio, o homem anônimo é um querer viver desesperadamente depois da vida” (Petit, 1998, p. 159). Assim, podemos
entender o sujeito de nossos dias como um ser desenraizado, uma vez que se encontra escravo da técnica e totalmente aderido
às promessas de satisfação máxima.
Referirmos, ao nosso tempo, com o termo contemporaneidade, é arriscar-se em situar uma era que perderia seu
sentido no dia em que desaparecermos! Isso confirmaria a tese de que o sentido da contemporaneidade é tributário à presença
do homem no planeta. Por isso, é importante encontrarmos uma designação que transcenda a duração de nossa vida, sem que
seja necessária a presença do homem para significá-la. No contexto de um ambiente polêmico de discussões, erigem-se
vários empreendimentos para caracterizar a época atual. Situemos as possibilidades existentes.
Comecemos pela denominação “Era sombria”, seguindo a terminologia de Hannah Arendt na expressão “tempos
sombrios” (Arendt, 1993), para caracterizar as sangrentas ocorrências do século XX, pela eficiência dos regimes totalitários e

405
pela banalização do Mal. Mas, se estivermos atentos ao legado freudiano do mal-estar na cultura, deveríamos acrescentar à
era sombria um ponto de trevas. Era sombria e ponto de trevas são termos problemáticos, pois sugerem um retorno à época
da Idade Média, ou nos induz a idéia de que podemos traçar um posicionamento ético que possibilitaria refazer os caminhos
já percorridos. Por outro lado, no século XX, ao invés de trevas, temos um cenário de produção, armazenamento e
distribuição de luz realizado pelos esforços da ciência em transformar irreversivelmente a natureza, em nome do progresso.
Basta para isso que situemos as hidrelétricas ou as usinas atômicas como fórmulas que se encontram na fila dianteira do
progresso. Então temos a era da luz fabricada com o discurso científico, ou seja: a luz artificial em excesso! Melhor dizendo,
uma era em que a tecnologia impera, ou seja, a tecnologia provoca a natureza para que esta renda seu fruto. Em certo sentido,
temos uma certa escravização da natureza pela aplicação da técnica que, pela produção eficiente, coloca à disposição do
homem produtos a serem consumidos numa escalada desenfreada, cujo critério de ordenação do mundo é ditado pelas
modalidades de consumo mas, num curto-circuito assim afigurado: o homem consome na esperança de encontrar satisfação
plena e tem de estar de muito bem com a vida para produzir as condições econômicas de consumo. Temos assim uma
modalidade de satisfação aspirada, que parece excluir o desejo, pois se centra na apropriação, apoderação, uso, descarte e
esquecimento daquilo que é consumido. Tudo isso situa uma nova posição do sujeito na relação entre uma prática ética e o
uso da técnica, determinada pela subversão operada pelo saber referido ao consumo contumaz.
Outra possibilidade seria lançar mão da expressão “Era dos Extremos” de Hobsbawm, para designar o grande
contraste que tem lugar num mundo em que se aposta demasiadamente no esquecimento e na banalização. Além disso, tem-
se o “esforço da sociedade burguesa do século XX, com a desintegração de velhos padrões de relacionamento social
humano”. (Hobsbawm, 1995, p. 24).
Não obstante, seja qual for a denominação, estamos diante de um problema quando situamos a era em que vivemos
com o termo contemporaneidade. Tentemos então traçar os balizadores da era em que vivemos. Queremos assinalar que não
podemos tomar a palavra contemporaneidade no sentido trivial uma vez que contemporâneo situa uma dimensão de
radicalidade, ou seja, uma zona de indeterminação em que um espaço-tempo se afigura entre aquilo que deixou de ser (a era
moderna) e que é tão somente memória e um horizonte de possibilidade que se mostra como uma abertura para um futuro
incerto e temido, mas, que não é totalmente inesperado uma vez que o homem já está advertido quanto a isso em decorrência
do saber que as engrenagens científicas dispõem. Sendo assim, a contemporaneidade é uma era de instabilidade e de
passagem que obriga o homem a viver uma experiência singular, em termos da relação com o saber, mediada por um
dispositivo técnico de produção de excesso em todos os âmbitos das relações humanas.
Essa é uma experiência de indeterminação e apatia entre um passado e um futuro. Eis uma possibilidade de o
homem responder às exigências dessa era. Mas certamente por se tratar de uma zona inespecífica onde as coisas são instáveis
e efêmeras, tem-se a impressão de um viver que tampouco em nada se modifica, do que decorre a produção de novas
modalidades subjetivas cuja matriz é a impulsividade que, como mola propulsora, comparece na formação das agruras do
viver cotidiano, em larga escala, na imperiosidade do consumo do excesso como paradigma de um possível caminho para o
bem estar.
No campo cientifico, a distinção entre o corpo e o sujeito traduz uma mudança ontológica decisiva visto que o
corpo é a invenção empregada para justificar que o “homem é indissociável de seu corpo, não sendo mais submetido ao
singular paradoxo de ter um corpo” (Le Breton, 2005. p. 47). Do campo anatômico nasce na episteme a distinção entre o
homem e seu corpo, pois sua presença não mais significa o humano. Sendo assim, o corpo é dissociado do homem e estudado
como realidade autônoma, deixando de ser o signo irredutível da imanência do homem e de ubiquidade do cosmo. Embora as
primeiras dissecações tenham sido realizadas provavelmente por Galeno, é com Vesálio e Leonardo da Vinci que uma
ruptura epistemológica produziu a idéia moderna de corpo, conforme assinala Foucault (1977) e assim o foco de atenção
recaiu na conquista dos segredos da carne, deixando-se de lado as tradições e as interdições religiosas. Da mesma forma que
a Galileu busca uma grandeza matemática para iluminar o espaço cósmico, os agentes da dissecação penetram no
microcosmo do corpo.
A conjugação do trabalho do artista com as façanhas do anatomista romperam com a observação objetiva do
interior do corpo. Leonardo da Vinci encarregou-se de traçar “as figuras anatômicas sob o olhar exigente e cúmplice de
Vesálio, o que se inscreveu no interior de um estilo” (Le Breton, 2005, p. 54). Eis a transposição simbólica em que a
preocupação de exatidão e fidelidade ao objeto de observação se mescla ao jogo confuso do desejo, da morte e da angústia,
visto que o artista e o anatomista preocupados com a objetividade não passam incólumes à interferência de seus
inconscientes, o que aparece no traçado das figuras produzidas e na escolha das posturas. Quer dizer, o corpo dilacerado é
apresentado em estado de atitude e não inerte em razão da estilização do cadáver.
No seio do pensamento cartesiano o corpo exposto pelo bisturi de Vesálio é objeto de uma metáfora mecânica, ou
seja, o corpo orgânico passa a ser um corpo máquina como modelo de todo sistema finito. Outra passagem também ocorre
nesse contexto: da ciência contemplativa para a ciência ativa. Com isso, o corpo é esvaziado de seus mistérios para tornar-se
um objeto mecânico, pois o homem não é mais o eco do mundo, nem o mundo é eco do homem: as correspondências
possíveis concernem somente às grandezas matemáticas. (Koyré, 1991). Isso quer dizer que, ao invés das causalidades
milagrosas, temos as causalidades físicas num cosmo onde tudo é conhecido como um mecanismo considerado em duas
partes: o movimento e a matéria.
No mundo contemporâneo, outra ordem é construída em razão da produção de um modelo imaginário do corpo. O
homem do presente cotidiano se descobre equivalente a um corpo que habita a mídia, numa espécie de dualismo que opõe o

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homem e corpo realidade produzida pela genética. Em certo sentido, o corpo assume a condição de ser um alter ego do
homem, sendo o lugar privilegiado de sensação e aparência, numa espécie de paixão desenfreada em que qualquer esforço
deve ser empreendido, até mesmo correr graves riscos. De resto, a envoltura do corpo não é mais aquela produzida
geneticamente, pois com o progresso da ciência e o recurso da técnica, fiéis ao projeto de dominar o mundo, há também a
tentativa no mesmo movimento paradoxal de eliminar o corpo natural, mas igualmente de imitá-lo seguindo o ideal de
perfeição vigente na mídia. Para tanto, limites são ultrapassados na reconstrução do corpo com interferências marcantes em
seus processos. Tudo parece indicar que a condição humana, numa perspectiva gnóstica, se assemelharia a uma ruína no
corpo, tornando este um membro em excesso do qual deve se livrar o mais rápido possível. Assim o homem apaga no corpo
as marcas da precariedade, da morte do envelhecimento, ou seja, anular qualquer vestígio que indiquem essas perdas.

2 – Desvelando a instância corpórea: sujeito e desejo


Falar do corpo, não se fez outra coisa desde que o homem fez sua aparição no planeta como homo sapiens. Tratados
produzidos, ao longo da História, sugerem questões que se revestem de obscurantismo. O que os saberes produziram, em
termos de entendimento sobre a instância corpórea? É questão instigante pensar o corpo-mistério onde acontece o fenômeno
da vida. Para adentrar, numa seara tão obscura e de trilhas tão sinuosas, indaguemos: o homem é ou tem um corpo? Homem,
corpo e universo mantém ligações íntimas? O homem pode se desalojar de seu corpo? O corpo é objeto de transformação?
Como reage quando descobre que todos os acontecimentos de seu viver inscrevem-se, numa temporalidade que tem a
instancia corpórea com palco de encenação? Como age ante a constatação de que o corpo é um topos dinâmico, onde são
inscritas as marcas das experiências vividas ao longo de sua existência? Enfim, que destino dar a um corpo que é um arquivo
vivo de marcas de memória, decorrentes do encontro com o Mundo, com o representante da espécie e consigo mesmo?
Ao longo da história dos costumes, o corpo conheceu diversos sentidos. No âmbito do sagrado, é considerado
mistério, foco de saber singular, estruturado em termos de atividades, exibições e valores morais. A primeira representação
forjada pelo homem acerca de seu próprio corpo estava vinculada à natureza. Essa concepção partia do pressuposto de
correspondência entre a dinâmica corpórea e o funcionamento de um vegetal, o qual era tomado como modelo de
comparação. A estreita ligação do homem com o vegetal sugeria haver entre ambos uma identidade de substância. Essa
ligação era de tal forma predominante, a ponto de cada nascimento ser relacionado a uma planta, que passava, doravante, a
representar o sujeito.
Os acontecimentos históricos que marcaram o mundo tiveram repercussão no âmbito do pensamento científico e na
propagação das doutrinas religiosas. Desse último campo, adveio a produção da visão dualista do corpo no momento em que
o mundo ocidental se encarregou de, numa sede de domínio, impor suas crenças e seus princípios aos povos primitivos. O
esforço de evangelização não só concorreu para a individualização do corpo, como também se encarregou de construí-lo
enquanto instância dupla. A novidade consiste no entendimento de que do corpo se extrai uma imagem, ou seja, “o corpo é
uma substância individual que, na sua singularidade, se relaciona, diretamente, com o modelo não corporal do qual é uma
imagem” (Houseman, 2007, p. 59). Temos nisso, a transposição da visão dualista platônica de que as formas sensíveis são
extraídas de um modelo perfeito: o corpo seria o modelo produzido pela vontade divina, razão pela qual, cabia ao homem,
contemplar as imagens que refletiam a semelhança e proximidade entre o homem e Deus. Essa acepção de corpo, como lugar
de imperfeição, é a expressão da idéia platônica de instância corpórea como prisão da alma e, assim, seria um entrave ao
encaminhamento espiritual.
A difusão da idéia de que o homem é a imagem e semelhança de Deus, ou seja, “a essência dessa carne que é o
homem é a alma” (Le Breton, 2005, p. 25), foi responsável, pela primeira vez na história dos costumes, pela produção de um
espelho mágico (Deus), de onde emanam infinitos reflexos para todos aqueles que se movimentam em direção à captura de
uma imagem. No homem, a imagem de Deus produz uma conformação específica dotada de singularidade, à medida que
habita cada carne-corpo. A interação entre corpo e imagem foi trazida à baila pelo cristianismo, em dois momentos distintos:
no Gênesis (5.1), encontramos o adágio de o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Eis o fundamento da
antropologia cristã. Não obstante, se o homem é a imagem de Deus, o é na medida em que é um ser dotado de alma. Em
Corintos (4.4) há a indicação de que Jesus Cristo é a imagem de Deus. Isso quer dizer que Deus tomou corpo na figura de
Jesus Cristo.
Um fato significativo, no tocante às abordagens do corpo, consiste na ascensão do individualismo, momento em
que o homem empreende um movimento do qual resulta a dessacralização da natureza. Assim, o corpo tornou-se um lugar de
separação entre o homem e o mundo. Esse momento de corte concorreu para a compreensão da definição moderna do corpo
que consistiu em três afastamentos: do cosmo, do outro e de si próprio. Eis o que, numa visada, podemos encontrar quando
situamos o século XV, momento em que se produziu a distinção entre corpo e sujeito, a qual se disseminou e perdura até
nossos dias. (Gélis, 2005). A nova leitura obre o corpo é a fiel tradução da mutação ontológica, no saber ocidental, da qual
resultou a “invenção” do corpo singularizado, a partir da qual o homem se torna cônscio da posse de seu corpo. A idéia de ter
um corpo decorreu da emergência da dualidade entendida como corpo e sujeito.
As fontes desse dualismo situamo-las no empreendimento que fez história, indiretamente, no século XV com as
maravilhosas criações de Leonardo da Vinci, mas que só tomaram corpo, no século XVI, com Vesálio (Golf e Truong,
2006). Embora saibamos que Leonardo da Vinci dedicou-se com afinco à dissecação de cadáveres, movido por uma
curiosidade, suas idéias não tiveram expressão, na época em função das proibições religiosas. Além disso, seus quase mil

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desenhos de anatomia ficaram engavetados por um longo tempo (Mandressi, 2005). Duas décadas, após a morte de Leonardo
da Vinci surge, no cenário científico, um homem que revolucionou o saber anatômico sobre o corpo, contando, desta vez,
com a autorização e reconhecimento da Igreja da dissecação de cadáveres. Trata-se de Vesálio (1987) que deixou à Medicina
o seu grande legado De corporis humani fabrica, publicado em 1543. Sem dúvida, Vesálio “é o autor de um manifesto que
anuncia a irrupção de uma scienza nuova conduzida pela virtuosidade manual e acuidade do olhar” (Mandressi, 2005, p.
319). A realidade invisível acerca do interior do corpo, uma vez demonstrada, era meticulosamente avaliada pelas
autoridades eclesiásticas que decidiam pela continuidade ou não desses estudos, bem como da circulação e divulgação das
idéias. O que de tão misterioso era desvelado do interior da instância corpórea, senão a presença viva do humano?
A postura interditora da Igreja deve ser entendida como o reconhecimento da visualização de vestígios humanos
nos cadáveres. Foi necessário transcorrer dois séculos para que a Igreja colocasse o corpo a serviço do saber científico.
Devemos a Vesálio o nascimento oficializado de um saber que sustenta a distinção entre um homem e seu corpo. O
empreendimento dos anatomistas em abrir cadáveres concorreu para a abordagem do corpo, mas à custa de um esquecimento
brutal: ali era a morada de um sujeito, pois os dissecadores tratavam o corpo ignorando o fato de que o mesmo encerra a
presença do humano. Grande ironia: dissocia-se o corpo do homem para estudá-lo como realidade autônoma. Vesálio (1987)
abre o corpo do homem e desvela o segredo da carne que circula em imagens anatômicas. Se há uma revolução, esta consiste
na conquista do segredo que emerge da realidade invisível do corpo. Mas, em que condições? Aos homens da ciência exigia-
se indiferença às tradições sacralizadoras do corpo e às proibições supersticiosas para penetrarem num microcosmo com uma
lente de aumento comparável aquela que Galileu empreendeu a leitura do universo utilizando as grandezas matemáticas
(Koyré, 1991). Tanto Galileu quanto Vesálio são tributários de grandes revelações: um desnudou os mistérios do universo e o
outro descortinou as obscuras complexidades do corpo.

3 – O marco revolucionário no estudo do corpo


As idéias de Leonardo da Vinci e de Vesálio sugerem que o artista-cientista e o anatomista não se preocuparam em
produzir “traçados” sob o corpo que expressassem apenas uma objetividade, pois, em ambos, vemos a intenção de dar
visibilidade ao interior do corpo, desta feita projetando-o no espaço. Em certo sentido, os valiosos traçados que desvelam a
interioridade corpórea inauguraram, pelo menos, no artista, um estilo, pois mesmo tendo havido a perda da consistência, o
movimento desses traçados consiste em suplantá-la. Argumenta-se que Leonardo da Vinci “teria feito um livro de anatomia
que teria sido escrito para ser uma cosmografia do minor mondo” (Mandressi, 2005, p. 331). Tal escrita retrata seu estilo
fúnebre que simboliza a preocupação em torno da morte, girando na confusão do desejo de desvelar os mistérios de uma
realidade sacralizada com a angústia. Nas entrelinhas dessa escrita podemos “ouvir” das bocas de Leonardo da Vinci: “abram
corpos e surpreendam-se!”. A surpresa não é senão a perplexidade do sujeito frente aos mistérios que esses traçados encerram
nas posições produzidas, nos movimentos insinuados, nas expressões de horror e na exposição de partes internas do corpo
que, até então, ninguém ousou colocar a céu aberto. Encontramos nas representações vesalianas, forjadas em cadáveres e
esqueletos, vestígios de vida que concorrem para colocar, em primeiro plano, o humano e em segundo o corpo. (Le Breton,
1993). Mesmo considerando o cadáver, em sua objetivação, tem-se a expressão de traços humanos nas posturas. Com isso
vemos emergir um conceito moderno de corpo: não mais a unidade fundida ao cosmo e sim um microcosmo que pode ter seu
interior desvelado e ainda conservar signos do humano.
Depreende-se ainda a mesma intenção de retratar indícios vitais nos traçados de Leonardo da Vinci, pelo seu
interesse, referido por Freud (1910/1996), como mórbido, em capturar a expressão de horror frente à morte no seu acontecer,
eternizando-a em seus esboços. No mundo em que viveu Leonardo da Vinci era facultado aos cidadãos assistir
enforcamentos. Não obstante, havia em Leonardo da Vinci uma curiosidade própria para presenciar cenas de execução de
criminosos. De onde emanam tal interesse e tal curiosidade? Provavelmente do inconsciente do homem Leonardo da Vinci
que se imbuiu da tarefa de retratar artisticamente o momento de execuções, deixando provas cabais, em seu “caderno diário”,
da expressão de dor e horror do homem ante o encontro com a morte (Mandressi, 2005).
Da abordagem dualista produzida por Leonardo da Vinci e Vesálio acerca do homem e seu corpo, pela “viagem” as
sendas dos corpos-cadáver chega-se a outra, também dualista, assinada por dois grandes revolucionários: Galileu e Descartes,
que nos deixou, como legado, a dualidade homem e corpo-máquina. Trata-se do advento da ciência moderna. Em princípio,
assistimos a passagem do homem, de sua posição contemplativa do mundo, para uma posição reflexiva e ativa.
Do corte entre o mundo antigo e o mundo moderno produziu-se o sujeito moderno pelo cogito, como também foi
inventado, pela primeira vez, um sujeito para a ciência. Nesse novo cenário, o homem dotado de um corpo, somente existe na
medida em que seu dinamismo for analisado segundo as grandezas matemáticas (Milner, 1996). A outra consequência deve-
se ao esforço de Galileu em marcar a passagem do mundo fechado da escolástica medieval, comandado pela Igreja Católica,
ao universo infinito apresentado aos pensadores pela física mecanicista. Em certo sentido, conforme assinala Koyrè (1973),
temos a passagem de um mundo do “mais-ou-menos ao universo da precisão.
Em decorrência do progresso resultante do advento da ciência moderna, ampliaram-se os domínios que o homem
realizou pela técnica, marcando assim, outro uso dos sentidos, desta feita, dissociado do corpo, como no domínio das
máquinas inteligentes. Processa-se uma equivalência entre universo, homem e corpo: tudo é máquina e as coisas nada mais
são do que o movimento das partes dessas máquinas. O mecanicismo, elevado ao extremo, serviu de base para o dualismo
entre a matéria e o movimento, o que, no homem, é retratado como sendo a alma ou uma de suas propriedades. A alma é

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concebida como o vetor dos movimentos e o corpo, o lugar onde repercutem os movimentos da alma. Eis o germe daquilo
que, na segunda metade do século XX, configura o homem interpretado como um autômato, numa atualização do
pensamento cartesiano expresso na analogia entre o movimento do universo e do corpo humano, ou seja, tudo é máquina.
Não obstante, o corpo humano é uma máquina específica devido à singularidade de suas engrenagens, devendo assim, tal
máquina ser abordada como um capítulo particular da mecânica geral.
Abordar a instância corpórea, na atualidade requer situar o advento do saber psicanalítico, especialmente, na valiosa
contribuição acerca do corpo. Como sabemos, a cria humana ao vir ao mundo dispõe de uma corporeidade que somente pode
ser considerada “corpo” no sentido de sua materialidade: a matéria que compõe o conjunto de órgãos vitais. De maneira
alguma, podemos aludir a tal instância, como uma totalidade orgânica, visto que o corpo do recém-nascido ainda não foi
ordenado pela linguagem. Isto quer dizer que a constituição resultante da “transformação produzida no sujeito quando
assume a imagem” (Lacan, 1966, p. 94) está ainda no momento inicial de um processo que poderá ser desencadeado ou não.
Podemos, então, considerar o corpo, nessas condições primordiais, o equivalente à matéria sem forma, a uma pura potência
indeterminada. Assim, o corpo é o topos compreendido em termos de uma pluralidade de intensidades energéticas que, num
funcionamento anárquico, é invadido por uma ordenação advinda do âmbito da linguagem cuja finalidade precípua é
direcionar o estado dispersão nos primórdios da vida.

4 – O corpo e a linguagem
O corpo submetido às leis da linguagem pode ser pensado como o lugar da ordem e, assim, situamos a sua
dimensão simbólica. Mas, se analisarmos o estado de dispersão, que não desaparece completamente com inserção da cria
humana no universo da cultura, temos de entender também a instância corpórea como o lugar do acaso. A alusão ao estado de
dispersão próprio do corpo foi durante muito tempo, no Ocidente, um assunto ignorado: em parte, devido à difusão das
doutrinas cristãs e, por outro lado, em razão da “ideologia dominante nas sociedades ocidentais que se opõem às
manipulações definitivas e voluntárias das aparências e do corpo. Valoriza-se o autentico como valor sublime e o natural
como forma intocável”. (Heuze, 2000, p. 7).
O cenário do século XX, apogeu do progresso científico, criou condições tecnológicas para intervir e dar
visibilidade à dimensão corpórea não ancorada pela linguagem seja pela invenção de próteses para, cada vez mais, aproximar
o funcionamento corpóreo ao funcionamento de uma máquina; seja pela transposição de limites mediante a possibilidade de
presenciarmos o corpo em diferentes espaços do planeta numa simultaneidade temporal. No âmbito do corpo-máquina, esta
potência amorfa, teríamos a transformação da dinâmica corpórea em dinâmica de imagens com o objetivo de trazer para o
centro de discussão a incoerência e o invisível. A produção da imagem corpórea que circula, no contexto social, tem a
finalidade de dar-se a ver, ao mesmo tempo em que incita, no espectador, a espera de uma nova imagem e assim alimenta,
consideravelmente, a força do seu desejo de ver. (Castanet, s/d). As imagens produzidas pela parafernália referente ao
progresso científico são da ordem do interminável: cada imagem lançada à disposição do sujeito traz consigo a advertência de
não ser a última. Trata-se de uma genealogia do imaginário científico que se impõe ao homem, no cotidiano, onde aparece
como uma espécie de “apêndice” impalpável de seu próprio corpo.
Poderíamos, a esta altura, fazer remissão ao delicado conceito freudiano de “estranheza inquietante” (Freud,
1919/1996) para situar, no homem dos dias atuais, submetido ao império das imagens, a confrontação entre seu Eu e os ideais
circulantes na cultura que sustentam promessas de bem-estar. O corpo na atualidade é retratado em imagens, tanto na sua
aparência, quanto no seu interior invisível. Aquilo que era mantido “nas sombras”, quer dizer, inacessível ao olhar,
atualmente, coloca-se à disposição dos ávidos olhares técnicos que transformam o corpo e, também, de admiradores que
testemunham essas transformações. Teríamos, nessas circunstâncias, a convergência vertiginosa dos desígnios do
inconsciente dos técnicos com os desígnios do inconsciente dos espectadores?
Certamente, não podemos ignorar que nos encontramos no interstício do jogo de sombras e luzes que produz e
desenha uma “nova” realidade dos órgãos e, consequentemente, do corpo. As imagens disponíveis, nada mais são do que uma
transposição técnica que esvazia do corpo qualquer possibilidade de construção fantasística. Com isso, abrem-se janelas para
“corredores” que desembocam no inacessível da carne, produzindo a saturação da dinâmica corpórea mediante operações
analíticas. No reino da virtualização do corpo e de seu interior temos “uma nova etapa na aventura de autocriação que
sustenta a espécie humana” (Levy, 1996, p. 27). A ação da imagem advinda das máquinas, em circuitos extralimites, concorre
para a autocriação do corpo como telepresença, o que não deve ser compreendido apenas como a projeção de imagens.
Atualmente o interior do corpo é visto, sem que seja preciso levá-lo à mesa de dissecação para realizar cortes e transpor as
camadas que encobrem a sua interioridade, ou seja, a apreensão é visual produzida em linguagem analógica, digital ou
numérica. Cabe salientar que se a ruptura epistemológica empreendida por Vesálio consistiu em encerrar o corpo numa
espécie de imagem-símbolo, atualmente, com o aprimoramento técnico o corpo é tomado na condição de imagem-signo.
Disso conclui-se que a comunidade, no mundo contemporâneo, não mantém mais seus vínculos em função dos valores
sagrados ou simbólicos do corpo e sim das partes destacáveis que aproximam mortos e vivos, configurando metaforicamente
um “teatro dos horrores”: a existência tem sua continuidade mesmo depois da morte.

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5 – Transformações corpóreas e signos de identificação
Corpo, sujeito, signos de identificação: questões espinhosas, especialmente se procurarmos situar o sentido de
corpo. Quando a ciência se une à arte, tendo o corpo como foco, tem-se o engendrar de um imaginário híbrido que reveste a
instância corpórea, pois o corpo, além de sua realidade objetiva, é uma representação, em termos de ser o lugar de projeção e
inscrição de valores. Isso significa que o vivido corpóreo jamais pode ser pensado sem referência à trama de imagens. Não
obstante, entre imagem e corpo temos um verdadeiro dialogo: a imagem se faz corpo e o corpo se torna imagem, sendo assim
os dois lugares de uma transação entre presença e ausência; o vivo e o morto; o visível e o invisível.
O apagar das marcas corpóreas, no cenário contemporâneo, representa a negação das linhas ditadas pela ordem
anatômica, o que produzem rastros disformes e odores fétidos, quase sempre, redundam na emergência de horror, o que
marca a entrada do Sublime. (Kant, 1993). O fato de o corpo ser elevado à categoria de matéria amorfa sugere a possibilidade
de modificá-lo de várias formas, obedecendo à ordem do sublime que causa tanto satisfações agradáveis, quanto assombrosas
como: a) a dor transformada em gozo, mediante uma profunda alteração da consciência, b) angústia e horror transformados
em satisfação, e, c) indiferença no técnico que se presta a realizar as operações de modificações corpóreas em outrem.
A indiferença causada pelo consumo de objetos que prometem a diferença, não singulariza e produz apatia. Tal
estado é denunciado, na atualidade em experiências corpóreas pouco comuns, com o objetivo de firmar oposição aos ditames
econômicos e ao encarceramento ditado pela genética. A prova disso é a transmutação do corpo em palco de realização de
fantasias, de provocação e matéria de criação (Le Breton, 1999), sendo, pois um acessório do homem contemporâneo. Na
rubrica de acessório, situamos o corpo com marcantes transformações que alteram a relação do sujeito com o mundo, pois o
“corpo não é apenas material, uma vez que encerra a possibilidade de se ver imaterializado pelo enxerto do véu imaginário e
da palavra” (Didier-Weill, 1997, p. 21). Não sendo mais considerado um dado permanente e sim matéria amorfa, o corpo é
capaz de receber quaisquer modificações sem seguir os critérios do progresso científico. Nessa acepção, ao corpo é
acrescentado outro sentido que recobre o caráter blasfemo, escatológico, lugar da dor e do gozo pelo sofrimento.

6 – Transmutar o corpo em evidências ditadas pelo consumo


O corpo transformado e desfigurado não traduz um apelo de outrem, pois não apresenta uma estética que
desencadeia a pastagem para o olhar. Certamente é, sem duvida, o apelo mais evidente à angústia de outrem no sentido de
que o corpo, profundamente marcado e alterado convoca o espectador a atirar-se na vertigem da angústia. Produz-se assim
uma modalidade de gozo que consiste em mostrar um ser deformado e mutilado, sem que esteja em jogo o dar-se prazer,
visto que, quem altera o corpo atende a um imperativo categórico formulado nos seguintes termos: é preciso intervir no corpo
de todas as maneiras possíveis.
O homem, em seus rituais cotidianos ritual, ao subtrair de seu corpo a dor, não forja qualquer meio de
simbolização, ficando sua ação como uma espécie de um transbordar produtor de angústia. Trata-se de um êxtase que o
“sujeito experimenta, mas do qual nada sabe, o acaba por colocá-lo na via da ex-sistência” (Lacan, 1975, p. 71). Estamos,
pois no campo do gozo. O acontecimento realizado com o corpo, especialmente no transbordar de um excesso, interessa
menos o caráter estético do aquilo que pode ser apreendido ma fratura da cadeia significante, num além inominável e
indizível. Desse modo, tem-se um excesso situado exatamente no lugar daquilo que é aprazível aos olhos: um exceder de um
limite onde nada mais pode ser produzido. Eis a tradução de algo sinistro que, ao mesmo tempo, inquieta e produz satisfação.
Daí decorre então a possibilidade de encontro com o horror, especialmente, quando o corpo é transmutado em condição de
cadaverização, ou de matéria inerte, onde o sujeito põe em contenção a ocorrência da intensidade dolorosa. Tem-se, nesse
modo de proceder, não só a elevação do objeto corpo à dignidade da Coisa (mesmo que seja um tipo de sublimação às
avessas), como também uma possível evidência do objeto “a”, pois o corpo cadaverizado contorna um vazio apenas em suas
bordas. É como se corpo fosse arrancado das malhas do simbólico e lançado no real sem qualquer véu imaginário. Não só do
corpo subtrai-se à dor, como do sujeito é subtraído o corpo, na sensação singular vivida, pelo sujeito, quando coloca seu
corpo em suspensão, no duplo sentido do termo.
Retirar a dor do corpo e retirar o corpo do sujeito: êxtase místico ou gozo no campo da ex-sistência? O que se
produz na fratura da cadeia significante, além do inominável e do indizível, da ordem do Sublime é um excesso que
desemboca no horror por ser algo inapreensível na teia simbólica. As interferências que o sujeito opera no corpo encerram
duas possibilidades: o caráter destrutivo da memória corpórea, aspecto nocivo que encerra uma dose de masoquismo e o
horror. São acontecimentos que não remontam a rituais de passagem para venerar o sagrado nem selam iniciação e
pertencimento a comunidade. Encobertas por um manto sinistro que parece desvelar algo,essas ações no corpo encerrarem
um mistério, principalmente, por serem marcas inscritas como signos permanentes de memória que têm a pele como o lugar
de uma escrita realizada em razão do dinamismo corpóreo. Mas, aquele que trafega pelos recônditos do desejo do homem no
seu projeto de busca incessante de felicidade não pode evitar indagar-se: essas experiências corpóreas, o que causa um sujeito
em oferecer seu corpo, desvencilhando-se da dor, a múltiplas transformações, para criar um espetáculo que, faz irromper, no
espectador, angústia e horror? Isso nos remete a uma outra faceta do desejo inconsciente: aquela que expressa o lado obscuro
do existir em que a dor, elevada ao ícone de gozo, assume uma dupla função: catalisar a excitação sexual para em seguida
ampliá-la e possibilitar um alcance extremo. Não obstante, a dor não é um prazer final, visto ser apenas um meio. O problema
físico da dor deve visto sob o ângulo da misteriosa capacidade de produzir o êxtase, sendo que o sofrimento, angústia e o

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horror, inicialmente, associados ao prazer culminam em gozo à medida que suas intensidades são elevadas. (Freud,
1924/1976).
A ação de “destruição” do corpo resulta do excesso pulsional que abrevia o circuito reativo ao regime das
representações ou se vale de um circuito extra-representável. Essa forma de expressão artística possibilita uma satisfação
pulsional, pela crença de que o objeto “a” pode tomar corpo, pois o sujeito, quando sua consciência encontra-se alterada,
suporta a dor sem considerar sua existência. Com isso, oferece ao outro a possibilidade de ver-se inundado de angústia pelo
horror traduzindo pela de irrupção do objeto “a”.

7 - Corpo e sujeito no cenário da contemporaneidade


Diante de circunstâncias existenciais, indaguemo-nos: qual a razão de ser dos movimentos e dessas formas que o
sujeito elege como estilos de vida no cenário da contemporaneidade? Sem dúvida, a primeira idéia a ser formulada é que tais
acontecimentos são expressões de uma temporalidade, provavelmente essa inaugurada com o ocaso da modernidade. Tudo é
efêmero: corpos mutáveis, hábitos passageiros e formas instáveis. Tudo isso é coerente com o panorama de uma época em
que tudo é captado como fenômeno globalizado. A extensão dessas ocorrências é bem ampla: não há mais singularidade: o
diferente se produz na repetição em série. Teríamos nas escolhas subjetivas, da contemporaneidade, alguma crítica às
condições reguladoras da tessitura social? Considerando o caráter impactante e mobilizador de tais fenômenos, acreditamos,
serem, de alguma forma, movimentos críticos de rupturas denunciadores que se enfileiram contra os arranjos forjados no
contexto técnico-científico e nos ideais de universalidade pela anulação e apagamento das nuanças próprias demarcadores
dos indícios de singularidade, cuja lógica se assenta na divulgação de um padrão de modus vivendi disponibilizado para ser
consumido de forma demasiada e desmedida. Devemos pensar tal impacto como um momento crítico de questionamento aos
paradigmas que até então eram tomados como suportes inquestionáveis.
A experiência corpórea na atualidade se inscreve, se escreve e é escrita, de forma terrificante, nos diversos espaços
vivos do corpo, seguindo uma temporalidade assaz imprevisível. Nesse sentido, o corpo é o receptáculo que ancora a maior
concretude da realização fantasística, na medida em que tem seu contorno marcado por uma matéria parcialmente variável
que transcorre um percurso no tempo.
A temporalidade, marcada corporalmente, traz consigo o signo das aspirações concernentes às possibilidades de
realização do desejo, seja em função das intervenções produzidas no campo do saber médico em nome da utilização das
técnicas científicas mediante o uso de próteses corretoras, seja pelas deformações, alterações, exposição de vísceras,
utilização dos fluidos corpóreos para outras finalidades e subversão da função de órgãos e sistemas fisiológicos, manancial de
técnicas e estilos empregados pelo sujeito de nossos dias.
As pressões decorrentes das frenéticas expressões destrutivas forçam a realização de cortes, esmagamento,
despedaçamento e a fragmentação do corpo, de modo a deslocar a unidade corpórea ou mesma alterá-la, especialmente, na
ressonância às pulsões parciais e à morte. De qualquer modo, disponibilizar o corpo para manipulação é dotá-lo da condição
de ser algo que produz prazer, principalmente, o estranho prazer da desapropriação quando o sujeito consegue uma espécie de
desalojamento de seu corpo para dispô-lo em circulação como objeto de demonstração, seja para atender as exigências
relativas aos ideais estéticos divulgados como padrões corpóreos aceitáveis, seja, num movimento contrário, em que se
produzem marcas que causam horror uma vez que, em termos de compreensão possível, tangenciam o indizível e o
indecifrável.
As técnicas científicas modernas acabam por produzir novas modalidades de corpos que variam segundo o método
empregado tantos nos procedimentos para preenchimento quanto nos de retirada e ainda na produção de buracos e cicatrizes
decorrentes de utilização de objetos cortantes, pesados, resistentes e perfuradores. A finalidade de tais atos consiste em
alcançar uma instância corpórea repleta de buracos, cicatrizes, quelóides e outras alterações, relembrando-nos a alegoria
cristã de São Sebastião que aprece como mártir num estado de êxtase, amarrado com o corpo crivado de flechas.
Eis o terreno sombrio que nos deparamos quando tentamos uma articulação bastante complexa em razão da
circunscrição das impulsões na contemporaneidade aliada à problemática do consumo como imperativo de gozo, no cenário
da atualidade. Quando não estamos diretamente na esfera do consumo, estamos diretamente no campo do gozo. Em princípio,
cabe refletir sobre o porquê de as impulsões terem expressão significativa e serem as modalidades de afecções psíquicas mais
frequentes na atualidade. Deve haver uma explicação para esta circunstância que somente pode ser formulada se
considerarmos os esteios que dão suporte a era em que vivemos denominada de contemporaneidade, com seus avatares entre
os quais encontramos uma modalidade diferenciada de consumo, cuja pretensão é a de nivelar todos os sujeitos num padrão
de universalidade, em séries repetidas a partir de critérios de igualdade difundidos pela mídia. As oferendas disponibilizadas
para consumo insinuam-se como promessas de bem-estar e felicidade. Ao aderir aos atrativos do cenário contemporâneo, o
sujeito parece seguir trilhas que, em consequência, anulam praticamente o movimento desejante, dada a política do consumo,
de forma desmedida e centrada no excesso. Ao invés de apostar nas condições que sustentam o movimento relativo ao desejo,
o homem da atualidade, ao vislumbrar apenas o horizonte onde só é possível o gozo, não tem como evitar, viver estados de
apatia, indiferença e paralisação. Estas polaridades afetivas colorem o cenário da contemporaneidade. Certamente nesse novo
cenário, as possibilidades de respostas são provavelmente outras: daí termos a impulsividade carreando as novas produções
subjetivas. Frente a estas, quando as analisamos, tudo nos leva a crê tratar-se de um vazio de subjetividade o que pode ser
pensado como o esforço hercúleo do homem atual para atender aos ideais de uma universalidade na ausência de qualquer

411
colorido desejante, o que pode levá-lo a autodestruição ao invés de ser um esteio para a produção de uma singularidade. Eis a
resposta a um imperativo impossível de ser cumprido que colore a vida do homem nos dias atuais: consuma o excesso! A esta
altura podemos nos indagar: essas novas produções subjetivas não são as respostas possíveis ao homem na atualidade?
Certamente é o modo de ação frente a essa experiência de pura passagem, para indicar um estado de desamparo radical e de
tensão interna, em razão do abandono vivido em consequência da pulverização da função paterna (Jullien, 1991). Como
sabemos, na segunda metade do século XX, a técnica bem como os saberes especializados passaram a ter uma posição de
destaque.
Caberia interrogar se essas respotas não seriam movimentos indicadores da existência de algo no cenário
contemporâneo que, como uma plaina, nivelam os sujeitos impossibilitando expressarem-se em termos de singularidade? Em
outras palavras, trata-se de apelos dirigidos às pressões que exigem do homem abrir mão de mecanismos relativos à condição
desejante. Diante da possibilidade de aniquilação, têm-se movimentos reativos que se afiguram na contramão da corrente
ditada pelo cruzamento do discurso capitalista, que “se caracteriza por ser um movimento circular em que a apropriação do
gozo não encontra nenhum obstáculo” (Aleman, 1994, p. 57), com o progresso científico. Desse encontro decorrem ações
sugestivas da circularidade ditada pelo progresso científico atrelado ao capital que recusa as determinações concernentes à
castração. Além disso, evidenciam a impossibilidade de utilização de recursos, nesse cenário tão adverso, para o sujeito traçar
em filigranas ínfimas, os esteios de uma singularidade visando a combater o estado de apatia e indiferença em que se
encontra num mundo que a diversidade somente faz seriação escamoteadora da diferença. Não obstante, a saída pela escolha
de uma produção subjetiva não é em si mesmo totalmente libertadora, uma vez que verdadeiros estados de petrificação
produzidos pelas exigências decorrentes de duas injunções opostas: a) obedecer a injunções impossíveis e, b) a necessidade
de traçar marcas de singularidade. É conveniente alertar para o fato de que, erroneamente, pode-se pensar que, em tais
circunstâncias, tudo leva a crer que o sujeito estaria abdicando de sua condição desejante agindo puramente por dever,
atendendo a um imperativo categórico. Não obstante, as impulsões não se reduzem a uma pura e simples ordem de um
carrasco íntimo. Existem outros determinantes em jogo! A inclinação irresistível ao gozo pelo uso de objetos de consumo
efêmeros e descartáveis não se reduz aos imperativos: coma! beba! ou se drogue! Muito pelo contrário, os atos impulsivos
são uma tentativa, ainda que fracassada, de firmar um lampejo de subjetivação que não se efetiva como afirmação do desejo
sendo também os recursos empregados como mecanismos, em certas situações, para fazer “obstáculo ao cumprimento da
injunção cruel” (Gondar, 2001, p. 30). Assim temos produções subjetivas que flutuam devido ao atendimento aos
imperativos que comandam o cenário atual e impulsões, idealizados pelo sujeito para conservar, por uma via inapropriada,
nuanças de singularidade. Enfim, as incursões do homem moderno às impulsões, representam, na verdade, modos de
demandas subjetivas que põem em cena, de maneira esfumaçada, a engrenagem desejante além de serem fortes evidências de
satisfação pulsional que confrontam o andamento do trabalho clínico, por vezes, levando a interrupções e insucessos de
outras naturezas. No tocante às impulsões, estamos diante de freios poderosos que estagnam o movimento desejante, o que
faz considerável obstáculo ao trabalho da transferência. Nesses processos de inibição ou paralisação do trabalho clínico,
resultam modalidades de gozo, semelhante ao que ocorre na ação de consumo desmedido, que envolvem um culto ao corpo
como objeto excêntrico e sinistro disposto publicamente para causar horror e angústia em marcados rituais de auto-tortura
numa glorificação e exultação desmedida do sofrimento. Sem dúvida, “essa ação de exibir o corpo em todos os seus estados
de lesão vem, primeiro, opor-se à longa tradição do papel atribuído à arte de transfigurar a verdade orgânica do corpo”
(Jeudy, 2002, p. 122).
Podemos, a par do exposto, considerar que há no corpo um invólucro que o contém com a finalidade de manter
oculta a realidade orgânica que, supostamente, deveria ser desvelada, exatamente por se tratar de um conjunto de mecanismos
relacionados à putrefação própria das funções excrementícias, com seus produtos de cunho escatológico. Eis o tratamento
concernido ao corpo, revestido de características que mantém estreitas relações com o corpo cadáver. O empreendimento
desejante que faz do corpo o palco de ocorrência, numa experiência que ultrapassa os limites da satisfação, visto encerrar
uma forma mortífera de gozo que, como tal, é o “resto que não tem qualquer utilidade, localizado num ponto fora do corpo”
(Bruno, s/d, p. 25), subordinado à pulsão de morte. Assim encontramos, nas produções subjetivas, sujeitos que se apresentam
em posição de objeto, sem que transpareça a condição desejante, uma vez fica configurado uma espécie de ganância que,
dificilmente, pode ser circunscrita no âmbito da transferência, especialmente, em termos do processo de associação livre.
Trata-se de incursões que são realizadas em atos nos quais fica patente a aposta empreendida, pelo sujeito, sem contar com o
Outro diante de uma modalidade de satisfação destrutiva, a qual se sente impotente para renunciar. Diante de uma exigência
dessa natureza, o sujeito sente-se obedecendo a um Deus obscuro que quer o sacrifício máximo em encenações de
autodestruição. Assim o homem contemporâneo torna-se um autômato em movimento sem direção enclausurado num
profundo estado de desamparo, chegando também ao estado de aniquilamento.
Na verdade, têm-se, de um lado, a exigência que escraviza o sujeito fazendo decair à mera posição de consumidor
contumaz, mediante a promessa de ser esse o caminho para a satisfação pretendida. Daí, o sujeito não medir esforços para
conseguir os bens produzidos pela ciência, como oferendas promissoras, disponíveis no mercado para serem consumidos,
sem qualquer intervenção do pensamento, ou seja, faz-se necessário apenas à vontade de consumir. Num circuito ininterrupto
e incontrolável, consome-se o supérfluo, de forma contumaz. De outro, situamos o grande paradoxo: o sujeito tem de ter
condições materiais para a aquisição de bens. No círculo vicioso, em que consome e rapidamente descarta os objetos,
encontra-se impotente e excluído por não estar de posse da aparelhagem destinada à aquisição dos novos objetos que são
apresentados com mais apropriados para a satisfação. Como consequência disso, o sujeito fica aprisionado numa espécie de

412
circuito em que é comandado pelo objeto, numa modalidade de satisfação instantânea que parece deixar de fora o pensar e o
desejar.
Tudo se insinua num fluxo contínuo, sendo essa a modalidade de gozo destrutivo e mortífero que, resultado do
desgarrar decorrente dos novos padrões de funcionamento da tessitura social, pelo seu esgarçar, evidencia os elos frouxos ou
apodrecidos, no espaço apropriado para que esta experiência de consumo desmedido tenha lugar. Conformam-se, assim, por
caminhos opostos, movimentos reativos aos esteios que regulam as engrenagens do contexto social.
A palavra de ordem parece ser edificada na promessa de obtenção do impossível, por intermédio de técnicas que
ofereçam modalidades de satisfação sem o menor esforço. Mas, para isso é preciso que o homem contemporâneo tenha
condições de acesso aos objetos de gozo que, aparentemente, são oferecidos a todos! Assim, tem-se o ideal científico de
nivelamento pelo consumo que, como comando técnico, anula a singularidade do pensamento e consequentemente torna o
desejar desnecessário diante dos saberes produzidos com validade universal e difundidos como meios eficazes e seguros de
garantia da existência. Sendo assim “a técnica engendra situações de impasses às quais não há como se produzir alternativas
de respostas” (Sinatra, 1995, p. 27), uma vez que os objetos ao serem lançados no mercado, em larga escala, devem ser
rapidamente consumidos, pois já existem outros que irão ocupar os lugares daqueles que estão em circulação. Argumenta-se
que o consumo rápido tem o objetivo de evitar recessões e crises econômicas. Mas o que se afigura são questões de cunho
ético que exigem do homem moderno avaliar as consequências de seus atos automatizados na exclusão quase completa de
seu desejar.

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413
Modos de vida e padrões de consumo: travestismo e prostituição em Juiz de Fora,
Brasil
Marcelo Tavares
Faculdade Metodista Granbery
[email protected]

Resumo: A partir da constatação de que o sexo é um assunto que vem sendo tratado com mais abertura desde os movimentos sociais
iniciados nos anos 1960, a visibilidade sobre opções sexuais e formas de se apresentar sexualmente na sociedade têm ganhado maior
destaque. Uma dessas formas é a do travesti, imagem feminina em corpo masculino, segundo o consenso mais recorrente. O objetivo dessa
comunicação é analisar padrões de comportamento e de consumo de travestis na cidade brasileira de Juiz de Fora, identificando como esse
grupo que se prostitui, também se relaciona na cidade com seu próprio corpo, com o consumo material e com o ideário simbólico que estão
presentes no dia-a-dia. Assim sendo, percebemos que as mudanças ocorridas nos padrões de comportamento e de idéias foram significativas.
Para identificarmos essas transformações realizamos entrevistas com o público alvo desse estudo em dois tempos distintos - 2002 e 2008, ano
no qual verificamos que a grande parte dos entrevistados inicialmente havia falecido em decorrência de doenças relacionadas à AIDS.
Entretanto, outros travestis, mais jovens, se juntaram aos poucos remanescentes da primeira etapa de entrevistas e disputam os mesmos
espaços de prostituição, com percepções diferentes sobre os temas que destacamos. Assim, chegamos a algumas conclusões iniciais: houve
uma redistribuição no número de travestis que se prostituem no recorte espacial adotado, existe um esclarecimento maior sobre doenças
sexualmente transmissíveis, continua o desejo pela compra da casa própria e permanecem os sonhos de mudança para a Europa.
Palavras-chave: Prostituição; Consumo; Travestismo.

Motivações gerais para ida a campo


“(...) com o questionamento do sistema patriarcal por homens e mulheres, começam a despontar formas de viver a
sexualidade. Cada vez um número maior de pessoas busca o prazer através de relações sexuais mais livres, respeitando
o próprio desejo e o modo mais satisfatório para os envolvidos1”.

O objetivo deste trabalho é apresentar a subcultura dos travestis de Juiz de Fora, cidade do estado brasileiro de
Minas Gerais, localizada a 200 km de distância do Rio de Janeiro (e do litoral) e com aproximadamente 500 mil habitantes.
Destacamos aqui que o conceito de subcultura é repassado a partir de questões ligadas à sexualidade, aos hábitos de consumo
e à vida particular do grupo entrevistado. Para uma cidade de porte médio, com aspectos culturais muito próximos de cidade
de interior, ou seja, com uma mentalidade arraigada a padrões clássicos da noção de família e de posturas sexuais,
compreender como o travesti se insere nesse universo é relevante. Até que ponto essas novas formas de viver a sexualidade,
que nos fala a sexóloga Regina Lins, são postas em prática numa cidade com as características de Juiz de Fora? Na verdade, a
cidade por ser pólo de atração regional recebe uma grande massa de estudantes, pessoas que procuram por serviços médicos,
negócios e comércio. Esse fluxo atrai um público com hábitos diferenciados, vindos muitas vezes de cidades pequenas.
Contudo, a cidade, paradoxalmente, é conhecida no Brasil inteiro como o lugar onde acontece uma das maiores festas
voltadas para o público homossexual – o já tradicional concurso de Miss Gay, sempre em agosto, além de ter uma legislação
específica de combate à homofobia. A partir dessa dinâmica que mescla tradição e vanguarda, há um mercado estabelecido
na cidade que inclui a busca por sexo nas mais variadas formas, o que insere o travesti, quase sempre pela via da prostituição.
Desta forma, através de um exercício de observação com entrevistas realizadas em campo, procuramos entender
como o fato de ser travesti influencia na vida particular do indivíduo de uma forma geral, como este se percebe e o que
almeja. As observações e entrevistas aconteceram em dois tempos distintos - 2002 e 2008 e em dois pontos de atuação
existentes na cidade: Avenida Independência e Rua Francisco Bernardino, ambas localizadas no Centro da cidade. As
primeiras entrevistas foram realizadas para pesquisa para a pós-graduação. Anos depois, motivado por diversas reportagens
que abordaram o tema de prostituição na cidade, resolvi realizar novas entrevistas para comparar o desenvolvimento do tema
depois de transcorridos seis anos. Podemos observar que em Juiz de Fora há situações que são comuns a outras cidades,
inclusive no que tange ao comportamento dos travestis. No entanto, por ser de menor porte, passamos a identificar mais
facilmente alguns componentes desta subcultura, como a maneira de se inserir no mundo, bem como, as estratégias para
atuarem na cidade, e isso continua bastante semelhante até hoje.

Metodologia do Trabalho
A metodologia utilizada nesse trabalho baseia-se, sobretudo, na pesquisa de campo. Foram destinados alguns dias,
no período noturno, observando os pontos em que os travestis atuavam, a aparência do público que os abordava e a forma
como se vestiam. Após esse trabalho prévio de observação, foram realizadas as entrevistas e pudemos conhecer mais

1
LINS, R. (1997, op.cit. p.209).

414
profundamente os hábitos e desejos do público pesquisado. Essa metodologia foi utilizada do mesmo jeito, nos dois tempos
distintos, os anos de 2002 e 2008.
Foi elaborado um questionário padrão que explora perguntas abertas, ou seja, perguntas que permitem um
comentário mais subjetivo, importante para a extração de dados mais qualitativos do que quantitativos. O questionário se
divide em três blocos. O primeiro, que tem por objetivo favorecer a uma aproximação com o entrevistado, e assim, explora,
sobretudo, a sexualidade. O segundo, mais voltado para o consumo e o terceiro, direcionado para a vida particular do
entrevistado.
Os travestis entrevistados foram doze no total e possuem idades que variam de 22 a 39 anos. Percebeu-se que
existem dois únicos pontos de atuação na cidade, a parte alta, localizada na Avenida Independência e que é frequentada pelos
travestis mais novos e inexperientes e a parte baixa, localizada na Rua Francisco Bernardino, majoritariamente ocupada pelos
travestis mais velhos, com mais anos “de pista”, segundo gíria utilizada no meio. Verificou-se que existe certa barreira entre
os dois grupos de travestis da cidade, pois, os mais novos não podem fazer ponto na parte baixa, mas, os mais velhos podem
fazê-lo na parte alta, se desejarem.
A maioria entrevistada considera ser travesti “estar montada de mulher 24 horas”, outro termo que se refere ao fato
de estarem sob a forma de mulher, em trajes, gestos e também espírito. Segundo os entrevistados, para que isso aconteça é
necessário estar a par sobre o que é veiculado nas telenovelas e programas de televisão, para de alguma forma reproduzirem
nas roupas e maquiagens que usam as referências que julgam ser positivas.

A Escolha do Grupo
Para compreendermos melhor o objeto de estudo proposto pelo trabalho, é necessário que saibamos o que significa
o termo travesti. Segundo a sexóloga Marta Suplicy: “quase todos os travestis são homens, heterossexuais, que sentem
necessidade de usar roupa de mulher para obter gratificação sexual, e não querem mudar de sexo2”.
Contudo, podemos acrescentar ainda que nem todos os travestis são heterossexuais, pois, demonstram claramente o
desejo pelo parceiro do mesmo sexo, principalmente quando se utilizam da forma travestida para atuarem comercialmente,
buscando clientes para programas sexuais. Essa parece ser, inclusive, a forma mais recorrente, ou seja, a maior parte dos
travestis na verdade são também homossexuais, e atuam tanto ativa quanto passivamente na relação sexual, dependendo mais
da vontade do cliente do que do desejo do travesti, pelo menos, quando estão fazendo programa.
Sobre o termo travesti, há a indicação que ele tem origem na língua francesa, pois Travestie se referia à forma como
algumas mulheres se vestiam em espetáculos, com roupas provocantes, ainda no século XV. Portanto, o termo se refere mais
a uma condição identitária do que a uma orientação sexual, e é sabido que há relatos muito antigos da existência de uma
espécie de “terceiro sexo” há milênios3. Provavelmente, pessoas que fossem hermafroditas ou apenas que adotassem um
comportamento ambíguo.
Motivado por conhecer a rotina dos travestis da cidade de Juiz de Fora a fim de ampliar o conceito de travesti na
sociedade atual4, pudemos verificar que o desejo de ser mulher é inerente a todos os travestis, independente da localidade em
que se encontram. Sabemos que a Europa concentra as cidades onde o travestismo é uma prática recorrente e muito bem
remunerada. Milão, Paris e Roma são os sonhos de consumo dos travestis que desejam fazer dinheiro para realizarem a
muitas vezes desejada operação de mudança de sexo. Esse desejo os faria sentir “mulher de verdade”, mas, os colocaria no
patamar da transexualidade, objeto de outra subcultura, que não é o foco de nosso estudo neste trabalho.
O que é notório e determinante para a escolha da subcultura dos travestis em Juiz de Fora é saber que, independente
do tamanho da cidade e da localização geográfica, os travestis possuem o desejo de se apresentarem como mulheres na maior
parte do tempo. Isso não representa, entretanto, que têm interesse em fazer a operação para a mudança de sexo, pelo forte
argumento de que isso os impossibilitaria de continuarem atuando comercialmente com algum sucesso.

Resultados das entrevistas – uma análise comparada


A cidade de Juiz de Fora é famosa por exportar travestis para outras cidades do Brasil e até para o exterior. Muitos
deles foram bem sucedidos na Europa e hoje retornaram para a cidade usufruindo do conforto que o trabalho anterior
proporcionou. Esses travestis não atuam mais na cidade, mas continuam sendo referência de sucesso para os que estão
atuando. Há seis anos atrás era evidente a concentração dos travestis no centro da cidade, especialmente nas avenidas
Francisco Bernardino e parte baixa da Independência. Hoje, a pulverização é muito maior e eles estão espalhados, além
dessas avenidas, que concentram a maioria deles, por outras áreas da cidade, como Avenida Getúlio Vargas e as ruas Santa
Rita, Batista de Oliveira, São Sebastião, Marechal Deodoro, Floriano Peixoto, Praça do Riachuelo e ruas de bairros da

2
SUPLICY, M. (1983, p.295).
3
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Travesti, acesso em 10/10/2008.
4
É bastante complexo lidar conceitualmente com os diferentes grupos e terminologias que expressem comportamentos ligados à sexualidade em geral e
especificamente àqueles relacionados à homossexualidade. Temos, hoje, diferentes termos que se referem a grupos com orientações bastante diferentes, como
drag queen, homens que se vestem de mulher para se divertirem na noite, não fazendo programas necessariamente. Transexuais são considerados aqueles
homens ou mulheres que mudaram de sexo, tanto através de cirurgias autorizadas medicamente, quando as realizadas por conta própria, entre outros.

415
periferia da cidade, como Benfica e Santa Terezinha. Identificamos que a cidade está diferente onde o principal núcleo atua,
com a reforma de espaços adjacentes, a melhoria da iluminação urbana e a criação de pontos comerciais que estimulam a
maior circulação de pessoas. O ponto de atuação desses travestis que antes eram restritos a duas avenidas, se expandiu por
todo o centro da cidade e até para além deste.
Essa disseminação aconteceu pela dissolução de grupos que controlavam os pontos de prostituição e exigiam
dinheiro das mais novas para manter as mais antigas. Esses travestis mais velhos morreram ou pararam de atuar e uma nova
mentalidade foi instituída, permitindo essa abertura.
Existem hoje em Juiz de For cerca de 30 travestis que atuam no centro da cidade e outros tantos espalhados pela
periferia dos bairros. Desse total, existem travestis com prótese de silicone e que vivem a fantasia de ser mulher 24 horas.
Existem também os que se vestem de mulher para atuar como travesti à noite, porém, não possuem prótese de silicone e são
mais humildes. Geralmente, estão drogados, andam em grupo e seus clientes são os transeuntes que fazem sexo pagando
muito pouco ou nada. Contudo, fui surpreendido com uma nova categoria de travesti que não existia há seis anos atrás: as
“drags”, como se denominam. Entrevistei uma dessas na periferia da cidade, num bairro próximo à rodoviária e atuando
numa rua escura, ao lado da linha férrea. Era a mais nova, 19 anos, e a que possui maior grau de instrução. Mora com os pais
e atua como travesti para expor suas roupas, se divertir, fazer sexo (porque gosta) e ainda ganhar dinheiro. Essa nova
categoria, segundo a entrevistada, atua somente durante a semana, pois, nos finais de semana, faz shows em boates do
circuito chamado GLS5 da cidade e não quer ser encarada como mulher. No máximo, uma garota.
De acordo com as entrevistas e percepções pessoais, identificamos que existe uma necessidade do travesti estar
sozinho no momento da abordagem dos clientes, pois, segundo eles próprias relataram, os clientes não param se houver mais
de um travesti no ponto de prostituição. Então, os mais exuberantes e quase sempre com o corpo transformado por silicone,
adotam a postura de escolher locais mais claros e quase sempre permanecer sozinhos, esperando que os clientes parem e os
abordem.
Por outro lado, os mais carentes e menos exuberantes permanecem em grupo já que a grande parte dos seus clientes
é composta de transeuntes que os abordam e propõe a prática sexual num local escuro e ermo, depois da linha férrea. O preço
do programa é bem menor, a proteção é quase sempre nula, mas infelizmente existe em grande escala. Esses travestis, que
atuam em grupos e nos locais mais escuros e perigosos da cidade são unânimes em afirmar que desempenham a atividade por
dinheiro, não têm medo da AIDS e só usam preservativos se o cliente insistir. Todos afirmaram serem usuários de drogas.
Independente de qual grupo faz parte, o grau de escolaridade observado não passa do elementar. Foi observado
também que a grande maioria gosta de se definir sexualmente como mulher, por levarem em consideração como se sentem,
sobretudo no ato sexual. A maioria entrevistada ainda considera ser travesti “estar montada de mulher 24 horas”. Porém, o
relato da “drag” condenou o travestismo, afirmando que “é burrice mutilar o corpo para ganhar dinheiro e ter prazer, pois
tudo pode ser resolvido com a fantasia”, o que já traz uma nova concepção para a compreensão do travesti. Quando
perguntados sobre os grupos que havia antes e como está hoje, a maioria afirmou que atualmente está muito melhor, pois
existe mais liberdade. Contudo, todos foram unânimes em afirmar que não fazem uso dessa liberdade por haver preconceito
entre eles próprios. Existe o grupo dos mais bonitos, dos que têm silicone, dos que se vestem melhor e, dessa forma, os
grupos vão se formando e a discriminação aumenta e novas territorialidades vão sendo construídas.
A respeito dos clientes, estes, são variáveis. Para os travestis mais bonitos, que efetivamente possuem prótese e
vivem a personagem feminina dia e noite, a clientela é formada por homens que passam de carro e as levam para o motel ou
suas próprias casas. O preço do programa parte de R$30,00 e pode chegar a R$100,00. Eles dizem que aceitam programas de
R$30,00 quando o “bofe vale a pena”, ou seja, é muito bonito. O público das mais humildes e menos favorecidas pela beleza
é composto de transeuntes que pagam pouco ou nada. Eles cobram R$10,00, mas fazem o programa pelo que eles podem
oferecer (cigarro, bebida, moeda ou nada). Já a “drag”, afirma que a sua clientela é composta de jovens, bonitos e “bem-
dotados” e que cobra cerca de R$30,00 por programa. Faz questão de afirmar também que a sua principal motivação é o
prazer de se vestir de mulher e o prazer sexual, que sempre é feito com camisinha. Sobre o dinheiro, diz que este é bem
vindo, mas não é primordial.
Quando perguntados sobre o que precisam para se montar, os travestis siliconados ou com prótese afirmaram que
precisam apenas de maquiagem. Já os menos favorecidos precisam de maquiagem, roupa, salto alto, enfim, de tudo que é
necessário para se caracterizarem de mulher, uma vez que vivem “desmontados” durante o dia. A “drag” disse que precisa de
maquiagem, pouca roupa e um bom salto, pois, “a beleza eu já tenho”, demonstrando absoluta segurança na compreensão
positiva de sua auto-imagem, independente de artifícios como o silicone, avaliados como fundamentais para definir um
estatuto superior, como no grupo dos travestis entrevistados.
Na sequencia, seguem as respostas das perguntas feitas com relação ao consumo. Perguntados sobre onde
encontram suas roupas e onde as compram, os travestis disseram que compram em lojas de mulheres, “normal”. Os mais
humildes disseram que compram pouco, mas ganham de amigas mulheres e trocam roupas entre eles próprios. Já a “drag”
afirmou que pega as roupas das irmãs e compra muito pouco. Quando indagados sobre como se mantém informados sobre as
novidades da moda, todos apontaram as revistas e a TV como fontes principais de informação. Os travestis, que são os únicos

5
GLS é a sigla usada para designar Gays, lésbicas e simpatizantes. Recentemente, houve uma discussão para iniciar a sigla por “L” para não caracterizar
machismo, além de introduzir outras iniciais, para representar outros grupos. O senso comum aponta a sigla LBGTS – lésbicas, bissexuais, gays, transgêneros e
simpatizantes.

416
que compram roupas em lojas femininas, disseram que costumam fazer compras sozinhos ou acompanhados de outros
travestis, depende da ocasião.
Quando perguntados sobre algo muito importante que compraram, um dos travestis, Patrícia Vermont, de 27 anos,
disse que demorou dois anos juntando dinheiro para comprar o pequeno apartamento onde mora atualmente sozinho. Lembra
que sofreu muito para juntar todo o dinheiro e se sente recompensado pelo esforço. Os outros não souberam relatar uma
história que caracterizasse um envolvimento significativo para a compra de algo. Quando perguntados sobre uma história
marcante de um presente especial que tenham recebido, dois relatos chamaram atenção: o primeiro é também de Patrícia
Vermont, que disse ter recebido o apoio incondicional de uma amiga num momento super difícil pelo qual passou. Encara o
apoio como um presente porque entende “que as pessoas não se doam e nem se preocupam mais com as outras” e essa amiga
especial foi capaz de se doar para ela. O outro relato, de um travesti conhecido por Samantha Star, de 29 anos, disse que
recebeu, durante uma semana inteira, presentes “de um bofe escândalo que queria se casar com ela e tirá-la da vida”. Afirmou
ter recebido um presente por noite, que variou de caixa de bombons a um anel de prata.
Ao serem perguntadas sobre o que gostam de ler, todas afirmaram que lêem revistas, somente. Todos gostam de
assistir TV e apontam as novelas e os clipes musicais como os mais interessantes da programação. Sobre opções de
divertimento, os travestis e a “drag” apontaram boates e barzinhos como opção principal. Os mais humildes, porém,
apontaram pagodes, eventos públicos e opções que não envolvam gasto como opção principal. Ao serem perguntados sobre
os locais que levam amigos que chegam para visitar a cidade, todos disseram que levam seus convidados para onde
costumam ir, ou seja, programas noturnos em bares, geralmente. Perguntados sobre a prioridade na hora de gastar o dinheiro,
todos disseram que o pagamento das contas é o foco, exceto a “drag” que diz guardar tudo para si, usufruindo daquilo que os
pais podem pagar. Em relação ao sonho de consumo, Patrícia Vermont disse que deseja morar fora do Brasil, de preferência
nos Estados Unidos, para aprender inglês. Já Luana Alves, que se veste de mulher, mas não tem prótese e faz parte da
categoria humilde, respondeu que o seu sonho é ter um apartamento próprio, assim como a “drag”, Veronique e o travesti
Samantha Star.
Em relação ao último bloco de perguntas que procura conhecer um pouco mais sobre a vida particular dos
entrevistados, todos acham a cidade de Juiz de Fora tranquila e respeitosa para com eles, mas se queixam da falta de
oportunidades, diferente do que existe nos grandes centros e ainda não acontece aqui. Todos gostam de viver na cidade,
apesar disso tudo. Quando perguntados sobre com quem moram, os travestis Patrícia Vermont e Samantha Star, afirmaram
morar sozinhas. Já Luana Alves, que se veste de mulher, disse que mora com a avó e a “drag” Veronique, de 19 anos,
informou que mora com os pais e duas irmãs. Quando perguntados sobre o que fazem durante o dia, Patrícia Vermont
respondeu que cuida do seu apartamento, arrumando, cozinhando, passando, enfim, afazeres domésticos. Luana Alves disse
que trabalha como camelô, vestido como homem. Samantha Star disse que dorme para “recuperar a beleza e ficar bela à
noite” e Veronique disse que trabalha como cabeleireiro num salão perto de sua casa.
Quando perguntadas sobre a relação de cada uma com a família, Patrícia Vermont disse que saiu de casa aos 14
anos, do interior da Bahia, porque a família não aceitava sua opção e desde então perdeu o contato com os familiares. Luana
Alves disse que paga as contas e cuida da avó e que “o resto é resto”. Samantha Star afirma que a relação com a família é
boa, mas é bom que permaneça distante para evitar confusão. Já Veronique diz que o relacionamento com a família é ótimo,
apesar de pouco ver os pais e irmãs, devido ao longo tempo que fica fora de casa trabalhando no salão e atuando na rua, ou
seja, indicando que à medida que não há convívio frequente, também não há conflito.
Por fim, quando perguntados sobre os sonhos, as respostas foram as mais variadas: Luana Alves afirmou que seu
sonho é viajar para a Itália, trabalhar bastante como travesti e se vestir bem para quando voltar para o Brasil comprar seu
apartamento e um lindo carro. Do mesmo sonho de ir para a Europa para ganhar dinheiro compartilha Samantha Star. Já
Veronique sonha em virar uma celebridade do mundo gay e fazer shows em boates GLS do Brasil e do exterior, como meio
de se afirmar como indivíduo qualificado socialmente. Contudo, o relato mais emocionante foi o de Patrícia Vermont, travesti
de 27 anos. Ela afirmou que o seu maior sonho é que sua família lhe aceitasse e a recebesse de volta, compreendendo sua
opção sexual e sua vontade de ser mulher.

Sexualidade
Componente importante da construção psíquica humana, a sexualidade, para além dos aspectos psicológicos, é
também um meio de inscrição no universo social. Essa inscrição que varia em tempo e lugar é bastante significativa de ser
avaliada, pois novos grupos se apresentam na sociedade, revelando questões comuns que são geridas no âmbito individual. E
cada sociedade organiza seu estatuto de regras éticas, que implicará na construção de parâmetros que balizarão a própria
construção individual, quase sempre, inexoravelmente impossível de escapar ao tempo e ao lugar. Para darmos um exemplo,
de como a homossexualidade já foi tratada, retomemos a época da Antiguidade grega:
“As mulheres eram encaradas como inferiores aos homens de todas as formas: intelectual, física e emocionalmente. No
casamento, nenhuma regra impedia o homem de ter relações com rapazes, o que, além de admitido, era valorizado. O

417
cidadão grego casado podia manter uma concubina além da esposa legítima e frequentar prostitutas. Esse aspecto da
sua vida sexual era silencioso, a não ser que houvesse excessos notórios6”.

Da época grega, com sua tolerância ao ato sexual entre pessoas do mesmo sexo, no caso, homens, que eram uma
espécie de cidadão de primeira classe, aos tempos atuais, muita coisa mudou, até o que Giddens (1993) afirma ser hoje a
caracterização de uma sociedade sexualmente viciada. O autor, baseado em diversas pesquisas sobre comportamento sexual,
recupera que há uma diferença bastante fundamental na compreensão do sexo por homens. Há uma média em torno de 40%
dos homens que afirmam terem tido alguma experiência homossexual ao longo de suas vidas. Isso caracteriza um
comportamento sexual masculino mais inquieto, e porque estes tendem a separar a atividade sexual de outras atividades da
vida. Com o crescimento recente do consumo da pornografia por homens também, há a idéia recorrente de que o sexo
assemelha-se a uma experiência de baixa emoção e alta intensidade7.
Assim, o travestismo vem se solidificando como mais uma opção de ato sexual numa sociedade onde as opções e
combinações para o sexo são cada vez maiores e mais diversificadas. Nas entrevistas realizadas percebemos que o grande
público que procura os serviços dos travestis é formado por homens casados com mulheres e ressaltam que o público que
frequenta os pontos de travesti da cidade é muito heterogêneo, mas, efetivamente composto por homens, não havendo
nenhum caso de participação feminina direta nos programas, até hoje.
Outro dado significativo foi a afirmação de que os travestis querem e gostam de estar como mulheres o tempo
inteiro, e o fato de terem se transformado em mulher (seja pelas roupas ou pelo silicone, hormônios, etc.) facilita se
realizarem sexualmente, pois sentem desejo por homens, sobretudo, os que “têm aparência heterossexual”. Na complexa
gama de variantes sexuais, os travestis se sentem satisfeitos com sua opção, mesmo que a prostituição – destacada aqui como
uma maximização da faceta sexual - ainda seja o caminho mais recorrente para a manutenção de suas vidas.

Abordagem ao Consumo
“As roupas servem a uma dupla função ambivalente. Escondendo a nudez, elas nos diferenciam uns dos outros, mas
nós podemos também utilizá-las para tornarmos parecidos com os demais. Ao escolher uma gravata, nós esperamos
que ninguém tenha uma igual. No entanto, se tivéssemos certeza de que ninguém gostaria de ter a mesma gravata,
hesitaríamos em comprá-la, pois isso nos deixaria inseguros com relação a nosso próprio bom gosto. O fato de ver
alguém usar a mesma gravata que nós nos preocupa, ao mesmo tempo que nos tranquiliza. Assim como as armaduras
dos cavaleiros da Idade Média, a roupa moderna serve para nos proteger e como forma de auto-expressão8”.

Com a supremacia do capitalismo e o avanço da industrialização, países emergentes como o Brasil atual têm a
chance de ampliar o consumo. Isso se reflete desde o consumo de produtos básicos até os supérfluos. O público homossexual
é apontado como um dos grupos que mais consome, pois, genericamente, são indivíduos liberados de obrigações familiares,
não possuem filhos e o fato de muitos serem bem-sucedidos ainda, indica que podem comprar e compram bastante, tanto
produtos como na contratação de serviços. Entretanto, sabemos que generalizações são perigosas, principalmente para abrigar
sob um mesmo guarda-chuva um público bastante extenso como o designado por homossexual. O mesmo acontece com os
travestis. Há alguns travestis que são bem-sucedidos e ostentam poder financeiro, como os tradicionais exemplos daqueles
que “fizeram vida” no exterior, mas há os que vivem na linha da miséria. Isso não impede o acesso à informação. Nos
travestis entrevistados, nota-se a busca por toda a informação que se associe ao consumo de novidades, de moda. Certamente,
que a indumentária escolhida a dedo é tanto proteção como forma de auto-expressão.
Verificamos que os travestis entrevistados são muito vaidosos e se mantêm informados sobre as novidades da moda
através de programas e novelas de televisão, bem como em revistas e na troca de informações entre eles. Costumam comprar
suas roupas nas lojas do Centro e shoppings da cidade, normalmente acompanhados por outros travestis. Gostam de ler
revistas de entretenimento (Amiga, Contigo, Ana Maria, etc.), moda (Claudia, Marie Claire, Desfile) e romance (Sabrina,
Carícia). São assíduos espectadores de novelas e programas de auditório, capitaneados por celebridades do mundo artístico,
principalmente mulheres bem sucedidas. Saem à noite, quando não estão trabalhando, para boates gays da cidade. E isso
parece ser tudo, ou o principal, já que todos os entrevistados largaram os estudos muito cedo.
Mesmo seduzidos pelo desejo de consumo da moda, as prioridades na hora de gastar o dinheiro são as contas (luz,
gás, telefone, etc.) e logo depois, roupas e produtos de beleza. A maioria tem como sonho de consumo comprar a sonhada
casa própria, mas, manifestaram também o desejo de colocarem prótese nos seios e quadris e não hesitariam em fazer desse
desejo uma realidade.
Em relação ao lazer, quando perguntados sobre onde levariam um amigo que chegasse de outra cidade para
conhecer Juiz de Fora, reclamaram das poucas opções que a cidade oferece e responderam que o convidariam para a boate
gay que estivesse em maior evidência. Não houve citação a outras formas de lazer que não associadas à diversão noturna e ao
mundo gay. Para o público entrevistado, o consumo se divide entre adquirir itens para a subsistência e para a manutenção da
própria identidade criada.

6
LINS, R. (1997, p.24).
7
GIDDENS, A. (1993, pp. 132-163).
8
KARSAKLIAN, E. (2000, p.29 apud DUBOIS, 1994).

418
A construção da identidade e as referências pessoais
Por último, temos a destacar alguns dados referentes à relação do nosso público entrevistado com a cidade onde
vivem, com a família e com os sonhos que guardam. Percebemos que muitos comentários se aproximam de um senso comum
que faz críticas ao pouco desenvolvimento econômico da cidade, aos conflitos com familiares a partir da escolha sexual e aos
sonhos de consumo que versam sobre estabilidade financeira e sucesso pessoal.
Os travestis entrevistados mantêm uma relação de amor e ódio com a cidade que é bastante interessante: gostam da
tranquilidade e da segurança que conquistaram na cidade ao mesmo tempo em que reclamam da falta de diversão e a maior
possibilidade de lucros.
Do ponto de vista positivo, Juiz de Fora se diferencia pela legislação que protege os homossexuais de qualquer
forma de discriminação sexual. A partir de decreto, a Lei Municipal n° 9791 de 12/5/2000, dispõe sobre a ação do município
no combate às práticas discriminatórias em seu território, para livre manifestação de qualquer orientação sexual. O artigo 1°
afirma que será punida, na cidade, toda e qualquer manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra qualquer
cidadão homossexual (masculino ou feminino), bissexual ou transgênero. Os entrevistados relatam isso como um aspecto
positivo, que lhes dá segurança, pelo menos em relação à opção sexual, nem tanto em relação à prostituição, que é coibida em
todas as formas de exploração no Brasil9.
Em relação à família, todos os entrevistados desejam manter uma relação saudável com ela e afirmam que os
familiares respeitam sua opção e decisão de viverem como travestis. A maior parte, apesar de não morar com a família,
contribui financeiramente para o sustento dela. Durante o dia, todos os travestis entrevistados dormem para poderem estar
descansados para o trabalho à noite, que implica em uma rotina que vai de segunda a sábado, desde às 22 horas até o
amanhecer. Mesmo que afirmem que têm uma boa relação com a família, muitos também falam que convivem pouco, e há
sempre certo ar de desconfiança, se realmente parte dessa boa relação não se dá pelo fato da ajuda financeira que oferecem.
Quando perguntados sobre o que têm como sonho, parte final da entrevista, cada qual teve uma resposta diferente e
uma forma de descrevê-lo bastante peculiar, e quase sempre de forma bastante entusiasmada, como que tentando envolver o
entrevistador: o primeiro tema de resposta versa sobre ir para a Suíça, pois, “lá os programas são mais caros e os bofes são
belíssimos”. O segundo item é “morar com o marido, fazer almoço e jantar para ele”. O terceiro item recorrente indica que o
sonho mais comum é: “colocar prótese nos seios, bunda e quadril”. Por fim, uma resposta mais singela e única. Um travesti
mais humilde disse que o seu maior sonho é: “arrumar a casa da mãe, levantar o muro e encher de móveis novos”. Nessas
respostas podemos ver que de uma forma bem complexa sexualidade, consumo e identidade povoam o dia-a-dia e o
imaginário dos travestis de forma significativa.

Considerações Finais
A etnografia – que pode ser definida, grosso modo, como a descrição sociocultural de um grupo escolhido, via
análise de seus discursos e observação participante de seus atos, foi a base para a fundamentação deste trabalho. Embora as
entrevistas de campo e o trabalho de observação tenham sido realizados num curto espaço de tempo e em dois períodos
distantes, seis anos, ao contrário do que propõe a pesquisa etnográfica, o estudo sobre a subcultura dos travestis de Juiz de
Fora aqui apresentado visa a introduzir o leitor no contexto social específico da cidade. Algumas alusões sobre o
comportamento dos travestis em geral também podem ser feitas, mas destacamos como nos últimos anos esse grupo vem se
organizando. Pudemos verificar que existiam dois grupos de travestis que se dividiam em dois pontos-chave de atuação em
Juiz de Fora. Um, na parte baixa do Centro, área menos valorizada e ocupada única e tão somente pelos mais velhos e a parte
alta, área valorizada e reduto dos travestis novatos, que podiam dividir o local com os mais experientes, caso fosse da
vontade da maioria mais velha. Passados seis anos, essa dinâmica mudou, e essa forma de territorialização está diferente.
Hoje, permanecem os que ficam nos lugares mais nobres e nos mais periféricos e há, surpreendentemente, uma nova divisão
de travestis pela cidade , entre os que são mais humildes e os que são mais ricos, o que combina também menos e mais
atributos de beleza, respectivamente.
No âmbito da sexualidade, observamos que os travestis sentem prazer de se relacionar com homens, principalmente
os homens casados. Este prazer aliado a uma forma de ganhar dinheiro e garantir a subsistência alimenta esta prática na
cidade, ainda que Juiz de Fora seja uma cidade de porte médio e o lucro não seja tão grande. Verificamos também que muitos
fazem programa apenas por prazer e diversão, envolvendo pouca remuneração em dinheiro, mas algum envolvimento de
pagamento, às vezes, em bebidas e drogas. Um aspecto chamou a atenção: quase todos os travestis mais velhos da primeira
etapa das entrevistas já faleceram, sobretudo de AIDS. Mesmo assim, a prevenção ainda é pouca, tanto por parte dos
travestis, como por parte dos clientes.
Na questão do consumo, verificamos que os travestis assistem à novelas e programas de televisão e lêem revistas de
entretenimento, moda e romance, de onde tiram a inspiração para a moda que utilizam e saem em busca. Além disso, roupas
e produtos de beleza estão em segundo lugar na escala de prioridade do gasto do seu dinheiro, só perdendo para o quesito

9
Há três sistemas legais no mundo sobre a prostituição: o proibicionismo (é passível de prisão, como nos EUA); o regulamentarismo (reconhece como profissão
- Europa, Uruguai, Bolívia) e o abolicionismo (pune quem explora a prostituição e não quem se prostitui. È o sistema adotado na maior parte do mundo,
inclusive, no Brasil). Disponível em: http://www.redeprostitutas.org.br/ Acesso: 10/10/2008.

419
“contas a pagar”. Assim, parte do consumo se caracteriza bastante como cultura de massa, e o que difere é a busca por
produtos que signifiquem a manutenção das próprias identidades, através de produtos que reflitam sua condição de travestis,
desde cremes e perfumes às próteses.
Sobre a cidade, os travestis entrevistados acreditam que Juiz de Fora é uma cidade que lhes propicia segurança,
mas, é carente em termos de opção de lazer. No âmbito pessoal, afirmam possuir bom relacionamento com a família, e
poucos mantêm relacionamentos afetivos estáveis. Possuem sonhos diferentes, que vão desde à colocação de próteses e
necessidade de morar na Europa para ganhar mais dinheiro, até reformar a casa dos pais e morar com o parceiro, como
citamos. Em grande parte, as respostas relacionadas ao sonho indicam pertinência com o consumo, pois pouco foi citado
sobre aspirações pessoais ou desejos existenciais. Talvez, o pragmatismo e o consumismo formem uma parte da dura
realidade que os travestis vivem nas ruas.
Esperamos que este estudo seja útil para uma melhor compreensão dos travestis que atuam na cidade de Juiz de
Fora, a partir das entrevistas de campo realizadas e das observações feitas ao longo de diferentes momentos nas áreas por eles
ocupadas. No Brasil, onde a sexualidade é mais vivida que discutida, e isso às vezes não é um bom sinal, os travestis buscam
também alguma referência na mídia - há exemplos que são paradigmáticos, como Roberta Close, conhecido transgênero
brasileiro, que mora e é casada na Suíça. Outros conseguem sucesso no comércio e como prestadores de serviços, e já foi
noticiado casos de travestis e transgêneros que chegam aos mais altos níveis de estudos acadêmicos. Mas grande parte,
entretanto, continua se prostituindo nas ruas das cidades, e esse fato, certamente, é mais uma questão social aberta à
discussão.

Referências
BARROS, C. (2002). O olhar antropológico e a etnografia. Material didático da disciplina “Antropologia: comportamento”,
curso de Pós-graduação em Assessoria de Comunicação, Faculdade Estácio de Sá. Juiz de Fora/MG.
ESTERCI, N.; FRY, P. & GOLDENBERG, M. (Orgs.). (2001). Fazendo antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A.,
2001.
GIDDENS, A . (1993). Transformações da intimidade: sexualidade, amor e erotismo. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista.
LANGSCHWAGER, A. et al. Estudo de uma tribo de roqueiros. In: Estudos em negócios. S.N.T., pp.161-180.
KARSAKLIAN, E. (2000). Comportamento do Consumidor. São Paulo: Atlas.
LINS, R. (1997). A cama na varanda. Arejando nossas idéias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Rocco.
MASSEY, D. (2000). Um sentido global do lugar. In: ARANTES, Antonio (org.). O espaço da diferença. Campinas, SP:
Papirus.
SUPLICY, M. (1983). Conversando sobre sexo. Petrópolis/RJ: Vozes.

Anexo - Questionário
1) Qual a sua idade?
2) Qual o seu grau de instrução?
3) Como você se define sexualmente?
4) O que significa ser travesti para você?
5) Como você dividiria os grupos de travestis em Juiz de Fora? Com quais possui maior identificação? Quais
considera mais distantes?
6) Qual o seu público?
7) O que você precisa para "se montar"?
8) Onde encontra suas roupas e onde as compra?
9) Como se mantém informada sobre as novidades da moda?
10) Costuma fazer compras acompanhado de amigos/amigas?
11)Conte a história de uma compra de algo muito importante para você.
12) Conte a história de um presente marcante ganho por você.
13) O que você gosta de ler?
14)Gosta de TV? Quais seus programas favoritos?
15) O que você faz para se divertir?
16) Quando chega um amigo seu de outra cidade, onde você costuma levá-lo ?
17) Quais são suas prioridades na hora de gastar seu dinheiro?
18) Qual seu sonho de consumo?
19) O que você acha de viver em Juiz de Fora?
20) Com quem você mora?
21) O que você faz durante o dia?
22) Qual a sua relação com a família?
23) Qual o seu sonho?

420
Corpo e infância: dialogando com a sociologia da infância
Márcia Buss Simão Simão
Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]

Resumo: A presente comunicação busca contribuir com o debate contemporâneo sobre dimensões sociais e culturais da vida das crianças,
em especial, no que diz respeito à dimensão corporal. Reporta-se a uma pesquisa de mestrado que buscou identificar as concepções de corpo,
infância e criança na produção acadêmica mais recente dos estudos da infância. Toma como corpus de análise dissertações de mestrado
produzidas no período de 1997 a 2003 no Brasil em diferentes áreas de conhecimento. Para o diálogo entre corpo e infância parte-se do
pressuposto que as noções de infância e corpo são construções sociais, culturais e históricas, sem contudo negar que suas existências não
prescindem também de fatores biológicos. Buscou-se, nas pesquisas identificar as concepções de corpo, objetivando, com isso, promover a
ampliação da indagação teórica em torno dos mundos sociais e culturais da infância. O diálogo dá-se a partir da constatação de que apesar
das pesquisas recentes, embasadas num novo paradigma da infância e das crianças, centrarem-se nas experiências infantis, dando grande
relevância às crianças como agentes ativos na vida social, a dimensão corporal ainda tem recebido pouca importância. Enfatiza-se, assim, que
as experiências do corpo, e sobretudo de diferenças corporais, definem importantes significantes para a identidade social, ao mesmo tempo
que idade, tamanho e autoridade dos adultos são diferenças que precisam ser assumidas e negociadas, se pretende-se superar o sujeitamento a
que as crianças comumente são submetidas em seus diferentes contextos.
Palavras-chave: corpo; estudos da infância; crianças; sociologia da infância.

Introdução
Os estudos sociais da infância têm se avolumado nas últimas décadas e caracterizam-se, sobretudo, pela
preocupação em dar visibilidade às crianças e suas diferentes infâncias. O conjunto desses estudos tem como preocupação, ao
centrar seus estudos na infância não esquecer da totalidade da realidade social. Assim, suas contribuições estão no esforço em
dar visibilidade às crianças e às diferentes infâncias, por meio do suporte de diferentes campos como: Antropologia, História,
Psicologia Social, Geografia e Sociologia, os quais têm se caracterizado como estudos sociais da infância.
O presente artigo busca contribuir com o debate contemporâneo sobre dimensões sociais e culturais da vida das
crianças sobretudo no âmbito da dimensão corporal. Para o diálogo entre corpo e infância parte-se do pressuposto que
infância e corpo são construções sociais, culturais e históricas, sem com isso descartar a dimensão da natureza na constituição
tanto do corpo como das infâncias e das crianças. Reporta-se a uma pesquisa de mestrado que buscou identificar as
concepções de corpo, infância e criança na produção acadêmica recente dos estudos da infância. Toma como corpus de
análise dissertações de mestrado produzidas entre os anos de (1997 a 2003), no Brasil, em diferentes áreas de conhecimento.
Gaitán (2006), ao sintetizar os percursos das diferentes perspectivas no interior da Sociologia da Infância destaca
que sociólogos britânicos Allison James, Chris Jenks, Alan Prout, têm defendido que ambos - corpo e infância - têm se
configurado como temas legítimos de interesse sociológico e, por essa razão, os referidos autores têm dado especial atenção à
dimensão corporal das crianças. Gaitán (2006, p. 86) destaca que os autores acima citados compreendem que: “Los cuerpos
de los niños aparecen en una variedad de roles: en la construcción de relaciones sociales, significados y experiencias entre los
niños mismos y con los adultos, como productos y recursos para protagonismo, acción e interacción, y como lugares de
socialización a través del cuerpo”.
Desse modo, acredita-se na possibilidade de um diálogo acerca do que se têm produzido cientificamente sobre
infância em diversas áreas do conhecimento, com as discussões que permeiam a Sociologia de Infância objetivando ampliar a
indagação teórica em torno dos mundos sociais e culturais da infância que estão presentes no âmbito da dimensão corporal.
As diferentes concepções de corpo encontradas nas dissertações analisadas, com as quais pretende-se dialogar, foram
definidas tendo como critérios de nomeação as denominações utilizadas pelos próprios autores das dissertações, ou, quando
estas denominações não se tornavam explícitas, procurou-se, com base na técnica de Análise de Conteúdo (Bardin 1977,
Valla 1999, L’écuyer, 1990), identificar a concepção de corpo subjacente às argumentações desenvolvidas pelos autores das
dissertações. Essa busca resultou nas seguintes categorias: a) Corpo como consciência corporal; b) Corpo como histórico e
assujeitado; c) Corpo como linguagem; d) Corpo como movimento; e) Corpo infantil como integral; f) Corpo como
identidade; g) Corpo como biológico; h) Corpo como desenvolvimento motor.

Sobre as concepções de corpo nas dissertações analisadas


Não será possível aprofundar teoricamente as diferentes concepções de corpo evidenciadas nas dissertações
analisadas, dados os limites de um artigo. O que se pretende, é trazer uma definição breve das mesmas a fim de possibilitar
um diálogo com o campo dos estudos sociais da infância.
Consciência corporal é um termo que foi privilegiado por muitos autores. Aqueles que assim denominaram: Corpo
como consciência corporal concebem o corpo como meio de aquisição da consciência corporal e como forma de adquirir
condições de relacionar-se consigo, com o outro e com o mundo ou, pela reflexão, tomar consciência de suas ações. Os
autores concebem que este corpo é constituído na história, no social, na cultura e na subjetividade. Nessa concepção de corpo

421
os autores avançam para além da concepção de corpo como esquema corporal e como imagem corporal, sendo que a
primeira delas tem sua fundamentação na neurologia e a segunda na psicanálise. Nesse sentido a concepção de Corpo como
consciência corporal se caracteriza um conceito mais amplo, se comparado a essas duas denominações definidas como
esquema corporal e como imagem corporal, pois, não se centra somente em questões cinestésicas, ou seja, considera em sua
construção aspectos simbólicos e sociais.
Outra definição de corpo que foi identificada nas dissertações foi a de definição de Corpo como histórico e
assujeitado, que envolve a concepção de corpo como produto social e histórico constituído em uma determinada cultura, e
entende que esse corpo sofre assujeitamento, sobretudo nos espaços educacionais. Nessa perspectiva de compreensão de
corpo, há uma ênfase nas determinações sociais, culturais e históricas na constituição da dimensão corporal como meio de
visibilidade do assujeitamento dos corpos das crianças nos contextos educativos.
Também foi evidenciada uma concepção de Corpo como linguagem. Em tal concepção, o corpo é entendido em sua
dimensão do gesto enquanto linguagem que expressa e comunica ao outro, que estimula as relações e interações da criança
com o outro, com a natureza e consigo mesma. Inclui a dimensão da comunicação, da linguagem corporal, por meio da qual,
a criança se comunica, fala.
Outra concepção de corpo presente na produção científica foi a de Corpo como movimento, sendo que nessa
concepção ele é concebido em sua relação com o movimento, todavia, não o movimento como simples gesto mecânico, mas
o movimento dotado de intencionalidades, de significados, de emoções, de expressões, ou seja, movimento contextualizado
culturalmente. Os autores que nomearam corpo como movimento enfatizam a necessidade do movimento como algo inerente
ao ser humano, sobretudo às crianças, e tecem críticas às constantes restrições de movimento impostas a elas em ambientes
educacionais.
A concepção de Corpo infantil como integral foi evidenciada como uma proposição de superação da visão presente
na pediatria de um corpo infantil doente e fragmentado. Esta concepção está atrelada à discussão de que historicamente, na
pediatria, a proteção à infância tem seu cruzamento com a apreensão de corpo doente versus a apreensão do corpo infantil
integral, constituindo-se numa ortodoxia, pois, quando se vê apenas o corpo doente vêem-se somente fragmentos da criança.
Na busca por romper com essa concepção argumentam que para a criança ser apreendida em sua totalidade, deve-se ver o
corpo infantil como integral. Vale ressaltar que, a partir dessa concepção de corpo, entra em discussão o paradigma da
proteção à infância, em que a vulnerabilidade do corpo infantil sujeita as crianças a terem seus mínimos gestos interpretados
pelos adultos. Esta é uma temática que se abordará mais adiante.
A concepção de corpo como Corpo como identidade foi assim definido, por alguns dos autores das dissertações
analisadas, por ser considerado um importante significante da construção da individualidade associado aos processos de
socialização. Nessa concepção é o corpo que porta as personas com as quais se transita pelos territórios coletivos e que
indicam, por meio da fala, da postura e da aparência, as identidades.
A definição de Corpo como biológico inclui as concepções de corpo dos autores que definiram corpo na sua
dimensão orgânica, física, em seu caráter biológico, referente à mensuração de crescimento psicométrico, dando relevância
ao crescimento físico (peso e altura) como desencadeador da performance motora.
Por fim, a última concepção de corpo identificada nas dissertações refere-se ao Corpo como desenvolvimento
motor. Este foi concebido por alguns autores, os quais tomam por base as etapas de desenvolvimento, enfatizando o
desenvolvimento de habilidades motoras básicas de locomoção, equilíbrio e manipulação, as quais, são compreendidas pelos
autores como pré-requisito para a realização posterior de habilidades motoras específicas e complexas. Nessa concepção a
determinação biológica do corpo na constituição das crianças é ressaltada, dando ênfase às etapas de desenvolvimento motor
e considerando a idade de 0 a 6 anos essencial para a formação do repertório motor das crianças. Desse modo, nessa
concepção, considera-se essencial o desenvolvimento de atividades pedagógicas que contribuam para a educação motora
infantil.
Percebe-se que as duas últimas concepções de corpo evidenciadas nas dissertações analisadas - Corpo como
desenvolvimento motor e Corpo como biológico - têm como sustentação teórica uma concepção de corpo vinculada ao campo
das ciências naturais e biológicas. Estudos e pesquisas no Brasil alertam que a dimensão corporal, historicamente tem seu
aporte teórico vinculado ao campo das ciências naturais e biológicas. Diversos autores apontam que essa perspectiva
constituiu-se como hegemônica, especialmente com o advento do movimento higienista (SOARES, 1994; 1998; 2001;
GONDRA, 2002; ROCHA, 2000). Em oposição a essa perspectiva, considera-se que a dimensão corporal, quando concebida
como construção histórica, social e cultural, tem se construído em contraposição à hegemonia dos determinismos e
reducionismos do campo das ciências naturais e biológicas. Nesse sentido, na análise das dissertações analisada percebeu-se
evidências de que, no campo teórico, essa segunda perspectiva tem se fortalecido e foi evidenciada na grande maioria das
dissertações examinadas.
Poder-se-ia arriscar afirmar que todas as concepções de corpo evidenciadas nas dissertações analisadas constituem
dimensões de um só corpo? Poder-se-ia afirmar que se ater a uma só dessas dimensões se compreenderá o corpo de modo
limitado e reduzido? Como buscar, então uma compreensão ampliada da complexidade das relações dessas dimensões do
corpo, que no conjunto o constituem?

422
Corpo como natureza - Corpo como cultura
A dimensão corporal tem sido concebida, ao longo da história, ora como natureza, ora como cultura; ora como
herança da natureza biológica, ora como herança cultural, social e histórica. Nesse patamar, até muito recentemente, essas
duas dimensões vinham sendo compreendidas de modo separado, sem que as relações entre elas fossem consideradas, de tal
forma que o que existia era apenas uma polarização absoluta das concepções. Desta forma, o alerta de Agamben (2005) é que
atentemos ao risco de deixar à sombra aspectos essenciais da complexidade das relações que se estabelecem entre estas duas
formas de herança se mantivermos a perspectiva de concebê-las de forma reduzida, como simples oposições.
Conforme já destacado acima, a dimensão corporal concebida como construção histórica, social e cultural,
contrapôs-se a perspectiva biológica e hegemônica, gerando uma tensão entre as duas correntes. No entanto, na ânsia de se
legitimar as determinações sociais, culturais e históricas na constituição da dimensão corporal, os estudiosos e ‘defensores’
dessa perspectiva de compreensão do corpo como determinado pelas condições sociais, culturais e históricas deixaram de
considerar a, também inegável, determinação biológica na constituição da dimensão corporal, configurando o que Almeida
(2002), definiu como um período marcado pela biofobia, ou seja, um horror a tudo que lembrasse o biológico. Essas tensões
entre o biológico e o cultural acabam acarretando muitos problemas para uma maior compreensão da dimensão corporal nos
estudos da infância. Conforme salientam James, Jenks e Prout (2000, p. 208):
Falando em sentido amplo, poder-se-ia dizer que o construcionismo social corre o risco de substituir um reducionismo
por outro: em resumo, o corpo e a criança apresentam-se como efeitos de relações sociais, deixando pouco espaço para
o corpo/criança como ente físico ou corpóreo. Na versão do construcionismo social, o corpo/criança dissolve-se como
ente material e é tratado como objeto discursivo - não o produto de uma interação entre “natureza” e “cultura”, mas
meramente um efeito do discurso (grifos dos autores).

Nesse sentido, uma contribuição na busca de superar esses reducionismos é dada pelos estudos de Mendes e
Nóbrega (2004) ao destacarem que o homem deve ser considerado como um ser biocultural, porque é, ao mesmo tempo,
totalmente biológico e totalmente cultural. No ser humano, o corpo, a natureza e a cultura se interpenetram por meio de uma
lógica recursiva e o que é biológico no ser humano encontra-se simultaneamente infiltrado de cultura.
Ao considerar a necessidade de compreender o corpo como interconexão entre natureza e cultura, e para que seja
possível captar aspectos essenciais da complexidade das relações entre essas duas formas de herança, Silva (1999a, p. 205)
destaca que, a dimensão corporal é “[...] uma dimensão privilegiada de interação e situa-se, por sua especificidade, na
interconexão da cultura e da natureza, o que lhe confere um caráter único, especialmente no que diz respeito à construção de
uma nova cultura”. Na esteira dessas considerações, portanto, concebe-se que tanto a infância como o corpo, são
determinados e constituidos nas dimensões sociais, culturais e históricas, e também biológicas, já que não faz mais sentido,
como o já esposto, continuar afirmando oposições entre natureza e cultura.

Por que a crítica aos dualismos?


As recorrentes críticas aos dualismos enfatizados por Santos, (2008), Arroyo, (2008), Prout, (2004) dão-se pela
necessidade de se compreender e captar aspectos essenciais da complexidade das relações entre duas formas de herança:
natureza e cultura. O binômio inseparável entre natureza e cultura, quando concebido de forma dicotômica, como destaca
Silva (1999b), leva a interpretações do tipo naturalista, quer dizer não se limita apenas as biologismos ou fisicalismos já que
não se invoca somente a natureza física para explicar os fatos sociais. Invoca-se, muitas vezes também a natureza psíquica,
moral e política da humanidade, isto é, da condição humana. Isto quer dizer que, se invocam, concepções dicotômicas de
comportamentos supostamente universais, independentes de tempo, espaço e contexto, porque se referem a qualidades
absolutas e perenes da espécie humana ou a frações dela.
Ao considerar que a relação e a interação com as crianças implicam intervir, consciente ou inconscientemente, na
constituição de suas identidades e interações, entende-se necessário tematizar acerca de sua dimensão corporal. Tal
necessidade coloca como central a exigência de qual postura deve-se adotar neste debate. Os estudos realizados, até aqui, em
torno desse tema, levaram à compreensão que esta questão deve ser trabalhada buscando manter um diálogo horizontal entre
as dimensões da natureza e da cultura, ou seja considerar ambas como constituintes da dimensão corporal.
Foi nessa direção que as análises das produções acadêmicas, supra citadas, apontaram para a necessidade de
continuidade de estudos que conduzam a uma compreensão mais ampliada das crianças e de sua dimensão corporal. Pois é
sobre ele que se exerce o controle, a repressão e o castigo como reforça Gimeno Sacristán (2005, p. 65): “[...] o corpo será o
destinatário das práticas educacionais, do controle, da repressão e do castigo; o primeiro beneficiado da tolerância (respeito à
integridade física) e do direito de se mostrar como ser singular”.
Assim, o interesse maior em dialogar com os estudos e pesquisas, sustentados na Sociologia da Infância, dá-se pelo
fato de, nos espaços e nos contextos educativos, - locus social de minha pesquisa - em vários momentos, observamos as ações
ou não ações das crianças serem cerceadas; inclusive aquelas que deveriam parecem comuns e necessárias às crianças como:
correr, pular, rolar, experimentar; querer ou não dormir, querer ir ao banheiro, querer ficar em silêncio, etc, enfim expressar-
se amplamente com suas as múltiplas linguagens que as constituem.
Nesse sentido, problematizar as dimensões natureza e cultura de modo correlacionado, torna-se uma ferramenta útil
para se compreender o universo infantil, - não apenas nos intramuros das instituições educativas - sobretudo no Brasil em que

423
há uma diversidade de contextos nos quais, de um lado há infâncias que sofrem determinações e influências das novas
tecnologias de reprodução, comunicação e informação, como há também infâncias que, em alguma medida, por motivos
situacionais, essas tecnologias não estão tão presentes. O cuidado com essa afirmação dá-se ao fato de, possivelmente,
existirem infâncias que ainda não se conhece e que possuem modos particulares de viver as relações de natureza e cultura,
que precisam ainda se investigadas.

Dialogando com infância e corpo


A necessidade do diálogo entre as temáticas da infância e do corpo se dá, a partir da constatação de que apesar de
pesquisas recentes, embasadas num novo paradigma da infância e das crianças, centrarem-se nas experiências infantis, dando
grande relevância às crianças como agentes ativos na vida social, a dimensão corporal ainda tem recebido pouca importância.
Os estudos sociais da infância têm enfatizado que, até o momento, as temáticas da infância e do corpo vinham sendo
estudados separadamente, como já foi dito, sem considerar as relações entre eles. Atualmente, sobretudo os estudos da
Sociologia da Infância, têm defendido que “[...] ambos se han configurado como temas legítimos de interés sociológico, isto
es, pertencientes a la esfera social y necessitados de liberación de su confinamiento previo a lo ‘natural’” (GAITÁN 2006, p.
84). Nesse sentido, parece procedente a tentativa de compreensão do corpo como uma interconexão entre natureza e cultura,
na busca de superação da concepção hegemônica desse confinamento prévio ao natural.
Por exemplo, uma pesquisa realizada pela antropóloga Allison James (2008), com crianças hospitalizadas, foi
permeada pela problemática que ‘ronda’ os estudos sociais da infância, ou seja, como definir o que é, ou, o que não é uma
criança? Essa indagação é quase sempre concebida e respondida a partir de indicadores e definidores da idade biológica, ou
seja, em relação ao número de anos vividos, ao invés de se assumir a indicação de que idade pode ser uma concepção social,
isto é, os tipos de experiências em relação à agência, a participação e, ao fato de se ter alguma responsabilidade social. Nesse
sentido, o que ocorre às crianças é que mesmo tendo elas direitos conquistados e responsabilidades a serem seguidas, na
maioria das vezes, ainda lhes são negados o usufruto de seus direitos, sob justificativa de que lhes faltam responsabilidades.
Desse modo, James (2008), afirma que é preciso explorar quais os impactos das idéias das próprias crianças sobre o
que é ser ‘criança’ em nossa sociedade. A autora ainda informa, que nos espaços hospitalares, há evidências de que as
crianças articulam, em suas ações, lições que lhes foram ensinadas sobre um tipo particular de ‘infância’, por exemplo: ao
responderem perguntas elaboradas, pela pesquisadora, as crianças tendiam em defender generalizações típicas de um modelo
de infância e de criança – criança não pode ficar sozinha em hospitais, porque corre o risco de ingerir remédios
inadequadamente, correm o risco de se machucarem, podem fazer barulho e incomodar outros doentes, entre outros. O que
demonstra que as próprias crianças admitem necessitar de supervisão nos espaços do hospital, pois ainda são vulneráveis e
irresponsáveis. Isto quer dizer que, as próprias crianças aprendem sobre o que é ser e estar na condição de criança, em outras
palavras, concebem e difundem que as ‘crianças’ precisam tanto de cuidado como de controle.
Por esta razão é importante analisar a maneira como os discursos sobre a infância são encarados na vida cotidiana e
em particular em contextos educativos, pois a construção simbólica da infância, como categoria, ainda está ‘presa’ a pretensa
universalização do projeto da Modernidade, que representa como destaca Arroyo (2008, p. 138) “[...] apenas um universal
localizado, de uma cultura e de uma conformação social, política e cultural”. Nesse universal não cabem nem as diversas
infâncias que se configuram, dentro do próprio contexto do universal localizado, muito menos as dos contextos periféricos. A
consequência desse entendimento é que, como complementa Arroyo (2008, p. 139): “Esse protótipo único não apenas regula
estas ou aquelas crianças em seus comportamentos, corpos e mentes, regula o imaginário social e cultural para classificar as
infâncias por sua aproximação ou distanciamento ao protótipo idealizado como universal”. O que se instaura como corolário
desse fato, é que tanto as instituições, os adultos e as próprias crianças procuram se aproximar desse protótipo idealizado,
assim como as formas pelas quais as crianças agem, ou os tipos de agência que exercem, definirão também os ideais de
infância.
Tais apontamentos poderiam indicar que, diante deles, não haveria perspectivas de mudanças e de transformações
sociais. Todavia pesquisas têm mostrado que se pode manter uma esperança de superação desse conformismo e pré-
determinismo, pois, conforme James (2008), embora as crianças quando foram indagadas, em sua pesquisa, sobre a
possibilidade de ‘crianças’ terem certa autonomia elas responderam ‘não’, conforme apontado acima, contudo quando a
pergunta foi dirigida diretamente a elas, ou seja, perguntou-se se elas próprias poderiam ficar sozinhas nesses espaços, a
maioria das crianças disseram ‘sim’. Aqui reside um indicativo de que ouvir as crianças pode ser uma luz a iluminar novas
expectativas. Por meio das crianças podem-se descobrir outras infâncias possíveis, pois, ao ouvi-las também ouvimos a
sociedade. Nessa mesma direção as pesquisas realizadas por Toren (1993) demonstram que um estudo sistemático a cerca de
como as crianças constituem o seu conhecimento de mundo é crucial para a análise de relações coletivas. A autora sustenta
tal afirmação a partir da compreensão de que as crianças podem apresentar aspectos da sociedade que não são tão explícitos
mas, que de forma ainda incompreendidos, estão presentes na sociedade, de tal sorte que, ouvir o ponto de vista das crianças
pode tornar aspectos e relações obscuras presentes nas sociedades mais ‘transparentes’.
James, Jenks e Prout (2000, p. 208) ao realizar o diálogo entre infância e corpo salientam que a compreensão de
como as crianças constituem seu conhecimento de mundo, pode ser ampliada se em pesquisas forem propostas “[...] um
redirecionamento do foco para os corpos materiais das crianças poderia permitir-nos explorar a infância como construção do
discurso e como um aspecto das vidas das crianças que molda relações sociais tanto quanto é moldado por elas”. A esse

424
respeito, se tem enfatizado a idade, o tamanho e a autoridade dos adultos como diferenças que precisam ser assumidas, numa
tentativa de superação do assujeitamento a que as crianças comumente são submetidas em seus diferentes contextos,
inclusive nos contextos educativos. Em pesquisas etnográficas realizadas com as crianças, os autores concluem que: “Entre as
crianças, as experiências do corpo, e sobretudo de diferenças corporais, agem como importantes significantes para a
identidade social” (JAMES, JENKS e PROUT, 2000, p. 119).
Para esses autores, cinco aspectos do corpo das crianças constituem-se como significativos, sendo eles, a estatura,
a forma, a aparência, o sexo e o desempenho. Cada um desses aspectos funciona como fonte flexível e mutável para as
interações, para a constituição das identidades e dos relacionamentos, ainda em formação nas crianças. As diferenças
corporais têm sido utilizadas para criar “a criança” como categoria diversa nas culturas ocidentais, que acabam se
constituindo em estereótipos do que seria um corpo de criança com desenvolvimento “normal”. Esses estereótipos são
percebidos como relevantes tanto para os pais como para as crianças e alguns desvios desses padrões de “normalidade”
podem gerar intensa angústia, tornando-se significativos para a constituição da identidade social.
Assim, com intuito de trazer para o diálogo as concepções de corpo presentes nas dissertações analisadas o que se
percebe é que estes estereótipos, que são determinantes na definição de padrões de ‘normalidade’ podem ser evidenciados,
em particular, em concepções de corpo que têm sua base em uma compreensão de corpo como biológico, ou seja, são
consideradas somente as heranças da natureza na constituição da dimensão corporal. Em virtude do receio, ao retomar
dimensões biológicas na constituição de um ser social, estudiosos do campo da Sociologia da Infância, especialmente Alan
Prout, em seu livro The future of childhood, age com cautela ao indicar meios para privilegiar pesquisas que dêem conta de
uma justa inter-relação entre natureza e cultura, não permitindo, desse modo, que reduções sejam feitas minimizando suas
complexidades. Tal cuidado tem a intenção de prevenir que estereótipos e preconceitos raciais não se reafirmem no âmbito
das sociedades.
É interessante destacar ainda conforme James Jenks e Prout (1999), que mesmo os estereótipos são percebidos de
modo particular pelas crianças e apesar de esses estereótipos se constituírem relevantes para elas, estas não os absorvem
passivamente, mas os assimilam de modo ativo e os usam para compreender não somente seus corpos mas também seus
relacionamentos com outros corpos. Para James, a explicação torna-se inteligível ao afirmar que “[...] as crianças precisam
chegar a um entendimento não só com seus corpos em constante mudança, e com os de seus colegas, mas também com os
variáveis contextos institucionais nos quais essas mudanças ganham significados” (JAMES, JENKS e PROUT, 2000, p.
219).
Os entendimentos que as crianças têm das mudanças de seus corpos são ainda contextualizados de modos, por
vezes antagônicos nos diversos e variáveis contextos institucionais, nos quais, tais mudanças ganham significado. Por
exemplo, em contextos educacionais, crianças de seis anos de idade podem se considerar ou se perceber grandes ao se
compararem às crianças do berçário - o que aliás os são no referido contexto, em tamanho corporal, as maiores. Já quando
elas ingressam no Ensino Fundamental voltam a ser novamente as menores! Desse modo, o tamanho corporal e a
materialidade instável do corpo é, na infância, um recurso essencial na aquisição e na ruptura da identidade.
Vigarello (2003, p. 22) compreende o corpo como identidade, a qual ele define: “[...] manifestação, pelo corpo, de
uma interiorização ou de um pertencimento que designa o sujeito”. Nesse sentido, pode-se compreender a materialidade do
corpo como definidora de identidades, entretanto, somos sujeitos de identidades transitórias, tanto as identidades sexuais, de
gênero, de raça, de nacionalidade e de classe. Assim, o corpo ao se constituir de uma materialidade instável, sobretudo na
infância, as identidades não são fixas ou estáveis, mas sim constituídas de um caráter relacional e múltiplo, o que confere
uma fluidez e uma inconstância às identidades.
Entre as 18 dissertações analisadas, apenas duas delas referiram-se ao corpo como identidade, sem contudo
demonstrar maiores aprofundamentos as problematizações em destaque no campo dos estudos sociais da infância. Considera-
se relevante uma reflexão envolvendo o tema corpo no que tange a produção cientifica Brasileira, no esforço em etabelecer
um debate com os autores citados.
Outro tema que merece atenção e que foi evidenciado em uma das dissertações analisadas se refere a
vulnerabilidade do corpo das crianças. A vulnerabilidade do corpo das crianças encontra “eco” no paradigma da proteção e
controle, no qual, considera-se a criança como um ser frágil, que não tem autonomia, sendo ainda incapaz e que necessita,
obrigatoriamente, ser protegida. Evidentemente é inegável a necessidade de proteção às crianças, contudo, novos estudos da
infância têm posto em discussão o fato desse direito de proteção ser compreendido em consonância com os direitos de
provisão e participação. Desta forma a necessidade de considerar as crianças como atores sociais competentes, e com
competências diferentes das dos adultos, tem sido foco de discussão. Como destacam Tomás e Soares (2004, p. 359): “[...] os
processos de relações, negociações, confrontos que desenvolvem entre elas e com os adultos, são bem reveladores da referida
competência e da legitimidade da sua acção nas esferas privada e pública dos seus quotidianos”. Assim, se questiona que a
vulnerabilidade das crianças não pode ser um elemento que as impossibilite de participar nas decisões, em especial nas
decisões de assuntos que lhes afetam diretamente.

A dimensão corporal e os processos de socialização na infância


O esforço empreendido nesse texto é uma tentativa de dialogar com a Sociologia da Infância a partir de temas que
se considerou pungente em relação à dimensão corporal e que foram evidenciados nas dissertações analisadas. A intenção é

425
aprofundar e compreender melhor as temáticas a fim de apurar o olhar para essa categoria, em especial no contexto
educativo, pois se concebe que os processos de socialização se constituem de forma mais intensa sobre a dimensão corporal
das crianças, já que essa dimensão se apresenta materialmente. Considera-se que a temática da conservação das crianças,
arraigada ainda na concepção da vulnerabilidade física e moral como sendo característica da própria infância, traz
consequências para as relações entre adultos e crianças, sobretudo pelo fato de que essas relações se traduzem em poder.
Sacristán (2005, p. 64) ao se referir ao processo de socialização afirma que “[...] essa base material do ser humano
será um primeiro território a ‘normalizar’ [...] e primeiro critério para comparar os indivíduos, hierarquiza-los e classificá-
los”. Para Foucault e Bourdieu o poder é exercido, em primeira instância, sobre os corpos. Nas palavras de Foucault (1979, p.
146): “[...] a materialidade do poder se exerce sobre o próprio corpo”. Da mesma forma que Bourdieu (2001, p. 204-205) ao
se referir a coerção pelo poder simbólico salienta que: “A força simbólica de um discurso performático e, em particular, de
uma ordem, constitui uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente”. Para Foucault (1979 p. 147) “[...] o
corpo se tornou aquilo que está em jogo num conflito entre os filhos e os pais, entre a criança e as instâncias de controle”.
Esse autor não acredita na tese de que a sociedade abdicou do corpo em proveito da alma, da idealidade e da consciência.
Para ele, prova disso, é que nada é mais material que o exercício do poder, o qual se exerce diretamente sobre os corpos. No
argumento de Foucault (1979) as diferentes instituições sempre tiveram esse entendimento de modo muito claro ao pensar o
funcionamento das sociedades em que vivemos. Desse modo, ele justifica que durante o século XVII e início do século XX,
nas escolas, por exemplo, o investimento do corpo, pelo poder, deveria ser denso, rígido, constante e meticuloso. Já mais
recentemente percebe-se que esse poder pode ser mais tênue e tomar outras formas. Nesse sentido, já que o tamanho e a
vulnerabilidade do corpo infantil são diametralmente opostos aos dos adultos, decorre, portanto a dependência das crianças.
Bourdieu contribui nesse debate ao identificar o poder simbólico que se faz sutil e engenhoso, pois “[...] é
necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto reconhecido: o
poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe são sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2000, p. 7-8). No entendimento de Bourdieu o poder
simbólico é exercido com ‘consentimento’ daqueles que estão sujeitos, à medida que contribuem para a sua construção. Vale
a ressalva de que esse autor alerta para o perigo de se considerar esse poder simbólico de modo simples e idealista pois, para
ele, essa própria cumplicidade ou consentimento não é voluntário, nem consciente e nem deliberado, mas sim, ele próprio é
efeito de um poder que se inscreve duravelmente nos corpos, quanto mais intenso, precoce e prolongado for, sob formas de
esquemas de percepção e de disposições para, por exemplo, respeitar, admirar, amar, etc. E, por se tratar de um poder
simbólico, oculta essa coerção como sendo uma disposição natural, com aparência de inato. Arriscaria afirmar que, no caso
dos espaços educativos que atendem crianças pequenas, a ‘colaboração’, o ‘consentimento’ ou a ‘cumplicidade’, de que fala
Bourdieu, se manifesta de modo mais contundente!
Refletindo sobre esse poder nas relações, particularmente em contextos educativos, acredita-se não ser possível
acabar com as relações que envolvem poder. Todavia é possível pensar o processo de socialização, não mais em sentido
vertical e impositivo como tem se caracterizado – mais próximo de estados de dominação do que relações de poder. Isto
porque, numa concepção durkheimniana os processos de socialização tem se caracterizado como “[...] a ação dos adultos
sobre os mais jovens, a ação de uma geração sobre a outra. Como todo fato social, a educação é então concebida na sua força
de imposição, de coerção (em termos de idéias, sentimentos, e práticas), que exerce sobre todo indivíduo no cerne de uma
sociedade” (PLAISANCE, 2004, p. 224). Em espaços educativos faz-se necessário, portanto, pensar em processos de
socialização que se efetivam em sentido horizontal, ou seja, numa perspectiva interativa, em que tanto os adultos como as
crianças estejam na condição de sujeitos do processo de socialização ou, nas palavras de Foucault, na constituição de si por
meio das relações.
Em direção às considerações finais, o que se valoriza são estudos e pesquisas realizadas pelos estudos sociais da
infância apontando para a necessidade de repensar o processo de socialização, incluindo também as crianças. Essa inclusão
das crianças não pressupõe a exclusão dos adultos; ao contrário, ainda que se compreenda as responsabilidades dos adultos
nas sociedades, e em particular no processo educativo, é preciso que as relações se constituam de forma mais democrática. É
preeminente que as crianças sejam reconhecidas como ativas, como importantes e não apenas como apêndices destas
sociedades.
Um primeiro empecilho que dificulta a efetivação das relações de modo mais horizontal é o fato de que as ações
das crianças não se estabelecem somente por meio da linguagem oral, mas por meio da articulação de múltiplas linguagens
expressivas, como indicam Gomes-da-Silva & Buss Simão (2008)1. Desse modo, conceber a possibilidade de participação
das crianças precisa incluir múltiplas formas de interações e, sobretudo, contemplar diferentes dimensões e linguagens que
constituem as especificidades das crianças e sem, com isso, excluir os adultos. Tentar ler, interpretar, ou mesmo traduzir as
‘vozes’ das crianças, é, sem dúvida, nossa dificuldade maior, na medida em que estamos presos a uma perspectiva
adultocentrada nas relações sociais.
Entende-se que a ecologia de saberes proposta por Santos (2008) possibilitaria a superação da lógica adultocentrada
prevalecente nas relações sociais, na medida em que propõe que a lógica da monocultura do saber científico deva ser
confrontada com a identificação de outros saberes e critérios que também vigoram nas práticas sociais. Para o autor, o

1
Gomes-da-Silva E. & Buss Simão M. (2008). Pesquisa com crianças na Educação Física: questões teóricas e desafios metodológicos. No PRELO.

426
próprio campo da produção do conhecimento pode abrir espaço para o diálogo com outros saberes sociais, de modo a
alimentar a produção do conhecimento. A ecologia dos saberes parte do pressuposto de que todas as práticas relacionais entre
os seres humanos, e destes com a natureza, implicam mais de uma forma de saber e, portanto, também de ignorância. Assim,
a credibilidade desses conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico, mas sua utilização
de forma contra-hegemônica.
O princípio de incompletude de todos os saberes é a condição de diálogo e do debate epistemológico entre
diferentes formas de conhecimentos. No caso específico dos saberes das crianças, o que ocorre, no âmbito da produção do
conhecimento, é que eles, em geral, são descartados a priori, impedindo o diálogo, sob a justificativa de que não são
científicos. Nesse mesmo sentido é preciso apurar o olhar para perceber o corpo pois, é por meio dele, que a criança participa,
ou seja, as crianças participam corporalmente. È por esse viés que se pretende continuar o diálogo com o campo dos estudos
sociais da infância, a fim de que se possa aguçar as leituras das múltiplas linguagens expressivas, de modo mais atento e
menos preconceituoso nas pesquisas no âmbito educativo, uma vez que o corpo é certamente destinatário privilegiado de
parte substantiva das práticas sociais e educacionais, sendo preeminente uma atenção especial à ele.

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Símbolos sobre o corpo: marcas de gênero no universo da tatuagem


Andréa Osório
UFRN
[email protected]

427
Resumo: Analisando-se a prática contemporânea da tatuagem na cidade do Rio de Janeiro, a partir da observação de campo em dois estúdios
de tatuagem, pode-se perceber uma lógica de construção corporal segundo o gênero, em que determinados locais do corpo são considerados
femininos e outros masculinos. Os desenhos tatuados, da mesma forma, obedecem a esta lógica, existindo “desenhos femininos” e outros
desenhos, classificados sob uma série de diferentes categorias, que podem ser utilizados tanto por homens quanto por mulheres ou apenas por
eles. A dor, aspecto intrinsecamente relacionado à prática da tatuagem, é também vivida diferencialmente por homens e mulheres, marcando
comportamentos diferentes para cada um. O masculino tem-se apresentado vinculado à noção de um ethos guerreiro, onde desenhos
envolvendo as idéias de morte, destruição e força são os mais procurados, tatuados no braço, local que enseja, igualmente, uma idéia de
força. O feminino, por sua vez, emerge relacionado à noção de fragilidade e delicadeza e às mulheres é permitida a expressão livre da dor,
enquanto espera-se que os homens a suportem em silêncio. A tatuagem nas mulheres encerra, ainda, questões sobre a autonomia feminina
sobre o próprio corpo, visto que muitas vezes marido e família tentam intervir na escolha pela marca. O crescimento do público feminino
neste universo, contudo, parece apontar para uma autonomia das mulheres sobre seus corpos e suas escolhas. Neste sentido, o corpo
apresenta-se como o derradeiro espaço da autonomia pessoal, muito embora também lócus do controle e submissão.

O corpo feminino tem sido apontado como lócus de representações sobre a feminilidade. Neste sentido, as marcas
corporais de feminilidade se apresentam como uma forma de discurso sobre a mulher e o feminino. Estudo desenvolvido
acerca dos usos de tatuagens por homens e mulheres na cidade do Rio de Janeiro indicou a manutenção de representações
tradicionais de masculinidade e feminilidade a partir dos desenhos tatuados por cada sexo.
No Brasil, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, a tatuagem estava restrita a
certos grupos sociais, tais como imigrantes, prostitutas, trabalhadores de camadas baixas e criminosos (RIO, 1997). Neste
contexto, era sinônimo de marginalidade. O status da tatuagem parece ter começado a mudar no Rio de Janeiro a partir de
Petit, o Menino do Rio cantado por Caetano Veloso, cujo braço ostentava um dragão e cujas aparições midiáticas
contribuíram para a adoção da tatuagem como prática corporal entre camadas médias (MARQUES, 1997). Atualmente, o
público feminino tem sido maioria nos estúdios (MIFFLIN, 1997; LEITÃO, 2002). Esta parece ser uma mudança no quadro
dos tatuados, pois historicamente a tatuagem ocidental esteve mais ligada ao universo masculino, sobretudo nas figuras dos
marinheiros, dos militares e dos criminosos (LE BRETON, 2002). A partir das fichas de cadastro de clientes preenchidas em
um dos estúdios pesquisados, pode-se observar esta maioria feminina, que constitui uma média de 70% da clientela daquele
estúdio nos meses pesquisados.
A pesquisa de campo foi desenvolvida por meio de observação participante em dois estúdios de tatuagem na cidade
do Rio de Janeiro. Em um destes estúdios, foi possível consultar fichas de cadastro de clientes. Apesar de organizado, o
cadastro não apresentava informações sobre todos os meses de 2003 e 2004, até a data da consulta realizada neste mesmo
ano, o que impossibilitou uma sistematização mais completa dos dados quantitativos. Assim, optei pelos meses de maior
movimento, que são dezembro e janeiro, segundo visão dos próprios tatuadores, e tomei setembro como uma espécie de
grupo de controle.
Outros estúdios cariocas parecem apresentar percentuais semelhantes, o que, se ainda não permite uma
generalização, aponta para os novos contextos da prática. Segundo a homepage Beleza Pura (LEAL, 2005), ligada ao projeto
Viva Favela da ONG Viva Rio,
“O estúdio Agulha Nervosa [na Rocinha, antiga maior favela da cidade, atualmente com status de bairro], de Emerson
Costa Maria, 32 anos, lota no verão. A faixa etária varia dos 13 aos 70 anos. As menores de idade só podem se tatuar
com a autorização dos responsáveis, de acordo com uma legislação que regulamenta a prática. ‘Chego a fazer três
tatuagens por dia. De quatro anos para cá, a clientela feminina cresceu e já representa 60% do movimento’, avalia o
tatuador.”

Como consequência do aumento do público feminino, tatuadores criaram desenhos específicos para as mulheres,
chamados “desenhos femininos”. Eles se diferenciam dos demais pela temática, que envolve fadas, anjos, estrelas, luas, flores
e desenhos com um certo tom infantil, como desenhos feitos por crianças ou para crianças, a exemplo de bonecas e
querubins. Os animais escolhidos por elas são domésticos ou vistos como inofensivos, como gatos, beija-flores e golfinhos.
Não existem “desenhos masculinos”.
Não ter um desenho que remeta ao repertório masculino, nem localizá-lo numa região do corpo considerada
masculina, parece ser uma preocupação das mulheres que buscam tatuagens. Como exemplo, posso citar o caso de uma
cliente de um dos estúdios pesquisados que, aos 26 anos, fez sua primeira tatuagem. Bronzeada de praia e apaixonada pelo
mar, queria tatuar um tubarão, mas fora desaconselhada por parentes e amigos porque o desenho seria agressivo e masculino.
Optou então pela sua versão comics1 e tatuou a personagem Tutubarão na região lombar das costas, personagem de um
desenho animado antigo cuja principal característica é a docilidade e falta de coragem que contrastam propositadamente com
o fato de ser um tubarão para gerar um elemento de comicidade.
Para Bourdieu (2003), as diferenças culturais entre os gêneros estão inscritas em seus corpos, segundo a noção de
habitus. O habitus é uma disposição corporal construída pela sociedade e pela cultura, ou seja, uma lei social incorporada.
Desta forma, pode-se observar o corpo como lócus de diferença sexual, não por suas disposições biológicas, mas socialmente
construídas. A força simbólica que a sociedade exerce sobre o indivíduo, diz ele, exerce também e, sobretudo, sobre os
corpos. Assim, os corpos femininos e masculinos se diferenciam quanto a uma série de movimentos, posições e posturas que

1
Estilo de tatuagem que utiliza elementos do universo dos gibis e desenhos animados.

428
traduzem as diferenças pensadas e construídas sobre os gêneros, ou pelo menos se observa os corpos como tendo estas
diferenças.
As sociedades são, para Bourdieu (2003), organizadas segundo uma diferenciação entre os gêneros que dispõe o
masculino como preponderante, o que o autor chama de dominação masculina. Esta dominação impõe uma visão
androcêntrica de mundo, onde o que é masculino é visto como neutro, sem necessidade de ser enunciado em discursos que
visem legitimar esta visão. A dominação masculina cria estruturas práticas de diferenciação entre os sexos tanto quanto
estruturas mentais, de cognoscibilidade.
É a partir desta forma de conhecimento sobre o mundo que se pode perceber a experiência feminina do corpo como
diferente da experiência masculina. O corpo feminino, diz o autor, é, sobretudo, um corpo-para-o-outro, um corpo
objetificado pelo olhar e pelo discurso de outros. Sendo objeto de olhares, a mulher é tomada pela lógica da dominação e
passa a exercer, sobre este olhar, uma contrapartida, na idéia de atrair a atenção e agradar, traduzidas na coqueteria feminina.
Contudo, o olhar dos outros cria uma distância entre o corpo real e o corpo ideal.
A partir de Bourdieu (2003) é possível perceber porque existem “desenhos femininos”, enquanto seu análogo
“desenhos masculinos” jamais foi visto em campo. Sendo neutro, o masculino não precisa ser diferenciado. Da mesma forma,
observa-se porque clientes e tatuadores preocupam-se em tornar femininos certos desenhos que trazem a idéia de
agressividade, como o leão ( escolhido por ser o signo zodiacal, por exemplo) ou o tubarão: a agressividade é uma
característica masculina e o feminino é construído na negação destas características. As áreas tatuadas, da mesma forma,
seguem esta lógica de diferenciação e busca-se jamais tomar para si regiões que sejam destinadas, por tradição, ao sexo
oposto. As distinções entre os gêneros explicam, ainda, porque as tatuagens dos homens costumam ser maiores que as das
mulheres, relacionadas à idéia de agressividade e afirmação de virilidade, enquanto as tatuagens femininas são pequenas e se
referem a desenhos que inspiram fragilidade, doçura e infantilidade.
As tatuagens mais populares entre as mulheres, segundo as fichas de cadastro pesquisadas, são a borboleta (13.7%),
a estrela (12.9%) e a flor (11.5%). Estes desenhos somados formam 38.1% das escolhas, quase a metade dos desenhos
escolhidos por elas. Evocam idéias de feminilidade: frágeis, delicados, pequenos. As flores, agrupadas segundo todas as
classificações encontradas2 (rosas, orquídeas, flores), representam 17% das escolhas femininas, enquanto os insetos
agrupados representam 16%. Assim, as flores se tornam mais populares do que as borboletas.
As tatuagens mais populares entre os homens, segundo as fichas pesquisadas, são os ideogramas japoneses/chineses
(14.4%), as tribais (11.4%) e as letras/frase/escrita (10.6%). Os desenhos orientais agrupados formam 23.45% das escolhas.
Os desenhos tribais agrupados e as letras, frases e escritas formam 12.9% das escolhas, cada grupo. Isto torna as tatuagens
orientais as mais procuradas pelos homens.
As letras, normalmente, referem-se às iniciais de nomes, mas como a classificação utilizada foi a dos próprios
tatuados, pode-se tratar de frases cujo conteúdo é desconhecido. Os ideogramas, por sua vez, só podem ser decodificados
com o auxílio do próprio tatuado. Sua mensagem fica, para nós, também desconhecida. As tribais, por outro lado, têm sido
uma tatuagem popular desde a década de 1990, quando surgiram. Suas linhas “farpadas”, protuberantes em “espinhos”,
podem ser associadas a elementos simbólicos de agressividade. Os ideogramas, por sua vez, podem ser associados ao
universo das artes marciais.
Nestes dois casos, mantém-se a predominância de elementos de um ethos guerreiro (ELIAS, 1996), um aspecto de
um determinado modelo de masculinidade que valoriza a força física, a tolerância à dor, a agressividade (física ou simbólica),
a mulher como objeto, o descontrole. Cecchetto (2004), em estudo sobre modelos de masculinidade e sua relação com a
violência na cidade do Rio de Janeiro, observou tais características em grupos de funqueiros e de lutadores de jiu-jitsu.
Embora a autora chame a atenção para a construção de diferentes modelos de masculinidade a partir de cada grupo, enumerei
as características encontradas por ela como se formassem um conjunto único. Os desenhos tatuados pelos homens podem
envolver um ou mais desses aspectos.
Os desenhos mais diretamente associados ao ethos guerreiro – dragão, samurai, índio, índia, totem, centauro,
brasões de clubes de futebol, tubarão, cachorro, tigre, onça, leão, escorpião, aranha – formam 28.65% dos desenhos
escolhidos por homens. Ou seja, os desenhos relacionados a temas de agressividade, morte e destruição são os mais
procurados por eles.
Outra variação quanto ao gênero é o tamanho da tatuagem: as femininas costumam ser menores do que as
masculinas. A região do corpo a ser tatuada também pode diferir entre homens e mulheres, havendo regiões que são
preferidas por elas e outras por eles, e ainda algumas tatuadas por ambos. Segundo o levantamento efetuado, a região mais
tatuada pelas mulheres são as costas (26.4%), seguidas pelo pescoço/nuca (23.6%) e pelo calcanhar/pé (9.5%). Entre os
homens, o braço emerge como preferido absoluto (61.7%), escolha que parece seguir a mesma lógica do ethos guerreiro,
evocando a noção de força física.
A lógica que rege a escolha pelo local do corpo a ser tatuado, embora opere segundo o gênero, é influenciada
também pela idéia de encobrimento da marca frente ao mercado de trabalho tanto quanto sua revelação em situações
consideradas propícias, sobretudo aquelas da esfera da sedução. A coqueteria feminina, segundo Bourdieu (2003), é uma
forma de atrair o olhar, reificando a posição de um corpo dominado, um corpo para o outro. Mas, entre os homens, a

2
Classificação dos próprios clientes do estúdio.

429
tatuagem pode igualmente ser um elemento de sedução (SABINO, 2004). Em corpos femininos e masculinos, a tatuagem é
um elemento que agrega valor, atrai o olhar, seduz, embeleza. Nos homens, confere virilidade. Nas mulheres, confere
feminilidade. O papel dos desenhos, o tamanho destes e o local marcado formam um conjunto que valoriza as identidades de
gênero.
A abordagem da tatuagem como um discurso sobre a beleza feminina, contudo, pode levar a uma percepção
tradicional do feminino como fútil e sem agência, relegado a um plano submisso de agradar ao outro. Pensar que o aumento
do público feminino está relacionado apenas ou exclusivamente a uma estetização do cotidiano e a um culto ao corpo parece-
me inadequado. Na medida em que o feminino ainda é inferiorizado, que aquilo que é considerado feminino ainda é visto
como de menor valor, tratar o que agora emerge como uma prática feminina apenas como um ritual de embelezamento entre
tantos outros rituais femininos deste tipo é reproduzir esta ideologia que inferioriza o feminino, roubando-lhe a possibilidade
de agência.
Nos estúdios, permeados pela mesma lógica de diferenciação de gênero encontrada na sociedade brasileira, o que é
feminino é inferior: são desenhos pequenos, infantis, com classificação própria, raramente considerados artísticos, executados
por profissionais que são em sua maioria homens, em regiões pouco extensas do corpo (pé, nuca, pequenas áreas das costas),
e a dor feminina é aceita porque é vista como sinal de sua fragilidade. Os desenhos masculinos, por outro lado, são grandes,
tomam extensas áreas do corpo proporcionando a possibilidade de maior sofisticação artística, representando elementos
agressivos que constituem o cerne da masculinidade guerreira, executados por outros homens a quem a performance frente à
dor serve de medida do grau de virilidade. Se as mulheres são vistas no estúdio, pelo senso comum, como em um ritual fútil
de embelezamento, os homens, em contrapartida, fazem do estúdio de tatuagem local de um ritual de virilidade, onde esta é
posta a prova, construída e reconstruída em um universo ainda visto por eles como masculino.
O discurso da tatuagem quanto aos gêneros é um no qual feminino e masculino mantém suas características
tradicionais. As tatuagens marcam os corpos femininos e masculinos com uma dose maior de feminilidade ou masculinidade,
seja na performance frente à dor, seja na escolha meticulosa dos desenhos, tamanhos e regiões corporais a serem marcados,
que segue uma lógica de diferenciação entre os sexos. Desta forma, as tatuagens não apenas expressam simbolicamente o que
pensamos ser masculino e feminino, como agregam símbolos destas identidades de gênero (o ser homem e o ser mulher) aos
corpos que os portam. Estes corpos se tornam, eles próprios, discursivos. O próprio corpo emerge, na prática da tatuagem,
como um corpo performático e, também, um corpo discursivo – performance e discurso orientados segundo uma lógica de
diferenciação de gênero que funciona a partir de uma oposição: o que é dos homens não deve ser utilizado pelas mulheres e
vive-versa.
Leitão (2002), em estudo sobre a tatuagem na cidade de Porto Alegre, chama a atenção para a idéia de autonomia e
liberdade de ação sobre o próprio corpo presente nas falas de alguns de seus entrevistados. Ouvi palavras semelhantes no
estúdio onde fiz minha observação de campo: “o corpo é meu e faço com ele o que quero” e “cada um tem liberdade de
escolher o que faz com seu corpo”.
Em minhas observações de campo, ouvi relatos de mulheres cujos maridos não gostavam de tatuagens, ou que
estavam no estúdio para a primeira tatuagem sem terem avisado aos maridos. Em todos os casos, o argumento apresentado
foi sempre o mesmo: “o corpo é meu”. A recíproca, contudo, não parece ser verdadeira. Jamais ouvi nenhum homem falar
que a esposa não gostava de tatuagens, como jamais vi homem algum ter de explicar para sua esposa que o corpo é dele e
pode fazer com o seu corpo o que quiser. Esta diferenciação quanto à autonomia individual e de ação sobre o próprio corpo
está implícita às posições de gênero.
Reproduzo abaixo trechos do diário de campo, referentes a uma conversa observada no estúdio, entre clientes:
“Ana3 contou sobre uma amiga que havia feito sua primeira tatuagem há poucas semanas. O marido da amiga não
gostou e desejava que ela retirasse o desenho. A amiga se dividia entre fazer uma nova tatuagem e retirar a primeira
com laser. Perguntei qual a profissão do marido da amiga de Ana. Ela disse que era um empresário que costumava
estar sempre viajando. Kátia protestou dizendo que era um absurdo a amiga de Ana tirar a tatuagem por causa do
marido e que um homem que viaja muito tem várias mulheres. Ana contou que o marido da amiga dissera à esposa, na
frente da própria Ana, que uma mulher com tatuagem era uma mulher à toa4. Ana não gostou e passou a influenciar a
amiga no sentido de que um homem que não está em casa deve ter outras mulheres. Meu marido também não gosta de
tatuagem. Eu disse para ele ‘vou fazer outra’. Ele não é contra, mas sempre me diz que, por ele, eu não faria
nenhuma. Mas eu faço. O corpo é meu, o dinheiro é meu e ninguém tem nada a ver com isso, conclui Ana.”

“O marido de Sandra ligou para o seu celular enquanto ela aguardava dentro do estúdio. Estou fazendo uma tatuagem,
avisou. O marido não gostou e a ligação foi interrompida. Ele desligou na minha cara!, disse. Ligou para ele
perguntando se havia desligado, mas ele negou. Ela questionou porque ele não aprovava sua tatuagem e argumentou
dizendo que era uma coisa de que ela gostava, da mesma forma que haviam coisas de que ele gostava. Depois de falar
com o marido, Sandra recebeu um telefonema do pai, tentando desencorajá-la. Seu marido não gostou?, perguntei-lhe.
Não... mas eu não quero nem saber. O corpo é meu, o dinheiro é meu, ninguém tem nada a ver com isso, respondeu.
Sandra não havia avisado ao marido que havia tomado a decisão e que iria tatuar-se naquele dia. Ele tomou

3
Todos os nomes são fictícios.
4
Claramente com o sentido de mulher infiel ao marido e sexualmente disponível a outros homens.

430
conhecimento da situação pelo telefone. Agora você vê... eu tenho 38 anos e não posso tomar minhas próprias
decisões, reclamou.”

Nas passagens acima, o marido aparece como alguém que pode gerar conflitos na opção de se tatuar. A família é a
instância que critica ou apóia uma decisão que poderia parecer absolutamente individual. No caso de Ana, ela informou ao
marido sua opção, mas não levou em consideração suas críticas ou gosto pessoal, argumentando que o gosto a ser levado em
consideração era o dela, uma vez que o corpo a ser adornado era o dela. O fato de seu marido não gostar de tatuagens não
apenas não a incomodava, como não a inibia de adquirir mais algumas. Só pensava em retirar a mais antiga, a primeira
efetuada, pois aquela incomodava a ela mesma. Incômodo que não se originava no fato de estar envelhecida, feia e
desbotada, mas no fato de lhe causar transtornos no mundo do trabalho. O trabalho aparece, na verdade, como a primeira
instância de crítica. A tatuagem nova que adquiria na nuca, a seu ver, não lhe causaria transtornos, pois poderia escondê-la
com os cabelos compridos, conforme contou.
Gostaria de tomar estas estórias como ponto para uma reflexão. A família aparece em todas elas como uma
instância controladora, limitadora de seus membros, tanto no sentido das escolhas individuais quanto no sentido do controle
individual sobre o próprio corpo. Sendo membro de uma família, o corpo do indivíduo parece não lhe pertencer mais e fica
sujeito às pressões familiares. Não levando em consideração a opinião da família, o que o indivíduo demonstra é que seu
corpo é propriedade e responsabilidade exclusivamente suas e qualquer decisão por ele tomada, nesse sentido, é expressão de
seu desejo pessoal.
Há, na relação do indivíduo com a família, algo que permite a manifestação dessas vontades individuais. No
universo do trabalho, contudo, a pressão exercida é sentida de forma muito maior, pois leva o indivíduo a um
questionamento. Há um cálculo sobre o quanto este universo aceitará ou não o desejo individual. Para uma melhor reflexão
sobre o mundo do trabalho, gostaria de apresentar mais duas passagens do diário de campo:
“Iara tem 45 anos, é advogada, casada, mãe de dois filhos. Segundo disse, tem oito tatuagens pelo corpo – algumas
visíveis, outras não – e inúmeros piercings nas duas orelhas. Perguntei-lhe se as tatuagens e piercings não lhe
atrapalhavam em questões profissionais. A orelha, contou, cobria com o cabelo. As tatuagens dos pés se tornavam
invisíveis com calçados fechados, bem como as do corpo, cobertas pelas roupas. A tatuagem do pulso era escondida
com o relógio. Luciana [tatuadora] comentou que no trabalho não pega [atrapalha] tanto assim, mas Iara discordou e
disse que “pegava” [atrapalhava] sim. Havia sido tatuada recentemente por Mauro [tatuador], um desenho estilo
comics de um homem com duas crianças, que ela dizia ser o marido e os filhos. Seu marido também é tatuado e gostara
da homenagem, bem como os filhos. Ela estava nos estúdio naquele dia para colorir um dragão que tatuara subindo do
pé até o meio da canela direita.”

“Luciana tatuou em Lídia, de 20 anos, que fora ao estúdio acompanhada da mãe e da irmã, um dragão pequeno, em
preto, estilo tribal, entre o ombro e o pescoço, um pouco acima do seio. Pensei que esta seria considerada uma região
bem aparente [...], mas Lídia havia escolhido o local segundo a lógica do revelar/esconder. Aqui eu mostro quando eu
quiser. Se não quiser, não mostro, ninguém vê. Eu me preocupo com o meu trabalho, que é uma coisa que eu quero
fazer também, disse. Parece que pretendia prestar concurso para a polícia. Não era a sua primeira tatuagem. Neste dia,
também retocou a primeira: uma minúscula meia-lua com uma estrela tatuada na cabeça, por trás da orelha esquerda.”

O grau de preocupação com os transtornos que uma tatuagem pode oferecer no mundo do trabalho parece ser mais
subjetivo do que objetivo. A nuca, escondida pelo cabelo de Ana, não é um problema. A orelha de Iara, cheia de piercings, e
a orelha de Lídia, tampouco as preocupavam. Iara, de fato, não parecia preocupada em absoluto, embora pensasse que o
universo do trabalho não a aceitaria como advogada sendo uma mulher visivelmente tatuada. O universo policial onde Lídia
queria ingressar, segundo ela, tampouco a aceitaria se as tatuagens fossem aparentes.
Leitão (2002) sugere que o jogo de revelar/esconder das tatuagens femininas se refere a um processo típico da
coqueteria feminina, dos processos de embelezamento e do próprio jogo de sedução, visto como objetivo último do
embelezamento. De fato, como Edmonds (2002) sugere, o corpo é embelezado para si e para o outro. O jogo de olhares é
fundamental tanto na sedução quanto no processo de revelar/esconder. Chama-se a atenção pelo olhar ou se oculta algo, e
tanto um ato quanto o outro podem seduzir.
É no mundo do trabalho que se deve sempre esconder as tatuagens. Logo, o local escolhido para as mesmas deve
permitir que, nestes ambientes, elas sejam ocultadas, enquanto em outros elas possam ser reveladas. Não se oculta e revela as
tatuagens simplesmente para outros sujeitos, mas em toda uma esfera da vida. O mundo do trabalho é visto como lócus de
controle sobre os sujeitos e seus corpos. Possuindo tal qualidade, é um universo onde a expressão do Eu só é possível de
forma limitada. Neste campo, o sujeito deve esconder sinais que indiquem que ele não é o que se espera que seja. A tatuagem
é vista como uma forma de estigma (Goffman, 1975) que deve ser encoberta, pois pode alterar a percepção sobre os sujeitos
que possuem a marca.
O mundo público tem aparecido como um universo de recolhimento e “submissão” ao que é socialmente esperado
do sujeito. Pensa-se esse socialmente esperado, no caso das tatuagens, como não aparentando possuí-las. Ter tatuagens não é
pensado como o problema, mas mostrá-las. O sujeito aceita as limitações impostas pelo universo público, mas não pelo
universo privado da família. A família parece ser a instância em que o sujeito deseja ser aceito, onde ele pode revelar-se, ao
invés de ocultar-se, onde ele pode exprimir seus desejos e aspirações sem limitações.

431
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Comportamentos sexuais, crenças, atitudes e conhecimentos de


adolescentes/jovens portuguesas e cabo-verdianas face à vulnerabilidade ao risco
do HIV/SIDA: uma abordagem antropológica comparativa em contexto urbano.
Maria de Guadalupe Carvalho
Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
[email protected]

Resumo: Esta investigação debruça-se sobre a análise comparativa dos comportamentos sexuais no âmbito da heterossexualidade (práticas
sexuais e comportamentos de não protecção), das adolescentes/jovens portuguesas e cabo-verdianas, relacionados com a vulnerabilidade face
ao risco do VIH/SIDA. Serão também analisadas as crenças, as atitudes e os conhecimentos das jovens portuguesas e cabo-verdianas
relativamente ao acesso à informação sobre o VIH/SIDA e ao acesso aos serviços de saúde pública. Os comportamentos sexuais, as crenças,
as atitudes e os conhecimentos face ao risco do VIH/SIDA das jovens portuguesas e cabo-verdianas serão estudados em contexto
universitário e em contexto comunitário, nos bairros sociais na Grande Lisboa, tendo em conta variáveis como a idade, a classe social, o
grupo étnico, as crenças religiosas e os padrões sócio-culturais familiares e comunitários, como o controlo da sexualidade feminina por parte
dos pais e a influência do grupo de pares nos comportamentos sexuais das jovens portuguesas e cabo-verdianas. Para a análise do tema
“sexualidade feminina juvenil e sida” utilizaremos como suporte teórico as teorias das relações de género (Holland et al., 1990, 1991ª, 1991b
1992 e 1994) e a teoria da vulnerabilidade proposta por Mann e colaboradores (1992 e 1996). Estas teorias têm revelado ser importantes na
análise dos aspectos psico-sócio-económico-culturais que permeiam o processo saúde-doença (Campo da Antropologia Médica). O método
utilizado será baseado nas entrevistas (oitenta entrevistas em contexto universitário e oitenta entrevistas em contexto comunitário). As
entrevistas são semi-dirigidas, aprofundadas. Estas entrevistas serão analisadas utilizando-se a técnica de análise de conteúdo temática
(Bardin, 1977).

1.Introdução
Este estudo reporta-se à análise dos comportamentos sexuais no âmbito da heterossexualidade (práticas sexuais e
comportamentos de não protecção), das crenças e das atitudes e dos conhecimentos das jovens portuguesas e cabo-verdianas1
(entre os 15 e os 230 anos, sendo a maioria das jovens solteiras2) face à vulnerabilidade do risco de infecção do VIH/Sida.
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e comparativo (jovens portuguesas versus jovens cabo-verdianas), de cariz
qualitativo com realização de entrevistas em contexto comunitário, nos bairros sociais da Grande Lisboa (80 entrevistas). As
entrevistas serão analisadas utilizando-se a técnica de análise de conteúdo temática (Bardin, 1977).
Para a análise do tema "sexualidade feminina juvenil e sida" utilizaremos como suporte teórico a teoria da
vulnerabilidade proposta por Mann e colaboradores (1992 e 1996).
Esta investigação tem como principal objectivo compreender os comportamentos de risco face ao HIV/Sida das
jovens portuguesas e caboverdianas, bem como compreender os conhecimentos, crenças e atitudes face à Sida e ao acesso aos
serviços de saúde das mesmas jovens. Pretende-se através dos resultados obtidos inferir sobre as interacções entre os factores
que se relacionam com a adopção de comportamentos sexuais relevantes e na problemática do VIH/SIDA e desta forma

1
Estas jovens são descendentes de imigrantes caboverdianos, tendo nascido em Portugal.
2
As caboverdianas são cerca de 95% solteiras, vivendo as restantes em união de facto. As portuguesas são cerca de 82% solteiras, vivendo as outras (18%) em
união de facto.

432
contribuir para o estabelecimento de estratégias de intervenção preventivas, assim como para o desenvolvimento de políticas
de Promoção de Saúde no seio destas comunidades.
A deliberada focalização na sexualidade decorre de ser esta a principal via de transmissão da infecção pelo
VIH/SIDA (48% é a percentagem de casos associados à infecção por transmissão sexual em Portugal), justificando que os
esforços de prevenção sejam concentrados sobremaneira nesta área (Doc. 135 CVEDT, 2005).
Iremos estudar os comportamentos sexuais no âmbito da heterossexualidade uma vez que, em Portugal, à
semelhança do que vem acontecendo por toda a Europa Ocidental, temos assistido a um aumento muito acentuado do número
de sujeitos infectados por contacto heterossexual: 30,9% dos casos de infecção diagnosticados em 1999, e 49,5% em 2005
(Doc. 135 CVEDT, 2005). Quer isto dizer, que os contactos heterossexuais são a forma de transmissão que mais tem
contribuído para o aumento dos casos de Sida em Portugal nos últimos anos.
Seleccionámos as mulheres como alvo porque elas são cada vez mais relevantes entre o total de infectados. A
relação entre homens e mulheres infectados com Sida é de aproximadamente 2,5 para 1, mas esta razão tem vindo a diminuir
desde 2000, com 1,5 homens para uma mulher nos últimos quatro anos (Alvarez, 2005).
O nosso interesse em estudar as mulheres jovens decorreu, principalmente, do facto de que actualmente existe em
Portugal um grande número de mulheres contaminadas pelo vírus da Sida com manifestação dos sintomas na faixa etária
entre os 25 e os 34 anos (Doc. 131 CVEDT, 2004). Como o vírus pode ficar inactivo no organismo por mais de 10 anos,
desde a contaminação até aparecimento dos sintomas, podemos deduzir que, provavelmente, a maioria dessas mulheres
contraíram o vírus na adolescência ou na juventude (Veronesi, 1991).
A adolescência é um período de desenvolvimento cognitivo, emocional e físico, caracterizado pela exploração e
experimentação. É uma fase de exploração da intimidade, da sexualidade e do desenvolvimento de autonomia. Por estas
razões é, simultaneamente, um período de aquisição de riscos, incluindo o risco de infecção pelo VIH.
A adolescência e a juventude são fases da vida em que os relacionamentos erótico-amorosos são caracterizados por
uma competição intra e inter-géneros, assim como por um certo descomprometimento: mudança constante de parceiros,
relacionamentos sexuais de uma noite ("one night stands") e parceiros múltiplos em simultâneo (Brak-Lamy, 1999 e 2002).
Este tipo de comportamentos aliados à falta de protecção, aumentam o risco de contaminação por VIH e o risco de gravidezes
precoces (Centers for Disease Control and Prevention, 2000; DiClemente et al., 2001; Whitaker & Miller, 2000).
Escolhemos estudar o comportamento sexual de jovens portuguesas e cabo-verdianas porque relativamente às
primeiras, é de referir que 97% a população portuguesa é “branca” (INE, 2003). No que diz respeito às segundas, de acordo
com os dados provenientes das Estatísticas Demográficas de 2003, os cabo-verdianos constituíam o maior contingente
«étnico» de estrangeiros residentes em Portugal (23, 7%). Entre o Censo de Abril de 1991 e as Estatísticas Demográficas de
2003, os cabo-verdianos legalizados mais do que triplicaram, passando de pouco mais de quinze mil para mais de cinquenta e
três mil, sendo o número de mulheres, 23527.
Seleccionámos alguns bairros sociais da Grande Lisboa para estudar os comportamentos sexuais das jovens
portuguesas e das cabo-verdianas nesta zona, pois aqui - Lisboa e Vale do Tejo - concentra-se 87,2% da comunidade
caboverdiana (Bastos, 1999).
Para além dos factores com a idade, o género, a etnicidade, vários estudos sugerem que as normas culturais, a
religião3, a influência do grupo de pares, o estatuto sociocultural, económico e a estrutura familiar4 determinam directa ou
indirectamente quem é mais vulnerável à infecção por VIH, quais as formas mais eficazes de prevenção, e quais os
obstáculos à diminuição dos comportamentos de risco de infecção (Cornelius, Okaundaye, & Manning, 2000; Santelli,
Lowry, Brener & Robert, 2000; Stieving, Resnick, Bearinger, Remafedi, Taylor & Harmon, 1997). . Assim sendo, a
influência do contexto ambiental onde as tomadas de decisão ocorrem é um factor a ser considerado. (McDernott, 1998;
Woollett, Marshall, & Stenner, 1998).
Outros autores como Potsonen & Kontula (1999) e DiClement, et al. (2001) mencionam factores de ordem psico-
comportamental, como a percepção da invulnerabilidade, a comunicação com o parceiro sexual, a dificuldade em planear
acontecimentos futuros e aspectos relacionados com as expectativas negativas associadas ao uso do preservativo e a
percepção que têm da sua eficácia, bem como das capacidades que têm que possuir e que estão implicadas na sua utilização
A problemática da SIDA e especialmente a prevenção do HIV leva-nos a reflectir sobre as normas sociais e padrões
culturais de cada comunidade, que exprimem valores colectivos, assim como, a tentar compreender os comportamentos
sexuais das jovens de grupos específicos da população, que se encontram em situações de maior risco, nomeadamente os
migrantes africanos (neste caso, as jovens caboverdianas) e das comunidades socialmente desfavorecidas que, geralmente são
reconhecidos, como grupos especialmente vulneráveis na área da saúde sexual, nomeadamente na infecção por VIH/Sida
(Lawrence, et al, 1998; Decosas & Adrien, 1998; Shoroder et al., 2001; Fenton, 2001; Gadon et al. 2001).
A vulnerabilidade da população que habita os bairros sociais está geralmente, associada a vários factores: a uma
situação económica precária, à falta ou dificuldade de acesso aos direitos sociais básicos. (Segurança Social, Serviço
Nacional de Saúde) e elevadas taxas de abandono e insucesso escolar., baixos níveis de escolaridade e de qualificação

3
A maior parte das jovens são católicas não praticantes, sendo mesmo a totalidade relativamente às portuguesas e 80% no que diz respeito às caboverdianas.
4
Cerca de 78% jovens caboverdianas e 67% das jovens portuguesas entrevistadas são oriundas de famílias monoparentais. Existe um elevado número de jovens
cujos projenitores se encontram divorciados ou separados, vivendo as jovens sozinhas com a mãe (22%) dos casos, com a mãe e os irmãos (70%) ou com outros
familiares, nomeadamente os avós ou os tios (8%).

433
profissional; a factores culturais, a factores institucionais e barreiras legais e linguísticas e a uma certa marginalidade
associada com a sua residência em bairros periféricos.

2. Construção teórico-metodológica do estudo


2.1. Pressupostos teóricos
Vulnerabilidade é um conceito que vem sendo utilizado desde o início dos anos 90 na reflexão e elaboração de
acções preventivas em VIH/SIDA. Este conceito aponta para um conjunto de factores psico-sócio-económico-culturais e
políticos, de níveis e magnitudes distintos, cuja interacção amplia ou reduz as possibilidades de uma pessoa se infectar com o
VIH.
A análise da vulnerabilidade à infecção pelo HIV desenvolvida por Mann e colaboradores (1992 e 1996) aborda
três dimensões: a vulnerabilidade individual, a social e a programática. Nesse estudo privilegiaremos a dimensão individual e
social, com algumas referências à vulnerabilidade programática.
A vulnerabilidade individual envolve tanto a dimensão cognitiva quanto a comportamental. Factores cognitivos
estão relacionados com o acesso às informações necessárias sobre HIV/SIDA, e com a rede de serviços de saúde, para a
redução da vulnerabilidade à infecção pelo HIV. Os factores comportamentais podem ser analisados dentro de duas
categorias: 1) características pessoais, que incluem o desenvolvimento emocional, a percepção de risco e as atitudes em
relação a esse risco; e 2) habilidades pessoais, como a capacidade de negociar práticas de “sexo seguro”. A vulnerabilidade
programática diz respeito às contribuições dos programas de VIH/SIDA na redução da vulnerabilidade pessoal e social. A
vulnerabilidade programática é definida através dos três principais elementos de prevenção identificados pela OMS: 1)
informação e educação; 2) serviços sociais e de saúde; 3) não discriminação das pessoas portadoras de VIH/SIDA. O
conceito de vulnerabilidade social é construído a partir da premissa de que os factores sociais têm uma forte influência tanto
na vulnerabilidade pessoal quanto na programática. A análise da vulnerabilidade social reconhece que grandes temas
contextuais, como as políticas de saúde pública, as relações de género, os padrões sócio-culturais, familiares, os tabus e as
crenças religiosas, as diferenças de idade e de classe social, influenciam a capacidade de reduzir ou aumentar a
vulnerabilidade pessoal ao VIH.

2.2. Procedimentos metodológicos


Este estudo foi efectuado a partir de entrevistas (gravadas) a 40 jovens portuguesas e a 40 jovens cabo-verdianas
entre os 15 e os 30 anos que vivem em seis bairros sociais da Grande Lisboa: Picheleira, Chelas, Amadora, Benfica, Loures e
Seixal.
Optámos por realizar entrevistas a estas jovens, pois esta metodologia qualitativa permite analisar os valores,
significados e comportamentos que caracterizam as comunidades e que são construídos socialmente na realidade específica
em que se inserem (Murray & Chamberlain, 1998; Somati et al., 2001, Woollettt et al., 1998). A metodologia qualitativa
permite uma análise aprofundada das lógicas comportamentais relativas à sexualidade e as estratégias de prevenção do
HIV/SIDA.
Este estudo incidiu sobre uma amostra reduzida da população, pois o nosso objectivo é a diversidade em termos da
informação recolhida e não a representatividade da população. A informação recolhida será sempre parcial, uma vez que a
amostra não é representativa.
As entrevistas foram realizadas nos cafés, bibliotecas e recintos de jogos de algumas instituições desses bairros,
entre Janeiro de 2007 e Janeiro de 2008. As entrevistas tiveram a duração média de uma hora, tendo-se informado os
directores das instituições ou responsáveis pelas actividades das jovens dos objectivos da investigação e explicado a estes
directores e às jovens os aspectos relativos à confidencialidade das informações e da participação consentida das jovens. O
horário das entrevistas foi ajustado à disponibilidade das jovens. O guião da entrevista semi-estruturada centrou-se nos
aspectos relacionados com a problemática do VIH/SIDA, de acordo com os objectivos da investigação.
Posteriormente, procedemos à transcrição integral das entrevistas, seguindo-se a análise de conteúdo. Elaborámos
inicialmente uma lista de categorias de análise, estando subjacente o guião de entrevistas e os principais temas referidos pelas
jovens.

3. Comportamentos sexuais de risco de contrair VIH/SIDA


3.1. O primeiro beijo
As jovens portuguesas e caboverdianas deram o seu primeiro beijo5 entre os onze e os treze anos. O beijo foi dado
geralmente colegas de escola, que habitavam no mesmo bairro das jovens. O beijo foi quase sempre um acto isolado, sendo a
iniciativa maioritariamente masculina. Algumas jovens portuguesas e caboverdianas disseram-nos que, por vezes, a relação
com o rapaz a quem a deram o primeiro beijo na boca durou uma ou duas semanas e não passou de uns beijinhos. Outras

5
Apenas duas jovens, uma portuguesa e outra caboverdiana, nunca beijaram um rapaz.

434
jovens (cerca de 25% de caboverdianas e 22% das portuguesas e confidenciaram-nos que para além dos beijos na boca
também se envolveram em diversos tipos de comportamentos sexuais que vão desde as carícias, à masturbação, ao necking e
petting (carícias da cintura para cima e carícias em todo o corpo mas sem realização de cópula, os denominados “amassos”).
Apenas 9% das caboverdianas e 7% das portuguesas tiveram relações sexuais com o rapaz a quem deram o primeiro beijo.
Neste casos, o beijo é prenunciador das primeiras relações sexuais.

3.2. A primeira relação sexual e a duração dos relacionamentos erótico-amorosos


De realçar o facto de que a maioria das jovens portuguesas e caboverdianas entrevistadas não serem virgens6. A
primeira relação sexual ocorreu - tanto para as jovens portuguesas -, como para as jovens caboverdianas, entre os doze e os
dezassete anos. Esta relação sexual foi com o namorado que conheceram ou na escola ou no bairro onde moravam. Para cerca
de 98% das caboverdinas e 92% das portuguesas o parceiro da iniciação sexual não foi o seu actual namorado ou
companheiro (para aquelas que vivem em união de facto). A primeira relação sexual aconteceu - para 80% das caboverdianas
e 86% das portuguesas -, entre os dois a cinco meses de namoro.7As jovens que demoram quatro ou cinco meses são as que
dizem conferir muita importância à virgindade (17% caboverdianas e 12% de portuguesas). A contrario, as jovens que
tiveram a sua primeira relação sexual na primeira semana de namoro (20% caboverdianas e 14% das portuguesas) não
sobrevalorizam a virgindade. Até ai as jovens trocavam beijos e carícias (“amassos”). A iniciativa foi, na maior parte dos
casos, masculina, à excepção de duas caboverdianas e de três portuguesas dizerem que a iniciativa foi de ambos, no
seguimento de conversas sobre o assunto.
O rapaz com quem as jovens portuguesas e caboverdianas tiveram relações sexuais pertencia à mesma faixa etária
das jovens (tinha cerca de mais um ou dois anos do que a jovem) e, na maior parte dos casos, já não era virgem. A relação
sexual (clandestina) teve lugar na casa do jovem. Para a maioria das raparigas portuguesas e caboverdianas foi uma relação
sexual dolorosa, que não se consumou nesse dia, mas sim ao fim de duas ou três tentativas. Os motivos subjacentes à
primeira relação sexual prendem-se com uma certa pressão do namorado, com o facto de gostarem dele e de pensarem que o
conhecem bem, com a atracção física, com o desejo sexual, com a curiosidade e com o incentivo do grupo de pares, em que
as amigas dizem ser bom fazer sexo e que já está na altura de isso acontecer. Aliás, são geralmente as amigas que apresentam
a jovem ao futuro namorado (que geralmente é um colega de escola ou um vizinho), ou então as jovens começam a namorar
por iniciativa própria ou do rapaz. São também as amigas (especialmente a melhor amiga), as primeiras a saberem do
acontecimento. Elas, e em alguns casos as irmãs mais velhas e/ou as primas, são as “confidentes”. Só mais tarde é que
algumas jovens contam às mães, principalmente as portuguesas, que vivem sozinhas com a mãe (ou então com a mãe e os
irmãos porque os pais estão separados).
Os namoros geralmente duram entre quatro meses e dois anos. As jovens que vivem em união de facto e as jovens
entre os 25 e os 30 anos são as que têm namoros mais prolongados e isto acontece sobretudo com as jovens portuguesas (17%
versus 4% das jovens caboverdianas). Os namoros terminam, geralmente, por causa de infidelidades masculinas,
principalmente no caso das jovens caboverdianas (85%). Estas últimas por vezes acabam o relacionamento erótico-amoroso,
porque o namorado engravida outra rapariga. As jovens caboverdianas ainda apresentam outros motivos para a ruptura, como
o facto do namorado ter que ir trabalhar para outro país.
As jovens portuguesas, para além de mencionarem a infidelidade (35%) como um motivo para terminarem o
namoro, cerca de 45% sublinham a falta de objectivos do companheiro (“o não querer trabalhar e ficar sem fazer nada”) e a
sua entrada no mundo da droga.
As jovens portuguesas e caboverdinas referem ainda outro motivo que leva a que terminem o namoro com os
companheiros: a sua infidelidade para com eles. Isto acontece a cerca de 20% das caboverdianas e a 15% das portuguesas.
Estas jovens confessam-nos que já não estão com o namorado porque ainda não era o homem da vida delas e se enamoraram
por um jovem que conheceram num bar ou numa discoteca, e com quem começaram por ter um relacionamento de troca de
caricas e de beijos (“a curte”).
Tanto as jovens portuguesas, como as caboverdinas têm relações sexuais entre três a cinco vezes por semana, à
excepção dos relacionamentos mais longos, que geralmente são os das raparigas mais velhas (entre os 25 e os 30 anos) em
que a média de relações sexuais é duas vezes por semana. Nas primeiras relações sexuais, a iniciativa relativamente às
práticas era, na generalidade dos casos, masculina. Com o evoluir da relação, as jovens ficam mais à vontade e com mais
confiança, adquirindo também mais experiência que as leva a tomar iniciativa. Outras há, que adquirem mais experiência na
sequência dos diversos relacionamentos amorosos:
“Com o meu primeiro namorado era ele que tinha a iniciativa das relações sexuais, porque eu era muito nova e
inexperiente. Com o 2º também era ele porque eu tinha medo de engravidar. Com o 3º eu já estava com menos medo

6
A nossa amostra evidenciou a existência de mais jovens portuguesas virgens (seis) do que jovens caboverdianas virgens (quatro). Os motivos para a
preservação da virgindade são o nunca terem namorado com ninguém e o nunca terem gostado de ninguém, assim como a influência da educação parental, com
cariz conservador a importância do sentimento amoroso. Uma jovem portuguesa disse-nos que se orgulhava de ser virgem.
7
O que se verifica através das entrevistas é que, geralmente os namoros das caboverdianas são com caboverdianaos e o das portuguesas com portugueses. O que
acontece é estarmos perante relacionamentos endogâmicos.

435
de engravidar e estava menos tímida. Com o 4º eu já tomava bastante iniciativa. Com o 5º já estou à vontade e a
iniciativa é de ambos. (Caboverdiana, 20 anos, união de facto)

3.3. Práticas sexuais de risco


Relativamente às práticas sexuais a relação genital é a mais frequente, seguindo-se o sexo oral (fellatio), apesar de
relativamente a esta prática, algumas raparigas (cerca de 10% de caboverdianas e 8% de portuguesas) não gostarem ou não se
sentirem muito à vontade, fazendo só para agradar ao parceiro:
Já fiz sexo oral a ele. Ele nunca me obrigou. Eu perguntei se ele gostava e ele disse que sim. Então eu faço, mas não
gosto. Faço porque ele gosta. Não tenho coragem de dizer que não gosto. Nunca lhe pedi para ele fazer a mim. Acho
nojento, horrível. Aposto que deve ser bom, mas nunca foi o meu género, mas isso é fazer sexo, não é fazer amor. Ele
já me perguntou se eu queria que eu lhe fizesse. Eu disse, não, não é preciso, obrigado. (portuguesa, 18 anos)

A quase totalidade das jovens portuguesas e caboverdianas rejeita a prática do sexo anal.8 Os discursos femininos
apontam para o desconforto e a dor que esta prática causa. Algumas jovens falam reiteradamente de uma insistência
masculina, que em alguns casos fez com que elas experimentassem esta prática. O sexo em grupo, assim como a troca de
casais são actividades rejeitadas pela totalidade das jovens, pois segundo as mesmas, não têm que ver com o afecto, nem com
a exclusividade do relacionamento.

3.4. Violência Sexual


Acrescente-se ainda que outro factor de risco que teve pouco expressão no nosso estudo, é a violência sexual,
nomeadamente o estupro. Foi-nos relatado um caso de violação em grupo:
Já fui obrigada uma vez a ter relações sexuais. Praticamente fui violada por um grupo de seis rapazes. Tinha 14 anos e
já tinha mudado para aqui. Na altura não disse porque tive medo. Fiquei com medo de levar porrada da minha mãe.
Contei à assistente social do colégio passado três ou quatro dias. Há pouco tempo contei à minha mãe. Ela ficou triste.
(Caboverdiana, 18 anos, solteira)

Há casos em que a violação é protagonizada por um familiar próximo da jovem e este ameaça-a se ela contar.
“A minha primeira vez foi com um tio, quando eu tinha 11 anos. Eu não queria. Ele disse que se não me calasse, ele
batia-me. Foi lá em Cabo Verde. Foi na minha infância, eu ainda não percebia bem as coisas (…). É como se não fosse
nada comigo”. (Caboverdiana, 16 anos, solteira)

Outro factor de risco, é o parceiro sexual (que se encontra em situação de ter várias parceiras), obrigar a jovem a ter
relações sexuais anais (sem preservativo) e a fazê-lo não só contra a vontade da jovem, mas também sem preservativo. Uma
jovem portuguesa de 15 anos relatou-nos que foi obrigada a fazer sexo anal com um rapaz de 26 anos, com quem tinha um
relacionamento sexual esporádico:
“Cheguei a ter sexo anal com o de 26 anos. Eu não queria e disse; deixa-me, deixa-me, deixa-me e ele não me largou.
Não queria mesmo. Ele obrigou-me. Isso é uma coisa que dói bastante. Eu senti a dor e chorei. Ele viu-me a chorar e
dizia, vá, não gostas? Eu sei que tu gostas. Tu és provocadora.” (Caboverdiana, 15 anos, solteira)

Um aspecto enfatizado na desconstrução desta “violência masculina” é a ideia, predominante no Ocidente, de que o
sexo é um fenómeno natural, com base instintiva, ou seja, biologicamente determinado, embora sujeito à repressão (Caplan,
1987). Como sugere Chaui (1987: 15), esta ideia de repressão sexual “coloca-nos diante um fenómeno peculiar (…) o da
existência de proibições, permissões e recompensas concernentes a algo que seria puramente natural”. Simultaneamente, as
análises de género demonstraram que esta visão da sexualidade como instinto biológico é historicamente aplicada sobretudo à
sexualidade masculina, que domina, controla e é violenta, por ser dificilmente controlável: “a ideologia dominante enfatiza
que a dominação, o controle e, até mesmo, a violência masculina na sexualidade são “naturais” (Caufield, 1985: 360).
Quando o acto sexual é interpretado como uma expressão natural da necessidade masculina em conquistar e dominar a
mulher, “a associação entre sexualidade, poder e violência masculinos, é uma necessidade biológica e, portanto, inevitável.”
(Jackson, 1987: 571).

3.5. Monogamia serial e parceiros múltiplos


A monogamia serial designa a sucessão de relações erótico-amorosas, sem se sobreporem umas às outras (Giddens,
1995). De acordo com os dados do nosso estudo, 88% das raparigas portuguesas e 82% das caboverdianas têm
relacionamentos erótico-amorosos sob a forma de monogamia serial:

8
O sexo anal foi praticado pelo menos uma vez em 80% caboverdianas e em 78% das jovens portuguesas, mas não é uma prática muito recorrente. Na totalidade
dos casos, o sexo anal foi praticado sem preservativo : « dans le cas du VIH, le risque d`être infecté par un sujet contaminé est plus élevé en cas de pratiques de
pénétration anale que vaginale (sans préservatif) et plus encore s`il s`agit de pénétration anale réceptive qu`insertive. Le risque lié aux contacts orogénitaux est
beaucoup plus faible. » (Warszawski, 1997 : 258).

436
“Tive um namoro que durou seis meses. Depois, quando acabou, estive dois meses sem nenhum (…) Uma amiga
minha apresentou-me um amigo dele e começámos a andar. Durou três meses. Agora namoro com um amigo dele, que
já não é amigo e que me avisou que ele me tinha traído. Estou com ele há 7 meses.” (Portuguesa, 19 anos, solteira)

No início da sua trajectória amorosa, algumas adolescentes encetam relações erótico-amorosas em série, de curta
duração, que variam entre uma noite (“one night stands”) até um mês, não excedendo esse período. Um dos motivos mais
referidos pelas jovens é o facto de não quererem ficar sós: elas vivem períodos sem relacionamentos erótico-amorosos, como
momentos de grande solidão:
“Nunca tive dois ou três namorados ao mesmo tempo. Curtia uma semana com um, depois vinha para o colégio e
arranjava outro. Curtia com esse duas ou três semanas Dois ou três ao mesmo tempo nunca foi a minha onda. Deus me
livre! Nunca foi a minha onda. Graças a Deus, não! Não gosto mesmo (…) Estive uma vez um mês sem namorado
nenhum e foi horrível, sentia-me muito só. É uma sensação estranha!» (Caboverdiana, 23 anos, união de facto)

Para algumas jovens portuguesas (25%) e caboverdianas (30%), estas monogamias em série de curta duração
envolviam relações sexuais com alguns dos parceiros das jovens, ou mesmo com todos. No entanto, na maior parte dos casos
(70% de caboverdianas e 75% das portuguesas), envolvem-se em”curtes”, sem relações sexuais coitais, apenas carícias e
beijos e em alguns casos sexo oral.
As jovens que têm dois parceiros em simultâneo (cerca de 12% caboverdinas e de 9% de portuguesas), fazem-no
geralmente durante um período curto (entre uma a três semanas). Estes relacionamentos múltiplos inscrevem-se, na maior
parte das vezes, em situações em que jovem ainda não largou o primeiro namorado, mas está prestes a fazê-lo, ou então fica
com o namorado e encetam “curtes” com outros jovens. Por vezes, as raparigas são pressionadas pelos parceiros com quem
curtem, para terem relações sexuais, mas isso nem sempre acontece:
“No meio dessa relação apareceu uma pessoa. O monitor do CAF tem um irmão. Eu, comecei a enviar mensagens para
ele. Comecei a curtir com ele. Curtia na mata. Ele mandou-me decidir qual dos dois é que eu queria. Fui escolher a
pessoa errado, que foi o outro. Durou 3 semanas. Não tive relações sexuais com ele. Ele ficou chateado comigo, porque
eu não lhe dei o que eu queria, que era ter relações sexuais. Voltei para o outro porque gostava dele. Este nunca mais
quis falar comigo. Enviou-me uma mensagem a pedir desculpa por me ter pedido para ter relações sexuais e por me ter
obrigado a escolher entre ele e o outro.“ (portuguesa, 15 anos, solteira)

Algumas jovens, sobretudo as portuguesas (75% versus 62% das caboverdianas), concebem a sexualidade feminina
ligada à reputação da rapariga no bairro em que está inserida e sugerem que a mesma não deve encetar múltiplos
relacionamentos erótico-amorosos em série, ou relacionamentos erótico-amorosos em simultâneo, pois tal facto não se
coaduna com um relacionamento imbuído de sentimentos. Só que a maior parte das jovens que critica estes relacionamentos,
teve também diversos parceiros erótico-amorosos em série (a média para as jovens caboverdianas e portuguesas é de 5
parceiros, tendo tido relações sexuais, pelo menos com dois) e de relacionamentos e simultâneo (cerca de 9% de portuguesas
e 12% de caboverdinas).
Grosso modo, podemos concluir que, o início da vida sexual precoce e o número de parceiros sexuais, quer seja sob
a monogamia serial ou de múltiplos parceiros, ou de ambos, remetem-nos para a importância da família e do grupo de pares.
Relativamente à família, é de referir que um estilo de intervenção parental não autoritário e a uma maior permissividade
(Bastos & Bastos, 2008) e falta de apoio parental, ou a ausência do pai e a pouca supervisão por parte de outros adultos
parecem facilitar a actividade sexual precoce e a liberalização dos comportamentos sexuais dos jovens. (Moore & Rosenthal,
1995). Por outro lado, a qualidade da comunicação entre pais-filhos; a comunicação aberta e receptiva com a mãe está
associada a menos comportamentos sexuais de risco.
Quanto ao grupo de pares, podemos afirmar que a importância do mesmo sobre o comportamento sexual dos
adolescentes, é sobrevalorizado por vários autores (Moore & Rosenthal, 1995, Sprinthall & Collins, 1994, Vasquez, 1999) ao
assinalarem que estes são determinantes nas decisões que os jovens tomam relativamente à sua sexualidade. Os pares
influenciam a sexualidade da jovem através da transmissão de normas mais permissivas ou restritivas e pelo modelo de
comportamento que fornecem (Lerner & Galambos, 1998). As adolescentes, que iniciam muito cedo a vida sexual, referem
idêntica situação entre os pares e percepcionam ganhos sociais associados à relação sexual precoce (Moore et al., 1996).

3.6. Utilização do preservativo


O preservativo já foi usado pelo menos uma vez em 85% das jovens portuguesas e em 80% das jovens
caboverdianas. Esta utilização foi feita muito raramente, em 90%, apenas na primeira relação sexual e em 10% dos casos
noutras ocasiões. Deste modo, os dados apontam para que este seja pouco utilizado pelas jovens, resultados que estão em
concordância com os encontrados por outros investigadores efectuados também em comunidades migrantes (Dias et al.,
2001,Dias et al., 2002, Dias et al, 2004, Gaspar et al, 2006)
A fraca utilização do preservativo prende-se com algumas crenças, de entre as quais destacamos:
a) A explicação mais recorrente para o não uso do preservativo tem que ver com confiança no parceiro. Este motivo
é referido por 75% das caboverdianas e por 52% das portuguesas. Para as jovens caboverdianas, a confiança está ancorada na
ideia de que os seus parceiros quando têm relações sexuais com outras raparigas usam preservativo: “Penso que ele tem
outras, mas ele com as outras previne-se. Eu não tenho outras pessoas. (caboverdiana, 17 anos, solteira)

437
De uma forma genérica podemos subscrever a opinião de (Weeks, Schensul, Williams, Singer & Grier, 1995;
Wingood & DiClemente, 2001) de que na comunidade africana em geral o uso do preservativo está fortemente associado a
relações esporádicas e a situações de infidelidade e não a relações sexuais com o namorado, baseadas nas crenças de
confiança e de afectividade/intimidade.
Para as jovens portuguesas, o preservativo é interpretado com algo que vai «preservar do outro» e é visto como
sinónimo de desconfiança, pois a sua utilização é contrária à sua representação do amor ligado à confiança e ao conhecimento
que pensam ter do seu parceiro sexual. O abandono do uso do preservativo é concebido como uma forma de confiança e de
estabelecimento de uma relação “séria”: “Nas duas ou três primeiras vezes usávamos, porque não nos conhecíamos bem.
Depois deixámos de usar, gostamos um do outro. Temos confiança um no outro. Somos namorados, não somos curtes:”
(Portuguesa, 16 anos, solteira).
Grosso modo, podemos afirmar que o uso do preservativo é bastante mais frequente em casos de infidelidade ou
com relações sexuais esporádicas e não numa relação estável, num namoro dentro do grupo/bairro.
b) Algumas jovens (cerca de 42% das caboverdinas e 34% das portuguesas) não usam o preservativo porque o
parceiro não gosta e, como tal, elas não o podem obrigar a usar. A utilização do preservativo depende portanto, da vontade do
parceiro da jovem. Sendo assim, estas jovens apercebem-se que têm oportunidades limitadas para introduzir a utilização do
preservativo nas suas relações: “O meu namorado não gosta nada de usar o preservativo. Eu já lhe pedi uma vez, e ele disse
que nem pensar nisso. Já não lhe vou pedir mais. Ele depois pode tornar-se agressivo. isso eu não quero. “ (Caboverdiana,
19 anos, solteira).
De salientar que, ao contrário do homem em que a utilização do preservativo constitui um comportamento sexual
protector, para a mulher os comportamentos protectores encontram-se relacionados com a sua capacidade de persuadir o
parceiro a usar o preservativo, ou com a recusa em ter relações sexuais, quando este recusa usá-lo. Esta recusa só foi
evidenciada pelas jovens portuguesas e caboverdianas virgens.
c) 32% das jovens portuguesas e 28% caboverdianas considera que o preservativo torna as relações sexuais menos
satisfatórias (perda de prazer sexual): “É látex, está a perceber? É esquisito. Ele também não gosta. Tira o prazer durante o
acto. Admitimos que é importante, mas depois é o desconforto. Não sei explicar, é esquisito.” (portuguesa, 24 anos, união de
facto) Ou como diz uma caboverdiana: “Não usamos preservativo porque não gostamos, tira o prazer. Normalmente,
ninguém gosta, não é? (Caboverdiana, 18 anos, solteira)
ou tira a sensibilidade: “Não gostávamos nada de usar. Aquilo aperta, não sei, é uma sensação estranha. Somos os
dois que achamos que é uma sensação muito estranha, que chega a incomodar” (portuguesa, 16 anos, mãe solteira)
d) Esquecimento, ligado muitas vezes à excitação do momento (20% das jovens caboverdinas versus 32% das
jovens portuguesas): “Usámos o preservativo só nas duas ou três primeiras vezes, depois a maior parte das vezes
esqueciamo-nos de usar o preservativo. Era aquela excitação do momento.” (Caboverdiana, 17 anos, solteira)
e) Cerca de 10% das jovens (6% da caboverdinas versus 4% das portuguesas) falam em falta de informação:
“Nunca usámos o preservativo. Não éramos informadas. Eu não sabia nada disso de doenças, nada. Até ao meu 6º ano não
me informaram nada na escola. “(Caboverdiana, 19 anos, solteira)
f) Uma outra explicação para o não uso do preservativo tem que ver com a capacidade que as jovens dizem ter de
reconhecer um portador assintomático pelo seu aspecto físico. Este factor foi evidenciado por 8% das portuguesas e 5% das
caboverdianas: “Eu conhecia quase todas as parceiras dele. Eram aqui do bairro. Vi-as passar. Não tinham mau aspecto.
Eram raparigas normais, não pareciam doentes” (Portuguesa, 19 anos)
g) Um número reduzido de jovens caboverdianas (duas) afirma que não usa preservativo porque faz testes
regularmente: “Faço testes de 6 em 6 meses. Eu estou sempre no médico por assim dizer. Assim não é preciso usar
preservativo. É muito raro.” (Caboverdiana, 24 anos, solteira)
h) Uma jovem caboverdiana referiu que não usou nunca os preservativos porque ela e o namorado são imigrantes
indocumentados e porque não têm dinheiro para os comprar
i) Existe também o factor explicativo religioso relacionado com a crença em milagres, que foi mencionado por uma
jovem portuguesa: “Tenho sempre confiança e espero sempre que não apanhe uma doença, mas não é de ele dizer que ele
não tem. É que sou um bocado religiosa. Sou adventista, fico à espera de um milagre.” (portuguesa, 18 anos solteira)
Por outro lado, é de assinalar uma não menos importante explicação para o não uso do preservativo por parte das
jovens, que se encontra relacionada com as características do seu grupo etário. Na realidade, a juventude é uma fase
dialéctica e tensional entre vários domínios de desenvolvimento, cognitivo, emocional e psicológico (Zabin, 1991), podendo
as vicissitudes deste contexto constituir um constrangimento à expressão de condutas sexuais preventivas, uma vez que as
capacidades de comunicação, negociação e persuasão das jovens, podem ainda não se encontrar suficientemente consolidadas
para se mobilizarem para e na acção.
Neste estudo o preservativo quando usado é mais como método de prevenção de gravidez e não tanto como uma
prevenção do HIV9 ou das DST`s. A gravidez implica uma mudança de estilo de vida que se traduz, na maior parte dos casos,
no abandono ou interrupção do percurso escolar por parte da jovem e na necessidade desta assumir novas responsabilidades.

9
A sida não é uma preocupação quotidiana destas jovens, apesar da existência de uma vida sexual activa desde bastante cedo. O receio de contrair a doença
tende a atenuar-se quando existe uma relação de confiança, apesar de ser consensual (especialmente no que se refere às jovens caboverdianas) a percepção de
que, no caso dos rapazes, é suposto eles terem diversas parceiras sexuais e também de que a confiança não implica uma relação estável e definitiva.

438
A utilização do preservativo como forma de evitar gravidez e não como forma de se proteger do VIH/SIDA ou as
DST`s é subscrita por Matos e Equipa do Projecto Aventura & Saúde (2003) e por Ross et al. (2004). Alguns autores, como
Bird, Harvey, Beckman & Johnson (2001), também mencionam o facto de ser mais fácil convencer os parceiros e a
capacidade de persuasão tende a ser mais eficaz quando o objectivo é prevenir uma gravidez do que a infecção por VIH. Por
seu turno, Namerow et al. (1987) enfatizam o facto de que os adolescentes são, no que se refere ao uso de anticoncepcionais,
muito mais guiados em função de uma estimativa subjectiva da probabilidade do que algo negativo lhes aconteça do que pela
consciência negativa do risco.
Grosso modo, podemos concluir que a experimentação da actividade sexual precoce e a existência de vários
relacionamentos erótico-amorosos sob a forma de monogamia serial ou de parceiros múltiplos, em que o método
contraceptivo preferencial é a pílula, tendo o preservativo uma baixa taxa de utilização neste grupo de jovens, são factores de
risco de contaminação do VIH/Sida. Estas características estão em consonância com os dados das investigações preconizadas
por diversos autores (Lear, 1995, Marin, 1996;Teixeira, 1996; Vandale 1996) que alertam para os seguintes factos: quanto
mais cedo as jovens iniciam a sua vida sexual, maiores são as suas probabilidades de ter comportamentos de risco;
geralmente os parceiros já não são virgens, logo com mais probabilidades de um maior número de comportamentos sexuais
de risco e, do método anticonceptivo utilizado ser a pílula em vez do preservativo, sendo este supostamente mais usado em
relações de tipo ocasional, já que os preservativos quebram a confiança no parceiro, factores reforçados sobretudo pela
cultura caboverdiana, onde a mulher de certa forma aceita que o parceiro tenha relações sexuais extra-relacionamentos que
lhe possibilitem satisfazer as necessidades inerentes à sua virilidade. Aquilo que perpassa como preocupação - e que foi
assinalado por Rosenthal & Shepherd (1993) - é o facto de que, tanto as jovens caboverdinas como as portuguesas não
percepcionarem a necessidade de mudarem as suas práticas sexuais, uma vez que a maioria delas (63% das portuguesas e
51% das caboverdianas) tem apenas um parceiro de cada vez (monogamia serial), acreditando que a abstinência, no que diz
respeito às relações sexuais com o parceiro ocasional, é suficiente para as proteger contra a infecção. Sublinhe-se que as
relações monogâmicas são completamente seguras se nenhum dos parceiros for portador do vírus, mas o que nem sempre se
verifica é a possibilidade da conduta sexual das jovens ser englobada nesta categoria, correspondendo assim mais a um ideal
do que à realidade, deixando deste modo, espaço para a existência de risco de infecção.

4. Consequências do não uso de métodos anticoncepcionais


4.1. Gravidez e aborto
As gravidezes das jovens portuguesas e caboverdianas são, em 98% dos casos, não planeadas. Elas acontecem
porque as jovens não usaram nenhum método anticoncepcional, pois como já assinalámos, o preservativo foi usado apenas na
primeira ou nas duas ou três primeiras relações sexuais. Algumas jovens estiveram vários meses sem usar nenhum método
contraceptivo (85% das caboverdianas e 80% das portuguesas) e, outras, substituíram o uso do preservativo pela pílula. Mas,
o que tende a acontecer é que algumas jovens esquecem-se de tomar a pílula e engravidam.
Relativamente à gravidez das jovens caboverdianas, o presente estudo aponta para cerca de 88% de jovens que já
foram mães. Estas gravidezes estão inseridas num complexo padrão sócio-cultural, caracterizado pela clandestinidade dos
relacionamentos erótico-amorosos, que como já supra-mencionámos, são as mais das vezes sexualmente desprotegidos. É
recorrente, nos primeiros meses de gravidez, as jovens ocultarem a mesma dos seus familiares, sobretudo dos gerontes (o pai
se não se tiver separado da mãe ou emigrado; a mãe nos lares sem pai, ou ambos) como receio de serem repreendidas:
Quando eu engravidei é que eles souberam quem era o meu namorado. Começaram a gritar, a ralhar, o que é normal.
Não tinha dito nada. Só souberam quando eu tive o bebé. Não disse nada antes porque tive medo que eles ralhassem. A
gravidez não se notava. Era no Outono e no Inverno e eu usava pullovers grandes. Escondi a gravidez toda. Depois
aceitaram. Agora estamos a morar juntos. A minha mãe é que faz tudo pelo bebé. (Caboverdiana, 20 anos, união de
facto).

O que tende a acontecer, é que os pais ao saberem da gravidez, apresentam reacções violentas (muitas vezes com a
punição física da rapariga) e, em certos casos, tentam forçá-la a casar com o jovem “pai”. Só que, grande parte dos jovens
(pais) não quer contrair matrimónio e a rapariga tende a por permanecer em casa dos gerontes com a criança, que acaba por
ser aceite pelos mesmo, sendo geralmente é educada pela avó.
“Os meus pais não falavam sobre sexo. O meu pai quando soube queria-me por na rua. Queria matar-me, queria matar-
me. Ele aceitou mesmo, mesmo, quando a minha filha nasceu. Quando nasceu disse “Já tenho a minha neta”A minha
mãe e as minhas irmãs aceitaram logo. As minhas irmãs tiveram crianças muito novas. Engravidaram também por
descuido. Nenhuma delas está com o pai dos filhos.”

A totalidade das jovens caboverdianas por nós entrevistadas, abandonaram o seu percurso escolar, permanecendo
em casa dos pais com a criança. Acrescente-se ainda que neste processo, é frequente a inexistência de uma responsabilização
masculina relativamente à gravidez aos cuidados do bebé, uma vez que nem sempre o aparecimento implica o início de uma
vida conjugal. Em alguns casos, a desresponsabilização masculina tende a acontecer, porque o jovem é preso por posse e/ou
tráfico de droga, ou simplesmente porque não quer assumir a criança. Mas, o mais recorrente é o caso de jovens
caboverdianos que abandonam as mães dos filhos porque se envolvem em novos relacionamentos erótico-amorosos.

439
Após a jovem ter a criança, existe geralmente por parte dos gerontes uma estratégia de emancipação erótica da
jovem, em que ela pode dar à luz crianças de diversos pais ausentes, sem o estabelecimento de relacionamentos estáveis. Esta
afirmação do capital social erótico da jovem e da sua autonomia sexual pode continuar depois do casamento, facto que foi
também evidenciado por Bastos & Bastos (2008)
Algumas jovens caboverdianas engravidaram e, ao contrário dos namorados/parceiros, e em certos casos das mães,
que queriam que elas interrompessem a gravidez, seguiram em frente com a gravidez, porque esta e a maternidade, possuem
um carácter simbólico de uma certa valorização pessoal, ligada à “entrada” na idade adulta, ou então por motivos religiosos
(“é pecado abortar”). No entanto, há casos em que é a própria jovem que pretende interromper a gravidez porque não se
sentia preparada para ter a criança e pretendia prosseguir com os estudos. Por vezes, as raparigas acabam por só contar aos
parceiros após a interrupção da gravidez e geralmente terminam o relacionamento com eles, pois consideram-nos os
principais responsáveis/”culpados” da gravidez indesejado porque não as deixaram prevenir-se. No entanto, há casos em que
as jovens caboverdinas interrompem a gravidez e depois se arrependem, porque todo o processo provocou grande sofrimento.
No que diz respeito às jovens portuguesas, cerca de 72% já engravidaram e em 30% dos casos isto aconteceu
porque elas - tal como as jovens caboverdianas - , se esqueceram de tomar a pílula. Na maior parte dos casos estas jovens
também esconderam a gravidez nos primeiros meses, mas a contrario das jovens caboverdianas, a generalidade das jovens
portuguesas, não teve reacções negativas por parte dos gerontes, acontecendo, por vezes a situação inversa:
“Eu estava a tomar a pílula com antibióticos e cortou o efeito. Eu engravidei por descuido. Ele aceitou. Decidimos ter a
criança. Os meus pais souberam quando eu estava de 5 meses. Eles já o conheciam. Aceitaram bem, choraram e riram
ao mesmo tempo. Depois ele nasceu de 8 meses.” (portuguesa, união de facto, mãe ao 18 anos)

São em grande número as jovens portuguesas que permanecem em casa dos pais e estes (ou apenas a mãe, se
estiver separada do pai) cuidam da criança (como acontece com as jovens caboverdianas). Geralmente, o parceiro também
vai viver com os sogros, ou então acabam por ir viver sozinhos. Só que, estas uniões de facto, tendem a desestruturar-se e a
levar à separação devido à infidelidade por parte dos parceiros, ou sobretudo, à entrada dos parceiros no mundo da droga,
tendo - na maior parte do casos -, as jovens que entrar forçosamente no mercado de trabalho.
Apesar da maioria das adolescentes portuguesas ter engravidado por acidente, algumas quiseram engravidar, sendo
a ausência de planos futuros e o insucesso escolar, os factores que motivaram essa opção. Acrescente-se o facto de que não
nos foi relatado por nenhuma jovem portuguesa a interrupção da gravidez.
Grosso modo, podemos concluir que, o contexto familiar tem uma relação directa com a época em que se inicia a
vida sexual e se engravida. De facto a maioria das jovens caboverdianas e portuguesas entrevistadas iniciaram a vida sexual
precocemente e engravidaram nesse período. Estas jovens geralmente provêm de famílias cujas mães têm um percurso
biográfico semelhante, ou seja, também iniciaram precocemente a sua vida sexual e também engravidaram durante a
adolescência. O abandono escolar surge como consequência da gravidez/maternidade, não permitindo elevadas qualificações
escolares e profissionais. A razão principal do abandono dos estudos é o elevado insucesso escolar que se verifica entre as
mães adolescentes, constituindo um factor de peso que dificulta o prosseguimento escolar durante e após a gravidez. No
entanto, verificou-se que algumas jovens caboverdianas e portuguesas já tinham abandonada a escola antes de engravidarem.
De salientar também que quanto menor a escolaridade, mais cedo as jovens iniciaram a vida sexual e maior terá sido o risco
de gravidez na adolescência.

5. Conhecimentos, crenças e atitudes face ao VIH/SIDA


Como sugere Lucas (1990) a necessidade de avaliação dos conhecimentos, atitudes e crenças torna-se relevante,
uma vez que os sujeitos só tendem a modificar os seus comportamentos desde que possuam conhecimentos sobre a
transmissão da sida e as repercussões da doença nas suas vidas e sobretudo que se vejam a si próprias como potencialmente
vulneráveis, que concebam a doença como ameaçadora ou grave e que estejam convencidos sobre a eficácia da medida ou
comportamento preventivo.

5.1. Modos de transmissão do VIH/SIDA


A sida é considerada uma doença mortal é percebida maioritariamente como uma ameaça para a humanidade e é
representada como uma doença sem cura (ainda não existe vacina) e mortal por cerca de 95% das jovens portuguesas e
caboverdianas.
A transmissão sexual do vírus é referida pela maioria das jovens (98%), no entanto, 48% de jovens caboverdianas e
29% de jovens portuguesas não associa o sémen ao perigo de transmissão. A transmissão sanguínea (através de cortes,
seringas e agulhas) é mencionada por 87% das jovens. Apenas 12% das jovens portuguesas e caboverdianas reconhece o
perigo de transmissão de mãe infectada-filho aquando da gravidez e do aleitamento.
De sublinhar, o facto de o sangue ser visto por estas jovens como um elemento perigoso por excelência, enquanto
os outros líquidos corporais, como o leite materno e o esperma, são classificados no imaginário simbólica das jovens como
líquidos não perigosos. Do ponto de vista simbólico, o sangue tem uma conotação negativa, sendo por isso mais facilmente

440
assimilável como elemento de contaminação, a contrario, o esperma e as segregações vaginais, são líquidos existentes na
relação sexual, acto que «une» e «dá a vida», o que acontece também com a gravidez e o aleitamento.10
É marginal a proporção dos que acreditam existir risco através da saliva (7% das portuguesas e 6% das
caboverdianas) e através da frequência de casas de banho públicas (3% das portuguesas, 2% das caboverdianas). É ainda
mais residual (0,5%) a crença de que a sida se transmite ao beijar a cara ou ao apertar a mão de um indivíduo infectado ou
com Sida, assim como brincar com uma criança infectada.

5.2. Fontes de informação/Aprendizagem


Em relação às fontes de informação/aprendizagem sobre a sida, a maioria das jovens refere a televisão, seguindo-se
a escola, a Associação para o Planeamento da Família (APF), as Misericórdias, os centros “Olá, Jovem”11, os panfletos e, por
último, os pais. No entanto, existem algumas diferenças entre as fontes de informação das jovens caboverdianas e das
portuguesas, sendo que as primeiras referem mais a televisão, os panfletos e os centros “Olá Jovem” e afirmam que têm
receio ou se sentem pouco à vontade para falar com os pais, ou mesmo com a mãe sobre este assunto As portuguesas obtêm a
informação a partir da escola, da televisão, das conversas com os amigos e do diálogo com os pais.
A informação veiculada pela escola, é para a maioria das jovens portuguesas e caboverdianas transmitida de forma
pouco estimulante e elas muitas vezes não percepcionam os códigos um pouco mais elaborados cientificamente.
Os serviços de saúde, enquanto lugares de informação, aconselhamento e prevenção do VIH/SIDA, são
escassamente mencionados pelas jovens portuguesas e caboverdianas, por diversas razões, das quais destacamos: uma noção
de saúde e de doença que não passa pela prevenção (“Vai-se ao médico apenas quando se está doente”), o constrangimento
da situação, a falta ou a dificuldade no acesso à consulta de consulta de planeamento familiar, a falta de anonimato na
demanda de preservativos gratuitos e em certos casos, a ausência de informação sobre o uso de preservativos e as formas de
contaminação e transmissão do vírus.

5.3. Conhecimento de pessoas com VIH/SIDA, consequências do VIH/SIDA para a vida das pessoas e percepção da
vulnerabilidade pessoal
Relativamente ao conhecimento de pessoas com VIH/Sida ou que morreram de sida, cerca de 32% de jovens
caboverdianas e 40% de jovens portuguesas conhece pessoas com sida ou que morreram por causa da sida. Geralmente as
pessoas conhecidas são as que moram no Bairro (53%), familiares (35%), ou pessoas que habitam noutras zonas e que lhes
foram apresentadas (22%).
No que diz respeito às consequências do HIV/SIDA na vida das pessoas, as jovens caboverdianas referem mais as
mazelas físicas da doença como o emagrecer e o ficar fisicamente debilitada que leva à morte. Apenas cinco jovens
caboverdianas referem os aspectos psico-sociais como o afastamento dos amigos que tende a levar ao isolamento e o facto de
a pessoa ser levada a “desistir de todos os sonhos”. As jovens portuguesas também mencionam a debilidade física causada
pelo enfraquecimento do sistema imunitário (que só acontece passado um tempo, quando o vírus se torna activo) devido ao
aparecimento de outras doenças. Estas jovens apontam a importância de tomar os medicamentos para atenuar a doença que
elas sabem ser incurável. No entanto, a contrario, da maior parte das caboverdianas, as jovens portuguesas referem mais
aspectos de carácter psico-social, como as pessoas ficarem sem auto-estima e terem receio do que os outros poderão dizer se
souberem que elas têm VIH/SIDA. Esse é um dos motivos porque - na opinião das portuguesas - as pessoas se isolam e
tendem a permanecer em casa. É também mencionada a problemática da rejeição social e o que ela acarreta, nomeadamente
as pessoas serem ostracizadas no emprego ou na escola. Algumas jovens portuguesas apontam também a questão da revolta e
a vontade de pôr termo à vida. Outras jovens referem que as pessoas infectadas não se devem limitar, mas viver o dia-a-dia e
lutar para ultrapassar os pensamentos negativos. Por último, é referido a questão da grávida com VIH infectar a criança, o
que tende a pesar na consciência da mãe.
Acrescente-se ainda que, tanto as jovens portuguesas como as caboverdianas, não estão familiarizadas com a
existência de um invisível a olho nú, com os seus mecanismos de proliferação, com o conceito de anti-corpos e de imunidade.
Quanto à preocupação e à percepção de poder vir a ser infectada pelo VIH/Sida é pouco apontada pelas jovens
entrevistadas (34% de caboverdianas versus 37% de portuguesas) revelando, um certo distanciamento pessoal em relação ao
problema. Assim sendo, pouco mais do que uma terça parte das jovens entrevistadas manifestam preocupação com a
possibilidade de poderem vir a ter SIDA. Por contraste, a maior parte das jovens considera-se livre de perigo, porque
“conheciam todas as parceiras do seu namorado”, porque “têm confiança no parceiro”, porque “fazem análises regulares e
testes de sangue” e porque “sabem como o vírus se transmite. As jovens referem conhecer os mecanismos biológicos da
transmissão do vírus, desenvolvendo um “falso sentimento de segurança”, pelo facto de pensarem que estão bem informados.
A própria informação fá-los crer que estão fora de risco (“estou bem informada, por isso nada me vai acontecer”). Há ainda
aquelas que pensam que o risco de infecção é uma realidade, que tende a acontecer só aos outros.

10
Cf. Oliveiro, Ph. (1992). Sida et représentations sociales des liquides du corps. Compte rendu de fin d`études. Paris: EHESS/ANRS.
11
Projecto de Promoção da Saúde dos jovens entre os 12 e os 21 anos, que tem lugar em três Centros de Saúde do Concelho da Amadora: Amadora, Reboleira e
Venda Nova.

441
Só uma minoria das jovens (29% de caboverdianas e 32% de portuguesas) deixa perceber acreditar nas formas mais
apropriadas de prevenção, tais como usar preservativo, não ter relações sexuais com parceiros ocasionais e, daquelas só 13%
das caboverdianas e 9% das portuguesas julga necessário modificar os comportamentos. No entanto, a maioria refere a
vulnerabilidade ao risco ligada à dificuldade em controlar o desejo sexual, pensando apenas em retirar o máximo prazer da
relação sexual. É também mencionado outro factor de vulnerabilidade e risco face a esta doença que está relacionado com os
comportamentos sexuais adoptados pelos parceiros: ter relações sexuais desprotegidas com várias raparigas.
De sublinhar, que este sentimento de vulnerabilidade à doença constitui uma condição fulcral para adoptar
comportamentos preventivos e a sua ausência tende a constituir um factor favorável à difusão da mesma.

6. Acesso aos centros de saúde e realização do teste de despistagem do VIH


Relativamente à utilização dos centros de saúde, as jovens portuguesas e caboverdianas afirmam que recorrem com
pouca frequência aos serviços do Centro de Saúde e quando o fazem é porque estão muito doentes ou vão pedir a pílula. Esta
começa, em alguns casos, a ser tomada antes de as jovens iniciarem a sua vida sexual, para regularizarem o período ou
atenuarem as dores menstruais. Algumas caboverdianas (cerca de 18%), referem também que o facto de não estarem
legalizadas é outro factor que funciona como barreira de acesso aos serviços de saúde.
No que diz respeito à ida à consulta de planeamento familiar, de um modo geral, verificou-se que existe uma baixa
adesão a esta consulta, essencialmente por vergonha, as jovens que recorrem fazem-no essencialmente para obter a receita da
pílula. Neste aspecto recorrem à consulta de planeamento familiar cerca de 29% de jovens caboverdianas e 37% jovens
portuguesas. Para efeitos de regularização do período as jovens portuguesas vão geralmente com a mãe (23%), o mesmo
acontece com algumas caboverdinas (cerca de 7%). Para efeitos de contracepção oral, tanto as jovens portuguesas como as
caboverdianas vão sozinhas. A maioria das jovens mães portuguesas e caboverdianas recorre ao centro de saúde, após a
gravidez para colocar o dispositivo intra-uterino (DIU), ou o implante subcutâneo que dizem ser mais seguro, uma vez que a
toma da pílula nem sempre acontece, por esquecimento. A maior parte das jovens portuguesas e caboverdianas falta à
segunda consulta de planeamento familiar porque dizem que está tudo bem com elas.
Por último, no que concerne à realização do teste de despistagem do VIH, apenas uma jovem portuguesa foi fazê-lo
incentivada pela irmã que também fez o teste com ela. As outras jovens portuguesas e caboverdianas que fizeram o teste, só o
realizaram aquando da gravidez. Todas estas raparigas disseram que, com o resultado negativo, elas ficam com a certeza que
os parceiros não são portadores do vírus VIH/Sida. As jovens portuguesas e caboverdianas que nunca fizeram o teste referem
diversos motivos para que isso tenha acontecido: plena confiança no parceiro (37%); o facto de o parceiro ser saudável e de
só terem relações sexuais com ele (24%); terem medo do resultado (17%), terem vergonha (12%) e não saberem onde se faz
o teste (10%, sendo cerca de 7% jovens caboverdianas). Todas as jovens referiram que o teste devia ser obrigatório para
quem já tivesse iniciado a vida sexual porque não sabem o passado e muitas vezes o presente respeitante à saúde sexual dos
parceiros ou porque as jovens entrevistadas pensam que a maior parte das raparigas tem vários parceiros sexuais (“andam de
mão em mão”) e não se protegem. Cerca 32% das jovens portuguesas e caboverdinas, mencionaram o facto de uma pessoa ter
sofrido um corte, como motivo para a realização do teste HIV. Uma jovem portuguesa alertou para o facto da pessoas a quem
o teste de HIV apresentar resultado positivo se prepararem para esse acontecimento.

7. Considerações finais
Os resultados deste estudo sugerem a existência de algumas semelhanças e diferenças relativamente aos
comportamentos sexuais, às atitudes e aos conhecimentos respeitantes ao VIH/SIDA das jovens portuguesas e caboverdianas.
As diferenças reportam-se ao início da vida sexual em que algumas caboverdinas têm relações sexuais logo na primeira
semana (apesar de serem também as caboverdinas que conferem maior peso à virgindade), que têm mais relacionamentos
erótico-amorosos de curta duração e mais parceiros em simultâneo, com inclusão de relações sexuais desprotegidas, apesar da
diferença relativamente às portuguesas não ser muito significativa. Tal como se tem verificado noutros estudos sobre
minorias étnicas e pessoas que vivem em zonas de elevadas concentrações de pobreza, o preservativo tem uma baixa taxa de
utilização e isto acontece com as portuguesas e com as caboverdianas. No entanto, estas últimas parecem ter mais dificuldade
em negociar o sexo seguro com os seus parceiros. Sendo o preservativo, o único meio suficientemente eficaz em
relativamente à protecção do VIH, devemos ter em conta que ele pertence ao domínio masculino, o que deixa as mulheres em
desvantagem na determinação da exposição ao risco. Neste sentido, as estratégias preventivas adoptadas não podem ter
apenas ter como alvo as mulheres, sendo imperioso envolver os homens nesse processo (Lawrence et al., 1998). Pensamos
também ser imprescindível promover a imagem social do preservativo que reafirme a sua eficácia no contexto da prevenção,
a sua adequação aos diferentes tipos de relação afectiva, na conversa entre os parceiros, que anule a ideia de perda de prazer e
que se apresente como meio de consumo, incentivado através das campanhas publicitárias e da distribuição panfletos. Sendo
assim, podemos concluir que as informações obtidas sobre a utilização do preservativo na comunidade caboverdiana e
portuguesa sugerem que se deve ter em conta, para além da realidade económica, social e cultural da comunidade, a natureza
das relações entre os géneros, quando o que se pretende é aumentar o uso do preservativo. (Kelly, 1994; Wingood &
DiClemente, 2000; Woollett et al., 1998).

442
Outro factor determinante de infecção do VIH/SIDA é o estupro e a coacção sexual sobretudo para a prática de
relações sexuais anais. Ambos foram-nos reportados por jovens caboverdianas, apesar da ocorrência no grupo estudado ser
residual.
A consequência das relações sexuais genitais desprotegidas é a gravidez ou interrupção da mesma. Encontrámos
mais jovens mães caboverdianas do que portuguesas. Existem ainda mais jovens caboverdians com mais filhos que as
portuguesas. São também as caboverdianas que têm mais dificuldade em que a sua gravidez seja aceite pelos pais, tendo
também receio e vergonha de falarem sobre sexualidade com os pais ou adultos próximos. No entanto, depois da criança
nascer, são geralmente as avós que educam a criança, ou pelo menos ajudam a fazê-lo e, em alguns casos facilitam a
emancipação erótica das jovens. Este último facto, não tende a acontecer com as jovens portuguesas.
Nos resultados recolhidos na comunidade caboverdiana e portuguesa, observa-se que a maioria das jovens não tem
um conhecimento completo das formas de transmissão do VIH/SIDA, pois muitas delas não associam a transmissão do
sémen nas relações sexuais genitais, orais e anais, o que aliado ao não uso do preservativo (porque as mais da vezes existe a
confiança no parceiro) pode aumentar o risco de infecção. Um outro aspecto com uma certa relevância é o facto de algumas
jovens caboverdianas e portuguesas sobreavaliarem o risco de serem infectadas, através de contactos não sexuais (saliva e
utilização de casas de banho públicas). Acrescente-se ainda que é notório que algumas informações de carácter científico
divulgadas na escola (geralmente no programa do 9º ano) são muitas vezes mal assimiladas, conduzindo a falsas percepções
da sida que, de acordo com algumas jovens portuguesas e caboverdinas entrevistadas, pode ser facilmente identificada em
pessoas de aspecto macilento e magreza excessiva.
A fraca utilização dos Centros de Saúde pelas jovens portuguesas e sobretudo das caboverdianas, particularmente a
consulta de planeamento familiar, poderá contribuir para um aumento de risco do HIV/SIDA nestas jovens, atendendo a que
poderão não ter acesso adequado à informação, diagnóstico e tratamento das doenças sexualmente transmissíveis e do
VIH/SIDA.
Um aspecto deveras importante a ressaltar, é o facto de uma parte considerável de jovens portuguesas e
caboverdianas conhecer ou ter conhecido pessoas infectadas com VIH e saber razoavelmente as consequências da Sida na
vida das pessoas infectadas, mas não alterar os seus comportamentos sexuais por causa disso. Conclui-se ainda que a
transmissão de informações correctas e o conhecimento sobre as formas de transmissão do VIH/SIDA não são suficientes
para gerar novas práticas de saúde direccionadas para a prevenção, porque muitas vezes, o que se verifica é uma descolagem
entre o conhecimento e as informações que as jovens possuem, que nem sempre estão directamente relacionadas ou têm
aplicações directas nas práticas de prevenção, apesar de existir alguma informação sobre as formas de contágio e prevenção
do VIH/SIDA.
Os resultados desta investigação apontam a existência de algumas diferenças (supra mencionadas) em relação aos
comportamentos, atitudes e conhecimentos face ao VIH/SIDA das jovens portuguesas relativamente às caboverdianas, o que
sublinha a importância que deve ser dada à organização de programas de intervenção direccionados para as necessidades
específicas de cada comunidade (tendo em conta o sistema de convicções culturais e a experiência social do grupo), pois caso
contrário, correm o risco de serem pouco eficazes.
É de ressaltar a importância do reforço da intervenção da educação sexual relativamente à saúde sexual e
reprodutiva, especialmente nos primeiros anos escolares, adequando os programas disciplinares às diversas idades e
contextos sociais e económicos, normas e padrões culturais dos diferentes alunos e comunidades. Isto torna-se relevante, pois
no contexto da nossa investigação, é sobretudo na escola e entre os pares12 que se fala de sexualidade e não tanto através da
relação pais-filhos. Assim sendo, a escola deve ser um contexto em que se promove os comportamentos sexuais saudáveis e
os conhecimentos sobre o VIH, planeando intervenções que proporcionem a participação dos alunos na sua própria saúde,
como sugerem os estudos realizados por Kindeberg e Christensson (1994)
Torna-se pois, urgente, fazer um esforço de promoção de um sentimento que ligue as jovens à escola, como forma
de incrementar a percepção de um meio escolar positivo e adequado às diferentes realidades, assim como uma percepção
subjectiva de bem-estar, sentimento de pertença e eficácia na formação, que possa ser conducente à futura realização
profissional, sendo uma forte componente deste trabalho a colaboração com os pais (Matos et al., 2003).
Considera-se também necessário efectuar um esforço de intervenção comunitária que necessita de uma base de
investigação centrada na “epidemiologia comportamental”, de estudos sobre a dinâmica dos comportamentos sexuais
(Dawson & Gifford, 2001; Jemmott & Jemmott, 2000) e de investigações sob a forma como a própria “cultura de imigração”
influencia a prática de comportamentos sexuais de risco (Gadon, et al., 2001). Faz pois sentido, promover a investigação
científica nesta área, que salvaguarde a necessidade imperiosa de englobar nestes estudos diversas perspectivas científicas em
simultâneo, compreendendo as ciências sociais e humanas, como a Antropologia, a Psicologia e a Sociologia e as ciências
biomédicas, nomeadamente a Medicina e a Enfermagem.
Os resultados obtidos e a revisão da literatura sugerem ainda que, apesar do comportamento individual ser
determinante da vulnerabilidade à infecção do VIH, as decisões não são tomadas na base de uma decisão individual, daí que
as intervenções devem abranger simultaneamente o nível individual e comunitário (Hobfolll, 1993; Jemmott & Jemmott,

12
É importante pensarmos que o forte motor de mudança de comportamentos preventivos nos jovens encontra-se intimamente relacionado com a percepção de
que os amigos mudaram os seus comportamentos sexuais.

443
2000; Mann, 1992; McDermott, 1998; Peterson, 1998; Woollett et al., 1998). Deve existir uma compreensão do modo como
se poderão envolver as comunidades no seu processo de mudança. Neste processo devem contribuir diversas instituições em
simultâneo, nomeadamente os Serviços de Saúde, as Autarquias, as Escolas, as Associações de Imigrantes e de Jovens, as
Associações de Pais, de forma a contribuírem para a eficácia da informação especialmente dirigida a estes jovens, no que diz
respeito à educação sexual, aos processos de transmissão e contágio do VIH/SIDA, às características e evolução da doença e
ao uso do preservativo. Estas contribuições devem permitir alterações que produzam diminuição de situações de risco e
promovam oportunidades para um desenvolvimento positivo (Fenton, 2001; Jemmott & Jemmott, 2000; Matos, 2005;
McDermott, 1998).
Por outro lado, tendo em conta que os factores de risco não podem ser alterados ou removidos sem uma
transformação social profunda, as estratégias para a prevenção devem passar pelas políticas de saúde governamentais e pelas
organizações envolvidas nos cuidados de saúde que devem considerar prioritário a melhoria dos acessos aos serviços de
saúde e a integração das minorias étnicas, assim como a avaliação do seu impacto na prevenção do VIH e da saúde em geral.
Uma outra estratégia de prevenção do VIH/SIDA passa pelo apoio de toda a comunidade e pelo robustecimento dos factores
de protecção que incluem competências pessoais e sociais, tais como o relacionamento interpessoal, a capacidade de
concretização de tarefas e de resolução de problemas com sucesso, capacidade de planeamento e de modificação de
circunstâncias de vida, e ainda um papel especial conferido à intervenção de programas que privilegiem os pares.
Por último, de sublinhar que na ausência de cura ou vacinas eficazes e tendo em conta a própria epidemiologia da
doença, o controlo e a prevenção da Sida depende sobretudo da mudança de comportamentos, sabendo-se que a falta de
comportamentos de prevenção aumentará a propagação da doença. Sendo assim, - e, na esteira de Lucas (1987: 89) -, a
estratégia de luta contra a sida deve assentar na modificação de comportamentos e não deve pretender apenas mudanças no
imediato mas deve produzir uma transformação durável do modo de vida dos membros das comunidades alvo.

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Projecto Saúde e Prevenção na Escola e Protagonismo Juvenil


Elizabeth Jácome da Costa Britto Britto
Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte
[email protected]

Resumo: Secretaria de Estado da Educação e Cultura do Rio Grande do Norte, por meio da Suboordenadoria do Ensino Médio, desenvolve
um projeto sobre Saúde Sexual e Reprodutiva, com objetivo de reduzir a incidência a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e da
infecção ao HIV, prevenção a gravidez na adolescente e jovem, prevenção ao uso indevido as drogas, fomentar a participação juvenil para
que adolescentes e jovens possam atuar como sujeitos transformadores da realidade, contribuindo para minimizar a evasão escolar.
1ª Etapa: Capacitação com os docentes das escolas (multiplicadores). Metodologia: exposições dialogadas; vivências em grupo; dinâmicas
interativas; oficinas; exibição de vídeos, culminando com a elaboração do Plano de Ação. Temáticas: corpo matriz da sexualidade,
planejamento familiar, saúde sexual e reprodutiva, relação de gênero, prevenção às DST/AIDS, prevenção as drogas, violências, juventudes e
participação juvenil. Material: educativo, e insumos para desenvolver as oficinas. 2º Etapa: Oficinas ‘in loco’ nas escolas com os
adolescentes. Metodologias: dinâmicas, peças teatrais, paródias, músicas, cartazes, filmes, rodas de conversas, literatura de cordel. 3º Etapa:
Impressão da agenda educativa e preventiva elaborada pelos participantes destinada aos estudantes das escolas. Resultou das oficinas lúdicas,
interativas, depoimentos idéias, poesia, pensamentos, frases, recadinhos, desenhos, fotos. Distribuição: estudantes das referidas escolas onde
compartilha as experiências. 4º Etapa: Fóruns com conferência e apresentações das experiências realizadas nas escolas. Recursos: traslado,
alimentação para os participantes e apoio logístico. Participantes: estudantes, educadores, pais e representantes da sociedade civil organizada.
Formato: conferência, apresentações dos trabalhos, painéis, exposições artísticas e culturais.

Movimento de Renovação Pedagógica no Brasil intensificaram-se as ações para implementação de mudanças no


âmbito do Sistema Público de Ensino, como decorrência da aplicação dos preceitos contidos na Lei de Diretrizes e Bases da

446
Educação Nacional (LDB) de nº 9.394/96, principalmente com o surgimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais voltados
ao educando enquanto ser político, cultural, profissional e biopsicossocial.
A análise das práticas exercidas no âmbito escolar de forma contextualizada verifica-se que as idéias de mudanças
chocam com a cultura escolar cristalizada ao longo do tempo, que realça o panorama de ações desarticuladas e resultados não
otimistas de continuidade. Entretanto, muito se tem a fazer com vistas á implantação de novos paradigmas educacionais que
propiciem estratégias contextualizadas que garantam a execução de ações com a perspectiva de transformação do espaço de
construção, de difusão e de troca de saberes de sua aplicabilidade através de diferentes abordagens inerentes à temática:
Sexualidade abordando a Educação Sexual; Saúde Sexual Reprodutiva, os Direitos humanos (ECA), Prevenção às doenças
Sexualmente Transmissíveis- DST e AIDS; Relação de Gênero; Prevenção ao Abuso e Exploração Sexual; Prevenção ao Uso
Indevido das Drogas.
A sexualidade permeia toda vida do indivíduo e, na adolescência, face às grandes modificações, ela aflora com
maior intensidade, precisando de uma orientação que contribua na configuração de um modelo social bem estruturado,
coerente com as transformações que vislumbram neste milênio uma vez que, vivemos numa sociedade que não oferece
empregos, programas sociais que atenda toda população, condições dignas de moradia, educação e saúde com qualidade.
Frente às dificuldades que enfrentamos no país, segundo a ONU mais da metade da população encontra-se na faixa
etária de 12 a 25 anos. Conforme dados do IBGE/RN a população do estado do Rio Grande do Norte é de 3.003.087
habitantes. Dessa população, cerca de um terço encontra-se na faixa etária de 10 a 19 anos. Onde atualmente o RN apresenta
a população de 333.330 de Jovens (DATASUS-2005), nessa faixa etária com a matrícula no Ensino Médio, dentre esses
84,12% encontram-se na rede estadual. Esses contingentes de púberes e adolescentes apresentam um quadro preocupante
face às altas taxas de morbidade e mortalidade associadas à gestação e parto em jovens em puberdade e adolescência, pelo
dramático aumento no número de gestações, na adolescência está ocorrendo mais abortos clandestinos e ilegais, como
também o aumento no número de crianças, filhos (as) de mães adolescentes que são abandonadas e vítimas de violências e
abusadas sexualmente. As doenças sexualmente transmissíveis são contraídas com maior frequência no grupo entre 15 a 29
anos. Dados epidemiológicos em pacientes com AIDS sugerem que, em muitos casos, a infecção pelo HIV foi contraída
durante a adolescência (FNUAP).
A maioria dos/das adolescentes não tem acesso à informação e orientação, tanto no lar quanto na escola, mesmo
sob a forma de legislação existente que norteia a educação sexual. Como o assunto da sexualidade permanece um tabu entre
os jovens há uma ignorância disseminada quanto aos riscos associados à atividade sexual desprotegida, comportamento
sexual impulsivo e o não uso de contraceptivos são algumas vezes exacerbados pelo uso indevido de drogas, os (as) jovens
estão cada vez mais expostos ao turismo e aos meios de comunicação de massa, tornando-se mais vulneráveis, fatores que
contribuem para alterações nos comportamentos sociais e sexuais.
Os aspectos evidenciados demonstram claramente a urgente necessidade de mudanças biopsicossociais na
viabilidade da implantação do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas e Protagonismo Juvenil, lançado pelo Ministério da
Saúde e o Ministério da Educação desde 2003. Para implantação do projeto deveremos contar com a parceria das 16
Diretorias Regionais de Ensino- DIRED para que possamos desenvolver um trabalho de forma preventiva e participativa nas
Escolas de Ensino Médio nos municípios contemplados com maior número de gravidez na adolescência e maior incidência as
infecções doenças sexualmente transmissíveis - DST e da infecção pelo HIV/AIDS.
A Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Norte-SEEC/RN, por meio da
Subcoordenadoria do Ensino Médio (SUEM) desenvolveu um projeto voltado para a promoção da saúde sexual e saúde
reprodutiva, fomentar a participação juvenil para que adolescentes e jovens possam atuar como sujeitos transformadores da
realidade contribuindo para a redução as DST/AIDS, e a gravidez na população adolescente e jovem para a redução da
evasão escolar.
Otimizando os recursos, inseriu uma Ação de nº 10 de nome SAÚDE E PREVENÇÃO NA ESCOLA E
PROTAGONISMO JUVENIL, no Programa de Equalização das Oportunidades de Acesso à Educação Básica – PRODEB,
financiada pelo Convênio nº 850015/06, Fundo Nacional de Desenvolvimento na Educação-FNDE, Ministério de Educação -
MEC, para 30 Escolas Estaduais de Ensino Médio no Estado abrangendo um público alvo de 60 mil estudantes (adolescentes
e jovens), dividida em quatro etapas.

1ª ETAPA- CAPACITAÇÃO DOCENTE (MULTIPLICADORES)


Essa etapa teve o objetivo de capacitar 80 educadores (as) multiplicadores de 30 Escolas Estaduais do Ensino
Médio pertencentes aos municípios jurisdicionados, (sendo 2 por escola, previamente selecionados), 16 técnicos
pedagógicos sendo 1 de cada Diretorias Regionais de Educação -DIRED/RN, e 4 técnicos do órgão central –SUEM. Sendo
ministrado por 10 especialistas pós-graduado em Educação Sexual, com abordagem biopsicossocio-pedagógico.
Os especialistas elaboraram uma cartilha, organizada a partir da seleção e reprodução de textos provenientes de
diversos manuais do Ministério da Saúde, de acordo com os temas pospostos pelo projeto. O material foi pensado, onde se
levou em conta a sexualidade como inerente à vida e à saúde, além de propor o respeito por si mesmo, visando facilitar a
compreensão dos conteúdos teórico-metodológicos, como também subsidiar as ações desenvolvidas pelos facilitadores junto
aos adolescentes e jovens. Deve ser considerado como um guia flexível, passível de adaptação às realidades existentes nas
diferentes localidades, principalmente na escola.

447
Foi realizada a capacitação no Centro de Educação Profissional Jessé Pinto Freire -CENEP, Natal RN,
proporcionando ferramentas educativas para um embasamento teórico sobre Sexualidade Humana.
O processo de capacitação, nesta etapa, proporcionou informações aos docentes e profissionais para preparar os
jovens e adolescentes das referidas escolas, para serem Protagonistas Juvenis.
As oficinas aconteceram em quatro salas de aula, do mencionado Centro Profissionalizante reunindo 20
profissionais por turma. Visando contribuir para uma melhor qualidade de vida, o fortalecimento da auto-estima, auto-
cuidado e multi-cuidado; sobretudo promover a saúde reprodutiva e uma sexualidade saudável, garantindo os direitos de
cidadania aos adolescentes e familiares envolvidos no projeto. A capacitação foi realizada nos dias 22 a 23 de agosto de
2007, com carga horária de 16 horas em dois dias consecutivos, com a seguinte programação.
 Dinâmica de apresentação e acolhimento;
 Contrato de convivência;
 Exposição dialogada: “A Formação do Educador em Sexualidade, Saúde Sexual e Reprodutiva nas Escolas”;
 Orientação do Planejamento para o Programa Saúde e Prevenção nas Escolas de cada unidade;
 Sexualidade e Adolescência;
 Diálogos sobre a auto-estima;
 Conceitos de Identidades;
 Juventudes e adolescências
 Gravidez nas adolescências e juventudes;
 Conhecendo sobre Planejamento Reprodutivo;
 Contracepção de emergência;
 Uso de preservativos;
 Rede de atendimento;
 Gênero e Violências;
 Direitos Sexuais e Reprodutivos;
 Vulnerabilidades;
 Doenças Sexualmente Transmissíveis;
 Perfil epidemiológico das DST/AIDS RN;
 AIDS;
 Definição do Planejamento local;
 Apresentação do Planejamento;
 Avaliação continuada oral e escrita.
Estas temáticas foram trabalhadas a partir de um enfoque educativo e preventivo, para que os profissionais
fomentassem a implementação desses conteúdos, como multiplicadores, tendo em vista gerar oportunidades de
conhecimentos aos adolescentes e jovens.
A metodologia utilizada de forma reflexiva e dialógica contribuiu para novas práticas educativas como: exposições
dialogadas; vivências em grupo; dinâmicas interativas; oficinas; exibição de vídeos e finalizando com a elaboração do Plano
de Ação com os profissionais de cada escola.
No momento receberam uma bolsa contendo uma cartilha confeccionada pelos formadores/instrutores, Manual do
Multiplicador do SPE, as Diretrizes do SPE, Caderno das Coisas Importantes, Cartilha Daniel e Letícia, 3 folder sendo 1 com
a programação local, e 2 do programa nacional de SPE, crachá, bloco de anotações, canetas, borracha, lápis, 1 Cd com
músicas e 1 DVD com 4 filmes, trabalhados durante as oficinas, a Lei Maria da Penha e outros materiais informativos, como
também 1 banner para cada escola com as ações do SPE. Posteriormente foi enviado para as 30 escolas material de
expediente para subsidiar nas oficinas in-loco com os estudantes.
A cartilha, serviu como fundamento para a implantação e implementação de ações educativas e preventivas aos(as)
adolescentes e jovens de forma integral e participativa.
Os conteúdos estão relacionados ao corpo matriz da sexualidade; planejamento familiar; saúde sexual e
reprodutiva; relação de gênero; prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; Juventude e participação juvenil;
prevenção ao Câncer de: colo de útero, mama e de próstata; prevenção as violências sexuais, todas as temáticas com enfoque
educativo-preventivo, possibilitando mudança de hábitos, atitudes e valores baseados na reflexão crítica dos direitos dos
cidadãos e cidadãs.

2º ETAPA: OFICINAS "IN LOCO" COM 80 ADOLESCENTES DAS 30 ESCOLAS.


Neste segundo momento foram realizadas oficinas educativas “in loco”, sobre sexualidade humana aos
adolescentes e jovens, das Escolas Estaduais (relação anexo), visando a articulação e propagação de informações que
propiciassem conhecimentos sobre sexualidade para que os/as educandos/as desenvolvessem competência de protagonistas
juvenis.

448
Todas as oficinas que ocorreram nas citadas escolas, com os estudantes, foram previamente planejadas. Os 10
formadores/instrutores que trabalharam na formação dos profissionais (01 para cada 03 escolas), os quais acompanharam e
orientaram as ações desenvolvidas pelos multiplicadores desde a primeira etapa até a execução e a avaliação.
O processo de capacitação proporcionou os/as adolescentes e jovens acesso às informações para o seu
desenvolvimento integral, favorecendo o crescimento biopsicossocial, com a coragem e coerência de compartilhar com os
pais e os demais profissionais da escola e da saúde os caminhos a serem seguidos na busca contínua para garantir gerações
com mais Saúde e Qualidade de Vida, Auto-estima, Auto-cuidado uma perspectiva positiva, no exercício de sua cidadania,
sobretudo acreditar nessa geração que com certeza construirá um mundo melhor. Durante as realizações das oficinas
educativas e preventivas os conteúdos utilizados e desenvolvidos pelos facilitadores das escolas que aceitaram o desafio de
discutir com transparências temas ainda considerados tabus por parte de nossa sociedade e o compromisso de colocar em
práticas ações concretas, muitas pioneiras nas diferentes localidades do Estado.
A estratégia de trabalho consistiu de quatro oficinas para 80 jovens em cada escola totalizando 16 horas aulas,
realizadas pelos os professores/multiplicadores capacitados na primeira etapa, proporcionando conhecimentos aos jovens, no
que concerne a sexualidade, e consequentemente condições, através do conhecimento adquiridos, de repassar aos outros
jovens. Foi utilizada uma metodologia dinâmica e participativa utilizando peças teatrais, paródias, músicas, cartazes,
apresentações de filmes discutidos nas rodas de conversas, dinâmicas sobre as temáticas trabalhadas, literatura de cordel entre
outras.
Os materiais confeccionados pelos os alunos durante as oficinas, subsidiarão os oito fóruns e serão reproduzidas as
agendas que serão distribuídas a todos/as estudantes das 30 escolas contempladas.

3º ETAPA: IMPRESSÃO DE AGENDA EDUCATIVA E PREVENTIVA ELABORADA PELOS PARTICIPANTES


DESTINADA AOS ESTUDANTES DAS 30 ESCOLAS
Agenda Educativa e Preventiva resultou de um trabalho de oficinas lúdicas, interativas, junto aos estudantes das
escolas que se envolveram no projeto. São depoimentos idéias, poesia, pensamentos, frases, recadinhos, desenhos, fotos, que
enriquecem não só os trabalhos sobre os temas abordados, mas também mostram a importância de trabalhar continuamente
na prevenção, sobretudo com os jovens e adolescentes, que são multiplicadores de conhecimentos/protagonistas juvenis e os
levarão por toda sua vida. Culminou com a publicação de 60 mil agendas a serem distribuídas com todos os estudantes das
referidas escolas onde compartilha as experiências.

4º ETAPA: 8 FÓRUNS COM CONFERÊNCIA E APRESENTAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS REALIZADAS NAS


ESCOLAS
Serão realizada em 8 Diretorias Regionais com as escolas das jurisdição: Irão participar os 80 estudantes ( por
escola), 3 educadores (02 professores e 01 gestor escola), 1 técnico da DIRED 5 pais e 5 representantes da sociedade civil)
A formatação do evento terá conferências, mesa redonda sobre a juventude, apresentações dos trabalhos das escolas
jurisdicionadas, pelos estudantes, painéis, exposições artísticas e culturais.
 Lanche (entrada);
 Abertura;
 Apresentação artística cultural (Literatura de cordel, teatro, dança, paródia, coral, música);
 Mesa das autoridades local (Promotoria da adolescência juventude, saúde, educação, justiça, assistência
social, gestores, conselho tutelar) cada um falar 10 min. sobre a rede de atendimento aos adolescentes e
jovens, o papel de cada representação na sociedade.
 Palestra: Processo Socioculturais e Participação Juvenil;
 Intervalo almoço;
 Dinâmica interativa para despertar;
 Palestra: Construindo Teia de Diálogos com a Saúde Sexual e Reprodução.
 Mesa redonda dos estudantes: cada aluno representante das escolas fará uma apresentação;
 Certificação dos alunos e professores participantes de toda ação;
 Mesa Redonda A voz dos estudantes sobre as temáticas trabalhadas nas escolas, com representações dos
estudantes das escolas participantes do fórum;
 Durante o evento haverá exposições nos stands com os trabalhos desenvolvidos durante todo o ano com as
temáticas trabalhadas;
 Lanche final.
Cada escola receberá recursos para locação de 2 ônibus para o traslado dos estudantes, terá direito a alimenta por
ocasião do fórum, sendo esse recurso repassado para as DIRED para aluguel de auditório com sonorização, como também
para o almoço e 2 lanches.

449
CONCLUSÃO:
A educação sexual é um tema transversal esquecido ou tratado de forma distante dos adolescentes e jovens.
Abordar esta temática ainda é encarado com preconceito e tabu, isso se deve a herança das nossas famílias que sentem
dificuldade de conversar sobre sexualidade. Caminhamos a largos passos para desmistificação desses preconceitos. O
Programa Saúde e Prevenção na Escola vem oportunizando a promoção da saúde sexual e da saúde reprodutiva, visando a
reduzir a vulnerabilidade de adolescentes e jovens às doenças sexualmente transmissíveis (DST), à infecção pelo HIV, à
AIDS e à gravidez não-planejada, por meio do desenvolvimento articulado de ações no âmbito das escolas e das unidades
básicas de saúde.
Algumas pesquisa mostram a favor da inclusão da discussão sobre sexualidade no espaço escolar em função do que
as pesquisas realizadas nas últimas décadas têm demonstrado.
Recentemente (2004) a UNESCO realizou uma importante e completa pesquisa em 13 capitais brasileiras,
pesquisando 16.422 adolescentes, 4.532 pais e 3.099 professores. Estes resultados nos mostram que hoje a escola não pode
estar omissa a essa questão, pois a sexualidade esta mais do que presente na vida dos alunos, ela se manifesta no dia-a-dia de
moças e rapazes, portanto, enquanto um espaço que forma cidadão, não pode ficar fora dessa discussão.
Outro dado importante foi apontado pela pesquisa realizada em quase todas as capitais, onde foi constado que mais
de 10% das crianças e adolescentes – entre 10 e 14 anos – já tiveram uma relação sexual e que a faixa entre 10 e 14, mais da
metade dos jovens do sexo masculino já se iniciaram sexualmente. Tais proporções correspondem duas ou três vezes, àquelas
das alunas que se iniciaram na mesma faixa.
Sabemos que a escola é um ambiente privilegiado de convívio social e de construção de diálogo entre adolescentes
e jovens, e que é uma das ferramentas que pode preparar os jovens para as mudanças e escolhas que os mesmos farão da suas
vidas.
O êxito da consolidação das ações desenvolvidas nas duas etapas foi excelente, houve uma adesão conjunta por
parte das famílias, jovens envolvidos, a direção das escolas, o corpo docente e as DIRED que acreditaram no sucesso do
projeto.
A capacitação inicial dos professores/multiplicadores, na primeira etapa, gerou oportunidades para a aprendizagem
sobre sexualidade humana, através do conhecimento, facilitando a atuação dos docentes no cotidiano da escola bem como nas
oficinas realizadas com os estudantes na segunda etapa, onde receberam informações que proporcionou oportunidade para a
construção de um novo conhecimento preparando-os para atuarem como protagonistas juvenis.
Os resultados mais visíveis foram representados através da receptividade dos jovens quando estavam sempre
prontos e ansiosos para participarem das oficinas, sedentos por informações, sempre dispostos e acolhedores, curiosos,
carentes, atenciosos e sensíveis. Preparando músicas, paródias, peças teatrais, cartazes e frases que serão apresentadas no
fórum e na agenda que será distribuída na escola.
A metodologia empregada motivou os jovens por ser este um trabalho inovador. Proporcionou um grande interesse
por parte da escola contemplada bem como das escolas dos municípios vizinhos. Está planejada a ampliação do projeto para
outras turmas, onde os jovens capacitados repassarão os conhecimentos e atuarão como protagonistas juvenis em novas
turmas, outras escolas e na comunidade, resgatando-se a história e as singularidades da realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVAY, Miriam. Juventude e sexualidade. Brasília: UNESCO, 2004.
ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary Garcia; SILVA, Lorena Bernadete da. Juventudes e sexualidade. Brasília:
UNESCO, 2004.
BRASIL. Ministério da Saúde. O outro como semelhante: direitos humanos e AIDS. Brasília: Secretaria de Política de Saúde,
Coordenação Nacional de DST/AIDS, Ministério da Saúde, 2002.
Carvalho AI. Da saúde pública às políticas saudáveis - Saúde e Cidadania na Pósmodernidade. Ciência & Saúde Coletiva
1996; 1:104-121.
DESSER, Nanete Avila. Adolescência: Sexualidade & culpa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993.
FERRAZ, Elisabeth Anhel. Pesquisa sobre saúde reprodutiva e sexualidade do jovem. Rio de Janeiro: Bemfam, 1992.
Ministério da Saúde, Política de Atenção Integral a Saúde do/a adolescente e do/a jovem, Brasília, 2006, mimeo.
RIBEIRO, Claudia.Maria Teresa de A. Campos (orgs). Adolescências e Participação Social no Cotidiano das Escolas-
Campinas,SP:mercado de Letras,2002
SILVA, Ricardo de Castro. A Orientação Sexual. Possibilidade de Mudança na Escola - Campinas.SP: Mercado de Letras.
Coleção Dimensões da Sexualidade, 2002.
SOS CORPO – GÊNERO E CIDADADINA. Conversando sobre direitos sexuais e reprodutivos. Série saúde preventiva.
UNESCO. O perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam... São Paulo: Moderna, 2004.

450
1ª ETAPA- CAPACITAÇÃO DOCENTE (MULTIPLICADORES)

2º ETAPA: OFICINAS "IN LOCO" COM 80 ADOLESCENTES DAS 30 ESCOLAS.

3º ETAPA: IMPRESSÃO DE AGENDA EDUCATIVA E PREVENTIVA ELABORADA PELOS PARTICIPANTES DESTINADA AOS ESTUDANTES DAS
30 ESCOLAS
CAPA DA AGENDA

4º ETAPA: 8 FÓRUNS COM CONFERÊNCIA E APRESENTAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS REALIZADAS NAS ESCOLAS

451
Grupo gestor estadual em saúde e prevenção nas escolas – GGE/SPE
Elizabeth Jácome da Costa Britto Britto
Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte
[email protected]

Jorge Magno da Costa Costa


Escola Estadual Professor Francisco Ivo Cavalcanti
[email protected]

Maria de Fátima Galvão de Carvalho Carvalho


Fundação Estadual da Criança e do Adolescente
[email protected]

Maria da Conceição Ramalho Ramalho


Secretaria Estadual de Saúde Pública
[email protected]

Ildete Mendes Mendes


Organização Não Governamental-Canto Jovem
[email protected]

Resumo: O Estado do Rio Grande do Norte-RN, seguindo as diretrizes ministeriais implantar através das Secretarias Estaduais de Saúde
Pública e de Educação e Cultura, o Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas com estratégias de enfrentamento às demandas postas por
adolescentes e jovens, nos aspectos relacionados à promoção da saúde sexual e reprodutiva, visa reduzir a vulnerabilidade de adolescentes e
jovens às doenças sexualmente transmissíveis (DST), à infecção pelo HIV, à AIDS e à gravidez não planejada na adolescência, por meio do
desenvolvimento articulado de ações no âmbito das escolas e das unidades básicas de saúde. O Grupo Gestor Estadual criado por meio do
Ato Governamental, publicado no Diário Oficial nº 195.754 11/09/2007, composto por representantes das Secretarias Estaduais de Educação
e Cultura, Saúde Pública, Assistência Social, Subsecretária da Juventude, Universidade Federal, Organizações da Sociedade Civil, Canto
Jovem e Sociedade Terra Viva, e de representantes de instituições que realizam trabalho na área do adolescente. Tem como atribuições:
 Criar, acompanhar, monitorar e Avaliar os Grupos Gestores Municipais;
 Capacitar Profissionais da Educação, Saúde, Assistência Social, Adolescentes e Jovens;
 Oficina Árvore do Prazer, nas escolas de Ensino Médio para o Teste Rápido Diagnóstico (HIV/AIDS);
 Implantação do Banco de Disponibilização de Preservativos nas Escolas.
O projeto representa um marco de integração dos sistemas de Educação e Saúde, que privilegia a escola como espaço para a articulação das
políticas pública, voltadas para adolescentes e jovens, mediante a participação dos sujeitos desse processo, estudantes, famílias, profissionais
referendados e demais instâncias cujas ações repercutem na formação dos jovens.

O Projeto Saúde e Prevenção -SPE nas Escolas em parceria com o Ministério da Saúde (MS), Ministério da
Educação (MEC) e apoio das Organizações das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Fundo de População das Nações Unidas- (UNFPA) articulam-se para a promoção
de ações entre Saúde e Educação.
Assim, o Estado do Rio Grande do Norte-RN, seguindo as diretrizes ministeriais assume através das Secretarias
Estaduais de Saúde Pública e de Educação e Cultura, a implementação do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas, estratégias
de enfrentamento às demandas postas por adolescentes e jovens, nos aspectos relacionados à promoção da saúde sexual e
reprodutiva que visa reduzir a vulnerabilidade de às doenças sexualmente transmissíveis (DST), à infecção pelo HIV, à AIDS
e à gravidez não planejada na adolescência, por meio do desenvolvimento articulado de ações no âmbito das escolas e das
unidades básicas de saúde.
A implantação e a implementação do Projeto “Saúde e Prevenção nas Escolas” tem como objetivo central a
promoção da saúde sexual e da saúde reprodutiva, visando a reduzir a vulnerabilidade de adolescentes e jovens às doenças
sexualmente transmissíveis (DST), à infecção pelo HIV, à AIDS e à gravidez não-planejada, por meio do desenvolvimento
articulado de ações no âmbito das escolas e das unidades básicas de saúde.
Na implantação do projeto no Estado do RN, foi criado o Grupo Gestor Estadual por meio do Ato Governamental,
publicado no Diário Oficial nº 195.754 11/09/2007. O objetivo foi fortalecer a gestão integrada entre saúde e educação na
promoção da saúde sexual e saúde reprodutiva, composto por representantes das Secretarias Estadual de Educação e Cultura,
Saúde Pública, Assistência Social (Fundação Estadual da Criança e do Adolescente), Subsecretária da Juventude,
Universidade Federal, Organizações da Sociedade Civil, Canto Jovem e Sociedade Terra Viva, além de representantes de
instituições e entidades que realizam trabalho ou estudos com adolescente e junto, desenvolverem as seguintes atribuições:
análise situacional; elaborar Planos de Ações; realizar eventos relacionados à temática, avaliar e monitorar de forma
sistemática as ações dos Grupos Gestores Municipais.

452
O êxito das ações e a consolidação de políticas públicas de prevenção de doenças e agravos e a promoção à saúde
nas escolas, em processo planejado e participativo, dependem do compromisso de gestores, profissionais de saúde e educação
e da participação ativa dos estudantes e de toda comunidade escolar, resgatando-se a história e as singularidades da realidade
nacional, descrita na pesquisa da UNESCO.l
Em 2006, a UNESCO realizou uma pesquisa que revelou que 44,7% dos estudantes têm vida sexual ativa, o estudo
ainda apontou que 60,7% dos estudantes declararam ter usado o insumo na primeira relação sexual e 69,7% fizeram uso na
última relação, sendo os principais motivos para não usar o preservativo: não ter a camisinha na hora “H” 42,7%, só transo
com parceiros em quem confio 22,7%, a camisinha diminui o prazer 21,1%, a sua parceira usa pílula anticoncepcional 15,4%,
não acha necessário porque só transo com uma pessoa 13,9%, seu parceiro não tem risco de passar AIDS – é saudável e fiel
12,8%, às vezes não tenho dinheiro para comprar 9,7% e tenho vergonha de comprar 7,1%.
Segundo Carmita Abdo (2006) para essa nova geração, a vida sexual começa em média aos 14 anos, aliado ao
excesso de confiança, timidez, permissividade, desinformação e descuidos, evidenciam-se ainda que 43,6% das brasileiras e
34,9% dos brasileiros nunca usaram preservativos. (Sexo Pode Ser Menos Mitos e Mais Verdade – Editora Prestígio, SP –
2006).
Diante dos resultados dessas pesquisas há necessidade de promover e programar ações que incentivem os
adolescentes e jovens a buscarem mais informações sobre prevenção e cuidados com a saúde, aumentando assim o grau de
conhecimento sobre a saúde sexual e saúde reprodutiva. O Grupo Gestor Estadual do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas
em parceria com a UNICEF pretendem institucionalizar os Grupos Gestores nos Municípios, visando enfrentar as diferentes
vulnerabilidades associadas à prática do sexo desprotegido, uso de drogas, violência doméstica e sexual, bem como superar
as barreiras culturais que muitas vezes induzem os adolescentes e jovens às situações de maior exposição às DST/Aids e a
gravidez na adolescência.
O projeto representa um marco na integração dos sistemas de educação e saúde e privilegia a escola como espaço
para a articulação das políticas voltadas para adolescentes e jovens, mediante a participação dos sujeitos desse processo:
estudantes, famílias, profissionais da educação e da saúde, ao mesmo tempo, é um convite à articulação entre educação,
saúde e as demais instâncias cujas ações repercutem na formação dos jovens, entre elas: órgãos responsáveis pela cultura e
ação social, universidades e entidades da sociedade civil organizada.
O referido Plano de Ação do Grupo Gestor Estadual/GGE-RN, em Saúde e Prevenção nas Escolas – SPE executado
no Biênio 2008 e 2009 definiram metas que serão desenvolvidas no conjunto de estratégias operacionais, propostas no
cronograma das ações com os prazos e os responsáveis.

OBJETIVOS
Realizar ações de promoção da saúde sexual e da saúde reprodutiva de adolescentes e jovens articulando os setores
de Saúde, Educação e Social;
Contribuir para a redução da infecção pelo HIV/DST e os índices de evasão escolar causada pela gravidez na
adolescência (ou juvenil), na população de 10 a 24 anos;
Fomentar a participação juvenil nos espaços de formulação e execução de políticas públicas de das DST/Aids e do
uso indevido das drogas;
Inserir o Afroatitude nas ações do SPE, incluindo os sujeitos que estão sendo capacitados em saúde sexual e saúde
reprodutiva, vulnerabilidade relacionada à raça e cor;
Apoiar as diferentes iniciativas que trabalham com promoção da saúde e prevenção nas escolas;
Instituir a cultura da prevenção às Violências nas escolas e entorno.

FINALIDADES
Incentivar o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a promoção da saúde sexual e saúde reprodutiva,
com a redução da incidência das doenças sexualmente transmissíveis e da infecção pelo HIV na população jovem;
Ampliar parcerias entre escolas, Organizações governamentais e não governamentais visando unir esforços para a
formação integral do educando;
Fomentar a participação juvenil para que adolescentes e jovens possam atuar como sujeitos da realidade;
Apoiar ações de formação continuada para profissionais de Educação, Saúde e Social para responder às diferentes
situações relacionadas à vivência da sexualidade no cotidiano dos adolescentes e jovens escolarizados;
Contribuir para a redução da incidência de gravidez não planejada na população adolescente e contribuir para a
redução da evasão escolar relacionada à gravidez na adolescência;
Ampliar os recursos das escolas para que desempenhe seu papel democrático no respeito e convívio com as
diferenças;
Fomentar a inserção das temáticas relacionadas à educação no campo, afro-brasileira, indígena, sexualidade no
cotidiano da prática pedagógica dos professores;
Promover a ampliação da capacidade de acolhimento das demandas em saúde da população jovem nas Unidades
Básicas de Saúde;

453
Constituir uma rede integrada saúde-educação para colaborar na redução dos agravos à saúde da população jovem;
Promover o diálogo na família, na comunidade e integrá-las ao Projeto “Saúde e Prevenção nas Escolas”;
Desenvolver ações inclusivas, considerando as pessoas com necessidades educacionais especiais, de modo a
favorecer a vivência da sua sexualidade com autonomia e proteção social;
Construir redes para a troca de experiências entre participantes do Projeto nos diversos municípios do Estado do
RN.

ESTRATÉGIAS
Sensibilizar os gestores da educação e da saúde quanto à implantação de programas articulados de educação
preventiva nas escolas;
Estimular a criação de uma política preventiva na rede de ensino no Estado do RN, de forma articulada com o
Sistema Único de Saúde (SUS);
Estimular o debate e reflexão sobre as questões relativas à sexualidade, saúde sexual e reprodutiva, direitos
humanos, ética e cidadania;
Assegurar o fortalecimento do GTE/RN.

RESPONSABILIDADES
Coordenar o Projeto SPE no âmbito do Estado, promovendo o fomento à adesão dos municípios do RN e
realizando o acompanhamento da implantação do projeto em cada localidade;
Apoiar a constituição dos Grupos Gestores Municipais/GGM;
Viabilizar a constituição e a qualificação de facilitadores locais e regionais nas temáticas do SPE, para subsidiar as
equipes escolares e de saúde no desenvolvimento das ações;
Produzir, reproduzir, referenciar e distribuir materiais de referência, em articulação com os níveis e municipal;
Participar no desenvolvimento de estratégias de supervisão, monitoramento e avaliação.

AS PRINCIPAIS AÇÕES DESENVOLVIDAS:


Criação do Grupo Gestor por meio do ato Governamental publicado no Diário Oficial de nº11557 de 11/09/2007 e
Portarias pelas instituições.
Orientação aos municípios do RN para implantação e criação dos Grupos Gestor Municipais;
Capacitação de Profissionais da Educação, Saúde e Assistência Social e dos Adolescentes e Jovens;
Oficina Árvore do Prazer, nas 10 escolas e nas unidades de saúde para o Teste Rápido Diagnóstico (HIV/AIDS);
Implantação em 36 escolas do Banco de Disponibilização de Preservativos nas Escolas;
Monitoramentos aos municípios que implantaram os Grupos Gestores Municipais;
A metodologia utilizada de forma reflexiva e dialógica contribui para novas práticas educativas realizadas dentro do
contexto que proporciona aos profissionais da educação, assistência social e saúde, (multiplicadores), ferramentas educativas
para um embasamento teórico tendo em vista gerar oportunidades de conhecimentos aos adolescentes e jovens,
proporcionando a buscarem atitudes responsáveis com enfoque educativo e preventivo com relação a sua sexualidade.
Reuniões de planejamento, estudos, e avaliação (periodicamente);
Cursos específicos e oficinas temáticas sobre sexualidade, prevenção as DST/AIDS, gravidez na adolescência,
seminários, fóruns, oficinas e roda de diálogo;
Curso sobre Saúde Sexual e Reprodutiva;
Oficina de Implantação Banco de Disponibilização de Preservativos;
Curso sobre Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes
Curso para Jovens Formadores “Guia do SPE”.
O êxito da consolidação das ações desenvolvidas durante todo o processo de implantação dos Grupos Gestores
Estaduais e Municipais houve adesão conjunta por parte das famílias, jovens envolvidos ações no âmbito das escolas e das
unidades básicas de saúde.
Os resultados mais visíveis foram representados através da receptividade dos jovens quando estavam sempre
prontos e ansiosos para participarem das oficinas, sedentos por informações, sempre dispostos e acolhedores, curiosos,
carentes, atenciosos e sensíveis.

PARTICIPAÇÃO JUVENIL
O GGE deve ser referência para todas as ações. É necessário o dialogo constante com os grupos municipais para
definir as estratégias para fortalecimento da participação juvenil.
É preciso articular o SPE a outras ações que já existem no intuito de formar Redes Juvenis.
É importante efetivar a representatividade dos/as jovem no Projeto como atores políticos.

454
Reconhecimento da participação juvenil como essencial para a realização das atividades do SPE.
É preciso pensar em como reconhecer o trabalho dos/as jovens nas escolas.
É preciso estabelecer diretrizes mínimas para a participação de jovens nas reuniões do GGE.
É necessário garantir recursos para participação de jovens nas atividades do SPE.
O GGE deverá fazer o mapeamento/acompanhamento da situação da participação juvenil nos e GGM.
As reuniões de trabalho do GGE nos municípios devem ser acompanhadas de jovens para fortalecer a agenda de
participação juvenil.
É preciso publicar urgente o Guia de Formação de Educadores/as de Pares do SPE para que esse seja o material de
referência para estado e os municípios.

ARTICULAÇÃO E FORTALECIMENTO DO SPE


A articulação dos Grupos Gestores (estadual e municipal) é de fundamental importância para que não afete a
estrutura do Programa em SPE.
Existe ainda ausência de comunicação e participação dos municípios na representação SPE.
Não há apoio e disponibilidade de alguns órgãos e entidades para formação de grupos de trabalho.
É necessário fortalecer os contatos com os municípios e envolvimento das secretarias para facilitar o trabalho.
É preciso o entrosamento efetivo entre saúde, educação e jovens. (Melhorar a inserção dos/as jovem).
Todas as decisões e ações do GGE devem necessariamente ser formalizadas e repassadas aos GGM. Para tal, o
Grupo Gestor Federal/GGF deve desenvolver um instrumento de socialização de informações sobre o que está acontecendo
no âmbito do GGF e do SPE no país, como por exemplo, um site.
Foi de fundamental importância a criação um site Regional para o SPE – em que sejam atualizadas informações, os
eventos realizados pelos estados, bem como, disponibilizados materiais do Projeto para download.
É importante promover intercâmbio de experiências entre os Grupos Gestores Estaduais de diferentes unidades
federadas.
Os GGM devem frequentemente comunicar as alterações de seus membros ao GGE.
Propor dentro do Plano Estratégico das instituições parceiras do SPE recursos para as ações e atividades do Projeto.
Os GGM devem comunicar as alterações de seus membros ao GGE.
Propor dentro do Plano Estratégico das instituições parceiras do SPE recursos para as ações e atividades do Projeto.
O GGE precisa respeitar os municípios indicados pelos GGE para participar das ações do SPE nos estados.
Sensibilizar gestores e gestoras de saúde e educação. Nos locais onde for necessário, enviar convite aos
Secretários/as de Saúde e Educação por meio das chefias de gabinete dos/as governadores/as para que estes/as também
tomem conhecimento do SPE.
Constituir redes estaduais e regionais para troca das experiências e informações/sugestões no âmbito do SPE.
Importância do selo UNICEF para o fortalecimento do SPE nos municípios do semi-árido (promoveu a visibilidade
do SPE e expansão de municípios com GGM constituído).
O GGE assumiu a comunicação direta com os municípios.
Todos os documentos do SPE (decretos, portarias, etc.) devem ser encaminhados ao GGE.
Promover reuniões que possibilitem o diálogo e troca de experiência entre os estados vizinhos (reuniões e eventos
microrregionais, teleconferências etc.).
Realização de Mostras Estadual e Municipais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Abramovay, M. (2004). Juventude e Sexualidade. Brasília: UNESCO.
Brasil. Ministério da Saúde, (2002). O outro como semelhante: direitos humanos e AIDS. Brasília: Secretaria de Política de
Saúde, Coordenação Nacional de DST/AIDS, Ministério da Saúde.
Carvalho AI, (1996) Da saúde pública às políticas saudáveis - Saúde e Cidadania na Pós-modernidade. Ciência & Saúde
Coletiva (pp1:104-121).
Ministério da Saúde, (2006) Política de Atenção Integral a Saúde do/a adolescente e do/a jovem, Brasília.
Ribeiro, Claudia.Maria Teresa de A. Campos (orgs), (2002). Adolescências e Participação Social no Cotidiano das Escolas-
Campinas, SP: mercado de Letras.
Silva, Ricardo de Castro, (2004). A Orientação Sexual. Possibilidade de Mudança na Escola – Campinas, SP: Mercado de
Letras. Coleção Dimensões da Sexualidade.
UNESCO, (2002). O perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam. São Paulo: Moderna.

455
Narrativas da Alteridade: Corpos Femininos na Construção Luso-Afro-Brasileira
Cristina Maria Da Silva
Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP
[email protected]

Resumo: Para Edward Said, “ao longo história, cada sociedade teve o seu Outro. Simone de Beauvoir: afirma que: “Para os habitantes de
uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são “os outros” e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes
de outro país são considerados “estrangeiros”. O Outro no discurso colonizador seria inicialmente o feminino, numa construção de narrativas
viris. Partindo disso, não seria possível pensar o corpo feminino na cultura brasileira como um “lugar praticado de ações”, sobretudo
imaginárias onde foram inscritas as narrativas da alteridade luso-afro-brasileira? Lemos as imagens do corpo feminino, num viés
antropológico e histórico-social, em matizes teóricos, literários e mediáticos, como signo da inscrição das mestiçagens brasileiras, como pele
da cultura onde se desenham as fusões de diferentes etnias e imaginários. Como lembra Butler, os discursos habitam corpos, neles se
acomodam, na verdade os discursos por eles circulam como o próprio sangue, é isso que pretendemos expor. Nele se encarna a pluralidade
de sentidos da cultura, onde se trava a relação entre o individual e o coletivo. O corpo feminino insinua-se como suporte e narrativa, ao
encenar e falar sobre o que se tatua na cultura, e onde se presentificam, primeiramente, as invenções sociais. Perpassado, sobretudo pelos
saberes inconscientes que formam uma sociedade, este encarna os confrontos e paradoxos na construção das convenções sociais como mapa
das cartografias das identidades e diferenças que as constituem.

Narrativas, Imaginários, Corpo feminino.


Nas palavras de Edward Said, “ao longo história, cada sociedade teve o seu Outro: os bárbaros para os gregos, os
persas para os árabes, os mulçumanos para os hindus, e assim por diante”.1 Said esclarece que não há como pensar em
homogeneidades, pois além desse Outro, existem também muitos outros internos na vida social, o que a tornam híbrida.
“Nenhuma identidade é estanque: cada uma influencia as demais. ”2
Simone de Beauvoir também disse algo parecido: “Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não
pertencem ao mesmo lugarejo são “os outros” e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são
considerados “estrangeiros”. Os judeus são os “outros” para os anti-semitas, os negros para os racistas norte-americanos, os
indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários”.3 Dessa forma, poderíamos pensar nas diversas
estratificações sociais de classe, etnicidade, idade, gênero como relações de poder, móveis e desiguais na configuração desse
“Outro”. Em seu livro, O Segundo Sexo, publicado em 1949, busca desconstruir a idéia de pensar o “macho” como um
modelo para as mulheres e como estas seriam a fabricação social de um Outro, ressalta:
Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro
define o Um; ele é o posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no
Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. 4

Para responder talvez seja preciso lembrar que o sujeito é em si dividido ao entrar no universo da linguagem, se
lembrarmos de Lacan. 5 Claro que guardando as devidas proporções de análise, pois não queremos unificar as abordagens
sobre a autoridade, mas enfatizar que esse Outro, digamos como estratificação da existência humana é o dado inicial, o
grande Outro da linguagem que não pode ser dito num sentido e projeta-se, agita-se dentro do sujeito como um ser invisível.
O que enfatizamos é que há uma lacuna, portanto entre a instauração da linguagem e as relação sociais, entre homens e
mulheres, que herdam uma certa “falha no chão de seus passos”.6 Portanto, se é tão marcante essa idéia de classificar,
nomear, identificar e diferenciar é porque temos uma falta instaurada na nossa existência humana que tentamos suprir com as
mesmas palavras que nunca dizem exato o que somos.
Beauvoir esclarece que “os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições”. 7A autora percebe
que para entendermos as relações entre homens e mulheres é necessário sair dos trilhos das noções vagas de superioridade,
inferioridade, igualdade que desvirtuaram todas as discussões e reiniciar do começo8. “Os dados que se lançam caem num
tabuleiro intricado.”9
Partindo da proposta do congresso de pensar: Sociedades desiguais e paradigmas em confronto, o objetivo deste
texto é pensar o corpo feminino na cultura brasileira como um “lugar praticado de ações”, sobretudo imaginárias onde foram

1
Said, Edward. W. Identidade, autoridade e liberdade. O potentado e o viajante. Reflexões sobre o Exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
p.199.
2
Idem, Ibidem, p. 201.
3
Beauvoir, Simone. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Vol.I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 11.
4
Idem, Ibidem, p.12.
5
Lacan, Jacques. O Seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
6
Luft, Lya. O Rio do Meio. São Paulo: Mandarim, p. 27
7
Beauvoir, Simone. Ibidem, p.14.
8
Idem, Ibidem, p. 21.
9
Luft, Lya. Ibidem. São Paulo: Mandarim, p. 39.

456
inscritas as narrativas da alteridade luso-afro-brasileira no sentido dado por Michel de Certeau10. Lemos as imagens do corpo
feminino, num viés antropológico e histórico-social, em matizes teóricos, literários e mediáticos, como signo da inscrição das
mestiçagens brasileiras, como pele da cultura onde se desenham as fusões de diferentes etnias e imaginários.
Como lembra Judith Butler11, os discursos habitam corpos, neles se acomodam, na verdade os discursos por eles
circulam como o próprio sangue, é isso que pretendemos expor. Nele se encarna a pluralidade de sentidos da cultura, onde se
trava a relação entre o individual e o coletivo. O corpo feminino insinua-se como suporte e narrativa, ao encenar e falar
sobre o que se tatua na cultura, e onde se presentificam, primeiramente, as invenções sociais. Perpassado, sobretudo pelos
saberes inconscientes que formam uma sociedade, este encarna os confrontos e paradoxos na construção das convenções
sociais como mapa das cartografias das identidades e diferenças que as constituem. O Outro no discurso colonizador seria
inicialmente o feminino, numa construção de narrativas viris, que não são necessariamente masculinas, ou seja, o oposto da
masculinidade não seria necessariamente a femininidade, nos termos de Butler.
Historicamente, segundo George Duby e Michele Perrot, as mulheres são representadas antes de descritas ou
narradas, antes mesmo de terem elas próprias à palavra. No entanto, as poucas informações contrastam com o manto de
imagens que cobre o seu rosto e os territórios de seu corpo. “A mulher imaginada, imaginária ou mero fantasma submerge
tudo. O que ser vê (...) não é tanto a realidade das relações entre os sexos como a perspectiva do olhar masculino que as
construiu e que preside à sua representação”12.
Em Vírginia Woolf no seu livro Orlando, nos é dado uma amostra desse movimento inerente as relações humanas,
revelando-nos o quanto possuímos uma “grande variedade de eus para chamar, muito maior do que o espaço de que dispomos
para lhes oferecer”; ou talvez dos limites impostos pelas classificações que nos mapeam, adornando-nos de identidades e ou
diferenças dependendo de nossos lugares sociais. Presenças que se incluem, exclusões latentes do que não pode ser
apreendido, classificado na moldura das representações. E como ela, no processo de escrita desse romance, poderíamos nos
esforçar por “copiar as muitas palavras faladas” mesmos que sejam grafias desalinhadas ou mesmo sigam por tortuosas
linhas. Talvez seja sempre um risco assumido identificar quem é o Eu, os Eus, o Outro e os Outros, pois é bem possível que
suas falas nos escapem nossas linhas não os digam e o pensamento sempre nos escape. Ressalta Virgínia Woolf:
Talvez; mas, o que parece certo (pois agora estamos na região do “talvez” e do “parece”), o eu de que (...) mais
necessitava se mantinha a distância, porque – a julgar pelo que se ouvia – ia mudando de eus com a mesma velocidade
com que dirigia o automóvel – havia um novo eu em cada esquina – como acontece quando, por alguma razão
inconfessável, o eu consciente, que é o mais importante, e tem o poder de desejar, não deseja senão ser um eu único.
Isto é o quer alguns chamam o eu verdadeiro, e é, dizem, a concentração de todos os outros que possam existir em nós,
comandados e aprisionados elo eu capitão, o eu-chave, que a todos os outros amalgama e controla. 13.

As Metáforas do Corpo
O corpo é a terra onde estamos, na qual se dá a partilha das paixões e a fúria do quieto animal no humano.
Entendemos essa fúria como as resistências que se dão diante das discursividades inventadas pela cultura, mas que nem por
isso enclausuram os sentidos e os desejos dos sujeitos que encenam como “inquilinos solitários de um invólucro chamado
corpo”.14
Maffesoli afirma que: “o espaço local é aquele que funda o estar-junto de toda comunidade”.15 “O corpo representa
este localismo, é a terra onde estamos. O localismo é onde se dá a partilha da paixão, o pathos comunitário”.16 Na
corporeidade, inscrevem-se as convenções sociais e culturais, bem como as “utopias intersticiais”. Insinua-se como suporte e
narrativa ao encenar e falar o que se tatua na cultura, e ao ser espaço transcultural onde se presentificam, primeiramente, as
invenções sociais. Mas, metamorfoseia-se também como rascunho de resistências.
O corpo feminino na cultura brasileira é um desses espaços ou como um lugar praticado, no qual se esboçam ações,
sobretudo imaginárias. Esforçamo-nos para traçar dimensões imaginárias do corpo vendo este como o primeiro espaço de
entrecruzamentos de imaginários, de correlações transculturais, como de encarnação de nossas mestiçagens. Talvez seja
preciso:
Religar o corpo às suas potências e às suas virtualidades. Conectá-lo com a espessura da história e, ao mesmo tempo,
abri-lo ao imponderável. Um sonho e tanto. Mas ele só pode ser realizado sem alarde, nunca totalmente nem de uma
vez por todas. Realização sempre em curso porque faz parte do ordinário, do mundo das coisas banais”.17

10
Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer.
11
Butler, Judith. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler, p. 163-164.
12
Duby, Georges; Perrot, Michelle. História das Mulheres no Ocidente, p. 8.
13
Woolf, Virgínia. Orlando, p. 206.
14
Noll, João Gilberto. Canoas e Marolas, p. 79.
15
Maffesoli, Michel. A Conquista do Presente, p. 81.
16
Maffesoli, Michel. Conferência: Sobre o Bom Uso do Mal.
17
Sant’anna, Denize Bernuzzi de. Corpos de Passagem: ensaio sobre a subjetividade contemporânea.

457
Tudo é corpo e nada mais, diz Nietzsche18. Até mesmo os textos que escrevemos não são mais do que metáforas do
corpo. E pensando em suas metáforas é que desvelamos que toda lei é escrita, bem como toda escrita é índice de lei, afirma
Clastres19. Seja nas pedras, nas pinturas, nos desenhos, nos papiros ou nos corpos, a lei sempre encontra espaços onde se
inscrever e para isto utiliza o imaginário humano, com seus mitos e ritos, ancorados num vasto universo simbólico,
sancionando a ordem cultural e a mantendo para os indivíduos como algo sagrado e imutável.
Michel de Certeau20 afirma que, os “livros são apenas metáforas do corpo”. As leis ou as convenções que regem a
constituição e manutenção de uma cultura se inscrevem, como textos legíveis, no corpo e na alma, transformando os sujeitos
em significantes das regras. Nesse sentido, os pergaminhos e os papéis são colocados ao lado da pele na impressão dos
valores e normas sociais. Os textos são metáforas longínquas do corpo, pois não atuam mais na escritura encarnada, referem-
se à memória do corpo, acionada quando a leitura toca o corpo e as impressões dos textos revelam suas cicatrizes. O que dá
sentido ao coletivo se inscreve, primeiramente, sobre o corpo, grava-se na pele.
Nesse processo de inscrição dos repertórios culturais, o corpo testemunha muito mais do que jazidas arqueológicas
ou monumentos figurados21, ele é uma memória, pois as marcas inscritas na pele são como obstáculos ao esquecimento, a
cultura se inscreve pela lembrança de sua existência.22 “Todos os grupos confiam ao corpo, tratado como uma memória, seus
depósitos mais preciosos”, 23 as escrituras dos bens mais preciosos da ordem instituída. Nele a sociedade inscreve sua marca,
seja através dos ritos de passagem para a institucionalização dos papéis sexuais; seja nas diversas formas de vigilâncias e
controles do poder disciplinar que fabricou o indivíduo: louco, encarcerado e sexuado, através da organização do tempo, do
espaço e da produção de saberes24; como pela própria história que se encontra impregnada nas sinuosidades do corpo25. O
corpo mediatiza a aquisição de toda uma gama de saberes transmitidos e vivenciados pela cultura, sobretudo, pela dor,
através dos mitos e castigos, que podem ser vistos em suas formas, movimentos, encenações culturais, como nos usos e
prazeres.
Na Microfísica do Poder, Foucault já instigava que nos restava estudar de que corpo precisava a sociedade na qual
estávamos inseridos, como também Marcel Mauss26 via o corpo com imensas possibilidades interpretativas, produto de
técnicas e de representações humanas. “O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento” do ser humano, no qual estão
impregnadas as heranças tradicionais e os contatos culturais. Nele estão as marcas arqueológicas da impressão das regras
culturais, bem como as da história específica da cultura, apresentada numa sinuosidade de curvas interpretativas. Sobre o
corpo se encontra: “O estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos
e os erros; nele também se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns
com os outros e continuam seu insuperável conflito”. 27
Numa perspectiva sócio-histórica o corpo pode surgir como transfiguração das relações sociais. Para Michel
Maffesoli28, o corpo é um resumo do corpo social, causa e efeito de comunicação. O corpo pavoneia-se refletindo
“socialidades” dinâmicas, manifestando os laços estéticos, as emoções, os valores e as teatralidades vividas. O corpo seja
escondido, revestido ou desnudo, traz em si os vestígios das transformações culturais. É espaço de memórias, ou seja,
transporta as crenças, as permanências e as criações de um determinado contexto social.
Com as diversas formas de utilizar as escrituras através da política, economia, pela mídia ou pelos saberes
articulados pelas produções científicas, o corpo surge como papiro no qual as leis que regem as sociedades são escritas. Não
há direito que não escreva suas leis sobre corpos, do nascimento ao luto o Direito se apodera dos corpos nas transações
coletivas para fazê-los seu próprio texto.29 Desse modo, o corpo traz as marcas das discursividades, porém também pode ser
espaço de micro-liberdades. Os corpos dos sujeitos são espaços de criações múltiplas, encarnam os saberes que são
produzidos, o que faz com que os corpos individuais e coletivos se entrelacem, encarnando as pretensas verdades das
organizações sociais, assim: “O corpo se repara. Educa-se. Até mesmo se fabrica”.30 Portanto, conhecer uma cultura pode ser
possível pelos vestígios do corpo, como também só é possível conhecer as marcas de um corpo a partir do conhecimento
prévio da cultura da qual ele faz parte.

18
Nietzsche, Friedrich. Assim Falou Zaratustra, p. 41.
19
Clastres, Pierre. A Sociedade Contra o Estado, p.123-124.
20
Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer, p.231-232.
21
Strauss, Lévi. Introdução: A obra de Marcel. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, 1974.
22
Clastres, Pierre. A Sociedade Contra o Estado, p.123-124.
23
Bourdieu, Pierre. Economia das Trocas Linguísticas, p. 103.
24
Foucault, Michel. A Microfísica do Poder.
25
Início dessa pesquisa: Corpos Fugidios e Olhos de Ressaca da Nação: O Corpo Feminino na Cultura Brasileira em Matizes Teóricos, Literários e Mediáticos.
Monografia (Graduação em Ciências Sociais).
26
Mauss, Marcel. Sociologia e Antropologia, p. 208-233.
27
Foucault, Michel. A Microfísica do Poder, p. 22.
28
Maffesoli, Michel. No Fundo das Aparências.
29
Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano, p. 231.
30
Idem, Ibidem, p.234.

458
A Aventura Fálica na Travessia dos Mares
A formação de nossas mitologias de origem estiveram revestidas por “uma colonização do imaginário”, através de
uma viagem a terras ignotas que precisaram ser decodificadas, nomeadas, construídas semanticamente dentro de uma lógica.
Aliás, essa marca da nomeação é uma das singularidades do modo de conhecer do Ocidente, uma luminosidade apolínea
clareando a noite arcaica das sombras, buscando definir os “olhos de ressaca” do desconhecido, do diferente. Camile Paglia31
afirma que “denominar é conhecer; conhecer é controlar”, assim a cultura ocidental tem como marca conhecer pelo olhar,
assim é que o desconhecido é mapeado, é que são feitas cartografias de diferenças.
Lidar com a memória, ou seja, buscar os rastros culturais escritos sobre a pele, não é somente voltar ao passado e
sim reconstruí-lo em seus interstícios através de novas leituras com as concepções e anseios do presente. A “preocupação e o
cuidado com o corpo (...) que representam uma constante antropológica podem ser analisados como tantos outros meios de se
situar uns em relação aos outros”.32
Através da linguagem é que a cultura se faz carne, é o que a distingue das sociedades naturais, 33 através do
simbólico define sentidos para a vida em sociedade, porém nunca ocupando todos os seus interstícios.34 Por ela é que o corpo
é inventado, mobiliza imagens e nas políticas da vida cotidiana marca os espaços silenciosos das trocas subterrâneas, das
violências e vigilâncias do olhar. O código linguístico é o Outro onde se armazenam os significantes arbitrários da cultura.
Michel Foucault indaga: “aparentemente, que civilização respeitou mais o discurso do que a nossa?” 35 Através da
“prática mítica” das escrituras nossa história foi esboçada e, sobretudo por meio dos dispositivos da sexualidade no Brasil e
dos corpos. No caso do corpo feminino, este quando visto pelo colonizador europeu passou a carregar em si a força
simbólica da “perda” de seus valores, devido a exuberante sensualidade das mulheres, porém ao mesmo tempo do corpo
feminino vinha o ventre gerador e originador da população brasileira. Estas representações fazem parte de uma visão que
confere sentido ao passado e ao presente, como nos indica Parker: “É uma visão de paraíso e de inferno (...) uma visão
centrada na questão da vida sexual, na sensualidade e no erotismo, não menos que no potencial óbvio da utilização
econômica e da colonização”.36
A escrita, enquanto desdobramento da linguagem, representou na formação de nossa cultura uma forma de controle
e dominação da (des) conhecida natureza, no intuito de domar seus movimentos e retirar seus véus, inventar-lhe uma história.
Percebemos isso podemos ver na escritura desejante de Pero Vaz de Caminha, nas densas linhas de Varnhagen, nos ensaios
tristonhos de Paulo Prado, na linguagem adocicada de Gilberto Freyre, bem como nos relatos de confessores, teólogos,
médicos e moralistas.
Da mesma forma que o olhar do estrangeiro se deparou com nossas terras como esse desconhecido e procurou
definir uma taxonomia de seus movimentos, o corpo feminino também encarnou e encarna esse estranhamento, talvez tenha
sido esse primeiro solo, onde esse encontro de diferenças se deu e através do qual nossas mestiçagens se encarnaram.
Esse corpo construído através da linguagem se exterioriza de tal forma que precisa ser, paradoxalmente, local de
investimento do próprio pensamento para ser visto como invenção da cultura. Este parece ser tomado como um fim em si
mesmo ou como algo marcado por um processo biológico, quando na verdade tem vestes, que não são propriamente a dos
tecidos que o envolvem, mas as da cultura.
Toda uma discursividade vai ser exposta, escrita sobre essa imagem do corpo, mas nessa constituição atravessada,
sobretudo pela linguagem, que confere sentidos ao corpo, que imprime lugares para o feminino e que ao mesmo tempo traz
em si de maneira latente uma ausência e uma busca desse feminino. No corpo talvez esteja expresso a busca por esse chão,
por esse solo, essa errância e esse desamparo de nossa condição mestiça, talvez mais do que isso de nossa condição humana.
Por uma ausência de significante diante dessas terras desconhecidas é que se busca nessa falta um território no qual
sejam abrigadas todas as construções semânticas possíveis, e nos parece que o primeiro espaço dessas inscrições conscientes
e inconscientes é o corpo, e aqui ressaltamos o corpo feminino, pela frequência com que aparece nas discursividades de
elaboração, e porque não dizer de fundação de nossas mitologias de origem. Em nossas “memórias de fundação” ele sempre
aparece como território a ser desbravado, conquistado e domesticado, impregnado pela negação ou valorização das misturas
que nos constituíram. De acordo com Michel Maffesoli:
Toda ‘ fundação de uma cidade’ necessita de uma mitologia específica. Bem mais do que isso, quando, em
consequência da debilitação do vínculo coletivo (...) uma sociedade sente a necessidade de consolidar o sentimento que
dela mesma possui, (...) ela recorre aos seus mitos fundadores e à sua reativação37.

Uma cultura fundada numa “aventura fálica” encontrou no corpo um de seus territórios flutuantes onde se fixaram
seus discursos e imagens, e onde se deu na travessia dos mares a fundação de nossa brasilidade. Percorrendo o grande

31
Paglia, Camile. Sexo, Violência ou Natureza e Arte. In: Personas Sexuais: a arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. São Paulo: Cia das Letras, p.
16.
32
Maffesoli, Michel. No Fundo das Aparências, p. 165.
33
Lacan, Jacques. A Instância da Letra no Inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos, p. 499.
34
Castoriadis, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, p.152.
35
Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. Disponível em: http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/
36
Parker, R. Corpos, Prazeres e Paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo, p. 33.
37
Maffesoli, Michel. O Conhecimento Comum: compêndio de uma sociologia compreensiva. São Paulo: Editora Brasiliense, p. 95.

459
arquivo textual que é nossa sociedade, perscrutamos sua “centralidade subterrânea” e vemos que nas discursividades sobre a
nação brasileira encontramos preciosas bússolas na elaboração e desenvolvimento de um olhar sobre a apropriação do corpo
feminino no imaginário coletivo. Afinal, as raízes de uma comunidade precisam ser vistas também a partir de suas criações
internas, pois são uma mistura de passado, presente e futuro. Desse modo, interpretamos o corpo, como imagem fixa e
cambiante, uma síntese do corpo social, assumindo funções mitológicas no interior da cultura, encarnando a mestiçagem da
cultura brasileira.
A arbitrariedade das lógicas dos significantes para essas terras desconhecidas, que poderiam ser o inferno ou a
visão do paraíso esboçou, mais do que terra firme onde pisar, mas também um território flutuante dos discursos e das
imagens como projeções de possíveis rumos para sua travessia no tempo. Talvez por isso esse desejo tão constante pela
enorme exposição do corpo feminino no interior da cultura, que pode ser pensada como um “eterno retorno” no inconsciente
da Nação como meio de fazê-la voltar ao “líquido amniótico” da “Grande Gaia”, a esse território desconhecido, suspeito, mas
não menos impulsionador de desejos. Ao contrário de fixar essa exposição do corpo como apenas uma forma de controle,
essa constante apropriação pode ser uma tentativa conflitual de estabelecer conexões, ainda não definidas, com a alma
feminina, sempre tão fugidia aos braços torneados da sociedade brasileira.
O corpo estará sempre em fúria diante dos dispositivos de controle da cultura, de suas domesticações e controles.
No corpo feminino entendemos que são impressas as misturas, paridas nossas mestiçagens. De maneira semelhante às novas
terras encontradas, o corpo é um solo pisado com reservas. Um corpo fugidio e com olhos de ressaca? Os pés que pisam as
novas terras como as mãos que tocam os novos corpos são movimentos de conquista e desejo de posse, mas ao mesmo tempo
de um deparar-se com movimentos efêmeros, terras com suas táticas e astúcias. O corpo representa a imagem do diferente, do
feminino que não podendo ser negado no espaço cultural recebe como adorno o controle, as vestes da ordem social.
Como expõe Escolástica Álvares da Silva, a obscuridade que perpassa o corpo feminino revela que este não se
circunscreve no universo da razão logocêntrica, mas num saber inconsciente38, porque nele há algo múltiplo, não incorporado
pelo o que se coloca como significante nas convenções culturais. “Um significante produz significações ao longo da cadeia
linguística”. 39 Mas o que antecede esse significante, quase entre as palavras, que o faz significar é da instância do feminino.
Pois, se a razão logocêntrica se organiza, ligando os objetos entre si através da identificação ou da similitude, isto significa
que anterior a isso o que é há é a diferença. O corpo é um solo pisado com reservas.
Por esse significante ter se masculinizado na construção de nossa cultura, a libido e o falo (o significante) tornaram-
se um referencial de uma ordem máscula.40 Talvez isso dificulte o entendimento de que o feminino tem a receptividade como
sua forma de se relacionar com as coisas, o que faz com que este seja algo que a língua denega e que sua existência seja
configurada nas lacunas, nas entrelinhas e equívocos da linguagem, num “outro gozo”. Revela, pois: “O drama do sujeito
humano que se sabe habitante de muitas máscaras, sem que seja totalmente de nenhuma delas. Efeito de uma estrutura?
Condição da linguagem? Destino da palavra que nunca diz tudo? Tudo isso, talvez.”41
O que se refere ao feminino, e se instaura na construção da mulher, esbarra sempre numa gramática da existência
que não tem semântica suficiente para defini-la. Mas se “a gramática é o sustentáculo de uma certa leitura da realidade. E se a
gramática não produz formas de sustentar a existência da mulher, ela não existe”.42 Assim, “qualquer tentativa para definir o
inconsciente esbarra na mesma muralha que recobre o feminino: as palavras resvalam, escorregam, falham, mas não
nomeiam”.43
Dessa maneira, essa ausência de significante, para exprimir o que a própria cultura não tem como escrever rasga o
tecido simbólico que a fundamenta, deixando nele uma falta que nem mesmo o imaginário consegue dar vestimenta corporal.
Sendo assim, a mulher pode até ter uma relação de desejo com o falo, mas este é apenas um significante arbitrário e sem
significado, o que faz com que esta não se restrinja à “economia fálica, da qual a genitalidade é o limite”,44 e haja uma lacuna
entre o desejo e o que o falo encarnado no pênis oferece, fazendo com que homens e mulheres deslizem “metonimicamente
pela trama dos significantes”. Nas representações sobre os sexos sombras envolvem as curvas do feminino, que não se
deixam domar, encarcerar pelas narrativas invisíveis da cultura, que:
É como um mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social. Puramente convencional, esse mapa
não se confunde com o território: é uma representação abstrata dele, submetida a uma lógica que permite decifrá-lo.
Viver em sociedade é viver sob a dominação desta lógica e as pessoas se comportam segundo as exigências dela,
muitas vezes sem que disso tenham consciência45.

38
Álvares da Silva, Maria Escolástica. O Gozo Feminino. São Paulo: Iluminuras.
39
Idem, ibidem, p. 20.
40
Idem, Ibidem.
41
Idem, Ibidem, p. 40.
42
Idem, Ibidem.
43
Idem, Ibidem, p.138.
44
Idem, Ibidem, p. 155.
45
Rodrigues, José Carlos apud Campelo, Cleide Riva. Ca(lei)doscorpos: um estudo semiótico do corpo e seus códigos. São Paulo: Annablume, p. 40.

460
A formação da sociedade brasileira tornou-se herdeira de uma “cultura de fronteira” 46 devido à condição híbrida e
babélica do colonizador português. Mas de forma marcante na cultura brasileira, no qual segundo ele predomina a
“carnavalização das formas”, uma abertura para a criação, para a “negociação de sentidos” e de sentimentos.
A “Invenção do Brasil”, enquanto território (des) territorializado, permite pensarmos o espaço de exploração e de
comercialização no processo de colonização permeado por um “enraizamento dinâmico”, através dos nomadismos
imaginários, da aventura, da troca de sentimentos, de memórias, tradições, etc. Atraído pelo longínquo, o colonizador
português tem seu imaginário movido pela errância. Atende aos apelos da existência (existere) através de suas pulsões
migratórias, conquistando e de modo concreto e simbólico territórios, sobretudo imaginários.
Supomos que o nosso processo de colonização ocorreu por meio de uma aventura fálica, aqui interpretamos o
“falo” menos como algo reduzido aos órgãos sexuais do que como significante velado, regado pelo mundo dos desejos e da
imaginação. A idéia de falo, na psicanálise do francês Jacques Lacan,47 refere-se à simbologia de poder e potência
eternamente ereta invadindo os espaços do desconhecido. Consideramos que numa postura fálica, o português atravessou os
mares e penetrou as terras ignotas do que seria chamado de novas terras, o que culminou com a mistura de códigos e
símbolos, em nossa transculturalidade e em nossas mestiçagens.
O feminino na cultura européia estava, no tempo dos “descobrimentos”, fortemente marcado pelo fenômeno
repressor dos processos inquisitórios e pela perseguição àquelas que eram denominadas “bruxas”. No “Novo Mundo”, estes
valores serão entrecruzados com as fortes imagens das diversas formas sociais, atitudes, sentimentos e desejos. Os lugares do
prazer estarão definidos pelos diferentes desejos e por uma tradição misógina herdada do Renascimento e marcante sob
diversas formas nos tempos modernos. O corpo nesse contexto era, de forma acentuada, visto como espaço de prazer, porém
ao mesmo tempo de culpa e marcado pelo ideal de mulher perfeita e assexuada.
Antes da edificação do Brasil, a imagem feminina que impregnava o pensamento português e mistificava o
território imaginário brasileiro, era a das mulheres mouras, belas e morenas. Segundo Freyre48, a figura da moura encantada
era um tipo “delicioso” de mulher, morena e de olhos pretos. Estava envolta num misticismo sexual, vestia-se sempre de
encarnado e estava sempre se penteando ou banhando-se nos rios ou nas “águas das fontes mal-assombradas”.
A apropriação do corpo, o desejo pelo belo já ruminava na alma portuguesa, antes mesmo da travessia de nossos
mares. Com isso, o corpo feminino esboça-se como um dos textos culturais no Brasil, unindo o tecido social de uma “mística
pagã” que se expande na coletividade preenchendo de uma “harmonia conflitual”. Se a letra inscreve o texto da cultura, é nos
seus movimentos que suas insígnias são impressas nos sujeitos.

A Encarnação da Mestiçagem Brasileira


Despimos mantos de imagens e discursos que revestem o corpo feminino na cultura brasileira, tocamos por meio da
leitura a pele do corpo social. Lemos o corpo feminino, num viés antropológico e histórico-social, como signo da inscrição
das mestiçagens na invenção dos mitos de fundação, como pele da cultura onde se desenham as fusões de diferentes etnias e
imaginários. Porém, também como texto onde se encarna a plurialidade de sentidos da cultura, espaço onde se trava a relação
entre o individual e o coletivo, ou seja, onde os contornos fugidios do corpo perpassam a memória da vida social através dos
toques e dos olhares desejantes dos sujeitos.
A presença do corpo feminino nos contornos da cultura brasileira encarna a mestiçagem como estrutura
antropológica. Nossas mestiçagens se referem a nossa fundação enquanto povo, mas também as nossas artes de fazer, nossas
misturas, fusões, sincretismos de idéias, valores, costumes e normas. Revelam as práticas que particularizam nossos hábitos
culturais híbridos.49 Expressam as maneiras de ser do corpo social brasileiro50, uma “metáfora maior” para o esboço de nosso
estar-junto.
Nossas mestiçagens são a estrutura de nossa psique coletiva, são mais do que fusões de diferentes grupos étnicos
expressam nossas misturas de culturas, histórias e imaginários. Sendo assim, estão: “No corpo e na alma muito antes de toda
novidade criada com a chamada pós-modernidade, globalização, internet, etc.” 51 Assim, o corpo feminino é de onde são
paridas nossas mestiçagens, dele é que, primeiramente, reconhecemo-nos em nossa condição mestiça. De acordo com Mary
Del Priore:
A história da condição feminina, da maternidade e das mentalidades sobre a mulher na Colônia passa pela história do
corpo da mulher. (...) As mulheres não foram e não são mais do que seus próprios corpos, corpos que são terras
desconhecidas, territórios impenetráveis e que foram durante séculos auscultados, mapeados, interrogados e
decodificados pela imaginação masculina52.

46
Santos, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, p. 154.
47
Lacan, Jacques. Escritos.
48
Freyre, G. Casa-Grande & Senzala.
49
Souza Filho, A. de. Somos Mestiços, e daí? In: Café Filosófico. Bauchwitz, Oscar F. (org). Natal (RN): Argos, p.15.
50
Souza Filho, A. de. Les Metissages Bresiliens: imaginaire, quotidien et pratiques de mélanges dans la société brésilienne.
51
Souza Filho, A. de. Somos Mestiços, e daí? In: Café Filosófico, p.18.
52
Del Priore, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia, p.333.

461
O entrecruzamento de etnias e diálogos entre visões de mundo diversas esboçaram o corpo e a condição feminina, o
que não impediu que nele fossem impostos “a ferro e fogo” um adestramento de diferenças, que não deixa de fazer parte do
“processo civilizatório” no Brasil, a partir de sua colonização, orquestrados principalmente pelos “musculosos” instrumentos
de ação dos padrões ideais de comportamento como do discurso fisiológico-normativo da medicina sobre o “funcionamento”
do corpo feminino.
O corpo feminino assume no texto social diversas cores e torna-se um dos espaços onde tem sido marcado o
“trajeto antropológico” do imaginário, nas relações tecidas entre o ser humano, a natureza e o social, na construção da
existência. Desse modo, percebemos que “é a sucessão das epifanias e das evanescências corporais que garantem (...) o
perdurar da vida social”.53, além disso: “é essa a lição que se pode tirar dos adornos, ou das diversas modulações da
valorização do próprio corpo; elas fundam o corpo social, constituem, no sentido mais simples, sua economia específica”. 54
De acordo com Gilberto Freyre55, fazer sociologia no Brasil não é apenas um exercício intelectual ou um esforço de
pesquisa, mas uma aventura de sensibilidade na busca pela compreensão de emocional de nossas categorias locais. Assim,
interpretamos nosso “bambo equilíbrio de antagonismos” como reflexo de nossas mestiçagens que precisam ser entendidas
como códigos de nosso percurso histórico - social.
Portanto, assim como o conquistador desbrava os territórios desconhecidos, a pluma do escritor escorrega sobre a
página fria delineando o encontro entre culturas. O corpo encontra-se envolvido por uma constante interação entre o que é
exterior e interior, visível e invisível, material e imaterial, enfim entre as construções conscientes e inconscientes de uma
determinada sociedade, que se através da própria capacidade da sociedade de gerar imagens e se pôr em cena, pois:
Antes (...) que uma sociedade reorganize sua vida material (...) antes que ela tenha um projeto político-econômico (...)
precisa de uma potência imaterial, do simbólico, do inútil, todas as coisas que podem ser reunidas sob o termo
‘imaginário social’.56

O corpo tem uma mobilidade própria que o faz espaço ou lugar praticado de várias criações, pois o acariciam
múltiplos relatos. O corpo seja escondido, revestido ou desnudo, traz em si os vestígios das transformações culturais. Deste
modo, vemos o corpo como espaço de atuação de uma memória ancestral, ou seja, traz em si as crenças, as permanências e as
criações de um determinado contexto social.
Mesmo trazendo em si os parâmetros de uma sociedade movida por moralismos e costumes, os portugueses iniciam
suas conquistas através do corpo feminino, antes mesmo da exploração das terras e das riquezas. Assim, as primeiras imagens
de poder sobre a formação dos "mitos de origem", fazendo aqui uma alusão a Parker57, são esboçadas no corpo, adornado
pelas idealizações de mentes desejantes e sonhadoras diante das delícias de uma terra inspirada por Deus e o Diabo.
Se por um lado se aproximaram do povo indígena tolerando-os para amansá-los, com o intuito de tirar proveitos de
sua mão-de-obra e explorar a riqueza de suas terras. Por outro, como ressalta Paulo Prado58, os colonizadores se sentem
enormemente atraídos pelas índias, pois exalavam uma sensualidade que eles não conheciam nas mulheres européias, elas
assaltavam a imaginação dos recém-chegados pelos encantos da nudez total, movendo-os num jogo de interpretações
culturais e fascínio.
Portanto, enquanto espaço mítico e místico as imagens em torno do corpo feminino vão sendo reinventadas. O
corpo feminino reveste-se por um manto de imagens e discursos e a mística em torno dele começou a se formar nos relatos
dos primeiros textos sobre a vida brasileira, fazendo com que este assuma uma “transcendência imanente”.
Paulo Prado em seu Retrato do Brasil, escrito em 1928, ensaia sobre a tristeza brasileira. Deixa-se inundar por uma
nostalgia diante da paisagem brasileira. Seus relatos descrevem uma terra radiosa de povo triste, devido à luxúria e a cobiça
de seus descobridores. Para o autor, não havia no colonizador português intenção nenhuma de construir, mas de somente de
explorar. Sua inquietação migratória teria lançando ao mar os aventureiros e os degredados da sociedade européia. As
impressões de Prado sobre o Brasil é a de um país, originariamente, paradisíaco de verdura e de pujança pululante de terra
virgem, terra de esplendor, força e mistério da natureza, um maravilhoso achado. Terra desconhecida de largos rios cheios de
promessas, chão de flores caídas de todos os tons, “Exuberância de natureza tão nuançada de força e graça”.59 O autor irá
descrever uma visão do corpo baseado nas suas linhas harmoniosas exalando sensualidade na terra ardente, por isso retoma
vários trechos dos relatos de Caminha sobre as figuras graciosas que pelo encanto da nudez total delineavam uma paisagem
edênica, que assaltava a imaginação dos recém-chegados e propiciava as uniões sexuais de “pura animalidade”. Tudo isso
fazia o Brasil, na visão de Paulo Prado, uma terra de todos os vícios e crimes onde:
Tudo favorecia a exaltação do seu prazer: os impulsos da raça, a molícia do ambiente físico, a contínua primavera, a
ligeireza do vestuário, a cumplicidade do deserto e, sobretudo, a submissão fácil e admirativa da mulher indígena, mas
sensual do que o homem como em todos os povos primitivos, e que em seus amores dava preferência ao europeu,

53
Maffesoli, Michel. No Fundo das Aparências, p. 157.
54
Idem, ibidem, p. 162.
55
Freyre, G. Casa-Grande & Senzala.
56
Maffesoli, Michel. A Contemplação do Mundo, p.113.
57
Parker, R. Corpos, Prazeres e Paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo.
58
Prado, P. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: F Briguiet e Cia.
59
Idem, Ibidem, p.58-61.

462
talvez por considerações priápicas, insinua o severo Varnhagen. Procurava e importunava os brancos nas redes em que
dormiam, escrevia Anchieta. Era uma simples máquina de gozo e trabalho no agreste gineceu colonial60.

Em Gilberto Freyre encontramos as discursividades da cultura brasileira pelo o que se tornou por meio do encontro
da “trindade racial brasileira”. Em sua obra, mostra, principalmente, em Casa Grande & Senzala o quanto a sociedade
brasileira organizou-se numa intensa reciprocidade cultural, a imagem por ele construída é a de que a vida brasileira começou
quase como “intoxicação sexual”:
O Europeu saltava em terra escorregando em índia nua, (...) os padres da Companhia precisavam descer com cuidado,
senão atolavam o pé em carne (...). As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo
esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho.61

Além disso, Freyre ressalta a preocupação da mulher indígena com a higiene do corpo: “Antes do banho um gole de
cachaça com caju e às vezes um pelo sinal para guardar o corpo (...). O caju para limpar o sangue toda uma liturgia ou ritual
sanitário e profilático”.62
Os fatos primordiais que favoreceram a atuação do colonizador português, caracterizado mais como um “bambo
equilíbrio de antagonismos” do que um tipo unificado foram sua mobilidade e miscibilidade, e isto teria se acentuado com a
inserção da cultura negra no período colonial. As mulheres negras eram as amas de leite e tiveram um papel singular na vida
sexual do Brasil colônia. Freyre relata como é próprio da cultura dos africanos a necessidades de estímulos picantes, de
danças e pratos afrodisíacos e de orgias, isto sem contar a linguagem mole.
Um dos aspectos interessantes indicados em Casa Grande foi à descrição de Freyre de alguns anúncios do Diário
de Pernambuco, a partir de 1825, que demonstravam a definida preferência pelos negros e negras com boa altura e de formas
atraentes “bonitas de cara e de corpo” e com todos os dentes da frente. Assim, o corpo traz em si resquícios da cultura onde
está inserido, sendo portador do que confere sentido ao contexto cultural, refletindo seus rituais, costumes, mitos e
contradições.
Sabemos que a idéia da bunda como “paixão nacional” teve em Freyre um de seus grandes inventores63. Para o
autor esta surge não com as mulheres indígenas, que para ela não há indícios que tenham se feito notar, mas com as mulheres
de origem africana. Introduzidas no Brasil, no período colonial - século XVI - estas se destacaram, aos olhos masculinos,
como de nádegas protuberantes ou mulheres de bundas grandes e, portanto, sexualmente provocantes. Deste modo, o que
teria predominado o tipo de mulher, predominante no Brasil patriarcal e, ainda não superado, seria o ideal árabe de mulher
gorda e bonita, pois “para a satisfação de ardores sexuais o macho patriarcal brasileiro tinha, ao seu dispor - por vezes
defrontando-se com ciúmes de esposas ciosas de seus direitos conjugais - escravas, mucamas, morenidades em vários graus
de mulheres”.64 Gilberto Freyre considera que o ideário em torno da bunda como algo não superado no Brasil, segundo o
autor a miscigenação brasileira tornou-se tão vasta que a bunda das mulheres seria, talvez “a mais variada expressão
antropológica de uma moderna variedade de formas e nádegas”.65
Estas concepções de Freyre permanecem atuais ou são atualizadas, ainda que ao lado dos costumeiros estímulos
mediáticos em torno dos seios grandes, modelados pelos implantes exacerbados de silicone. Temos hoje o retorno aos
ideários do qual Freyre nos remonta através dos “tipos ideais” da ‘popozuda’, incentivados, por exemplo, pelos modelos da
calças que alimentam o desejo de levantar o bumbum das mulheres.66; ou das “turbinadas” incentivadas pelas diversas formas
de artificialização do corpo ou, por exemplo, através dos sutiãs denominados de Air Bag, por trazerem um canudo de plástico
acoplado a uma bombinha de ar para ser inflado conforme o desejo da cliente.67 O corpo feminino integra a fusão das
inscrições culturais e a nação encarnada, um dos espaços onde as ficções que garante a vida social se expressam. Através do
corpo se configuram os contornos da vida social:
A especialização do tipo físico e moral da mulher, em criatura franzina, (...), sensual, (...) gorda, prática e caseira, nas
sociedades patriarcais e escravocráticas, resulta em grande parte dos fatores econômicos, ou antes, sociais, que a
comprimem, amolecem, alargam-lhe as ancas, estreitam-lhe a cintura, acentuam –lhe o arredondado das formas para
melhor ajustamento de sua figura aos interesses do sexo dominante68.

As imagens sobre o corpo feminino quando associadas a um padrão de beleza e de uma sexualidade exacerbada se
inscrevem na linguagem historiográfica, sociológica, da mídia, etc., como uma construção imagética discursiva que se
sedimenta em representações coletivas que ultrapassam seus limites e passam a transcender a realidade. Mesmo não sendo a

60
Ibidem, p.89.
61
Freyre, G. Casa-Grande & Senzala, p.165.
62
Idem, Ibidem, p.183.
63
Freyre, Gilberto. Freyre, G. Uma Paixão Nacional.
64
Idem, Ibidem, p.2.
65
Idem, Ibidem, p.3.
66
Velloso, B. Trunfo de Popozuda: com a promessa de levantar o bumbum das mulheres, calça da Grife Gang viram uniforme de estrelas e frequentadoras de
bailes funk.
67
É só Bombear: sutiã para quem tem seios pequenos e cabeça de vento.
68
Freyre, Gilberto. A Mulher e o Homem. In: Sobrados & Mucambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 1º tomo. 3ª Ed, p.96.

463
imagem da nação brasileira, imprime-se como uma de suas figuras mais acionadas imaginariamente como parte do quadro
geral da sociedade. As ideologias em torno do corpo feminino se tornam fios que se cruzam mistificando a cultura.
De modo semelhante, compreendemos que a apropriação do corpo feminino assume na cultura brasileira formas
ritualísticas, reativando mitologias especificas e derramando em nosso processo histórico-social, uma potencialidade que se
satisfaz com mistificações em nossa aura coletiva. Esta nos pequenos gestos e modos de apropriação do corpo o regará de
sentidos. Assim, afastamo-nos das investigações redutoras que sintetizam o corpo feminino na idéia de exploração e
dominação. Entendemos este como espaço de criação social e, portanto aberto às possibilidades de resistências e
transgressões.
No período colonial, de modo geral esse corpo era coberto de valores religiosos que o marcavam pelos sentimentos
de pecado e culpa. Era um palco onde se digladiavam Deus e o Diabo. Pela dificuldade de inserção do pensamento
racionalizante na cultura portuguesa, o conhecimento que predominará na “economia das trocas linguísticas” no Brasil-
Colônia será o religioso, permeando o imaginário de sombras, encantamentos e aspectos flutuantes.
O corpo então se encontrava enfeitiçado e desta forma foi invadido pelo discurso da Medicina, mergulhado não na
razão, mas regulado pela moral religiosa e esboçando isso nas suas percepções sobre o funcionamento do corpo feminino.
Neste sentido, a historiadora Mary Del Priore, nos auxilia ao descrever que:
Além de investir em conceitos que subestimavam o corpo feminino, a ciência médica passou a perseguir as mulheres
que possuíam conhecimento sobre como tratar o próprio corpo. (...) Era também a crença na origem sobrenatural da
doença que levava tais mulheres a recorrer a expedientes sobrenaturais; mas essa atitude acabou deixando-as na mira
da Igreja, que as via com feiticeiras capazes de detectar e debelar as manifestações de Satã nos corpos adoentados. Isso
mesmo quando elas estavam apenas substituindo os médicos, que não alcançavam os longínquos rincões da colônia. 69

Essas mulheres que aguçavam o olhar buscando nas diversas plantas os signos das práticas de cura e cuidados com
o corpo eram rechaçadas tanto pelos médicos quanto pelos religiosos, pois eles entendiam que o sobrenatural era privilégio
de poucos e não para mulheres que invadiam esses espaços como benzedeiras e curandeiras.
O conhecimento científico produzido sobre o corpo referia-se, principalmente à reprodução. Os receituários e
manuais de cuidado com este eram, praticamente todos, marcados pelo interesse no útero e pela busca de sua funcionalidade.
O corpo feminino era um “receptáculo sagrado” que tinha apenas a finalidade de frutificar. Dos corpos femininos exalavam
temores e poder, pois estas (des) conhecidas eram consideradas verdadeiras aliadas do Diabo, enfeitiçadas e feiticeiras, como
nos esboça a historiadora Del Priore de modo bem esclarecedor:
Essa ponte com o sobrenatural significou mais do que simples processos de cura na ausência de médicos e doutores;
foi também oportunidade para as mulheres compartilharem saberes relativos aos seus corpos trazidos de áreas
geograficamente tão diferentes quanto a África ou a Península Ibérica. Foi uma oportunidade de entrelaçamentos
múltiplos, pois negras, mulatas, índias e brancas tratavam-se mutuamente, com gestos, palavras e práticas
características de cada cultura. (...) As mulheres que praticavam curas mágicas souberam romper com este círculo
asfixiante, restituindo a saúde e a vida. (...) Se evoluía contra o que considerava arcaísmos, ela não conseguiu,
entretanto, desfazê-los. Presa à crença de que o corpo feminino era um espaço de disputas entre Deus e o Diabo, a
ciência médica ratificava o pensamento mágico sobrem os poderes do corpo da mulher.70

Nesse esforço geral, no entendimento de alguns dos movimentos do corpo feminino em nossa cultura, saltamos
para algumas considerações de Luis Felipe de Alencastro71, sobre a sociedade brasileira no Império, na cidade do Rio de
Janeiro. Ele nos mostra refere-se a diversos anúncios de vendas de mucamas para alimentar os filhos do Império, estas eram
alugadas como amas-de-leite, sobretudo quando seus filhos haviam morrido. O leite dessas mulheres transformava-se em
renda escravista. Vários panfletos de anúncios também incentivavam o uso de dentaduras; o uso de perucas para esconder os
cabelos pixaim, que muito nos lembram os alisamentos de cabelo na sociedade contemporânea; Também havia a “Água dos
Amantes”, que garantia embranquecimento em até cinco dias; como anúncios de fotógrafos especializados em embranquecer
as pessoas mulatas ou negras.
No período republicano72, a associação entre o público e o privado teve sua expressividade através da figura da
mulher. Esta oscilava entre a representação idealizada, a depreciação e a expressão cômica. Sonhos e expectativas cercavam a
estranha República. As tentativas de representações positivas desta com a figura feminina irão fracassar, a maior notoriedade
será conferida às paródias em caricaturas visuais e verbais. Nestes discursos irão predominar a visão da mulher elegante ou
mundana, solene ou doméstica, corrompida ou sedutora, sempre no jogo ambíguo entre o regime e a figura feminina. Na
época da ditadura militar no Brasil, o discurso repressor terá como campo de ação nas mulheres que ousaram adentrar as
fronteiras da política o seu próprio corpo. Como nos lembra Ana Maria Colling73, que analisa este período através de alguns
depoimentos, a violência em si, consiste sempre numa forma de ação que se dirige ao corpo do indivíduo, buscando

69
Del Priore, M. Magia e Medicina na Colônia: o corpo feminino. In: História das Mulheres no Brasil. Del Priore, M. & Bassanezi, C. (org), p.81.
70
Ibidem, p.113.
71
Alencastro, Luís Felipe de. Vida Privada e Ordem Privada no Império. In: História da Vida Privada no Brasil: Império. Novais, Fernando (Org), p.64.
72
Saliba, Elias Thomé. A Dimensão Cômica da Vida Privada na República. In: Ibidem, p.290-365.
73
Colling, Ana Maria. “A Repressão e as mulheres: é no corpo que eles vão agir”. In: A Resistência da Mulher à Ditadura Militar no Brasil.

464
enquadrar seus gestos e suas condutas, um Vigiar e Punir, como diria Foucault. Neste processo a confissão será uma das
heranças cristãs que mais se difundirá como técnica para a obtenção da verdade, retirando-a da alma e do corpo.
Sendo o poder político, predominantemente masculino, as mulheres que arriscaram contestá-lo e tomar os seus
espaços sentiram no corpo a força do poder instituído. As formas de tortura, porém distinguiam-se, as mulheres eram,
geralmente, encapuzadas, despidas e observadas silenciosamente. Provocava-se ruídos, e algumas vezes, não havia o contato
físico. Somente os ruídos revelavam um poder que vigiava e punia expressando um encontro íntimo e terrível com um poder,
que se realiza, culturalmente, de forma distinta entre os sexos.
A imagem corporal ultrapassa os limites dos contornos do corpo, expande-se, torna-se um fenômeno social
impregnado de mitologias e revestido pelo manto de imagens que o compõem e o modelam de acordo com os movimentos do
corpo social. Toda construção cultural cria seus rituais, através dos quais são reativadas as mitologias produzidas
coletivamente. Estes na sociedade brasileira ganham maior expressividade através das produções discursivas e mediáticas, e
através delas, no corpo vemos a Nação sendo exaltada enquanto unidade na diversidade, em função de um sentimento comum
sintetizado na linguagem, nele transfigura-se um dos laços que conferem sentido à sociedade.
Tanto a circulação de bebida quanto de comida acabam sendo rituais de sacralidade das relações sociais, que
reforçam os sentimentos comuns e a sensibilidade mística de perdurância do laço coletivo. Atualmente os corpos de algumas
dançarinas são associados aos nomes de frutas ou outros alimentos, e tornam-se seus nomes artísticos, como: “mulher filé”,
“mulher moranguinho”, “mulher jaca”, “mulher melancia”, “mulher melão”, associações que se referem ao volume dos seios
ou das nádegas. As referências são tomadas como formas de colocar mais um produto no mercado do espetáculo ou como
indica um dos sites vistos: “mais uma fruta que chega ao mercado” 74.
O corpo feminino aparece associado à idéia da comida, como algo a ser devorado.75 Em O que faz o brasil, Brasil?
(1991), DaMatta mostra a associação entre comidas e mulheres na sociedade brasileira, o que exprime teoricamente sua
lógica contraditorial no, quadro diferente e complexo ao qual abriga-se o corpo feminino. Desta maneira, retomando algo que
Richard Parker também observa:
Assim como o falo toma forma como uma arma, um instrumento de força e violência potencial, o corpo da mulher
surge, através de um processo parecido de associação linguística, tanto como objeto dessa violência quanto
paradoxalmente, um local de perigo por si só.76

Todavia, o corpo feminino aparece também relacionado à comercialização de bebida, principalmente nas
propagandas publicitárias de cerveja, espalhadas em praticamente todas as cidades brasileiras. E tanto a circulação de bebida
quanto de comida (associação presente também na linguagem cultural) acabam sendo rituais de sacralidade das relações
sociais que reforçam os sentimentos comuns e a sensibilidade mística de perdurância do laço coletivo. Os costumes de certa
forma negociam no meio cultural com os sujeitos que os criam, numa “transcendência imanente”. Atuam revestidos de
sacralidade, moldam a vida cotidiana tal como a religiosidade é exaltada pelos rituais.
O corpo metamorfoseia-se como espaço de tradução cultural, encarna o processo de miscigenação como estrutura
antropológica da cultura brasileira. É marcado pelo enraizamento patrimonial, contudo reveste-se da valorização estética
através das formas de artificialização do corpo. Em suma, é um dos laços que religa o individual e o coletivo ainda que
conflituamente. Na sociedade brasileira, o excesso de exposição do corpo feminino nos carros alegóricos e nas produções da
mídia no cotidiano, faz com que peitos e bundas sejam vistos como ícones do prazer masculino. Porém, pensamos que não
cabe fixar esta questão ao fato de serem ou não as mulheres um objeto sexual, antes cabe observarmos como o corpo
feminino é um componente a mais que une e congrega a realidade brasileira, uma das expressões midiáticas mais eficazes da
cultura na criação de seus sentidos. Também é relevante pensar as tão enfatizadas campanhas sobre a exploração sexual da
mulher brasileira77, o que mobiliza esses discursos? Um combate a uma atitude misógina que está no estrangeiro ou que é
uma lógica interna do que dá sentido a cultura? Esse jogo de negociações não são perpassados também pelas imagens que se
definem culturalmente para a condição feminina? Toda essa discursividade da exploração sexual no Brasil, 78a ênfase quanto
a prostituição que tem ocorrido em todas as regiões do país, sobretudo no Norte e no Nordeste, de maneira mais expressiva,
não revelam que o tráfico de mulheres é mais do que uma transação comercial, trata-se de uma comercialização de imagens
que atravessam o local e o global, uma comercialização de imagens e de corpos que antes de se concretizar faz parte de um
imaginário coletivo? Não será que essa “criminalização” não é também uma das posturas ideológicas da cultura para
reprimir o desejo?79
O corpo feminino no imaginário da cultura brasileira surge nas mais diferentes instâncias, reatualizando “os mitos
de origem”; ratificando a invenção da beleza, e consequentemente sua mercantilização, como um ritual predominantemente
feminino; como também invocando a idéia do “cuidado de si”. Este se reveste tanto como uma imposição de valores e formas

74
Siqueira, Fábio. http://www.portaldasnoticias.com/fotos-conheca-renata-frisson-a-mulher-melao/.
75
DaMatta, R. Sobre Comidas e Mulheres. In: O que faz o brasil, Brasil?
76
Parker, R. Corpos, Prazeres e Paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. p. 67.
77
Prostituição: Brasil Lidera Exportações de Escravas Sexuais, p.15.
78
Pesquisa Nacional sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual (Pestraf), realizada por ONGs, a partir de um estudo
piloto da Organização dos Estados Americanos (OEA). Brasília-DF.
79
Héritier, Françoise. Obstacles et Blocages. De L´usage du corpos des femmes. In: Masculin/Féminin. II. Dissoudre la hiérarquie, p.288.

465
sociais e espaço de dominação sexual e social, como também pode ser visto como um meio possível de resistência: a partir da
consciência do sujeito sobre o uso do corpo e do cuidado de si.
O corpo feminino assume no texto social um dos espaços onde tem sido marcado o “trajeto antropológico” do
imaginário no Brasil. Tanto nas concepções teóricas, como nas produções mediáticas, encontramos ficcionalizações do corpo
que difundem e reinventam mitologias na cultura brasileira. As diversas formas através das quais o “inconsciente coletivo”
tatua-se no corpo, fazendo com que este atravesse as temporalidades como um lugar praticado. O corpo nessas
discursividades, e em suas constantes exposições cotidianas, não aparece de algum modo como um totem no qual se
configuram tabus? “Todo totem vive em tabu”, 80 afirma Paglia, é preciso tornar os tabus em totens, ou seja, torná-los
discutíveis, pensáveis, para isso é que nos aventuramos pelo o pensamento. Talvez seja preciso enfrentar coletivamente e pela
pluralidade de afetos e dos corpos todo e qualquer limite.81 Através do imaginário, inscrevem-se os rastros invisíveis da
cultura, encontramos as marcas, as cicatrizes e as possibilidades de fissuras nas redes discursivas que modelam e cobrem os
corpos. Por ser a terra onde estamos, o corpo é mais do que um espaço onde são tatuadas as leis da cultura. Nele também se
exprimem nossas relações com os outros e o que mais intimamente somos. Lugar praticado onde se aninha para além das
palavras e dos olhares o “quieto animal” humano, com seu “corpo fugidio no reino da penumbra”.82 No corpo está o que foi
‘vivido, impresso na pele, nos nervos, na carne’, e talvez só “borrando o corpo dolorido” pelas palavras e cicatrizes, como
apagamos as frases que não nos agradam é que talvez possamos entregá-lo sempre ao novo e às alegrias83.
Foucault indica o quanto é relevante possibilitar instrumentos para: “relações polimorfas, variáveis,
individualmente moduladas”, e afirma que é preciso abrir essa possibilidade, mas até mesmo diante dessa invocação de
pluralidade, é necessário ter atenção para que esta não se transforme em lei. O que pode ser existir são manifestações de
inventividades próprias:
É preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, por tal ou qual razão inteligíveis, mas
não necessárias. É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o
que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o
que se pode jogar e como inventar um jogo? 84

Na compreensão do que confere sentidos às cartografias dispostas entre homens e mulheres, entre masculino e
feminino, e nas demarcações corporais, observamos as colocações de Claúdia Lima Costa. Retomando o mito do leito de
Procusto ela busca esboçar os encarceramentos das relações entre os sexos, bem como mostrar os cárceres dos conceitos que
tentam dizê-los.
Na mitologia grega, Procusto era um gigante que ao receber as pessoas na sua estalagem as faziam deitar na sua
cama de ferro. Mas, ele exigia que os visitantes coubessem perfeitamente na cama, quando isso não era possível ele torturava
seus hóspedes, esticando-os até que tivessem o comprimento do leito. Caso, as dimensões das pessoas fossem maiores do que
a da cama, ele reduzia-lhes o tamanho, decepando a cabeça ou as pernas. Na simbologia do mito, o Um aparece como medida
de todas as coisas e revela a intolerância diante do outro, do diferente e do desconhecido. É a visão totalitária tentando
reduzir o tudo o que lhe escape e apareça como múltiplo e diverso.
Cláudia Costa85 indica os verdadeiros leitos de procusto nos quais as categorias muitas vezes se entrelaçam, não
alcançando as dimensões complexas, múltiplas e heterogêneas dos fenômenos analisados. Diferenças são efeitos da
imbricação de várias categorias de identidade social como raça, classe, etnicidade, nação, entre outras e que não podem estar
agrupadas sob a égide da diferença sexual ou unicamente de gênero. A identidade jamais será somente de gênero e está
permeada por posições múltiplas e variáveis existentes na vida social. O que desestabiliza a noção de identidade como algo
coerente, unitário e fixo. Identidades e diferenças são lógicas produzidas pela linguagem e encarnadas nos corpos na
construção e desconstrução de representações.

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80
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81
Maffesoli, Michel. A Sombra de Dionísio: contribuição a uma sociologia da orgia, p. 55.
82
Noll, João Gilberto. Canoas e Marolas, p. 98.
83
Santiago, Silviano. Em liberdade uma ficção de Silviano Santiago, p. 31.
84
Foucault, Michel. Da amizade como modo de vida.
85
Costa, Cláudia Lima. O Leito de Procusto: gênero, linguagem e as teorias Feministas. In: Cadernos Pagú (2) p. 161.

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Usos e construções de imagens representativas sobre a sensualidade da mulher


brasileira em um contexto migratório
Gleiciani Fernandes
Universidade de Lisboa
[email protected]

Resumo: Esta proposta de trabalho é parte de uma pesquisa em curso com mulheres imigrantes brasileiras em Lisboa que exercem
actividade profissionais como empregadas de mesa, vendedoras de pronto-a-vestir ou no atendimento ao público em geral. Tem como
objectivo perceber como estas agentes sociais lidam em suas experiências quotidianas com as imagens representativas sobre a mulher
brasileira, imagens estas que tem relações directas com os estereótipos da mulher alegre, sensual, quando não, associadas à prostituta. Busca-
se compreender as estratégias encontraras para lidar com um espaço laboral que exige simpatia e ao mesmo tempo com uma imagem
negativa de uma corporalidade brasileira, mais flexível e mais sensual.
Os dados até agora obtidos revelam que estas imagens representativas sobre as brasileiras têm um papel decisivo na sua relação com o
“outro” e também como percebem o “nós”. Surgem determinadas implicações que as afectam em escala profissional, pessoal e até mesmo
afectiva. Porém, estas mulheres não são meras receptoras de uma imagem “exotizada/erotizada” sobre a mulher brasileira, que permeia o
universo simbólico português marcado por várias imagens representativas sobre o povo brasileiro, elas também (re)criam suas próprias
representações encontrando estratégias hora de reforço, hora de negação dos estereótipos.

A pesquisa que aqui se apresenta tem como eixo central a experiência vivida pela mulher brasileira na Região
Metropolitana de Lisboa. Tem como campo empírico um dos universos mais significativos de sua vida quotidiana: o mundo
do trabalho. Debruça-se um olhar investigativo sob àquelas que trabalham como empregadas de mesa e vendedoras em lojas
de pronto-a-vestir. Buscar-se-á compreender como estes actores sociais lidam com as imagens representativas que lhes são
atribuídas e como (re)criam suas próprias imagens.
Estas reflexões partem de uma pesquisa que se iniciou em 2006, ano que comecei a acompanhar o dia-a-dia de
mulheres brasileiras imigrantes. Desde este período trabalhei em restaurantes e lojas que me proporcionaram uma experiência
única em termos pessoais, e o mais importante, trouxe-me uma riqueza inigualável em dados etnográficos. Estes momentos
vividos, acompanhando diariamente a trajectória do grupo estudado deu-me oportunidade de realizar a técnica metodológica
da auto-etnografia. Esta perspectiva consiste no pesquisador documentar um grupo a partir da sua própria experiência
individual, relacionando-a com a história social. Uma das características deste método é, segundo Denzin (1989), a de que o
escritor não adopta a posição de um estrangeiro objectivo, convenção de escrita comum a etnografia tradicional, ele torna-se
um pesquisador íntimo (Hodkinson, 2005). Alguém que além de observar, também vivencia as práticas em campo. Portanto,
as experiências de vida do auto-etnógrafo assumem papel de destaque que, como ressalta Hayano (1979) proporciona
vantagens ao pesquisador por sua auto-identificação com grupo, uma alta adesão interna e o reconhecimento tanto por si
como pelo grupo do qual faz parte.
A oportunidade de trabalhar em actividades comummente ocupadas por brasileiras e viver muitas das experiências
típicas do brasileiro imigrante foi decisiva na maneira com que lidei com a prática etnográfica. Esta proximidade com o
objecto estudado faz lembrar o que Bourdieu (1980:30) fala sobre familiaridade no trabalho de campo: a familiaridade, que
não se adquire nos livros, com o modo de existência prático daqueles que não têm liberdade de colocar o mundo à distância

468
pode ser assim, simultaneamente, o princípio de uma consciência mais aguda da distância e de proximidade real, uma espécie
de solidariedade para além das diferenças culturais.”
Os dados até agora obtidos foram determinantes para compreendermos como a imigrante brasileira faz usos das
imagens representativas sobre a identidade do povo brasileiro, que é sempre associado a simpatia e a sensualidade e como
elas percebem a si próprias diante do outro.

1. Quem são esses actores sociais.


1.1 A imigração brasileira em Portugal
A presença de brasileiros em Portugal é relativamente antiga, pois já em 1960 constituíam uma das maiores
comunidades estrangeiras no país (Bógus, 2007). Após um período de estagnação entre 1960 a 1980 no número de residentes,
em meados de 1980 a entrada de brasileiros no país tomou novo fôlego. A chamada primeira leva caracterizava-se por ser um
movimento de profissionais qualificados (dentistas, publicitários, informáticos, etc.). Durante o processo de preparação à
integração plena na (então) Comunidade Europeia, profissionais altamente qualificados do Brasil foram contratados para
prestar assistência técnica e treinamento para portugueses. (Feldman- Bianco, 2002:387). Este perfil sofreu mudanças
significativas após 1998/1999, quando o número de imigrantes aumentou consideravelmente e estes inseriram-se em
seguimentos menos qualificados do mercado de trabalho. (Malheiros, 2007). Alguns estudos já apontam que hoje há um
número considerável de brasileiros com pouca escolaridade e oriundos da classe média-baixa e trabalhadora:
A maioria das pessoas é pobre e com baixa formação escolar. Há mais empregados de mesa que dentistas, mais
músicos que professores de ginástica, mais jogadores de futebol que todas as categorias profissionais liberais juntas.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística português (INE), para ter-se uma ideia, dos 1.334 pedidos de
atribuição de estatuto de residente em 2000, 56% era de indivíduos com ensino básico ou secundário, 16% de
analfabetos e apenas 18% de portadores de diploma de curso superior. (Machado, 2003:27).

São muitas as justificativas para o movimento migratório dos brasileiros, e uma das principais razões é de carácter
económico. Segundo Margolis (1994), que realizou estudo sobre imigrantes em Nova Iorque, há várias razões para o
crescimento da diáspora brasileira. Entre estas, destacam-se alguns factores históricos que ajudam a compreender este
fenómeno migratório que teve grande crescimento em meados das décadas de 1980 e 1990. A autora cita, por exemplo, a
grave crise económica pela qual passou o Brasil neste período, onde a inflação atingiu níveis elevados, chegando a uma
média de 84% ao mês. Outra autora que investigou a experiência dos imigrantes brasileiros nos Estados Unidos sintetiza: “Se
tivesse que resumir os motivos das migrações dos jovens brasileiros para os Estados Unidos, diria que é predominante a
busca de ascensão social que lhes foi barrada no Brasil” (SALES, 2005). No caso dos imigrantes que escolheram Portugal
como destino as razões não são muito diferentes.
Os brasileiros são actualmente a maior comunidade estrangeira residente em Portugal com 66.354 cidadãos
legalizados, como informa os dados do o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras1. Na realidade existe uma estimativa de que
esse número chegue aos 100 mil2, tendo em conta o grande número de pessoas sem a devida autorização de permanência no
país. Estão espalhados em sua maioria pelas cidades de Lisboa, Porto e Faro. São predominantemente mulheres, confirmando
uma tendência mundial de que o êxodo feminino tem mudado suas características, sendo hoje não só para reagrupamento
familiar, mas também um movimento em resposta à inserção da mulher no mercado de trabalho.

1.2. A imigrante brasileira


Uma das principais características dos fluxos migratórios actuais é a feminização. Há alguns anos atrás, a imigração
era vista como um fenómeno predominantemente masculino. Actualmente, sabe-se da importância da participação feminina
nos processos migratórios e que as experiências de homens e mulheres imigrantes são diferentes, porém não há muitos
trabalhos voltados a entender as “especificidades do processo de adaptação e quotidiano da mulher imigrante” (PADILLA,
2007)
Por muito tempo acreditou-se no papel coadjuvante da imigração feminina ressaltando-se apenas como frutos de
processos de reunificação da família. Mas na actualidade sabe-se que a mudança no mercado de trabalho tem acarretado
alterações significativas, pois diariamente, aumenta o número de mulheres que tomaram a iniciativa de emigrar sozinhas
(Kofman,1999). O crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho e o seu protagonismo na chefia da família
tendem a delinear um novo perfil da participação da mulher nas decisões familiares reflectindo na escolha por emigrar.
As imigrantes brasileiras acompanham este decurso e é crescente a estimativa que cada vez mais estas mulheres
partam do Brasil sozinhas. Mesmo as que vêm acompanhar o marido conseguem assumir um importante papel no contexto
familiar, pois participam activamente na sobrevivência financeira da família. Uma grande parte está inserida no mercado de

1
Para ver reportagem completa aceder:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080714_brasileirosportugal_jr_ac.shtml (acesso em 03/09/08)
2
Ver notícia da casa do Brasil em:
http://www.casadobrasil.info/spip.php?article243&debut_articles_rubrique=8 (acesso em 03/09/08)

469
trabalho e colabora juntamente com o marido nas despesas familiares. Em alguns casos, percebe-se que mesmo que tenha
sido o marido a tomar a decisão de emigrar, as mulheres assumem um carácter emancipador, principalmente aquelas que
trabalham e contribuem para a renda familiar. Este é o caso de Maria Cláudia, uma das brasileiras entrevistadas nesta
pesquisa. Natural de Santa Catarina, veio a Portugal para reunir-se ao marido que tinha chegado meses antes. Hoje, os dois
trabalham na mesma actividade, e, mesmo havendo uma discrepância salarial entre os dois, Maria Cláudia tem um importante
papel na renda familiar.
Em outros casos, onde é a mulher quem decide mudar de país, é comum os laços com o país de origem
permanecerem, pois continua seu papel de importante apoio financeiro aos que ficam. Isso acontece com Érica, uma paulista
de 40 anos, que sonha em terminar de pagar os estudos do filho e trazê-lo para Portugal.
Segundo alguns estudos, o perfil da imigrante brasileira é basicamente de jovens que, em grande parte, imigraram
sozinhas e que trabalham em nichos específicos do mercado de trabalho, geralmente em actividades voltadas para o
atendimento ao público, (restaurantes, cafés e lojas), no sector de limpeza e auxilio a idosos. Uma parcela significativa é
proveniente dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. No entanto, observou-se um
crescimento do número de mulheres naturais de Goiás, Rondónia e de alguns estados do Nordeste brasileiro. (Wall & Nunes
& Matias, 2005; Diniz, 2004).
Todas essas mulheres convivem diariamente com um aspecto muito significativo na experiência migrante: as
imagens e representações sobre a identidade brasileira. Segundo Padilla (2007) “o tema da imagem da mulher brasileira em
Portugal, em directa relação com o estereótipo da prostituta, não pode ser ignorado quando se fala da brasileira imigrante em
Portugal”, e por esse motivo “existe uma reclamação generalizada quanto à maneira como são vistas e tratadas na sociedade
receptora. Pois o facto de serem mulheres brasileiras e o estereótipo associado a isso trazem-lhes muitas vezes
constrangimentos” (DINIZ, 2005). Esta imagem associada a prostituta tem consequências directas e indirectas (Padilla, 2007)
na experiência quotidiana, que muitas vezes comprometem a inserção no mercado de trabalho e as relações afectivas dessas
mulheres.

2. Imagens representativas sobre a imigrante brasileira:


Como já foi assinalado, uma das características mais marcantes da segunda vaga de imigração brasileira para
Portugal é a inserção em actividades profissionais que exigem baixa qualificação. Sabe-se que grande parte desempenha
tarefas que não exigem formação académica ou grau mais elevado de especialização. O antropólogo Igor Machado (2003), na
sua pesquisa realizada com imigrantes brasileiros na cidade do Porto, propôs que um número significativo desta população
está directamente ligada à actividades vinculadas ao que ele chama de mercado da alegria, ou seja, trabalham em empregos
que envolvem a animação (como músicos e dançarinos) e o atendimento ao público (empregados de mesa e balcão). Neste
sentido, o autor afirma: “os empregadores portugueses pressupõem que, de alguma forma, os brasileiros são mais adequados
para qualquer profissão que exija o trato com clientes, por conta da simpatia, cordialidade e alegria que esperam de qualquer
brasileiro.” Ainda segundo o autor, “toda imagem sobre o Brasil, seja por parte de brasileiros ou de Portugueses, é marcada
pela ideia de um corpo brasileiro, de uma corporalidade específica, mais sensual, mais flexível, mais doce, mais malandra,
mais feliz.” A simpatia brasileira torna-se uma necessidade no mercado português e, por isso, muitos imigrantes assumem
essa imagem como condição para ser inserido no mercado de trabalho, passando a exercer profissionalmente essa simpatia,
locados em actividades que exigem contacto com o público.
Nesta pesquisa, como já foi referido, direccionei o olhar investigativo para as mulheres imigrantes que
desempenham este tipo de actividades. Porém, prefere-se adoptar a conceptualização teórica mercado da simpatia, pois
acrescento a este perfil profissional as empregadas que cuidam de idosos e crianças. Portanto, a categoria mercado da
simpatia tenta dar conta dessa camada profissional que também pressupõe uso de cordialidade e simpatia, mas não
necessariamente a alegria. Por questões metodológicas, as interlocutoras escolhidas para este trabalho são imigrantes que
trabalham basicamente como empregadas de mesa e balcão, empregadas de cafés e as prestadoras de serviços a idosos.
Segundo Padilla (2007), os brasileiros em Portugal desfrutam duma etnicidade própria e por este motivo há na
sociedade portuguesa a ideia de que os brasileiros são simpáticos, como se a simpatia fosse uma qualidade inerente e quase
genética. Desta forma, a simpatia e a afinidade linguística facilitariam a inserção do brasileiro em actividades no mercado da
simpatia. Porém, Machado (2007: 173) chama-nos a atenção para o que ele denomina de processo de exotização. Em suas
palavras:
Estes processos são fenómenos sociais de efectivação dos estereótipos - têm relação íntima com a sua produção - mas
vão além da mera constatação da sua existência. Esses processos referem-se não apenas à imposição de imagens
estereotipadas a determinadas populações, o que poderíamos chamar de «orientalismos», mas também à forma como
determinadas imagens sobre o outro são construídas e passam a ter autonomia simbólica, num processo de
«encarceramento simbólico» dos nativos.

Assim sendo, os brasileiros não seriam apenas meros receptores dessas imagens essencializadas e construídas à sua
revelia, seriam sim agentes activos e também protagonistas no reforço sistemático desses estereótipos. Esta população
submete-se a estas representações para ter sucesso em sua inserção no mercado de trabalho, mas também lhes dá novas
roupagens, criando e recriando suas próprias imagens. O autor indica que a forma como os brasileiros, na cidade do Porto,

470
organizam sua «vida colectiva» permite entender como eles progressivamente vão se tornando «exóticos», no sentido
determinado por um universo simbólico português abarrotado de imagens sobre os brasileiros (Idem, 2007:173).
Observou-se que, no caso das mulheres brasileiras residentes na Região Metropolitana de Lisboa, estas imagens
representativas sobre o brasileiro, e particularmente, sobre a mulher brasileira têm papel decisivo em suas relações tanto
profissionais, como pessoais e até mesmo afectivas. Segundo Malheiros (2007: 35), as mulheres brasileiras parecem ter-se
tornado as principais vítimas dos estereótipos da sociedade portuguesa, que tende a «exotizar» a imagem do(a) brasileiro(a),
sendo frequentemente vistas como «exóticas e fáceis», quando não, associadas à prostituição. Estas imagens representativas
sobre as brasileiras têm um papel decisivo na sua relação com o “Outro” e também como percebem o “Nós”. Na passagem a
seguir, retirada de um dos fóruns do Orkut, pode-se verificar que imagens representativas têm consequências directas e
indirectas no dia-a-dia dessas mulheres. A proposta do fórum era falar sobre os preconceitos, então Joana inicia o seu relato:
Olha me aconteceu uma agora, que sinceramente fiquei de cara, entra um casal na loja, deve ter ai 50 anos, e quando
vêm que sou brasileira lá vem a conversa de sempre: És brasileira? Porque saiu do Brasil um país tão grande para vir
para um país tão pequeno? Mora aonde aqui? Tive que responder ao inquérito e ainda ouvir a esposa a dizer que
Portugal só ta tendo gente que não presta, Cabo-Verdianos, ucranianos, brasileiros, brasileiras só na prostituição, tive
que lhe dizer: calma lá, sou brasileira e não sou prostituta! Não é só as brasileiras que são prostitutas. Ela me disse que
eu se for para outros países da Europa não vou ver portuguesas se prostituírem, e que não sei aonde aqui em Portugal
mandaram vir brasileiros para cá, se fosse ela não aceitava uma coisa dessa, onde já se viu Portugal aceitar isso, aí tive
que lhe dizer: Se todos pensarem assim, como ia ser a vida dos Portugueses que vivem fora de Portugal. Olha, tive que
virar as costas porque senão eu ia brigar feio, e estava dizendo que no Brasil só marginal a matar as pessoas, tive
mesmo que virar as costas. Sei que no Brasil tem muita coisa que não presta, a violência está demais, mas que prazer
tem uma pessoa dessa a falar isso para mim, será que não vê que nós sofremos com isso, será que acham que só no
Brasil tem prostituição e violência?
(Joana, 06/01/08)

Oi Joana! Você tem toda razão...estou há tantos anos aqui e ainda sofro alguma discriminação...os homens acham que
somos artigo de feira...sabes como é, aquela imagem que somos demais...boas de cama....as mulheres nos
odeiam...porque acham que toda brasileira é prostituta....(pura inveja)....e quando vêm que somos decentes e que
estamos aqui para trabalhar na boa na honestidade.... sem estar na prostituição....acabam por nos pegar com outras
coisas...como a bandidagem no nosso pais...ou a violência... pobreza ...e quando eles vêm e insinuam que passamos
fome no Brasil.. É…tens que dizer...ok... É mau, mas arroz e feijão sempre tem! Mas sabes o que mais minha
linda....isso tudo é inveja porque falem o que falarem...Nós somos o melhor povo do mundo... Não existe povo tão
alegre... tão amigo... enquanto que aqui eles se preocupam com as aparências....nós com uma linguicinha na brasa...
uma cervejinha.... e um bom pagode...fazemos a maior festa.....e isso ninguém tira do nosso povo!
(Bel, 16/01/08)

Estas duas passagens são interessantes para ilustrar o que acompanhei durante todo o meu trabalho de campo.
Mostram que as brasileiras lidam com as imagens representativas sobre a mulher de forma plural. Elas podem aperceber-se
aprisionadas (Machado, 2007) pois, “para a mulher comum, esta imagem de prostituta tem consequências directas e
indirectas, no dia-a-dia…” (Padilla, 2007) e traz uma grande carga emocional que interfere directamente na sua relação com a
sociedade portuguesa e com os outros brasileiros. Ou podem também usar das imagens representativas como afirmação de
uma identidade própria do brasileiro e dela em si. Quando Bel diz: Mas sabes o que mais minha linda....isso tudo é inveja
porque falem o que falarem...Nós somos o melhor povo do mundo... Não existe povo tão alegre....tão amigo , ela está a
reforçar que a imagem do brasileiro alegre e simpático é uma distinção, ou seja, ela, através do estereótipo, se reafirma como
pessoa e como pertencente a um grupo.
Todas elas parecem perceber que esta imagem da brasileira simpática é um factor que facilita a sua inserção em
algumas actividades profissionais. Érica disse-me em entrevista informal em Dezembro de 2007: se fosse outra, uma
portuguesa, por exemplo, não a trataria como eu a trato. Ela se apegou a mim, porque eu cuido dela. Nunca aproveito minha
folga toda, porque tenho pena dela ficar sozinha . Neste discurso verifica-se como ela percebe a si mesma, a partir da sua
diferença enquanto profissional brasileira em oposição a trabalhadora portuguesa; e por outro lado, como ela atribui sua
permanência no emprego, em função de seu diferencial: a simpatia e à dedicação à patroa.
Portanto, essas representações sobre o brasileiro têm um importante papel na experiência quotidiana do imigrante,
não só em contexto laboral, mas principalmente como o próprio brasileiro se vê a si mesmo e percebe-se diante do outro.
Machado (2007) fala que o imigrante necessita fazer uma constante avaliação da sua centralidade em relação aos demais
imigrantes, ou seja, existe uma certa disputa para estabelecerem diferenciações entre si e para chegar à questão de quem é
mais ou menos brasileiro. Ele usa o conceito de jogo da centralidade para caracterizar o que acontece com os imigrantes na
cidade do Porto no contexto do mercado de trabalho. Para o autor, “a questão é quem é mais ou menos brasileiro, ou seja,
quem exacerba mais sua “brasilidade”, de acordo com os estereótipos vigentes em Portugal sobre o Brasil e os brasileiros.”
(p. 174). O que há “é uma constante avaliação, por cada imigrante, da sua própria centralidade em relação aos demais
imigrantes.” (p. 174). Desta forma, a imagem central é precisamente a representação exotizada de uma identidade brasileira
mais alegre, simpática e sensual.
A ideia de jogo da centralidade proposta por Igor Machado (2007) não é completamente válida para as mulheres
brasileiras residentes na Região Metropolitana de Lisboa e que trabalham no mercado da simpatia. No caso das mulheres
com quem trabalhei, esta atribuição identitária não é inteiramente aplicável. O que percebi foi que esta centralidade aspirada

471
pelos imigrantes no Porto referidas pelo autor, nem sempre é desejada pelas mulheres que investiguei. Se é possível aplicar
uma metáfora, a minha proposta é que pensemos num jogo de espelhos semelhante à proposta de Caiuby Novaes (1997) com
relação aos Bororo do Brasil Central, referida por Lepri (2005: 450) quando diz que segundo essa autora [Caiuby Novaes], a
auto-imagem é determinada pelo modo segundo o qual um grupo ou indivíduo percebe a si mesmo como objecto da
percepção de um outro. O caso dos Esse Ejja [pesquisados por Lepri] dá apoio à ideia de que a auto-imagem é múltipla,
relacional e mutável tanto do ponto de vista do observador quanto do indígena . Desta forma, fui percebendo ao longo da
investigação que as minhas interlocutoras ora tinham interesse em se aproximar dessa “brasilidade”, ora queriam distanciar-
se dessa imagem. E esta relação dúbia com as imagens dos brasileiros eram determinadas pela forma como percebiam suas
experiências quotidianas em relação às demais brasileiras e/ou à sociedade portuguesa. Ou seja, as entrevistadas ora
reflectiam, ora eram reflexo dessas imagens estereotipadas, construindo-se assim a sua identidade a partir de jogos de
espelhos. A relação aqui pode ser entendida não como negação dessa identidade colectiva que é atribuída aos brasileiros, mas
sim, como um jogo, onde se pode desejar está tanto perto como longe.
Fredrik Barth (1969) defende que as identidades não são fixas e mudam no decorrer do tempo, construindo-se
através da interacção com o grupo. Para este autor o sentimento de identidade é necessariamente construído como resposta à
experiência adquirida ao longo de sua vida através do seu contacto com o mundo. No exemplo que utiliza sobre um jovem
paquistanês (Barth, 2003) que emigra para sociedade norueguesa, ele afirma que o jovem lutará contra os crescentes
estereótipos da sociedade acolhedora em relação aos paquistaneses “com as quais lida de forma pessoal, sendo confrontado
com inúmeras escolhas nas suas relações com a comunidade paquistanesa, cada vez maior e dividida por atitudes e facções.”
Ou seja, “o posicionamento do jovem e o seu fundo de cultura – de conhecimento, competências e valores – são específicos e
produto da sua experiência, encontrando-se em transformação, enquanto a sua identidade étnica, conforme manifestada
dentro e fora da fronteira, evolui constantemente”. (Idem, 2003:23/24). Este caso citado é uma forma de apresentar que as
fronteiras (boundaries) entre determinados grupos étnicos são marcadas por (re)construções de identidades plurais.
Através de alguns exemplos etnográficos que recolhi durante a investigação, proponho que a maneira como as
mulheres brasileiras pesquisadas percebem suas experiências quotidianas e (re) constroem suas identidades também são
plurais e não se restringem somente a um desejo de aproximação à centralidade. Estes actores sociais possuem múltiplas
identidades, e por tanto, indivíduos com uma pluralidade identitária (Hall, 1997). As suas relações se constituem para além da
visão unilateral e hegemónica do “nós/outros”, são sim estabelecidas em função do “nós” que as diferenciam “deles/delas”
(Barth, 2003). O que quero dizer é que, as relações em jogos de espelhos se baseiam em pluralidades que estão em constante
transformações, que tanto podem ser de desejo de afastamento da “brasilidade” como de aproximação, dependendo
basicamente das imagens que lhe são reflectidas ou que são reflexos a partir da sua relação com as outras brasileiras ou com a
sociedade portuguesa. O meu campo revelou que quando a mulher brasileira pode, se assim lhe for pertinente, aproxima-se
dessa centralidade ou “desempenhar” uma “brasilidade”. Neste sentido, Goffman (1993:49) sugere que
“O desempenho de uma prática de rotina apresenta, por meio da fachada, certas pretensões bastante abstractas quanto à
audiência, pretensões que provavelmente serão expostas ao longo do desempenho de outras práticas de rotina. Trata-se
de um dos modos através dos quais um desempenho é socializado, moldado e modificado de maneira a adaptar-se à
interpretação e expectativas da sociedade em que se apresenta.(…) a tendência dos actores sociais para proporcionarem
aos seus espectadores uma impressão a diversos títulos idealizada” .

Podem, a exemplo do pesquisados por Machado (2007), desejar abrasileirar-se como estratégia para inserção no
mercado de trabalho ou uma conquista redes sociais ou ainda delimitação das relações de amizades. Assim sendo, monta-se
estratégias de reforço sistemático dos estereótipos, exaltando-se a simpatia de modo a mostrar-se como “autêntica brasileira”.
(Machado, 2007). Mas podem querer distanciamento dessas imagens que lhe associam a simpatia e sensualidade,
encontrando estratégias para não serem identificadas como prostitutas.

3. Estratégias no jogo dos espelhos


3.1 Corpo como expressão
Pina Cabral (1996: 204) assinala que “o self não é uma identidade sociocultural, mas sim um campo de identidades
cruzadas, onde entram em jogo várias identidades socioculturais.” É neste sentido que proponho pensarmos o caso das
mulheres brasileiras residentes em Lisboa, tendo em vista que “o processo de criação da pessoa social está
inextrincavelmente relacionado com a sucessão de identificações com o outro” (Pina-Cabral, 1996: 205) e que “o processo de
identificação está marcado por uma dinâmica associada à sua complexidade. Por um lado, a pessoa identifica-se com outrem,
e, por outro lado, reconhece que existem características que a distingue desse outro.” (PINA-CABRAL, 1996: 205)
Neste sentido, o argumento de Richard Jenkins (1996) baseia-se na ideia de que a compreensão do self conjuga-se
na prática simultânea de uma auto-definição interna e a definição de si oferecidos por outras pessoas. Ou seja, uma
identificação dialéctica interno-externo como um processo pelo qual todas as identidades individuais e colectivas são
construídas. Em suas palavras, “não só nós nos identificámos – naturalmente – como também identificamos aos outros e

472
somos identificados por eles, na dialéctica interno-externo entre auto-imagem e imagem pública. (Idem, 1996: 22)3. Desta
forma “identidades individuais e colectivas são sistematicamente produzidas, reproduzidas e implicada uns nos outros.”
(Idem, 1996:25)4
A partir dessa dinâmica de associação complexa, baseada na sua identificação com o outro e ao mesmo tempo no
reconhecimento de suas singularidades é que penso o jogo de espelhos. Para mim, a mulher brasileira passa por um processo
de reflexão e refracção de imagens, ou seja, ela tanto recebe imagens que lhe são oferecidas no meio em que ela vive, como
ela consegue reflectir e desviar estas imagens de acordo com a sua experiência quotidiana.
Neste jogo de imagens reflectidas e refractadas o corpo e a suas expressões assumem grande importância. Sobre o
corpo e a expressão Viegas (1996) mostra que segundo as ideias propostas pela hermenêutica de Dilthey (1986) “o corpo faz
parte do processo de relação do sujeito com o mundo que o rodeia: o corpo faz sentido por intermédio de expressões”
(Viegas, 1996: 155), assim, “o corpo é expressão de sentidos, como tantos outros elementos do mundo”, já que as expressões
“abrangem uma grande amplitude de fenómenos desde manifestações corporais como o sorriso, a objectos matérias e textuais
como um panfleto.” (Viegas, 1996: 155). Para além das críticas feitas a postura hermenêutica que fazem ultrapassar essa
abordagem do corpo como expressão (Csordas, 1984 e 1994; Douglas, 1995; Toren, 1993), a autora sugere pensarmos nas
intersubjectividades (Turner, 1985) como experiências vividas, voltando assim a base da teoria de Dilthey (1986). Para ela:
“seguindo esta perspectiva de que a realidade que nos é dada de modo imediato é a experiência vivida e que esta resulta de
acções volitivas, cognitivas e afectivas que decorrem no contexto de processos intersubjectivos, não está excluída a
possibilidade de o corpo ser, em si, uma experiência.”
É nesta perspectiva que pensamos a relação corpo, expressão e experiência vivida como fundamentais para se falar
da experiência quotidiana de mulheres imigrantes brasileira. Uma das práticas que pude observar durante a pesquisa de
terreno foi como o corpo pode revela-se “agente de informações” e como estas podem se transformar em expressões do jogo
de espelhos. Há por parte das minhas interlocutoras um certo controlo sobre o corpo e o que pode ou não ser expressado por
ele. Este controlo pode expressar-se ora como distanciamento, ora como aproximação a brasilidade. Mas a relação com o
corpo também pode ser um prenúncio do self como campo de identidades cruzadas.

3.2 A Brasileira e o corpo


Observei ao longo de minha pesquisa que as brasileiras do mercado da simpatia mantinham uma maneira muito
especial de lidar com o corpo. Cheguei muitas vezes a questionar-me se essa valorização do corpo não seria uma resposta às
imagens representativas sobre a mulher brasileira que enfatizam a simpatia e sensualidade, e que pode levar a uma
aproximação ao estereótipo da prostituta, onde estes “estereótipos não são preconceitos ou julgamentos prévios individuais,
mas reflectem crenças culturalmente partilhadas sobre outros grupos” (Leoussi, 2001:218)5. E por isso, ao se sentirem
estigmatizadas enquanto indivíduo pertencente a um grupo elas adoptassem uma postura mais efusiva diante daquilo que as
pode identificar enquanto brasileira. E neste sentido pode-se entender aqui como uma “compreensão inconsciente” de que a
“sua auto-imagem individual contém uma imagem da sua nação” (Elias, 1996: 353)6
Existe entre as minhas interlocutoras uma “postura brasileira” de se estar no mundo. Esta “postura brasileira” realça
a ideia de que “é uma das características mais elementares dos seres humanos não possuírem somente uma imagem de si
mesmos como pessoas individuais que podem dizer “eu” mas também uma imagem de si mesmos como membros de grupos
em relação aos quais podem dizer “nós”. (Elias, 1997:316). Desta forma, a brasileira pode expressar no seu andar, na sua fala,
na sua roupa ou no seu jeito de estar, toda a sua relação com o Brasil, com Portugal e a sociedade portuguesa e com os outros
brasileiros.
Muitas das vezes fiz o exercício de tentar encontrar nas pessoas da rua essa identificação através do que eu ouvia
minhas interlocutoras falarem e do que eu mesmo percebo de como é uma mulher brasileira. Tentava identifica-las através
do seu andar, da roupa, da maneira de estar. Quando encontrava alguém que se encaixava neste perfil procura ouvir a sua voz
e assim comprovar ou não se era brasileira, valendo-me da proposta de que “imagens de grupos «nós», como a nação,
pertencem à auto-imagem de indivíduos e que, ao mesmo tempo, a estrutura da personalidade de qualquer indivíduo
representa uma das inúmeras variações sobre um padrão nacional comum” (Elias, 1997:316). Esse exercício foi interessante
num contexto onde não é tão fácil identificar o brasileiro em função de um fenótipo próprio, tendo em vista a diversidade
existente no Brasil. A menos que o observador tenha “sentido de jogo” (Bourdieu, 2004b).
Por isso, é importante percebermos como as imagens representativas da mulher brasileira podem interferir na sua
relação com “nós” e com os “outros/eles (as)”. Estas representações geralmente estão associadas às expressões do corpo,
onde a sensualidade e a alegria podem ser identificadas através dos gestos e indumentárias do corpo.

3
Tradução da pesquisadora: “Not only do we identify ourselves, of course, but we also identify others and are identified by them in turn, in the internal-external
dialectic between self-image and public image.” (p.22)
4
Tradução da pesquisadora: “(…) individual and collective identities are systematically produced, reproduced and implicated in each other” (p.25)
5
Tradução da pesquisadora: “Stereotypes are not individual prejudgments or prejudices, but they reflect culturally shared beliefs about out-groups. (Leoussi,
2001:218)
6
Tradução da pesquisadora: “(…) their individual self-image contains an image of their nation” (Elias, 1996: 353).

473
3.3 A roupa como expressão de uma identidade e aproximação à centralidade
Observei que algumas de minhas interlocutoras tinham uma relação muito interessante com a roupa. O vestuário
tanto pode significar a recuperação de uma identidade através da estabilidade que sua materialidade oferece, como pode ser
uma fonte reguladora de si própria e de outras brasileiras e esses elementos juntos podem caracterizar a construção do self a
partir de identidades cruzadas.
É importante assinalar que para muitas das mulheres brasileiras com quem convivi a roupa possui um significado
especial. Para muitas delas pode ter vários significados, desde a memória até uma postura a ser seguida. Diziam-me sempre
da diferença do vestuário brasileiro para o encontrado em Portugal.
Como salienta Parkin (1999), há alguns estudos a documentar que as pessoas que se deslocam da sua terra
transportam consigo não só aquilo que precisam para a subsistência como também procuram carregar artigos com valor
sentimental “(...) no qual ambos inscrevem e são inscritos pelas própria memória do self e da personalidade.” (Idem, 1999:
304)7. É neste sentido que se observa a importância de alguns objectos materiais para as imigrantes brasileiras em terras
estrangeiras. Objectos que de imediato podem parecer meros artigos de uso diário, mas que para as imigrantes entrevistadas
são permeados de valores para além do económico e que contribuem para “manutenção da identidade e auto-noção de
pessoa” (Sarró, 2005).
O meu interesse sobre a importância de objectos pessoais para as imigrantes brasileiras surgiu a partir de uma
entrevista em que uma catarinese falava da roupa como uma lembrança do Brasil. Desde este momento passei a observar com
mais atenção a relação das minhas amigas brasileiras e das outras entrevistadas com as roupas. O carinho com que falavam
de suas roupas e o valor dado a peças do vestuário foram essenciais para que eu os compreendesse para além de meros
utensílios e assim, reflectir sobre questões como identidade, noção de pessoa e identidade nacional.
É comum ouvi-las falar da dificuldade em comprar calças em Portugal e por isso o apreço que têm às roupas
trazidas do Brasil. Para mim, como para Sónia Sílvia (1999: 41) “os objectos materiais, da mesma forma que as pessoas,
acumulam biografias culturais”. Portanto, estes objectos assumem carácter para além de serem mercadoria de consumo. O
apreço revela uma identificação com o passado à semelhança das cestas dos refugiados angolanos e suas práticas de
adivinhação que são modo de saber, modo de fazer, modo de trabalho-labor e modo de recordar (Sílvia 1999). Deste modo,
os objectos brasileiros são uma espécie de modo de vestir, modo de identificar e modo de recordar.
Ao longo do período de estadia fora do seu país, os objectos assumem também um carácter de afirmação da
identidade e auto-noção de pessoa. Em contexto em que são obrigados a partilhar casa, comida e intimidade com outros
imigrantes, as roupas são talvez os únicos objectos não partilhados e portanto, a única coisa que faz manter sua
particularidade, sua própria noção de “eu”.
Mas o vestuário não tem apenas essa característica de reafirmação de identidade individual, ela também pode
expressar uma maneira como as brasileiras (re)constroem identidades colectivas, o que tem a ver com a sua identificação
com o Brasil e com os outros brasileiros. Ao me falarem da roupa brasileira como mais bonita e que melhor se adequa ao
corpo elas reforçam a sua distinção diante dos outros e sua identificação com o seu país de origem. E deste modo desejam a
aproximação à centralidade. A roupa pode identifica-las como brasileiras e fazê-las aproximar-se de um ideal de brasilidade.

3.4 As performances e a aproximação à centralidade


Da mesma forma que a roupa também pode distinguir uma brasileira, os gestos também o fazem. E estes podem ser
importantíssimos para aquelas que trabalham no mercado da simpatia. Neste sentido, o sorriso e a expressão alegre podem
ser uma distinção e tidos como uma qualidade positiva do brasileiro e em especial das mulheres brasileiras. O sorriso para a
brasileira assume papel parecido com o que nos foi apresentado por Hochscild (2003) no seu estudo sobre as hospedeiras, em
que para estes actores sociais a simpatia e a expressão do rosto através do sorriso são parte do seu trabalho e portanto exige-
se uma coordenação do self e do feeling de modo a que o trabalho possa parecer fácil (cf. Hochscild, 2003: 08).
Neste caso, o corpo assume-se como instrumento de um desempenho expressivo ou exercício de auto-controlo, pois
“quando o indivíduo se apresenta perante os outros, o seu desempenho tenderá a integrar e a ilustrar os valores oficialmente
reconhecidos pela sociedade” (Goffman, 1993: 49/50), fazendo com que ele sinta a necessidade de transmitir o que melhor se
espera dele. No caso das brasileiras, espera-se delas simpatia, e elas por sua vez comunicam, através do sorriso, a imagem
que delas é esperada. E, assim, aproximam-se das imagens representativas sobre o povo brasileiro.

3.5 O controle sobre o corpo para um distanciamento da centralidade (a fala, os gestos, a roupa)
Mas a mulher brasileira também pode desejar o distanciamento da brasilidade dando outros reflexos ao jogo de
espelhos. Esse desejo aparece quando na sua experiência quotidiana não lhe convém ser associada a imagem corrente sobre
as brasileiras. Esta relação tem muito a ver com o modo como elas se percebem a si mesmas, à sociedade portuguesa e às
suas conterrâneas.

7
Tradução da pesquisadora: “which both inscribe and are inscribed by their own memories of self and personhood” (Parkin, 1999:304)

474
Para exemplificar o que estou a trabalhar, posso citar dois acontecimentos interessantes que percebi no campo. O
primeiro foi uma constante em todo o meu percurso, e consiste em que algumas de minhas interlocutoras mudavam a forma
de falar de acordo com as situações que iam aparecendo no quotidiano. Não era apenas uma adaptação às expressões
portuguesas, o que acontecia era a tentativa de falar o mais parecido possível com o modo particular de falar do povo
português. Isso é bem interessante porque ora eu as ouvia falar com “sotaque brasileiro”, ora as ouvia falar de forma
aproximada ao “sotaque português”, e isso dependia do ambiente em que estavam e quais eram os nossos interlocutores.
Durante algumas vezes presenciei tanto Fernanda como Marta, por exemplo, mudarem a forma de falar. Geralmente, quando
estávamos em ambiente público essa similaridade com o sotaque português aparecia com mais força, mas isso dependia dos
interlocutores, do assunto e de quem estivesse nas proximidades. Às vezes até poderia ser um brasileiro ou português, ou
qualquer cidadão que estivesse ao nosso lado, mas dependendo do contexto e do que elas queriam expressar, usavam o
sotaque português, ou o mais parecido com o do Brasil.
Outro acontecimento deu-se em uma vez em que encontrei Tatiane e mais duas amigas brasileiras. Elas iam para
um almoço de confraternização entre amigos. Estávamos todas no metro, quando ouvimos um rapaz brasileiro a falar no
telemóvel. Ele falava alto e usava expressões bem brasileiras e algumas vezes palavras de baixo calão mais comummente
usadas no Brasil. Durante o percurso todas as três criticavam a maneira de falar e de estar do rapaz. Diziam: “É por isso que
temos má fama”, “Como fala bobagem!”, “Fala tão alto!”.
Estes dois exemplos etnográficos ilustram que também se pode desejar afastamento da brasilidade e que o corpo
pode ser um instrumento para expressar essa vontade. Isto vai depender do contexto e de qual imagem se deseja reflectir ou
refractar. Esse controlo da fala e essa regulação do outro depende da circunstância em se passa o acontecimento e de quais
são os actores envolvidos.
Um outro exemplo que também pode ser aqui apresentado é o do papel da vestimenta. Ao contrário do que
acontece quando se deseja a aproximação, o controle da roupa neste caso pode significar uma regulação do que se deve ou
não usar em determinados momentos. É tão exigente consigo mesma como com as outras brasileiras relativamente ao
controlo sobre a aparência, onde a roupa não é mais valorizada como instrumento para alguma individualização enquanto
pessoa. O que acontece é que passam a anularem-se como pessoa através do controlo do que deve ou não ser usado como
vestimenta. Isso me foi muito presente quando ouvia certas críticas feitas por minhas interlocutoras sobre a forma de vestir de
algumas brasileiras. Isabel, por exemplo, sempre fazia críticas negativas sobre as roupas de algumas brasileiras dizendo que
“algumas brasileiras realmente se vestem como prostitutas”. Várias vezes ouvi críticas feitas por elas sobre o tamanho das
saias, ou o decote da blusa de outras brasileiras, sempre justificando a crítica como “assim dão motivo para nos chamar [as
brasileiras] de prostituta.”
A exemplo das reclusas estudadas por Cunha (1996), a postura também era objecto de controlo mesmo se por via
da auto-inibição, sendo regulada a maneira de portar-se em determinados ambientes. Dependendo do local, uma brasileira
que não se continha em mostrar a sua expressividade e seu “jeito brasileiro” de se comportar, poderia ser alvo de olhares
reprovadores que inibem e “aprisionam” o “eu”.
Portanto, o controle tanto da fala, como da roupa, como da postura pode ser uma forma de desejarem
distanciamento. Quando se auto-controlam e controlam outras brasileiras através do olhar de reprovação elas fazem-no como
uma estratégia de distanciamento da centralidade, indicando que a mulher brasileira nem sempre pode expressar a sua
brasilidade, que isso deve ser bem avaliado de acordo com as circunstâncias.

4. Conclusões preliminares
A partir do exposto, este trabalho foi um esforço de perceber como a imigrante lida com as imagens representativas
sobre a mulher brasileira, imagens essas que são sempre baseadas na ideia de uma sensualidade e simpatia típicas da
brasileira. Neste processo, elas próprios criam e recriam as suas próprias imagens. Para as mulheres brasileiras com quem
trabalhei a aproximação ao jogo da centralidade (Machado, 2007), ou melhor a aproximação às imagens representativas
sobre os brasileiros baseadas nos estereótipos, depende muito de sua experiência quotidiana e do que a mulher brasileira quer
expressar. Nem sempre a mulher deseja esta aproximação e por isso as suas posturas diante da sociedade portuguesa e de
outros (as) brasileiros(as) dependerá de como a sua identidade é construída através de um jogo de espelhos. Pode querer
reflectir imagens ou pode querer refractar, ou seja, pode pretender uma aproximação às representações estereotipadas sobre
as brasileiras ou um distanciamento delas.
É importante assinalar que estamos falando de um ambiente onde a mulher brasileira é vista como mais simpática,
mais alegre e sensual e neste sentido associada à prostituição. Os dados etnográficos revelaram que as mulheres que
trabalham no mercado da simpatia8, ora desejam ser associadas à simpatia tida por “inerente” ao brasileiro – por fazer parte
do seu estereótipo nacional – ora desejam um distanciamento desta (e do estereótipo). O jogo de espelhos torna-se essencial
para estas trabalhadoras que necessitam da cordialidade e simpatia no seu local de trabalho e em outros ambientes, mas que
precisam de avaliar até que ponto devem transparecer essas qualidades.

8
É importante ressaltar mais uma vez que neste trabalho não dediquei atenção as profissionais do sexo.

475
É neste sentido que surge a ideia do controle do corpo. O corpo, visto aqui como expressão e instrumento de
comunicação, é um dos meios utilizados para reflectir ou refractar imagens no jogo de espelhos. Quando deseja corresponder
a uma imagem representativa dos brasileiros baseada numa identificação enquanto povo alegre e simpático, a mulher faz uso
da expressão corporal adequada. O sorriso, por exemplo, é um dos recursos que pode ser utilizado para recriar uma imagem
que deseja passar ao outro. As vestimentas também podem servir como aproximação a uma identidade colectiva quando se
usa, por exemplo, uma roupa mais sensual, bonita e confortável, que são parte da imagem corporal estereotipada da
brasileira. Mas também o corpo pode expressar o desejo de afastamento à centralidade. O controlo da fala, por exemplo,
pode servir de instrumento para se tentar fugir de uma identificação com a “brasilidade”. Quando se tenta aproximar de um
sotaque português a partir de uma avaliação do contexto e dos interlocutores para quem fala, a brasileira deseja afastar-se
dessa centralidade. Mais uma vez as vestimentas podem também servir de exemplo, não mais para aproximação, mas sim
afastamento às imagens estereotipadas sobre a brasileira. Através do controlo do que vestir, procura roupas menos decotadas
e curtas para que não seja associada a mulher fácil e/ou prostituta.

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Homossexualidade na Reclusão Feminina: Discursos, Representações e Práticas.


Liliana Rodrigues
Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho
[email protected]

Resumo: Este estudo teve como objectivo analisar os discursos, representações e práticas das reclusas de dois estabelecimentos prisionais,
face às questões da homossexualidade vivida e observada nas prisões femininas. Para tal, aplicou-se entrevistas sobre a homossexualidade
em contexto prisional, em liberdade entre outras questões consideradas relevantes para o estudo. Um dos estabelecimentos prisionais em que
foram aplicadas as entrevistas foi no Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, situado na região norte de Portugal, Porto e
o outro foi a Penitenciária Feminina Madre Pelletier, no sul do Brasil, Porto Alegre. Algumas conclusões surgiram a partir deste estudo.
Constatou-se que as opiniões, sentimentos e práticas em relação à homossexualidade em meio prisional poderão estar intimamente
relacionada com os princípios que regem cada prisão em que as reclusas cumprem pena, neste caso em especifico por se tratar de
estabelecimentos prisionais de países diferentes, que comportam culturas diferentes e ao mesmo tempo essa diferença também é observada
atrás das grades. Ainda, observou-se que o modo como a homossexualidade é vivida e percepcionada numa prisão feminina é diferente de
uma prisão masculina. Constatou-se, finalmente, que a homossexualidade na prisão é uma realidade de todos os tempos, tendo-se percebido
uma visibilidade crescente a inquietação de estudar esta realidade no feminino.
Palavras-chave: Homossexualidade; Lésbicas; Reclusão Feminina.

INTRODUÇÃO
A presente investigação consistiu em conhecer como a homossexualidade é percebida, discursada e vivida por
mulheres que cumprem pena no Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, Portugal e na Penitenciária
Feminina Madre Pelletier, Brasil.
Uma das questões que impulsionou este estudo, foi a tentativa de lançar para os palcos da sociedade um tema que,
vulgarmente, é apenas pensado no masculino. Cada vez mais se tem vindo a conhecer a existência de comportamentos
homossexuais dentro das prisões, no entanto, parece que o foco de estudo incide, sempre sobre o sexo masculino,
“esquecendo” que as mulheres também se encontram nessas condições e têm viveres e acções próprias da condição feminina.
Sempre foi interesse da autora estudar as questões de género e da orientação sexual aos olhos da Psicologia da
Justiça, na tentativa de alargar a consciência social de cada individuo face à homossexualidade nas prisões femininas.
Encarar a mulher como agente e responsável por aquilo que faz é uma necessidade que se impera, mas também é
importante dar a conhecer que a mulher lésbica e presa pela sua condição de género, de orientação sexual e de reclusão é
cada vez mais subjugada. Conhecer como as reclusas percepcionaram e viveram a realidade da homossexualidade segundo as
suas próprias lentes, considerando os seus discursos os “mais” válidos para qualquer discussão de estudos, foi a razão
principal de toda a investigação.

HOMOSSEXUALIDADE NA PRISÃO – ALGUNS ESTUDO


Numa primeira análise, será crucial, dar a conhecer alguns estudos desenvolvidos, sobre o conceito da
homossexualidade, vivido nas prisões, de forma a poder, de algum modo, sustentar os pressupostos defendidos não apenas

479
através da presente investigação, mas também pelos estudos, anteriormente, realizados, de forma a tornar um pouco mais
consistente o referido estudo.
Segundo Clemmer (1940) todos os reclusos estariam sujeitos a um processo que se intitula “prisão-escola-do-
crime”, pelo facto de mostrar que, em todas as prisões, se enfatiza e desenvolvem os aspectos criminogéneos e desviantes
dentro destas, e, que nenhum recluso estaria imune aos “factores universais” do enclausuramento (cit. por Cunha, 1990).
Clemmer (1940) referiu, ainda, que a rapidez e intensidade de prisionização não seriam iguais, para todos os
reclusos, sendo que desenvolveu uma estratificação dos tipos de interiorização da cultura prisional, através de factores como
a duração da pena, a integração social pré-penal, a manutenção dos laços sociais com o exterior, durante o período de
reclusão, a perfilhação dos grupos de reclusos primários, a participação no jogo e em actividades sexuais desviantes, entre
outros (cit. por Cunha 1990).
Por sua vez Wheeler (1961) ao acompanhar os reclusos, desde a sua entrada, até ao momento da liberdade observou
que os reclusos, no momento inicial, estavam em conformidade com as expectativas e valores do staff, no período intermédio
constatou uma não conformidade social e uma adopção dos códigos dos reclusos e na fase final, próxima da liberdade viu o
abandono dos valores da cultura prisional e o retomar das atitudes conformistas (cit. por Cunha, 1990).
Já Sykes e Messinger (1956) consideram que o código social dos reclusos desenvolver-se-ia em resposta às cinco
“pains of imprisonment” (dificuldades que decorrem das privações ocasionais pela reclusão), sendo elas, privação de
liberdade e sentimento de rejeição pela comunidade; privação material, relativa a bens e serviços; privação sexual, ou de
contactos heterossexuais; privação de autonomia, relacionada com a degradação estatutária; e por fim a privação da
segurança pessoal, dado que o convívio forçado com diferentes tipos de delinquentes expõe o individuo a vários riscos (cit.
por Cunha, 1990).
O código dos reclusos e o sistema social que ele rege ao atender aspectos como, por exemplo, a solidariedade, o
contrabando e a homossexualidade, surgiria mais como uma adaptação às condições da vida prisional, e funcionaria como um
amortecedor do choque que ela ocasiona, concorrendo para restaurar a auto-imagem e recuperar direitos básicos (Cunha,
1990).
Ward & Kassebaum (1964, 1965) evidenciaram a díade homossexual e descreveram as várias modalidades
relacionais que ela assumia, numa prisão feminina. O desenvolvimento homossexual corresponderia à resposta adaptativa
predominante à prisão, e a principal base da sua sub-cultura. Essa sub-cultura seria inexistente nos moldes em que,
inicialmente, foi constatada nos estabelecimentos prisionais masculinos, dada a não relevância de um código recluso,
traduzida na ausência de solidariedade de grupo e dos papeis do sistema tradicional, como por exemplo o “negociante”, o
“gorila”, o duro (cit. por Cunha, 1994).
Ainda segundo Ward & Kassebaum (1964, 1965) a homossexualidade é o mecanismo de ajustamento prioritário, se
não único, às privações prisionais. Encaram a homossexualidade como uma resposta promovida pela privação emocional, já
que consideram que as mulheres na sociedade em geral, seriam, emocionalmente, mais dependentes dos familiares e, por
outra razão, considerarem que as reclusas seriam incapazes de gerirem de forma autónoma a sua vivência na prisão e
enfatizam as componentes afectivas das relações entre reclusas, alegando que “as mulheres requerem mais apoio emocional
que os homens” (cit. por Cunha, 1990, p. 176). Ward & Kassebaum (1964, 1965) deixaram implícito também que havia
continuidade dos comportamentos na sociedade global e nas prisões, mas limitaram-se a utilizar os estereótipos psicológicos
que caracterizam as mulheres como infantis, frágeis e, emocionalmente, dependentes (Cunha, 1990).
Tittle (1969) evidenciou que na sub-cultura das prisões femininas em oposição à versão prisional masculina, as
mulheres ligavam-se a pequenos grupos ou a uma amiga preferencial, ao contrário dos homens presos, que supostamente
estavam ligados a agrupamentos de maior número (cit. por Cunha, 1994). “A homossexualidade começa por ser um dos
idiomas em que se exprime a não identificação de grupo” (Cunha, 1994, p. 146).
Propper (1976) defende que a homossexualidade numa prisão feminina basear-se-ia numa opção sexual das
reclusas prévia à reclusão e discorda dos resultados de Mitchell (1975) que, ao comparar um prisão regida pelos princípios de
segurança e disciplina com outra prisão orientada pelo principio de tratamento, encontrou uma maior percentagem de casos
homossexuais na prisão regida pelo principio de tratamento. Segundo Propper (1976) esta divergência de resultados não seria
explicada pela diferença de regime dos estabelecimentos prisionais, mas explicada pela variada proporção de reclusas com
uma história prévia de homossexualidade, maior na prisão com regime orientado pelo princípio terapêutico (cit. por Cunha,
1994).
Segundo Ibrahim (1974) a forma de encarar a homossexualidade feminina na prisão contrasta com a vivência
homossexual masculina na prisão, porque esta última é encarada como meio alternativo de satisfazer as pulsões sexuais, visto
tornarem-se inexequíveis as práticas heterossexuais normais (cit. por Cunha, 1994).
Ainda podemos considerar a sexualidade como uma construção cultural a partir do momento em que são
convocados dois modelos sociais da sexualidade vigentes, consoante se trate do universo em causa, feminino ou masculino.
Existe o modelo emocional e o modelo hidráulico, sendo este último modelo uma força pulsional incontrolável que compele
o indivíduo a procurar sujeitos para satisfazer os impulsos sexuais (Caplan, 1987; cit. por Cunha, 1990).
Algumas reclusas mostram uma moralidade tolerante no que diz respeito aos comportamentos homossexuais,
racionalizados como situacionais e decorrentes de carências afectivas, a maioria condena-os e não os encara como uma
sexualidade “verdadeira”. Estas mulheres possuem padrões morais tradicionais, cujas atitudes reflectem os pontos de vista
convencionais (Cunha, 1990).

480
Para além dos padrões morais tradicionais que explicam muitas das posições face ao comportamento homossexual,
existem também diferentes culturas e etnias que reprovam esse tipo de comportamento, sendo por exemplo o caso da
população Cigana, cujo padrões de vida e modos de estar convencionais, penalizam a homossexualidade ou os
comportamentos homossexuais.
Nas prisões femininas existem associações que configuram pares de amigas preferenciais, delimitados pela
intimidade, pelas confidências, pela estreita entreajuda, e pela partilha de bens trazidos pelas visitas.
Um outro tipo de ligações são os elos constituídos, pelo menos, por uma pessoa homo ou bissexual que se assumem
livremente como tal, que não negam o carácter sexual da presente relação e cujo envolvimento afectivo, é conscientemente
prudente e controlado. No entanto estas relações não são frequentes (Cunha, 1990).
Há ainda um tipo de relação entre reclusas que caracteriza uma parte significativa das existentes na prisão.
Corresponde a pares, cujo grau de estabilidade é muito variável. Essas relações iniciam-se através de ofertas, de cartas e entre
elas vigora o princípio de fidelidade, de exclusividade. Às vezes a relação destes pares tem um carácter assimétrico, ou seja,
uma das parceiras exerce dominância e autoridade sobre a outra, sendo, vulgarmente, atribuída a essas características
masculinas (Cunha, 1990).
Os pares supostamente homossexuais correspondem a reproduções de vínculos familiares e de relações de pertença,
reproduções que são alimentadas pela privação da família e de outros laços, aquando da entrada no sistema prisional, sendo
agravado, ao longo dos tempos, porque vai ocorrendo uma menor fluência das visitas, ficando as reclusas com pouco acesso
às relações do exterior das grades.
As privações ocasionadas pela prisão não podem ser consideradas como único factor explicativo das configurações
sócio-culturais que aí se desenvolvem e ao mesmo tempo como refere Giallombardo (1974) a natureza das respostas das
comunidades prisionais é “influenciada pela participação diferencial dos homens e das mulheres na cultura exterior” (cit. por
Cunha, p. 180).
Assim, as prisões não existem no vazio, elas reflectem a sociedade global, qualquer fenómeno a ser falado não se
deve circunscrever a estas instituições/organizações. No entanto, não podemos esquecer a especificidade de um fenómeno. É
importante encarar estas duas realidades não como posições opostas, mas considerando a possibilidade de existir cada uma
delas.

MÉTODO
Participantes:
Os sujeitos deste estudo foram 10 reclusas da Ala 3 do Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo,
Portugal e 10 reclusas condenadas da Penitenciária Feminina Madre Pelletier, Brasil. Estas reclusas foram seleccionadas
intencionalmente, tendo apenas uma condição em comum, serem condenadas, sendo que em Portugal incidiu-se apenas na ala
3, enquanto que no Brasil, foram reclusas condenadas de várias alas. Pretendeu-se que as reclusas a ser entrevistadas fossem
condenadas porque se considerou que à priori estariam mais tempo presas e dessa forma poderiam ter uma percepção mais
consistente e duradoura da realidade da homossexualidade na psisão.
Será crucial neste momento fazer uma caracterização, mesmo que breve, das reclusas deste estudo. De forma a
conhecer a sua realidade, facilitando, desta forma, uma melhor compreensão desta investigação.
No que diz respeito à idade actual das reclusas do estudo, esta está compreendida entre os 25 e os 57 anos. Das 20
entrevistadas, conheceu-se que 15 são solteiras, 3 casadas, 1 viúva e 1 divorciada/separada.
Na presente investigação temos reclusas de diferentes nacionalidades, sendo: 1 holandesa, 6 portuguesas e 3
brasileiras, no Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, enquanto temos 10 brasileiras de diferentes
estados do Brasil, na Penitenciária Feminina Madre Pelletier.
Ainda, das entrevistadas pôde-se constatar que estas possuíam um baixo nível sócio-económico e baixo nível de
escolaridade. As reclusas do estudo, tendo em conta o nível sócio-económico e de escolaridade é representativa da população
presa dos dois estabelecimentos prisionais, mas salienta-se o Brasil, em que o baixo nível sócio-económico e baixo nível de
escolaridade parece ser uma constante da realidade prisional brasileira, em especifico, no Madre Pelletier em Porto Alegre,
Brasil.
No que se refere ao tipo de crime cometido pelas reclusas do presente estudo, existe um predomínio no crime de
Tráfico E Outras Actividades Ilícitas. Considerando cada prisão, separadamente, em Portugal prevalece o Tráfico, existindo
também um crime de Condução De Veículos Sem Habilitação Legal e outra reclusa que cometeu crime de Burla Qualificada.
Das reclusas entrevistadas da Penitenciária Madre Pelletier houve 4 crimes de Latrocínio1, 2 crimes de Roubo2, 2 crimes de
Tráfico E Outras Actividades Ilícitas e 2 crimes de Homicídio.

1
É um tipo penal, em alguns sistemas jurídicos, derivado do crime de roubo (crime-fim), onde o homicídio é o crime-meio, ou seja, mata-se para roubar.
2
Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de haver-la, por qualquer meio, reduzindo à
impossibilidade de resistência, segundo o código penal brasileiro.

481
Instrumentos e medidas:
Foi utilizado o seguinte instrumento e/ou medida de avaliação: Um guião de entrevista, dirigidos às vinte reclusas,
tendo sido construídos após consulta de informação sobre o tema. O guião era constituído por questões como: Percepção do
número de lésbicas na prisão; Sentimentos, crenças/posições e comportamentos face à homossexualidade na prisão; diferença
ou semelhança entre a homossexualidade na prisão e em liberdade; homossexualidade e/ou comportamento homossexual
resultado da privação de uma imagem masculina; homossexualidade resultado da privação familiar e amigos; discriminação
na prisão; e por fim, gestão de conflitos.

Procedimento:
Houve dois momentos centrais de aplicação das entrevistas. Num primeiro momento foram aplicadas 10 entrevistas
às reclusas do Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, e no segundo momento aplicou-se 10 entrevistas
às reclusas da Penitenciária Feminina Madre Pelletier.
No primeiro momento aplicou-se as 10 entrevistas intercaladas com as respectivas transcrições dentro do
estabelecimento prisional e cada entrevista teve a duração média de 20 minutos.
No segundo momento a aplicação das entrevistas não foram intercaladas com as transcrições porque, as condições
da Penitenciária Feminina Madre Pelletier não eram adequadas para transcrever as entrevistas internamente, podendo
prejudicar o próprio funcionamento da prisão, dessa forma as transcrições foram feitas num local exterior à penitenciária. A
duração média das entrevistas foi de 20 minutos como em Portugal.
Da análise das entrevistas transcritas foram extraídas Unidades de Significado, que permitiram chegar a alguns
resultados e conclusões, uma vez que as mesmas correspondem a categorias que integram o corpo do referido estudo.

PRESSUPOSTOS DA ANÁLISE DE DADOS


A análise e tratamento da informação constituíram a fase posterior da presente investigação, sendo que se tentou
que o espaço de tempo decorrente entre a aplicação das entrevistas às reclusas não fosse muito distante da análise e
interpretação dos dados.
Adoptou-se uma metodologia qualitativa, ou seja investigação orientada para a descoberta, em especifico realizou-
se a análise de conteúdo. Os elementos e categorias de resposta bem como os padrões e as relações entre os dados recolhidos
só emergiram após a observação posterior da informação, não sendo pré-determinados pelo investigador (Miles & Huberman,
1994; Tesch, 1990).
Este processo de análise incluiu quatro fases distintas (Côté & Salmela, 1994; Côté et al., 1993; Côté, Salmela &
Russell, 1995b; Tesch, 1990). Numa primeira fase centrou-se na “criação de etiquetas” (“creating tags”), agrupando-se a
informação por conceitos que representavam adequadamente a transcrição das entrevistas, de modo a criar “unidades de
significado” (US). As US são segmentos de texto suficientemente compreensíveis por si só e contêm uma ideia, episódio ou
“segmento” de informação.
Na segunda etapa, observaram-se as relações entre as unidades de significado, comparando-as e agrupando-as em
áreas mais globais de informação, designadas por “propriedades”, tentando-se assim obter uma maior congruência entre as
várias US, que passavam a partilhar uma determinada característica em comum. O momento seguinte seguiu uma lógica
semelhante à anterior, realizando-se comparações e agrupamentos entre as propriedades, de modo a identificar pontos de
contacto e especificidades que as diferenciavam entre si, dando assim origem ao estabelecimento de “categorias”. A criação
de uma categoria implica aceitar que esta consegue englobar a informação fundamental incluída num determinado número de
unidades de significado com uma propriedade em comum. Na última fase, examinou-se o conteúdo de cada uma das
categorias estabelecidas, prestando-se, novamente, atenção às semelhanças e diferenças entre elas, através da comparação das
suas propriedades, averiguando-se a necessidade de as agrupar em “componentes” mais alargadas que explicassem de forma
mais adequada os diferentes domínios da informação.

RESULTADOS
Com a aplicação das vinte entrevistas pode-se definir 211 unidades de significado, 7 componentes e 19 categorias.
De salientar que as componentes que obtiveram um maior número de unidades de significado foram a origem da
homossexualidade e comportamento homossexual com 69 US; o lugar vivencial da homossexualidade com 37 US; e as
crenças/posições em relação à homossexualidade e ao comportamento homossexual com 35 US.
Já no que toca às componentes com menores unidades de significado encontramos a discriminação em relação às
lésbicas com 12 US; de seguida os sentimentos em relação à homossexualidade e ao comportamento homossexual com 15
US; depois os comportamentos/reacções em relação à homossexualidade e ao comportamento homossexual com 20 US; e por
fim a gestão de conflitos na prisão com 23 US.
Seguir-se-á uma descrição das componentes, referindo as respectivas categorias exemplificadas com excertos das
transcrições. Relativamente à primeira componente – sentimentos em relação à homossexualidade e ao comportamento

482
homossexual – esta é constituída por duas categorias que se referem como cada reclusa se sente perante a realidade
homossexual, são estas: sentimentos positivos e negativos.
Exemplo de US para a categoria “sentimentos positivos”: “Eu gosto de ser assim! Já vivi com um homem, mas não
estive bem e depois que eu estou com essa companheira minha, me sinto muito bem, desde então sou feliz. Muito!” (US
M.J.).
Exemplo de US para a categoria “sentimentos negativos”: “Ai… eu me sinto mal com a situação. Que nem na
minha galeria tem duas mulheres que praticamente, homem faz o papel de homem e a outra faz o papel de mulher. Só que a
gente se sente mal porque, né? Porque a gente sei lá, foi criada de uma maneira diferente, né? Então, eu fui conhecer essas
coisas na cidade, porque no interior não existe, né?” (US E.B.).
Da segunda componente “Comportamentos/ Reacções em relação à homossexualidade e comportamento
homossexual” faz parte as categorias “ Positivas” e “Negativas”. Aqui se pretende conhecer qual os comportamentos
adoptados pelas entrevistadas em relação à temática, se elas têm comportamentos homossexuais na prisão ou como reagem
aos comportamentos homossexuais na prisão das outras reclusas. Como exemplos temos respectivamente as seguintes
Unidades de Significado.
Exemplo de US: Sim, já vi. Eu virei as costas e segui o meu caminho. Não disse nada e nem tenho nada que dizer”
(US A.A.).
Exemplo de US: “Claro! Dão beijos, agarram-se, colam-se umas às outras, deitam-se e estão com a cela aberta.
Vejo-as despidas da cintura para baixo (…)” (US P.S.).
A terceira componente “Crenças/posições em relação à homossexualidade e ao comportamento homossexual”
incorpora duas categorias sendo que uma delas corresponde às crenças ou posições positivas face à realidade da
homossexualidade ou ao comportamento homossexual e a outra corresponde às posições ou crenças negativas. Considerou-se
posição/crença positiva, aquela que é mais considerada pela literatura ou ao nível dos direitos humanos.
Exemplo de US para a categoria “crenças positivas”: “Eu acho que tenho que respeitar as decisões das pessoas e
gostos das pessoas, mas agora acho que as pessoas também têm que respeitar as próprias colegas porque isto é um ambiente
fechado e temos que nos respeitar (…) (US P.S.).
Exemplo de US para a categoria “crenças negativas”: “Eu não acho bem. Deus fez o homem para a mulher” (US
A.M.).
No que diz respeito à quarta componente “Lugar vivencial da Homossexualidade” esta incorpora duas categorias,
sendo elas “em liberdade” e “na Prisão”. Corresponde à percepção das reclusas acerca da homossexualidade em liberdade e
na prisão, se era uma realidade análoga ou se havia alguma diferença, como como elas se sentiam e o que conheciam.
Exemplo de US para a categoria “em liberdade”: “Porque é difícil ser homossexual lá fora e assumir. Por causa da
sociedade e mais por causa da família, a família não aceita.” (US A.S.).
Exemplo de US para a categoria “na prisão”: “(…) aqui dentro tu tá restrito do mundo… não são as pessoas que te
vêem na rua, não são as pessoas que convive contigo. E aqui dentro só as pessoas que estão presas sabem, né? Tanto as
apenadas como os funcionários.” (US A.S.).
No que concerne à quinta componente: “Origem da Homossexualidade e comportamento homossexual” baseia-se
na percepção que as reclusas têm da origem da homossexualidade e esta componente incorpora quatro categorias, sendo elas,
quando nasce; privação afectiva/sexual; ausência de uma imagem masculina; e por fim vivência situacional. Quando se refere
à categoria “quando nasce” pretende-se evidenciar que a homossexualidade tem um carácter biológico e que não teve
nenhuma escolha. No que diz respeito à segunda categoria, privação afectiva/sexual se demonstra que pelo facto das reclusas
dentro do sistema prisional estarem privadas de afectividade/sexualidade com mais frequência do que em liberdade,
manifestam esse comportamento homossexual. A terceira categoria mostra que numa prisão feminina as pessoas que mais
convivem com as reclusas são mulheres, desta forma existiria um reduzido contacto com homens e este facto poderia levar à
origem do comportamento homossexual. A última categoria “vivência situacional” corresponde ao facto de estarem presas e
manifestam o comportamento homossexual, porque existiu um conjunto de situações que facilitaram essa pratica sexual.
Como exemplos temos respectivamente as seguintes Unidade de Significado.
Exemplo de US: “Eu sou desde criança assim, então quer dizer eu sou homossexual ai desde criança, entende?
Sapatão, eu desde criança que sou assim né, eu vivi em Psicólogos para me aceitar porque eu não me aceito ainda, já me
tentei matar e tudo. Porque é assim, elas pensam que é porque nós quer ser assim, não, é porque a gente nasce assim” (US
L.S.).
Exemplo de US: “Eu acho que tem a ver com o facto de tar aqui dentro. Carência bate, a distancia das pessoas
que… convive até com o marido ou a decepção do companheiro que quando cai aqui espera uma coisa e acaba acontecendo
outra. Abandono, traição e isso favorece a bissexualidade ou o bissexualismo.” (US A.S.).
Exemplo de US: “Eu vi várias que lá na rua não, lá na rua dizem que eram casadas e pelos vistos chegou aqui
dentro e… e teve um relacionamento aqui dentro com uma mulher e isso acho que não é por falta da família, acho que é por
falta, carência não da família, mas do homem, do homem mesmo. Que aí ela procura na outra mulher.” (US C.P.).
Exemplo de US: “(…) se encontram aqui dentro, daí de repente elas não se envolvem lá fora porque tem muitas
oportunidades. Tipo assim, de repente tirar uma curiosidade aqui dentro, acho que tem oportunidade e daí acontece que
muitas vezes gostam e tem umas que leva adiante e outras não.” (US J.S.).

483
No que toca à sexta componente “Gestão de conflitos na prisão” pode-se dizer que esta engloba duas categorias,
sendo elas, “diferenciada positiva ou negativamente” e “não diferenciada”. No que concerne à gestão de conflitos
diferenciada aqui se pretende evidenciar quando as reclusas são tratadas de forma diferente, tendo em conta o conhecimento
da sua orientação sexual, quer sejam penalizadas ou favorecidas. Já na gestão de conflitos não diferenciados se observa que a
gestão de conflitos é resolvida de igual forma, tanto para heterossexuais como para homossexuais, sendo que nenhuma tem
privilégios, nem punições injustamente. São tratadas de igual forma, porque, efectivamente, estão num sistema prisional.
Exemplo de US para a categoria “ diferenciada positiva ou negativamente”: “(…) lá a subchefe de lá colocou a
gente na mesma cela, porque nós conversamos, entendeu? Então eles lá entendem melhor, os guardas, a Directora, tudo lá
entende melhor” (US L.S.).
Exemplo de US para a categoria “não diferenciada”: “Eu nunca, assim dos guardas, das guardas, nunca. Me
trataram super bem, não é? Na minha frente, claro. Mas teve uma vez assim que acho que riam de mim, não sei… Mas não
me tratam mal, não” (US L.S.).
No que respeita à sétima componente “discriminação em relação às lésbicas” pode-se dizer que esta incorpora cinco
categorias: “reclusas heterossexuais ciganas”; “reclusas heterossexuais não ciganas”; “reclusas homossexuais ciganas”;
“reclusas homossexuais não ciganas” e a última categoria “reclusas em geral”. Num primeiro momento será interessante
referir que apenas surgiram unidades de significado das seguintes categorias: reclusas heterossexuais ciganas, reclusas
homossexuais não ciganas e reclusas em geral. As categorias: reclusas heterossexuais ciganas, reclusas homossexuais não
ciganas e reclusas em geral correspondem aos discursos discriminatórios que as reclusas têm em relação às lésbicas. Como
exemplos temos respectivamente as seguintes unidade de significado.
Exemplo de US: “(…) eu aqui em Santa Cruz do Bispo eu sofri mais, eu sofro mais aqui o preconceito do que lá em
Tires, que eu era de Tires. Desde que estou aqui eu sinto mais o preconceito do que lá em Tires. Por causa do meu jeito, do
jeito de me vestir, porque eu pareço muito com um homem né?! Lá em Tires não, lá tinha poucas Ciganas (…)” (US L.S.).
Exemplo de US: “Agora das reclusas aquelas que criticam acabam fazê-lo. Então. Esta ala é muito desequilibrada.
Tem muitos desequilíbrios. Há pessoas ai que critica e depois acabou fazer” (US M.C.).
Exemplo de US: “Acho! É… é mais a reclusas. Há reclusas aqui que não aceitam que vivem esse tipo de vivência”
(US A.A.).

DISCUSSÃO GERAL E CONCLUSÕES


A investigação realizada não apresentou resultados consistentes, visto que, depende em larga medida das
concepções que as próprias reclusas têm do mundo e a partir do momento em que se baseia nas percepções que elas mesmas
têm dessa realidade, não se poderá considerar este estudo como conclusivo, pois existe a consciência que os acontecimentos
se interpretam consoante as lentes conceptuais do seu autor.
No entanto e começando por expor os contrapontos do presente estudo, pode referir-se que nas cadeias, tanto no
Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, como na Penitenciária Feminina Madre Pelletier existem, alguns
pontos de contacto com as configurações relevantes na literatura sobre as prisões femininas.
No que diz respeito aos sentimentos em relação à homossexualidade e/ou comportamentos homossexuais observa-
se que no presente estudo não existem dados consistentes, sendo que neste aspecto as posições são bastante divergentes. Das
entrevistadas, encontram-se umas com sentimentos positivos ou neutros em relação à homossexualidade, enquanto que outras
manifestam uma postura depreciativa. Será interessante referir que os resultados corroboram com a literatura porque, se
considera que as reclusas que têm uma posição mais negativa são as mais velhas e as ciganas, enquanto que aquelas que têm
sentimentos mais positivos referem-se às mais jovens.
No que concerne à prática da homossexualidade e às reacções face a esse comportamento constatou-se algumas
diferenças tendo em conta os dois estabelecimentos prisionais, provavelmente, pelas diferentes normas que estes são regidos.
Na prisão do Brasil observa-se uma maior liberdade comportamental, sendo, inclusive, os comportamentos homossexuais
“reforçados”. As reacções na prisão portuguesa são, geralmente, negativas, podendo ser explicadas pela grande quantidade
de ciganas que aí se encontram.
O comportamento homossexual é uma realidade das prisões portuguesas, mas é mais valorizado na prisão
brasileira. Nesta última, não existe população cigana, e a maior percentagem da população presa é jovem. Todos esses dados
vão, mais uma vez, de encontro com aquilo que se observou na revisão de literatura sobre o tema.
Em relação às crenças face à homossexualidade na prisão existe uma maior proporção de reclusas com crenças/
posições positivas ou pelo menos, neutras, no entanto, essa diferença não é muito evidente.
Uma outra questão que se debate encontra-se na percepção das reclusas, em relação à vivência homossexual, dentro
das prisões e em liberdade. Neste ponto, os dados convergem, tendo em conta os diferentes estabelecimentos prisionais, uma
vez que existe a ideia de que a prática é mais visível nas prisões do que em liberdade, no entanto as reclusas da prisão do
Brasil revelaram a existência de maior preconceito da homossexualidade em liberdade, mostrando que na prisão ela é aceite.
A prisão parece favorecer o comportamento homossexual em detrimento de em liberdade. No entanto, ainda existe a
dificuldade de conviver com essa realidade por algumas reclusas, que só conheceram esse comportamento na prisão, e numa
prisão em que as regras de convivência são impostas muito implicitamente.

484
No que diz respeito à explicação da homossexualidade as posições das reclusas são divergentes, salientando-se,
contudo, o carácter biológico “quando nasce” e por outro a “privação sexual/afectiva”, sendo que houve maior evidência
desta última. Observou-se que as reclusas que se consideravam lésbicas, já antes de entrarem no sistema prisional referiram
que a homossexualidade se devia à questão biológica. Por sua vez, os comportamentos homossexuais dentro da prisão eram
explicados muitas vezes pela privação de laços afectivos, não, obrigatoriamente, de uma privação masculina, no entanto
também se observou posições nessa categoria.
O pressuposto de se relacionar o comportamento homossexual na prisão feminina com a privação afectiva e
relacionar o comportamento homossexual na prisão masculina com a privação sexual é igual à posição das próprias reclusas
do estudo. Aqui denota-se que as questões de género ainda estão muito presentes na vida em sociedade e que são transpostas
para a vida atrás das grades. A questão da privação afectiva, não, forçosamente, de um marido, salientou-se na realidade das
prisões brasileiras, uma vez que o isolamento das reclusas é elevado, comparativamente com a realidade portuguesa.
No Brasil, as reclusas encontram-se por vários motivos afastadas dos familiares e amigos e não há sensibilização
dos responsáveis para a gravidade das consequências relacionadas com o não recebimento de visitas para o processo de
ressocialização das mesmas. O rompimento de laços afectivos das reclusas com a “comunidade” contribui para o sentimento
de isolamento do mundo, tendo que interpretar que a prisão é o seu único lugar de existência do universo. Essa condição
poderá contribuir para o desenvolvimento de uma relação de dependência da mulher presa em relação à unidade prisional,
seja relacionada às outras reclusas (por exemplo numa relação homossexual), seja relacionada aos funcionários(as),
reiterando a vulnerabilidade da sua posição na lógica interna das unidades prisionais, e, mais uma vez, as diferenciando,
negativamente, da experiência vivida pelos presos homens.
Constatou-se também que o comportamento homossexual nas prisões poderá ser explicado pela existência de uma
sub-cultura, dentro da própria cultura prisional. O comportamento homossexual poderia, realmente, corresponder a uma
forma de se “adaptar” ao sistema prisional, principalmente pela privação dos laços familiares, no entanto, essa privação não
poderá, unicamente, significar a causa desse comportamento na prisão, uma vez que, se encontrou algumas reclusas que não
manifestavam esse comportamento, e mesmo assim estavam privadas dos seus laços afectivos da liberdade.
No que se refere à gestão de conflitos na prisão, constatou-se que existe um maior número de reclusas a dizer que
essa gestão é não diferenciada, do que uma gestão de conflitos diferenciada positiva ou, negativamente. No entanto, será
crucial questionar, neste momento, se essa resposta ocorreu, de forma genuína, ou se havia alguma “desejabilidade social”,
ou seja, as reclusas poderiam prever que essa seria a resposta mais adequada e mais aceite por quem a estava a entrevistar,
como houvesse, por parte do investigador, a espera que as reclusas dessem determinadas respostas.
No que concerne à existência de discriminação por parte das reclusas em relação àquelas que manifestam
comportamento homossexual ou que eram homossexuais evidenciou-se uma maior proporção de respostas de reclusas
ciganas. No entanto, também se observou discriminação, naquelas reclusas que criticam essa realidade, mas que acabaram
por se envolver em relações homossexuais. Existe também testemunhos de discriminação na população em geral, mas essas
respostas não são conclusivas para caracterizar que existe, de facto, discriminação por parte das reclusas.
Porém, tal como se encontra na literatura, as ciganas são das reclusas com maiores comentários depreciativos em
relação às questões da homossexualidade e neste estudo, mais uma vez, isso se observa. Ainda, no que toca à questão da
discriminação na prisão observou-se que esta é menos evidente na prisão do Brasil, esta constatação pode estar relacionada
também com a inexistência de ciganas na população prisional, neste país.
Percebeu-se, ainda, que na prisão as pessoas não se tornam homossexuais, mas que a cadeia pelas suas
características particulares: pelo isolamento do exterior, pela necessidade de protecção ou, simplesmente, pela necessidade de
adaptação ao sistema, podem facilitar esse comportamento, mas pelo facto da pessoa manifestar esses comportamentos não
significa, obrigatoriamente, que a reclusa é lésbica ou que se tornará lésbica, e, não se pode concluir que ela se tornou lésbica
mesmo que ao voltar à liberdade, ela os manifeste, tal como se não os manifestar. Devemos apenas encarar a questão da
homossexualidade, como uma das três orientações sexuais, e se encararmos esta realidade de uma forma menos rígida e
estanque, não aprisionamos mais, quem já se encontra aprisionado.
E tal, como se deve buscar a compreensão da criminalidade por meio do estudo da interacção entre indivíduo
criminoso e a sociedade. Também as questões da homossexualidade na prisão, não devem ser interpretadas, apenas, segundo
um único prisma “atrás das grades”, mas considerando toda essa realidade em interacção com a sociedade, através dos
padrões e normas que regem a mesma.
E ao analisar qualquer realidade dentro do coração de uma prisão precisamos olhar para o outro sem julgá-lo, sem
buscar culpados, nem correlações lineares, afinal continuamos a falar de seres humanos.
É urgente reflectir e agir. “Um artista antes de esculpir a sua bela obra, analisa vários ângulos e possibilidades antes
de iniciar o seu trabalho, assim como ele devemos ampliar os horizontes e lutar para que os direitos humanos sejam
respeitados a qualquer custo” (Pio, 2006).
E… se uma obra foi concebida para que houvesse interpretação do seu autor, então mais do que colocar
teorizações, naquilo que escrevemos, devemos colocar a nossa vida.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cunha, M. I. (2002). Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Fim de Século-Edições, Sociedade Unipessoal, Lda.

485
Cunha, M. I. (1994). Malhas que a reclusão tece: questões de identidade numa prisão feminina. Gabinete de Estudos
Jurídico-Sociais do Centro de Estudos Judiciários. Lisboa.
Cunha, M. I. (1990). A prisão feminina como ilha de Lesbos e escola do crime: Discursos, representações e praticas. Centro
de Estudos Judiciários.
Leal, J. M. P. (2007). Crime no Feminino: Trajectórias Delinquenciais de Mulheres. Edições Almedina, SA. Fevereiro,
Coimbra.
Naphy, W. (2006). Born To Be Gay : História da Homossexualidade. Edições 70, LDA. Lisboa. Fevereiro.
Nardi, H. C. (2005). South América, LGBT youth and issues, education, and sexualities: an international encyclopedia,
Westport: Greenwood Press. p. 817-821.
Nogueira, C. (2005). Psicologia: Teoria, Investigação e Prática – Fundamentos Construcionistas Sociais e Críticos para o
Estudo do Género. Centro de Investigação em Psicologia, Universidade do Minho, Braga.
Rodrigues, D.; Vieira, C. F.; Oliveira, E.; Figueiredo, J.; Figueiredo, M. (2000). Ciganas e não ciganas: reclusão no
feminino. Contra-Regra, Lisboa.

A produção da sexualidade pela mídia


Lucimara das Graças Gomes Garcia
Universidade Estadual de Ponta Grossa.
[email protected]

Rita de Cássia da Silva Oliveira


Universidade Estadual de Ponta Grossa.
[email protected]

Resumo: A atividade sexual na adolescência vem se iniciando cada vez mais precocemente, com consequências indesejáveis imediatas como
o aumento da gravidez nessa faixa etária. A sexualidade, entendida como uma construção humana, histórica e cultural, precisa ser discutida
na escola, espaço privilegiado para discussão do conhecimento historicamente produzido. Entender o desenvolvimento da sexualidade dos
adolescentes, considerando as influências exercidas pela mídia é um grande desafio, já que as mudanças culturais ocorridas ao longo da
história, modificaram o comportamento do ser humano, em especial na sua forma de viver e encarar a sexualidade. Por isso a presente
pesquisa objetiva refletir no âmbito escolar sobre a construção da sexualidade humana, frente ao poderio da mídia e as suas consequências -
erotização infanto-juvenil, liberalização sexual e a gravidez precoce -, bem como a responsabilidade e eficiência da escola nesta tarefa de
prevenção; provocar na escola uma profunda e necessária reflexão sobre valores e preconceitos dos próprios educadores, buscando
desvincular sexualidade dos preconceitos, adotando postura condizente com uma educação voltada para cidadania, e assim promover o
exercício responsável da sexualidade dos jovens. Objetiva-se ainda chamar a atenção desses profissionais para questões pertinentes a
sexualidade e a prevenção da gravidez precoce, visando a redução de casos de gravidez. Para tanto se optou por utilizar uma metodologia
qualitativa de cunho investigativo e interpretativo, fazendo uso de aprofundamento teórico, desenvolvimento de programas de orientação aos
adolescentes sobre a temática e criação de grupos de estudos com os professores envolvidos no projeto.
Palavras-chave: sexualidade, escola, gravidez na adolescência, mídia

Introdução
Uma das maiores problemáticas enfrentadas na sociedade brasileira atual com grandes repercussões na saúde
pública e na vida dos jovens é a gravidez precoce, acarretando aos adolescentes uma responsabilidade de criar um filho, a
qual ainda não estão maduros para assumi-la, além de causar a evasão escolar pelos mais diversos motivos.
Observa-se claramente o crescimento do número de adolescentes grávidas na rede pública estadual, esse
crescimento causa uma preocupação, pois se questiona o motivo pelo qual cada vez mais cedo os adolescentes iniciam sua
vida sexual .
Considerando toda esta mudança de comportamento e o elevado número de alunas gestantes na rede estadual de
ensino, se faz necessário esta reflexão junto aos educadores: Até que ponto as informações oriundas da mídia contribuem
para estes resultados, e qual a importância da informação educativa veiculada pela escola?
A sociedade pós moderna tem apresentado mudanças significativas no que se refere a convivência social gerando
conflitos intergeracionais devido a comportamentos e posturas assumidas pelos jovens.
Sabe-se que os profissionais que atuam nos estabelecimentos de ensino precisam de um referencial teórico que
auxilie numa prática diferenciada na abordagem da sexualidade, a consolidação de uma sexualidade saudável e prazerosa
começa com um educador bem preparado e disponível para essa tarefa, minimizando em médio prazo os casos de gravidez na
adolescência.
A mídia tem colaborado para oferecer esclarecimentos e alertar aos jovens sobre essa problemática, porém ainda
insuficiente, até porque levar para o ambiente escolar essa discussão, aliada ao entendimento da influência da mídia sobre o
jovem quanto a sexualidade e aspectos correlatos se faz necessária.
Essa discussão, no âmbito escolar, também é pertinente como alerta e esclarecimento aos jovens sobre a questão,
chamando-o para a responsabilidade dos seus atos e as consequências que deles advém.

486
É papel dos professores e da equipe pedagógica orientar e educar o jovem sobre as questões emergentes na
realidade atual.
Esta pesquisa justifica-se pela necessidade de refletir no âmbito escolar sobre a construção da sexualidade humana,
frente ao poderio da mídia e as suas consequências - erotização infanto-juvenil, liberalização sexual e a gravidez precoce -,
bem como a responsabilidade e eficiência da escola nesta tarefa de prevenção, uma vez que mídia e escola de modo
intencional ou não, contribuem para a formação de consciência dos adolescentes.
Utilizar-se desta reflexão também para provocar no âmbito escolar uma profunda e necessária reflexão sobre
valores e preconceitos dos próprios educadores, buscando desvincular sexualidade dos preconceitos, adotando postura
condizente com uma educação voltada para cidadania, e assim promover o exercício responsável da sexualidade dos jovens, a
medida em que possibilite uma fundamentação teórica consistente sobre o tema sexualidade.
Objetiva-se ainda chamar a atenção desses profissionais para as questões pertinentes a sexualidade e a prevenção da
gravidez precoce, visando à redução de casos de gravidez nas alunas da rede pública estadual, ao desenvolver programas de
orientação aos adolescentes sobre a temática sexualidade, ao mesmo tempo em que se discute o papel e a importância da
prevenção na escola, na formação de um espírito crítico, com capacidade de discernimento sobre os conceitos pregados pela
mídia e a influência que exercem sobre a formação dos adolescentes.
A metodologia utilizada foi uma pesquisa qualitativa de cunho investigativo e interpretativo, fazendo uso de
aprofundamento teórico, desenvolvimento de programas de orientação aos professores sobre a temática e criação de grupos
de estudos com os professores envolvidos no projeto.

A sexualidade na sociedade brasileira atual


Para Cristina Costa (1997, p.21) a juventude, apesar de ter evidentes conteúdos biológicos físicos e hormonais, é
mais do que isso. É cultural e está, portanto sujeito a uma série de regras e condicionamentos sociais. É por isso que jovens
da mesma faixa etária, em diferentes culturas e em diferentes épocas, tem hábitos e atitudes bastantes diversos uns dos outros.
É fato que a sociedade está passando por um momento de profunda modificação estrutural. Mudou a estrutura
familiar, o comportamento sexual, que está bem mais liberal em relação há pelo menos duas décadas.
O tema sexualidade é bastante discutido pela sociedade, como é também bastante discutido o papel da mídia e as
transformações da sociedade.
Assim como a maioria das transformações da sociedade, a mudança no comportamento sexual ocorreu por um fator
externo, como uma espécie de fenômeno social. Tropeça-se em sexo em todos os lugares o tempo todo, mensagens eróticas
escorrem das telas de televisão, de filmes e de músicas, em tal quantidade que se tornam banais e até invisíveis.
Este grande circo do sexo tem deixado os adolescentes muito confusos. O sexo que era reprimido tornou-se um
bem de consumo. E nesta sociedade de consumo em que se vive, o adolescente se transforma num alvo fácil, iniciando a
atividade sexual cada vez mais precocemente, com consequências indesejáveis imediatas como o aumento da gravidez
indesejável e muitas vezes levam as adolescentes a abandonar os estudos.
Para Fabiana Siqueira (2008) os consumidores da mídia, em especial os adolescentes, não possuem clara noção
sobre o impacto que ela exerce sobre eles, não há suficiente esclarecimento acerca da influência da mídia, o que dificulta a
seleção da informação. A maioria dos adolescentes acredita que está adquirindo informação, quando na verdade está
comprando ideologia.
O ser humano passa por várias fases da vida, a adolescência é com certeza o período da vida humana, marcada por
extensos processos conflituosos, é nesta fase que os temores tendem á crescer um pouco mais devido à transição,
transformação causando-lhe medo, insegurança, confusão e ansiedade em relação a sua sexualidade, pois tudo está em
constante modificação, corpo, sentimento, comportamento e pensamento.
É também nesta fase de grande tumulto que acontece a absorção dos valores sociais. Por ser o adolescente
altamente influenciável e vulnerável, uma vez que sua identidade está em formação, o meio em que está inserido exerce forte
influência psicológica e social, podendo esta ser tanto positiva como negativa.
Atualmente a mídia de um modo geral oferece modelos negativos, diferentemente do que se deseja como modelo
identifica tório para o desenvolvimento saudável e responsável do adolescente.
Fatalmente o adolescente responderá a este convite da imitação, tornando assim desigual a luta entre os educadores
e a mídia no que diz respeito ao tema sexualidade, pois infelizmente encontra-se dificuldade em dialogar sobre a temática,
seja por medo ou insegurança. Por essa razão os adolescentes continuam tendo acesso à mídia sem a devida orientação.
O resultado dessa avalanche de informação ou desinformações oriundas da mídia, muitas vezes chega até o
adolescente de forma errônea confundindo sexualidade com sexo.
É importante que o adolescente veja a sexualidade com naturalidade desde o desenvolvimento do corpo, afeto,
namoro, até chegar ao ato sexual propriamente dito e suas consequências, a gravidez, a Aids, as doenças sexualmente
transmissíveis, etc. Infelizmente não é o que vem acontecendo. Os adolescentes não estão sabendo lidar com tanta
informação e estão iniciando sua atividade sexual se tornando cada vez mais precoce, havendo então um número cada vez
mais crescente de gravidez na adolescência.

487
A influência da mídia na formação do adolescente
Segundo Douglas Kellner (2006, p. 119-147) a cultura da mídia oferece espetáculos midiáticos cada vez mais
sofisticados visando o aumento do lucro da indústria cultural. A cultura da mídia não aborda somente grandes momentos da
experiência contemporânea, mas também oferece subsídios para ilustrar a fantasia e o sonho, construindo identidades.
Douglas mostra que na medida em que se avança no novo milênio, a mídia se torna tecnologicamente mais
exuberante e está assumindo um papel cada vez maior na vida cotidiana. Sob a influência da cultura multimídia os
espetáculos fascinam, envolvem influenciando profundamente o pensamento e a ação, sendo assim, a experiência e a vida
cotidiana são moldados e mediados pelos espetáculos.
O erotismo fortemente apresentado através da mídia, passa a ser vivenciado e incorporado pelos adolescentes, com
consequências desastrosas.
Com o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e multimídia, os tecnoespetáculos vêm moldando
decisivamente os contornos e trajetórias das sociedades e culturas atuais.
Para Debord (1967, p.10) o conceito de sociedade do espetáculo “unifica e explica uma grande diversidade de
fenômenos aparentes”, ele descreve uma mídia e uma sociedade de consumo organizada em torno da produção e consumo de
imagens, mercadorias e eventos culturais.
Ao usar o termo “espetáculo¨, Douglas aponta as diversas formas de produção tecnológicas da assim chamada
mídia de massa, e mostra a forma pela qual determinado espetáculo torna-se fenômeno e definem eras.
Lídia Rosenberg. Aratanguy (2002, p.12 -14) chama a atenção do quanto é difícil falar sobre sexo, pais e
professores sentem-se inseguros, uma vez que tal conversa exige um clima de intimidade entre interlocutores, uma atitude de
respeito pelas dificuldades e inseguranças de cada um.
A maioria dos pais por não se sentir preparados para essa conversa franca e íntima, perdem essa oportunidade
delegando a tarefa “orientação sexual” para a escola e cabe a ela falar sim, sobre sexo e sexualidade, pois ela está lá nos
grafites, nos corredores, banheiros.
Falar de sexualidade significa, sempre, falar de si mesmo, de suas crenças e valores, é sempre uma confissão, um
discurso, esconder ou camuflar a emoção é por em risco essa tarefa, além de ser desonesto é inútil também.
A autora reconhece, ao invés de negar, as dificuldades de tratar da educação sexual na escola, falando dos riscos e
das delícias da relação amorosa - da fisiologia do ato sexual, das angústias do adolescente, da masturbação, da contracepção,
doenças sexualmente transmissíveis, da maternidade, da paternidade, entre outras questões -, Lídia Rosenberg Aratangy
(2002) toca nas principais dúvidas, na “Caixa Preta”, dos jovens e dos adultos se houver uma relação de confiança de ambas
as partes, dará certo.
Julio Groppa Aquino (1997, p.7) chama atenção com o suposto engajamento social da escola, no qual alguns
preocupados com esse engajamento da escola forjam iniciativas de intervenção dirigida. Algumas propostas são tímidas
outras arrojadas, mas qual o seu verdadeiro raio de influência?
É certo que a sexualidade humana figura como um dos temas mais inquietantes, mas quase sempre o mais recusado
no universo prático do educador. Entretanto cada vez mais a escola tem sido convocada a enfrentar as transformações das
práticas sexuais contemporâneas principalmente na adolescência, uma vez que seus efeitos fazem alardes no cotidiano
escolar. Cabe então, indagar: como fazê-lo efetivamente?
É inegável que, juntos, sexo e escola configuram um campo de tensão, instabilidades, e, em última instância, de
acentuado mal estar. Onde se coloca em questão os limites e as possibilidades de uma intervenção no terreno da sexualidade
presente na escola, bem como o duplo dimensionamento do prazer, dos cuidados necessários no que tange o sexo, DSTs,
gravidez, Aids, etc. tudo isso dentro de um complexo afetivo que a sexualidade humana supõe.
É importante também contextualizar as diferentes dimensões que a constituem: biológica, psicológica, histórica,
cultural etc. Roseli Sayão (1997, p.97) afirma que a escola há muito tempo veicula as informações biológicas sobre a
sexualidade, com o objetivo de o aluno conhecer anatomia e a fisiologia do corpo humano.
Esta geração é talvez a que mais dados tem sobre o corpo, o aparelho genital e o seu funcionamento, mas fica ainda
um espaço entre o saber e o agir. O terrível engano é que nem sempre toda informação sobre sexualidade têm valor
educativo.
O fato de o índice de gravidez na adolescência crescer muito nos últimos anos, é um dos indicativos do buraco
negro que existe entre o acesso às informações e a utilização delas.
Roseli Sayão (1997) conclue que o organismo e seu funcionamento são apenas suporte para o exercício da
sexualidade e isso não acontece sem angustias e dificuldades. Aos adultos cabe a tarefa de dialogar sobre sexualidade,
esclarecer dúvidas, mas para que tudo isso aconteça é necessário que esses adultos queiram e se preparem para tal, pois não
basta querer para poder, esta disponibilidade precisa ser instrumentada.
Segundo a autora o adolescente pode sim ter uma visão positiva da sexualidade, além dos conhecimentos do
funcionamento do corpo, o processo reprodutivo, os riscos de contrair e transmitir doenças. Essa visão supõe também além
de prazer e alegria, responsabilidade e limites.
O que não se pode é contribuir para que o jovem tenha a ilusão de saber tudo sobre sexo. A mídia e a escola,
querendo ou não, interferem na construção da sexualidade, pois ambas são muito presentes e marcantes na vida do
adolescente.

488
Rosa Maria Bueno Fischer (1999, p.18) fala que considerar que a mídia hoje é responsável por trocas simbólicas e
materiais em dimensões globais, ela abre para a educação um conjunto de problemas como, por exemplo, de que forma se
está trazendo para dentro dos espaços escolares a discussão dos saberes que circulam na mídia e a luta da mídia pela
imposição de sentidos.
Para a autora, a busca pela fixação de determinados sentidos é uma luta da qual os educadores participam ou
deveriam participar, pois enquanto a escola ficar no papel tímido de espectadora ressentida de uma sociedade que se pauta
pelo mercado e pelas imagens de sucesso individual, da ilusão de felicidade dada pelo consumo real ou imaginário, estará
marcando seu lugar como ausente do seu tempo.
A escola em relação à mídia fica numa posição de desconforto, de perplexidade e ao mesmo de desafio na produção
de novos sentidos.
Há muito se discute qual a importância do processo ensino-aprendizagem, Gasparin (2005, p.1) fala sobre os
avanços científico-tecnológicos que facilitam aquisição de conhecimentos e informações fora da escola.
E Gasparin levanta questões como: o que a escola faz e para quê? Ela responde às necessidades sociais da
atualidade? A primeira vista parece que os professores perderam suas funções de transmissores e construtores de
conhecimento.
As profundas mudanças que se estão processando na sociedade dão impressão de que os professores são
dispensáveis e podem ser substituídos. Porém, quando se busca mudanças efetivas na sala de aula e na sociedade, de imediato
se pensa no professor.
Neste cenário não se dispensam às tecnologias, pelo contrário, exige-se cada vez mais sua presença, na escola,
como meios auxiliares e não como substitutos dos professores.

Considerações Finais
Considerando, a influência da mídia no desenvolvimento da sexualidade dos adolescentes e reconhecendo a escola
como um espaço de transformação da sociedade, faz-se necessário a conscientização dos educadores quanto à
responsabilidade de abordar a temática sexualidade numa perspectiva mais crítica, e fazer o trabalho de prevenção.
Adotando postura condizente com uma educação voltada para cidadania, promover o exercício responsável da
sexualidade dos jovens, reduzindo assim o número de adolescentes grávidas na rede pública estadual.

Referências
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Aquino, J.G. (1997). (org) Sexualidade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus.
Costa, C. (1994). A Juventude Eterna já existe. In: Kupstas. (org.) Jovem Adolescente. São Paulo: Editora Moderna, , p.21-
35.
Fischer, R. M.B. (1999). Identidade, Cultura e Mídia: A complexidade de novas questões educacionais na
contemporaneidade. In: Silva, L. H.da. (Org.). Século XXI: Qual conhecimento? Qual currículo? 1. ed. Petrópolis: Vozes, p.
18-32.
Gasparin, J.L. (2005). Uma didática para a pedagogia histórico-crítica. 3. ed. Campinas: Autores Associados.
Kellner, D. (2006). Cultura da Mídia e Triunfo do Espetáculo. In: Moraes, Denis. (org.) Sociedade Midiatizada. Rio de
Janeiro: Mauad Editora Ltda, p.119-147.
Sayão, R.( 1997). Saber o Sexo? Os problemas da informação sexual e o papel da escola. In: Aquino, J. G. (org.)
Sexualidade na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, p. 97-105.
Siqueira, F. Sexo, mulher e mídia na pós-modernidade (2008). http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/index.asp.
(consultado na internet em 05 de maio de 2008).

Reflexões da violência e abuso sexual infanto juvenil


Viviane Lopes de Morais Vivi
Universidade Federal Fluminense
[email protected]

Resumo: O Governo brasileiro, ao priorizar o problema, tem procurado traçar estratégias competentes e fundamentais para o enfrentamento
a essa ação criminosa e violadora dos direitos sexuais das crianças e adolescentes. O trabalho em referência, traz alguns esclarecimentos
acerca deste problema, citando a experiência do município de Muniz Freire-ES

489
Apresentação
A violência sexual contra crianças e adolescentes configura-se como um fenômeno multidimensional de extrema
violação de direitos contra a pessoa humana.Quando este tipo de violência se relaciona ao exercício do direito a um
desenvolvimento saudável das novas gerações, o tema, além de prioritário,passa a figurar entre os mais desafiantes e
contundentes da agenda social do País exigindo do Pode Público e da Sociedade, um esforço conjunto de enfrentamento e de
coibição de sua prática.
O Governo Brasileiro ao priorizar o problema, tem procurado traçar estratégias competentes e fundamentas para o
enfrentamento a essa ação criminosa e violadora dos direitos sexuais das crianças e adolescentes.
O trabalho em referência, traz alguns esclarecimentos acerca deste problema, citando a experiência do município de
Muniz Freire – ES.

Panorama Histórico
A história do enfrentamento à violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, deve ser entendido,
como um longo processo que compreende os diversos contextos histórico, econômico, cultural jurídico e psicossocial, que
compõem a própria estrutura da sociedade brasileira, e que estão envolvidas por valores e relações de gênero, poder, raça e
sexualidade .
Ao analisar a realidade estrutural da década de 70 e 80, Guerra e Azevedo (1998 ) referem que houve uma
estagnação do crescimento econômico, crise conjuntural e agravamento da situação de pobreza estrutural. Acrescenta que a
modernidade capitalista apresenta a nova marca da globalização dos negócios e das relações de poder. O capitalismo,
passa a ser movido por processos tecnológicos, avançados, informatizados, robotizados, altamente competitivo que vem
trazendo em seu bojo a perda de mercados pelos países pobres, o desemprego massivo. Como consequência haverá maior
concentração de riqueza, o aumento da pobreza e a exclusão de países da periferia na, competividade própria a esta
modernidade capitalista.
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas
simbólicos cumprem a sua função política de comunicação e de conhecimento,de imposição ou de legitimação da dominação,
que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra ( violência simbólica), dando reforço de sua própria
força às relações de força que as fundamentam, contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos
dominados.” (Bourdieu,2002:11)
A revolução industrial se instaurou, em função da introdução da ciência e da técnica no universo da produção,
acrescidas da divisão e especialização do trabalho. A partir disso,há uma transformação no mundo do trabalho, provocando
um grande crescimento do mercado, da produção e do consumo.
Aparecem os valores ideológicos e simbólicos, que colocam os indivíduos como iguais e soberanos, assumindo
novas posições e deveres no universo do trabalho. São representados como trabalhadores livres, ao passo em que são libertos
da rigidez da ordem feudal, e principalmente porque simbolicamente passam a ser iguais em direitos.
Sociedade é entendida como um sistema de crenças e valores que pode promover integração, consenso e harmonia
social. É necessária porque pessoas diferentes tem que criar instituições comuns para sobreviver e melhorar de vida.
Nas sociedades tradicionais, o homem submetido à tirania do grupo e dos seus superiores encontrava pouco espaço
para a expansão de suas potencialidades e autonomias. Evitava diferenciar-se dos outros. A partir da nova ideologia
individualista, o problema seria garantir formas sociais e políticas de criação de consenso, união e solidariedade, e ao mesmo
tempo, os ideais de liberdade, igualdade e justiça. A reivindicação disso, pode ser definida como instituição dos princípios da
cidadania moderna.
Segundo Jacques Capdevielle,
A exarcebação das identidades e dos interesses particulares é (...) o inverso de uma cidadania universal da qual todos
tem necessidade, mas que ficam no campo da utopia.As identidades e as reivindicações corporativistas,longe de
corresponder a um arcaísmo pertencem à nossa modernidade. Elas agem como um revelador de suas carências políticas
e só serão ultrapassadas se estas se atenuarem.

Acrescentando nesta discussão,Manuel Castells, sinaliza que, em uma crise de legitimidade, esvazia de sentido e de
função, as instituições da era industrial, podemos ter a impressão de assistir ao nascimento de um mundo composto
exclusivamente de mercados, redes, indivíduos e organizações estratégicas. Concomitante, ele observa ainda, o surgimento
de vigorosas identidades-resistências que não se limitam aos valores tradicionais.
Castells entende, que é dessas identidades-resistências, que poderão surgir “identidades-projetos”, potencialmente
capazes de construir uma sociedade civil nova, e, no final das contas, um novo Estado.Mas ele reconhece que isso é uma
projeção, e que não diz respeito à realidade atual.(AGUITON,2001)
Cidadania , desde o seu início, caracteriza-se como uma relação de iguais, e destes como o poder. É um meio de
proteção e uma condição para o exercício de direitos.
Segundo Marshall, “ a cidadania é um status concedido aqueles que são membros integrais de uma comunidade.
Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status ...” (
MARSHALL, 19767: 76)

490
Aqui, aparece a célebre divisão entre os três elementos ou dimensões, que compõem a noção de cidadania: civil,
político e social. O direito civil, é composto dos direitos necessários à liberdade individual. Já o direito político, deve ser
entendido, como o direito de participar no exercício do poder político. A noção de direito social, diz respeito a um mínimo de
bem-estar econômico, e de segurança, e abrange o direito de participar, por completo, na herança social, e de levar uma vida
de ser civilizado, de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade ( MARSHALL, 1967:63:64)
Os direitos sociais acompanham a extensão da democracia a outros espaços e a novas temáticas sociais: questões
do universo da produção e do trabalho, do desemprego, da desigualdade no acesso à escola e aos demais bens da infra-
estrutura social de cada país; as questões ligadas à desigualdade entre gêneros, etc. Todas estas temáticas necessitam de
atores que denunciem injustiças e desigualdades, e a partir daí, afirmem direitos. Tais direitos só adquirem legitimidade no
espaço público, graças a presença organizada desses atores à sua capacidade de “vocalização das demandas”. As injustiças e
desigualdades precisam ganhar visibilidade pública, ou não serão consideradas injustiças e desiguldades sociais.
Sendo assim, as diversas mobilizações em volta da problemática de violência, tem conseguido articulações de
prioridade nacional por parte do governo brasileiro, que através do Programa Avança Brasil, procura desenvolver uma
espécie de agenda político social da questão, por intermédio do Serviço de Enfrentamento à Violência, Abuso, e Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes, que se inserem em situações circunstanciais ou conjunturais de risco.
Estas articulações são realizadas pelo Ministério da Previdência Social; através da Secretaria de Estado da
Assistência Social.
Nesse sentido, o serviço nacional, tem como principal objetivo estabelecer ações de atendimento às crianças e
adolescentes, vítimas de violência, abuso ou exploração sexual, bem como entender aos seus familiares.
O artigo 226, da Constituição Brasileira de 1988, entende que família é a comunidade formada por qualquer um dos
pais e seus descendentes.
Contudo, o trabalho com famílias e com crianças e adolescentes em situações de risco social pode se deparar com
arranjos familiares muito diversos, necessitando-se ampliar a concepção de “família” em seu contexto sócio cultural.
A família é um grupo de pessoas vinculadas por laços consanguíneos, de aliança ou de afinidade, onde os vínculos
circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e de gênero.
Os vínculos familiares pensados a partir das definições jurídicas , são relações de obrigação e direitos entre as
pessoas reconhecidas como família. O fortalecimento deste vínculo, está relacionado ao seu esclarecimento, delimitação,
cumprimento das obrigações pressupostas e gozo dos direitos definidos.
Do ponto de vista sócio cultural, a família é uma instituição cuja diversidade de formas deve ser compreendida na
relação com o contexto. Os arranjos familiares diversos não podem ser analisados por comparação a um modelo normativo,
mas sim, por seu modo de se organizar, de cumprir suas funções ou instaurar novas significações e relações.
A família se configura, como uma organização de funções, papéis, representações, relações e práticas, que é preciso
entender dentro da história. Os papéis sociais, e por extensão os papéis familiares, são um conjunto de expectativas
socialmente instituídas para o desempenho de um dado ator em uma dada instituição.

Contextualização Histórica da violência infanto juvenil


A humanidade tem dispensado à criança um tratamento legislativo que se coaduna com a compreensão do
significado da infância presente em cada momento histórico. Já em seus primórdios, os homens praticavam várias formas de
violência à criança, “desde os egípcios e mesopotâneos, passando pelos romanos e gregos, até os povos medievais e
europeus, não se considerava a infância como merecedora de proteção especial”1, muitas vezes contando com o beneplácito
da própria legislação e da cultura dominante.
Ao tempo do Código de Hamurábi (1700 a.C-1600 a.C), no Oriente Médio, ao filho que batesse no pai havia a
previsão de cortar a mão, uma vez que a mão era considerada o objeto do mal. Também o filho adotivo que ousasse dizer ao
pai ou à mãe adotivos que eles não eram seus pais, cortava-se a língua; ao filho adotivo que aspirasse voltar à casa paterna,
afastando-se dos pais adotivos, extraíam-se os olhos. Em Roma (449 a. C), a Lei das XII Tábuas permitia ao pai matar o filho
que nascesse disforme mediante o julgamento de cinco vizinhos (Tábua Quarta, nº 1), sendo que o pai tinha sobre os filhos
nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los (Tábua Quarta, nº 2). Na Grécia antiga, as
crianças que nascessem com deficiência eram eliminadas nos Rochedos de Taigeto. Em Roma e na Grécia a mulher e os
filhos não possuíam qualquer direito. O pai, o Chefe de Família, podia castigá-los, condená-los à prisão e até excluí-los da
família.
No campo religioso, podemos citar o fundamentalismo cristão que é uma constante na história dos Estados Unidos.
Uma de suas propostas seria a própria reconstrução da família, através da reafirmação do patriarcalismo, que diz respeito à
santidade do matrimônio, e, sobretudo, a autoridade do homem sobre a mulher, além da estrita obediência dos filhos,
reforçado, se preciso, pela agressão física.
De acordo com Castells (1999),

1
ANDRADE, Anderson Pereira de. A Convenção sobre os Direitos da criança em seu décimo aniversário: avanços, efetividade e desafios. Revista Igualdade,
Curitiba: Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e Juventude do Ministério Público do Paraná, v. 8, n. 28, jul./set. 2000, p. 2.

491
O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas e caracteriza-se
pela autoridade imposta e institucionalmente, do homem, sobre mulher e filhos no âmbito familiar(...)Os
relacionamentos interpessoais e consequentemente a personalidade, também são marcados pela dominação e violência
que tem origem na cultura e instituições do patriarcalismo.

É no final do século XVIII que a infância começa a ser vista como uma fase distinta da vida adulta. Até então,
participavam das mesmas atividades. As escolas eram frequentadas por crianças, adolescentes e adultos. Com o surgimento
do entendimento de que a infância era uma fase distinta da vida adulta também passam a ser utilizados os castigos, a punição
física, os espancamentos através de chicotes, paus e ferros como instrumentos necessários à educação. Na Inglaterra, em
1780, as crianças podiam ser condenadas à pena de enforcamento por mais de duzentos tipos penais.
Somente em 1871, é fundada em Nova York a Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças, a partir
do caso da menina Mary Ellen. Mary Ellen era uma menina órfã de mãe, abandonada pelo pai, que sofreu severos maus-
tratos na família substituta. O fato causou profunda indignação na comunidade da época que percebeu não haver um local
própria destinado a receber este tipo de denúncia. Em razão disto, o caso da menina Mary Ellen foi denunciado na Sociedade
para a prevenção da Crueldade contra os Animais. Necessitou ser equiparada ao animal para que seu caso pudesse ser
examinado pelo Tribunal da época. Pouco tempo depois, na Inglaterra, é fundada uma sociedade semelhante, voltada a
proteção da criança.

Proteção social à infância no Brasil


No Brasil, a situação da criança não foi diferente. Contam os historiadores que as primeiras embarcações que
Portugal lançou ao mar, mesmo antes do descobrimento, foram povoados com as crianças órfãs do rei. Nas embarcações
vinham apenas homens e as crianças recebiam a incumbência de prestar serviços na viagem, que era longa e trabalhosa, além
de se submeter aos abusos sexuais praticados pelos marujos rudes e violentos. Em caso de tempestade, era a primeira carga a
ser lançada ao mar. Até o advento da Constituição Federal de 1988, a criança não era considerada sujeito de direitos, pessoa
em peculiar fase de desenvolvimento e tampouco prioridade absoluta. A partir de 1988, no Brasil, passamos a contar com
uma legislação moderna, em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, inaugurando
uma nova época na defesa dos direitos daqueles que ainda não atingiram os dezoito anos de idade.
Há mais de uma década depois da aprovação do ECA, e o retrato da violência, abuso e exploração sexual contra a
infância e adolescência, continua invisível nas estatísticas nacionais. Por outro lado, o Brasil é referência para a Comunidade
Internacional, em função de ser um dos primeiros países a formalizar um projeto de intervenção integrado, elaborado com a
intensa participação da sociedade civil, de organismos internacionais, e das três esferas do governo. Para enfrentar este
problema, apoiado por um conjunto de ações e metas, foi instituído o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual
Infanto Juvenil. Plano este, que é de vital importância para a garantia da proteção integral à criança e ao adolescente em
situação de risco.
O país começa a entender que o combate a este tipo de violência, impõe grandes obstáculos, que envolvem não só a
prevenção, a comunicação, a responsabilização e o atendimento emergencial, mas também o acompanhamento permanente
de vítimas e agressores a mudanças de valores culturais, a redução da desigualdade, e a conscientização das pessoas.
Não há uma única, rápida e fácil solução para os crimes de violência, abuso e exploração sexual de crianças e
adolescentes. A implementação dos direitos, vai além da questão jurídica. Quando a violência sexual contra a infância e a
adolescência estão em pauta, a inibição do crime não se restringe à elaboração de mais leis de proteção ou à sua aplicação.
Depende de mudanças ideológicas, culturais, e de valores arcaicos que permitem a perpetuação do problema.
Também é por intermédio, da Constituição Federal, Do Estatuto da Criança e Adolescente, da Lei Orgânica da
Assistência Social e do Plano Nacional de Enfrentamento da Exploração Sexual Infanto Juvenil, que se estabelece que a
capacidade de trabalho e articulação é marcada pela participação maciça de todos os envolvidos, família, sociedade civil
organizada e poder público que objetivam garantir os dispositivos necessários ao funcionamento dos serviços, oferecendo
absoluta prioridade ao atendimento, ao resgate, e à proteção dos direitos das crianças e adolescentes, principalmente os
vitimizados por algum tipo de violência.

Violência X Família X Estado


Para Bobbio e Pasquino, violência é a intervenção física e voluntária de alguém sobre um outro, no sentido de
ofender ou destruir este outro, podendo ser direta ou indireta. A violência pode se dar com agressividade, mas também com
indiferença ou frieza.O poder pode ser exercido através da violência, mas também através do convencimento, da negociação,
e do contrato de obrigações mútuas. O poder que necessita da violência, para ser instituído ou mantido é justamente aquele ao
qual falta credibilidade e legitimidade. Na família, o exercício do poder e da autoridade conferido aos papéis sociais goza de
legitimidade desde que esteja coerente com as representações dos atores envolvidos e de suas relações. Papéis estes, que são
definidos por normas estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade.(Castells,1999)
As estreitas relações entre agressividade, violência, e poder na família fazem com que seja melhor definir a
violência dentro de uma visão estrita da violação de direitos.

492
A violência pode surgir na família, como resultado das assimetrias de poder, da ilegitimidade do poder ou da
autoridade, do esforço para manter as relações de poder e de dominação e, também pode surgir como resultado de uma
agressão ligada aos mais variados fatores.
A violência faz parte das relações familiares, mas não como um fenômeno normal que se deva aceitar
passivamente, e sim,como sinal de funcionamento conflituoso no qual o poder e a autoridade estão sendo ameaçados ou
contestados, e os conflitos relacionais fazem eclodir a agressividade.
Guerra e Azevedo (1997 p 232 - 233) entendem que a infância vítima de violência estrutural compreende o
contingente social de crianças e adolescentes “que se encontram em situação de risco pessoal e social, daqueles que se
encontram em situações especialmente difíceis, ou, ainda, daqueles que por omissão ou transgressão da família, da sociedade
e do Estado estejam sendo violados em seus direitos básicos”.(Fórum-D.C.A., 1989).
Estas autoras classificam a Infância vítima de violência em:
 pobre: vítima da violência social mais ampla (incluem-se menores carentes, abandonados e infratores).
 explorada: vítima da violência no trabalho (crianças que procuram sobreviver através do mercado formal e
informal de trabalho).
 torturada: vítima da violência institucional (crianças vítimas de maus tratos quanto à assistência, repressão e
tratamento em instituições).
 fracasssada: vítima da violência escolar (exclusão do processo de escolarização através da dificuldade de
acesso, de reprovação e repetência e da evasão escolar).
 vitimizada: vítima da violência doméstica (pertinentes às relações interpessoais adulto-criança).
O dever de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado já foi reconhecido anteriormente, a nível
internacional, em 1966, pela aprovação do Pacto de Direitos Cívis e Políticos, pelas Nações Unidas, pois os Estados-
Membros reconhecem que: “Toda criança terá direito, sem discriminação alguma por motivo de raça, sexo, cor, idioma,
religião, origem nacional ou social, posição ecônomica ou de nascimento, às medidas de proteção que a sua condição de
menor requer por parte de sua família, da sociedade e do Estado” (Artigo 24).
A nível nacional, a Constituição Brasileira de 1988, prevê: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Artigo 277).
A família é um dos elementos centrais de todas as sociedades, sendo compreendida, como a mais antiga das
instituições. As relações que tradicionalmente se dão no interior do grupo familiar, no âmbito privado, e na vivência do
cotidiano, são aprendizados permanentes de superação e respeito às diferenças e que resultam na conformação do consenso,
preparando os indivíduos aí forjados, para a internalização das regras sociais, o exercício da liberdade e a convivência
democrática na sociedade maior. Além disso, será a partir de todos estes significados e experiências que se definirá a
identidade desta criança e ou adolescente. Identidade esta, construída sobretudo por um processo de individuação.
Hall (2002) contribui cm a discussão, quando sinaliza que a identidade é algo formado, ao longo do tempo, através
de processos inconscientes e que permanecem sempre incompleta. Está sempre em processo. Sempre, sendo formada. Desta
forma, em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação. E vê-la como um processo
em andamento.
A identidade surge não tanto pela plenitude da identidade, já que encontra-se dentro de nós como indivíduos,mas de
uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso exterior, pelas formas através dos quais, nós imaginamos sermos
vistos por outros. Stuart Hall (2002), afirma que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor do “eu”coerente.
As mudanças crescentes nas relações econômicas, culturais e sociais que se operem na sociedade de consumo,
individualista e competitiva, e as novas necessidades humanas e sociais decorrentes da sociedade contemporânea, desnudam
as limitações vivenciadas pela família, e as suas fragilidades no provimento das exigências de formação social, ética ,
religiosa, moral, cívica educacional e profissional dos filhos.
Contudo, a família é uma das instituições sociais em que é mais difícil identificar e nomear a violência. Em todos
os grupos sociais existem famílias abusivas. Crianças e adolescentes raramente reconhecem que seus pais podem praticar
violência, geralmente designando estas práticas como “nervosas ou agressivas”.
A violência na família se expressa de várias formas A mais fácil de ser verificada é o abuso físico caracterizado por
qualquer ação única, ou repetida, não acidental ou intencional, perpetrada por um agente agressor adulto ou mais velho, que
provoque dano físico à criança, ou adolescente. Este dano causado pelo ato abusivo, pode variar de lesão leve a
consequências extremas como a morte.
Uma das maiores dificuldades para enfrentar a questão da violência na família é, que as pessoas em geral e as
próprias vítimas, consideram as agressões como normais, sendo algumas vezes parte integrante do processo de educação.
Quanto menor, for a criança, mais legitimada está a agressão física.
Muitas vezes as crianças são expostas a diversas formas de violência dentro de seus lares. Os agressores possuem
as mais diversas idades, e podem incluir até mesmo, seus pais, padrastos e madrastas, pais adotivos, irmãos, parêntese ainda
pessoas que cuidam da mesma.

493
No seio da família,a violência pode estar sempre presente no contexto das medidas disciplinares, assumindo a
forma de castigo físico, cruel, e humilhante.
Apesar da responsabilidade em dar proteção à criança, “o primeiro lugar onde a violência explode, quando o país
vai mal, é dentro de casa” (Dias, 1993, p. 23).
Nesse sentido, a Constituição Brasileira, também prevê: “ O Estado assegurará a assistência a família na pessoa de
cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (artigo 266, p.8).
Crianças não se dicotomizam apenas em vítimas e culpados, mas são representantes de um modo violento de viver.
A opressão imposta à criança ou adolescente reproduz um pouco a opressão que este adulto enfrenta em sua vida dária, pela
violência maior que a sociedade lhe impõe.

O Serviço de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – A experiência de


Muniz Freire – ES
É nesta dinâmica que está compreendida as atribuições da Secretaria de Assistência, Trabalho e Desenvolvimento
Social do Município de Muniz Freire – ES, em parceria com a Secretaria de Trabalho, e Desenvolvimento Social (
SETADES), e o Ministério da Previdência e Assistência Social, tendo como objetivo atender crianças e adolescentes vítimas
de violência, abuso ou exploração sexual, bem como suas famílias, por meio de apoio psicossocial, além da tentativa de criar
ações articuladas, com outros órgãos, para um atendimento mais completo e abrangente.
Muniz Freire,possui atualmente 19.00 habitantes.Localiza-se na região sudoeste do Espírito Santo.Sua estrutura
produtiva é basicamente controlada pelo setor primário, que compreende agricultura, principalmente o café, criação de
animais, empregando boa parte da força de trabalho do município.
O Sentinela é um serviço de enfrentamento à violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes.
Oferece diversos procedimentos técnicos especializados, como atendimento social, psicológico, e ainda atividades lúdicas e
educativas realizadas por um educador social, proporcionando condições para o fortalecimento da auto estima; superação da
situação da violação de direitos e reparação da violência vivida.
Tem ainda como objetivos, contribuir para a promoção, defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes,
vítimas de algum tipo de violência ,identificar e previnir o agravamento da situação, promover a interrupção do ciclo de
violência através da denúncia ás autoridades competentes, colaborar para a devida responsabilização dos agressores,
favorecer a superação da situação de violação de direitos, fortalecer os vínculos familiares e comunitários e potencializar o
resgate da autonomia e o resgate da dignidade.
O Serviço de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual de Muniz Freire, é um espaço que reivindica
a atuação da sociedade civil por meio da participação política e direitos, no âmbito da proteção, das vítimas de abuso e
exploração sexual, dizendo respeito a própria idéia de cidadania contratualista em Rosseau, isto é, entender que a tarefa de
proteger a sociedade contra os abusos e violência contra o cidadão é tarefa de todos, e a partir disso, teremos como garantido
e reconhecido os direitos dos cidadãos, sendo eles crianças ou adolescentes..
Nenhum tipo de violência contra crianças e adolescentes, é justificável; todas as formas de violência podem e
devem ser previnidas. Contudo, os atuais indicadores, confirmam que este tipo de violência ainda existe em todos os países
do mundo e está presente em todas as culturas,classes, nível de escolaridade, faixa de renda e origens étnicas. Tudo isso, vem
de encontro às obrigações de respeito, aos direitos humanos e às necessidades de desenvolvimento da criança. A violência
contra acriança deve ser muito questionada.
Todas as sociedades, independentes de suas bases culturais, econômicas ou sociais, pode e deve pôr fim à violência
contra crianças. Para que o objetivo seja alcançado, não basta condenar os praticantes deste tipo de violência. È necessário,
também modificar a “mentalidade” da sociedade e as condições subjacentes que a provocam.
Bauman (1999:122) refere-se à punição dizendo que aqueles que punimos são em larga medida, pessoas pobres e
extremamente estigmatizadas que precisam mais de assistência, do que de punição. Nem todos que praticam a violência são
pessoas pobres, pois a violência como já foi mencionado anteriormente ocorre em todas as classes sociais. Contudo, a maior
quantidade de denúncias está associado à classe mais pobre, pois a classe média, consegue encobrir com facilidade as
situações de violência em seus lares.
Bater em uma criança é um hábito universal, considerado pela maioria, como uma forma de educar, um direito dos
pais, não como violência, sendo um reflexo do pátrio poder, havendo negação da face violenta da família..
Sêda (1999, p - 26) refere que para efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes, as normas
constitucionais brasileiras, (artigos 227 e 204), tem por base 3 princípios: da prioridade absoluta na atenção à crianças e
adolescentes; da descentralização na formulação de política pública nesta área; da participação da população através de
organizações representativas na formulação e na execução de políticas de defesa dos direitos.
Com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a sociedade como um todo, assim como o
sistema de Justiça Infanto-Juvenil necessitou reestruturar-se a fim de atender, com adequação, as novas normas, embasadas
no princípio de que a criança é pessoa em desenvolvimento, é sujeito de direitos e é prioridade absoluta.
A violência contra crianças, assume diversas facetas e é influenciada por diversos fatores que envolvem desde as
características pessoais da vítima e do agressor, até seu ambiente cultural e físico. Contudo, grande parte da violência contra
crianças e adolescentes, continua camuflada por muitas razões. Uma das principais é o medo: Várias crianças tem medo de

494
denunciar incidentes de violência contra elas. Em outros casos, os pais, que deveriam proteger seus filhos, se omitem, quando
a violência é cometida por um cônjuge, ou outro familiar, um empregador, um policial, um líder de favelas, entre outros.
...O meu pai fez isso comigo, mas antes fez com as minhas irmãs...mas tia, ele é bom sim.Quando doeu, ele pediu
desculpas e parou...(depoimento de criança de 09 anos, assistida pelo Sentinela de Muniz Freire, que sofreu abuso
sexual)

O medo está estreitamente relacionado ao estigma que normalmente é associado à denúncias de violência,
principalmente em locais, onde a honra da família é mais valorizada do que o bem estar das crianças. Muitas vezes, a
violência também é invisível, porque crianças e adolescentes, e ou adultos, não dispõem de mecanismos seguros e confiáveis
para denunciá-la.Em alguns lugares, as pessoas não acreditam na polícia, no serviços sociais, ou em outras autoridades; em
outras principalmente nas zonas rurais, não há nenhuma autoridade acessível, onde elas possam denunciar os atos de
violência.
Mesmo as consequências da violência para crianças variando de acordo com a natureza e severidade, suas
repercussões a curto e longo prazo são em grande parte graves e prejudiciais. A violência, pode gerar traumas que duram toda
uma vida. Problemas mentais e sociais incluem ansiedade, problemas depressivos, alucinações, comportamentos agressivos,
entre outros. A exposição prematura à violência, pode provocar doenças pulmonares, cardíacas e hepáticas, além de doenças
sexualmente transmissíveis.

Tipos de violência
A violência física na maior parte das vezes, é acompanhada pela violência psicológica. Insultos, humilhações,
rejeição, ameaças, indiferenças, são formas de violência que podem ser prejudiciais para o desenvolvimento psicológico e o
bem estar de um criança, principalmente quando a mesma é relacionada a um adulto respeitado, como um pai. Também é
muito importante que os pais utilizem métodos de disciplina que não utilizem a agressividade. A negligência pode ser
observada em ações como não atender as necessidades físicas e emocionais de uma criança, não protegê-la contra perigos ou
não sujeita-las a tratamento médico, quando necessário.Já a violência psicológica é uma das formas de violência mais difícil
de ser detectada, estando presente não apenas na família, mas também, em outros espaços de convivência da criança e
adolescente.
Ocorre abuso sexual, quando existe um ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual, cujo agressor
esteja em estágio de desenvolvimento psicosexual mais adiantado que a criança ou adolescente. Tem por finalidade estimula-
la sexualmente ou utilizá-la, para obter estimulação sexual. Essas práticas eróticas e sexuais são impostas às crianças ou aos
adolescentes, através da violência física, ameaças ou induções de sua vontade. Este tipo de abuso pode variar de atos em que
não existam contato sexual ( voyerismo, exibicionismo), aos diferentes tipos de ato com contato sexual, sem ou com
penetração ( com dedos, pênis, ou com objetos na região oral, genital ou anal). O abuso sexual engloba ainda a situação de
exploração sexual visando lucros, como por exemplo, a prostituição e a pornografia.
O tráfico de crianças, entro de um mesmo país, e entre diferentes países, constitui uma preocupação internacional
importante. Este fenômeno é complexo, e tem sua origem na interação entre a pobreza, a migração de mão de obra, conflitos,
ou convulsões políticas que provocam deslocamentos populacionais. O tráfico pode envolver múltiplas formas de violência:
sequestro, ou aliciamento por parte de recrutadores em suas transações com crianças, seus pais ou outros responsáveis por
elas, violência sexual que afeta vítimas do tráfico, enquanto são transportadas para seu destino e cativeiro, frequentemente
acompanhado de atos de violência, enquanto esperam, por uma vaga de emprego. A maioria das vítimas do tráfico de pessoas
acaba sendo envolvida em situações marcadas pela violência: exploração sexual, casamentos forçados, e atividades
domésticas ou agrícolas em condições de escravidão, servidão,ou de contração forçada de dívidas.
Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, e por conseguinte, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente,
criado pela Lei 8059/90, oferece várias disposições em conteúdo a inovar matérias relevantes em termos de participação
política e principalmente popular. Assim, o é, nos Conselhos da Criança e do Adolescente, cuja instalação a nível nacional,
estadual e municipal, o Estatuto torna obrigatória, como veículo de representatividade e participação da sociedade civil e do
Estado.
Cabe ainda observar conforme LYRA ( 2001, p. 101), o fato do ECA, tornar – se o primeiro diploma legal a
consagrar no âmbito nacional a democracia participativa paritária, na definição e implementação de uma política setorial.

Considerações Finais
Quando procuramos enfrentar a violência sexual contra crianças e adolescentes ( abuso, exploração), não devemos
restringir as intervenções públicas exclusivamente à responsabilização penal dos abusadores e exploradores, como muitas
vezes se observa. Devemos assegurar simultânea e articuladamente o atendimento médico e ou psico social do abusado e do
explorado, em serviços, ou programas especializados, e igualmente se deve assegurar o monitoramento e a avaliação das
políticas públicas. A mera e isolada responsabilização dos violadores, pode levar a re-vitimização da criança ou do
adolescente circunstancialmente com os seus direitos violados.

495
Falar em proteção de direitos humanos da criança e do adolescente no Brasil, supõe um compromisso com a ótica
dos Direitos Humanos, afastando a possibilidade de se criar um ramo de direitos e um sistema de proteção autônomo e
isolado, para lutar pela emancipação dos cidadãos, especialmente dos dominados em vantagem social.
Sendo assim, devemos reconhecer esta parcela da população como portadora de direitos, e sua vulnerabilidade,
como socialmente produzida, ao longo de um processo histórico.

Referências
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América Latina.4.ed.São Paulo:Adês.
UNICEF. (2000) Violência Doméstica.

496
População, gerações e ciclos de vida

A formação do indivíduo alicerçada em valores éticos e religiosos


Márcia Mello Costa De Liberal
Universidade Presbiteriana Mackenkie
[email protected]

Marcela Bacchini Meneghin


Universidade Presbiteriana Mackenkie
[email protected]

Resumo: Em decorrência da crise de valores vivenciamos, hoje, a deterioração e o afastamento de valores anteriormente aceitos, reflexos da
modernidade, da globalização, do caráter pragmático e utilitarista das relações do homem com a natureza, dos homens entre si e, principalmente,
do individualismo exacerbado. Por isso, emerge o imperativo de que através da educação sejam gerados cidadãos autônomos, cônscios,
responsáveis e solidários. Ou seja, pessoas capazes de ordenar suas ações pelo critério de igualdade de direitos e deveres que, através do vivenciar
de valores éticos e religiosos, possam coexistir harmoniosamente. O grande desafio aos educadores consistirá em afinar suas ações pedagógicas
pelo diapasão da ética e da religião para que, além do embasamento científico-cognitivo indispensável, possam ser construtores de uma ordem
social válida universalmente. Toda ação humana é sempre fruto de uma valoração prévia. Nossas ações são intencionais na busca de atingirmos os
fins colimados. As leis de diretrizes educacionais trazem sempre em seu bojo ideais filosóficos e valorativos. E, por serem os valores os
determinantes de nosso agir e se integrarem o campo da ética e da religião, é preciso refletir sobre uma educação que ao trabalhar valores
possibilite a formação de indivíduos que almejem a construção de um mundo melhor.

Introdução
No presente artigo, trataremos de reflexão sobre a erosão de valores transcendentais, inerentes à natureza humana,
desgastados em seus conceitos, na modernidade em que vivemos.
Analisaremos a importância da religião como mola propulsora do comportamento individual e o lugar de destaque
ocupado pela educação na formação da personalidade.
A necessidade de resgate de valores éticos e religiosos foi captada também pelos legisladores da atualidade, uma vez
que, a própria lei de diretrizes educacionais preconiza a importância de, pela educação, serem formados hábitos e atitudes que
possibilitem a convivência em harmonia, o progresso e realização pessoal, bem como a construção de uma sociedade mais justa.
Como toda educação reflete sempre o ideal filosófico da época, caracterizaremos quais os fins colimados em nossa
sociedade e procuraremos demonstrar a urgência de serem reformulados conceitos educativos e do perfil do professor, para que se
possa realmente atingir à formação plena do educando.

1. Embasamento filosófico da Educação


Toda educação reflete anseios culturais e temporais, atendendo sempre a fins especiais em consonância com a sociedade
em determinado tempo e lugar.
A premissa básica da educação é indubitável o pleno desenvolvimento do ser humano, sendo a educação considerada
como instrumento importante para a realização individual e da sociedade como um todo.
A educação entendida como o desenvolvimento das potencialidades de todos os inerentes valores do ser humano, é a
tônica comum a todos os povos que visam à formação integral do individuo.
Ao longo do tempo, os ideais filosóficos da educação sofreram transformações, sem, no entanto se afastarem do fim
primeiro: o desenvolvimento do ser humano.
Desde os tempos remotos o principal objetivo colidindo pela educação era desenvolver a personalidade.
Partiu da Grécia a idéia do desenvolvimento da personalidade, considerando a educar como preparação para a cidadania.
Formularam, os gregos, o conceito de homem racional e de personalidade moral, considerando que cada individuo encontra na sua
natureza racional o direito de determinar os próprios fins na vida.
Cultivaram os gregos através da educação, valores correlacionados a direitos e deveres, piedade, obediência,
racionalidade e bravura; porém a coragem devia sempre subordinar-se a reverencia e ao equilíbrio.
Os ideais educacionais romanos valorizam a prudência e a seriedade, que se caracteriza por solidariedade na conduta.
Com o cristianismo, o ideal de educação passou a ser apenas a preparação para um estado futuro: a outra vida.

497
Segundo Larroyo (1969, p.239)
“...a Idade Média percorreu em sentido contrario o caminho que os gregos haviam andado no domínio da cultura. Na Grécia
tiveram origem à ciência, a filosofia do prazer intelectual e estético, do saber pelo saber, e só mais tarde, este foi colocado
paulatinamente a serviço das necessidades praticas, das tarefas morais, das ânsias religiosas.”

No renascimento a educação alicerçava-se nos ideais de homem livre, da personalidade humana livre e conforme Da
Rosa (2001, p.117)
“... Esta nova maneira de encarar a vida provocou um tipo diferente de educação, chamada humanista, cujo desejo era a
formação da personalidade humana.”

O Renascimento revigorou os ideais filosóficos educacionais greco-romanos, valorizando o homem e a natureza humana
em oposição ao divino e sobrenatural que predominou na Idade Média.
Durante muitos anos, a escola preocupou-se com o preparo do cidadão para integrá-lo à sociedade, ou para acumular
conhecimentos, ou para exercer uma profissão, a fim de satisfazer suas necessidades de sobrevivência. Nas ultimas décadas,
porem dá-se especial ênfase com a formação integral do ser humano.
Atualmente, a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 9394/96, ressalta em seu artigo 35, o objetivo da
formação integral do aluno, o desenvolvimento de suas potencialidades e habilidades, a formação de atitudes e valores, objetiva
ainda o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento critico.
A legislação básica da educação em nosso país, enfatiza sua importância afirmando que esta não deve estar vinculada
exclusivamente ao mundo do trabalho, mas também a pratica social; analisada sob o enfoque da pratica social é preciso que
prepare o individuo para uma convivência harmoniosa com os demais membros do grupo social a que pertencia e para tanto é
importante que sejam compreendidos e respeitados determinados valores aceitos e preconizados por nossa sociedade. Em seu
artigo 27, ressalta, a L.D”.B, a importância da difusão de valores fundamentais aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao
bem comum e a ordem democrática”.
Frisa também no artigo 32, a importância da formação de atitudes e valores que possibilitem o fortalecimento dos
vínculos familiares, da solidariedade humana e da tolerância recíproca na qual se alicerça a vida social.
Em seu artigo 35, pontua que a educação deve visar ao aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a
formação ética que se fundamenta em valores transcendentais ao ser humano.
Para melhor esclarecer à importância a ética para a educação, citamos Severino (1941, p. 183):
“...o ser humano não age de forma mecânica, a sua pratica é sempre intencional, marcada por uma referencia a objetivos e
fins (...) Ao agir o homem está sempre se referenciando a valores, de tal modo que todos os aspectos de sua realidade, todos
os objetos de suas experiências, todas as situações que vive e todas as relações que estabelece são atravessadas por um
coeficiente de valoração.”

2. A Defasagem dos Valores na Atualidade


Toda ação humana é fruto de uma valoração prévia.
Assistimos hodiernamente a um processo de deterioração de valores; não há referencias sólidas em termos de valores: os
que vigoravam anteriormente, ou foram esquecidos, abandonados ou relegados a um segundo plano.
Vimos que a modernidade, conforme o pensamento Weberiano está abalada pela perda das crenças tradicionais e dos
sentimentos que conduziam as condutas humanas.
Em decorrência dessa erosão de valores transcendentais, emerge uma forte influencia sobre o individuo e sobre a
sociedade; percebemos que atualmente os sentimentos que muitas vezes comandam o comportamento humano são:
individualismo e o utilitarismo. O advento da modernidade, o positivismo cientificista e o materialismo exacerbado, promoveram
um ser humano desencantado com os valores transcendentais, e com o sagrado. As gerações atuais encontram dificuldade em
transmitir suas tradições.
Assistimos cotidianamente a um desabamento de valores, uma defasagem e consequentemente o surgimento de um ser
humano “vazio”.
No pensamento de Barrere (2001, p. 265)
“... as sociedades contemporâneas, por falta de normas morais objetivas, não favorecem a emergência progressiva de um
novo modelo ético, mas antes, a simples preocupação com a manipulação dos outros (...) Desprovido de modelos éticos
substantivos, o individuo limita-se a fazer malabarismos entre ideais distintos e até contraditórios, em meio aos quais se
limita a desenvolver estratégias contingentes, adaptadas e manipuladoras...”

A dimensão moral é taxada de “careta” e ainda a concepção de Barrere (2001, p. 269)

498
“... com o tempo será reduzida a sua menor funcionalidade organizacional, isto é, a disciplina e o respeito ao regulamento, e
a sua menor abrangência, o bem e o mal são definidos apenas em razão de sua simples utilidade para a preservação da vida
organizacional”.

Sentimos que os valores foram esvaziados, e infelizmente não foram criados outros conceitos que viessem a substituir
aos ditames filosóficos da ética, daí a consequência de assistirmos a processos de agressividade e violência, geradores de tensão e
conflito social.
Muitos educadores e filósofos preocuparam-se com o estudo e a importância dos valores na formação do ser humano,
refletindo sobre a axiologia.
Aranha (1989, p. 62) assim se pronuncia:
“O homem é um ser cultural, capaz de transformar a natureza a partir de suas necessidades especiais”

Desde o nascimento o ser humano escolhe os fins de sua ação, utilizando-se de valores legados pela sociedade onde se
insere, reflexos do ambiente cultural. Esse universo cultural é formado por um conjunto de valores que determinam sua ação, seu
comportamento em diferentes situações: no falar, no agir, no vestir, em seus padrões estéticos, seus direitos e deveres, os quais
terão nuances diferenciais de uma para a outra sociedade, de uma para outra nação.
Para Scheler, filosofo alemão (apud Aranha, 1989, p. 9): os valores são essências puras, a priori, intemporais e
hierarquizadas, objeto de instituição emocional, os quais ocorrem na consciência.
Martinelli (1996, p. 16), pontua que, talvez a violência que grassa atualmente esteja lastreada nos esquecimento desses
valores éticos, por julgarem retrógrados e sem utilidade material:
“... sem o exercício dos valores intrínsecos ao ser humano, andams por caminhos de dor, deteriorando a qualidade de vida
no planeta. Neste século fomos marginalizados por ideologias que inverteram a escala de valores e assim estabeleceram
tensões socioeconômicas, gerando perplexidade, individualismo e desalento”.

A importância de serem cultivados valores imateriais na formação do ser humano se patenteia através do pensamento de
muitos filósofos atuantes no campo da educação.
Durkheim (1978) afirma que existe em toda a sociedade um determinado numero de idéias e de sentimentos comuns,
valores esses que asseguram a continuidade da vida coletiva. A sociedade só pode manter sua estrutura e coerência por meio de
uma fé comum, de um consenso, e este só pode ser estabelecido através de crenças.
Segundo Borges (2002) nenhuma ordem social será verdadeiramente democrática se negar, por defeito de sua estrutura
econômica ou social, ou ainda pela incapacidade de seus sistemas de governo, a oportunidade do pleno desenvolvimento das
virtualidades inerentes a todos e a cada um em particular.
Augusto Conte, pai do positivismo cientifico também se preocupava com a formação do ser moral, com o
desenvolvimento de valores inerentes ao ser humano.
Conte (apud Da Rosa, 2001, p. 107) afirmava que:
“Todos os fenômenos sociais como os físicos devem ser reduzidos a leis de todo o conhecimento cientifico e filosófico deve
ter por finalidade o aperfeiçoamento moral e político da humanidade”.

Johann Heinrich Pastalozzi, afirmava que deveria ser através da educação, promovido o desenvolvimento psíquico da
criança. Para ele
“o amor ao próximo e a idéia de que a problemática social é a questão da educação, de formação moral de consciência e de
amor ao semelhante”. (Da Rosa, 2001, p. 195)

Todos nós trazemos ao nascer os valores permanentes que se desenvolverão com a evolução da educação e do
autoconhecimento, afirma Martinelli. Para essa autora (1998, p. 15) o amor é “energia inesgotável que move o mundo, os
universos e os seres. É força de criação, coesão e sustentação da vida. O amor é energia de unidade e transformação, vivemos num
universo dual entre pares de opostos e a relatividade; o amor é o impulso de integração.”.
Conforme o pensamento de Sathya Baba (1996): “a educação sem caráter é como uma fruta sem suco, ou como uma
vaca que não fornece leite”, ou seja, os valores humanos não são passíveis de serem obtidos em um texto, nem comprados em
supermercados; são uma atitude natural que provem do coração.
Ao refletirmos sobre as ponderações de vários autores percebemos que há imperiosa necessidade de que se promova o
desenvolvimento do ser humano, assentado no cultivo de valores. Esses valores poderão e deverão ser trabalhados através da
educação.

499
3. A Importância de Valores Éticos e Religiosos no Arcabouço da Educação
Vimos que a educação, visando ao pleno desenvolvimento do ser humano, é a tônica de todos, considerando-a como
instrumento para o progresso individual e social.
A grande preocupação do momento, em termos de educação, consiste na revisão de seu conceito em dar-lhe uma visão
mais moderna, em consonância com as novas exigências mundiais a fim de proporcionar uma resposta eficiente aos desafios da
modernidade.
Uma nova educação que possa atender às céleres mudanças que caracterizam o terceiro milênio. Deve gerar um novo
homem e uma nova relação deste com o mundo. Um cidadão que possa pensar criticamente, agir com eficiência, sentir
criativamente, ou seja, um homem com formação integral.
Compete à educação preparar o homem para viver em harmonia com o meio onde se insere.
Continuando nossas ponderações citamos Castro (1980, p. 83):
“as sociedades para sobreviverem dependerão de existir entre seus membros, suficiente homogeneidade [...] a educação
perpetua e reforça essa homogeneidade, fixando de antemão, na alma da criança, as similitudes essenciais exigidas pela vida
coletiva.”

Toda instituição educativa, é na verdade, na visão de Durkheim, um meio pelo qual a sociedade prepara, no intimo das
crianças, as condições necessárias para a sua própria existência.
A educação promove um esforço consciente para impor às crianças maneiras de ver, agir, e sentir necessárias à
sociedade. O objeto da educação é formar o ser social e para isso há costumes, hábitos, valores socialmente aceitos, que devem ser
incorporados pelo individuo. Esse autor ressalta a importância da educação e da religião como meios para promover a elevação do
ser humano.
Considerando a função das instituições educativas, a desagregação de costumes e valores de nosso tempo, vimos
emergir imperiosamente a importância de uma educação lastreada em valores éticos e religiosos.
Estudiosos emitiram suas reflexões sobre a importância da religião como ação educativa.
Para Berger, a religião é força poderosa que torna plausíveis e duradouras as construções sociais da realidade. A religião
é um agente impulsionador da construção do ser humano; essa afirmativa pode também ser corroborada sob a ótica da psicologia.
Segundo Jung, há em cada ser humano uma dimensão religiosa que estando presente em nossa psique, será capaz de
nortear nossas ações.
“... o arquétipo das idéias religiosas possui como todo instinto, a sua energia específica, que ele não perde ainda que sua
consciência a ignore. Assim como ser afirmado com a maior probabilidade que todo ser humano possui, todas as funções e
qualidades medias, podemos supor a presença de fatores religiosos normais. (Jung, 2003, p. 76)

Ainda para o mesmo autor, o pensamento religioso tem sua origem na alma humana e se expressa através de uma imago
dei uma deidade interna. O arquétipo da religiosidade denomina-se “self” e nele se encontram as forças necessárias para o
ajustamento do individuo, para vencer os óbices da existência.
Dessa maneira, o pensamento religioso pode ser considerado como o centro de toda a personalidade, capaz de orientar,
dirigir e dar sentido à vida, conduzindo o individuo a sua autonomia. A religião é o arquétipo impulsionador, pois é o impulso
emanado da imago dei impressa no mais profundo de nosso ser.
Para Berger e Luckmann (1985) a religião é uma forma para o homem conhecer o mundo e situar-se nele; para o homem
se entender e explicar-se a si mesmo. A religião é a capacidade de fazer com que o ser humano transcenda sua natureza biológica,
através da construção de universos de significados objetivos que obrigam moralmente e que tudo abarcam.
De acordo com Severino (1992, p. 140) somos sempre motivados por valores éticos e religiosos, pois nosso agir não
acontece mecanicamente, mas resulta de nossos juízos valorativos, os quais legitimam nossas ações. Educação ética e religiosa
deve ter um espaço na educação contemporânea:
“Deve ocupar lugar de destaque, uma vez que continuamos encontrando dificuldades para resolver os problemas de nosso
agir”.

A religião representa importante fator na formação do ser humano, pois ela fornece-nos modelos de identidade e nos
propicia pontos referenciais para entendermos os direitos humanos, a importância de valores imateriais como igualdade, justiça e
fraternidade. Nossas convicções religiosas são molas propulsoras de nosso desempenho social.
Se atualmente a educação preocupa-se com a formação integral do aluno, é importante que se fundamente também em
valores imateriais: éticos e religiosos.
A modernidade obriga a escola a cumprir um duplo papel: transmissão do acervo cognitivo e seleção social; por outro
lado deve formar o educando, buscando uma figura ideal de individuo aceita por todos na sociedade, através da formação de
hábitos e atitudes que possam ser aceitas e aplaudidas pelo grupo social, onde essa escola se insere.

500
Então, para cumprir sua dupla finalidade, a agência educativa escola, visando à formação plena do individuo, necessita
preocupar-se com a vivência de valores éticos e religiosos.
Para a formação de uma sociedade mais ética, mais equilibrada que forme o individuo e propicie sua real integração
social, sua auto-estima e auto-realização é urgente que agencias educativas formais e informais (lar, escola, igreja, grupo social,
profissional, etc.) promovam o resgate de valores éticos e religiosos os quais deverão constituir-se em base sólida para a
construção de uma sociedade melhor.

4. Perfil do Novo Professor


Vimos anteriormente que a educação para adequar-se aos ditames legais e as novas exigências sócio-culturais, deverá
sofrer alterações conceituais.
Uma vez que, a lei que traça as diretrizes da educação nacional preconiza a formação integral do educando, o pleno
desenvolvimento de todas suas qualidades, virtudes, potencialidades e habilidades, o aprimoramento do aluno como pessoas
humanas incluindo em suas normas, também a formação ética há em decorrência dessa nova finalidade mais abrangente, uma
urgente necessidade de reformulação de seus conceitos.
A escola deve preparar o aluno para uma convivência harmoniosa com seus pares, portanto, deve revisar seus
conteúdos, a fim de trabalhar também com a formação de hábitos e atitudes necessárias ao seu bom ajustamento no meio em que
vive.
Por todas essas razões sentimos a imperiosa necessidade de que a educação trabalhe visando ao desenvolvimento de
valores imateriais, os quais são imprescindíveis para seu viver harmonioso.
Entre os valores há que se considerar a igualdade, a justiça, a responsabilidade, o respeito, o amor, a tolerância, a
fraternidade e tantos outros úteis para melhor vivermos. Já sabemos que esses valores não são passiveis de serem comprados; só
serão adquiridos se vivenciados no cotidiano.
Para que o aluno possa ser exercitado a vivenciar esses valores, é necessário que eles também façam parte dos hábitos e
atitudes dos professores.
Para se mudar a conceituação de educação, há que se transformar também a formação dos professores. O novo perfil do
professor exigirá que:
a) o professor sinta amor por sua profissão, pois esse sentimento é, no dizer de Martinelli (1998, p. 18) “energia
inesgotável que move o mundo, os universos e os seres”. É força de criação, coesão e sustentação da vida;
b) seja guiado pela fé, que possa acreditar em si mesmo e em seus semelhantes;
c) saiba ser generoso, doando-se a fim de superar seu egocentrismo para a comunhão com os demais;
d) possa compreender e respeitar as diferenças individuais. Gadamer (2000, p. 23) menciona que:
“compreender não é, em todo caso, estar de acordo com o que ou quem se compreende. Tal igualdade será utópica.
Compreender significa que posso pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que diz e com o que
propriamente quer dizer”.

Compreender o outro é a capacidade de ser sensível ao mundo a sua volta, aos fatos, às idéias, e interagir com seu
universo, sem deixar de ser ela mesma com corromper os seus princípios.
Como observa Tracy (apud Teixeira, 1997)
“compreender o outro é antes de tudo uma arte que exige uma atitude de grande abertura e despojamento e sobretudo uma
sensibilidade hermenêutica, na medida em que a relação com o outro envolve sempre a possibilidade efetiva de uma
apropriação de outras possibilidades [...]; ter uma consciência ética, agir com honra e dignidade pois será indiscutivelmente,
o espelho no qual os alunos irão mirar-se. É preciso que tenha sólido ancoramento de valores éticos e religiosos e os
vivencie em sua experiência docente”.

Conforme Arroyo (2000, p. 46),


“educar educadores desse dever-ser, é mais do que dominar técnicas, métodos e teorias; é manter-se numa escuta sempre
renovada, porque essa leitura nunca esta acabada. Como uma matéria pendente, nunca aprovada. Um saber pedagógico mais
para ser vivido do que transmitido. Aprendido num dialogo atento, em primeiro lugar, com os diversos aprendizados, com o
próprio percurso de nossa formação e com os percursos daqueles com os quais temos o privilegio de conviver mais de perto,
filhos, amigos, alunos”.

É importante que o conhecimento seja um objetivo a ser buscado conjuntamente pelo professor e pelo aluno. Aceitar a
aula como um espaço de convivência é assumir a dimensão humana desta aula e do processo de aprendizagem que nela ocorre.
É preciso que sejamos despertados para a valorização de pilares fundamentais da educação, alicerçados em dignidade,
solidariedade, responsabilidade, respeito, união, amor, fraternidade e liberdade.

501
Além da necessidade de que as ações do professor se caracterizem em espelho de valores imateriais a ser imitado por
seus alunos, é importante que o professor também reconheça o valor da ética e da religião como balizas de suas ações para que
possa estabelecer com seus alunos um dialogo fundamentado no amor e na compreensão dos direitos do outro. Só assim se poderá
chegar à formação integral do aluno.
É necessário que através da vivência de valores compreenda com clareza a importância da solidariedade e da
fraternidade para minorar as diferenças, a injustiça social, a fim de se promover um viver pacifico e harmonioso que possibilite a
humanização do individuo e através dele da sociedade.
Os valores éticos não poderão ser trabalhados de forma estanque, mas sim por todos os professores numa
multidisciplinaridade; urge que todas as instituições educativas formais e informais, atuem em conjunto para que se possa realizar
a contento o objetivo de formação plena do educando, de seu preparo real para uma cidadania que possibilite a transformação da
sociedade tornando-a mais justa.
Por último, consideremos a função dúplice da educação.Nesse inicio do século a grande preocupação deve ser com a
formação de hábitos e valores éticos exercitados nas atitudes comportamentais dos alunos para que haja o real desenvolvimento
de todas as suas potencialidades. Atualmente a educação não é mais a mera transmissora de conhecimentos, mas deve formar o
caráter e a personalidade.
A educação deve ter dois enfoques: o material e o espiritual. O primeiro relaciona-se com o conhecimento do mundo
físico, da natureza, para que o ser humano possa atuar sobre ele. O segundo aspecto relaciona-se ao desenvolvimento das
características imanentes a natureza humana. Além do aspecto físico e tangível do conhecimento, há toda uma característica não
palpável, a centelha divina existente em cada ser humano.
Só, assim, a educação alicerçada nesses dois aspectos poderá propiciar a conscientização de valores fundamentais ao
interesse social, aos direitos e deveres do cidadão, do respeito ao bem comum e à ordem democrática.
Para tanto, o grande desafio dos educadores consistirá em afinar suas ações pedagógicas pelo diapasão da ética e da
religião, para que, além do embasamento cognitivo - científico, possam ser os construtores de uma ordem social válida
universalmente.

Considerações Finais
Após analisarmos o pensamento de filósofos e educadores que se preocupam com a educação, foi nos possível entender
que novos rumos deverão ser dados, novos caminhos deverão ser trilhados, para que a educação cumpra suas reais finalidades.
O objetivo da educação nacional lastreado na legislação vigente, aponta para a necessidade de formação integral do
aluno; da aquisição de hábitos e atitudes que lhe propiciem o viver harmonioso e profícuo em seu contexto social.
Em decorrência do caráter pragmático e utilitarista das relações do homem com a natureza e com seus semelhantes, das
céleres mudanças trazidas pela modernidade, do avanço tecnológico e da globalização, assistimos, em nosso tempo a um
afastamento e deterioração de valores os quais vigiam anteriormente. Os valores aceitos por nossos antepassados foram, ou
esquecidos ou relegados a um plano inferior, não sendo substituídos por outros.
Uma vez que, toda ação humana é fruto de uma valoração, que os valores imateriais, éticos e religiosos imanentes aos
ser humano, precisam ser resgatados urgentemente, e que somente a educação poderá promover esse resgate, é imperioso que haja
reformulação de conceitos educativos, visando não só a adequação aos princípios legais, mas também as necessidades sócio-
culturais.
É preciso que todas as agências educativas participem desse processo, a fim de que, vivenciando valores éticos e
religiosos possam contribuir para a formação de cidadãos autônomos, cônscios de suas responsabilidades que promovam a
construção de um mundo melhor.
Ressaltamos a imperiosa necessidade de revisão do papel dos professores para que além do conhecimento cognitivo -
cientifico possuam e exercitem seus valores imateriais para que possam ser os modelos em que se espelhem os alunos e também
ser construtores de uma ordem moral e social cuja validade seja universal.

Referências Bibliográficas
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As políticas sociais e o protagonismo da criança e do adolescente


João Clemente de Souza Neto1
Centro Universitário FIEO
[email protected]

Resumo: O processo de democratização da sociedade brasileira requer que as políticas sociais incluam em sua metodologia o protagonismo das
crianças, adolescentes e famílias. Acreditamos que esta perspectiva permitirá ao Estado e à sociedade brasileira romper com a cultura paternalista,
assistencialista e coronelista, que fortalece historicamente a desigualdade social e mecanismos excludentes, mais do que o exercício da cidadania e
da ética. As pesquisas que tenho desenvolvido neste campo demonstram que as políticas sociais, muitas vezes, servem aos interesses do mercado,
em detrimento da emancipação do sujeito.
O que hoje se constata é que os investimentos em abrigos e programas que atendem à criança, ao adolescente e à família são altíssimos com um
retorno inexpressivo. Garantem demandas mercadológicas e políticas, sem responder às exigências da sociedade, da comunidade, da família e dos
indivíduos. Quando contam com a participação das famílias, crianças e adolescentes, as políticas de atendimento apresentam resultados mais
satisfatórios. Nosso foco de análise é uma experiência da pastoral do menor nos municípios de Diadema, Osasco, Barueri e na Região Oeste da
cidade de São Paulo, que compõem a Grande São Paulo.

O marco norteador desta análise é a doutrina de proteção integral, que se opõe à doutrina de situação irregular.
Refletindo sobre esses dois paradigmas, podemos perceber a dramaticidade da situação de crianças, jovens e familiares. Se houve
um avanço do paradigma da doutrina de proteção integral, por um outro ângulo, também se fortaleceu a industrialização dos
direitos humanos, comercializados como mercadorias. Isto se pode verificar no marketing dos bancos, das empresas e do Estado.
Sua fala sobre a importância dos direitos humanos não nega a promoção de financiamentos de práticas que violam esses direitos.
Há, nas organizações, uma epidemia da chamada responsabilidade social, a qual, no fundo, escamoteia uma intencionalidade de
salvação do capital.
Com base no Censo do IBGE2, no ano 2000, existiam no Brasil 61 milhões de crianças e adolescentes, assim
distribuídos por faixa etária: 23 % entre zero e seis anos; 27 % na faixa de sete a 14 anos; 11%, entre 15 e 17 anos. Cerca de 45%
dessa população pertenciam a famílias com renda per capita de meio salário mínimo. Apesar de sua redução, o índice de
mortalidade infantil era ainda de dois dígitos em 2003, isto é, de 26,6 por mil crianças nascidas vivas. Apenas 71% das crianças
de quatro a sete anos e 13% com zero a três anos frequentavam a educação infantil; 28,8% das famílias tinham somente mulheres
como referência e comando. Talvez a grande matriz geradora de violação de direitos seja a desigualdade social acompanhada de
preconceitos.
No que refere à juventude, os documentos oficiais3 constatam que o Brasil possui 25 milhões de adolescentes na faixa
etária de 12 e 18 anos. Isto significa quase 15% da população. A desigualdade social pode ser caracterizada por meio dos
seguintes índices: 01% da população rica detém 13,5% da renda nacional, enquanto aos 50% mais pobres restam 14,4%. Das
famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo 20,5% são brancas e 44,1% são negras. Nas cidades, a taxa de
analfabetismo é de 12,9% entre os negros e de 5,7% entre os brancos, sendo que os adolescentes entre 12 e 17 anos da raça/etnia
brancos têm quatro vezes mais possibilidades de ser alfabetizados do que os negros.
Tendo como referência a totalidade da população para verificação de mortes por homicídios, percebe-se que o segmento
juvenil é o mais atingido. O número de adolescentes em conflito com a lei e no cumprimento de medidas sócio-educativas é cada
vez maior. O perfil dessa população é maciçamente composto pelo sexo masculino, entretanto, há um crescimento do sexo
feminino, numa média de 80 para 20. A predominância é de afrodescendentes e de jovens que não concluíram o ensino

1
João Clemente de Souza Neto é mestre e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, e pós-doutor na mesma Instituição; pesquisador e professor licenciado na
Universidade Presbiteriana Mackenzie; pesquisador e professor no Centro Universitário FIEO; pesquisador e membro do NESCCI-PUC-SP. É consultor da Prattein,
membro do Instituto Catequético Secular São José, presidente da Ages e agente da Pastoral do Menor da Região Episcopal Lapa, São Paulo, instituições que defendem
os direitos da criança e do adolescente. End. Eletrônico: [email protected]
2
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
3
Os documentos que estão servindo de base para consulta estatísticas neste texto são: 1. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. 2. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Publicados pelo Conselho nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Conanda) e pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Brasil.

503
fundamental, possuem histórico de dependência química e vivem em famílias de baixa renda, que já cometeram também atos
infracionais. O modelo pedagógico das instituições de atendimento sócio-educativo que aplicam medidas de internação encontra-
se esgotado.
Como podemos constatar, após 18 anos da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), persistem as
violações de direitos, como o trabalho infantil, violência doméstica, abuso e exploração sexual, um índice altíssimo de
mortalidade juvenil, muitos jovens sem uma profissionalização adequada para responder aos desafios do mercado. Esta realidade
se evidencia na precariedade habitacional e no acesso à rede de saneamento. O que se destaca é que o índice de pobreza atinge a
mais as crianças e adolescentes negras. Acreditamos que a municipalização das políticas sociais pode ser uma saída do mal-estar
social brasileiro. Mostram os indicadores sociais que o atendimento à população infanto-juvenil melhorou, nos locais onde foi
implantada.
O desafio que se coloca hoje no país, com base no ECA, é descobrir quais são os conteúdos essenciais da cultura da
doutrina de proteção integral. Acredita-se que isto ficará estabelecido pelas articulações e pela organização da sociedade civil nos
municípios, que tendem a consolidar o bem-estar pessoal, familiar e social. A Pastoral do Menor reúne as condições para ajudar o
Estado e a sociedade a perscrutar as necessidades das crianças e dos adolescentes e evitar que se transformem em mercadoria. Ela
também luta para se libertar dos velhos valores culturais, estabelecidos na doutrina da situação irregular, e para implantar uma
nova sociedade.
Por essas razões, defendemos que as práticas sociais e os direitos humanos devem ser compreendidos e analisados no
bojo das questões sociais. Estas são mais do que uma expressão da pobreza, da miséria e da exclusão.

1. As contradições da rede de proteção integral


A base da política de assistência destinada à criança e à juventude, no Brasil, é a doutrina de proteção integral. De um
lado, esta doutrina delineia os fundamentos dos direitos humanos, aplicados a esse segmento. Por outro olhar, quando tomamos
como referência as políticas de Governo, percebemos que ela é frequentemente instrumentalizada, com finalidades eleitoreiras e
mercantilistas. Considera-se o século XX como a era dos direitos humanos. Entretanto, esses mesmos direitos foram capturados,
pelo mercado, pelo Estado e pelos partidos políticos, como instrumentos de defesa e proteção da mercadoria e das classes que
detêm o poder econômico e político.
Não somos pessimistas, mas constatamos a ambiguidade da doutrina de proteção integral, sem a qual, contudo, crianças,
adolescentes e a população em situação de vulnerabilidade estariam em condições muito mais precárias. Os dados estatísticos têm
apresentado melhorias significativas na vida dessas pessoas, mas as questões emergentes sinalizam que o reconhecimento de um
direito logo suscita outros direitos. A realidade econômica apropria-se desses direitos a seu favor, muitas vezes em detrimento da
vida humana. Por mais paradoxal que pareça, o direito se volta contra a própria pessoa.
Um exemplo dessa realidade, no Brasil, são as famosas “pilantropias”. Centenas de empresas sobrevivem da
industrialização dos direitos humanos. Neste sentido, estes deixam de garantir a vida, para sustentar o mercado. Acreditamos que
nenhuma análise seja capaz de capturar todas as perversidades que sofreram as crianças e adolescentes no Brasil. A doutrina de
situação irregular influenciou as práticas jurídicas e culturais da América Latina, conservando-se vinculada à doutrina de
segurança nacional. No caso brasileiro, esta doutrina está desenhada na Constituição Brasileira de 1969 e no Código do Menor,
Lei Federal 6.697, de 10 de outubro de 1979. Influencia as práticas de atendimento e persiste como dado cultural.
Ao contrário da doutrina de proteção integral, a doutrina de situação irregular concebe a assistência como medida de
proteção e vigilância. Uma concepção que permeia o Código do Menor de 1969 é que a família pobre perde o vínculo com os
filhos. A tônica dessa legislação era responder, pela institucionalização, à complexidade da questão do menor, culpabilizado por
sua sina e rotulado com os estereótipos de “marginal, trombadinha, delinquente, abandonado, desviado”. Mais punitivo do que
educativo, o princípio pedagógico do Código do Menor era ajustar os pobres e os miseráveis aos interesses econômicos e sociais,
sem perturbar e sem alterar a ordem.
As práticas decorrentes dessa concepção ampliavam as condições para o fortalecimento de uma educação para o desvio
ou conflito com a lei.
“[...] quanto mais desacreditado for o menor, mais merecedor ele se torna de ser internado numa unidade mais fechada. E,
ao contrário, quanto menos desacreditado ele for, mais chances julgam que ele deva ter numa unidade menos fechada. A
descrença relativa à consecução dos objetivos institucionais é atribuída antes ao menor do que à ação institucional.
Concebido como culpado por sua recuperação, seu fracasso serve para reafirmar as suposições feitas a priori sobre sua
identidade e para justificar a reprodução das práticas institucionais” (Violante, 1985:110).

As instituições se responsabilizam pelo tratamento, cuidado e abrigamento do menor socialmente marginalizado, em


razão de conduta anti-social, abandono, negligência e falta de condições econômicas da família. Em síntese, a família é
desqualificada, num ranço que persiste em nossa cultura. É bom recordarmos que até os anos 30, a pobreza era julgada como
questão policial. Ainda hoje, as políticas de atendimento voltadas à criança e ao adolescente desacreditam da família e,

504
frequentemente, a eximem de responsabilidade. Nesse caso, a criança e o adolescente são concebidos como feixes de carências e a
família que não dispõe de condições materiais, emocionais e afetivas é definida como incapaz de manter a prole.
As entidades assistenciais, algumas em situação tão precária quanto a da família, assumem o papel de cuidar dessa
população. Num instante, desautorizam a família como agente de educação e de cuidado da prole, e a eximem, frequentemente, de
responsabilidade. Nesse sentido, observa-se uma exigência de que as políticas sociais fortaleçam as famílias. Elas não devem ser
vistas como concorrentes, mas como parceiras dos programas. O confinamento é um dos modos de esconder aquilo que a
sociedade entende como párias e de enfocar a pobreza como questão judicial, policial e religiosa (cf. Foucault e Goffman).
Gostaríamos de registrar que é importante estabelecer estudos do ponto de vista da instituição, mas que é também
necessário compreender as práticas sociais dessa população supostamente marginalizada e concebida como desviante. Não se
pode entender essas práticas como revolucionárias ou de contestações políticas, mas antes como forma de denunciar as práticas de
exploração e submissão, e o caos pedagógico. “São comportamentos de não submissão às condições que lhe são impostas, as
quais se espera que ele se adapte pela sujeição.” (Violante, 1985:190.)
Ao contrário, a doutrina de proteção integral, preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vê a
população infanto-juvenil como protagonista. Essa visão ultrapassa a perspectiva de Winnicott (1987:129), que concebe o furto, a
agressão e comportamentos não-adequados como práticas anti-sociais e acredita que as manifestações de privação e delinquência
são ameaças à sociedade, tão perigosas quanto bombas. Esta concepção pode dar sustentação às práticas da doutrina de segurança
nacional, que via o menor como perigo e como ameaça à “ordem”.
Como demonstra Foucault, a sociedade sem criminalidade é um projeto do século XVIII. Hoje, é quase impossível
pensar uma sociedade isenta de crimes. Criminalidade, delinquência e desvio são condições organizacionais da sociedade. Sem a
delinquência, não se justificariam os aparatos repressivos e outras formas de organização social contemporânea. Em síntese, “[...]
tanto a criança quanto o adulto delinquente justificaram a criação de uma superestrutura jurídico-burocrático-administrativa”
(Silva, 1997:159), que persiste, motiva e dá certa explicação racional do abandono, do crime e do desvio, enquadrando os sujeitos
destituídos de direitos.
Ao fazer uma análise da obra de Marx e de Balzac, Lefèbvre recupera a idéia de que
“[...] criminoso não produz somente crimes, mas também o direito criminal, o professor que faz cursos sobre o direito
criminal e até o manual inevitável, onde esse professor condensa seu ensinamento, com vistas à venda. [...] O criminoso
produz, além do mais, toda a organização da polícia e da justiça criminal, os juízes, os carrascos, os jurados e as diversas
profissões que constituem as tantas categorias da divisão social do trabalho, que desenvolvem as diversas faculdades do
espírito humano, criam novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las. A tortura propiciou invenções mecânicas as
mais engenhosas e ocupou uma multidão de homens trabalhadores na produção desses instrumentos. O criminoso produz
uma impressão seja moral seja trágica e presta assim serviço ao movimento dos sentimentos morais e estéticos do público.
Além dos manuais sobre o direito criminal, do código criminal e dos legisladores, ele produz arte, literatura, romance e até
tragédias. O criminoso traz uma diversão à monotonia e à calma tranquilidade da vida burguesa... O criminoso aparece,
pois, como um desses fatores que estabelecem o equilíbrio salutar e abrem uma perspectiva de ocupações úteis” (Lefèbvre,
1969:28).

Um outro aspecto pelo qual a doutrina de situação irregular compreende a marginalização está na linha da patologia, de
uma doença a ser tratada. O desviante é passível de recuperação, uma vez que o mal nele se localiza, como fenômeno endógeno
(cf. Velho, 1999:12). A visão atual é de tentar compreender as práticas de desvio no cerne da cultura ou das relações sociais. Se
não resolve o problema, essa posição amplia o leque de possibilidades de compreensão das peculiaridades dos processos de
socialização e de humanização. Isso nos permite interpretar o caráter inovador e criativo do comportamento desviante, para
responder a determinadas práticas pedagógicas ou sistemas educacionais e jurídicos. A prática desviante de hoje pode oferecer
elementos para a construção de um processo civilizatório (cf. Velho, 1999:15).
O paradigma da doutrina de proteção integral tem a finalidade de reverter o quadro de mal-estar em que vivem crianças
e adolescentes. O fato de concebê-las como pessoas em desenvolvimento, cidadãos e sujeitos de direitos traz para o campo da
práxis a exigência de uma nova identidade institucional, fundada na busca da compreensão das causas que levam essa população a
um mal-estar social e pessoal quase permanente. O ECA é um instrumento jurídico para reverter a cultura do mal-estar social. “É
esta a arena que tem de avançar; se os sujeitos não cobrarem luta contra a pobreza, em favor de emprego, políticas públicas, elas
não virão. Se os sujeitos não se organizarem para nova forma de Estado social, ele não existirá.” (Manzini-Covre, 1993:10.)
O ECA rompe com o paradigma do sequestro da criança e do adolescente das famílias pobres, a resposta que o Estado e
a sociedade davam às vítimas da pobreza e da desigualdade social. Os fundamentos da doutrina de situação irregular fortaleciam a
prática da vigilância e do confinamento dos “menores”, rotulados de “desviantes, pivetes, delinquentes, trombadinhas,
marginalizados e perigosos”. O fato de serem filhos de operários e famílias pobres conferia ao Estado o direito de confiná-los em

505
instituições totais.4 Apesar da insuficiência de estudos sobre os efeitos do confinamento nas instituições totais, sabemos que esse
procedimento pedagógico e jurídico acaba por submeter, infantilizar, interferir e deixar marcas no desenvolvimento da
criatividade e da inteligência. Essas “[...] marcas se mostram presentes nestes indivíduos, na mocidade, influenciando sua
trajetória e sua inserção social” (Altoé, 1993:61).
A partir dessa perspectiva, podemos inferir que o ECA é um projeto de uma cultura democrática, com a finalidade, não
só de garantir os direitos, mas também de alterar o modelo econômico, social e político da sociedade brasileira. Talvez uma das
primeiras mudanças na cultura e na política brasileira, advindas dessa lei, seja a não institucionalização de crianças e adolescentes,
por motivos de pobreza. Nenhuma lei tem condições de alterar a sociedade sem antes impregnar a cultura. Somente assim, é
possível lançar as bases para a consolidação do ECA. A mudança de cosmovisão não ocorre de um dia para o outro. Faz-se por
meio de gestos e atitudes. A proposta pedagógica do ECA tem como pressuposto um processo de aprendizagem que se
desenvolve na relação com o outro e com o grupo.
As crianças e adolescentes atendidos pelos programas sociais devem se sentir em condições de satisfazer suas
necessidades e aspirações, sempre por uma perspectiva ética e de vivência grupal. O fracasso das práticas sociais de confinamento
de milhares de jovens e adultos em instituições totais, como meio de ressocializar “menores” supostamente abandonados e
delinquentes, está relacionado com um vasto processo de ideologização. Filantropos ganham uma feição de guardiões da bondade;
a vítima é desacreditada e culpabilizada; instituições, autoridades e violadores de direitos aparecem como bondosos e virtuosos;
no caso dos supostamente abandonados e delinquentes, o juiz surge como um pai bondoso, que corrige os desvios e as injustiças.
Este quadro ajuda a fortalecer as ciências sócio-jurídicas e médicas, em detrimento das ciências sociais e educacionais. Para
compreender melhor esse conjunto de elementos, é necessário analisar os abrigos de crianças e adolescentes, e perceber neles as
ambivalências e a formação da subjetividade.
A partir de uma certa leitura de Foucault, Gramsci e Marx, poderíamos inferir que as práticas da assistência e das
instituições assistenciais tentam sequestrar o desejo e a subjetividade, para enquadrá-los num sistema normatizador. Portanto, não
buscam excluir o indivíduo, mas fixá-lo em determinado espaço, a partir de um conjunto de técnicas e ações disciplinares. O saber
produzido por elas e por seus intelectuais discursa em nome da vítima que fabricam e, de uma forma ou de outra, fortalece a morte
do sujeito. Em síntese, “[...] as instituições disciplinares fazem funcionar um poder que, polimorfo e polivalente, não é
essencialmente localizado em um pólo centralizado e personificado, mas, e sobretudo, difuso, espalhado, minucioso, capilar”
(Muchail, in Ribeiro, 1985, 306).
Cada alteração do ordenamento jurídico modifica também as práticas sociais e assistenciais. Com isso, não estamos
defendendo que as mudanças sociais advenham das alterações jurídicas, uma vez que elas expressam diferentes arranjos
econômicos, religiosos e políticos. A assistência aos pobres sempre trouxe uma contradição, porque, apesar de sua aparente
finalidade de erradicar a pobreza, na verdade, mascara o processo de desigualdade social. No século XVIII, por exemplo, o que
estava por detrás era transformar os pobres em mão-de-obra, como atestam Marx, em O Capital, e Foucault, na História da
Loucura.
Apesar das dificuldades e adversidades enfrentadas na sociedade e nas instituições disciplinares, o sujeito sempre
encontra um nicho para resistir. Onde está o poder, ali se manifesta a resistência do sujeito. É verdade que ele mais sofre por seus
fracassos e limitações do que se alegra por seus êxitos, mas é capaz de sonhar e de romper com os tabus e com os sentimentos de
culpa que o enrijecem e impedem de agir. De um lado, a realidade de sofrimentos e as propagandas ideológicas multiplicadas
levam o sujeito a desistir da esperança, para viver das migalhas da caridade e da misericórdia. De outro lado, esse mesmo
contexto pode impulsioná-lo a encontrar o sentido da existência humana.
Durante o século XX, organizaram-se de forma mais sistematizada as medidas de proteção e assistência à criança e ao
adolescente, fundadas no tripé medicina, direito e educação. As linhas de fuga. Presentes no cotidiano, com seus movimentos de
desterritorialização, desestratificação, territorialização e estratificação, deixam emergir oportunidades e estratégias de
sobrevivência. . No cotidiano dos usuários se revela a ambiguidade própria da assistência social e da educação, dentro do processo
de acumulação do capital, que tem absolutizado o desenvolvimento econômico.
As práticas de atendimento, mesmo quando capazes de driblar as adversidades, devem ser analisadas dentro dos
embates de classes e das circunstâncias sociais, políticas e religiosas. Nesse cenário, elas aparecem como um “mal necessário”,
numa coexistência do mal e do bem-estar social. A mesma fábrica que produz o bem gera também o mal-estar, dependendo das
relações de força entre o trabalho e o capital a forma de configuração das ONGs e das políticas sociais. Entre as vítimas desse
sistema, demonstra a história, estão os adolescentes e as crianças, tratados como coisas. Na sociedade reificada, os valores da
solidariedade e do amor ao próximo se convertem em instrumentos mercadológicos.

4
A noção de instituições totais aparece na obra de Goffman, E., Manicômios, prisões e conventos, São Paulo: Perspectiva, 1961. O autor analisa os manicômios, as
prisões e os conventos. Entretanto, outras instituições têm os mesmos rituais e estruturas de funcionamento, tais como o Exército, a Marinha, a Aeronáutica e alguns
colégios, porque são organizações fechadas, com disciplinas muito rígidas. Além disso, há instituições um pouco mais abertas, mas com uma estrutura de
confinamento que impede a autonomia do sujeito e o livre pensar, ou em que o sujeito pode circular, ir e vir, mas sua alma foi aprisionada, por uma “cultura de
confinamento”.

506
A cultura dos direitos humanos se implanta com os objetivos de: erradicar práticas discriminatórias, de gêneros, raças,
religiões, etnias, nacionalidade e idade; dirimir ameaças de ordem física, moral e psicológica contra a pessoa humana; reduzir a
desigualdade social, criar a possibilidade comum de se usufruir um padrão de bem-estar social e propiciar a cada pessoa o
desenvolvimento de suas potencialidades; garantir a liberdade de expressão e de trabalho, sem exploração. A dinâmica das
questões sociais subverte a lógica mecanicista que busca escamotear as formas de exploração e de banalização da vida humana.
Os direitos humanos são manifestações da ética, com a proposta de normatizar e orientar a conduta dos Estados, da
comunidade internacional e da sociedade. Eles devem servir à restauração da democracia e à redução das formas de dominação,
de exploração e de privação dos bens materiais, sociais e culturais. O desenvolvimento “[...] humano é essencial para a realização
dos direitos humanos e os direitos humanos são essenciais para o desenvolvimento humano total” (PNUD, Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, 2000:02). A garantia democrática dos direitos políticos, sociais e econômicos, para todos, abre
campo à construção ou restauração de um tecido social que possibilita enfrentar as mazelas sociais. É necessário defendê-los
como elementos de transformação da sociedade, de redução da desigualdade social e da situação de miserabilidade que limitam a
liberdade e privam o ser humano de sua dignidade.
Os direitos humanos devem propiciar a cada indivíduo “[...] uma existência autêntica, independente do lugar que ocupa
na organização racional” (Aron, 1982:521). Alguns pensadores entendem que a cultura dos direitos humanos não é só uma
questão de leis. Para que os direitos humanos possam melhor se efetivar para a criança e o adolescente, é necessário um sistema
de acompanhamento e de informações sobre as políticas de proteção e garantia de direitos, nos três âmbitos de governo, com a
participação dos conselhos tutelares e municipais da criança e do adolescente. A rede de proteção deve valorizar a participação da
sociedade civil e a escuta daqueles que, efetivamente, são usuários destas políticas.
Para reverter o quadro de mal-estar social em que vivem crianças e adolescentes no Brasil, é necessário cumprir os
princípios e pressupostos dos ordenamentos jurídicos de não-segregação, prioridade absoluta, protagonismo e direito à vida, que
são responsabilidade do Estado, da sociedade e da família. O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de
Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária estabelece como condições para que os direitos preconizados no
ECA sejam garantidos: 1) a estruturação de uma rede de serviços de atenção e proteção à criança, ao adolescente e à família; 2) a
difusão de uma cultura de direitos; 3) a superação das práticas autoritárias; 4) formação e capacitação de profissionais; 5)
melhoria do suporte e estrutura dos Conselhos Tutelares.
A erradicação da pobreza desafia o desenvolvimento econômico sustentável, como também dos direitos humanos em
todo o mundo. Os especialistas afirmam que a causa do aumento constante das mazelas sociais e privações de direitos é
decorrente da desigualdade social e da falta de informações e do acesso aos serviços públicos voltados às famílias em situação de
vulnerabilidade e risco social. A consolidação de uma rede de proteção e de garantia dos direitos humanos tende a assegurar o
desenvolvimento da vida e a evitar a barbárie.

2. As políticas sociais e o protagonismo


A base da doutrina de proteção integral, presente na Constituição Brasileira e no ECA, estabelece que o protagonismo é
uma condição pedagógica. Este princípio deve ajudar na passagem de uma concepção de assistência e de políticas sociais
assistencialistas para uma perspectiva emancipadora. O sujeito deve participar do processo de construção de sua formação e do
seu saber. As oportunidades devem também ser construídas com a participação dos envolvidos. Crianças, adolescentes e seus
familiares não são meros espectadores e objetos das políticas, mas protagonistas.
Pela perspectiva da ambiguidade, muito se tem utilizado do protagonismo para escamotear a omissão do Estado e a
perversidade de alguns profissionais que deixam crianças e adolescentes à deriva. O protagonismo deve ser compreendido como
um meio pedagógico de envolver o adolescente e a criança no seu processo de formação, comprometidos consigo e com seus
companheiros, em vista de um processo civilizatório e ético. As estratégias de sobrevivência que tendem a ser construídas e
descobertas não podem valorizar a destruição da vida.
Tirar a vida é uma estratégia de sobrevivência contraditória, que nega a vocação humana. O protagonismo tende a
despertar para a criatividade. Isto significa lidar com os conflitos e frustrações peculiares à condição humana. Somos convocados
a ser para o outro. Neste encontro, é que somos afetados e afetamos, direcionamos nossa vida e encontramos os elementos
constitutivos para elaboração de nosso projeto de vida. O protagonismo não é uma lei e nem é uma burocracia. É o agir humano, a
capacidade de escolher, de decidir, dentro de uma circunstância dada.
No que diz respeito à criança e ao adolescente, é necessário ajudá-los a encontrar o sentido ético da vida para tomar suas
decisões sem uma perspectiva de vigilância e punição. O protagonismo se deve desenvolver fora desta perspectiva pedagógica
fundada na vigilância que atua com a noção de prêmio e castigo. A cada situação problema, o jovem e seu educador devem
encontrar uma resposta adequada. Este princípio do protagonismo tem norteado a ação da pastoral do menor e outras práticas dos
educadores sociais no Brasil.

507
“Eu sou membro da pastoral do menor e educador social. Desde que entrei na pastoral, ainda como menino de rua, comecei
a aprender que é preciso lutar para conquistar o que se quer. Esta dinâmica de luta e conquista foi a base de minha formação,
e também o meio de eu resolver os meus problemas. Acho que quando a gente ajuda o outro, a gente ajuda a gente mesmo.
Quando eu adolescente, a pastoral perguntava o que eu gostaria de fazer e como iria organizar as coisas para fazer isso
acontecer. Íamos para a rua e reivindicávamos nossos direitos, junto dos vereadores, deputados, prefeitura, em todos os
lugares, na escola. Tudo isso ia nos ensinando várias coisas. O protagonismo é legal, porque o próprio menino vai
construindo e encontrando o sentido e o projeto de sua vida. Devagar, vai se afastando da marginalidade e assumindo uma
vida diferente. Quando as coisas são impostas, sem se perceber o sentido, o menino vai descambando mais para o mundo do
crime. Ele quer participar.” (Depoimento de Zemarquito, 2008.)

O protagonismo é um meio para potencializar e avaliar as políticas sociais, para formar profissionais e usuários. A rede
de proteção é um espaço pedagógico para formar o perfil do homem público e do sujeito ético. Este paradigma é condição para a
formulação de políticas sociais que possam garantir o desenvolvimento social e econômico, levando em conta as exigências dos
direitos humanos. A garantia do bem-estar da família é um dos desafios das políticas sociais.
“A história tem demonstrado categoricamente que a família é a resposta natural a características básicas do homem como
ser genérico. É o âmbito no qual os seres humanos obtêm elementos fundamentais para uma vida produtiva e realizadora,
valores éticos, modelo de conduta, conteúdos educativos, proteção nos primeiros anos, pautas orientatórias, calor humano,
solidariedade incondicional. É, ao mesmo tempo, a base de uma sociedade democrática, criativa, com rosto humano.”
(Kliksberg, 1997:46.)

As políticas sociais são estratégias para se enfrentar e ultrapassar as mudanças sociais. Isto requer a municipalização dos
serviços públicos e o estabelecimento de vias de comunicabilidade que esclareçam e envolvam os segmentos sociais na busca de
caminhos de melhoria da qualidade de vida e de implementação de reformas estruturais. “Sem a emancipação da sociedade, não
existe a emancipação da família.” (Adorno e Horkheimer, in Canevacci, 1982:212.)
Os movimentos pelos direitos humanos, além de promoverem o caráter ético, democrático e eficiente no tratamento das
coisas públicas, tendem a combater a corrupção no uso dos recursos públicos e a aperfeiçoar os procedimentos de aquisição da
cidadania e do rompimento do paternalismo. A práxis dos direitos humanos permite reconstruir o sujeito ético, solidário,
comprometido, participativo, voltado para os seres humanos com os quais compartilha o processo de humanização. Esse processo
passa pelas experiências comunitárias de solidariedade e amizade, uma vez que a construção do sujeito está vinculada à idéia de
pertença. Família, comunidade, relações de parentesco e escola são importantes nesse sentido.
O Estado é o gestor essencial para induzir a sociedade civil e o mercado a se curvarem ante a lógica dos direitos
humanos, pois a democracia está a serviço da vida. A democracia não é um mero instrumento burocrático, constituído de
hierarquizações tradicionais, inadequado para responder às necessidades humanas. O processo de democratização requer a
concretização em políticas públicas e sociais das Declarações, Resoluções e Convenções internacionais, e do Relatório sobre a
Situação da Mulher e da Infância, de 2007, o qual constata que, “[...] quando as mulheres são saudáveis, instruídas e livres para
aproveitar as oportunidades que a vida lhes oferece, a infância floresce e o país prospera, gerando um duplo dividendo para a
mulher e para a criança”.
No contexto atual, destaca-se a importância e a necessidade de valorização da família e do protagonismo da infância e
da adolescência. Isto significa acreditar que essa população não é apenas receptora, mas construtora da história, como têm
demonstrado as práticas sociais ao longo dos acontecimentos. Ao tomar como foco de atuação os espaços sociais pela perspectiva
de potencializar o sujeito nas relações humanas, a pedagogia social tende a contribuir para democratizar essas relações. Isto requer
do educador e do educando abertura para um processo de reflexão sobre as diferenças e de aceitação delas, bem como a
consciência de que ninguém é dono da verdade.
Na convivência humana, podem se consolidar a criatividade e a descoberta das diferenças como potencialidades para se
granjear uma sociedade pautada nos direitos humanos. Na contemporaneidade, uma das dimensões da educação social é a
politicidade, a capacidade de desenvolver habilidades de conhecimento e de aprendizagem fundadas na interação entre sujeito,
objeto, realidade e compromissos éticos. Concebemos politicidade como a habilidade humana de saber pensar, agir e intervir na
busca constante de espaços de autonomia individual e coletiva. Essa dimensão propicia à práxis do educador social a capacidade
de resistir a influências desumanizadoras. Não se educa apenas pela transmissão de conhecimentos. É necessário saber aplicá-los
para alterar a realidade social.
O que o ECA apregoa é que toda criança deve ter um espaço educativo, família e um lugar para habitar. Isto é o
contrário do que divulga a imprensa, ao declarar que ele defende os bandidos. Pelo contrário, ele pune os bandidos. Se uma
criança, por exemplo, rouba de uma senhora que passa pela Praça da Sé uma correntinha de ouro, existe alguém que compra essa
correntinha roubada. Ambos devem ser punidos, segundo a Lei. Entendemos que a Constituição e o ECA são resultantes das lutas
de classes delineadas na tensão entre capital e trabalho, presente nas próprias legislações. De um lado, estas garantem a
acumulação do capital e, de outro, os direitos sociais. É na convergência desses pontos que se abre um novo caminho para garantir
duplamente a reprodução do trabalhador e do capital, dentro de uma nova concepção.

508
Reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos
“[...] não significa negar, omitir a relação de subordinação das crianças e adolescentes aos adultos e nem a responsabilidade
destes no crescimento e desenvolvimento daqueles. Contudo, significa questionar, impedir, denunciar aquilo que nesta
relação – pessoal ou institucional – tenha marca do autoritarismo discricionário, da violência, do sofrimento, de condições
adversas ao bem-estar e à saúde física e mental, que comprometem o desenvolvimento do indivíduo e do cidadão em sua
realização pessoal e participação social” (Teixeira, 1991:6).

O desafio que o ECA coloca à sociedade civil é o de ajudar meninos e meninas a reinventarem o país. Com essa
convicção, essa esperança e esse sonho, é que nós educadores temos que rever nossas práticas. Após uma rápida leitura da
história, é possível desenhar as formas e os mecanismos utilizados pela sociedade para controlar e garantir a ordem. Contudo, essa
mesma humanidade demonstrou sinais de esperança e de transformação das relações sociais. Percebemos na história que todos
“[...] têm o poder, com um pouco de coragem, de estender a mão a um estranho, de ouvir e de tentar aumentar, ainda que em
pequeníssima porção, a soma de bondade e de humanidade no mundo. Mas não adianta agir assim sem lembrar que esforços
anteriores falharam e que nunca foi possível prever com certeza como se comportaria um ser humano. A história, com sua
infindável procissão de passantes, que em sua maioria perderam a oportunidade de encontros esclarecedores, caracterizou-
se, até aqui, como uma crônica do pendor para o desperdício. Mas na próxima vez em duas pessoas se encontrarem, o
resultado talvez seja diferente. Esta é a origem da ansiedade, mas também da esperança, e a esperança é a origem da
humanidade” (Zeldin, 1999:424).

Por essa perspectiva, poderíamos dizer que os diferentes encontros e desencontros da humanidade produziram e têm
produzido um tipo de subjetividade, o que faz com que cada pessoa ou cada grupo tenha condutas e comportamentos diferentes,
que escapam a qualquer controle. O perigo se encontra em todas as partes e em todos os lugares. Bondade e perversidade
caminham juntas. O desafio das medidas sócio-educativas para o jovem, no Brasil, é canalizar as energias que são manifestadas
na agressividade, no furto e na indisciplina em direção da ética da vida ou da vida boa. Isto sinaliza uma outra situação
conflitante, que é a de evitar que o mercado ou outras instituições, como o crime organizado capturem esse grupo e o coloquem a
seu serviço. A discussão e a problematização do protagonismo como meio pedagógico para trabalhar as medidas sócio-educativas
seguem uma perspectiva humanizadora.

3. Os princípios da pastoral do menor


Uma das experiências de justiça que pode nos ajudar a compreender e a formular uma pedagogia dos direitos é,
seguramente, a pastoral do menor. Esta prática social foi mais bem formulada e redirecionada nos anos setenta, com a finalidade
de garantir e conquistar os direitos humanos das crianças e adolescentes. Entre os seus mentores, o Cardeal Arns afirmava a
necessidade de “salvar o mundo para as crianças e os jovens”, e Dom Luciano Mendes de Almeida assegurava que “o menor não
é problema, é solução”.
De uma forma ou de outra, a pastoral do menor busca descobrir e reconhecer o mistério da vida, sua alegria e
sofrimento, esperança e desespero, e, ao mesmo tempo, encontrar respostas na realidade e a partir do Criador. Talvez isso ocorra,
porque a pastoral do menor tem a proposta de responder à pergunta que o Senhor fez a Caim: – “Onde está teu irmão?” Caim
respondeu cinicamente: – “Não sei. Por acaso sou guarda do meu irmão?” Também nós, se nossa consciência ética nos
perguntasse: – “Onde estão os negros, as crianças, os adolescentes, os pobres, os doentes, os presos, os imigrantes e tantos outros
segmentos que vivem em situação de vulnerabilidade”, qual seria nossa resposta? Seria cínica como a de Caim e daqueles que
violam os direitos humanos: – “Por acaso sou eu o responsável por essas violações?”
De fato, Caim foi mesmo um violador. Parece um dos políticos que vemos na mídia, seguidores da lógica de Caim,
negar e, às vezes, de acusar o outro. É assim também no mito de Adão e Eva. Militantes da cultura de direitos respondem a essa
pergunta pela consciência de um compromisso ético com o outro e com o planeta Terra. A pastoral do menor entende, segundo
minha leitura, que os direitos humanos são a expressão de um compromisso de cada um com o outro.
A omissão é uma forma cínica de responder a um fato, como fez Caim. A diferença é que Caim falhou pela ação. Na
omissão, há uma falha pela indiferença e insensibilidade. Tenho percebido que a indiferença é pior do que o ódio. Ela não
reconhece a existência do outro. O ódio reconhece, mas procura destruir. A indiferença mata simbolicamente. O amor reconhece,
acolhe e inclui o outro. Nossas políticas de direitos humanos são, muitas vezes, excludentes, porque estão centradas na lógica da
indiferença que, às vezes, reconhece o outro não como ele é, mas como um outro que se constrói e para quem se planeja um
mundo irreal. Com isso, nega-se a liberdade, que é vital à política dos direitos humanos, o que hoje traduzimos por protagonismo,
empoderamento ou, até mesmo, por empreendedorismo, mais comum no campo da administração.
“Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é a libertação de homens e não de coisas. Por isto, se não é auto-
libertação – ninguém se liberta sozinho, também não é libertação de uns feita por outros. [...] um trabalho de libertação a ser
realizado pela liderança revolucionária não é a propaganda libertadora. Não está no mero ato de depositar a crença da
liberdade nos oprimidos, pensando em conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles. Precisamos estar convencidos

509
de que o convencimento dos oprimidos de que devem lutar por sua libertação não é doação que lhes faça a liderança
revolucionária, mas resultado de sua conscientização.” (Freire, 1970:58.)

Na realidade, a pastoral do menor acredita que o processo de libertação deve se construir na relação entre aqueles que
têm a vida negada e aqueles que abafam a vida. A pergunta que Deus fez a Caim ou mesmo a nossa consciência ética é refeita de
outra forma no Evangelho, por Jesus Cristo. Diante da preocupação dos discípulos com a fome da multidão que seguia Jesus, o
Mestre lhes respondeu: – “Dai-lhe vós mesmos de comer” (Marcos, 6). Este é outro princípio que norteia a pastoral do menor, a
qual poderíamos traduzir assim: – “Dêem vós mesmos de comer ao que tem fome e resolvam a questão da violação dos direitos
humanos.” Novamente, aparece a idéia do compromisso ético com o outro. Não basta jogar de uns para outros a responsabilidade.
Todos somos responsáveis, uns mais do que outros, e em alguns casos todos temos que cobrar das instituições.
Outra narrativa do Evangelho que nos ajuda a compreender os direitos humanos está em Lucas (3). A multidão
pergunta: – “O que devemos fazer?” João Batista responde a cada grupo social, aos cobradores de impostos, aos soldados, aos
ricos. Deve-se agir com respeito, ética, não-corrupção, não maltratar ninguém, partilhar, enfim, de alguma forma, fazer o bem. A
mesma indagação aparece no contato do jovem rico com Jesus (Mateus, 19): – “O que devo fazer de bom para possuir a vida
eterna?”, perguntou o jovem. E o Mestre lhe disse: – “Obedeça aos mandamentos”. O jovem respondeu: – “Isto eu já faço.” E
Jesus ensinou ao jovem que é mais perfeito ultrapassar a simples observância da lei: – “Se você quer ser perfeito, venda tudo e dê
o dinheiro aos pobres.” Nesta passagem, pode-se perceber que os direitos humanos também dependem da socialização da
economia. Numa sociedade de extrema desigualdade, os direitos humanos se comprometem. Finalmente, na linha do que deve ser
feito, Jesus recomenda as obras de misericórdia, visitar os presos e doentes, dar de comer ao que tem fome, dar de beber ao que
tem sede, vestir os nus e acolher os estrangeiros (cf. Mateus, 25).
Podemos falar aqui da construção de uma pedagogia dos direitos humanos, presente na Bíblia, nos documentos da Igreja
Católica e na pastoral do menor. Cada ação da pastoral, além de ser de sempre missionária, busca consolidar a pedagogia dos
direitos humanos. É dentro dessa lógica que ela encontra ressonância no ECA e nas Convenções e Declarações internacionais
sobre os direitos humanos. A pedagogia dos direitos humanos procura romper com a noção de que os pobres e aqueles que têm os
direitos violados são objetos da religião, da polícia, da bondade aparente, das ideologias e do favoritismo. Concebe o outro
enquanto sujeito de direitos.
A título de referência, apresentamos um depoimento de Lázara, membro do Instituto Catequético Secular São José e
líder da pastoral do menor da cidade de Diadema, SP, entre os anos de 1975 e 1996:
“Há, entre os pobres, um espírito de partilha e de solidariedade que facilita o encontro dos atalhos da vida. Essa prática é
uma expressão da cultura popular, que brota do coração de Deus. Cada pessoa, quando se descobre imbuída do espírito de
Deus, luta para construir uma cidade justa, como a Jerusalém celestial. Diadema deve ser uma Jerusalém bíblica. Eu creio
que o trabalho com menores abandonados é uma missão que a divina providência me confia. Eu creio no poder da divina
providência. Eu quero cooperar voluntariamente com a divina providência e servir os menores abandonados, vendo neles a
própria pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. [...] Tudo o que possuo quero repartir. [...] sem lesar a ninguém nos seus
direitos. Terei como finalidade única o bem do menor, sua formação humana. [...] Jamais colocarei interesses de terceiros.
[...] Jamais usarei violência, pancadaria, com os menores. Procurarei moralizá-los, conforme a lei de Deus e a tradição
católica. Também quero ajudá-los a superara dor do abandono, como Jó, e a se tornarem sujeitos da história, assim como
tantas personagens bíblicas. (Schramm e Souza Neto, 2007:50.)

Assim como Lázara, José Joaquim e Dom Luciano, há milhares de agentes da pastoral do menor e da catequese que, a
partir do Evangelho, deram suas vidas e continuam a se empenhar na formulação de um projeto civilizatório emancipador. A
pastoral do menor defende a necessidade da implantação e da implementação de uma pedagogia dos direitos humanos, nas ONGs,
nas escolas, nos sindicatos e nos diferentes espaços públicos, não só por uma perspectiva curativa, mas também preventiva. Os
direitos humanos não são privilégios, e sim uma forma de convivência em grupos e de respeito às diferenças. Essa noção visa
transformar todas as Convenções e Declarações em políticas públicas. A pastoral do menor organiza um conjunto de ações neste
sentido, nos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, em abrigos, programas de convivência, em diferentes
projetos e na articulação com segmentos sociais e organismos diversificados.
Vale a pena aprofundar e pesquisar os últimos trinta anos da pastoral do menor no Brasil. Sua história pode ajudar a
repensar a pedagogia dos direitos humanos, bem como a questão do protagonismo da infância e da adolescência, pela perspectiva
de que a construção de uma outra sociedade é possível. A pastoral do menor é, sem dúvida nenhuma, um organismo vivo no
sentido gramsciano e, ao mesmo tempo, um espaço de missão, uma vez que acolhe, anuncia e garante a vida.
Os movimentos pelos direitos humanos têm, por natureza, compromisso com a res publica, com o fortalecimento da
opinião pública, a participação na vida pública e o bem comum. A questão da ética na política é uma condição do agir, do
conceber, do fazer e do ser dos gestores e daqueles que atuam diretamente na formulação das políticas sociais. A habitual vazão
de recursos financeiros, físicos e materiais leva os responsáveis pelas políticas sociais ao menosprezo de etapas e dimensões
essenciais para a qualidade da ação, que dependem mais de negociação, definições de diretrizes e treinamento de agentes e
profissionais. São elas vontade política, articulação institucional, proposta de trabalho integrado e capacitação pessoal.

510
Sem essas dimensões, os gestores acabam fazendo muito, mas equivocadamente. O critério orientador das demandas e
reivindicações sociais é o bem-estar da população, uma vez que todos têm direitos, mas cada um é responsável por eles, de acordo
com suas condições. Nesse movimento, ocorre a descoberta da politicidade dos agentes envolvidos, ou seja, da habilidade de
saber pensar, agir e intervir na busca constante de espaços de autonomia individual e coletiva. Ser político é saber avaliar, criar e
planejar os meios e as condições para o exercício e a garantia da liberdade, em busca do bem-estar individual, coletivo e do
planeta Terra.
A politicidade é a habilidade de extrair da biografia e da história os meios para gestar a cidadania. É a capacidade de
ampliar os direitos humanos e de superar as mazelas sociais. Trata-se de processo interminável de conquista, como é participação.
Não é só travar a batalha, para logo descansar. Ao contrário, é estar sempre no meio dela. [...] é próprio do ser político ir além de
si mesmo, indefinidamente. A autonomia não é situação dada, e muito menos completa, mas processo interminável e
intrinsecamente periclitante (Demo, 2003:30).
A partir das experiências que tive a oportunidade de vivenciar por meio da pastoral do menor, percebi que as políticas
de direitos humanos ou as políticas sociais só tendem a ter êxito quando aquele que tem o direito violado se torna protagonista.
Nessa relação, todos os envolvidos se libertam, até mesmo o violador, sobretudo quanto este também já foi violado. Em qualquer
processo de libertação, a vítima, ou aquele a quem a vida foi negada, deve identificar seu opressor e se engajar na luta pela
garantia de sua vida e da vida de seus companheiros. Somente assim é que o processo de libertação começa a acontecer. O
oprimido é capaz de pensar, de encontrar e de criar estratégias para combater a cultura autoritária e desenvolver uma cultura
democrática.

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511
Políticas públicas para a educação da primeira infância: a creche
Maria Letícia Nascimento
Universidade de São Paulo
[email protected]

Resumo: No Brasil, educação e socialização das crianças pequenas era tarefa da família, exceto para as crianças cujas mães trabalhavam, que iam
para as creches. Mudanças nos hábitos e valores das famílias, em centros urbanos, assim como alterações nas relações sociais acabaram
determinando uma redefinição das fronteiras entre o público e o privado, incrementando a demanda pela educação infantil.
A concepção de infância foi sendo modificada, influenciada pela pesquisa realizada em campos como a história ou a sociologia da infância.
Pesquisas, desde a década de 90, indicam que a criança pequena deve ser compreendida como protagonista de sua vida e que as instituições de
educação infantil constituem um espaço privilegiado para o desenvolvimento das múltiplas linguagens e das relações sócio-educativas.
O reconhecimento da educação infantil, constituída por creches e pré-escolas, como direito à educação desde o nascimento e sua regulamentação
no sistema educacional, por meio da Constituição de 1998 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, legitimou a idéia de
compartilhamento de responsabilidade entre família e estado. Entretanto, traduzir os princípios legais em realidade representa um desafio.
Em relação ao acesso, a creche atende cerca de 15% da população de 0 a 3 anos de idade, e a pré-escola que cerca de 72% das crianças entre 4 e 5
anos. Em relação à qualidade do atendimento, a distância entre o que a lei prescreve e as demandas sociais, de um lado, e a realidade das
instituições de educação infantil, de outro, ainda é grande, principalmente para creche.
Palavras-chave: políticas públicas, creche, educação infantil

Políticas públicas para a educação da primeira infância: a creche


Para comentar as políticas públicas para a educação infantil no Brasil, o texto está organizado em três segmentos: o
primeiro pretende apresentar um breve histórico sobre o atendimento em creches no país, revelando aspectos relacionados à
assistência às crianças e suas famílias e a instituição da creche como espaço de educação e cuidado; o segundo, considera a
trajetória da pesquisa e sua contribuição para tornar a criança pequena foco central do atendimento; e o terceiro busca
compreender as políticas públicas, apresentando dados sobre acesso e qualidade.

O atendimento das crianças pequenas em creches no Brasil


Instituídas no Brasil com a finalidade de acolher crianças filhas de trabalhadoras domésticas ou operárias, as creches
foram criadas por instituições filantrópicas ou assistenciais, principalmente no meio urbano, como alternativa ao abandono. O
cuidado com as crianças pequenas, tradicionalmente atribuído às mães, ficou ao encargo das instituições que pretendiam “educar”
as famílias pobres, ensinando-lhes como cuidar de seus filhos.
A divulgação das idéias higienistas fortaleceu esse papel assumido pelas creches, definindo sua atuação como espaço de
cuidado de crianças pequenas pobres. O caráter filantrópico-higienista da instituição reforçava a ausência de compromisso do
Estado em relação às crianças pequenas pobres, que, em última análise, nem mesmo eram o objetivo dessas instituições, voltadas
ao atendimento de mães trabalhadoras. A partir da década de 30, as creches começaram a figurar nas leis trabalhistas brasileiras,
como responsabilidade de empresas que tivessem uma quantidade específica de mulheres em idade fértil.
As crianças pequenas, embora não fossem o objetivo, eram o objeto principal da instituição. Sua condição de pobreza
promovia situações alimentação, higiene ou repouso como prioridade no atendimento, o que demandava pouca especialização dos
adultos que trabalhavam diretamente com as crianças: bastava que soubessem cuidar de crianças – ou que se dispusessem a olhá-
las –, como faria uma mãe com seus filhos. Em paralelo, a ausência de políticas públicas caracterizava o atendimento como uma
política de “favor”, inicialmente mantida por entidades filantrópicas que, aos poucos, obtiveram verbas públicas para sua
sustentação.
A reivindicação pelo direito à creche e, particularmente, a mobilização das mulheres, nos anos 80, teve significativo
efeito sobre a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu creches e pré-escolas como direito das crianças pequenas, dever do
Estado e opção da família. Essa mudança ofereceu uma nova visão de criança, de infância, de educação infantil, de mulher, de
profissional, de relações de gênero e responsabilidade familiar (Haddad & Nascimento 2007). Além disso, a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN) efetivamente incluiu a Educação Infantil no Sistema Educacional Brasileiro, constituindo
a primeira etapa da Educação Básica. Assim, os direitos sociais e fundamentais das crianças foram reconhecidos.
Parece importante destacar que, embora a expansão da Educação Infantil fosse necessária, sua expansão entre 1970 e
1990 (Rosemberg 2002; 2005) foi promovida por ações de combate à pobreza e/ou propostas para melhorar o desempenho do
ensino fundamental, baseadas em investimento de baixo custo em espaços, materiais, equipamentos e recursos humanos.

512
De maneira geral, os efeitos desses modelos, aliados a um tardio interesse pelas crianças pequenas, acabou por
neutralizar os avanços conquistados pela legislação.

As contribuições da pesquisa
Nos anos 80, a pesquisa focalizava principalmente a pré-escola, analisando as vantagens de programas de estimulação
precoce com vistas a um bom desempenho no ensino fundamental. Poucas pesquisas sobre creches foram publicadas e, aquelas
que o foram, preocupavam-se principalmente com os efeitos negativos que as instituições causavam às crianças. Essa posição foi
modificada na segunda metade daquela década, quando pesquisas sobre interações entre crianças pequenas, nas creches,
começaram a ser publicadas1.
As novas demandas sociais e políticas desencadeadas pelas conquista legais – a Constituição Federal de 1988, a
Convenção dos Direitos das Crianças, de 1989 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 – impulsionaram a pesquisa
acadêmica a investigar a Educação Infantil sob suas diversas dimensões. Campos, em artigo publicado em 1997, argumentava que
as questões reveladas por diferentes pesquisas precisariam ser consideradas na elaboração de políticas educacionais voltadas para
as crianças pequenas. Referia-se a investigações sobre a integração entre pré-escola e séries iniciais do ensino fundamental, sobre
programas de qualidade, sobre formação de profissionais de educação infantil, sobre currículo e comunicação com os pais,
realizadas nos anos 90. E acrescentava:
Ao nos aproximarmos do século XXI, seria fundamental que nossas decisões estratégicas não ignorassem o que as pesquisas
vêm exaustivamente demonstrando desde 1918: a educação de crianças pequenas talvez seja uma das áreas educacionais
que mais retribuam à sociedade os recursos nela investidos. (p.125/6)

De acordo com Oliveira (2007), surgiu a preocupação com


“A elaboração de diagnósticos institucionais, o levantamento de dados estatísticos, a avaliação de programas, a análise de
legislações, a realização de estudos de caso e pesquisas-ação trazendo as experiências vividas dos educadores e a
proximidade com a realidade, assim como experiências pontuais de formação de profissionais, formam o cenário sobre o
qual teorias, concepções e posições são revistas e reavaliadas”.

O princípio de reconhecimento dos direitos da infância e os avanços na produção de conhecimento marcaram a


legislação subsequente e as políticas públicas que foram, gradativamente, definindo a função das instituições de educação infantil.
Sobre as crianças, a tendência que começou a ser delineada em algumas pesquisas considera a criança como um ser que
é e relaciona-se de forma direta com a concepção de criança como ator social, como sujeito de direitos. Nesse sentido, a
concepção de infância revela-se parte sustentada por uma psicologia do desenvolvimento referenciada nas interações
estabelecidas socialmente, parte na sociologia da infância como base teórica e metodológica de pesquisa, campo ainda bastante
desconhecido no Brasil. Entretanto, a pesquisa das ciências sociais sobre a infância permanece focalizando as crianças em
situação de risco, em razão da enorme desigualdade social presente no país (Castro 2005; Rosemberg 2005). A infância
permanece como um aspecto nas investigações sobre urbanização, democratização, análises sobre pobreza e poder, não havendo
ainda estudos sistemáticos para destacar o papel da infância na sociedade brasileira.

Políticas públicas para a pequena infancia


O Brasil tem buscado saber quem são as crianças atendidas em creches e instituições similares, onde estão estas
instituições e quais as suas características. Esse parece ser um avanço importante na direção da visibilidade da pequena infância,
pois, até 2001 não havia dados oficiais sobre demanda e atendimento efetivo prestado por creches. O sistema de pesquisas
domiciliares, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística2 (IBGE) e implantado progressivamente no Brasil a
partir de 1967, com a criação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, cuja finalidade é a produção de
informações básicas para o estudo do desenvolvimento socioeconômico do País, não coletava dados sobre a pequena infância. As
estatísticas sobre educação infantil só passaram a ser sistematizadas a partir do Anuário estatístico de 1974 (Kramer e Kappel,
2001); as informações socio-educacionais para as crianças de 0 a 4 anos de idade somente passaram a ser incluídas
sistematicamente nas PNADs a partir de 1995, e só foram incluídas no Censo Demográfico realizado em setembro de 2000
(Kappel, 2001).

1
Carvalho & Beraldo 1989; Lopes de Oliveira 1992; Moreira 1992; Oliveira 1988; Oliveira & Ferreira 1988; Pedrosa 1989; Pedrosa & Carvalho 1995, por exemplo.
2
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), desde 1980 vem realizando um trabalho
sistemático de produção, organização e divulgação de estatísticas relativas à população de crianças de 0 a 6 anos, dentro do grupo etário mais amplo de 0 a 17 anos,
utilizando várias fontes de informações (Kappel, 2001)

513
Outra fonte importante de dados é o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos Anísio Teixeira (INEP), que tem
realizado anualmente o Censo Escolar da Educação Básica. Foi também o realizador do primeiro cadastro nacional de instituições
que atendem crianças pequenas, com o objetivo de conhecer as dimensões desse atendimento, realizado em 2000, com resultados
parciais, publicados em 2001. Nas estatísticas oficiais, as crianças de 0 a 3 anos de idade foram, aos poucos, sendo consideradas,
para além dos índices de mortalidade infantil ou de desnutrição.
Segundo os dados preliminares do Censo Escolar da Educação Básica de 2006, realizado pelo INEP, das 14.389.812
milhões de crianças entre 0 e 3 anos de idade, 1.427.942 foram matriculadas em creches. Em comparação às edições anteriores do
Censo, evidencia-se que houve um aumento de 79.705 matrículas nas creches (quadro 1).
Quadro 1: Educação Infantil: Número de matrículas em creches
Brasil – 2004-2006

Creches
2004 1.348.237
2005 1.415.131
2006 1.427.942
Fonte: Inep/MEC

Os dados indicam que a oferta de Educação Infantil é principalmente pública (57,1% das creches e 73,4% das pré-
escolas, em 2004). Entretanto as creches públicas cobrem somente 7,6% da população de 0 a 3 anos (quadro 2)

Quadro 2: Taxa de atendimento por instituições públicas ou privadas


Brasil – 2004
Creche Pré-escola
Pública 7,6 (57,1%) 51,8 (73,4%)
Privada 5,8 (42,9%) 18,7 (26,5%)
Fonte: PNAD/IBGE 2004

Em 2006, as instituições municipais tiveram 62,9% de matrículas e as privadas, 35,8%, mas em 2005 esses percentuais
foram respectivamente 60,9% e 37,8%. O número total aumentou 1% (13.599 crianças) e, considerando as instituições
municipais, aumentou 4,4% (37.985 crianças) (INEP, Censo Escolar, 2006).

Quadro 3: Taxa de matrícula em creches, por dependência administrativa


Matrículas em creches
Ano Por dependência administrativa
Estado Federal Municipal Privada
2004 1.348.237 721 14.993 828.352 404.171
2005 1.414.343 893 17.264 860.960 535.226
2006 1.427.942 933 17.582 898.945 510.482
Fonte: INEP/MEC – Censo Escolar 2004, 2005 e 2006

Ainda que o número de matrículas esteja aumentando, permanece aquém do desejado, segundo o Plano Nacional de
Educação (PNE), Lei 10.172/2001, documento que indica, como objetivos e metas da educação infantil, a ampliação da oferta, o
estabelecimento de um Programa Nacional de Formação de Profissionais da área, a definição de políticas municipais de educação
infantil e de projetos pedagógicos para essa etapa, implantação de sistema de acompanhamento, controle e supervisão na forma de
apoio técnico-pedagógico, inclusive em parceria com as universidades. De acordo com o Plano, até 2006, a oferta deveria ter sido
ampliada para 30% da população de até 3 anos de idade, e, até o final da década (2011), alcançar a meta de 50% das crianças de 0
a 3 anos (PNE – Objetivos e metas). O que se observa é que essas metas não foram ou serão atendidas nos prazos previstos.
O documento afirma também que
No horizonte dos dez anos deste Plano Nacional de Educação, a demanda de educação infantil poderá ser atendida com
qualidade, beneficiando a toda criança que necessite e cuja família queira ter seus filhos frequentando uma instituição
educacional. (PNE – Diretrizes)

O atendimento com qualidade, como defende o Plano, ou seja, professores com formação pedagógica qualificada,
realizada em nível superior, ou no mínimo, nível médio de ensino; organização do espaço e do tempo que proporciona às crianças
desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e social; proporção adulto/criança de acordo com os grupos de idade; projeto
pedagógico e gestão, tem apresentado deficiências, pois o caminho escolhido por muitas das administrações municipais para dar
conta da demanda foi o de ampliar os convênios com instituições não governamentais, filantrópicas ou assistenciais, que

514
apresentam piores condições de funcionamento tanto em razão das verbas restritas que recebem quanto porque não há
supervisores em número suficiente para garantir que elas correspondam ao padrão mínimo de qualidade indicado na legislação.
Esses convênios deveriam ser uma alternativa provisória, que não pode prescindir de sistema de acompanhamento, controle e
supervisão na forma de apoio técnico-pedagógico, para que não haja um retorno ao começo, ou seja, que o direito seja tomado
como favor.

Considerações finais
A trajetória da educação infantil no Brasil, particularmente no que se refere às creches, revela aspectos da desigualdade
sócio-econômica, possibilidades de superação de significativos obstáculos impostos às crianças pequenas e suas famílias e
perspectivas de atendimento de qualidade, se observada a legislação pertinente. Do ponto de vista das políticas públicas, o quadro
aqui apresentado aponta para algumas questões. Considerando o fato de que a creche é a primeira das etapas da educação infantil,
como garantir o acesso a ela a todas as famílias que a demandam? Como atingir as metas previstas no Plano Nacional de
Educação sem privatizar os serviços? Ainda que haja crescimento em relação ao número de matrículas, esse número ainda está
distante das metas propostas.
Da mesma forma, como atender à qualidade necessária a essa instituição? Em relação à qualidade do atendimento, a
distância entre o que a lei prescreve e as demandas sociais, de um lado, e a realidade das instituições de educação infantil, de
outro, ainda é grande, principalmente para creche. Nesse sentido, o Brasil ainda necessita de maior investimento econômico e
político para o desenvolvimento de pesquisas e para consolidar sistemas de informação capazes de monitorar a implementação das
políticas públicas e supervisioná-las adequadamente.

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Políticas Internacionais para o mundo do trabalho, repercussões no Brasil para as


pessoas com deficiência.
Beatriz Regina Pereira Saeta
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
[email protected]

Resumo: A partir da década de 80, várias entidades ligadas à causa dos direitos das pessoas com deficiência iniciaram um movimento visando
integrar sociedade e pessoas com deficiência. Entre as várias possibilidades estudadas o trabalho foi o principal deles, dada a importância do
reconhecimento de pertencer e ser útil ao grupo social. Nosso trabalho tem como base de estudo as determinações da OIT – Organização
Internacional do Trabalho, postura ratificada sobre as oportunidades de trabalho, em legislações específicas para pessoas com deficiência, de
acordo com cada país. A Declaração de Salamanca e Linha de Ação de Conferência Mundial sobre Necessidades Especiais: Acesso e Qualidade,
realizada em 1994, recomendações no sentido de que a pessoa com deficiência possa usufruir de qualidade de vida, participando das diversas
instâncias da vida social, política e econômica. E a Legislação brasileira vigente no que se refere à inserção no mercado de trabalho, através da Lei
8213 de 24/07/1991, em seu artigo 93, estabelece que a empresa com 100 (cem) ou mais empregada deve preencher de 2% a 5% dos seus cargos
com pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiência habilitadas. O tema trabalho tem atingido o privilégio de figurar entre os primeiros lugares
das agendas sociais, políticas e, naturalmente, educativas. Repensar trabalho é, com efeito, pensar formação profissional para pessoas com
deficiência. O período da formação profissional pertence a uma fase em que a maioria dos jovens, portadores de deficiência ou não, tem no
trabalho não só o suprir as necessidades de subsistência, mas especialmente, a construção da auto-imagem, auto-estima e autoconfiança. O ser
humano, de maneira geral, tem, a partir de sua relação de produção social com o trabalho, a formulação de uma série de ideais de realização e
conquistas advindas de sua atuação profissional. Palavra chave: trabalho, legislação, deficiência.

Introdução
“O trabalho é inerente à condição humana. Por meio do trabalho o ser humano desenvolve suas potencialidades, ao mesmo
tempo em que recebe e expressa solidariedade. Por isso o trabalho não deve ser tratado como simples mercadoria, devendo
ser reconhecido como um direito individual e um dever social, que deve ser exercido em condições justas.” (Dalmo
Dallari, no livro Direitos humanos e cidadania)”

O tema trabalho tem atingido o privilégio de figurar entre os primeiros lugares das agendas sociais, políticas e,
naturalmente, educativas. Repensar trabalho é, com efeito, um dos assuntos que hoje resulta como prioritário. A permanente busca
de novas idéias e esquemas de interpretação de “mudanças” na compreensão do mundo do trabalho nas análises, nas políticas e
práticas relacionadas com as reformas e a inovação, define de uma maneira muito peculiar em nossos dias, um dos domínios mais
relevantes sobre o que cerca algumas das grandes questões que hoje nos desafiam. Entre elas: que diálogos devem manter os
sistemas educativos e de trabalho nos seus contextos sociais e políticos, possibilitando oportunidades iguais entre os cidadãos?
Desta forma trabalho e educação mantêm uma relação estreita ao nos referirmos à formação profissional. Merecem uma atenção
especial, no entanto, os trajetos já explorados e os acertos que fomos capazes de lograr no passado, e colocarmo-nos atentos a um
presente reformista.
O período da escolha profissional pertence a uma fase em que a maioria dos jovens, deficientes ou não, têm na escolha
do trabalho, o reconhecimento de se sentirem úteis e recompensados por seus esforços dedicados aos anos de estudo. “Ao longo
da vida, o trabalho contribui, não só para suprir as necessidades de subsistência, mas, especialmente, para a construção de auto-
imagem, auto-estima e autoconfiança (Vasch, 1998:101). O ser humano, de maneira geral, tem, a partir de sua relação de
produção social com o trabalho, a formulação de uma série de ideais de realização e conquistas advindas de sua atuação
profissional. “A comunidade identifica como um espelho generoso de si mesma e que é perpetuado pelo grupo dominante.
“Aquilo que, em última instância, constituirá o substrato da qualidade das relações estabelecidas, ou a estabelecer, entre os
depositários dessa idealização e os dela desviante.” (Amaral, 1995:23). Percebemos assim, que alguns serão considerados fracos e
inúteis para essa sociedade, o que dificultará a realização de seu projeto. Não oferecendo meios para que a pessoa com deficiência
se encaixe, ou seja, capaz de competir no mercado de trabalho. Hannah Arendt (1999:15) ao refletir sobre o trabalho na existência
humana, cita “O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente
contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último... A condição humana do trabalho é
a mundanidade...” A partir da década de 80, várias entidades ligadas à causa da deficiência iniciaram um movimento visando
integrar as pessoas com deficiência à sociedade, principalmente no que se refere a oportunidades de trabalho, postura ratificada
pela OIT- Organização Internacional do Trabalho e legislações específicas, de acordo com cada país. A Declaração de Salamanca

516
e Linha de Ação da Conferência Mundial sobre Necessidades Especiais: Acesso e Qualidade, realizada em 1994, faz uma série de
recomendações no sentido de que a pessoa com deficiência possa usufruir de qualidade de vida, participando das diversas
instâncias da vida social, política e econômica.

Deficiência e Trabalho: Realidade Brasileira


A Legislação Brasileira vigente, no que se refere à inserção no mercado de trabalho, através da Lei 8213 de 24/07/1991,
em seu artigo 93, estabelece que a empresa com 100(cem) ou mais empregada deve preencher de 2% a 5% dos seus cargos com
pessoas reabilitadas ou portadoras de deficiência habilitadas. Esclarecendo nos artigos 89 a 92 o caminho das possibilidades para
a integração. Art. 89. A habilitação profissional e social deverá proporcionar ao beneficiário incapacitado parcial ou totalmente
para o trabalho, e às pessoas portadoras de deficiência, os meios para a (re) educação e de (re) adaptação profissional e social
indicados para participar do mercado do contexto em que vive. Parágrafo único. A reabilitação profissional compreende:
a) o fornecimento de aparelho de prótese, órtese e instrumentos de auxílio para locomoção quando a perda ou redução
da capacidade funcional puder ser atenuada por seu uso e dos equipamentos necessários à habilitação e reabilitação social e
profissional;
b) a reparação ou a substituição dos aparelhos mencionados no inciso anterior, desgastados pelo uso normal ou por
ocorrência estranha à vontade do beneficiário;
c) o transporte do acidentado do trabalho, quando necessário.
Art. 90. A prestação de que trata o artigo anterior é devida em caráter obrigatório aos segurados, inclusive aposentados
e, na medida das possibilidades do órgão da Previdência Social, aos seus dependentes.
Art. 91. Será concedido, no caso de habilitação e reabilitação profissional, auxílio para tratamento ou exame fora do
domicílio do beneficiário, conforme dispuser o Regulamento.
Art. 92. Concluído o processo de habilitação ou reabilitação social e profissional, a Previdência Social emitirá
certificado individual, indicando as atividades que poderão ser exercidas pelo beneficiário, nada impedindo que este exerça outra
atividade para a qual se capacitar.
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco
por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I – até 200 empregados.............................................2%


II – de 201 a 500 ......................................................3%
III – de 501 a 1.000 ..................................................4%
IV – de 1.000 em diante ...........................................5%

1° A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais
de 90 (noventa) dias, e a imotivada no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de
condições semelhante. Resultante da mobilização e participação da sociedade civil tem suas bases na Lei 7.853, de 24 de outubro
de 1989, sendo instituída pelo Decreto nº 914 de 6 de setembro de 1993 e regulamentada pelo Decreto nº 3298 de 20 de dezembro
de 1993, o qual estabelece os princípios, as diretrizes e objetivos da Política Nacional, os quais devem ser seguidos pela União,
Estados e Municípios da Federação.
No art. 3º, considera-se:
I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere
incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;
II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não
permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e
III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de
equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir
informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.
A Convenção nº 159/83, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil por meio do Decreto
Legislativo nº 51, de 28 de agosto de 1989, assumiu, importância primordial e representa a posição mais atual da OIT. Seu
princípio basilar esteia-se na garantia de um emprego adequado e na possibilidade de integração ou reintegração das pessoas com
deficiência na sociedade. Nesta convenção foi considerada oportuna a conveniência de adotar novas normas internacionais sobre o
assunto, que levem em consideração, a necessidade de assegurar, tanto nas zonas rurais como nas urbanas, a igualdade de
oportunidade e tratamento a todas as pessoas com deficiência, no que se refere a emprego e integração na comunidade. O decreto
3298 de 20 de novembro de 1999 - A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência constitui um

517
conjunto de orientações normativas que objetivam assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas
portadoras de deficiência.
Uma das questões sociais discutidas nas últimas décadas refere-se às minorias; a diversidade humana encontra-se em
vários âmbitos de estudos e questionamentos. No Brasil, as discussões sobre as questões da diversidade humana têm se tornado
constante nos meios de comunicação e de estudos acadêmicos. Oferecer oportunidade às pessoas com deficiência é lidar com a
diversidade humana de forma aberta, responsável e respeitosa quanto as questões do exercício da cidadania. O que provoca a
mudança num determinado período histórico não é apenas o que se produz pela oportunidade criada, mas as relações sociais que
permeiam e darão significado às relações entre os homens.
Vislumbrar a entrada para o mundo do trabalho adquire um significado maior do que o da subsistência e o de
reconhecer-se produtivo. É determinar seu comportamento, sua linguagem, suas expectativas, seus projetos futuros, seu afeto. O
estímulo à inserção social de pessoas com deficiência no mundo do trabalho gera, por consequência, pressão sobre as instituições
no sentido de abrirem as suas portas para as pessoas com deficiência e oferecerem serviços que atendam às suas necessidades.
Este fato é particularmente importante, uma vez que essas pessoas constituem-se num segmento que tende a crescer na demanda
por formação profissional continuada e aperfeiçoada para o ingresso no chamado mercado de trabalho. A inclusão social é a
palavra-chave a nortear todo o sistema de proteção institucional da pessoa com deficiência no Brasil. Implica a idéia de que há um
débito social secular a ser resgatado em face das pessoas com deficiência; a remoção de barreiras arquitetônicas e atitudinais
acarretam a percepção de que os obstáculos culturais e físicos são opostos pelo conjunto da sociedade e excluem esta minoria do
acesso a direitos fundamentais básicos. Cabe, por tanto, à sociedade agir, combinando-se esforços públicos e privados para a
realização de tal mister.( BRASIL, 2007:16). Segundo apresentação de Izabel Maior, Coordenadora Geral da Coordenadoria
Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de deficiência, no lançamento da Agenda Social, em 26 de setembro de 2007: “O
Brasil está entre os cinco países mais inclusivos das Américas, reconhecido por sua legislação e políticas públicas voltadas as
pessoas com deficiência. O programa de Inclusão das pessoas com Deficiência, lançado pelo Governo Federal, acelera o processo
de inclusão e inclui medidas e ações integradas dos ministérios da Saúde, da Educação, do desenvolvimento Social e Combate à
fome, do Trabalho e Emprego, das Cidades, sob a coordenação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que são
desenvolvidas em parceira com a sociedade civil e com o setor privado, visando garantir o acesso das pessoas com deficiência aos
serviços públicos essenciais para garantir uma vida digna, de respeito aos direitos humanos. Segundo Nambu (2003:05) “A
inclusão da pessoa portadora de deficiência ao mercado de trabalho é um direito, independente do tipo de deficiência que
apresente e de seu grau de comprometimento. No entanto, ainda presenciamos inúmeros casos de discriminação e exclusão,
talvez, pela falta de conhecimento da sociedade de que esse cidadão tem direito à convivência não segregada e ao acesso aos
recursos disponíveis aos demais cidadãos.”. Mesmo com a existência da Lei Federal (8213/91), chamada Lei de Cotas, uma
pequena parcela das pessoas com deficiência ocupa uma vaga no mercado de trabalho. A Superintendência Regional do
Trabalho de São Paulo, no dia em que a lei completou 17 anos (julho, 2008) divulgou que: O Estado de São Paulo avança no
cumprimento da Lei de Cotas: 82.301 pessoas com deficiência estão exercendo seu direito de trabalhar, considerado o melhor
resultado do país. Atualmente, segundo o IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil conta com 24 milhões de
pessoas com deficiência. O desemprego em pessoas com deficiência é superior as demais pessoas. Porém quando inseridas no
mercado de trabalho ocupam posições com baixa qualificação. Para Vash (1988) os trabalhadores deficientes têm pouca, ou
nenhuma chance de atingir seus objetivos através de seu trabalho, quando lhe são oferecidos empregos secundários. Eles podem
até pagar o aluguel, comprar roupas, conseguir se sustentar, mas uma vida profissional de qualidade exige muito mais. Boa parte
da realização pessoal no trabalho consiste em trabalhar junto com pessoas compatíveis e adequadas ao seu temperamento, dando
assim maior acesso para formação de amizade e probabilidade de se relacionar fora do ambiente de trabalho. Notamos então, que,
dentre os inúmeros aspectos sociais que contribuem para a formulação de oportunidades de trabalho, devemos focar com especial
atenção, as questões relativas às expectativas dirigidas a essa pessoa, entendendo que essas expectativas sociais se entrecruzam
num misto entre o que é esperado dele, e o que lhe é dado de direito – mesmo que isto fique numa relação de “promessas”, ou
seja, ao pensarmos nos vários aspectos sociais envolvidos na discussão conceitual de deficiência e direitos, estaremos, de alguma
forma,voltando os olhos para uma análise das inter-relações estabelecidas entre indivíduo, grupo e sociedade, e sua consequente
repercussão nas pessoas com deficiência. No desenvolvimento de uma teia das inter-relações veladas será inevitável, um convívio
social insatisfatório e desigual Goffman (1982:138) reafirma “[...] uma condição necessária para a vida social é que todos os
participantes compartilhem um único conjunto de expectativas normativas, sendo as normas sustentadas, em parte, porque foram
incorporadas”
Além disso, sublinhe-se que a diferença, ao se fazer presente entre os indivíduos que compõem a sociedade, afasta deles
os direitos universais. “Não se trata apenas de beneficiar-se ou respeitar leis – sejam elas do Direito Trabalhista, Criminal ou
qualquer outro; de votar e ser votado e assim por diante. Trata-se do direito de ser pessoa: ter autonomia, ter liberdade de escolha
e ter participação ativa na VIDA (com limites e as potencialidades). Isso alarga a configuração da cidadania, fazendo com que
essa qualidade e estado alcancem todos os planos da condição humana (Amaral, 1995:190-191). A maioria da população de
pessoas com deficiência traz um histórico de vida pessoal sofrida, é alvo de preconceitos e é estigmatizada nos diversos âmbitos

518
da sociedade, entre eles, a educação. Desde os processos de habilitação e reabilitação até o atendimento educacional que possa
corresponder ao mínimo de requisitos necessários à sua escolaridade que o leve à busca da educação no Ensino Superior, muitos
deles não atingirão formação adequada para competir no mercado de trabalho. Sendo então, mais um fator que contribui para a
inserção da pessoa com deficiência no mundo do trabalho. Percorrer a história é ter a possibilidade de rever ações pessoais em
relação ao que se possa considerar uma efetiva prática da inclusão, integração ou qualquer outro nome que se queira referenciar,
pois, ainda muito se tem a percorrer na busca e concretização de novas formas de inter-relações menos preconceituosas e
estigmatizantes. Tal preocupação e desafio poderão favorecer um crescimento conjunto na construção de uma sociedade mais
humanitária. Segundo Gonçalves (2006, p.26) “o Brasil tem pela frente uma grande lista de providencias a serem tomadas para
oferecer oportunidades de trabalho ás pessoas com deficiência e assegurar o cumprimento da responsabilidade social. E isso exige
muito mais do que simplesmente notificar as empresas e autuá-las caso descumpram o estabelecido na legislação, pois a multa,
ainda que seja um valioso instrumento de pressão, revela uma derrota diante do objetivo maior: garanti a inclusão profissional das
pessoas com deficiência”.
Propor acesso ao mercado de trabalho, dirigido às pessoas com deficiência, deve ter o sentido do exercício efetivo da
cidadania. As empresas devem estar atentas a tais propostas, não só no sentido do cumprimento da lei, mas, acima de tudo de
acompanhar essa nova leitura social, possibilitando e reconhecendo uma efetiva realização humana através da participação no
mundo do trabalho.

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Quando as crianças fotografam


Kátia Adair Agostinho
Universidade do Minho
[email protected]

Resumo: O presente trabalho apresenta reflexões metodológicas de uma investigação em andamento que tem como objeto central de análise as
formas de participação infantil em contextos educativos de educação pré-escolar pública, de meio popular, envolvendo as relações sociais
estabelecidas pelas crianças e adultos.
Nele discorreremos sobre as fotografias que as crianças produziram durante o tempo das observações de campo numa pré-escola italiana,
atentaremos para a análise do potencial revelador da produção infantil como comunicante dos seus mundos de vida, os desafios vividos por elas
para capturar as imagens e os focos escolhidos.
A utilização da fotografia como fonte de informação e representação da realidade, captada pela subjetividade do pesquisador havia sido uma das
estratégias de recolha de dados da pesquisa. Este instrumento metodológico congela o tempo e o espaço, permite-nos observar detalhamentos da
vida no contexto educativo, perpetua um instante, revela minúcias, abre caminhos para diferentes pontos de vista.

519
As fotografias realizadas pelas crianças foram um acréscimo ao nosso trabalho que se apresentou no campo quando as próprias as mesmas
solicitaram realizá-las, revela já a partida a contribuição e influência das crianças na pesquisa, sua efetiva participação, para além disto nos
interessa aprofundar o potencial revelador de suas imagens acerca das culturas infantis, narrando os momentos de aproximação e conhecimento do
modo de utilização do equipamento e os desafios que este ato implica, e ainda, apresentando a análise dos focos escolhidos por elas para serem
fotografados.

O presente trabalho apresenta reflexões metodológicas de uma investigação em andamento que tem como objeto central
de análise as formas de participação infantil em contextos educativos de educação pré-escolar pública, de meio popular,
envolvendo as relações sociais estabelecidas pelas crianças e adultos no Brasil e Itália, e cujo campo exploratório foi Portugal. O
caminho metodológico escolhido para esta pesquisa é o um estudo de caso etnográfico1, com observações participadas,
participações observantes e fotografias.
Nele discorreremos sobre as fotografias que as crianças produziram durante o tempo das observações de campo numa
pré-escola italiana, atentaremos para a análise do potencial revelador da produção infantil como comunicante dos seus mundos de
vida, os desafios vividos por elas para capturar as imagens e os focos escolhidos.
A utilização da fotografia como fonte de informação e representação da realidade, captada pela subjetividade do
pesquisador havia sido uma das estratégias de recolha de dados da pesquisa como prolongamento da capacidade de análise e um
texto com uma narrativa visual. Este instrumento metodológico congela o tempo e o espaço, permite-nos observar detalhamentos
da vida no contexto educativo, perpetua um instante, revela minúcias, abre caminhos para diferentes pontos de vista, documenta
aspectos visuais cujas cartacterísticas transcendem a capacidade de representação da linguagem escrita, “soma-se a palavra” como
uma narrativa visual, outra forma de abordar a realidade.
As fotografias realizadas pelas crianças foram um acréscimo ao nosso trabalho que se apresentou no campo quando as
mesmas solicitaram realizá-las, revela já a partida a contribuição e influência das crianças na pesquisa, sua efetiva participação,
para além disto nos interessa aprofundar o potencial revelador de suas imagens acerca das culturas infantis, narrando os momentos
de aproximação e conhecimento do modo de utilização do equipamento e os desafios que este ato implica, e ainda, apresentando a
análise dos focos escolhidos por elas para serem fotografados.
O estudo aporta-se nos novos Estudos da Criança e da Infância, os quais têm buscado dar visibilidade aos modos
próprios das crianças serem e estarem no mundo, nas relações que estabelecem com os adultos e com outras crianças que fazem
parte dos seu quadros relacionais – familiares, educacionais, societais, culturais; reconhecem que a infância como categoria social
geracional sofre determinações estruturais relacionadas ao gênero, à raça, à classe social, etc. – e defende ainda que, ao conhecer
as crianças, aprofundaremos nossa compreensão da sociedade.
Ancora-se no paradigma da infância que compreende as crianças como atores sociais, sujeitos de direitos, e sustenta a
indispensabilidade da participação infantil como uma questão social, política e científica. Fortalece a defesa da cidadania ativa da
infância, pretendendo contribuir para a construção, implementação e efetivação de práticas e políticas participativas. Compreende
que a educação para a cidadania ativa encontra, na intersecção dos planos pedagógico-organizacional, simbólico e político, a
possibilidade de a escola trabalhar nesse espaço limitado, porém insubstituível, de contraposição à exclusão social e de produção
de uma sociedade de afirmação de direitos sociais (SARMENTO, 2005).
A consideração das crianças como atores sociais de pleno direito reconhece sua capacidade de produção simbólica e a
constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas. Defendemos a ideia de que as
crianças são produtoras culturais e não receptáculos passivos das culturas adultas, são sujeitos ativos na produção cultural da
sociedade, recebendo através das múltiplas instâncias de socialização as culturas socialmente construídas e disseminadas, que
interpretam de acordo com os seus códigos interpretativos próprios, configurando-se assim uma situação de “reprodução
interpretativa” (Corsaro, 1997).
A defesa da participação infantil afirma a competência e voz das crianças para efetivamente influenciar seus mundos
sociais e culturais, sendo-lhes permitido opinar e participar na sua organização. Consideramos que a participação das crianças
implica que possam expressar livremente opiniões, pensamentos, sentimentos e necessidades, e que os pontos de vista por elas
expressados devem ser levados em conta e influir nas decisões. Isso significa que as crianças precisam ser envolvidas
democraticamente nos seus espaços de convívio – famílias, escolas, mídias, associações, governos, etc. – e que suas opiniões
exerçam uma ação influente.2
Consideramos que a investigação em contexto educativo só se torna possível na medida em que seja capaz de mobilizar
as crianças e professores como parceiros ativos do projeto, defindo-se assim nesta relação a dimensão colaborativa da pesquisa e
exprimindo o sentido da participação infantil na investigação sobre os mundos sociais e culturais das crianças. Defendemos a
utilização de fotografias como forma de expressão e linguagens para as crianças, as produções culturais das crianças emergem das
interações entre as produções culturais adultas e as suas.

1
Sarmento 2003.
2
Idéia defendida pelo meu grupo de pesquisa no Doutorado em Sociologia da Infância na Universidade do Minho.

520
As fotografias das crianças resultaram das observações na Itália, cujo campo empírico foi uma turma de pré-escola, num
espaço educativo estatal, com 24 crianças entre 3 e 6 anos, 14 meninas e 10 meninos, e um professor, havendo em tempos curtos a
presença de outra professora e de uma auxiliar, as observações continuam neste campo empírico com o propósito de uma pesquisa
longitudinal, assim aprofundar e refinar minhas observações sobre as ações-relações que as crianças estabelecem entre si e com
adultos, cruzar novos fatores, tais como o tempo/crescimento das crianças, a saída e entrada de novos colegas/mudanças e (ou)
continuação de parceirias, etc.
Iniciei a fotografar após duas semanas de contato com as crianças e das autorizações de todas as famílias formalizadas,
após um tempo de realização das mesmas algumas crianças começaram a se aproximar de mim e o que inicialmente foram
pedidos apenas com o olhar tornaram-se pedido verbalizados para também fotografarem, a solicitação me surpreendeu, em
nenhum momento nos passos que antecederam minha entrada no campo de pesquisa considerei a possibilidade de as crianças
fotografarem, mas minha resposta imediata foi a de ascentir a utilização da máquina pelas crianças, fui junto com elas aprendendo
isto, os auxiliando e informando sobre os cuidados que deveriam ter com o equipamento.
Vivi os medos de danos possíveis no equipamento, e utilizei como estratégia para prevení-los a indicação de que as
crianças ao utilizarem a máquina sempre colocassem o fio de suporte no braço, esta indicação por vezes era esquecida e ainda por
outros motivos, choques, desiquilíbrio e outros, vivia a aflição da eminência de um dano no equipamento. Aos poucos somaram-
se a mim outros companheiros, meninos e meninas da turma, que lembravam o fato da utilização do fio na braço, nisto presenciei
momentos em que algumas crianças lembravam, me olhavam e comentavam a necessidade de utilizá-lo.
Minha percepção dos primeiros sentimentos vividos pelas crianças, que movidas por suas curiosidades se desafiaram a
utilizar a maquina fotografica, foi a de conquista, um sabor de poder e posse que expressavam em suas faces que esboçavam
sorrisos por terem o direito de manusea-la, depois enfrentaram em níveis diferenciados os desafios de equilibra-la, aprender
acioná-la, enquadrar o que desejavam registrar, a utlização do zoom, ver o resultado da sua produção, mostrar para os colegas,
para o professor e para mim.
Algumas crianças não se aproximaram desta prática até o final do tempo das primeiras observações, outras demoraram
muito a faze-lo, demonstrando receio com o resultado do intento, outras realizaram o movimento em direção a máquina
fotográfica e a mim para solicitá-la de forma lenta e com muitas oscilações, algumas receberam os incentivos de seus colegas,
outras ainda queriam a todo momento o equipamento, sendo necessário que eu intervisse no sentido de orientar que a negociação
entre eles pela posse da máquina era necessária.
Seus focos inicialmente mais aleatórios na busca de construir a competência para utilizar o equipamento fotográfico
caminharam no sentido de ir apurando-os e mirando em seus objetivos com maior determinação, os focos eram os colegas –
amigos, o professor, eu - pesquisadora, eles próprios manuseando a máquina para focarem a si mesmos ou seus reflexos no
espelho e ainda os jogos, brinquedos e espaços da sala
Abrimos espaço agora para apresentar algumas das fotografias das crianças como suas narrativas visuais, suas
expressões e suas produções culturais, deixando o convite ao leitor para conhecer os pontos de vista das mesmas e tecer os seus.

Os colegas

Fotografia de Elena Fotografia de David

521
O professor

Fotografia de Sara Fotografia de Giorgio


A pesquisadora

Fotografia de Andrea Fotografia de Gabrielle


A si mesmos ou seus reflexos

Fotografia de Margherita Fotografia de Antonio

REFERÊNCIAS
Livros
BARTHES, R. (1984) A câmara clara. RJ: Nova Fronteira.
BENJAMIN, W. (1987) Obras escolhidas I: magia e técnica. Arte e política. SP: Brasiliense.
CORSARO, W. A. (1997), The Sociology of Childhood, Thousand Oaks. Pine Forge Press.
FERNANDES, R. S. (2001) Entre nós, o sol: relações entre infância, cultura, imaginário e lúdico na educação não-formal.
Campinas, SP: Mercado de Letras; SP: Fapesp.
GEERTZ, C. (1989) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.

522
ROCHA, E. (1999) A Pesquisa em Educação Infantil no Brasil. Trajetória recente e perspectiva de consolidação de uma
Pedagogia da Educação Infantil. Florianópolis: Teses (doutorado) NUP 2, UFSC/CED.
SONTAG, S. (2004). Sobre Fotografia. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras.

Capitulos de livros
O’KANE, C. (2005) O Desenvolvimento de técnicas participativas: facilitando os pontos de vista das crianças acerca de decisões
que as afectam. In: CHRISTENSE, P. & JAMES, A. Investigação com Crianças: perspectivas e práticas. Ed: Escola Superior
Paula Frassinetti, p: 143-169.
SARMENTO, M. J. (2003). O Estudo de Caso Etnográfico em Educação. In: ZAGO, N., CARVALHO, M. & TEIXEIRA, R. A.
(org.). Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. Rio de Janeiro: DP&A.
SARMENTO, M. J. (2007). Culturas infantis e interculturalidade. In DORNELAS, L. (org.) Culturas da Infância. Petrópolis.
Vozes.

Artigos de revistas
CORSARO, W. A. (2002) A Reprodução Interpretativa no Brincar ao “Faz de Conta” das Crianças. In: Educação, Sociedade e
Culturas, nº 17 – p. 113-134, Porto.
SARMENTO, M. J. (2005) Crianças: educação, culturas e cidadania activa. In: Perspectiva, Florianópolis, v.23, n.01, p.17-39,
jan./jun.
SOUZA, S. J. & LOPES, A. E. (2002). Fotografar e Narrar: a produção do conhecimento no contexto da escola. In: Cadernos de
Pesquisa Nº 116, São Paulo, July 2002.

Universidade Aberta para a Terceira Idade: o desafio educacional na pós-


modernidade
Rita de Cássia da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Flávia da Silva Oliveira


Faculdades União
[email protected]

Paola Andressa Scortegagna


Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Resumo: A pós modernidade liga-se ao surgimento de uma sociedade pós industrial na qual o conhecimento torna-se a principal força econômica
de produção e assim entendida, todos os cidadãos tem o direito de serem educados para inserirem-se no mercado de trabalho e desfrutarem de uma
vida digna e de qualidade. No panorama mundial, a longevidade aparece como um fenômeno marcante; e no Brasil, a população com 60 anos ou
mais apresenta-se em grande crescimento. Hoje o contingente de idosos é de 16 milhões (9,7% da população) e em 2025 a projeção do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) será de 34 milhões de brasileiros idosos (15% da população) . A Universidade enquanto instituição
voltada para a produção e socialização de conhecimento, em consonância com as políticas públicas, tem oferecido cursos voltados para os idosos.
Essa pesquisa objetiva analisar o papel da universidade e em particular da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), PR, Brasil, no resgate
da cidadania do idoso, pelo recorte educacional, através da oferta de Cursos para idosos, tendo como princípio norteador a educação permanente;
estabelecer o perfil dos idosos que frequentam a UATI/UEPG e identificar as melhorias que o curso proporcionou a seus alunos. A pesquisa foi
quanti/qualitativa, descritiva e interpretativa, utilizando como instrumento a entrevista e os depoimentos dos idosos. A educação para esse
segmento é uma necessidade social que precisa cada vez mais estruturada e ampliada a fim de atender a demanda da população brasileira.
Palavras-chave: idoso, políticas públicas, universidade aberta, educação permanente, gerontologia.

Introdução
É fato consumado o envelhecimento populacional do Brasil, o qual aos poucos tem modificado o seu perfil
demográfico, seguindo assim a tendência mundial. O envelhecimento da população brasileira pode ser constatada pelo através do
Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000) quando indica que a população brasileira atualmente possui cerca

523
de 15 milhões de idosos, representando 9% da população com mais de 60 anos. Segundo projeção da ONU (1999), no ano de
2.025 o Brasil será o sexto país mais idoso do mundo, depois da para China, Índia, Estados Unidos, Japão, Indonésia, com um
contingente de 34 milhões de idosos. Embora a longevidade deva ser considerada como um grande avanço para o ser humano,
pouco se tem feito em resposta a essa evidência, mesmo diante do alerta silencioso e impotente da própria população idosa
(OLIVEIRA, 1999, p.127).
A população idosa em nosso país cresce sob dois aspectos: em número e também em anos de vida. Só no Paraná
existem mais de 1200 pessoas com mais de cem anos de vida. Assim, evidenciam-se duas facetas de um mesmo fenômeno: a
população está envelhecendo, ou seja, cada vez é maior o número de pessoas com 60 anos ou mais, e também o idoso está cada
vez mais idoso, com a ampliação da longevidade.
O Brasil ainda não equacionou satisfatoriamente a situação do idoso e suas necessidades refletidas pela baixa prioridade
atribuída à velhice. Essa transição demográfica tem provocado forte impacto social, político, econômico e cultural.
O envelhecimento é resultado da crescente queda das taxas de natalidade e de fertilidade atribuídas ao avanço científico
e tecnológico, contraditoriamente ainda se evidenciam muitos preconceitos e estereótipos negativos com relação a essa faixa
etária.
Segundo Oliveira (1999, p.131)
Percebe-se que o envelhecimento populacional do Brasil ocorre em razão de alguns aspectos: aumento da expectativa de
vida, diminuição da taxa de fecundidade, atribuída em grande parte aos avanços da medicina, e a busca de oferecer melhores
condições de vida à população em termos de moradia, saneamento básico, alimentação, transporte, embora ainda exista muito o
que fazer.
A ciência desenvolve instrumentos tecnológicos, de proteção e segurança que propiciam o prolongamento da vida
humana, mas paradoxalmente a sociedade desestimula a participação da população idosa nos processos socioeconômicos de
produção, decisão e integração social. A sociedade encontra-se despreparada para acolher essa faixa etária, tem provocado a
marginalização do idoso, reforçada pela não participação nas questões sociais, econômicas, culturais, espirituais e civis. Essa
situação precisa ser revertida a medida em que a velhice seja compreendida como processo natural, dinâmico e necessário.
Sabe-se que a trajetória da velhice nos países ocidentais apresenta-se pouco valorizada, e os estigmas e preconceitos a
ela atribuídos nem sempre são comprovados cientificamente, entre os quais: a incapacidade para produzir, a incapacidade para
aprender e até a incapacidade de amar. Essa etapa da vida é revestida culturalmente de preconceitos que precisam ser superados,
haja vista que atualmente os idosos, além de se apresentarem como um contingente significativo com relação a quantidade,
também possuem qualidades para continuarem inseridos e partícipes da sociedade em que estão inseridos.
Os temas sobre o envelhecimento não eram incluídos no rol das prioridades para pesquisa, mas com a mudança da
pirâmide etária, o aumento do contingente de idosos e a consequente longevidade, foi assumindo e se impondo com maior
visibilidade, respeito e referencial teórico consistente.
A velhice no Brasil rompeu com a conspiração silenciosa e manifestou-se como um fenômeno relevante, tornando-se
uma preocupação da sociedade política e civil.
Dessa realidade emerge a necessidade de programas alternativos que garantam maior qualidade de vida para essa
população.
A presente pesquisa teve como objetivos: analisar o papel da universidade e em particular da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG), PR, Brasil, no resgate da cidadania do idoso através do recorte educacional, pela oferta de Cursos para essa
faixa etária, tendo como princípio norteador a educação permanente; estabelecer o perfil dos idosos que frequentam a
UATI/UEPG e identificar as melhorias que o curso proporcionou a esses idosos. A pesquisa foi quanti/qualitativa, descritiva e
interpretativa, utilizando como instrumento a entrevista e os depoimentos dos idosos.

Políticas Públicas X Velhice


Definir velhice, em tempos de quebra de paradigmas é um desafio. A visão pejorativa do termo vem sendo sobreposta
por uma concepção mais ampla, na qual fatores como o cronológico, biológico, psicológico e social devem ser analisados.
(OLIVEIRA, 1999).
A velhice é muitas vezes definida como estado de uma pessoa de idade avançada, o que subentende que a sua
expectativa de vida está diminuída e que possui menor tempo para viver.(LAFOREST,1991).
A juventude e a velhice não são interpretações absolutas, mas interpretações sobre o percurso da existência. Como
interpretações, em contrapartida, essas concepções se transformam historicamente e, por serem conceitos construídos
historicamente, não existe qualquer substancialidade absoluta no ser da velhice.
Segundo Oliveira (1999) se efetuada uma análise sob uma perspectiva histórica, pode-se compreender que o idoso é
uma invenção social emergente da dinâmica demográfica, do modo de produção, da estrutura social vigente, das ideologias
dominantes, dos valores e culturas preponderantes.

524
As pessoas que recebem o qualificativo de “velhas” são percebidas de forma estereotipadas e consideradas como
enfermas, solitárias, tristes e/ou abandonadas.
Toda a experiência da velhice supõe, por conseguinte, uma dimensão adversa que não se pode negar ou ignorar. Mas
supõe, ao mesmo tempo, uma dimensão positiva não menos real, quando o envelhecimento é encarado como um processo natural
e não como doença terminal.
Mesmo que se entenda a velhice como um processo que acontece naturalmente na vida das pessoas, é preciso
reconhecer que a convivência social dos idosos é reduzida e, em decorrência disso, ocorre a diminuição de suas interações sociais.
Isso se deve ao fato de a pessoa idosa geralmente diminuir sua participação na sociedade, abandonando também seu papel social
principal, o que diretamente retrai sua vida em sociedade.
Talvez isso aconteça porque as políticas sociais reforçam e valorizam a força jovem, olvidando a participação que os
idosos tiveram, induzindo-os a reformular seus valores e sentimentos devido à ausência de tempo para concretizá-los, de tal forma
que se gera uma dimensão negativa da velhice sob três aspectos:
- atribuindo à velhice a incapacidade de realizações de atividades, fortalecendo e incentivando a passividade nessa faixa
etária.
- gerando percepção negativa dos idosos;
- possibilitando e legitimando o desinteresse da sociedade com respeito aos idosos, na medida em que assumem sua
incapacidade de ação e sua posição de marginalidade social, permitindo como consequência imediata o descompromisso da
própria sociedade com a participação ativa dessa clientela.
Esse panorama, explicado pela Teoria da Desvinculação, favorece diretamente a separação e a falta de solidariedade
entre gerações, ao mesmo tempo em que esse falso compromisso e diminuição da responsabilidade social dos idosos não
correspondem à observação da realidade, uma vez que os idosos reclamam atividades, participação nas decisões e integração
social para se sentirem úteis.
A idade não pode ser considerada como aspecto negativo, mas focalizada como sinônimo de experiência, sabedoria
acumulada ao longo dos anos que os idosos podem transmitir aos jovens.
À proporção que o indivíduo envelhece existe uma modificação significativa nos papéis sociais que desempenha,
carecendo até certo ponto de definição mais objetiva, de propósito e de identidade. Esse papéis precisam ser substituídos, caso
contrário, o idoso interioriza uma anomia, tornando-se alienados da sociedade e de si mesmo.
“O envelhecimento da população é um fenômeno global que traz importantes repercussões nos campos social e
econômico, especialmente nos países em desenvolvimento.” (OLIVEIRA, 1999, p.123).
A terceira idade, na sociedade brasileira, reveste-se de preconceitos. A sociedade capitalista baseia-se na produtividade,
visando essencialmente ao lucro. Em tal contexto, o idoso é considerado improdutivo e excluído do sistema de produção.
Referente a esse aspecto repousa, de maneira inconsistente a justificativa para muitos procedimentos inadequados e injustos
vitimando os idosos, entre eles, a educação, que pouco contempla essa faixa etária por não acreditar em um retorno futuro.
E mais, essa visão é reforçada pelas teorias biológicas do envelhecimento, as quais retratam essa fase da vida como uma
involução com processo degenerativo, constituindo-se extremamente negativa e pessimista, na medida em que pela diminuição
de algumas funções, atribuem ao idoso um quadro de incapacidade generalizada, com ênfase no declínio cognitivo.
O idoso passa a ser alvo de estudos e preocupações numa tentativa constante de redimensionamento de seus direitos e
obrigações, possibilitando-lhe uma vida digna e de boa qualidade.
A longevidade é a aspiração de todo ser humano, contudo quando ela se apresenta traz consigo novos medos, incertezas
e dificuldades provenientes de ações sócio-políticas deficitárias. Atitudes advindas de uma experiência de vida carente de uma
educação de qualidade, que permita aos cidadãos se prepararem para uma vida futura saudável e digna.
“A tendência no Brasil é valorizar aquilo que é novo e desprezar o que é velho” (OLIVEIRA, 1999, p.62). A própria
educação faz o velho se sentir um objeto fora de uso.
Na perspectiva sócio-histórica é possível destacar quatro grandes concepções da política social (GOMEZ e BOYER,
2003): assistencial – as ações são pensadas como uma expressão altruísta e de benevolência; controle social – conjunto de
objetivos de ajuda aos pobres a aos fracos com a finalidade de regularizar as relações sociais e as condições de vida dessa
população, assegurando a ordem, a paz e a integração social. O estado garante o bem estar coletivo através da criação de
instituições de bem-estar que controlam a vida civil, e em troca exige comportamentos adequados; - forma de reprodução social –
a partir da força de trabalho, retoma a teoria marxista da sociedade e reproduz as condições de trabalho proletarizado; - realização
dos direitos sociais de cidadania – enquanto direito, é a expressão e a realização de todas as forças de uma sociedade que procura
a igualdade de oportunidades de vida.
A sociedade brasileira precisa se conscientizar do envelhecimento da população e preocupar-se com a qualidade de vida
desse segmento etário elaborando políticas públicas que garantam vida digna e satisfatória. A preocupação com essa faixa etária,
não pode ser restrita apenas a sociedade política, mas deve ser um compromisso de toda a sociedade civil, através de uma
conscientização do processo de envelhecimento.

525
Dessa realidade emerge a necessidade de programas alternativos que garantam maior qualidade de vida para essa
população. Para isso, o idoso deve ser considerado um cidadão partícipe, capaz, pleno de seus direitos e deveres.
Oliveira (2001), afirma que a cidadania está diretamente vinculada aos direitos humanos, que constitui uma conquista da
humanidade, e o registro formal foi com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pela organização das
Nações Unidas (ONU), tem suas matizes marcantes nas cartas de Direito dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa
(1798).
A referida Declaração composta por 30 itens, enfoca que todos os homens são iguais ainda que perante a lei, sem
discriminação de raça, credo ou cor. E ainda: a todos cabe o domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a um salário condizente
para promover a própria vida, o direito à educação, à saúde, à habitação, ao lazer. Considera direito de todos expressar-se
livremente, militar em partidos políticos e sindicatos, fomentar movimentos sociais, lutar por seus valores. Todo indivíduo tem o
direito a ter uma vida digna.
Assim, deve-se compreender a cidadania como participação política e como exercício de direitos e deveres políticos,
civis e sociais, adotando no dia-a-dia atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo
para si o mesmo respeito.
O exercício pleno da cidadania não pode ser simplesmente outorgado por lei, mas, que, cumpre ao indivíduo conquistá-
lo e exercitá-lo constantemente nos diferentes momentos e situações vivenciadas no cotidiano, desenvolvendo o sentido de sua
responsabilidade pessoal e social. Deste modo, embora a escola seja a instituição formal responsável pela formação das novas
gerações, a educação para a cidadania deve fazer-se presente em todas as instâncias da vida social, envolvendo a família, a
comunidade, as associações, os sindicatos, os partidos políticos.
Em âmbito nacional, a Assembléia de Madrid, realizada em 2002, registrou que o envelhecimento e a mudança da
pirâmide populacional não atinge apenas os países desenvolvidos como foi considerado na Assembléia de Viena, ocorrida há 20
anos atrás, mas os países em desenvolvimento estão sofrendo a mesma situação. Portanto, o tema envelhecimento assume
proporções globais, presente em todas as sociedades, procurando possibilitar a participação efetiva dos idosos em todas as
sociedades, superando os estereótipos atribuídos aos idosos e cristalizados socialmente.
O lema básico da Assembléia foi uma sociedade para todas as idades, o que implica em quatro considerações, conforme
afirma Osório (2007, p.32):
- o desenvolvimento individual durante a vida;
- as relações multigeracionais;
- a relação mútua entre o envelhecimento da população e o desenvolvimento;
- a situação das pessoas idosas.
Complementando, Cortelletti (2006, p.24) reforça que...
O Plano de Ação Internacional de Madrid sobre o Envelhecimento 2002 e Declaração política apresentam, como
objetivos fundamentais: que os idosos possam desfrutar plenamente de seus direitos humanos; envelheçam de forma segura e fora
de alcance da pobreza; participem integralmente da vida econômica, política e social, e tenham a possibilidade de realização em
saúde mais avançada. Destacam também iniciativas a serem adotadas em três perspectivas prioritárias: Idoso e desenvolvimento;
Melhoria na Saúde e no Bem-estar da população idosa, e Criação de Condições Favoráveis ao desenvolvimento de uma Sociedade
para todas as Gerações.
A legislação brasileira iniciou uma caminhada histórica prescrevendo ações preventivas e orientações em busca da
superação da marginalização e preconceitos que são flagrados seguidamente com relação à velhice. Para tanto, fomenta-se uma
preocupação com relação às políticas públicas voltadas para o idoso. Em especial no Brasil, em 1994, foi aprovada a Lei 8.842/94
que estabelece a Política Nacional do Idoso. Infelizmente apesar de preconizar alguns aspectos favoráveis para essa faixa etária
pouco foi contemplada na prática.
Segundo Fernandes (1997) se a sociedade brasileira proporcionasse aos cidadãos mais velhos um tratamento e a
consideração dispensada aos adultos, eliminar-se-ia os estatutos especiais para os idosos. Há falta de vontade política, acusação
feira por estudiosos e profissionais responsáveis quanto aos 20 anos de expectativas de atitudes governamentais em favor do
público idoso, sendo colocado como prioridade por alguns apenas em suas campanhas eleitorais, segundo Fernandes (1997).
Dessa maneira, a luta em prol do idoso continuou e foi aprovada em 2003 a Lei 10.741/03 - Estatuto do Idoso, que veio
resgatar, os princípios constitucionais que garantem aos cidadãos idosos direitos que preservem a dignidade da pessoa humana,
sem discriminação de origem, raça, sexo, cor e idade.
Essa Lei mobilizou muitas discussões em diferentes segmentos da sociedade, levantando a bandeira da discriminação e
da marginalização da qual o idoso, em diferentes situações, estava sendo vítima.
Pode-se constatar que o tema envelhecimento e a velhice, aos poucos tem assumido certa relevância e está sendo
integrado às políticas públicas de desenvolvimento econômico e social, superando mitos e preconceitos com relação a
longevidade, valorizando a sabedoria, a experiência de vida dos idosos e proporcionando a eles uma educação continuada ao

526
longo da vida para garantir uma real inserção social, com bem-estar, qualidade, respeito e esboçando uma nova representação
social da velhice com mais identidade, dignidade e reconhecimento.
“É necessário caminhar para um modelo societário na atual sociedade pós-industrial. Os referentes básicos das políticas
sociais convertem-se nas condições e estilos de vida, com tendencial atenção à pessoa como tal.” (OSÓRIO, 2007, p.28).
O Estatuto, por ter sido resultado de ampla discussão política, está valorizando mais esse segmento da população e dessa
maneira, o idoso tem recebido mais atenção da sociedade política e civil no que se refere as ações práticas voltadas para a
melhoria e promoção da qualidade de vida desse segmento da população.
Considera-se idoso, o indivíduo acima de 60 anos, conforme prescreve o Estatuto do idoso ( Lei 10.741 -03). O referido
Estatuto prevê em seu capítulo V, artigo 20, ter o idoso o direito á educação,e, em seu artigo 21 rege que o Poder Público criará
oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais
a ele destinados.
Esses artigos referem-se a educação permanente como instrumento eficiente para a valorização e reconhecimento do
idoso como um cidadão atuante, participativo e por isso merecedor de atendimento com qualidade.
A educação emerge como uma alavanca para o fortalecimento da auto estima e da integração dos idosos na sociedade,
procurando transpor as limitações e os preconceitos que aprioristicamente são impostos a essa faixa etária (NERI, 2004).
Sendo assim, considerar o idoso “inativo” apenas levando em conta o aspecto cronológico, sem considerar aspectos
individuais, onde existem pessoas que aos 50 anos já apresentam sintomas de velhice ao passo que outras aos 80 são saudáveis e
atuantes, é um enquadramento muito limitado e superficial.
Um ponto essencial para reverter essa situação é a valorização da velhice, atribuindo aos idosos novos papéis
socialmente valorizados, talvez acompanhados de uma forma de remuneração, o que lhes garante em primeiro lugar um
complemento econômico e depois porque a sociedade atualmente valoriza as atividades vinculadas ao dinheiro, desmerecendo o
trabalho gratuito.
Dessa maneira, os processos educativos, nas sociedades industriais, deveriam valorizar o capital cultural e as atividades
dos idosos, porém esse ainda é um terreno com atividades precárias.
A sociedade se caracteriza pela desigualdade e por conflitos. No sistema capitalista, o trabalho está controlado e
organizado pelas classes superiores para proteger seus interesses sócio-econômicos, gerando uma alienação das classes inferiores.
Os idosos situam-se em uma posição marginal dentro da sociedade capitalista.
Não é exclusividade do capitalismo esse panorama com relação ao idoso, essa situação desprivilegiada referente aos
aspectos econômicos e sociais, permeia a história da humanidade dos idosos em muitas sociedades.
A educação pode mudar esse contexto desprivilegiado dos idosos e vem, de fato, despontando nessa área social com
ações de grande importância para tal segmento da população. Entretanto, não se pode atribuir a ela fórmulas mágicas, capazes de
levar os idosos a romperem de um momento para outro com os estigmas sociais que lhes são atribuídos.
Não são poucas as situações em que esses direitos são desrespeitados, sejam com relação ao gênero, por exemplo,
mulheres são menos remuneradas que os homens, ou até pouco tempo não podiam assumir determinados cargos; com relação as
faixas etárias, a exploração do trabalho e da prostituição infantil; retirando da criança o direito a crescer em um ambiente saudável
e receber escolaridade necessária para o sua integração social. Em outro extremo encontram-se os idosos, considerados
improdutivos pela sociedade apenas consumidores, sendo na grande maioria marginalizados. Para essas categorias crianças e
idosos, dois extremos frágeis da sociedade, visando garantir os direitos, criou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente e o
Estatuto do Idoso respectivamente.
À medida que se procura amenizar esse processo discriminatório relativo ao idosos, permitindo-se, por exemplo, que a
locomoção lhes seja facilitada com a gratuidade dos transportes e que a sua integração ocorra através da criação de associações
específicas para essa faixa etária, intensificando o lazer e o turismo, percebe-se que tais ações não deixam de constituir uma
alternativa útil de reforçar a alienação dessa clientela.
Em contrapartida, a preocupação deve ser com a participação social real e efetiva dos idosos, preparando-os para
assumirem novos papéis ativos e desafiando estereótipos que buscam definir negativamente a terceira idade de forma apriorística.
A atividade criteriosamente selecionada se converte em condição fundamental para uma vida com êxito.
A educação constitui uma condição para permitir aos idosos viverem e acompanharem as constantes evoluções da
sociedade, adaptando-se e participando ativamente desse ritmo acelerado de mudanças. Dessa forma, será reforçada a participação
real e a integração dos idosos na sociedade, repudiando-se a segregação e o isolamento dessa população.
Essa faixa etária passa a ser descrita como um período de crescimento, de criatividade, com avanços respaldados na
experiência ao longo dos anos de vivência individual. É vista como um período de características próprias, quando muitos
projetos e atividades que até então não haviam sido realizados acenam para a concretização, buscando a satisfação pessoal, o
crescimento e as mudanças psicológicas. Portanto, a deterioração intelectual não é atribuída à idade mais avançada, mas é
considerada uma questão de diferenças individuais.

527
Por isso, as atividades e a participação social são aspectos relevantes que possibilitam a melhoria do perfil funcional dos
indivíduos dessa faixa populacional.

A educação para o Idoso


A chegada da pós modernidade liga-se ao surgimento de uma sociedasde pós industrial na qual o conhecimento torna-se
a principal força econômica de produção. O conhecimento passa a ser o instrumento de cada um na garantia de inserção no
mercado de trabalho em busca de melhor qualidade de vida. Entende-se dessa maneira que a realidade reclama novos espaços
educativos baseados em novas políticas públicas que possibiltem a esse segmento etário condições mais dignas de vida, exigindo
não apenas mais reflexão sobre a constante mudança e envelhecimento da população, mas também aliar a uma ação mais ampla
em relação à condição humana.
A educação na sociedade brasileira, historicamente não se constitui como prioridade social e política. A política
educacional, como um aspecto específico da política social, é implementada na medida em que a sociedade e os movimentos
sociais organizam e reivindicam, e o Estado, por sua vez, produz políticas públicas abrangendo áreas como a saúde, previdência e
assistência social. O processo desordenado do crescimento da população idosa determina problemas socias graves a afeta a
estrutura socioeconômica e política do país. E, nesse quadro se situam as questões relativas à velhice no Brasil.
Diante dessa realidade, diferentes segmentos como a saúde, transporte, habitação, previd~encia social e educação
precisam ser redimensionadas para atender esse novo perfil populacional.
A educação poderá ser útil e eficaz no combate a negatividade estereotipada para a terceira idade. Todavia, no Brasil,
existe um consenso quanto à necessidade de educar a população, como perspectiva de um processo de modernização, na medida
em que a opção sócio-econômica definiu os objetivos que se chocam como prioridade à educação. Muito ainda há por se fazer
para que essa meta seja realmente efetivada e se desvincule dos discursos para assumir a praticidade da qual é imprescindível.
A educação deve ser vista, pois, como finalidade do processo civilizatório e na prática também deve ser encarada como
prioridade no processo de modernização do país. De forma alguma pode ser entendida como um fenômeno isolado, nem
tampouco ser relegada ou confundida como simples instrumento de promoção de indivíduos em busca de ascensão social.
A educação é um direito de todos. Não educação compensatória, procurando recuperar o tempo perdido e relegando a
segundo plano o critério da qualidade. Como afirma Buarque (1991) a educação precisa ser educada. O Brasil precisa entender o
próprio Brasil com olhos brasileiros, com objetivos brasileiros, com as especificidades de seus valores culturais e das
possibilidades naturais, visando criar instrumentos que permitam a modernização real do país. A educação precisa ser considerada
como a manifestação do compromisso maior da sociedade que busca quebrar barreiras sociais, possibilitando uma real
democracia, igualdade de participação e exercício da cidadania de todos os indivíduos.
Em seu conceito mais amplo, a educação, nas suas diversas modalidades, passa a ser compromisso da sociedade civil e
política com toda a população, não se restringindo a um preceito constitucional com limitações de idade.
Não se pode desconsiderar a educação como uma das formas para a transformação da sociedade e a sua importância
enquanto processo contínuo, como fato existencial, cultural, intencional, social, exponencial, teleológico (PINTO, 1989), de onde
emerge a consciência transformadora, crítica, participativa que atua principalmente no resgate do valor e da capacidade
individual. Outro aspecto indicado como relevante argumento para a implantação de programas para os idosos, enfatizando a
atualização e enriquecimento dos idosos e defesa da docência para o idoso é a educação permanente.

Educação Permanente e a Universidade para a Terceira Idade


A educação constitui um processo em que cada ser humano aprende a se formar, a se informar a fim de transformar-se e
transformar o meio em que se insere. O homem é um ser inacabado que tende à perfeição; em consequência a educação se torna
um processo contínuo que só termina com a morte. A educação não é apenas conservadora porque assim aceitaria que a situação
atual é ideal, porém, ela trás o germe da mudança, tornando-o por isso o instrumento de reavaliação das utopias.
Portanto, a educação é vista como um processo contínuo que se realiza em todas as situações em que o homem vive e
por isso não pode ser ligada apenas a um determinado momento da vida. A idéia de que a educação é um processo permanente e
que a aprendizagem dura a vida inteira é fruto não só da evolução histórica do pensamento sobre a educação, como também da
necessidade de uma educação contínua que atenda às situações de mudança e ainda possibilite a maturação do indivíduo.
Conceber a educação como processo permanente não é apenas um ideal, mas uma evidência prática que se impõe, uma
necessidade pedagógica, sócio-econômica e antropológica. A própria expressão “educação permanente” abarca elementos
bastante distintos, dessa forma, originando conceitos diversificados e complementares, como a educação de adultos, formação
profissional continuada, democratização da cultura, entre outros.

528
A idéia de totalidade é a que melhor exprime o ponto de partida da educação permanente, na medida em que focaliza o
homem em toda sua dimensão, imerso na sua problemática existencial, na qual os aspectos biológicos e sociais são importantes,
assim como a própria história de vida individual.
Ao mesmo tempo, a educação permanente é a que melhor responde à necessidade de uma educação para a mudança,
exigindo pessoas que se integrem ativa e criativamente, para melhor responderem aos desafios que nem sempre podem ser
equacionados. A educação é práxis, na qual a interação homem/situação é muito mais dinâmica e real, acentuando as
modificações do ambiente que se refletem no homem e vice-versa. (GARCIA, 1989, p.21).
A flexibilidade da educação permanente reside no fato de admitir a conversabilidade como característica dominante do
mundo real. Gadotti (1985) reforça isso quando afirma que a educação permanente é a necessidade de uma educação fora da
escola que se prolonga durante toda a vida, uma necessidade de continuar constantemente a formação individual. Considera,
também, o autor que a educação permanente consiste em um discurso ideológico, pois as ideologias estão subjacentes aos
discursos e práticas educativas, constituindo um pensamento estruturado, defendendo outros interesses. A educação permanente
pode também ser traduzida pelo aumento de formação profissional e crescimento individual das pessoas. Ressalta-se a idéia de
totalidade como a que melhor exprime o ponto de partida da educação permanente, na medida em que focaliza o homem em toda
a sua dimensão, imerso em uma realidade social.
Pensar na educação para idosos é pensar em instrumentos para a melhoria na qualidade de vida desse segmento etário.
A educação emerge como uma alavanca para o fortalecimento da auto estima e da integração dos idosos na sociedade,
procurando transpor as limitações e os preconceitos que aprioristicamente são impostos a essa faixa etária (NERI, 2004).
Embora prescrito no Estatuto a criação de Universidades Abertas para a Terceira idade, percebe-se a inexistência de um
espaço educacional para essa clientela, um lugar adequado que se busque o aprimoramento do conhecimento, a busca de novos
conhecimentos, visando a promoção do ser humano. (LIMA, 2000).
A educação permanente se apresenta como a necessidade de ampliar a participação dos indivíduos na vida social e
cultural, visando a melhoria nas relações interpessoais, qualidade de vida, compreendendo o mundo e tendo esperança de futuro.
Pela educação permanente assume-se uma nova concepção de vida humana, cujo princípio central é só aprender a ser, mas
principalmente viver para aprender, interagindo com quem está ao seu redor.
O fenômeno educativo deve ser entendido como uma prática social situada historicamente em uma realidade total;
dependendo do projeto de homem e de sociedade que se deseja construir, a educação pode ser trabalhada dentro de uma
perspectiva ingênua ou crítica, dentro de uma perspectiva que vise alienar ou libertar os seres nela envolvidos, surgindo como
instrumento eficaz na criação do tipo de homem e de sociedade idealizada (OLIVEIRA, 1999).
Dentro dessa perspectiva da educação permanente e sendo a universidade um lugar por excelência para o
aprimoramento, a pesquisa, a busca do conhecimento e também a democratização do saber, timidamente surge em seu âmago um
espaço educacional para essa clientela.
As universidades ampliam sua função social, “buscando integrar aqueles que se encontram à margem do processo de
desenvolvimento” (OLIVEIRA, 1999, p.240).
Os diferentes programas oferecidos pelas Instituições de Ensino Superior são formas alternativas de atendimento ao
idoso, visando além da valorização dessa clientela, maior conscientização da sociedade em geral a respeito do processo de
envelhecimento da população do nosso país que é uma realidade (BOTH,2003).
Com a inserção do idoso na comunidade universitária, a integração entre gerações ocorre necessariamente, fomentando
debates sobre as questões que envolvam essa faixa etária, analisando preconceitos e discriminações ora sustentados socialmente e
que se apresentam sem fundamentação científica.
O próprio idoso, ao se conscientizar de seu espaço na sociedade, terá de si mesmo uma visão mais otimista,
considerando-se produtivo, útil, capaz de muito ainda colaborar para a sociedade na qual está inserido.

UNIVERSIDADE ABERTA PARA A TERCEIRA IDADE: UATI NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA
As universidades, assumindo também a tarefa de desenvolvimento cultural da clientela idosa, ampliam o seu
compromisso social, integrando aqueles que se encontram à margem do processo de desenvolvimento, exclusão convencionada à
idade e, por conseguinte, levando-os a usufruir os bens advindos com esta proposta.
Os programas oferecidos pela Instituições de Ensino Superior são formas alternativas de atendimento ao idoso e
também aos indivíduos que vão envelhecer. Além da valorização do idoso, visam também a uma maior conscientização da
sociedade em geral a respeito do processo de envelhecimento da população no país.
Os programas para a terceira idade não devem assumir uma conotação meramente assistencialista ou de lazer porque, de
certa maneira, essa constatação não deixa de ser uma forma sutil de marginalizar e alienar essa clientela na sociedade. Neles, deve
ser privilegiada a aprendizagem, por um lado confrontando-se com o rompimento do preconceito de que os idosos têm menor

529
capacidade de aprendizagem e, por outro lado, fazendo emergir a aprendizagem com sabor de conquista, de vitória, elevando
assim a auto estima e imagem do idoso.
A Universidade Aberta para a Terceira IDADE (UATI), criada em 1992, fundamenta-se na concepção de educação
permanente e auto realização do idoso. Estrutura-se com abordagem mulltidisciplinar, priorizando o processo de valorização
humana e social da terceira idade, analisando constantemente a problemática do idoso nos diversos aspectos; biopsicológicos,
filosóficos, político, espiritual, religioso, econômico e sóciocultural. Preocupa-se em proporcionar ao idoso melhor qualidade de
vida, tornando-o mais ativo, alegre, participativo e integrado à sociedade, volta-se para resgatar a cidadania do idoso, ampliando o
convívio e a integração sociais através da atualização cultural, aquisição de conhecimentos e informações. Dessa maneira
contribui para que eles compartilhem seus sonhos, idéias e retomem a prática de construir projetos de vida, conquistando assim de
volta uma posição importante no seio da família e da comunidade.
Com a inserção do idoso na comunidade universitária, a integração entre gerações ocorre necessariamente, fomentando
debates sobre as questões que envolvam essa faixa etária, analisando preconceitos e discriminações ora sustentados socialmente e
que se apresentam sem fundamentação científica.
O próprio idoso, ao se conscientizar de seu espaço na sociedade, terá de si mesmo uma visão mais otimista,
considerando-se produtivo, útil, capaz de muito ainda colaborar para a sociedade na qual está inserido, exercendo plena a sua
cidadania.
Os objetivos a serem alcançados pela UATI, segundo Oliveira (1999, p.242) são:
- Oportunizar a atualização cultural nos aspectos filosóficos, históricos, políticos, econômicos, biopsicológicos e
gerontológicos;
- resgatar a valorização do idoso;
- ampliar o convívio social do idoso;
- valorizar experiências de vida e profissional, especialmente dos aposentados e donas de casa, contribuindo
efetivamente como monitores nas ações comunitárias;
- promover a melhoria na qualidade de vida do idoso.
Basicamente a UATI estrutura-se em disciplinas teóricas e práticas, totalizando 240 horas, ao longo de três semestres
letivos, seguindo o calendário universitário.
As disciplinas teóricas abordam as diferentes dimensões humanas e sociais, apresentadas por diferentes profissionais em
suas áreas específicas, entre elas: sociologia, filosofia, psicologia, direito, previdência social, história, geografia, relações
humanas, educação, esoterismo, política, economia, medicina, fisioterapia, odontologia, nutrição, jornalismo, turismo, educação
física e meio ambiente.
As disciplinas práticas envolvem diferentes atividades, como: dança de salão, natação, hidroginástica, biodança,
relaxamento e alongamento, atividades esportivas, informática, francês, espanhol, inglês, oficina da comunicação, pintura,
artesanato, teatro e seresta.
O currículo é organizado de maneira interativa, conforme as opções dos próprios idosos, sendo as disciplinas teóricas de
caráter obrigatório e as práticas de caráter optativo.
Existe ainda o Grêmio da Universidade Aberta para a Terceira Idade (GUATI), com regulamento próprio e diretoria
organizada que, sob a coordenação do Programa, organiza viagens e festas ao longo do ano. Entre as principais festividades
registram-se: Festa dos Calouros, Festa do Dia das Mães, Festa Junina, Festa da Primavera e Festa Natalina.
A UATI, constituindo-se em um Programa que continuamente é avaliado, reestruturado conforme as necessidades e
exigências que se apresentam, incrementou-se com o estágio de Inserção Comunitária, libertando da idéia de oferecer aos idosos
apenas lazer ou passeios na comunidade, mas respaldados pela idéias de educação permanente que sempre norteou esse Programa,
além do apoio na teorias anteriormente abordadas, elaborou-se um elenco de atividades nas quais os idosos, além de se manterem
ativos, realizam também atividades de pesquisa e de inserção na comunidade.
O Estágio realizado na UATI, constitui o último semestre letivo do Programa, onde são programadas atividades como
visitas a diversas instituições, entre elas: hospitais, asilos, creches, grupos de convivência de idosos. São realizadas entrevistas
para detectar as reais necessidades de cada local e depois desenvolvem-se atividades filantrópicas, assistenciais, recreativas,
visando uma socialização e integração.
As atividades desenvolvidas atualmente, assumem as características de Projetos e são brevemente descritas a seguir:
- Resgate Cultural de brincadeiras e cantigas: foi realizado um trabalho de pesquisa, em equipe, na qual resgatou-se as
principais cantigas de rodas e brincadeiras de infância, elaborando um álbum descritivo. Realizou-se uma apresentação
demonstrativa para os próprios alunos da UATI e depois saíram em diferentes locais previamente agendados, fazendo as devidas
apresentações. Todos os alunos estavam caracterizados e realizaram atividades interativas, convidando as pessoas a participarem
das brincadeiras e das cantigas.

530
- Contador de Histórias; os alunos receberam orientações e em equipes, organizaram um teatro representando diferentes
histórias infantis clássicas, com as devidas caracterizações dos personagens. Primeiramente apresentaram para o próprio grupo de
colegas e depois foram distribuídos em diferentes locais para realizar as apresentações.
- Memorial – História de Vida: Esse projeto foi desenvolvido individualmente pelos alunos. Cada um relatava sua
história, registrando os fatos mais marcantes ao longo da vida, com ilustrações, fotografias, cartas, poemas, enfim o que era mais
significativo, registrando e elaborando um álbum. Posteriormente, foi marcado um dia onde todos apresentaram a sua produção e
cada um contou alguma passagem de sua vida que mais lhe seria marcante, pela tristeza ou pela alegria.
Existe ainda o Grêmio da universidade Aberta para a Terceira Idade (GUATI), com regulamento próprio e diretoria
organizada que, sob a coordenação do Programa, organiza viagens e festas ao longo do ano. Entre as principais festividades
registram-se: Festa dos Calouros, Festa do Dia das Mães, Festa Junina, Festa da Primavera e Festa Natalina.
Todas essas atividades foram desenvolvidas e comprovadamente atingiram o objetivo de manter os idosos ativos e
participativos na comunidade, além de resgatar a auto estima e a valorização individual, contribuindo para a melhoria da
qualidade de vida e exercício pleno da cidadania.
Hoje o Curso possui 16 anos de duração, de muito sucesso e reconhecimento pela comunidade acadêmica e pela
sociedade em que está inserido.
A fim de que os objetivos do curso sejam alcançados a UATI-UEPG formou um quadro de docentes de diversas áreas
do conhecimento. Sabe-se que o estudante dessa faixa etária tem várias características específicas, que exigem do docente
habilidades e preparo especiais. As chamadas questões sociais da velhice ou eventuais frustrações geradas pelo envelhecimento
em nível individual, passa por providências em nível educacional.

Perfil dos alunos da UATI


O Curso da UATI na UEPG possui cerca de 300 alunos, sendo que pelo seu reconhecimento acadêmico foi
institucionalizado pela Res.C.A.n.º56 /97.
Os idosos que participam do Programa são na maioria mulheres, reforçando o fenômeno da feminização da velhice, e
possuem acima de 55 anos.
Com o objetivo principal de melhor conhecer o idoso que frequenta a UATI, buscou-se o perfil dos alunos de 1992 até
2005 e coletar depoimentos e relatos sobre as mudanças de comportamento por eles identificados após frequentarem o Curso. No
período de matrículas levantado nesta pesquisa, 1992-2005, o total de alunos envolvidos no Curso Universidade Aberta para a
Terceira Idade da Universidade Estadual de Ponta Grossa foi de 738 (setecentos e trinta e oito idosos), sendo que 301 (trezentos e
um) idosos, representando 42% possuem entre 61 a 70 anos, seguido da faixa etária compreendida entre 51 e 60 anos, com 258
(duzentos e cinquenta e oito) idosos, representando 34%.
Quanto à escolaridade, 43%, ou seja, 317 (trezentos e dezessete) cursistas, quase a metade, apresentou ensino
fundamental incompleto - antigo ensino primário. Em seguida, representando 172 (cento e setenta e dois) cursistas possuem o
ensino médio completo, sendo um percentual de 24% do total.
Com relação ao estado civil dos cursistas, percebe-se que 45%, 333 (trezentos e trinta e três) idosos são casados,
seguidos por 278 (duzentos e setenta e oito) idosos, representando 38% que são viúvos.
Analisando a atividade profissional, 373 (trezentos e setenta e três) idosos são aposentados, representando 52%, ou seja,
mais da metade. Outro percentual de 33%, correspondendo a 248 (duzentos e quarenta e oito) idosos desenvolvem trabalhos no
lar.
Referente ao número de alunos matriculados na UATI, do total de 738 (setecentos e trinta e oito), verifica-se que 65%,
ou seja, 479 (quatrocentos e setenta e nove) idosos concluíram o curso, sendo 441 (quatrocentos e quarenta e um), representando
92% do sexo feminino e 38 (trinta e oito), representando 8% do sexo masculino. Esse percentual de concluintes pode ser
considerado satisfatório o que reforça o sucesso e interesse dos idosos em frequentarem cursos em busca de conhecimento,
informação e atualização.

Depoimentos: repercussão da UATI na vida dos idosos


Foram coletados depoimentos de 60 idosos, no sentido de captar a repercussão da UATI na vida de cada um. Alguns
aspectos podem ser identificados nas falas a seguir:
-“Devo muito para a UATI porque ela me devolveu a vontade de viver e me fez esquecer de tomar tantos remédio. Meu
médico disse que estou muito bem porque estou feliz” ( Maria – 73 anos)
-“A melhor coisa que fiz na vida foi entrar aqui, agora consigo fazer coisas que antes eu não fazia como cantar, o
artesanato e a dança.” ( Ana- 68 anos)
- “Eu não vou deixar nunca isso aqui, é muito bom, fiz muitas amigas e acho tudo maravilhoso”. (Joana- 82 anos).

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- “Essas aulas que aprendo coisas novas eu gosto muito, e também as de biodança, hidroginástica que me deixa mais
disposta e feliz”. (Cláudia – 72 anos)
- “As ginásticas me ajudam a fazer algumas coisas que antes eu não conseguia como andar mais rápido e colocar minhas
meias. Isso é muito bom e quero que todos venham estudar aqui.” (Carla-77 anos).
- “Minha vida melhorou muito porque agora commo melhor, faço tudo com mais disposição e durmo mais gostoso.
Tudo graças a UATI”. (Cristina, 75 anos)
Além dos idosos que frequentam o Curso, a repercussão também é positiva registrada por diferentes familiares e pela
comunidade pontagrossense.
Através dos depoimentos dos idosos que foram coletados, constata-se a unanimidade quanto a repercussão positiva que
o Curso tem representado na vida de cada um, principalmente quanto a melhoria na realização de atividades diárias, na qualidade
de vida, na inserção familiar e social, tornando-os pessoas mais alegres, otimistas, com vontade de viver.

Considerações Finais
A busca de um novo paradigma da velhice está sendo debatido, voltado mais para a valorização e maior reconhecimento
social do idoso, delineando um outro cenário nacional.
Os programas voltados para a terceira idade cada vez mais tem sido criados pelas instituições de ensino na sociedade
brasileira ampliando as oportunidades de participação desse segmento etário além de proporcionar maior sensibilização da
população e do poder político para o problema da velhice, que é do interesse de todos.
Ainda são insipientes as iniciativas, considerando o grande contingente de idosos brasileiros, porém, cada vez mais esse
compromisso e responsabilidade social das instituições tem contribuído para o resgate da cidadania do idoso brasileiro a medida
em que supera os estereóptipos negativos atribuídos à velhice.
Os idosos precisam de mais atenção e respeito como cidadãos brasileiros que contribuíram para a sociedade e que hoje
devem usufruir e participar ativamente. É necessário que os idosos se organizem, possibilitem a continuidade e a organização em
torno de seus interesses básicos.
Portanto, mais uma vez resgata-se a relevância de uma educação permanente para os idosos, ao mesmo tempo em que
são considerados cidadãos ativos, participativos e com qualidade de vida, deixando de ser considerados cidadãos de segunda
categoria.E para isso se faz imprescindível que a velhice seja vislumbrada com um outro olhar capaz de transformar o lugar social
da terceira idade, atribuindo um espaço de maior reconhecimento esboçando a imagem do idoso como agente social e partícipe da
sociedade em que vive.

Referências
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532
Idoso: o crescimento de uma nova geração
Nanci Soares
[email protected]

Resumo: O crescimento acelerado da população idosa requer maior dedicação dos profissionais de várias áreas que tem compromisso com a
causa do idoso, no sentido de que o idoso não seja visto como mais um “problema social”, mas como sujeito que tem capacidade produtiva,
garantia de acesso aos seus direitos sociais e poder de decisão sobre as questões que lhe dizem respeito.
As pesquisas apontam que para muitas pessoas a aposentadoria tão almejada, não corresponde às expectativas. A ansiedade pela aposentadoria
como ideal social e culturalmente descrita poderia trazer uma fase para descanso e gozo de prazeres da vida, muitas vezes esta expectativa não tem
lugar na realidade brasileira, face as disparidades sócio-econômicas da população. No Brasil o estabelecimento de políticas sociais que acirram as
diferenças individuais. Nem todos os idosos têm acesso a saúde e nutrição, habitação e meio ambiente, família, proteção ao consumidor idoso,
bem estar social e educação, além de empregos e renda.
Este é o grande desafio da atualidade o aumento da expectativa de vida em todo mundo e o proporcionar qualidade a esta vida mais longa tornou-
se uma necessidade. Isto exige da sociedade uma conscientização de seus direitos e do Estado, a maior preocupação com a efetivação de políticas
públicas sociais.
A proposta de trabalho da UNATI-Franca, enquanto espaço em uma Universidade, propicia debates sobre as questões ligadas a construção da
cidadania nessa fase da vida. O programa oferece cursos e oficinas com áreas temáticas: saúde e lazer; novos conhecimentos; arte e cultura.

O crescimento acelerado da população idosa requer maior dedicação dos profissionais de várias áreas que têm
compromisso com a causa do idoso, no sentido de unir esforços para que o idoso brasileiro não seja visto como mais um
“problema social”, mas como sujeito que tem capacidade produtiva, garantia de acesso aos seus direitos sociais e poder de decisão
sobre as questões que lhe dizem respeito.
Atualmente no Brasil, homens e mulheres após 65 e 60 anos respectivamente, aposentam. O desligamento da rotina de
anos de trabalho gera uma mudança significativa na vivência cotidiana destas pessoas. É uma mudança que inclui redução da
renda, sensação de ociosidade e de perda de importância social. A pessoa é obrigada a repensar sua vida, ou seja, assumir sua
velhice e o estigma de ser inativo, da fragilidade física e a competência para produzir. Estas são consequências psicológicas,
morais, econômicas e por que não afirmar políticas também.
As pesquisas apontam que para muitas pessoas a aposentadoria tão almejada, não corresponde às expectativas. A
ansiedade pela aposentadoria como ideal social e culturalmente descrita poderia trazer uma fase para descanso e gozo de prazeres
da vida, muitas vezes esta expectativa não tem lugar na realidade brasileira, em face das disparidades sócioeconômicas da
população. Ainda reina no Brasil o estabelecimento de políticas sociais que acirram as diferenças individuais. Nem todos os
idosos têm acesso à saúde e à nutrição, à habitação e ao meio ambiente, à família, à proteção enquanto consumidor, ao bem estar
social e à educação, além de emprego e renda. Predomina ainda, uma visão que valoriza oportunidades a serem oferecidas aos
mais jovens em detrimento da canalização de recursos aos mais velhos, apesar da não caracterização no Brasil, país de jovem, que
predominou em grande parte do século XX.
Este é o grande desafio da atualidade o aumento da expectativa de vida em todo mundo e o proporcionar qualidade a
esta vida mais longa tornou-se uma necessidade. Isto exige da sociedade uma conscientização de seus direitos e do Estado, a
maior preocupação com a efetivação de políticas públicas sociais voltadas a este segmento.
No Brasil, a política pública dirigida ao idoso se relaciona com o desenvolvimento socioeconômico e cultural, bem
como com a ação reivindicatória dos movimentos sociais. A partir de 1975, foram criados algumas Leis, destaca-se neste ano a
chamada Renda Mensal Vitalícia, instituída pelo então Presidente da República Gen. Ernesto Geisel, que se constituía em
pagamento de 50% do salário mínimo às pessoas com 70 anos ou mais, que não recebessem pensão ou aposentadoria e não
tivessem nenhuma fonte de renda.
Em 1976, surgiu o Instituo Nacional de Previdência Social – INPS, instituindo o Programa de Assistência ao Idoso –
PAI, que consistia em atender grupos de idosos na sala de espera dos ambulatórios do referido Instituto.
Com relação ao atendimento aos idosos, na década de 1970 surgiram muitas organizações não-governamentais-ONGs e
inúmeras associações de idosos, com a finalidade de atendimento.
A Constituição Federal de 1988 constitui um marco importante desta trajetória. Garante aos idosos aposentadoria
proporcional por tempo de serviço, aposentadoria por idade e pensão por morte para viúvos. Do articulado constitucional,
destacamos os seguintes:
Art. 229 – (...) os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais, na velhice carência ou enfermidade.

 Coordenadora da UNATI e docente do Departamento de Serviço Social da UNESP – Campus de Franca. Apoio financeiro da Fundunesp.

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Art. 230 - A família, a Sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na
Comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar, garantindo-lhes o direito à vida.

Nota-se que foi um passo importante para o reconhecimento dos idosos no Brasil.
Entretanto, até 1994 não havia uma política de âmbito nacional destina às pessoas idosas, a mesma surge através da Lei
8842/94 denominada a Política Nacional do Idoso (PNI), que dispõe sobre normas para os direitos sociais dos idosos, garantindo
autonomia, integração e participação efetiva como instrumento de cidadania. É importante ressaltar que esta lei é resultado de
uma ampla mobilização de segmentos organizados da sociedade e representa uma grande conquista em termos legais, pois está
embasada no paradigma da cidadania, o qual valoriza o ser humano, enquanto pessoa que possui necessidades biológicas,
pessoais, intelectuais, sociais, entre outras.
A Política Nacional do Idoso tem como objetivo criar condições para promover a longevidade com qualidade de vida,
colocando em prática ações voltadas não apenas para os que estão velhos, mas também para aqueles que vão envelhecer.
Na educação, a lei apresenta medidas para a adequação dos currículos e materiais didáticos para cursos destinados aos
idosos, inclusive a distância, o desenvolvimento de programas educativos nos meios de comunicação, sobre o processo de
envelhecimento. Além disso, a inserção, na educação formal, de conteúdos voltados para o idoso, com o objetivo de reduzir o
preconceito e aumentar o conhecimento sobre o assunto.
Com relação à cultura e lazer, deve ser estimulada a participação do idoso em eventos culturais e de lazer, uma das
medidas adotadas foi a redução dos preços de ingressos. A lei prevê, também, a possibilidade da transmissão de suas habilidades e
informações ao público jovem, como forma de preservar e de continuar a identidade cultural.
A PNI determina, dentre as competências dos órgãos e entidades públicas na área da educação, “apoiar a criação de
universidade aberta para a terceira idade, como meio de universalizar o acesso às diferentes formas de saber”.
O Programa Nacional de Cuidadores de Idosos foi instituído em 1999 por Portaria Interministerial. Neste mesmo ano
em dezembro, a Portaria 1395, assinada pelo então ministro José Serra, dispõe sobre a política nacional de saúde do idoso.
No Estatuto do Idoso, criado pela Lei n. 3561/2003, também dispõe no Capítulo V – Da Educação, Cultura, esporte e
Lazer, que o idoso tem direito à educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua
peculiar condição de idade.
Ainda neste capítulo, mais precisamente no artigo 24, refere-se a criação de universidade aberta:
Art. 25 – O poder Público apoiará a criação de universidade aberta para as pessoas idosas e incentivará a publicação de
livros e periódicos, de conteúdo e padrão editorial adequados ao idoso, que facilitem a leitura, considerada a natural redução
da capacidade visual.

Atendendo a determinação legal, e, sobretudo atendendo a uma necessidade social, são desenvolvidos na universidade
diversos trabalhos de ensino, pesquisa e extensão voltados para pessoas em processo de envelhecimento.
O referido Estatuto apóia e incentiva ações educativas, bem como prevê a inserção do tema envelhecimento nas escolas
de ensino infantil à universidade, propondo adequações curriculares e a formação de profissionais capacitados para a promoção da
solidariedade intergeracional e a mudança paradigmática quanto ao envelhecimento.
Os programas desenvolvidos pelas Universidades aos idosos aparecem como uma medida eficaz, considerando que
criam oportunidades de retorno ao convívio e de participação na comunidade.
No Brasil é recente a preocupação das Universidades em contribuir em projetos educacionais que incluam os idosos. A
França e os Estados Unidos foram pioneiros na criação de projetos educacionais para idosos, coincidindo com a intensificação do
seu processo de envelhecimento populacional.
Segundo Pimentel (2006) a UNATI estrutura seu projeto na perspectiva das universidades da terceira idade na França,
em Nanterre, que além de abrir vagas para determinadas disciplinas, cursadas com vistas à obtenção de certificados, sem direito à
contagem de créditos para cursos superiores, oferece cursos regulares para adultos veteranos.

Conhecendo a Universidade Aberta a Terceira Idade – UNATI/UNESP - Campus de Franca


Neste contexto, surgiu em 1993 a iniciativa de uma proposta de trabalho do Serviço Social da Universidade Aberta à III
Idade -UNATI-Franca, tendo como eixo temático: construindo cidadania na era do envelhecimento, objetivando fornecer
informação e a reflexão sobre questões da cidadania e a efetivação dos direitos sociais e debates sobre o papel do idoso na
sociedade, a qual foi consolidada em agosto de 1996.
A UNATI de Franca está vinculada à UNESP-Campus de Franca, como um programa de extensão universitária e presta
serviço à comunidade idosa de Franca e região, desde 1996, com o propósito de interagir com o idoso, possibilitando usufruir o
espaço educacional e cultural da Universidade para a ampliação de conhecimentos, educação continuada, convivência social e
troca de experiências de vida entre os participantes.

534
Uma grande preocupação envolveu a sua organização técnica e administrativa ligada, principalmente, a iniciar ação
social educativa a partir de qual idade? As legislações então existentes e, principalmente, a Política Nacional do Idoso (1994),
apregoavam que o idoso é a pessoa com 60 anos ou mais. Contudo, iniciar atuação nessa faixa etária exigiu repensar como
enfrentar as perdas necessárias tão sabiamente trabalhadas por Judith Viorot, em seu livro com este mesmo título. Do ponto de
vista geriátrico sabe-se que, por volta dos 30 anos, o ser humano, homem ou mulher, começa a enfrentar algumas perdas no seu
organismo, as quais precisam ser trabalhadas para evitar sequelas prejudiciais ao seu funcionamento.
A perda celular e a perda da reserva fisiológica alteram a capacidade de manter o equilíbrio em situações de estresse. É a
função homeostática que pode ser trabalhada para manter as condições de saúde ao longo de toda a vida.
A partir destas considerações houve consenso na UNESP, entre os profissionais que se dedicavam ao programa de
atendimento a idosos, que as ações da UNATI abririam as portas para interessados a partir de 45 anos.
Tal proposta preocupa-se em oferecer serviços de qualidade, fazendo com que as atividades oferecidas ao seguimento
idoso tenham relevância social e atendam ao interesse deste público, considerando suas trajetórias de vida, ou seja, preocupação
de não incluir no projeto apenas ações com o intuito exclusivo de ocupar o tempo livre do idoso ou tratá-lo como incapaz de
aprender novas habilidades e adquirir novos conhecimentos. A realidade social e econômica desta época, em Franca e região,
apontava um significativo número de pessoas que com nível de escolaridade correspondente ao secundário e superior, se
aposentavam e não possuíam espaços na comunidade para convivência social. Os grupos de convivência de idosos realizavam
atividades de trabalhos manuais, jogos de salão e os tradicionais bailes da chamada “Velha Guarda”, não constituindo atrativo
para estas pessoas.
A UNATI, enquanto espaço em uma Universidade, precisaria contemplar o público demanda de sua ação social
educacional, com oferta de espaço para debater as questões mais diretamente ligadas à construção da cidadania nessa fase da vida.
A equipe de trabalho, sob nossa coordenação, é hoje, composta por docentes e discentes do curso de Serviço Social da
Faculdade de História, Direito e Serviço Social – Campus de Franca e professores voluntários.
Os alunos idosos são pessoas acima de 45 anos interessadas em ocupar seu tempo com novos aprendizados, bem como
participar de diferentes oficinas e atividades, inclusive nos eventos que os demais alunos da graduação realizam. Estes idosos
demonstram interesse em discutir questões de seu processo de envelhecimento, ao mesmo tempo estão dispostos a conhecer seus
direitos sociais e lutar pela sua garantia e efetivação, por condições dignas de vida.
Ana Maria Freire informou em seus estudos sobre a pedagogia dos sonhos possíveis, que é perfeitamente possível
retomar processos de educação em qualquer idade. Foi acreditando nesta assertiva que a UNATI chamou a comunidade francana
para voltar a participar dos bancos escolares.
Após levantamento de dados realizados em Franca e nos 23 municípios que compõem a sua região administrativa,
acerca de interesses das pessoas que frequentam programas de atendimento a idosos, o primeiro curso oferecido à comunidade foi
de Gerontologia Social, com um leque abrangente de temáticas sugeridas pelos idosos.
Nesta perspectiva o programa oferece cursos e oficinas com áreas temáticas sobre saúde e lazer; novos conhecimentos;
arte e cultura.
Nesta perspectiva o projeto oferece as seguintes atividades: oficinas de saúde e lazer; novos conhecimentos; arte e
cultura.

SAÚDE E LAZER
Visa propiciar a terceira idade reflexão sobre as políticas publicas na área da saúde ao idoso, e meios para garantir sua
efetivação.

ARTE E CULTURA
No processo de envelhecimento a arte ajuda no bem-estar, a renovar o pensamento, a criatividade, a promoção da
consciência crítica, enfim a valorização pessoal.

ATUALIZAÇÃO E AQUISIÇÃO NOVOS CONHECIMENTOS


A busca incessante por novos conhecimentos é uma característica do homem. O conhecimento hoje, é um dos principais
fatores de superação de desigualdades, de agregação de valor, criação de emprego qualificado e de propagação do bem-estar.

O programa visa à construção da cidadania na terceira idade, estimula os alunos/idosos a conhecer seus direitos sociais
através das políticas sociais para a terceira idade e a identificar várias formas de participação social presentes em seu cotidiano.
Outro aspecto refere-se a participação política, ou seja, o voto, a representação estudantil na UNATI, o engajamento em

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associações de aposentados e participação nos Conselhos de Idosos. Recentemente foi criada a Associação dos Alunos da
Universidade de Idade.
Conclui-se que é um espaço para o exercício da cidadania, na medida em que propicia reflexões críticas das questões do
envelhecimento, nos aspectos físico, psíquico e social, bem como propicia informações e reflexões sobre questões da cidadania e
a garantia e efetivação dos direitos sociais.
Nosso propósito neste trabalho é mostrar que embora os direitos dos idosos à saúde, nutrição, previdência social,
transporte, acesso à cultura, esporte, turismo e empréstimos consignados, habitação, e acesso à justiça, estejam assegurados a
todos pela lei, nem sempre são efetivados. Portanto, o exercício da cidadania é fazer valer os direitos garantidos. Cidadania é a
participação de todos em busca de benefícios sociais e igualdades. Na participação grupal este estímulo à luta é fortalecido.
Um dos pontos positivos em nosso trabalho é o interesse que os idosos têm demonstrado tanto nas reflexões acima
mencionadas, como também nas atividades desenvolvidas em cada área temática. Fato concreto a registrar nestes 19 anos de
funcionamento, refere-se aos depoimentos de médicos, geriátras e outros profissionais da saúde afirmarem que seus pacientes,
participantes da UNATI, apresentam significativa melhora em seu estado de saúde e bem-estar.

Referências
BALDESSIN, Anésio. (1996). O idoso: viver e morrer com dignidade. In: Gerontologia. São Paulo: Atheneu.
BEAUVOIR, Simone de. (1977). A velhice: realidade incômoda. V.1, São Paulo: Difusão Européia do Livro.
BORN, Tomiko. (1992). A dignidade humana na terceira idade. In: Revista Tempo e Presença, n.264, São Paulo: CEDI.
CALDAS, Célia Pereira (Org.) (1998). A saúde do idoso: a arte de cuidar. Rio de Janeiro: UERJ.
FREIRE, Ana Maria Araújo. (2001). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP.
JOSÉ FILHO, Mário. (1992). Participação Social na Educação: desafios à cidadania.. Dissertação de Mestrado em Serviço
Social – Pontifícia Universidade Católica – Campinas, São Paulo.
KAJAR, Vitória. (2003). Terceira idade & informática – aprender, revelando potencialidades. São Paulo: Cortez.
PEREIRA, Iêda Lúcia Lima. (1996). A terceira idade: guia para viver com saúde e sabedoria. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
PIMENTEL, Kathia Mara Murito (org.). (2006). Envelhecer: reflexões e práticas. Governador Valadares: [s.n.].
RODRIGUES, Nara Costa e TERRA, Newton Luiz (org.). (2006). Gerontologia Social: para leigos. Porto Alegre: EDIPUCRS.
SALGADO, MARCELO Antônio. (1979). Gerontologia Social. Rio de Janeiro: CBCISS, n. 50, Ano XII.
VIOROT, Judith. (2000). Perdas necessárias. São Paulo: Melhoramentos.
ZIMERMAN, Guite I. (2000). Velhice: aspectos biopsicossociais. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.

Práticas corporais para a terceira idade: facilitadores para o fortalecimento do


corpo, da mente e da integração social
Marcelo Tavares
Faculdade Metodista Granbery
[email protected]

Eliete Verbena e Faria


Faculdade Metodista Granbery
[email protected]

Resumo: Tendo em vista que o envelhecimento é um processo natural do Homem e que a expectativa de vida aumentou na maior parte dos
países, políticas públicas têm sido fomentadas e implementadas para a terceira idade, visando a melhoria da qualidade de vida. Isso evidencia a
relevância da pesquisa de suas práticas corporais, para o processo de integração social que permeia esse público em diferentes contextos. O
objetivo desse estudo é identificar em Juiz de Fora, cidade de porte médio do sudeste brasileiro, quais práticas corporais são destinadas à terceira
idade e de que forma elas influenciam na vida cotidiana, especialmente, para a integração social. A metodologia adotada inclui pesquisa
bibliográfica e de campo, tendo como instrumento de coleta de dados a aplicação de questionário e a utilização de diário de campo a partir da
observação dos programas de integração social, oferecidos pela municipalidade. A amostra é composta por 30 idosas, entre 60 e 80 anos, com 6
meses de experiência, pelo menos, e as informações obtidas são analisadas por meio da abordagem qualitativa. Pode-se concluir que as práticas
corporais oferecidas pelo programa municipal compreendem ginástica, alongamento e dança e são percebidas como significativas para o
desempenho das atividades cotidianas e para a inserção do idoso em diferentes grupos na sociedade. Dessa forma, vistos em conjunto, terceira
idade e políticas públicas podem ser um binômio importante para a melhoria das condições de vida da população idosa, que inclui o
fortalecimento da saúde do corpo, da mente, e também das relações sociais.
Palavras-chave: terceira idade; práticas corporais; políticas públicas.

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Envelhecimento e expectativa de vida: desafios para as políticas públicas
Nosso corpo tem uma história própria de sucessos e fracassos que deve nos servir de base. Temos que resgatar esta história,
propondo-nos a sair de nossos limites de segurança, caminhar por nosso passado corporal e retomar nossa sensibilidade para
poder acompanhar as transformações entre os seres humanos (Simões, 1998, p. 71).

Pensar em como a expectativa de vida aumentou nas últimas décadas é pensar em como uma população envelhecida
pode viver melhor. Os desafios postos por essa condição envolvem todos os grupos profissionais – principalmente da área da
saúde, como médicos, gerontólogos, e também profissionais de Educação Física e Fisioterapia. Esses dois últimos grupos
profissionais citados são diretamente responsáveis por programas de atividades físicas que visem ao fortalecimento muscular.
Para tal, devem conhecer bem a história do corpo, do corpo que envelhece que como afirma Regina Simões, é cheio de
sensibilidades e memórias.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o envelhecimento é classificado em 4 estágios: meia-idade (de
45 a 59 anos), idoso (de 60 a 74 anos), ancião (de 75 a 90 anos) e velhice extrema (de 90 anos em diante). A velhice pode ser
compreendida então como “uma etapa da vida na qual, em decorrência da alta idade cronológica, ocorrem modificações
biopsicossociais que afetam a relação do indivíduo com o meio” (SIMÕES, 1998, pp. 27-28 apud SALGADO, 1982).
A característica principal da velhice é o declínio, geralmente físico, que leva a alterações sociais e psicológicas. Esse
declínio ocorre através da senescência e da senilidade e Simões (1998, pp.27-28) resume bem o pensamento de Nadeau &
Peronnet, que definem senescência e Pikunas, que conceitua senilidade:
A senescência, que é um fenômeno fisiológico, arbitrariamente identificado pela idade cronológica, pode ser
considerada um envelhecimento sadio, onde o declínio físico e mental é lento, sendo compensado, de certa forma, pelo
organismo. Já a senilidade caracteriza-se pelo declínio físico associado à desorganização mental.
A senilidade, então, não é exclusiva da idade avançada, já que pode ocorrer prematuramente quando uma perda
considerável do funcionamento físico e cognitivo for identificada, que afetam ainda a coordenação motora, a irritabilidade, além
de considerável perda da memória – e sabemos que o idoso é um historiador legítimo e imprescindível do passado (DEBERT,
1999, p.100). Como são elaboradas as políticas públicas para essa faixa etária? Quais são as estratégias que cidades de médio
porte, como Juiz de Fora, objeto desse estudo, lidam com a questão? Há espaço para o desenvolvimento de profissionais de
Educação Física especializados no atendimento a esse grupo?
Assim, é importante destacarmos alguns aspectos da formação do professor em geral que sejam significativos para o
fortalecimento das relações cotidianas. Para Medeiros e Cabral (2006) a formação de uma consciência crítica docente é
fundamental para uma construção dialética no ensino, que envolva a tríade composta por formador, formando e conhecimento.
Para isso, o professor deve obter novos conhecimentos durante todo o seu percurso profissional, pois a sociedade vem mudando
vertiginosamente e as instituições precisam estar preparadas para acompanhar, enfrentar e superar os desafios diários. Portanto, a
concepção de um professor pesquisador, reflexivo, crítico e transformador é urgente, e o professor deve ser instrumento dessa
empreitada que permita rever supostos paradigmas ou senso comum que alimentam o ideário acerca do professor de Educação
Física, seja ele jovem ou maduro, pois como comenta Darido (2003, p.13):
A formação inadequada do professor de Educação Física é quase sempre responsável pela instalação de concepções
pedagógicas pouco esclarecidas. A prática de todo professor, mesmo que de forma pouco consciente, apóia-se numa determinada
concepção de aluno e de ensino e aprendizagem que é responsável pelo tipo de representação que o professor constrói sobre o seu
papel, o papel do aluno, a metodologia, a função social da escola e os conteúdos a serem trabalhados.
No intercâmbio entre a responsabilidade na condução de tarefas de ensino/aprendizagem por parte do profissional de
Educação Física e em como a política pública dispõe de instrumentos para viabilizar a inclusão do idoso em programas de
atividades físicas e de lazer, está a questão sobre a qual nos perguntamos: como os idosos que participam de atividades físicas
promovidas na cidade de Juiz de Fora elaboram sua compreensão sobre o lazer, o próprio corpo, e a rotina social? Antes de
analisarmos as respostas que obtivemos em nossa pesquisa de campo, é importante ressaltarmos que o lazer e a assistência aos
idosos são amparados pela Constituição Federal Brasileira de 1988, artigo 6º, pois:
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (...).

Na verdade, esse trecho da Constituição extraído do site do Ministério do Esporte brasileiro, anuncia que estão sob um
mesmo grande guarda-chuva ações sociais como proteção à infância e temas sociais, como segurança. Essa pequena distinção,
grande na sua acepção, é para destacar a intenção e necessidade da Constituição de cobrir aspectos bem amplos do quadro
nacional. No trabalho aqui apresentado, quando procuramos avaliar as atividades públicas voltadas para a terceira idade,
novamente baseamo-nos na citação acima para apontar dois temas sociais valiosos para a vida contemporânea hoje: saúde e lazer,
tendo como elo de ligação bastante comum dessas duas grandezas, prática de atividade física.
No cotidiano de um mundo eminentemente urbano, temas como a violência, a má qualidade de vida ou a obesidade da
população são preocupações que atingem a escala global e, logo, preocupações dos governos locais. Muitas municipalidades têm

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na secretaria de esporte e/ou lazer a oportunidade para criarem programas que se não resolvem de todo problemas relacionados
aos grandes centros urbanos, pelo menos, minimizam o efeito de muitos males da vida cotidiana atual.
Crespo (1990), estudioso da sociedade e do desporto, no seu livro clássico “A História do corpo”, já apresentava o tema
do corpo como num entrecruzamento de múltiplos elementos econômicos, políticos e culturais, estudados particularmente no
contexto português e com destaque para os séculos XVIII e XIX, época também da instituição de uma política de saúde no âmbito
das cidades, devido às inúmeras epidemias. Cidade e saúde não eram palavras associadas facilmente. Ações de reformas urbanas,
construção de novos cemitérios, limpeza das vias e fiscalização dos gêneros alimentícios, etc., procuravam erradicar malefícios do
cenário mais comum: a insalubridade dos espaços de vida (CRESPO, 1990:217).
As cidades do século XXI, apesar do visível progresso tecnológico dos grandes centros, ainda não resolveram grande
parte dos problemas de salubridade ou mesmo de saneamento. Lugares mais pobres do mundo continuam deixando à margem
uma população inteira, desprovida de políticas de saúde – desde o atendimento emergencial. Como pensar, então, em políticas de
saúde de caráter preventivo? Como criar políticas de saúde associadas ao lazer? Há mesmo um excesso nos apelos pela saúde do
corpo hoje em dia? Inclusive para a terceira idade?
Para Carvalho (1995:23) há, sobretudo, uma mitificação da atividade física como meio indicativo para a saúde, ou seja,
“a saúde, na maioria das vezes, restringe-se à ausência de doenças; a atividade física é entendida como a execução de práticas
físicas por meio de modalidades esportivas”, e isso conduz ao entendimento do corpo também como uma máquina, que acaba
sendo explorada como produto passível de manipulação numa sociedade consumista de atributos como beleza e perfeição estética,
logo, cada vez mais distante do conceito de saúde, em essência.
Podemos verificar que o quadro atual presente na maioria das cidades inclui aspectos generalizantes como os descritos
acima, onde nem as cidades são os lugares mais favoráveis à saúde, nem a atividade física o instrumento coerentemente utilizado
para o equilíbrio da saúde. Zingoni (2002:53-57) destaca, a partir de classificação feita pelo Banco Mundial, quatro formas
básicas de capital determinantes no desenvolvimento de uma nação: o capital natural (recursos naturais de uma região), o físico
(capital gerado pelo Homem, como infra-estrutura, bens de capital, etc.), o humano (o grau de nutrição, saúde, educação e
trabalho de uma população) e o social (as relações sociais traduzidas em bem-estar).
Essa discussão é ampliada ainda com a introdução da noção de lazer no meio urbano contemporâneo. Confundido por
muitos, o lazer não é nem sinônimo de ociosidade, nem tempo extra profissional. Para Dumazedier (1999), a sociologia do lazer
precisa rever a confusão entre lazer e tempo livre. Por que, para o homem, a noção de tempo livre engloba seu engajamento sócio-
espiritual, sócio-político e de satisfação pessoal, ou seja, é atribuído ao lazer a perspectiva de satisfação cultural individual, o que
extrapola o conceito e faz penetrar esse aspecto na totalidade das outras atividades humanas. Pensar no equilíbrio desses
diferentes fatores e nas demandas crescentes das populações é um enorme desafio para qualquer cidade.
A esse respeito, o Ministério dispõe de três programas gerais para o esporte, como (1) esporte de alto rendimento – que
envolve organismos públicos e privados, nacionais e internacionais para promover o esporte de competição; (2) esporte
educacional – que zela pela legislação esportiva e busca cooperação com outros órgãos da administração pública em suas diversas
esferas até outras entidades; (3) desenvolvimento de esporte e lazer, que tem política específica desde 1941, para estender à
sociedade o acesso ao esporte e ao lazer. Por fim, há o destaque para o Comitê do Pan – Jogos Pan-americanos, que se realizou em
julho de 2007 na cidade do Rio de Janeiro e mobilizou 16 ministérios, com a responsabilidade do governo federal de arcar com
50% dos custos totais, principalmente na construção de novos complexos esportivos. Assim, amparadas pela política do
Ministério do Esporte, cidades de características tão diferentes têm de elaborar suas políticas para o esporte.
Procuramos indicar a seguir como a cidade de Juiz de Fora lida com esses desafios e se insere nesse contexto, com
ações municipais voltadas para a prática esportiva, de lazer e de benefício à saúde da população urbana, especialmente, duas
atividades voltadas à terceira idade: dança de salão e ginástica.

Políticas públicas de lazer desenvolvidas pela prefeitura de Juiz de Fora


O projeto “Cidadania e Esporte”, que destacamos para análise nesse artigo, é coordenado pela Subsecretaria de Esporte
e Lazer, que é um núcleo da Secretaria de Política Social da cidade de Juiz de Fora. Na realidade, o projeto Cidadania Esporte é o
maior e mais importante projeto esportivo de inclusão social da cidade e está aberto a todas as idades, oferecendo, de forma
gratuita, um atendimento universalizado por meio de inúmeras atividades: esportivas, sócio-educativas, além de artesanato,
música, coral, ginástica, caminhada orientada, dança, etc.
Atualmente, o projeto atende mais de 10.500 cidadãos/mês e funciona em parceria com escolas municipais, órgãos
municipais e entidades não governamentais. O público atendido compreende a faixa-etária de 3 a 80 anos, e mesmo pessoas
portadoras de necessidades especiais, obesos, hipertensos, diabéticos ou com outras complicações de saúde participam ativamente
do projeto.

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Além desse envolvimento direto com a sociedade, o projeto Cidadania Esporte dá apoio a várias competições e eventos
esportivos promovidos por Ligas, Associações, Federações, Confederações, ONGs, Faculdades e comunidade, sendo também
responsável pela coordenação civil do Desfile de Sete de Setembro (dia da Independência do Brasil).
O programa que destacamos é composto por cinco projetos inter-relacionados: (1) projeto nadar (natação e
hidroginástica); (2) projeto caminhada orientada (principalmente para hipertensos, diabéticos e obesos); (3) projeto esporte
adaptado (atividades desportivas como futsal, basquetebol, dança, etc., adaptadas às pessoas com deficiência física, visual,
auditiva e mental); (4) projeto dança e ginástica e (5) projeto iniciação esportiva (para a prática de esportes em geral). Para a
orientação aos inscritos nos programas, há um laboratório de avaliação e prescrição de atividades físicas itinerante, que realiza
exames de bioimpedância, ou seja, um exame que avalia o percentual de gordura, percentual de massa magra e hidratação,
permitindo calcular a faixa ideal de peso para o indivíduo, de acordo com o sexo e a idade. Além da bioimpedância, há as análises
de massa corporal e a avaliação geral dos praticantes de caminhada que não estão necessariamente inscritos no projeto.
A seguir, buscamos algumas respostas a partir de pesquisa de campo em que observamos e entrevistamos idosos,
preponderantemente do sexo feminino, participantes de programas de atividades para a terceira idade em Juiz de Fora, durante o
ano de 2008.

Ações municipais voltadas para a terceira idade


Um dos programas realizados no âmbito municipal que merece destaque é aquele voltado para a terceira idade. A partir
de experiência pessoal de um dos autores desenvolvida na condução de atividades para esse público, alguns aspectos precisam ser
repassados, dados os dois principais meios de atividades que são distintos, mas guardam finalidades que os complementam: aulas
de dança de salão e de ginástica.
Uma dessas atividades promovidas pela prefeitura para a terceira idade, as aulas de dança de salão, são oferecidas para
turmas mistas de iniciantes e avançados. Os ritmos explorados nas aulas contemplam o bolero, o forró, o soltinho, a valsa e o
samba. A dinâmica das aulas acontece num salão, onde os cavalheiros, que são poucos, ficam de um lado e as damas de outro. O
professor escolhe o ritmo, ensina o passo e depois pede que os cavalheiros tirem as damas para exercitarem o passo ensinado.
Enquanto dançam, o professor observa e corrige até que todos tenham experenciado os passos propostos. Essa
metodologia é utilizada tanto nas turmas iniciantes quanto avançadas e tem grande aceitação por parte dos idosos. Em contato
direto com os alunos, pudemos perceber que as aulas de dança de salão se transformam em oportunidades de socialização que
muitas vezes ultrapassam as fronteiras das aulas, uma vez que o aprendizado pode ser colocado em prática nos bailes que
frequentam ou em eventuais festas – oportunidades preciosas para mostrar as habilidades adquiridas ou aprimoradas.
Outra atividade oferecida são as aulas de ginástica ministradas tanto no Pró-Idoso (Núcleo Central), quanto nos núcleos
de bairros mais afastados do centro da cidade. Essas aulas ocorrem duas vezes por semana e são orientadas por professores e
estagiários de Educação Física. Qualquer idoso pode frequentar as aulas de ginástica, desde que apresente um atestado médico
liberando-o para a prática de atividade física e que haja a renovação desse atestado a cada seis meses.
As aulas privilegiam o desenvolvimento aeróbio, bem como a força, a resistência e a flexibilidade - qualidades físicas
fundamentais para que o idoso consiga realizar as tarefas do dia-a-dia e, consequentemente, aumentar a sua qualidade de vida. Da
mesma forma que na dança de salão, também ministrei aulas de ginástica para aproximadamente trinta idosos, sendo que a grande
maioria da turma era composta por mulheres. Pude perceber que as alunas das aulas de ginástica possuem muita alegria e estão
dispostas a aprender tudo que as façam se sentir melhor e se divertir, apresentando grande interesse por dicas de saúde e sendo
assíduas e pontuais com as atividades propostas.

Metodologia para a pesquisa de campo


Para conhecer melhor a percepção das alunas dos dois programas citados – a dança de salão e a ginástica – foi aplicado
um questionário de dez perguntas para quarenta alunas integrantes do Pró-Idoso, tanto do núcleo central quanto do núcleo do
bairro Nossa Senhora Aparecida, que é atendido com as atividades de ginástica, yoga e teatro. Os questionamentos procuraram
num primeiro momento identificar dados sobre o perfil geral, como idade, estado civil, saber com quem moram, há quanto tempo
frequentam o Pró-Idoso, além das atividades que praticam no programa, os motivos que fazem com que frequentem o programa e
se costumam encontrar com os colegas fora do Pró-Idoso.
Além dessas perguntas fechadas, o questionário indagou, através de perguntas abertas, se as atividades desempenhadas
no Pró-Idoso ajudam a cumprir as tarefas do dia-a-dia, bem como, questionou o que mais gostam de fazer no Pró-Idoso.
Perguntou-se também se estão satisfeitas com as opções de atividades oferecidas pelo programa e, finalmente, o que gostariam
que tivesse no Pró-Idoso e que ainda não tem, sobretudo, em vistas de incrementar atividades de lazer. Os dados coletados foram
analisados qualitativamente, considerando a pesquisa descritiva com o intuito de compreender a temática do idoso e sua relação
com o lazer.

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Apresentação e discussão dos dados
Para conhecimento e caracterização da amostra, foi verificado que a média de idade das entrevistadas girou em torno de
71,4 anos. O tempo médio que as entrevistadas frequentam o programa é de 7,5 anos. Das 40 entrevistadas, 18 são viúvas, 13 são
casadas e 9 separadas ou divorciadas. Desse total, 16 moram com os filhos, 12 com o marido e 12 moram sozinhas. Das
atividades que mais praticam no Pró-Idoso, ginástica, com 22 votos e dança de salão com 21 foram as mais votadas. Porém, a
costura, o carteado, o teatro, a yoga, as aulas de violão e informática, o bingo, o coral e a pintura também foram lembrados.
Quando perguntadas por qual motivo frequentam o Pró-Idoso, 15 entrevistadas apontaram o interesse na saúde como principal
fator e 15 entrevistadas disseram que é por gostar das atividades que desempenham. As opções para se distrair, para encontrar
pessoas e outros motivos também foram citadas.
Quando perguntadas se costumam se encontrar com os colegas fora do Pró-Idoso, a expressiva maioria, 23, afirmaram
que sim. Das 40 entrevistadas, 16 idosas disseram que às vezes e apenas uma disse que não.
Também perguntamos se as atividades que praticam no Pró-Idoso ajudam a cumprir as tarefas do dia-a-dia e todas as 40
entrevistadas foram unânimes em afirmar que sim. Quando questionadas de que forma, responderam com palavras e frases
emblemáticas: disposição, habilidade, energia, agilidade, alegria, melhora do desempenho na faxina e na cozinha, menos dores,
melhora da respiração, resistência física, convivência, saúde, alívio das dores, coragem, animação, melhora psicológica, ânimo,
tranquilidade, bem-estar com a vida, feliz, amizade, vigor físico, auto-estima e aumento da flexibilidade.
Quando perguntamos o que mais gostam de fazer no Pró-Idoso, as respostas foram diversas: 22 disseram preferir a
dança de salão, 18 preferem a ginástica, 10 disseram que é encontrar e trocar com as pessoas, 4 disseram preferir as palestras, 4
disseram que preferem o bingo e 2 afirmaram que o carteado é o que mais gostam de fazer. Ressalto que essa pergunta era aberta
e as entrevistadas puderam relatar suas preferências. A maioria justificou que a dança de salão é uma aula dinâmica e que propicia
a socialização, tanto no momento da aula quanto nos bailes que frequentam. A ginástica, por sua vez, foi associada à saúde e
melhora do condicionamento físico.
A última pergunta do questionário indagou se as entrevistadas estavam satisfeitas com as opções de lazer oferecidas
pelo Pró-Idoso e as 40 afirmaram que estão satisfeitas. Quando perguntadas sobre o que gostariam que o Pró-Idoso oferecesse e
que ainda não oferece, houve algumas demandas relacionadas à atividade física, como hidroginástica e musculação, além de
passeios gratuitos. Contudo, nos chamou a atenção o fato de algumas terem mencionado o desejo por consultas com médicos e
dentistas, aulas de alfabetização e dinâmicas de grupo, que são atividades relacionadas à saúde e à educação e que não possuem
ligação direta com o lazer.

Conclusão
Como cada lugar enfrenta suas questões locais e promove as potencialidades existentes é tarefa muito particularizada, e
relacionada, em última instância, ao próprio corpo. Para Crespo (1990:572), a história do corpo não pode deixar de ser “uma
história diferencial, em busca de desigualdades entre os tempos da vida humana, os lugares e os grupos sociais”. Assim, na esfera
particular de cada cenário específico, podemos encontrar congruências de questões e de soluções, análogas a outros contextos.
Como aponta Zingoni (2002:78-79), não há uma relação direta entre a intensidade do crescimento da economia regional
e a melhoria das condições de vida da população. Para haver uma política de desenvolvimento do lazer, é necessária uma
mediação melhor entre aspectos econômicos; as potencialidades e limites do meio ambiente; uma universalização do acesso aos
bens e serviços oferecidos; a coerência das atividades de lazer com as condições de vida das populações específicas e o
fortalecimento das oportunidades para as pessoas decidirem seu próprio destino, influenciando decisivamente nas políticas de
lazer, como também atenta Marcellino (1996: 27), sob o risco das políticas públicas de lazer se restringirem muitas vezes a um
mero calendário de eventos.
Desta forma, percebemos que mesmo de naturezas distintas, as duas atividades para a terceira idade pesquisadas – dança
de salão e ginástica – guardam explicitamente forte relação para o fortalecimento comunitário e o bem-estar físico e mental dos
usuários dos programas, majoritariamente formado pelo sexo feminino. O fortalecimento comunitário é visto claramente nas aulas
realizadas no bairro, onde os vizinhos têm mais um espaço para encontros, que dinamizam os interesses afins. No núcleo central
esse aspecto já não é tão evidente, pois o núcleo agrega alunos de vários lugares da cidade, mas mesmo assim, há a formação de
uma identidade coletiva forte, onde todos se reconhecem como integrantes de um todo comum.
Sobre o impacto das duas atividades pesquisadas que atuam para a melhoria do bem-estar físico e mental tendemos a
considerar que o fortalecimento físico adquirido nas aulas de ginástica e na dança de salão é fundamental para dar mais segurança
emocional aos alunos, pois com a disposição aumentada a auto-estima melhora e o idoso se sente mais confiante tanto para a
prática de atividades rotineiras, como já citado, como para se socializar melhor com o grupo, que não é simplesmente homogêneo
porque todos são idosos. Os alunos se percebem diferentes também, ao verem que diferenças de idade compõem perfis variados, e
nem sempre os mais idosos são os que têm mais dificuldades. A descoberta de cada potencialidade é um caminho que coloca
desafios que desejam ser superados, e o apoio do grupo se torna indispensável para manter o interesse nas aulas.

540
Por fim, cabe destacar que a articulação entre a dança e a ginástica guarda ainda outra relação estreita: o fortalecimento
físico e melhoria da condição motora adquiridos nas aulas de ginástica ajudam na desenvoltura para a dança de salão. E isso é
uma contribuição fundamental para o bem-estar mental. Ao se porem em contato com a dança, os alunos são embalados pela
música. Ao dançarem uns com os outros, dançam consigo mesmos e com as memórias de tempos atrás. Passado e futuro parecem
mais próximos e a idéia de serem cidadãos amparados e respeitados é concretizada, mesmo que tenham a noção também que
recebam baixos salários como aposentados e que a oferta de serviços de saúde seja deficiente. Na ausência de uma política pública
mais abrangente, eficiente e justa para todos, a existência de um programa de atividades para a terceira idade revela que saúde,
comunidade e cidadania também se fortalecem através do esporte e do lazer, desde que minimamente regulados e regulares.

Referências
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Crespo, J. (1990). História do corpo. Lisboa: Difel.
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Muller, A. & Dacosta, L. (orgs.). (2002). Lazer e desenvolvimento regional. Santa Cruz do Sul: EDUNISC.
Prefeitura de Juiz de Fora (2007). www.esportelazer.pjf.mg.gov.br (consultado na Internet em 20 de Fevereiro de 2007).
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Stodlar, D. (2005). Como desenvolver planos de marketing desportivo com sucesso. São Paulo: Idéia & Ação.
Zingoni, P. (2002). Lazer como fator de desenvolvimento regional: a função social e econômica do lazer na atual sociedade
brasileira. In: Muller, A. & Dacosta, L. (orgs.). Lazer e desenvolvimento regional. Santa Cruz do Sul: EDUNISC ( pp.53-82).

Políticas Sociais Alternativas a Institucionalização de Idosos na Região das Missões -


RS
Elisângela Maia Pessôa1
Universidade do Pampa – UNIPAMPA
[email protected]

Resumo: Este trabalho teve o objetivo de analisar como as políticas sociais voltadas ao idoso em municípios da Região das Missões no Rio
Grande do Sul, podem constituir alternativa à institucionalização, com vistas a propor alternativa e estratégias voltadas à melhoria da qualidade de
vida do idoso. A questão da institucionalização de idosos tem, no entanto, ensejado opiniões contraditórias, pois o idoso na contemporaneidade
tanto pode ser venerado, como excluído dos processos sociais, considerando que a institucionalização pode constituir-se um processo doloroso
para o idoso. Essas perspectivas motivam questionamentos quanto às possíveis possibilidades que podem ser implementadas para que não haja
necessidade de ocorrer a institucionalização. Foi utilizado o método dialético-crítico para realizar a leitura e o desvelamento da realidade, com
base em suas categorias teórico-metodológicas de análise (Historicidade, Totalidade e Contradição). Num primeiro momento, foram definidas as
seguintes categorias teórico-temáticas: Política Social, Envelhecimento e Institucionalização. A coleta de dados ocorreu com o envio de
questionário a todas as Secretarias de Assistência Social dos municípios da Região das Missões – das quais apenas oito participaram da pesquisa –
, e dois formulários, aplicados por meio de entrevista, com 20 idosos e 18 familiares indicados pelos entrevistados, domiciliados na Região das
Missões. Os dados qualitativos foram submetidos à técnica de análise de conteúdo. Nessa etapa, emergiu uma categoria teórico-temática empírica:
a autonomia. Com a efetivação desta pesquisa pode-se verificar que, nos oito municípios pesquisados da Região das Missões, praticamente
inexiste, de forma organizada, uma rede de atendimento ao idoso, embora haja reconhecimento da necessidade disso.
Palavras-chaves: Envelhecimento, Institucionalização, Política Social.

1
Doutoranda em Serviço Social pela PUCRS, Mestre em Serviço Social – Gerontologia Social, Especialista em Políticas Públicas e Práticas Sociais com Família.
Professora da Universidade Federal do Pampa – São Borja/RS.

541
1 - A REDE DE ATENDIMENTO DE POLÍTICAS SOCIAIS PARA O IDOSO DE MUNICÍPIOS DA REGIÃO DAS
MISSÕES
A Região das Missões é composta por 25 municípios: Bossoroca, Caibaté,Cerro Largo, Dezesseis de Novembro, Entre-
ijuís, Eugênio de Castro, Garruchos, Giruá, Guarani das Missões, Mato Queimado, Pirapó, Porto Xavier, Rolador, Roque
Gonzales, Salvador das Missões, Santo Ângelo, Santo Antônio das Missões, São Luiz Gonzaga, São Miguel das Missões, São
Nicolau, São Paulo das Missões, São Pedro do Butiá, Sete de Setembro, Ubiretama e Vitória das Missões. A região das Missões
compreende uma população total de 249.133 habitantes, com área de 12.844,6 km² e densidade demográfica de 19,4 hab/km². A
taxa de analfabetismo é de 8,74 %, e a expectativa de vida na região é de 72,08 anos.
A população total de idosos domiciliados nos oito municípios que participaram do levantamento da “Rede de
atendimento de políticas sociais para os idosos em municípios da Região das Missões” e que responderam a um questionário
distribuído numa das reuniões mensais da Associação dos Municípios das Missões2, compreende 11.060 indivíduos com mais de
65 anos de idade, representando aproximadamente 13%3 da população total de cada município, representando um número
significativo de demanda que, na maioria dos casos, necessita de atendimento e políticas sociais que efetivem a legislação
destinada aos idosos.
Dentre os oito municípios pesquisados, seis atendem seus idosos por meio de dezesseis Grupos de Convivência que têm
como objetivo a organização de atividades de lazer, artesanato, recreação, palestras, busca de auto-estima e melhoria da qualidade
de vida. Dois municípios afirmaram que não realizam nenhuma atividade que envolva atendimento ao idoso.
Em relação a Leis Municipais que forneçam suporte ao atendimento aos idosos, seis municípios possuem somente Lei
de Criação de Conselhos Municipais de Direitos dos Idosos e dois não possuem nenhuma legislação, pois afirmam que os idosos
que residem nesses municípios não apresentam necessidade de atendimento econômico e social. Na entrevista com os idosos
dessa localidade, entretanto, a afirmação acima não é confirmada, pois eles expressam desejos de ter atividades das quais possam
participar, como pode ser constatado na fala de sujeitos da pesquisa: “Aqui não tem nada para o idoso, parece que a gente não
existe” (João4, 68 anos). “Gostaria de ter alguma atividade, recreativa e informativa, para ter algum objetivo” (Rosa, 70 anos de
idade). Em geral, os municípios não apresentam programas e leis que forneçam subsídios para implementação de políticas sociais
de atendimento às necessidades dos idosos.
Dentre os vinte e cinco municípios que fazem parte da Região das Missões, três possuem Lar de Longa Permanência e
os demais enviam seus idosos a essas localidades quando não há possibilidade de que as famílias, vizinhos ou amigos se
responsabilizem pelos mesmos. Isso somente é possível, quando há disponibilidade de vaga, mas o idoso aposentado paga suas
despesas com seus próprios recursos, provenientes de pensão, aposentadoria, benefício de prestação continuada ou com recursos
da família. Quando os idosos não possuem recursos próprios e não podem receber auxílio de seus familiares, o município
responsável efetua o ressarcimento à instituição.
Em relação às alternativas que poderiam ser apresentadas quanto à institucionalização dos idosos, as respostas dos
representantes dos municípios variam. Citam: preparo e capacitação de recursos humanos para atendimento especializado aos
idosos, campanhas de conscientização da sociedade e da família quanto à necessidade de comprometimento e responsabilidade em
relação aos idosos e recursos mais intensos por parte do Estado. Embora o Estatuto do Idoso afirme a importância do convívio
familiar para a qualidade de vida do idoso e aponte a institucionalização como última alternativa, depois de esgotadas todas as
outras possibilidades de atendimento às necessidades do idoso, ainda se encontram posições contraditórias de profissionais
envolvidos com as políticas sociais dos municípios. Isso pode se constatado na resposta a seguir: “embora trabalhemos no
município em relação à responsabilidade da família no cuidado com o idoso, sou a favor de que o melhor ainda é que os mesmos
sejam institucionalizados” (Cidade 1). Felizmente, para o idoso, também existem profissionais conscientes das reais necessidades
dessa faixa etária “O melhor para o idoso é permanecer no seu núcleo familiar, é a família que necessita de suporte do poder
publico, é necessário resgatar os vínculos familiares, pois a institucionalização rompe essas raízes (Cidade 2). Diante desses
conflitos e resistências, muitas políticas deixam de ser implementadas, por falta conhecimento da Política Nacional do Idoso e
Estatuto do Idoso.
Ficam evidentes os entraves existentes à implementação do estatuto e das demais leis que referem desde a capacitação
de recursos, ao fortalecimento de um sistema de informação capaz de gerar dados fidedignos, utilizando métodos específicos para
a análise desta população, objetivando a construção de políticas cada vez mais eficazes na prática. Do ponto de vista da
normatização legal, o envelhecimento é protegido no Brasil, havendo diretrizes a serem seguidas e implementadas. Isso, no
entanto, não é suficiente para garantir a implantação plena desses direitos.
A participação efetiva das pessoas idosas, mostrando sua força política, organizando-se, criando parcerias e alianças
com representantes dos poderes legislativo, executivo e judiciário e ONGS tanto da esfera civil como governamental poderá

2
Dentre os profissionais que responderam aos questionários seis são Assistentes Sociais, uma é Enfermeira e uma é Secretária de Assistência Social.
3
Esses cálculos foram realizados pela pesquisadora com base na população total de cada municípios, conforme dados do Corede Missões.
4
Foram escolhidos nomes fictícios para os idosos.

542
contribuir de forma significativa para reverter esses quadros de descaso. Esse é, portanto, um desafio a ser enfrentado. Nesse
sentido, o diálogo entre as gerações é de fundamental importância na luta pela garantia dos direitos dos idosos, pois assim poder-
se-á vencer o preconceito e imagem negativa que ainda impera contra essa faixa etária. Nesse caso, “o diálogo intergeracional
surge como um dos caminhos para assegurar uma convivência pacífica entre os cidadãos” (SILVA, 2006, p. 2).
Embora o Estado apresente programas voltados ao atendimento dos idosos, é importante lembrar que muitos desses
programas ainda não se expandiram por todo o Brasil, havendo a ausência desses em muitas regiões, onde há demanda por esses
serviços de importante consideração. Aqui se coloca mais um desafio, qual seja: garantir e assegurar a participação do idoso
analfabeto e em situação de vulnerabilidade social nesse processo. É mais do que evidente que, na maioria das vezes, acabam
participando desses projetos apenas os idosos saudáveis, que possuem uma noção mais ampla de seus direitos, dado suas
condições físicas, econômicas e sociais, que os colocam numa posição mais favorável na influência da tomada de decisões. O que
se pretende é alcançar a inserção de todos os idosos, respeitando, evidentemente suas capacidades e limitações.

2. O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO E AS RELAÇÕES FAMILIARES


A convivência familiar tem influência direta no estabelecimento da qualidade de vida do idoso, pois o histórico da
estrutura familiar pode demonstrar a condição cotidiana do idoso dentro da família. É importante lembrar que as conjunturas
estabelecidas ao longo da história da estrutura familiar, como, por exemplo, questões de mortalidade e natalidade, de forma direta
ou indireta, afetam os idosos que fazem parte da família. Nesse sentido, Neri (1999, p. 36) refere que:
O tamanho da prole, a mortalidade diferencial, o celibato, a viuvez, as separações, os distintos tipos de arranjos familiares e
domésticos, com o passar da idade adquirem características específicas, que podem colocar o idoso, do ponto de vista
emocional e material, em situação de insegurança ou de vulnerabilidade.

A conjuntura histórica de uma sociedade pode criar e construir a própria história do envelhecimento. Em seu processo
de desenvolvimento social, o homem envelhece sob determinadas condições de vida, fruto do lugar que ocupa nas relações sociais
e na reprodução social. “A involução senil de um homem produz-se sempre no seio de uma sociedade; ela depende estritamente
da natureza dessa sociedade e do lugar que nela ocupa o indivíduo” (BEOUVOIR, 1990, p. 47). Assim, promover o
envelhecimento saudável é tarefa complexa que envolve a conquista de boa qualidade de vida e um amplo acesso a serviços que
possibilitem o suprimento de necessidades fundamentais – de ordem econômica e social. O idoso deve, assim, garantir sua
representatividade social, para que as fases do processo de envelhecimento possam tornar-se mais claras perante a sociedade.
É vital ampliar a consciência sobre aspectos da institucionalização, para fortalecer e instrumentalizar estudos, visto que
a bibliografia neste campo específico ainda é limitada. Bulla (2003) em artigo intitulado: “Desafios e perspectivas da gerontologia
social, face ao envelhecimento da população brasileira” mostra que vários estudos já foram realizados no Rio Grande do Sul no
campo do envelhecimento. Essa autora destaca, no entanto, a necessidade de mais estudos e mais pesquisas, dentro de contextos e
realidades diversas, enfocando a velhice, com objetivo de ver crescer a contribuição do Serviço Social, nessa área que é
essencialmente interdisciplinar.
Esse sentimento fica claro da fala dos idosos entrevistados, quando questionados sobre suas relações familiares. Todos
foram unânimes em dizer que mantinham uma relação satisfatória, “Minha relação é boa, todos gostam de mim e me tratam bem”
(Pedro, 69 anos), “Não dá para estar sempre junto porque todo mundo trabalha, mas todos são muitos bons” (Ana, 80 anos),
“Olha, não sei o que faria sem minha família. Sempre me ajudam, e eu faço tudo que posso também para ajudar-lhes,
principalmente meus netos” (Vera, 78 anos), “Minha relação é boa, mas tem que ser assim. Imagina uma família em que as
pessoas não se dêem bem! Deus quer que todos amem suas famílias” (Violeta, 75 anos). Essas afirmações demonstram que o
idoso percebe sua família como sagrada, um espaço social em que os laços afetuosos e de respeito devem ser preservados como
raiz soberana da relação entre pais e filhos. Dessa forma, protegem seus filhos quanto a qualquer julgamento moral que possa ser
referido pela sociedade, quanto aos cuidados que os mesmos deveriam ter para com eles, bem como, na medida de suas
possibilidades, fornecem suporte econômico e afetuoso aos filhos e netos.
Mesmo que não tenha uma boa relação estabelecida com a família, o idoso geralmente se expressa deforma positiva.
Essa contrariedade somente fica evidente na fala dos familiares, “A relação dá para dizer que é boa, pois nos vemos somente no
domingo, não dá nem tempo de brigar” (Filho de Pedro), “São regulares. Às vezes não dá para considerar tudo, pois, quando
ficam velhos, os pais são mais impacientes” (Filha de Ana), “A relação é boa e cada um tem seu espaço (Filha de Vera), “Queria
dar-lhe mais atenção, mas minhas atividades não possibilitam visitá-lo mais vezes (Filho de Juca). As falas dos familiares
entrevistados pontuam justificativas como tempo, situação econômica, conflito geracional, preconceito quanto ao envelhecimento,
como fator relevante para afirmar que a relação que mantêm com o idoso é apropriada segundo suas possibilidades, como se o
envelhecimento constituísse fator relevante para manter uma relação apática, na qual cada um deve manter suas atividades em
espaços diferentes.
Por meio das respostas obtidas pelos idosos entrevistados, pode-se perceber que os mesmos gostariam que as
características que existentes durante sua infância, no que diz respeito aos relacionamentos familiares, perdurassem até os dias de

543
hoje: “A família deveria acompanhar o idoso em todas suas atividades - passeios, igreja, banco - assim a gente sempre teria apoio
de alguém” (Laura, 70 anos). “Os filhos têm de ter a responsabilidade de cuidar do idoso. Isso é compromisso que fica para
sempre, pois fomos nós que os criamos.” (Mário, 81 anos), “A família tem que ser preservada, as coisas mudaram muito e os
costumes de respeito estão sendo esquecidos” (Paulina, 75 anos). O idoso espera que toda a dedicação que dispensaram aos filhos
lhes seja retribuída na velhice como forma de compromisso moral. Assim como respeitaram seus pais, com atitudes de gratidão,
compromisso e veneração, desejam receber o mesmo tratamento. Ignoram que os hábitos sociais mudaram e que a organização
das relações familiares sofre alterações ao longo da História:
Esse sentimento de obrigação ou retribuição se torna presente na fala de alguns familiares, quando referem que “Pai é
pai. Temos que cuidar dele até o fim, pois sempre cuidou de nós” (Filho de Laura), “Não importa se não tem dinheiro, saúde ou
tempo é de responsabilidade da família cuidar de seus idosos” (Filha de Mário). Saad (1999, p. 83) sobre essa questão comenta “o
intercâmbio de ajuda entre pais e filhos tende a se estender ao longo de todo o ciclo de vida familiar, como se existisse uma
espécie de contrato intergeracional estimulando o papel dos diferentes membros da família”. Porém esse compromisso moral que
filhos assumem pode acabar por prejudicar o relacionamento com o idoso, pois, a partir do momento que se responsabilizar pelo
idoso passa a ser uma obrigação e não uma opção familiar, a tolerância com as peculiaridades biológicas e sociais que
caracterizam o envelhecimento pode tornar-se restrita ocasionando negligência e, até mesmo, maus-tratos.
Esses papéis são estabelecidos de forma automática, o que não possibilita discussões a respeito de novas possibilidades
de amparo, tanto social quanto financeiro, ao idoso. Herédia (2004, p. 68) ressalta o estabelecimento desse ciclo familiar em que
“são estabelecidas relações recíprocas de obrigações, deveres e direitos: de pais para com filhos, de filhos para com os pais.
Mesmo com o passar dos anos essa interdependência se mantém”. Há famílias que não dispõem de condições econômicas de
suprirem as necessidades de seus pais Bulla (2003, p. 89) referem-se a essa questão “frequentemente membros dessas famílias
enfrentam diversas dificuldades relacionadas à complexa tarefa de cuidar de seus enfermos, sendo a comunidade então desafiada a
participar do atendimento a essas demandas”.
Diante da falta de acesso a possibilidades de atendimento da família para com as necessidades do idoso, as famílias
visualizam o Estado como responsável pelo suprimento de suas necessidades de subsistência, perpetuando um círculo vicioso de
culpabilização entre família, Estado e sociedade civil. “O governo devia amparar os idosos e dar remédio e comida” (Armando,
87 anos), “Se a família não tem condições, a Prefeitura tem que dar, a lei não diz isso?” (Margarida, 72 anos), “Não adianta só
fazer festa para o idoso, tem que dar o que precisa” (Paulina, 68 anos). Embora essa fala remeta à necessidade de o Estado manter
uma posição diferente perante a população idosa, os mesmos não apontam possibilidades de reivindicação e mobilização popular
para a efetivação dos direitos ressaltados na legislação que ampara o atendimento aos idosos.
Já nas falas dos familiares, há, mesmo que timidamente, uma noção de cobrança de posicionamento por parte do Estado,
“Quando a família não tem condições, o governo tinha que dar um auxílio” (Filho de Armando), ou “tem que bater na Promotoria.
Aí, com certeza, o governo dá alguma coisa. Só assim consegui comprar remédio para minha mãe” (Filha de Magarida). Alguns
familiares mencionaram que há descaso do Estado em relação aos atendimentos “quando meu pai recebeu alta do hospital, nem
fiquei sabendo direito o que ele tinha” (Filho de Armando).Os familiares raramente receberam informações claras a respeito da
doença, orientação ou apoio para os cuidados, nem indicação de um serviço para prosseguir o tratamento. Pontuam que, somente
por meio da justiça, podem obter alguns direitos, mesmo que restritos.
Ao longo do estudo, fica evidente que a aceitação de uma pessoa idosa no âmbito familiar traz consigo algumas
mudanças e pode dificultar as relações, “A família tem que aceitar que a gente não pode fazer tudo que fazia” (Almerinda, 80
anos), “Os netos são bons, mas nunca estão prontos a ajudar” (Lurdes, 70 anos), “Sei que embora seja neta tenho que tratá-la
como se fosse minha mãe”. (Neta de Lurdes). As falas remetem à questão do conflito geracional que se instala no âmbito
familiar, instalando um processo preconceituoso mútuo, em que cada parte não percebe que a necessidade de mais diálogo e
consideração para com as mudanças que a velhice ocasiona podem ser melhor amadurecidas para a melhoria da qualidade do
relacionamento familiar.
A dependência de um familiar idoso gera impacto na dinâmica, na economia familiar e na saúde dos membros da
família que se ocupam dos cuidados. Por outro lado, é necessário pensar nos idosos que não têm uma família para assumir os
cuidados necessários em situações de dependência. Isso acontece, embora a Constituição Federal de 1988, a Política Nacional do
Idoso e a Política Nacional de Saúde do Idoso apontem a família como responsável pelo atendimento às necessidades do idoso.
Até o momento, o delineamento de um sistema de apoio às famílias e a definição das responsabilidades das instâncias
de cuidados formais e informais, na prática, não aconteceram. Isso ainda depende de maior vontade política, tanto no que diz
respeito á fiscalização de entidades, quanto determinação de percentual destinando ao atendimento das necessidades dos idosos. O
sistema de saúde, público ou privado, não está preparado para atender nem à demanda de idosos que cresce a cada dia, nem à de
seus familiares. Por sua vez, o sistema previdenciário, público ou privado, não prevê formas de financiamento para o
estabelecimento de redes de apoio às necessidades de assistência aos idosos dependentes, com ou sem família. Dessa forma, o
poder público pode correr o risco de visualizar a institucionalização como alternativa para solução da questão.

544
3 O IDOSO, A INSTITUCIONALIZAÇÃO E AS CONTROVÉRSIAS
O envelhecimento é uma fase da vida com características próprias, necessidades e interesses específicos, carregando as
necessidades físicas – alimentação, sono, atividade – e psicológicas – amor, segurança, aceitação, realização e agregação.
Algumas pessoas podem não enfrentar a grande crise da idade. Durante algum tempo, lutam contra o fato inevitável e, aos poucos,
atingem um estado de resignação amargurada. Depois, podem renunciar a toda ambição. Para elas, a vida neste momento, poderia
chegar ao fim, mas vão sobrevivendo ainda por algum tempo como cidadãos melancólicos e sem rumo.
O idoso pode sentir-se como se estivesse em um mundo diferente, separado das demais pessoas. Os hábitos e costumes
mudaram. Valores que norteavam a vivência humana, hoje não são mais aceitos, o que pode confundir o pensar e o agir do idoso,
que pode se sentir inseguro sobre o que deve fazer e como agir. Acrescente-se a isso, o fato de que suas carências e problemas
físicos podem ter minado sua trajetória, visto que essas limitações muitas vezes o impedem de se mostrar atuante, embora não
fazendo mais parte do processo produtivo.
O fato de a velhice constituir a última fase da trajetória humana, oportuniza a mistificação de que o idoso não tem mais
possibilidade de propor contribuições concretas, para melhoria ou desenvolvimento real da sociedade tanto econômica, como
culturalmente. Assim, a questão da institucionalização pode tornar-se tema central de debates e discussões.
Por sua conotação pejorativa de abandono, de pobreza ou rejeição familiar, as denominações de asilo têm sido
substituídas por outras, como Casa dos Idosos, Lar dos Idosos, Lar de Longa Permanência, tanto em instituições filantrópicas,
como em estabelecimentos públicos ou privados.
Os idosos percebem a institucionalização de formas distintas, porém 85 % dos idosos entrevistados, afirmaram que o ato
de institucionalizar um idoso é deplorável depois de tantos anos de uma trajetória de vida “Acho a idéia de ir para um asilo
péssima. Parece que vamos ser aprisionados” (Alda 68 anos), “Ah, nem me fale. Tenho vontade de pegar esses filhos que
mandam os pais para asilo” (Maria 76 anos), “Pode até ter idoso que goste, depende. Para mim, seria a última opção, pois acho
uma decepção ter que ir para um asilo” (Violeta 65 anos), “Acho a maior tristeza. Será que os filhos não podem cuidar dos pais
depois de tantos anos de dedicação?” (Armando, 87 anos). Herédia (2004, p. 19) em relação ao processo de internação numa
instituição, refere que:
Representa muito mais do que simplesmente mudança de um ambiente físico para outro. Representa para o idoso a
necessidade de estabelecer relações com um novo ambiente [...] considerar-se abandonado, ansioso e com medo da idéia de
passar os últimos anos de vida num lugar estranho, em meio a desconhecidos.

As opiniões variam a respeito da institucionalização, demonstrando contradições entre o que os pais pensam em relação
a seus filhos, “Penso que seria uma forma de garantir os direitos deles” (Filho de Armando), “Só se a família não tiver condições,
se um asilo for bem administrado pode ser ótimo” (Filho de Alda) Há aqueles que também não concordam com a
institucionalização, “Acho desesperador. Apesar de que há filhos que tratam pior que no asilo” (Filho de Violeta), “Sou contra.
Nunca deixaria minha mãe ir par um lugar desses” (Filha de Maria).
Os idosos percebem que a institucionalização rompe laços com seu contexto histórico e, principalmente, com sua
família e, mesmo os idosos que afirmaram que acham o asilamento uma coisa boa, (15%) apresentam em sua fala indícios de que
ainda não seria a melhor opção, “Acho muito bom, porque muitas famílias não reconhecem os seus deveres com os idosos e não
respeitam as leis que amparam esses idosos. É a família que deveria cuidar do idoso” (Joana 73 anos), “Acho bom para quem não
tem família, pois, para quem tem é um absurdo” (Armando 87 anos). Alcântara (2004, p. 35) salienta:
Que não se pode negar a viabilidade do atendimento asilar frente ao contexto em que o país se encontra, porém há que se
qualificar esse serviço, uma vez que se trata de uma população que demanda cuidados complexos. O que não faz sentido é
delegar a responsabilidade apenas à boa vontade das instituições filantrópicas.

É importante, porém, considerar que muitas famílias não estão preparadas econômica, nem emocionalmente para prestar
cuidados diários a idosos que possuem problemas de saúde, principalmente os que afetam a locomoção e os sentidos como
Alzheimer, considerando que “Pode ser uma alternativa para a família que não tem recursos, mas, certamente, não é a melhor
opção” (Margarida 72 anos), “Se não tem outro meio, deve ser um bom lugar, não sou contra. Alguns não se acertam em casa. Às
vezes, são bem cuidados; outras não. Acho que deve ser para quem não tem lar” (Mário, 81 anos).
A família representa papel tão essencial na vida dos idosos que 95 % afirmaram que na impossibilidade de viver só,
preferem ficar com a família e 5% com amigos, mesmo os idosos que referiram que a institucionalização seria algo bom, não
indicaram em nenhum momento que gostariam de ser asilados, mas de permanecerem no lar. “A família é a instituição que, de
alguma forma, sempre acompanha o fato do asilamento em si, seja porque ela não mais acolhe o idoso ou porque ela inexiste”
(HEREDIA; CORTELLETTI; CASARA, 2004, p. 68), porém fica evidente que o desejo da maioria dos idosos é ficar com a
família independentemente de sua condição econômica.
Questionados sobre as condições em que aceitariam procurar por um Lar de Longa Permanência, os idosos foram
precisos em pontuar “Iria, só em último caso. Não posso nem imaginar” (Joana 73 anos). “Acho brabo ir para um asilo, nunca
aceitaria” (Armando 87 anos), “Somente se não tivesse filhos e família, no caso de não ter boa saúde, ou ficasse imobilizado ou se

545
tivesse sofrendo com a família” (Margarida 72 anos), “Somente quando estivessem esgotadas todas as alternativas (Lurdes, 70
anos). Assim fica evidente que “Nenhuma organização pode proporcionar melhor qualidade de vida [...] do que um membro
adequado da família” (ALCÂNTARA, 2004, p. 99).
Os familiares pontuaram que aceitariam institucionalizar seus pais “Em caso de doença” (Filho de Margarida), “Quando
meu pai precisasse de cuidados intensos, de extrema necessidade” (Filha de Mário). “Se eu estivesse enferma ou sem condições
econômicas, se não tivesse outro jeito” (Filha de Lurdes). Já alguns são intensos em pontuar “Só se eu morresse, em nenhuma
situação eu ia aceitar nos cuidaram. Agora é nossa vez” (Filha de Vera).
A maioria dos idosos, 90%, acredita que sua família jamais os institucionalizaria: “Não acredito que minha família faria
isso comigo a não ser que fosse indicação de um médico” (Paulina 75 anos). “Não, tenho certeza meus filhos jamais me
colocariam em um asilo. Já cuidei de quatro idosos. Será que a vida me pegaria uma peça dessas? (Lurdes 70 anos). “Acredito que
não. Sempre lhes dei estudo e não teriam porque me mandar para lá. Espero que eu tenha saúde para cuidar de mim até a morte...”
(Mário, 81 anos). A decisão pela institucionalização pode ser mal interpretada pelo idoso, levando-o a sentimentos de mágoa e de
rejeição.
Há, porém, aqueles que imaginam vir a ser institucionalizados e dizem “Sim, acredito que no momento que não
precisassem mais de mim” (Basílio 61 anos), “Sim, porque já há exemplos assim dentro da família. Os filhos, acho que não... Já
dos netos, não poderia dizer nada” (Aurora, 68 anos).
Pontua-se aqui uma controvérsia, pois apenas 55% dos familiares indicaram que nunca teriam necessidade de colocar
seus pais em um lar de longa permanência. Os demais referiram que questões pertinentes à falta de tempo, problemas de saúde e
econômicos poderiam interferir. Em relação aos motivos para institucionalização, Alcântara (2004, p. 133) refere:
Estão ligados, sobretudo, à incapacidade de a família assumir a assistência dos seus pais. Além dessa inviabilidade
econômica, a falta de tempo também tem influência, uma vez que o trabalho preenche o dia-a-dia dos ativos da casa, ficando
estes indisponíveis para oferecerem amparo aos seus pais.

Esses sentimentos proporcionam principalmente ao idoso, um processo de rejeição de sua própria condição de
envelhecimento. Muitos ficaram surpresos quando questionados sobre a possibilidade de institucionalização e essa apreensão
ficou evidente nos gestos com as mães, na voz trêmula e na emoção que alguns olhos banhados de lágrimas expressaram Tanto a
família quanto o idoso estão despreparados para a discussão que o tema institucionalização requer. As contradições e
controvérsias indicam que a questão deve ser mais bem discutida, com reflexões profundas sobre as consequências dela, avaliada
em sua totalidade, prezando a realidade, a cultura e a história de vida que cada idoso tem.

3.1 Autonomia e Institucionalização


A categoria autonomia surgiu no depoimento dos idosos entrevistados diante das questões relativas à
institucionalização, pois o poder decisório quanto a uma escolha que implicará diretamente na vida do sujeito pode ser
determinante para melhoria ou decadência de sua vivência cotidiana. Daí a importância da autonomia, associada à independência.
Autonomia e independência são capacidades que tornam o indivíduo apto a decidir sobre seus interesses e a se organizar
sem nenhuma necessidade de ajuda. A autonomia é o exercício da autodeterminação, e o individuo autônomo é aquele que
mantém o poder decisório e o controle de sua vida (HERÉDIA; CORTELLETTI; CASARA, 2004, p. 18).
Há diferenciações entre independência física e autonomia. A primeira propicia atos de agir com o corpo em todos os
sentidos; já a autonomia pressupõe a condição de se relacionar com as pessoas de modo igualitário, permitindo respeito pelas
capacidades individuais. Nesse sentido, Monteiro (2003, p. 143) salienta:
Um corpo sem autonomia é um corpo que nada decide, não possui escolhas sobre onde vai residir, vivendo em lugares
contraídos e sem possibilidades. Portanto, se o velho consegue resgatar a autonomia de seu corpo, ele poderá estar aberto ao
aprendizado existencial que lhe mantém a vida, porque viver é um processo contínuo de aprendizado; sendo o
envelhecimento uma consequência desse fenômeno existencial; ele estará livre para experimentar o diálogo intergeracional
que lhe proporciona a unificação do seu tempo vivido com o tempo vivido dos mais jovens, formando um único e
verdadeiro tempo: o da experiência de qualidade.

Para os idosos, a presença de uma limitação física ou impedimento de tomada de decisão por parte da família pode
representar um risco para a sua autonomia, principalmente quando essa limitação gera dependência para realização das atividades
da vida diária e escolhas diante de seu cotidiano. Este, muitas vezes, pode ser influenciado pelo preconceito que a família e a
sociedade mantêm em relação ao idoso, como indivíduo dependente, que não tem sanidade e conhecimento suficiente para
proferir posicionamentos e pontuar suas próprias escolhas diante de temas relacionados à manutenção econômica e social de sua
vida.
Dentre os idosos pesquisados, 85% afirmaram que a decisão pela institucionalização deveria ser tomada pelo próprio
idoso, como se percebe nestas falas: “O próprio idoso deve decidir o que é melhor para si” (Armando, 87 anos); “Se o idoso não

546
tem condições de decidir e nenhum filho tem condições de cuidar, aí a decisão deveria ser da família, mas, primeiro, sempre que
possível, o idoso deve ser consultado” (Lara, 88 anos); “Pensam que a gente, porque é velho, não pode opinar. Quem vai ter que
viver internado é o idoso... então ele é quem tem que decidir” (Júlia, 68 anos). Somente 5% dos idosos acreditam que o governo
ou médicos devem optar se a institucionalização seria viável, e apenas 10% acreditam que a família na pessoa dos filhos é quem
deve decidir sobre institucionalização.
Dos familiares entrevistados, 65% afirmaram que a opção pela institucionalização do idoso deve ser tomada pela
família, como se depreende destas falas: “A gente tem que ver o que é melhor para o idoso, pois, muitas vezes, eles não sabem
muito bem o que é melhor” (Filha de Amália); “É a família que sabe se tem condição ou não de manter o idoso, por isso tem que
ver o que seria melhor” (Filho de Miguel). Há aqueles que discordam “Mesmo que o idoso tenha dificuldade de cuidar-se é ele
que deve optar pelo asilamento ou não, afinal cadê o respeito da família” (Filha de Lara). Para os familiares, a institucionalização
representa a alternativa para que os idosos possam ter certa assistência, como se vê nesta fala: “Desprovidos de um suporte
adequado para cuidar de seus pais, os filhos, sem outras opções, transferiram para o asilo essa responsabilidade. A falta de
condição financeira foi uma das causas que contribuíram para a decisão final” (ALCÂNTARA, 2004, p. 125).
A autonomia tornou-se uma necessidade material. Alguns idosos somente conseguem opinar quanto às decisões
cotidianas de sua vida quando possuem renda própria ou estão inseridos no mercado de trabalho. A questão da autonomia, porém,
não está mais restrita apenas à esfera da produção. Envolve agora todos os domínios da vida contemporânea. É, também, uma
necessidade emocional, uma vez que os indivíduos precisam desenvolver uma efetiva comunicação entre si, numa sociedade em
que o diálogo molda a política e as atividades. A falta de autonomia no âmbito psicológico, obstaculiza as discussões abertas, gera
violência e impede a manifestação plural. A autonomia psicológica é, portanto, necessária para se entrar em efetiva comunicação
com o outro, num diálogo que ocupa um espaço público (SOARES, 2006).
A autonomia também é uma necessidade sócio-cultural, uma vez que a nova sociedade traz, em suas contradições
produtivas, um amplo movimento cultural de superação de velhas concepções de mundo. Sob este aspecto, a autonomia torna-se
necessidade política, pois somente um indivíduo autônomo possui condições de entender as contradições do mundo globalizado,
questionando-as e agindo no sentido de canalizar as oportunidades para mudanças qualitativas. Por tudo isso, a autonomia tornou-
se condição de sobrevivência para os indivíduos na sociedade.

4. POLÍTICAS SOCIAIS ALTERNATIVAS À INSTITUCIONALIZAÇÃO DE IDOSOS


A discussão sobre a institucionalização envolve considerações contraditórias, pois, embora a maioria dos idosos, deseje
permanecer em seus domicílios ou com seus familiares, deve-se ter presente que nem toda família tem uma relação afetuosa com
eles. É possível, inclusive, haver problemas de relacionamento que levem a família a não manter uma relação saudável, gerando
falta de responsabilidade para com obrigações financeiras e morais de cuidados com os pais.
A permanência no idoso no lar não significa que será respeitado e que suas necessidades emocionais e financeiras sejam
supridas, pois há registros de ações de violência doméstica contra idosos, bem como atitudes de negligência, maus tratos e
abandono. Herédia, Cortlletti e Casara (2004, p. 37) quanto ao asilamento, comentam:
O asilamento é uma consequência de situações impostas pela vida e/ou, de alguma forma, criadas pela própria pessoa
institucionalizada. Pode-se configurar, na primeira, as situações socioeconômica e demográfica da família e, na segunda, o
idoso que, no decorrer de sua vida, não criou vínculos que garantissem à sua velhice o amparo e a permanência no meio
familiar.

Embora algumas famílias apresentem o desejo de cuidar de seus idosos, muitas não têm disponibilidade de tempo para
prestar atendimento, principalmente, no que diz respeito àqueles que tem problemas de saúde que exigem a presença constante de
alguém para auxiliar, nem dispõem de condições financeiras de pagar um cuidador domiciliar. Alcântara, (2004, p. 133), destaca
esta questão:
Os motivos para a institucionalização estão ligados, sobretudo, à incapacidade da família de assumir a assistência dos seus
pais. Além dessa inviabilidade econômica, a falta de tempo também tem influência, uma vez que o trabalho preenche o dia-
a-dia dos ativos da casa, ficando estes indisponíveis para oferecerem um amparo aos seus pais, que necessitam de atenção
especial, em consequência de problemas específicos.

Há idosos também que não constituíram família ou são viúvos e nunca tiveram filhos. Neste caso, a institucionalização
representa a alternativa para que possa receber assistência e cuidados necessários próprios para sua idade, porém há que se
pontuar que nem todos os Lares de Longa Permanência aceitam idosos doentes. A questão da opção pela institucionalização
pressupõe várias considerações:
Não só os idosos como os asilos são heterogêneos e a opção pela institucionalização nem sempre pode ser vista como uma
forma de abandono, como a maior parte da literatura expõe. Cada situação requer estudo, objetividade e profissionalismo na
análise dos fatores predisponentes à institucionalização (ALCÂNTARA, 2004, p. 45).

547
Considerando que predomina, sobretudo, o desejo de os idosos permanecerem no lar, torna-se prudente que alternativas
à institucionalização sejam implementadas por parte da sociedade civil, poder público e familiares, até mesmo pelo fato de que
atualmente muitos Lares de Longa Permanência não estão habilitados a manter os cuidados necessários ao atendimento necessário
aos idosos. Algumas dessas instituições podem ser consideradas “depósitos” de idosos, pois não há assistência médica adequada,
nem atividades recreativas e apoio emocional, constituindo-se, muito mais, como espaço de exclusão do que como um lar ou local
de assistência.
Os depoimentos dos idosos expressam os seus desejos e expectativas. Eles querem que seja apresentada alternativa, para
que não corram o risco de serem, obrigatoriamente, institucionalizados. Isso fica muito evidente nestas falas: “Os profissionais
que atendem os idosos deveriam formar grupos para orientarem as famílias sobre a importância de permanecerem e cuidarem de
seus pais de forma correta” (Lara, 88 anos); “Deveria ser concebido um sistema de verba do governo para a família pagar um
cuidador domiciliar para o idoso poder ficar em casa enquanto os membros da família trabalham em paz, pois a família sempre é o
melhor lugar” (João, 69 anos).
Alguns idosos afirmaram que, de uma forma ou de outra, a família precisa ser responsabilizada e deve buscar saídas
viáveis para resolver a situação, como se percebe nestas confidências: “Os filhos devem se prevenir para manterem um local em
que seus pais possam ter uma vida saudável e, para isso, deveria haver uma preparação da família para o envelhecimento” (Ester,
70 anos); “Deveria haver uma maior fiscalização quanto ao fato de a família cumprir o que a lei diz para que os idosos possam
permanecer em seus lares” (Armando, 87 anos). Alguns idosos acreditam que a família deve ser responsabilizada por atender seus
idosos, porque a esfera governamental não tem verbas, nem interesse em cuidar da população idosa, já que o retorno econômico
de longo prazo é muito pequeno.
Os familiares apresentaram as seguintes alternativas à institucionalização: “Assim como há um sistema de família
substituta para crianças e adolescentes, poderiam ser encontradas famílias que desejem prestar cuidados a idosos, nem que o
governo fornecesse auxílio. Assim, seriam mantidos em um ambiente mais acolhedor” (Filho de João); “Deveriam ser criadas
instituições com outro perfil para atendimento amplo de cada realidade, em que, à noite, o idoso que desejasse e tivesse condições
pudesse voltar para sua casa (Filha de Lara); “Não só o poder público, mas toda a comunidade local deveria engajar-se em
atividades de prevenção à institucionalização. Desde cedo, as escolas deveriam ensinar às crianças o respeito aos pais e avós, para
que tenham laços fortes que os levem a mantê-los junto de si” (Filha de Ana).
Alguns ainda afirmaram que deveriam ser ampliados os benefícios assistenciais e que o Estado deveria auxiliar as
famílias que têm dificuldades financeiras, já que as cidades de pequeno porte ainda não dispõem de acesso a Centros-dia,
instituições que prestem atendimento diurno aos idosos de forma sistematizada. Mesmo que a institucionalização não seja
entendida pelo idoso como a melhor opção, é necessário que se tenha em mente que o Lar de Longa Permanência em alguns
casos, constitui-se como a única política de atendimento ao idoso conforme salienta, Siqueira, Moi (2003, p. 167):
[...] a instituição asilar, como modalidade de proteção, preenche a lacuna aberta pelas dificuldades da família em atender às
necessidades de seus idosos e pela falta de implementação de programas que apóiem sua permanência na comunidade e no
ambiente familiar, como proposto na Política Nacional do Idoso.

É necessário que se criem mecanismo alternativos de assistência aos idosos, em cumprimento à Lei 10.741/2003 –
Estatuto do Idoso -, pela qual o idoso deve gozar em todas as circunstâncias de prioridade em atendimentos nas políticas setoriais
– saúde, assistência, educação lazer, habitação - para que o idoso exerça seus direitos enquanto cidadão usufruindo de condições
dignas de sobrevivência com qualidade de vida e integridade.
A alternativa de um sistema asilar não pode, no entanto, garantir ao idoso a integridade enfatizada na legislação. Os
esforços no campo da mobilização popular precisam ser intensificados, para que as históricas condições de descaso com a velhice
possam ser reformuladas. A população idosa precisa estar mais presente nos espaços de discussões e deliberações e o poder
público precisa intensificar políticas e fiscalização. A família deve compreender melhor e preparar-se para os cuidados que o
envelhecer requer. Os profissionais interessados no estudo gerontológico e, neste caso, os assistentes sociais também devem
promover espaços de debate e aprimoramento de alternativas de intervenções para garantir ações concretas de apoio e
sustentabilidade de políticas sociais que venham não só propor alternativas, mas que reconheçam, a necessidade da participação
do indivíduo idoso enquanto merecedor de escolhas próprias, que lhes possam garantir um envelhecimento saudável
independentemente do espaço físico em que esteja domiciliado.

REFERÊNCIAS
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Beauvoir, Simone de (1990). A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Bulla, Leonia Capaverde & Kaefer, Karim (2003). Trabalho e Aposentadoria:as repercussões sociais na vida do idoso aposentado.
Textos & Contextos. 2 , 34-35

548
Camarano, Ana Amélia; Kanso, Solange & Mello, Juliana Leitão (2004). Como Vive o Idoso Brasileiro? . Os novos idosos
brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA
Camarano, Ana Amélia & Pasinato, Maria Tereza (2004). O Envelhecimento Populacional na Agenda das Políticas Públicas. Os
novos idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA
Herêdia, Vânia, B. M, Corpetelletti, Ivonne A. & CASARA, Miriam Bonho (2004). Institucionalização do Idoso: identidade e
realidade. Idoso asilado: um estudo gerontológico. Caxias do Sul: Educrs/Edipucrs.
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período de 1975-1996. Texto & Contexto, 6 (2), 69-105.
_______ (1999). Velhice e sociedade. Campinas: Papirus.
Rodrigues, M. C (2003). As novas imagens do idoso veiculadas pela mídia: transformando o envelhecimento em um novo
mercado de consumo. http://www.proec.ufg.br (consultado na Internet em 23 de março de 2007).
Siqueira, Eliane C. M. & MOI, Regiane C (2003). Estimulando a memória em Instituições de Longa Permanência. As múltiplas
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Silva, Marina da Cruz (2006). Políticas sociais para a terceira idade no Brasil contemporâneo.
http://www.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=778. (consultado na Internet em 01 junho de 2006).
Soares, Holgonsi (2006). A importância da autonomia. http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/index.autonomia3.html. (consultado
na Internet em 10 novembro de 2007).
Vidal, Miguel Angel & Clemente, Miguel (1999). Familia y tercera edad: variables predictoras del abandono del anciano. Estudos
interdisciplinares sobre envelhecimento. Porto Alegre: UFRGS.

Juventudes, Memórias e cultura: articulações para o encontro entre distintas


gerações
Carlos Henrique dos Santos Martins
CEFET-RJ/UnED Nova Iguaçu
[email protected]

Resumo: Parto da compreensão de que existe forte relação entre memória, geração e sociabilidade e que estas parecem ser determinantes para a
compreensão da juventude como categoria sociológica composta de sujeitos dotados de memória que se constrói nas relações sociais e
intergeracionais. As experiências vivenciadas, por exemplo, no contexto familiar, são importantes para que o jovem elabore suas identidades e
servem para orientar a construção de suas trajetórias pessoais relacionadas a um futuro que é delineado no presente e que tem a memória de
experiência feita como referência e ponto de partida em direção ao desconhecido, lugares repletos de incertezas e riscos. Através de relatos dos
jovens e adultos, entrevistas e pesquisa participante procuro entender como se estabelecem as relações intergeracionais através da memória
coletiva e, a partir dessas relações, como se efetiva a construção da memória de jovem de forma individual. Assim, a identificação de pontos de
interseção e de afastamento entre a memória dos adultos e as memórias de jovens, marcados, principalmente, pela experiência vivenciada em
diferentes intensidades, tempos e espaços comuns ou diferenciados pelas questões geracionais, poderá indicar possíveis relações entre memória
individual e coletiva, e entre memória de jovens e de adultos. Os estudos sobre intergeracionalidade devem contribuir para a compreensão dos
diferentes caminhos de constituição da cultura nos seus distintos contextos, pois permitem analisar os processos que envolvem as múltiplas inter-
relações que envolvem os atores sociais.

1 – Apresentação
Alguns estudos sobre geração tendem a separar as coisas, num esforço conceitual aparente de colocá-las nos seus
devidos lugares. Sendo assim, insistem em relacionar a juventude com o projeto – o futuro – e a vida adulta e a velhice com a
memória, a lembrança, o passado. Minha proposta é discutir a importância do passado, das lembranças que povoam e constroem a
memória de jovem – e que parecem orientar suas escolhas –, na construção de suas trajetórias. Essa memória é elaborada, por sua
vez, nas experiências vivenciadas nos grupos de identidades juvenis, mas também nas relações sociais das quais destaca-se a
família, seja ela restrita ou estendida. Ainda que resultantes do enquadramento ou do conflito, são essas experiências que poderão
distinguir as escolhas e alguns referenciais identitários tais como gostos, estéticas e valores morais e éticos. Estes, assim como
determinadas práticas sociais, permanecem no interior da família, apesar das grandes transformações por que vem passando a
sociedade e que se refletem nas diferenças de comportamentos e pensamentos observadas empiricamente nos distintos grupos
geracionais. Nesse contexto, destacam-se ainda as experiências vividas por diferentes gerações não só em espaços juvenis
específicos como também nos espaços de convívio intergeracional.
Existe forte relação entre memória, geração e socialização e estas parecem ser determinantes para a compreensão da
juventude como categoria sociológica composta de sujeitos dotados de memória que se constrói nas relações sociais e
intergeracionais. Procuro entender como se estabelecem as relações intergeracionais através da memória coletiva e, a partir dessas

549
relações, como se efetiva a construção da memória juvenil individual. Assim, a identificação de pontos de interseção e de
afastamento entre a memória dos adultos e a memória de jovens, marcados, principalmente, pela experiência vivenciada em
diferentes intensidades, tempos e espaços comuns ou diferenciados pelas questões geracionais, poderá indicar possíveis relações
entre memória individual e coletiva, e entre memória de jovens e de adultos. Os estudos sobre intergeracionalidade devem
contribuir para a compreensão dos diferentes caminhos de constituição da cultura, quer no seu contexto de preservação ou de
transformação, pois permitem “a análise de processos em que valores e atores sociais devem ser examinados em suas múltiplas e
complexas inter-relações” (Velho, 2003, pág. 61).
Essas relações e pontos são observadas a partir dos bailes de Charme1 que se caracterizam como uma manifestação
cultural específica da cidade do Rio de Janeiro e que se expressa em práticas culturais e sociais que configuram diversos grupos
compostos, em sua maioria, por adultos negros. Ela é constituída por espaços de relações nos quais os jovens estão presentes,
ainda que em pequenos grupos ou acompanhando outros adultos. Assim, não se caracterizam como territórios juvenis ou lugares
específicos de um coletivo jovem particular, mas de interações sociais nos quais o jovem desempenha um de seus múltiplos
papéis. Desse modo, nos permite compreender o sujeito juvenil e seus “modos de estar junto” em contextos que rompem com “os
imperativos territoriais e as identidades essenciais”2 (Reguillo, 2000, pág.41). Os espaços de Charme, em sua maioria, significam
a expressão de uma linguagem básica comum em que são respeitadas as diferenças subjetivas, os valores e identidades de grupos
etários envolvidos em contextos de relações sociais que podem produzir experiências importantes para cada indivíduo e para o
próprio grupo. Entretanto, a presença juvenil pode configurar o conflito – ainda que de forma velada –, pois, para muitos
charmeiros, há forte relação entre juventude e transformação descaracterizadora. Nesse contexto, busco responder a algumas
questões, como por exemplo: os jovens charmeiros identificam-se com a cultura de seus pais e amigos mais velhos? Assimilam
quais valores e símbolos das gerações que os antecedem? Como essa expressão cultural interfere/contribui para a definição de
seus gostos, construção de identidades, consciência de geração? Há uma identidade étnica no Charme compartilhada pelos
sujeitos jovens? Quais são os espaços de autonomia construídos para os jovens oriundos da cultura charmeira?

2 – Juventude: universos plurais e sujeitos singulares


Os diferentes modos de ser jovem frente a um mundo construído pelos adultos e que está geralmente fundado por uma
visão distorcida ou congelada a partir de parâmetros cientificistas e generalizantes a respeito do universo juvenil apresentam-se
como um grande desafio para todos os pesquisadores do campo da juventude. Certamente, não é possível abranger as
adversidades presentes nesse universo se não levarmos em conta não só as alterações biológicas, mas também as diferentes
maneiras de cada um relacionar-se com as “mudanças dos afetos, das referências sociais e relacionais” a que estão sujeitos
(Carrano e Dayrell, 2002, pág. 2). Assim, mais do que uma condição biológica, ser jovem é uma experiência construída de forma
cognitiva e relacional; é uma definição cultural (Melucci, 2004). Superar as dificuldades para estar presente em um mundo com
poucas alternativas para os jovens como atores sociais, possivelmente permitirá a eles, a busca de diferentes opções que serão
influenciadas, entre outros fatores, pelas condições sociais e pelo contexto histórico em que cada um esteja inserido.
A situação juvenil não deve ser a única possibilidade de representação social da juventude. Faz-se necessário diferenciar
as práticas juvenis em diferentes contextos sociais uma vez que alguns deles não oferecem as condições para a produção das
expressões culturais que superem e/ou anunciem diferentes formas de ser jovem. Nesse sentido, a condição e a situação juvenis
não são os únicos determinantes para a construção de uma tipologia da juventude ancorada nas representações do “ser jovem”.
Creio, entretanto, que a cultura urbana, por exemplo, pode mostrar que, em um contexto de globalização que tende à
homogeneização dos gostos, os jovens, principalmente os incluídos de forma precária nos processos de consumo como marca
identitária internacionalizada da juventude, são capazes de, nas brechas deixadas pelos sistemas sociais e econômicos, bem como
pelos modelos culturais globalizados, produzir suas próprias expressões culturais. Para além da lógica do mercado, são os jovens,
muitas vezes não incorporados pela política e economia formais, que vão produzir práticas culturais que são marcas identitárias,
mas, além de tudo, são arranjos particulares de repolitização da política tendo a cultura como lócus específico. Para Reguillo
(2000), as práticas juvenis bem como as formas de ler o mundo podem nos oferecer pistas importantes para desvendar ou mesmo
antecipar as possíveis configurações que a sociedade venha a assumir. Essas práticas compreendidas em contextos significativos
das culturas juvenis em sua diversidade, expressam, por outro lado, a capacidade de os jovens assimilarem e retraduzirem as
mudanças operadas principalmente em decorrência dos processos de mundialização da cultura e o desenvolvimento tecnológico
que se efetiva em ritmo frenético. Desse modo, a autora enxerga “as culturas juvenis como lugares de novas sínteses
sociopolíticas que estão construindo referentes simbólicos distintos daqueles do mundo adulto, ou melhor, usando-os de maneiras
diferentes” (pág. 65). Entretanto, ressalto que apesar dessa capacidade é possível encontrarmos jovens – e não são poucos –

1
Vale dizer que o Charme torna-se uma construção social de música, identidade e cultura própria de determinados grupos étnicos e sociais em que a base, a memória
internacionalizada, está ligada ao movimento que se mundializou como possibilidade de luta, de transgressão e resistência às desigualdades seculares que marcam a
trajetória dos grupos afrodescendentes, principalmente nas Américas.
2
Esta, assim como as demais, é tradução livre dos textos em língua espanhola utilizados como referências.

550
bastante integrados aos contextos familiar e institucional que conservam os modos de transmissão de valores e conhecimentos
próprios de seu grupo. Além disso, é preciso considerar que há uma parcela significativa da população juvenil para a qual as
mudanças tecnológicas e seus produtos resultantes dos processos que transformam tecnologia em bem de consumo e/ou em
referente simbólico identitário – e que por sua vez expressam também manifestações culturais juvenis – ainda não chegaram ou
são por ela apropriadas de maneiras absolutamente precárias. É nesse contexto de precariedade que também podemos encontrar
outras expressões culturais juvenis que funcionam como resposta ou formas particulares de visibilidade e que revelam as
desigualdades em que muitos desses jovens estão mergulhados. Pensemos, por exemplo, nos diferentes processos de inclusão
resultantes do acesso à internet que permite a participação ativa em comunidades virtuais e grupos identitários bem como as
formas de exclusão resultantes da impossibilidade desse mesmo acesso.
Os jovens buscam manifestar-se de variadas formas e muitos têm grande interesse nas diversas práticas culturais que
servem de marca identitária. Há grupos juvenis, ligados às diversas expressões, que têm a música e a dança como possibilidades
de indicar linguagens culturais específicas e que para alguns grupos juvenis servem de contraposição à existência de culturas não
juvenis. Os jovens têm a capacidade de mostrar, de denunciar, através de suas múltiplas expressões culturais organizativas das
identidades coletivas juvenis, aspectos que as instituições gostariam de e tentam esconder. São formas desinstitucionalizadas de
ação política que colocam em xeque a ausência das políticas institucionais para os diversos setores da sociedade. Para Reguillo
(2000), essas formas organizativas incluem dois movimentos: no contato com o exterior, são capazes de produzir “formas de
proteção e segurança frente a uma ordem (social, política, econômica) que os exclui”. Num movimento para dentro, essas formas
apresentam-se como “espaços de pertença e inserção identitária, a partir dos quais é possível gerar um sentido em comum sobre
um mundo incerto” (pág. 14). A autora considera ainda que grande parte dos estudos sobre as culturas juvenis não problematiza
suficiente e necessariamente, os diversos modos de ser jovem. Esses modos normalmente levam em consideração apenas “o tipo
de inserção socioeconômica dos jovens na sociedade [...] descuidando as capacidades que, tanto a subjetividade como os marcos
objetivos da ação, geram” (idem, pág. 30).
Observa-se que as culturas juvenis podem ser capazes de demarcar os espaços destinados aos jovens na sociedade, uma
vez que “a gente vê o que a cultura e a sociedade permitem que se veja” (Soares, 2005, pág. 164). São as relações que influenciam
o modo de ver o outro. Assim, a visibilidade dos grupos juvenis pode aumentar à medida que os adultos venham a estabelecer
relações valorativas e que proponham as condições subjetivas para a participação juvenil nos espaços sociais. Essas culturas,
entendidas por Feixa (1998) como um conjunto de “formas mediante as quais os jovens participam nos processos de criação e
circulação culturais”, podem permitir que observemos qual o nível de “influência do mundo juvenil sobre a sociedade em seu
conjunto” (pág. 11). Para além da visão reducionista e muitas vezes utilitarista que compreende a juventude como problema
social, há grupos juvenis que (re)produzem culturas através das quais expressam suas condições nessa mesma sociedade.
Expressam ainda a sua capacidade interpretativa e transformadora dos contextos sociais em que estão imersos. As culturas juvenis
manifestam-se como possibilidade de enxergar a própria sociedade a partir de outro ponto de vista, de quem quer participar da
construção de outras possibilidades que também incorporem suas pautas reivindicativas. Creio que para os jovens um dos maiores
desafios está em romper as conservadoras barreiras do continuísmo, o que não significa dizer que todos os jovens sejam, por
natureza, transformadores. Compreendidos conjuntamente a partir de seu recorte geracional, pois cumpre o seu papel de
continuidade da sociedade, os jovens têm a capacidade de reinterpretar e produzir culturas através das quais podem questionar a
própria sociedade e a ausência de futuro, o que inviabilizaria esse papel e sua própria existência. Por vezes, essa ausência
transformada em insegurança e medo do que pode não vir, da incompletude do futuro, é respondida com ações e atitudes
radicalizadas pela estética das culturas juvenis como forma de expressão de “estar no mundo” sem lugar ou motivo para estar.
Determinados estudos sociológicos a respeito do tema nos fornecem algumas direções para refletir e para compreender
o que vem a ser a juventude. Entretanto, para além de sua complexidade como categoria sociológica, podemos entendê-la “como
parte de um processo mais amplo de constituição de sujeitos, mas que tem suas especificidades que marcam a vida de cada um. A
juventude constitui um momento determinado, mas que não se reduz a passagem, assumindo uma importância em si mesma”
(Carrano, 2002, pág. 3). Proporcionar os modos e condições de os jovens se reconhecerem e serem reconhecidos como sujeitos de
direitos é um importante desafio que está posto no sentido de contribuir para a continuação dos estudos sobre o tema. Trata-se,
ainda, de permitir a eles a construção de suas trajetórias de vida a partir de outros valores que também reconheçam como seus a
partir de mudanças nas relações intergeracionais efetivadas em espaços de companheirismo e/ou a partir do fortalecimento dessas
mesmas relações. A juventude é uma categoria social e também cultural em constante recomposição. Esse processo tende a ser
agudizado como resultado da própria aceleração dos demais processos pelos quais estão passando outras qualificações sociais
(Reguillo, 2000). Mais do que uma categoria em trânsito, como uma etapa de preparação para a vida adulta, é preciso
compreender a juventude e toda a sua complexidade como uma categoria construída sem neutralidade e composta de sujeitos

551
encarnados pertencentes à uma mesma geração que, para além de ser produto, é produtora de um universo material e simbólico
que constitui não só o meio social, mas a própria cultura em todas as suas dimensões3.
Rossana Reguillo sugere que a juventude deva ser compreendida e analisada através de uma dupla perspectiva que
envolva uma “história cultural da juventude” bem como a “análise empírica das identidades juvenis”. Essa primeira perspectiva
supera a visão essencialista e aponta para a análise relacionada à compreensão da diversidade de processos de ‘ser jovem’ de
“acordo com as divisões de classe e idade em processos historicamente situados” criadas a partir de relações de força na
sociedade. Eu acrescentaria as relações de gênero e raça não só como agravantes, mas capazes de conferir densidade e concretude
corpórea a esse mesmo processo. A outra perspectiva possibilita observarmos a pluralidade da categoria jovem ao analisar “as
interações e configurações que vão assumindo as grupalidades juvenis”. Assim, essa diversidade, principalmente em contextos
etnográficos, aponta para “jovens” ou “juventudes” e transcende a simplificação de “jovem” ou “juventude” como um dado
comum, uma categoria homogênea (idem, pág. 50). O que tal análise propõe é a desconstrução da aparente unidade que envolve a
categoria juventude, reconstruindo-a segundo não só a idade, mas em relação a outros fatores intervenientes como classe, gênero,
relações de trabalho. Posto que essa unidade pode esconder as diferenças que historicamente recompõem e ressignificam a
juventude. Essas diferenças permitem compreendê-la em sua complexidade e multiplicidade a partir do seu recorte como
categoria, como unidade geracional.

3 – Juventude como geração


Nas sociedades contemporâneas modernas, a juventude é uma condição social quase universalizada, construída na
relação, no intervalo entre uma condição natural – a puberdade fisiológica – e uma condição cultural com distintas modelações – o
reconhecimento do status adulto (Feixa, 1998). A tentativa de conceituá-la em um contexto sociocultural deve buscar a superação
das delimitações biológicas – como a idade, por exemplo – e compreendê-la como uma categoria com limites ou marcos que são
variáveis de acordo com cada sociedade. Assim, é possível entender a juventude através do recorte geracional, pois além de seu
caráter descontínuo e dinâmico, está inserida em uma mesma temporalidade, ainda que “seus esquemas de representação
configuram campos de ação diferenciados e desiguais” (Reguillo, 2000, pág. 30). Sendo assim, creio que os estudos empíricos a
respeito dos diferentes sujeitos e grupos juvenis que compõem essa geração devem situá-los em um contexto histórico e
sociopolítico, uma vez que cada sociedade possui seus próprios “critérios de classificação e princípios de diferenciação social”
que envolvem e estão relacionados aos “seus distintos membros e classes de idade” (idem, pág. 49). Nessa perspectiva, a
juventude é configurada dentro de uma materialidade analítica que deve levar em conta o conjunto de imagens culturais
distintivas deste grupo de idade no interior das classes sociais e ainda entre as diferentes classes, que não a uniformiza, mas
incorpora em uma mesma geração os diferentes modos de “ser jovem”. Isso permite observar a existência de uma identidade
geracional juvenil que modela e expressa um tempo biográfico que se insere em um tempo histórico através das brechas culturais
que expressam simbolicamente essa mesma geração na relação com os pais e outros adultos, por exemplo. São sujeitos no seu
tempo que produzem sua história geracional através de expressões identitárias e culturais específicas carregadas de símbolos que
traduzem a geração juvenil, ainda que muitas vezes estes sejam apropriados indistintamente pela sociedade através de sua
mercantilização.
Freitas (2005), afirma que “A noção de geração remete à idéia de similaridade de experiências e questões dos indivíduos
que nascem num mesmo momento histórico, e que vivem os processos condicionantes das conjunturas históricas” (pág. 6).
Concordando em parte, creio que a idéia de similaridade de experiências que pode ser compreendida como um dos marcos da
singularidade da juventude enquanto categoria social deva ser relativizada. Isso se deve ao fato de que não é por ter nascido em
um mesmo período histórico que haverá tal similaridade. É preciso levar em conta alguns condicionantes tais como classe social4,
gênero e etnia, que poderão ser definitivos para vivenciar diferentes experiências nesse mesmo contexto sócio-histórico. As
trajetórias5 e biografias individuais colocam em cheque a tendência à homogeneização da juventude como grupo específico, como
categoria social que responde às mesmas condicionantes estruturais. Problematizam ainda o “mito da juventude dourada”
(Margulis, 1996) em que os jovens estão relacionados ao privilégio de uma moratória social na qual todos possuem mais tempo
livre e podem viver sem angústias nem responsabilidades. Essa condição estaria posta como inerente à juventude. Entretanto, as

3
A capacidade produtiva de linguagens e culturas não significa que os jovens são desvinculados e não reproduzam valores da cultura dita tradicional presente nos
contextos institucionais de origem, como a família e a escola, por exemplo.
4
A classe social pode determinar diferentes experiências familiares que vão desde o ajustamento e tolerância mútuas até o completo esfacelamento da estrutura do
grupo, assim como à intolerância. Neste caso, como consequência, observa-se o agravamento dos conflitos geracionais decorrente das mudanças nas relações e nos
papéis desempenhados pelos pais.
5
Bourdieu (2006) compreende a “noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é
ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (pág. 189). Considera que a constituição de uma trajetória requer a construção prévia dos “estados
sucessivos do campo no qual ela se desenvolveu e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes
envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis”. Portanto, demanda a busca “dos sentidos dos movimentos que conduzem de uma
posição a outra” e que “se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado” (pág. 190). São esses
movimentos e a compreensão da dinâmica das diversas posições ocupadas pelo indivíduo que dão materialidade à sua trajetória.

552
distintas maneiras de ser jovem estão marcadas, dentre outros aspectos, pela diferenciação social e, em decorrência disso, por
diferentes moratórias. O autor considera a moratória como sendo “um espaço de possibilidades aberto a certos setores sociais e
limitado a determinados períodos históricos” (pág. 15) nos quais haveria a tolerância com determinadas exigências frente às
obrigações do trabalho e à constituição da família, por exemplo. Assim, há um “tempo legítimo para que se dediquem ao estudo e
à capacitação postergando o matrimônio” (idem).
Para Mario Margulis,
Os integrantes dos setores populares teriam restringidas suas possibilidades de aceder à moratória social pela qual se define
a condição de juventude [...]: devem ingressar precocemente no mundo do trabalho – em trabalhos mais árduos e menos
atrativos – tendem a assumir em menor idade obrigações familiares (casamento ou união precoce, consolidada pelos filhos).
Carecem do tempo e do dinheiro – moratória social – para viver um período mais ou menos prolongado com relativa
desocupação e velocidade (1996, pág. 17).

Se para alguns setores juvenis a moratória é um tempo/espaço consentido de preparação para a vida adulta, para os
setores populares é possível observarmos uma moratória forçada6. Para estes, o desemprego e o afastamento das atividades
escolares aparecem como fatores principais de expansão da moratória bem como da juventude como período de transição. Desse
modo, as diferentes moratórias parecem potencializar as distintas classes sociais evidenciadas nas desigualdades que se perpetuam
na vida adulta. Sendo assim, proporcionam diferentes formas de transição para a vida adulta que serão desenvolvidas em
diferentes tempos e espaços. Nesse caso, as moratórias sociais e os diversos capitais simbólicos têm peso analítico fundamental
para contextualizar aquelas biografias.
Por outro lado, não se pode negar a importância para os jovens em serem compreendidos também em um recorte de
geração, uma vez que “é esta singularidade (pelo menos geracional) que pode também fazer com que a juventude se torne visível
e produza interferências como uma categoria social” (Freitas, 2005, pág. 6). Esta categoria pode ser constituída por unidades de
geração, por diferentes situações de classe que por sua vez não produzem a consciência de classe7. Entretanto, esta pode ser
decorrente daquelas. A situação de classe e a situação geracional se constituem por uma posição específica ocupada no mesmo
contexto sócio-histórico e que permite aos indivíduos compartilhar as mesmas experiências8.
Dentro desse recorte, é pertinente destacar pelo menos um aspecto interessante para auxiliar a discussão iniciada acima.
Refere-se à importância de compreender a relação entre a geração juvenil e as trajetórias coletivas que marcam o sentido de grupo
pertencente a um mesmo tempo sócio-histórico. Isso me leva a crer que seja interessante observar a relação da geração com a
trajetória individual9 na medida em que, mesmo sendo sujeitos desse tempo, há diferentes formas de apropriação dos sentidos e
transformação dos significados em códigos particulares, específicos e que identificam as formas individuais de desenhar o
percurso juvenil através do seu tempo, escrevendo assim a sua biografia particular. A trajetória pode ser vista como produto da
relação entre gerações cuja experiência embora seja coletiva, guarda importantes aspectos particulares, sendo vivenciada de forma
pessoal no contexto dessa mesma experiência. As gerações juvenis não são frutos de experiências singulares dadas a serem
vivenciadas por sujeitos pertencentes à determinada faixa etária ou tempo biológico. São, para além da liberdade e da busca da
autonomia, uma multiplicidade de sujeitos que constroem suas identidades e trajetórias dentro de distintos campos de
possibilidades estruturados segundo valores e onde são estabelecidas diferentes relações sociais que podem ser reproduzidas ou
mesmo contestadas. Desse modo, conformismo e rebeldia parecem ser os extremos de diversas experiências juvenis observadas
no interior da geração. É esse interior que devemos esmiuçar se quisermos descobrir a diversidade dos modos de ser jovem no
contexto geracional.
Jelin e Sempol (2006) consideram que a geração constitui-se em “um sistema de oportunidades e experiências
compartilhadas, somado a modalidades específicas de comportamentos distintivos” (pág. 9). É composta por sujeitos que
vivenciam experiências similares em momentos parecidos e próximos no curso de suas vidas. As condições de pertencimento e
identificação ao grupo e com o grupo “permitem diferenciar os setores sociais particulares na cadeia temporal que se processa no
seio de uma cultura” (idem). De acordo com os autores,

6
“Mesmo quando o desemprego e a crise proporcionam às vezes tempo livre a jovens de classes populares, estas circunstâncias não conduzem à “moratória social”: se
eleva a uma condição não desejada, a um tempo livre que se constitui através da frustração e infortúnio. O “tempo livre” é também um atributo da vida social, é tempo
social, vinculado com o tempo do trabalho ou de estudo por ritmos e rituais que lhes outorgam permissividade e legitimidade. O tempo livre que emerge da
desocupação forçada não é festivo, não é o tempo veloz dos setores médios e altos, está carregado de culpabilidade e impotência, de frustração e sofrimento”
(Margulis, 1996, pág. 18).
7
A consciência é formada de acordo com vivências que são articuladas dialeticamente e depositadas em diferentes níveis estratificados dessa mesma consciência. O
fenômeno, segundo Mannheim (1993) não ocorre por somatório de experiências e vivências, mas por um processo também dialético que vai aprofundando essas
experiências, que podem ser transformadoras ou não.
8
Esse compartilhamento de experiências produz, segundo Mannheim (1993), uma conexão de geração. Esta, segundo o autor, não produz a consciência de
pertencimento, porém os âmbitos sociais – dentre eles a própria consciência ou pertencimento a uma classe – podem facilitar a organização de grupos concretos
apoiados na conexão geracional e que passam a se reconhecer como geração, como unidade de geração.
9
A trajetória de vida de um jovem assim como a sua biografia, podem permitir a leitura da sociedade contemporânea a partir da análise dos espaços e tempos nos quais
essa trajetória está contextualizada, uma vez que “o espaço e tempo definem os marcos pessoais, culturais e estruturais nos quais se desenvolvem as vidas de
indivíduos concretos” (Feixa, 1998, pág. 172).

553
As gerações não são unidades estabelecidas com precisão e com limites fixos e nítidos. Melhor, são categorias de
sentimentos subjetivos de pertença, de identificação por parte dos outros, com fronteiras imprecisas que nem sempre
correspondem a datas de um calendário. São, na realidade, coletivos simbólicos que se definem e são definidos em relação
com uma temporalidade, com aqueles que vieram antes e aqueles que os vão suceder depois (2006, pág. 9/10).

No caso da geração juvenil atual, é possível afirmar que, além do sentimento de pertencimento e por conta da existência
de “uma mobilidade material e simbólica sem precedentes em escala e extensão” (Freitas, 2005, pág. 6) proporcionada
principalmente pela cultura mundializada, pela comunicação de massas e pelo quase desaparecimento das fronteiras nacionais, ela
esteja mais exposta e vivencia outros sistemas de valores bastante heterogêneos. Isso, se em um primeiro momento não produz
alterações significativas na elaboração das identidades pode ampliar seu leque de identificações através da dinâmica que se
estabelece no entrecruzamento dos sistemas culturais.
As culturas geracionais são construídas a partir de experiências comuns adquiridas e vivenciadas nos diversos espaços
de encontros pelos quais o jovem transita. Nestes, além de compartilhar experiências, valores e interesses, reproduz
comportamentos específicos de sua geração e que simbolizam a identificação entre iguais ainda que diversos em suas
subjetividades. Entretanto, não podemos esquecer que na elaboração de seu estilo de vida, muitos jovens expressam elementos
culturais básicos interiorizados através do processo de socialização primária e que se expressam na apropriação de normas e
valores vigentes, principalmente na família estendida.
As possibilidades de construção de múltiplas identidades juvenis tendo como sustentação essas novas/outras culturas
parecem interferir na identificação cultural comum às duas gerações. Resultam, não só na transformação dessas mesmas culturas
como também alteram sobremaneira as relações intergeracionais estabelecidas em torno de culturas comuns às comunidades de
afeto, o que derivaria em maior adesão ou em acentuação dos conflitos. Estes podem ser consequência da maior facilidade e
disponibilidade da maioria dos jovens em circular entre diferentes domínios culturais e simbólicos e, por conta disso, esta mesma
maioria encontrar-se mais aberta às constantes adaptações necessárias à continuidade do trânsito e às novas circunstâncias
decorrentes da multiplicidade desses domínios. Os conflitos se configurariam como parte de diferentes socializações10 inter e
intrageracionais. Muitos jovens são educados segundo valores familiares tradicionais, além de estabelecerem relações de
dependência – econômica, afetiva – com os adultos. Em outra instância, convivem com seus pares estabelecendo, por exemplo,
relações de socialização segundo a lógica do mercado de consumo juvenil para o qual outros valores se fazem presentes. Nesse
caso, as diferentes identidades que se expressam em um único sujeito são capazes de revelar situações de conflito, principalmente
por sua dependência econômica que o obriga a submeter-se às exigências e determinações dos pais. A falta de espaço de
negociação e a quase inexistência de autonomia podem ser alguns dos motores para a adesão ou escolhas culturais que expressem
o radicalismo, a ruptura com as normas e os valores do mundo adulto. Sendo assim, mais do que a rebeldia o que pode estar
evidenciado é a limitação do direito de ser jovem. Entretanto, Machado Pais nos lembra que “as tensões familiares não se
traduzem, necessariamente, em rejeições dos valores que as originam” (2003, pág. 120). Ainda assim, alguns jovens constroem
suas identidades em resposta às instituições que procuram sustentar relações verticalizadas e autoritárias nas quais não há espaço
para o encontro, para o diálogo.

4 – Juventude e Memória
A memória juvenil e suas articulações com a memória dos adultos parecem determinar as escolhas pessoais dos jovens
não só no que diz respeito às expressões culturais, como também à elaboração de seus projetos de vida. A memória também é
coletiva, pois é social, guarda relação com o meio social, o grupo, a família. Sendo assim, envolve relações de sociabilidade. Estas
podem ser estabelecidas nas afinidades intergeracionais que se configuram em diversos espaços de convívio. Através dessa
sociabilidade podem surgir os elementos fundamentais para a elaboração de identidades juvenis. Uma sociabilidade rica de
elementos significativos guardados na memória dos adultos e que possam povoar o cotidiano das relações sociais. E, desse modo,
transformar-se em elementos constitutivos da memória juvenil, estabelecendo, com isso, importantes relações intermnemônicas
que vêm influenciar a sociabilidade, a identidade e a intergeracionalidade.
Embora Halbwachs nos apresente várias classificações para memória, parece que é suficiente por ora, a compreensão da
memória individual que, segundo ele, “são lembranças organizadas e agrupadas em torno de uma pessoa definida, sob seu próprio
ponto de vista” e da memória coletiva, entendida como “lembranças distribuídas no interior de uma sociedade grande ou pequena
de que elas são tantas outras imagens parciais” (2004, pág.50).

10
Se, por um lado, as normas políticas e institucionais de socialização procuram enquadrar a juventude como a geração responsável pela continuidade do modelo
social do qual fazem parte, por outro, respeitadas as devidas proporções e críticas, é no âmbito da indústria cultural que muitos jovens encontram espaço para “a
produção, reconhecimento e inclusão da diversidade cultural juvenil”. É aqui onde são ampliados os espaços de ação e de sociabilidade próprios de uma geração que
guarda a diversidade estética que rompe com a tendência à “normatividade dos limites de ação”, com qualquer possibilidade de enquadramento do sujeito juvenil
(Reguillo, 2000, pág. 51).

554
Esse exercício de reconstrução das lembranças parece contribuir para a definição dos gostos dos jovens participantes da
comunidade afetiva11. A memória juvenil está relacionada com as sociabilidades costumeiras (Martins, 2000), que ocorrem na
convivência com as gerações que antecedem aos jovens e que são estabelecidas principalmente no ambiente familiar.
Os jovens, ao se relacionar com o universo dos adultos, em algumas situações relatam os acontecimentos “vividos por
tabela”, uma vez que nas suas lembranças aparecem elementos ou eventos que certamente foram relatados e/ou vivenciados pelos
adultos participantes de seu espaço de socialização cultural. Entretanto, em função da relevância desses eventos, os jovens fazem
referência aos mesmos sem necessariamente terem deles participado. Pollak (1992, pág. 201) sugere a possibilidade de ocorrer um
fenômeno de identificação com o passado que é projetado no presente através dos processos de socialização política e histórica. O
presente possui uma origem que se funda e se reatualiza na lembrança. Para sabermos o que somos e/ou onde estamos torna-se
necessário, segundo Brandão (1998), compreender de onde viemos, trazer à tona nossas trajetórias que nos permitiram estar aqui e
através das quais nos constituímos sujeitos. É a memória que articula o presente e o passado. É a memória geracional que vai
buscar no passado os elementos que possam contribuir para explicar o presente, para dar sustentabilidade ao projeto. É no passado
que o presente se explica em um processo da realidade social e subjetiva. O passado pode se apresentar como continuidade, como
herança geracional, mas pode também ser ressignificado pelas novas gerações no presente através, dentre outras coisas, de
constantes reinterpretações da memória. Nesse sentido, a memória reinterpreta o passado e é por ele reinterpretada no presente.
O fenômeno de projeção e identificação com o passado pode ocorrer também por meio da socialização cultural. Desse
modo, “a memória quase herdada” pelos jovens se expressa como resultado das relações estabelecidas com os adultos nos espaços
de elaboração de suas identidades. A identidade juvenil é elaborada em parte pela memória herdada – esta compreendida como
um fenômeno construído social e individualmente. A herança é transmitida pelas lembranças que são compartilhadas nas relações
sociais, na sociabilidade manifestada em espaços como a casa, a rua e a festa. Mas é também no apagamento da memória (como
construção social) como o pré-construído que o sujeito se funda como indivíduo, sabendo-se senhor da própria história.
Para Michael Pollak (1992), existe uma “ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de
identidade” (pág. 204). Essa identidade é elaborada em referência ao outro e não em função do outro. Refere-se aos critérios de
aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio de negociação direta com os outros. Sendo assim,
podemos pensar em outra dimensão da memória como valor de disputa – é o adulto que detém a memória – e que, ao ser
confrontada com a memória coletiva, pode gerar conflitos intergeracionais12. Nesse caso, a memória juvenil é importante para a
identidade que não é elaborada conforme os valores da geração antecedente. Portanto, essas identidades podem apontar para
transformação do espaço social. Isso nos remete aos múltiplos rearranjos das lógicas de ação que podem resultar na possibilidade
de encontrarmos os jovens que seguem os valores e normas que estão presentes na convivência com os adultos. Em contraposição,
podemos encontrar os jovens que, apesar de reconhecer esses valores e normas, estão dispostos a elaborar outros valores, outras
normas que podem ser reconhecidas como suas e que são capazes de apontar para relações conflituosas.
Fazer parte de um grupo permite potencializar a lembrança através de experiências em comum ou de traços de
acontecimentos que, mesmo não vivenciados da mesma maneira por todos os membros, podem caracterizar pontos de
identificação por pensamentos em comum. A existência de uma comunidade afetiva possibilita a reconstituição de lembranças
compartilhadas, mas que não são produzidas necessariamente de forma igual. A continuidade de pertencimento ao grupo permite
lembranças individuais e coletivas que são ativadas pelos aspectos comuns a este e vividos de diferentes maneiras e intensidades.
Permite ainda que os sentimentos em comum constantemente experimentados no grupo e pelo grupo fortaleçam a existência da
memória coletiva. É ela – a memória coletiva – que serve de apoio para a memória individual manifestada nas lembranças
particulares, pessoais. Porém, essas lembranças são quase sempre evocadas a partir do ponto de vista do grupo, visto que o
homem é, por natureza, um ser social (Halbwachs, 2004, pág. 50).
No que diz respeito à memória de jovem, esta pode ser construída por materiais emprestados e reconstituídos
singularmente. O processo de reconstituição auxilia na organização das lembranças, também emprestadas. Não são lembranças
diretas, mas resultado de imagens formadas a partir das narrativas dos adultos participantes de sua comunidade afetiva. Ser social,
suas experiências e vivências no interior do grupo são importantes para a elaboração de sua identidade a partir das lembranças
manifestadas no universo da memória coletiva.
Para Giddens, “a identidade é a criação de constância através do tempo, a verdadeira união do passado com um futuro
antecipado” (2001, pág. 56). Como construção subjetiva processual possui relação com memória e projeto. Constitui-se, de acordo
com Melucci em um processo interrelacional de re-conhecimento intra-subjetivo e relacional intersubjetivo. Para esse autor, a
identidade

11
Para Halbwachs (2004, pág. 39), para que a memória seja compartilhada é necessário que a lembrança seja reconhecida e reconstruída “a partir de dados ou de
noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é
possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade”.
12
Para Bonaldi (2006) esses conflitos podem ser compreendidos a partir da entrada, no campo habitado por adultos, de jovens comprometidos com diferentes pautas
reivindicatórias, o que resulta na clássica luta “entre ortodoxos e hereges que caracterizam as relações entre os mais velhos e os recém chegados em um campo” (pág.
157).

555
Define, portanto, nossa capacidade de falar e de agir, diferenciando-nos dos outros e permanecendo nós mesmos.
Contudo, a auto-identificação deve gozar de um reconhecimento intersubjetivo para poder alicerçar nossa identidade. A
possibilidade de distinguir-nos dos outros deve ser reconhecida por esses “outros”. Logo, nossa unidade pessoal, que é produzida
e mantida pela auto-identificação, encontra apoio no grupo ao qual pertencemos, na possibilidade de situar-nos dentro de um
sistema de relações. A construção da identidade depende do retorno de informações vindas dos outros. Cada um deve acreditar
que sua distinção será, em toda oportunidade, reconhecida pelos outros e que existirá reciprocidade no reconhecimento
intersubjetivo (Melucci, 2004, pág. 45).
O sentido de pertencimento ao grupo através da identificação com o coletivo é o que garante a manutenção da
identidade individual. Do mesmo modo, fazer parte, cultivar uma tradição13, estabelece fortes laços entre o eu e o grupo. Ameaçar
“a integridade das tradições é colocar em risco a própria integridade do eu e, por conseguinte as identidades coletivas e
individuais conectadas pelas tradições” (Giddens, 2001, pág. 56). As sociedades modernas, embora destradicionalizadas, não
perderam vínculos com a tradição. Ainda que esta não possua mais um papel preponderante na modernidade, muitos de seus
elementos estão preservados, ainda que transformados, o que parece conferir importância à memória como possibilidade de
presentificar o passado. É através dela que a tradição pode ser trazida e reinterpretada constantemente como construção coletiva
que organiza e dá significado ao presente.
Todo grupo social possui uma história que é contada pelos elementos presentes na memória de cada um de seus
indivíduos. Esse contar, segundo Bolle, é importante para cada integrante, pois “num tempo de destruição, o sujeito consegue,
pelo trabalho da memória, encontrar nas camadas mais profundas: uma imagem da sua identidade. Indestrutível. Isso não é pouco
em termos de perspectiva de futuro” (2000, pág. 351). Os relatos, as lembranças são potencializadas e ganham vida através da
troca possível na arte de contar. A história de um grupo, de uma comunidade afetiva passa pela tradição da oralidade e ainda é
estendida de uma geração à outra; está repleta de vida, do social que conforma esse grupo, pois “a história da família pode dar ao
indivíduo um forte sentimento de uma duração muito maior da vida pessoal” (Thompson, 1992, pág. 20).
Embora modernizadas, as tradições mantêm algumas de suas matrizes constitutivas: meio de identidade individual e
coletiva e relacionada ao ritual. Acredito que existem rituais reinventados por grupos juvenis e que podem significar a presença de
modernas tradições uma vez que “o advento da modernidade certamente não significa o desaparecimento do ritual coletivo”
(Idem, pág. 89). Podem estar presentes em diversas manifestações da vida cotidiana, mas, principalmente nas manifestações
culturais marcadamente juvenis.

5 – O Charme: encontro de gerações e memórias


O Charme é uma manifestação cultural composta de diversos elementos que expressam a mundialização da cultura
negra estadunidense através da qual os afroamericanos denunciaram as formas desiguais de inserção naquela sociedade. Embora
para muitos frequentadores seja confundido com um estilo musical a sua característica principal é ser um movimento cultural que
ocorre em diversos bairros da cidade. Esses locais, que podem ser bares, clubes e festas, são espaços de socialização e de cultura
que agregam a diversidade de sujeitos que se reúnem em torno da dança – com seus passos coreográficos bem marcados –, dos
muitos estilos musicais que compõem a musicalidade negra, ou black music14, como muitos preferem chamar. Foi também através
da cultura que começou um movimento ímpar de mobilização e conscientização dos afrodescendentes para a importância da luta
pelos direitos civis em um sociedade onde os negros eram sujeitos de não direitos. No Brasil essas lutas também ocorreram
através dos muitos movimentos negros que, além da denúncia, iniciaram uma luta aparentemente sem fim por reconhecimento de
seus direitos como cidadãos. Diversos eventos políticos e culturais marcaram o início da organização desses movimentos em suas
múltiplas manifestações. Nesse contexto, o Charme surge no início dos anos de 1980 como manifestação específica da cidade do
Rio de Janeiro e sua importância deve-se, dentre outros aspectos, à capacidade de congregar diversos atores sociais através da
música, da dança, da festa.
São indivíduos de diferentes classes sociais e etnias – embora o negro seja predominante – reunidos em torno de
interesse comum, ou seja, o gosto pela black music cujo foco predominante é o R&B15. Apesar das “diferenças nos estilos e visões
de mundo que é uma característica das sociedades complexas” (Velho, 2003, pág. 14), esse movimento possibilita a formação de

13
O culto ao passado produzido por rememorações ritualizadas pode aprisionar o sujeito em uma história que não permite a transformação do presente devido à
impossibilidade de criação de novos sujeitos e novos significados para esse mesmo presente. Tal aprisionamento certamente não contribui para iluminar e orientar os
projetos juvenis, senão para uma espécie de culto à memória desprovida de sentidos e que não contribui para as transformações simbólicas necessárias às identidades
forjadas no presente. O sentido da memória está na sua capacidade motora de recriação e reinvenção do passado como orientadora dos projetos juvenis.
14
Podemos considerar essa expressão como a síntese de diversos temas que têm grande semelhança em sua base musical e que seguem as tendências da música negra,
além de ser uma forma de protesto e relato sobre a vida das pessoas que habitam as periferias das grandes metrópoles. Dentro do senso comum dos frequentadores e
demais pessoas que fazem a história do Charme, consideram como integrantes da black music todos os ritmos musicais provenientes da cultura afroamericana, tais
como o jazz, soul, R&B e godspel (ou gospel).
15
Rythm & Blues – Esse, segundo Muniz Sodré (2002), era um dos ritmos correntes das comunidades negras do delta do rio Mississipi que deram origem ao jazz
tradicional de Nova Orleans (pág.142). Era através do blues rurais que os negros escravos da América do Norte contavam seu cotidiano de sofrimento e seus anseios
por liberdade e ser reconhecidos pela condição de humanos (pág.141).

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grupos de “ação coletiva organizada, sustentada em [...] valores compartilhados” (idem) e ganha maior dimensão cultural através
de uma linguagem musical e corporal que lhe garante identificação. Possui consistência cultural que é marcada por símbolos, por
uma linguagem básica comum compartilhada pelos seus participantes. A aparente homogeneidade características dos bailes – e
principalmente das coreografias – esconde a “heterogeneidade sob o ponto de vista sociológico, quanto à estratificação social,
faixas etárias, distribuição ocupacional, diversidade étnica, etc” (idem, pág. 17). Sendo assim, a dança pode ser um componente
revelador das diferentes faixas etárias e grupos específicos, pois as coreografias, nesse caso, incorporam elementos próprios de
outras expressões e estilos juvenis. Para Feixa (1998), “os estilos juvenis são considerados como intentos simbólicos elaborados
pelos jovens das classes subalternas para abordar as contradições não resolvidas nas culturas parentais”, assim como formas de
“resistência ritual aos sistemas de controle cultural impostos pelos grupos no poder” (pág. 75). Para além de expressar respostas à
ordem dominante como símbolo de resistência, as identidades e culturas juvenis significam a luta pelo direito de existir, de ser
jovem. Descobrir o que os estilos juvenis representam e resistem em ocultar podem, segundo Pais (2007), revelar “o desejo da
simples existência” (pág.27).
São elementos geradores de conflito, pois o Charme é uma forma de sociabilidade geracional que não possui elementos
e símbolos das culturas juvenis urbanas atuais como marcas constitutivas e particulares desse movimento cultural. Esses símbolos
são introduzidos pelos jovens através, principalmente, de elementos estéticos da cultura hip-hop e que são difundidos
mundialmente pelo mercado e pela mídia. Para Machado Pais, é através de representações que compõem os estilos visuais que os
jovens “marcam presença pela diferença”. Essa mesma diferença pode revelar a diversidade de estilos e identidades bem como as
desigualdades sociais que podem estar expressas na caracterização do estilo à moda do possível. Dito de outra maneira, as
condições sociais e materiais são reveladas pela apropriação ou adaptação dos elementos constitutivos do estilo ou mesmo a
substituição por semelhança, ou seja, uma espécie de arremedo, de estilização do estilo. Nesse caso, o parecer está relacionado
com o ser para se sentir inserido ou mesmo incluído.
Para muitos charmeiros adultos – mais conhecidos como cascudos16 –, essa presença simbolizada pela invasão de estilos
representa a descaracterização e perda da origem do movimento. Creio que a diferença pode acirrar também o preconceito com as
expressões juvenis, além de permitir rotulações e etiquetagens que contribuem para a homogeneização dos sujeitos juvenis em
subgrupos para os quais adjetivações pejorativas constituem-se em marcas identificadoras de uma suposta unidade geracional.
Afinal, “os jovens são o que são, mas também são (sem que o sejam) o que deles se pensa, os mitos que sobre eles se criam. Esses
mitos não reflectem apenas a realidade, ajudam-na também a instituir-se como uma idealização ou ficção social” (pág. 4). Desse
modo, Machado Pais considera que “a decifração do conceito de juventude passa pelo desvendar das representações que, através
de sucessivas adjetivações, fazem da juventude uma realidade mascarada, por vezes uma ficção ou até mesmo um mito” (pág. 3).
Segundo ele, compreender e questionar essas “realidades representacionais, discursivas, mitificadas possibilita a constituição de
uma sociologia crítica das juventudes impossibilitando desse modo que conceitos possam ser confundidos com preconceitos”
(pág. 4). Essa compreensão me parece bastante pertinente para orientar o pesquisador em suas análises, pois não só possibilita
uma postura crítica da realidade como também produz a distância necessária para que não seja envolvido pelo discurso sedutor e
muitas vezes convincente, produzido pelo entrevistado e que pode resultar apenas do olhar e de suas representações que
conformam a sua realidade ou são produzidas por ela.
Os jovens que frequentam os espaços de Charme geralmente o fazem em companhia de adultos, familiares e isso parece
funcionar como um cartão de visitas. Apesar da retração observada atualmente através da quase ausência dos grandes bailes que
marcaram os tempos gloriosos dos anos de 1980 e 1990, é possível notar uma espécie de culto a esses mesmos tempos, uma forte
relação com a memória, não como mobilizadora de experiência e projeto, mas como relacionada a um certo aprisionamento ao
passado e que é expresso pela maioria dos adultos em uma espécie de jargão-síntese, a “saudade dos bons tempos”. Por outro
lado, essa esfera cultural baseada na lembrança, nos “lugares de memória” representados pela música, pela dança e pela tentativa
de resgate dos bailes – e de tudo o que estes puderam proporcionar – me parece que serve de pano de fundo para muitos jovens
compreenderem o seu espaço nas comunidades de afeto, na família. Creio que esse contexto, esse universo cultural deve
influenciar, dentre outras coisas, a construção das identidades juvenis, nas suas escolhas musicais, nos seus gostos.
Conforme foi dito, para muitos cascudos a presença juvenil pode ser vista como ameaça à continuidade em função do
seu potencial transformador ao introduzir elementos hibridizadores e que ressignificam a cultura charmeira. Pode ser também o
resultado da compreensão de que é um movimento que permite a interseção dos distintos universos geracionais. Nesse caso,
torna-se um espaço de encontro e comunicação de diferentes experiências em constante negociação. Essas diferenças podem
determinar uma rede de significados através da linguagem comum que produz e é produzida por essa mesma rede e que tem a
cultura como expressão. Assim, cultura e linguagem interagem continuamente na constituição e negociação da realidade.

16
Expressão usada para identificar os charmeiros adultos, que acompanham os bailes de Charme desde o seu início, nos anos de 1980.

557
6 – Julio DJ: a nova geração da black music
O encontro com Julio – o jovem que entrevistei para a elaboração desse trabalho – foi marcado para o Centro Cultural
João Saldanha. Este está localizado no bairro de Bangu, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, do lado direito da Av. Brasil em
direção a Campo Grande, tendo como referência a antiga fabrica da coca-cola situada na esquina dessa avenida com a rua na qual
deve-se seguir até o final. A chegada foi tranquila, pois as indicações são precisas e o local é de fácil acesso uma vez que está
situado em uma via de grande movimento e tráfego intenso. Embora o baile estivesse marcado para começar às 19 horas, quando
eu cheguei, por volta de 21 horas, estavam presentes apenas a Mônica (sua mãe), o DJ De Paula (seu padrasto) e um jovem
encostado no balcão da cozinha. Conversamos rapidamente e a Mônica convidou o jovem para se juntar a nós, apresentando-me
como seu filho Julio. Confesso que fiquei apreensivo, pois tratava-se do jovem que poderia participar da entrevista e, ao mesmo
tempo que eu teria a facilidade de encaminhar a pesquisa, estava claro para mim que a forma de abordagem poderia colocar tudo a
perder. Como chegar até ele sem ser um incômodo? Qual seria o melhor momento para conversar sobre a entrevista? Não fiz
qualquer referência à pesquisa bem como à possibilidade de vir a entrevistá-lo. Conversamos os três rapidamente. Logo depois
Mônica e Julio se retiraram, pois tinham que ir até à casa buscar os salgados e petiscos que seriam vendidos durante o baile. Cerca
de meia hora após a sua saída Julio e sua mãe retornaram com diversos recipientes repletos de tira-gostos. Isso chamou a minha
atenção, pois em muitos bailes não há a preocupação com a variedade de opções de cardápio. Este resume-se à sopa de ervilha,
batata frita e churrasquinho. Após terminarem a tarefa de transporte nos juntamos outra vez e pudemos conversar mais
calmamente. Foi nesse momento que Mônica perguntou a respeito da pesquisa e isso me permitiu um espaço importante não só
para falar sobre ela como também para esclarecer ao Julio sobre a tese. Aproveitei a brecha e falei sobre o trabalho desenvolvido
no mestrado e que girava em torno da construção de identidades juvenis nos bailes de Charme bem como os caminhos e
desdobramentos daí decorrentes e que resultaram na pesquisa que ora pretendo realizar. Esta relaciona-se com a articulação entre
a juventude, experiência, memória e projeto em contextos intergeracionais. Expliquei detalhadamente o andamento do meu
trabalho, suas possíveis fases e principalmente a importância das entrevistas assim como da necessidade de estas serem gravadas.
Observei que todos ouviam atenta e silenciosamente. Ao final dos esclarecimentos fiz o convite ao Julio para participar da
pesquisa e ser entrevistado e ele prontamente aceitou.
A familiaridade com o Mundo do Charme é decorrente da proximidade e da convivência de Julio com a sua mãe
auxiliando-a nos afazeres domésticos. Enquanto arrumava a casa, Mônica trabalhava ao som da black music e isso fez com que
Julio mantivesse contato e conhecimento com os ritmos musicais que compõem o estilo. Sendo assim, o gosto musical foi
influenciado pelas relações intergeracionais. Ao relatar suas lembranças, a memória é acionada e permite narrar suas primeiras
vivências musicais experimentadas no espaço da casa. É essa experiência, posteriormente reafirmada através do contato com o seu
padrasto, o DJ De Paula, que contribui para as suas escolhas musicais bem como para tornar-se DJ. Segundo Julio, a preferência
pelas “músicas do Charme” – como ele se refere a todos os estilos ligados à música negra – está relacionada à sua experiência
musical familiar, o que possibilita maior identificação com os ritmos e batidas que são peculiares aos estilos musicais daquele
movimento cultural. Para o jovem DJ, apesar de gostar de outros ritmos e tocar para distintas platéias, a preferência por Charme
está relacionada ao fato de ser “mais fácil de tocar, tem ritmos parecidos, tem algumas variações, mas são poucas... As batidas
delas (das músicas) são mais fáceis de tocar, encaixar uma música na outra”. Esse encaixe a que se refere está relacionado à
facilidade com que as BPM17 têm em cada música e, no caso do Charme, são muito próximas, o que facilita a mixagem. Julio
acredita que a sensibilidade para efetuar boas mixagens, bem como o tempo certo para fazê-las, deve-se á prática constante, mas
principalmente a um ouvido treinado no convívio diário com a sonoridade musical do Charme. Acredita, desse modo, que essa
sensibilidade bem desenvolvida “está no sangue”, uma espécie de DNA musical como marca herdada da família charmeira. Para
além da impossibilidade de comprovação biológica, o que está aparentemente evidenciado é a herança musical presente na
memória coletiva.
Além da importância que tem sua mãe em praticamente todos os momentos de sua vida, o De Paula tem papel destacado
na construção de sua relação afetuosa com o Charme, pois foi no convívio diário que a curiosidade pelo trabalho de DJ foi
despertada. Mais do que padrasto, foi o seu amigo De Paula que o colocou em contato com os pratos e orientou suas primeiras
experiências como aprendiz de DJ. As idas aos bailes em companhia de seus pais e a proximidade da mesa de som durante a
apresentação do padrasto constituiriam fatores importantes para as contínuas experimentações, uma vez que sempre que havia a
oportunidade Julio assumia o comando das carrapetas. Sua carreira de DJ vem sendo aos poucos consolidada na convivência com
os adultos e na constante presença aos bailes, o que progressivamente foi dando-lhe a confiança e autonomia necessárias para
tocar sozinho.

17
Abreviação para batidas por minuto. Com o auxílio do osciloscópio é possível identificar que cada música é marcada por determinado número de batidas. No caso
da mixagem, que é a junção precisa do final de uma música com o início da seguinte sem que haja quebra da melodia ou do ritmo, sem que haja interrupção, para que
essa passagem seja realizada suavemente é necessário que o DJ tenha conhecimento do número de batidas de cada música de forma a realizar esse processo quase
imperceptivelmente.

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Sua primeira experiência é marcada por um momento que, segundo ele “foi muito constrangedor porque foi logo no
começo de minha carreira de DJ e [...] eu estava muito nervoso porque tinha bastante gente, o pessoal a toda hora pedindo: ah!
Coloca isso, coloca aquilo [...] acabei ficando meio nervoso, e fiquei muito nervoso na hora. Essa é uma das maiores dificuldades
e queixas apontadas por DJs mais experientes para desenvolverem seus trabalho sem espaços que não sejam específicos de black
music. Foi o que ocorreu com Julio ao ser contratado para animar a festa de uma empresa. Segundo ele, “a gente tem tipo uma
sequência e quando as pessoas ficam pedindo (para tocar outros ritmos) você acaba quebrando a sequência das músicas e isso
acaba desestruturando o DJ na hora da sequência que ele faz. Foi uma experiência que eu não quero me lembrar”.
Apesar disso, considera que essa mesma experiência foi fundamental para a sua familiarização com o trabalho que
continua realizando decorrente dos convites que surgem para se apresentar em eventos. A qualidade de sua performance funciona
como cartão de apresentação da “nova geração da black music”, da qual se considera um de seus representantes.

6.1 – Conflitos e disputas


Se a presença dessa geração permite a renovação e/ou a transformação e pode representar a continuidade do movimento,
por outro lado traz consigo a possibilidade de acirramento dos conflitos intergeracionais. Os jovens estão mais expostos às
mudanças e às novidades produzidas pelos meios midiáticos. Para Mario Margulis, eles
[...] manifestam com mais intensidade e variedade que outras gerações as mudanças culturais, e é no plano da cultura, antes
que o da política ou o da economia, o que evidencia as novas modalidades que assume a juventude atual. Sensíveis às novas
tecnologias e ao predomínio da imagem, os jovens encontram nesta um âmbito propício para capturar e expressar a
variedade cultural de nosso tempo e orientar, mais no nível dos signos que no de agir sobre o mundo, seu apetite de
identidade (1996, pág. 10).

São os jovens que incorporam com mais facilidade novos ritmos musicais, dentre eles, o hip-hop, que serve de
identificação para alguns grupos juvenis e simboliza a síntese da cultura juvenil mundializada e apropriada localmente de formas
distintas por cada um desses grupos através da apropriação de seus elementos constitutivos em processo de hibridização com
elementos das culturas populares. Sendo assim, parece quase inevitável que os jovens DJs, mesmo aqueles mais enquadrados,
insiram elementos, ritmos, marcas identitárias da cultura hip-hop não só nas suas vestimentas bem como em seus repertórios
musicais, o que caracterizaria o processo de juvenilização da black music.
Nesse contexto, Julio considera que os diferentes gostos e a recusa frente ao novo produzem momentos conflituosos na
interação com adultos. Ele nos conta que
Teve uma festa no Rio Comprido, um baile com o De Paula; eu, o De Paula e o meu primo. O meu primo estava tocando e
colocou essas novas músicas assim, e eu senti o pessoal da, vamos dizer, da velha geração, eu acho que não estava gostando.
Tanto que veio um me falar: “coloca aí uma música da antiga e tal, pois o pessoal não tá gostando. Deixa pra colocar isso
quando tiver entre vocês”. Aí eu tive que colocar músicas velhas, antigas [...] Eu não acho legal não, porque se tem um DJ
tocando, a pessoa tem que, no mínimo, respeitar a sequência que o DJ tá fazendo. Depois, no caso, quando ele tiver
acabado, “ah, dá pra colocar uma sequência da mais antiga?”. E como o rapaz falou isso, eu falei com meu primo: já que
eles querem música antiga... Acabei sumindo com os CDs jovens. Até porque o meu primo Thiago não conhece muito as
músicas antigas, eu conheço um pouco mais que ele, eu, desde pequeno já escuto as músicas e já sei alguma coisa, ele não.

A maior convivência com os adultos proporcionou novas e múltipas experiências capazes de permitir ao Julio ir em
socorro do primo e com isso, minimizar o conflito decorrente da intolerância de alguns adultos com a presença juvenis nos
espaços de Charme. No caso da festa a que se refere, esta não possuía um ritmo ou temporalidade definidos, era o que ele chamou
de “baile normal” em que é possível ouvir a diversidade de estilos que fazem parte da black music. Certamente que cada DJ
convidado elabora previamente e apresenta a sequência buscando combinar seu gosto pessoal com o tipo de público presente. Isso
abre espaço para improvisações e mudanças de última hora nessa sequência. Sendo assim, Julio reforça que “mesmo sendo
Charme das novas [...] a pessoa tem que respeitar as pessoas que estão tocando”. As novas gerações – nesse caso específico, os
jovens – renovam a sociedade pela possibilidade de “novos acessos” destas aos bens culturais acumulados. Esses acessos se dão
por distintas maneiras de apropriação, reelaboração e desenvolvimento dos bens culturais disponíveis. Para Mannheim (1993) “a
mudança da disposição se realiza nos novos portadores, e para estes não conserva a mesma relevância o que na história anterior
havia sido objeto de apropriação” (pág.212). No caso do Charme observamos que o conflito está posto entre diferentes unidades
geracionais que são importantes para a continuidade do movimento cultural – movimento esse que se processa pela constante
sucessão dessas unidades, assim como ocorre na própria sociedade – e se caracteriza pela chegada dos novos portadores de cultura
que reconfiguram a musicalidade e questionam a própria relevância de vários bens culturais acumulados. Cada unidade reage de
diferentes modos às transformações sociais e de acordo com suas experiências coletivas vivenciadas no mesmo âmbito histórico-
social. Reage ainda, de acordo com suas capacidades potenciais de reação e adaptação às realidades transformadas.
Para além do conflito, a presença dos jovens nos bailes pode resultar em espaços de trocas de experiências através do
intercâmbio musical. Se os adultos possuem conhecimentos relacionados às músicas mais antigas são os jovens DJs que podem

559
trazer a diversidade incorporada pelas novas linguagens musicais e códigos linguísticos construídos culturalmente na relação com
espaços orientados pela comunicação globalizada. Esse mesmo conflito parece não estar posto na dança que funciona como marca
identitária do Charme e como elemento aglutinador das distintas gerações, etnias e gênero. As coreografias são incorporadas pelos
diferentes sujeitos presentes em bailes nos quais é possível “ver os jovens dançando, fazendo os passos que o pessoal antigo faz e
eu acho que a questão da dança, o próprio ambiente por ser... Eu acho que por ser legal de se conviver, isso faz com que esses
jovens acabem entrando nesses espaços”.

6.2 – O Traje como elemento distintivo


Essa nova geração congrega “os novos DJs que estão surgindo agora, no caso os adolescentes DJs que tocam essas
músicas novas atuais do Charme”, assim como os jovens cujos gostos musicais estão relacionados ao convívio com os familiares.
Embora conheça poucos jovens dessa referida geração, Julio acredita que o baile de Charme ainda guarda algumas características,
mesmo que modernizadas, dos bailes antigos e que distinguem seus frequentadores daqueles jovens conhecidos como funkeiros.
A distinção que marca as gerações está não só na escolha das músicas, mas a roupa, o traje ainda funciona como divisor
geracional, pois “muitos desses antigos prezam mais o linho”. Para exemplificar o distanciamento geracional, Julio recorre mais
uma vez à memória emprestada, pois, embora não tenha vivido o glamour dos anos de 1980, ele sabe que o vestuário era
determinante para identificar o autêntico charmeiro. Ter charme era ter estilo. Assim, nos fala de seu tio que ainda conserva os
hábitos, pois “só anda de linho [...] até para ir na padaria ele se arruma todo, cabelo, perfume, tal. Eu acho que essa é a diferença.
Em relação aos jovens, observa que há um “alinhado” reatualizado, de acordo com a moda atual. Ele, por exemplo, procura “ir um
pouco mais alinhado, mas não tanto quanto essas pessoas (os adultos). Eu acho que é um pouco de exagero, mas eu boto uma
roupinha mais voltada para o esporte fino. Eu acho que é assim que os jovens do Charme se vestem”. A visão idealizada do estilo
dos anos oitenta permanece, ainda que ressignificada por outros estilos, na relação do Charme com a marca do bom gosto, do
vestir mais bem elaborado, mais bem cuidado, o que confere aos charmeiros distinção, bom gosto e ainda funciona como marca
identitária assim como reacende a importância da auto estima elevada.
Ainda com relação à distinção entre os estilos e gostos musicais, Julio afirma que ela pode ser observada na “própria
maneira de se arrumar. Eu acho que os Jovens do Charme visam mais a elegância e tal, se arrumar direitinho, trajes mais finos e
no funk eu acho que não. Eles vão mais largados. Eu acho que essa é a diferença. E também na própria visão de mundo mesmo e
em relação ao futuro”. Nesse caso, o gosto musical serve para distinguir diferentes grupos juvenis no interior de uma mesma
classe social. Primo próximo do Charme, o Funk, apesar de sua enorme contribuição para a transformação da linguagem cultural,
ao introduzir diversos elementos que modificam o cenário cultural brasileiro, continua servindo de marca registrada para uma
juventude marcada cotidianamente por processos de exclusão. Ainda que tenha ocupado importantes espaços midiáticos e
rompido barreiras de classe social, étnicas e de gênero, permanece o estigma como distintivo de grupos juvenis relacionados à
violência, às drogas e ao sexo sem controle.
São nos espaços dos bailes que muitos jovens estão fazendo muita besteira e tal, e não vão passar muitas coisas boas [...]
Muitos desses bailes funk estão tendo muitas drogas, bebidas, essas coisas e eu acho que isso não é legal [...] No ambiente
do funk o que mais se houve falar é isso. Eu já presenciei e não sou chegado por causa disso. Por isso é que eu não gosto.

Esse emblema é recuperado sempre que a questão dos jovens violentos, por exemplo, é trazida para a cena, para o
debate. Há generalizações reforçadas nas quais o Funk reaparece como um universo cultural juvenil homogeneizado que parece
simbolizar uma juventude perdida. Parece-me que a fala de Julio contribui para o aprofundamento dessa discussão.

6.3 – Os Projetos
As relações intergeracionais são estabelecidas nos diversos espaços pelos quais o jovem circula. Para muitos, assim
como para Julio, elas são consolidadas no contexto da família estendida conforme se viu acima. Entretanto, é marcante a
importância que ele atribui à sua relação, ao seu convívio com sua mãe. Há um diálogo baseado no respeito, no afeto, na
cordialidade. Apesar de considerar que em alguns aspectos a sua mãe poderia ser mais flexível, pois em alguns momentos acredita
que ela o prive de espaços de autonomia, da liberdade de escolha, Julio assegura que é uma convivência bastante tranquila.
Perguntado a respeito da existência de momentos de conflito ou discordância, ele destaca que isso ocorre no campo das escolhas
relacionadas ao futuro. Mais do que a realização pessoal, sua mãe evidencia a preocupação – que se repete em muitas famílias –
com um futuro estável, livre do fantasma do desemprego. Desse modo, para ela, a carreira militar aparece como a opção mais
apropriada para a garantia dessa tão sonhada estabilidade. Entretanto, se em dado momento, Julio concordava com o projeto de
sua mãe e chegou mesmo a incorporá-lo como seu, foi no convívio com outros adultos que começou a organizar seu pensamento
para a construção de projetos pessoais mais autônomos. A experiência adquirida durante o estágio que ora realiza na justiça
federal assim como a convivência bem sucedida com os funcionários desse setor provocaram alterações consideráveis nos seus
projetos profissionais e que demandam a reorganização de suas ações no presente.

560
Está claro para Julio que o trabalho de DJ não faz parte de seus planos profissionais, muito embora a sua atuação neste
setor proporcione algum rendimento que ajude na satisfação de suas necessidades financeiras mais imediatas. Ser DJ, se hoje pode
proporcionar satisfação pessoal e renda, não está em seus planos como profissão no futuro. Nas palavras de Julio
DJ, para mim, eu vou dizer que é por diversão. Por exemplo, ano que vem (2008) eu acho que vou até dar uma paradinha
para me concentrar mais na questão do vestibular, pré-vestibular, entendeu? Eu não pretendo seguir a carreira de DJ, não,
profissionalmente, eu digo, na profissão mesmo18.

A determinação em alcançar seus objetivos marca a organização de estratégias para que o projeto de ser funcionário
público federal seja concretizado no tempo certo. A experiência profissional contribuiu sobremaneira para a definição de suas
escolhas. Sendo assim, o curso de direito surge como possibilidade de abrir-lhe as portas e fornecer as condições objetivas para
que seu projeto saia do campo das possibilidades. Tanto é que sua vida está estruturada nesse momento para que o que parece
sonho torne-se realidade. Julio tem clareza de que precisa dar um passo de cada vez e os primeiros estão dados. Os seus planos
para este ano envolvem a entrada no curso pré-vestibular, a conclusão de seu estágio profissional e do ensino médio. Em
decorrência disso, o tempo/espaço destinado ao lazer estará restrito ao final de semana, se houver possibilidade. Essa restrição
envolve abrir mão dos trabalhos que venham a surgir para a animação de festas e eventos. Envolve ainda, reduzir o tempo
destinado à pesquisa e montagem das músicas e sequências através da internet, atividade que lhe consome até um dia inteiro.
Julio destaca que, ainda que a experiência de ser DJ não seja determinante para as suas escolhas profissionais, para seus
projetos, foi através dela e na convivência com outros adultos, destacadamente sua mãe e seu padrasto, que pode assimilar valores
fundamentais para a sua vida e que certamente nortearão sua trajetória. Destaca a responsabilidade adquirida no cumprimento da
agenda de trabalho em festas e eventos como a grande transformação em sua vida, uma vez que se considerava “muito
irresponsável mesmo [...] não estava nem aí para a vida”. O compromisso assumido com a atividade de DJ produziu a maturidade
necessária para organizar sua vida pessoal de forma mais autônoma. Essa atividade permitiu maior contato com outros adultos
cuja relação considera fundamental “para criar responsabilidade, mais voltada para isso, entendeu, maturidade, aconselhamentos
quanto a besteiras. Acho que foi exclusivamente para isso”. Ele considera que “muitas coisas ligadas à essa questão, maturidade,
responsabilidade, acho que isso influenciou bastante em mim, no que sou agora”. E quem é o Julio? Responde que
é um garoto que visa um futuro que, em relação à profissão, de não só ajudar a ele, como à própria família. Eu acho que isso
pra mim é prioritário. Acho que sou uma pessoa legal, que gosta de Charme, gosta um pouco dos outros ritmos de música,
mas a base dele é mesmo o Charme e é extrovertido, gosta de dançar, tocar, adora tocar música, está aprendendo agora a
fazer música e gosta por influência da mãe. Tem um gosto fino na questão de roupas, assim, vestimentas, se preocupa em se
vestir bem”.

Embora possua consciência de uma auto-identidade19 bastante elaborada no contexto do mundo do Charme, ele
considera muito difícil falar de si, mesmo o fazendo com certa desenvoltura. Apesar de ser jovem, aos dezoito anos, refere-se aos
outros jovens como se não fizesse parte de sua geração, pois há certo receio em relação à ausência de perspectivas devido à
imaturidade que acredita ser um traço marcante dessa geração. Isso, segundo ele, resultaria em menos responsabilidade e maior
predisposição à transgressão, o que parece reproduzir o discurso de muitos adultos em relação à juventude.

7 – Para algumas conclusões provisórias


Chamo de conclusões provisórias algumas reflexões decorrentes do texto que produzi até aqui, assim como da análise
da entrevista realizada com um jovem e que representa apenas um olhar sobre universos subjetivos, com seus encontros e
desencontros e que me fazem refletir sobre alguns aspectos relativos às questões propostas inicialmente, não tendo, portanto,
qualquer caráter conclusivo. Há um longo caminho a ser percorrido ao encontro de outras subjetividades que me permitam
prosseguir em análises mais consistentes e aprofundadas
As relações intergeracionais podem permitir um exercício de aprendizagem que, se para os adultos significa ao mesmo
tempo, memória e lembrança, para os jovens pode representar aprendizagem dialógica que se encontra no ato de recordar: para
aqueles, recordar de si; para estes, recordar para si, aprender com eles. Nesse sentido, os jovens são a garantia de vida e futuro
para a sociedade, para o grupo – ainda que estes transformados e aqueles transformadores – e essa continuidade tem a sua força,
seu núcleo gerador, na memória coletiva.

18
Vale lembrar que há um projeto de lei para o reconhecimento da carreira em tramitação no Senado Federal, ou seja, ainda não existe a profissão. Sendo assim,
muitos trabalham em condições bastante precárias, insalubres, sem assistência médica e não há um piso salarial específico. Isso faz com que o contratante determine o
valor do cachê que varia de acordo com o local, da região da cidade e do tipo de evento. Nos muitos bailes que frequento, é possível observar que alguns DJs chegam a
trabalhar seis horas por noite em troca de alimentação e do dinheiro da passagem na busca do reconhecimento de seu trabalho e na projeção de seu nome artístico.
19
Para Melucci (2004), a identidade possui aspectos individuais, relacionais e sociais constitutivos. É um processo de progressiva individuação que caminha na
direção da capacidade de o indivíduo interpretar e resolver autonomamente as necessidades colocadas pelo universo simbólico da cultura, que vai aos poucos sendo
interiorizado.

561
No interior das relações de parentesco, da socialização primária – aspectos marcantes observados durante a entrevista
com Julio –, existe a memória coletiva ressignificada constantemente, dentre outros marcadores identitários, pela forte presença
da black music nos espaços da casa, das festas e dos bailes. A memória coletiva é apropriada de forma particular pelos distintos
sujeitos de acordo com diversos fatos dentre os quais eu destaco as diferentes experiências vivenciadas em outros espaços e
relações assim como os distintos capitais culturais e simbólicos. Para além dos laços afetivos decorrentes do processo de
socialização primária, são os espaços relacionados à cultura charmeira que possibilitam a Julio vivenciar experiências
compartilhadas com outros jovens, mas, principalmente, com outros adultos. A despeito da recorrente afirmação sobre a relação
que aproxima os jovens dos espaços performáticos bem como do imediatismo que lhes é imputado como característica geracional
observo que Julio está direcionado para outra proposta que não o desqualifica como jovem no seu tempo. Apenas rompe com
algumas adjetivações homogeneizadoras da juventude. No contexto de sua espetacularização e transformação em produto de
consumo, a juventude produzida pelos meios midiáticos e pela indústria cultural não comporta uma totalidade geracional, uma
unidade de geração, ao contrário do que esses meios nos fazem crer. Há jovens, como é o caso de Julio, que, apesar das incertezas
frente ao futuro, continuam cotidianamente (re)construindo seus projetos ainda que esse processo ocorra em contextos marcados
pela insegurança, pela incerteza, pela solidão e pelo risco iminente do fracasso. Há um futuro que está sendo construído no
presente, orientado também pelas relações intergeracionais e constantemente reorientado não só por essas mesmas relações como
também, e principalmente, pelas distintas experiências vivenciadas em sua trajetória. Viver novas experiências é transformar o
presente e torná-lo pleno de possibilidades. É transformar o passado a cada vez que ele é visitado pela memória de experiências
feita. É, por fim, produzir novos sentidos e significados que reconfiguram a dinamicidade do projeto e a continuidade da vida
repleta de riscos e incertezas.
Em diversos aspectos de sua formação e de suas marcas identitárias Julio poderia ser caracterizado como um tipo de
jovem que organiza suas ações e projetos em contextos de continuidade das relações intergeracionais. É um jovem que assimila
com certa tranquilidade os valores e normas decorrentes dessa relação, o que me levou apressadamente a considerá-lo
perfeitamente enquadrado na perspectiva de aceitar a forma de educação praticada pela sua mãe. Entretanto, no que diz respeito à
cultura musical, por conta do acesso às novas tecnologias disponíveis e das trocas intergeracionais que produzem experiências
próprias de sua geração, ele pode ser considerado como um jovem hibridizador. Sempre aberto à negociação usa esses e outros
referentes simbólicos de maneira bastante particular.
Repleto de traços e elementos da tradição moderna o Charme não se caracteriza por um legado de experiências
acabadas, mas por um movimento cultural em constante transformação. Ainda que haja elementos constitutivos que permaneçam
há outros que são transformados pela presença de jovens que incorporam de forma distinta novos elementos culturais presentes e
marcadores da geração juvenil. Embora Julio pareça um tipo de jovem com forte adesão à cultura charmeira como resultado da
apropriação de traços marcantes do seu contexto familiar, ele apresenta características e interesses distintos de seus pais e que
sinalizam não só uma das marcas de sua identidade bem como a possibilidade de transformação dessa mesma cultura. Ele é capaz
de apresentar sequências musicais de flash back entremeadas com o que há de mais recente no universo musical do hip-hop e que
é resultado de suas pesquisas na internet do uso de programas de computador que permitem mixar e inserir diferentes elementos
de várias músicas no rearranjo de uma nova versão produzida com a sua marca pessoal. As novas versões personalizadas
produzem significativas alterações na musicalidade charmeira e marcam a presença da juventude como geração nessa
continuidade, às vezes transformada, do Charme. Assim, distintas experiências trazidas para o campo da cultura podem contribuir
para a continuidade dessa mesma cultura como processo em constante transformação, como construção dialógica – e lugar de
encontro – entre distintas gerações marcada pelo respeito à diferença de contextos espaços-temporais.

Referências Bibliográficas
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Sociabilidades Juvenis em Teresina: o Trabalho de jovens no Lazer


Lila Cristina Xavier Luz
Universidade Federal do Piauí/Núcleo de Pesquisa sobre Criança Adolescentes e Jovens
[email protected]

Sayonara Lima
Universidade Federal do Piauí - UFPI
[email protected]

Tâmara Oliveira
Universidade Federal do Piauí - UFPI
[email protected]

Violeta Noleto
Universidade Federal do Piauí - UFPI
[email protected]

Resumo: O trabalho tem por finalidade discutir a relação entre juventude, trabalho e lazer na cidade de Teresina, tendo como referência análise de
entrevistas e observações acerca da prática do trabalho realizado por jovens em espaços de lazer para jovens. Portanto, pretende-se analisar e
compreender as experiências de jovens que tem por finalidade, em seu trabalho, propiciar lazer a outros jovens. Além disso, conhecer suas
práticas de lazer, saber se no momento do trabalho eles experimentam o lazer e os motivos da escolha do mesmo como fonte de renda. Esse
trabalho de investigação é desenvolvido por jovens pesquisadoras, o que torna o olhar sobre essa relação ainda mais interessante. As reflexões
aqui desenvolvidas fazem parte do subprojeto “Os lazeres nas sociabilidades juvenis”, o qual está inserido no projeto “A condição juvenil em
Teresina” desenvolvido pelo NUPEC - Núcleo de Pesquisa e Estudos de Crianças e Adolescente, da Universidade Federal do Piauí-UFPI, com
financiamento do CNPq-Conselho Nacional de Pesquisa.

Pontuando alguns conceitos


No Brasil, nas duas últimas décadas, cresceram significativamente as reflexões sobre juventude. Com distintos
enfoques, diferentes autores das ciências sociais vêm abordando uma série de temas relacionados ao universo juvenil, buscando,
cada vez mais, ampliar o conhecimento acerca da complexidade presente neste universo. Entre estas reflexões identificamos um
esforço para compreender questões relacionadas à violência, aos coletivos juvenis, à educação, ao lazer e ao trabalho.
Mesmo assim, a complexidade do universo juvenil e a dificuldade de definir o que seja juventude, tem levado a uma
séria de interpretações equivocadas acerca das práticas dos jovens na sociedade, fato que torna ainda mais importante os esforços
empreendidos para evidenciar os modos de vida juvenis. O trabalho aqui apresentado insere-se nesta preocupação, visto ter como
objetivo compreender as formas de trabalho de jovens em espaços de lazer para jovens em Teresina. Além disto, o mesmo é

563
apenas parte do subprojeto “Lazeres e sociabilidade juvenil em Teresina”. Este último integra o projeto de pesquisa “A Condição
Juvenil em Teresina”, desenvolvido com recursos do Conselho Nacional de Pesquisa-CNPq.
Tomando como referência as reflexões de Abramo (1997), Pais (2001) e Carrano (2003), trabalhamos como a
compreensão de juventude como construção social. Portanto, com a idéia de juventudes, considerando a dimensão histórica, pois
consideramos que as juventudes só podem ser compreendidas e analisadas tendo em vista os contextos em que os jovens vivem
suas experiências. Assim, compartilhamos também, com as idéias presentes nas reflexões destes autores de que existem várias
formas de falar em Juventude e de viver a mesma, pois essa é diversa e heterogênea. Portanto, a juventude deve ser observada e
analisada buscando apreender suas complexidades.
Contribuindo com a reflexão sobre o estudo da temática, Carrano (2003) afirma que a juventude transformada em
símbolo é também um estilo que ultrapassa as definições de idade. Desse modo, a juventude aparece como um estilo, uma cultura
em que se efetiva a formação da identidade juvenil, pois, nesta fase de vida, os sujeitos compartilham espaços sociais,
dificuldades, prolongando a dependência familiar. Desta forma, espaços sociais, como o lazer e o trabalho, são exemplos que
ajudam na formação das identidades juvenis. Nesse estudo, buscamos estabelecer uma relação entre duas dimensões do universo
juvenil: o trabalho e o lazer, considerando-as como importantes para a sociabilidade juvenil.
Em relação à categoria trabalho, temos por base as reflexões de Marx (1978), para quem o trabalho é a essência do
homem, pois é por meio deste que o homem relaciona-se com a natureza e a transforma em bens que vão satisfazer suas
necessidades sociais. Para o autor, o trabalho não é uma atividade isolada, pois ao produzirmos entramos em contato uns com os
outros e construímos relações sociais. A partir do processo produtivo são construídos não apenas o objeto de consumo, mas
também o modo de consumo, e não apenas a forma objetiva, mas também subjetiva. Logo, é por meio das diferentes formas de
produzir que criamos nossas relações.
Também, nas duas últimas décadas, esta esfera da vida social tem sido bastante discutida e, no que se refere ao universo
juvenil, alguns estudos têm evidenciado uma série de novas formas de inserção dos jovens no mundo do trabalho. Na sua maioria,
não são inserções formais, porém expressam novos espaços e atividades de trabalho que os jovens estão desenvolvendo para
ganhar a vida. Em geral, são atividades de trabalho exercidas no espaço doméstico, cujo auxiliar primordial são as máquinas
(computador).
Nesse contexto, a divisão do trabalho, imposta pelo sistema capitalista de produção, ao separar as atividades intelectuais
e manuais, ao mesmo tempo, impõe novas relações de trabalho que, de um modo geral, dificultam a inserção de jovens, por fazer-
lhes exigências que os mesmos não podem cumprir por se encontrarem em situação de “iniciação” ao trabalho, se considerado a
maioria dos pleiteantes a um posto de trabalho formal.
A discussão de Marx de que o trabalho tem fundamental importância na sociabilidade fundamentou muitas
interpretações equivocadas sobre outras esferas da vida social na modernidade, fazendo com que estas fossem consideradas
secundárias em relação ao mesmo. Esta idéia só se sustenta quando o trabalho adquire sinônimo de emprego. Desta forma, neste
trabalho, tratando do universo juvenil, o lazer, não será compreendido como uma dimensão secundária em relação ao trabalho,
pois, concordando com Carrano (2003) o lazer constitui um campo social com relativa autonomia frente ao tempo de trabalho.
Trazendo a juventude para a discussão de trabalho e lazer, compreendemos que as atividades dos jovens podem ser
associadas à formação da identidade juvenil, ocupando parte considerável do seu tempo livre. Para Elias e Dunning (2000), o
tempo livre “[...] é todo o tempo liberto das ocupações de trabalho” (p 7).
É interessante destacar o significado do tempo livre porque o lazer é muitas vezes confundido com o mesmo. No
entanto, neste trabalho concordamos com Elias e Dunning (2000) quando afirmam que o lazer é apenas uma das esferas do tempo
livre, cuja importância reside na busca de excitação e na construção de sociabilidade.
Nesse sentido, podemos afirmar que todas as atividades de lazer são realizadas durante o tempo livre, mas nem todo
tempo livre é dedicado apenas ao lazer. Elias e Dunning (2000), definem cinco esferas diferentes de tempo livre, cada qual
representando uma categoria. São estas as categorias: trabalho privado e administração familiar, referente à maioria das atividades
da família; repouso: devaneios, não fazer nada e estar sentado; provimento das necessidades biológicas, como beber, comer,
defecar, fazer amor, dormir, etc.; sociabilidade, referente a atividades como visitar os amigos, ir a um bar ou clube; por fim, as
atividades miméticas ou jogo, atividades de lazer como ir ao teatro, ao cinema, dançar, ver televisão, pescar, dentre outras.
Desta forma, no lazer, os jovens buscam possibilidades de estabelecer relações de sociabilidades e satisfação pessoal.
Dançar, jogar qualquer modalidade, assistir a filmes, caçar, dentre outros atividades, são atividades de lazer realizadas como parte
do tempo livre da ocupação do trabalho, que proporcionam descontração aos jovens e favorece a convivência e integração com
grupos sociais. São práticas desenvolvidas que proporcionam a saída da rotina, as expressões de sentimentos que estão ausentes
no cotidiano, como as atividades vinculadas à família, à escola, ao trabalho, de modo, a fugir das normas socialmente
estabelecidas, já que, segundo destaca Elias e Dunning (2000), o indivíduo se sujeita a um autocontrole que inibe a explosão dos
seus sentimentos. As pessoas ao se considerarem vigiadas, produzem um controle de suas ações, de modo, que as mesmas não
venham atrapalhar o andamento da organização social. Assim, o lazer é o momento de suspender as tensões impostas pela
sociedade.

564
A pesquisa de campo: transitando pelos espaços de lazer
Para apreendermos as práticas de trabalho dos jovens em espaços de lazer para jovens em Teresina, foi preciso
recorremos à observação participante em espaços de lazer da cidade, à iconografia, tendo por referência o registro fotográfico,
bem como os panfletos elaborados por estes espaços, para divulgar suas atrações. Para enriquecer as informações acerca do que
pensam os jovens quando o assunto é lazer, recorremos, também, ao espaço virtual. Valemo-nos de scraps, os famosos recados
que, em geral, são enviados por um site de relacionamentos, o orkut bastante acessado pelos jovens, para identificar o estava
“rolando” na noite da cidade. Além disto, realizamos entrevistas com jovens que trabalham em espaços com vistas a compreender
como e que atividades são desenvolvidas quando o trabalho é experimentado nesses espaços.
A partir daí identificamos que os espaços de lazer em Teresina aumentaram e, consequentemente, que aumentou,
também, o número de jovens trabalhando nos mesmos, permitindo-nos afirmar que mais jovens estão produzir lazer para outros
jovens na cidade.
Durante o trânsito por estes espaços, ao mesmo tempo em que observávamos como o trabalho era desenvolvido, íamos
abordando os jovens para saber sobre suas possibilidades e interesse em contribuir com nossa investigação.
Dentre os jovens abordados, escolhemos para fundamentar as reflexões aqui desenvolvidas, o relato das experiências de
um jovem de vinte e um anos, que trabalha com a realização de eventos na cidade. Seu processo de trabalha nesta atividade,
consiste na divulgação, assessoria e produção de festas e eventos culturais, sendo a divulgação realizada por meio de scraps
enviados pelo Orkut. Ao iniciamos a entrevista, solicitamos que ele sugerisse um codinome já que íamos utilizar suas experiências
neste artigo. O codinome escolhido por ele foi Serj Tankian. Sua escolha deu-se em virtude de este ser vocalista da banda de rock
Sistem Of Down,banda esta que o entrevistado aprecia bastante. A seguir apresentamos algumas reflexões até aqui possíveis de
serem apresentadas.

O trabalho no lazer: uma separação tênue


Em geral, os jovens teresinenses que trabalham em espaços de lazer, são inseridos de forma precária, se consideramos
que estes são desenvolvidos na informalidade. Esta informalidade decorre, sobretudo, da grande concorrência e da falta de
qualificação profissional dos mesmos para o ingresso em um mercado de trabalho tão competitivo. Por isto, esses jovens
aventuram-se nas incertezas do trabalho precário procurando modos de inserção profissional e de ganhar dinheiro para suprirem,
minimamente, suas necessidades básicas.
Na nossa compreensão, de certo modo, a experiência de Serj Tankian na atividade de organização de eventos, enquadra-
se nesta perspectiva, pois, embora ele esteja se qualificando para exercer a carreira de advogado, seu trabalho atual é realizado na
informalidade quanto à falta de relações formais de trabalho. Além disto, é um trabalho realizado em qualquer hora e em toda
hora. Mesmo sendo por tarefa, Serj Tankian relatou trabalhar em casa, na rua, visto ter o próprio quarto como espaço de trabalho e
o computador e o celular como instrumentos de trabalho. Entretanto, vejamos como e o que o jovem entrevistado disse sobre sua
experiência.
Ao ser indagado sobre suas relações com os sujeitos que contratam seu trabalho, Serj Tankian afirmou: “[...] é uma
coisa muito informal, porque a gente tem aquele contato direto, principalmente com os daqui. É, dificilmente tem o contrato em
si, depois eu recebo, ou às vezes antes [referindo-se ao pagamento]”. A precariedade, na sua relação com os empresários que o
contratam, é evidente, uma vez que não existe o contrato legal assinado por ambas as partes. Contudo, apesar de ter se expressado
desta forma, Serj Tankian não reconhece seu trabalho como precário, pois em nenhum momento destacou a ausência de contrato
como elemento “negativo” para a realização do que faz. Receber antes ou depois do trabalho feito, não importa.
Durante a entrevista, o jovem Serj Tankian afirmou também que encara seu trabalho de forma séria, até porque é essa
sua fonte de renda. Ele gosta do que faz e pretende continuar nessa atividade por acreditar que trabalhar com lazer em Teresina é
algo promissor. Conforme destacamos assim, como o crescimento dos espaços de lazer na cidade, sua afirmação ganha ainda mais
consistência. Ao relatar com quem trabalha, Serj Tankian apresentou informações sobre a diversificação dos points da cidade,
revelando o grande investimento que os empresários têm feito para atender a públicos diferenciados. Serj Tankian, como bom
conhecedor de estilos, é contratado para transitar, pensar atividades e estratégias de atividades para um público cada vez mais
diversificado.
Embora trabalhando em contexto diferente, Portugal, mas tratando do trabalho de jovens, Pais (2000), desenvolve uma
série de reflexões que nos ajuda a compreender, na contemporaneidade, as diferentes formas de inserção dos jovens no mundo do
trabalho: “Na luta pela sobrevivência, inventam-se [os jovens] formas atípicas de ganhar dinheiro, não necessariamente associadas
a ‘identidades negativas’” (p 16). Esta afirmação do autor, corrobora para a análise que desenvolvemos sobre a experiência do
jovem entrevistado, pois apesar de ser um trabalho precário, não está associado a identidades negativas, comumente encontradas
em alguns trabalhos desenvolvidos por jovens, como o tráfico de drogas, a prostituição, entre outros.
Outra dimensão importante do trabalho de Serj Tankin é o grande número de atividades realizadas por ele. Em seu
trabalho realiza atividades de pesquisa sobre mercado de consumo de lazer, tendo como instrumento espaço a comunidades no
orkut, em que os grupos de pessoas com afinidade em algum tema, banda, estilo musical, livros, filmes entre outros assuntos são

565
provocadas por seus scraps, para ir aos eventos organizados por ele. Ou então, transita noite a dentro, pelas festas e eventos da
cidade, para realizar pesquisas, por meio da observação e contatos com outros jovens para sondar o que estes gostariam de
experimentar como lazer. Estas pesquisas permitem ao jovem entrevistado conhecer qual tipo de público frequenta um
determinado lugar, que tipo de público alguma banda atrai, enfim conhecer os lugares e o quê o público teresinense gosta de fazer
nos momentos de lazer, em especial os jovens.
Além da pesquisa e a partir dela, Serj Tankin faz as divulgações dos eventos na cidade por meio dos scraps. Utiliza
também na divulgação, mas raramente, os panfletos, os quais são folhetos distribuídos em diferentes espaços da cidade, com vista
à socialização de informações sobre os acontecimentos existentes. Para ele, esta técnica é considerada, arcaica e bem menos
eficiente que os scraps, porque polui a cidade.
Após a divulgação, o jovem também realiza assessoria no momento das festas que divulgou. Em geral, suas atividades
terminam aqui. No entanto Serj Tankian também produz festas. Quando isso acontece o número de atividades é ainda maior.
Além das já citadas, cabe a ele pensar na estrutura da festa, estando dentre as atividades, aquelas de definição do nome da festa,
do local de realização da mesma, definição das bandas, Djs e, organizá-las.
Outro aspecto importante diz respeito aos instrumentos utilizados por esse jovem trabalhador: a Internet, o sistema que
captura as pessoas nas comunidades do orkut que permite o envio de recados para as mesmas, panfletos, o computador. Conforme
destacado, o jovem utiliza esses instrumentos para pesquisa e divulgação. Atualmente Serj Tankian possui seis computadores e o
seu local de trabalho é o seu quarto. Também utiliza as festas, esses espaços amparam a pesquisa de opinião e a assessoria ao
trabalho de organização.

Considerações finais
A entrevista com Serj Tankian permitiu-nos apresentar um exemplo peculiar de não separação entre lazer e trabalho e
entre lazer e vida cotidiana. A partir das experiências do nosso entrevistado é possível afirmar que existem múltiplas dimensões
de trabalho no lazer, dentre estas a aqui destacada. Além disto, permite afirma que o trabalho e o lazer encontram-se
completamente entrelaçados no cotidiano deste jovem, conforme destacou: “Eu me divirto trabalhando e trabalho me divertindo”.
Quando o indagamos sobre seu lazer, o mesmo afirmou que se diverte nas festas que produz, assessora ou divulga e acrescentou:
“Eu vou para os lugares e observo o público até para incrementar meu trabalho, entendeu?” E acrescentou: “É uma coisa
interessante e também me divirto nos lugares. Uno o útil ao agradável”.
Tal afirmação chamou-nos atenção, porque como já foi discutido anteriormente que, no cotidiano existe certa idéia de
polarização entre lazer e trabalho e quando há uma relação o lazer é colocado como inferior ou acessório ao trabalho. O lazer
nessa relação aparece associado à preguiça ou apenas repositor de energia para ser gasta no trabalho. Nessa linha de pensamento o
trabalho é que tem valor, ou melhor, produz valor. Entretanto compartilhamos com a idéia de Fortuna (1995), que o mundo do
lazer não é um mundo separado, mas contíguo ao mundo cotidiano do trabalho e da produção. Os sujeitos inserem-se em uma ou
em outra dimensão, livre e insensivelmente, pois ambas esferas influem e reflui uma na outra.
Na vida cotidiana, lazer e trabalho não são dimensões polarizadas, não estão separadas, mas se encontram, se perpassam
e influem diretamente na construção das sociabilidades, tendo cada uma sua importância. Assim, recorrendo a Bottomore apud
Oliveira (2000), “O trabalho e o lazer não podem ser dissociados um do outro, especialmente em sua influência sobre as
atividades sociais do indivíduo” (p 47).
Por fim, a partir das leituras, do material iconográfico, da observação, podemos concluir este breve texto, que ocorreu
um aumento dos espaços de lazer em Teresina, proporcionando, o crescimento do número de jovens trabalhando nos espaços de
lazer para jovens e a diversidade de atividades realizadas por eles, desde garçons, dançarinos, recepcionistas, seguranças até a
atividade desenvolvida por Serj Tankian, que produz e divulga eventos.

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________.(2001). Trabalho Precário In Ganchos, Tachos e Biscates.Lisboa: Âmbar, (pp.15-64).

Pescando histórias à beira mar: um estudo intergeracional


Adélia Augusta Souto de Oliveira
Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Heliane de Almeida Lins Leitão


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Daniel Santos Libardi


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Maria Natália Rodrigues


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Lívia Rocha Machado Levi


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Resumo: Relata os estudos intergeracionais desenvolvidos numa comunidade litorânea com forte impacto psicossocial no cotidiano de seus
moradores graças à invasão do turismo de massa no final da década de 70 no litoral do Nordeste brasileiro. Apresenta o estudo com a geração dos
moradores mais antigos por meio de conversas sobre a infância no lugar com ênfase aos contos e lendas que lhes foram transmitidos. Focaliza
aspectos teóricos do pertencimento territorial na constituição da identidade social na perspectiva sócio-histórico-cultural e a história oral, a
produção de desenhos e de fotos enquanto instrumentos na coleta de dados. O diário de campo relata as observações naturalistas em ambiente
público. Os resultados demonstram a significativa ruptura com os valores culturais e referenciais identitários baseados na atividade produtiva da
pesca, permitindo a experiência de desenraizamento a partir da extinção das tradições, tornando os nativos estrangeiros em sua própria terra. Na
análise das singularidades desse processo, percebe-se a tessitura das contradições, dos enfrentamentos, das resistências, que geram, por sua vez,
sofrimento ético-político. Evidencia da importância da preservação de espaços físicos como eliciador na rememoração. Assim se apresentam as
imagens representativas do passado nas ainda existentes “ruínas do leprosário”; caracterizam o lugar no passado enquanto deserto, sem casas e
raras pessoas. O ato de contar e inventar histórias são atividades dos avós e mantidos pelo hábito de consertar rede e de “jogar conversa fora” nas
calçadas da comunidade.

Contextualizando a problemática
Nosso trabalho se insere na discussão acerca dos processos de constituição da subjetividade em contextos sócio-
histórico-culturais de comunidades litorâneas em constante transformação devido à implantação da indústria do turismo de massa.
Os estudos de Oliveira (1998; 2002; 2005) demonstram a significativa ruptura com os valores culturais e referenciais identitários
baseados na atividade produtiva da pesca (Sawaia, 1995) e são, ainda, apresentados enquanto uma reedição do processo de
colonização brasileira, apoiados nas análises de Galeano (1979) e Todorov (1999). Dar religião e retirar riqueza é a marca
motivadora das explorações colonialistas em nosso continente. Esse processo permite a experiência de desenraizamento a partir da
extinção das tradições e torna os nativos estrangeiros em sua própria terra. Na análise das singularidades desse processo, percebe-
se a tessitura das contradições, dos enfrentamentos, das resistências, que geram, por sua vez, sofrimento ético-político (Sawaia,
1994).
Por outro lado, uma recente pesquisa (Leitão & Oliveira, 2007) evidencia aspectos marcados pela manutenção da
tradição, em especial o valor atribuído ao trabalho paterno como também demonstra indícios de ruptura vinculados à questão de
gênero e idade, ou seja, as mães reivindicam maior envolvimento afetivo dos pais como também as crianças desejam relações
não-hierárquicas. O trabalho mantém-se como valor, no entanto, aliado a escola e a aprendizagem formal. Preocupante foi o
indício da dificuldade em planejar o futuro por parte das gerações mais antigas.
Esses dados foram também confirmados pela pesquisa (Oliveira & Leitão, 2007) na qual verificamos que as crianças
referem pouco conhecimento sobre os contos e lendas relembradas pela geração mais antiga. Os sentidos expressos pela geração
mais nova, em relação aos contos e lendas rememorados por seus avós, são de algo que existiu antigamente e que não existe mais.

567
Os medos ancorados em personagens e “visagens” próprios das lendas têm seu lugar ocupado atualmente pelo medo de situações
reais. As crianças relatam sobre riscos que lhes acometem diariamente e o tempo-espaço é exíguo para imaginá-los. Essa parece
aliar-se às outras formas de desenraizamento apontadas por Benjamim (1996) de retirada da humanidade do homem, que se
materializa retirando a fertilidade do lugar através da segregação espacial, poluição do ambiente, retalhamento do espaço e
isolamento das pessoas. Ao retirar-se o modo de produção e a atividade da pesca foi sendo impossibilitada e desvalorizada, os
lugares encontram-se com a memória coletiva destruída.
Oliveira (2005) verifica que a atividade da pesca não é mais identificatória, mas sim a pertinência de nascer na
localidade, ou seja, ser nativo da localidade é vivido com orgulho pelas crianças, isso sim as identifica e as diferencia das demais
pessoas, que lhes autoriza e legitima algumas atividades, tais como pular muros, entrar nos sítios e pegar manga.
No entanto, as crianças estão desenraizando-se no próprio local de morada, sendo excluídas do trabalho
tradicionalmente desejado e apreciado pela população local, e esse modo de segregação espacial e temporal é vivida de forma
cruel e desagregadora (Oliveira, 2005). Apesar de ainda disporem da memória de um tempo que não viveram - mas os pais e os
avós, sim - os encontros intergeracionais estão se tornando cada vez mais escassos em virtude da urbanização, do turismo, das
novas tecnologias e novas formas de diversão e trabalho. Ser nativo do lugar é o que ainda se mantém com mais vigor nos afetos,
desejos e ações das crianças (Oliveira, 2007).
Em um desses estudos com abordagem intergeracional (Oliveira, 1998) os moradores apontam que as principais
desvantagens recairiam sobre a geração de crianças que nasceram com a decadência (Martins, 2000) dessa indústria. Perderam a
liberdade e fartura, características iniciais da localidade, bem como a possibilidade de ganhar dinheiro com a chegada da indústria,
possibilitada a geração que estava jovem neste período. Receberam como herança destruição humano-ambiental, violência,
insegurança e esperança (Oliveira, 2005) de transformar o lugar por meio da aquisição do conhecimento formal, já que o
conhecimento passado de pai para filho, do senso-comum pouca valia tem hoje no cotidiano do lugar.

Abordando questões sobre o método


A categoria pertencimento e sua vinculação com o lugar enquanto concretude tem sido um debate pertinente. Augè
(1994) considera que é no espaço cotidiano que se tem à base da reprodução da vida, e nele deve ser analisado a tríade sujeito-
identidade-lugar, sem, no entanto, negar-se a totalidade que a perpassa. É nesse espaço que se dá a experiência, a vida, e o
processo de significado se materializa ─ espaço compreendido como universal e, quando particularizado nas relações
intersubjetivas, estabelecem-se às configurações dos sentidos sobre o lugar e o vivido nele.
Dessa forma, a análise da experiência no lugar traz consigo a noção de construção das relações face-a-face e das
anônimas, que se realizam no plano do vivido. Conforme Sawaia (1995), o sentimento de pertencer é marcado pela presença do
outro que adquire sentido na intersubjetividade.
Apesar da evidência da consequência imediata e da descaracterização, possível graças à vulnerabilidade dos moradores
nativos, em especial as crianças e adolescentes, esses se mostraram protagonistas sociais (Oliveira, 2005) e com a garantia do
direito da criança de ser protegida, conforme a Declaração de Genebra de 1924.
Nessa medida, os aspectos metodológicos apontam para uma opção no sentido da escolha do ponto de vista, na
perspectiva intergeracional, dos nativos mais antigos, mais jovens e das crianças, para mostrar sua condição de sujeito do processo
social e histórico. Assim como se devastam florestas, devastam-se ou mutilam-se grupos sociais, suprime-se modos de pensar,
viver, de saberes, contribuindo para a desumanização que se vive. Optar pelas crianças como portadores da crítica social (Martins,
1993) caminha na mesma direção do papel que se atribui à Psicologia Social, construindo um conhecimento a serviço da
humanidade.
As experiências ocorrem em determinados lugares e, na nossa pesquisa, o lugar que é re-vivido e re-memorado passou
por transformações resultado de ações exploratórias que ignoram o ritmo local e imprimem novo ritmo, impõem nova identidade,
nova atividade, e o que era lugar de existir de uma comunidade, transforma-se em não lugar, utilizando-se da concepção de Augè
(1994).
Por último, as considerações teóricas de Vigotski (1998) defendem o estudo do psiquismo como argamassa social e
considera os mitos como resultante da atividade psíquica. Nesta pesquisa, as lembranças, em especial, os contos e lendas, se
inserem para melhor compreender o processo de constituição psicossocial.

Discutindo resultados
Oliveira e Leitão (2007) em recente estudo evidenciam a permanência dos contos e lendas na memória psicossocial da
geração mais antiga. O “Gritador”, o “Fala-fala” e os “Cantores na Madrugada” enfatizam fenômenos sonoros em contraposição
ao silêncio de um lugar pouco habitado. O “Fogo-corredor”, a “Pedra da Moça” e a “Comadre-florzinha” marcam os perigos
provenientes do desejo e da figura feminina. O “Cavalo Encantado”, o “Gritador” das dunas do cavalo-russo e os “Pescadores” à

568
deriva evidenciam personagens que os protegem dos males da cobiça e dos poderes da natureza. Esses indicadores atendem aos
critérios de referência ao lugar e possibilidade de análise em termos do subtexto das unidades de sentido experienciados. As
recordações sobre os contos e lendas descrevem um ambiente pouco explorado pelo homem. A existência rara do ser humano no
local e de sons incompreensíveis ganha destaque. A presença de criaturas perigosas, ameaçadoras e, ao mesmo tempo protetoras,
são registros importantes. Nesse sentido, acompanhar a história da localidade aprofundando o conhecimento mítico e referencial
nos parece fundamental, principalmente, quando se defende a constituição sócio-histórica do psiquismo (Vigotski, 1998), na qual
as relações intersubjetivas (Pino, 1995), que ocorrem no cotidiano, são base da constituição de si e do outro, e, extensivamente, a
construção de sua história e da história local.
Nesse sentido, Cascudo (2002) apresenta, como fortes influências das histórias que povoam o Nordeste, os elementos da
cultura branca e colonial portuguesa, seguida da indígena e africana. Da geográfica, considerar a regionalização e as
características físicas surgidas nas narrativas, pois conforme Grimal (1982), esses são formulados ao acaso e evoluem segundo
condições históricas e étnicas, contendo lembranças e testemunhos que poderiam ter-se perdido. As lendas passam por diferentes
períodos, e cada geração vai-lhes imprimindo elementos.
Os lugares de encontro da comunidade estão reduzidos. A praia, o mar e as ruas foram “privatizados”, e o movimento
invertido do ponto de vista da tradição do local, que vivia o espaço como algo em um comum. O sentimento de intimidade do
espaço da casa não existia, estava preenchido totalmente como espaço público, em especial pela praia e pelas ruas, que eram os
lugares por excelência da vida e da referência identitária. Esses lugares de encontro não existem mais. As Três Moitas e a
Igrejinha do Sobrado, só para citar dois exemplos, embora não existam mais, povoam o universo das lembranças.
As ruínas do Leprosário ainda resistem materialmente e mostram sua força de sentido, quando ressurgem por meio dos
desenhos (Oliveira, 2005). Os nomes dos lugares de antigamente ainda são mantidos, a Pedra-do-Cabeço, por exemplo, conhecida
como “piscina natural” pelas agências de turismo e pelos turistas, continua na linguagem nativa das crianças permeada pela
recordação do passado dos mais antigos. Indicam permanência mantida na memória e transmitida pelo sentimento em comum
com os pais, compartilhada em uma co-emoção, como propõe Vigotski (1998), ou seja, apesar de não terem experenciado o fato,
as crianças se sentem implicadas pela experiência do outro.
Nesse sentido, afirma-se que o processo ocorre por meio daquele que permaneceu no lugar e tem a possibilidade da
recordação da experiência pela memória social, garantido pelo atravessamento do elo intergeracional, diferentemente daqueles
que se afastam não só do lugar, mas das gerações anteriores. Dessa forma, as crianças continuam com a recordação de um passado
que não viveram, mas que lhes é emocionadamente contado e perpassa a memória, a imaginação e o mundo. Assim, pode ser o
sentido memorioso geracional emocionado, diferente do significado geracional fossilizado, o qual aparece de forma hegemônica e
existe por meio da tradição apenas. O sentido memorioso geracional é uma co-emoção mediada pela memória e é fruto da
implicação afetiva não só fruto do relato daquilo que não se viveu. Assim, a experiência vivida é fundamental para a compreensão
do processo.
O ato de contar, recontar, inventar histórias apresenta indícios de similaridade na maioria das falas dos mais antigos. A
atividade da pesca que também constitui a identidade conjuntamente com o contexto de imersão na natureza, em especial o mar
auxilia a manutenção do prosear como um hábito do cotidiano da comunidade. O fato relativo ao conteúdo das histórias ser
verdadeiro ou inventado não tem muita importância. Mesmo para os mais descrentes se apresenta um pequeno indício de
possibilidade da existência desses acontecimentos aliados ao sentimento de medo, este sim responsável para se criar ou viver
“visagens”. De uma forma ou de outra, os contos e lendas existem para lhes dizer (imprimindo medo) o que se deve ou não fazer.
Medo esse que, comparado aos perigos reais da atualidade, é menosprezado. O tempo de inventar e contar histórias, prosear
sentado à porta de casa vem sendo substituído pelos programas de televisão, pelas atividades da escola, pela diminuição de espaço
público e pelo temor de estarem nas ruas.
Os contos são registros orais e, em nosso estudo, são os avós os responsáveis por esta transmissão. Os contos, por sua
vez, desde as sociedades agrárias serviam para transmitir oralmente valores e saberes sociais e, ainda hoje, auxiliam na percepção
do mundo, tomando função de suportes metafóricos para a construção simbólica desse mundo. Nesse sentido, a magia do conto
está no próprio ato de contar e recontar. Cuinenier (apud Jean, 1990) destaca que um conto para ser vivo e compreendido precisa
amplamente da voz e do gesto, mesmo que metamorfoses se revelem não só dos personagens das histórias como naqueles que
escutam, como tão bem nos demonstraram as crianças, e naqueles que narram uma história. A transmissão oral dos contos, além
de transmitir saberes e fazeres insere o individuo em um contexto sócio-cultural auxiliando no processo de simbolização.
Traça (1998) aponta em seu estudo o lugar que os contos ocupam junto aos moradores de comunidade e evidencia a
força da escolha dos contadores de história a fim de realizarem a aprendizagem. Nessa mesma direção, Docampo (1999) destaca a
não dúvida necessária do narrado e a inserção do ouvinte na posição narrativa. Já Benjamim (1994) destaca que os contos são
narrados como acontecimentos reais, se não ao narrador a alguém que lhe transmitiu. No sentido da compreensão desse fenômeno
na contemporaneidade que estão dirigidos nossos esforços.
Em síntese, os encontros para as conversas, do ponto de vista do conteúdo apresentado, nos possibilitaram reconhecer e
reinterpretar os contos e lendas “as visagens” da localidade que ainda persistem na memória dos mais antigos e naqueles jovens

569
que participam do cotidiano do lugar, da atividade da pesca e do sentar a sombra da amendoeira para consertar redes e conversar.
Por outro lado, do ponto de vista metodológico evidenciou os limites e as potencialidades de estudo que investem na pesquisa
qualitativa e buscam coletar os dados no ambiente mais próximo possível às condições em que o fenômeno se apresenta. As
conversas têm se reiterado e reafirmado serem profícuas em nossas investigações. Os estudos longitudinais e geracionais têm nos
possibilitado acompanhar o fenômeno em processo e rastrear seus determinantes histórico-sociais-culturais.
Apesar das intensas alterações no cotidiano do lugar os indícios da força desses elementos na constituição da
subjetividade no contexto sócio-cultural se verificam a permanência de muitas lembranças evidenciando os aspectos fossilizados
do processo de significação presentes nos contos, onde se comprova nas histórias reconstruídas.
Lembrar de contos e lendas exige uma experiência vinculada à memória e a imaginação criativa. Desse modo, o
relembrar também exige uma possibilidade imaginativa e para que ocorra é necessário conservar experiências anteriores. As
mudanças que houve com a chegada de pessoas num lugar primitivo não impediram a possibilidade da existência dos contos.
Estes se deram em meio à produção baseada na anterioridade da experiência ao mesmo tempo em que foram necessárias
desenvolver reações adaptativas e, nessa medida a atividade reprodutora se combina com a atividade criadora.
A atividade humana não se limita a reproduzir fatos e impressões vividas, mas também cria novas imagens, ações, re-
elaborações e criações a partir de experiências passadas novas questões e soluções são pensadas. Esta atividade criadora do
homem é que o faz ser projetado para o futuro e que ao criar modifica o presente.
A análise interpretativa das conversas com os moradores mais antigos nos possibilitou identificar categorias acerca da
qualificação da temporalidade e da espacialidade, da oralidade necessária aos contos, das condições propícias ao surgimento
(isolamento, poucas casas, pessoas, escuridão) a manutenção e ao esquecimento dos contos.
A temporalidade e a espacialidade que se referem ao passado é qualificada positivamente enquanto ganha evidencias de
negatividade no presente e marca as lembranças de um tempo e de um lugar identificados como bons. O deslocamento para se
chegar as outras localidades é tido como bons, ou seja, o encurtar distâncias (espaço) graças ao desenvolvimento de estradas e de
transportes ocupa menos segundos (tempo) de suas vidas. Nessa perspectiva são profícuas as considerações de Santos (1997)
acerca do processo do processo de globalização onde a vivencia do tempo e do espaço foram decisivas na experiência humana.
O lugar evidenciou-se como uma categoria importante em nosso estudo sendo importante enquanto imagem
representativa do passado nas ainda existentes “ruínas do leprosário”. Este leprosário é lembrado como um lugar que tinha
tesouros guardados, mas que foram retirados por pessoas que vinham de outros lugares com radares, à noite, cavavam e os
retiravam, tanto que não mais existem no lugar esses objetos. Assim, dinheiro, riqueza, perigo, doença, mal-assombro se misturam
nas lembranças desse lugar. O tempo é identificado por experiência transmitida pelos mais antigos, por histórias ouvidas, como
declaram os moradores.
Para que o tempo anterior à própria existência ganhe consistência nas lembranças se faz uma comparação com os anos
vividos. Podemos ver isso quando um dos moradores destaca a quantidade de anos de existência do lugar, a necessidade de a
transmissão de histórias de o lugar ser realizada pelos mais antigos. Os sujeitos pesquisados caracterizam o lugar no passado
enquanto deserto, sem casas, como se insistentes e repetidas vezes retornassem no cotidiano esta imagem na lembrança dos
moradores.
A imitação e o requinte descritivo das narrativas são fundamentais na evocação da memória bem como na aquisição de
sentido memorioso, podemos definir como sendo uma “apropriação pessoal experienciada de algo sócio-cultural que pode ter sido
contada ou narrada por quem experimentou propriamente o acontecimento se dá por meio do vínculo, ou seja, a base afetivo-
volitiva exerce atração como um signo emocional. Difere do significado, pois este não tem carga emocional do vivido e do
experimentado” (Oliveira, 2007).

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570
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Vigotski, L.S. (1998). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Jovens e crianças intermediam relações geracionais: um estudo a partir de contos e


lendas do lugar
Adélia Augusta Souto de Oliveira
Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Heliane de Almeida Lins Leitão


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Daniel Santos Libardi


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Maria Natália Rodrigues


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Lívia Rocha Machado Levi


Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Resumo: Discute a constituição da subjetividade de jovens e crianças em comunidades litorâneas no Nordeste Brasileiro, cujas transformações
engendradas pela indústria do turismo de massa têm alterado os modos de vida da população local. Considera a juventude e a infância enquanto
um conceito construído socialmente, a intrageracionalidade como preponderante na vivência juvenil e a intergeracionalidade vivida na relação
familiar. Busca entender como o jovem se posiciona com relação as suas memórias do período da infância e a memória psicossocial do local onde
ele vive e como se mantêm os valores significados e se transformam os sentidos experienciados, através de conversas individuais e em grupo
sobre os contos e lendas do lugar. Apresentam os sentidos experienciados por meio de registros de observação participante com grupo de crianças,
pela produção de relatos, textos, desenhos e fotos dos contos e lendas que escutam sobre o lugar. Os participantes moram com os familiares e os
meninos auxiliam os pais ou avós na pesca e as meninas nos afazeres domésticos. Participam de programas sociais do governo. Principal diversão
é a prática do surf e estudar música. Representa a terceira e a quarta geração pós-indústria do turismo de massa. Os resultados demonstram afetos

571
positivos de pertença ao local, uma estreita relação entre a permanência de significados e a existência de lugares que ancoram os sentidos,
permitindo vincar as histórias de realidade e potencializar as lembranças. As ilustrações mostram uma prevalência de sentido representacional
positivo da natureza, do ambiente público e de si mesmos.

Apresentando a questão
Os estudos acerca da constituição da subjetividade em comunidades litorâneas (OLIVEIRA 2002; 2005) têm
demonstrado que as transformações engendradas pela indústria do turismo de massa têm alterado os modos de vida da população
local. Os jovens são representantes de uma geração que sofre a influência direta dessas transformações. Corroboramos com o
conceito de juventude (CASTRO E CORREA, 2005) como uma condição social, não se tratando apenas de uma fase de
desenvolvimento humano, mas de uma condição sócio-psicológica.
As pesquisas de Castro (2006) e de Magnani (2008), têm demonstrado que as relações intrageracionais são muito mais
presentes na juventude, os jovens se organizam em grupos e é através desses grupos que eles buscam uma demarcação e
sustentação identitária. Já o convívio intergeracional ocorre principalmente na família, ou seja, através da transmissão oral, aquilo
que foi vivido pelos pais e avós é recontado aos mais jovens que vão ter acesso aos valores da tradição e da cultura e crescem
compartilhando da memória social da sua localidade a partir da experiência do outro.
Assim, o conceito de juventude na perspectiva sócio-histórico-cultural, implica em considerar o jovem como sujeito de
sua ação, protagonista de sua história pessoal e coletiva, determinado pelo contexto em que está inserido e determinante nas
escolhas que esse mesmo meio oportuniza-lhe. A juventude se caracteriza por um período de consolidação de subjetividade, onde
os processos de sociabilidades juvenis sejam eles, intra ou intergeracionais, são de fundamental importância e florescência
contínua. Nesse sentido, buscar entender como o jovem se posiciona com relação as suas memórias do período da infância e a
memória psicossocial do local onde ele vive, através dos contos e lendas, significa procurar tanto os valores que se mantém ao
longo do tempo, quanto às rupturas que vão sendo evidenciadas. A juventude, período de vida em que a imaginação está passando
por um processo de nova estruturação, segundo Vygotsky (2003), possibilita o questionamento do antigo e o planejamento do
futuro. Primordial para quem estuda os significados (o que permanece) e os sentidos (o que modifica).
Objetivamos conhecer e compreender a memória psicossocial que serve de sustentação aos sentidos experienciados aos
moradores nativos de comunidades litorâneas. Especificamente pretende-se analisar os aspectos fossilizados enquanto
significados presentes nos contos e lendas da localidade; identificar as lembranças significativas da infância que permanecem na
geração dos jovens; aprofundar o conhecimento da construção da criança e da juventude em contextos de relações comunitárias;
compreender os sentidos experienciados na intersubjetividade comunitária; retratar os espaços relembrados e mantidos na
memória intergeracional; examinar e descrever o conteúdo da reconstrução dos sentidos experienciados na escrita, na fotografia e
na ilustração.

Discutindo o método
A amostra está composta de seis jovens, com idades entre 14 e 17 anos, sendo três rapazes e três moças. Todos são
estudantes, sendo um deles cursando a sétima série, três cursando a oitava série do ensino fundamental e dois deles cursando o
primeiro ano do ensino médio. Moram com os familiares, os meninos auxiliam os pais ou avós na pesca e as meninas nos afazeres
domésticos. Participam do Programa Bolsa-Família e um deles do Programa Jovem Trabalhador. Principal diversão é a prática
do surf e dois deles estudam música. Todos os participantes são netos e/ou filhos dos moradores mais antigos da comunidade,
nasceram e viveram suas infâncias na localidade, sendo esses os critérios de inclusão.
Após a obtenção da concordância dos moradores jovens e de seus responsáveis por meio do Termo de Consentimento
Livre Esclarecido, foram agendados dois encontros com cada jovem participante. Os jovens foram solicitados a relembrarem da
infância e das histórias que lhes eram contadas e povoaram sua existência e convidados a estarem fisicamente nos lugares
relatados. As conversas eram abertas, não-diretivas, gravadas em áudio para posterior transcrição. Ao final, apresentou-se um
quadro com 12 contos e lendas identificados pelos moradores mais antigos para serem nomeados e entregou-se uma folha com a
solicitação “contos e lendas que lembrei” para serem devolvidos no encontro seguinte. Durante as conversas, os jovens sugeriram
que fosse feito um encontro com todos para visita aos lugares. Todas as visitas a campo objetivaram a observação naturalística
que foram registradas em diário de campo, submetidas à leitura e auxiliaram na análise dos dados.
As conversas transcritas foram submetidas à análise descritiva e interpretativa. A primeira preserva o relato dos
participantes de modo descritivo, reescrevendo aquilo que foi dito e o que aconteceu no momento da entrevista. Após, realiza-se a
interpretação dos dados, levando em conta a presença de categoria temática e os objetivos estabelecidos no plano de trabalho,
nessa interpretação buscamos, além das histórias que persistem na memória social, os elementos que se presentificam nelas, as
falas que demonstram a relação de pertencimento do jovem com o local.

572
Apresentando os resultados
Os jovens são representantes de uma geração que tem passado por um processo de transformações devido à grande
influência do turismo de massa. Apesar disso, as conversas que possibilitaram a reconstrução de suas histórias de vida são
marcadas pela história do lugar, com características de pertencimento, de identificação e enraizamento com a localidade.
Verificamos por meio da reconstrução dos contos e lendas da localidade pelos jovens que a identificação do jovem com
a localidade é apontada pela expressão “ser nativo”, por vezes repetida nas conversas com os jovens e que demonstra
pertencimento e enraizamento como definidor de si. Aquele que é filho e neto de moradores da localidade e que nasceu nela tem
propriedade para falar sobre a história do lugar e reinvidica essa autoridade.
As lembranças do período da infância são marcadas por brincadeiras e pela transmissão oral dos contos e lendas da
localidade. Essa transmissão evidencia a presença importante de relações intergeracionais as quais fazem com que estas histórias
se perpetuem, sendo as crianças suas principais ouvintes. Nesse sentido, os jovens são conhecedores das histórias devido à intensa
presença de encontros para escutá-las no período da infância, encontros estes que parecem ficar mais raros à medida que estas
crianças vão crescendo. Como se esse universo fosse característico do mundo infantil e ser jovem implica adentrar em um mundo
em que essas histórias não devem existir. Nesse universo de fantasias, um ponto interessante é o medo relacionado a essas
histórias no período da infância, demonstrando que os Contos e Lendas são um dos modos de transmitir valores e saberes sociais
para as crianças, sendo o medo um ingrediente fundamental.
Os Contos e Lendas têm se perpetuados através das gerações devido a alguns elementos mantenedores dessas histórias,
como os lugares ainda existentes que são cenários para as recordações importantes, sendo mais relembrados dois desses lugares: a
praia e as ruínas do Leprosário.
O lugar conhecido como Leprosário, são ruínas de um antigo hospital, localizadas próximas ao povoado, é um espaço
que ainda sobrevive e que por ser um lugar deserto, escuro, desabitado, guarda semelhanças com as histórias dos Contos e
Lendas. As histórias deste lugar são relacionadas à existência de um guardião do Leprosário, homem negro que fica em cima do
muro observando as pessoas, a existência, dentro do Leprosário de um buraco, hoje coberto pela areia, mas que seria um túnel que
vai até um museu em uma cidade próxima. Histórias de tesouros perdidos também rondam o Leprosário.
Nenhum dos jovens relatou uma história inexplicável que tenha acontecido com eles no Leprosário. Apesar disso as
relações de confiança mediadas pela afetividade dentro da localidade parecem fazer com que eles acreditem nas histórias relatadas
por um outro que experienciou. Nesse sentido, alguns relatam experiências de pessoas de suas famílias ou amigos que dizem ter
visto o Negão do Leprosário e terem encontrado um cadeado de ouro no local, cadeado este que sumiu logo depois.
A praia e o mar são outros lugares que guardam características importantes para ser cenário das histórias. As pessoas da
localidade têm uma relação muito próxima do mar, uma vez que na maioria das famílias existem pescadores. Nos jovens esta
relação é marcada pela prática do surf, hoje principal diversão dos mesmos, além disso, os meninos auxiliam aos pais e/ou avôs na
atividade de pesca.
A atividade da pesca é marcada pela solidão, pelo silêncio e, na maior parte das vezes, ocorre durante a noite, dando
origem a muitas histórias, como a história de um pescador que pescando à noite viu outro pescador fazendo os mesmos
movimentos com a tarrafa, sendo que este depois sumiu; e a história dos Pescadores à deriva, que é a história de dois pescadores
que sobreviveram a um naufrágio. Os pescadores são conhecedores de histórias e sabem segredos para afastarem assombração.
Um dos jovens é pescador e mostra-se ambíguo na relação que mantém com as visagens: ora admite que vê, ora afirma ver, mas
não muito. Destaca que acredita na sua existência, mas reconhece que não são todas as pessoas que podem ver. Desse modo,
podemos afirmar que há uma justaposição entre a crença e a experiência. O fundo do mar também está repleto de animais, de
segredos e de coisas inexplicáveis e que trás muitos objetos externos à comunidade, como objetos deixados por turistas e objetos
antigos que seriam trazidos por barcos naufragados.
Muitas histórias são relatadas como acontecidas nesse cenário entre o mar e a praia. O Fogo-corredor faz parte desse
cenário, tratando-se de duas luzes em forma de fogo, que depois se juntam formando uma bola de fogo, aparecendo nos momentos
de pescaria ou em passeios na praia durante à noite. Nesta história, se presentifica uma proibição ao incesto, uma vez que não era
permitido que comadre e compadre ficassem juntos, quando isso acontecia, eles se transformavam no fogo-corredor, mas o grito
de três vezes no escuro o faz aparecer. Desse modo, controlamos o seu aparecimento. Os contos e lendas estão submetidos a uma
questão de crença. No relato do Fogo-corredor uma participante diz: “... eu já vi, agora não sei se é verdade”. Este fala
demonstra a dúvida, a incerteza, algo que é inexplicável, estando na praia com amigos a participante diz ter visto e diz ter sentido
medo, e também passou a acreditar nessas histórias depois que viu, demonstrando a presença das histórias no cotidiano dos
jovens.
Histórias de assombração também acontecem na praia, há relatos de uma pessoa toda de branco que aparece à noite. Em
toda a localidade, mas principalmente na praia durante a noite, aparece um pássaro branco chamado Rasga-Mortalha, que parece
ser portador de um mau presságio, ao passar por cima de uma casa, é sinal de que alguém irá morrer. Como forma de proteção e
controle sobre o mau presságio, diz-se “Viva os noivos” quando o pássaro passa. A temática da morte se faz bastante presente
nesse conto.

573
Na praia um lugar específico que é cenário de uma história da localidade é a Pedra-da-Moça, uma pedra que se encontra
na praia e passou a ser chamada dessa forma depois que aconteceu a morte inexplicável de uma moça turista nessa pedra,
supostamente ela foi puxada pela correnteza e apenas parte do corpo dela foi encontrada posteriormente. Nesse fato ocorrido, é
interessante pontuar que a moça foi para a localidade sem a permissão dos pais, a desobediência aos pais, nesse caso, teve como
consequência a morte. Então, nesse conto, o valor social que se presentifica é o respeito e obediência aos pais.
As áreas com coqueiros e plantações que existem por volta da comunidade e são desabitadas também são lugares que
guardam muitas histórias, como a história da Caipora ou Comadre Florzinha, que tem braços de urtiga e para se proteger dela é
necessário levar fumo e doces ao entrar na mata, senão ela bate nas pessoas e faz tranças nos rabos dos cavalos, novamente a idéia
de controle sobre a lenda aparece. Às crianças também não era permitido falar palavrão dentro da mata, porque senão a Comadre
Florzinha bateria nelas. A história de O Gritador, também aparece nesses lugares, sendo este apenas um som indefinido, que se
escutado alto é porque vem de longe e se escutado baixo é porque está perto.
Os elementos da natureza, principalmente animais, estão sempre presentes nas histórias da localidade. A temática da
animalização do homem se faz presente na história do Lobisomem, o homem que vira lobo, com olhos vermelhos e pelo cabeludo,
história essa contada através da experiência de algumas pessoas da localidade que dizem ter visto o Lobisomem, tanto no período
noturno quanto durante o dia. Um jovem conta que um homem entrou em processo de transformação ao meio-dia na localidade e
para que ele voltasse ao normal às pessoas jogaram um pano branco em cima e rezaram, nesse exemplo, a religiosidade presente
parece mostrar que a religião é utilizada contra aquilo que faz mal. Outro ponto interessante nessa lenda, é que viraria Lobisomem
àqueles filhos que batessem nos pais, novamente a se presentifica a questão do respeito aos pais. Um jovem relata que na
localidade antigamente, existiam muitos Lobisomens, porque antes era menos habitado, apenas com casas de nativos,
demonstrando que a intensa movimentação de pessoas de fora da localidade tem influência sobre a aparição dos Contos e Lendas.
Outra história que surge com animais e que aparece nas áreas menos habitadas da localidade é a do Padre-sem-cabeça
ou Mula-sem-cabeça, um cavalo que sai fogo pelo pescoço, no lugar da cabeça, se tratando de um cavalo que assusta e depois
some repentinamente. Uma participante fala que alguns de seus parentes já presenciaram, sendo estes confiáveis para que ela
acredite. É importante pontuar que aquele que é nativo da localidade está mais suscetível a acreditar nas histórias, o estrangeiro
não acredita, e mesmo quando vê prefere não falar sobre, como aconteceu com o pai de uma participante que apesar de ter visto,
não gosta de falar sobre o assunto, pois não acreditava nas histórias e criticava aqueles que acreditavam. Há um relato que cerca
de um mês antes das conversas, algumas pessoas disseram ter visto a Mula-sem-cabeça no sítio da localidade. Esse fato parece
indicar que essas histórias não aconteciam somente no passado, mas que ainda se fazem presentes no cotidiano da localidade.
As duas extremidades (piscinas naturais e Leprosário) da localidade guardam muitas histórias, como de assombrações
no cemitério da localidade, as ruínas de uma Igreja que também tem um túnel que supostamente vai até um museu numa
localidade próxima e as histórias do Fogo-corredor que também aparecem desse outro lado.
A intergeracionalidade é bastante acentuada na relação avôs/netos e no intermédio de alguns moradores que gostam das
histórias e as mantém vivas, fazendo com que as histórias da localidade sejam transmitidas de geração em geração. A maioria dos
contos indicados pelos mais antigos foi reconhecida pelos jovens, como demonstra o quadro abaixo:
Contos e lendas conhecidos
Contos e lendas do Francês Sim Não TOTAL
Masculino Feminino Masculino Feminino SIM NÃO
Pedra da moça 2 3 1 - 5 1
Fogo Corredor 2 3 1 - 5 1
Fala-fala - - 3 3 - 6
O gritador 2 1 1 2 3 3
Lobisomem 2 2 1 1 4 2
Assombração 3 3 - - 6 -
Caipora 1 2 2 1 3 3
Mula de Padre 2 2 1 1 4 2
Cavalo encantado 2 2 1 1 4 2
Cantores da Madrugada - - 3 3 - 6
Pescadores à deriva 2 - 1 3 2 4
Rasga Mortalha 2 3 1 - 5 1

Assim, das 12 histórias apresentadas no quadro, 10 foram conhecidas por, pelo menos 2 participantes e 2 delas não
foram reconhecidas por nenhum dos participantes. Além das histórias apresentadas, todos os participantes relataram histórias
relacionadas às ruínas do antigo leprosário, sendo as histórias mais lembradas pelos jovens as: do Fogo-corredor, do Lobisomem,

574
da Pedra-da-Moça, de O Gritador, Caipora ou Comadre Florzinha, Rasga-Mortalha, Mula-do-Padre, histórias de assombrações,
histórias de pescarias e do Leprosário.
A lembrança da maioria dos Contos e Lendas (OLIVEIRA e RODRIGUES, 2008) pela maior parte dos jovens é uma
evidencia que os jovens são conhecedores das histórias do lugar, demarcando assim, uma identidade nativa.

Concluindo
Os jovens são representantes da terceira geração de uma comunidade litorânea pós-indústria do turismo de massa.
Apesar das transformações daí decorrentes, as conversas possibilitaram a reconstrução de suas histórias de vida eivadas pela
história do lugar. As lembranças do período da infância são marcadas por brincadeiras e pela transmissão oral dos contos e lendas
da localidade. Essa transmissão ocorre no âmbito das relações intergeracionais com os integrantes da família e tem as crianças
como suas principais ouvintes. Por outro lado, à medida que adentram no universo juvenil, o grupo de amigos da escola e dos
turistas rompem e permitem novas experiências intrageracionais.
A manutenção dessa tradição oral pode ser explicada pela existência de lugares eliciadores da memória coletiva. Além
disso, a afetividade expressa pelo sentimento de pertencimento e de natividade funciona como uma massa que sedimenta e dá
sentido a vida das pessoas, servindo como um elo intergeracional.
Os elementos constituintes dos Contos e Lendas são: o sentimento de medo, essencial para engendrar a crença; a função
primordial do imaginário na explicação de mistérios; a experiência real com ‘as visagens’ de alguns familiares confiáveis; a
atividade da pesca que coloca o homem em constante perigo, sendo solitária, noturna e silenciosa; a função prescritiva de
comportamento: punição pelo incesto, pelo não amor e obediência aos pais; o valor do caráter premonitório; a animalização do
homem evidenciando os aspectos irracionais. A presença do estrangeiro impõe novos modos. A circulação de um número maior
de pessoas, a aquisição da energia elétrica e a diminuição dos espaços públicos rompem com o silencio, com o vazio urbano e a
escuridão, elementos disparadores das “visagens”.
A abordagem metodológica adotada possibilitou, tanto no trabalho individual quanto grupal o protagonismo do jovem
da comunidade estudada.

Referências bibliográficas
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Janeiro: NAU Editora: FAPERJ.
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OLIVEIRA, Adélia A. S. de; RODRIGUES, Maria Natália M. (2008). Jovens relembrando histórias à beira-mar: Memória
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OLIVEIRA, Adélia. A. S. de. (2005). Turismo de massa e segregação psicossocial em uma comunidade litorânea no Nordeste
brasileiro: uma análise a partir da experiência de resistência e submissão das crianças. 213 f. Tese (Doutorado em Psicologia
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Fundação Joaquim Nabuco, 2002.
VIGOTSKI, Lev. S. (2003). La imaginación y el arte en la infancia. Madrid: Ediciones AKAL AS.

Coletivos juvenis e expressões culturais no Brasil


Marlúcia Valéria da Silva Valéria Silva
Universidade Federal do Piauí
[email protected]

Resumo: As atuais sociedades complexas instalam a obrigação de refletirmos sobre a juventude a partir de referência plural, articuladora de
aspectos como o corte etário, a geração, a classe, a etnia, o gênero, a orientação sexual, o espaço geográfico que os jovens partilham etc, podendo
a juventude, enquanto categoria teórica, surgir aquém, além e atravessando todos esses parâmetros. Tais contingências implicam em tomarmos o
segmento por juventudes, dada a complexidade da sua expressão nas materialidades em que se configura. Complexamente, os jovens estão
inseridos em realidades que os fazem experimentar no cotidiano a fragilidade das grandes referências, sendo contemporâneos da evanescência dos
macro-projetos emancipatórios e da política como instrumento de sua conquista, de certo Estado-nação e da família, ao mesmo tempo que estão
inseridos em situações novas, como o recrudescimento dos conflitos regionais, a intolerância local/global, a crise do trabalho e o

575
multiculturalismo. Nesse contexto, as manifestações culturais, entendidas como processo socialmente interativo de elaboração do reconhecimento
e pertencimento, aparecem como o espaço simbólico onde as variadas juventudes do mundo, e do Brasil em particular, podem construir os seus
vínculos e modos de estar no mundo, destacando a autoria jovem nos processos desencadeados ante os desafios da contemporaneidade. Por outro
lado, os coletivos juvenis se apresentam como o lugar de ancoragem das manifestações, inaugurando novos fazeres e reconstrução de sentidos das
vivências juvenis que partilham, ‘novos ritos de passagem’, novas referências retradutoras da própria ação coletiva juvenil num cenário de
radicalização da cultura individualista.

A incursão investigativa no campo das juventudes tem me revelado a importância dos estudos sobre os coletivos juvenis
e cultura na contemporaneidade, como campo que muito tem a oferecer para a compreensão desse segmento social e de sua
presença diversa no mundo. Nesse sentido é que as pesquisas que tenho desenvolvido em Florianópolis-SC (SILVA, M. Valéria
da. Identidade Juvenil na Modernidade Brasileira: entre tempos, espaços e possibilidades múltiplas, UFSC/UFPI/CAPES, 2006);
em Teresina-PI (SILVA, Valéria. Coletivos Juvenis: novos cenários, práticas e políticas, NUPEC/UFPI/CNPq/FAPEPI, 2008) e
na Região Nordeste do Brasil (REIS, Vânia; LUZ, Lila e SILVA, Valéria. Juventudes do Nordeste do Brasil,
FLACSO/KELLOG/UFPI/NUPEC, 2008), se constituem em ricos universos, que ora oferecem o estofo necessário à construção
do presente artigo.

Juventudes do Brasil: convivências e contingências de um universo complexo e plural


As atuais sociedades complexas instalam a obrigação de refletirmos sobre a juventude e suas realidades a partir de
referência plural e intimamente articulada com a diversidade do tempo presente. Esta é uma contingência válida para o mundo
globalizado cuja influência se espraia pelos países centrais e, também, pelos países e regiões situados na periferia do sistema.
Em passado recente entender quem eram os jovens no Brasil nos obrigava o pequeno esforço, quase sempre centrado no
aspecto etário de alguns segmentos sociais; na atualidade, contudo, o nível de complexidade das relações diversas que têm lugar
no mundo em geral e em nosso país em particular, coloca a necessidade do abandono das posições relativamente seguras de
análise.
Abordar a questão juvenil na contemporaneidade brasileira significa refletir sobre as novas realidades e dinamicidades
em que estão inseridos os(as) jovens; espaços e tempos em que se efetivam seus vários projetos; possibilidades e limitações das
suas condições concretas de vida. Tal imperativo se explica pelo fato de que os processos sociais interferem diretamente na
constituição das individualidades, tanto biológica, social, quanto psicologicamente (ELIAS, 1994; 1998; MELUCCI, 1997),
independente da sociedade em que o fenômeno se materialize.
Nesse sentido, impõe-se buscar uma compreensão da sociedade brasileira e das profundas mudanças verificadas nas
últimas décadas, as quais podem ser observadas em todos os níveis e âmbitos, indo desde as condições gerais de produção -
envolvendo a crise do trabalho, a reconfiguração do mercado e a relação dos grupos sociais com o consumo -, as trocas culturais
entre as regiões do país1 e com outras nações, até as novas sociabilidades possibilitadas pelo ambiente virtual, massivamente
experienciado direta ou indiretamente por todos os segmentos sociais e notadamente pelos jovens.
Além de todo esse quadro, a complexidade social apresenta um fenômeno que especialmente interfere na reconfiguração
das relações sociais que experimentávamos até duas décadas atrás: trata-se da fragilidade das grandes referências institucionais,
pautadores da vida em sociedade, como a família, a vizinhança, o Estado, o projeto revolucionário, dentre outros.
Quanto ao primeiro ponto, a família, é perceptível o esmaecimento da noção antes hegemônica, a de grupo nuclear. Os
vários tipos de constituição familiar que observamos na atualidade - arranjos que agregam namorados e namoradas, companheiros
e companheiras - nem sempre de casais heterossexuais, diga-se de passagem -, filhos e filhas de pais e mães que experimentam
novos casamentos ou ainda famílias chefiadas por mulheres solteiras, adolescentes ou avós e, até mesmos, lares formados sem a
figura feminina, antes o estofo central desse tipo de arranjo social – imprimem novo padrão e dinâmica às relações familiares no
Brasil.
A particularidade brasileira quanto à presença dos avôs e avós no seio da família merece destaque. Contemplados com o
acesso à renda a partir das políticas públicas de previdência e assistência pós-Constituição Federal de 1988, particularmente
através do Benefício de Prestação Continuada-BPC, os idosos, que antes tendiam a perder o lugar na convivência familiar - como
tem ocorrido em grande parte das sociedades desenvolvidas - passaram a desfrutar do importante status de responsável pela
manutenção do grupo. Esse fenômeno se intensifica tendo em vista a dificuldade de acesso ao emprego e/ou trabalho encontrada
pelos mais jovens, dentre outros. Expresso em quantidade considerável de casos, especialmente junto aos segmentos populares, os
idosos têm reassumido o papel de responsáveis pelo grupo familiar, deslocando novamente os pais e mães desse lugar social.

1
Falo das trocas culturais dentro do próprio país porque, muito embora inquestionavelmente o Brasil se coloque como uma nação, sem maiores divergências que
originem ódios étnicos, enfrentamentos religiosos ou disputas regionais inconciliáveis, exibe profundas diferenças políticas, históricas, econômicas e culturais em todas
as latitudes do território nacional.

576
Os grupos de convivência comunitária e as relações de vizinhança sofreram modificações substanciais, provocadas pelas
novas dinâmicas do mundo do trabalho, pelo fenômeno das migrações - que dispersam os membros das famílias e das localidades
por todo o território nacional -, pela especulação imobiliária, que desfigura/reconfigura bairros e cidades e, com isso, desarticula
relações sociais antes existentes.
As profundas modificações do espaço urbano formam locais de moradia que não reconhece os seus jovens, nem são
reconhecidos por eles. A paisagem local, sob a ação do especulador imobiliário, assemelha-se a um tabuleiro de xadrez que a cada
investida do jogador muda de configuração. Assim, cada loja, prédio, a lan house e as próprias casas residenciais estão submetidas
à lei maior da provisoriedade do movimento do mercado (SENNETT, 2005), num avanço inexorável à transformação do bairro no
lugar de todos e de ninguém, retirando do território o seu sentido e relevância para as vidas que ali habitam (BAUMAN, 2003).
Além desses aspectos, destaco como fatores relevantes a ostensiva presença da televisão e da internet na vida cotidiana,
bem como as formas de lazer centrada nos shoppings centers, definindo novos lugares de sociabilidades, uma sociabilidade às
vezes definida em relações virtualmente mantidas ou formadas a partir da lógica do consumo. Nos dois casos ancoradas em
realidades fugazes, a partir do espaço privado2 e da lógica do consumo. Estes são os palcos do novo lazer desfrutado de modo
seguro, em contextos onde a violência urbana se impõe como o problema de maior poder de esgarçamento das relações sociais
pautadas pela institucionalidade e vivenciadas no espaço público, de forma coletivizada.
Quanto às relações sociais de produção, a realidade do mercado ágil, flexível e extremamente competitivo, interna e
externamente, tem implicado em nova configuração do mundo do trabalho e da participação dos trabalhadores – jovens ou não -
no processo produtivo da nossa sociedade. As realidades de desemprego, subemprego, contratos temporários, trabalho informal,
desvalorização da experiência, exigência de qualificação diversificada e permanente etc, encontram-se alastrada por todos os
segmentos etários brasileiros, mas implicando em precariedade de maior porte entre os mais jovens, detentores dos maiores
índices de desemprego, subemprego e outras formas de vínculo precário com o mercado de trabalho (POCHMANN, 2000;
DIEESE, 2007).
Os efeitos deletérios da realidade configurada no quadro acima descrito se expressam mormente junto aos jovens de
segmentos populares, os quais não raramente ingressam precocemente no mercado de trabalho, sem dispor da formação adequada,
compelidos pela necessidade de colaborar com o sustento da família ascendente, descendente ou assumir o seu próprio sustento. E
não raramente essas duras realidades engendradas pela reestruturação do mundo do trabalho se apresentam de forma ainda mais
dramática para os jovens dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil.
O fenômeno avassalador do tráfico de drogas e o rol de violências várias, comuns a tais contextos, aliado a Estados
pouco operantes e eficazes quanto à regulação social, mas especialmente quanto à proteção e promoção das juventudes, tem
gerado um cenário de total vitimização de extensos segmentos de meninos e meninas, órfãos de oportunidade e de respeito,
inclusive, às suas necessidades humanas básicas.
Ante ao largo espectro de implicações, as realidades impostas geram desdobramentos junto ao segmento juvenil também
quanto aos valores adotados numa sociedade do consumo, vivendo sob intenso processo de perdas das referências. Ser belo, ter
sucesso financeiro, ser ‘o popular’, desfrutar do prazer, conquistar a felicidade – facilmente confundido com o consumo das
marcas e produtos famosos, bem como lançar mão de qualquer estratégia humana ou técnica para ‘adquirir’ tais predicados - são
as mensagens que conformam o real, substituindo os parâmetros éticos de outrora por determinado perfil estético freneticamente
perseguido (BAUMAN, 2003). A vida material passa a ser povoada de sonhos ilimitados, por sua vez materializados em bens de
consumo colocados ao alcance de todos que conseguirem adquiri-los no mercado3. Sonhos presumivelmente possíveis a todos - e
nem de longe privativos dos pré-requisitos de um corpo jovem – mas, concretamente, acessíveis a apenas alguns, de acordo com
as regras do mercado e as modulações engendradas no/pelo universo juvenil.
O novo acordo social pauta-se na regra de que todos podem ser jovens à medida que todos podem consumir as mesmas
coisas. É a condição identitária capturada e reinterpretada pelo poder de consumo e, desse modo, prendendo-se substancialmente
ao gesto individual do de comprar que, embora orientado pelas adudidas pautas sociais, confere ao indivíduo a sensação de um
poder particular, privado, de subjetivação, desencadeando e fortalecendo a cultura individualista da produção das identidades e de
relação com o mundo. Assim, orientado pelo critério da individualização, o consumo de massa mostra-se também como fator
relevante para compreendermos a atualidade da juventude brasileira.
Muito embora presente em todos os recantos do mundo e, mais que isso, como condição essencial e fundante da lógica
do mercado, o Brasil, em vista da sua condição de país em desenvolvimento, ainda possui grandes parcelas da população não
incorporada ao mercado consumidor. Entretanto, a cultura do consumo notadamente conforma costumes e práticas no cotidiano

2
Feixa, 2004, evidencia a reconfiguração dos aposentos dos adolescentes na atualidade, que, equipados com os mais diversos itens eletro-eletrônicos, conferem um
tipo de auto-suficiência ao jovem em relação à vida do lar, levando-o a um quase completo isolamento do mundo que o cerca.
3
No caso do grupo em análise percebi que a aquisição de um certo padrão de consumo que possibilite o acesso a uma vida confortável surge como um ponto
importante de articulação dos discursos. A aquisição de bens de mercado, o acesso ao lazer, ao ensino superior, a construção de uma carreira aparecem como um curso
de estruturação das vidas.

577
das relações. O estímulo constante à realização pessoal através da aquisição de bens, supostamente ao alcance de todos através do
mercado, faz com que a vida material passe a ser povoada de sonhos ilimitados.
Klein (2002) demonstra que a adoção de um jeito de produzir para o consumo inspirado no gosto juvenil – de “criar”
gostos aos quais os jovens aderem – consubstancia-se em resultante de toda uma engenharia empresarial nova das grandes
companhias visando à conquista de novos nichos comerciais numa época de saturação de mercados. Ante a lógica do mercado, a
ostensiva presença midiática e ante o descarte das antigas referências a cultura “criada” aparece sedimentando um tipo de
consumo, um estilo de vida, um tipo de convivência social, homogeneizando modos de ser e estar num mundo construído.
Na sociedade do tempo real, da qual o Brasil participa a cada dia mais intensamente, é a cultura jovem que – em muito
assentada nesses princípios - vem oferecendo o suporte para a construção de valores e produção de sentidos para todas as idades,
evanescendo, desse modo, as fronteiras etárias que marcavam as diferenças entre os segmentos geracionais. É a partir dessa lógica
que encontramos mães e filhas, pais e filhos, por exemplo, vestindo as mesmas roupas, indo aos mesmos shows, praticando os
mesmos esportes, falando uma mesma linguagem etc e ‘festejando’ a ausência de diferença entre os genitores e filhos. E, como
afirmado por Elias, a “postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais – este comportamento externo de que fala o tratado
[Da civilidade em crianças, de Erasmo de Rotterdam] é a manifestação do homem interior, inteiro.” (ELIAS, 1994, p. 69).
Os aspectos apontados anteriormente têm contribuído de forma substancial não apenas para a redefinição das grandes
pautas de convivência social, mas também para uma certa desvalorização dos modos cotidianos de vida, (re)configurando as
práticas, discursos e culturas locais. Pais e mães em particular, e adultos em geral, até recentemente fiadores das garantias
culturais e sociais, frequentemente aparecem como apenas outros amigos, demonstrando no vestir, no falar e fundamentalmente
no ser cotidiano, as mesmas incertezas, fragilidades, buscas, antes mais afeitas ao mundo juvenil.
Esses desafios, impostos no contexto das mudanças sócio-político-econômico-culturais, têm arrefecido as ‘certezas’ e o
estofo até recentemente oferecido aos jovens pelo mundo adulto para o desenvolvimento juvenil desejável, fazendo crescer as
dificuldades quanto ao entendimento do que é ser ou não ser jovem, qual o lugar ocupado pelo segmento juvenil na sociedade e o
que se espera dele como contribuição. Para Calligaris (2000), é contra essa realidade que o jovem se insurge a fim de construir o
seu lugar no mundo, encontrando, mais do que nunca, no grupo o único espaço de elaboração desse desafio, potencializando o
coletivo enquanto locus de reconhecimento, especialmente aqueles agrupamentos de jovens de menor faixa etária, período das
primeiras descobertas e necessidades autônomas. É do que passarei a tratar.

Coletivos juvenis: espaços relacionais de interlocução com o mundo


Os grupos juvenis são uma antiga realidade na vida dos jovens. Entretanto, conforme pontuado anteriormente, no
contexto das sociedades complexas onde as referências sócio-culturais mudam de lugar constante e rapidamente, os coletivos têm
adquirido um papel de destaque no processo de formação dos jovens. A partida, material e/ou simbólica, do ambiente familiar, por
razões várias, marcam o momento de individuação juvenil, da separação de meninos e meninas de um coletivo primário que os
impõe a busca de suas próprias respostas aos desafios novos que a vida lhes traz. Nesse momento os grupos de jovens constituem-
se em ambientes de novas sociabilidades que gerarão os sentidos buscados por cada um e algumas respostas à necessidade de
inserção e trânsito dos jovens nas esferas várias do mundo vida à fora.
É a partir da ótica dos grupos que os jovens experimentam as questões que lhes são colocadas pela realidade, vivenciam
as relações sociais e conformam uma dada intervenção juvenil no mundo; dialogando com o ‘exterior’, e, desse modo,
experimentando, por assim dizer, alguns ritos de passagem para a vida adulta, a despeito das mudanças hoje colocadas que
impõem à juventude uma certa condição nômade.
No seu novo modo de estar no mundo, no grupo os jovens encontram no estar juntos aos seus iguais, aos similares, o
conforto da partilha, da receptividade em relação ao que pensa e sente. A identificação com os gostos, desejos, princípios,
interesses, visões de mundo, frustrações, medos e inseguranças, como também a construção das formas e alternativas de vivência
desses e outros aspectos da experiência humana, potencializados em contextos de amadurecimento.
Nesse contexto, o que tenho encontrado nas pesquisas já referidas é que, em grande parte das vezes, a amizade
desfrutada é o cimento mais comum que unifica internamente o grupo, gera o sentimento de confiança e de empatia que, por sua
vez, desencadeiam a inspiração do poder grupal se comparado à possibilidade individualizada. É também entre amigos que se
potencializa a expressão da singularidade de cada um, sem adequações ou o cumprimento de papéis previstos, abrindo espaço
para o novo. Para constituir-se como indivíduo o jovem necessita distanciar-se do seu grupo familiar original, a fim de enxergar-
se e reconhecer-se, de afirmar aquilo que aceita como particular seu, num antigo complexo de existência hegemonizada pelos
valores recebidos de outrem. E, no mesmo movimento, refutar, reelaborar o que passa a lhe parecer estranho, dissonante. Mais
uma vez, o grupo aparece como o lugar de um certo relaxamento – talvez em vista do ‘conforto’ que a sensação de
empoderamento, supostamente conferida pelo grupo, gera - e a amizade, o lenitivo para o conflito vivenciado por alguém que
agora precisa responder à demanda do mundo sobre o seu existir.

578
O ambiente grupal como espaço da transgressão é outro aspecto a ser considerado. Se individuar-se, por definição,
implica em rompimentos, interagir com o mundo na condição de alter, exige uma postura particular. O jovem é também instado a
fazer escolhas sobre o norte que pautará as suas relações com os demais e a sociedade em geral. Avaliar, romper, confirmar e/ou
reelaborar princípios de convivência, visões de mundo são processos atinentes a todos, porém radicalmente imperativos à
experiência juvenil. É transgredindo a norma que o jovem testa a si mesmo, a sociedade e a validade da própria transgressão como
mecanismo válido ou não da sua forma de inserção no mundo e de interação com os demais.
E é transgredindo que os jovens correm os riscos - maiores ou menores - que potencializam ou inviabilizam a sua
contribuição ativa com a sociedade. É também transgredindo que se habilitam a reinventar o mundo construído e a vida, para além
da herança recebida, re-oxigenando os processos, engendrando a esperança e as perspectivas de futuro. E é também no grupo que
o jovem encontra eco para este propósito, tendo em vista a liberdade que encontra entre os pares ante a quase inexistência de
censura, bem como a semelhança de aspirações que vivencia com os demais, o que confere força às iniciativas.
O grupo aparece com a mesma relevância se tomado do ponto de vista das práticas cotidianas objetivas experimentadas,
dos interesses que escolhem como motivo de sua organização e existência. O lazer, a formação, o esporte, a música, a interação
com a cultura, com a religião, com os povos - dentre inúmeros outros aspectos -, de acordo com a natureza de cada coletivo,
oportunizam a descoberta e o desenvolvimento de talentos, de habilidades. E simultaneamente impõe limites, oferece resistências,
contribuindo para o encontro do jovem consigo mesmo e suas potencialidades, fragilidades, aptidões e formas diversas de
humanização, até então pouco claras. Assim, no geral, o grupo oportuniza, ou não, pelas circunstâncias propiciadas e relações
travadas, o reconhecimento dos jovens pelos seus pares e adultos de suas relações, traçando possibilidades e potencializando, por
fim, a constituição de suas identidades4.
A partir dessa perspectiva é que encontro nas pesquisas desenvolvidas o indicativo de que os coletivos juvenis se
mantêm como um importante lugar de produção das sociabilidades e identidades juvenis. Fato que adquire especial importância
quando, nos contextos atuais, temos várias das referências institucionais passando por mudanças significativas quanto à sua forma
de existência e sua capacidade de orientar pautas de convivência social e de constituição identitária nas sociedades complexas,
como explicitado anteriormente.
Assim entendidos, continuam sendo os grupos juvenis espaços privilegiados de investigação para aqueles que desejam
tematizar nos seus estudos as diversas juventudes do nosso tempo. Como campos de experimentos vários e de construção da
intervenção juvenil no mundo, cada vez mais atravessados pelas complexidades dos novos contextos globais, os grupos sofrem
intensamente em suas práticas e dinâmicas as influências desse novo tempo. Conforme compreendo esse fenômeno, penso que,
naquilo que são e podem ser quanto à formulação da ação juvenil, constituição de identidades e consolidação de contributo
positivo para a sociedade, os coletivos juvenis podem ter o seu papel em muito potencializado quando tomam as questões da
cultura e das culturas locais, em particular, como ambiente de organização e intervenção construtiva dos jovens
O entendimento se firma por ser exatamente a perspectiva cultural adotada aquela que atua diretamente sobre o nosso
modo de entender o mundo, de entender a nós próprios; da maneira que elegemos para nos colocar diante do mundo, do outro e de
nós próprios. Assim, atuar sobre a cultura é oportunizar a reflexão dos postulados primeiros que fundam a nossa condição de
humanos, criando o espaço potencial para importantes encontros, rompimentos, adensamentos e banalizações, num intrincado
jogo holográfico que a atualidade nos oferece. Disso me ocuparei a seguir.

Juventudes brasileiras e novas dinâmicas culturais.


No Brasil, em decorrência da sua especificidade histórica, vivenciamos há séculos uma perspectiva de cultura
hegemônica, postulante de uma visão (quase) uniforme de mundo e que insiste em desconhecer a variedade de experiências
culturais co-existentes no país. Falo da cultura ocidental, branca, cristã, autoritária e cordial ao mesmo tempo, conforme postula
Holanda (1996). Entretanto, no último lustro a história deste país, incerta e imperativa – como a dos demais, e até mesmo como
parte de um processo mais geral de redefinições dos espaços e dos papéis das nações no novo arranjo do mundo globalizado – tem
legado paulatinamente um importante adendo à nossa origem cultural, que é o experimento de uma cultura de massas,
homogeneizada, que supervaloriza o ter, o descartável, o imediatismo e, por extensão, o consumo; radicalizada, em décadas
imediatamente pregressas, pela pulverização do espaço, do tempo, das redomas culturais que de algum modo nos continham,
dentre outros. Hoje, são esses os sentidos e significados que, majoritariamente, e numa visão panorâmica, forjam as condutas que
adotamos nas relações sociais que travamos.
Entretanto, aproximando o olhar, encontramos viva uma multiplicidade de expressões culturais que imprimem
particularidades a cada um dos Estados brasileiros e os seus segmentos populacionais. Podemos identificar culturas locais
extremamente particulares, originárias quer dos povos colonizadores de cada região, dos nativos ou ainda dos povos escravizados,

4
Claro se faça que o reconhecimento da condição de sujeito conquistado pelo jovem a partir da atuação em grupos juvenis nem sempre é sinônimo de algo que a
sociedade considere como desejável. Os processos de subjetivação, como não poderiam deixar de ser, se encontram imbricados às contingências colocadas para cada
jovem, gerando possibilidades diferenciadas de interação e de afirmação ante os demais, seja via caminhos legitimados socialmente ou não.

579
as quais conferem marcas diferenciadoras claras no tocante à linguagem, culinária, religiosidades, arte, música e literatura, bem
como aos costumes adotados de um modo geral.
Esse pool de expressões culturais aqui existentes tem adquirido maior visibilidade e trânsito exatamente com o advento
da telemática e dos transportes, especialmente, o aéreo, que possibilitam o rápido fluxo de informações e de pessoas. O mesmo
fenômeno, potencializado pela globalização e suas dinâmicas, tem tornado possíveis a aproximação e trocas constantes com as
realidades mundiais, inserindo o país numa condição de interdependência interna e externa.
Ao mesmo tempo em que os contextos multiculturais estimulam e promovem uma intensa convivência com o diferente,
com a presença do alter no ambiente local, com a mundialização das relações e dos modos de vida, o cosmopolitismo tem
originado também o fenômeno contrário de supervalorização do regional, do provinciano, do local. São dois aspectos da mesma
questão maior e, como tal, em vez de gerar oposição, completam-se (GEERTZ, 2001), engendrando uma multiplicidade de
contextos e possibilidades.
Partícipes dessa conjuntura, os jovens tem-se defrontado com um campo plural, multifacetado de alternativas várias de
experiências e produção de sentidos. Nesse contexto, a tendência tem apontado para a alteração contínua dos postulados
institucionais e culturais das localidades, com a crescente absorção/adoção de valores, entendimentos e delineamentos das
nuanças da cultura mundial hegemônica. Ao mesmo tempo é presente a releitura dos postulados locais, bem como a sua
transposição para ambientes diversos, o que lhes tem, de algum modo, descaracterizado como específicos certo ambiente.
Fortemente presente no segmento juvenil, essas realidades contribuem em muito para o estabelecimento de uma
característica nômade da condição juvenil, uma vez que as interações diversas estão abertas, em tempo real, às interferências dos
processos mundiais, das trocas multiculturais, contribuindo para a releitura e/ou deslocamento de lugares, fazeres, valores, papéis,
direitos, aspirações e responsabilidades dos jovens, como dito.
Como fenômeno relativamente recente no Brasil, essas intensas e imediatas trocas – especialmente decorrentes do
processo de globalização - instalam novos parâmetros de sociabilidade das juventudes brasileiras, bem como de suas experiências
coletivas, em particular. Assim, as pesquisas têm apontado que as culturas juvenis e os seus coletivos no Brasil experimentam
tanto uma radicalização de pautas locais, como uma multipresença de valores e parâmetros advindos das diversas regiões do país
e do mundo. Sofrem, assim, certa aculturação na interação estabelecida com a cultura de massas, na sua mais aguda expressão
mercadológica, imbricada à cultura global posta pelos mass media dos mais explícitos aos mais inescrutáveis momentos da
cotidianidade. Por outro lado, vivenciam e resgatam as expressões mais arraigadas da história cultural do povo brasileiro em suas
diversas localidades, num movimento contínuo – embora pontuado por momentos de maior relevo - e intenso de construção de
resistências.
É exatamente nesse contexto de infixidez que se ampliam as possibilidades das leituras combinadas de autonomia e
heteronomia culturais, conferindo força ao entendimento de que as expressões culturais surgem como campo profícuo de novas
sociabilidades e potencialidades do fazer coletivo juvenil - do que me ocupo na presente análise - ao lidarem com um mix de
ambivalentes, como o erudito/popular, tradicional/contemporâneo, global/local como espaço de construção de novas práticas,
vivências e possibilidades de intervenção na realidade, a partir dos interesses que os jovens identificam como de maior relevância
para si e para o seu entorno.

Coletivos juvenis no Brasil: expressões culturais como campo de atuação/recriação


Os estudos e investigações a que tenho me dedicado - bem como trabalhos diversos desenvolvidos por outros autores
aqui referidos - com grupos juvenis, têm evidenciado uma gama de tipos, interesses, características, formas de organização,
objetivos, dentre tantos outros aspectos das organizações dos jovens. Para os propósitos deste trabalho serão aqui enfocados os
coletivos juvenis de maior visibilidade, que tematizam a questão da cultura como ferramenta de intervenção em sua realidade e/ou
as culturas juvenis de modo geral.
No Brasil, os coletivos culturais organizados pelos jovens, ou ainda que contem com massiva participação desse
segmento, são de vários tipos, sendo encontrados por todo o território nacional. Situam-se mormente nos âmbitos artístico-
cultural, da chamada cultura popular, em especial a nordestina, de cultura étnica e grupos de culturas juvenis contemporâneas
propriamente ditas.
Os dois primeiros têm uma forte e frequente vinculação com a tradição do povo africano e do povo português, dois dos
principais segmentos envolvidos no processo de colonização brasileira. Estão em todas as Regiões do País, mas demonstram forte
presença na Região Nordeste em função da expressividade e força das manifestações populares que ali têm lugar. Em todos os
Estados dessa Região em particular é possível encontrar grupos juvenis voltados para a arte, a dança, a música, as lendas,
mitologias e demais tradições nordestinas, como o maracatu, as congadas, o bumba-meu-boi, a ciranda, o afoxé, o cavalo-
marinho, o jongo, a dança do coco, o forró, o xaxado, o pisa na fulô, o tambor de crioulas, a ciranda, o cacuriá entre outros.
Algumas dessas manifestações – como é o caso do maracatu, cacuriá, cavalo-marinho e do afoxé – romperam os limites locais e

580
hoje se encontram disseminadas por outras regiões do Brasil e pelo mundo, através de grupos juvenis organizados nessas
localidades, num movimento de recriação dessas tradições a partir de suas realidades locais.
Essa diáspora foi desencadeada principalmente pelo Movimento Manguebeat e seu maracatu atômico. O Manguebeat,
surgido no Recife, capital de Pernambuco, encabeçado por Chico Science, se constituiu num diálogo proposto pelo seu líder entre
a tradição do maracatu nação e as propostas musicais originadas do avanço da telemática. Numa iniciativa constestatória à
manutenção da ‘pureza’ da dita cultura popular, Chico Science operou o rompimento dos limites dos ritmos regionais,
misturando-os à batida eletrônica, ao rock e ao hip hop, criando como síntese uma expressão musical nova, chamando a atenção
de muitos jovens que se dedicavam à música e à arte como um todo. Através de manifestações de natureza mais política5 e,
principalmente, das suas composições musicais, Chico Science – “o cientista dos ritmos, o rei das alquimias sonoras” (CARIA, et
al, 2005) construiu um lugar de destaque para o Manguebeat, influenciando por todo o Brasil grupos interessados em criação
musical original e nas possibilidades que esta abria para se pensar a música como um canal de expressão juvenil, de contestação
social e de consolidação de culturas diferenciadas às do mundo construído.
Operando sínteses entre o tradicional e o contemporâneo, o global e o local o Manguebeat fez uma releitura da cultura
pernambucana, oportunizando, como dito, o renascimento de vários dos seus aspectos, bem como proporcionando uma importante
divulgação local, regional, nacional e mundial da tradição do seu povo. Nessa empreitada, o Manguebeat trouxe os jovens para o
ambiente das tradições, fazendo com que estas deixassem de despertar o interesse apenas dos mais velhos, acendendo com isso a
possibilidade de preservação de várias manifestações culturais.
Os grupos que foram surgindo da diáspora cultural ensejada por Science se consolidaram principalmente no ambiente
do maracatu. Tradição surgida no Brasil por volta de 1700, quando os escravos provenientes do continente africano celebravam as
coroações dos ‘Reis do Congo’, retraduziu em terras brasileiras cerimônias que faziam parte de suas culturas políticas e religiosas
de origem6. O maracatu constitui-se de um cortejo composto de diversos personagens, embalado pela orquestra de maracatu que
executa o baque virado7. Historicamente tem tido maior expressão no estado do Pernambuco, Nordeste do Brasil, onde várias
Nações8 vivenciam em seus locais de moradia e dentre seus pares todas as dimensões musicais, culturais, políticas e religiosas
desta manifestação popular.
O principal palco de surgimento dos coletivos foi a cidade de São Paulo, megalópole situada no Sudeste do Brasil.
Possivelmente a história da cidade explique o fenômeno. Ao longo do processo de industrialização brasileira São Paulo despontou
e se consolidou como o maior centro urbano, econômico e industrial do país. Em função desse perfil e das condições opostas que
se verificavam no interior do Nordeste do Brasil, ocorreram massivos fluxos migratórios da população nordestina para a capital
paulista, vindos especialmente de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Bahia, até a recente década de 80; quando a reestruturação do
mundo do trabalho e suas consequências engendraram novas regiões de expansão econômica no Brasil. A migração ocorrida por
décadas seguidas implicou que, na atualidade, grande parcela da população paulista seja de origem nordestina, possivelmente
conformando o estofo cultural para a reaproximação com as manifestações culturais aludidas.
Foi esse contexto que ambientou o nascimento, inicialmente em São Paulo, de vários grupos de maracatu, como o Olho
da Rua, Rochedo de Ouro, Baque Bolado, Batuntã, Viralatisse, Nação Tainã, Caracaxá, Ilê Aláfia, Bloco de Pedra, Calo na Mão e
outros. As iniciativas foram estimuladas por oficineiros do maracatu pernambucano que encontraram na nova atividade uma
maneira de divulgar a cultura e de prover o seu sustento, apresentando a universitários, pesquisadores e demais interessados a arte
do ritmo envolvente das alfaias e gonguês. Sequenciadamente, outros grupos foram surgindo em outros estados do Brasil, como
em Santa Catarina (Arrasta Ilha, Siri Goiá, Tamboritá, Jaé); Rio de Janeiro (Rio Maracatu); Mato Grosso do Sul (Bojo Malê);
Minas Gerais (Trovão de Minas, Baque do Vale, Elefante Groove); Porto Alegre (Maracatu Truvão), Brasília-DF (Calango
Alado) e Paraná (Boizinho Faceiro, Maracaeté, Estrela do Sul, Voa Voa, Caraxalê)9, adensando o que os percussionistas
pernambucanos chamaram de ‘moda do maracatu’.
No surgimento dos novos grupos nos diversos cenários do país, a presença juvenil era ostensiva, majoritariamente dos
jovens provindos dos segmentos de classe média e/ou intelectualizada. Vivendo o rescaldo dos anos 80 - tidos por alguns como os
tempos da inércia da política juvenil; lugar da geração Coca-Cola, acusada de consumista, individualista, deslumbrada com a
cultura americana e onde os punks brasileiros decretaram “Não há futuro” –, na década seguinte os jovens encontraram na

5
O primeiro manifesto do Manguebeat – Caranguejo com cérebro – trata exatamente da idéia do resgate da música pernambucana do marasmo em que, segundo os
seus militantes, esta se encontrava. Defende que da lama deveria nascer restaurada uma rica criação, fazendo alusão aos pobres da cidade e ao mangue como
ecossistema dos mais completos. Daí as expressões cunhadas pelo movimento de mangueboy, manguegirl, manguetown.
6
Os coroados eram tidos como representantes e orientadores daqueles grupos de pessoas. As coroações normalmente incluíam muitas comemorações, manifestações
musicais, políticas, religiosas e um cortejo que apresentava os líderes negros às autoridades civis e religiosas do Brasil de então. A expressão religiosa mais presente no
âmbito do maracatu é o candomblé.
7
Tipo de percussão executado pelo maracutu nação, em oposição ao baque solto, executado pelo maracatu rural.
8
O termo Nação utilizado no Maracatu expressa a idéia de uma comunidade organizada em torno da orientação de uma pessoa, que exerce simultaneamente as funções
de líder comunitário, guia religioso, bem como de Mestre da Orquestra de Maracatu.
9
Nesse brevíssimo levantamento priorizei indicar a maioria dos grupos de Maracatu organizados fora dos estados da Região Nordeste do Brasil por entender que
naqueles locais o maracatu está mais distante culturalmente das tradições locais.

581
recriação das tradições populares um dos caminhos para a retomada da presença jovem no cenário urbano nacional. Por outro
lado, os coletivos surgidos no espaço da cultura popular, geralmente organizados em espaços periféricos das grandes cidades,
oportunizaram aos jovens de periferia o contato com alternativas de cultura e lazer situados fora do circuito do mercado e
ensejaram o surgimento de relações de subjetividade afirmativas a um sem número de meninos e meninas em praticamente todo o
território brasileiro.
No movimento da ‘nacionalização’ do maracatu, os jovens, embora absorvendo apenas a sua percussão e música e
abandonando a complexidade cultural e dinâmicas internas, próprias dessa expressão, uniram linguagens contemporâneas às
tradições, imprimindo ao maracatu novas nuanças, próprias desses novos cenários e culturas locais e dos novos tempos. Por outro
lado, os jovens aportaram nesses ambientes os mestres do maracatu, as histórias, seus valores, toadas e ritmos. Esse fenômeno, se
de algum modo – como dito - ofuscou importantes características das manifestações tradicionais10, lhes conferiu visibilidade em
todo o país, especialmente nas regiões Sudeste e Sul.
Na trajetória apontada, um dado se faz perceber na expansão cada vez maior do maracatu: a preocupação ostensiva da
maioria das lideranças dessa nova geração de batuqueiros com a preservação cultural originária do maracatu, em vista do risco de
sua descaracterização. Onde chega, o maracatu tem sido aproximado das tradições locais, como o boi-de-mamão, em Santa
Catarina; artes do corpo e artes cênicas, em São Paulo, dentre outros, oferecendo uma complexidade maior à questão. Ante a
problemática posta, não é raro o interesse e o esforço envidados pelos jovens com vistas à proteção dos construtos materiais e
simbólicos de todo um patrimônio cultural ora ambientado em contextos urbanos onde a cultura de massas, potencializada pelas
ações para o mercado, se mostra avassaladora, mormente junto aos segmentos jovens.
Tendo em vista essa realidade, os líderes contemporâneos desse caldeirão cultural passaram a viabilizar o encontro e
trocas entre os jovens adeptos e os grandes Mestres do Maracatu do Recife, como Mestre Walter, Maurício, Chacon e Afonso
Aguiar, entre outros, com o fito de manter viva a tradição, naquilo que ela tem de essencial. Os Encontros de Pessoas que
Trabalham com a Música e a Dança de Maracatu de Baque Virado, ocorridos em São Paulo, numa iniciativa de Éder, “O”
Rocha11, têm sido momentos privilegiados de re-conexão de valores e sentidos do maracatu. A presença constante de vários
batuqueiros do País nos barracões das Nações situados na periferia do Recife-PE é outra estratégia frequente para o aprendizado
junto à fonte da tradição. Dentre os grupos, muitos jovens são partidários da manutenção da ‘pureza’ da tradição e até do
aprofundamento das práticas com vistas à consolidação de uma Nação, muito embora seja algo polêmico a adoção, pelos grupos,
da hierarquia rígida presente na estrutura organizativa das Nações. Outros postulam sua inovação, com a abertura para as pautas
de outras expressões populares. Mais polêmica é a defesa da relação do maracatu orientada pelas relações de mercado, onde
alguns segmentos defendem a possibilidade de oferecer serviços, construir instrumentos etc, enquanto profissional de música,
resguardando-se o direito de obter o seu sustento dessa atividade. São questões postas pelos jovens, a ser dirimidas por eles
próprios em suas práticas e vivências no interior dos grupos e na relação dos diversos coletivos com os ambientes em que estão
inseridos.

Novos tambores no Sul do Brasil.


Como apontado, as Regiões Sudeste e Sul do Brasil foram aquelas que se mostraram mais receptivas à chegada do
maracatu. Neste tópico abordo um dos coletivos que se formaram nessa diáspora cultural – o maracatu Arrasta Ilha-AI, de
Florianópolis-SC - evidenciando a experiência particular do grupo nesse processo.
A cidade de Florianópolis, de colonização prioritariamente açoriana, tem sua cultura popular predominante organizada
em torno da tradição herdada do Arquipélago dos Açores, mormente quanto ao boi de mamão, às festas vinculadas à tradição
pesqueira da Ilha e às festas religiosas católicas, em especial à Festa do Divino. Expressões culturais oriundas do povo negro que
aqui chegou por diversos caminhos têm estado quase que silenciada, resistindo através de pessoas isoladas que as cultivam nos
seus locais de moradia. Tradições como o catumbi e o orocongo subsistiram somente no âmbito de famílias ou pequenos grupos,
que preservaram ritmos e instrumentos, existindo atualmente, embora tímido, um movimento de recolocação na cena cultural da
cidade.
Cidade ainda pequena, com população por volta de 400 mil habitantes, em sua maioria, concentrados na Ilha de Santa
Catarina. Mormente a partir da década de 80, os governos locais têm desenvolvido intensas políticas de turismo, assentadas na sua
beleza natural, diferente em cada estação do ano. Esse incentivo e as características locais têm feito da cidade destino turístico
privilegiado de brasileiros e estrangeiros, o que faz com que a população atinja o número de um milhão de habitantes no alto
verão. Como não poderia ser diferente, este fenômeno provoca uma intensa circulação pela cidade de pessoas de origens e
culturas várias e oportuniza, por parte de vários a escolha de passar a residir, estudar e/ou trabalhar naquele município. A

10
Parte dos grupos, embora permanecendo fiel à música, aos ritmos etc, incorporou nas suas apresentações motivos das culturas locais, como o jongo, boi-de-mamão
etc., bem como a polêmica apresentação remunerada, oficinas permanentes também remuneradas etc. Assim, os grupos romperam com a lógica comunitária que as
Nações de Maracatu preservam, tendo sido este aspecto motivo de profunda divergência entre alguns dos grupos organizados.
11
Destacado batuqueiro das novas gerações, de importância ímpar para a migração do maracatu.

582
Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC conta dentre seus estudantes com destacado contingente de pessoas provenientes
de outros estados do Brasil, constituindo uma população acadêmica plural, que ambientando relações e trocas diversas entre os
seus membros. Foi desse contexto diversificado que o processo de recriação das tradições populares ocorreu na cidade abordada,
por jovens que, na sua maioria, tem origem em outros estados do Brasil.
O maracatu Arrasta Ilha surgiu a partir de oficinas organizadas pela jovem dançarina de ritmos afros, Brunna Tayer.
Foram ministrantes das primeiras oficinas Frederico Nêgo Véio, do Maracatu Trovão de Minas, mas originariamente vinculado à
Nação Estrela Brilhante e Alexandre Damaria, do Riomaracatu. Esses jovens batuqueiros foram sucedidos nas oficinas seguintes
pelos mestres da Nação Estrela Brilhante e da Nação Porto Rico, ambas do Estado de Pernambuco.
O núcleo inicial de organização foi constituído por jovens que já participavam de algumas iniciativas culturais na
cidade, alternativas à música e arte de mercad, como a cultura afro, percussão, dança, poesia e capoeira, bem como jovens
vinculadas ao Movimento Anarco-Punk. Outros passaram a se interessar pela música do maracatu ao entrar em contato com o
ritmo e por já possuir algum conhecimento com a tendência cultural/musical Mangue Beat. Assim, o grupo que nascia possibilitou
a congregação, em torno do maracatu, de vários segmentos juvenis que gravitavam em torno da arte e de práticas libertárias.
O grupo possui por volta de 40 membros sem seu entorno. À época da pesquisa não possuía sede, regulamentos escritos,
registros, ou quaisquer outros aparatos similares, não exibindo características frequentemente presentes na formação grupal.
Reune-se especialmente na casa dos amigos e em locais públicos e ensaia, aos domingos, em frente ao Básico da Universidade
Federal de Santa Catarina-UFSC. Também possui home page e lista de discussão na Internet.
Dos membros do grupo, a maioria é do sexo masculino, solteira, com instrução superior ou ainda fazendo faculdade.
Encontra-se na faixa etária entre 22 e 27 anos de idade e considera-se branca. Procedem majoritariamente de outros Estados
brasileiros, majoritariamente de São Paulo. Os estudos são apontados como a razão pela qual grande parte buscou a cidade,
seguidos pela afinidade com a mesma. A observação e as entrevistas evidenciaram que a vinda da maioria dos membros do grupo
para Florianópolis deu-se num contexto de rompimento ou mudança significativa em relação a situações estabelecidas em suas
vidas, evidenciando, quanto a alguns, a busca pessoal de algo diferente do que viviam nas suas localidades de origem.
Embora exercendo alguma ocupação, a maioria também experimenta situações de precarização das relações de trabalho
e de salário. São partidários da idéia do trabalho como expressão do ser, afirmando da relevância do envolvimento em atividades
laborais a partir da afinidade subjetiva com aquilo que é produzido e com o próprio processo de produção. Com frequência valem-
se do mutirão para confeccionar figurinos e instrumentos, bem como para afiná-los, atribuindo a essa atividade significado de
construção coletiva de relação com os outros e com o mundo.
No estilo do que usam e vestem é forte a presença de saias longas e rodadas, de chita ou brancas, enfeitadas de rendas de
diversos padrões, os vestidos, camisetas temáticas e calças e bermudas de algodão. Outros também usam peças comuns, que se
mostram fora do padrão veiculado na mídia. Muitos pés são calçados por sandálias e sapatinhos artesanais de crochet, sandálias de
couro à moda nordestina e sandálias modelo havaianas. Não é incomum se apresentarem descalços.
Muitos deles exibem tatuagens; uma ou mais de uma. No corpo estampam mensagens pela vida, pela natureza e pela
liberdade através de figuras de bichos e flores, motivos políticos, tribais e indígenas. Os cabelos da maioria, independente do
sexo, seguem ao natural, crescidos e por vezes com tererês ou dreads. São comuns nas cabeças as faixas coloridas de diversos
padrões e as toucas coloridas de crochet ou tricô. Os adereços seguem o padrão já exposto: colares, pulseiras, tornozeleiras feitas
de miçangas, sementes, conchinhas, continhas de madeira, linhas, fibras naturais etc.
A presença dos jovens do Arrasta Ilha ocorre num contexto de capilaridade participativa num extenso número de
coletivos juvenis que se organiza em torno da música, culturas, militâncias e estilos de vida alternativos, organizados por toda a
cidade de Florianópolis. Dizem participar dos ‘1.700 amigos’, espalhados pelos grupos Muiraquitã, Batucajé, Balakubatuki, Odua,
Siri-Goiá, Capoeira Angola Palmares, Tributo a Chico Science, Rádio de Tróia, Bicicletada, Centros Acadêmicos da UFSC,
dentre outros. Esses grupos constituem uma rede de sociabilidades desses muitos jovens que habitam a Ilha e o seu entorno.
Na cena urbana de Florianóplis, o maracatu Arrasta Ilha se mostra como um dos aglutinadores de práticas de um grande
contingente de jovens. Outro aspecto que se destaca é o fato do grupo se mostrar como uma ‘porta de entrada’ para os jovens que
chegam à Ilha. Aqueles que comparecem aos ensaios/encontros – com ou sem seus instrumentos, sabendo tocar ou não – no AI
encontram a receptividade, o espaço para iniciar o seu círculo de convivência na cidade, conhecer os códigos de relações juvenis
etc, seja permanecendo no grupo ou se articulando em outros ambientes.
Nas observações identifiquei que, se a primeira motivação para aproximar-se do grupo era a afinidade com o batuque, a
participação nas experiências que ali aconteciam aprofundavam vínculos de pertencimento entre os participantes e proximidade
com os temas que mobilizavam os jovens da cidade. Ao longo da investigação foi possível identificar que, para os membros do
coletivo, os valores que os animavam estavam postos no sentido de tocar maracatu enquanto uma prática de prazer, e de

583
transcendência12, no compromisso de proteção e propulsão da cultura popular. Por essa escolha é que o grupo se apresentava com
frequência nos morros e favelas da cidade, aí oferecendo oficinas de percussão às crianças, entendendo-se com responsabilidades
diante desses segmentos. A intenção manifesta era “devolver o maracatu para as comunidades de onde ele veio”, ciente de que o
maracatu como uma expressão cultural não se vinculava às origens da população branca, de classe média e instruída à qual, em
maioria, estavam inseridos. O compromisso também se evidenciava com o valor da estética, da arte e da cultura popular enquanto
mecanismos de transformação social. Assim, se relacionavam com o maracatu como um espaço de adoção de posturas políticas
críticas ao status quo; de preocupação com a questão eco-social, da escolha do coletivo como importante forma de intervenção no
mundo e, por fim, de respeito à pluralidade que caracteriza o universo juvenil.
Dessa perspectiva, considero que, animando esse espaço de relações e acontecimentos, o maracatu tem-se mostrado
como um ponto de síntese fundamental para os muitos jovens da cidade que se colocam no mundo a partir de uma determinada
perspectiva. Um importante espaço para a experimentação dos valores que orientam a intervenção no mundo, a existência grupal,
a recriação da cultura popular e, nesse ambiente, a constituição de identidades juvenis.

Considerações finais.
É possível perceber que em realidades plurais do nosso tempo e processos particularmente complexos da
contemporaneidade têm contribuído para uma manifestação também plural das juventudes. Em ambientes pontuados pelo uso do
computador, dos transportes rápidos, dos telefones, das mudanças das instituições e dos papéis sociais etc - as juventudes estão
consolidando uma relevante interferência no cenário cultural, no sentido do estabelecimento de contextos multiculturais. O Brasil
não está fora deste cenário, como podemos ver. Conforme encontrado nas investigações, em vários ambientes a intervenção
juvenil se faz no sentido de recriar as expressões culturais, resguardando para a posteridade o patrimônio imaterial e o valor da
experiência de importantes segmentos da história brasileira, entretanto, em convivência com desafios e tensões várias. É no
espaço dos coletivos culturais que os jovens elaboram lugares discursivos e escolhas político-social-culturais que reafirmam
sentidos alternativos àqueles do mundo construído, coadunando-os às referências da tradição e às incertezas e impermanências do
seu tempo. As manifestações culturais, entendidas como processo socialmente interativo de elaboração do reconhecimento e
pertencimento, aparecem assim como o espaço simbólico onde as variadas juventudes do Brasil podem construir sentidos e modos
de estar no mundo, o partilhar de pontos de vista, afetos, talentos e elaborar intervenções ativas no mundo, destacando a autoria
jovem nos processos desencadeados ante os desafios da contemporaneidade. Assim, os coletivos juvenis se apresentam como o
lugar de ancoragem das manifestações, inaugurando novos fazeres e reconstrução de sentidos das vivências que partilham, ‘novos
ritos de passagem’, novas referências re-tradutoras da própria ação coletiva juvenil num cenário de radicalização da cultura de
massas. As investigações evidenciam que a experiências no campo das expressões culturais oportunizam possibilidades de novos
re-conhecimentos dos jovens brasileiros que, em herdando certa letargia da dura realidade dos anos 80, puderam reencontrar nas
tradições populares do país a trajetória dos seus ancestrais e, nela inseridos, delinearam seus lugares de intervenção positiva e
pertença, como possível nos tempos liquefeitos da atualidade, para usar a expressão de Zigmunt Bauman.

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12
O sentido dado aqui à palavra transcendência refere-se às experiências de cunho algo mítico, como ilustrado no depoimento de um membro do grupo: “uma coisa
que eu acho que acontece também é que tem uma ligação muito forte com o Candomblé, né? Então, essa conexão, essa coisa que não pertence a nós assim, tá muito
ligado a isso também. Aos orixás, aos elementos da natureza... (...) são forças da religião, forças espirituais assim. (...)”.

584
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Mudanças na estrutura demográfica do Espirito Santo - Brasil


Aurélia H. Castiglioni
Universidade Federal do Espírito Santo
[email protected]

585
Resumo: O mundo passou, no último século por importantes mudanças demográficas ocasionadas por modificações, ainda em curso, dos
comportamentos dos fenômenos demográficos, relacionando fecundidade, mortalidade e migração. Este estudo focaliza o Estado do Espírito
Santo, marcado, na segunda metade do século XX, por alterações importantes que ocorreram no crescimento, na composição e na redistribuição
de sua população. Tais mudanças são resultantes da evolução do processo da Transição Demográfica e das transformações da estrutura sócio-
econômica que impulsionaram importantes transferências espaciais da população das zonas rurais para as urbanas, em especial para a principal
aglomeração urbana, a Região Metropolitana de Vitória, que concentra a metade da população do Estado. O trabalho tem por finalidade o estudo
das características da população e dos fenômenos demográficos – natalidade, mortalidade e migrações - que condicionam a dimensão, composição
e dinâmica da população do Estado e de seus Municípios. O conhecimento dos componentes, dos determinantes, das tendências e das
consequências dessas transformações é de grande relevância para a definição das necessidades e prioridades que devem nortear o planejamento
sócio-econômico da região.

Introdução
O Espírito Santo, um pequeno Estado situado na Região Sudeste do Brasil, vivenciou modelos de desenvolvimento e de
povoamento peculiares. Em virtude de razões históricas, políticas, econômicas e sociais, o desenvolvimento desse Estado foi
marcado, até meados do século XX, por características fortemente rurais, e por retardo econômico e social comparativamente aos
demais estados da região Sudeste. Este artigo analisa as mudanças ocorridas nos comportamentos dos fenômenos demográficos
nas décadas da segunda metade do século XX, colocando em evidência a originalidade dos processos da transição demográfica e
da (re)distribuição de população no Espírito Santo.
A transição demográfica é uma das transformações mais importantes ocorridas na história das populações em todo o
mundo no último século, em particular em sua segunda metade. Este processo, que consiste na passagem de uma situação
caracterizada por níveis elevados de natalidade e mortalidade a uma situação em que os níveis dos dois componentes do
crescimento são baixos, ocorre em todo o mundo: os países de desenvolvimento mais avançado iniciaram a transição há cerca de
dois séculos atrás e já completaram o processo, todos os demais países estão passando atualmente pelas fases da transição (D.
Tabutin, sd). Como ressalta Brito: “Trata-se de um fenômeno caracterizado por sua universalidade, mas fortemente condicionado
pelas condições históricas em que se realiza nos diferentes países. Sua diferença em relação aos países desenvolvidos e sua
semelhança com outros em desenvolvimento não esgotam a sua originalidade” (F. Brito, 2008, p.6).
A melhoria das condições de vida das sociedades, que resultam em ganhos de duração de vida, implicam em mudanças
nos padrões da mortalidade: na passagem de altas para baixas taxas, passa-se de um perfil de mortalidade por doenças infecciosas
para um novo perfil em que predominam as doenças crônico-degenerativas e também as causas externas, nas quais se incluem as
mortes violentas (P. R. Prata, 1992).
No que diz respeito ao comportamento fecundo, a passagem de uma sociedade tradicional a moderna, se caracteriza por
modificações profundas da estrutura produtiva, que passa de agrária a urbano-industrial, concomitante à evolução da estrutura
familiar, que passa de numerosa à nuclear. O declínio da fecundidade ocorre em consequência do processo de modernização da
sociedade, que resume uma série de fatores de ordem econômica, social e cultural, dentre os quais podem ser citados as
modificações na estrutura produtiva e familiar, a modificação do papel que a mulher desempenha na sociedade, o aumento do
custo dos filhos, as aspirações por determinado estilo de vida, o acesso aos meios de controle e de planejamento familiar, a
urbanização. A fecundidade é elevada nas sociedades tradicionais; já nas sociedades urbano-industriais, a situação se inverte
(Caldwell, 1982).
A defasagem no declínio dos dois componentes do crescimento, natalidade e mortalidade, é responsável por uma das
consequências mais marcantes da transição: o crescimento acelerado da população. Ao longo do tempo, a evolução da transição
provoca modificações significativas na composição da população, com implicações para toda a sociedade.
Paralelamente e estreitamente correlacionada ao crescimento demográfico, ocorreu no mundo uma rápida urbanização,
considerada na ótica de um processo caracterizado pelo aumento da representação dos habitantes da região urbana na população
total. Nas últimas três décadas do século XX o êxodo rural nos países menos desenvolvidos foi tão intenso que o urbano passou a
ser o modo de habitat dominante: em 2008 mais da metade da população do mundo reside nas áreas classificadas como urbanas.
O termo utilizado por P. Bairoch para qualificar o crescimento urbano dos países menos desenvolvidos, “inflação urbana” traduz
bem a magnitude do processo (Bairoch, 1985). Em sua obra sobre a história da urbanização Bairoch destaca a intensidade do
crescimento urbano que os países em desenvolvimento experimentaram no século XX:
“Desde os primeiros anos do século XX, se apresenta um fenômeno inteiramente novo na história mundial da urbanização.
Pela primeira vez, se assiste a uma verdadeira inflação urbana, única em sua amplitude. Única também em suas causas e
consequências. (...) desde o fim da segunda guerra mundial somos colocados diante de uma verdadeira inflação urbana. (...)
No mundo desenvolvido, para passar de uma taxa de urbanização de ordem de 12% à uma taxa de ordem de 32%, foram
necessários cerca de 100 anos, enquanto que esta passagem se efetuou no Terceiro Mundo no espaço de 50 anos. Trata-se
então de uma verdadeira explosão urbana e, ademais, de um fenômeno único em toda a história da urbanização, uma vez

586
que esta rápida progressão da taxa de urbanização foi concomitante a uma inflação demográfica, esta também sem
precedentes. Donde o aumento considerável da população das cidades do Terceiro Mundo”.1 (Bairoch, 1985, p. 547).

A evolução demográfica do Espírito Santo apresentou, durante a segunda metade do século XX, transformações
significativas dos componentes do crescimento ocorridas em consequência da evolução da transição demográfica, concomitante a
um intenso processo de redistribuição de população da zona rural para a urbana, em especial para a maior aglomeração urbana, a
região da capital.
A história da evolução do processo de povoamento do Estado fornece as bases para a compreensão da situação
particular apresentada pelo Espírito Santo no contexto nacional. Em mais de três séculos de colonização a população do Espírito
Santo pouco evoluiu, chegando ao início do século XIX com pouco mais de 20.000 habitantes (Marques, 1878). Na segunda
metade do século XIX, chegaram os imigrantes europeus, expulsos pela grave crise que assolava suas terras de origem, mas, por
outro lado, atraídos pelas vantagens oferecidas pelos programas imigratórios que representavam para este contingente a grande
oportunidade para a concretização do sonho de transformarem-se em proprietários de terras (Castiglioni & Reginato, 1997). O
afluxo de imigrantes, a complementação de suas famílias, chegadas ainda em plena fase de procriação, associados às elevadas
taxas de fecundidade dos descendentes, fizeram com que a população apresentasse naquela época, as maiores taxas de
crescimento de sua história: 3,27% no período de 1856 a 1872, 2,84 no período de 1872 a 1890, 4,43 entre 1890 e 1900, e de 3,97
entre 1900 e 1920 (IBGE, 1926).
A ocupação do território do Estado assentada nos pilares imigração estrangeira, cultura do café e pequena propriedade,
desenhou-se de maneira particular no Espírito Santo, em virtude da pequena população existente na época e da grande
disponibilidade de terras (Castiglioni & Reginato, sd). Em 1872 a população da Província representava apenas 0,81% da
população do Brasil e a densidade era de 1,92 hab/Km² (IBGE, 1950). O governo gerou medidas que possibilitaram aos
imigrantes a aquisição de pequenas e médias propriedades enquanto que a cultura cafeeira agia como o elemento propulsor da
expansão do povoamento.
Em consequência do tipo de colonização adotado estabeleceu-se no Espírito Santo uma estrutura fundiária pouco
concentrada se comparada à dos outros estados do país. Em 1950 a concentração de terras no Espírito Santo era a menor
apresentada pelos estados do Brasil: o valor do índice de Gini calculado para o Brasil, igual a 0,84, indica uma forte concentração
das terras, porém, no Espírito Santo o valor do indicador baixa para 0,51 (IBGE, 1998). As pequenas e médias propriedades, com
menos de 100 ha ocupavam 18% da área total das propriedades do país enquanto que, no Espírito Santo, este grupo ocupava mais
da metade da área, 52,5%. No senso oposto, as fazendas de 1.000 ha ou mais ocupavam, em 1950, a metade da área total das
propriedades do país e apenas 7,5% no Espírito Santo. (Castiglioni & Reginato, sd).
A fixação das famílias de imigrantes nas pequenas e médias propriedades onde se cultivava o café, e a permanência dos
descendentes nas terras adquiridas pela família consolidaram as bases rurais da economia e da sociedade (Celin, 1984). O Espírito
Santo situava-se próximo aos principais pólos econômicos, além de contar com extenso litoral favorável ao estabelecimento de
portos, não obstante, era ainda em 1950, uma das unidades mais rurais do Brasil, com 79,2% de sua população habitando nas
regiões rurais.
Nessa época, o modelo da agricultura familiar de produção cafeeira adotado nas pequenas propriedades atinge seus
limites. Para enfrentar a grave crise econômica provocada pela expansão da cultura do café, a superprodução e a queda dos
preços, o governo federal elaborou um programa de redução do produto, erradicando na década de 1960 mais da metade dos
cafezais (Rocha & Morandi, 1991). A desestruturação das bases rurais da sociedade e as mudanças econômicas estruturais que se
seguiram produziram impactos que repercutiram em várias esferas, devido à forte participação da agricultura na economia e na
geração de empregos, em particular no modelo de distribuição da população.

Modificações dos componentes do crescimento natural


A transição demográfica é o fator primordial das mudanças que ocorreram na estrutura demográfica do Estado na
segunda metade do século XX. As tendências gerais do processo são semelhantes às observadas no país, não obstante, são
observadas algumas particularidades nos comportamentos dos componentes do crescimento natural: natalidade mais elevada que a
média do país, e, por outro lado, padrão mais elevado de duração de vida. O Espírito Santo apresentava nos meados do século,
uma sociedade de bases agrárias, com fortes tradições rurais, cujo modelo familiar amplo tinha padrões de fecundidade similares
aos das Regiões Norte e Nordeste, as menos desenvolvidas do país. Nas décadas dos meados do século XX, o número médio de
filhos por mulher era superior a sete. A queda da fecundidade ocorreu com atraso, com relação ao conjunto do país, porém de
forma acelerada (figura 1). Na década de 1960, paralelamente às mudanças nas estruturas produtiva e familiar associadas à
introdução e difusão de métodos contraceptivos, se anuncia a trajetória de declínio das taxas de fecundidade: no final da década, o
indicador de fecundidade atinge o patamar de 6,4 filhos por mulher. O descenso, modesto nos anos sessenta, se acelera nas

1
Tradução da autora

587
décadas seguintes. A migração e a consequente urbanização adicionam seus efeitos como redutores da fecundidade, pois as
mulheres que migram entre regiões de diferentes níveis de urbanização passam, no decorrer do tempo, a adotar os
comportamentos de fecundidade similares aos dos habitantes da região de destino, resultantes de sua adaptação ao modo de vida
do novo ambiente, ou seja, às novas exigências físicas, econômicas e sociais do meio (Castiglioni, 1989). O declínio se acentua no
decorrer dos anos 70 e 80 e continua na década de 90, porém com um ritmo mais lento.
No final do século a fecundidade converge progressivamente para níveis similares aos da região Sudeste, atingindo em
2000 o nível de reposição, de 2,1 filhos por mulher. Os indicadores mostram que o Estado encontra-se na fase final do processo
transicional. Segundo as projeções feitas pelo IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Estado apresenta atualmente
Taxa de Fecundidade Total abaixo do nível de reposição e taxa bruta de Reprodução, igual a 0,90 indicando que o contingente de
futuras mães se reduzirá. (Castiglioni & Hespanha Brasil, 2008).

Figura 1 – Evolução das taxas de fecundidade total - Brasil e Espírito Santo - 1940 a 2010

8
7,1
TEF 7,6
7,2
6,4
6
6,2 6,2 6,3
5,8
4,4

4
4,3
2,9
2,3
2,2
2,8
2
2,1
1,85

0
1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010

Brasil Espírito Santo Anos

Fontes: Elaboração da Equipe Agenda Vitória: Dinâmica Populacional, com dados publicados pelo IBGE - Anuário Estatístico do Brasil, 1992, Projeto
IBGE/Fundo de População das Nações Unidas – UNFPA/Brasil (Brasil/98); IBGE, Censo demográfico 2000, Fecundidade e Mortalidade Infantil, 2002; IBGE.
Indicadores sociodemográficos prospectivos para o Brasil, 1991-2030, 2006.

Com relação à mortalidade, a situação do Estado foi sempre melhor que a do conjunto do país, em consequência da
formação de sua população composta por descendentes de imigrantes europeus, cuja cultura influiu positivamente os hábitos e
costumes da população. A esperança de vida ao nascer que era de 47,19 anos em 1940 passou a 69,39 para ambos os sexos em
1991, a 73,14 em 2005 (Figura 2). Os níveis segundo o sexo variam, em 2005, de 69,56 para os homens a 76,90 para as mulheres.
Paralelamente aos ganhos de duração da vida, a composição da mortalidade se modificou (Castiglioni & Hespanha
Brasil, 2008). O perfil da mortalidade apresenta baixa incidência de doenças infecciosas e parasitárias, e aumento progressivo das
mortes ligadas ao processo de envelhecimento do organismo. Dentre as quatro principais causas de morte, três são decorrentes do
processo degenerativo do organismo: as doenças do aparelho circulatório, responsáveis pelo maior número de mortes, 31,64% em
2005, as neoplasias, com 19,26% e o grupo de doenças do aparelho respiratório. Dentre as causas principais aparece, em posição
importante, como o terceiro maior grupo em número de ocorrências, o das causas externas, que englobam as mortes provocadas
por acidentes diversos, homicídios, suicídios, entre outros, cuja representação era de a 18,1% dos óbitos em 2005
(MS/SVS/DASIS, 2008).
A duração da vida seria maior, se não fosse a elevada incidência de mortes violentas por acidentes de trânsito e
homicídios. A seletividade da mortalidade do grupo de Causas Externas, que afetam principalmente os jovens do sexo masculino,
e os fatores biológicos, são os fatores explicativos dos diferenciais de mortalidade entre os sexos que têm registrado um aumento
nas últimas décadas, sendo de 7,34 anos em favor da mulher em 2005. Segundo as projeções do IBGE/DPE, a duração da vida
atingirá o valor de 78,95 anos em 2030, 75,65 para os homens e 82,41 para as mulheres (IBGE, 2004).
O declínio da mortalidade infantil é um dos principais responsáveis pelos ganhos na duração da vida, porém seus níveis
devem ainda baixar. Assim como foi observado para a mortalidade geral, a mortalidade infantil também reflete melhores
condições de vida no Espírito Santo que na maior parte do país (Castiglioni & Hespanha Brasil, 2008). Na década de 1930, a TMI
do Espírito Santo era de 139,30 mortes de crianças de menos de 1 ano por 1000 nascidas vivas enquanto que no conjunto do país

588
o nível elevava-se a 158,27 por mil. Na década de 1970, o nível atingia 60,73 no Estado, contra 87,88 do Brasil (IBGE, 1988). Em
2005, a TMI do Espírito Santo é de 20,2 e a do Brasil, de 25,80. Segundo as previsões do IBGE a TMI do Espírito Santo tenderá a
descer ao nível de 9,4 em 2030. (IBGE, Revisão 2004).

Figura 2 – Evolução esperança de vida ao nascimento - Brasil e Espírito Santo - 1940 a 2010

90
Eo
74,53
67,27 69,39 71,65

57,89 57,92 73,4


50,4 70,43
60 66,57
47,19
60,08
52,67
52,37
45,9
42,74
30

0
1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
A no s
B ra s il E s pí rit o S a nt o

Fontes: Elaboração da Equipe Agenda Vitória: Dinâmica Populacional, com dados publicados pelo IBGE – Anuário Estatístico do Brasil, 1988 e
IBGE/DPE/Coordenação de População e Indicadores Sociais. Projeto UNFPA/BRASIL (BRA/02/P02).

Modificações na composição da população


A Transição Demográfica, iniciada na primeira metade do século XX, com o decréscimo da mortalidade, acelerou-se na
segunda metade com o declínio acentuado da natalidade e, atualmente aproxima-se da etapa final do processo. O comportamento
da taxa média geométrica de crescimento anual traduz a evolução do processo: os valores que atingiam 3,18% entre 1960 e 1970,
no início da queda da natalidade, reduzem-se à 1,98% entre 1991 e 2000.
Como é clássico na transição, durante as diversas etapas do processo, deu-se a gradativa modificação dos pesos dos
vários segmentos que compõem a população (Tabela 1). O segmento de crianças e jovens perdeu progressivamente sua
representação em favor das faixas etárias adultas e idosas. A proporção do grupo de menos de 15 anos foi declinando
progressivamente de 44,9% em 1970 chegando ao nível de 28,70% em 2000. Concomitantemente, a proporção de pessoas de 65
anos ou mais subiu gradativamente de 2,81 a 5,53% durante o referido período, sendo este o segmento que mais cresce na
população.
O processo de envelhecimento também ocorre com maior rapidez no Espírito Santo, com atesta a evolução da idade
mediana: a do Brasil, que representa a tendência média do país, subiu de 18,8 a 24,2 anos entre 1970 a 2000, enquanto que a do
Espírito Santo evoluiu, no período, do nível inicialmente mais jovem que o do país, de 16,95; a um valor mais elevado que a
média nacional, de 25,40. Isto é, enquanto a idade mediana brasileira apresenta um diferencial de 5,4 anos entre 1970 a 2000,
foram acrescidos, no curso do mesmo período, 8,45 anos à mediana inicial do Estado. (Castiglioni, 2006).

Tabela nº. 1. Evolução dos Indicadores de estrutura etária - Espírito Santo - 1970 a 2000
Indicadores ANOS
1970 1980 1991 2000
Grupos de idade (%): 0-14 anos 44,90 38,80 34,87 28,70
15-64 anos 52,29 57,41 60,79 65,77
65 anos ou mais 2,81 3,79 4,34 5,53
Razão de Dependência 91,24 74,19 64,50 52,05
Idade média 21,66 23,46 25,64 28,82
Idade mediana 16,95 19,57 22,62 25,40
Índice de Idosos 6,26 9,77 12,45 19,27
Fonte: Elaborado a partir dos dados do IBGE, Censos (1970 a 2000).

589
À medida que a população envelhece observa-se a feminização, decorrente da maior longevidade das mulheres. A
sobremortalidade masculina produz um déficit de homens na população, traduzido pelo índice de masculinidade que, em 2000 era
de 98,2 homens por grupo de 100 mulheres no Espírito Santo. O comportamento do índice de masculinidade apresenta diminuição
progressiva ao longo da idade: seu valor, relativo à população de 60 anos ou mais, de 84,71 homens para cada grupo de 100
mulheres, diminui paulatinamente para 82,88 no grupo de 65 anos ou mais e, ainda para 68,09 homens por 100 mulheres quando
se considera o grupo de 85 anos ou mais. (Castiglioni, 2006).
Com o alongamento progressivo da expectativa de vida, cresce o número dos idosos que, na chamada “quarta idade”
demanda importantes investimentos em saúde, serviços especializados, asilos. Estes números apresentam tendência crescente,
pois a evolução do conhecimento científico na área da saúde aponta para novas conquistas e ganhos de longevidade. É importante
ressaltar que estas transformações que estão se iniciando, tenderão a se acentuar nas próximas décadas. Estamos evoluindo
rapidamente para os patamares, atualmente apresentados pelos países mais desenvolvidos, que já atingiram a fase de equilíbrio do
final do processo da transição. Nestes, a proporção de idosos, de mais de 65 anos, já está próxima dos 20%, nível este que,
segundo as projeções, será atingido pelo Espírito Santo nos meados deste século. (Castiglioni, 2006).
Os valores da razão de dependência, em declínio acentuado no período apresentado na tabela 1, resultam da redução do
segmento jovem e da transferência desses jovens para o grupo ativo, alimentando o chamado “bônus demográfico”. Com efeito, a
queda da natalidade afeta imediatamente a base da pirâmide, enquanto os grupos de jovens adultos continuam a apresentar
contingentes mais elevados, advindos de períodos de maior fecundidade. Mais tarde, à medida que estas novas gerações avançam
em idade, e que a duração da vida se alonga, aumentará a transferência de ativos para o grupo dos idosos. Ao longo do presente
século, a concretização dessa tendência provocará o aumento da relação de dependência.
As pirâmides etárias do Espírito Santo representadas nas figuras 3, 4 e 5 traduzem as transformações descritas. A
estrutura etária do Espírito Santo compõe, em 1980, uma pirâmide com a forma clássica, com representação mais importante do
segmento das crianças traduzindo níveis de natalidade ainda elevados. A partir dos meados da década de oitenta, o declínio da
natalidade provocou a redução da barra inferior da pirâmide de 1991. A estrutura de 2000 revela a continuidade das mudanças
decorrentes do curso da transição. A figura evoluirá para uma forma cada vez mais retangular, traduzindo as modificações
gradativas que os processos em curso ocasionarão na representação dos diversos segmentos que compõem a população: crianças,
população escolar, população ativa, idosos. O processo de desenvolvimento, subjacente às transformações em curso implica em
disponibilizar novos recursos e políticas públicas voltadas para o atendimento das novas necessidades e demandas de educação,
saúde, emprego e previdência social. (Castiglioni, 2006).

Figura 3. Pirâmide Etária do Espírito Santo – 1980

80-84
70-74 Hom ens Mulheres

60-64
50-54
40-44
30-34
20-24
10-14
0-4
8 6 4 2 0 2 4 6 8

Figura 4. Pirâmide Etária do Espírito Santo – 1991

80-84
70-74 Hom ens Mulheres

60-64
50-54

40-44
30-34
20-24

10-14
0-4
8 6 4 2 0 2 4 6 8

590
Figura 5. Pirâmide Etária do Espírito Santo – 2000

80-84

70-74 Hom ens Mulheres

60-64

50-54

40-44

30-34

20-24

10-14

0-4

8 6 4 2 0 2 4 6 8

Redistribuição da população
A modificação da distribuição espacial da população que ocorreu no Espírito Santo, ao longo da segunda metade do
século XX, apresentou as mesmas características que marcam os modelos atualmente vigentes nos países em desenvolvimento. Os
traços mais importantes deste processo no Estado são a evolução crescente dos níveis de urbanização e a concentração exagerada
da população na maior aglomeração urbana, provocando a chamada “inchação urbana” da Região da Grande Vitória2.
Em consequência do modelo de colonização adotado, assim como ocorreu com o processo de transição demográfica,
também o processo de urbanização começou tardiamente no Espírito Santo. Em 1950 o nível médio de urbanização do Brasil era
de 36,2% e a do Espírito Santo, de 20,8%. Examinando a zona colonial do Espírito Santo nessa década, Petrone enfatizou em sua
análise a inexistência de verdadeiros nódulos populacionais, num contexto caracterizado pela descontinuidade e pelo isolamento.
O autor qualificou esta situação como falta de “vocação urbana” (Petrone, 1962). A distribuição da população segundo os
municípios do Estado deixa clara esta “falta de vocação urbana” a que se refere Petrone. Dentre os 31 municípios existentes em
1950, 11 apresentam proporções de população rural superiores a 90%. Na maioria dos municípios, 18 deles, as sedes não
chegavam a concentrar 10% da população. (IBGE, 1955).
A população do país passou a ser predominantemente urbana na década de 1960, influenciada pelas elevadas taxas de
Estados da Região Sudeste, São Paulo e Rio de Janeiro, enquanto que, no Espírito Santo, esta passagem só ocorreu no decorrer
dos anos setenta.
Vários vetores sócio-econômicos, demográficos e políticos interagiram no redesenho da configuração dos espaços e da
distribuição da população, os principais deles foram fatores expulsores existentes na zona rural que impeliram um elevado
contingente a transferir-se para outras regiões. (Castiglioni & Reginato, 2008).
A transformação da estrutura do sistema produtivo, tendo como eixo principal a crise da cafeicultura, constitui um dos
principais determinantes do êxodo que drenou a população rural. Os problemas do setor cafeeiro que eclodiram nos meados do
século, a baixa dos preços do café e as medidas tomadas pelo Governo para solucionar a crise, constituíram o motor que
desmontou a estrutura agrária que foi a base da economia do Estado por mais de um século. Um intenso êxodo rural se seguiu,
durante as décadas de 1960 e 1970, uma vez que a desestruturação do modelo vigente teve como principal consequência a
expulsão da mão-de-obra rural.
O incremento elevado da população coloca-se, ao lado da crise agrícola, como outro determinante importante das
transformações ocorridas no processo de redistribuição da população. Existe uma ligação estreita entre as fases da transição
demográfica e os níveis de urbanização. No curso da transição demográfica, na fase caracterizada pela queda da mortalidade e
manutenção de níveis elevados de natalidade, que corresponde à situação apresentada pelo Espírito Santo nos meados do século,
cria-se um excesso de mão-de-obra na região rural que faz pressão sobre a propriedade da terra e sobre os postos de trabalho no
campo. Enquanto havia abundância de terras, era comum entre os proprietários mais bem sucedidos, economizar recursos para
comprar terras e estabelecer os filhos que se casavam em novas colônias onde formariam suas famílias (Celin, 1984). Porém, nos
meados do século, as taxas elevadas de crescimento natural da população na zona rural, aumentaram a pressão da mão-de-obra
sobre os empregos. Muitas propriedades de tamanho pequeno e médio ficaram fragmentadas pelo sistema de herança concedida
aos vários filhos, após várias gerações de famílias numerosas. As propriedades familiares não produziam mais os empregos
necessários para absorver o crescimento da prole e da mão-de-obra fornecida pelas numerosas famílias dos colonos, criando um
excesso de mão-de-obra que era impelida a deixar o campo. A solução efetiva para a sociedade rural que passa por esta fase é a

2
A Região da Grande Vitória era formada pelos municípios de Cariacica, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória. Em 1995 foi criada a Rigião Metropolitana da Grande
Vitória.

591
emigração, e, para os migrantes do Espírito Santo as destinações possíveis foram outros estados próximos, zonas pioneiras, as
sedes dos municípios locais e, em especial, os municípios que formavam a Grande Vitória, que, deve-se ressaltar, não dispunham
de empregos para absorver a mão-de-obra agrícola. Esta foi uma fase de grandes dificuldades econômicas para o Estado, como
também de elevado crescimento urbano e de rápida expansão da principal aglomeração urbana.
A crise agrária refletiu-se na estrutura fundiária e induziu ajustes no modo de utilização da terra. Como é clássico neste
processo, registrou-se no Estado o aumento cada vez mais importante da superfície ocupada pelas grandes fazendas que
absorveram as propriedades de tamanho pequeno e médio. Uma parte dos terrenos, antes reservada à cultura do café e de produtos
de subsistência, cedeu seu lugar a atividades extensivas, tais como a pecuária e a floresta cultivada. Durante as últimas décadas, a
implantação da indústria de celulose induziu a formação de grandes latifúndios no norte do Espírito Santo para a plantação de
florestas artificiais. Em 1995, o nível de concentração de terras no Brasil continuava elevado, expresso pelo valor do índice de
Gini, então de 0,85. A concentração de terras apresenta ainda valores mais baixos para o Estado, porém a evolução dos valores do
índice de Gini, de 0,51 em1950 a 0,68 em 1995-1996 coloca em evidência que houve um aumento na concentração de terras no
Estado. (IBGE, 1998; Castiglioni & Reginato, sd).
Somam-se às causas citadas, diversos fatores que atuam ativamente durante as mudanças da estrutura econômica, como
a adoção de atividades que absorvem pouca mão-de-obra: criação de gado, culturas intensivas ou culturas mecanizadas dirigidas à
exportação, introdução de meios mecânicos na zona rural. No Espírito Santo, os cafezais que empregavam mão-de-obra numerosa
nas várias fases da sua produção foram substituídos pela pecuária bovina extensiva, que se caracteriza, por demandar áreas
extensas e por economizar mão-de-obra. Na parte norte do Estado, as terras foram ocupadas por atividades de exploração
extensiva da madeira e da pecuária. Estes tipos de apropriação e de exploração das propriedades favoreceram a concentração das
terras e deram continuidade à expulsão da população rural.
Nessa situação de desmonte do modelo econômico vigente por mais de um século, o Governo não elaborou programas
para criar atividades econômicas que substituíssem a economia do café e possibilitassem a permanência de trabalhadores nas suas
regiões de origem. Ao contrário, como é comum nas regiões que se encontram no curso da transição, seus modelos de
desenvolvimento são caracterizados pelo chamado “urbain bias”, seja a aplicação privilegiada de investimentos sócio-econômicos
nos maiores centros, em detrimento do campo. Essa preferência dos poderes públicos resultou na acentuação dos diferenciais
socioeconômicos rural-urbanos, que auto-alimentam o processo, impulsionando a continuidade da expulsão da população rural
(Castiglioni, 1989).
A partir da década de 1980, consolidou-se no Estado uma economia urbano-industrial, caracterizada por uma estrutura
produtiva diversificada, com ênfase no comércio e na industrialização. Os novos focos de dinamismo que se anunciavam na
estrutura produtiva e gradativamente se consolidaram, privilegiaram a região da capital e suas redondezas que passaram a
concentrar os investimentos e a população. Vitória se projetou como centro comercial e portuário e, a seguir, sua economia foi
incrementada com o desenvolvimento da industrialização e de atividades complementares (Buffon, 1992).
A ação conjunta dos diversos vetores citados, expulsores na área rural e, dinâmicos na região da capital, alimentou o
processo de transferência de população em toda a segunda metade do século XX. A contribuição crescente do êxodo rural,
associada ao crescimento natural mais elevado da população migrante imprimiu um ritmo acelerado ao processo de redistribuição
da população: a proporção de população urbana passou de 20,8% em 1950 a 79,5% em 2000. Pode-se observar na tabela 2 como
os comportamentos modais e submodais se deslocam progressivamente para níveis de urbanização mais elevados. Em 1960, 81%
do total de municípios apresentavam baixos níveis de urbanização, abaixo de 30%. No ano de 2000, esta representação cai para
15,6%. No sentido oposto, a proporção de unidades administrativas com níveis de urbanização superiores a 70% eleva-se, de
5,41% a 28,57% no mesmo período.

Tabela 2- Distribuição dos Municípios do Espírito Santo segundo a proporção de população urbana (%)
1940 a 2000
Grupos de porcentagem de população urbana Número % de
Ano de população
unidades urbana
<10 10├ 20├ 30 30├ 40├ 50 50├ 60├ 70├ 80├ 90├ do Estado
20 40 60 70 80 90 100
1960 16,22 32,43 32,43 8,11 2,70 - 2,70 - - 5,41 37 31,64
1970 7,55 24,53 18,87 18,87 13,21 3,77 5,66 3,77 - 3,77 53 45,16
1980 1,89 7,55 22,64 18,87 15,09 5,66 9,43 7,55 3,77 7,55 53 63,91
1991 - 7,46 10,45 20,90 16,42 8,96 11,94 7,46 5,97 10,45 67 74,01
2000 - 5,19 10,39 6,49 15,58 15,58 18,18 10,39 6,49 11,69 77 79,52
Fontes: Construída com dados do IBGE, censos demográficos.

A amplitude dos níveis de urbanização em 1970, momento em que se inicia a aceleração do processo mostra que, não
obstante a pequena extensão ocupada pelo estado, os municípios apresentavam níveis muito heterogêneos (Figura 6). Em 1970, o

592
êxodo rural já estava em curso, mas a situação rural ainda era dominante. Níveis muito baixos de urbanização, menores do que
10% são encontrados em 4 unidades. Os municípios de Presidente Kennedy e de Mucurici apresentam os níveis mais baixos, de
respectivamente, 4,45 e 6,79%. Comportamentos opostos são os apresentados por Vitória e Vila Velha, onde os índices são de
99,26 e 98,47%. Mesmo na região do entorno da capital, municípios que atualmente compõem a Região Metropolitana da Grande
Vitória3 eram predominantemente rurais, como Serra (46,09%), Viana (15,39%), Guarapari (46,72%) e Fundão (46,60%). Poucos
municípios, situados fora da área da capital apresentavam população urbana majoritária. Colatina, principal centro de produção do
café, situada no norte do Estado, sofreu duramente as consequências do declínio da economia cafeeira, praticada em sua extensa
área rural; o indicador de urbanização, de 50,26%, foi resultado da migração da população da região rural para a sede do
município. No sul, o centro principal, Cachoeiro de Itapemirim, uma das primeiras regiões a criar indústrias, já apresentava,
precocemente, concentração de população urbana, que apresenta então o valor de 63,66%.
Em 2000, a urbanização de todo o Estado apresenta avanço significativo, mas coloca em evidência que os
comportamentos diferenciais persistem. Os níveis de urbanização apresentam a amplitude de 85 pontos percentuais entre o
município mais rural, Brejetuba (15% de população urbana) e Vitória (100%). Em 29 dentre os 77 municípios (20,48% do total) a
situação rural era ainda a dominante. Os municípios que apresentavam os menores níveis de urbanização, de menos de 30%,
formam, em sua maioria, dois conjuntos de características semelhantes: um deles é constituído por municípios que se
emanciparam durante a década de 1990, cujas áreas correspondiam a regiões mais rurais dos municípios de origem (casos de
Brejetuba, Ibitirama, Laranja da Terra, Rio Bananal, Laranja da Terra, Vila Pavão, Vila Valério); no outro conjunto agrupam-se
os municípios da zona serrana, onde se desenvolve o agro-negócio. Por outro lado, é significativo o aumento dos municípios que
atingiram elevados níveis de urbanização: 14 municípios já ultrapassaram a marca dos 80%, dentre estes estão os municípios mais
populosos do Estado: os que compõem a Região Metropolitana da Grande Vitória, e os principais centros do norte (Colatina e
Linhares) e do sul (Cachoeiro de Itapemirim).

Figura 6. Proporção de população urbana dos municípios do Espírito Santo – 1970 e 2000

Fonte: Mapas elaborados com dados publicados pelo IBGE

3
A Região Metropolitana da Grande Vitória foi constituída em 1995, quando integrava os municípios de Cariacica, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória. Em 1999 e
2001, a RMGV incorporou, respectivamente, os municípios de Guarapari e Fundão.

593
O processo de redistribuição da população é traduzido pelas taxas diferenciais de crescimento da população das
unidades administrativas do Estado.
As taxas de crescimento entre 1970 e 1980 são indicativas da força dos fatores que impulsionaram a redistribuição
populacional: 16 dentre os 53 municípios do Estado (30,19%) apresentaram diminuições em suas populações e, em outros 7
municípios, a população praticamente manteve-se devido à contribuição do crescimento natural, ainda elevado (Figura 7). Estes
indicadores refletem a decadência e/ou estagnação que se instalou nos municípios interioranos, em especial os situados no norte
do Estado, caracterizados pela dominância da cultura do café e por estrutura fundiária formada por fazendas mais extensas.
As taxa médias geométricas de incremento anual do último período, de 2000 a 2007, indicam que nos últimos anos, a
migração continua drenando a população dos municípios do interior do Estado. Em 26 dos 77 municípios (33,77%) houve
redução da população no período e, em mais 21, a população pouco se alterou.

Figura 7. Taxa média geométrica de incremento anual da população dos municípios do Espírito Santo (%)
1970-1980 / 2000-2007

Fonte: Mapas elaborados com dados publicados pelo IBGE

Além da transferência da população para as cidades, outra característica importante do processo de redistribuição da
população do Espírito Santo é a concentração da população na principal aglomeração urbana, a região da capital. O censo de 2000
revelou que a população do Estado atingira 3.093.390 habitantes, dos quais 79,52% habitavam em áreas urbanas. Nos municípios
que compõem a Região Metropolitana da Grande Vitória, que ocupam somente 4,97% da superfície do Estado, a população
evoluiu de 15,2% do total do Estado em 1950 para quase a metade da população, 46,5%, em 2000. Em 2007 a população do
Espírito Santo atingiu 3.351.669 habitantes, dos quais 1.624.837 habitavam a RMGV, o que indica que a concentração ainda
crescente, atingiu o patamar de 48,5%. (IBGE, 2007).
Não obstante a continuidade do crescimento das cidades, a partir de um ponto máximo, o ritmo do êxodo rural diminuiu
e, com ele também o crescimento urbano. A representação dos habitantes das cidades continua sua evolução crescente, porém

594
mais lenta, e a tendência é a estabilização da distribuição populacional, que ocorre quando são atingidos níveis de urbanização
muito elevados, situação que está sendo atingida pelo estado que já tem 80% de sua população concentrados nas zonas urbanas.
As taxas apresentadas na figura 8 colocam em evidência as diferenças existentes entre os níveis de crescimento do Estado e da
principal aglomeração urbana. As diferenças foram máximas no período de 1960 a 1980, e, então ocorreu a desaceleração do
crescimento, embora este continue positivo e mais elevado na Região Metropolitana da Grande Vitória do que no Estado.
A redução do crescimento da aglomeração ocorreu devido à conjugação de vários fatores: a) a diminuição da pressão
demográfica no interior e nas pequenas cidades do Estado, em consequência da intensa drenagem do efetivo populacional destas
áreas, provocada pelo êxodo das décadas anteriores, b)- a queda da natalidade que baixou as taxas de crescimento demográfico,
c)- novas alternativas de destino que se anunciam e gradativamente se consolidam fora da maior aglomeração.

Figura 8. Taxas médias geométricas de incremento anual da população


Espírito Santo e Região Metropolitana da Grande Vitória (%) – 1940 a 2000

Taxa de
crescimento
8

6,89

6,23
5,98
6

3,80
4

2,59
3,10 3,18
1,94
2
2,38 2,31
1,98
1,39

0
1940-1950 1950-1960 1960-1970 1970-1980 1980-1990 1990-2000
Década
R M GV E s pí rit o S a nt o

Fonte: Elaborado com dados publicados pelo IBGE.

As taxas de crescimento dos cinco municípios que compõem a Região da Grande Vitória, representadas na figura 9,
mostram as modificações ocorridas no modelo de crescimento entre 1960 a 2000. No período de 1950 a 1960 a população se
concentra em Vitória, Vila Velha e Cariacica. Nesta época a suburbanização não atinge ainda Serra e Viana, que conservam suas
características rurais. Durante os anos sessenta, essas duas unidades, sobretudo Serra, começam a serem incorporadas à expansão
da capital. Estas modificações, assim anunciadas, se consolidam na década seguinte, 1970-1980, quando as taxas dos 3 centros
principais se enfraquecem em favor das duas unidades menos povoadas. Serra experimenta um crescimento extraordinário,
expresso por sua taxa de 16,86% enquanto que o crescimento de Vitória torna-se o mais fraco do conjunto (Castiglioni, 1989).
Após atingir os níveis máximos de crescimento, nas duas décadas do final do século o crescimento declina em todas as unidades.
Serra continua sendo a unidade que apresenta maior crescimento em todo o Estado, enquanto que, os baixos valores das taxas de
Vitória traduzem a saturação da ocupação do espaço da capital.

595
Figura 9. Taxas médias geométricas de incremento anual da população dos municípios da Grande Vitória (%)
1950 a 2000

Fonte: Mapas elaborados com dados publicados pelo IBGE

A migração, o motor dos processos de redistribuição da população e de urbanização ocorridos no Espírito Santo, é um
fenômeno de difícil mensuração, uma vez que não existe um sistema de registro para os deslocamentos que ocorrem no país. As
informações sobre o movimento são levantadas no censo e fornecem apenas medidas parciais dos deslocamentos.
Considerando-se as trocas entre os estados ocorridas nas décadas dos meados do século, a emigração superava a
imigração. Os saldos negativos expressavam que a falta de possibilidades de absorção dos migrantes rurais nos setores produtivos
das áreas urbanas do Estado impulsionava a saída desse contingente para outros estados.
Os indicadores migratórios funcionam como termômetros da situação socioeconômica. A partir da década de 1980, o
processo de desenvolvimento do Estado foi dinamizado pela introdução de novos investimentos e expansão de atividades
econômicas que ampliaram a demanda de mão-de-obra. O Espírito Santo deixou progressivamente de expulsar sua própria força

596
de trabalho passando a atrair população. As maiores trocas ocorrem com os estados vizinhos, Bahia, Rio de Janeiro e Minas
Gerais, e são favoráveis ao Espírito Santo. Em 2000, os migrantes residentes no Espírito Santo representavam 19,1% da
população. São originários, majoritariamente, dos estados vizinhos: os naturais da Minas Gerais representavam 9,26% da
população do Estado, os da Bahia, 3,96% e os do Rio de janeiro, 2,98%.
Atualmente o Espírito Santo apresenta-se no cenário nacional como um estado dinâmico, com taxas de crescimento
econômico e demográfico superiores à média nacional, em consequência de sua atratividade. Nas últimas décadas novos fatores
produtivos, indústrias, expansão do complexo portuário, exploração de rochas ornamentais e ultimamente o aumento expressivo
da exploração do petróleo em águas profundas, entre outros, passaram a impulsionar a economia do estado, que atualmente é uma
das que mais promissoras do país. No período de 1996 a 2000, devido à imigração, a taxa média anual de crescimento geométrico
foi de 2,53% para o Espírito Santo, enquanto que a taxa do Brasil foi de 1,97%.
Ao lado das atividades do mercado “secundário”4 que continuam a impelir a imigração de pessoas pouco especializadas,
registra-se a expansão do mercado “primário”, caracterizado por ocupações qualificadas e salários elevados que atraem imigrantes
qualificados de outras regiões. Os números do último censo apontavam também para uma tendência, ainda que modesta, de
incremento da imigração internacional.

Referências
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4
O mercado de trabalho é formado, segundo os conceitos da teoria do mercado de trabalho segmentado, por dois segmentos principais. O mercado “primário” é
caracterizado por ocupações qualificadas, pela estabilidade do emprego, salários elevados, perspectivas de mobilidade na carreira e proteção social. No senso oposto, o
mercado “secundário” é composto por empregos que exigem pouca qualificação, baixos salários, fracas oportunidades de promoção, insegurança das relações de
trabalho e, frequentemente, ausência de assistência social. (Peixoto, 2004).

597
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ou http:// www.ibge.gov.br.
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Tabutin, Dominique. (sd). Problèmes de Transition Démographique, Tome 1: Schémas classiques, problèmes d’analyse,
interactions mouvements-structures. LLN: UCL.

Apoio:
FACITEC – Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia do Município de Vitória

Políticas públicas e gestão do envelhecimento no Brasil


Mariele Rodrigues Correa
Universidade Estadual Paulista - UNESP
[email protected]

Sônia Moreira França


Universidade Estadual Paulista - UNESP
[email protected]

Francisco Hashimoto
Universidade Estadual Paulista - UNESP
[email protected]

Resumo: Desde a década de 50, pesquisas e estatísticas têm apontado o crescente envelhecimento da população mundial. O aumento do número
de idosos, a partir de então, irrompeu no cenário das preocupações sociais. É em meados do século XX que a velhice passa a ter maior visibilidade
no cenário brasileiro, sendo tomada como objeto de diversas áreas do conhecimento, do Estado e de investimento do mercado capitalista. Nosso
objetivo, a partir de levantamento bibliográfico sobre o tema, é analisar a emergência da velhice como categoria de gestão, que se vale de políticas
públicas e das ciências do envelhecimento para ditar modos de ser e viver essa fase da vida, sobretudo, criando e difundindo o conceito de terceira
idade. A aliança entre o Estado e a medicina no Brasil propiciou a construção de novos procedimentos para a velhice, calcados num projeto de
prevenção ao envelhecimento e na difusão de um ideário de ancianidade baseado numa pedagogia que incita a produção de corpos saudáveis e
rentáveis ao capitalismo. Dessa forma, os estigmas e as práticas de invalidação da velhice cedem lugar para tentativas de representá-la como um
período da vida que pode comportar atividades produtivas, realização de projetos e participação ativa no mercado de consumo. A gestão do
envelhecimento atualmente, no Brasil, se caracteriza na promoção de diversos programas para a terceira idade que, além de funcionar como
controle social da população que envelhece, contribui para a propagação de um ideal de envelhecimento que enrijece outras possibilidades de
vivência da velhice.

Pesquisas que apontam o envelhecimento populacional no Brasil datam desde a década de 1950. O processo de
crescimento do número de idosos aos poucos foi ganhando visibilidade tanto no meio acadêmico quanto no meio da gestão
política, que culminou com o fortalecimento da gerontologia e da geriatria e a elaboração de políticas públicas específicas para a
população idosa. Atualmente, segundo os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país conta com uma
população de 13 milhões de habitantes com mais de 60 anos, com estimativas de que, após o ano de 2020, serão aproximadamente
30 milhões de idosos, com a sexta população com maior número de anciões. A partir de pesquisas como essa, que apontavam o
inexorável fato do aumento do número de idosos, a velhice acabou por se transformar num novo “problema social” para o país.
Com a propagação de um discurso que apontava para a necessidade de controlar os rumos do envelhecimento a fim de reduzir os
gastos do governo e prevenir as enfermidades tidas como típicas da velhice, percebemos, no Brasil, o advento de uma série de
dispositivos engendrados no meio social a fim de gerir e construir um outro imaginário acerca dessa idade da vida.

598
Dessa forma, no cenário contemporâneo brasileiro, a velhice apresenta, enquanto construção social, aspectos muito
diferentes em relação àquela que se exibia no início do século passado. Até mesmo a nomenclatura para essa fase da vida se
modificou, com o aparecimento de outras designações, tais como terceira idade, melhor idade, feliz idade, maturidade, segunda
juventude... Novos nomes para se referir à velhice, trazendo consigo novas materialidades, novos sujeitos, novos procedimentos
para lidar com o envelhecimento humano. Antes relegada e preterida nos âmbitos social e político, hoje a velhice é dotada de uma
visibilidade que a insere no cenário das preocupações sociais do momento.
No Brasil, as políticas públicas dirigidas à velhice datam a partir da década de 1920, sendo relacionadas à aposentadoria
da população ativa. A emergência da aposentadoria no Brasil pode ser compreendida como resultado de modificações ocorridas
nas práticas de assistência à população carente (Groisman, 2001). Aos poucos, as empresas e o próprio Estado foram assumindo
um papel que as entidades filantrópicas ocupavam até então. A institucionalização da aposentadoria, a partir do critério da idade,
promoveu uma homogeneização dessa camada da população, relacionando a velhice à incapacidade para o trabalho: “a
aposentadoria causou uma profunda modificação nos significados da velhice. Associando a velhice à invalidez, tornou a idade um
fator determinante para o afastamento do indivíduo do trabalho, independentemente de suas reais condições de saúde”. (op. cit., p.
53).
Em 1974, houve a criação do Programa de Assistência ao Idoso (PAI), que procurou formar Grupos de Convivência
com idosos segurados da Previdência Social com o intuito de criar condições de promoção social dos participantes por meio de
uma série de ações, como atividades físicas, recreativas, culturais, etc. (Silva, 2006). No ano de 1977, esse programa é expandido
para a Legião Brasileira de Assistência Social e, a partir de 1979, passa a ser responsável pela assistência ao idoso em todo o país,
em parceira com ONG’s, Estados e Municípios. Aos poucos, a velhice começa a se tornar objeto de gestão do Estado por meio de
medidas que visavam criar uma imagem de envelhecimento ativo a partir de uma série de programas direcionados aos idosos,
como o PAI (Programa de Assistência ao Idoso), embrião dos atuais clubes voltados para o segmento chamado de Terceira Idade
(Cardoso, 2004).
A preocupação com o processo de envelhecimento populacional levou, em 1978, à criação de uma Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) na câmara dos deputados federais, a fim de se investigar soluções e práticas para a
problemática do idoso. Na ocasião, foram abordados temas relacionados à preparação para a aposentadoria e à necessidade de se
implementar políticas públicas dirigidas ao idoso no sentido de mantê-lo e socialmente útil (Salgado, 1978).
No ano de 1982, a ONU (Organização das Nações Unidas) fez um alerta aos países quanto ao indiscutível aumento do
número de velhos no mundo. Assim, nesse mesmo período, foi instituído o Ano Internacional do Idoso, no qual os países
integrantes do bloco da ONU foram convidados a participarem da Assembléia Mundial sobre o Envelhecimento na cidade de
Viena, de 26/07 a 06/08/1982, com a participação de geriatras e gerontólogos de mais de 100 países (Kaufmann, 1982). Ao final
do evento, foi redigida a Carta de Viena, com um Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, constando cerca de 120
recomendações aos países participantes com o intuito de alertar para a necessidade de um planejamento de uma política de
atendimento ao idoso nas áreas social, econômica, médica e legal. O Brasil, atendendo à proposição da ONU, instituiu no país o
Ano Nacional do Idoso, pelo decreto presidencial n° 86.880, de 27/01/1982 e criou uma Comissão Nacional para estudar a
problemática da velhice que se delineava no campo social brasileiro. No Estado de São Paulo, a Lei Complementar 3464 de 26 de
julho de 1982 instituiu o "Dia do Idoso", a ser comemorado no dia 21 de setembro.
É interessante notar que, aos poucos, a imagem de uma velhice pauperizada e abandonada passa a ser vista socialmente
como um problema a ser resolvido em diferentes esferas da gestão da vida: seja na assistência à saúde, na assistência jurídica,
previdenciária e comunitária. Percebido como um risco à manutenção da ordem social, o envelhecimento da população demandou
uma série de mecanismos para dar conta de manter as engrenagens do capitalismo funcionando sem prejuízos aos cofres públicos
e ao mercado de produção e consumo (Debert, 2004).
Tal como dizemos anteriormente, o processo de envelhecimento populacional figurou no país como um problema social
que demandava intervenção do Estado. Assim, políticas públicas foram criadas para a população idosa no sentido de assistir a
velhice empobrecida. Essas políticas de assistencialismo foram sendo substituídas por outras que apontavam para a necessidade
de se ter uma velhice refuncionalizada, ativa, saudável e produtiva economicamente. Das políticas de assistência a não
diferenciação do corpo idoso como uma categoria à parte, a velhice passa a ser investida de programas preventivos e a ter seu
próprio estatuto reconhecido por lei, além de ser objeto de uma especialidade médico-científica que a singulariza em relação a
outras idades da vida.
Todo esse processo de construção de uma nova imagem de velhice foi possível, dentre outras coisas, a partir de uma
aliança entre o Estado e a ciência. A geriatria e a gerontologia, com a proposta de educação e prevenção à velhice auxiliaram na
construção de políticas públicas que procuram reduzir o ônus acarretado pela população idosa aos cofres públicos por meio de
programas para a terceira idade, a partir da promoção de uma velhice útil e saudável. Dessa maneira, de acordo com Eneida
Haddad (1986), “fica evidente que a gerontologia e a geriatria são os instrumentos utilizados pelo Estado junto à sociedade a fim
de repropor a figura física e psicológica do envelhecimento” (p. 70).

599
Uma das preocupações que se colocaram para a gestão da velhice foi o reaproveitamento do tempo livre. Assim, a
gerontologia e o Estado, por meio de políticas públicas, problematizaram essa questão a fim de refuncionalizar o tempo ocioso. A
aposentadoria foi então colocada como uma fase na qual haveria a necessidade de preparação e programação do tempo disponível,
para não se correr o risco de acarretar adoecimentos.
Afastado do mundo do trabalho, o homem estaria próximo a uma existência sem sentido, por isso a necessidade de
reaproveitamento de seu tempo ocioso. Assim, a gerontologia e o Estado promoveram uma aliança na qual a educação para a
velhice atua no sentido de ensiná-la a preencher o tempo com atividades terapêuticas e profiláticas. Com o discurso de que é
preciso manter-se ativo para não adoecer, a gerontologia oferece os subsídios para a implementação de diversas políticas públicas
dirigidas à velhice:
A necessidade de se ter uma velhice ativa começa a se delinear, associando a idéia de atividade à saúde. Mantendo-se
ativo, o idoso poderá ao menos preservar o “espírito jovem” do qual tanto se fala, vetando o “espírito velho”, que é associado a
sentidos torpes. A idéia de uma velhice rejuvenescida vai modificar o olhar dirigido a essa fase da vida, seja por meio de políticas
e programas, seja pelo discurso dos especialistas, que insistirão na necessidade de promover esse novo ideário de envelhecimento
(Haddad, 1986).
Para a redefinição das imagens acerca da velhice, a gerontologia, a geriatria e a intervenção do Estado foram
importantes atores na construção desse novo olhar dirigido a essa fase da vida. Mediante o discurso que remetia a velhice a uma
etapa de doenças, de degeneração do corpo, de caráter marcadamente biologizante, a gerontologia se constituiu em uma das porta-
vozes da promoção do envelhecimento saudável, educando o corpo para a velhice com o auxílio de políticas implementadas com
esse fim.
Dessa forma, produz-se a necessidade de se ter uma velhice bem informada, jovem, ativa, confiante, feliz... Não é à toa
que uma das denominações para essa nova velhice tenha sido “feliz idade”. De fato, os rumos do envelhecimento galgaram outras
paisagens, remodelando os contornos da velhice.
Com a transformação do envelhecimento em objeto de saber científico, a velhice entra em cena por meio de diferentes
aspectos, quais sejam da degeneração do corpo e o aumento da expectativa da vida ao desequilíbrio demográfico e o ônus das
políticas sociais (Debert, 2004). A geriatria e a gerontologia, com seu campo de saber produzido sobre a velhice, prestam
importante contribuição ao Estado. Ao promoverem saberes, essas ciências engendram demandas que serão difundidas por meio
de políticas públicas, além de obterem o aval do Estado para consolidarem suas práticas e difundirem seus conhecimentos
produzidos acerca da velhice.
Para Eneida Haddad (1986), porém, a relação entre a ciência e o Estado não deixa de apresentar alguns conflitos, pois há
uma disputa de poder no qual ambos estão inseridos. Para suas ações públicas e estatutárias, o Estado necessita do saber técnico
sobre a velhice para sua intervenção. Já a gerontologia cobra do governo a implementação de uma política comum, pela qual seja
possível a gestão dos idosos.
A difusão de discursos sobre a velhice que apontam essa fase da vida como algo que se insere num processo de
degeneração procurou evidenciar e justificar a necessidade de uma intervenção e de uma gestão da população idosa pela medicina,
pelo Estado e por diversas instituições sociais. Uma vez que a expectativa de vida obteve um aumento significativo em poucas
décadas, elevando o número de idosos no Brasil, a velhice tornou-se um grande problema político em diversas esferas da
sociedade.
A necessidade de promover uma gestão dessa população propiciou a aliança entre o Estado e a ciência no
redimensionamento dos rumos da velhice. A geriatria e da gerontologia, com seu corpo de saber sobre essa fase da vida, passaram
a ocupar um lugar de intervenção nos processos de envelhecimento na perspectiva de reutilização da figura do idoso e de
prevenção aos males advindos desses processos. As políticas públicas, passando do assistencialismo para a prevenção, juntamente
com o saber sobre a velhice, se configuraram em importantes propagadores dessa nova imagem de envelhecimento,
refuncionalizada e otimizada por meio de diversos programas direcionados para a terceira idade.
Em nosso país, podemos vislumbrar a presença de diferentes imagens acerca do envelhecimento humano. Compõem-se
faces de desamparo, doença, solidão, abandono, violência, maus-tratos, advindas de um imaginário de velhice associado à
decrepitude da vida, à velhice como algo indesejável, por estar associada à proximidade da morte e à perda do corpo jovem. Por
outro lado, outras faces se articulam socialmente, com a propagação de um envelhecimento positivo e com referências a ideais da
juventude, como atividade, hábitos e corpos saudáveis, preenchidos com botox e outras plásticas, úteis ao consumo e também a
produção, com o tempo ocioso preenchido e com o fantasma da doença e da morte devidamente afastados e prevenidos.
Todo esse aparato desenvolvido para a gestão do envelhecimento aponta para a necessidade de gerir a finitude humana.
Assim, a longevidade humana, objeto de desejo dos mortais, parece se tornar o bálsamo e o veneno para a sociedade
contemporânea. Ao mesmo tempo em que se produz o aumento da expectativa de vida atribuído principalmente às ciências, tem-
se uma preocupação generalizada com esse contingente humano que apresenta uma série de implicações que serão tomadas como
objeto de gestão da velhice: o grande número de aposentados, que representam um problema aos cofres da previdência; uma
população que possui amplo tempo livre, o que também será visto como um problema de gestão; e o aumento de gastos com a

600
velhice no sistema de saúde pública. Os rumos da existência humana talvez estejam estampados nas palavras do grande escritor
português José Saramago, em seu livro “As intermitências da morte” (2005), em que a Morte poderá, quiçá, se cansar da
ingratidão humana e nos mostrar, a duras penas, sua inevitável atividade. Afinal, como diz Bauman, “se a morte algum dia fosse
derrotada, não haveria mais sentido em todas aquelas coisas que (os homens) laboriosamente juntam, a fim de injetar algum
propósito em sua vida absurdamente breve”, ainda que sejam mecanismos de gestão e controle da vida e do envelhecimento.
Somente assim poderíamos pensar em construir outras formas de existência que pudessem escapar e burlar normas pré-
estabelecidas.

Referências bibliográficas
Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Cardoso, D. M. (2004). Longevidade de tempo livre: novas propostas de participação social e valorização do idoso. Revista A
Terceira Idade, 15 (30), p. 36-51.
Debert, G. G. (2004). A reinvenção da velhice. São Paulo: Edusp.
Groisman, D (2001). Velhice e história: perspectivas teóricas. Cadernos IPUB – UERJ, 10 (3), p.43-56.
Haddad, E. G. M. (1986). A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez.
Kaufann, T. (1982) A idade de cada um: vida plena na velhice. Petrópolis: Vozes.
Salgado, M. A. (1978) Aspectos da problemática social do idoso no Brasil e as ações do SESC de São Paulo. São Paulo: SESC.
SILVA, J. C. Velhice e Assistência Social no Brasil. Revista A Terceira Idade, 17 (35), p. 54-64.

Envelhecimento, subjetividade e espaços urbanos: nas ruas da memória


Mariele Rodrigues Correa
Universidade Estadual Paulista - UNESP
[email protected]

Sônia Moreira França


Universidade Estadual Paulista - UNESP
[email protected]

Francisco Hashimoto
Universidade Estadual Paulista - UNESP
[email protected]

Resumo: O espaço urbano é a presentificação de um acontecimento dotado de diferentes significações, pois é o lugar onde se desenrolam as
tramas da vivência entre os homens e o mundo. A relação do homem com o espaço se constitui numa narrativa que versa sobre as formas de
habitá-lo e sua apropriação pelas mãos humanas. Nosso trabalho consiste em analisar a relação entre espaço urbano e velhice, examinando as
maneiras dessa idade da vida habitar a cidade enquanto apropriação e produção de sentidos. Para tanto, valemo-nos da literatura científica sobre o
assunto e de dados empíricos coletados na nossa experiência com grupos da terceira idade. Uma primeira constatação é a de que, ao longo do
tempo, a cidade sofre diversas transformações em seu cenário, de forma que o espaço urbano habitado pelos anciãos muitas vezes se refere a uma
cidade que existe na memória. Resgatando as histórias sobre a relação desses idosos com a urbe do passado e confrontando-as com suas
experiências atuais de habitação do espaço urbano, é possível apreender o processo de guetificação que acompanhou a trajetória da cidade. No
Brasil, esse processo se dá de forma intensa, comandado pelo mercado capitalista que define lugares de circulação e apropriação da cidade. A
velhice, nesse sentido, encontra uma série de interdições que delimitam suas possibilidades de movimentação. Portanto, o resgate da memória da
cidade e a apropriação do espaço urbano pelos idosos se constituem num confronto com essa condição de isolamento, promovendo sua
participação enquanto atores políticos no cenário contemporâneo.

“As lembranças se apóiam nas pedras da cidade”.

(Ecléa Bosi)

Para além do acúmulo de anos, o idoso é um ser que acumula histórias e experiências. Poderíamos afirmar que um dos
papéis atribuídos aos mais velhos é o da arte de contar histórias de um passado considerado longínquo, seja da família, seja da
cidade ou de acontecimentos que marcaram uma determinada geração. Diz-se do idoso que ele é um saudosista, vive das
memórias de anos dourados de sua juventude e sempre as evoca, para confrontar o passado com os contornos do contemporâneo,
muitas vezes valorizando o pretérito em detrimento do presente.

601
É por meio dessa atividade de exercício do resgate da memória que o passado pode sobreviver. O legado de uma
cultura, de uma sociedade, depende das lembranças que emergem da memória e que são traduzidas para os seus (Arendt, 1972).
As lembranças, na maior parte das vezes, são despertadas quando provocadas por outros, em situações nas quais o sujeito é
chamado a contar um caso, a história da família ou mesmo para ajudar a relembrar e confirmar fatos passados. Dessa forma, a
memória sempre se recompõe, o passado é atualizado e se presentifica na relação que se estabelece, ao se narrar uma história. “Na
maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do
passado. A memória não é sonho, é trabalho”. (Bosi, 1987, p. 17)
É comum se ouvir dizer que o idoso é alguém que vive de lembranças, remoendo e degustando os anos que já se foram.
Há até um ditado popular no Brasil dizendo que “quem vive de passado é museu”, retratando os idosos como museus ambulantes
extemporâneos, situados num tempo que não o atual. Apesar do que diz a cultura popular, debruçar-se na esteira do tempo que
toma corpo nas memórias é realizar um trabalho político. Mais do que um devaneio fútil ou uma tentativa de preencher o tempo
ocioso, recordar é dar corda de novo às engrenagens da história, em uma dimensão na qual que tempo e espaço se inscrevem
conjuntamente. Apropriar-se da memória e transmitir esse legado cultural é reconstruir o passado, dar a ele a possibilidade de ser
atualizado e narrado de uma forma diferente daquela contada nos livros. Mais ainda: é ter de volta o sentimento de pertença a uma
história ou mesmo à própria sociedade, sentimento este que muitas vezes é arrancado daqueles que viveram e construíram a
sociedade, cada qual à sua maneira.
A experiência narrativa, de acordo com Michel de Certeau (1994) no livro “A invenção do cotidiano”, é diferente de
uma simples técnica de descrição. Para o autor, contar uma história é criar espaço para a ficção, é uma arte do dizer e de fazer a
história. Além disso, a narrativa implica uma relação indissociada do tempo, da noção de duração, da memória se presentificando
no ato mesmo da fala: “O discurso produz efeitos ao querer dizer outra coisa do que aquilo que se diz; exerce sua estratégia por
um desvio pelo passado, recorrendo à memória como uma de suas táticas geradoras de sentido” (Mairesse &Fonseca, 2002,
p.114).
Ao se reler um livro ou rever um filme, o olhar sempre captura algo que antes não se havia visto. Assim acontece
quando um indivíduo recorda suas experiências passadas. É impossível vivê-las tal e qual aconteceram, no mesmo cenário e com
as mesmas pessoas. Por isso o trabalho de recordar é uma reconstrução de fatos da memória e da linguagem, já que, a cada vez
que uma lembrança é evocada, há a possibilidade de emergir novos sentidos sobre o mesmo acontecimento, assim como outros
sentimentos e sensações podem ser despertados nesse trabalho de reconstrução da história, independentemente de serem relatos
verídicos ou não.
A experiência narrativa recorre ao passado para lançar mão das histórias impressas na memória. E é por essa última que
o passado se produz, não apenas como um antigo presente, mas enquanto algo que se constrói no próprio presente: “A memória se
constrói no encontro com os acontecimentos, em seu instante ainda virtual, quase pronto para realizar-se. Assim, a memória
consiste num meio de transformar lugares” (op. cit., p. 114).
Nas atividades com o grupo de idosos, realizadas dentro do projeto Universidade Aberta à Terceira Idade, no formato de
Oficinas de Psicologia, nosso objetivo era propiciar um espaço no qual as experiências guardadas na memória pudessem ganhar
corpo e sentidos polissêmicos através da narrativa. A cada oficina, desenvolvíamos novas temáticas elaboradas previamente e
registrávamos a produção das histórias narradas por meio de cartas, cartazes ou revistas de circulação no campus da universidade.
Nas atividades semanais, o presente ia ao encontro do passado no ato de experienciar as histórias que envolviam as brincadeiras
de infância, os bailes e carnavais da juventude, os “causos” e lendas transmitidos culturalmente, os usos e costumes de uma época,
os cuidados com o corpo e a saúde.
O trabalho coletivo realizado em nossas atividades não visava ao lembrar por lembrar. Procurávamos fazer dessa
estratégia um ato político de confronto com as práticas do presente e de questionamento da velhice, na sociedade contemporânea:
afinal, os idosos são atores da construção da história do cotidiano. Em acréscimo, a experiência narrativa afirma a presença e a
pertença do idoso na sociedade contemporânea ao estabelecer o lugar da narrativa e da escuta, em um enfrentamento acerca da
expressão de sua condição na dimensão sócio-temporal.
Essa arte de contar histórias, na realidade, é uma arte do encontro do que já passou com o que é atual, com a presença
das ausências, com as diferentes gerações, com os fantasmas vagantes em algum lugar da memória e com as possibilidades de se
produzir e transformar uma(s) realidade(s): “assim, é somente a partir de hoje que se pode falar sobre o passado, e é implicado no
presente e comprometido com o futuro que se faz valer o passado – um passado sempre a se refazer no presente. (Mairesse&
Fonseca, 2002, p. 114).
A atividade de recordar se exerce com feições diferentes, em cada fase da vida. Enquanto somos crianças e
adolescentes, não há muito o que ser lembrado da própria história de vida. Para o adulto ativo, a atividade de recordar é tida como
se fosse uma fuga, ou até mesmo contemplação nos momentos de lazer. Preocupado com sua vida prática, o adulto dificilmente se
entrega à arte de rememorar. Essa tarefa parece caber ao idoso: ser a memória da família e do seu grupo social. É essa sua
obrigação: “lembrar, e lembrar bem” (Bosi, 1987, p. 24). No entanto, se essa experiência for tomada como única condição de

602
possibilidade de vivência no coletivo, então a tarefa de lembrar pode se tornar aprisionadora do sujeito e há o risco de se perder a
dimensão política do passado.
A partir de nosso contato com o grupo de idosos, percebemos que o passado, seja ele advindo de uma história de vida,
seja de acontecimentos do cotidiano, é muitas vezes privado de expressão no meio social. Muitas de suas histórias chamadas “do
arco da velha” permanecem guardadas num museu peculiar: seu próprio corpo. Passada a sua fase chamada produtiva, no mundo
do trabalho, ele pode deleitar-se com essa tarefa de recordar, mas para quem ele o faz? Como pode exercer sua “função social” e
seu exercício político, se suas lembranças se perdem num campo discursivo que não encontra interlocutores? Em uma sociedade
que preza a velocidade, a aceleração do tempo e a compressão dos espaços (Virilio, 1998), a experiência narrativa e a escuta
parecem estar condenadas.
A arte da narrativa e a história oral estão interligadas. Nesse contexto, verdades e mentiras se misturam entre as paixões
humanas e o fantástico da vida. Porém, as narrativas contemporâneas (Castells, 2001) deram lugar à informação veiculada pelo
jornal, que passa os fatos de forma “imparcial e verídica”. Até mesmo os causos, lendas e as histórias, tão comumente contados
pelos avós aos seus netos, vêm perdendo espaço na comunicação. Há cerca de dois anos, ao realizarmos oficinas sobre causos e
lendas de terror, vários participantes do grupo relataram que seus netos caçoavam deles, quando contavam as histórias de bruxas,
mulas-sem-cabeça, lobisomem, fantasmas, dizendo que nada disso era real...
A necessidade criada pela cultura de massa de ter que se estar bem informado leva o sujeito a um bombardeio de
informações que só têm valor no instante mesmo em que surgem. Passados alguns poucos momentos, elas se perdem e se
esgotam, dando lugar a outras notícias mais recentes. Seus sentidos são muito auto-referentes e restritos a um uso determinado,
diferentemente da narrativa, que permanece no tempo e é polissêmica, ou seja, seus sentidos são ilimitados, bifurcam em outras
narrativas e não se consomem no imediato.
A arte de narrar é um trabalho artesanal. Trabalho que, para Ecléa Bosi (1987), exige alma, olho e mão. É assim que o
narrador transforma sua matéria – a vida humana: “Seu talento de narrar vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor;
sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo”. (p.49)
Além disso, segundo Hannah Arendt (1972) no livro A condição humana, os legados de uma geração só podem ser
transmitidos às gerações seguintes através da palavra, porque o que se pode transmitir é o sentido daquilo que foi vivido e não a
vivência concreta. Aliás, o próprio sujeito também pode desconhecê-la, uma vez que a lembrança narrada pode não ter sido uma
vivência do indivíduo, mas uma situação social. Assim, pensando não apenas na necessidade de apropriação da própria história,
mas também na função social de sua transmissão, torna-se necessário criar situações nas quais esses relatos, as experiências
vividas, sejam (re)lembradas, (res)significadas e contadas para os seus, ainda que os espaços para essas atividades estejam
restritos, atualmente.
As memórias dos idosos são densamente ricas, porque guardam consigo aquilo que os tradicionais livros de História, na
maior parte dos casos, não conseguem traduzir: a narrativa do cotidiano (Certeau, 1994). São as histórias daqueles que constroem
a História. Costumes, lendas, imaginários e práticas que, transmitidos pelo legado da narrativa oral, são parte importante da
memória coletiva e do indivíduo que recorda. Um fio de meadas complexas e de múltiplas possibilidades: um ponto de
convergência com o passado e o presente e suas linhas de tempo no amanhã do mundo.
Tal como a ação do tempo sobre o corpo, a cidade é o lugar em que o tempo toma formas peculiares: os espaços
também envelhecem. Edifícios desgastados pela ação da chuva, do sol e do tempo ilustram e testemunham a história de uma
cidade. É interessante notar o quanto a arquitetura diz respeito a uma determinada sociedade, pois aí se expressa a relação do
homem com o espaço.
O espaço urbano é a presentificação de um acontecimento. É nele que se travam toda sorte de histórias públicas ou
pessoais. Talvez ele mesmo seja a “testemunha não ocular da história”. Dessa forma, esses lugares são imbuídos de sentidos e
valores, de significações próprias de um determinado evento. Os monumentos históricos revelam fatos importantes da história de
uma cidade ou de um país. São marcos dignos de investimentos, cujo propósito é perpetuar e difundir a memória de grandes
acontecimentos do lugar: a casa de uma personalidade considerada importante, os palácios e casarões de marqueses e reis,
monumentos em que pessoas foram assassinadas em prol de uma causa, toda espécie de museus etc. Espaços considerados
patrimônios, uma vez que eles guardam e preservam a história de uma determinada sociedade.
Mas há ainda os espaços que narram a história do cotidiano das pessoas de uma época: pequenas casas, armazéns,
fazendas, praças, capelas... Esses espaços têm também sua importância, uma vez que as pessoas que o habitaram construíram,
igualmente, a história e memória de uma cidade.
O fluir constante do tempo e das mãos humanas alteram, consideravelmente, a paisagem da cidade. “O espaço volta a
assumir as traições do tempo: os lugares mudam” (Beauvoir, 1990, p.451). Aquela cidade da infância, tal como foi experenciada,
existe somente na memória. Certamente, as mudanças da cidade também foram vividas por aqueles que a habitaram, mas muitas
vezes nota-se, nos idosos, a sensação de estranhamento e saudosismo frente às tantas alterações que aquele espaço sofreu. Em
nossas atividades com idosos, é comum ouvirmos relatos de histórias que utilizam referências antigas da cidade. Ao narrar um

603
acontecimento, muitas vezes eles se reportam a ruas e casarões que não existem mais e, no entanto, as imagens se conservam na
retina da memória.
A cidade permanece e resiste ao tempo, ao menos subjetivamente. “Cidades invisíveis” (Calvino, 1990), das quais
tomamos conhecimento através de relatos apaixonados de Marcos Pólos desbravando os entremeios daquilo que não pode ser
visto, mas que se materializa no ato de narrar a cidade ou o campo, ou nas imagens impressas em fotografias antigas, que também
preservam os lugares hoje extintos. É preciso enfatizar, sobretudo em se tratando de uma tentativa de cartografar signos espaciais,
que aquilo que sobressalta nas lembranças dos mais velhos é, especialmente, as mudanças de sentido e valores que acompanham
as percepções das transformações dos lugares.
Por exemplo, certa vez, ouvimos nas oficinas relatos sobre a vivência da infância na cidade, à época da Segunda Guerra
Mundial. Naquele tempo, conforme nos disseram, foi imposto um racionamento de alguns alimentos básicos do dia-a-dia, como
pão, farinha, açúcar, sal. A quantidade desses mantimentos era calculada de acordo com o número de pessoas por família e, assim,
se distribuíam fichas para a compra dos alimentos num determinado armazém. Quem precisasse desses produtos, para além da
cota, teria que pagar um alto preço no chamado “mercado negro”.
Tudo isso se passava em uma rua que hoje é a avenida central da cidade, coração do comércio municipal repleto de
lojas, farmácias, bancos, lanchonetes e bares que invadem as calçadas. O comércio clandestino de outrora deu espaço a um
comércio a céu aberto, agora esgotado não mais pela falta, mas pelo excesso. Escassez, guerra, comércio regulado, mercado negro
– tudo isso, ainda mais visto pelo olhar da infância, empresta um contraste muito grande com os sentidos atuais desse mesmo
lugar.
Outros tantos relatos interessantes provocam até nossa imaginação acerca do espaço urbano e seus sentidos. Uma dessas
histórias é sobre uma antiga cadeia municipal de uma cidade ao norte do estado do Paraná, no Brasil. Há mais ou menos quarenta
anos, o marido de uma das participantes do grupo trabalhava como agente carcerário. As fotos revelam a velha cadeia: a estrutura
do prédio era uma casa de madeira. Os banheiros e o refeitório ficavam na parte externa, que não tinha grades e sim uma cerca de
balaústre. A porta de entrada permanecia aberta o tempo todo e as crianças entravam livremente para espiar os presidiários. Além
disso, o carcereiro escolhia o preso de melhor comportamento para cuidar de seu filho pequeno em sua própria casa ou ainda nas
cercanias da cadeia. Esse filho, atualmente um policial militar, ficou sob os cuidados de alguns presos que auxiliavam em tarefas
do cotidiano, como cozinhar, limpar a casa, cuidar da criança. Em tempos difíceis e violentos, tal como hoje, essa façanha é
inimaginável. De fato, não somente os espaços mudaram, mas também as relações que se estabelecem com eles se modificaram
sobremaneira.
A ruptura com o velho e a abertura para o novo se concretizaram de forma radical na arquitetura, com o movimento
modernista brasileiro. Muitos edifícios históricos caíram por terra, literalmente, e várias cidades ganharam uma nova aparência
mais “moderna”. Ainda hoje, muitas construções históricas são derrubadas ou mal preservadas, embora a arte contemporânea,
diferentemente da arte modernista, não se proponha mais romper com o antigo, mas, ao contrário, incorporá-lo ou até revitalizá-
lo, tal como ocorre, sobretudo, na arquitetura, com a remodelação ou restauração de edifícios antigos.
No plano das relações entre as gerações, apesar de ainda predominar a desqualificação e o distanciamento do jovem em
relação ao idoso, é possível identificar sinais de uma aproximação ou de uma valorização da velhice, conforme se observa na
própria ascensão da figura do idoso. Tal como está se buscando a revitalização do centro antigo de São Paulo, parece também que
a velhice está sendo restaurada como valor social. Nessa questão, em particular, o moderno dialoga com o velho. Já no plano das
relações pessoais diretas entre o jovem e o idoso, os diálogos parecem mais constritos e problemáticos.
Ainda que haja essa tentativa de miscigenação entre o velho e o novo em alguns planos, a circulação do idoso no espaço
urbano é objeto de restrições várias. Numa sociedade guetificada, como a atual, os grupos sociais e etários possuem modalidades
de circulação diferentes na cidade. Os lugares estão bem delimitados: há os espaços dos jovens, dos casais, das crianças e dos
velhos. Dificilmente ocorre que um circule no grupo de outro.
A circulação pelos espaços é delimitada por fronteiras sociais que determinam onde cada categoria deve transitar. Aliás,
o próprio mercado se encarrega de produzir tais lugares, como por exemplo, casas noturnas voltadas especificamente para jovens
e adolescentes, salões de dança para casais, boates gays, clubes de convivência para a terceira idade em que são realizados os
bailes etc. Dificilmente as diferenças mais radicais se encontram nesses lugares tão especificados. Aliás, em uma experiência com
nosso grupo, nós os levamos a uma badalada casa noturna da cidade, frequentada somente por jovens. O incômodo provocado
pela situação de choque de gerações foi mais presente nos adolescentes do que entre os próprios idosos. Já nos tradicionais bailes
da terceira idade, é comum encontrar pessoas de outras gerações. Ali, a presença de moças e rapazes é bem assimilada, de acordo
com os participantes do grupo, ao contrário das festas dos adolescentes, onde a presença de um velho poderia ser praticamente
“barrada no baile”.
As possibilidades de experimentação do espaço urbano pela velhice, como percebemos na sociedade brasileira, são
demasiadamente restritas. Sua circulação em ambientes onde a presença de jovens é maciça muitas vezes não é bem-vinda pelos
adolescentes. Em ambientes tipicamente noturnos, como bares e restaurantes, dificilmente encontramos uma presença mais
acentuada da população idosa. Aos idosos, cabem apenas os clubes para a terceira idade, um espaço no qual são realizados bailes

604
e outras atividades de convivência entre os mais velhos, além de suas memórias sobre essa cidade, que permanece subjetivamente,
onde que nem sempre encontram interlocutores para dialogar.
Certa vez, propusemos uma atividade, nas oficinas de psicologia com a terceira idade, que consistia em fazer maquetes
que figurassem a cidade e a relação que cada um estabelecia com esse espaço. O espaço urbano retratado por todos os subgrupos
reunia praticamente os mesmos conteúdos: a igreja, a praça central, o comércio, a escola, a casa do filho, uma lanchonete, a
sorveteria, o supermercado, o hospital. Em nossa discussão sobre o material produzido, os idosos afirmaram que essa era a cidade
à qual pertenciam e aqueles eram seus acessos de circulação na urbe. Notamos que, para eles, lugares como casas noturnas eram
interditados e não faziam parte de sua possibilidade de experimentação e apropriação da cidade.
Essas restrições de circulação, experimentação e apropriação do espaço urbano a que estão submetidos os idosos são
frutos de uma criação social, pois “queremos que os velhos se conformem à imagem que a sociedade faz deles. Impomos-lhes
regras com relação ao vestuário, uma decência de maneiras, e um respeito às aparências” (Beauvoir, 1990, p. 268).
Além das barreiras sociais impostas aos idosos, há ainda as barreiras físicas que comprometem o acesso a logradouros
diversos. Escadas, meios de transporte, calçadas e até o trânsito dificultam a circulação de idosos nos espaços urbanos. Essas
restrições, físicas ou sociais, recaem de maneira muitas vezes intensa na velhice. Dos lugares que fizeram parte de uma história
pessoal restam muito poucos, ou até mesmo nenhum. Dos espaços de circulação, há ainda algumas possibilidades de mobilidade.
Além disso, a ação do tempo nos espaços muda o cenário e as relações entre as coisas.
Como vimos, a velhice permanece à margem da condição de apropriação e experimentação do espaço urbano. Desse
sentimento de pertença à cidade, resta aos idosos apenas uma memória que se apóia nas pedras de um espaço que muitas vezes
lhes nega e interdita as possibilidades de circulação e participação na urbe. Por isso, o resgate dessas memórias sobre a cidade
pode contribuir para um embate sobre a condição a que o idoso é submetido na sociedade contemporânea brasileira e também
sobre o confronto com os rumos do espaço urbano nas suas transformações advindas da ação do tempo e do mercado capitalista,
que destróem a paisagem histórica urbana e interditam a livre movimentação na cidade com a produção de guetos urbanos.
Lembranças que se apóiam nas pedras da cidade podem ser as vias pelas quais se podem reconstruir caminhos e
possibilidades de ressignificação pelos labirintos da memória. As histórias de vida tramadas no espaço urbano guardam narrativas
preciosas que falam de acontecimentos do humano, mas que, em grande parte, são silenciadas pelo esquecimento, pela destruição
dos espaços e pela ação do tempo. Resgatar as memórias da cidade e de seus habitantes se configura em um exercício necessário,
pois como diz Ecléa Bosi (1987), importante psicóloga social, “as lutas pela memória: eis algo que todos temos conhecimento de
causa”. (p. 15)

Referências bibliográficas:
Arendt, H. (1972). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.
Beauvoir, S. (1990). A Velhice. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
Bosi, E. (1987). Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Calvino, I. (1990). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras.
Castells, M. (2001). A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra Editora.
Certeau, M. (1994) A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes.
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O envelhecimento populacional e o desafio àqueles que atuam com os novos atores


sociais – os idosos
Mirian Silva
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]

Patricia Cavalcanti
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]

Claudenizia Pereira
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]

605
Ana Paula Miranda
Pontificia Universidade Catolica de Sao Paulo
[email protected]

Katiuska Meira
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]

Resumo: Nas últimas décadas, o expressivo aumento da população de idosos mudou o perfil demográfico do Brasil, alterando, assim, a
configuração do atendimento nas instituições de saúde. Isto requer uma mudança de paradigmas e de forma substancial na formação dos
profissionais da área. Este tema assume relevância, especialmente no país, onde perduram as desigualdades sociais e vários paradigmas devem ser
confrontados. A questão é abordada de forma bastante incipiente e desarticulada, e mesmo aqueles que lidam com o envelhecimento não detêm a
clareza e necessitariam de uma formação articulada ao novo ideário. É no Sistema Único de Saúde que os profissionais de saúde, na sua maioria,
exercem suas atividades e seu papel de liderança. Aliado a isto, faz-se necessária uma adequada aproximação com os saberes da Saúde Coletiva,
dando-lhes subsídios para agirem de forma independente com espírito crítico e autonomia intelectual, estando aptos a interagir positiva e
politicamente com as políticas públicas. Assim, serem capazes de um atendimento digno aos idosos, que não são apenas objetos, mas também
instrumentos da assistência social. A pesquisa de cunho quali-quantitativo realizou-se em 2 hospitais de João Pessoa, teve como unidade
investigativa 30 profissionais das categorias de Enfermagem, Serviço Social, Psicologia e Medicina, objetivou Investigar o nível de capacitação
dos profissionais de saúde que estão na ativa no tocante aos cuidados sanitários aos idosos. O roteiro de entrevistas abordou 3 eixos: Percepções
sobre a velhice; Análise sobre o cotidiano e das condições de trabalho; Grau de informação sobre a saúde dos idosos.

Nestas últimas décadas a população mundial vem envelhecendo de forma ininterrupta, o expressivo aumento desta
mudou o perfil demográfico do Brasil, alterando, assim, a configuração do atendimento nas instituições de saúde. Isto requer uma
mudança de paradigmas e de forma substancial na formação dos profissionais da área. Este tema assume relevância,
especialmente no país, onde perduram as desigualdades sociais e vários paradigmas devem ser confrontados. As questões do
envelhecimento populacional ou mesmo dos idosos nas sociedades não é um problema é antes considerado uma das principais
conquistas do século XX, uma revolução e prescinde de uma análise das transformações por que passa essa classe social, uma vez
que todo processo ocorrido com os seres humanos é considerado como um processo histórico e este é dotado de um dinamismo
próprio que trás consigo os vários fatores que estão direta ou indiretamente ligados ao processo de envelhecimento que são fatores
biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos e culturais. Faz-se necessário uma breve explanação de alguns elementos
de épocas passadas e atuais para que se torne mais compreensível as mudanças e barreiras enfrentadas pelos idosos em seu
processo de envelhecimento. A figura do velho sábio, o ancião, se perde com o passar dos anos. Passa então o idoso (termo
utilizado a partir do século XX) a ser visto como um fardo social, uma pessoa econômica e fisicamente dependente da família ou
jogada a própria sorte. A expansão do capitalismo, na primeira metade do século passado e o processo de industrialização
reafirmam esta perda do valor social do ancião que passa a ser idoso e não mais detentor da sabedoria, agente ativo da vida e da
história da sua comunidade social, ficando às franjas da sociedade, pois já não possui os requisitos próprios à “produção”, onde
impera o sentido da “mais valia”. Observa-se que as sociedades que estão sob a égide do capital tendem a ver as pessoas como
mercadorias, e neste sentido seriam então os idosos considerados mercadorias que se descarta - descartáveis? O envelhecimento
não é um processo estanque, é dinâmico e percorre toda a história da humanidade, guarda características próprias, diferenciadas e
que variam de acordo com o tempo e com a cultura. Algumas civilizações como a esquimó estimula o suicídio dos idosos, no
entanto povos de outras culturas respeitam seus velhos como detentores do saber. Neste mesmo sentido pode-se encontrar na
Bíblia no livro Provérbio o seguinte: “Os cabelos brancos são uma coroa de honra.” Estes são alguns dos exemplos da diversidade
que existe em torno da maneiras como os diferentes povos lidam com o envelhecimento. Na década de 80 do século passado,
entre as mais variadas transformações societárias, tem início um fenômeno mundial conhecido como envelhecimento demográfico
que é caracterizado por mudanças físicas, psicológicas e sociais. Varias condições interferem sobremaneira no envelhecimento,
tanto no aumento quantitativo da expectativa de vida quanto na qualidade oferecida aos que envelhecem através da aplicação de
políticas sociais, principalmente nas áreas da saúde, da previdência e da assistência. Não é à toa que nos países onde se instaurou
o Estado de Bem-Estar Social, os idosos junto com outros setores mais frágeis da sociedade, tiveram a seu favor programas e
serviços que lhes garantiram e garantem um final de vida mais digno e protegido. O envelhecimento das populações é um fato
considerado irreversível para os próximos 50 anos. Adultos e jovens de hoje, futuros velhos de amanhã, têm o privilégio de agir
em prol de mudanças políticas, econômicas, culturais e sociais contra a discriminação que leva a exclusão dos idosos. Diante disto
um dos fatos importantes a ser ressaltado e a formação do profissional de saúde e as transformações pelas quais ela vem passando.
Atuar junto a essa população buscando respeitar seus direitos e valores, atender suas necessidades individuais e sociais, faz do
atendimento, uma prática digna e livre de preconceitos. No entanto observa-se constantemente situações que retratam a falta de
respeito à dignidade a pessoa idosa, evidenciadas por uma prática que normalmente não respeita os direitos do idoso, usuário das
políticas de saúde. Esta preocupação com os aspectos humanitários emerge da observação atividades assistenciais e da atuação

606
dos profissionais de saúde ao lidar com os idosos. A concretude desta questão instiga a estudá-la e a pesquisá-la, com o intuito de
poder contribuir com a conscientização daqueles que lidam com o trato à velhice para que possam dar ao idoso de hoje e futuro
um atendimento mais digno e adequado, livre de estigmas e preconceitos e com respeito aos seus direitos. Fazendo uma reflexões
sobre a condição da “velhice” no Estado brasileiro na contemporaneidade, pode-se observar que de uma forma ou de outra todos
têm uma imagem formada do que é ser idoso, imagem esta formulada a partir de suas observações, do que lhe foi passado por
seus familiares e pela sociedade na qual está inserido, ou ainda, do vivenciado. É importante que esta imagem não seja
estigmatizada, pois é uma realidade e nossos idosos são a nossa imagem amanhã. O Brasil como outros países até a pouco era tido
como um país jovem, porém esta imagem vem mudando rapidamente e estima-se que em 2025 a expectativa de vida chegue a 74
anos. A OMS, define a população idosa como aquela a partir dos 60 anos de idade. Este limite é válido para os países em
desenvolvimento, subindo para 65 anos de idade quando se trata de países desenvolvidos. Este envelhecimento demográfico traz
uma realidade social diferente e uma consciência de que a senilidade existe e é uma questão social com qual a sociedade deve
dispensar atenção, pois o “envelhecimento social” produz modificações no status que o idoso ocupa na sociedade e no seu
relacionamento com os outros, devido a fatores como: crise de identidade; reformulação de papéis na família, no trabalho e na
sociedade; questões inerentes à aposentadoria e diminuições ou perdas diversas sejam dos pontos de vista biológicos,
psicológicos, econômicos ou sociais, e, assim os seus valore inclusive éticos vão mudando. Considerando as tendências nacionais
observadas para as taxas de fecundidade e longevidade da população, as estimativas para os próximos 20 anos indicam que a
população idosa poderá ser superio a 30 milhões. Se pensarmos o Brasil sob uma perspectiva neoliberal, teremos que recorrer a
um esforço concentrado extra para que se torne possível a viabilização de direitos sociais para os idosos através de mobilizações e
organização de movimentos sociais que representem os interesses desta classe, pois o fenômeno do envelhecimento numa
sociedade como a nossa, dá visibilidade às contradições próprias dos problemas sociais. Na medida em que a população idosa
aumenta, cresce também a preocupação dos governos em satisfazer às necessidades dos cidadãos e de suas famílias, para que o
enfrentamento da velhice se dê com conforto e dignidade, uma vez que de nada adianta acrescentar anos a existência se esta não
pode ser bem vivida. Diante disto pode-se verificar que para que ocorra o processo de envelhecimento não basta acrescentar anos
de vida, faz-se necessário que políticas públicas sejam criadas ou adequar as já existentes para atender a este segmento
populacional com expressivo potencial para aumentar cada vez mais, lhes dando melhores condições de saúde, habitação, maior e
melhores acessos a programas de aposentadoria e pensões, entre outras e com isto assegurar que o processo de desenvolvimento
econômico e social ocorra de forma contínua, com base em princípios capazes de garantir tanto um patamar econômico mínimo
para a manutenção da dignidade humana, quanto a equidade entre os grupos etários. Há nas sociedades capitalistas uma forte
tendência a excluir segmentos populacionais menos favorecidos como os pobres, os índios e os idosos, por não se inserirem no
novo padrão mercantil ou estético de inclusão social, não conseguem, portanto preservar sua própria identidade social e passam a
perder os vínculos de sociabilidade. Nas últimas décadas, na chamada sociedade de consumo, advém características onde surge
como já vimos o chamado apelo narcisista, que privilegia o novo, o jovem, onde o que interessa é o melhor desempenho, surge a
cultura de consumo valorizando-se o imediato, as imagens, o presente. O que é produzido é consumido é descartado fazendo-nos
perder de vista os nexos com a realidade social e distanciando-nos cada vez mais da compreensão totalizante da vida social. O
indivíduo torna-se um ser movido pelo efêmero, pela sedução e cultua o imediato. Entretanto seja na sociedade de consumo ou
não o envelhecer para o ser humano é um processo natural, biológico e universal inerente ao seu próprio desenvolvimento. Não se
restringe apenas à natureza humana, manifesta-se em todos os níveis de integração dos organismos. Verdadeiro, portanto seria
afirmar que os princípios éticos emergem à medida que novos contextos são colocadas na sociedade, como é o caso do idoso, ou
seja, uma sociedade onde não há idosos, não tem como nem porque se preocupar com eles, porém a proporção que essa sociedade
adquire um maior percentual de idosos, esta começa a perceber que mudanças devem ocorrer e uma nova conduta ética precisa ser
estudada e posta em prática, para que seus idosos possam envelhecer com mais dignidade e menos perdas. Sendo assim, por que a
sociedade brasileira insiste em não querer ver seus idosos? Com esta indagação, quero chamar atenção para o fato de que nossa
sociedade envelheceu. É, portanto necessário que atitudes sejam mudadas e medidas sejam tomadas, para que nossos idosos
tenham seus direitos preservados. A década de 80 do século passado foi um período de grandes turbulências e revestido de
grandes lutas e avanços sociais, além de uma forte influência das agências internacionais (FMI e Banco Mundial), com o intuito
de satisfazer sua função no ajuste estrutural. No âmbito internacional em 1982 ocorre em Viena a primeira Assembléia Mundial
sobre o Envelhecimento (AME), onde foi elaborado o Plano de Ação Mundial sobre o Envelhecimento, que traçou o panorama
mundial do envelhecimento e as diretrizes para com ele lidar. Um dos principais ganhos do plano é a inserção nas agendas
internacionais de questões referentes ao envelhecimento não só da população, mas do indivíduo. Em 1991 a Assembléia Geral da
ONU aprovou os Princípios das Nações Unidas em prol das Pessoas Idosas são 18 princípios que foram divididos em cinco
grandes secções (Independência, Participação, Cuidados, Dignidade e Auto-realização). Em 1992 é aprovado pela Assembléia
Geral da ONU: A Proclaração sobre o Envelhecimento, e declarou o ano de 1999 como Ano Internacional das Pessoas Idosas em
reconhecimento da "longevidade" demográfica da humanidade sob o slogan “Promoção de uma sociedade para todas as idades”.
Em 2002 ocorre em Madri a Segunda AME, esta ressalta a colaboração estabelecida entre o Estado e a sociedade civil. No
âmbito nacional, Os principais fatores demográficos que denotam a incidência cada vez mais representativa do contingente de

607
idosos no Brasil se referem: ao aumento da expectativa de vida em decorrência dos avanços tecnológicos na área da saúde, da
diminuição dos índices de natalidade e de fecundidade, além da elaboração e implementação de políticas públicas e sociais. Este
rápido e significativo aumento na população idosa brasileira é por suas causas e efeitos uma das mais importantes mudanças
ocorridas no panorama nacional. Um marco importante na trajetória das políticas públicas de atenção ao idoso é a Constituição
Federal de 1988 que introduziu em suas disposições o conceito de Seguridade Social, fazendo com que a rede de proteção social
alterasse o seu enfoque puramente assistencialista, passando a ter uma conotação ampliada de cidadania, como direito de todos e
dever do Estado. Ocorre então no Brasil uma adequação da legislação nas três esferas de governo, para garantir os direitos dos
idosos. Leis municipais, estaduais e federais têm atentado para as necessidades do cotidiano do idoso, com êxito, porém sob
alguns preconceitos e críticas da sociedade. No início da década de 90, a prestação de serviços aos idosos foi sistematizada pela
PNI e pelo respectivo plano de ação governamental, que criou normas para garantir os direitos sociais dos idosos, assegurando
assim a autonomia, integração e participação efetiva destes como instrumento de cidadania. Em 1º de outubro de 2003 é
promulgado o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com 60 anos ou mais.

A Questão da formação dos profissionais de saúde


Todo atendimento à saúde, seja ele simples ou complexo, deve ser realizado da melhor forma possível, sem, no entanto
perder de vista o fato que todos são seres humanos e mais, que são cidadãos e como tais devem agir de forma a respeitar e
compartilhar valores éticos e morais, isso se faz ainda mais importante em se tratando do atendimento de pessoas idosas.
A complexidade da organização dos Serviços de Saúde em decorrência dentre outros fatores da Reforma Sanitária que
vem sendo implementada no país a mais de 15 anos e da implantação do SUS, fazem com que não apenas as instituições
formadoras de profissionais médicos e enfermeiros, mas todas as outras que tenham seus profissionais atuando nos serviços de
saúde necessitem de uma reformulação na sua estrutura de formação (L’ABBATE, 2002).
No Brasil, um ponto a ser ressaltado na formação do profissional, especificamente do profissional de saúde é que este
deve ser formado com vistas a atender as perspectivas e exigências do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como pilares a
universalidade, equidade e integralidade, sendo assim perduram impasses, e desafios novos surgem para o setor saúde no âmbito
educacional, social, político, econômico e ético e por isso um trabalhador em saúde não pode e não deve se limitar à formação
tradicional e de forma imparcial, deve sim, buscar um espírito crítico e autonomia intelectual, sendo assim,
“Constituir sujeitos mais autônomos e críticos, trabalhar a partir de necessidades e expectativas dos profissionais, em suas
relações com o usuário e com a instituição, alimentar posturas éticas que levem em conta os princípios de cidadania, de
justiça, de bem comum; estar o tempo todo preocupado em construir relações de sentido entre o que se passa no microcosmo
da equipe, da unidade de saúde ou do setor do hospital e o macrocosmo da instituição e do sistema, [...]” (L’ABBATE,
2002).

Contamos com a real mudança etária da população e a diversificação de problemas apresentados por esta expressiva
massa populacional que são os idosos e que têm o direito a uma atenção adequada a sua realidade. Entretanto com a
tradicionalidade da formação, os parcos investimentos nos estudos sobre o SUS e na saúde coletiva, a concepção
“hospitalocêntrica, médico-centrada e procedimento-centrada (medicalizadora)” dos cursos que compõem a área da saúde levam
os futuros profissionais a uma inadequação no atendimento destes (BRASIL, MS, 2002).
Com estas concepções as propostas no campo da formação dos recursos humanos na área da saúde devem incluir
propostas que considerem práticas de saúde, não somente aquelas centradas na doença, mas que reconheçam o processo social o
qual as determinou e que estudantes e profissionais da área de saúde assumam postura positiva e ativa em sua aprendizagem,
inclusive com relação a medidas que não apenas prolonguem a vida, mas o façam com qualidade.
Apesar dos recursos humanos serem a mola mestra no arcabouço do sistema de saúde, este tema de forma genérica até
bem pouco tempo não estava incluído de forma efetiva nas agendas das reformas do setor da saúde, o qual tem passado por
inúmeras mudanças e reformulações. Esta ausência do tema nas agendas vem refletindo de forma direta e indireta no descompasso
da formação dos profissionais de saúde há muito tempo em todos os níveis (médio, técnico ou superior). (BARRENNE, 2004)
No entanto, as iniciativas do Estado/governo até o momento têm sido tímidas, insuficientes ou desarticuladas, porém
deve-se reconhecer a importância de projetos promovidos pelo Ministério da Saúde como o PROFAE (qualificação profissional
de nível técnico de enfermagem) e os Pólos de Saúde da Família (qualificação profissional no âmbito do ensino superior)
(SANTANA; CHRISTÓFARO, 2006)
É importante ressaltar: são os trabalhadores junto com a demanda (população) que determinam “[...] os serviços que
serão produzidos, quando, onde, em que quantidades serão consumidos e, portanto, o impacto que terão esses serviços sobre a
condição de saúde das pessoas.” Por isso, o êxito de ações de saúde depende, em grande parte da efetividade e qualidade da
gestão, do próprio processo de trabalho e de cada um dos trabalhadores da área. (BARRENNE, 2004 p.21)

608
A insuficiência do estudo sobre o SUS no percurso da graduação tem sido uma preocupação frequente de gestores,
formadores e usuários do setor da saúde, visto que é dentro deste sistema que os profissionais na sua maioria estarão
desempenhando suas atividades.
Diante disto, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e Ministério da Saúde (MS) estão implementando e apoiando
iniciativas no sentido de uma nova metodologia de formação dos profissionais da área da saúde e em setembro de 2003, o
Ministério da Saúde assumiu o papel, definido na legislação, de gestor federal do SUS no que concerne à formulação das políticas
orientadoras da formação, desenvolvimento, distribuição, regulação e gestão dos trabalhadores de saúde no Brasil e propõe dentre
outros aspectos a adoção da Educação Permanente como a estratégia fundamental na formação dos recursos humanos na área da
saúde. Esta tem como objetivo fundamental a recomposição das práticas de formação, atenção, gestão, formação de políticas
públicas e controle social no setor de saúde. A Educação Permanente em Saúde tem como proposição transformar as práticas seja
como questões sociais ou no âmbito das técnicas, para uma melhor adequação dos profissionais de saúde a nova realidade
brasileira (BRASIL, 2003).
Portanto, temos como objetivos: Identificar junto aos profissionais de saúde que atendem ao idoso o significado da
velhice, e detectar as dificuldades que os profissionais de saúde enfrentam no atendimento ao idoso, para isto foi realizado um
trabalho envolvendo duas instituições de saúde do estado, que são referência do SUS e que atendem a um significativo
contingente de idosos. A pesquisa foi realizada com 30 profissionais (Enfermeiros, Assistentes Sociais, Médicos e Psicólogos). O
instrumento utilizado constava de duas partes, a primeira referente aos dados de identificação e a segunda um roteiro de entrevista
estruturado em 5 eixos, destinados a fornecer dados para o alcance dos objetivos. Após prévia análise podemos confirmar a
hipótese: Os profissionais de saúde que atuam nas unidades de internação das instituições públicas de saúde que atendem a idosos
não possuem formação específica que os subsidiem no atendimento ao idoso.

Considerações finais
Considerando-se o Brasil sob uma perspectiva neoliberal, teremos que recorrer a um esforço concentrado extra para que
se torne possível a viabilização de uma nova consciência na formação dos futuros profissionais de saúde e um despertar dos que já
fazem parte do mercado profissional para o boom da população idosa.
Portanto o modelo tradicional de universidade e de instituições de nível médio deve adequar-se para que possam
oferecer a educação em saúde como um processo contínuo e sistemático, objetivando a formação e o desenvolvimento da
consciência crítica do cidadão, pela vivência do real, estimulando-o na busca de soluções para os problemas vivenciados na
prática junto aos profissionais e a sociedade, sendo assim a efetivação destas ações contribuirá de forma decisiva para a
consolidação do processo de desenvolvimento e formação dos profissionais de saúde e para uma melhor qualidade na assistência
dessa categoria populacional.
Um ponto ainda a ser ressaltado na formação do profissional, especificamente do porfissional que lida com o idoso é
que este deve ser formado com vistas a atender as perspectivas e exigências do SUS, que tem como pilares a universalidade,
equidade e integralidade, sendo assim perduram impasses, e desafios novos surgem para o setor saúde no âmbito educacional,
social, político, econômico e ético, e por isso um trabalhador deve ter um espírito crítico e autonomia intelectual.

Referências bibliográficas
Barrenne, M. E. I. & ZUNIGA, F. V.. Competência profissional: manual de conceitos, métodos e aplicações no setor de saúde.
Tradução de: Hiloko Ogihara Marins; Mercilda Bertmann; Vera Kller. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2004. 296 p.
Brasil, Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde – Departamento de Gestão e da Educação
na saúde. Política de educação e desenvolvimento para o SUS: Caminhos para a Educação Permanente. Brasília – DF: Editora
MS, 2003.
Brasil, Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde – Departamento de Gestão e da Educação
na saúde Departamento de Gestão da Educação na Saúde.Caderno de textos: Versus – Brasil: Vigências e estágios na realidade
do Sistema Único de Saúde do Brasil. Brasília – DF: Editora MS, 2002
L’abbate, S. Capacitação em Educação e Comunicação em Saúde. Ministério da Saúde – Versus/Brasil. Caderno de Textos.
Brasília – DF, 2002.
Santana, J. P. de; C., Córdova M. A.. Educação, Trabalho e Formação Profissional em Saúde. Núcleo de estudos de Saúde
Pública – NESP/CEAM/UNB. Programa de Políticas de Recursos Humanos de Saúde. Disponível em:
http://www.unb.br/ceam/nesp/polrhs/Temas/edc_trab_form_prof_em_saude2.htm - Acessado em: 20/Jan/2006.

609
A Vivência em Lar e a Privação da Intimidade
Joana Guedes
Instituto Superior de Serviço Social do Porto
[email protected]

Resumo: No trabalho qualitativo que aqui se apresenta pretendemos dar conta dos modos de vida associados à vivência em “lar de idosos” e das
consequências desse processo ao nível da perda de espaços pessoais e de intimidade. Através da observação participante e de entrevistas semi-
estruturadas, procurou-se analisar a instituição tal como os idosos a experienciam. Das dimensões analisadas destacam-se as que se prendem com
a apropriação dos diversos espaços institucionais, designadamente aqueles espaços que se configuram como um prolongamento do corpo e da
identidade dos sujeitos. Interessou-nos perceber os princípios de organização do espaço, a divisão que comporta entre o fora e o dentro, a divisão e
concepção do interior do lar segundo um modelo funcional, a organização do espaço institucional enquanto espaço de controlo, enquanto
expressão de uma estrutura de poder. A par do conhecimento dessas lógicas, regras e princípios de organização dos espaços, interessou-nos
conhecer as percepções subjectivas que os indivíduos constroem face aos espaços organizados à sua volta, assim como os seus espaços de eleição.
Por outro lado, e partindo destas regras, urge questionar até que ponto o indivíduo consegue apoderar-se de “nichos psicológicos” que satisfaçam a
necessidade de intimidade e apropriação ao espaço ou, simplesmente, se conforma e adapta aos espaços em que é instalado, deixando claro uma
concepção de espaço institucional que apenas se concebe como um lugar de liberdade vigiada e em que o papel do indivíduo é definido e
modelado pela instituição.

Os espaços institucionais e o lugar dos sujeitos


No trabalho qualitativo de estudo de um lar, pretendemos dar conta dos modos de vida associados à vivência em “lar de
idosos” e das consequências desse processo ao nível da perda de espaços pessoais e de intimidade. Através da observação
participante e de entrevistas semi-estruturadas aos idosos, procurou-se analisar a instituição tal como os idosos a experienciam.
Das dimensões analisadas destacam-se aqui as que se prendem com a apropriação dos diversos espaços institucionais,
designadamente aqueles espaços que se configuram como um prolongamento do corpo e da identidade dos sujeitos.
Pretendemos analisar o impacto que a vivência no espaço lar origina no indivíduo, partilhando, com os construcionistas,
a visão de que o contexto organiza o significado. Os significados não estão “lá fora”, esculpidos em pedra, prontos a ser
submetidos a hipóteses ou avaliados, nem, no extremo oposto, se adaptam a tudo e todos. O significado não é aquilo que o
observador pretende (Gubrium & Holstein, 1999).
Se são atribuídos pelos idosos diferentes significados às experiências que vivenciam no lar, estes significados estarão
também influenciados pelos espaços em que ocorrem e percepções que despertam. Desde logo, o espaço lar pode assumir-se
como um contexto de tensões complexas porquanto implicou a saída da casa/residência de família, espaço este estruturador das
experiências passadas e da própria identidade dos sujeitos. É então importante tomar em conta o contexto físico e social em que o
indivíduo envelhece, pois as várias circunstâncias em que se envelhece vão condicionar todo esse processo. Mais ainda do que
conhecer a envolvência objectiva e material, interessa conhecer como essa envolvência é percebida pelos idosos (Barenys, 1990).
Conhecer a envolvência ecológica do indivíduo supõe, entre outras coisas, conhecer os processos e experiências mais
significativas que se efectivam em espaços de vida. No caso concreto dos idosos sobressai o espaço habitacional, “experenciado
em geral como espaço de defesa e segurança, região propícia ao reencontro consigo próprio e à capacidade de afirmação e
construção da vida através do corporal” (Esteves, 2003:27). A este espaço habitacional, e todo o ambiente social que se produz em
seu redor, estão associados lugares de história individual, familiar e de permuta com uma rede de vizinhos e conhecidos, aos quais
se associam comportamentos e acontecimentos vividos em cada momento da vida dos indivíduos, que contribuem para a
manutenção da identidade do eu.
No entanto, quando o ambiente físico, social e humano se transforma radicalmente, os indivíduos vêem-se a braços com
desafios adaptativos susceptíveis de lhes provocar sofrimento. Como salienta Paúl, “com as alterações da paisagem e dos
comportamentos a ela associados – o baldio onde se brincava que virou urbanização, o campo de cereais que foi atravessado por
uma estrada – o idoso perde inevitavelmente parte da sua identidade pessoal histórica, da mesma forma como quando morre mais
um dos seus pares e com ele as memórias partilhadas da vida” (Paul, 2005:247). Com efeito, a identidade do Eu que se vai
reconstruindo de forma dinâmica na base das trocas com o meio, será tanto mais abalada quanto possamos falar de uma mudança
residencial que afasta os indivíduos de todas as vivências com significado identitário, na sequência de processos múltiplos de
sucessiva perda de autonomia. Quaisquer que sejam as razões da perda da autonomia, é desejável que as alternativas de
residência institucional preservem e, preferencialmente, reforcem essas referências identitárias prévias, assim como
garantam o bem-estar do idoso e a sua qualidade de vida. De entre essas referências identitárias destacam-se os objectos que os
idosos possuem na sua residência. Sejam de uso prático ou decorativo, estejam eles investidos de um valor económico,
sentimental, utilitário ou estético, os objectos são entendidos como elementos caracterizadores da história de vida e,

610
igualmente da identidade dos indivíduos (Manoukian, 2001). A partir do momento que certo objecto é adquirido ou oferecido,
deixa de ser anónimo, torna-se pessoal, familiar, implicando uma ligação particular ao mesmo.
Este afastamento dos objectos familiares acaba por ser frequente logo que uma pessoa idosa deixa a sua residência para
ir viver para um lar, porquanto os limites impostos em termos dos materiais e objectos a levar para o lar são, regra geral, bastante
severos. Quebra-se o laço íntimo mantido com esses objectos familiares e privam-se os sujeitos das suas referências identitárias
exteriores. Esta perda de objectos de toda uma vida equivale a um despojamento ou um pôr-se a nu, podendo gerar-se
sentimentos de abandono, de roubo ou de traição (Manoukian, 2001). É, pois, determinante compreender, valorizar e preservar a
relação que se estabelece com os objectos no espaço doméstico, tentando que a mudança para o lar não implique uma ruptura
abrupta com os mesmos e que o espaço lar também valorize no seu seio a permanência, se não de todos, pelo menos de alguns
desses objectos marcantes para os seus residentes.
Tratar a dimensão do espaço implica atender a uma multiplicidade de indicadores que poderão ser preditivos de um
maior bem-estar e adaptação ao lar, ajudando a compreender de que forma a quantidade e qualidade dos espaços interferem no
envelhecimento bem-sucedido dos idosos e na preservação da sua dignidade e identidade. Como salienta Paúl, os vários modelos
da psicologia ambiental debruçam-se justamente sobre a importância do contexto físico e humano nos resultados diferenciais do
processo de envelhecimento, sendo a tese central destes modelos a maximização do envelhecimento bem-sucedido ou óptimo a
partir de uma relação adequada entre o idoso e o meio (Paúl, 2005).
O interesse concreto pela interacção ambiente-indivíduo na velhice surgiu, de acordo com Izal & Fernandéz-
Ballesteros (1990) na década de 60, uma vez que à data se colocavam em relevo os efeitos negativos da institucionalização
das pessoas idosas, uma vez que vários estudos indicavam a ocorrência de perdas de saúde e um aumento da mortalidade entre
a população idosa em consequência da entrada para uma instituição. Inicia-se, assim, o estudo do impacto das instituições
sobre os velhos, ou seja, o estudo da interacção pessoa-ambiente na velhice. Na década seguinte começam a estudar-se diversos
factores ambientais que podiam afectar o comportamento das pessoas idosas, emergindo distintos modelos teóricos com o
objectivo central de clarificar a natureza das relações entre ambiente e comportamento na velhice.
Considerando a dimensão socioespacial das instituições, elas podem ser consideradas, de acordo com Goffman, como
instituições parciais e instituições totais. As primeiras só acolhem uma parte das actividades quotidianas dos indivíduos, sendo
que estas habitualmente se desenrolam em várias instituições parciais, de acordo com as várias actividades que temos necessidade
de desenvolver diariamente. As instituições totais implicam a realização de todo o tipo de actividades dos indivíduos no mesmo
local, durante um tempo prolongado. Neste contexto, o indivíduo encontra-se imerso num universo onde é tratado de maneira
igual à de todos quanto com ele partilham esse espaço (Fisher, 1994:138).
Assim sendo, e para que seja possível ao observador construir uma grelha de leitura dos espaços institucionais, torna-se
necessário conhecer as lógicas, regras e princípios de organização desses espaços, assim como conhecer as configurações
subjectivas que os indivíduos constroem face aos espaços organizados à sua volta. A referida congruência entre pessoa-
ambiente resulta em bem-estar e qualidade de vida. Neste sentido, a psicologia ambiental não busca medidas padronizadas de
qualidade de vida, mas torna necessário que se examinem as necessidades de cada um em matéria ambiental, sendo que
“somente por meio do conhecimento das representações sociais de bem-estar e qualidade de vida das populações específicas em
contextos ambientais particulares, seremos capazes de perceber os valores das pessoas, significados e visões de mundo e,
portanto, compreender e explicar o impacto destes sobre a relação individual daquelas pessoas em seu ambiente”(Moser, 2003:
332/3).
Se atendermos à visão do observador, interessa perceber os princípios de organização desse espaço. Concretamente, a
divisão que comporta entre o fora e o dentro, em termos de barreiras ou fronteiras, uma vez que estes sistemas de delimitação
são sistemas de regulação com o mundo exterior e de controlo sujeitos a rituais de passagem aquando das entradas e saídas; o
sentimento de encerramento, ainda que provisório, por parte de quem vive nesse espaço fechado por relação ao exterior; a
divisão e concepção do interior segundo um modelo funcional, onde as componentes espaciais estão claramente relacionadas
com a natureza das actividades lá desenvolvidas, tornando estreita a relação entre espaço, actividades, indivíduo; a organização
do espaço institucional enquanto espaço de controlo, enquanto expressão de uma estrutura de poder, enquanto espaço que
obedece a regras de vigilância (Fisher, 1994: 139/140).
O autor sugere-nos, ainda, a análise de um conjunto de regras de organização dos espaços, dividindo-as entre regras de
afectação, pressupondo que cada coisa e indivíduo se situem no seu lugar, facilitando os processos de controle e tornando
indesejáveis os processos errância e mobilidade; regras que se prendem com a fruição pontual dos espaços, pressupondo um
controle sobre os espaços modelado em função da natureza das actividades; regras de divisão do espaço segundo o nível
hierárquico, podendo-se usufruir de determinados espaços reservados em função do estatuto, estabelecendo-se uma diferenciação
entre as várias categorias de pessoas que ocupam determinado espaço; a regra da proibição de acesso, excluindo pontual ou
parcialmente certos grupos de certos espaços, reforçando o controlo exercido e a atribuição de privilégios, como maior conforto
ou tranquilidade, a alguns.

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Assim sendo, e partindo destas regras, urge questionar a concepção que o espaço institucional constrói acerca do
indivíduo, sendo que se este espaço apenas se concebe como um lugar de liberdade vigiada, o papel do indivíduo é definido e
modelado pela instituição, devendo este conformar-se e adaptar-se aos espaços em que é instalado. Nestas circunstâncias, o
espaço institucional “impõe-se como uma ordem a respeitar, o que implica indivíduos suficientemente maleáveis para se
adaptarem às “exigências” da organização” (Fisher, 1994:142).
Por outro lado, e de acordo com a perspectiva do autor em análise, é indubitável que os espaços institucionais
organizam as relações por via do jogo de distribuição dos ocupantes no espaço. As interacções são moldadas em função do
número de ocupantes, do espaço disponível, do tipo de actividades, da colocação dos símbolos de autoridade. Esta organização
funcional dos espaços tenta, pois, apoderar-se do indivíduo e conformá-lo face aos espaços programados.
Se atendermos à análise dos espaços institucionais, ao ponto de vista do indivíduo, teremos que considerar sobremaneira
não tanto a forma como a instituição tenta moldar e tratar o indivíduo, mas o modo como o próprio se sente, como apreende de
forma subjectiva a organização e a divisão dos diversos espaços da instituição. Como sugere Fisher, “todo o espaço
institucional é estruturado em conchas psicológicas, determinadas, num grande número de casos, pela relação controlo/liberdade”
(1994:147) e não tanto segundo a lógica da adequação espaço/actividades prescritas. A existência de zonas subjectivas ultrapassa
o critério da adequação. Está mais relacionada com o espaço vivido e com a procura de liberdade encetada pelos indivíduos que
habitam esses espaços.
Vamos igualmente analisar os indicadores que nos poderão retratar os índices de conforto, comodidade e
atractividade que os espaços oferecem. Por outro lado, importa analisar a diversidade e dimensões dos espaços que
efectivamente estão disponíveis aos residentes, quer na vertente mais colectiva de convivialidade, potenciando a sociabilidade e a
realização de actividades recreativas, quer na dimensão mais pessoalizada e íntima, permitindo o desfrute de momentos de
privacidade individual e/ou de ligação mais estreita à família. A par de todas estas considerações, o lar deve ser igualmente um
espaço de criatividade e de promoção de estimulações variadas que favoreçam a qualidade estética da residência e, acima de
tudo, a diferenciação dos espaços habitáveis e a personalização dos espaços privados. De notar que o nível de influência dos
residentes na decoração e definição desses espaços tenderá a uma maior apropriação dos mesmos, favorecendo o clima de
familiaridade desejado no contexto do lar.

Espaços destinados aos vários serviços


No lar em estudo encontramos uma variedade de espaços diferenciados destinados à promoção dos vários serviços
fundamentais para responder às necessidades dos utentes.
As áreas destinadas aos Serviços Administrativos e Técnicos são circunscritas a três pequenas salas: uma destinada à
directora geral da instituição, outra destinada à assistente social; e a terceira destinada aos serviços de contabilidade, onde trabalha
apenas uma funcionária.
Estas pequenas salas estão situadas junto ao corredor de acesso à sala de convívio, assegurando bastante proximidade
com os utentes. Existe uma entrada sem porta e um pequeno hall, para onde confluem as três portas correspondentes às três salas
referenciadas. É frequente observar os utentes a olharem para a porta da sala da assistente social, a mais visível cada vez que
se passa no corredor, no sentido de se assegurarem se essa porta está aberta para a cumprimentarem. Muitas vezes ainda param
para estabelecer um pequeno diálogo com ela, para fazer uma queixa relativa a algo que não vai bem com a sua saúde ou com o
funcionamento do lar. Apesar da ligação relativamente próxima que alguns estabelecem com a assistente social, dificilmente
se queixam ao ponto de solicitarem a mudança de quarto ou mesa, não obstante termos percebido que seria o desejo de
alguns.
Contudo, são muitas as vezes em que os utentes olham em vão, pois a porta se encontra fechada, inibindo-os de lá
bater. Isso só acontece se houver algum assunto de força maior a ser tratado com esta profissional e não de forma espontânea. A
profissional em causa alega que, se não o fizer, não se consegue concentrar em muitas tarefas que tem que assegurar, dadas as
vezes que é interrompida.
O hall de entrada e as portas de acesso aos gabinetes funcionam assim como barreiras separadoras entre o mundo
dos idosos e o dos técnicos.
Nos seus estudos, Gubrium apercebe-se de que a existência também era assegurada por mundos separados entre
administração, staff e residentes, aquilo que designa de “lugar”. De um modo geral, a administração desenvolvia as suas tarefas
nos seus escritórios e reuniões, o que mantinha o seu mundo e decisões separados dos restantes. O staff, especialmente as
ajudantes de enfermagem, passa grande parte do tempo junto dos residentes, enquanto que os residentes estavam essencialmente
nos seus quartos, nas salas de convívio ou na cantina. Dentro dos residentes, existiam ainda divisões em círculos informais de
amigos e díades de suporte mútuo, o que constituía os seus pequeninos mundos de interacção. Sendo que os mundos do staff e dos
residentes estavam mais próximos, a sua colisão era mais provável do que a administração, causando os costumeiros incidentes e

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queixas (Gubrium & Holstein, 1999:296). Estes diferentes lugares contribuem, assim, para produzir interacções distintas e
pequenos mundos separados entre estes vários grupos de actores, originando, por sua vez, mundos de significado distintos.
Por outro lado, as áreas destes espaços, sobretudo do gabinete da assistente social e da directora geral da
instituição, são muito limitadas, não cabendo lá uma cadeira de rodas com a porta fechada. Na verdade, em todo o tempo de
permanência na instituição nunca se observou um utente de cadeira de rodas a dirigir-se para qualquer uma destas salas para tratar
de qualquer assunto, o que por si só, retratará a situação de maior inibição e exclusão a que estarão voltados.
No espaço destinado à assistente social estão também contidos os processos dos utentes, fechados à chave num
armário para que ninguém caia na tentação de os consultar quando a assistente social não está. Só esta profissional e a
directora geral conhecem o paradeiro da chave desse armário. Por isso mesmo, sempre que a assistente social se ausenta do seu
gabinete, fecha-o à chave, alegando que já houve auxiliares do lar que caíram na tentação de ir consultar os processos dos utentes,
à revelia da própria e da directora geral. Existem, ainda, na sua sala todo o tipo de documentação institucional e de ligação
interinstitucional.
A sala da directora geral costuma estar habitualmente fechada, funcionando também como um entrave à entrada e
comunicação com os utentes, reforçando entre estes e ela uma certa distância referenciada muitas vezes por eles.
Quanto à sala da contabilidade, ela é mais frequentada pelos utentes no final do mês: isto é, quando se trata de
pagar a mensalidade ou, na maioria das situações, de levantar o dinheiro que resta da sua pensão após ter sido paga a mensalidade
ao lar, uma vez que a maioria das pensões não são levantadas pelos utentes directamente mas vêm dirigidas ao lar.
A sala de contabilidade funciona, também, como secretaria: aí guarda-se todo o tipo de papeladas e para aí todos se
dirigem cada vez que precisam de uma fotocópia, pois é o único espaço do lar que possui fotocopiadora.
As três salas encontram-se devidamente equipadas com computadores e Internet, que, salvo raras excepções, não
estão acessíveis aos utentes.
Quanto aos serviços de saúde, a entrada para as salas onde estes são prestados encontra-se situada no mesmo corredor
que dá acesso à sala de convívio. Uma porta sem qualquer indicação, o que dificulta a identificação desse espaço por parte dos
novos residentes, permite a entrada para duas pequenas salas, separadas ao meio por uma porta que costuma estar habitualmente
aberta, tornando aqueles dois espaços num único. A primeira sala, a de enfermagem, é mais pequena e é equipada por uma
secretária e por um armário, pregado à parede, com pequenas prateleiras onde se distribuem os medicamentos referentes a cada
utente, a fim de que não haja trocas possíveis. A sala seguinte, um pouco maior, considerada o consultório médico, possui uma
secretária bem maior, cadeiras supostamente para o médico e pacientes, uma balança, uma marquesa, um enorme armário rústico
de uma parede à outra da sala, repleto de medicamentos e uma mesa de apoio onde se colocam os materiais necessários, como:
pensos e betadin, para fazer os curativos que diariamente lá se realizam. Na verdade, como não existe médico na instituição, nem
nenhum médico que a visite regularmente, o consultório médico funciona como sala de enfermagem onde diariamente as duas
enfermeiras do lar, uma em part-time, outra a tempo inteiro, realizam os tratamentos e curativos necessários.
Se é certo que estas salas, destinadas à prestação de cuidados e à guarda de medicamentos, se encontram
próximas da sala de convívio, frequentada por uma grande parte dos utentes, assim como do refeitório, onde várias vezes por dia
é necessário proceder à distribuição assistida da medicação, elas estão, ao mesmo tempo, afastadas das enfermarias feminina e
masculina que se encontram no piso superior e que acolhem os utentes em situação de maior fragilidade.
A falta de proximidade espacial face aos mais dependentes deixa-os mais isolados e mais tempo sozinhos ou na
presença das auxiliares de lar, nem sempre preparadas para atender às suas solicitações, sobretudo quando se trata de um doente
em estado terminal ou em sofrimento.
Quanto aos espaços destinados aos serviços alimentares, estes são constituídos: no primeiro piso, pela despensa,
cozinha, refeitório para os utentes e funcionários do lar e refeitório social. No segundo piso, pelo refeitório destinado aos mais
dependentes e, na cave, algum espaço, onde existe um frigorífico e arcas suplementares e espaços destinados ao
armazenamento de alguns alimentos, oferecidos ou comprados em maior quantidade, e que precisam estar arejados e expostos ao
ar, como batatas ou cebolas. A despensa é constituída por uma sala, embora autónoma, que se localiza dentro do espaço da
cozinha, facilitando o transporte de alimentos destinados a cada refeição. A cozinha, por seu lado, é constituída por uma área
significativa onde se distribuem todos os materiais e objectos necessários à preparação dos alimentos. Está apetrechada com
fogões, tachos, panelas e armários de tipo industrial, fáceis de limpar e adequados à preparação de refeições para números
elevados de pessoas.
Na cozinha é muito raro entrarem os idosos. Esse espaço quase que é simbolicamente vedado por questões de
higiene. Percebe-se que os próprios utentes não gostam quando alguns colegas lá entram, sobretudo se se trata de alguém a quem
não reconhecem higiene. Por outro lado, embora as cozinheiras recebam os utentes com simpatia, nota-se alguma dificuldade em
lhes prestar muita atenção pois o trabalho é sempre muito intenso naquele lugar por relação ao número de pessoas que preparam
as refeições. Apesar disso, sempre que um utente se dirige lá para fazer um pedido especial, as funcionárias acedem
imediatamente ao pedido.

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Quanto ao refeitório destinado a utentes e funcionários do lar, trata-se de um amplo espaço, com uma forma
rectangular, no interior do qual se dispõem variadas mesas redondas onde partilham as refeições um máximo de seis pessoas por
cada uma delas. Estão dispostas de forma a garantir que se preserve um espaço considerável, que atravessa o refeitório de uma
ponta à outra, para que seja funcional a deslocação dos utentes em cadeira de rodas assim como a deslocação dos próprios
carrinhos que suportam as travessas da comida que as funcionárias se encarregam de servir.
O refeitório é um local cheio de cor e luz, com uma das paredes laterais repleta de amplas janelas que permitem uma
entrada calorosa de luz natural. A parede que se vislumbra ao fundo, quando entramos no refeitório, é preenchida por um enorme
armário onde se guardam louças, talheres, galheteiros, guardanapos e outros objectos necessários à toma das refeições. Estes
objectos obedecem a alguma preocupação estética. Os pratos são todos iguais e apresentam bom estado de conservação. Os
copos, não sendo todos iguais, fruto de se irem partindo com frequência, são parecidos. No entanto alguns dos talheres já
mereciam ser substituídos, assim como as toalhas que são de plástico para que seja mais fácil a sua manutenção, cuja textura se
torna algo fria e desagradável sobretudo no Inverno. De salientar, porém, que estas condições e objectos são proporcionados da
mesma forma a idosos e funcionários, não havendo para estes últimos condições especiais.
Embora o refeitório seja um lugar onde se providenciam os serviços alimentares quatro vezes por dia, este deveria poder
ser enquadrado nos espaços colectivos, uma vez que, porque dispõe os utentes em pequenos grupos, deveria apelar à
convivialidade, à partilha de um espírito de grupo e do próprio espaço colectivo. No entanto, salvo raras excepções, é um local
cujo uso obedece a uma lógica funcional. Pretende-se que os utentes entrem apenas quando toca a campainha de alerta, se
organizem e sentem em tempo útil, tomem a refeição e saiam do espaço permitindo que este seja limpo o mais rápido possível.
Esta prática distancia-se do que acontece muitas vezes em família, onde os momentos de refeição são privilegiados para a partilha,
a conversa e o convívio. Nunca se observou os utentes a entrarem ou frequentarem este espaço que não fosse para a toma das
refeições e nas circunstâncias em que, querendo-se adiantar ao grupo, se atreviam a entrar um pouco antes da hora eram
imediatamente repreendidos, diminuindo em relação a estes a sensação de controlo sobre o espaço envolvente.
Apesar de possuírem um lugar próprio, que é sempre o mesmo, esta aparente individualização do espaço não parece
favorecer a ligação ao grupo de colegas da mesa. Por um lado, essa escolha de lugar é imposta logo desde a entrada do utente.
Por outro lado, o grupo com que se está à mesa não é porventura o grupo de pessoas no lar com quem mais se convive ou se tem
afinidades, obedecendo esta organização antes a critérios funcionais. Os utentes menos capazes, mais conflituosos ou em cadeira
de rodas têm que ser dispersos pelo espaço, para que haja uma certa compensação e apoio dos mais autónomos para com estes.
Assim, não funcionam as teias de amizade e cumplicidade. Não obstante esta circunstância, há mesas em que os utentes falam
entre si e constroem um clima bastante agradável. Outros, com efeito, deixam transparecer o seu ar de repugnância e nojo com
alguns comportamentos de certos idosos. Apesar da luz que reaviva o espaço e dos seus azulejos em tons de verde e salmão, não
se observam objectos decorativos, com excepção de algumas plantas, que se reportem a alguma especificidade biográfica dos
utentes.
Em dias especiais como o Natal, a Páscoa ou dias de festa, como o dia do festejo dos aniversariantes do mês, a
disposição das mesas é a mesma, não havendo nenhum esforço para que a mesma, simbolicamente, transmita um espírito de
maior partilha e comunhão, como seria esperado de uma disposição em U ou em roda.
Seguindo o mesmo raciocínio, a sala do primeiro piso destinada aos mais dependentes, e que necessitam de ajuda
para as suas actividades de vida diária, não é considerada um espaço colectivo, na medida em que a principal actividade que lá se
realiza são as refeições que são administradas aos utentes pelas funcionárias. A comida para estes idosos é transportada no
carrinho e as funcionárias do piso encarregam-se de a dar na boca à maioria dos utentes. Não se entende correcto que estes idosos
comam junto com os restantes, pois a imagem de dependência que transportam poderia perturbá-los e dificultar ainda mais o seu
próprio processo de envelhecimento.
Na verdade, neste espaço pouco se convive e, para além da televisão, de algumas visitas de utentes autónomos que lá
acedem com o objectivo de poderem ver alguma novela naquela televisão e da companhia das funcionárias quando administram a
alimentação, estes utentes não têm mais nenhuma distracção. Pontualmente lá aparece alguma visita, mas, regra geral, estes
utentes muito dependentes física e mentalmente permanecem passivos e resignados todo o dia, sentados várias horas nas suas
cadeiras, escutando o som da televisão. À noite, esta sala funciona mais como um espaço privilegiado para algumas senhoras
assistirem às telenovelas que andam a seguir. Por ser um espaço mais pequeno que a sala de convívio, é possível assistir com
atenção a essas novelas, não atrapalhando outras pessoas, sobretudo os homens, que normalmente não apreciam tanto esses
programas.
Existem ainda duas copas equipadas com frigorífico, micro-ondas, mesa e cadeiras, banca para lavar a loiça e loiça
variada (talheres, canecas, copos…) junto da zona dos quartos. O objectivo deste espaço era o de proporcionar aos idosos um
local onde pudessem fazer, quando desejassem, um prato de comida, um chá, um café para si ou suas visitas. Embora este seja o
verdadeiro objectivo das copas, na prática elas funcionam como locais para os funcionários tomarem o pequeno-almoço e
lancharem. São também espaços utilizados por estes para preparem os chamados “lanches nocturnos”, compostos por um chá ou
um copo de leite e algumas bolachas, ou uma bebida quente que o utente solicite durante a noite. Apesar de também servirem para

614
satisfazerem as necessidades dos idosos, estes espaços não são utilizados nem apropriados por estes como sendo espaços cujo
domínio lhes pertence.
Referenciamos já que os espaços destinados aos serviços de manutenção e armazenamento se situam na cave do lar,
espaço este frequentado apenas pelas funcionárias da lavandaria, o motorista, que também executa, juntamente com o Sr. Mateus,
muitos trabalhos de manutenção no lar, alguns utentes que costumam ir na carrinha para ajudar nas compras, e alguma funcionária
da cozinha cada vez que é necessário ir buscar alimentos. É pouco frequente ver outros utentes a frequentar estes espaços. De
quando em vez lá vão algumas senhoras trocar algumas palavras com as funcionárias da lavandaria, o que não deixa de ser muito
pontual. Já referenciamos que para além da lavandaria, estes espaços funcionam como garagem das carrinhas, armazenamento de
alimentos, arrumos e oficina de apoio às reparações de carpintaria, pichelaria, pintura, etc.
Por fim, quanto aos serviços de limpeza do lar, existem em vários pontos da residência pequenos arrumos onde todos
os materiais e produtos de limpeza são guardados, não estando acessíveis aos utentes. Na parte nova do lar, alguns materiais
são mesmo guardados em armários embutidos nas paredes. Ao longo de todo o lar, a imagem que prepondera é de uma regular e
eficaz limpeza dos seus espaços. Logo pela manhã, todos os quartos são arejados, é feita a cama pelo funcionário ou pelo utente
se este desejar. Estes comportamentos, embora benéficos para os utentes, nem sempre são encorajados, uma vez que, não obstante
o esforço de alguns em fazer a cama o melhor possível, há funcionários que não toleram uma dobra, a colcha um pouco enrugado
ou uma ponta de lençol descaído e a notar-se. Da mesma forma não toleram que o utente tenha muitos papéis ou outros objectos,
ainda que no seu quarto, a atrapalhar o processo de limpeza.
Depois limpa-se o chão do quarto e as casas de banho privativas ou colectivas. Mesmo nas enfermarias dos utentes mais
dependentes e, muitas vezes, incontinentes é muito difícil sentir-se qualquer cheiro desagradável quando se entra lá em qualquer
momento do dia, criando-se um ambiente mais apelativo à visita de outros residentes ou familiares que não têm que se expor, nem
ao idoso, ao constrangimento de um ambiente repleto de cheiros desagradáveis.
Os espaços colectivos também apresentam elevado cuidado com a limpeza. O refeitório é limpo várias vezes por
dia, após cada refeição, de forma que na refeição seguinte o utente nunca tenha que se confrontar com as mesas ou o chão com
restos de comida. A sala de convívio apresenta-se sempre bastante cuidada, até porque é um dos espaços mais expostos às visitas
quem vêm de fora.
A casa de banho que se situa próxima do refeitório, e que é frequentada por um maior número de pessoas, representará,
porventura, o ponto mais frágil na preservação da higiene. Sendo frequentada por utentes com dificuldades de mobilidade, é algo
frequente encontrá-la com vestígios de urina no chão e excesso de papel nos caixotes. Os cheiros desagradáveis fazem-se sentir,
por vezes, desde a porta, inibindo alguns utentes de aí entrarem, fazendo com que tenham que se deslocar a uma casa de banho
mais afastada. Por outro lado, nunca se observou nenhum funcionário do lar, estagiário ou mesmo visitante a frequentar aquele
espaço, denotando uma certa repulsa face às condições de limpeza que oferece.

Espaços colectivos
O espaço que mais apela à sociabilidade dos idosos é a sala de convívio, local do lar onde mais pessoas permanecem ao
mesmo tempo, onde se desenrolam quase todas as dinâmicas da vida no lar e todas, ou quase todas, as actividades organizadas.
Utilizamos o termo “permanecem”, pois apesar de estarmos perante um espaço que acolhe muitas pessoas, “nem sempre se
estabelecem relações de grupo mas simplesmente se congrega os residentes no mesmo lugar” (Barenys, 1990:98).
Trata-se de uma ampla sala que precede o refeitório, no seio da qual quase poderíamos estabelecer uma divisão em
duas partes. A parte voltada para a rua principal é sobretudo destinada às mulheres. A divisão entre sexos é claramente
perceptível nesta sala. É como se no mesmo território existissem espaços puramente femininos e espaços puramente
masculinos. Existe, assim, uma barreira cultural estabelecida entre sexos e que, de alguma forma, se torna intransponível. Pais
refere-nos que no passado “as atitudes sexuais eram uma mistura complicada de puritanismo e irreverência. Havia uma dupla
moralidade que colocava as mulheres do lado do puritanismo («meninas honradas», «tímidas») e os homens do lado da
irreverência («muita sabedoria»). Se a mulher se mostrava mais sabida do que devia era logo olhada com desconfiança, mulher
com «cisma», perversa, pecaminosa. O «saber» da mulher devia estar subordinado ao controlo do marido…” (2006:151). Talvez
esta tradição cultural, de subserviência das mulheres perante os homens, associada aos valores religiosos da própria instituição
que pretende salvaguardar uma conduta marcada pela moral e os bons costumes, contribuam para esta separação marcada entre
homens e mulheres. Embora não seja explícito, percebe-se o receio de que em algum momento se produzam comportamentos de
aproximação física e sexual entre residentes que possam pôr em causa a reputação da instituição.
A preencher o formato de rectângulo, dispõem-se na sala um vasto conjunto de cadeiras onde os utentes se sentam. Na
parede das janelas está colocado um televisor pendurado a uma altura significativa para que os utentes mais distantes também
possam ver, assim como um relógio de parede antigo em madeira, contribuindo para que os utentes se possam localizar no tempo.
Apesar das cadeiras em que os utentes se sentam serem alcochoadas e forradas, todas com o mesmo tecido, em tons de salmão e
verde, conferindo uma certa alegria e estética ao espaço, o seu conforto não é semelhante ao de um sofá, sobretudo se

615
atendermos ao facto de que alguns utentes lá passam muitas horas por dia sentados. Os lugares nas cadeiras são sempre os
mesmos e funcionam como o espaço mais individualizado dentro daquele território colectivo. Para marcar esse espaço como
um espaço pessoal, as utentes1 penduram as suas malas ou sacos nas cadeiras, pousam casacos seus, as bengalas, xailes ou até
pequenas almofadas de que se fazem acompanhar para acréscimo do seu conforto. Muitos destes objectos, designados de
recipientes ou esconderijos portáteis, “podem representar uma extensão do eu e de sua autonomia, tornando-se mais importantes à
medida que o indivíduo perde outros reservatórios do seu eu” (Goffman, 1996:204).
As cadeiras são, assim, na linguagem de Goffman, importantes territórios do “eu” que se tenta defender
veementemente cada vez que alguém, propositada ou inadvertidamente, se tenta apropriar do mesmo. Assim sendo, os novos
utentes têm que se adaptar aos lugares que não estão ocupados ou que algum funcionário improvisa para o efeito. Como referiu a
D. Matilde,
“quando eu vim para cá disseram-me qual era o meu lugar e eu aqui fiquei até hoje. Gosto assim, assim não há
confusões. Fui habituada assim, a muito respeito…”.
É visível que não gostam de ver outros sentados nos seus lugares, quer porque lhes cria repulsa, sobretudo quando se
trata de idosos incontinentes, quer porque tal atitude é entendida como uma devassa do seu espaço de conforto e identidade
pessoal. Esta invasão do seu espaço pessoal funciona quase como uma contaminação2 do seu território por parte de companheiros
indesejáveis (Goffman, 1996:35). Esta situação é tanto mais acentuada quanto se trata de utentes que passam todo o seu dia
sentados nesta sala, com excepção dos momentos em que vão tomar as refeições ou dormir. Todavia, não se nota falta de higiene
nas cadeiras. Mantêm-se cuidadas e não estão degradadas.
A D. Joaquina relatou o desconforto que sentiu no primeiro dia de entrada em lar quando, ao sentar-se numa cadeira
livre, foi confrontada com uma outra residente que, segundo ela, lhe disse: “ó senhora, saia daí que esse lugar é meu”. Refere
como se sentiu traumatizada e desprezada com essa frase que nunca teria esperado ouvir e enfatiza o quanto esse momento
contribuiu para dificultar a sua adaptação. Refere que esse momento nunca lhe saiu da memória.
No outro extremo desta parte da sala, e já fazendo segunda fila por relação aos utentes que se sentam na fila
correspondente ao rectângulo, encontram-se umas quantas pessoas, entre quatro e oito, em estado mais dependente. Este espaço,
mais sombrio e afastado do centro, é aquele que mais dificulta a visualização da televisão e é aquele onde se encontram as pessoas
que mais horas lá passam sem terem qualquer hipótese de daí se deslocarem a não ser com a ajuda das funcionárias. É como se
depois do elo que une todos em torno das mesas centrais da sala existisse uma segunda fila, mais afastada, composta pelos que
simbolizariam a imagem da degradação humana mais profunda. Estes utentes são também aqueles que menos participam nas
actividades promovidas e que menos convivem com a comunidade, uma vez que a própria disposição do espaço não fomenta o
estabelecimento de diálogos nem de convivência. Limitam-se a ouvir o que se passa em seu redor e a observar, quando a visão
ainda lhes permite, as rotinas, entradas e saídas dos outros residentes e pessoal. Quase poderíamos considerar estas pessoas como
bibelots, tratadas de forma robotizada. Não interagem, não dialogam, não participam, a não ser passivamente, no que se passa em
seu redor. Às horas certas são levados para as refeições e para a cama.
Sempre que nos dirigíamos para cumprimentar a D. Cândida, invisual e fisicamente dependente, sentíamos a mesma
angústia, a mesma tristeza, a mesma solidão que a consumia:
“…ó menina, a minha irmã também esteve aqui mas morreu [fazendo pausa e chorando compulsivamente], agora
estou sozinha, não tenho ninguém, ninguém, não tenho família…”.
As actividades promovidas pela animadora costumam ocorrer nesta parte da sala, deixando a ala masculina um
pouco mais à sua sorte. Como não existe o hábito dos homens se misturarem muito com as senhoras, então eles ficam
normalmente mais excluídos da realização das actividades, acentuando-se essa tendência culturalmente gerada de separação
entre sexos. Dir-se-ia que o próprio funcionamento do lar acentua essa tendência.
Neste espaço realizam-se todo o tipo de actividades e, apesar de ser o local do lar com maior concentração de idosos,
a mesma também varia de acordo com as horas do dia ou as actividades a desenvolver. À hora das refeições os utentes acumulam-
se nesta sala e a sua permanência vai variando consoante a preferência face às actividades que se realizam em cada dia.
A sala que originalmente estava prevista para ser a barbearia, passou a funcionar como uma sala de estética, à qual
sobretudo as mulheres recorrem para cortar e pintar as unhas das mãos, cortar o cabelo quando lá vai a cabeleireira, retocar o
penteado, tirar os pêlos que vão crescendo no buço e no rosto. Apesar desta sala ter uma função específica, que é a de promover
uma imagem mais cuidada dos utentes, contribuindo para uma auto-estima também mais elevada, o ambiente que aqui se
produz é de intenso convívio e partilha entre os utentes que aguardam pela sua vez. Aqui todos têm oportunidade de ir
falando sobre os assuntos mais diversos, pois todos têm um pouco de tempo da animadora dedicado só a si. Enquanto se discute

1
Esta prática foi mais visível nas mulheres. Os homens, embora se sentem mais ou menos nos lugares habituais, são um pouco mais tolerantes face à situação de
verem um outro residente a sentar-se temporariamente na sua cadeira.
2
Goffman defende que nas instituições totalitárias os indivíduos sofrem processos de mortificação do seu “eu” por exposição contaminadora face a determinadas
situações, tais como, contaminação por ficar deitado perto do moribundo; contaminação por contacto social imposto; contaminação advinda por via de alimentação
forçada, etc. (Goffman, 1996).

616
qual a cor do verniz a seleccionar, pergunta-se pela família, pelo fim-de-semana, fala-se de alguma telenovela, de algum assunto
relativo ao quotidiano do lar, de uma dor nova que surgiu, da vida familiar da animadora ou da investigadora, enquanto assistia a
estas sessões, fazendo com que as utentes se sintam especiais ao partilharem um pouco do universo das pessoas “de fora”, que
acabam por funcionar, muitas vezes, como substitutos funcionais da família.
A capela é um outro espaço que os utentes frequentam diariamente para ir à missa diária, às nove da manhã, ou para se
recolherem nos seus momentos de reza e meditação. Embora seja um espaço aberto e disponível aos residentes, não tem outra
funcionalidade que não seja a de se assumir como espaço de religiosidade, e meditação. Assim, salvo nos momentos de
eucaristia, é apenas frequentado pontualmente por uma minoria de utentes que a ele recorrem nos seus momentos de reza ou
introspecção. No entanto, entendendo a eucaristia como um momento de partilha colectiva da palavra de Deus, se bem que esta
perspectiva possa ser muito criticável, pois normalmente o protagonista e interveniente principal é o padre, podemos considerar
este espaço como um espaço colectivo.
Ao sábado, a capela funciona, paralelamente, como um espaço de convívio e encontro com pessoas da comunidade
que a ele recorrem para assistirem à eucaristia. É, por isso mesmo, uma eucaristia mais animada e permite, para muitos, o
encontro com pessoas conhecidas do exterior. A capela apresenta-se sempre cuidada e com flores naturais.
Por fim, existem vários quartos de banho colectivos cuja utilização é destinada a um grupo ou à totalidade dos utentes.
No rés-do-chão e primeiro andar existem vários wc públicos. Com excepção do wc que serve o quarto/enfermaria do rés-do-chão,
os restantes apenas estão munidos de sanita e lavatório. Regra geral apresentam-se cuidados e limpos, até porque não são
utilizados por todos os idosos ao longo do dia. Sobretudo os utentes que têm wc no quarto fazem questão de o frequentarem, não
se expondo nestes espaços de uso colectivo. Os wc colectivos de apoio aos quartos no primeiro andar são maiores, preparados
com chuveiros e ajudas em matéria de segurança, onde habitualmente os utentes tomam banho assistido pelas funcionárias. Em
alguns destes espaços, a funcionária vai buscar alternadamente os utentes na hora do banho, evitando que se forme uma fila de
espera, até porque os utentes em cadeira de rodas não se podem deslocar facilmente. Noutros wc colectivos, os utentes formam
fila e aguardam vestidos ou semi vestidos pela sua vez de tomar banho assitido pela funcionária. Chegam mesmo a estar
sentados em bancos, com uma toalha em torno da sinta. Ao mesmo tempo que aguardam a sua vez estão a assistir ao banho
dos colegas, pois o campo visual o permite. Se alguns dos utentes que estão há mais tempo no lar já se habituaram a esta situação,
ela é tanto mais constrangedora para os que ingressaram no lar há menos tempo. Vejamos como o senhor Guilherme, um
utente recente no lar, se reporta à situação de estar na parte antiga do lar e ter de tomar banho assistido:
“…eu não me importava de vir para esta parte nova sabe, porque nesta parte nova tenho o seguinte: tem ar e tem casa
de banho, e lá eu levanto-me ás cinco e meia, seis horas para tomar banho sozinho, que eu não quero tomar banho
acompanhado. Ainda hoje me levantei a essa hora para tomar banho sozinho, não quero tomar banho acompanhado. Daqui em
diante é que começam as pessoas a ir para lá para tomar banho de uma vez, está a perceber? (…) mas aqui, a parte nova, tem
casa de banho, tem tudo e para mim é que era bom, prometeram-me mas não, não compreendo, eu pago bem. A menina sabe
quanto eu pago por mês? Não sabe pois não? No nosso dinheiro antigo pago cento e quarenta contos, faça a conta, ao fim do
ano quanto é, a menina faça a conta quanto é ao fim do ano. Quantos estão outros a pagar uma bagatela e estou eu a pagar essa
importância”
O senhor Guilherme não compreende porque o colocaram na parte antiga do lar, tanto mais que no seu entender ele paga
muito mais para o lar que a maioria dos residentes. A única hipótese para não ter que se cruzar com outros residentes no momento
do banho é acordar muito mais cedo e frequentar a casa de banho quando ainda não está lá ninguém. Na verdade, uma vez que nas
instituições é impossível o isolamento total face aos outros, que muitas vezes personificam o fantasma da degradação e da
decadência temida, os idosos evitam os espaços ameaçadores, tais como WC colectivos. Evitam assistir à dependência e perda
de domínio dos que necessitam de ajuda para ir à casa de banho, ao duche... ainda que isso implique a frequência desses espaços
em horários menos frequentados ou uma higiene pessoal feita por si, ainda que com custo superior. A título de síntese, a
diminuição da independência física cria dois efeitos: “...o de tornar difícil uma solidariedade de conjunto, o desenvolvimento de
um sentimento de pertença a um mesmo grupo; o de encorajar indirectamente as pessoas de saúde a serem donos do seu corpo
durante o mais longo tempo possível” (De Singly & Mallon, 2000:252).

Espaços privados
No lar em análise, os espaços que podem ser considerados de maior pertença individual são os quartos, apesar de não
existirem quartos individuais que garantam a total privacidade a cada um dos utentes.
À semelhança de muitas outras instituições, este lar existiu durante longas décadas enquanto instituição asilar,
mantendo, ainda, alguns traços característicos, sendo o mais evidente o facto de ainda haver quartos dirigidos a quatro e cinco
pessoas e sem casa de banho privativa (na parte antiga) próximos das antigas camaratas. A questão da privacidade coloca-se
aqui de forma premente. Como salvaguardá-la quando um indivíduo se vê obrigado a partilhar o seu espaço mais íntimo, a vestir-
se e despir-se na companhia de outros indivíduos com quem nunca estabeleceu nenhum tipo de afinidade?

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Existem no lar vinte e sete quartos, dezoito duplos, quatro dirigidos a três pessoas e dois dirigidos a quatro pessoas.
Existem também três quartos, designados de enfermarias, destinados aos utentes mais dependentes e que requerem mais
atenção quer do pessoal de enfermagem, quer das auxiliares de lar, sendo que podem ocorrer mesmo situações de utentes em
estado terminal que aí permanecem à espera da morte. Duas das enfermarias, da parte nova, acolhem quatro utentes, e a antiga, do
rés-do-chão, acolhe cinco.
As dimensões dos quartos não são, obviamente, todas iguais, assim como existe alguma variação na sua forma,
colocação do mobiliário e decoração.
Em relação aos quartos de duas pessoas, com algumas excepções, são quase todos situados na parte nova do lar,
proporcionando melhores condições aos seus residentes, desde logo porque possuem casa de banho privativa. As suas áreas,
permitindo que os utentes circulem com alguma facilidade, não são suficientes para que estes possuam mobiliário próprio ou
demasiados objectos pessoais de grande volume. Nestes espaços não há, pois, mobiliário disperso. Os roupeiros, de dimensões
relativamente pequenas, são embutidos e individualizados. Porém, os utentes que possuem mais roupa alegam que não
conseguem ter consigo toda a sua roupa, estando esta repartida entre os armários do tipo arrumos que se localizam acima do
roupeiro, inacessíveis aos utentes a qualquer momento que desejem, e os armários complementares existentes na lavandaria.
Sempre que muda a estação, os funcionários têm o cuidado de ir substituindo essas roupas. Por outro lado, apesar das casas de
banho possuírem lavatório com armário e espelho (importante para que os utentes possam verificar a sua imagem antes de saírem
do quarto), sanita, bidé e polivã e estarem apetrechadas com ajudas protésicas de promoção da autonomia e de segurança, como
protectores antiderrapantes nas superfícies sujeitas à humidade e barras em redor de um dos lados da sanita e chuveiro, não
dispõem de dimensão suficiente para que se possa movimentar livremente uma cadeira de rodas, nem dispõem de campainhas de
chamada para o caso do idoso cair ou se sentir mal no duche. Estas campainhas existem, contudo, junto das camas.
Não existem no lar quartos individuais, não havendo a possibilidade de se ficar sozinho num quarto. Essa condição
não foi pensada certamente por questões económicas, dado não ficar muito rentável atribuir um quarto apenas a um idoso. Como
não se trata de um lar privativo e lucrativo, os idosos que nele ingressam não possuem, regra geral, condições económicas que
lhes permitissem pagar uma mensalidade que suportasse os custos elevados inerentes a este “privilégio”. Aqui se percebe a
sobreposição clara da lógica económica face ao primado do bem-estar e da preservação da identidade do indivíduo. Como achar
razoável que um indivíduo se veja obrigado a coabitar, no final da sua vida, com alguém que não conhece? Alguém com quem
nunca conversou, alguém que potencialmente poderá ter hábitos de vida tão diferentes de si? Como será adormecer, acordar,
vestir… ao pé de alguém com quem não se tem afinidade nenhuma?
Os quartos existentes na parte velha do lar acolhem normalmente mais do que duas pessoas. O espaço dos quartos é
extremamente exíguo de cama para cama. Embora os espaços não estejam degradados, não possuem as mesmas condições de
estética e luminosidade que a parte nova oferece. Os roupeiros são antigos, não embutidos, criando a sensação de um espaço mais
pesado e preenchido. Por outro lado, não cabe neles tanta roupa, sendo mais difícil distribuir o espaço dentro do armário que cabe
a cada indivíduo, uma vez que alguns são partilhados. Aqui também não é possível frequentar casas de banho privadas, mas
sim colectivas.
A enfermaria do rés-do-chão acolhe três senhoras em situação de fragilidade física e apenas uma com as suas
capacidades cognitivas em processo de deterioração. Uma quinta senhora reside nesse quarto por razões estratégicas, uma vez que
é conhecida no lar pelo seu “mau feitio” e se entende que no grupo em causa a sua personalidade, algo conflituosa, fica mais
controlada. No entanto, e apesar do estado de lucidez de quase todos os elementos que aí residem, este quarto não possui casa de
banho privativa nem grandes condições de espaço ou salvaguarda da intimidade. Não há biombos a separar os espaços
individuais e como se tratam de senhoras todas elas dependentes, torna-se extremamente constrangedor partilhar, inclusivamente,
alguns momentos de higiene. Como uma das residentes do quarto referia a certa altura, “vestem-se duas e três pessoas ao mesmo
tempo, assim nunca nos podemos sentir à vontade! De início custou um bocado porque não estava habituada a isto, agora já me
habituei...”. Neste quarto, designado de enfermaria, assim como nas outras duas enfermarias, as funcionárias sentem-se mais
tentadas a entrar sem bater à porta, talvez porque inconscientemente aquele espaço lhes transmita a sensação de colectivo, de
um espaço que não é privado.
Na verdade, quanto mais o idoso for dependente, mais o pessoal parece não respeitar esta regra, o que reflectirá, ainda
que inconscientemente, a relação de domínio e poder exercida dos segundos sobre o primeiro. Nestas situações, as pessoas são
menos respeitadas no seu direito à intimidade corporal e à propriedade de um espaço pessoal. Não será difícil, pois, que as
pessoas independentes possam associar aumento de problemas físicos e psíquicos à diminuição do respeito (De Singly &Mallon,
2000).
Também aqui a preservação de algum espaço pessoal é quase inexistente. A D. Piedade, que reside nesta enfermaria,
contava-nos, condoída, a forma como algumas funcionárias tinham arremessado para o lixo coisas que ela gostava,
inclusivamente os poemas que ela própria escreve e que regista em folhas de papel soltas, sem lhe pedirem autorização para tal.
“Eu já tenho recebido muitas decepções. Não depende de nós. Muitas decepções [em tom baixo, dolorosamente].
Decepções de muitas maneiras. Muitas vezes eu tenho coisas como aquelas que me deram, num saco que tinha, não sei se foi a

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professora Joana, que me deu um livro que era para pôr os versos todos… Ela pôs-me isso fora, que depois falaram lá em baixo
e a Sandrinha [animadora] não acredita. E eu disse “oh Sandrinha, acredite, que eu não tenho nada. Puseram-me fora!”. E
então, ela disse mas eu não acredito, vou lá ver. Vou à sua mesinha de cabeceira e vou ver. E foi e realmente não estava nada.
São pessoas que assim são capazes de pôr tudo fora, sem ver. A Sandrinha foi assim, até podia ter lá dinheiro junto. Essas coisas
não se fazem (…) Já me têm feito chorar, chorar da maneira que às vezes me põem coisas que não haviam de pôr fora, pôr coisas
que às vezes não deviam…”
Assim, algumas funcionárias de vez em quando arremessam para o lixo revistas ou outros objectos que, do seu ponto de
vista, para nada servem a não ser prejudicar o andamento do seu trabalho, não havendo um total respeito pelos espaços
privados dos utentes e objectos aí contidos.
As outras duas enfermarias encontram-se no primeiro andar, uma é masculina, outra é feminina. Como nestes espaços
só se encontram utentes dependentes das funcionárias para todas as actividades de vida diária, não são consideradas algumas
necessidades de afeição ao espaço, até porque alguns desses idosos já quase não estão conscientes. Apenas na mesa-de-cabeceira
pode haver algum objecto pessoal, mas na maior parte das vezes nem existe. Ambas as enfermarias têm acesso a casas de banho
colectivas, amplas e apetrechadas com material próprio para dar banho a utentes dependentes, o que se justifica sobremaneira,
dada a condição de dependência destes idosos. As enfermarias são espaços muito limpos e arrumados, com enormes janelas que
deixam entrar muita luz, com cores claras nas paredes e chão, fazendo com que as condições do espaço ajudem a confortar utentes
que muitas vezes passam lá o dia inteiro deitados.
Nos quartos, de uma maneira geral, não há muita prevalência de objectos decorativos que personalizem o espaço.
Ainda assim, podemos dizer que os quartos da parte antiga reflectem uma maior contenção na exposição desses objectos, talvez
pelo facto de aí estarem os utentes que residem no lar há mais tempo e esses espaços também serem mais exíguos e mais
partilhados entre idosos. Se por um lado, cada vez mais as práticas de funcionamento destes espaços tendem a ser mais
humanizadas e a valorizar as referências identitárias dos sujeitos, por outro lado, estes utentes já terão tido mais tempo para se
desligarem das relações e objectos que outrora funcionavam como referenciais significativos para os mesmos. Esse progressivo
desligamento com o seu passado e suas referências reflecte-se também através do corte com objectos até então simbolicamente
revestidos de uma história. Se “os objectos são elementos carregados de uma anterioridade e portanto de uma história que nos
situa num contínuum sociotemporal” (ManouKian, 2001:48), é compreensível que eles traduzam a nossa identidade e que a
privação dos mesmos, e o sentimento de despojamento daí decorrente, acarrete sensações de perda, traição ou abandono.
Os indivíduos cuja entrada foi mais recente, foram já mais estimulados e encorajados, ainda que com limites, a se
munirem de roupas e objectos com significado para si. Estes últimos são, por regra, mais integrados na parte nova da instituição.
Por outro lado, os quartos das senhoras distinguem-se bastante dos dos senhores. Estes últimos menos decorados, mais
sóbrios, dir-se-ia mesmo híbridos, impessoais.
Os objectos pessoais de apreço que conferem um sentido mais individualizado ao espaço dos idosos, porquanto os
permite recordar a sua vida anterior, encontram-se colocados normalmente em cima da cama ou da mesinha de cabeceira. De
entre estes destacam-se as fotografias de família, imagens ou objectos religiosos como terços, santos, fazendo-nos reflectir sobre a
importância atribuída à religiosidade. Falamos ainda de jarras com flores de plástico, medicamentos, bonecas, peluches, perfumes
ou cremes hidratantes. A posse destes objectos que conferem um certo grau de conforto, prazer e controle à vida do utente,
ajudam-no a personalizar o seu quarto, enquanto “território pessoal” (Goffman, 1996:201) e lugar de refúgio, fazendo-o sentir
tanto quanto possível protegido e satisfeito no lar. Sem dúvida que a posse desses objectos de identidade pessoal os ajudam,
igualmente, a uma melhor adaptação ao lar.
Nas paredes é raro ver-se quadros ou outros objectos pendurados, talvez porque o furar a parede já tenha outras
implicações, e por isso mesmo seja proibido. É igualmente proibido a posse de TV no quarto, o que para muitos cria algum
desconforto, pois gostariam de estar deitados a ver TV, nas suas camas, sobretudo no Inverno, à semelhança do que faziam nas
suas residências. Esta regra existe com a justificação de que a existência desse objecto no quarto poderia causar conflitos entre os
residentes. A D. Rosa, apesar de compreender a regra, confessa que do que sente mais falta é de poder levantar-se mais tarde e
ficar a ver as novelas até tarde no quarto.
“Olhe menina só tenho saudades de duas coisas, é a única coisa que me deixa mais saudades, é ter que me levantar
cedo e não poder ver a televisão [no quarto] até ver as novelas todas [risos] (…) Ai não, não deixam. Não menina, eu queria
trazer a minha televisão mas não deixaram. Não deixam, não deixam menina. Aí está, eu compreendo, aí têm razão porque para
deixar uns tinham que deixar todos e a menina sabe há duas pessoas em cada quarto, se uma gosta outra pode não gostar”.
A hipótese de que talvez os idosos, ou pelo menos alguns, pudessem negociar esta questão entre si nunca é colocada.
Para se evitar potenciais conflitos resolve-se o mal pela raiz, proibindo definitivamente a TV. No entanto, os utentes podem ter
um rádio desde que respeitem as horas de silêncio do lar e não incomodem os demais residentes. Da mesma forma, e de acordo
como o que está no regulamento, para além do que faz parte das suas roupas, os utentes só podem levar para o lar objectos que
se adeqúem ao espaço sob autorização da direcção, coisa que dificilmente acontece. Quanto aos objectos de valor, devem ser

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documentados no inventário de bens e muitas vezes aconselha-se o utente a guardá-los no cofre do lar, não ficando estes ao
dispor dos utentes.
É igualmente interessante notar que todos os quartos têm colchas iguais, modificando apenas a cor: rosa para as
senhoras e azul para os senhores. Se esta característica confere um ar harmonioso aos quartos, porquanto a estética é previsível e
coerente, por outro lado será porventura sinal que os utentes não possam utilizar os seus objectos pessoais e assim também
preservar o seu conforto, marcar a sua individualidade, destacar as suas preferências estéticas e, de alguma forma, distinguir o seu
“território”. Como advertm De Singly & Mallon (2000), o quarto, como refúgio, permite ao idoso mergulhar no seu mundo
anterior, daí a importância da sua autonomia na definição da decoração e conteúdos que aí desejam colocar, preservando a sua
identidade e auto-estima.
A excepção a esta situação diz respeito ao quarto do único casal que reside no lar. Como entraram em circunstâncias
especiais, uma vez que doaram a sua casa ao lar, foi-lhes permitido trazer uma grande parte do seu mobiliário que se encontra
quer espalhado pelo lar, quer no seu próprio quarto, ao qual designam de casa ou habitação. Aqui a afeição ao espaço é bastante
grande, uma vez que não tiveram que partilhar o quarto com estranhos. A certa altura, o senhor Mateus convidou a investigadora a
conhecer a sua “casa”, como ele próprio designou. Ao apresentar o quarto, dava a impressão que o apresentava por partes, como
se das várias divisões da sua casa se tratasse. O quarto encontrava-se repleto de objectos e mobiliário dos utentes e tudo tinha uma
história para contar, o roupeiro, a colcha feita pela esposa, um conjunto de fitas que separavam a entrada do espaço do quarto
propriamente dito, e que outrora estavam na cozinha do casa., etc. O senhor Mateus dizia mesmo: “como é que posso ter saudades
da minha casa se eu aqui tenho tudo o que preciso?!”. Segundo Fischer, quanto mais os indivíduos forem capazes de personalizar
o seu espaço, maior liberdade e sentido de controlo sentem face ao mesmo (Fischer, 1994).
De facto, os vários utentes, dependendo de circunstâncias distintas, tentam reconstituir um território pessoal de forma o
mais vincada possível. Estes últimos são aqueles que mais elementos identitários possuem no espaço do seu quarto e os únicos
que possuem chave do mesmo, fazendo-os sentir igualmente um maior controlo sobre o espaço. Quando perguntamos à D.
Arminda se se sentia segura no seu quarto, ela responde-nos que sim:
“Sinto-me segura porque eu durmo com a porta fechada, porque não sei… vejo os outros a queixar-se falta isto, falta
aquilo, a mim nunca me faltou nada”.
Segundo o regulamento, também não é possível possuir nos quartos comida, medicamentos ou objectos cortantes. Se
esta regra é inquestionável em algumas situações, para outras parece-nos que priva bastante a margem de liberdade dos
utentes porquanto os condiciona de possuírem no seu espaço mais privado alguns alimentos que lhes possam dar mais prazer ou
estejam adequados às suas necessidades. A D. Piedade teria de deixar de fazer os lanches, que tão bem lhe sabem, com base nos
alimentos trazidos pela sua família; a D. Joaquina não poderia ir todas as manhãs ao seu quarto comer a peça de fruta à hora que o
médico lhe indicou por causa da diabetes. Apesar desta ser a regra, esta situação é algo tolerada, não obstante o intenso desagrado
das funcionárias que se aproveitam da regra para ameaçarem fazer queixa do utente cada vez que este deixa migalhas no quarto.
Os funcionários aborrecem-se por terem de limpar os restos de comida deixada pelos idosos nos quartos ou até mesmo nos bolsos
da roupa já esquecidos e até apodrecidos. A instituição, sobre isto, avança com argumentos que dão corpo à tese de que se
pretendem promover os bons hábitos alimentares. No entanto, não temos dúvida que se tratam de justificações racionais para uma
situação que em nada salvaguarda a tomada de decisão dos utentes, a autonomia na condução da sua vida. Na verdade, está em
jogo uma lógica de gestão o mais funcional possível, salvaguardando mais os interesses dos funcionários e da gestão. No entanto,
a assistente social é de opinião que não se pode criar, a este propósito, uma regra geral pelo facto de haver pessoas que, como os
diabéticos, precisavam fazer refeições intermédias por questões de saúde.
Dado que, na generalidade dos quartos não existem tantos objectos pessoais, assim como não existe, à entrada dos
mesmos, a referência ao nome ou fotografia dos residentes que habitam em cada espaço, torna-se difícil, senão mesmo
impossível, distingui-los, a não ser abrindo cada uma das portas até acertar no quarto do idoso que se procura. Foi perceptível que
se desejássemos procurar algum idoso no seu quarto seria muito difícil. Esta situação, para além de contribuir para uma
despersonalização do espaço, dificulta a qualquer idoso, sobretudo os que residem em quartos mais afastados, ou familiar a
localização da pessoa pretendida. Embora não seja prática comum visitar o utente no seu quarto, imagina-se que para as famílias
não deva ser muito confortável bater a todas as portas para procurar o seu familiar residente no lar! Ainda assim, para pessoalizar
mais o espaço do quarto e facilitar a localização no espaço daqueles idosos que começam a ter falhas de memória, seria
importantíssimo facultar algumas ajudas em matéria de orientação que poderiam passar, por exemplo, por colocar a fotografia dos
residentes nos quartos.
Existe uma pequena sala de espera junto dos gabinetes técnicos que, pela sua dimensão, funciona como uma sala mais
reservada, quer para alguns utentes que desejam permanecer um pouco num ambiente menos ruidoso que o da sala de convívio,
quer para o convívio entre alguns idosos e suas famílias quando os visitam. Apesar de não haver porta de ligação entre esta
pequena sala e o corredor, as condições para se conversar intimamente são mais propícias que as existentes noutro espaço
do lar. Por outro lado, há mais facilidade dos familiares se sentarem ao pé do seu idoso em sofás mais cómodos que as cadeiras

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da sala de convívio. A adaptação funcional deste espaço, que não tinha sido planeado para esse efeito, deveu-se ao facto de que,
na prática, nenhuma sala estava prevista para recepção de visitas.

Características gerais dos espaços e preservação do bem-estar e identidade dos idosos


De um modo geral, os espaços do lar procuram preservar o bem-estar dos utentes. No entanto, esta análise parte,
desde logo, de um enviesamento significativo que se prende com o facto de nenhum idoso ter escolhido livremente aquele espaço
de vida para si. Foram circunstâncias de força maior que o condicionaram à mudança da sua residência, fazendo com que, à
partida, esse espaço de vida não seja um espaço verdadeiramente desejado.
Ainda assim, o contexto físico e social pode favorecer ou diminuir o interesse pela vida, o estabelecimento de
relações, íntimas ou mais grupais, a preservação da autonomia ou a promoção do isolamento dos idosos, a afeição a objectos
recheados de história ou o total despojamento de objectos que configuram os espaços e a identidade dos indivíduos. De referir,
por exemplo, que as pessoas que possuem ainda a sua casa vivem a mudança para o lar de forma mais serena e apaziguada, uma
vez que a posse dos seus bens alimenta a vaga esperança de voltar um dia a casa e tem efeitos positivos em termos da identidade
preservada. (Manoukian, 2001).
Em termos das condições que oferece, não podemos considerar que o lar seja um espaço barulhento e perturbador
em termos dos ruídos que produz. A sala de convívio é, por natureza, um espaço mais agitado e poder-se-á tornar num espaço
cansativo para os utentes mais dependentes que passam lá largas horas sem terem alternativa. Os restantes têm mais opções e é
visível que muitos passam o dia a alternar entre o seu quarto, entre o exterior, refeitório e sala de convívio. Por outro lado, apesar
do lar se situar em pleno centro urbano, há um isolamento bastante bom por relação aos ruídos do exterior em quase todas as
partes do lar.
Apesar da quantidade de utentes incontinentes ou que usam fralda de noite, não são perceptíveis cheiros
desagradáveis ou constrangedores, nem nas áreas de uso colectivo nem nas áreas privadas do lar. Pelo contrário, com raras
excepções, a limpeza do lar é assídua e eficaz, denotando uma forte preocupação na criação de um ambiente de conforto e
higiene. Esta limpeza diária de todos os espaços do lar reflecte-se, igualmente, na inexistência de poeiras nos móveis ou cotão no
chão.
Os soalhos e as paredes estão em bom estado de conservação, sobretudo os que se situam na parte nova do lar, uma vez
que nas partes antigas evidencia-se algum desgaste sobretudo nas áreas mais usadas. As cores dos vários espaços são claras
favorecendo as zonas mais escuras, como os corredores da parte antiga, e transmitindo uma certa harmonia aos restantes espaços.
Em todos os quartos e na generalidade dos outros espaços existem janelas, reflectindo uma sensação de abertura. Por outro lado,
esses espaços usufruem de luz directa, sobretudo na parte nova em que a arquitectura do espaço evidencia uma forte preocupação
com a entrada de luz, uma boa disposição solar da construção, o que faz com que a D. Margarida saliente os corredores da parte
nova, onde durante várias horas do dia bate o sol fazendo quase efeito estufa, como locais da sua eleição.
“Gosto muito dos quartos e então lá de cima, aquela salinha, aquele corredor, aquilo é uma maravilha, ainda noutro dia
estive lá sentada, ali bate o sol. Agora não mas o primeiro ano que vim para cá, sentava-me e punha o chapéu na cabeça, ali é uma
maravilha, a gente quer dizer parece que não está dentro de um lar.” D. Margarida
Apesar da iluminação ser boa nos vários espaços, sobretudo nos que beneficiam de mais luz natural, ela não é sempre
igual ao longo de todo o dia, sendo que o seu nível decresce à noite, não havendo suficiente iluminação artificial que compense
as perdas visuais que os idosos vão sofrendo, e que os impossibilita de realizar tarefas como a leitura.
A partir das janelas dos vários espaços colectivos e quartos a vista é geralmente agradável. Da sala maior de convívio
avista-se a rua e toda a movimentação associada à vida urbana. Por outro lado, a vista oposta aponta para o jardim da instituição,
panorama que também é acessível do refeitório. Apesar de alguns quartos estarem voltados para o parque de estacionamento
exterior, sobretudo as duas enfermarias do primeiro piso, é possível visualizar a entrada do lar e todas as pessoas que a ele acedem
ao longo do dia, transmitindo essa vista uma sensação de maior controlo aos utentes mais dependentes. O Sr. Ferreira era a prova
disso mesmo. Passando as horas do seu dia agarrado a uma botija de oxigénio, o seu principal entretenimento era ouvir rádio e
observar quem entrava e saía da instituição. Uma boa parte dos quartos estava voltado para um enorme jardim, muito cuidado,
onde é possível visualizar pessoas a passar, crianças a brincarem no parque e pessoas sentadas na esplanada de um café. Esta
visão, ainda que mais circunscrita, também é acessível da sala dos mais dependentes. Há, porém, alguns quartos da parte nova do
primeiro andar que estão praticamente voltados para a parede, não sendo propriamente motivo de prazer vir à janela observar a
paisagem!
O mobiliário contido nos vários espaços apresenta um razoável estado de conservação. Apesar de algum ser mesmo
novo, sobretudo o que está contido na parte nova do lar, este é estandardizado, obedece a um padrão uniforme que possivelmente
muito se destaca do que os utentes teriam nas suas casas. O facto de não serem os objectos dos utentes já é, por si só, sinal de
alguma desafeição. Há algumas excepções de utentes que puderam levar cómodas ou arcas, mas apenas o casal que tem toda a sua

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mobília no quarto se sente verdadeiramente confortável. O Sr. Mateus, salientando a sua “habitação”, não quer deixar de
referenciar a sala de convívio.
“Eu, o espaço que mais gosto forçosamente terá que ser a minha habitação [quarto], mas isso é para dormir e pouco
mais, é lá em baixo o salão, onde se convive com todos, é onde se fazem as festas, não vou dizer que é o refeitório que aí é só
para comer. De resto eu passeio pela casa toda, tudo me agrada, mas o espaço que mais gosto é lá em baixo…” Sr. Mateus
O seu apreço a este espaço de convívio estará porventura relacionado com o facto de nele passar alguns momentos
muito prazerosos participando nas actividades que mais aprecia, como o canto, nas actividades organizadas, como concertos e
espectáculos de dança, lendo o jornal ou fazendo um pouco de companhia a algum residente que seja mais do seu agrado. Como
as suas fontes de interesse são diversificadas, os seus espaços de vida são também variados. Já a sua esposa, que nunca se
conseguiu adaptar ao lar tão bem como o marido, refere como espaço preferido o quarto, e atribui a sua falta de adaptação ao facto
de ter sido uma pessoa muito agarrada à casa.
“Gosto de estar no meu quarto. Estou sozinha, fui sempre habituada a estar sozinha. Ás vezes o meu marido diz: sai do
quarto mulher! Gosto de ler, gosto de estar no quarto, gosto de ir à janela. Na minha casa nunca ia para a janela, não tinha
vagar, aqui já gosto. O que é olho para a janela vejo a parede [risos] (…) eu queria-me adaptar mais porque agora não tenho
casa, nem beira nem saúde, queria-me adaptar mais do que aquilo que estou adaptada (…) Não sei… Eu era muito agarrada à
casa” D. Arminda
O mobiliário das partes colectivas, sendo já antigo, permanece cuidado e limpo, não ocupando espaços de passagem
que possam pôr em risco a segurança dos utentes.
Pretendemos, pois, perceber os significados atribuídos aos vários espaços e como estes organizam a vida dos idosos de
modo a proporcionar-lhes bem-estar e preservar a sua identidade, pois neste momento a sua estrutura identitária vai ser o produto
da interacção com outros, da sua experiência social no lar e do mundo que a partir daí se constrói mentalmente pelo indivíduo a
partir das suas experiências.
Torna-se imprescindível partir das representações individuais e subjectivas dos próprios actores, pois estas constituem
os melhores indicadores das identidades sociais, ainda que possam ser provisórias, e reflectem o próprio percurso e processo de
socialização em curso (Dubar, 1997:101).
Os quartos são os espaços privilegiados por quase todos, mesmo os que estão em situação de saúde precária pois, pelo
menos, é um espaço que garante aos utentes um certo conforto e descanso. O senhor Afonso, sentindo-se fragilizado nas suas
capacidades físicas, afirma, sem qualquer pudor: “Ai, eu gosto mais é do quarto, que é as melhorzinhas horas que eu tenho é
quando estou a dormir… [risos].” Contudo, a afeição ao espaço está também muitas vezes condicionada pelo companheiro com
que é partilhado Se não existem afinidades, cria-se algum constrangimento associado à vivência naquele espaço. A D. Adelaide
se, por um lado, é daquelas pessoas que passa largas horas na sala de convívio, ainda que pouco participe activamente nas
actividades, por outro lado, não estabelece um relacionamento satisfatório com a sua companheira, o que reflecte a realidade de
vários outros idosos. Afirma que do quarto não gosta, preferindo o refeitório e a sala de convívio.
“Do meu quarto não, só de noite que estou sempre a dormir. Não, [diz não gostar do quarto] a mulherzinha não quer
cá que diga nada, eu também não digo, pronto (…) Do refeitório e de onde a gente está [sala de convívio] para os outros lados
eu não vou”. D. Adelaide
Há, contudo, alguns utentes que pela sua situação de fragilidade física passam muitas horas na sala de convívio,
elegendo esse espaço como o seu predilecto. A D. Clarisse, apesar de ser invisual, é das pessoas que apresenta melhores níveis
de adaptação ao lar. Gosta muito de conversar, adora música, por isso fica maravilhada ao assistir a todos os espectáculos que se
organizam no lar e quase todos eles envolvem a música. Participa em todas as actividades que pode, mesmo sem ver. Desse modo
se explica a sua afeição à sala de convívio. Refere convictamente que o local que prefere “é onde estamos todos em convívio”. A
D. Otília, pelo contrário, à mesma pergunta responde inicialmente de forma vaga e depois com alguma resignação:
“Gosto de todos. Ali no convívio [local onde se sente melhor]. Gosto, fui ali habituada (risos).
No entanto, a maior parte dos utentes oscila, nas suas presenças, entre os espaços colectivos e os espaços privados,
ambos necessários para o seu equilíbrio e bem-estar. Se o quarto é sinónimo de intimidade e ligação a objectos pessoais que
configuram a identidade pessoal, a sala de convívio é sinónimo de um espaço de convívio, mais ou menos activo e reconfiguração
de uma identidade social. A D. Beatriz, ainda muito activa, preservando mesmo a sua vida familiar e de interacção com o exterior
do lar, refere gostar de ambos os espaços.
“Olhe gosto da sala, não posso dizer que não gosto, gosto, eu até passo muitas vezes ali, tardes e tardes ali, não é?
Mas também gosto, por exemplo, acabar de comer e estar um bocadinho no meu quarto a ouvir música, tenho rádio que o meu
filho me deu, gosto de estar ali um bocadinho a descansar, gosto do convívio ali, gosto da ginástica, gosto da música, gosto de
tudo”.
A D. Matilde é da mesma opinião, contudo, faz referência igualmente à capela como local de referência, pois é uma
senhora muito religiosa que toda a vida rezou muito pela vida do marido que era pescador.

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“Olhe eu sou franca, eu gosto muito de ir para o convívio, gosto muito de ir para o convívio e do meu quartinho onde
durmo, também gosto muito. Sinto-me bem. É onde me sinto melhor (risos). E na capela também. Eu gosto muito de rezar ao
Santíssimo, gosto muito de fazer as minhas orações” D. Matilde
Há ainda aqueles utentes que demonstram claras dificuldades em se adaptar ao lar, mesmo já estando aí a viver há
alguns anos. A dificuldade em conviver com os demais reflecte justamente esse desenquadramento. Os espaços colectivos são
pois de evitar, uma vez que implicam o assumir que se pertence àquele colectivo. A D. Maria é um desses exemplos e passa a
maior parte do tempo no exterior do lar ou no seu quarto. Quando questionada responde da seguinte maneira:
“O espaço? Olhe não é a sala de convívio não, que eu não gosto nada. Não tenho espaço especial. Gosto do quarto que
estou à vontade, estou à vontade, nem toda a vontade pode ser, porque querem que a gente vista os pijamas, querem que a gente
saia do quarto de banho logo vestida ou com uma toalha (…) faz baforada aquilo, não tem exaustor (…)”.
Na verdade, as pessoas que vivem em lar são obrigadas a partilhar um espaço fechado e limitado. Este facto facilita,
num curto espaço de tempo, um conhecimento recíproco dos hábitos e da vida pessoal dos outros, o que na vida normal só
acontece entre os membros da família. Como consequência, cria-se uma pressão social que exige um reforço de protecção de si,
face a qualquer situação intrusiva, de ofensa ou bisbilhotice. Agudiza-se, assim, o isolamento dos idosos e a superficialidade
das relações. Como nos reforça a autora, “no lar de idosos, esta proximidade gera um aumento de distância afectiva e é
compensada por uma contenção na expressão dos sentimentos com medo que os outros residentes façam uso disso” (De Singly &
Mallon, 2000:256).
A D. Palmira, que declara não gostar de viver no lar e apresentar sinais de alguma desadaptação, expressa-nos a sua
repulsa em permanecer no espaço onde se encontra a maioria das pessoas que, para além de falarem umas das outras são, do seu
ponto de vista, egoístas ao ponto de nem partilharem as suas cadeiras.
“Olhe eu para lhe dizer que gosto de estar no convívio, também quero parar aqui pouco tempo. (…) Lá para cima. Lá
para cima, longe delas… [das residentes que considera bisbilhoteiras]. Para o quarto. Ou para a salinha, lá em cima [dos
dependentes que é mais reservada] (…) Às vezes eu chego aqui ao convívio e nem cadeira tenho para me sentar (risos). É umas
com sacas, é uma com…olha enfim… (risos)”. D. Palmira
Denotando que a afeição ao espaço também se constrói muito com base nas companhias que a ele estão associadas,
a D. Piedade, revela o seu sentimento especial por relação ao refeitório. Já o quarto, partilhado por mais quatro mulheres, para
nada mais serve a não ser dormir, até porque nem os seus objectos pessoais são sempre respeitados, como já se referenciou. Ela
comenta, quando questionada sobre o tema:
“Ai no refeitório está-se bem, no refeitório porque até são uns colegas muito unidos, calhou bem porque até são as que
estão no meu quarto, por acaso o quarto era delas não era meu, e damo-nos muito bem. O Sr. Guilherme é muito engraçado está
sempre a fazer alguém rir…Também gosto do quarto, mas a gente tem pouca coisa no quarto é só para dormir, que não durmo
infelizmente…”. D. Piedade

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Juventude e diferenças de gênero nas culturas juvenis contemporâneas


Lila Cristina Xavier Luz
Universidade Federal do Piauí/Núcleo de Pesquisa sobre Criança Adolescentes e Jovens
[email protected]

Resumo: Trata-se de um estudo acerca das práticas sociais de jovens rappers, pertencentes a grupos de raps de Teresina/BR. Dessa forma,
investiga as práticas dos jovens na cidade com relação aos grupos de amigos, aos espaços de lazer e ao enfrentamento da violência. Para tanto, tem
como objetivos específicos: apreender as trajetórias dos rappers na cidade, os espaços ocupados, as tensões e os conflitos enfrentados e, recupera,
sobretudo, as motivações que os conduziram ao movimento hip-hop; resgatar e analisar as relações estabelecidas e os significados das práticas
juvenis, tendo como referência a história de vida de jovens do sexo masculino e feminino, calcada no conceito de gênero. O recurso à história de
vida permitiu a apreensão e compreensão das trajetórias dos jovens, com especial relevância às experiências de risco e reclusão. Sobre estas se
pôde observar especificidades marcadas pelas diferenciações de gênero: as jovens vivem o risco no espaço privado e são punidas com a reclusão
em casa; os jovens arriscam-se no espaço público e se punem com a reclusão em casa ou são punidos pelas diferentes instâncias sociais com a
reclusão em espaços prisionais. Foi possível concluir ainda, que os jovens viveram muito cedo algumas experiências que lhes possibilitaram não
apenas um encurtamento da fase de infância, mas também, a substituição de práticas muito particulares a esta fase, pelo trabalho, pela
mendicância e por atividades ilícitas. Porém, o pertencimento a grupos de rap e a participação em atividades político-culturais no hip-hop,
propiciam o estabelecimento de novas relações.

O estudo apresenta uma análise sobre como a juventude rapper expressa, por meio da oralidade musical, as relações de
gênero no movimento hip-hop teresinense. Para tanto, tomo como objeto de analise os raps produzidos pelas jovens com vista a
resgatar as tensões vividas em decorrência das diferenças de gênero presentes no movimento. O hip-hop é um movimento juvenil
urbano que inicia seu processo de organização, no Brasil, no final da década de 1980. No final da década de 1990, o movimento
foi organizado em Teresina, tendo à frente um grupo de jovens do sexo masculino. Sustentado em ideais de igualdade social,
econômica, ético-racial, o hip-hop, aglutina majoritariamente, jovens das camadas populares que vivem nas zonas periféricas da
cidade. Apesar da propagação desta igualdade, é visível a existência de certa desigualdade de gênero no movimento. Esta
desigualdade pôde ser constatada pela reduzida presença e participação de pessoas do sexo feminino nas atividades realizadas e na
coordenação das entidades instituídas pelo movimento. Com a preocupação de contribuir com reflexões que possam possibilitar o
avanço do debate sobre a participação feminina nas culturas juvenis, em especial, no hip-hop, apresento algumas reflexões acerca
das experiências de jovens do sexo feminino pertencente a grupos de rap de Teresina. Assim, busco apreender como elas têm
enfrentado, no espaço público, as diferenças de gênero e os riscos. Para tanto, resgato informações oriundas de duas fontes:
entrevistas de história de vida e de suas composições de rap [letra de música] protagonizado por elas.

Considerações iniciais
A análise aqui proposta resulta de um estudo recentemente concluído sobre a juventude teresinense, centrado mais
especificamente, nas experiências de jovens rappers que participam de grupos de hip-hop. Tendo como referência histórias de
vida de jovens do sexo feminino, no texto desenvolvo uma reflexão acerca da sociabilidade juvenil, problematizando o peso e o
significado de ser mulher e membro de grupo de rap em Teresina, visando apreender, a partir das narrativas, as experiências de
risco.
Por outro lado, a idéia de resgatar a dinâmica da participação feminina nas culturas juvenis, tendo como norte o hip-hop
teresinense, surgiu após encontros com alguns grupos de raps do sexo masculino, momento em que aparecia como recorrente nos
discursos dos seus integrantes, uma igualdade de espaços para ambos os sexos e, associado a isto, a idéia de que as jovens não
assumiam o movimento porque assim não desejavam. No entanto, a realidade empírica evidenciava que quando da realização das
atividades como oficinas, palestras, apresentações musicais, dentre outras atividades, eram os meninos quem estavam em
evidência, sobretudo nos palcos. Enquanto isto, as meninas realizavam as atividades reconhecidas como de caráter “doméstico”.
Evidenciando tais contradições, as letras dos raps protagonizadas por elas, demonstravam que a ausência de espaços estava

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associada ao preconceito velado, dos meninos, que inibiam a presença das meninas no movimento, e não ao desinteresse, delas,
para ocupar os espaços.
O recurso à história de vida tem por referência a idéia de que por meio destas é possível compreender a sociedade de
uma época, pois:
Cada vida individual, todas as vidas individuais, são documentos de uma humanidade mais ampla com suas
descontinuidades históricas. O elo que une estes mosaicos biográficos, singulares ou coletivos, em suas diferentes perspectivas, é
a articulação do tempo recolhida em seu duplo aspecto de experiência individual e coletiva, dos momentos que se integram
reciprocamente (FERRAROTTI, 1993: p. 183).
Desta forma, as histórias que serviram de referência para estas reflexões, permitem-me compreender aspectos da
dimensão histórica e social da juventude teresinense, por comportarem não apenas a dimensão individual de cada narradora, mas
também a social. Nelas estão contidos elementos que possibilitam estabelecer mediações com a história social do tempo presente.
Para Ferrarotti (1993), a relação entre a dimensão social e a individual não é linear e nem determinista, visto ser o indivíduo
sujeito ativo no processo de apropriação do mundo social e este traduzido em práticas que manifestam a sua subjetividade.
Portanto, a possibilidade presente na história de vida norteou a preocupação para analisar as práticas sociais das rappers,
com vistas a resgatar as questões de gênero e, mais especificamente, compreender como as jovens vivem diferentemente as
experiências de risco. Para tanto, tomei como referência a história de vida de três jovens, para as quais foram atribuído os
seguintes codinomes: Negra Li; Nega Gizza e Jocy, como forma de preservar suas identidades. Além disto, recorre às letras de
raps de um grupo de rap formado por jovens do sexo feminino.

Compreensão sobre risco


Para melhor compreensão dos significados das experiências de risco na vida das jovens rappers pesquisadas, é
necessário resgatar suas trajetórias de vida. Conforme suas narrativas, desde a infância elas jovens convivem com o risco dentro
de casa. Sob o signo da proteção contra as drogas e a contra a exploração sexual, muito cedo elas foram submetidas à prisão
domiciliar pelos próprios familiares. As situações de violência se agravam quando elas apresentaram resistência a esta forma
tratamento. No que se refere ao risco, meu pressuposto é de que a diversidade de espaços compartilhados por estas jovens, desde a
infância e, sobretudo, na fase juvenil, proporcionaram-lhes responsabilidades para as quais ainda não estavam preparadas,
levando-as a saídas arriscadas que marcaram, profundamente, suas vidas.
Neste sentido, ao analisar suas narrativas, pude compreender que seus percursos de vida foram marcados por uma
infinidade de constrangimentos, desejos e ausências material e afetiva. Foram as possibilidades de resolvê-los que, cada uma a seu
modo, lançou-se em situações de perigo, em busca de saídas para redefinirem suas vidas.
A idéia de risco é aqui entendida como uma interpretação do enfrentamento do perigo na persecução dos objetivos. Para
La Mendola (2005), o perigo é uma condição imanente à vida individual e social, fazendo parte do conjunto de fatores que se
interpõem entre as ações dos agentes e a tentativa de alcançar os resultados desejados explícita ou implicitamente. Na sua análise
sobre o risco na modernidade, o contexto da convivência social é um dos aspectos para se compreender as razões daqueles que,
por algum propósito, colocam-se em situações de perigo e adotam comportamentos de risco ou de imponderabilidade.
Entretanto, quase sempre é impossível falar de escolha quando os comportamentos de risco são experimentados por
quem vive na insegurança. Uma reflexão neste sentido é desenvolvida por Pais (2001), ao destacar que:
Embora para alguns jovens os riscos ofereçam oportunidades e sejam aceitos na expectativa de benefícios – assim
acontece quando se fareja ou pedincha um tacho, embora haja o risco de não obter – para muitos outros jovens a vida é como uma
lotaria, onde os riscos estão fora de controlo e a segurança é uma questão de sorte. Os riscos ameaçam, mas é a insegurança que
verdadeiramente torna a vida insegura. Com efeito, o conceito de risco recobre a consciência da possibilidade de ocorrência de
determinadas ameaças, teoricamente antecipáveis através de alguma forma de cálculo ou previsão. Em certa medida, estamos
perante incertezas que podem ser transformadas em probabilidades. (p. 65-66).
É difícil apreender e evidenciar, com detalhes, as situações de risco na vida dessas jovens, considerando a diversidade
presente em cada uma das histórias de vida em questão. Mesmo assim, foi possível compreender que as saídas dessas jovens, de
casa para a rua, representaram saídas em direção a situações de risco por se tratarem de experiências pouco seguras, tornando suas
vidas ainda mais inseguras. A análise das histórias permitiu-me identificar situações de risco vinculadas a ausência de espaços
pouco seguros para viverem, muito embora isto não tenha resultado, necessariamente, na adoção de práticas ilícitas. Faço esta
observação por ser comum o estabelecimento da relação juventude, práticas ilícitas e risco. Esta relação tem servido para
qualificar de forma negativa as experiências dos jovens. Entre as jovens pesquisadas, as experiências de risco também não se
apresentam relacionadas a práticas ilícitas.
As reflexões sobre partir deste estudo, pude compreender que o risco é vivido e enfrentado de forma diversa pelos
diferentes jovens, e esta diversidade é ainda mais acentuada e complexa, quando se trata de jovens do sexo feminino, pois os

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espaços e as práticas em que as experiências de risco são vividas, estão muitas relacionadas com as figuras masculinas e têm lugar
no espaço doméstico.
Tomando como referência esta constatação, o leitor ou leitora poderá perguntar: será que não é igual o direito de ir e vir
para homens e mulheres? Supondo-se que não é óbvia a resposta à pergunta, tomo-a como ponto de partida para tratar das
experiências de risco das jovens rappers. Antes, porém, quero fazer algumas considerações com vista a tornar mais compreensível
a forma, encontrada por mim, para apropriar-me de suas narrativas, visando apreender as experiências de risco enfrentadas por
elas.
Neste sentido, a partir das histórias de vida das jovens é possível destacar quatro aspectos relacionados às experiências
de risco vividas por jovens do sexo feminino. O primeiro é que em suas narrativas as experiências de risco ocorreriam,
frequentemente, em outra dimensão espacial, na escola e no âmbito doméstico, como já assinalei logo acima. Neste aspecto, existe
um interessante indício de distinção de gênero em relação aos ambientes onde as experiências são vividas: enquanto os jovens
viviam-nas no espaço público, tendo a rua como dimensão principal para as práticas de risco, as jovens tinham o privado como
recorrente, sobretudo quando relataram ser a casa como palco das agressões físicas. Esta diferenciação espacial pode estar
relacionada ao processo de socialização dos indivíduos em que claramente são estabelecidos lugares e papéis de homens e de
mulheres na sociedade e tais papéis são definidos e, diferentemente, atribuídos às diversas categorias sexuais.
Segundo Saffiotti (1997), estes papéis são tão rígidos e naturalmente vinculados, que homens e mulheres os cumprem
sem maiores contestações. Nesta mesma lógica, alguns estereótipos como fortaleza, mandonismo, superioridade..., são
normalmente vinculados aos homens; enquanto fraqueza, obediência, inferioridade... são tidos como inerentes às mulheres.
Levando em consideração estes e alguns outros elementos presentes nas histórias das jovens rappers pesquisadas, foi
possível compreender uma trajetória de vida diferente da dos jovens rappers, na medida em que elas permaneceram mais tempo
em casa durante a infância e a adolescência. Essas jovens ficaram em casa, em decorrência da tradição, sobretudo, entre algumas
famílias das camadas populares teresinenses, de que cabe à elas parte da responsabilidade pela realização do trabalho doméstico,
principalmente quanto são as mais velhas entre os outros irmãos. Por outro lado, enquanto isto, aos homens cabe o trabalho na
rua. No caso das rappers, é possível inferir que suas saídas de casa em direção à rua, tiveram como motivações os conflitos com o
pai e as violências presenciadas em casa, sobretudo, contra suas mães.
Um segundo aspecto que me parece pertinente, diz respeito à natureza do risco. No caso das jovens rappers, é peculiar
uma vinculação entre o risco e a violência física no interior do domicílio, tornando a situação de violência mais difícil de ser
apreendida como risco, por dois motivos. Primeiro, por se configurar no espaço doméstico. O doméstico é, geralmente,
sacralizado como espaço de proteção familiar, sobretudo para as mulheres. Assim, do primeiro motivo emerge o segundo: o
reconhecimento dos espaços e/ou situações públicas como campos privilegiados para as práticas de riscos juvenis.
Um terceiro aspecto refere-se aos motivos que geram as situações de riscos. Acerca destes motivos, são comuns os
argumentos relacionados às proibições familiares em virtude da crescente busca por autonomia que as jovens vão construindo em
torno da constituição de relações afetivas, do usufruto do lazer, da liberdade para escolher lugares de diversão e, por escolherem
participar de um movimento de homens, dentre outros.
Por fim, foi possível observar certa diferença quanto às formas de enfrentamento das situações de riscos. Neste aspecto,
existe evidência de um confronto com a condição de mulher presente no espaço doméstico e, portanto, a perspectiva de
construção de papéis diferentes na família. Evidentemente, tal afirmação pressupõe agir com maior liberdade frente ao pai, aos
irmãos e até mesmo aos companheiros do hip-hop. Além disto, experimentar relações afetivas diferentes daquelas vividas por suas
mães em relação a seus pais.

Violência de gênero: as experiências de jovens reppars de Teresina


Nas narrativas das jovens, a busca por maior autonomia, evidenciou-se a partir dos 14, 15 anos e, caracterizou-se como
um período de muitos conflitos familiares. A origem de tais conflitos estava, geralmente, vinculada às proibições da família contra
suas manifestações de desejo de namorar, de sair para as festas com os colegas do bairro e/ou da escola, de permanecer nas rodas
da praça ou das calçadas com as amigas.
Neste sentido, é emblemática a maneira como as jovens enfrentavam todas estas experiências. Nas suas narrativas, a
violência era bastante presente e o fato de se posicionarem contrárias à mesma, acabava resultando em serem postas fora de casa,
quando não decidiam sair antes. Acerca da violência física, todas narraram algum aspecto que me pareceu bastante pertinente para
compreender que desde a fase de infância elas também sofreram violências e que estas se constituíram em riscos, mesmo tendo
ocorrido no âmbito doméstico. Obviamente, nem todas viveram na mesma dimensão as mesmas experiências de riscos, os
aspectos acima explicitados, refletem uma compreensão do que aparecem nas suas histórias.
Passo agora a tratar da experiência de uma das jovens tomada como referência para a elaboração destas reflexões, Nega
Gizza. Vejam o que narrou sobre os riscos enfrentados:

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Durante a infância não [o pai não a espancava], mas depois que a gente começou a entrar na adolescência ele batia na gente.
Desde quando ele colocou minha primeira irmã para fora de casa que ele batia muito na gente. [utilizando] facão, corda,
pau, fio e ainda mandava minha mãe colocar sal, molhar a gente com água de sal. Eu não gosto dele.

O pai de Nega Gizza era militar e seus conflitos com ela se repetem igualmente como ocorrera com sua irmã mais velha.
Como a irmã, Nega Gizza também foi expulsa de casa pelo pai. Neste sentido, a associação que ela estabelecesse entre o início
dos espancamentos e a expulsão da irmã de casa pode estar vinculada a uma demonstração de autoridade do pai para com os
filhos que permaneceram em casa, mas, principalmente para ela, que tinha quase a mesma idade da irmã, 14 anos, quando começa
a sofrer violência física.
Conforme explicitado na narrativa da jovem, o pai não apenas demonstrava ser a autoridade da casa, mas, também, de
que forma os filhos deveriam comportar-se. No caso de Nega Gizza, os motivos dos espancamentos estavam relacionados a
proibições, censuras ...:
Os motivos dele eram assim: a gente não podia passar de dez horas sentados na porta. A gente não podia faltar ao colégio
sendo que ele pagava [...] atrasada a mensalidade e a gente não podia entrar no colégio: o que a gente fazia? Ficava sentada
na praça esperando um colega sair para poder emprestar o caderno para a gente escrever e aí ele ia ao colégio conversar com
a diretora e a diretora dizia para ele que a gente estava faltando. Mas a diretora não sabia porque a gente estava faltando. Ele
sabia, mas fazia de desentendido e [isto] já era um motivo para a gente apanhar. Conversar com uma colega, até na forma da
gente tratar uma colega, chamar de maninha ou botar um apelido ele não gostava. Não gostava que a gente conversasse
fazendo mímica porque ele achava que a gente estava fazendo plano para enganar ele. Tudo dele era assim, não era para a
gente conversar dentro de casa, nem a mamãe falar com a gente, nem os irmãos conversarem entre [si].

Ao invés de ser amigo e confidente, o pai era hostil para com os filhos, não demonstrando nenhum sinal de afeto. Por
isto, as brigas entre eles se tornam corriqueiras, em virtude de Nega Gizza passar a enfrentar sua hostilidade cotidianamente. O
tempo passa e ela vê-se cada vez mais vigiada em casa e na escola. Porém, era em casa que as proibições se tornaram
terrivelmente severas, resultando até mesmo no controle da comunicação entre os membros da família: Nega Gizza viu-se
também proibida de conversar com a mãe e com os irmãos.
A situação foi ficando cada vez mais insuportável, pois as punições corporais foram se diversificando: “[Ele] Fazia a
gente ficar de joelhos e batia na gente depois por mais de uma hora”, revelou Nega Gizza. Porém, o que mais a revoltava era o
total silêncio da mãe, frente às hostilidades do pai. Para ela, a mãe demonstrava medo de intervir em favor dos filhos, conforme
explicitado abaixo:
Minha mãe ela nunca falou nada a favor da gente lá em casa. Meu pai era militar, quando dizia que aquela cadeira naquele
dia ia ser uma geladeira, ia ser uma geladeira. Todo mundo tinha que ver aquela cadeira como se fosse uma geladeira.
Minha mãe não opinou, não mostrou o seu lado de mulher, não teve força para mostrar que ela era mulher e que ela tinha a
opinião dela dentro de casa e que ela queria criar os filhos dela junto com o marido dela. Colocando a opinião dela para
ajudar na criação dos filhos [...] ela se calou! Ela deixou ele levar o barco só para o lado que ele achava que era correto. Aí o
que ele fez crescer na gente, foi muita revolta. Eu não gosto do meu pai, acho ele uma pessoa muito errada. Se eu pudesse
escolher, não tinha escolhido ele como meu pai, tenho muito desgosto dele. Eu já bati nele porque ele me espancava muito
[...] bati nele duas vezes.

Olhando retrospectivamente, ela demonstra que precisava de uma mãe que se posicionasse a seu favor, que amenizasse
seu sofrimento e a tranquilizasse, pelo menos, de que aquela era uma situação passageira. Porém, a mãe permanecia em silêncio
naquele momento crucial na vida dessa jovem. Os motivos de tal silêncio não foram explicitados. Entretanto, pelo que posso
deduzir, eles poderiam estar relacionados a dois fatores: às atitudes violentas do pai e ao medo que a mãe tinha de perdê-lo. O
certo é que qualquer que fosse a razão, a mãe desempenhava uma função subordinada em relação ao marido, quando se tratava da
educação dos filhos. Com o passar do tempo, esse sofrimento transformou-se numa revolta difícil de conter, resultando na troca
de agressões físicas entre pai e filha.
O tempo passava e os espancamentos tornaram-se cada vez mais frequentes a ponto de ela tomar a decisão de sair de
casa:
[...] acho que numa sexta série, quando completei 17 anos, eu resolvi sair de casa porque meu pai batia muito na gente,
espancava muito. Eu não aguentei mais e sai de casa. Sai numa noite com duas sacolas, sai lá da [Zona Sul] e fui parar lá
[para a Zona Norte], fiquei na casa de uma irmã minha. Depois fiquei na casa de um colega, e aí tinha um namorado, a mãe
dele me aceitou lá [na casa deles]. Passei um tempo lá.

Nega Gizza decide sair de casa, mesmo sem ter bastante ciência sobre o mundo que a esperava lá fora. Para onde ir e o
como se manter pode não ter sido indagações presentes naquela noite, com as sacolas nas costas. Ao sair de casa, o destino foi a
casa da irmã, onde permaneceu por certo tempo. Em seguida, a casa de uma amiga e mais tarde foi acolhida pela mãe do
namorado, com quem passou a viver junto. Eles não se casam formalmente, mas resolvem morar juntos e tentar ganhar a vida em

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outra cidade, Brasília. É lá que o namorado, após certo tempo de convivência, revela-se tão agressivo com Nega Gizza quando seu
pai havia sido:
[...] a gente viveu um tempo junto; fomos para Brasília e chegou lá ele me espancava muito, queria me matar... Aí eu fiquei
seis meses... Aí fugi dele, peguei o dinheiro que tinha dele lá na casa, peguei minhas coisas, esperei ele sair para o serviço e
vim embora para Teresina. Meus irmãos juntaram também uma grana para pagar minha passagem [...] Voltei para Teresina.

Mais uma vez, a crueldade dos riscos apresentava-se no espaço doméstico e a figura masculina era o protagonista. A
diferença é que desta vez era o companheiro no lugar do pai. A jovem estava tão atormentada, que lhe apanha o dinheiro e foge,
como se estivesse revoltando-se contra o “destino”.
Ao voltar para Teresina, reinicia seus estudos, mas as dificuldades financeiras permaneceram, levando-a a não ter
dinheiro nem para pagar o aluguel da casa onde morava. Enquanto isto, o ex-marido pressionava-a para que voltassem a viver
juntos. Todas estas adversidades a fazem voltar atrás e a decidir viver novamente com o mesmo:
Voltei [a viver com ele] depois que cheguei de Brasília. [...] Ele veio atrás de mim; eu engravidei, perdi o nenê, e a gente
ficou junto outra vez. [...]. Voltei para o meu ex-marido porque meu pai não me aceitava em casa e eu achei que era só ele
quem podia me ajudar... Voltei para ele; aí ele passou um tempo sem me bater, e [depois] voltou de novo.

A jovem avaliou os riscos de retornar à convivência com o ex-marido. Entretanto, pelo modo como as coisas
aconteceram, será que lhe restava outra escolha? Desta vez parece que sua avaliação sobre o riscos era pouco consistente, pois era
difícil que o ex/atual marido pudesse agir diferente. As pesquisas sobre violência indicam que a aceitação de voltar garante
impunidade e ampliação da violência, o que não foi diferente no caso desta jovem, a dominação e a violência foram ainda pior: o
sossego que Gizza pensava adquirir, não se mostrou exatamente como calculara:
Aí eu consegui arranjar um emprego no CSG [sigla da empresa em que esta jovem trabalhava], fiquei três anos. Aí fiquei
grávida novamente, esse nenê nasceu, ficou na incubadora e morreu... E esse cara que eu estava com ele levou uma furada
na mesma época, eu fiquei ajudando ele e depois que ele ficou bom... Aí uma noite que eu sai, porque ele saia e eu não ia
com ele... Quando ele chegava era quebrando tudo... Eu resolvi sair e quando cheguei ele me bateu muito nesse dia. Meu
irmão e minha irmã chegaram lá para me ajudar, arrumamos as coisas dele e eu fui deixar lá. Desde esse dia eu nunca mais
quis ficar com ele... Ameaçou-me de morte, fui na delegacia, registrei queixa e não fiquei mais com ele... Não, porque ele
me maltratava demais, me batia muito, jogava muita pedra, quebrava as coisas em casa e eu não tinha apoio de pai e nem de
mãe. Eu vi que era eu mesma que tinha que decidir isso. Deixei-o. [...].

Este trecho indica uma excelente descoberta de que o jeito de enfrentar a forma mais grave da dominação é ser um
sujeito: “Eu vi que era eu mesma que tinha que decidir isso deixei-o.” Mas, o motivo é o tamanho da agressão: “não, porque ele
me maltratava demais.”
Com o passar do tempo, Nega Gizza descobre que havia outras formas de enfrentar as situações de violência sofrida e
recorrer à polícia para livrar-se das perseguições do marido. Para além do espaço doméstico, tais perseguições já haviam se
estendidos aos demais espaços, por onde esta jovem circulava; ela sofrera ameaças nos espaços sociais por onde circulava: escola,
trabalho...
O retorno para o marido, significou, também ficar em casa sem poder sair enquanto ele saía para a rua, acordar no meio
da noite com ele quebrando os pertences de casa e, enfim, ser até ameaçada de morte. Nega Gizza libertou-se do pai violento e,
isto significou ter autonomia para namorar, sair à noite, conversar com os colegas etc. Entretanto, como não pensar que sua
tentativa de ter autonomia era uma das causas do comportamento violento do marido? Em toda a história de Gizza, existem
evidências de que ela já havia adquirido autonomia para circular em espaços sociais diversos, um rendimento próprio, aspectos
que a fortaleceram contra a aceitação de relações violentas, sobretudo no âmbito familiar, em que o marido era agora o
protagonista.
A autonomia pode ser demonstrada pela decisão de não aceitar a continuação da relação da forma como vinha
ocorrendo. Isso fez com que a jovem recorresse à sua única saída: a casa da irmã, visto que o riscos era de perder a própria vida.
Como se pôde ver, as tentativas de afirmação de Nega Gizza, como mulher e os enfrentamentos adotados para viver de forma
livre e responsável, mais uma vez são postos por terra. Mais uma vez seu caminho é a casa da irmã. No entanto, as dificuldades
financeiras enfrentadas fizeram com que Nega Gizza, saísse de casa e:
[...] depois, eu tive que sair de casa de novo; deixei minha irmã com os meninos dela e fui ver o que conseguia fazer. Teve
umas vezes que eu fiz uns programas para poder conseguir juntar um dinheiro porque os meninos lá dela estavam com fome
e eu também estava com fome e não tinha de onde tirar. [...] [Ela fazia] caminhada, justamente para conseguir os fregueses
lá na hora.

O uso da metáfora para falar das experiências com a prostituição indica suas ressalvas a tal prática, mesmo frente às
justificativas de que o dinheiro ganho serviria para sanar sua fome e a dos sobrinhos.
Ela parecia não vislumbrar outras saídas:

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Aí eu tive que fazer programas... fiz algumas vezes programas, juntei dinheiro para poder comprar comida lá para os
meninos, até que um dia a gente fazendo. [...] Era muito ruim.... [...] Era difícil porque para você conseguir dinheiro dessa
forma assim, é ruim... Você se machuca muito, depois você tem que ter sangue no olho mesmo para conseguir fazer, pensar
mesmo na dificuldade que está passando.

Mais uma vez, olhando retrospectivamente, ela parece avaliar ter se tratado de um fato que a expôs à violência, não
apenas no plano sexual, mas também no da própria vida. Com isto, sua saída não se configura como constitutiva de maior ou
menor perigo e, portanto, mais arriscada. Pelo contrário, ante o abandono pelos pais, ante as constantes ameaças de morte pelo
marido, sem trabalho para arcar com o aluguel da casa que morava e ante a fome, o que mais podia buscar? Tudo isto pode ter
subsidiado sua decisão para um percurso até então não experimentado, do qual ela se lembra com certa resistência, mesmo porque
a prática da prostituição aparece quase sempre vinculada à esfera pessoal e familiar. Os entendimentos assim configurados, em
geral no imaginário social e nas ações governamentais, dificultam a compreensão dos significados dessas experiências para quem
as vive com vistas à adoção de mecanismos que superem a barreira do silêncio. Nega Gizza, por exemplo, ia à procura dos seus
clientes em uma rua bastante movimentada de Teresina. Trata-se do point em que, todas as tardes, circula uma grande fração da
classe média local, para fazer cooper. Talvez o fato de tal prática ser vista como pertinente à esfera pessoal e familiar, tenha
tornado “invisível” o uso daquele espaço, por esta jovem, para tal finalidade.
Também na narrativa de Negra Li, foi possível apreender suas experiências de riscos, em que o espaço doméstico
constituíu-se como o privilegiado para tal enfrentamento.
Nas experiências de Negra Li, a figura do pai agressor esteve presente deste a infância. A diferença é que no caso desta
jovem, não apenas ela, mas todos os membros da família eram agredidos, conforme afirma:
Meu pai que agredia a gente; eu, minha mãe, meus irmãos, todo mundo lá em casa sofreu isso. Eu já cresci naquela coisa
assim de agressão, é tão tal que eu tenho até medo dessas coisas de casamento. [...] Minha mente abriu [...], quando eu
comecei mesmo a entrar na minha adolescência foi que eu fui começar a vê as coisas mesmo. Problemas Sociais, por eu ter
passado em casa questão da violência, eu já comecei vê de outro lado que eu poderia mudar, que não era para eu morrer
naquilo, que era para eu tomar uma atitude na minha vida: “Mãe a senhora tem que tomar uma atitude na sua vida porque a
gente não pode morrer assim [ela falava]”, até quando ela tomou uma atitude também.

Negra Li tinha mais ou menos dez anos, quando afirma ter se dado conta das agressões que o pai fazia à família. Ou,
utilizando suas palavras: “Desde [...] que eu comecei a me entender por gente, um ditado popular, que eu tive problemas [em
casa]”. Ao se dar conta, ela passa boa parte do tempo insistindo para que a mãe desistisse daquela vida. Neste ambiente familiar,
ela também se sentia ameaçada pelas constantes violências do pai. Porém, quando a encontrei para o recolhimento da entrevista,
ela já aparentava mais tranquilidade, pois a mãe tinha tomado a decisão de se separar do pai conforme explicitado a seguir:
O problema era assim, só aquelas agressões [...] aí de uns dois anos para cá que começaram a aumentar, foram, foram...
Minha mãe aguentava, suportava, acho que talvez por a gente ser muito criança ainda também, ela foi suportando. Depois de uns
dois anos para cá, ela disse que não suportava mais. Eu disse: “ah! a senhora é quem sabe.” Quando eu me lembro, dá tanta
vontade de chorar porque é uma coisa que eu sofri muito, e eu fiquei de um jeito que eu não podia vê voz de homem na minha
casa que eu já pensava que era meu pai que vinha com agressões. A mãe tinha medo que eu ficasse assim com algum problema na
minha cabeça por eu ter passado por isso. Ela dizia que poucas mulheres que passam por isso querem ter a vida assim, casar e
tudo. Não acredita porque de tanto eu vê minha mãe apanhando, tinha dia que eu chegava da escola, eu tinha medo... Eu não
queria nem mais ir para a escola porque eu tinha medo de encontrar minha mãe morta por causa das agressões. Ela começou a
frequentar a delegacia da mulher... Ela começou... Ela disse: “A partir de hoje eu não vou sofrer mais, e foi”.
Conforme já destaquei logo acima, as experiências de riscos das jovens são marcadas pela convivência com situações de
violência física dentro de casa, não se constituindo uma novidade, também na vida de Negra Li. Entretanto, parece-me que mais
do que ser agredida, o que lhe afligia eram as constantes agressões à mãe e sua impotência frente a tal situação. Talvez por isto, ao
contrário de Nega Gizza, esta jovem não tenha saído de casa, embora aquele cotidiano hostil e violento tenha sido vivido com
uma infinidade de medos, dentre este o de perder a mãe.
É bastante comum entre pessoas que presenciam cenas de agressões a entes queridos, o medo de sair de casa, por
considerarem que seu afastamento possa resultar na morte do mesmo. O medo de perder a mãe fez parte das preocupações de
Negra Li, a ponto de ela resistir ir à escola para não abandonar a mãe, com medo de encontrá-la morta ao retornar para casa.
Parece-me que ela achava que com o simples gesto de permanecer ao lado da mãe alimentava sua força para que a mesma saísse
daquela situação. Em suma, era o que podia proporcionar-lhe, até porque não tinha mais nada a oferecer, além da sua
solidariedade.
Ao contrário da indiferença que tinha a mãe da Nega Gizza, frente às agressões do pai para com ela, Negra Li ressaltara
que sua mãe agia totalmente diferente. Segundo essa jovem, sua mãe conversava constantemente com ela, não apenas para
externar suas insatisfações para com aquela vida, mas também manifestava seus receios de que a filha, por acompanhar todo
aquele sofrimento, ficasse limitada para a constituição de relacionamentos afetivos. Elas eram muito amigas e me parece que
aquela mãe, embora permanecesse naquela relação, quisesse, com a manifestação de suas preocupações sobre a afetividade da

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filha, também dizer à mesma, que existem formas diferentes de se relacionar. Talvez por isto Nega Li tenha se convencido desde
o início que os riscos que enfrentava ao lado da mãe, mesmo tão doloroso, era passageiro.
No que se refere aos motivos das agressões paternas, também existe uma diferença nas narrativas de ambas: o pai de
Nega Gizza a agredia como represália devido a suas saídas noturnas; do estabelecimento de relacionamentos afetivos; do bate
papo com as amigas nas calçadas de casa, dentre outras. No caso de Negra Li, a embriagues do pai potencializava a manifestação
de posicionamentos violentos que já existiam na sobriedade. Isto significa que o pai agredia a filha porque era mulher e filha
mesmo.... Por este motivo, ao chegar a casa, o pai dessa jovem agredia a todos, inclusive sua mãe. Talvez por isto, Nega Li tenha
permanecido ao lado da mãe, mesmo expressando ser tão doloroso viver daquela forma.
Ainda que não seja prudente fazer deduções frente às experiências acima explicitadas, posso pelo menos destacar uma
observação que me parece pertinente: existe um forte indício de que estas jovens sejam menos tolerantes ao tipo de relação que
suas mães experimentaram. Faço tal observação, por ser recorrente nas suas narrativas, o reconhecimento da natureza violenta das
mesmas. Tanto Nega Gizza, quanto Negra Li, ao reconhecerem tais experiências passíveis de denúncia, apontam fortes evidências
de que não sofreriam em silêncio, embora cada uma, a seu modo, as tenham enfrentado: a primeira saindo de casa e a segunda
permanecendo junto à mãe com o intuito de fornecer-lhe apoio. E, todavia, é importante ter presente que determinações diversas
fortaleceram suas decisões: o apoio ou não da mãe, irmãos e amigos; a relação com o namorado; a possibilidade de se manter por
conta própria. O certo é que Nega Gizza saiu de casa e Nega Li continuava até o momento da entrevista, ao lado da mãe e dos
irmãos, tendo o pai saído de casa.
Conforme explicitado acima, as formas de experimentar os riscos se diversificam no contexto doméstico, mas é neste
espaço que o enfrentamento das imposições familiares, sobretudo para estas jovens, coloca-se como aspecto importante na
presente análise sobre riscos.
Na narrativa de Josy, os riscos têm relevância particular em relação às demais jovens, na medida em que em suas
experiências não existe referência a qualquer ódio ao pai em razão de violência. Com o pai, mantinha uma relação de amizade e
admiração, conforme afirmou: “[...] o pai sempre foi mais forte para mim, sempre me ajudou, sempre procurou me apoiar e me
entender [...]”, mesmo assim, o pai, para ela era um machista. Por esta razão, os conflitos entre os dois começaram quando ela
tinha por volta dos catorze anos, pois o pai não via com bons olhos sua paixão pelo futebol, conforme pode ser compreendido a
partir do trecho abaixo:
Joguei até os catorze anos e já estava ficando com o corpo bonito, mas aí rolava o machismo até do meu pai por que: “Não,
mulher não serve para jogar futebol.” De certa forma, a menina que jogava bola em algum campo ... eu no caso, no campo
que fosse, ninguém, nenhum deles viam com bons olhos. E eu por não concordar com certas opiniões, certas atitudes, eu
teimava, birrava muito.. Teve uma fase na minha vida que eu fiquei muito rebelde, eu não queria ouvir ninguém, queria que
prevalecesse só o que eu pensava, queria resolver tudo no grito. Foi ai que eu me perdi porque meu pai cortou o futebol:
“Não vai mais jogar, pronto, acabou!” Para mim foi como se tivesse sacado um braço meu, porque aquilo era o que eu
amava, se desse certo ia ser para minha vida toda.

Embora o pai fosse severo para com os gostos da filha, ele não precisava agredi-la fisicamente, pois, a forma como sua
família era estruturada, o controle dos afazeres da filha cabia à mãe e aos irmãos mais velhos. Neste caso, os conflitos de Josy
eram com a mãe e com o irmão. Por ser a mais nova entre os três, os cuidados para com ela eram, conforme afirma, demasiados e,
muitas vezes, violentos. O irmão cumpria a função do pai no que se referia às agressões físicas, fazendo-a obedecer as restrições
que a família impunha.
Josy amava o futebol, mas não suportava as discussões cotidianas que tinha que enfrentar, em razão da escolha pela
bola. Considerava-se psicologicamente sem forças, frente àquela pressão familiar. Mas o que mais lhe causava estranheza era a
idéia de que alguém pudesse discordar dos benefícios que o futebol poderia trazer para uma jovem como ela. Mas sua mãe
discordava e ela até imaginava saber as razões de tais discordâncias: o machismo! Porém, em que circunstâncias e com base a
mão revelava-se machista? As circunstâncias eram as mais diversas, mas os propósitos eram, quase sempre, as proibições:
A opressão, aquela militância em casa e eu não podendo sair para qualquer festa, eu digo: “Mãe eu quero sair! E ela:
“Não você não vai.” “É festa de escola com minhas colegas”. “Não, você não vai e pronto!”. Namoro! Não posso namorar. Por
incrível que pareça até hoje, namoro escondida. Correria! aquele corre, aquele pega não pega, e assim, para dizer “Mãe vou trazer
o caboco aqui e tal”, eu não posso. É o que eu falei, eu fiquei revoltada com isso quando o pai cortou o futebol e se ele não tivesse
feito, eu ficava com raiva. Eu parei! Cara, eu sentia raiva e se não fosse ele pegando no meu pé, estava por aí de qualquer jeito
porque eu não sabia de nada.
A partir deste trecho, é possível identificar empecilhos diversos na relação desta jovem com sua família, principalmente
no que refere às experiências de autonomia simbolizada pela saída para o jogo de bola. Nestes termos, a mediação da família
contra este ato é realizada em meio a discussões e agressões. No entanto, no caso de Josy, era o pai quem silenciava, mesmo
porque ele concordava com os encaminhamentos dados pelos outros membros da família. Frente a esta afirmação, uma pergunta é
necessária: ante ao papel que a família exercia para manter Josy sob controle, era necessária a manifestação do pai?

630
Heleieth Saffioti (2001) recorrendo ao universo artístico, mas precisamente à filmografia chinesa, tomando como objeto
de análise o filme “Lanternas Vermelhas” dirigido por Zhanq Yimou, afirma que o filme apresenta imagens e tramas reveladoras
de que para o controle das mulheres não é preciso a presença do patriarca: “[...] para mover a máquina do patriarcado, levando à
forca a terceira esposa, pela transgressão cometida contra a ordem patriarcal de gênero.” (SAFFIOTI, 2001, grifo da autora). Ao
continuar seus argumentos apresenta mais detalhes do drama narrado na película:
Trata-se, aqui, da China continental. Além de o patriarcado fomentar a guerra entre as mulheres, funciona como uma
engrenagem quase automática, pois pode ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres. Quando a quarta esposa, em
estado etílico, denuncia a terceira, que estava com seu amante, à segunda, é esta que faz o flagrante e que toma as
providências para que se cumpra a tradição: assassinato da “traidora”. O patriarca nem sequer estava presente no palácio, no
qual se desenrolaram os fatos. Durante toda a película, não se vê o rosto deste homem, revelando este fato que Zhang
Yimou captou corretamente esta estrutura hierárquica, que confere aos homens o direito de dominar as mulheres,
independentemente da figura humana singular investida deste poder. Quer se trate de Pedro, João ou Zé Ninguém, a
máquina funciona até mesmo acionada por mulheres. Aliás, imbuídas da ideologia que dá cobertura ao patriarcado,
mulheres desempenham, com maior ou menor frequência e com mais ou menos rudeza, as funções do patriarca,
disciplinando filhos e outras crianças ou adolescentes, segundo a lei do pai. Ainda que não sejam cúmplices deste regime,
colaboram para alimentá-lo. (SAFFIOTI, 2001, o grifo é nosso. O grifo na palavra patriarcado é da autora).

Do que nos faz observar a autora, assim como o universo literário, também aquele da filmografia possibilita uma
compreensão dos processos de dominação patriarcal (Saffioti (1987, 2001, 2004), bastante útil para entendermos o papel que a
mãe e os irmãos de Josy cumprem ao posto do pai.
Porém, considerando os argumentos da família de Josy para mantê-la em casa, pude compreender que o medo era de
que a filha se evolvesse com as drogas e com a prostituição que rondava sua casa e a escola que frequentava. Frente a isto, ela
afirma: “[...] eu não podia ser uma menina drogada, eu não podia ser aquela que te batiam, na verdade eu nem sei [...].” e
acrescenta: “Parar de estudar, ou estar usando droga, ou podia estar me prostituindo porque foram muitas dificuldades mesmo.”
Nestas breves frases encontram-se todas as alternativas que foram oferecidas a esta jovem; o risco de se envolver com a
prostituição, com as drogas e de abandonar a escola. Mas também a superação dessas dificuldades. Por outro lado, estão também
suas utopias, seus sonhos, que expressam as formas de enfrentamento dos riscos, “como escapou de tudo aquilo que viveu”,
encontrando saídas que lhe permitiram chegar até aquele dia em que nos encontramos.
Efetivamente, o medo desta jovem acabou? E o risco de conviver naquele espaço não existe mais? Não é possível uma
resposta a estas indagações, apenas considerando a assertiva da jovem de que os “caras” estavam mais calmos. Todavia, também
não se pode desprezar o fato de ela se sentir mais segura ao circular pela vila, reconhecendo a calmaria reinante. Quem sabe a
percepção da calmaria e o reconhecimento da diminuição da violência, não sejam tentativas de ser objetiva reflexo de convivência
suportável com a realidade, demonstrando sua maneira de lidar com a mesma. Ou quem sabe, uma utopia, um desejo de ver mais
tranquilidade no lugar em que mora, ou uma forma de dizer para si mesmo e para todos nós que aprendera a viver ali com as
aventuras e desventuras que as experiências proporcionavam a ela.
Com vimos, cada história narrada se diferencia uma da outra. Porém, é possível apreendemos não apenas os riscos nas
trajetórias de vida destas jovens, mas também compreender o que ele significou e as saídas “escolhidas”. Conforme afirmaram
estas jovens, o ingresso no movimento hip-hop, representou uma saída com vistas a constituição de novas experiências como
mulheres, entretanto, tal espaço representou a continuação de uma luta para a superação da desigualdade de gênero, conforme
passo a tratar no item que se segue.

Expressando temas e construindo espaços no hip-hop


Uma demonstração da posição atribuída às jovens no movimento, foi constatada durante uma apresentação musical,
realizada em outubro de 2005, para lançamento do CD “Infectante”, do grupo de rap “Atividade Interna”, composto por jovens do
sexo masculino. Neste acontecimento, acompanhei uma cena em que um dos grupos de rap formado por jovens do sexo
masculino ao se apresentar, utilizou algumas meninas para melhorar sua performance. O evento teve lugar na Praça Principal do
bairro Dirceu Arcoverde I, localizado na zona sudeste da cidade e o fato ocorreu após a apresentação do grupo de rap formado por
jovens do sexo feminino denominado de “Asserção”. O fato causou uma indignação nas componentes do “Asserção”,
estimulando-as a expressarem, na letra do rap criado no mesmo dia do acontecimento, como desejariam ser mulher no
movimento:
[...] Não me intimida a questão do preconceito, mulher cantando rap exige respeito. Talvez seja embaçada porque rola
frustração, rola pilhagem e tem cuecas de plantão. (grifos meus).

Cantar de saia agora não me deixou intimidada, vão falar agora que vamos dá uma rebolada. O preconceito, o machismo
tava cessando mais devido ao strip ele ta bombando, retornou e veio com tudo, mas eu não vou parar, eu não me inludo.

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O rap foi criado em forma de protesto e expressa a posição das jovens contra o preconceito machista no movimento. Os
elementos presentes no mesmo demonstram a forma adotada por elas, para cantar e, ao mesmo tempo evidenciam que a
vestimenta utilizada e a performance adotada marcam, no espaço público, como elas desejam participar do movimento. Elas
deixam claro que mulher cantando rap, não significa usar as mesmas vestimentas dos homens, muito menos, dançar do modo
deles.
Com esta atitude, elas explicitam que não existe uma igualdade de gênero, nos termos em que desejariam e, ao mesmo
tempo, demonstram uma disposição para enfrentar tal situação, quanto afirmam no mesmo rap que: “Não dá mais para abaixar a
cabeça, tava até a toa quando veio na mente a treta. Porque batalhamos pra ganhar o nosso espaço outra mina vem e corta o nosso
pacto” (grifos meus).
Não posso afirmar se o fato ocorrido faz parte do cotidiano delas dentro e/ou fora do movimento, ou se foi apenas
eventual, circunscrito ao espaço da apresentação musical. Todavia, por um lado o que a narrativa em forma de rap apresenta é um
sinal da luta empreendida por espaços e posições igualitárias no movimento. Por outro, denuncia que as posições até então
conquistadas não são encaradas de forma igual, nem pelos jovens, simbolizados pelas “cuecas de plantão”, muito menos por
outras jovens retratadas pela “outra mina”.
Uma outra jovem integrante de um outro grupo de rap, ao narrar sua história de vida, trouxe elementos que contemplam
a idéia evidenciada no rap acima, de que o movimento é machista, mas que elas estão construído espaços, conforme pode ser
comprovado a partir do trecho da sua história de vida destacado:
Entrevistadora: E como são os grupos de meninas, como você se sente dentro do movimento?
Gal: Dentro do movimento, na verdade, nós mulheres somos muito discriminadas.
Entrevistadora: Em que sentido?
Gal: O lado machista, ele quer imperar mais. Eu e minha irmã viemos vê o seguinte, na verdade nós temos que acabar com
esse lado machista, igualar... Nem homem, nem mulher, nenhum tem que ser melhor do que o outro, temos que andar lado a
lado. Porque homem pode ser mais que mulher e mulher ser mais que o homem? Então a gente vê esse mito de igualar,
homem e mulher andar lado a lado, e aqui dentro do hip-hop por mais que os meninos às vezes não queiram passar, mas eles
são muito machistas, muito mesmo. É uma luta difícil quer dizer, de conquista, tem que conquistar, não é chegar mandado,
tem que conquistar aquele espaço e é isso aí que a gente tenta aqui dentro, fazer um núcleo, um núcleo de mulheres aqui
dentro, aonde nós mulheres resgate a auto-estima das próprias mulheres, tanto das negras como das mulheres mesmo.
(grifos meus).

Ao se colocar no centro da narrativa, a jovem expressa o desejo de acabar com a desigualdade no movimento.
Entretanto sua intenção é trazer mais mulheres para o movimento, com vistas a ampliar a participação das mesmas. Para tanto
apresenta como estratégia a formação de outros grupos para desenvolver atividades com vistas a ampliar os espaços, para além
dos já constituídos a partir das atividades de rappers.
É importante ressaltar que o problema da conquista de espaços igualitários no movimento, não estar circunscrito ao hip-
hop teresinense, muito menos às jovens que praticam o rap. Pelo contrário, um trabalho pioneiro sobre a presença feminina nas
culturas juvenis, intitulado “Meninas do graffiti: educação, adolescência, identidade e gênero nas culturas juvenis
contemporâneas”, realiza estudo que trata da expressão feminina no movimento a partir do graffiti. Trata-se do trabalho de
MAGRO (2004), realizado na cidade de Campinas/SP e as jovens por ela entrevistadas estavam inseridas em atividades desse
eixo. O objetivo da autora foi o de investigar o percurso que jovens inseridas em grupos de graffiti têm desenvolvido para
ocuparem espaços no movimento. Por meio da análise dos dados a autora constatou serem:
[...] poucas mulheres [que] faziam rap, graffiti, ou dançavam break, porém elas estavam criando espaços para negociações,
ampliando espaços, que aumentassem a sua “visibilidade”. Pareciam contestar a construção de um corpo feminino como
subjugado ao masculino, ganhavam participação nas atuações do graffiti, levando ao movimento, outros modos de expressar
a realidade da periferia (grifos meus), revelando nos desenhos o olhar e as vivências das meninas. (p.7).

A partir das reflexões da autora pode-se perceber que através do graffiti as jovens não apenas lutam por espaços no
movimento, mas também levam para esses espaços questões referentes ao seu universo de experiência.
A propósito, no caso do rap tomado para análise, vários foram os temas levados para o movimento, dentre estes o
machismo. Este tema aparece na maneira como as jovens expressam o modo como são vistas pelos rappers do sexo masculino:
Vagabundas, é assim que eles vêem a gente e nós nesse contexto vamos muito competentes. Mulheres vulgares, estilo
cachorra, generalizou. Chamou todas nós de porra. E vamos ficar caladas, não vamos falar nada? Ou de certa forma você se sente
beneficiada?
Tive acesso à letra do rap durante uma entrevista para recolher a história de vida de uma das integrantes do grupo e,
portanto, com uma das responsáveis pela elaboração do mesmo. Na ocasião ouvi todas as explicações possíveis a respeito do seu
conteúdo e, sobre o trecho a cima, o argumento foi de que o fato: utilização de mulheres para melhorar a performance dos grupos
de raps masculino no palco, ocorrido durante a apresentação musical, não apenas se assemelha às formas de pensar e utilizar as

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mulheres presentes nos clipes de cantores de rap americanos, como também evidencia a forma como eles desejam que as
mulheres participem do hip-hop. Esta atitude, segundo elas, deve ser combatida e acrescentam:
Sensualidade para nós é importante, mas não divulgada sobre autofalante.
Corpo feminino é comércio, a playboy que o diga, mais de 8 mil para ver uma barriga e a bonita que posa faz cara de
gostosa, bota o dedo na boca [...].

Agora não vamos ficar intimidadas, o negócio aqui é cantar de saia.


O machismo existe e cabe a nós acabar, mas chamam você de puta e você cai na gargalhada. Quem se zangar comigo
foda-se, não quero saber, o preconceito ta aí para quem quiser ver.
Exijo de mim somente a consciência do que construí, se depender de nós compensa, mas claro que é a maior chateação
tanta dedicação arrastada pelo chão (grifos meus).
Subir ao palco usando saia e rebolando, não significa uma exposição erótica do corpo, muito menos, representa uma
ameaça à honra masculina e às normas estabelecidas para o movimento. Ao contrário, ao abordarem o tema da sensualidade
demonstram sua forma de percebê-la e, ao mesmo, como gostaria que a mesma fosse percebida e compreendida, sobretudo pelos
seus pares do movimento.
Neste sentido, o rap é bastante importante na vida dessas jovens, porque por intermédio da criação do mesmo, elas
conseguem expressar a complexidade presente nas suas experiências. Eles são, portanto, parte do contexto social e cultural das
rappers e se constituem importantes instrumentos de análise para a compreensão das escolhas adotadas, por elas, para enfrentar a
construção de espaços igualitários no movimento.
MAGRO (2004), ao estudar as graffiteiras, afirma que o graffiti, ao ser inscrito, marca no espaço público os sentimentos
de meninas que vivenciam a condição de exclusão social, geracional e de gênero. E acrescenta: “a arte do graffiti, e a proposta
social do movimento hip hop, proporciona a elas elaborações de narrativas de self mais afirmativas de si mesmas” (p.175).
No caso das jovens rappers, também é possível afirmar que suas inserções no movimento hip-hop e a criação de raps,
proporcionam-lhes a elaboração de narrativas expressando imagens de si e dos outros. Além disso, suas inserções e elaborações,
expressam também, o modo como elas e seus grupos se distinguem dos demais no movimento, afirmando posições e espaços:
rebatendo as condições existentes mantendo distanciamento das posições, consideradas por elas, atrasadas.
Mas, como vem se dando esta construção, quando as referências são as jovens rappers de Teresina? O trecho a seguir
explicita tratar-se de uma árdua construção:
Todo mundo sabe que não é mentira, mulher conseguir espaço foi uma agonia: o direito de votar, lutar pela liberdade,
mais não é para reclamar e praticar vulgaridade.
Vou continuar andando, tropeçando e levantando, expandindo o quilombo, realizando nossos planos. Procurando as
origens, buscando humildade sem a necessidade de pilantragem.
É nós por nós mesmo e o machismo continua, mas também cabe a mulher não mostrar a bunda, não no meio da cruel
sociedade, pode e deve ser mostrada na intimidade.
É interessante observar que nas suas construções elas não perdem de vistas os caminhos já percorridos por outras
mulheres em outros momentos históricos e, ao mesmo tempo, consideram as lutas já empreendidas como estimulantes nos seus
percursos pela conquista de espaços e respeito no movimento:
Desculpa a todo mundo, mas respeito é uma disputa, quem não quer, não quer, mas quem quiser que vá à luta. Quero ouvir
com exceção quando chamar mulher de puta. A grande maioria não conhece o seu valor, mesmo inocentemente faz atentado
ao pudor.

A resistência é feminina, já começou nossa luta, quero ouvir com exceção quando chamar mulher de puta. A nossa
ideologia exige uma postura que não pode ser disfarçada.
Cantar de saia não me deixa intimidada, mas vão crescer o “zoi” pensando que é para dá uma rebolada.
Pense bem, é uma idéia boa, olhe para meus trajes para ver que não é à toa, eu sou mulher e rapper, é isso que eu quero
mostrar.
Também sou militante e falo pelos excluídos que como o ASSERÇÃO também já tem sentido: sentido na pele a
dificuldade, sentido o preconceito, sentido a falsidade. (grifos meus).
A partir do rap, percebe-se que o interesse pela participação no movimento não significa ocupar um papel secundário
muito menos, reproduzir as formas de pensar e viver masculina. Ao tempo em que lamentam o fato ocorrido, expressam que as
conquistas obtidas estão constantemente ameaçadas. Mesmo assim, elas não desistem e fazem projeções para o futuro no
movimento.
Falsidade de quem? Dos seus pares femininos ou masculinos? Não dar para afirmar se elas estão se referem apenas à
“outra mina” ou às “cuecas de plantão”, ou se ao coletivo, ao movimento como um todo. O fato é que elas se opõem a uma certa
contradição do movimento de não honrar com sua proposição de ser democrático e igualitário:
Até custei, mas não foi difícil entender o que me faltava era parar e ver.

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Vai ser discriminada, vai rolar tanta treta mais se é isso que tu quer é só não abaixar a cabeça.
Exijo de mim somente a consciência do que eu construí, se depender de nós compensa. Mas claro que é a maior
chateação, tanta dedicação arrastada pelo chão!
Na prática, elas parecem ter percebido que a tão sonhada igualdade entre homens e mulheres está longe de ser atingida
também no movimento.
As reflexões aqui apresentadas são ainda preliminares, daí a existência de lacunas e imprecisões. No entanto, meu
desejo foi apenas de apresentar, minimamente, algumas idéias em construção, dada a escassez de estudo sobre a temática,
sobretudo no que se refere à realidade teresinense.

Considerações finais
Não me parece prudente tirar “conclusão” sobre os riscos na juventude, a partir das histórias vidas aqui analisadas
embora a afirmação do autor de que em: “cada vida individual, todas as vidas individuais, são documentos de uma humanidade
mais ampla com suas descontinuidades históricas (p. 183)”, seja fundamental e, ao mesmo tempo, deixe-me segura para levantar
algumas questões e afirmações tendo como referências as histórias narradas.
Assim, como uma das afirmativas possibilitadas por meio das reflexões aqui evidenciadas, seja aquela de que existem,
para as diferentes categorias de sexo, também espaços diferentes para as experiências de riscos. E, no caso das jovens que tiveram
suas histórias aqui analisadas, estes espaços estão relacionados com as estruturas tradicionais reservadas para homens e mulheres:
o público para os primeiros e o privado para as segundas.
Frente a esta afirmação, cabe questionar: por qual razão as jovens experimentam o risco no espaço doméstico? Por que
no caso das jovens este tipo de fronteira não foi transcendida ou atravessada? No hip-hop teresinense, conforme evidenciado nas
canções, a diferença entre mulheres e homens, quando o assunto é o espaço, ainda permanece.
Por fim, gostaria de deixar um último questionamento para reflexão: que papel exerce o hip-hop, enquanto movimento,
dito igualitário, para elaboração de novas relações que proporcionem ações práticas contra o preconceito e a hostilidade presente
nas diferenças de gênero? Não podemos esquecer que estratégias de enfrentamento dessas diferenças estão vinculadas às
experiências vividas e às especificidades históricas, por isto, a construção de relações igualitárias deve ser cotidiana.

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Juventude e Noite: Narrando a violência e o risco.


Eliane Nogueira Pires

634
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
[email protected]

Resumo: As reflexões que orientam este trabalho, entendido como um fazer etnográfico, têm a preocupação de compreender os jovens no seu
lazer noturno e as novas formas de sociabilidade vivenciadas na noite. O meu objetivo é conhecer esta juventude, os interstícios do seu cotidiano
noturno, seus espaços e territorialidade, suas redes de sociabilidades. Para contextualizar o trabalho, proponho estudar o cotidiano de um grupo de
jovens de classe média, de 19 a 24 anos. Não considero, portanto o lado da transgressão e dos excessos da juventude. Procuro identificar uma nova
forma de sociabilidade, de encontros, amores, aventuras, medos, violência, contradições e outras experiências relevantes vivenciadas na noite.
Este trabalho teve como base as narrativas ouvidas entre os anos de 2000 a 2004. A metodologia foi pensada para dar conta de apreender a
dinâmica do lazer desse grupo de jovens citadinos que saem à noite em busca de liberdade. Neste caminho, busquei uma perspectiva de analise
qualitativa. Porém, nessas redes de sociabilidade, encontrei a existência de preconceitos, violências e discriminações se impondo, nesses espaços
vistos como de liberdade. Evidenciei que os jovens lançam mão desses espaços privilegiados de práticas culturais, como a principal e mais visível
forma de comunicação e de resistência expressa nos comportamentos e atitudes pelas quais se posicionam diante de si mesmo e da sociedade.
Evidenciei também que a violência está em todos os cantos, mesmo difusa, e a juventude no centro dos debates, ora pensada como agente de
violência, ora como vítima a experimentá-la no próprio corpo.

As reflexões que orientam este estudo, entendido como um fazer etnográfico, têm a preocupação de compreender os
jovens de Vitória da Conquista, cidade localizada no Sudoeste da Bahia, no seu lazer noturno e as novas formas de sociabilidade
vivenciadas na noite.
Quando se trabalha com a questão da juventude, é imprescindível pensar o tipo de sociedade em que essa juventude está
inserida. Para Costa (1992), quando a estabilidade tradicional conferida para uma dada organização social e cultural se rompe e
surgem novas formas de sociabilidade, vemos a juventude, ou parte dela, anunciadora desses novos tempos, comportando-se e
questionando essas regras, esses limites tradicionais. (p. 91)
Imprescindível também é o problema da “definição” precisa do que é juventude. Concordo com Almeida e Tracy
(2003), quando procuram em seu livro Noites Nômades, “calibrar a aposta na vertente do reencantamento do mundo e dos sujeitos
ainda que estejamos conscientes das dificuldades e das vicissitudes inerentes a tal tarefa”. (p. 21)
Assim, admito que o conceito de juventude seja de complexa definição, porque um dos aspectos mais característicos da
contemporaneidade é justamente a disseminação de um estilo de vida jovem, para além das fronteiras etárias.
Buscando, portanto, escapar da perspectiva excludente e da tentativa estereotipada de caracterizá-los, este estudo segue
outro caminho que me possibilite compreender o “universo jovem”, dos que saem à noite construindo trajetos e percursos,
vivenciando estas “novas formas de sociabilidade”.
O meu intuito é conhecer esta juventude, os interstícios de seu cotidiano noturno, seus espaços e territorialidades sociais
e culturais. Portanto, o desejo é investigar as redes de sociabilidades como espaços de liberdade.
Desta forma, para contextualizar o trabalho, proponho estudar um grupo de jovens da classe média da cidade de Vitória
da Conquista, de 19 a 24 anos, que representam um conjunto de solteiros, estudantes de ensino médio e superior de escolas
particulares e que gostam também de lanches rápidos, como hambúrgueres, cachorros-quentes e batatas fritas, cuidam do corpo,
frequentam as academias de ginástica e, à noite, vão para a night. As narrativas ouvidas entre os anos 2000 a 2004, são as bases
para este trabalho.
Existe uma longa tradição de estudos sobre juventude, todavia, como afirma Pais (1995), atualmente eles vêm dando
maior relevância às questões que envolvem os jovens em “situações de risco autodestruição, desenquadramento social, drogas e
furtos”, o que tem levado a uma desatenção aos “traços de vida” desses jovens. (p. 09)
Concordando com Pais, é que busco perseguir o traçado do novo, sem a contaminação da nostalgia, da aura do horror e
do trágico, da decomposição dos valores e do obscurantismo.
Sobre os estudos do lazer, Magnani (1998) lembra que, na época auge das análises sobre movimentos sociais urbanos,
uma pesquisa sobre o lazer era vista quase como diletantismo, por considerarem que havia coisas mais importantes a tratar, como,
por exemplo, o mundo do trabalho ou da política. Para ele, a situação, hoje, é outra. O tempo livre assumiu lugar privilegiado.
Assim, o volume, alcance e sofisticação das inúmeras formas, por meio das quais se utiliza a parcela de tempo livre das
obrigações socialmente determinadas, fazem do lazer um tema de relevância e de reflexão sobre o próprio significado da
sociedade contemporânea. (p. 11)
Portanto, não considero pontualmente o lado da transgressão, dos excessos; estudando seu cotidiano, busco identificar
uma nova forma de sociabilidade, de encontros, amores, aventuras, prazeres, desencontros, medos, violência, contradições e
outras experiências relevantes vivenciadas pelos jovens, quando estes saem à noite com suas turmas em busca de diversão e
entretenimento. O ponto de partida é uma experiência localizada em Vitória da Conquista, e o meu objeto é a juventude de classe
média a partir de práticas culturais noturnas. Referencio-me em Pais:
Tomem-se as falas do quotidiano como matéria-prima do conhecimento, num processo de transfiguração semelhante ao do
poeta que transfigura as palavras do dia a dia em poesia. A fonte primeira de todo conhecimento é o quotidiano, é o vivido.
(2003, p. 47)

635
Na escolha de um caminho que me possibilitasse compreender os trajetos e percursos dessa juventude, o meu objetivo
foi, caminhando com ela, desenvolver a capacidade de “flâneur”, como “passeante ocioso”, aquele que passeia por entre a
multidão, misturando-se nela, vagueando ao acaso, sem destino aparente, no fluxo e refluxo das massas de gente e
acontecimentos, talvez também como os impressionistas, apostando numa busca despreconceituosa desta realidade para que a sua
instantaneidade pudesse me impressionar.
A metodologia foi pensada para dar conta de apreender a dinâmica do lazer de um grupo de jovens citadinos que saem à
noite em busca de liberdade, emoção, diversão e outras experiências, se adequando à realidade dos sujeitos informantes.
Para identificar as práticas culturais noturnas, quando reforçam vínculos de sociabilidade, vivenciam amores, aventuras,
desencontros, contradições e entretenimento, tomei suas falas como matéria-prima desse conhecimento, falas que surgiram em
formas de entrevistas semi-estruturadas, nas quais relataram suas condutas e trocaram relações entre estas e seu contexto,
revelando o sentido imanente de suas ações, o que me permitiu tecer reflexões sobre o conteúdo dessas condutas.
Busquei, tal qual o poeta que transfigura as palavras do dia-a-dia em poesia, suas palavras, como fonte primeira de todo
conhecimento, do meu conhecimento, na tentativa de transformar as palavras do dia-a-dia não em poesia, mas em prática cultural
quando os jovens reinventam e reinterpretam o tempo todo, isto é, vivenciam o cotidiano, o exagero, a aventura, o inesperado, o
sonho.
Sei que não é fácil este caminhar para construção desse conhecimento, considerando principalmente sua
heterogeneidade. Contudo, no caminho que percorro, prefiro, agora, dar menos sentido de continuidade e linearidade, e
compreender mais este movimento que caracteriza a juventude desde as sociedades tradicionais às sociedades modernas e, entre
elas, a juventude da cidade de Vitória da Conquista, entendida como formada de sujeitos concretos, cujas experiências e
trajetórias de vida fornecerão elementos para que eu possa compreendê-los e escrever sobre seu cotidiano vivido singularmente,
revelando seus próprios mundos, porque esta juventude está ligada à performance identitária que produz universos culturais
específicos.
O caminho foi longo, algumas vezes árduo e interminável, repleto de incertezas, porém, como lembra Pais (2003), são
essas incertezas que fazem avançar o conhecimento, num desejo ébrio de desfazê-las. (p. 45)
Cheguei a mais uma etapa deste percurso. A trajetória percorrida me coloca diante de novos caminhos, de novos
desafios, de novos impasses e de novas perplexidades. Acredito que me aproximei de parte do universo jovem da cidade de
Vitória da Conquista, objeto do qual pouco se conhecia. Esta aproximação me dá a possibilidade de ter algumas certezas, como
também muitas dúvidas.
As considerações que faço neste momento confirmam isto. Mais do que conclusões, apresento-as como pistas para
novas análises, contribuições para novos debates em torno das questões sobre a juventude.
Acompanhando as trajetórias desta juventude, percebi que são jovens da mesma origem social – classe média, e da
mesma faixa etária – 19 a 24 anos. Pela sua vida cotidiana, posso demarcar um certo traço de peculiaridades comuns a todos,
porém que se articulam e interferem nas suas vidas, dependendo das condições concretas com as quais se deparam, deixando
significados próximos para cada um deles. São solteiros, estudantes de ensino médio e superior de escolas particulares em sua
maioria, gostam de lanches rápidos como hambúrgueres, cachorros-quentes, pastéis, batatas fritas e coca-cola e “pra relaxar, uma
cervejinha”. Cuidam do corpo, frequentam as academias de ginástica, são filhos de pais que exerce funções de profissionais
liberais como professores, empresários, entre outros, e à noite vão para night, com suas turmas em busca de diversão e
entretenimento, vivenciando uma nova forma de sociabilidade, encontros, amores, aventuras, desencontros, prazeres, medos,
riscos, violência, contradições, entre outras.
Posso perceber, pelas suas experiências, que os jovens desta cidade identificam na sua maioria a juventude como uma
fase da vida, porém, reelaboram imagens, correntes da juventude quando criam modos de serem jovens. No contexto de
transformações sócioculturais mais amplo pelo qual passa o Brasil, surgem novos lugares no mundo juvenil, quase sempre
articulado em torno do lazer e da sociabilidade. Este mundo se apresenta mais democrático, possibilitando espaço-tempo e
experiências que permitem que se construam como sujeito.
Percebo, também, que esta experiência de vida possibilita a estes jovens práticas, relações e símbolos, por meio dos
quais criam espaços próprios, com uma autonomia relativa do mundo adulto, expressão de uma cultura que fornece elementos
para se afirmarem com uma identidade própria: ser jovem. Eles recriam as possibilidades de entrada no mundo além da figura do
espectador passivo colocando-se também como protagonista. Nos seus espaços, querem ser reconhecidos, querem uma
visibilidade, querem ser alguém. Querem ter também um lugar na cidade, usufruir dela, enfim, eles são sujeitos e, como sujeitos,
querem ser jovens e cidadãos, com direito a viver plenamente a juventude.
O sentido dessa tentativa não é tanto o de uma suspensão da vida social ou de irresponsabilidade, inconsequência, como
geralmente é vista, mas de garantir espaços de fruição da vida, de não serem tão exigidos, de se permitirem uma relação mais
liberal com o trabalho, de investirem o tempo na sociabilidade, no lazer e nas trocas afetivas possibilitadas.
Afirmam que a sociedade não lhes oferece muitas possibilidades, o trabalho lhes fecha as portas, e a escola se mostra
distante, não conseguindo entender nem responder às demandas que lhes são colocadas. Nesse contexto, a família passa a ser uma

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das poucas instituições com a qual podem contar, cumprindo um papel essencial na sua formação. Para eles, a família é à base de
tudo. É no espaço doméstico e na rede que se forma em seu entorno que podem ser alvo de atenção e aconchego, onde se
estabelecem trocas afetivas, onde são valorizados, enfim, onde podem ser mais respeitados, o que confere sentido à sua existência,
contribuindo de forma que o jovem não necessite “se envolver com alguns tipos de vícios”. No nível de diálogo que consegui
estabelecer com os jovens, foi possível constatar a existência de conflitos familiares, porém em nenhum momento este quadro
colocou em questão a família como espaço central do afeto, do aconchego, da segurança.
Nesta pesquisa, constatei que os jovens têm ocupado ruas, parques, shoppings e os espaços de circulação da cidade,
como uma forma explícita ou implícita de resistência. Evidenciei também que os jovens lançam mão desses espaços privilegiados
de práticas culturais como a principal e mais visível forma de comunicação, expressa nos comportamentos e atitudes pelas quais
se posicionam diante de si mesmo e da sociedade. O corpo, a dança e todo um visual têm sido os mediadores que articulam grupos
que se agregam para produzir e viver entretenimentos, quando espaços mais “relaxados” têm um significado de maior liberdade e
atitudes.
Deste modo, a cultura da noite aparece como espaço de práticas, representações, símbolos e rituais no qual os jovens
buscam demarcar uma identidade juvenil. Longe dos olhares dos pais, professores ou patrões, assumem um papel de
protagonistas, atuando de alguma forma sobre o seu meio, construindo um determinado olhar sobre si mesmo e o mundo que os
cerca.
Todas as representações do poder do controle estão afastadas, menos vigilantes, estão dormindo. Introduz-se aqui o
sentido de festa, quando, na cidade, os que têm o poder dormem e, sobre este adormecimento, se ergue o imaginário liberador e o
começo da irrealidade que requer a festa. Todas as propostas para o consumo noturno levam consigo o modelo de festa, embora
mercantilizada e nada espontânea, como pondera Margulis:
El clima festivo, el imaginario de la fiesta, necesita de un tiempo y un espacio propios, en ruptura con el tiempo y el espacio
habitual. La fantasía, la irrealidad, el distanciamiento de lo cotidiano, se incrementan con recursos y artificios en el interior
de los locales: decoración, iluminación, centelleo de luces, intensidad de la música. Las luces estroboscópicas, la
decoración, la proyección de videoclips, el volumen de la música, contribuyen al simulacro de la fiesta. (1997, p. 16)

A autêntica festa, a que está presente no imaginário universal, é a liberdade, que requer um tempo próprio, um espaço
diferente, descontínuo com o espaço habitual. Assim, no tempo e no espaço de festa, fluem condições para que apareçam outras
características do festivo: “la libertad, la rebelión, la subversión de los poderes, el goce, la imaginación, el éxtasis”. (ibid, p. 16)
Ao falar da festa, afirma que nela as pessoas oficializam sua própria festa, se liberam dos poderes, da dominação
cotidiana, mediante a risada, o grotesco e a máscara. Logo, a festa se realiza através destas oposições, deste situar-se em um plano
antagônico intensificando o oposto e o habitual que oprime.
Porém, a festa comercial, a que é vendida aos jovens, é organizada e controlada por outros. “Es simulacro de fiesta, en
el que deliberadamente se instalan ingredientes de transgresión de lo cotidiano: la luz, el espacio, el tiempo, la música cuyo
volumen la transforma en algo casi corpóreo”. (ibid, p. 16)
Porém, os jovens não oficializam sua própria festa, assinala Margulis, não criam suas regras, não regulam seus espaços;
são atores de um teatro alheio, consumidores, sempre aceitando o que não criaram, rígidas formas de exclusão e admissão,
códigos a que têm que se submeter, adaptar-se mimetizar-se, para ser eleito, ter êxito, ser membro.
Considerando o esforço de desentender-se do mundo diurno, na cultura da noite, não deixam de estar presentes as
formas de dominação e legitimação vigentes na sociedade. Predomina a dinâmica da distinção, da exclusão e das hierarquias.
Lembra que mesmo o rock, que se manifesta como forma transgressora, em boa parte, é corrompido pela mercantilização; ao
transformarem a cultura em mercadoria a empobrecem e deformam seu significado.
Sem dúvida, conclui Margulis, a cultura da noite tende a reproduzir “a develar y aun a exacerbar los sistemas de
dominación y de legitimación vigentes en la sociedad. Las formas de diferenciación y de exclusión social son tal vez más brutales
y manifiestas que las que se aprecian en la vida diurna”. (ibid, p. 18) Se bem que apareçam aspectos transgressores e contra
culturas, mesmo assim, a lógica mercantil que preside todos os gêneros atravessa o conjunto e a atividade noturna.
Ante o que foi dito sobre juventude e concordando sobre a sua heterogeneidade, busquei outros componentes para serem
analisados agora, porém levando em consideração a relevância dos depoimentos dos jovens entrevistados, considerando que o
meu objetivo é construir uma etnografia da juventude de Vitória da Conquista. Contudo, procuro estabelecer alguns pontos de
partida, em termos da difusão e dos seus principais marcos, com o objetivo de que essas reflexões teóricas orientem e iluminem a
variedade de significados que os entrevistados atribuem aos temas: juventude, gênero, sexualidade, violência, riscos, entre outros,
como pratica e representação. Segundo Barreiras (1999), as propostas ou pensamentos carregam consigo uma polifonia não
redutíveis em si mesmas. Assim só podem ser apreendidas em profundidade quando tomadas em consideração no campo efetivo
das realidades desses sujeitos sociais referidos, onde são criados os fundamentais significados de funcionamento que atribuem ao
mundo. (p. 218)
Quando César Barreira (1999), fala sobre a violência, ele aponta que esta é vista como um fenômeno que está presente
cada vez mais em todos os espaços e setores sociais. Ela não é “estranha e se quer passageira”. A violência está em todos os

637
cantos, mesmo difusa, e a juventude no centro dos debates, ora pensada como agente de violência, ora como vítima a
experimentá-la no próprio corpo. O problema social, os discursos dominantes sobre a violência e a juventude, é uma construção
simbólica entre coletividades. Portanto, não é algo dado, estático, é uma realidade dinâmica que admite um conflito de visões e,
muitas vezes, a dependência de muitas visões a uma única, mesmo que temporariamente. (p. 119)
Quando João fala da violência, na sua narrativa, afirma:
Existe. Existe muito. Eu acho que ela existe até muito aqui, poderia existir até menos, pra o tamanho de Conquista, por ser
uma cidade do interior etc...Etc...Etc. Mas, essa coisa da violência existe e está inerente quando você sai, você já tem que
sair de certo ponto preparado pra isso, pra se tiver uma briga você não tá junto, se rolar alguma coisa com você, você evitar,
mas existe a coisa da violência e do risco, existe muito. Eu acho que o jovem ele... Passa, ele aprende a conviver com isso,
vamos dizer assim, existe uma relação pacífica entre ele, a violência e o risco. Eles já saem sabendo que alguma coisa pode
acontecer. Alguns se previnem, e outros não. (João)

João, como outros entrevistos, vê uma relação “intrínseca” entre juventude violência e noite. Para ele, “não dá pra você
fugir dela”. Contudo, afirma que diante dessa realidade, o jovem aprende a “conviver” com esta relação, lembrando, porém, que
alguns jovens, mesmo assim, não se “previnem”.
Bom... Eu tinha dito antes que é na noite que as coisas acontecem. Comportamento de risco à noite, ele é infinitamente
maior, do que no dia. O comportamento de risco, à noite, ele aumenta muito. Ele aumenta de uma forma impressionante, e
você vê coisas que você não imaginaria que aquela pessoa faria e você vê. E a coisa do pega, a gente sabe que não é um
comportamento de risco pessoal, mas é um comportamento de risco coletivo, e pode pôr em perigo não só a vida daquele
irresponsável que ta dirigindo, mas também com o que ta do lado apoiando ou até das pessoas que estão assistindo. Então, o
comportamento de risco à noite, ele existe, é real e muito maior do que no dia. (João)

Em outro momento de sua fala, João lembra que o “comportamento de risco à noite é infinitamente maior, do que no
dia”, pois as pessoas como são “reprimidas” durante o dia, se liberam à noite.
É... A questão da violência... É uma coisa que, bom... Hoje em dia é muito comentada, né? Porque a gente já sai com medo
de casa. Os pais da gente assombram a gente mais ainda, ô menino, não vai num sei aonde, que ta perigoso, ou que vai
roubar seu carro, que vai num sei o quê. Então, é uma coisa que a gente convive. Não deixava de sair por causa da
violência, porque eu acho que o jovem é meio inconsequente assim, né? num...Num...Tem muito medo não. Depois quando
a gente vai crescendo vai ficando com mais medo. Hoje, na hora que eu chego da faculdade, eu já tô com medo de entrar em
casa, eu falo: ô meu Deus, eu chegava tão tarde e não tinha medo! (Tatiana)

Outra questão importante é quando Tatiana, outra entrevistada, diz que tem “aumentado a violência” à noite. No
entanto, ela ressalta que, como “o jovem é meio inconsequente”, não tem muito medo. O sentimento de poder controlar tudo e não
perceber o perigo como uma realidade é comum no comportamento juvenil, e isso se refere não só à intensidade das experiências
com as drogas, mas também com outras situações de risco.1 Mesmo sabendo que alguns espaços sociais são percebidos pelos
jovens como um lugar violento, sendo lugares de lazer, eles não deixam de frequentá-los, demonstrando que a violência é sentida
e interpretada a partir do cotidiano e da forma como ela influencia a vida das pessoas seja no individual ou no social.
Apesar das preocupações, Tatiana lembra que sempre se afasta quando vê brigas e distingue que a boate, espaço social,
é mais seguro do que shows e festas de rua, como, por exemplo, o Micareta de Vitória da Conquista.
Quando Caldeira (2000) fala das narrativas sobre o medo e o crime, lembra que, além das interpretações e explicações
estereotipadas e simplistas, organizam também “a paisagem urbana e o espaço público, moldando o cenário e as interações sociais
que adquirem novo sentido numa cidade que progressivamente vai se cercando de muros” (ibid, p. 27). Assim, o medo social
vivido cotidianamente vai organizando novas formas de sociabilidade construída em torno de “estratégias cotidianas de proteção e
reação que tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu universo de interação” (ibid, p. 27).
Eu acho que Conquista não tem apresentado a segurança que é necessário. Em minha casa mesmo, à noite, às vezes você
deixa o carro um pouquinho, entra em casa, já voltei várias vezes meu carro tá arrombado. Então, eu acho que o
policiamento não é suficiente. Cada vez mais, você vê os jovens mais armados, mais...Mais com propostas de serem
violentos. Eu acho que a polícia tá...Tipo, o preparo também, os poucos policias que você vê, que você às vezes tem
contado, porque você precisa ter contato, o preparo deles é muito pouco. É só aquela questão de ser violento também. Então,
eu acho isso precisava ser analisado, reanalisado, ser refeito. É dessa maneira que eu vejo. (Diana)

Outra jovem, Diana, destaca que na cidade de Vitória da Conquista não existe a segurança “necessária”, como também
“o policiamento não é suficiente”, o que leva os jovens a se armarem e “serem violentos”. Lembra com preocupação estas
questões afirmando que “isso precisa ser analisado, reanalisado, ser refeito”.

1
SILVA, Elisabeth Murilho da. A violência diletante: um estudo sobre as brigas juvenis no contexto do lazer. p. 197.

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Tem muito. Acho que porque...Por exemplo, são muitos ambientes, normalmente esses ambientes acabam sempre
aparecendo vários tipos de pessoas, por exemplo, no posto onde a gente costuma ir já apareceu um pessoal assim que você
vê pela aparência, pelo jeito, que não é assim, do mesmo tipo de vida que você, sabe? E que normalmente, às vezes, as
pessoas que estão com a gente conhecem, falam Ah, é traficante, aquele ali já tá fugindo da polícia’. Então, às vezes, na
noite, eles têm uma...Por exemplo, eles vão nos ambientes que de dia eles não iriam. Ele tá, por exemplo, se ele sabe um
lugar que a polícia não vai tão cedo, eles frequentam muito aqueles lugares. Então, você vê...Cê vê traficante, você vê
prostituta, tem aquela...Tem vários tipos. (Diana)

No relato acima, Diana lembra que hoje os ambientes frequentados pelos jovens são frequentados também por outras
pessoas, como traficante, por exemplo. Como eles sabem que ali a “polícia não vai tão cedo”, continuam a frequentar esses
lugares. Assim, “correr risco, acho que corre em todo lugar”.
Assim, a violência não é estranha à juventude, ela está presente no seu cotidiano. Porém, esta proximidade banaliza o
comportamento violento, tornando-o trivial, o que fica claro nos depoimentos dos jovens entrevistados.
Entre os informantes, convivendo com eles e analisando os seus depoimentos, observo que de forma geral, as cenas de
violência narrada pelos entrevistados expressão um sentimento. Medo. Os jovens sentem-se abandonados e esquecidos pelos
poderes públicos. Sentem-se inseguros. Não se trata de um medo imaginário, que não tenha ligação com o real, trata-se do
concreto vivido no cotidiano por estes jovens.

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1995.

Crianças, Participação e Cidades: uma geo-grafia da infância


Catarina Tomás
Instituto de Estudos Superiores de Fafe e Universidade do Minho
[email protected]

Verônica Muller
Universidade Estadual de Maringá
[email protected]

Resumo: A cidade pode ser concebida como um espaço de acção colectiva. No entanto, as crianças permanecem na periferia, excluídos. Regra
geral, não são membros activos e participativos da cidade. Quando se discute o planeamento das cidades, a política urbana, as grandes opções
urbanas e/ou os equipamentos sociais, as crianças, na maioria das vezes, não participam.
Em ordem a reconstruir e a repensar as cidades, a partir de uma perspectiva contra-hegemónica e includente, consideramos importante incluir o
grupo social da infância na sua discussão e compreender a relação entre os espaços urbanos e as crianças.
Esta comunicação procura apresentar e discutir boas práticas de acção para e com as crianças no plano da cidade a partir do quadro teórico
ancorado na Sociologia da Infância.
A “boa governação” para as crianças implica uma acção política ao nível local em parceria com uma rede de instituições para garantir os direitos
da criança. Implica ainda para as crianças que os seus direitos sejam assegurados e a sua opinião levadas em conta. Cabe aqui referir que há já
experiências a ocorrer em todo o mundo, onde as crianças têm espaços de participação ao nível das cidades. Nesta comunicação centrar-nos-emos
na acção de movimentos sociais, como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (Brasil), nos Orçamentos Participativos de Crianças
e Jovens e no Movimento das Cidades Educadoras.
Palavras-chave: Infância, Participação, Cidade, Movimentos Sociais, Cidades Educadoras.

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Introdução
Neste ensaio pretendemos discutir a possibilidade concreta de escrever a história da infância e das crianças a partir dos
espaços que frequentam, da cidade onde vivem. Trazemos reflexões a partir do entendimento de que a cidadania infantil é um
direito e que os processos de participação das crianças está em curso em realidades e iniciativas pontuais, o que não deixa de ser
para as autoras, e tantos outros mais, uma esperança e um combate à cristalização dos saberes e da acção sobre e com as crianças.
Decorre daqui, a necessidade de discutir a participação infantil pensando espaços, tempos, trajectórias e marcas dessa mesma
participação.
Para subsidiar as reflexões trazemos a temática da cidade concebida como um espaço de acção colectiva. No entanto, as
crianças continuam a estar na “periferia”, excluídos, porque, regra geral, não são membros activos e participativos da cidade.
Quando se discute o desenho e planeamento das cidades, a política urbana, as grandes opções urbanas, e/ou os equipamentos
sociais, são as lógicas e os interesses dos adultos que prevalecem sob o das crianças.
Em ordem a repensar as cidades, a partir de uma perspectiva contra-hegemónica e includente da infância, será
necessário, na nossa opinião, considerar a participação das crianças na sua discussão e compreender como a relação entre os
espaços urbanos e as crianças. A “boa governação” das cidades para as crianças implica uma acção política ao nível local, em
parceria, em cooperação e em coordenação com uma rede de instituições de forma a garantir os direitos da criança. Implica, ainda,
para as crianças que os seus direitos sejam assegurados, as suas opiniões levadas em conta e a sua participação concretizada.
Há já experiências a ocorrer em todo o mundo, onde as crianças têm uma participação ao nível das cidades,
nomeadamente no âmbito dos movimentos sociais, nos movimentos das cidades educadoras e cidades amigas das crianças e dos
orçamentos participativos de crianças e jovens (que doravante designaremos de OPCJ). Esta comunicação procura apresentar e
discutir “boas práticas” da acção para e com as crianças no plano da cidade a partir do quadro teórico ancorado na Sociologia da
Infância, nomeadamente, pela acção do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMNR) no município de Maringá
(Brasil), dos Orçamentos Participativos de Crianças e Jovens e do Movimento das Cidades Educadoras.
Podemos afirmar que já soam ecos da reivindicação de uma participação efectiva das crianças, sobretudo a partir da
Convenção dos Direitos da Criança (1989), o que nos leva a repensar o lugar da infância nas cidades e a repensar as políticas
públicas para o grupo social das crianças.

Revisitar a cidade a partir da participação das crianças


O estudo da Divisão da População do Departamento de Assuntos Sociais e Económicos das Nações Unidas, indica que a
população mundial que vive na cidade duplicará de 3.300 milhões, em 2007, para 6.400 milhões, em 2050, e salienta que em
2008, pela primeira vez na história, mais de metade dos habitantes do planeta vão residir numa cidade. Segundo a ONU, em 2050,
69,6 por cento dos 9.200 milhões de habitantes do mundo terão a sua casa numa cidade. Podemos assim afirmar que a maioria da
população mundial viverá “nas áreas geográficas centrais da modernidade” (Giddens, 1992).
O debate sobre as cidades faz-se usualmente a partir de um espaço concebido e construído pelos e para os adultos sendo
as crianças consideradas utentes desses espaços e não cidadãos. A cidade é produzida para as crianças usufruírem mas não para
ser (re)construída e (re)pensada com elas.
As cidades pautam-se actualmente por um desequilíbrio crescente e por um caos que exige uma nova gestão, uma nova
cultura política, uma gestão participada e nova cultura de proximidade e de complementaridade entre cidadãos e governantes, no
quadro de uma complementaridade entre democracia representativa e democracia participativa. Essa mudança de paradigma e de
práticas faz-se, segundo Santos (2000), através do envolvimento dos cidadãos em todos os espaços sociais, inclusive no espaço da
vida quotidiana.
Discutir a cidade é falar sobre um espaço que congrega em si uma enorme heterogeneidade, não isenta de dificuldades
do ponto de vista conceptual e disciplinar. A Sociologia Urbana, por exemplo, desde os anos 20 do século XX discute as questões
da cidade e a dificuldade em relacionar os processos sociais com categorias espaciais específicas. A cidade é uma realidade social
e política, dinâmica e complexa, que densifica as interacções sociais entre pessoas e instituições e é um contexto de autonomias,
identidades e diferenciação social. As cidades, se são cenários de diversidade, desigualdades e heterogeneidades,
consequentemente, também o são de contrastes, exclusões, lutas, movimentos e transformações que reconfiguram o tecido social.
Muitos dos que habitam/residem nas cidades contemporâneas não são cidadãos plenos, porque estão excluídos de
direitos básicos, como uma casa ou um emprego, por exemplo. A cidadania é uma conquista e um processo e não um estatuto.
Quotidianamente a cidade surge-nos como uma marca de um processo individual, na sua dialéctica público-privada (Borja,
1990), mas também como um processo colectivo para aceder à civilidade, à cidadania.
Ser cidadão significa estar presente, reivindicar protagonismo nos processos sociais e políticos da comunidade. Cidadão
é aquele que assume esse estatuto em todas as esferas da vida social, ou seja, no bairro onde reside, na empresa ou
estabelecimento onde trabalha e na escola (Le Gal, 2005). A aquisição de comportamentos cívicos é uma questão que não é nem

640
inata nem de doutrinação, mas algo que se constrói no exercício dos direitos e dos deveres de cidadania: aprende-se a democracia
praticando-a. Não pode existir cidadania participativa sem socialização democrática.
Não se trata apenas de um marco de acção colectiva, política ou social. È igualmente o lugar onde se constituem
movimentos sociais, se materializam causas, a partir de identidades de grupos e valores.
Apesar de serem ainda incipientes, há já espaços e práticas sociais que promovem a participação infantil, como por
exemplo as Cidades Amigas da Infância1. Trata-se de uma cidade, ou de um sistema local de governo, que se compromete a
respeitar os direitos da criança. Nessa cidade, as vozes, as necessidades, as prioridades e os direitos da criança tornam-se parte
integrante das políticas, dos programas e das decisões públicas, sob o lema de que se “trata de uma cidade apta para todos”.
Em todo o mundo acontecem processos onde alguns municípios utilizam diversas formas de consulta a crianças e jovens
que expõem os seus pontos de vista aos políticos e, desta forma, exercem influência nos processos sociais de fazer política. Estes
são procedimentos de consulta que incluem conselhos juvenis, parlamentos juvenis, organizações políticas de juventude, ONG’s,
organizações de estudantes, jornais juvenis, entre outros. No entanto, são várias as críticas a alguns destes procedimentos,
nomeadamente a dificuldade em reconhecer e admitir a “voz” das crianças, porque é um adulto que dirige o projecto e leva a sua
voz ao poder local. Muitos defendem que grande parte das experiências pode ser entendida como novas formas de democracia
(democracia participativa); contudo, utilizam o modelo tradicional da democracia representativa e modelos adultocêntricos, que
faz com que haja uma diminuição da responsabilidade e do interesse dos cidadãos, especialmente das crianças.
Podemos afirmar que a participação infantil é um princípio amplamente reconhecido pelas organizações internacionais e
pelas ONG’s, directa ou indirectamente, implicadas na luta pelos direitos da criança. É frequente assistirmos a iniciativas que
convidem e promovam espaços para as crianças apresentarem os seus pontos de vista, preocupações e sugestões em conferências,
programas, projectos e eventos que lhes dizem respeito. Este facto instiga-nos a reconhecer a “voz”, como instrumento de
conhecimento e participação, daqueles que rara e dificilmente conseguem assumir uma autoria na vida social, como é o caso das
crianças.
Neste texto mapeamos três dimensões da participação das crianças nas cidades. Primeiro, no movimento das cidades
educadoras; segundo, nos orçamentos participativos de crianças e jovens; e, terceiro na acção dos movimentos sociais,
nomeadamente do MNMMR.

Movimento das Cidades Educadoras


Na década de 90 do século XX foi constituído o Movimento de Cidades Educadoras, mais precisamente em 1990,
quando Barcelona se tornou a primeira cidade educadora. Actualmente, muitas cidades adoptaram a Carta das Cidades
Educadoras (Declaração de Barcelona, 1990 e Declaração de Génova, 2004) e, em 1994 formalizou-se como Associação
Internacional de Cidades Educadoras (AICE2). As cidades aderentes consideram que a cidade para além da sua dimensão
educativa tem também uma dimensão educadora o que implica um trabalho concertado entre todos os agentes educativos da
cidade e a promoção do intercâmbio entre cidades.
Segundo Machado:
Apesar da diversidade de expressões com que a cidade educadora se pode apresentar, emerge neste conceito a centralidade
do município seja na organização, promoção e oferta de programas e serviços sociais, culturais e educativos, seja no apoio
às várias iniciativas da sociedade civil nestes domínios, com vista ao estabelecimento de uma política local que concretize
um projecto educativo global para a cidade. Aos municípios são atribuídas responsabilidades e tarefas específicas com vista
a potenciar a possibilidade e realização educativa da cidade e clarificar o papel dos diferentes agentes na rentabilização
dessas potencialidades. A regulação da função educadora da cidade pode assumir diferentes formas, podendo o município
assumir uma diversidade de papéis. (2004:83)

Fialcoff (1999) defende que as Cidades Educadoras assumem um conceito amplo de educação. Educar não cabe
somente às famílias ou às escolas, mas sim a toda a comunidade, ou seja, à cidade. É inquestionável o potencial educativo dos
municípios. Colomer (1999) chama a atenção para o facto de que esse potencial que denomina educatividade, não depende só de
sua configuração estrutural (tamanho, organização espacial, sistemas de comunicação etc), mas também da disposição dos
cidadãos à interacção. Portanto, o primeiro passo é que os municípios invistam nos principais agentes da sua educação, que não
são ninguém mais que os seus próprios habitantes, o que incluí as crianças. Mais ainda, a Carta das Cidades Educadoras3 é
explícita quanto a participação das crianças nas propostas de educatividade:

1
Actualmente há já 867 Cidades Amigas das Crianças no mundo. Para prestar apoio à rede mundial criou-se uma Secretaria Internacional para as Cidades Amigas da
Infância no Centro de Investigação Innocenti da UNICEF em Florença (Itália). Para saber mais sobre o assunto cf. http://www.childfriendlycities.org (último acesso
em 9 de Junho de 2008).
2
Para saber mais consultar http://w10.bcn.es/APPS/eduportal/pubPortadaAc.do (último acesso em 9 de Outubro de 2008).
3
Consultar http://www.sinpro-rs.org.br/extra/nov_99/educacao_2.htm-acesso (último acesso em 9 de Outubro de 2008).

641
- Todos os habitantes têm o direito de gozar, em condições de liberdade e igualdade, dos meios e oportunidades de
formação, lazer e desenvolvimento pessoal que a própria cidade oferece;

- a municipalidade deverá estimular a inovação, mantendo-se informada sobre o desenvolvimento em educação nos centros
educacionais oficiais, assim como das iniciativas de educação não formal;

- a municipalidade avaliará o impacto das propostas culturais, recreativas, informativas, publicitárias ou de outro tipo que
crianças e jovens recebem sem qualquer mediação;

- a cidade providenciará que os pais recebam formação que lhes permita ajudar os filhos a crescer e fazer uso da cidade em
um espírito de mútuo respeito. Neste mesmo sentido desenvolverá projectos para educadores em geral e forças de defesa e
protecção civil que dependem directamente do município;

- a transformação e o crescimento de uma cidade deverão estar determinados pela harmonia entre as novas necessidades e a
preservação de construções e símbolos de seu passado;

- todos os habitantes têm o direito de participar na elaboração de programas educativos. Serão oferecidos os instrumentos
necessários para descobrir um projecto educacional na estrutura e administração da cidade, nas festas que organize e nas
campanhas que planeje.

Em relação ao processo organizativo, o primeiro responsável por coordenar o trabalho em cada cidade educadora é o
Presidente da Câmara/Prefeito; depois, a Câmara Municipal. O primeiro nomeia um responsável, que geralmente é o secretário da
Educação. Na cidade educadora, todos os secretários são secretários da Educação. Para ser uma cidade educadora, é preciso ter
um governo eleito democraticamente e o compromisso do Presidente da Câmara/Prefeito e da Câmara Municipal de incentivar
novos projectes na área da educação. A então directora da Rede Latino-Americana de Cidades Educadoras, a argentina Alicia
Cabezudo, já em 2004, explicou que uma cidade educadora é aquela que converte o seu espaço urbano em uma escola (Kuchler,
2004). Há espaços para a educação formal, em que se aplicam conhecimentos sistematizados, e a educação informal, em que cabe
todo tipo de conhecimentos. Ela integra esses tipos de educação, proporcionando a todos os cidadãos um processo de formação
contínua. Na prática, o processo funciona através de projectos do governo local em parceria com ONG’s, universidades, escolas,
instituições sociais, culturais ou religiosas, entre outros.
Paulo Freire (1992) afirmou que "a cidade converte-se em cidade educadora a partir da necessidade de educar, de
aprender, de imaginar...; sendo educadora, a cidade é, por sua vez, educada". Mas são várias as questões que se colocam face às
cidades educadoras. As próprias cidades educadoras, que não têm uma receita, um modelo a seguir constroem o seu processo no
quotidiano, de forma progressiva e contínua, tentando resolver paradigmas, conceitos e rumos nos encontros que fazem entre si. O
X Congresso Internacional de Cidades Educadoras4 realizado em São Paulo (Brasil) em Abril de 2008 constituiu-se a partir de
várias questões, entre elas:
A proposta de Cidade Educadora não implica a existência de uma nova institucionalidade educadora na cidade? Essa nova
institucionalidade deveria ser governamental (estatal) ou deveria ser pública em um sentido mais amplo (incluindo parcerias
entre os setores governamentais, empresariais e sociais e buscando extrair sinergias da interação entre esses diversos tipos
de agenciamento)? Quais seriam as novas instituições educativas próprias (ou mais adequadas) a uma Cidade Educadora?

Como podem articular-se (se é que podem) iniciativas de prevenir conflitos (sejam estes de caráter distributivo, inter-
geracional, inter-étnico ou inter-religioso) por meio da aplicação de políticas urbanas e iniciativas de instaurar modos
democráticos de regulação de conflitos na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos?

Estas e outras questões debatidas nos congressos realizados têm contribuído de forma muito intensa para a discussão dos
princípios e dos desafios que se colocam às Cidades Educadoras. Promovem, ainda, o intercâmbio de experiências, de
preocupações e de compromissos que reforçam a convicção de que é possível actuar com vista a melhorar as cidades no sentido
de as tornar espaços com qualidades de vida, includentes e democráticas.
Cada cidade que adere à Carta das Cidades Educadoras e apesar de aderir aos princípios da mesma fá-lo assumido as
suas especificidades. É visível o movimento em cadeia que acontece em cada cidade a partir de sua introdução na rede, pois
constroem e assumem a sua Carta particular de cidade educadora, com objectividade e foco nas questões locais. Assim, uma carta
local pode citar, por exemplo, a resolução do trabalho infantil na colheita da cana, uma outra, a resolução da poluição da água dos
seus rios, etc.
A diversidade local em congruência com a unidade de princípios tem apresentado práticas políticas verdadeiramente
interessantes que marcam a diferença histórica entre o ser e o não ser uma cidade educadora.

4
Consultar http://www.n-a-u.org/mural/2008/04/cidades-educadoras.html (último acesso em 9 de Outubro de 2008).

642
Orçamentos Participativos de Crianças e Jovens (OPCJ)
Assistimos actualmente a um período que se caracteriza por uma nova dinâmica, a do debate e a constituição de
experiências por todo o mundo de formas e processos de democracia participativa, “protagonizada por comunidades e grupos
sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela inspiração de contratos sociais
mais inclusivos e de democracia de mais alta intensidade” (Santos, 2003:27). Torna-se cada vez mais urgente que estes grupos
estejam envolvidos, através de diálogos democráticos, de forma a poderem expressar as suas necessidades e formular soluções
para os seus problemas, ou seja, as políticas e as práticas precisam surgir “de baixo para cima”de forma a combater processos de
exclusão cada vez mais intensos.
A democracia participativa ganhou relevo com o Fórum Social Mundial e defende o diálogo e a chamada dos cidadãos a
participar no exercício do poder como forma de promover o desenvolvimento sustentável, a democracia e a cidadania activa.
Assenta na premissa de que os cidadãos devem participar directamente nas decisões políticas e não apenas, como preconiza a
democracia representativa, na escolha e na competência exclusiva dos executivos municipais. O Orçamento Participativo (que
doravante designaremos como OP) é um dos instrumentos da democracia participativa e assume formas diferenciadas. É um
processo de gestão partilhada dos municípios em que participam os órgãos autárquicos eleitos e os munícipes, individualmente
e/ou através de associações da sociedade civil. O OP é também uma estratégia da cidade educadora, onde a população participa
activamente das decisões do governo.
Os OP são uma nova ferramenta através da qual a política tenta reconceptualizar a esfera pública. Implicam várias
mudanças, especialmente o desenvolvimento de uma esfera pública criada a partir da participação directa dos cidadãos na
definição de algumas componentes da agenda local na sua dimensão política. Esta expressão de democracia participativa permite
não só repensar e promover espaços de convivialidade que permitem combater o individualismo que se vive das cidades mas
também incluir “novos” actores no diálogo pela equidade social e cívica através de uma equidade orçamental.
Do ponto de vista da análise sociológica, estes processos conduzem a um conjunto de questionamentos importantes e
significativos, mais ainda quando as crianças, tradicionalmente afastadas das questões políticas e do Estado, participam na
redistribuição dos recursos da cidade, o que traduz uma perspectiva contra-hegemónica da infância.
A participação das crianças nos OP promove e institucionaliza a participação das crianças no quadro político e
simbólico dos direitos da criança; encoraja, ainda, a participação cívica e reconhece o papel e a importância das crianças como
indivíduos e como cidadãos. Com efeito, o OP é considerado um espaço efectivo de prática da cidadania, de participação e de
acompanhamento de políticas públicas.
A participação das crianças nos OP é um processo social inovador que tem como objectivo envolver as crianças em
processos de participação cidadã, nomeadamente em questões relacionadas com o espaço onde vivem.
Na maioria das vezes, estas experiências surgem a partir da escola e do paradigma de uma educação política
transformadora (Gadotti, 2005). Segundo Vieira (2005), na maioria das vezes, a socialização escolar actua, assim, na base de um
princípio de separação não só das crianças, face ao mundo adulto, mas também dos saberes, face à sua aplicação prática. Além
disso, “aprender a ler, a escrever, a acumular conhecimentos através de situações que apenas servem para a aprendizagem
daqueles, conhecimentos sem outro fim senão eles mesmos, fora de qualquer contexto, fora do jogo social imediato, significa
formar uma individualidade abstracta e capaz de abstracção, capaz de aprender de outro modo que não através da prática”
(Queiroz, 1995: 10).
É, sobretudo nos espaços educativos, como as salas de aula, os conselhos de turma, os conselhos de escola, as
assembleias de escola e as associações de estudante, em mediação com os adultos, que o processo se inicia e se desenvolve.
Geralmente inicia-se com a formação de professores e de crianças e a divulgação do que consiste o OP e como se organiza, de
forma a serem criados zonas de diálogo com as crianças e envolvendo-as nos processos da organização dos espaços que ocupam
dentro e fora da escola. Apesar dos processos serem diversificados, na maioria dos OPCJ as crianças apresentam propostas que se
relacionam com a melhoria das condições da escola, bairro e/ou cidade onde vivem.
A experiência da participação das crianças nos OP também nos mostra a possibilidade de levar a cabo o planeamento
urbano com as crianças, em vez de para as crianças. Contudo, e apesar de não serem ainda muito expressivas no panorama
internacional e inclusive no cenário dos OP, são várias as iniciativas que ocorrem em todo o mundo de OPCJ: África do Sul,
Brasil, Canadá, Equador, Espanha, Portugal, Venezuela, entre outros (Ricci, 2003; Vianna, 2003; Cabannes, 2005; Manjavacas
Ruiz, 2007; Dias, 2007; Tomás, 2008).
Os processos de OPCJ caracterizam-se pela sua diversidade, heterogeneidade, modelos e caminhos seguidos. Apesar das
diferenças de contextos, de processos e metodologias seguidas nos OPCJ podemos identificar um princípio comum entre essas
experiências: todos consideraram a importância de incluir as necessidades, as “vozes” e a participação das crianças na vida das
cidades. As potencialidades deste novo cenário são imensas, nomeadamente educar para a cidadania e na cidadania, sobretudo na
vertente de efectiva participação e filiação numa comunidade. Mais ainda, os OPCJ favorecem o fortalecimento da cooperação e
da solidariedade, fomentam a cultura de diálogo intergeracional e ampliam a esfera pública grupos sociais tradicionalmente
excluídos da mesma… as crianças deixam de ser apenas utentes e passam a ser potenciais actores interventivos na e da cidade.

643
O OP é a possibilidade de controlo da parte de investimentos sobre onde ou em que serão aplicados, mas ainda existem
outros aspectos que precisam ser considerados. Um deles é a discussão minuciosa, porque rigorosamente democrática, da forma
de aplicação dos investimentos e também do seu controlo.

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua - Comissão Local de Maringá (MNMMR)


Neste ponto pretendemos caracterizar algumas práticas participativas do Movimento Nacional de Meninos e Meninas e
Rua (doravante designado MNMMR), que tem como objectivo principal a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes no
Brasil. É um movimento social e existe nacionalmente desde 1985, compõe-se de militantes e educadores não remunerados. Da
sua metodologia faz parte a Roda da Conversa e de suas estratégias, as actividades lúdicas. A base de suas lutas é o Estatuto da
Criança e do Adolescente, lei 8.069, que regulamenta a Constituição Brasileira (art. 227).
O MNMMR junto com o Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente-
Universidade Estadual de Maringá (PCA/UEM) actuavam periodicamente aos sábados num bairro da referida cidade brasileira
com crianças, oferecendo-lhes a oportunidade de brincarem de forma qualificada, ao mesmo tempo ensinando-as sobre seus
direitos, e ainda sobre a importância da consciência e da organização política. A doação de fundo a partir de um mecenas espanhol
proporcionou a compra de brinquedos para as crianças. A decisão do que comprar foi negociada com as crianças assim como o
processo de guardar e manter os brinquedos.
Um outro exemplo importante de apresentar tem a ver com a própria reivindicação das crianças e jovens, em 2002 foi
criada em Maringá a Secretaria da Juventude. Para determinar quais seriam as acções prioritárias da Secretaria, com a intenção de
ser representativa dos anseios e necessidades da população, esta abriu um edital para grupos que quisessem defender suas
propostas para serem assumidas no orçamento do município para o ano seguinte. Deviam ser apresentadas por escrito e depois
defendidas na Assembleia-Geral. Os educadores do MNMMR comunicaram às crianças e jovens que frequentavam o Movimento
e viviam na rua, da existência desse edital.
Alguns meninos, precisamente cinco deles que já vinham tendo um contacto de mais de um ano com os educadores,
passaram a discutir finalmente sobre a possibilidade concreta de deixar de viver na rua. Decidiram fazer um projecto de uma casa
para jovens. Tiveram que aprender o que era um projecto, objectivos, orçamento, etc. Foi um intenso processo de aprendizagem,
porque plenamente significativa, aprendiam e utilizavam os seus conhecimentos para melhorar as suas vidas, movidos pela
esperança concreta da possibilidade próxima. Sempre acompanhados de educadores do Movimento, mas protagonizando os seus
actos, os meninos defenderam sua proposta publicamente na Assembleia. O total de 200 propostas foi apresentado em pequenos
grupos, até que se chegou a hora da votação. Na primeira, o mesmo ficou entre os doze finalistas.
Cada grupo dos doze grupos fez a defesa novamente para hierarquizar a ordem de prioridades no orçamento da
Secretaria e, em nova votação, aplaudidos de pé, por unanimidade, os meninos convenceram a Assembleia de que sua causa devia
ser a primeira a ser atendida.
O espaço institucionalizado e o não institucionalizado devem reconhecer-se reciprocamente. As redes de acção têm-se
mostrado fundamentais para que a pessoa seja e se sinta incluída na cidade. E aí os adultos cumprem um papel preponderante na
defesa das crianças. Não existem crianças nos espaços formais de decisão, portanto, em alguns lugares, os adultos devem lutar por
elas e sempre que possível com elas. O MNMMR com essa convicção conquistou e ocupa um lugar oficialmente no Conselho
Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que é o órgão institucionalizado que delibera sobre as políticas
para a infância e adolescência em cada município e determina a quantidade de dinheiro a que se destina a cada projecto, além de
fiscalizar as entidades governamentais e não governamentais que trabalham com crianças. Assim, além de actuar com crianças
nos Núcleos de Base, onde sistematicamente se reúnem para realizar actividades lúdicas, aprender sobre o Estatuto da Criança e
do Adolescente e comentar/analisar a problemática do mundo em que vivemos, os educadores adultos (e em algumas situações os
jovens) levam ao Conselho as reivindicações que foram estudadas com os meninos/as nos seus encontros. Para que esses
encontros não redundem em posições somente pessimistas ou do senso comum, faz-se uso do apoio teórico-metodológico do
PCA, Programa já citado da Universidade, que actua em parceria e tem membros que compõe o Movimento. Existem vários
materiais teóricos (artigos, livros, monografias, dissertações) produzidos com/ a partir da experiência ininterrupta que o
Movimento e o PCA realizam desde 1997.
Esses dois parceiros, no intuito de ocupar outros pontos da rede de acção para a infância na cidade, lançaram um
candidato e fazendo campanha conseguiram eleger um educador do Movimento como Conselheiro Tutelar. Esse Conselho,
diferente do outro, é o “amigo da criança”, ou seja, deve ser o primeiro a ser accionado pela comunidade ou autoridades quando
uma criança precisa de protecção. Ali se têm a ideia exacta do número e tipo de denúncias, além do conhecimento in locu de
como são atendidas as crianças por esses conselheiros, que só por terem o título, não garantem um trabalho isento de críticas.
O MNMMR trabalha pela defesa de direitos infanto-juvenis, procurando parcerias com movimentos sociais
reconhecidos oficialmente ou não, e procura ocupar espaços institucionais que compõem a rede decisória e de atenção à infância.
Nunca o faz sem ter grupos de base constituídos pela população directamente interessada que são crianças e jovens.

644
A rede de serviços é fundamental, o Movimento conhecer e participar dela é concretamente exercer poder a favor dos
interessados - essa é a actuação em nome de toda a população infanto-juvenil (votam-se leis, decidem-se orçamentos, fazem-se
denúncias, etc.) e a acção dos adultos em ouvir as crianças e jovens na intenção constantemente educativa se faz imprescindível –
essa é a acção particularizada, um a um, menos abrangente em termos numéricos, mas contundente na interferência nos rumos da
vida de um ou outro cidadão, que acaba adquirindo consciência de que efectivamente o é.
Um exemplo do primeiro espaço de acção foi a decisão de CMDCA em 2008, de acusar judicialmente o prefeito da
cidade por negligência, já que não atendia a solicitação de pagar o serviço médico de internamento a oito meninos que viviam na
rua em situação de dependência química. Um dia antes do facto se efectivar, o Conselho teve a notícia de que haviam sido
providenciadas a clínica e as condições exigidas pelo Conselho. Uma ilustração do que pode ser a consequência do segundo tipo
de acção, o trabalho directo com as crianças, foi quando um grupo de crianças e jovens manifestou a vontade de constituir um
grupo de teatro com o objectivo de discutir e dar a conhecer os direitos das crianças à comunidade.

Reflexividades emergentes
A educação do cidadão ocorre nos espaços que frequenta e onde se interrelaciona. Assim, se os adultos, as instituições,
as cidades se propõem a ser educadoras, amigas das crianças, devem promover muito mais que consultas, reuniões anuais e/ou
votos massificados. É necessário que a participação infantil não procure replicar as instituições adultas de participação política
municipal; deve antes descobrir, através do recurso à imaginação interventiva, modalidades de participação compatíveis com as
culturas infantis, funcionando como formas de comunicação atentas aos modos de expressão das crianças (como por exemplo, a
importância do desenho, do cartaz e da música) e canais de diálogo com o poder constituído, seja numa perspectiva assertiva de
reivindicação, seja numa perspectiva de acompanhamento e interlocução directa (Sarmento et al., 2005).
Devem antes, promover uma cultura da participação que precisa ser aprendida e incorporada pelas crianças nos espaços
públicos. Inclusive nos espaços que são pagos, mas de frequência pública, priorizando o valor da pessoa ao valor da ordem
estabelecida. Estes projectos, programas e acções que visam promover a participação das crianças na cidade conferem, assim “à
vida urbana uma dimensão de vivido através do qual se revelam os sentimentos de pertença, as identidades” (Lopes et al, 2003:
124).
É, ainda fundamental que haja o reconhecimento da diferença da infância, como grupo geracional com especificidades,
para que aconteça uma urgente transformação ao nível das políticas sociais, educativas, etc., que se destinam às crianças.
Articulando desta forma a integração social e a intensificação democrática pela participação das mesmas.
Para atender a criança nesse espaço que é a cidade a partir de seus desejos e necessidades e em conformidade com todas
os seres que habitam a cidade, é preciso entender a criança como cidadã, como pedestre, como estudante, como um ser brincante,
como um aprendiz: aprende também fora da escola, em qualquer tempo e lugar, observando, sugerindo, opinando, vivenciando
experiências. No fundo, será necessário considerar a cidade como espaço que deve ser conhecido pelos seus habitantes, como um
espaço para a construção de novas identidades e finalmente, como um espaço para o surgimento de novas formas de participação
(Poveda, 2007) como as que foram apresentadas, por exemplo, neste ensaio, mas que aqui não se esgotam.
A maioria das cidades estão simplesmente organizadas pelos e para os adultos. A proposta das cidades educadoras é
interessante porque parte de um entendimento amplo de cidade:
"A cidade será educadora quando reconheça, exercite e desenvolva, além de suas funções tradicionais (económica, social,
política e de prestação de serviços) uma função educadora, quando assuma a intencionalidade e responsabilidade cujo
objectivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos seus habitantes, começando pelas crianças e pelos jovens.”
(Fragmento da Introdução da Carta das Cidades Educadoras, Declaração de Barcelona, 1990).

Priorizar a cidade para as crianças significa necessariamente organizar os tempos dos adultos para que eles os possam
acompanhar e dar-lhes a atenção devida. Então, conjugar tempos escolares com tempos de trabalho de pais e mães ou outro adulto
responsável, é imprescindível.
O século XX para os países ocidentais foi um tempo de reconhecimento do valor da criança, através da conquista na lei
e nas políticas nacionais, dos direitos de protecção, provisão e participação das crianças. No entanto, as normas jurídicas não se
transformaram em práticas sociais e os direitos da criança continuam a ser pautados por um alto consenso e uma baixa
intensidade. Será necessário que o século XXI seja o tempo de assumir que toda criança tem direito a uma infância de qualidade e
essa só pode existir para todos se as políticas públicas assumirem como princípio e obrigação, a propulsão da vida da criança, ou
seja, além da sua condição biológica, a sua cultura, além do tempo escolar, o não escolar, além da casa, a trajectória livre na
cidade. São conceitos ampliados de responsabilidade do poder público, de tempos e espaços de atenção pública (institucionais e
não institucionais) à infância, de formas democráticas de ocupação da cidade. A cidade de hoje deve ser então,
imprescindivelmente, segura, para que as pessoas de todas as gerações ocupem seus espaços e instigadora, convidativa às
oportunidades de participação em diversos âmbitos.

645
Já temos alguns exemplos de espaços públicos para crianças e jovens que trazem propostas de actividades, materiais, o
lugar onde foram instalados, o gasto realizado, tudo decidido por adultos, provavelmente bem intencionados, mas equivocados no
processo, uma vez que não ouvem os interessados. Entre tantos aspectos que resultam pouco interessantes para as crianças,
podemos citar o de que são concebidos e construídos com pouquíssimas opções de liberdade de movimento dentro da cidade. A
mentalidade institucionalizada, adulta, de lugares fixos para cada coisa permeia o que se oferece a essa população e, na nossa
opinião, um erro.
Gonzaguinha cantou: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, educação e arte, a gente quer sair para qualquer
parte”. As crianças querem ir para qualquer parte, como diz o cantor, exactamente como queremos nós. Não podem mais ter
somente opção de desporto, ou só de aulas de inglês…as crianças, jovens, adultos, todos precisamos de opções de educação
ampliada, formação constante pela oferta ininterrupta de envolvimentos nos âmbitos da história, da arte, do desporto, da cultura
em geral, da filosofia, do artesanato, da brincadeira, do espaço só para estar, internet, grupos de poesia, escritores, dança, política
e ciência.
Além disso, os espaços onde acontecem as actividades devem estar situados nos bairros e não apenas nas áreas centrais.
Uma cidade não democrática é a que discrimina o centro e a periferia e exclui os cidadãos dos processos de decisão.
A melhor cidade relembramos é a que é melhor para todas as gerações e as faz conviver. Para isso há de haver lugar
para a participação decisória dos espaços sociais, que faz o registro da escrita geográfica das trajectórias dos sujeitos, começando
pelas crianças. O poder público deve assumir esse compromisso junto com os movimentos sociais, com as instituições públicas e
privadas, e os cidadãos em geral.

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Reflexões Metodológicas Acerca De Uma Pesquisa Com Crianças Num Contexto


Educativo Pré-Escolar
Kátia Adair Agostinho
Universidade do Minho
[email protected]

Resumo: O presente trabalho é resultado das reflexões, estudos e análises acerca da metodologia da pesquisa com crianças nos aspectos teóricos e
metodológicos, fruto de observações com orientações de um estudo de caso etnográfico.
É resultado de uma investigação de caráter exploratório realizada num contexto educativo pré-escolar em Portugal, durante três meses, tendo
como objeto central de análise da investigação as formas de participação infantil em contextos educativos de educação pré-escolar pública, de
meio popular, envolvendo as relações sociais estabelecidas pelas crianças e adultos.
O trabalho ancora-se no paradigma da infância que compreende as crianças como atores sociais sujeitos de direitos, e a instituição educativa como
um espaço de contraposição à exclusão social e de produção de uma sociedade de afirmação de direitos sociais; sustenta a indispensabilidade da
participação infantil como uma questão social, política e científica, fortalecendo a defesa da cidadania ativa da infância, pretendendo-se contribuir
para a construção, implementação e efetivação de práticas e políticas participativas.
Nele discorreremos sobre a complexidade que se apresentou no campo empírico à pesquisadora em posicionar-se no contexto educativo, nas
relações que estabeleceu com as crianças, nas relações estabelecidas com os adultos e ainda nas relações que a posicionaram entre estes dois
sujeitos de pesquisa.
Palavra-chave: pesquisa com crianças, metodologia, participação, infância, criança, Educação Infantil.

O presente trabalho é resultado de uma investigação de caráter exploratório realizada num contexto educativo pré-
escolar em Portugal, durante três meses de 2007. Nele apresentamos reflexões acerca da metodologia da pesquisa, especialmente
discorrendo sobre os aspectos teóricos e práticos. Ancora-se no paradigma da infância que compreende as crianças como atores
sociais sujeitos de direitos e sustenta a indispensabilidade da participação infantil como uma questão social, política e científica.
Fortalece a defesa da cidadania ativa da infância, pretendendo contribuir para a construção, implementação e efetivação de
práticas e políticas participativas.
Compreende-se a etapa exploratória como um exercício de problematização, rigor análitico e inventividade, em que se
podem descortinar nos momentos preliminares da elaboração do conhecimento científico importantes contributos, conforme
Madureira (2007); são os momentos nos quais o objeto de investigação se circunscreve provisoriamente e o termo “exploratório”
é atenta e cuidadosamente refletido, evitando-se assim o deslize de perceber o estudo nesse nível como anunciador de todas as
problemáticas possíveis. Elas se apresentarão em etapa posterior, na qual se aprofundará a problemática da investigação.
Tampouco se estabelecerá na etapa exploratória uma relação de uso, pois nela os sujeitos envolvidos, crianças e adultos, são
compreendidos como sujeitos de pesquisa, valiosos no diálogo de negociação de sentidos e significados que se estabelecem numa
relação de densos confrontos e respeito mútuo.
Fernandes e Tomas (2008, p. 2) apresentam os desafios metodológicos nas pesquisas com crianças em dois planos: o
teórico, no qual se sustenta “a participação das crianças enquanto princípio para a consolidação da sua imagem enquanto sujeito
activo de direitos, actores sociais com espaço na sociedade”; e o metodológico, em que se deve ultrapassar o legado
epistemológico do deficit da racionalidade e competência das crianças, considerando-as “enquanto objecto de investigação

647
autónomo e independente, enquanto sujeito de um processo de pesquisa, onde a sua voz e acção social são susceptíveis de serem
analisadas a partir dela mesma”.
A investigação tem como objecto central de análise as formas de participação infantil em contextos educativos de
educação pré-escolar pública, de meio popular, envolvendo as relações sociais estabelecidas pelas crianças e adultos. A
construção e aprofundamento de aportes teóricos capazes de qualificar o entendimento sobre as formas de participação infantil
nesses contextos produz a necessidade teórica e política de gerar um conjunto de categorias que forneçam novos tipos de
questionamentos críticos e de pesquisa e indicativos para a prática pedagógica de afirmação de uma educação para a cidadania
ativa.
A defesa da participação infantil nos contextos educativos alicerça-se nos princípios que reconhecem as crianças como
atores sociais, sujeitos de direitos, e a instituição educativa como um espaço de contraposição à exclusão social e de produção de
uma sociedade de afirmação de direitos. Os estudos sobre os processos sociais que constituem as práticas educativas na pré-escola
exigem ainda um maior conhecimento sobre a própria constituição da infância nesses contextos e uma atenção particular às
relações entre adultos e crianças – relações intergeracionais e, neste sentido, interculturais.
A educação para a cidadania ativa encontra na intersecção dos planos pedagógico-organizacional, simbólico e político a
possibilidade da escola, esse espaço limitado, porém insubstituível, contribuir para a construção de uma sociedade inclusiva. É
nesse sentido que se faz necessário construir e aprofundar aportes teóricos capazes de qualificar o entendimento sobre as formas
de participação infantil.
O desafio que tal empreitada coloca a todos nós, profissionais preocupados com a educação da infância, encontra-se
justamente em conhecer a criança para além daquilo que até hoje nos foi indicado exclusivamente pela Psicologia do
Desenvolvimento, pois, como afirma Sarmento (2004), do ponto de vista socioeducativo, ainda sabemos muito pouco das
gerações mais jovens. Segundo o referido autor, a inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância é
uma tarefa teórica e epistemológica que, em boa medida, se encontra por realizar. Constitui, desse modo, um desafio científico ao
qual não podem fugir todos quantos se dedicam aos estudos da criança e trabalham no sentido de construir a especificidade dessa
etapa da educação básica brasileira.
Coloca-se portanto como fundamental a intensificação da interlocução com outras áreas, tais como a Antropologia e a
Sociologia da Infância, e ainda a História, a Filosofia e a Política. É um caminho para chegar a uma compreensão mais abrangente
da atuação da educação infantil na creche e pré-escola a partir do cruzamento entre diversas áreas, buscando conhecer “suas
múltiplas facetas e determinações”, já apontado por Rocha (1999), sabendo da “necessidade de intensificar a
multidisciplinariedade dos estudos da infância” (PROUT, 2004).
Temos considerado que a identidade da infância é irredutível ao mundo dos adultos. Ademais, entendemos que sua
identidade plural e sua autonomia de ação nos permitem falar de crianças como atores sociais (FERREIRA, 2004). As crianças
não se limitam a reproduzir linearmente a cultura adulta, elas o fazem de modo interpretativo, pois não só a interiorizam como se
tornam parte dela e contribuem para a reprodução cultural nas relações com adultos e entre seus pares, reforçando assim a
concepção de desenvolvimento social como um complexo produtivo-reprodutivo (CORSARO, 2002).
Nesse sentido, é imperioso construir e aprofundar aportes teóricos capazes de qualificar o entendimento sobre as formas
de participação infantil como necessidade teórica e política, a fim de gerar um conjunto de categorias que não somente forneçam
novos tipos de questionamentos críticos e de pesquisa, mas que também indiquem aos profissionais que trabalham diretamente
com as crianças, estratégias e modos de atuação alternativos. Defende-se, como Rocha (2001, p. 29), que:
A centralidade de uma ciência pedagógica se põe como forma de captar o caráter dinâmico das práticas educativas, como
práticas sociais que são e como possibilidade de dar conta de sua dimensão praxiológica, que têm, para além da descrição e
da explicação, uma preocupação indicativa e uma produção de saberes caracterizados como instrumentos de ação.

Para esta atividade de estudo, o caminho metodológico escolhido foi o de um estudo de caso etnográfico, considerado
apropriado à interpretação da ação nos contextos educativos. Esse tipo de investigação tem, para Sarmento (2003, p. 152), “uma
perspectiva interpretativa e crítica e que se centra nos fenômenos simbólicos e culturais das dinâmicas de acção no contexto
organizacional da escola”. Salienta-se que uma pesquisa com orientação etnográfica incorpora os pressupostos que a constituem,
assim considera-se que este estudo localiza-se na área da Educação, mas se utiliza de pressupostos teórico-metodológicos das
Ciências Sociais para o conhecimento de uma realidade.
Pedro Silva (2003, p. 127) entende a etnografia genericamente como um método de investigação “assente no contacto
directo e prolongado com os actores sociais cuja interação constitui o objeto de estudo. [...] preocupado em entender os sentidos
que os sujeitos conferem à sua própria acção, enquadrando aquele sentido e esta acção nas suas condições sociais de existência”.
Geertz (1989) acresce ainda como elementos constituídores dos procedimentos etnográficos a descrição densa da realidade e das
relações observadas e a utilização de instrumento de recolha de dados que permitam a captação mais fidedigna possível das
vivências dos atores pesquisados (observação, registro de campo, fotografia, vídeo-gravação, entrevista).
As aproximações com a prática dessa metodologia de pesquisa foram antecedidas de pensamentos, reflexões e estudos
sobre o assunto. Fui documentando os dados como exercício de aprofundamento/explicitação dos desafios que se apresentavam –

648
naquele momento apenas antevia no horizonte traços ténues do campo em que me introduziria como
adulta/mulher/pesquisadora/professora que traz no corpo suas marcas históricas, do compromisso político de buscar, no encontro
com as crianças, “pistas” para uma prática pedagógica respeitosa de sua infância.
Os questionamentos acerca de que medida a biografia da etnógrafa influencia o estudo também se fizeram presentes; a
esse respeito, Pia Christensen (2005, p. XVII) adverte que “a reflexividade por parte do etnógrafo é particularmente crucial no
momento de entrada no campo de investigação e no reconhecimento da importância de trabalhar todos os preconceitos trazidos
para o estudo”, para realizar o necessário movimento de aproximação/distanciamento/reconhecimento. Para Pinto e Sarmento
(1997, p. 26),
[…] para além da técnica, o sentido geral da reflexibilidade investigativa constitui um princípio metodológico central para
que o investigador adulto não projete o seu olhar sobre as crianças, colhendo junto delas apenas aquilo que é o reflexo
conjunto dos seus próprios preconceitos e representações. Não há olhares inocentes, nem ciência construída a partir de
ausência de concepções pré-estruturadas, valores e ideologias. O que se encontra aqui em causa é, por isso, uma atitude
investigativa, que, sendo comum às ciências sociais, é profundamente teorizada no campo da Antropologia Cultural [...], de
constante confronto do investigador consigo próprio e com a radical alteridade do outro, que constitui o objeto de
investigação. A autonomia conceptual supõe o descentramento do olhar do adulto como uma condição de percepção das
crianças e inteligibilidade da infância.

Outra importante reflexão que se apresentou no estudo foi a de considerar se os motivos que o mobilizavam, embora
forjados num coletivo interessado no melhor interesse das crianças, eram análogos aos das crianças com quem nos encontramos.
As discussões acerca do melhor interesse das crianças1 tem aumentado, mostrando-nos que nem sempre o que os adultos julgam
ser o melhor para elas é o que elas mesmas pensam ou desejam. Para Roberts (2005, p. 257),
Embora seja provável que a investigação sobre crianças, que inclui crianças e jovens fortaleça, consideravelmente, alguns
aspectos da investigação, não podemos tomar como certo que a participação na investigação e o desenvolvimento de
métodos investigativos cada vez mais sofisticados, de modo a facilitar a participação das crianças seja necessariamente
sempre pelos seus interesses. O que serve uma agenda de investigação nem sempre cumpre a agenda política ou prática ou,
até, os interesses dos participantes.

Foi feito um grande esforço de avivar nossa sensibilidade para, no encontro com o outro – neste caso, as crianças –,
construir caminhos que verdadeiramente revelassem suas formas próprias de estar e perceber o mundo, procurando ser respeitosa
com elas, vencendo o desafio de práticas colonizadoras, adultocêntricas, trazendo à luz seus jeitos infantis de ser criança no
contexto socioeducativo. Procurou-se reconhecer as culturas da infância como modo específico, geracionalmente construído, de
interpretação e de representação do mundo, considerando a alteridade da infância e tendo em conta o conjunto de aspectos que a
distinguem do outro-adulto.
Esse processo proposto para conhecer as crianças não é uma caminhada simples e sem percalços. Por um lado, há que
assegurar um referencial teórico que ilumine a estrada, que seja Faróis de Análise (Azanha, 1992); por outro, exige conciliar a
necessária vigilância epistemológica com a sensibilidade, distanciamento e proximidade, na perspectiva de construção de uma
visão mais equânime para todos. De acordo com o referido autor,
A potencialidade reveladora dos objetos da cotidianidade precisa ser teoricamente ativada para que as possíveis revelações
ocorram. De nada adiantaria simplesmente postular a fecundidade do estudo da vida cotidiana para o conhecimento do
homem sem indicar como é possível obter esse conhecimento a partir da cotidianidade. Para isso, é indispensável a
formulação de teorias que indiquem seletivamente o que e como descrever e analisar aquilo que, sem elas, seria caos factual.
(AZANHA,1992, p. 66).

Outra importante preocupação foram as questões que têm relação com a ética nas pesquisas com crianças, elemento
particularmente importante no desenvolvimento de investigação junto a grupos historicamente sem poder, como é
indiscutivelmente o grupo geracional da infância; de acordo com Soares, (2006) a ética nas pesquisas com crianças tem como
base sua concepção como um grupo social com direitos, pautada por um equilíbrio entre respeito, autonomia e proteção.
Ao conduzir investigações com crianças, é preciso considerar muitos problemas teóricos, metodológicos e éticos que
surgem; para Claire O’Kane (2005, p.143) é necessário verificar,
se as metodologias existentes e as posições éticas, maioritariamente perspectivadas para os adultos, são apropriadas quando
o participante da investigação é uma criança (SINCLAIR, 1996; SCOTT, capítulo 5), e ter atenção ao facto de que algumas
questões se apresentam separadamente, ou mais fortemente, quando os participantes são crianças. Em parte, a diferença
deve-se ao conhecimento e à experiência da criança do mundo ser diferente relativamente à dos adultos e, igualmente, em
parte devido às formas de comunicação que utilizam (THOMAS e O’KANE, 1999a). Porém, em último lugar, o maior

1
Christensen e Prout, 2002; Punch, 2002; Hanson, Nieuwenhuys e Reynolds, 2006.

649
desafio para os investigadores que trabalham com crianças são as disparidades de poder e estatuto entre adultos e crianças
(MORROW e RICHARDS 1996).

Ao abordarem a ética nas pesquisas com crianças, Pia Christesen e Alan Prout (2002) defendem a compreensão de uma
simetria ética na pesquisa entre crianças e adultos, baseando-se no entendimento da criança como ator social e participante social,
pontuando que o relacionamento ético entre pesquisador e informante é o mesmo, sejam adultos ou crianças. Elencam então as
implicações disso: o pesquisador emprega os mesmos princípios éticos nas pesquisas com crianças ou adultos; as considerações
de direito e ética em relação ao adulto no processo da pesquisa têm equivalentes para as crianças; o tratamento simétrico de
crianças em pesquisas significa que qualquer diferença entre pesquisas com crianças e com adultos deveria resultar da situação
concreta das crianças, mais do que ser assumida a priori. Apontam ainda a necessidade de diálogos complementares para
aprofundar a compreensão das questões éticas, especialmente a intensificação do diálogo entre a comunidade dos pesquisadores
da infância e entre eles e as crianças participantes das pesquisas.
Apresenta-se aqui a contribuição de Gallagher e Gallagher (2005), inspirados nos trabalhos de Alderson (1995) e
Alderson e Morrow (2004), em que relacionam tópicos éticos a serem considerados nas pesquisas com crianças que devem ser
cuidados pelo pesquisador ao longo de todo o processo da investigação: objetivos da pesquisa, custos e benefícios, privacidade e
confidencialidade, seleção dos participantes na pesquisa, fundos (apoios), análise e revisão dos objetivos e métodos da pesquisa,
informação, consentimento, disseminação e impacto nas crianças. Esses tópicos, apresentados aqui de forma concisa, têm
desdobramentos e aprofundamentos no trabalho referenciado.
As complexas questões do poder no desenvolvimento de investigação com crianças são tratadas por Pia Christensen2,
que sugere uma alternativa à tendência convencional que considera o adulto como o detentor de todo o poder no processo de
investigação; concordo com a autora, vivi situações em que esse mesmo poder estava do “outro lado”: as crianças me impunham
tarefas, como compartilhar ações com elas e/ou responder às suas perguntas enquanto estavam em curso atividades dirigidas pela
educadora – mexiam nos meus brincos, colares, roupas …, ou ainda pegavam meus pertences sem pedir licença, muitas vezes
numa atitude de aberto confronto, contrariando-me.
Exemplo disso foi a disputa pelo caderno em que realizei as anotações em campo, que cada vez mais foi se tornando
objeto do desejo das crianças; desejava compartilhá-lo, como estratégia de aproximação das rotinas infantis, mas, em certos
momentos, ele foi objeto de disputas, ocasionando barulho e desentendimentos e retirando a atenção do que estava sendo proposto
pela professora; noutros momentos, pretendia seguir nos meus registros e diante da insistência das crianças me punha em dúvida
sobre o modo de me posicionar.
A autora supracitada, que denomina o papel do investigador com crianças como o de outro adulto, sintetiza que a
perspectiva teórica que se defende para compreender a infância “deve acompanhar a prática da investigação; é importante atender
e adaptarmo-nos às culturas de comunicação das crianças; questionar os pensamentos esteriotipados e essencialistas acerca das
crianças na pesquisa, através de uma prática dialógica e reflexiva”.
É importante compreender o lugar desse outro adulto um adulto de outro modo no contexto educativo sem deixar de
assumir o estatuto de adulto. Um adulto que conscientemente assume o papel de quem deseja e cuida que suas intervenções não
sejam diretivas nem condutoras, que evita o adultocentrismo histórico na relação com as crianças e que não deseja controlar nem
conduzir; assume sua identidade adulta, não a escamoteia nem pretende fazê-lo, como se possível fosse.
Neste estudo tomou-se uma atitude de franca intenção de aprender deles/as seus modos de ser/estar criança no jardim,
mas não evitamos com isto alguns deslizes em que dirigimos as atividades e/ou nelas interviemos sem querer e contrariando os
objetivos de pesquisa. O fato de termos refletido sobre eles não elimina as chances de que alguns equívocos venham a acontecer
ou de que futuras contradições possam nos visitar, pois podemos incorrer em erros de mistura de papéis diante das contradições
que a realidade nos apresenta.
Os constrangimentos discursivo-textuais nos contextos educativos também foram objeto de nossas reflexões. Em
“Quotidianos Densos…”, de Sarmento (2003), encontram-se importantes contribuições para enfrentar essa problemática: o autor
defende que a construção desse discurso obriga a um procedimento literário cuja natureza está exactamente em constituir um
discurso que é simultaneamente polifónico, plausível e instituído de reflexividade metodológica, e, através deste discurso
científico, introduzir a voz do outro como o outro do discurso que se procura interpretar e partilhar intersubjetivamente.
Defende assim que a narrativa dos cotidianos educativos é uma descrição densa, em que é necessário uma “ciência
densa das singularidades, onde perpassa a espessura da vida quotidiana”, em que é necessário destacar do aparente caos da vida
cotidiana os elementos definidores de sentidos partilhados, configuradores de uma “ordem” precária e plural para os atores
intervenientes, compreendendo a interpretação e nomeação dos factos educativos como luta política que se exerce em torno do
simbólico, e o trabalho analítico e interpretativo como um componente dessa relação conflitual (Sarmento, 2003).
A escolha do locus da pesquisa foi feita com o apoio do orientador, conhecido da educadora. O indicativo para a escolha
desse campo era o fato de que essa educadora, na prática pedagógica, tinha como pressuposto para a organização de suas

2
Em palestra proferida e material distribuído no Ciclo de Conferências da Sociologia da Infância 2006-2007 no IEC_UM em 25/01/2007.

650
estratégias educativas a participação das crianças. Pelo fato de o orientador e a educadora serem conhecidos, a negociação para a
entrada no campo de pesquisa foi facilitada pelo elemento de familiariedade. Essa entrada no campo de pesquisa é crucial para o
andamento do trabalho: nos contextos educativos, ela depende do desenvolvimento da confiança entre os profissionais adultos, da
apreensão do funcionamento da estrutura social, da natureza das relações interpessoais e rotinas diárias do local, da aceitação do
pesquisador pela administração, profissionais, crianças e familiares.
Um percurso de trem, metrô, ônibus e caminhada me levou a mergulhar no cotidiano educativo. Os primeiros passos
foram indecisos, como os de alguém que procura pela primeira vez um endereço. Um muro, algumas grades e um portão
anunciaram a escola de dois pisos, cores neutras, concreto; algumas imagens sugeriam espaço de infância: criança, flores e
animais coloridos; pátio de chão batido e esparsas árvores; bicicletas e patinetes na área coberta esperavam quem os colocasse em
movimento. Fui recebida na porta e adentrei meu campo de pesquisa, aqui nomeado de Jardim3, para meu primeiro contacto
pessoal4 com a educadora.
Sou anunciada à educadora, que até então era uma voz para mim: a voz se materializa quando a mulher que segue em minha
direção sorri e se apresenta com olhar atento por detrás dos óculos. Entro na sala convidada pela educadora e lá encontro
mais duas adultas, as auxiliares e muitas crianças que na sua maioria ficam curiosas com a minha presença, logo, muitas
delas se acercam de mim e querem saber meu nome, alguns têm pessoas conhecidas ou parentes com meu nome, outros
fazem novas perguntas ou/e comentários: de quem sou mãe? Sou professora? Que brincos bonitos! Confidenciam detalhes
de suas vidas: – Ela é minha namorada! – Ele é meu namorado! (Registro de campo:1/10/2008)

O presente estudo realizou-se durante três meses num grupo de 21 crianças de 4 a 6 anos, 15 meninos e 6 meninas,
filhos e filhas de famílias advindas de classes populares: 12 crianças que já faziam parte do grupo desde o ano anterior, 5 vindos
de outras realidades educativas e 4 novos em contextos educativos. Havia 5 crianças com 4 anos, 16 com 5 anos e 1 com 6 anos, 3
profissionais, 1 educadora, com 30 anos de profissão e formação em nível de mestrado, 2 auxiliares de acção educativa com
formação em nível básico5, era a única turma de Educação Infantil da escola, além de dez outras classes do 1º ao 4º ano e outra
ainda com necessidades educativas profundas. A instituição, pública e localizada na periferia da cidade, funciona entre as 9h e as
15h30, mas as crianças podem ficar até às 17h, caso a família necessite, mediante pagamento de uma taxa extra.
Assumiu-se como estratégia de pesquisa que a participação de adultos e crianças seria voluntária e que, em qualquer
momento do processo, teriam a liberdade de recusar-se a participar; escolhemos logo na entrada no campo de pesquisa o
consentimento informado como estratégia para a exposição dos objetivos e da dinâmica da investigação. Consideramo-lo como
um momento importante para informar os sujeitos envolvidos, mas entende-se que não se esgotam nele todas as possibilidades de
compreensão e clareza quanto a um processo em vias de construção.
O consentimento informado foi um processo bastante difícil em muitos níveis: ao tentar explicitar as noções de
participação (tema central da pesquisa) e pesquisa com crianças, bastante abstractas e difíceis de abordar, enfrentamos o desafio
de elaborar um discurso que adultos e crianças compreendessem. Compreendemos nesse processo que se faz necessário um tempo
maior de contato prévio com os adultos (professores e auxiliares), para expor mais claramente o papel e a dinâmica das ações do
pesquisador no campo e ainda para formular um planejamento coletivo para a entrada do investigador no grupo, compartilhando
detalhes do modo como pretende fazer a pesquisa e recebendo a devida autorização para ter tempo e espaço de realizá-la. Esse
consentimento tem impacto em todos os outros direitos, e a competência das crianças poderem dar o seu consentimento depende
em grande parte da possibilidade que tiverem em falar e fazer-se ouvir relativamente a todo o processo, Alderson (1995).
Nosso interesse foi realizar uma pesquisa que não acusativa na apreciação das práticas pedagógicas, mas também não se
pretendia que fosse conivente ou omissa, nos desafiando a construir um saber transaccionável, ante as interpelações da educadora
acerca da nossa opinião sobre a sua prática junto às crianças. Por isso, foi necessário traçar um itinerário permitindo que a
interpretação do pesquisador pudesse funcionar na comunicação intersubjectiva com os atores, sem se constituir na “(única)
interpretação válida, dotada do peso esmagador do discurso legitimado pela ciência, nem tampouco se apresentar como uma
simplista reedição das percepções dos actores da cena educativa” (SARMENTO, 2003, p. 92).
O foco nas interações intergeracionais e intrageracionais posicionou nosso lugar no Jardim entre adultos e crianças: uma
adulta que não teve as mesmas funções que são exercidas comumente pelos outros adultos que frequentam a instituição, que
deliberadamente busca aprender os modos de ser criança, cuidando para não intervir em qualquer atividade junto às crianças, para
não dirigi-las, não advogar em conflitos, não resolver suas questões. Optamos por colocar-nos na postura de espera e curiosidade
sobre as suas respostas, esperando conter o adultocentrismo que também vive em nós.
Para a observação em sala, de forma que a presença do pesquisador em campo seja a mais respeitosa possível,
influenciando minimamente no contexto e tendo a melhor visão dos acontecimentos, escolhi um “cantinho” em que não ficava em

3
Utilizarei o nome que recebe do sistema educacional do qual faz parte.
4
Anteriormente me comuniquei com a educadora por telefone e e-mail, tendo em vista ela morar e trabalhar noutra cidade.
5
As terminologias da profissão (educadora e auxiliar de acção educativa) e os níveis de formação aqui apresentados seguem o estipulado no território em que a
pesquisa foi realizada.

651
destaque. Mas mesmo preferindo essa área periférica, nossa presença em alguns momentos causou a perturbação da rotina
pedagógica.
O lugar de participante nas culturas locais do contexto de investigação foi sendo definido e produzido coletiva e
processualmente de forma sutil pelo pesquisador e os participantes; os convites da educadora e das crianças para participar das
atividades ou por parte das crianças para participar das brincadeiras demonstram rituais transitórios6 em que fui ascendendo as
suas rotinas. Adultos e crianças foram nos envolvendo nas suas atividades, e assim fui experenciando o sentimento de fazer parte.
Aproximei-me mais das rotinas de pares das crianças e pude com elas compartilhar cumplicidades. Num continum, as situações
foram se apresentando e trazendo outros dilemas para a pesquisa como o de posicionar meu papel de pesquisadora entre os
profissionais adultos e as crianças ou entre a observação participante e participação observante7.
Em alguns momentos fomos solicitadas a assumir o estatuto adulto que crianças e adultos tinham em suas
representações: em muitos deles as crianças solicitavam que interviesse em suas negociações e/ou necessidades; em outro, a
educadora solicitou que realizasse intervenções diretas com as crianças, propondo atividades; em outros ainda algumas crianças
trocavam comigo e queriam a minha atenção em momentos que a educadora desejava a atenção para ela. Percebi que o estatuto de
um adulto diferente no cotidiano da prática pedagógica precisa ser compreendido por crianças e adultos num movimento que é
processual e complexo.
Foi nosso objetivo aproximarmo-nos das crianças e conquistar um espaço nas suas rotinas de pares, intencionando a
construção de cumplicidades que nos dessem acesso aos meandros das suas ordens de pares, com a clara intenção de participar, e,
ao fazê-lo, compreende-las mais intimamente. A maior participação em suas brincadeiras e vivências infantis nos apresentou o
desafio de equilibrar as observações participantes e as participações observantes, pendendo mais para esta última.
A escolha de ser um adulto de outro modo trouxe-nos alguns desafios e conquistas. Fui um adulto que não se
posicionava como os outros adultos no Jardim e na escola, que falava diferente, que andava pra lá e pra cá com um caderno nas
mãos, sempre escrevendo e atrás dos pequenos, que brincava, corria e jogava bola quando as crianças convidavam. Alguns
desafios como o fato de nem sempre conseguir observar os menores na hora do parque por estar frequentemente rodeada pelos
maiores, que tinham muita curiosidade, queriam me ouvir falar, tinham muitas perguntas a fazer e desejavam respostas,
solicitando recorrentemente que eu lesse os apontamentos que havia escrito; o das dificuldades causadas pela minha presença na
sala, que dispersava a atenção das crianças; mas também houve conquistas: como as de ir sendo cada vez mais solicitada e
envolvida nas brincadeiras e atividades das crianças, convidadas por elas a compartilhar em suas vivências.
Finalizando, deixa-se o convite para um diálogo com o objetivo de construir uma narrativa democrática que se “expõe à
controvérsia das interpretações e […] suspende o veredicto, abrindo-se à disponibilidade do leitor para exercer a sua acção como
intérprete e protagonista da acção educativa” (SARMENTO, 2003, p. 109), reiterando a importância de pesquisas que valorizem a
voz e ação das crianças, compreendendo a participação nas práticas pedagógicas como elemento fundamental para uma educação
inclusiva e afirmando sua atuação social e papel ativo nas relações sociais e na apropriação do conhecimento.

Referências
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6
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7
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Investigação com crianças e metodologias participativas. Reflexões a partir da


experiência numa escola da periferia de Maputo.
Elena Colonna
Univerisdade do Minho
[email protected]

653
Francesca De Maria
Università La Sapienza
[email protected]

Resumo: Esta comunicação pretende discutir as mais-valias, as dificuldades e os desafios que o uso de metodologias participativas oferece à
investigação com crianças, sobretudo em contextos onde as crianças estão pouco habituadas a participar em processos de pesquisa e a fazer ouvir
a sua voz.
Tais reflexões nascem na sequência do trabalho realizado numa escola primária da periferia de Maputo, no âmbito de uma pesquisa que se propõe
investigar a experiência específica de “ser criança” dos meninos e das meninas que frequentam esta instituição, a partir dos seus próprios pontos
de vista.
Baseando-se na ideia de crianças própria da Sociologia da Infância, que as considera sujeitos de direitos e actores sociais plenos, competentes na
formulação de interpretações sobre os seus mundos de vida e reveladores das realidades sociais onde se inserem, a pesquisa propõe o uso de uma
metodologia compósita, que mobilize uma gama de diferentes métodos e técnicas, quer tradicionais quer inovadores, que permitam escutar a voz
das crianças. Os instrumentos de investigação privilegiados são então representados por grupos de discussão, pequenas dramatizações e conto de
histórias em torno de um determinado tema (técnicas de carácter oral), fotografias, vídeos, desenhos (técnicas de carácter visual) e registos
escritos, ensaios e diários (técnicas escritas).
A variedade de métodos representa assim uma forma de investigar a pluralidade de infâncias e ter em consideração as diferentes competências, as
experiências de vida e as identidades sociais das crianças, dependentes de idade, geração, género, estrutura do grupo familiar, grupo étnico e
classe social.
Palavras-chave: Crianças, metodologias participativas, Sociologia da Infância, Moçambique.

Introdução: que pesquisa?


Esta comunicação pretende apresentar e discutir o trabalho de pesquisa desenvolvido com as crianças de uma escola
primária dos arredores da cidade de Maputo, entre os meses de Agosto e Novembro de 2008. O trabalho foi realizado por uma
doutoranda em Estudos da Criança, área de conhecimento Sociologia da Infância no âmbito do seu projecto de investigação. A co-
autora, por razões profissionais, foi impossibilitada a desempenhar o papel de assistente de pesquisa, como tinha sido inicialmente
combinado; mesmo assim, representou uma interlocutora fundamental nas discussões metodológicas e na elaboração do presente
texto. Ao longo do texto, utilizaremos o “nós” para indicar as reflexões que realizamos juntas e o “eu” para indicar as acções
desempenhadas apenas pela investigadora.
O projecto de investigação, no seu complexo, objectiva conhecer a experiência de “ser criança” das crianças
moçambicanas e, nomeadamente, daquelas que frequentam a escola considerada, através do estudo de uma actividade específica
que caracteriza a quotidianidade da maioria delas. As observações do contexto e um longo período de permanência e trabalho em
contacto directo com as crianças na zona onde a escola se localiza permitiram notar que é prática comum elas desempenharem a
tarefa de tomar conta de outras crianças (irmãos mais novos, sobrinhos, primos, vizinhos ou outros), embora com modalidades e
em tempos e espaços diferentes. A tarefa de tomar conta de outras crianças foi assim escolhida como fenómeno objecto de estudo
da investigação, que pretende ser abordado a partir do ponto de vista das próprias crianças.
Para poder alcançar este objectivo geral, investigando as vivências das crianças em situações da vida quotidiana, os seus
espaços e tempos de vida e as relações que estabelecem com outras crianças e com os adultos, considerou-se necessário dividir o
trabalho de investigação em duas etapas:
 uma primeira fase na escola, para entrar em contacto com as crianças e ter uma visão geral sobre as suas vidas, as suas
experiências quotidianas e a maneira como elas as representam. Nesta fase, seria também possível identificar as crianças
(e as relativas famílias) disponíveis a continuar a participar na investigação;
 uma segunda fase, a realizar durante o período das férias, para acompanhar as rotinas quotidianas das crianças, em casa,
no exterior ou em outros locais, consoante às suas deslocações.
A primeira etapa, realizada principalmente na escola, vai constituir o objecto desta comunicação. Como já indicado, a
pesquisa desenvolveu-se entre Agosto e Novembro por um período de cerca de três meses. Nomeadamente, tratou-se da fase
conclusiva do ano lectivo, uma vez que as aulas terminaram no dia 31 de Outubro e se encerrou oficialmente o ano com a festa do
dia 15 de Novembro.

O contexto da pesquisa: o bairro e a escola.


A pesquisa realizou-se na Escola Primária Completa Dom Bosco, localizada no bairro do Infulene. Trata-se de um
bairro de periferia que, apesar de pertencer ao Conselho Municipal da Matola do ponto de vista administrativo, encontra-se no
meio do caminho entre a cidade de Maputo e a da Matola. Nesta zona, coexistem traços urbanos e rurais, fábricas e machambas
(campos cultivados), habitações em materiais precários e casas de luxo. Os moradores também possuem um nível socioeconómico

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diferenciado: existem idosos a viver com crianças em situações de forte pobreza, jovens casais com filhos onde o marido faz
biscates e a mulher é inserida no comercio informal, famílias de funcionários públicos e de profissionais de vário tipo
(cozinheiros, serralheiros, carpinteiros, electricistas, enfermeiros, professores, alfaiates,…).
Muitas famílias procuram melhorar um pouco a própria situação económica através do cultivo de legumes, hortaliças e
mandioca em pequenos terrenos emprestados ou de sua propriedade, integrando a quantidade de alimentos que conseguem
comprar com os rendimentos do mês. Assim, mesmo as mulheres que não tenham um emprego fixo, passam a maior parte do dia
ocupadas em múltiplas tarefas: cartar água, lavar a roupa, limpar a casa e cultivar, trabalhos que desempenham para as suas
famílias, mas também para outras que as paguem por isso; cozinhar, uma actividade que leva muito tempo porque implica
também ralar o coco e pilar o amendoim; fazer compras e vender diferentes tipos de produtos.
Em geral, apenas as crianças mais pequenas, que ainda não conseguem andar, são carregadas pelas mães nas costas e
levadas junto com elas em todas as suas deslocações quotidianas. As mais crescidas, só algumas vezes, acompanham as mães nas
suas actividades. Na maioria dos casos, as crianças passam muito tempo entre elas, brincando em casa, no quintal ou na rua,
ajudando nas tarefas domésticas, entregando encomendas na zona, cartando água e indo ao mercado fazer compras. Em todos
estes momentos, as crianças mais velhas brincam com as mais novas, mas também costumam ser responsáveis por elas: carregam-
nas, controlam-nas, ajudam-nas, chamam-lhes a atenção, dão-lhes banho, cozinham para elas e servem-lhes a comida.
A instituição onde foi realizada a pesquisa é uma escola primária completa, isso é, que inclui o EP1 (1ª-5ª classe) e o
EP2 (6ª-7ª classe). A escola funciona em dois turnos: em geral, de manhã, das 7 às 12, estudam as crianças mais novas (1ª, 2ª, 4ª e
5ª classe) e à tarde, das 12 às 17, as mais velhas (3ª, 6ª e 7ª classe). A escola é de propriedade das Irmãs Salesianas e é por elas
gerida directamente, com o apoio do Estado Moçambicano que providencia os professores e os livros.
As Irmãs abriram, inicialmente, um centro de acolhimento para meninos de rua e, a seguir, a escola, para que os rapazes
acolhidos tivessem um lugar onde estudar. Mais tarde, esta escola abriu as portas às meninas e aos rapazes da zona, mas sempre
com a intenção de atender as crianças mais necessitadas, oferecendo-lhes também a possibilidade de receber as refeições e o
material escolar na mesma instituição. Nos últimos anos, mesmo mantendo esta prioridade, a escola têm recebido crianças
oriundas de todo o tipo de famílias e têm sido também muito procurada por crianças de outros bairros e de um nível
socioeconómico mais elevado, por oferecer melhores estruturas e melhor acompanhamento em relação às escolas públicas. De
facto, é muito frequente que, nas escolas públicas, as salas de aulas e as carteiras não sejam suficientes e os alunos se vejam
obrigados a sentarem-se no chão ou ao ar livre, debaixo da sombra de uma árvore, com todas as consequências que isto comporta:
não estudar nos dias de chuva, desconforto provocado pelo frio e pela ventania, dificuldades na escrita,… Diversamente, na
Escola Dom Bosco, existem salas suficientes para todas as turmas e estas são dotadas de carteiras, portas, janelas e energia
eléctrica.
Antigamente, a característica de ser uma “escola de pobres”, assim como é definida pela própria directora, tinha levado
a direcção da escola a elaborar um regulamento próprio, que pudesse favorecer as crianças atendidas e as suas famílias. Por
exemplo, não era exigido o uso do uniforme, para não sobrecarregar as famílias com esta despesa; era proibido utilizar mexas no
cabelo e consumir produtos caros no lanche; as matrículas tinham um valor relativamente baixo. Hoje em dia, a mudança que está
a acontecer no tipo de população que frequenta a escola tem provocado algum debate interno entre professores e directores.
Enquanto alguns afirmam que “já não é escola de pobres”, porque as crianças chegam na escola com mais dinheiro no bolso e
melhores telefones do que os professores, por isso, o valor das matriculas deveria subir, outros defendem que nem todas as
crianças têm as mesmas possibilidades económicas e subir o valor das matrículas para todos significaria prejudicar os que
realmente não têm.
A pesquisadora possui um bom conhecimento da instituição, das Irmãs, dos funcionários e dos professores, de um
notável número de crianças e do ambiente em geral, em consequência de um ano de trabalho no local como educadora e
professora, em 2005-2006. Muitas das crianças da escola já tem alguma familiaridade com a pesquisadora por estarem habituadas
a vê-la no espaço escolar e no bairro, por ter substituído alguns professores nas suas turmas ou por ter tido alguns contactos nos
momentos do recreio.
É importante aqui salientar também algumas características das escolas moçambicanas, igualmente válidas para a
instituição considerada. A escola é vista pelas crianças e por muitas das famílias como algo de muito importante, onde se aprende
muita coisa e como uma forma de melhorar as próprias condições de vida. Na realidade, esta última ideia costuma resultar
correcta apenas para os que conseguirem atingir níveis de estudo mais elevados, como os dos institutos ou das universidades. Com
efeito, uma vez que nas cidades a quase totalidade das crianças consegue completar o ensino primário, este título já não tem
grande relevância para conseguir um bom emprego.
Em geral, as turmas têm um número de alunos bastante elevados, entre os 40 e os 60, o que dificulta a relação pessoal
entre o professor e os alunos. Muitos professores têm então apostado num regime de disciplina bastante rígido, para conseguir
manter o controle de tantas crianças, utilizando uma série de formas de violência verbal, simbólica e física, segundo cada caso.
Desde as primeiras classes, as crianças aprendem a memorizar um conjunto de noções e a responder todas em coro às perguntas
do professor, mais do que procurar entender o assunto que está a ser tratado.

655
Só para aprender a ler e a escrever as crianças podem levar vários anos. Mesmo nas turmas da 6ª classe que participaram
da investigação, existem alguns alunos que ainda têm sérias dificuldades na leitura e na escrita. As causas destas dificuldades
devem ser procuradas, por um lado, dentro do próprio sistema escolar, caracterizado por turmas numerosas e por métodos de
ensino que talvez não estimulem suficientemente as crianças. Por outro lado, podem ser encontradas no contexto social mais
alargado, tratando-se de uma sociedade em que a linguagem escrita não é muito presente no dia-a-dia das crianças, uma vez que é
raro que tenham acesso e vejam circular nas suas casas revistas, jornais, livros infantis ou para adultos. Em consequência disso,
muitas crianças não são estimuladas pela curiosidade e pela necessidade de aprender a ler. Ainda, as famílias dificilmente têm o
tempo, as competências e o hábito de acompanhar as crianças na sua aprendizagem e nos trabalhos para a casa.
Finalmente, o facto dos professores não possuírem um nível de formação muito elevado também compromete a
qualidade do ensino. Hoje em dia, para poder ensinar nas escolas primárias, é necessário concluir a 10ª classe e depois frequentar
um ano de formação de professores, mas existem professores que praticam a profissão já há vinte ou mais anos e, nos seus
tempos, só estudaram até 4ª ou 5ª classe e logo tiveram a formação para poder ensinar.

A unidade de análise: as crianças.


A unidade de análise é constituída pelas três turmas da 6ª classe da escola, por um total de 120 crianças com idade
compreendida entre os 10 e os 15 anos. O interesse em trabalhar com crianças desta classe é motivado por diferentes razões: em
primeiro lugar, por ter observado que as crianças desta faixa etária têm sido consideradas pelos familiares suficientemente
crescidas para assumir um conjunto de responsabilidades em casa; em segundo lugar, porque as crianças da 5ª e 7ª classes, que
poderiam ter uma idade próxima, têm exames no final do ano (Novembro) e seria problemático ocupar o tempo das aulas com as
actividades de pesquisa, logo em proximidade desta data; em terceiro lugar, porque as crianças da 6ª classe têm tido um domínio
da escrita, tal para permitir também o uso de técnicas de investigação de carácter escrito; finalmente, o facto da pesquisadora já ter
dado aulas a turmas da 6ª classe faz com que ela se sinta mais a vontade no trabalho com crianças desta faixa etária.
O grupo de crianças consideradas para o estudo é caracterizado por uma forte heterogeneidade em termos de
proveniência da família, bairro de residência, composição familiar e nível socioeconómico. Muitas crianças pertencem a famílias
naturais da cidade de Maputo ou de zona próximas, mas também existem crianças cujos pais chegaram à capital moçambicana
migrando de outros países africanos ou de outras províncias do país; outras crianças, mesmo tendo pais moçambicanos, têm
vivido por algum tempo na vizinha África do Sul. É relevante sublinhar a proveniência geográfica das famílias das crianças,
porque dela depende o tipo de cultura em que as crianças crescem, os hábitos e as tradições praticados e a própria língua falada no
âmbito familiar.
Também os bairro de residência das crianças e das suas famílias são diversificadas. Apesar da maioria das crianças viver
em zonas relativamente próximas da escola, o que lhe permite chegar à instituição a pé, existe um grupo significativo de crianças
provenientes de outros bairros, mais ou menos distantes da escola. Estas crianças costumam ir a escola de chapa (transporte semi-
colectivo) ou de carro. Característica comum a todos os bairros de proveniência das crianças é o facto de serem bairros periféricos
das cidades de Maputo e da Matola, isto é, não existem crianças que saem de um bairro central da cidade para uma escola de
periferia, uma vez que no centro das cidades a oferta de instituições escolares têm sido maior. Como já indicado, a fama da escola
Dom Bosco de oferecer estruturas e acompanhamento dos alunos de um nível superior em relação às outras escolas públicas
explica a opção das famílias de fazer percorrer às crianças longas distâncias para chegar a esta instituição.
Mesmo em relação à composição familiar, as crianças apresentam uma variedade de situações. A família nuclear com
mãe, pai e irmãos representa a situação mais comum, de acordo com as respostas das crianças. Permanece, porém, alguma dúvida
sobre a fiabilidade destas respostas, podendo elas representar uma realidade efectiva como também o que é considerado desejável
ou ‘a resposta correcta’. O número de irmãos que as crianças têm e o lugar que ocupam na ordem de nascimento também variam.
Além das famílias nucleares, existem numerosos casos em que aos pais e aos irmãos se juntam outros familiares, como primos,
tios, sobrinhos ou avós. Outro grupo significativo de crianças vive apenas com a mãe e os irmãos e, as vezes, com outros
familiares. Em alguns casos, não muito numerosos, as crianças vivem com outros familiares diferentes dos pais.
Em termos de profissão dos pais, as crianças apresentam também uma grande variedade de respostas, que reflectem a
heterogeneidade de nível socioeconómico dos moradores da zona referida no parágrafo anterior. Só para dar alguns exemplos,
entre as mães existem as que ficam em casa, as que estudam, as que fazem pequenos comércios, mas também as que são
funcionárias de lojas e empresas, directoras de escolas ou polícias. Os pais também desempenham actividades diferentes, desde as
profissões mais qualificadas como arquitecto, engenheiro, director de empresa, aos negócios como o dono de uma ferragem até
outros tipos de trabalhos, como locutor de rádio, motorista, segurança, operário ou machambeiro.
Finalmente, existem diferenças significativas entre as crianças no tipo de actividades e nas responsabilidades que
assumem no âmbito familiar. Isto depende de vários factores, entre os quais o nível económico da família, o facto de ter ou não
água canalizada em casa, a presença ou não de uma empregada doméstica, a actividade da mãe, a composição familiar, o número
de irmãos e a posição da criança na ordem dos irmãos. Por exemplo, uma criança que é a última de vários irmãos, cuja mãe fica

656
em casa e tem também uma empregada poderá talvez só ajudar a regar as plantas ou a fazer outros pequenos trabalhos
domésticos, enquanto uma criança que é a mais velha da família e cujos pais ficam todo o dia no trabalho terá provavelmente de
desempenhar muitas tarefa em relação à casa e aos irmãos (lavar a loiça, cozinhar, tomar conta dos irmãos,…).
Achamos relevantes mostrar algumas características do meio onde a pesquisa foi desenvolvida e da realidade das
próprias crianças, antes de apresentar a própria investigação, uma vez que consideramos as opções metodológicas algo
extremamente sensível em relação ao contexto e aos próprios sujeitos participantes e não receitas a aplicar universalmente válidas.
Concordamos assim com a ideia de Reviere (2001) que propõe uma metodologia de investigação afrocêntrica, cujo fundamento
seja “the inseparability of research and researcher and the inclusion of place”.

A entrada no campo: o programa e a realidade.


“A entrada em campo é crucial na etnografia, porque um dos seus objectivos centrais como método interpretativo é o
estabelecimento de um estatuto participante e uma perspectiva interna.” (Corsaro & Molinari, 2005).

Consciente da relevância deste momento para o desenvolvimento da pesquisa, tentei planificá-lo da maneira mais
detalhada e organizada possível. O primeiro contacto com a direcção da instituição e, em seguida, com as crianças realiza-se em
Abril de 2008. Depois de ter combinado com o director pedagógico que irei trabalhar com as 6ªs classes, peço-lhe que me
apresente nas três turmas para que eu possa pedir também às crianças a sua autorização para realizar a pesquisa. Nas duas
primeiras salas as crianças parecem muito animadas pela minha presença, algumas me cumprimentam com um gesto da mão,
outras com um sorriso e outras piscando o olho. Eu reconheço apenas algumas delas, mas quando o director pedagógico me
apresenta e pergunta quem delas já me conhece, quase todas levantam a mão. Na terceira sala, as crianças parecem-me muito mais
calmas e não consigo ver nenhuma cara conhecida. De facto, trata-se de crianças que estudaram em outras escolas e estão nesta
pela primeira vez, desde o princípio deste ano lectivo. É por isso que, quando o director pergunta quem me conhece, apenas um
menino levanta a mão.
Nas três turmas o director explica muito brevemente às crianças que eu preciso de fazer um trabalho com elas para a
universidade onde estudo, na Europa. Diz que precisarei passar algumas horas com elas na escola para saber um pouco sobre as
suas vidas e depois, se eles quiserem, irei também para as suas casas para ver o que fazem, como brincam e outras coisas. Depois
diz que, para poder fazer isso, eu preciso saber se eles querem participar ou não. “Queremos”, respondem em coro. “Então
aceitam?” pergunta de novo. “Aceitamos”, respondem sempre em coro. Eu acrescento que gostaria de saber deles o que gostam de
fazer, o que gostam de brincar, o que fazem em casa, agradeço pela disponibilidade e informo-as que estarei com elas a partir de
Agosto.
Desde este primeiro contacto com a instituição até a minha entrada no campo e ao longo do próprio trabalho de
investigação, esteve sempre presente a dúvida se trabalhar com todas as três turmas ou optar apenas por uma. Tal dúvida tinha
base no conflito existente entre as questões éticas relativas à selecção dos participantes na pesquisa (Alderson, 1995; Alderson &
Morrow, 2004) e a preocupação com a viabilidade do trabalho e com a criação de uma relação de confiança entre a pesquisadora e
as crianças no pouco tempo à disposição antes da conclusão do ano lectivo. De facto, se por um lado não queria excluir nenhuma
turma, uma vez que na minha primeira entrada na escola todas as crianças tinham aceitado participar, por outro lado, dava-me
conta que, em apenas dois meses, seria difícil conhecer profundamente e construir uma relação de cumplicidade, que precisa de
proximidade e de tempo, com cada uma das 120 crianças, correndo o risco de acabar por ter um contacto muito superficial com
todas elas.
No momento da minha entrada efectiva no campo, em Agosto de 2008, discuti com o director pedagógico a minha ideia
de escolher apenas uma turma entre as duas onde mais crianças me tinham reconhecido mas ele sugeriu que eu pedisse
autorização aos pais e começasse o trabalho com as três turmas, para poder mais tarde escolher com qual delas trabalhar.
Concordei com a ideia e também planificamos juntos uma entrada bastante gradual na instituição: nas primeiras duas semanas,
apareceria na escola apenas nos momentos da entrada, do intervalo e da saída para começar a ter os primeiros contactos mais
informais com as crianças; depois entraria nas salas apenas para assistir as aulas dos professores por mais duas semanas;
finalmente, ao completar um mês, começaria já a envolver-me directamente nas actividades de investigação com as crianças
dentro e fora das salas de aulas.
Num primeiro momento, tinha pensado numa apresentação da investigação às crianças mais formal, através de um
pacote informativo a entregar a cada criança com uma carta para ela, uma para a família e outro material útil para o trabalho de
pesquisa (O’Kane, 2005; Thomas & O’Kane, 1998) e também com a ajuda de um esquema no quadro ou num cartaz, onde fossem
indicados os objectivos, os métodos e a utilização dos dados (Gaitán, 2006; Alderson, 1995). Reflectindo sobre a realidade local e
sobre a melhor maneira de deixar as crianças esclarecidas, optei por uma apresentação mais simples e menos ‘escolarizada’,
através de uma conversa com as crianças na sala de aulas que pudesse ser renovada e aprofundada naquele contexto ou noutro
todas as vezes que eu ou elas sentíssemos essa necessidade.

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Na realidade, o projecto de um contacto gradual com as crianças acabou por não acontecer e a minha entrada no campo
revelou-se bastante precipitada. De facto, nas primeiras semanas em que deveria frequentar as crianças apenas no tempo e espaço
fora da sala de aula, faltaram alguns professores enquanto eu me encontrava no espaço escolar. A directora da escola pediu-me
que eu ficasse na sala de aulas com as crianças e eu acabei por aceitar, achando que seria uma boa oportunidade de poder explicar
melhor às crianças o que vinha fazer na escola (um trabalho de investigação para conhecer a vida das crianças moçambicanas e,
nomeadamente, da zona onde elas vivem) e para começar a conhecê-las (fazendo um pequeno jogo para conhecer os nomes, as
idades e o que cada pessoa gosta de fazer na sua casa).
Tudo correu bem no primeiro encontro com cada turma, mas já no segundo encontro, que aconteceu de repente e eu não
tinha planificado o que fazer com as crianças, tive alguns problemas de “disciplina”, no sentido que eu não queria me impor de
nenhuma maneira de um jeito autoritário, por isso não gritei nem ameacei as crianças (que é o método dos professores ao qual elas
estão habituadas), assim elas aproveitaram para conversar em voz alta, se deslocar dentro da sala e dançar, o que acabou por
incomodar a directora e os professores das salas ao lado que vieram reclamar.
Decidi então não aceitar mais ficar nas salas, antes de ter a autorização dos pais e as actividades já planificadas, mas
tornou-se um pouco difícil negar porque quer a directora quer as próprias crianças me procuravam para solicitar a minha presença
na sala, sempre que faltasse algum professor. Assim comecei logo a desenvolver as primeiras actividades com as crianças nas
salas. Ao mesmo tempo, não deixei de estar presente no horário do intervalo, sentada sempre no mesmo banco, disponível para
estar com as crianças que quisessem. Considerei essencial este momento porque deixa nas mãos das crianças a liberdade de
decisão de vir ter comigo ou não, mesmo que seja apenas para cumprimentar, trocar poucas palavras ou só para estar por perto
sem nada querer dizer. Outros tipos de interacção poderão assim vir com o tempo e com a relação de confiança que se
desenvolver.

A identidade da investigadora: mana, tia, pesquisadora, professora, explicadora, educadora ou Elena?


Tendo consciência da impossibilidade que uma investigadora adulta, branca, europeia e, por isso, com uma cultura e
uma língua materna diferentes consiga compreender completamente a realidade a partir do ponto de vista de uma criança
moçambicana e considerando também que dificilmente as crianças estão acostumadas a comunicar livremente e a ser levadas a
sério pelos adultos (Punch, 2002a), o principal desafio consiste na construção de uma relação e de um conjunto de ferramentas
que ofereçam às crianças o máximo de oportunidades de expressar os seus próprios pontos de vista à investigadora.
Ao tentar desenvolver uma investigação com as crianças de forma participativa, parece-nos necessário, em primeiro
lugar, tentar desconstruir a ideia de adulto típico que as crianças possuem (Corsaro, 1997), para poder em seguida negociar uma
nova relação especifica investigador/crianças. Pensamos que as crianças nunca poderão considerar o investigador como um
membro efectivo do grupo de pares, mas a fim de facilitar a interacção é importante libertar-se das categorias de adulto que
regulam a vida e o pensamento das crianças. Na nossa opinião, é preciso analisar a quais destas categorias o investigador mais se
aproxima, ou por razões contextuais (por exemplo, trabalhar numa escola aproxima mais o investigador à figura do professor), ou
por razões pessoais, como características de género ou também particularidades físicas (por exemplo, uma investigadora mulher
com uma atitude materna para com as crianças pode fazer com que a primeira relação que se instaure seja mais do tipo mãe/filho
ou um homem com a barba e a barriga grande pode lembrar às crianças o Pai Natal e, por consequência, poderá criar-se
inicialmente uma relação mais orientada para a brincadeira).
No caso de uma investigação num lugar diferente do seu contexto de origem (cidade, região ou país), o investigador
deve ter em conta os factores culturais e os estereótipos relacionados à sua proveniência ou à sua nacionalidade. Num contexto
como o de Moçambique, os estereótipos são ligados ao facto de ‘ser estrangeiro’ e de ‘ser branco’, mais do que à própria
nacionalidade. Trata-se de estereótipos que decorrem dos tempos da colonização, mas também das relações actuais com os
‘estrangeiros brancos’, que em Moçambique são sobretudo turistas, diplomáticos, cooperantes ou religiosos, todas pessoas que,
em geral, possuem um nível de vida, económico e de instrução muito superior à média moçambicana. Muitas vezes, então, a
população moçambicana instaura com os ‘estrangeiros brancos’ uma relação de deferência ou de interesse. Em ambos os casos,
trata-se de uma relação que coloca as duas parte em níveis diferentes. De facto, apesar das relações entre Brancos e Negros terem
melhorado, sobretudo ao longo dos últimos 30 anos, séculos de crenças e convicções, de racismo e de colonialismo, não podem
ser apagados em poucas décadas (Reviere, 2001).
Assim, no momento em que uma investigadora branca queira realizar uma pesquisa em Moçambique, deve ter em
consideração este sistema de relações de superioridade/inferioridade, mas também de esperteza/incompetência. Estes termos
podem ser atribuídos, alternativamente, a cada uma das duas partes, dependendo do contexto: por exemplo, um ‘estrangeiro
branco’ poderá ser muito esperto em âmbito académico, mas revelar-se totalmente incompetente em muitas actividades
quotidianas, como cartar água, fazer compras num mercado ou dançar, enquanto a situação poderia ser invertida para um
moçambicano. Mesmo em comparação com as próprias crianças moçambicanas, o adulto branco pode revelar-se incompetente em
muitos trabalhos domésticos, uma vez que estas actividades baseiam-se na competência adquirida através da experiência e da

658
prática mais que em características físicas ou biológicas que variam com a idade (Punch, 2003). Por exemplo Márcia e Linda,
duas meninas de onze anos que gostam de visitar a investigadora para ajudá-la na cozinha, conseguem descascar e cortar os
vegetais, lavar a loiça e limpar o chão muito mais rapidamente do que a própria investigadora adulta.
Podemos então resumir, simplificando, que uma investigadora branca que pretende realizar uma investigação com
crianças numa escola em Moçambique, se depara com três diferentes níveis de obstáculos, representados por um conjunto de
estereótipos, que podem afectar a relação com os sujeitos da pesquisa: relação branco/negro, relação professor/aluno, relação
criança/adulto.
No caso desta investigação, o primeiro aspecto relativo ao conjunto de papéis e expectativas que regulam a relação entre
brancos e negros tem sido em parte resolvido graças aos repetidos períodos de permanência da investigadora na zona ao longo dos
últimos três anos e a um ano de trabalho como professora e educadora na instituição onde a pesquisa foi desenvolvida. Estes
elementos tem permitido que a presença da investigadora, apesar de ser uma ‘estrangeira branca’, deixasse de ser excepcional e se
tornasse familiar. Malinowsky afirma que começou a recolher material interessante para a pesquisa, a partir do momento em que
podia atravessar toda a aldeia de ponta a ponta sem que as pessoas parassem as suas actividades para olhar para ele. Do meu lado,
posso afirmar que consigo percorrer todo o percurso de casa à escola e vice-versa, sem gerar admiração naqueles que me vêem a
passar, pelo contrário, cumprimentando a maioria deles.
O segundo obstáculo a ultrapassar é ligado à relação professor/aluno. Com efeito, se por um lado o facto de já ter
trabalhado e ser conhecida na escola e a relativa proximidade quer com os adultos quer com as crianças tem representado um
valioso facilitador para a entrada no terreno, por outro lado, tem originado alguma confusão de papéis, ainda mais em um contexto
onde a hierarquia e a autoridade são muito consideradas. Nomeadamente, sobretudo num primeiro momento, tenho sido vista
como uma professora e isto levou-me talvez a ser “temida” pelas crianças e “mandada” pela directora. Esta confusão
investigadora/professora foi enfatizada pelo facto da pesquisa ser desenvolvida no tempo e no espaço escolar e por ter sido
mandada várias vezes pela directora a substituir os professores na sala de aulas. Eu tentei resolver este problema esclarecendo e
sublinhando o meu papel de investigadora no princípio da pesquisa e sempre que se tornasse necessário. Porém, para além das
palavras, considero que outros elementos tiveram um peso decisivo em me diferenciar dos outros professores: não gritar, não
ameaçar e não bater na sala de aulas; desenvolver algumas actividades em pequenos grupos ao ar livre sentando com as crianças
no chão numa roda; partilhar com as crianças o momento do intervalo, sentando com as crianças nos bancos ou no chão,
aprendendo as suas brincadeiras, conversando e comendo gelinhos juntos,…
O terceiro obstáculo, que tem a ver com as relações entre adultos e crianças, tem sido talvez o mais difícil a ser
ultrapassado, sobretudo tratando-se de um país onde o respeito e a obediência aos mais velhos constituem um traço fundamental
das relações sociais. As crianças são constantemente mandadas pelos adultos e costumam cumprir as os ordens com prontidão,
mas também com um certo orgulho. Pelo resto, o mundos dos adultos e o das crianças permanecem fortemente separados, sendo
raras as interacções entre adultos e crianças orientadas para a conversa, a troca de ideias e de informações, a brincadeira. No meu
caso, tenho tentado romper esta separação e aproximar-me ao mundo das crianças através de um conjunto de atitudes, como as
indicadas para me diferenciar dos professores, que se afastam das expectativas das crianças sobre os adultos, quer em relação ao
que elas acham que pode me agradar ou desagradar, quer a maneira em que elas esperam ser tratadas.
Aos poucos, tenho tentado e talvez conseguido desconstruir estas diferentes imagens que influenciam a minha relação
com as crianças, colocando-me numa posição intermédia entre vários pontos. Por um lado, carrego comigo os traços da minha
cultura de branca que me diferenciam do modelo de adulto moçambicano e me aproximam às crianças: brinco com as crianças,
converso com elas, interesso-me pelas suas opiniões,… Por outro lado, a quotidianidade da relação com as crianças e o meu estilo
de vida me afastam do modelo de ‘estrangeiro branco’ e me assemelham mais à população negra moçambicana: vivo num bairro
de periferia, muitas das crianças envolvidas na pesquisa são minhas vizinhas e costumam me visitar, não tenho carro e ando a pé
ou de chapa, vou e volto da escola a pé com as crianças, não tenho água canalizada em casa e vou buscar com os bidões em casa
de uma vizinha, faço compras no mercadinho da zona,…
Enquanto vou desconstruindo a relação típica adulto/criança, branco/negro, professor/aluno, construo junto com as
crianças uma nova relação Elena/crianças. Trata-se de um processo dinâmico, que evolui ao longo de todo o processo de
investigação e pode variar na relação com cada criança. Os títulos ou nomes que as crianças têm me atribuído são representativos
da fluidez dos processos e das negociações que estão a ser desenvolvidas. É habito nas escolas moçambicanas que, no momento
da entrada do professor na sala, todos os alunos levantem e digam em coro: “Boa tarde, professor/a (nome)”. Nas primeiras
entradas nas salas, eu também fui cumprimentada com a frase ritual: “Boa tarde, professora Elena!” Passado algum tempo e
depois de ter questionado às crianças sobre o meu papel, criou-se uma certa confusão entre as crianças no momento de me
cumprimentar e já não conseguiam acertar o coro habitual: algumas diziam “professora Elena”, outras “explicadora Elena”,
“senhora Elena”, ainda outras “pesquisadora Elena” e havia aquelas que diziam simplesmente “Elena”. Mesmo fora da sala de
aulas, as opiniões eram diferentes e a maneira de chamar-me variava ao longo do tempo e dependendo das crianças: mana, tia,
pesquisadora, professora, explicadora, educadora e Elena eram as formas mais utilizadas. Em geral, em Moçambique, chamar
uma pessoa mais velha directamente pelo nome é considerado uma falta de respeito, mas muitas crianças sentiram-se à vontade

659
para fazê-lo e eu nunca lhes chamei a atenção. Porém, várias vezes foram outras crianças a não gostar destas atitudes e a corrigir
os colegas dizendo: “Estás a chamar de Elena? Será que tem a tua idade ela?”
Concluindo, podemos afirmar que a identidade do investigador e a sua reflexão sobre ela representam um pilar
fundamental da investigação. Tal ideia é duplamente válida para esta investigação, uma vez que é enfatizada quer pela Sociologia
da Infância, quer pelo Afrocentrismo.
A Sociologia da Infância afirma que a reflexividade e as questões éticas desempenham um papel central no processo de
investigação com as crianças, não apenas para questionar criticamente o papel da investigadora e as suas convicções, mas também
para avaliar a escolha dos métodos de pesquisa e a sua aplicação (Punch, 2002a). O Afrocentrismo considera a retrospecção e a
introspecção como elementos fulcrais do método, afirmando que os investigadores devem determinar se e como as suas
experiências de vida e as suas convicções influenciam o processo, a partir do desenho da pesquisa até à recolha e à interpretação
dos dados (Reviere, 2001).

A metodologia compósita.
De acordo com os princípios da Sociologia da Infância, as crianças não são consideradas como simples objectos de
conhecimento, mas como sujeitos de direitos e actores sociais plenos, competentes na formulação de interpretações sobre os seus
mundos de vida e reveladores das realidades sociais onde se inserem (Soares, Sarmento & Tomás, 2004). Assim, o uso de uma
metodologia compósita, que mobilize uma gama de diferentes métodos e técnicas, quer tradicionais quer inovadores, representa
uma forma de investigar a pluralidade de infâncias e ter em consideração as diferentes competências, experiências de vida e
identidades sociais das crianças que participam na investigação (idade, género, estrutura do grupo familiar, actividade e nível de
formação dos pais, grupo étnico, classe social).
Numa primeira fase, pareceu-me útil desenvolver um período de observação participante das crianças nos momentos de
entrada, do intervalo e de saída da escola, caracterizadas por algumas interacções e conversas informais, para melhor conhecer os
que participam na investigação e conseguir uma maior compreensão dos seus pontos de vista e das suas experiências (Graue &
Walsh, 2003).
Só depois de construir uma relação com as crianças e ganhar a sua confiança, queria então passar a colocar em prática
métodos mais interactivos e participativos, que minimizassem o desequilíbrio de poder entre o investigador adulto e as crianças
que participam na investigação, existente numa relação face-a-face. Como já indicado num parágrafo anterior, esta separação
temporal dos dois momentos não foi possível e a construção de uma relação com as crianças fora das salas de aula foi
acontecendo enquanto já começava a desenvolver algumas actividades participativas com elas na salas.
Jogo de apresentação
Como já acenado anteriormente, a primeira actividade proposta às crianças foi um jogo de apresentação muito simples.
Uma criança de cada vez parava em frente de todos, dizia o seu nome e depois imitava com gestos e sem poder falar a actividade
que mais gosta de desenvolver em casa, enquanto o resto da turma tentava adivinhar. Entretanto eu apontava no meu caderno o
nome e a actividade preferida de cada criança. Este momento foi importante, por um lado, para mim, para começar a conhecer as
crianças, os seus nomes e os seus gostos e, por outro lado, para as crianças iniciarem a familiarizar-se com a minha presença e
para ganharem interesse nas actividades que poderiam desenvolver comigo. De facto, alguns dias depois um breve diálogo com
uma criança demonstrou-me o seu interesse para que eu voltasse a trabalhar com elas na sala de aula.
A: “Hás-de vir de novo na nossa sala para fazer concursos?”
Eu: “Que concurso?”
A: “Aquele de fazer gestos e os outros adivinhar…”
Eu: “Ah, tu és de que turma?”
A: “Das 6ªs.”
Eu: “Sim, mas qual delas?”
A: “6ª C.”
Eu: “Ah, então na sala ainda temos de concluir… não foram todos que fizeram, faltou uma fila, nem?”
A: “Sim, faltou a segunda fila, fizeram a primeira, a terceira e a quarta. Vens quando?”
Eu: “Ainda não sei.”
(Diário de campo, Escola Dom Bosco – Maputo, 27/08/2008)

Perguntas: ‘Queres participar?’ e ‘Como fazer?’


Uma vez que a minha ideia era avaliar a escolha dos métodos mais adequados no campo e partilhá-la com as crianças,
resolvi propor aos alunos das três turmas de responder por escrito a algumas perguntas que me pudessem fornecer informação
relevante sobre às suas intenções em relação à participação na investigação e sobre as maneiras que achavam mais apropriadas
para desenvolver o trabalho. Nomeadamente, as perguntas foram as seguintes:
1. Queres participar no trabalho de pesquisa para conhecer a vida das crianças em Moçambique?
2. Como fazer para conhecer a vida das crianças?

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3. O que acham mais importante saber para conhecer as crianças e as suas vidas?
As primeiras duas perguntas foram propostas nas três turmas enquanto a terceira apenas numa delas. Todas as crianças,
menos uma que por acaso tinha mais proximidade comigo no tempo do intervalo, aceitaram formalmente participar do trabalho de
investigação. As ideias que sugeriram sobre as formas de conhecer a vida das crianças foram várias e diversificadas mas muitas
delas faziam parte dos exemplos de respostas que eu tinha dado na apresentação da actividade. As respostas foram: conversar com
as crianças, conversar em grupo, fazer investigações, perguntar o que as crianças fazem em casa e qual é o seu sonho quando
forem grandes, fazer um concurso com as criança de todas as províncias de Moçambique nos programas infantis, participar nos
teatros, tirar fotografias, fazer vídeos, ir a praia, conhecer as casas das crianças, passear, fazer perguntas e entrevistas, falar com os
chefes de quarteirão e com os pais, saber onde moram e se estudam, cumprimentar as crianças, tratá-las com amor e carinho, tratar
bem, respeitar, não bater, não berrar, compartilhar no lanche, observar, conviver, fazer amizades, brincar e fazer jogos, conhecer
os nomes, fazer teatros e textos, visitar as famílias em outros bairros, ajudar, apoiar os que não têm, oferecer roupas e material
escolar, saber o que as crianças gostam, com quem vivem, conhecer várias crianças, seguir os passos delas, aceitar o que as
crianças tem a dizer, deixar as crianças contarem histórias, deixarem as crianças dançarem ou qualquer coisa que as crianças
querem fazer, fazer cantos e danças, abrir o coração das crianças, arranjar tempo e sentar com a criança para conversar bem com
ela, fazer cartazes, relatórios e uma exposição sobre as crianças, como vivem, como são alimentadas e o estado delas, fazer
grupos, participar da vida das crianças todos os dias, dar uma palestra sobre a vida das crianças, fazer desenhos em cartolinas e
também realizar publicidades para os mais jovens terem noção desta situação, levar alguns objectos como brinquedos para que as
crianças possam se divertirem mais, rir com elas, haver uma confiança entre nós e as crianças.

Questionário colectivo co-construído


Dado que muitas crianças sugeriram que era importante fazer perguntas às crianças sobre vários assuntos que tinham a
ver com as suas vidas, tive a ideia de um ‘questionário colectivo co-construído’, isto é, deixar às crianças a possibilidade de criar
as perguntas que elas mesmas em seguida iriam responder. Designadamente, cada criança da turma pensava e enunciava uma
pergunta que todos os colegas deviam responder, cada um na sua folha. As vezes, os colegas criticavam uma pergunta e sugeriam
alterações que eram elaboradas também com a ajuda da investigadora. Nos momentos em que nenhuma das crianças tinha uma
ideia pronta, eu também aproveitei para propor em forma de perguntas algumas das questões de pesquisa que mais me
interessavam. As crianças gostaram desta actividade por um lado, porque lhes deu o papel de protagonistas no momento de
formular a pergunta para toda a turma e, por outro lado, porque uma vez que eram as próprias crianças a elaborar as perguntas,
estas resultavam para elas ‘interessantes’. Assim, este trabalho produziu uma dupla informação para a pesquisa: as perguntas
indicam-nos que aspectos as crianças acham relevantes para conhecer a vida de outras crianças e as respostas fornecem-nos, em
pouco tempo, um conjunto notável de informação sobre tais aspectos.

Depois desta actividade senti a necessidade de tomar uma decisão em relação às crianças e às turmas que estariam
envolvidas na investigação. Optei por não desistir de nenhuma turma mas continuar a trabalhar com as três nas actividades que
não precisavam de um envolvimento directo e pessoal da investigadora. Esta decisão foi motivada, por um lado, porque não
queria excluir totalmente as crianças realmente interessadas em participar no trabalho que existiam nas três turmas; por outro lado,
porque achei interessante recolher uma parte da informação com um universo mais amplo e continuar a manter contactos com as
crianças, que podiam eventualmente ser úteis numa outra etapa da investigação.
Quanto aos trabalhos em pequenos grupos que requeriam maiores investimentos em termos de tempo, acompanhamento
e envolvimento pessoal, preferi optar por trabalhar com as crianças de uma única turma. A escolha da turma baseou-se na
‘disciplina’ e no interesse das crianças pela pesquisa, elementos que tornavam muito mais fácil o trabalho da investigadora na sala
de aula. A partir deste critério, acabei por excluir as duas turmas onde mais crianças me conheciam, uma vez que dentro de poucas
semanas o relacionamento era praticamente o mesmo quer com as novas, quer com as antigas ‘amizades’. O que acabou por
confirmar a minha escolha foi também o facto de que nas duas turmas que ficaram parcialmente excluídas havia vários alunos
mais crescidos, de catorze ou quinze anos, que já poderiam ser considerados adolescente, mais do que crianças.
A seguir, apresentamos brevemente cada uma das actividades que foram propostas às crianças das três turmas.
Desenho e/ ou texto
As crianças podiam escolher um título a partir do qual desenvolver um desenho, um pequeno texto ou uma combinação
das duas coisas. Os títulos propostos foram: A vida das crianças, Eu e a minha família, Eu e os meus irmãos, Eu em casa, Eu a
brincar. A ideia seria dar em seguida a possibilidade a cada criança de explicar o que tinha escolhido fazer e o porque, mas isto
não foi possível porque o trabalho foi realizado em turmas numerosas e com pouco tempo a disposição.
Entrevista
As crianças, em pares, elaboravam um conjunto de perguntas que depois faziam reciprocamente uma a outra e
registavam as respostas numa folha. Em alguns casos, as respostas foram também gravadas ou filmadas.

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Diário
Cada criança recebeu um caderno, onde escrever o diário das actividades quotidianas, ao longo de uma semana. Antes
de entregar os cadernos, discutiu-se com as crianças o que se considera um diário e depois a investigadora deu algumas indicações
relativas à informação que não poderiam esquecer de escrever cada vez que fossem a preencher o diário: data, hora, onde estava,
com quem estava e o que fez. De acordo com Gaitán (2006), através deste instrumento, a criança coloca-se no centro do processo
de investigação, expressando-se livremente, oferecendo mais elementos em relação aos previstos pelo investigador e libertando-se
do marco preconcebido da investigação. Os diários permitiram recolher uma grande quantidade de dados em um breve intervalo
de tempo.
Filme e questionário
Apresentou-se às crianças ‘Os caminhos do Ser’, um filme que conta o dia-a-dia de quatro irmãos que vivem sozinhos
porque os pais faleceram e vêem-se então obrigados a desempenhar todas as tarefas domésticas e a tomar conta uns dos outros. O
filme serviu como estimulo no preenchimento do questionário sobre os trabalhos domésticos das crianças e a actividade de tomar
conta, que foi proposta em seguida. As perguntas apresentavam, primeiro, um aspecto da situação das crianças do filme e depois
pediam para que cada criança fornecesse informação sobre este aspecto na sua vida. O filme revelou-se muito útil para despertar o
interesse das crianças em relação à actividade proposta e para oferecer um exemplo visual concreto que pudesse ser utilizado para
explorar a vida das crianças e tornar mais claras as próprias perguntas do questionário.
Caixa do ‘Correio da pesquisa’
Na última semana de aulas, foi apresentada a todas as crianças e depois colocada numa das salas, a caixa do “Correio da
pesquisa”, isso é, uma caixa onde as crianças pudessem deixar qualquer mensagem, assinada ou anónima, relacionada com a vida
das crianças, com as actividades de investigação e com a própria investigadora. Designadamente, na caixa estava escrito “A vida
das crianças. Ideias, comentários, sugestões, reclamações.” Esta ferramenta revelou-se muito importante para ter uma avaliação
global do trabalho desenvolvido junto das crianças e para dar espaço a elas de expressar opiniões sem ter de me falar
pessoalmente (Punch, 2002b).

Diversamente, os grupos de trabalho foram constituídos directamente pelas crianças, uma vez que cada uma delas tinha
a possibilidade de escolher em que actividade se colocar, dentro de uma lista que eu elaborei a partir de algumas das respostas que
eles tinham dado na pergunta ‘Como fazer para conhecer a vida das crianças?’. As actividades propostas foram cartazes,
fotografias, entrevistas, canto e dança, teatro, vídeo, bandas desenhadas e histórias, das quais apenas as últimas três foram
excluídas pelas crianças. No principio e na conclusão do trabalho de cada grupo, realizaram-se pequenos grupos de discussão com
os participantes: no primeiro caso, através do uso do diagrama aranha (brainstorming), um material visual para juntar ideias,
construir informação e estimular aprofundamentos; no segundo caso, para conhecer o significado que as crianças atribuem ao que
foi produzido e recolher as impressões e os comentário sobre as actividades desenvolvidas. Apesar do grupo de discussão ter sido
apontado como uma forma de romper as relações de poder desiguais entre crianças e adultos e deixar espaço à expressão
espontânea das crianças (Gaitán, 2006), nem sempre isto aconteceu. Às vezes, as crianças ficaram um pouco tímidas e
responderam com algumas dificuldades às questões que eu colocava. Elas pediram para que pudessem apresentar o produto dos
seus trabalhos aos pais e aos colegas e, de acordo com a direcção e os professores, decidiu-se atribuir um espaço a cada grupo no
‘dia do encerramento do ano’ em que participam os alunos, os familiares das crianças, os professores e os funcionários de toda a
escola.
Cartazes
As crianças realizaram cartazes com desenhos e textos, depois de terem discutido por muito tempo sobre os temas a
apresentar. Mais do que a própria realidade das crianças, este grupo revelou quais são as representações sobre a vida das crianças
em geral que as próprias crianças possuem e quais os aspectos que consideram mais relevantes a serem tratados.
Fotografias
Os métodos auto-fotográficos consistem na produção e na sucessiva análise de fotografias retiradas pelos próprios
sujeitos da investigação. Segundo Santana (2008), o interesse pelas máquinas fotográficas, assim como pelas fotografias
produzidas, costuma aumentar o interesse das crianças pelo projecto de investigação.
No nosso caso, depois de ter discutido com as crianças quais são as razões que levam as pessoas a tirar fotografias,
pediu-se a cada criança que escolhesse e tirasse uma fotografia de uma coisa, um lugar ou uma pessoa que considerasse
importante na sua vida na escola. A seguir, pediu-se que as crianças tirassem uma fotografia do que consideravam importante nas
suas vidas em geral. Uma vez que várias crianças escolheram os pais, o pretexto da fotografia permitiu que a investigadora
conhecesse as casas e as famílias destas crianças. Finalmente, as crianças do grupo reuniram-se para ver e discutir as fotografias
tiradas e decidir como organizá-las.
Entrevistas
As entrevistas foram planificadas e realizadas directamente pelas próprias crianças. Como no caso do ‘questionário
colectivo co-construído’, esta técnica forneceu uma dupla informação, sobre o que as crianças acham relevante perguntar e sobre

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as respostas que elas dão a tais perguntas. Para além disso, o facto de ser outras crianças a conduzir as entrevistas, deixava os
entrevistados mais a vontade do que se fosse a investigadora adulta a colocar as perguntas. Por outra, a informação recolhida pelas
crianças poderia talvez não resultar tão interessante para a investigadora ao fim de responder às suas questões de partida. No lugar
das crianças entrevistadoras, a investigadora adulta teria provavelmente abordado uns temas totalmente diferentes.
Canto
As crianças deste grupo foram convidadas a criar e apresentar canções que falassem, de alguma maneira, da vida das
crianças. Depois de elaborar as letras e as músicas, começaram os ensaios, primeiro na sala ou no pátio e, mais tarde, no palco.
Para além da informação fornecida pelos grupos de discussão, pelas letras e pelas músicas criadas pelas crianças, a fase dos
ensaios permitiu observar as relações que se instauraram entre as crianças e a negociação entre diferentes ideias sobre a melhor
maneira de apresentar-se em público.
Teatro
O grupo de teatro teve uns primeiros encontros em que a investigadora propunha às crianças alguns exercícios para as
capacitar a representar diferentes personagens e situações. Em seguida, pediu-se às crianças para pensar e apresentar uma pequena
peça que tratasse algum aspecto da vida das crianças. O trabalho foi bastante difícil e não se chegou a produzir nenhuma peça para
ser apresentada por causa da escassa familiaridade das crianças com a linguagem teatral e das dificuldades em organizar-se e
trabalhar em grupo.
Observação
Finalmente, a observação constitui-se como o primeiro método utilizado no trabalho de campo e que continua a ser
utilizado ao longo de todo o processo. Trata-se de uma observação selectiva com registo sistemático de todo o observado. Esta
actividade é necessária para especificar as perguntas iniciais da investigação, recolher informação sobre o contexto da pesquisa,
acompanhar e registar a recolha de dados através de outros métodos e técnicas, verificar e complementar a informação obtida
através de outros métodos e fontes. Designadamente, alternam-se momentos de observação não interactiva e participante: nos
primeiros, a investigadora não procura relacionar-se com as crianças e, pelo contrário, faz de conta que não está a acompanhar ou
não está interessada no que acontece ao seu redor, para que as crianças não mudem o seu comportamento e as suas conversas pelo
facto de estarem a ser observadas por um adulto; nos segundos, a investigadora está disponível ou mesmo procura interagir com
as crianças integrando-se na situação em que elas se encontram e, se possível, desempenhando a mesma actividade.
Diversamente da O’Kane (2005), que afirma ter seleccionado as técnicas participativas como uma alternativa aos
métodos etnográficos, consideramos que não existe incompatibilidade entre os dois métodos; pelo contrário, a observação
etnográfica pode representar um elemento complementar de grande importância nas metodologias participativas .
De facto, de acordo com Soares et al. (2004), as possibilidades de escolha dos dispositivos metodológicos mais
apropriados para a pesquisa são imensas e decorrem essencialmente da criatividade dos implicados no design da investigação,
sejam eles adultos ou crianças.

Em jeito de conclusão: qual participação das crianças?


A participação activa das crianças na pesquisa e a liberdade a elas garantida de expressar suas opiniões livremente sobre
todos os assuntos relacionados com elas não constitui apenas uma opção metodológica no âmbito da investigação, mas um direito
estabelecido no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança. Mesmo assim, trabalhar num determinado contexto
histórico e cultural, no qual o respeito pela autoridade e pela sabedoria dos mais velhos acaba por marginalizar as vozes e os
saberes das crianças, coloca aos investigadores grandes desafios para encontrar formas de quebrar o poder desigual entre adultos e
crianças e criar espaços que permitam às crianças terem voz e sobretudo se sentirem livres de expressar as suas ideias.
De acordo com Soares et al. (2004), é possível identificar diferentes patamares de participação das crianças na
investigação, dependendo das etapas e das actividades em que estas são envolvidas. No caso da pesquisa aqui apresentada, foi
pedido o consentimento das crianças em participar numa investigação que tinha o objectivo de conhecer ‘a vida das crianças em
Moçambique’, tratou-se intencionalmente de um objectivo muito amplo que deixava muito espaço para negociar com as crianças
os conteúdos a serem aprofundados e as formas como trabalhar.
O principal choque foi representado pela intenção da investigadora de desenvolver uma investigação participativa num
contexto em que não é habitual que os adultos peçam às crianças a sua participação e contribuição em termos de ideias e opiniões.
O que geralmente é exigido às crianças, quer em casa como na escola, é obedecer, armazenar conhecimentos sem questioná-los,
conformar-se às normas.
O que aconteceu então foi que nos momentos “institucionalizados” da pesquisa, as crianças se conformavam à norma,
aos discursos e aos estereótipos vigentes na sociedade, enquanto apenas nos momentos “livres”, que consideravam estar fora dos
contornos do trabalho de investigação, chegavam a falar da sua realidade pessoal. Para esclarecer esta ideia, apresentamos aqui o
exemplo de uma menina de 10 anos.

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Dinha, ao responder à pergunta “Com quem vives?” no ‘questionário colectivo co-construído’, escreve que vive com o pai,
a mãe e as irmãs. Dias depois, num sábado, saindo juntas da escola onde estávamos para um ensaio, ela explica-me onde
mora e, em seguida, convida-me a conhecer a sua casa. Eu aceito e, pelo caminho, pergunto com quem vive, sem conhecer a
resposta que tinha dado no questionário. Ela responde que vive com a mãe, a avó e as irmãs, enquanto o pai vive numa outra
zona com a mulher dele. Uma vez em casa, a mãe explica-me a mesma situação. Na semana seguinte, Dinha é entrevistada
por uma colega com o gravador na mão, durante um encontro do grupo das entrevistas do qual faz parte.
Entrevistadora: “Com quem vives?”
Dinha: “Com a minha mãe e o meu pai.”
Entrevistadora: “Só?”
Dinha: “Com a minha mãe, o meu pai e as minhas irmãs!”
A entrevistadora passa à pergunta seguinte, enquanto eu assisto à cena de longe sem falar nada.

Nos momentos considerados “oficiais” da pesquisa, é visível a falta de hábito de participar dentro das formas propostas.
Duas consequências disso tornam-se evidentes sobretudo nos trabalhos em grupo: por um lado as crianças, interrogadas sobre ‘a
vida das crianças em Moçambique’, nunca falam das suas experiências pessoais e concretas, mas referem-se sempre ou a
conceitos abstractos, como os direitos das crianças, ou a outras crianças de quem ouviram falar ou que viram na rua ou na
televisão; por outro lado, falando destas outras crianças, dificilmente utilizam um conhecimento directo mas quase sempre
baseiam-se em imagens de crianças fortemente estereotipadas (as crianças de rua, as crianças órfãs, as crianças pobres,…) e
manifestam uma abordagem assistencialista, de querer ajudar.
Uma possível explicação do facto que as crianças não falem de si mesmas pode ser uma baixa auto-estima. As crianças
podem talvez não considerar relevante e interessante falar de si mesmas e das próprias experiências e procuram contar histórias de
outras crianças que nem conhecem.
Quanto ao facto de as crianças insistirem no discurso dos Direitos da Criança e falarem das outras crianças através de
estereótipos, reproduzindo os discursos governativos que são divulgados através dos mass media e dos próprios programas
escolares, podemos referir-nos ao sociólogo Elísio Macamo1, que aponta para as dificuldades dos estudantes moçambicanos em
desenvolver um pensamento crítico e criativo. Segundo a sua análise, tais dificuldades dependem do próprio processo de
socialização, durante o qual as crianças em casa aprendem que não se pode questionar a autoridade e a sabedoria dos “mais
velhos”; daí decorrem os constrangimentos em questionar e pôr em discussão o que se aprende na escola, o que se assiste na rádio
ou na televisão, o que diz a tradição e, a um nível mais amplo, o sistema em si, a política e as autoridades.
Estas conclusões permitem-nos confirmar como o estudo do grupo social da infância representa uma forma de entender
a sociedade no seu complexo. De acordo com Sarmento (2000), “ao estudar a infância, não é apenas com as crianças que a
disciplina se ocupa: é, com efeito, a totalidade da realidade social o que ocupa a Sociologia da Infância. Que as crianças
constituem uma porta de entrada fundamental para a compreensão dessa realidade é o que é, porventura, novo e inesperado no
desenvolvimento recente da disciplina. (…) A condição social da infância é, em qualquer sociedade, bem expressiva da realidade
social no seu conjunto”.
Quanto a escolha dos métodos de pesquisa, atestamos que nenhuma técnica de investigação é naturalmente participativa,
sendo que a forma como esta é aplicada, o contexto da investigação e as características dos sujeitos envolvidos determinam o seu
carácter mais ou menos participativo (Boyden & Ennew, 1997; Santana, 2008). Para que as técnicas participativas se tornem num
método de investigação viável tem sido sugerido que sejam utilizadas num contexto de diálogo continuo com as respectivas
crianças (O’Kane, 2005).
Uma investigação levada a cabo em tempos, espaços e situações diferentes, através do uso de uma vasta gama de
ferramentas sempre acompanhadas por uma observação mais ou menos participante, oferece-nos uma descrição e uma
compreensão ricas da realidade observada, porque consideram perspectivas diversificadas. No caso aqui descrito, enquanto os
trabalhos em grupo apresentaram as representações das crianças sobre o que ‘a vida das crianças em Moçambique’ deveria ser
(discurso dos direitos) ou é considerada ser (estereótipos das crianças órfãs e vulneráveis), as técnicas escritas e a observação
participante permitiram conhecer a realidade do dia-a-dia das crianças envolvidas na pesquisa. É exactamente esta a força da
metodologia compósita: uma combinação de métodos e técnicas que torna visíveis diferentes faces de uma mesma realidade,
oferecendo às crianças a oportunidade de se expressar através das suas múltiplas linguagens (escrita, oral, visual, corporal,
artística,…).
É também nesta direcção que apontam as palavras de Bento, um menino de 12 anos que participou da pesquisa,
enfatizando a necessidade de deixar abertos todos os caminhos que as crianças queiram percorrer, no âmbito da investigação:
“Para conhecer a vida das crianças deve-se aceitar o que as crianças têm a dizer, deixar as crianças contarem histórias,
deixarem as crianças dançarem ou qualquer coisa que as crianças querem fazer e também nós crianças devemos respeitar as
pessoas que querem nos conhecer e facilitar, não fazer barulho.” (Bento, trabalho realizado na sala, 22/08/2008)

1
Palestra Que Moçambique? Que Sociologia? Que Currículo?, apresentada pelo professor doutor Elísio Macamo em Maputo, Faculdade de Letras e Ciências Sociais
da UEM, no dia 18 de Setembro de 2008.

664
Uma pergunta permanece então aberta para todos os investigadores da infância: como será possível levar em
consideração todas as ideias e as sugestões das crianças e, ao mesmo tempo, fazer com que a investigação seja viável?

Referências bibliográficas
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O Surgimento dos Novos Estudos Sociais sobre a Infância no contexto da


Radicalização do Processo Histórico de Individualização da Criança
Rita de Cassia Marchi Marchi
Universidade Regional de Blumenau-FURB
[email protected]

Resumo: Um pressuposto desta comunicação é o de que o processo histórico de individualização, em sua forma inicial e como descrito por Elias e
Ariès, teve como um dos seus produtos a separação da infância como mundo institucional à parte do mundo adulto. A hipótese é a de que estamos
testemunhando contemporaneamente as “consequências” do processo de individualização das crianças: a intensificação/radicalização deste
processo (na versão contemporânea do ‘individualismo institucionalizado’ e na nova visão da criança como um “sujeito de direitos”) provoca na
sociedade a idéia de uma ‘crise social’ da infância. No quadro geral das “flexibilizações” contemporâneas a infância é também apanhada por uma
desnormalização/renormalização do seu estatuto. Este é um processo que está dialeticamente relacionado às profundas mudanças que têm atingido
outras instituições sociais centrais à vida das crianças na modernidade, como a família e a escola. Destaca-se que um dos evidentes sintomas da
desorientação e problemas que este processo causa, no meio social, é o surgimento, reflexivamente engendrado, das chamadas “novas disciplinas”
para os estudos sociais da infância e das crianças. Mas, o surgimento destes campos disciplinares pode ser entendido como de dupla face: uma
resposta do discurso especialista à demanda das dificuldades educativas e da diversificação dos modos de socialização contemporâneos e como
discurso engendrador destas e muitas outras dificuldades (de ordem política, ética, epistemológica, social e cultural) relacionadas à infância e às
crianças em todo o mundo e em cada contexto nacional, em particular. Esta comunicação discute estes novos estudos no caso brasileiro.

665
Introdução1
As incertezas contemporâneas que cercam a infância podem ser localizadas no momento em que a legitimidade
incontestada de sua natureza “natural” entra em declínio no confronto com sua natureza “construída” ou histórica. Esta
desconstrução do fenômeno é um dos mais visíveis efeitos da intensa reflexividade em torno de suas premissas ontológicas e que
permite admitir-se a diversidade de infâncias e o fato do seu caráter ser “aberto” e sujeito a contínuas transformações. Assim, a
partir de que a natureza inconteste e imutável da infância e da criança deixa de ser dada como certa, ficam disponíveis ao
inquérito muitas das suas características modernas ou “clássicas” (passividade, heteronomia, dependência, etc.). Decorrente deste
movimento, atualmente há uma simultânea tendência entre uma concepção global da infância e a crescente consciência da sua
diversidade ao redor do mundo (Prout, 2005). A infância passa a ser vista como formatada por sua homogeneidade – enquanto
estrutura de tipo geracional permanente nas sociedades – e por sua heterogeneidade – um fenômeno marcado pelas variáveis de
classe, gênero, etnia, etc.
Esta transformação de nossas representações tradicionais da infância pode ser creditada à fragmentação do seu
significado pela dinâmica dos processos gêmeos de modernização e individualização (características da modernidade ocidental)
hoje radicalizados na chamada segunda modernidade.
Um pressuposto deste artigo é o de que o processo histórico de individualização, em sua forma inicial como descrito por
Elias e Ariès, teve como um dos seus resultados a separação da infância como instituição à parte do mundo adulto. A hipótese é a
de que testemunhamos as “consequências” do processo de individualização das crianças. A radicalização/agudização deste
processo (na versão contemporânea do ‘individualismo institucionalizado’ e na nova visão da criança como um “sujeito de
direitos”) provoca na sociedade a idéia de ‘crise social’ da infância. No quadro geral das “flexibilizações” contemporâneas, um
“conjunto complexo e associado de rupturas sociais” é apontado como causa e condição dos atuais processos de
“reinstitucionalização” da infância (Sarmento, 2004). A infância é, portanto, também apanhada por uma desnormalização do seu
estatuto. Este é um processo que está dialeticamente relacionado às profundas mudanças que têm atingido outras instituições
sociais centrais à vida das crianças, como a família e a escola e que, por sua vez, têm sua existência relacionada às dinâmicas
sociais mais amplas como as transformações econômicas no mundo da produção e do trabalho.
Argumenta-se ainda que um outro evidente sintoma da desorientação e problemas que este processo causa, no meio
social, é o surgimento, reflexivamente engendrado, das chamadas “novas disciplinas” para os estudos sociais da infância. O
surgimento desta disciplinas pode ser entendido tanto como uma resposta do discurso especialista à demanda das dificuldades
educativas e da diversificação dos modos de socialização contemporâneos (Sirota, 2006) quanto como discurso engendrador
destas e muitas outras dificuldades (de ordem política, ética, epistemológica, social e cultural) relacionadas à infância e às
crianças em todo o mundo e em cada contexto nacional, em particular. Assim, aqui se trata também de uma certa análise da
reflexividade gerada na sociedade pelos que “pensam” o fenômeno e que, desta forma, estão permanentemente (re) construindo-
o. 2

O processo moderno de individualização e a infância


Este artigo relaciona o processo moderno de individualização à “construção social” da infância. Norbert Elias, na
década de 30, evidenciou sócio-historicamente que o desenvolvimento da idéia da criança enquanto ser individualizado, diferente
do adulto, é produto do (duplo) processo de civilização e de individualização (e privatização dos costumes) na esfera adulta das
classes dominantes a partir do Renascimento europeu. A atualização deste chamado individualismo dos costumes (Ariès,1991) é
realizada pela teoria do processo de individualização contemporâneo, particularmente centrada na obra de Ulrich Beck e a sua
versão do “individualismo institucionalizado” que substitui os ritmos de vida marcados pelo pertencimento a uma cultura de
classe ou uma família por “modelos institucionalizados de existência” na segunda modernidade. O objetivo é perceber seus efeitos
sobre a infância.
Se a idéia de infância tal como a conhecemos ou definimos modernamente surgiu na Europa entre os séculos XIII e
XVIII (como afirmam os historiadores da infância), a reflexão sobre o surgimento do seu “sentimento” não pode ser feita
separada de uma certa reflexão sobre o surgimento da própria modernidade e do papel que o “processo de individualização”,
referido aos aspectos subjetivos e biográficos do processo de civilização – desempenhou na sua construção social.3
Mesmo tendo emergido com clareza das teses de Norbert Elias, a associação entre o processo de individualização e a
construção histórica e social da infância tem sido muito pouco comum nos estudos. São poucas as referências existentes e, mesmo

1
Os estudos que fundamentam este artigo foram financiados pela CAPES, na Université René Descartes
(Paris V) e no Instituto de Estudos da Criança (IEC) da Universidade do Minho.
2
Trata-se da circulação do conhecimento social na “dupla hermenêutica”, característica das C. Sociais: “as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz de informação renovada sobre estas práticas, alterando assim, constitutivamente seu caráter” (Giddens, 1991,p.45)
3
Levar em conta, no estudo da infância, macro-unidades como a de “modernidade” permite ressaltar a generalidade do fenômeno (Qvortrup, 2005). “Infância
moderna” é aqui uma expressão que pressupõe generalidade e homogeneização.

666
quando afirmada ou sugerida, esta ligação não é desenvolvida pelos autores. Não obstante poucas, estas referências reforçam a
associação entre individualização e a idéia moderna de infância como pressuposto teórico.
A configuração individualista de idéias e valores que hoje nos é familiar não existiu sempre nem apareceu de um dia
para o outro. Dumont (2000) e Elias (1994a) traçaram a linha histórica que leva, para o primeiro, do holismo das sociedades
tradicionais ao individualismo das modernas e, para o segundo, da relativa liberdade das pulsões no indivíduo medieval ao
(exacerbado) autocontrole dos indivíduos modernos. Ambos elegeram o período medieval e especialmente a Renascença para
analisar o processo de desenvolvimento do que Elias denomina “processo civilizador” e Dumont chama de “ideologia moderna”.
É neste contexto de desenvolvimento histórico que se pode situar o surgimento da idéia moderna de infância. O estudo de Ariès
(1981) sobre a descoberta do sentimento da infância e o correlato processo de “individualização da criança” (Gélis, 1991) situa o
século XIII o período em que surgem, na iconografia européia, as representações de tipos de crianças mais próximos do
sentimento moderno da infância. O século XIII é também apontado por Elias e Dumont como o período em que os processos
históricos de que tratam têm, se não propriamente “início”, intensificação em seu desenvolvimento. Mas são os séculos XVI e
XVII que Elias, Dumont e Ariès apontam como os períodos cruciais para o desenvolvimento dos processos históricos que
analisam.
Ao investigar sócio-historicamente o que chamou de processo civilizador, Elias (1994a) não tinha por foco o fenômeno
do individualismo “em si” ou como valor característico ou dominante da sociedade moderna (tese que é a de Dumont). Tampouco
o seu objeto era a história da “descoberta” da infância. Elias descreve o processo de construção de um novo mundo adulto (através
da noção de “civilidade”) que teve como uma de suas consequências o aumento da distância entre adultos e crianças. Esta
inversão é particularmente interessante pois não se refere a uma intenção deliberada dos adultos em relação à
delimitação/segregação de um mundo infantil a partir da “descoberta” ou “consciência” de sua particularidade; se isto acontece é,
antes, como resultado de uma intenção em delimitar um “novo mundo” adulto. Esta sutil diferença de perspectiva em relação ao
estudo de Ariès, parece colocar a versão de Elias mais de acordo com uma idéia não-essencialista da infância: ela não estaria ali
como algo dado, latente, à sombra, pronta a ser “descoberta”, valorizada ou iluminada em sua “verdadeira” essência. Assim,
entendo que sua obra nos abre a possibilidade de ver a construção social moderna da infância e sua educação como um projeto
essencialmente político: a burguesia nascente projeta um “novo mundo” em direção crescente à liberdade e à individualização
igualitária de seus membros.
Este lema político pensado inicialmente como as relações ideais entre homens emancipados da ordem tradicional que se
estava deixando para trás estaria, na visão de alguns analistas, atingindo contemporaneamente as crianças, enquanto “indivíduos”
(Renaut, 2005; de Singly, 2004). Ou seja, como nossos iguais (ainda que “paradoxais”). Jenks (2005) também considera que as
filosofias moral e política que geraram algumas de nossas visões sobre o “ser” e o “tornar-se” não são isoladas dos grandes
projetos históricos: assim, a “criança do Iluminismo” e o seu forte legado contemporâneo foram parte de uma visão utópica de
construção do mundo projetadas em torno da supremacia da razão e da ciência ocidental.
Imersa na mesma esfera social dos adultos, ainda desembaraçada de instituições sociais segregadoras, a criança da Idade
Média tinha acesso a quase todas as formas de comportamento comuns à cultura. Esta “mistura cotidiana” era culturalmente aceita
devido o fato de ser pequena a distância entre os padrões comportamentais e emocionais de adultos e crianças. E isto porque,
como demonstrou Elias, era também pequena a distância que existia entre os próprios adultos: as noções de pudor, vergonha,
privacidade e individualismo não estavam ainda suficientemente desenvolvidas. O comportamento e a vida afetiva dos povos
ocidentais mudaram, no entanto, gradualmente em direção à “civilização”. Neste movimento, as “paredes invisíveis” que foram
erguidas entre as pessoas de uma mesma classe e entre estas (que forneciam o modelo) e as de outra classe – através do
comportamento cortês, depois civil e, por último, civilizado – são os indícios de um processo crescente de individualização, entre
adultos, que vai afetar também as crianças e os sentimentos a elas relacionados.
Para Elias “(...) quanto mais intenso e multifacetado é, numa sociedade, o controle dos instintos exigidos pelo correto
desempenho dos papéis e funções adultos, maior se torna a divergência entre o comportamento dos adultos e o das crianças”
(1994b, p. 104) e “torna-se mais difícil e demorado” o processo civilizador individual (leia-se “educação”). Ou seja, à medida que
aumenta o hiato entre o comportamento espontâneo das crianças e a atitude exigida dos adultos, aumenta o tempo de preparação
para a idade adulta. No aumento desta distância a infância se constitui como um tempo segregado, especial, no qual as pessoas
vão, aos poucos, passar os primeiros doze, quinze e agora quase vinte anos de suas vidas (Elias, 1994a, p. 175). A “infância” é,
portanto, “alongada” e são criadas para ela “instituições especialmente organizadas” para o seu preparo.
A distância que vai se construindo entre adultos e crianças é consequência também de que, no curso do processo
civilizador as pessoas procuram suprimir em si as características que julgam “animais” (suscetíveis de despertar embaraço e nojo).
A tendência passa a ser impedir que o “desagradável” e o “repugnante” estejam à vista. As “funções corporais humanas” afastadas
para o “fundo da cena social”, isto é, para dentro da “casa” como espaço fechado e lugar da “vida privada”, são aquelas que serão
também afastadas da convivência com as crianças (os segredos do sexo e da procriação, doença, morte). A isto Giddens (2002)
chama de “segregação da experiência”: processos de ocultação e separação de determinados fenômenos das rotinas da vida

667
ordinária. Ou seja, processos de “exclusão institucional” de questões existenciais fundamentais que apresentam dilemas morais
para o homem e que não cessam de efetuar um “eterno retorno” pois que este processo moderno de repressão não se completou.4
São estas ocorrências “naturais” da vida, até então ao alcance da visão e interpretação das crianças e das quais o
indivíduo adulto aprende a ter vergonha e a lidar com pudor, que constituirão os “segredos” (Postman,1999) aos quais aquelas só
paulatinamente e na medida de seu crescimento e educação em direção ao mundo adulto passarão a ter acesso. Assim, a
privatização dos impulsos e a “conspiração de silêncio” diante das crianças reforçam a idéia de que a infância é antes resultado de
uma nova concepção da idade adulta do que de uma deliberada concepção da “idade infantil”: são os adultos que, inicialmente, se
distanciam entre si, e, neste movimento, também das crianças.

A SI e a “crise social” da infância.


Atualmente, no cotidiano social e no discurso acadêmico (particularmente no âmbito da Sociologia da Infância - SI),
tornou-se comum falar de uma “crise social” da infância. Os indícios desta crise são controversos e, diferentemente, os analistas
apontam: o acesso irrestrito das crianças a certos saberes da vida adulta (a revelação de “segredos” proporcionada pelos meios de
comunicação), a crise das instâncias de legitimação da infância (família, escola) no quadro dos processos de
desinstitucionalização e de declínio da autoridade e a sua reinstitucionalização através de novos papéis e estatuto social atribuído
às crianças; a diversidade e a desigualdade de condições sociais entre infâncias e crianças; a individualização das crianças e sua
‘descoberta’ como ativos participantes do mundo em que vivem.
Esta crise, que tem como maior indício a tese do “desaparecimento da infância” (Postman, 1999), tem sido
diferentemente enfocada no interior da SI e fora dela, mas mesmo os seus mais veementes críticos entendem que ela aponta para o
fato de que as “velhas idéias sobre a infância” já não parecem adequadas na atualidade. Isto é, que determinados processos sociais
estão pondo em causa as representações e imagens da infância/criança dominantes nos últimos 200 anos ou que o “lugar” da
criança na sociedade já não é o mesmo de antes (Buckingham, 2002; Sarmento, 2004; Prout, 2005). Desta forma, no interior da SI
considera-se de maneira geral a ocorrência de um processo de enfraquecimento das rígidas distinções entre adultos e crianças na
forma como foram estabelecidas na modernidade: a infância estaria passando por profundas mudanças juntamente com outras
transformações que atingem as instituições sociais no quadro da segunda modernidade.
Assim, a chamada “crise social da infância” tem sido também entendida como uma “crise da autoridade” e uma “crise
da educação” em sua dupla face (escolar e familiar) (Renaut, 2005). Para alguns analistas, as transformações contemporâneas de
nossas representações da infância estão especialmente expressas na Convenção de 1989 que instituiu a criança como nosso “igual
paradoxal” – um sujeito com direitos (de liberdade, de participação) e, ao mesmo tempo, objeto de proteção. (Renaut, 2005;
Singly, 2004). Para outros, a emergência do movimento global pelos “direitos das crianças” tanto levou à discussão da sua
participação social e liberdade quanto, paradoxalmente, a níveis crescentes de seu controle institucional (Prout, 2005). De forma
geral, os analistas oscilam entre um franco pessimismo em relação ao “futuro” da infância e um otimismo que vê nestas mudanças
o surgimento de relações mais “democráticas” na família e na escola (e, portanto, na sociedade), passando por uma posição que
não vê nestas transformações “nada além” de um “caos normal” que se poderia esperar de um fenômeno que, sendo histórico, está
igualmente sujeito às transformações mais amplas ocorridas na sociedade.
Abaixo exponho brevemente a forma como diversos autores (de acordo com seus próprios pressupostos) discorrem
sobre a atual “crise” dos fundamentos modernos da infância.
Sarmento (2004, p.7) entende que, ao invés do “fim da infância”, estamos assistindo a processos de sua
“reinstitucionalização” tanto no plano estrutural quanto simbólico: “(...) mudanças que conjugam a plena expansão dos fatores
modernos de institucionalização da infância [a criação da escola, o centramento das crianças na família, a produção de saberes
periciais na administração simbólica da infância e a presença do Estado na criação de leis protecionistas] com a crise das
instâncias de legitimação e com as narrativas que a justificam, têm sérias implicações no estatuto social da infância e nos modos,
diversos e plurais, das condições atuais de vida das crianças.”
Buckhingham (2002, p.37) considera que as teses que apontam para o “desaparecimento” da infância “encarnam um
sentimento crescente de angústia pela mudança social e, em particular, pela mudança nas relações de poder entre adultos e
crianças”. Sua análise diagnostica uma “visão essencialista” da infância entre os cultores destas teses pois, embora reconheçam o
caráter histórico e construído do fenômeno (e o fato de ser passível de transformações), voltam, em última instância, à idéia da
infância como um fenômeno ‘natural’ que, implicitamente, se considera eterno e imune à mudanças.
Qvortrup (1995) elenca uma série de “desajustes” entre os níveis individuais (das famílias) e estruturais no que diz
respeito à ambiguidade” de nossa cultura acerca da infância. Para este autor não se trata de hostilidade dos adultos e sim da
“indiferença estrutural” da sociedade em relação às crianças pois recebem pouca atenção por parte da cultura, da economia e da

4
Um exemplo da “ocultação” de funções corporais e da “resistência” que se estabelece no cotidiano, foi a “amamentação de protesto”, noticiada pela imprensa
mundial em 2005, onde mães se organizaram para combater a discriminação e defender o direito de amamentar seus filhos em público. (FSP-18.06.05 – Amy Harmon,
New York Times). Este fato pode ser visto também como um exemplo dos paradoxos contemporâneos associados à infância, elencados por Qvortrup (1995).

668
política. Considera que o atual “boom” das pesquisas sobre a infância reside no fato desta ser vista atualmente como um
“problema social” ou “fonte prolífica de problemas sociais” tendo emergido em simultâneo em determinadas sociedades que
exibem em grande parte o mesmo numero de características sociais em um “mundo globalizado”.
Para Sirota (2006), da antiga invisibilidade a infância passa “à cena de frente” na sociologia, num movimento sobre um
objeto de “fascinação” e “tormentos”: os diagnósticos oscilam entre a “criança-rei” e a “criança vítima” mas sempre “criança-
problema”. Para a autora: “Não é mais possível pensar os problemas educativos, quer digam respeito à escola, à família ou à
mídia, sem nos interrogarmos sobre o novo estatuto da criança(...). Um bem tornado raro, ela cristaliza e encarna, no coração
de um movimento geral de desinstitucionalização, de um lado, um dos últimos laços sociais e de outro, todas as dificuldades da
transmissão, interrogando e sacudindo violentamente nossos quadros de representação e de interpretação dos modos de
socialização contemporânea.” (Sirota, 2006, p. 6)
Dando “adeus à infância (e à escola que a educava)” Narodowski (1999), autor que adere sem críticas às teses do
desaparecimento da infância, sugere o “fim da infância tal como nós a conhecemos” tendo por “pontos de fuga” dois grandes
pólos: o da infância hiper-realizada e o da infância des-realizada.5 A primeira é a das crianças que deixaram o lugar do “não-
saber” pois têm à disposição “computadores, internet, os canais de TV a cabo, os videogames”. Elas são o pesadelo (“pequenos
monstros”) de pais e professores: ao invés de depender destes, passam a “guiá-los em um mundo de caos” e não costumam
despertar o carinho e ternura tradicionalmente reservados à infância. A segunda é a infância “independente”, “autônoma” porque
vive na rua, porque trabalha. Estes dois pontos de fuga produzem crianças que não se conformam à imagem tradicional do
“aluno” que entra, então, em crise juntamente com a instituição que a criou. Neste processo, a autoridade do professor perde
legitimidade por não ser mais o portador do saber diante da criança destituída dele.
Para Alain Renaut (2005), a chamada “crise social da infância” pode ser entendida como uma “crise da autoridade” (e
da educação) que tem na escola o seu “paradoxo institucionalizado”.6 Numa sociedade democrática –que erradica as tradições e
as hierarquias – a escola tornou-se uma espécie de “ilhota de resistência à dinâmica democrática” (Renaut, 2005, p. 68) pois está
baseada em relações hierárquicas de tipo natural entre mestre e alunos. Para Renaut, a Convenção de 89 desestabilizou o
dispositivo tradicional da nossa relação com a criança que era tida até agora, acima de tudo, como aquela que os adultos deviam
proteger e educar. Este dispositivo entra em conflito com a representação da criança à qual reconhecemos direitos universais: os
direitos de liberdade e participação entram em contradição com as exigências dos direitos de proteção e educação como direitos
específicos da infância nesta mesma Convenção. A criança torna-se, portanto, uma figura particularmente temível dos paradoxos
da identidade democrática, pois a relação moderna com a infância não pode ser concebida senão sob a forma contraditória de uma
relação de igualdade e, ao mesmo tempo, de desigualdade em direitos. 7
Na mesma linha de reflexão das dificuldades de articulação entre os “direitos-liberdade” e os “direitos-proteção”
trazidas pela Convenção de 89”, Singly (2004) discute a “individualização da criança” contemporânea que transforma o modelo
educativo.8 A educação não tem mais por função modelar a criança segundo os desejos das gerações anteriores. O período
educativo deve ser aquele em que a criança desenvolve seus próprios recursos e assume sua singularidade. A criança
individualizada, segundo Singly, tem, no entanto, uma educação ainda mais “socializada” que a das gerações precedentes pela
diversidade de interlocutores e de espaços em que circula. Esta aprendizagem “horizontalizada”, não diminuiria o peso do coletivo
apenas diversificaria as fontes, permitindo um distanciamento de cada um dos pertencimentos (família, escola, grupo de pares,
etc.) A palavra chave nesta análise é a da “democratização” das relações educativas (na família, na escola), contestando a
“inversão de lugares” presente na idéia da “criança-rei” como decorrente da mudança no estatuto da criança.
Prout (2005) reconhece a diluição das fronteiras firmemente estabelecidas pela modernidade entre adultos e crianças
mas afirma que os comentadores do “fim da infância” interpretam as suas atuais transformações como sinais do seu
desaparecimento. Ou seja, estariam confundindo as “novas formas” da infância com o questionamento de seu status ontológico.
Isto porque as novas representações das crianças constroem-nas como mais ativas, mais problemáticas e mais causadoras de
problemas. Para este autor a infância está mudando juntamente com as mudanças que ocorrem no “mundo globalizado”. O
processo de globalização cultural que tanto homogeneíza quanto diferencia as condições sociais da infância faz surgir a
simultânea tendência entre sua concepção global e a crescente consciência da sua diversidade ao redor do mundo e o movimento
universal pelos direitos das crianças que tanto leva à discussão de sua participação social e liberdade quanto, paradoxalmente, a
níveis crescentes de seu controle institucional.

5
Este autor entende que a “criança” no sentido moderno (obediente, passiva, dependente, suscetível de ser amada, etc.) é uma idéia que passa por uma “crise de
decadência”.
6
Para este autor, a “fragilização” ou “declínio” da autoridade nas sociedades contemporâneas se revela particularmente visível nas relações entre adultos e crianças.
7
Este paradoxo, segundo o autor, somente pode ser compreendido com a releitura da história da infância no Ocidente e da modernização progressiva de nossas
sociedades: ao invés de exclusão e reclusão (como defendem as teses clássicas de Ariès e Foucault), a história da infância moderna se caracterizaria por um movimento
social e político de paulatina “libertação das crianças”.
8
Para a criança, significa que sua primeira dimensão identitária não reside na origem familiar ou social, mas que tem direito, desde que nasce, ao reconhecimento de
uma identidade estritamente pessoal (Singly, 2004, p. 08).

669
Curiosamente, a idéia da possibilidade do “fim” da infância foi, pela primeira vez, anunciada por aquele que anunciou
seu “nascimento”. No final dos anos 70 Ariès assinalou que “existe o risco de que na sociedade de amanhã (...) a criança não
siga concentrando em si, como acontece há um século ou dois, todo o amor e a esperança do mundo”.(Ariès, [1979] 1986, p. 17).
O historiador francês se refere a uma sociedade que estaria deixando de ser “child-oriented” como se verificara até os anos 60 e
localiza nos EUA (onde principalmente se “rendera culto” à criança) o lugar onde mais se evidenciava o “refluxo” em relação à
importância da infância ou o surgimento de uma franca hostilidade a seu respeito. Postman (1999,p.82) também localiza na
sociedade americana o crescente sentimento de hostilidade em relação às crianças e o lugar onde a “ambiência simbólica”, que
possibilitou o surgimento da infância como valor caro à sociedade, “começou a ser desmontada vagarosa e imperceptivelmente”.
Scheper-Hughes e Sargent (1989, p.29) corroboram o que consideram ser a “previsão” feita por Ariès no fim da sua
vida. Para as autoras, “a idéia moderna de infância está desaparecendo e as crianças estão perdendo terreno” no quadro da
recente proliferação de políticas públicas que lhes são hostis nos EUA, Canadá e Reino Unido. Políticas que estão rapidamente
desmantelando o “welfare state” e instaurando, no contexto da nova economia global, a idéia de uma “sociedade sem deveres”
(“duty-free society”): a retirada gradual do Estado das questões do bem-estar de populações vulneráveis, especialmente mães e
crianças. Assim, para aqueles que acreditavam na idéia moderna de infância como um tempo especial (a ser protegido) no ciclo da
vida, a “sociedade sem deveres” é a maior tragédia do florescente neoliberalismo do final do século XX : a idéia de inocência e
vulnerabilidade da criança – como uma idéia central no seu estatuto moderno – estaria sendo rapidamente substituída por políticas
e atitudes hostis à criança nas sociedades contemporâneas.

Teoria social contemporânea e a modernidade radicalizada


As posições expressadas por Giddens (1991, 2002), Bauman (2001) e Beck (2001), à parte suas divergências,
convergem ao afirmarem que as mudanças ocorridas a partir dos anos 70 nas diversas esferas institucionais da modernidade
significam a radicalização das condições postas no seu inicio. Para Giddens (1991), as transformações que estamos vivenciando
são as “consequências da modernidade” em sua “fase tardia”. Para Bauman (2001), o que faz a sociedade contemporânea tão
“moderna” quanto cem anos atrás e que a distingue de todas as épocas históricas anteriores é o duplo, irrefreável e sempre
incompleto processo de modernização e de individualização. Para Beck (2001), igualmente, as rupturas atuais acontecem no
interior de uma modernidade que se emancipa dos contornos da sociedade industrial clássica para adotar uma nova forma que ele
denomina “sociedade de risco”.9
As “rupturas sociais” contemporâneas são, portanto, amplamente associadas a um novo contexto social designado de
distintas perspectivas teóricas: pós-modernidade, pós-fordismo, sociedade pós-industrial, hipermodernidade, modernidade tardia,
segunda modernidade, modernidade reflexiva, modernidade líquida, sociedade da informação, sociedade de risco, entre outras
designações. Não caberia nos limites deste artigo caracterizar estes fenômenos e o complexo e aguerrido debate na atual teoria
social sobre modernidade x pós-modernidade. Cabe apenas ressaltar que, apesar das divergências teóricas, as principais mudanças
apontadas como sintomas das transformações sociais em curso são: a flexibilização da produção e da participação no mundo do
trabalho10, o declínio das instituições e do Estado-Nação, a descrença no poder da razão e da ciência em direção a um progresso
planejado, novas formas de entender o tempo e o espaço, ritmo extremo e alcance global sem precedentes das mudanças,
sentimentos generalizados de incerteza, insegurança e risco, expansão e fragmentação das redes de conhecimento, entre outras
mudanças significativas.
A teoria social contemporânea oferece quadros de interpretação das transformações sociais que atingem também a
infância na atualidade. Beck (2001) no quadro mais amplo da “individualização da desigualdade social” e Bauman (2001) no
quadro da “liquefação” dos laços sociais analisam – mesmo brevemente – a atual situação da infância ao abordar os conflitos no
interior da família. Para Beck (2001), a dinâmica da individualização e da destradicionalização das instituições engendradas pelo
processo de modernização não recua diante das portas da família. Pelo contrário, ela a invade e transforma suas formas e as
relações de parentesco, as formas de reprodução e contracepção, a divisão do trabalho doméstico, a vida do casal e também a das
crianças. O mercado de trabalho que, na primeira modernidade, pressupunha a “prole” e, portanto, uma família “por detrás” do
trabalhador assalariado, na modernidade reflexiva pressupõe uma sociedade isenta de famílias e casais. Homens e mulheres
devem “ir à luta”: serem autônomos e livres para obedecer às exigências do mercado e providenciar sua auto-existência. “O

9
O conceito de “sociedade de risco” está relacionado ao de “individualismo institucionalizado” e de “modernização reflexiva”. Este último é o termo que Giddens,
Beck, Lash (1997) adotam para a capacidade da sociedade de repensar a si mesma a partir dos riscos gerados no seu interior.
10
A idéia de “pós-modernidade” nasce associada à passagem do modelo fordista para o chamado regime de produção e acumulação “flexível”. A emergência de
“modos mais flexíveis de acumulação” e um novo ciclo de “compressão do tempo/espaço” na organização do capitalismo podem ser considerados como vetores de
outras grandes transformações, tais como as que ocorrem na “esfera da intimidade”.

670
indivíduo do mercado é o indivíduo sozinho, desembaraçado de todo empecilho relacional, conjugal ou familiar. A sociedade de
mercado a que chegamos é também uma sociedade sem crianças.” (Beck, 2001, p. 257, grifo no original).11
Assim, na “sociedade de risco” os casais têm que buscar soluções privadas para problemas que, estando dadas as
possibilidades que a sociedade lhes oferece, se resumem a uma repartição interna dos riscos, atualizando assim duas das
características centrais desta sociedade (repartição dos riscos e individualização de problemas socialmente criados). De acordo
com Beck, a questão que se coloca é a de quem (o homem ou a mulher) deve renunciar à independência e à segurança econômica
para cuidar da família, ou seja, renunciar ao modelo preconizado de existência em nossas sociedades contemporâneas.
Não tendo o indivíduo como furtar-se à imposição desta “escolha”, uma vez estabelecida, afetará o mais íntimo e
privado dos campos humanos – a possibilidade mesma de representar-se como um individuo que contribui para a reprodução de
sua sociedade não somente no nível das imagens ou modelos (uma mulher –ou homem – livre de amarras sociais duradouras das
quais a criança parece ser uma das últimas figuras, como lembra Bauman, 2001) mas, no campo mesmo da reprodução física
desta. E aqui entramos na área da demografia, onde a “rarefação de crianças” é problema que tem afetado centralmente os
chamados países desenvolvidos e apontado por Qvortrup (1995) como um dos paradoxos relacionados à infância: o fato de casais
estarem menos dispostos a gerar e educar crianças e a sociedade lhes proporcionar cada vez menos tempo e espaço, apesar do
discurso universal de sua valorização.12
A “ambiguidade” é, portanto, a característica das relações entre adultos e crianças a partir das mudanças verificadas na
família e na sociedade em meados do século XX. Para alguns sociólogos da infância o quadro social que se configura a partir
destas modificações aponta para a criança como um “problema” em torno do qual a decisão de fazê-las, ou não, vir ao mundo,
torna-se um ato com profundas implicações na vida do casal e do indivíduo (principalmente da mulher). Não há novidade neste
fenômeno de ordem demográfica que vem preocupando as nações “desenvolvidas”, mas considero que o “irrefreável” e
“constante” processo de individualização na sociedade moderna, tais como o definem os teóricos acima, tem implicações diretas
nesta questão. Se a individualização na modernidade tardia consiste em transformar a identidade humana de um “dado” em uma
“tarefa” a cargo e responsabilidade dos próprios indivíduos e onde responder pelas consequências (tanto as previstas quanto as
indesejadas) da própria escolha faz parte do jogo social; ser responsável pelo desenvolvimento e educação de crianças torna-se na
atualidade uma escolha cujas consequências tendem a se tornar cada vez mais imprevisíveis. Esta imprevisibilidade, característica
predominante da “sociedade de risco”, torna-se particularmente aguda, portanto, em relação às práticas sociais relacionadas às
crianças13.
Embora Bauman (2001) não inclua as relações geracionais (particularmente as existentes no interior da família) em suas
reflexões sobre o desmantelamento e a precarização das relações sociais na “modernidade líquida”, as profundas mudanças
atuantes no quadro desta não podem deixar de modificar profundamente também as relações entre pais e filhos ou entre crianças e
adultos no que este autor diagnostica como os atuais sintomas de “liquefação dos laços” conjugais e das relações trabalhistas ou,
ainda, nas relações que estabelece entre o processo de individualização e o ato compulsivo do “vício da compra”. Para Bauman,
“(..) não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens de mobiliário” (p.87), “vamos às compras” (ou às escolhas)
também visando extrair mais satisfação de nossas relações afetivas sem que isto nos corte a liberdade ou crie dependência do (e
no) objeto amado.
Se a “lista de compras”, segundo Bauman, não tem fim, podemos pensar que a decisão de ter ou não filhos (e quantos)
como mais um dos itens de “shopping”. Esta possibilidade emerge da incorporação, por este filósofo, da análise de Giddens sobre
os aspectos da mercantilização das parcerias humanas, particularmente a noção de “relação pura” como típica da construção da
auto-identidade na modernidade tardia.14 Neste sentido, para Bauman, o tipo de liberdade que “a sociedade dos viciados em
compras” elevou ao posto máximo de valor pode ser traduzido acima de tudo como “a plenitude da escolha do consumidor e
como a capacidade de tratar qualquer decisão na vida como uma escolha de consumidor (idem, p. 104, grifo meu). Pode-se dizer
que a criança é um investimento a “longo prazo” num mundo em que o “curto prazo” passou a ser o paradigma nas relações:
“Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais leves e superficiais forem, menor
o risco de prejuízos. Agora é a palavra chave da estratégia de vida, ao que quer que esta estratégia se aplique e independente do
que mais possa sugerir” (idem, p. 187, grifo do autor). Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante “esperto” fará o possível
para “viajar leve” e sem nada que lhe atrapalhe os movimentos, incluídas aí as crianças.15 No quadro do diagnóstico da extrema

11
Isto não significa que o “mercado” não tenha interesse pelas crianças elas próprias; pelo contrário, o consumo relacionado à infância é, como demonstram os
estudos, incrivelmente promissor; mas a criança permanece sendo, para a sociedade, como assinalou Qvortrup (1995), um problema (privado) dos pais.
12
Países desenvolvidos estão preocupados com as baixas taxas de natalidade e com o aumento do número de lares sem crianças no que isto significa em termos de
ameaça ao já sobrecarregado sistema previdenciário destas nações.
13
Para Beck (2001) e Giddens (2002) viver na “modernidade reflexiva” é viver em situação de dúvida metódica e de cálculo constante em relação às possibilidades da
ação e de previsão dos riscos e consequências desta. A imprevisibilidade faz parte do risco que não pode ser totalmente mensurado.
14
Este autor é cético em ver estas transformações como veículos de emancipação e garantia de uma nova felicidade pela autonomia individual e liberdade de escolha,
tal como se configuraria para Giddens. (Cf. Bauman, 2001, p. 105).
15
Kincheloe (2001) analisa o “advento da infância pós-moderna” através da série do filme “Esqueceram de Mim”, onde uma criança é “esquecida” em casa durante a
viagem de férias da família e tem que sobreviver às atribulações que o “estar por conta própria” lhe acarreta.

671
volatilidade das relações e das exigências de flexibilidade da vida (pós-) moderna, pode-se dizer que a criança é uma escolha que,
uma vez feita, não se pode “voltar atrás” (sem sérias consequências). As crianças são “involuntárias mas, duráveis consequências
das parcerias, como afirma Bauman (2001, p. 105) numa única referência a elas. E, quando estas são uma consequência não-
premeditada (ou não-desejada), pode-se imaginar o quanto o quadro tende a se tornar ainda mais complexo.
Concordo, portanto, com Beck (2001) quando diz que no curso do processo de individualização intrafamiliar, a relação
com a criança e a qualidade do laço “pais e filhos” também se transforma. Porque, se de um lado a criança pequena se torna um
obstáculo ao processo de individualização dos adultos, por outro, ela é um dos últimos laços primários subsistentes, insubstituível
e definitivamente irrevogável. Os casamentos e os casais vão e vêm, mas a criança permanece. Por isto têm também razão os
sociólogos que salientam na infância o seu caráter de estrutura social permanente.16 O laço social estabelecido com uma criança
na forma de maternidade/paternidade é irrevogável e para o qual não há segunda ordem.17 Assim, afirma Beck, a criança pode ser
vista como um tipo de forma privada de “reencantamento do mundo”: com as crianças podemos cultivar e celebrar uma espécie
de experiência social “anacrônica” (Beck, 2001, p. 60). De toda a forma, o “problema” permanece: as crianças são dependentes e
“custam tempo e dinheiro”. Um problema que talvez já esteja sendo “resolvido” (ainda que parcialmente, pois há evidentes
limites) com a crescente “individualização” e “emancipação” também das crianças. As posições dos analistas que vão do
“esbatimento” das fronteiras entre crianças e adultos ao “fim da infância” parecem sugerir ser o que está, em alguma medida,
ocorrendo.
Tendo sido abordado o problema da criança “não desejada” (a criança a “atrapalhar” as liberdades individuais
convocadas a se realizarem na modernidade) não se pode deixar de abordar o fenômeno oposto a este, o da “criança desejada”. De
forma ampla e culturalmente abordada, a possibilidade de se controlar a procriação aponta para um avanço capital na história do
individualismo: “l’enfant du desir” (Gauchet, 2004) é a criança do desejo privado, do casal intimizado, da família
desinstitucionalizada, da mulher que vê na maternidade uma experiência pessoal, onde não se reproduz mais para a sociedade,
mas para si. Se Gauchet cita a “privatização” da procriação pelo lado da mulher (ou do casal tradicional), Dagenais (2004) se
ocupa, ao refletir sobre o individualismo como uma “força” produtora da “família moderna”, dos casos que configuram, na
contemporaneidade – e no interior de um quadro de transformações das relações de parentesco – as manifestações de um eventual
reconhecimento do “direito individual à criança”: fenômenos como as “barrigas de aluguel”, a concepção via tecnologias de
reprodução, o reconhecimento da homoparentalidade. O autor igualmente aponta para uma relação contemporânea com a criança
que é fundamentalmente “narcísica” expressada na possibilidade atual (cujo fundamento é o reconhecimento da personalidade
jurídica do indivíduo) de se ter crianças para si.18
Embora pareçam fenômenos opostos (e o são, enquanto fenômenos concretos), o fato de se evitar ou, ao contrário,
desejar ter uma criança, está visivelmente – para os autores que analisam estes fenômenos – relacionado ao desenvolvimento do
processo de individualização contemporâneo. Assim, o que parece estar sob o foco destas análises, não é tanto o valor
(positivo/negativo) da criança em si (e das responsabilidades que sua presença acarreta) mas, o reconhecimento do individualismo
como força propulsora destas mudanças.
Esta é também a posição de Neyrand (2005). Para este autor, a obrigação de “realizar a si mesmo” – palavra de ordem
de nossa “hipermodernidade” – é a “tela de fundo” da evolução contemporânea das imagens sobre a criança. A lógica de
afirmação da subjetividade infantil, segundo o autor, é tridimensional e se erige no cruzamento do surgimento do ideal
democrático nas relações privadas (em torno das noções de liberdade individual,de autodeterminação e de igualdade entre
pessoas), da psicologização expressa na vulgarização midiática da problemática do sujeito e do desejo e da ação mercadológica e
publicitária da mídia. Nestas 3 dimensões, a promoção da criança em sujeito/ator segue caminhos divergentes que vão erigir
imagens diversas e complexas da criança como sujeito-cidadão, sujeito psicanalítico e sujeito consumidor. A este complexo vem
se juntar, recentemente, a nova imagem da “criança-vítima” que pretende dar conta dos riscos da manipulação midiática, da
ideologia do consumismo e da criança abusada. Para Neyrand esta imagem começa a se tornar central e a fragilizar a imagem da
criança-ator, constituindo-a em objeto passivo tanto da violência adulta quanto da “alienação consumista”. Neste sentido, assinala,
a defesa dos direitos da criança, importante e necessária que é, corre o risco de levar a um retorno às idéias de inocência e
passividade da criança.

16
Uma vertente teórica da SI discorda do uso da metáfora “estrutura” (Cf. Prout, 2005).
17
Sua revogação, excepcional, pode ser feita somente pelo Estado.
18
Contemporaneamente não se trata somente da decisão de ter crianças, mas também a possibilidade de tornar-nos “consumidores de bons genes” através dos
progressos da genética e das técnicas da biomedicina (Neyrand, 2005). A análise de Bauman sobre a possibilidade contemporânea de tratar qualquer decisão na vida
como uma escolha de consumidor, parece fazer aqui todo sentido.

672
Exclusão social e desigualdade de infâncias no Brasil
As críticas formuladas por Prout e Buchingham aos cultores das teses do fim da infância poderiam também ser
endereçadas, embora por motivos diferentes, a alguns analistas da infância pobre no Brasil.19 Isto porque assumem em seus
estudos como “natural” o modelo moderno de infância e de criança. Mesmo trabalhando com histórias de infâncias e crianças que
“escapam” ao modelo, defendem a sua extensão a todas as crianças, como se este estivesse historicamente disponível na sociedade
brasileira. Estes autores parecem entender que as diferenças das condições de vida das crianças na sociedade, não são mais que
“disfunções” ou “injustiças” a serem eternamente “corrigidas” no futuro, notadamente, na “defesa dos direitos” das crianças.
Neste sentido, é como se a infância pairasse, em ultima instância e como fenômeno social, acima das desigualdades e contradições
presentes na sociedade.20 Estes autores também não levam em conta as transformações que a infância sofre no seu estatuto nas
condições da segunda modernidade. Assim, a idéia que parecem ter da infância/criança é uma idéia “congelada no tempo” e cuja
defesa torna-se não somente politicamente ineficaz (um modelo que já não dá conta da realidade e que, no sentido de restrição de
liberdade, talvez nunca tenha interessado às próprias crianças) mas também pode contribuir, e este é o perigo político maior, para
a reprodução do que pretendem combater: as relações desiguais de poder e dominação na sociedade. Isto significando que,
embora a intenção destes intelectuais seja a de defesa dos direitos das crianças (pobres), ao tomarem por ideal a ser atingido, o
conceito burguês de criança – ao mesmo tempo, historicamente imposto e negado àquelas crianças – acabam por reforçar uma
idéia de infância/criança que tem, não somente se realizado apenas nos estratos médios e altos da sociedade brasileira, mas tem
também estigmatizado as que escapam a este modelo (caso das chamadas crianças “de rua”). Aderir sem crítica ao modelo
protetor é atitude que não contribui, portanto, para com a emancipação da criança seja qual for o domínio em que se pretenda que
esta aconteça.
A “consciência da diversidade” e das “desigualdades entre infâncias” (tendo sido recentemente “descoberta” ao redor do
mundo e enunciada pela SI), está presente há muito tempo em países como o Brasil e não se configura portanto como um “fato
novo”. Desta forma, o que no Brasil, desde os anos 90, alguns autores vêm denominando de “crianças em infância” e, desde os
anos 70, de uma “divisão no interior da categoria infância” entre “crianças” e “menores”, me permite expressar uma certa
sensação de “dejá vu” em relação à discussão que se estabelece em torno de sua “crise social” tal como debatida na SI. Voltarei a
esta questão adiante.
O “caráter de classe” da infância, evidenciado por Elias e Ariès na história da sua construção moderna fica evidenciado
também pelo fato de que, mesmo nas sociedades de centro, onde as tais “condições mínimas” (de que falam estes autores) para a
realização da infância foram mais amplamente conquistadas pelas famílias (e, de todo modo, garantidas pela existência de um
Estado de bem estar social), a infância se constituiu de forma desigual entre crianças.21 No entanto, também sabemos que a
infância na Europa parece ter se universalizado de um modo que não se realizou nas sociedades periféricas. Assim, a
universalização ou o “sucesso” da infância moderna na Europa e América do Norte possibilitou a sua exportação como modelo
para as sociedades do chamado “terceiro mundo”, em sua luta por atingir o nível de “civilização” das nações desenvolvidas.
Contemporaneamente talvez esteja ocorrendo um processo inverso: a crescente desigualdade entre infâncias apontada
pelos analistas e o fato das crianças serem o grupo social mais afetado pela miséria em todo o planeta poderia estar apontando
para uma tendência à “brasilinialização” da infância no nível mundial ?
Existe consenso na SI de que diferentes espaços estruturais diferenciam profundamente as crianças e suas infâncias.
Atualmente considera-se que a infância como uma fase da vida que se caracteriza por um período longo de “proteção social” com
– entre outras medidas – o afastamento das crianças do mercado de trabalho e das ruas, é antes exceção do que condição de vida
das crianças em contextos de pobreza em todo o mundo. Estudos apontam que crianças são, na verdade, o grupo etário mais
afetado por situações específicas de miséria e opressão em todo o planeta, assim como por situações históricas de guerra,
depressões e outros acontecimentos de grande escala. Estes estudos apontam também um aprofundamento das desigualdades
sociais no contexto da chamada “globalização” no que diz respeito a este grupo geracional: um fenômeno que Qvortrup (2005)
denomina de “pauperização da infância” correlato ao diagnóstico dos organismos internacionais sobre a “feminilização da
pobreza”. De acordo com este pesquisador, a infância parece mais vulnerável do que outras categorias geracionais não só
economicamente, mas também politicamente pois as crianças “não possuem poder para assegurar uma justiça distributiva”. Para
Qvortrup, o crescente reconhecimento da subjetividade das crianças, como expressada na Convenção de 89 “pouco mudou esta
realidade”.
Scheper-Hughes e Hoffman (1998) salientam que o atual discurso dos direitos da criança pressupõe um “individualismo
igualitário” que permanece antitético no quadro das hierarquias sociais características da sociedade brasileira. Conferir direitos
iguais para “todas” as crianças requer uma significativa redistribuição de recursos, poder e capital simbólico e aí reside o mais

19
Para os autores e estudos específicos aqui referidos, ver Marchi (2007).
20
Curiosa e paradoxalmente esta é a crítica que também pode ser feita a Prout (2005), embora ele parta da perspectiva exatamente oposta: a infância como construção
social ou como um conceito “aberto”.
21
Os sociólogos da infância reconhecem este incremento de infâncias desiguais, inclusive interno aos “países ricos”. Cf. Prout (2005, p. 20-23).

673
profundo obstáculo do projeto democrático. Democracia política não é suficiente se as condições sociais e econômicas que tornam
a cidadania possível não estiverem presentes. Na sociedade brasileira em que prevalece a exclusão social, uma “democracia sem
cidadãos” (Pinheiro, 1996 apud Hughes e Hoffman, 1998) não é estranha à idéia de crianças “sem-infância” ou à infância como
“privilégio” de poucos.
O enfraquecimento das proteções sociais a partir dos anos 70, também detectado nos países centrais, aponta o
surgimento de uma “precariedade social” que substitui a “sociedade salarial” (direitos trabalhistas consistentes, proteção social,
pleno emprego). As consequências disto sobre o indivíduo contemporâneo (que Bauman vê como a distância entre seu estatuto
jurídico e as possibilidades de sua realização concreta) Castel (2006) denomina de “individualização precária”, que diz respeito ao
individuo que não dispõe de um mínimo de recursos, suportes e direitos para conduzir sua existência com alguma autonomia.
Ocorre um movimento de “re-individualização” daquilo que eram considerados direitos e conquistas coletivas advindas de
movimentos históricos da classe operária. Este processo apela a novos imperativos no trabalho: responsabilidade, iniciativa,
autonomia, liberdade de movimento. Neste contexto, alguns têm recursos para se conduzir positivamente como “indivíduos” e
tirar benefícios destas mudanças mas outros não: o desempregado por longo tempo, o que não tem formação, o jovem “qui galère”
(que vive “em bando” nas periferias), isto é, os que vivem num estado permanente de precariedade. Estes são também os que Lash
(1997) chama de “perdedores da modernização reflexiva”.
Aqui nos defrontamos com promessas não cumpridas da modernidade que a 2ª modernidade se apressa a retirar. No
que diz respeito à infância, talvez por isto não tenha bastado universalizar o ensino obrigatório – pois isto não foi suficiente para
garantir “infância” a todas as crianças, assim como também não foi suficiente a luta (tanto a de fins do século XIX na Europa,
quanto a mais recente, que envolve os países “em desenvolvimento”) contra o trabalho infantil e que pode ser vista como outra
grande etapa no processo de tentativa de universalização do modelo moderno de infância/criança.
Nesta direção, compreendo que a luta pelos direitos da criança (nomeadamente na Convenção de 1989), pode ser
compreendida como mais um movimento no imenso tabuleiro de defesa da “norma da infância”. Uma parte da sociedade se
organiza para que a idéia de criança/infância não “desmanche no ar”, como já previa Marx em relação aos “sólidos“ da
modernidade. O problemático é que esta defesa dos direitos das crianças parece continuar enquadrada por uma visão muito
ocidental de infância/criança e que, novamente, se coloca “de cima para baixo”. Isto é, sua abrangência global (da mesma forma
que os direitos humanos, cf. Santos, 1997) tende a ser obtida à custa da sua legitimidade local: a infância nos moldes ocidentais
(tal como expresso na Convenção de 89) é novamente o modelo a ser universalizado independentemente dos contextos culturais
de sua implementação.

O processo de individualização contemporâneo e a radicalização da infância: o esgotamento ou crise de um modelo


Neste artigo argumento que a radicalização do processo histórico de individualização, inserido nas transformações
sociais, culturais e político-econômicas que ocorrem desde a segunda metade do século XX nas sociedades contemporâneas, é a
dinâmica propulsora da chamada “crise social” da infância. Se o processo de individualização - como a outra face do processo
civilizador e de modernização - está na base da construção moderna da infância, sua agudização não pode deixar de afetar aquela.
É a partir, portanto, do princípio de individualização radicalizado ou institucionalizado na segunda modernidade (Beck e Beck,
2003), que o argumento da “radicalização da infância” contemporânea será desenvolvido. Ao desenvolver este argumento tenho
em mente a relação dialética entre sociedade e individuo como foi introduzida no pensamento social por Marx e, mais tarde, por
Elias. Mas, tenho em mente também a forma como autores contemporâneos (e próprio Elias, no fim da vida) entendem que esta
dualidade vem se configurando na direção do indivíduo. Isto é, na direção de uma institucionalização da individualização.22
Para a compreensão das atuais transformações que envolvem a idéia de infância é preciso, de inicio, levar às últimas
consequências o fato de que a infância/criança moderna, com as características que lhe são normativamente atribuídas, é
originariamente uma idéia de classe que, depois de longo período, começa a dar sinais de esgotamento e provas de sua não
universalização. Podemos compreender que aquilo que Postman (1999) chama de “desaparecimento da infância” poderíamos
denominar de “esgotamento” de um determinado modelo na histórica imposição de uma idéia ou representação particular de
infância/criança. Esgotamento em relação ao “modelo autoritário” da socialização/educação das crianças (na família e na escola)
que entra em contradição com os princípios de individualização (e os de democratização nas relações interpessoais) na segunda
modernidade e não universalização das condições sociais e econômicas que tornariam a adoção do modelo preconizado não
somente necessária, mas também possível para classes sociais mais amplas. No entanto, o que chamo de “esgotamento” na
imposição de determinado modelo pode apontar, não para o fim da infância, mas para a sua radicalização: a hipótese é a de que
testemunhamos as “consequências” do processo histórico de individualização das crianças (ou a sua intensificação).

22
Não discuto, no entanto, a questão das consequências “negativas” ou “positivas” que esta tendência pode trazer aos chamados “laços sociais” ou às possibilidades
de “realização pessoal” em sociedade.

674
Esta tese só faz sentido se considerarmos que, como toda construção social, também a idéia burguesa de infância/criança
e sua institucionalização se desenvolveu presa ao contexto em que surgiu. Ou seja, a criança da primeira modernidade está ligada
a uma sociedade patriarcal, monogâmica, onde o modelo de adulto é dado por papéis sociais e sexuais definidos. A criança deste
período é a criança escolarizada, higienizada e suas características são suas faltas: ela é heterônoma, assexuada, sem razão e,
portanto, sem capacidade de ação. A criança como projeto político do outro (Marchi, 2007) tem na família e na escola as
instituições que estão encarregadas de sua “formação” em direção à fase adulta. Assim, os dois eixos em torno dos quais se erigiu
a infância moderna, individualização por um lado (cujo ápice é a consagração dos direitos individuais da criança a partir dos
direitos do homem e do cidadão historicamente produzidos no século XVIII e atualmente estendidos diferencialmente às crianças)
e socialização por outro (pela institucionalização de instâncias próprias: escola, família nuclear), entram contemporaneamente em
conflito aberto. Um conflito que parece “se resolver” pelo que Beck chama de “socialização para a individualização”, uma
“socialização contraditória” em cujo âmbito, pela primeira vez, o indivíduo pode estar se convertendo na unidade básica da
reprodução social.
Se entendermos, como os especialistas, que a modernidade não pára de se instaurar e sendo sua característica fazer de
cada sujeito um indivíduo “responsável” por sua autoconstrução, podemos entender que as crianças não ficam fora deste
movimento; pelo contrário, o processo de individualização contemporâneo radicalizado (Beck, 2001) leva à “flexibilização”
também do modelo instituído de infância. Os concomitantes processos históricos de civilização, de individualização e de
modernização abordados no início deste artigo e vistos como responsáveis pela origem tanto de uma nova concepção da idade
adulta quanto como tendo “inventado” a infância, não se esgotaram. Pelo contrário, analistas apontam um movimento constante
de (re)instalação da modernidade e, por isto, a chamam “reflexiva”. Assim como no Renascimento europeu um “individualismo
cortês” (ou “dos costumes”) mudou para o individualismo burguês e nos construiu “adultos” e “crianças” modernos, o
individualismo institucionalizado, atualmente, nos desloca novamente de nossos lugares à medida que mudanças se instalam ao
nosso redor. Neste movimento, diagnostica-se a radicalização da individualização nas sociedades contemporâneas. Surge uma
nova concepção de adulto, de trabalho, de amor, de vida em família e voilà, de infância e criança.
Faleiros (1995, p. 51) assinala que no Brasil vivemos o complexo processo “da construção de uma infância concebida
como independente e autônoma do poder dos pais (...)”.Para o autor, a idéia da criança–cidadã só foi incorporada na luta dos
movimentos sociais dos anos 80 devido à interferência do Estado na desprivatização da esfera doméstica no quadro de um grande
processo de mudança e reorganização social. A infância pode ser vista, então, como um último reduto, uma espécie de ilha onde
o processo de individualização contemporâneo batia às margens mas não conseguia penetrar devido à forte institucionalização a
que estava submetida em sua “forma clássica”. Creio que, por isto, a infância/criança “individualizada”, como veremos adiante, o
era no sentido negativo do “abandono” (da família), da “delinquência”, da “vida de rua” – longe das instituições socializadoras, as
únicas capazes de transformar “seres associais” em “membros legítimos da sociedade”. Mas a “libertação das mulheres”
(conjugado ao declínio da autoridade masculina) no limiar da segunda modernidade impeliu o processo de individualização
também à infância. Este penetra na família e atinge, por força das circunstâncias, todos os seus membros. Neste contexto, a
família e a escola entram no que se denomina de sua “crise” institucional.
A segunda modernidade, ao fazer de cada criança um “indivíduo de direitos” liberta-a relativamente dos laços que a
atavam solidamente (na primeira modernidade) às instituições família e escola. Neste sentido, a infância na contemporaneidade
(não mais somente a infância pobre) está também sob a atual égide do “faça-o você mesmo”, ou seja, as crianças passam a arcar
com a construção de sua própria biografia no chamado “projeto reflexivo do eu” (Giddens, 2002) e de serem responsabilizadas
(juntamente com suas famílias) pelo sucesso ou fracasso desta tarefa.
Assim, a radicalização contemporânea do princípio da individualização, exprimindo-se pela atribuição aos indivíduos da
obrigação de auto-regulação se exprime, quanto às crianças, na promoção do princípio de autonomia, com o declínio da
autoridade (paterna, institucional, etc.). Portanto, a “nova norma” da infância, expressa em termos do “indivíduo-criança sujeito
de direitos” da segunda modernidade enuncia-se como auto-normatização biográfica.
Mas, a individualização radicalizada das crianças atinge diferentemente crianças e infâncias e é percebido de modo
diverso na sociedade. Pode-se dizer que, como qualquer outro fenômeno social, o processo de individualização enquanto
relacionado ao processo de modernização ou de civilização (e, neste sentido, diz respeito a todas as pessoas) se reflete de forma
diferenciada junto aos atores concretos. Ou seja, não é independente das posições que os indivíduos ocupam no espaço social. É
neste sentido pertinente a análise de Bauman sobre o abismo entre a individualidade ‘jurídica’ e a individualidade ‘de fato’ e que
esta distância não pode ser ultrapassada sem o exercício da cidadania. Isto também no que diz respeito à “realização” da infância
(nos moldes modernos e no quadro dos seus direitos) para todas as crianças: algumas terão acesso à infância, outras serão
‘crianças’ apenas no plano jurídico.
O que hoje entendemos como “crise da educação” correlata à “crise da família” e da “autoridade” que começa a atingir
crianças de classes abastadas, esteve sempre presente no meio social das crianças pobres. Mas, se a individualização e a conquista
de autonomia são recomendadas como parte do processo de formação da infância realizada (a criança “livre para fazer suas
escolhas”- Singly, 2004), a autonomia e a independência em crianças pobres têm sido historicamente vistas como “precoces” ou

675
“anti-sociais”. Desta forma, os processos de autonomia e individualização das crianças na modernidade tardia, que refletiria,
positivamente, (n)uma “democratização” das relações no interior da família e da escola (Singly, Renaut), e, negativamente, no
“desaparecimento da infância”, está presente de forma perversa e proscrita (devido ao não acesso aos direitos básicos da infância)
entre as crianças pobres. Assim, a individualização destas crianças é um processo contraditório porque não tem correspondência
na realização de sua cidadania. Entre muitas destas crianças o processo radicaliza-se pelo fato de que acontece à revelia das
instituições socializadoras e, portanto, à revelia dos adultos (caso das crianças “de rua”).
Utilizo, de forma enviesada, a discussão de Alain Renaut (2005)23, para sugerir uma pista de compreensão deste
processo: modos contrastados de lidar historicamente com a infância – proteção e homogeneização das diferenças individuais por
um lado e liberação e individualização por outro – vêm se ombreando historicamente. O primeiro modo dominou por um longo
tempo sem que o outro desaparecesse. Na verdade, o segundo manteve-se presente mais evidentemente na individualização da
criança “hors de norme” ou “delinquente”, na criança “não socializada” e, atualmente, é visto como colocando a própria idéia de
infância em risco, porque aflora também entre a infância normatizada.
Assim, se o problema de Postman está na perda da autoridade de adultos e no “mau-comportamento” das crianças – o
que justificaria sua classificação como “conservador moral”24 – meu entendimento é de que o processo de individualização pode,
de forma dialética, provocar também nas crianças uma recusa em se conformar a um certo modo de ser “criança” na segunda
modernidade. Não se trata de ação deliberada das crianças de fazer frente ao modelo. Como todas as mudanças sociais, esta
“crise” da infância implica uma complexidade que envolve, a partir de sua desconstrução, a reconstrução contemporânea de sua
definição num jogo de forças entre diversos atores e grupos sociais (incluídas as próprias crianças). O fato é que, se a recusa ou
não adequação à norma se restringia até agora às crianças que não acessavam, por falta de condições materiais e simbólicas, o
modelo hegemônico de infância, esta não adequação começa a se manifestar ou a ser percebida em outras camadas sociais. A
infância burguesa, por tanto tempo submetida aos processos verticais de autoridade e socialização dentro da família e da escola
(sofrendo a “quarentena” a que se refere Ariès, ou à disciplina que se refere Foucault), excluída do mundo adulto (dos seus
direitos e deveres), enfim, uma infância que cumpria sua “norma”, passa, contemporaneamente, a ser desinvestida e, ao mesmo
tempo, a desinvestir-se dela.25 A partir deste momento o atual “problema” da infância se coloca, passando a atrair a atenção dos
especialistas.
Defendo, portanto, que no caso da infância pobre, não se trata de “crise” mas de não-realização da infância nos moldes
em que a instituiu a modernidade; do não acesso de crianças às condições materiais e simbólicas necessárias a esta realização.
Neste sentido, a idéia do “desaparecimento” da infância/criança faz sentido apenas junto à infância realizada (junto à infância
com meios materiais e simbólicos para a sua efetivação), porque a idéia de infância/criança junto às famílias pobres sempre foi
uma idéia-problema, tendo a sua institucionalização “perturbada” por dois grandes “tipos” de dificuldades: os que podemos
chamar de “pedagógicos” e que tem no chamado “fracasso” ou “insucesso” escolar a sua mais definida expressão (ainda que
ideologicamente camuflada na idéia socialmente aceita de meritocracia) e as dificuldades s relacionadas ao comportamento
“desajustado” ou “desviante” da criança na família e/ou na comunidade e que tem na chamada “delinquência juvenil” a sua face
mais expressiva.
Assim, considero que Buckhingham (2002) tem razão ao afirmar que, se sempre houve, entre as crianças e jovens das
classes baixas, problemas relacionados à sua “educação” (drogas, gravidez, delinquência, indisciplina) o fato “alarmante” é que
hoje estes problemas começam a surgir entre os filhos das classes médias, o que faz com que pais e professores passem a se
preocupar com estas mudanças no seu comportamento. Se o propagado “fim da infância” ou sua “crise social” podem antes ser
entendidos como problemas relacionados à imposição de uma norma ou um “tipo ideal” de infância/criança, o fato é que, quando
ainda somente relacionados à “infância pobre”, estes problemas tornavam antes “caso de polícia” do que caso “de ciência”, como
o demonstra a história das políticas de assistência à infância pobre no Brasil e América Latina (cf. Pilotti e Rizzini, 1995). Assim,
se pode considerar que a propagada “crise social” da infância não tem o mesmo significado para todas as crianças: muitas crianças
no Brasil e no mundo estão há muito tempo sendo fruto da negação da infância tal qual modernamente estabelecida.
No entanto, cabe assinalar: se representações negativas que só se referiam às crianças com “problemas de socialização”
estendem-se agora à infância de forma geral, quaisquer mudanças nas representações sociais da infância ou da criança não podem
deixar de afetar todas as crianças seja quais forem as suas condições concretas de vida. As desiguais condições de realização da
infância de crianças pobres tendem, na verdade, a se tornar ainda mais dramáticas se a sociedade realmente estiver desconstruindo
a idéia de infância como um período da vida a ser priorizado e protegido socialmente.26

23
Para uma discussão sobre o livro “A libertação das crianças” de Alain Renaut, ver Le Debat, 2002.
24
Cf. Buckingham (2002), Prout (2005), Sarmento (2004).
25
A “norma” da infância é a prescrição de saberes sobre a criança que integra seu “processo de institucionalização” na primeira modernidade e convenciona padrões
de “normalidade/anormalidade”.
26
No sentido das políticas públicas voltadas às crianças - no quadro da “sociedade sem deveres” (S. Hughes e Sargent, 1998) - e no nível dos limites simbólicos da
infância, como ilustra decisão de juiz brasileiro em absolver acusado de estupro de uma menina pela suposição de que não existem crianças e sim“mulheres de 12
anos” (devido à abertura que a televisão proporciona em relação ao sexo).

676
A discussão travada por Alain Renaut (2005), sendo pertinente para as reflexões do novo estatuto da infância; ao
concentrar sua problemática na articulação entre “direitos-proteção” e “direitos-liberdade”, estabelecidos pela Convenção de 89,
pouco oferece à discussão que se trava no Brasil, centrada na possibilidade de efetivação dos direitos-proteção. Aqui, trata-se
antes de garantir igualdade entre crianças. A igualdade da criança na relação com o adulto enfatizada por Renaut,– ou seja,
enquanto um ser livre – resta, por motivos macro-estruturais, em segundo plano na sociedade brasileira. Este é o motivo – aliado à
concepção tradicional das crianças como essencialmente passivas e indefesas – pelo qual a criança brasileira pobre permanece
sendo preferencialmente vista nos estudos das Ciências Sociais como essencialmente “vítima” das estruturas (cf. Castro, 2005;
Marchi,2007).
Desta forma, creio que existem dois tipos dominantes de preocupação nos estudos sociais sobre a infância na atualidade:
as relativas às mudanças que ocorrem no modelo burguês de criança/infância (aqui localizo as discussões travadas no âmbito dos
novos estudos sociais da infância) presentes de forma mais dominante nas sociedades de centro e as relativas às crianças que,
devido à falta de condições sociais, ficam aquém do modelo institucionalizado. Esta é uma preocupação presente nas sociedades
ditas em desenvolvimento (caso do Brasil).27 Pode-se sugerir, portanto, que a discussão contemporânea sobre a infância e sua
“crise” está restrita em grande parte às especificidades dos contextos nacionais. Para Sirota (2006) o fato das pesquisas no Brasil
estarem concentradas nas políticas de proteção à criança pobre pode gerar uma “sociologia da infância crítica” que questiona as
ideologias e categorizações das políticas que associam pobreza à delinquência e crianças “de rua” a abandono familiar, entre
outros estereótipos.
Pode-se considerar que, ao abordar a “crise social da infância” a SI tem, em grande parte, permanecido presa às crianças
que seguem a norma da infância ou àquelas que exercem o que ela própria reconhece ser o “duplo oficio” de toda criança (ser
filho, ser aluno). Os desafios teóricos e epistemológicos colocados pelas crianças que escapam à norma não têm sido, exceto
poucas exceções e, de maneira geral, considerados no interior desta nova disciplina. O panorama que viemos traçando para o
“futuro da infância” continua caracterizado, assim, por dois tipos (ainda que o considerado “tipo ideal” – o modelo burguês de
criança – esteja passando por transformações): a infância individualizada que tem na sociedade de consumo a sua condição de
realização e a infância não realizada (onde o processo de individualização não deixa de estar presente, mas, como vimos, com
outro significado).

Reflexividade e os novos estudos sociais da infância


Um evidente sintoma da desorientação e dos problemas que a radicalização da individualização das crianças causa é
também o surgimento, reflexivamente engendrado, dos atuais estudos sociais da infância. Estes estudos surgem paralelos à uma
literatura mais ou menos popularizada que busca enunciar supostas “causas” e “soluções” para o fenômeno no rastro da
preocupação de pais e professores com a mudança no comportamento das crianças e das leis que lhes dizem atualmente respeito.
A “plasticidade” que, atualmente, é acordada ao conceito de infância como “construção social” não tem sentido
unívoco. O reconhecimento da heterogeneidade da infância trazido à tona pelos novos estudos, se tem como lado positivo a
relativização do modelo hegemônico, tem também um lado que se pode dizer “problemático” no que pode sugerir uma
minimização do peso das desigualdades entre crianças (e suas infâncias). Além disto, ao retirar-se da infância o que ela tem de
“sagrado” ou “eterno”, pode-se estar a retirar sua “aura”, aquilo que a defenderia da perda de força simbólica na sociedade. Neste
sentido, um dos riscos da relativização contemporânea da infância é o de, no limite, senão justificar, ao menos tornar aceitável a
negação da infância (nos moldes modernos) para determinadas crianças.
Isto porque, se passamos a entender que a infância é social e culturalmente moldada, o risco é se passar a aceitar que
todo “tipo” de infância (por mais miserável ou isenta de direitos que seja) é justificável. Ou seja, se na pré-modernidade não havia
infância nem crianças como modernamente as concebemos, pode-se considerar possível que venham a deixar de existir ou de que
assumam, em cada grupo social, sua própria “forma”. Neste sentido, a relativização da infância pode estar em sintonia com a
tendência na segunda modernidade de atribuir não mais à sociedade, mas aos indivíduos (ou a cada família) a tarefa de encontrar
soluções particulares para um fato que é social. Aqui se configuraria o que Bauman (1999) chama a “dessocialização” de
problemas sociais, que traduz a injustiça social como inépcia ou negligência individual. A idéia da “criança ator” vulgarizada e
disseminada no contexto social e cientifico, como já alertam alguns analistas, pode também acarretar riscos como o da des-
responsabilização dos adultos diante das crianças.
A idéia da “flexibilização” da infância (formas e tempos que cada “tipo” de infância pode assumir) pode assim ser
exercida em prol não das crianças e seus modos diferenciados de viver sua idade com mais ou menos de autonomia, mas em

27
A desigualdade de infâncias existe também na Europa em famílias imigrantes de ex-colônias mas, na França, o fato é tratado pela “Sociologia da Imigração”( Sirota,
comunicação pessoal). Neste contexto, a “criança pobre” volta a ser um dado da estrutura familiar e de fenômenos sócio-econômicos. Assim, a SI francesa se atém à
infância normatizada. Contrastando a ênfase entre estudos brasileiros e franceses, Sirota (2006, p. 22) afirma: “(...) a criança pobre não interessa diretamente aos
sociólogos da infância franceses.(..) o esforço teórico se dá em torno da constituição da alteridade da infância, mais que na análise da continuidade da reprodução
das relações de classe(..).”

677
proveito de uma lógica econômica onde cada família deve arcar com os custos de determinada infância. No capitalismo a infância
foi também transformada em mercadoria e, como toda mercadoria, não é gratuita. Nem disponível a todos. Para o pensamento
econômico dominante, a criança não é mais sinônimo de não consumidor ou de consumidor indireto. Que assumam sua posição
em nossa “democracia de consumidores” (Sennet, 2000) desde a mais tenra idade é a ordem para que a infância não seja um
desperdício de tempo e energia social. Desde cedo ela precisa “pagar” (ou que paguem por ela) por seu lugar no mundo.
Assim, perceber todas as crianças como tendo “infância” é apostar numa igualdade no nível biológico e representacional
(no caso das crianças “de rua” a igualdade não se dá nem neste ultimo nível pois não são percebidas como “crianças”, cf. Marchi,
2007), mas que é negada nas condições concretas de existência das crianças. Nesta compreensão, a desigualdade deixa de surgir
como contradição intrínseca à construção moderna da infância para ser entendida como uma “lamentável contingência” de
contextos sociais diferenciados: temos aqui ocultado seu caráter de classe. O movimento inverso é subtrair a infância do plano
metafísico em que parecem se congregar ideologias e consensos em torno de sua importância e direitos. Neste sentido, este é um
sério problema a ser enfrentado pela SI: no embate com os estudos em países onde as condições de vida das crianças estão muito
aquém do desejável, a relativização que propõe ao conceito de infância/criança pode vir a representar um fator a mais de
“entrave” na luta pelo acesso de todas as crianças à “infância” (cf. Qvortrup, 1995). O fato da SI ter surgido nos rastros do
enfraquecimento teórico do marxismo e do estrutural-funcionalismo voltados às instituições sociais para uma sociologia do
indivíduo ou do ator social podem reforçar esta percepção.28

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28
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678
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679
Crime, dependência e direito

Da Exclusão e do Racismo à Criminalidade. Um Estudo de Caso no Bairro da


Atouguia em Guimarães.
Manuel Carlos Silva
Universidade do Minho
[email protected]
Sílvia Gomes
Universidade do Minho
[email protected]

Resumo: Cinco séculos de vida em comum dos portugueses com o grupo étnico cigano, fazendo com que seja possível assegurar que são o grupo
étnico com quem há mais tempo convivemos em território nacional, e o que na realidade se assiste é a um grande desconhecimento de parte a
parte. E, não chegasse já este desconhecimento - resultante, por um lado, da comunidade em geral que intolera a cultura cigana e, por outro lado,
da comunidade cigana que ignora por vezes os direitos e deveres que lhes assistem enquanto cidadãos, vivendo num grande isolamento -, ele vem
acompanhado também de um conjunto de imagens estereotipadas construídas ao longo destes anos e que não abonam nada em favor de uma
convivência pacífica entre os dois grupos. As condutas e comportamentos relativamente ao grupo étnico cigano, por parte da sociedade
portuguesa, demonstram a existência de uma verdadeira “questão cigana”. Os ciganos são rejeitados, excluídos, vistos com desconfiança e
despertam uma sensação de insegurança e de receio na população em geral. De qualquer forma, nem todos os ciganos são delinquentes, nem o
problema da delinquência se resolve com insinuações racistas. É necessário tomar medidas sociais urgentes para que se resolva esta questão de
abusiva extrapolação do particular para o geral - um cigano por ser criminoso, não torna todos os ciganos criminosos - e se deixe estas concepções
racistas que somente os exclui e indigna, empurrando-os muitas vezes, efectivamente, para práticas criminosas. Tendo em conta isto, predispus-
me a evidenciar que as práticas de criminalidade decorrem muitas vezes de factores relacionais, como a exclusão social e o racismo, mais do que
das características culturais do grupo étnico cigano. Para isso fiz um estudo de casos no Bairro da Atouguia (Guimarães). A exclusão social e o
racismo mostraram-se evidentes – pois foram inúmeras as clivagens e divergências que a população maioritária cavou relativamente aos ciganos –
e as práticas de criminalidade são na verdade um reflexo do que se passa na sociedade envolvente, quer ao nível da execução, quer ao nível da
rotulação do crime.

Introdução
Cinco séculos de vida em comum dos portugueses com o grupo étnico cigano, fazendo com que seja possível assegurar
que são o grupo étnico com quem há mais tempo convivemos em território nacional, e o que na realidade se assiste é a um grande
desconhecimento de parte a parte. E, não chegasse já este desconhecimento - resultante, por um lado, da comunidade em geral que
ignora e intolera a cultura cigana e, por outro lado, da comunidade cigana que ignora por vezes os direitos e deveres que lhes
assistem enquanto cidadãos, vivendo num grande isolamento -, ele vem acompanhado igualmente de um conjunto de imagens
estereotipadas construídas ao longo destes anos e que não abonam nada em favor de uma convivência pacífica entre os dois
grupos.
As condutas e comportamentos relativamente ao grupo étnico cigano, por parte da sociedade portuguesa, demonstram a
existência de uma verdadeira “questão cigana”. Os ciganos são rejeitados, excluídos, vistos com desconfiança e despertam uma
sensação de insegurança e de receio na população em geral.
De qualquer forma, nem todos os ciganos são delinquentes, nem o problema da delinquência se resolve com insinuações
racistas. É necessário tomar medidas sociais urgentes para que se resolva esta questão de abusiva extrapolação do particular para o
geral - um cigano por ser criminoso, não torna todos os ciganos criminosos - e se deixe estas concepções racistas que somente os
exclui e indigna, empurrando-os muitas vezes, efectivamente, para práticas criminosas.
Tendo em conta isto, predispusemo-nos a evidenciar que as práticas de criminalidade decorrem muitas vezes de factores
relacionais, como a exclusão social e o racismo, mais do que das características culturais do grupo étnico cigano. Para isso foi
feito um estudo de caso no Bairro da Atouguia (Guimarães), um bairro social fortemente estigmatizado e onde vivem muitas
famílias ciganas, assim como famílias não ciganas. Ao longo dos anos, várias imagens foram construídas sobre e entre os grupos,
adoptaram-se formas e estratégias de convivência, os comportamentos e atitudes foram-se moldando e mesmo assim, embora se
denote um esbatimento dos conflitos, eles persistem. E, alguns deles dão mesmo azo a uma grande tensão no bairro. A
criminalidade e insegurança, como em qualquer bairro negativamente afamado, são fenómenos atribuídos ao bairro.

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1. Modelo de análise e Metodologia
Esta investigação sociológica teve como objecto de estudo a população cigana e a população não cigana do Bairro da
Atouguia, em Guimarães. Para se conseguir compreender de uma forma mais intensa, quer em amplitude, quer em profundidade,
os fenómenos da exclusão social, do racismo e da criminalidade, neste bairro, foi necessário proceder à realização de um estudo
de caso. Este método ou estratégia de investigação, devido às suas potencialidades, apresentou-se como sendo adequado(a) ao
objectivo desta investigação. Além de ter a capacidade de lidar com uma grande variedade de evidências (Yin, 1994: 20), que
adveio do cruzamento de várias técnicas de recolha de dados - questionários, entrevistas, observação, documentos, etc. - permitiu,
também, compreender melhor os fenómenos em estudo e qual a relação entre eles, pelas diferentes formas de chegar à informação
pretendida. Com isto obteve-se uma informação mais rica e detalhada e permitiu encontrar elementos que não estavam previstos
nas teorias e/ ou estudos já levados a cabo noutros momentos ou noutros espaços.
As técnicas usadas no estudo de caso foram, essencialmente a pesquisa documental, o inquérito por questionário, a
entrevista e a observação directa não participante. No caso da presente investigação foram lidos e analisados trabalhos de
cientistas sociais, imprensa, estatísticas, publicações e outros documentos oficiais, designadamente processos crime arquivados no
Tribunal de Guimarães. Estes documentos que relatam alguns aspectos da vida social em estudo, são socialmente produzidos
também. Este foi um facto que se teve sempre em conta para fazer uma análise mais assertória e para não fazer associações
descabidas. De qualquer forma foram muito importantes não só para introduzir e enquadrar esta investigação mas também para
analisar e compreender a realidade estudada.
Uma vez que em estudo não estava somente a população cigana, mas igualmente a população não cigana do bairro,
procedeu-se à aplicação de dois inquéritos por questionário. Este método foi escolhido para recolher dados relativos à
caracterização socio-económica do conjunto da população estudada e, também, para fazer uma primeira abordagem aos
fenómenos em estudo - a exclusão social, o racismo e a criminalidade - de uma forma menos intrusiva. No decurso da aplicação
dos questionários, várias perguntas adicionais foram feitas para conseguir entender melhor a realidade em estudo. Os “porquês”
feitos a muitas respostas que à partida pareceriam óbvias levou a que entrasse em algumas ideias-chave desta investigação. A
construção dos dois inquéritos aplicados foi da responsabilidade da equipa a colaborar no projecto coordenado pelo Professor
Doutor Manuel Carlos Silva, docente e investigador da Universidade do Minho, projecto subsidiado pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia. Para este estudo, especificamente, apenas houve um pequeno encurtamento e ligeiras alterações do mesmo. O
universo da pesquisa, do qual fazem parte os indivíduos ciganos e não ciganos e a quem foram aplicados os questionários, foi
todos os indivíduos maiores de doze anos residentes no Bairro da Atouguia. O número exacto de moradores não foi possível de
todo apurar pois não existem dados recentes no concernente à actual situação do bairro. Contudo, tendo em conta outros estudos
feitos neste mesmo espaço, pode afirmar-se que o bairro é habitado por cerca de 2000 moradores, número este demasiado amplo
para abordar o universo na sua totalidade. Por isso, foi necessário recorrer à amostragem. No caso dos indivíduos não ciganos, o
inquérito foi dirigido a 61 famílias. No que diz respeito aos ciganos, uma vez que há apenas um total de 14 de famílias no bairro,
abrangeu-se todo este conjunto, aplicando um questionário por cada família. No total ficou-se com uma amostra de 75 inquiridos.
Esta amostra foi distribuída pelos diferentes blocos existentes no bairro. Tendo em conta o facto de os blocos não terem o mesmo
número de moradores, procurou-se fazer uma réplica do universo, respeitando a variável bloco: uma amostragem por quotas. Para
cada quota (bloco), os elementos foram escolhidos “ao acaso”, de forma acidental. Relativamente aos indivíduos ciganos, uma vez
que não se sabia exactamente que casas habitavam e em que blocos, a estratégia de amostragem foi a de “bola de neve”. Isto é, à
medida que se ia inquirindo a população, pedia-se que indicassem onde viviam indivíduos de etnia cigana. E uma vez estes
inquiridos, pedia-se a estes que colocassem em contacto com outros indivíduos da mesma etnia. Desta forma, uma cadeia de
informantes foi seleccionada e conseguiu-se abranger toda a população cigana do bairro.
As entrevistas surgiram como uma forma de colmatar os limites e problemas do inquérito por questionário e como um
meio para aprofundar alguns dos aspectos em estudo, nomeadamente as práticas de criminalidade e as relações interétnicas
potenciadoras de exclusão social e racismo no bairro. Foram realizadas 12 entrevistas divididas entre a população cigana e a
população não cigana. As pessoas escolhidas para serem entrevistadas foram sendo seleccionadas no decurso da aplicação dos
questionários pelo seu à vontade em se expressar verbalmente e pela representatividade e diversidade que tinham ao nível de
conteúdos das respostas às questões colocadas. Tentou-se, portanto, incluir na população entrevistada posições, ideias e atitudes
diferenciadas de modo a entender e compreender a realidade em estudo. Fora do bairro, tomou-se a liberdade de entrevistar
igualmente alguns moral entrepeneurs para acurar as teorias relativas à sociologia criminal, designadamente as que dão um
importante relevo às instâncias de controlo. Estas entrevistas foram apenas “conversas com objectivo”, não elaborando para elas
qualquer guião.
A observação directa não participante revelou-se muito importante para confirmar ou, por outro lado, para refutar aquilo
que era produzido no discurso verbal pelos indivíduos estudados. Além disso, foi um óptimo método de recolha de dados no que
respeita aos códigos de comportamento, aos modos de vida e traços culturais e à organização espacial dos diferentes grupos.
Durante o período em que ia administrando os inquéritos e as entrevistas, os passeios regulares pelo bairro e o contacto com as

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pessoas residentes permitiram entrar no mundo do bairro social, nas formas de pensar e sentir da população que tem fortes
dificuldades em resolver os seus próprios problemas e sujeita a vários tipos de exclusão.

2. A Exclusão Social e o Racismo Persistentes


A análise dos processos de exclusão social existentes no Bairro da Atouguia leva-nos imediatamente às questões do
racismo. Torna-se essencial a análise da atitude de desconfiança e retraimento da população maioritária face à população cigana e
a forma aberta mas cuidada com que a população cigana se mostra perante a população não cigana. Estes dois pontos são
fundamentais para explicar mais à frente a temática da criminalidade do grupo étnico cigano.

2.1. A Exclusão Social: algumas notas


Tendo em conta o pensamento de Costa (2003) e Machado (1992), a etnicidade é um fenómeno social que é tanto mais
relevante quanto mais acentuados são os contrastes sociais e culturais entre o grupo étnico e a restante população (Costa, 2003:
60, Machado, 1992: 124). Estes contrastes são propiciadores de fronteiras entre as duas populações em análise.
É que, além de ambas as populações na maioria das vezes deterem um papel de exclusão face a aspectos geográficos,
económicos, sociais e mesmo culturais - este último no que diz respeito especificamente à população cigana -, não se dá uma
união entre estes. Efectivamente, as questões culturais levam a que a população maioritária exclua a população cigana, tendo
perante esta uma atitude de afastamento e de intolerância para com alguns aspectos do seu modo de vida.
O aspecto mais referido neste bairro é o facto de a população cigana ter como principal actividade profissional a venda
ambulante e algumas famílias receberem o Rendimento de Inserção Social. Como referiu uma moradora do Bloco B: É aquela
história: ao pobre dá-se a cana de pesca e não o peixe! Não vejo a lutarem para mudar de vida. Não vejo progresso. Não vejo aqui
ninguém que trabalhe por conta de outrem. Vi uma cigana numa firma de limpeza mas também não sei se continuou. De resto
vejo-o apenas nas feiras e não passam daí. E, também, o facto de os seus valores não serem reconhecidos, como vem retratado no
discurso de uma moradora do Bloco C: Eu acho que o cigano não tem regras. Ou melhor, não gostas de regras e…é isso… Eu não
tenho nenhum conflito mas… São uns indivíduos que não gostam de regras. Há 20 anos que eles já andavam anos nas escolas e se
há um ou dois que trabalham… Que trabalhe! Que seja dependente de um patrão! É muito difícil? E isso é só porque não têm
regras, não querem ser mandados (Bloco C).
Em todo o caso, esta exclusão dá origem a práticas discriminatórias que, por sua vez, originam mais exclusão. Os
grupos étnicos estão, assim, sujeitos a mecanismos de empobrecimento e de reprodução circular de situações de exclusão social.
Os ciganos encontram-se, na sua maioria, numa situação de desvinculação estrutural face ao mercado de trabalho formal, possuem
uma fraca ligação com o sistema de ensino, provocando o absentismo e um forte estigma escolar, entram muito cedo no contexto
de economia informal (venda ambulante) e não possuem tradição de trabalho assalariado. A isto junta-se a estigmatização a que
estão sujeitos pelos indivíduos não ciganos, que os desvalorizam e reproduzem práticas discriminatórias face a eles.
Mesmo tendo isto em conta, não convém esquecer que, embora a percentagem de pobres entre os membros das minorias
étnicas seja elevada, e até mais elevada, em média, do que para o conjunto da população portuguesa, já a percentagem de
elementos de minorias étnicas entre os pobres é muito pequena (Machado, 1992: 129) e, como tal, não são justificados os
comentários xenófobos e racistas que referem os ciganos como sendo um grupo que vive às custas da segurança social e que não
quer trabalhar. No bairro, há imensas famílias não ciganas que têm apoios do Estado. No entanto, estas constroem estereótipos e
procuram bodes expiatórios, que, na realidade, não são os verdadeiros causadores do seu mal-estar, para exprimir os seus medos,
hostilidades ou frustrações (Silva, 2000: 72).

2.2. Um Racismo Intercomunitário e Diferencialista


É interessante reparar que a grande parte da população não cigana inquirida é unânime no que diz respeito à existência
de discriminação em Portugal - 91,8%. Neste ponto, esta população referia mesmo que muita gente era intolerante e não
respeitava o outro somente pela cor da pele. Quando se perguntou à população maioritária como caracterizava a população em
geral no concernente ao racismo, em 68,9% dos casos respondeu que só alguns é o que o eram. Esta foi, sem dúvida, a opinião
mais comum. A seguir a esta opinião surge apenas 24,6% da população a dizer que é um povo simpático e acolhedor,
correspondendo ao estereótipo da hospitalidade e simpatia do povo português. Por outro lado, tendo em conta a população cigana
do bairro, a população não cigana afirma em 47,5% dos casos que só alguns é que são racistas, valor este inferior ao referido para
o próprio grupo e, em 37,7% dos casos que é um povo simpático e alegre. Estes valores surpreendem, por um lado, pois há uma
depreciação do endogrupo face ao grupo exógeno. Contudo, não são assim tão surpreendentes se pensarmos que o racismo é
associado mais à relação de opressão do grupo “maioritário” face ao grupo minoritário do que o inverso. Portanto, associa-se mais

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facilmente o racismo à população não cigana, que é a maioria, do que à população cigana. Tendo isto presente, a depreciação do
próprio grupo acaba por se dar.
O grupo étnico cigano é igualmente concordante quanto à existência de discriminação em Portugal. 78,6% dos
inquiridos ciganos afirmam que existe muita discriminação e que ela é a principal causadora da maior parte dos conflitos entre os
ciganos e os não ciganos. Quanto às razões apontadas pelos inquiridos ciganos para o facto de serem discriminados, metade
afirma que é por serem vistos como diferentes. Isto é, os contrastes existentes entre a população maioritária e a população cigana
são o motivo da discriminação e do racismo produzido e sentido, respectivamente. No entanto, a percentagem de indivíduos de
etnia cigana que declaram ter sido vítimas de discriminação é relativamente pequena: 28,6%. Como afirma um dos entrevistados:
Eu não… Nunca fui discriminado. Nunca dei hipótese sequer que me discriminassem (…). Uma pessoa não pode deixar (Bloco
D). Mesmo assim, em conversas informais, várias foram as situações que me foram narradas que aconteceram por puro racismo,
desde recusa de empréstimos para compra de carrinhas, rejeição quanto ao aluguer de casas, problemas na compra de alguns
objectos para a casa, despedimento pela pertença étnica, interdição de entrada em discotecas e bares e até de difamação pública.
Portanto, temos por um lado um povo que é discriminado mas que se recusa a aceitar a discriminação, adoptando para
isso mecanismos de autodefesa - a população cigana - e, por outro lado, temos uma população maioritária que tem noção da
existência da discriminação e do racismo existentes face aos ciganos mas que se defende disso mesmo, dizendo que racistas são os
outros do mesmo grupo, nunca os próprios.
Só que a maior parte da população não cigana inquirida, mesmo se defendendo do rótulo de racista, acaba por apresentar
disposições de cariz racistas, nomeadamente em duas situações.
Ao apresentar um conjunto de situações, perguntou-se à população não cigana se alguma destas lhe provocaria algum
incómodo. Ora, os resultados são claros. Os não ciganos não se importam nada que um cigano tenha uma profissão considerada
importante, como de juiz, médico, patrão ou agente da polícia. Aliás, este último até é visto com algum agrado por parte de alguns
inquiridos que relataram as seguintes justificações: Era o ideal para que os outros tomassem consciência que as leis existem e que
um dos deles cumpriu a lei (Bloco C); Era bom! Se pusesse ordem nos outros ciganos! (Bloco E). No entanto, mostram-se
bastante incomodados com a possibilidade de um cigano tornar-se namorado(a) da(o) sua(seu) filho(a) - 54,1% -, ter relações
sexuais com ela(e) - 52,5% - ou mesmo casar - 57,4%. Os inquiridos não ciganos apresentam um acerta aversão a ter uma
convivência assim tão próxima com elementos da etnia cigana. Aqui estamos perante um racismo intercomunitário, no sentido
apontado por Wieviorka (1995). Para os portugueses, o modelo de cidadania passa por frequentar a escola, ter uma casa própria,
um emprego enquadrado nas lógicas do trabalho assalariado, ter uma vida sedentária e desenvolver a partilha de valores que em
nada têm que ver com os valores ciganos. Portanto, as condutas “anti-modernas” desenvolvidas, em nome da sua identidade, pela
população cigana, são condenáveis pela população maioritária e isso gera tensão intercultural. Consequentemente, há uma recusa
de aproximação e grande envolvência da população maioritária face ao grupo étnico cigano.
Este afastamento é ainda mais visível numa outra situação. A principal solução apresentada pela população não cigana
para que a convivência entre os grupos diferenciados fosse melhor e, por sua vez, o conflito interétnico diminuísse foi a da total
separação habitacional: ciganos para um lado, não ciganos para o outro. Além desta ideia segregacionista proposta, ainda, por
vezes, a ilustraram e reforçaram com sentimentos e palavras indicativas de raiva e rancor para com a etnia cigana. Passo a
exemplificar: Haver um bairro só para ciganos, assim tratavam-se todos da mesma maneira e nós não tínhamos problemas; Eles
são humanos como nós mas devia haver um bairro só para eles, é que eles estão mais habituados a viver uns com os outros do que
com a gente, toda a gente diz isso, não deviam estar juntos connosco; Viverem à parte no mundo deles e deixarem-nos em paz.
Para se integrar têm que ter mais educação e cultura; Muro de Berlim!; Eles saírem de Portugal, morrer todos!. E mais réplicas
destas respostas poderiam ser aqui expostas. A grande parte da população inquirida não desejava habitar no mesmo bairro que a
população cigana. Logo, há um racismo evidenciado como diferencialista, na esteira de Marques (2007). O grupo que é diferente -
a população cigana - é percebido como divergente do grupo maioritário e, por isso, não lhe é dado qualquer lugar na sociedade.
Em vez disso, é mesmo rejeitado, segregado, excluído. Há uma intervenção de uma senhora desempregada do bairro que reflecte
isto mesmo. Ela afirma: Eu não tenho nada contra eles, mas não quero nada com eles! (Bloco E).
Contudo, há já uma parte da população não cigana, embora em número muito reduzido, que sugere outras medidas. As
sugestões vão desde a intervenção política (políticos divulgassem melhor esta cultura [cigana], se houvesse conhecimento da sua
cultura, os mal entendidos não se davam), passando pela igualdade de oportunidades (dar mais oportunidades aos ciganos porque
eles também merecem) e ensino da tolerância nas escolas (ensinar nas escolas que devemos respeitar os outros, mesmo que sejam
diferentes de nós) até ao apelo do diálogo, compreensão e respeito dos dois grupos em causa - deixar de haver desconfiança de
ambas as partes; tem de haver primeiro abertura da nossa parte porque somos a maioria e eles a minoria; era todos respeitarem-se
porque somos todos irmãos; haver mais diálogo entre as duas culturas, só assim resolveríamos muitos problemas; há pessoas que
dizem que com os ciganos não querem nada, ora, se nem os cumprimentam, eles também não se abrem. Estas últimas soluções
apresentadas vão mais ao encontro de uma postura de tolerância e respeito pelas diferenças étnicas. Mostra que, pelo menos, esta
pequena fracção da população não apresenta comportamentos ou atitudes de cariz racista para com a população cigana.

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É que, a maioria dos inquiridos, mesmo não se considerando racistas ou xenófobos, mesmo já partilhando o mesmo
espaço habitacional há mais de vinte anos e mesmo não tendo experiências negativas com indivíduos de etnia cigana (70,5%),
continuam a manifestar racismo face aos ciganos, seja este dissimulado ou mesmo evidente. O racismo, portanto, persiste no
bairro e possui contornos de um racismo intercomunitário e predominantemente diferencialista.

3. As Práticas de Criminalidade Dentro e Fora do Bairro


Depois de ter desenvolvido os resultados no que diz respeito à situação de exclusão social das populações em estudo,
aos comportamentos e atitudes de cariz racista que foram moldados e vão persistindo, salvo algumas excepções; é mais
inteligível, agora, explicar a criminalidade a que o grupo étnico está associado e, consequentemente, a insegurança que é imputada
ao bairro da Atouguia.

3.1. As Práticas de Criminalidade Associadas à Etnia Cigana


Antes de mais, torna-se pertinente a análise dos diferentes olhares sobre o mesmo objecto. A criminalidade é aqui vista,
primeiramente, na óptica da população maioritária do bairro, depois na das instâncias de controlo e, por fim, na da própria etnia
em causa - a etnia cigana.

3.1.1. O Olhar do Bairro


A tendência observada, ao longo de todo o trabalho de campo, foi ver a população não cigana associar os ciganos ao
roubo e tráfico de droga, mais do que a qualquer outro tipo de delito. Efectivamente, nas representações e apreciações intergrupais
(no questionário), esta população é tentada a justificar a relação existente entre os ciganos e os roubos. Só que a esta relação é
automaticamente anexado também o tráfico de droga. Os motivos mais mencionados para explicar o tráfico de droga foram o
facto de os ciganos não quererem trabalhar e o vício. Este último teve duas interpretações por parte da população maioritária.
Houve os que afirmaram que o vício advinha da educação que os ciganos tinham nas suas casas e, por outro lado, houve também
quem afirmasse que tal se desse por causa da droga. Como revelam dois moradores do Bloco C, onde a percentagem de
moradores que acredita que os roubos se devem ao vício é mais alta (55,6%): É por causa da droga, a maior parte vende ou
consome droga e o mal deles é esse; e Eu só tenho queixa é que se eles querem vender droga, que vendam à raça deles, não à
nossa. Ora, associar o tráfico e consumo de drogas no bairro somente aos ciganos é descabido de qualquer fundamento. Primeiro
porque os dados relativos à situação familiar dos inquiridos não ciganos mostram que dos quinze indivíduos com familiares
presos, oito deles foi detido por roubo ou tráfico de droga. Depois porque através da observação de alguns espaços do bairro,
facilmente foi possível reparar que o tráfico de droga não era feito apenas por indivíduos ciganos. Aliás, houve mesmo momentos
em que observei apenas esse acontecimento entre indivíduos não ciganos. Só que a existência de uma pequena parte de indivíduos
de etnia cigana que, segundo os inquiridos, se dedica à venda de drogas, cria na população maioritária o estereótipo do cigano
como traficante, referência esta usada para estigmatizar a população cigana através da generalização e da sobre-representação de
uma realidade minoritária. Esta tendência no entanto não é unânime na população maioritária. Há, pois, quem refute esta
associação generalista dos ciganos às práticas de roubos: Em termos de roubo, aqui perto, não acho bem… eles até nem são dados
a essas coisas (Praça A) ou Eu não vejo por isso não posso dizer (Bloco C).
Além dos roubos e tráfico de droga, outros crimes associados pela população maioritária à etnia cigana são: a condução
sem carta, a violência e a venda de material contrafeito.
A condução sem licença é muito falada no bairro: A conduzir sem carta andam muitos (…) andam aí miúdos com
carros! (Bloco C), sejam ciganos, sejam não ciganos. Não justificando por que é que as crianças não ciganas conduziam sem
carta, explicam, porém, por que é que isso acontece na etnia cigana - Existem muitos ciganos que conduzem sem carta de
condução, com 15 ou 16 anos. Os pais obrigam-nos a trabalhar, dão-lhes um carro e eles têm que se fazer à vida. E muitos nem ler
sabem (Bloco D).
A população não cigana, quanto à violência, frisa o facto desta se dar mais entre ciganos: Os ciganos são um povo um
pouco agressivo. É conhecido, por isso, pelo menos… Mas entre eles. E por isso se dá a violência. Mas é mais entre eles!, afirma
um indivíduo da Praça A.
No que diz respeito à venda de material contrafeito, os indivíduos não ciganos afirmam: Contrafacção não é uma prática
legal e eles têm produtos de marcas contrafeitos que são apreendidos. A partir do momento em que vendem peças contrafeitas são
criminosos. Vendem coisas legais, mas também vendem coisas ilegais (Praça A); Contrafacção aqui é em todas as famílias.
Nestes termos, são quase todas [criminosas]. Em termos de feira há contrafacção de roupas, falsificam DVD's, CD's… (Bloco D);
e Eles são todos criminosos a partir do momento que vendem produtos contrafeitos… (Bloco A). No entanto, o crime é justificado
por um morador do Bloco C: Eu acho que eles têm que sobreviver e se não os deixarem vender nas feiras, como é que eles vão

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fazer? Não é? Têm que sobreviver. Com efeito, a venda ambulante é a actividade profissional principal dos ciganos deste bairro e
o material contrafeito é, sem dúvida alguma, aquele que dá mais dinheiro nas feiras. Tendo em conta as teorias da anomia social e
pensando que o crime é o resultado de uma operação de classificação social, em última instância a contrafacção é percepcionada
por alguns indivíduos não como sendo um crime mas como uma maneira de ganhar a vida. O crime, neste caso, vem mostrar que
é necessária uma reactualização das normas.

3.1.2. O Olhar das Instâncias de Controlo


Em conversa com o Comandante da PSP, ele refere que os ciganos aqui têm a sua actividade que é a venda ambulante e
não são muito conflituosos com a polícia. Que, realmente, um dos crimes que possam praticar é o de tráfico de droga, mas que
eles não são os piores. Os ciganos são apenas mão-de-obra pequena numa teia bem mais complexa. Esta ideia vai ao encontro da
perspectiva da San Román (1986) que defende que as máfias em todo o mundo buscam no desespero de alguns povos mão-de-
obra fácil para este tipo de trabalhos e os ciganos não são excepção. Agora, rotular os ciganos como sendo os traficantes quando
na verdade eles são apenas uma parte pequena do processo é excessivo e apenas demonstra o racismo e o preconceito da
população maioritária face a esta etnia.
Contudo, para ter uma visão mais realista, foi recomendado o contacto com o responsável pela Secção Operacional de
Guimarães que é aquele que faz o tratamento dos dados estatísticos da criminalidade na cidade. Este advertiu desde logo da
impossibilidade de disponibilizar os dados da criminalidade por etnia, uma vez que é anticonstitucional, mas mostrou-se
disponível para falar sobre eles. De um modo geral, os crimes mais registados no bairro da Atouguia são o de violência doméstica,
o de furto de viaturas (mas poucas) e o de desavença entre vizinhos. Porém, explica que a violência doméstica, embora tenha
vindo a aumentar nos últimos anos, ela efectivamente não aumentou; o que há é uma maior aproximação à realidade. É que agora
basta os vizinhos reclamarem para dar origem a um processo-crime. Faz é com que os números sejam mais reais. As pessoas
também têm menos medo da denúncia. O que surpreende é a faixa etária em que este crime se dá com mais frequência que é nos
mais novos. Depois, como relata o responsável pela Secção Operacional, por vezes há um cigano que de vez em quando lembra-se
de beber mais do que devia, dá dois tiros para o ar mas não é com o intuito de magoar ninguém! É só pela bebedeira!
Especificamente no que toca aos crimes mais cometidos pelos indivíduos ciganos residentes na cidade, segundo as
denúncias, são o de condução ilegal, roubos mas que se dão em grupos mistos e nos mais novos - do género “Passa para cá o
telemóvel!” - e a contrafacção. Este último, a PSP não fiscaliza muito pois faz apenas as operações em conjunto com a ASAE.
De qualquer modo, tal como o Comandante da PSP já o havia referido, não existem praticamente problemas étnicos. Os
crimes que porventura possam ser levados a cabo por indivíduos de etnia cigana, também o são por indivíduos não ciganos. A
comunidade cigana em Guimarães é pequena e há mais nos dois bairros: Atouguia e Nossa Senhora da Conceição. Os nómadas,
que por vezes aqui passam, não dão problemas. Não há nada de relevante.
Os preconceitos relativamente aos ciganos, nesta área, também são notados pelos agentes. Quando há assaltos em
fábricas em que esteja uma carrinha grande à porta associam logo aos ciganos. Não quer dizer que sejam e muitas vezes até não
são, mas as pessoas fazem a denúncia dizendo que são ciganos. Os agentes, ao tomarem conta da ocorrência, já têm que ter isso
em atenção.
Da fase da intervenção policial e da denúncia, passou-se para a análise dos processos-crime em que envolviam quer
indivíduos ciganos, quer indivíduos não ciganos, no Tribunal de Guimarães. Ao estudar os processos-crime, para além das
características dos arguidos, teve-se em conta os discursos usados pelos ciganos no acto criminoso, os discursos produzidos pelos
advogados e juízes nas sentenças e as penas atribuídas aos sujeitos transgressores.
Primeiramente, é de referir que a maior parte dos processos analisados correspondiam a arguidos do sexo masculino e
que provinham de famílias com uma situação socio-económica desvantajosa. Obviamente, não seria correcto afirmar que o crime
se dá com mais frequência nas classes mais desfavorecidas, porque não se dá - o crime, objectivamente, atravessa todas as classes
sociais -, mas podemos afirmar que estas classes estão mais vulneráveis e desprotegidas face à justiça. A população cigana, sendo
relegada nesta hierarquia ainda mais para baixo, fica, consequentemente, ainda mais vulnerável e desprotegida. Um dos processos
analisados mostrou-se bastante fecundo para ver exactamente isto. Num crime de roubo e agressão de que três jovens estavam
acusados, sendo dois de etnia cigana e o outro não cigano, foram apenas julgados os indivíduos de etnia cigana. O outro
transgressor acabou por nunca responder sobre o que tinha acontecido.
No que diz respeito ao discurso usado pelos ciganos em actos de roubo, é ilustrativo este que é narrado por um dos
padecentes: sabes que eu sou cigano e parto-te todo; fodo-te o focinho. Este discurso foi usado por um dos ciganos residentes na
Atouguia. Entretanto já casou, tem filhos e justifica esse acto como uma reinação da juventude: no início, quando éramos mais
novos, fazíamos os mais novos verem quem mandava; agora não. É de salientar que isto acontece ainda hoje com indivíduos não
ciganos, nas escolas ou noutros bairros, que não sejam necessariamente bairros sociais. Agora, os ciganos, tendo noção que a
população maioritária lhes tem medo, usavam isso a seu favor quando eram mais novos. Na relação com o outro, para serem
respeitados, muitas vezes valem-se desse estereótipo para se defenderem.

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Quanto ao discurso usado pelas instâncias de controlo - advogados - em relação aos indivíduos de etnia cigana é visível
uma tentativa de domesticar e disciplinar este povo à lei: o arguido revelou uma indiferença e uma nítida afronta às autoridades
policiais e judiciárias, as quais em duas anteriores ocasiões tentaram “chamá-lo à razão” e fazê-lo perceber que “a lei é dura mas é
lei” e, portanto, entende-se que se deve conceder ao arguido uma “última” oportunidade de retomar o caminho do direito e da
ressocialização.
Por último, é de apontar que as penas, tendo em conta a moldura penal para os crimes analisados, foram leves, havendo
uma predominância de penas de multa e de prisão suspensa. Parece, de uma maneira geral, haver uma desculpabilização dos
indivíduos de etnia cigana e dos indivíduos de classe mais desfavorecida dos crimes que cometem pela posição que ocupam na
sociedade. São excluídos e, por isso, é “normal” que cometam os crimes de que são acusados e não há nada a fazer. Levá-los para
a prisão, como não resolve a sua situação, é preferível, para os tribunais, deixá-los nas suas vidas, esperando que se corrijam.
Nos crimes cometidos por indivíduos já com alguma escolaridade e de condições sociais mais elevadas (não de classe
alta) as exigências por parte das instâncias de controlo são maiores. Assim, para o mesmo crime - por exemplo, o de contrafacção
- os indivíduos de etnia cigana e os indivíduos de classe média (proprietários de fábricas) têm penas bem diferentes, sendo mais
leves para os primeiros do que para os segundos.
Glosando, temos, por um lado, a PSP que aponta um conjunto de crimes em que normalmente os ciganos estão
envolvidos mas deixa bem claro que eles não são os que os praticam mais e, por outro lado, vemos como os julgamentos são
importantes rotuladores dos indivíduos julgados, a partir do momento em que uns respondem mais facilmente pelos mesmos
crimes do que a restante população mas que, talvez tendo noção disso mesmo, tornam-se mais condescendentes aquando do ditar
da punição.

3.1.3. O Olhar do Grupo Étnico Cigano


Antes de qualquer afirmação neste subcapítulo, convém mostrar que a ideia defendida pela PSP, de que o cigano não é o
criminoso mor nos diferentes crimes de que são acusados, é desenvolvida por um dos indivíduos de etnia cigana que acaba por
explicar igualmente o modo como o cigano é levado ao crime, tendo como base o preconceito: É devido à má imagem ainda que o
cigano tem. A sociedade criou uma imagem sobre o cigano que não corresponde à verdadeira realidade. É uma imagem negativa.
Se fosse a fazer a divisão das coisas, o cigano é o mais pequeno na falsificação, na corrupção. O cigano é um intermediário, uma
parte. O cigano não tem iniciativa própria para este género de crime. Um cigano por natureza não rouba. Eles são é levados a… A
própria sociedade aproveita-se da imagem dos ciganos para lhes fazer certas coisas (Bloco D).
Para provar que os criminosos não estão do lado somente das famílias ciganas, no bairro da Atouguia, pode ver-se os
dados da tabela mais abaixo que mostram que 24,6% dos indivíduos não ciganos inquiridos têm ou já tiveram familiares directos
presos e que, como já referi mais acima, o motivo prende-se na sua maioria com crimes de roubo e tráfico de drogas. O terceiro
crime mais cometido é o de violência, indo de encontro aos dados relatados pela PSP de Guimarães.
Do lado dos ciganos é verdade que a percentagem de indivíduos com familiares presos é maior - 57,1% - mas os crimes
porque estão presos não correspondem aos que são mais referidos pela população maioritária do bairro. Dos oito inquiridos
ciganos que têm pelo menos um familiar preso, sete estão presos por agressão. É verdade que os não ciganos vêem os ciganos
como pessoas agressivas mas, no concernente aos crimes, referem mais rapidamente o roubo e tráfico de droga que, por sua vez,
é, segundo os dados recolhidos, a razão porque a maior parte dos seus próprios familiares estão presos. Quanto aos restantes
valores - as percentagens de inquiridos que já estiveram presos ou foram constituídos arguidos em algum processo judicial -, são
muito parecidos entre a população cigana e a população não cigana. Portanto, rotular apenas ou na maior parte das vezes a etnia
cigana como sendo criminosa é uma generalização abusiva de práticas que se mostram até bastante similares nas duas populações
em causa.
Mesmo assim, e para questões de análise do crime associado a esta etnia, é importante ver como a própria etnia cigana
percepciona os crimes que pratica ou de que apenas é rotulada.
Quanto ao tráfico de droga, entrevistou-se um cigano que já tinha traficado e o relato que faz sobre esse facto é bastante
claro no testemunho que deu: Trafiquei por necessidade. Quem se mete por essas coisas é mesmo por necessidade, não é para
enriquecer. É porque não tem escapatória. Eu tinha de tudo e quando se tem tudo não se dá valor às coisas. Depois mudei. Vi-me
enterrado até ao pescoço. Tudo o que tinha desabou. Tive mesmo de mudar. Acabei com tudo. Agora só fumo um charro de vez
em quando. Já foi a fase do consumo e do tráfico. Deixei a universidade por causa das drogas. Andava no 2o ano de arquitectura,
na Lusíada. Comecei a consumir de tudo… Gastava mais de dez contos por dia em droga. Até que tive que começar a traficar para
pagar o consumo. Mas tive que me deixar disso. É como te disse… Tinha tudo, nunca me faltou nada em criança e pensava que
podia ter tudo. Mas enganei-me e cresci. Mudei de vida (Bloco D). Este discurso, aliás, podia ser de qualquer ex-
toxicodependente. Não é por se ser cigano que se tem mais disposição para o tráfico de droga. Contudo, este caso tem um
elemento novo: o facto de um cigano ter estado no ensino superior. É que, escusado será dizer, é um caso invulgar em Portugal.

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Quando questionado da possibilidade de voltar a frequentar o ensino superior, já não se sente tão confiante como há alguns anos
atrás, dando a entender que ter novamente prazos e horários não conjuga muito bem com o seu modo de vida.
A condução sem carta é novamente referida como sendo uma prática não exclusiva dos ciganos: A condução sem carta é
igual para a etnia cigana e para os não ciganos. Conheço tantos aqui no bairro que não têm carta e conduzem… O meu homem
está cheio de andar sem carta (Bloco E). Isto significa, mais uma vez, que não faz sentido atribuir o rótulo de condutor sem carta
apenas aos ciganos quando, na realidade, a população não cigana em geral também o faz. Em todo o caso, o cigano que conduz fá-
lo por necessidade, como explicam estes dois indivíduos da etnia cigana: A condução sem carta é normal. Acontece. Se muitos
pegam no carro é porque precisam. Mas também depende dos pais. Tenho um sobrinho que não pega no carro, com 17 anos,
porque o pai não deixa. Mas muitos precisam de pegar para trabalhar (Bloco A); Eu sou perito em condução sem carta. Por
motivos de enfermidade do meu pai… ele é enfermo e eu tenho que conduzir a carrinha para irmos para as feiras trabalhar (Bloco
D).
Além deste dois crimes, os ciganos mencionam o da contrafacção. Neste caso, temos uma parte da população cigana que
reclama o facto da polícia fazer as apreensões nas feiras, quando podiam ir logo à fonte da contrafacção, ou seja, as fábricas: A
contrafacção não é o cigano que faz. O cigano vende. Quem fabrica é que contrafaz as coisas (Bloco A); Se os ciganos vendem é
porque nos vendem a nós. Eles vão às feiras mas não vão às fábricas onde são fabricados. Nós só vendemos para ganhar dinheiro
(Bloco E). Esta situação revolta a população cigana pois parece que é sempre a principal perseguida nas questões criminais.
Mesmo assim há os que, por outro lado, defendem a venda de produtos contrafeitos até porque é uma forma de sustento da
família: Contrafacção é o que dá mais dinheiro. Trabalha-se melhor. Só que lá está, é crime. (…). Nós temos que ter direito ao que
os outros têm. Nós não podemos vender contrafeitos mas vamos lá ver as coisas: isso quer dizer que só os ricos é que podem
vestir bem? Os pobres também têm esse direito. Se não fossem os produtos contrafeitos, as pessoas não tinham acesso. As pessoas
que compram, sabem que o produto é contrafeito (Bloco D); Quando os ciganos vendem nas feiras marcas é para ganhar dinheiro
para casa. Não acho que isso seja crime, é apenas uma maneira de ganhar dinheiro. Os ciganos quando se envolvem em práticas
criminosas é para ganhar dinheiro para si e para a sua família. É porque necessitam mesmo (Bloco A). A contrafacção apresenta-
se perante a população cigana como uma forma de ganhar a vida, uma vez que, na lógica de mercado ambulante, as pessoas
procuram os produtos contrafeitos na impossibilidade de comprarem os originais. Perante esta procura da população maioritária, a
população cigana oferece aquilo que os clientes pretendem e que, por sua vez, se torna mais rentável. Mesmo que para a lei esta
prática seja punível, para as pessoas comuns não o é.
Pensando na delinquência juvenil das cidades, associada a crimes por roubos, agressão ou consumo de drogas, que de
certa forma atravessa toda a geração jovem, quer seja cigana ou não cigana, e tendo em conta o conservadorismo da tradição
cigana que é vinculado pelos mais velhos, foi questionada à população cigana se achava que os ciganos mais novos cometiam
mais práticas consideradas criminosas do que os mais velhos.
Inicialmente, foi surpreendente ouvi-los dizer, na maior parte das vezes, que não havia grande diferença pois os filhos
aprendiam com os pais - Os ciganos mais novos vêm pelos pais. Os nossos pais são feirantes e nós também queremos ser. Vamos
pelo mesmo caminho. Quando os pais estão no tráfico de droga, influenciam os filhos a irem também porque não sabem fazer
mais nada (Bloco A); ou Não, não há diferença. Isso é relativo. Depende muito da educação que ele teve. Como este rapaz que
estava aqui ainda há pouco…o pai dele traficava e, por isso, os filhos não tiveram outra hipótese. Como o pai traficava, os filhos
aprenderam com ele. Não sabiam fazer mais nada. Os filhos seguiram as pisadas do pai. Agora a maior parte está preso (Bloco D).
Há apenas um cigano que refere que o crime se dá mais nos mais velhos e fundamenta: Acho que são nos mais velhos porque têm
mais sabedoria. Os mais novos ainda não percebem muito dos negócios (Bloco D). Porém, dá a entender que, quando crescerem,
também aprenderão com os pais. Perante estas declarações pode afirmar-se que há uma aprendizagem da delinquência, tal como
entendeu Cohen (1966). Não conseguindo integrar-se e ascender economicamente na cultura dominante, alguns indivíduos da
etnia cigana, assim como acontece com as classes mais baixas da população maioritária, encontram na delinquência uma forma de
atingir estatuto e poder económico. Só que esta delinquência é uma subcultura, com um modelo de acção colectivo durável que é
transmissível de geração em geração e, neste caso em particular, de pais para filhos. Há uma cultura profissional, tal como na
sociedade dominante. A interiorização da cultura desviante é que vai predispor os indivíduos para a prática do crime e, portanto, o
crime resulta da interiorização e da obediência a um código moral ou cultural que torna a delinquência imperativa.
Este fenómeno que, para este autor se dava, principalmente, nas camadas mais jovens da sociedade, neste grupo também
já se deu. Só que, sendo os processos de exclusão social tão antigos e persistentes nesta etnia, ele já vem tendo repercussões
geracionais. Enquanto na sociedade dominante os mais jovens acabam por ser presos ou mudam de vida, ocupando novamente um
lugar desprestigiado na sociedade mas adoptando novamente os valores da socialização primária, na comunidade cigana a cultura
delinquente passa de pais para filhos. E isto deve-se, essencialmente, ao facto de perdurarem em estados de exclusão social.
Dois dos entrevistados explicam como é que o racismo e a exclusão social podem fazer eco na criminalidade cigana: O
cigano hoje em dia é mais criminoso. Primeiro porque hoje há mais ciganos e depois porque um cigano não tem portas abertas.
Ninguém dá uma oportunidade ao cigano. Ele tem que ele próprio fazer-se à vida. Se a criminalidade lhe dá oportunidade de
melhorar de vida, ele faz. Ao cigano não dão oportunidades. É discriminado. Têm sempre dúvida do cigano. Há um grande

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fechamento da sociedade portuguesa aos ciganos, como há mais ciganos, os ciganos não têm outra fuga. O tráfico é uma via de
eles sobreviverem. Ninguém quer um cigano em lado nenhum. Um cigano tem que se fazer à vida. Se um cigano não se fizer à
vida, se for “mono”, morre de fome (Bloco D); Mas veja esta situação. Não estou a querer dizer que só porque se é pobre se vai
roubar porque há pessoas que vivem em barracas e não se metem em práticas criminosas mas… Imagine. Há 100 pessoas para ir
para as feiras. A câmara só abre 20 espaços. 20 ganham, 80 andam a roubar! A salvação é mesmo o rendimento mínimo. Se não
fosse assim, ainda estava pior. Por exemplo, eu faço 4 feiras, uma das minhas filhas faz 3. Mas tenho a minha filha mais velha que
não conseguiu nenhuma feira. Não lhe deram um espaço. Acho muito bem que ela tenha direito ao Rendimento de Inserção Social
(Praça A). Nesta última declaração, é visível como o rendimento acaba por ser um apoio às famílias a que são vedadas a
possibilidade de trabalho e que, também, acaba por ser uma forma de as manter fora da criminalidade. Se têm uma fonte de
rendimento, não têm que andar a roubar ou a pedir para sustentar a sua família.
Portanto, a criminalidade existente no grupo étnico cigano não se deve ao indivíduo em si mas sim aos
constrangimentos a que ele está sujeito, sejam estes de ordem económica, sejam de ordem social ou cultural. A sociedade em
geral, antes de rotular os indivíduos como criminosos e os voltar a excluir, tem que entender que a criminalidade decorre das
situações em que a própria coloca indivíduos e determinados grupos sociais, como é o caso particular dos grupos étnicos ciganos.
As várias condicionantes sociais - pertença a determinada classe socio-económica, a aprendizagem de uma subcultura delinquente
logo nos processos de socialização primária, ou mesmo a residência em determinado espaço degradado -, não deixam, por vezes,
outra alternativa a não ser o crime. Além disso, em última instância, a sociedade também vai tendo os criminosos que quer, seja
pela rotulação das instâncias de controlo, seja pela estigmatização dos indivíduos considerados “normais” face aos “anormais” ou
“fora dos padrões da normalidade”, nos quais são incluídos os indivíduos de etnia cigana.

3.2. Representações Sociais Face às Instâncias de Controlo


Posto isto, pode ser interessante, ainda dentro desta temática da criminalidade, perceber como é que a população do
bairro, quer ciganos, quer não ciganos, vêem a relação da população cigana com as instâncias de controlo.
Para a população maioritária, a relação dos indivíduos de etnia cigana com a polícia em geral - não havendo valores
diferenciados para as diferentes polícias portuguesas -, é má. Cerca de metade da população afirma que esta relação má se deve ao
facto de, relativamente à polícia, estes terem medo dos ciganos - Polícia tem medo deles; Os ciganos arranjam tudo! A polícia
tem-lhes medo!…; Os ciganos parecem mais autoritários que os polícias. A polícia não faz nada contra eles; A polícia tem medo
dos ciganos. A polícia parece que faz vénia a eles - e no que diz respeito aos tribunais, por os ciganos não admitirem que fizeram
algo de mal: Má porque os ciganos acham sempre que têm razão e que a justiça está sempre contra eles.
E, mesmo quando afirmam que a relação é boa, tem um sentido pejorativo: É boa porque eles vêm sempre cá para fora!;
Há corrupção senão o cigano não estava tão atento às autoridades; Conduzem sem carta e sem seguro e ninguém lhes faz nada! Se
forem apanhados com droga, eles saem primeiro que os policias.
No entanto, houve também quem afirmasse que os ciganos são pessoas e tudo depende disso. Há bons ciganos e maus
ciganos, assim como há bons e maus não ciganos.
Os próprios indivíduos de etnia cigana, enquanto no questionário, na sua maioria, afirmam que a relação com as
autoridades é boa (42,9%), nas entrevistas dão já uma perspectiva um pouco diferente, expondo alguns dos problemas que sentem
na relação com a polícia e com os tribunais.
Quanto à polícia, há apenas um dos indivíduos que faz a distinção entre a PSP e a GNR, explicando como se dá a
relação destes com os indivíduos de etnia cigana em geral: A polícia tem comportamentos diferentes para connosco. A abordagem
que fazem é completamente diferente. Têm maior preocupação na abordagem, mais cuidado como falam. E são desconfiados. Ele
[o polícia] tem uma abordagem em que se defende a ele próprio. Falam para nós como se nós lhe fizéssemos mal. Mas também
depende da polícia. A GNR, cuidado com eles, são meio doidos! São militares. A PSP é mais compreensiva. Um GNR, se falarem
com ele [um cigano], é porque já estão a fazer deles burros. Só têm violência na cabeça e partem logo para a agressão (Bloco D).
Quer com isto dizer que a atitude da Polícia de Segurança Pública é mais cuidadosa e tem mais preocupação com o diálogo. Já
com a Guarda Nacional Republicana isso não acontece tanto.
Depois, a grande parte dos outros entrevistados explicam como são vítimas do preconceito por parte da polícia em geral:
Quando há alguma coisa, quando é um não cigano vem um carro de polícias. Quando são ciganos, vem logo quatro ou cinco. Isso
porque os ciganos são mais agressivos. Os ciganos são todos falta de compreensão [tom irónico]. Há muitos polícias que são
racistas. Não podem ver um cigano com uma boa máquina que vão logo atrás e se for um não cigano já não ligam (Bloco D); (…)
há polícias que são racistas e por isso são violentos. Porque pensam sempre que os ciganos são mentirosos. Nunca acreditam.
Claro que há ciganos que tentam enganar, mas não são todos assim (Bloco A); Má. Ui… tão má! Pela mesma razão de sempre
[racismo]. Os ciganos levam sempre mesmo que não queiram. São muito exigentes com os ciganos. Não facilitam (Bloco E);
Com a polícia… tem gente boa e também tem ordinários. Há alguns que cumprimento e até vou tomar café com eles. Há outros

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que olham para ti e, como tens a pele mais escura e tal, ficam a olhar especados. E quando é assim eu também fico a olhar. Não
me podem fazer nada! (Praça A).
Nos tribunais, os indivíduos ciganos queixam-se, na sua maioria, do fraco poder que têm em julgamentos devido ao
racismo e como isso faz com que, por vezes, façam justiça com as próprias mãos: Em tribunal, num caso em que tenha um cigano
e um não cigano, por muita razão que tenha o cigano, ele é sempre o mau da fita. Porquê de haver mais processos contra ciganos
do que de ciganos a processar alguém: o cigano faz vingança pelas próprias mãos. É evidente porque se nós formos a tribunal
fazer queixa de alguém, eles viram-se sempre para nós porque somos ciganos. Mesmo que seja contra nós, nós é que levamos
(Bloco D); A lei não existe para o cigano. A constituição não serve o cigano. Mesmo quando um cigano tem razão, a razão nunca
lhe é dada. O cigano é sempre deitado abaixo. Enquanto tu precisas de um advogado, eu preciso de quatro. Só por ser ciganos, nós
não temos hipótese. Enquanto uma palavra tua basta, eu preciso de um camião delas. Um cigano para a lei é maldito. Nos casos
menos graves, com o cigano é visto como ignorante, tem penas menos pesadas. Mas isso é em coisas irrelevantes, como a
condução sem carta. Porque em coisas a sério, não tem escapatória (Bloco D).
As declarações do grupo étnico cigano podiam ser resumidas nesta frase que foi pronunciada por um cigano também
residente no Bloco D: Os polícias agem para nós de forma racista. Os ciganos são suspeitos 24 horas. Um cigano é sempre um
fora da lei aos olhos das instituições. É que as precárias condições de vida, assim como os processos de exclusão que vivenciam,
inibem a sua capacidade de definição de estratégias políticas e de formas de acção colectiva tendentes ao reconhecimento dos seus
direitos e defesa dos seus interesses (Pinto, 1995a). Nos tribunais eles queixam-se disso mesmo. Pela imagem que têm em
sociedade, têm menos poder e menos reconhecimento dos seus direitos do que se se tratasse de um cidadão não cigano. Mais uma
vez, vemos aqui como as instâncias de controlo acabam também por ser sujeitos na reprodução do racismo e agentes na aplicação
do rótulo de criminoso no caso da população cigana.

3.3. A Segurança do Bairro e da Cidade


Além do rótulo dos tribunais, toda a sociedade acaba por ser atravessada por esta lógica preconceituosa relativamente
aos ciganos. Quando perguntado à população maioritária se os ciganos davam uma imagem negativa ao bairro, esta tem a
percepção de que assim é visto pela maior parte da população da cidade que não habita no bairro: Para certas pessoas acho que
sim… Ainda há algum preconceito. Quando alguém me pergunta onde eu moro, comentam logo: “Nos planetas?! Ui… Vives
perto dos ciganos!”. Há pessoas preconceituosas e mal se fala no bairro, falam logo dos ciganos. Associam o bairro aos ciganos e
a conflitos (Praça A); Se calhar para as pessoas de fora, talvez. Mas eu acho que há pessoas cá que são bem piores que os ciganos.
Eu conheço pessoas que se mudaram de cá, só pelo negativismo de viver num bairro social. Mudaram-se só porque era mal visto.
O bairro tem uma imagem muito pejorativa. Há pessoas que os filhos foram para a universidade e saíram por isto ser mal visto.
Como na universidade há classes diferentes, mais superiores, a juventude não quer dizer de onde é, não é? (Bloco B). Além disso,
comentaram que os ciganos, apesar de por vezes terem comportamentos que podem ser considerados pouco consentâneos com o
modo de vida da população maioritária, não são os únicos que podem contribuir para os problemas do bairro. Aliás, há muitos
habitantes não ciganos no bairro que têm comportamentos considerados piores do que o dos ciganos: Porque são desordeiros [os
ciganos]. E o bairro tem má fama por causa deles. Mas não é só dos ciganos. Também dão os não ciganos (Bloco A); Não, não
dão. De todo! Alguns dão. Há aqui uns ou outros ciganos que mesmo com casas, vivem nas carrinhas. É uma coisa muito
esquisita. Tens um abrigo e vais dormir para a carrinha… acho que já vai do hábito das pessoas. Mas, regra geral, não dão (Bloco
D).
Logo, o estigma a que bairro é sujeito, acaba por não fazer muito sentido. A grande maioria da população maioritária
não gostaria de ter a população cigana como vizinha, proferindo soluções segregacionistas e racistas para a resolução dos
problemas do bairro. Mas, fica bem claro que os problemas do bairro não são exclusivos da comunidade cigana, estendendo-se
também às famílias da população não cigana. Para a restante população da cidade, longe da realidade do bairro, já isso acontece, o
de verem os ciganos como os produtores do mal do bairro, pois eles apenas reproduzem o preconceito existente na sociedade
relativamente a estes, de que são seres agressivos, unidos e conflituosos. Assim, a população da cidade retrata no bairro a teoria
das áreas de delinquência, da Escola de Chicago (1.3.2). Para ela há uma evidente associação da criminalidade ao bairro, onde
estão segregadas algumas das camadas mais desfavorecidas da população - as classes mais baixas e o grupo étnico cigano.
Em todo o caso, o bairro, quer para a população cigana, quer para a população maioritária, é um local bastante seguro
para se viver, ao contrário do que acontecia há alguns anos atrás. Nos vários blocos do bairro, as opiniões da população
maioritária entrevistada convergem: Acho que sim. Porque aqui acho que não há assim muitos conflitos. É uma zona mais ou
menos calma (Praça A); Sim. Pelo menos falo por mim e pela minha família. Mas é como te digo, está melhor. Há dez anos atrás
dizia-te que não. Apesar de ser um bairro social, há aqui muita gente responsável. É muito seguro para qualquer pessoa (Bloco D);
Até ver é… Primeiro era um pouco mais complicado. Agora não. Mas nunca se sabe. Um dia pode ficar pior… Uma pessoa olha
para os bairros em Lisboa… Mas até ver, não. Está tudo bem (Bloco C). Aliás, o estigma a que estão sujeitos até acaba por ser
vantajoso para o bairro, como explica esta moradora do Bloco B: Acho que sim. A minha visão é esta: como isto tem uma

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conotação e é conhecida ao nível de outros bairros, os dos outros bairros não vêm para aqui e os que aqui estão conhecem-se. Por
isso, estamos resguardados. Eles vão mais onde ninguém os conhece a eles. Não é que não haja grupos, há. Mas se tiverem que
fazer mal, é fora do bairro. Não é que volta e meia não haja um drogadito que esteja desesperado e pronto… Mas de resto. Deixo
janelas abertas e não acontece nada. Há apartamentos que não são sociais e que acho que estão bem piores [ao nível da
segurança]. Aqui não.
A opinião dos entrevistados de etnia cigana vai ao encontro do que é referenciado pela população maioritária. Sobre a
segurança no bairro eles respondem: É. Não há mais seguro que este bairro. (…) agora aqui é mais um paraíso. Então não vês? É
tudo muito calmo e pacato (Bloco D); Os bairros de cá são muito menos problemáticos. Os de Braga é que são uma coisa… Estão
todos presos e o tráfico de droga continua a existir. Era o que lhe dizia. Meteram-nos todos no mesmo sítio, criaram guetos de
criminalidade. (…) Foi no que deu… (Praça A); Depende. Quer dizer, hoje é. Antigamente quando havia tráfico é que havia
muitos problemas. Agora não (Bloco D); Acho que sim. (…) Antes havia muito tráfico de droga e conflitos mas agora não. Os
traficantes foram presos e agora é tudo muito mais calmo (…). Porque se reparares estamos numa das zonas mais bonitas de
Guimarães (Bloco A).
Pegando nesta última afirmação da residente no Bloco A, efectivamente, o bairro, com o crescimento urbanístico dos
últimos anos, ficou numa excelente zona da cidade. Se não fosse o estigma, o bairro já estaria perfeitamente envolvido e
enquadrado na sociedade vimaranense. E, como se pode verificar pelo testemunho dos seus moradores, o bairro é um sítio, agora,
bem ordeiro e tranquilo.

4. Reflexões Finais
Ao longo deste estudo, pretendeu-se compreender as lógicas de exclusão social presentes no Bairro da Atouguia, em
Guimarães, e o racismo do qual o grupo étnico cigano era padecente, para, com isso, tentar explicar as conjecturadas práticas de
criminalidade deste grupo. Através da análise dos dados recolhidos no campo, é possível concluir que a exclusão social e o
racismo são evidentes - pois são inúmeras as clivagens e divergências que a população maioritária cava relativamente aos ciganos
- e que as práticas de criminalidade são um reflexo do que se passa na sociedade envolvente, quer ao nível da execução, quer ao
nível da rotulação do crime.
As relações sociais entre os indivíduos envolvem sempre dimensões simbólicas, processos de comunicação, atribuições
de sentido por parte das pessoas à sua própria acção e à dos outros (Costa, 2003: 80-81) e, no bairro, isto dá-se de uma forma mais
evidente pois estão em confronto duas identidades um tanto ou quanto diferentes - a identidade cigana e a identidade não cigana.
Os contrastes sociais e culturais entre estas duas identidades, entre estes dois grupos, reforçam o sentimento de pertença dos
ciganos e dos não ciganos aos respectivos grupos, que levam, por sua vez, à formação de “fronteiras interétnicas”. Estas fronteiras
delineiam o que pertence e o que não pertence, o que está dentro e o que está fora do grupo, o que é incluído e o que é excluído.
Ora, desta forma, as identidades vão persistindo não só por via da interacção, mas sobretudo pela oposição entre os grupos em
causa. As diferenças existem e persistem, assim como as oposições, denotando-se nos grupos empíricos uma sobrevalorização
defensiva da superioridade moral e social do seu quadro de valores quando em confronto com o dos outros - a valorização do
endogrupo e a inferiorização do grupo exógeno.
E, é de salientar que, como constroem ideias estereotipadas uns a respeito dos outros, eles não chegam a ver-se uns aos
outros como são na realidade, mas sim formando opiniões e juízos inexactos (Nunes, 1996). Isto leva, consequentemente, a
práticas discriminatórias.
Com efeito, no bairro, as atitudes racistas da população maioritária face à população cigana foram quase sempre
flagrantes, demonstrando um racismo intercomunitário (Wieviorka, 1995) e diferencialista (Marques, 2007). O racismo
intercomunitário é visível uma vez que há uma recusa de aproximação e grande envolvência por parte da população maioritária
em relação ao grupo étnico cigano. Além disso, à população étnica cigana, sendo percebida como diferente da população
maioritária, não lhe é dado qualquer lugar na sociedade. Em vez disso, é mesmo rejeitado, segregado, excluído. A frase Eu não
tenho nada contra eles, mas não quero nada com eles! (Bloco E) é ilustrativa desta noção de separação pretendida pela população
maioritária.
De qualquer modo, e pelo que foi possível verificar neste trabalho, o grupo étnico cigano tem vindo a receber
interinfluências da população e cultura maioritárias e, com efeito, tem vindo a readaptar-se, estrategicamente, ao meio em que está
inserido. Mas, é uma adaptação lenta e condicionada. Divididos entre a necessidade de integração numa sociedade pouco tolerante
à sua presença e o desejo de preservação da sua identidade e autonomia étnica, os ciganos vão mantendo, tanto quanto possível,
uma relação de aproximação defensiva. Embora haja quem defenda que é mais um isolamento defensivo (Pinto, 1995a), a verdade
é que há já vários indicadores de aproximação entre as culturas: desde a forma de vestir, as expectativas de algumas mães ciganas
face à educação dos filhos, a já existência de alguns casamentos entre pessoas ciganas e não ciganas. Esta aproximação, contudo,
não significa a submissão à cultura dominante. A etnia cigana procura, em todo o caso, perpetuar os seus valores, práticas e
modos de vida. Só que, paralelamente, adapta estrategicamente certos valores e usos da população maioritária.

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Mesmo assim, as formas de exclusão e de racismo fazem-se sentir em relação ao grupo étnico cigano. Sejam elas
flagrantes, como na maior parte dos casos, ou dissimuladas, elas são violentas e fortemente segregadoras (Cortesão e Pinto, 1995:
8-9).
No concernente às práticas de criminalidade, pode afirmar-se que, efectivamente a sociedade tem os criminosos que
merece (Figueiredo Dias e Andrade, 1984: 243). A exclusão económica, profissional, social e também cultural - no que diz
respeito especificamente ao grupo étnico cigano - leva alguns dos habitantes do bairro ao crime. Este, realmente, aparece como
sendo uma condicionante da pertença a determinada classe socio-económica, da inserção numa subcultura e da residência num
espaço segregado como é o bairro social.
No entanto, para além dos criminosos que merece, a sociedade tem também os criminosos que quer, seja pela rotulação
pelas instâncias de controlo, seja pela estigmatização dos indivíduos considerados “anormais” ou “fora dos padrões da
normalidade”.
As instâncias de controlo, designadamente os tribunais, são importantes rotuladores dos indivíduos julgados porque, a
partir do momento em que os indivíduos de etnia cigana respondem mais facilmente pelos mesmos crimes do que a restante
população, ajudam à construção do estereótipo de que são mais criminosos do que na realidade são. Este rótulo, por sua vez,
produz um estigma. A população maioritária do bairro e a população em geral tem apenas os criminosos que quer uma vez que
têm em mente uma realidade estereotipada que nem sempre corresponde ao que realmente é. Nem todos os ciganos são ladrões e
traficantes de droga e, no entanto, é esta a imagem que a população maioritária produz relativamente a eles.
Portanto, sabemos que há ciganos delinquentes e sabemos igualmente que o racismo latente pode fazer recair sobre eles
algumas culpas alheias decorrentes de imagens destorcidas da realidade. Nem todos os ciganos são delinquentes, nem o problema
da delinquência se resolve com insinuações racistas. Aliás, as atitudes de intolerância e racismo são pouco consentâneas com uma
sociedade onde, paradoxalmente, se apela ao respeito pela diferença e pela diversidade cultural (Pinto, 1995a).
É necessário tomar medidas sociais urgentes para que se resolva esta questão de abusiva extrapolação do particular para
o geral - um cigano por ser criminoso, não torna todos os ciganos criminosos - e se deixe estas concepções racistas que somente
os exclui e indigna, empurrando-os muitas vezes, efectivamente, para práticas consideradas criminosas.
Posto isto, é importante mencionar aqui o alcance restrito desta investigação relativamente ao seu universo. Tratando-se
de um estudo de casos, uma maior consistência e clareza dos resultados implicaria uma permanência mais alongada junto da
população, acompanhada de um envolvimento ainda mais profundo com esta. Mesmo assim, esta investigação pode ter o seu
impacto em termos de contribuição ao processo cumulativo de conhecimentos nestes domínios da exclusão social, racismo e
criminalidade e, igualmente, ter implicações na política social levada a cabo pelas instituições e órgãos camarários ou, até mesmo,
pelo Estado.
Finalmente, é de convir que o levantamento de questões sobre a persistência da exclusão social e do racismo entre as
diferentes culturas, etnias, costumes e valores e a forma como estes, por sua vez, levam não só a práticas de criminalidade mas
também a imaginadas práticas de criminalidade, tornam-se bastantes pertinentes para pensar muitas das questões da actualidade.
Apesar da história do mundo conhecer desde sempre a repressão, a perseguição de quem é visto como diferente, é necessário
encarar com desafio para o futuro, a aceitação que não devemos ser todos iguais pois precisamos da diversidade, do pluralismo e
de saber viver com a diferença.

Bibliografia
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O Poder e a Cultura de Violência em Alagoas


Ruth Vasconcelos Lopes Ferreira
Universidade Federal de Alagoas
[email protected]

Resumo: Discutimos, neste trabalho, os efeitos políticos, sociais e culturais do envolvimento de autoridades (políticas e policiais) com o Crime
Organizado, no Estado de Alagoas. Desde a década de 90 há uma ampla divulgação midiática em relação à participação de figuras de autoridade
com crimes de pistolagem, roubos de cargas, assaltos a bancos, etc. Trata-se de uma criminalidade que ganha proporções imensuráveis na medida
em que obtém uma cobertura institucionalizada. Trazemos dados expostos nos três principais jornais locais (de maior circulação), onde podemos
observar uma verdadeira subversão de valores por parte das autoridades, e um absoluto desrespeito às instituições democráticas fundamentais ao
exercício do Estado de Direito. Problematizamos os efeitos dessas práticas criminosas para o campo social; entendendo que as mesmas reforçam
uma “cultura de violência” que impõe o medo e a omissão para amplos segmentos sociais. Alagoas vive a “lei do silêncio” que reforça ainda mais
essas posturas perversas das autoridades que produzem profundos esgarçamentos no tecido social. Discorremos, neste trabalho, o quanto é
fundamental o resgate das instituições políticas, jurídicas e policiais como instâncias promotoras da vida e base para o exercício de uma política
democrática que se fundamenta prioritariamente no respeito aos Direitos Humanos.

A História política de Alagoas, desde os seus primórdios, está pontilhada de episódios de violência1 que expressam,
dentre outras coisas, um habitus violento que se traduz numa cultura de violência envolvendo tanto o Estado, através dos seus
representantes políticos e policiais, como a sociedade, através dos diversos agentes sociais. Tomando como referência o conceito
de habitus definido pela teoria praxiológica de Bourdieu, afirmamos que há em Alagoas “um sistema de esquemas de produção”,
“percepção” e “apreciação de práticas” que estão sintonizadas com a violência como um instrumento tanto para o exercício e
manutenção do poder, como para a resolução dos conflitos no espaço social (Bourdieu, 2004, p. 158).
Segundo Bourdieu, o habitus é constituído por “disposições dos agentes, suas estruturas mentais através das quais eles
apreendem o mundo social, são em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social” (Bourdieu, 2004, p. 158).
Há, portanto, uma relação intransponível entre as práticas objetivas e as estruturas de percepção subjetivas expressas em crenças,
valores, representações e significações assimiladas e adquiridas nos espaços sociais. Os sujeitos orientam suas práticas cotidianas
a partir desses esquemas de classificação e avaliação que são transmitidas e internalizadas através de processos de socialização e
subjetivação onde se vive a “experiência durável de uma posição do mundo social” (Idem, 158). Através do habitus os sujeitos
constroem suas identidades e posicionam-se no espaço social, reconhecendo-se e reconhecendo o outro em suas diferenças.
Valorizamos a dimensão cultural na abordagem da relação entre poder e violência no Estado de Alagoas, a partir da
compreensão de que “o estudo dos fenômenos culturais pode ser pensado como o estudo do mundo sócio-histórico constituído
como um campo de significados” (Thompson, 1995, p. 165). Trabalhamos com uma concepção de cultura como “o padrão de
significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos de vários tipos,
em virtude dos quais os indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças” (Thompson,
1995, p. 176). Segundo Thompson, o estudo da dimensão cultural de uma sociedade requer uma atitude analítica marcada pela
“sensibilidade de um intérprete que busca discernir os padrões de significado, discriminar entre gradações de sentido e tornar
inteligível uma forma de vida que é já significativa para aqueles que a vivem” (Idem, p. 176). Assim, admitimos a presença de um

1
O Nordeste como um todo, que segue uma lógica de produção vinculada ao mundo agrário, tem fortes marcas de escravidão e autoritarismo onde as relações de poder
acontecem mediante práticas coronelistas, paternalistas e clientelistas que contribuem para a subserviência das populações menos favorecidas e dos trabalhadores.

693
habitus violento na dinâmica social e política do Estado de Alagoas, mas reconhecemos a existência de outros habitus e esquemas
de percepção e disposições práticas que se contrapõem a este, e que estão sintonizados com a valorização da vida como um direito
inalienável.
Propomos refletir sobre o habitus violento no Estado de Alagoas a partir da atuação de um grupo que ficou conhecido
como “gang fardada”. Trata-se de um grupo organizado para o crime envolvendo agentes do Estado (políticos e policiais),
empresários, juízes e a cidadãos comuns que praticaram crimes de pistolagem2, assaltos a bancos e casas lotéricas, além de roubos
de cargas de caminhão que circulavam nas estradas alagoanas. A partir desses atos violentos, a sociedade contactou de forma mais
explícita e direta com o habitus violento de políticos e policiais que sempre praticaram a violência, mas jamais tiveram seus atos
tão divulgados e propalados pela mídia local. A maior novidade, portanto, do episódio não consiste exatamente no envolvimento
de autoridades com o crime, pois isto acontece desde sempre, mas sim a exposição midiática e a repercussão que esta super-
exploração provocou no âmbito da sociedade.
Através das ações da “gang fardada” 3 problematizamos os efeitos perversos da institucionalização da violência que se
produz através de um habitus violento envolvendo uma quadrilha organizada por autoridades que corrompiam e violavam4 a Lei
constitucionalmente instituída, ferindo totalmente os princípios que dão sustentação ao Estado Democrático de Direito. Na
verdade, nosso paper coloca em pauta um tema clássico que atravessa todo o enredo da história humana, qual seja: a utilização da
violência para conquista e manutenção do poder.
Tomamos a “gang fardada” como objeto de reflexão através do qual podemos acessar um campo de significações
dispersas no tecido social que nos possibilitam perceber as representações sociais5 acerca do envolvimento de autoridades com o
crime no Estado. Apesar de entender que o campo social6 é um campo de disputas simbólicas, onde para um mesmo fato podemos
encontrar diferentes e divergentes avaliações e interpretações, entendemos que é de extrema relevância percebermos a dinâmica
de violência produzida neste fato que significou uma verdadeira “ferida simbólica”7 para muitos alagoanos.
Muitos indagam se há especificidades locais na violência produzida em Alagoas, ou se esta segue a mesma lógica da
tradicional cultura política autoritária e coronelista existente, particularmente na região nordeste, onde as práticas políticas são
marcadas por atos violentos, intolerantes8 e excludentes. Embora reconheçamos que a violência local guarda uma relação com
uma cultura política nacional e regional, filio-me à compreensão de que há qualificações na violência produzida no Estado de
Alagoas que lhe imprime um sentido particular. O principal fator que define esta especificidade é o fato de os autores dos crimes
estarem, direta ou indiretamente, vinculados à estrutura do Estado9. A impunidade também é um traço significativo na história
política alagoana, sendo um elemento que também contribui enormemente para as práticas criminosas no Estado.
Como assinalamos anteriormente, a sociedade é um espaço de interação e integração entre sujeitos que ocupam
diferentes posições sociais, sendo que alguns são portadores de capital simbólico enquanto outros assumem posições de
subordinação e subserviência pelos escassos recursos que dispõem em termos de capital cultural e econômico. Identificamos os
políticos e policiais no Estado de Alagoas como sujeitos portadores de um capital simbólico que expressa uma “autoridade social
adquirida” junto à sociedade10. Segundo Bourdieu, “o capital simbólico é um crédito, é o poder atribuído àqueles que obtiveram
reconhecimento suficiente para ter condições de impor o reconhecimento” da sociedade ou do grupo a que pertence. Este sujeito
passa a ser o “porta-voz autorizado” do grupo que, ao institucionalizar-se, “recebe do grupo o poder de fazer o grupo”. O poder

2
Segundo Barreira (2008) crime de pistolagem envolve a participação de uma tríade constituída de um mandante, (autor intelectual), um executor do crime,
(pistoleiro) e uma vítima, geralmente um opositor político ou alvo de desavenças interpessoais. O mesmo autor afirma que os crimes de pistolagem são cometidos por
“matadores de aluguel”, “justiceiros”, “vingadores” e ....
3
O episódio que ficou conhecido como “gang fardada” aconteceu no Estado de Alagoas entre os anos de 1997 e 1999, tendo como principal agenciador um Coronel da
Política Militar que tinha como subordinados tanto integrantes de sua corporação como da Polícia Civil do estado de Alagoas.
4
Estamos usando o tempo verbal no passado, mas temos plena convicção de que este grupo não foi totalmente desarticulado e continua agindo criminalmente no
Estado através da violência política e policial.
5
Trabalhamos com o conceito de representação social como um conjunto de “princípios geradores de tomada de posições ligadas a inserções específicas em um
conjunto de relações sociais e que organizam os processos simbólicos que intervém nas relações sociais” (Doise).
6
Os sujeitos estão inseridos em diferentes campos sociais de acordo com o “volume global de capital” que dispõem. Assim, os poderes sociais estão desigualmente
distribuídos e é isto que define as diferentes posições ocupadas pelos sujeitos a partir da “distribuição dos recursos” em termos de capital econômico, capital cultural e
capital simbólico. Para Bourdieu (2004), os sujeitos estão distribuídos no espaço social de acordo com a distribuição das propriedades que expressam um sistema
simbólico organizado pela “lógica das diferenças” ou do “desvio diferencial”. O campo ou espaço social “tende a funcionar como um espaço simbólico, espaço de
estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida” dependendo do acesso ao capital simbólico, cultural, econômico, político,
econômico. (Bourdieu, 2004, p. 154 e 160).
7
Luis Eduardo Soares (2002) utiliza esta expressão, “feridas simbólicas”, para referir-se a eventos de violência que quebram radicalmente o campo das expectativas
sociais, com atos de barbárie e que põe em xeque o campo das negociações simbólicas no tecido social.
8
Trabalhamos com o conceito de intolerância como todo ato que tenta apagar o espaço de autonomia e autodeterminação do outro. Paul Ricceur apresenta o seguinte
conceito de intolerância: “A intolerância tem a sua origem em uma predisposição comum a todos os humanos, a de impor suas próprias crenças, suas próprias
convicções, desde que disponham, ao mesmo tempo, do poder de impor e da crença na legitimidade desse poder. Dois componentes são necessários à intolerância: a
desaprovação das crenças e das convicções do outro e o poder de impedir que esse outro leve sua vida como bem entenda” (Riccuer 2000, p. 20).
9
Para citar um caso mais recente, aconteceu o roubo de mais de 300 milhões de reais dos cofres públicos do Estado de Alagoas, e os 10 autores de tal ato criminoso
são todos Deputados Estaduais.
10
Segundo Bourdieu, o poder simbólico está fundado na posse de um capital simbólico.

694
simbólico é uma construção histórica significativa a partir do qual os sujeitos não só representam o grupo a que pertencem como
assumem um lugar especial de referência para o conjunto da sociedade.
Ainda referenciados em Bourdieu, entendemos que alguns sujeitos que atuam no campo da política são portadores de
capital simbólico, assumindo, assim, uma posição de referência simbólica para a sociedade como um todo. A possibilidade de
suas ações repercutirem como um modelo legítimo de ação social existe simplesmente por terem chegado a este patamar
institucional no campo representacional. Mesmo sabendo que num contexto de desigualdade e exploração social, produzem-se
diferentes habitus nos diferentes campos sociais, entendemos que há algo que serve de amalgama para toda a sociedade que são as
“estruturas estruturantes” e as “estruturas estruturadas” que dão sustentação ao mundo social. O Estado, por exemplo, ocupa este
lugar de instância privilegiada de instituição de regras, normas, valores, significações e classificações que produzem e reproduzem
a dinâmica social, independente das diferenças e desigualdades11 existentes no mundo social. Neste sentido é que afirmamos que
os agentes estatais estão investidos de capital simbólico que lhes conferem a autoridade para regular as relações, estabelecendo
um campo de referenciais valorativos e classificatórios que são reconhecidos pelos diversos segmentos dos diferentes campos
sociais. Essas diferenças e desigualdades produzem campos de disputas marcadas por assimetrias que têm justificado muitos atos
que expressam abuso de poder, intolerância, violência e corrupção que significam um retrocesso às conquistas democráticas.
Tomamos por violência institucionalizada todos os atos de violência envolvendo agentes do Estado, figuras que ocupam
o lugar da Lei e de alteridade. Este tipo de violência produz repercussões significativas no tecido social, particularmente se
consideramos o Estado como um campo de referências éticas, políticas e culturais para o conjunto da sociedade. A violência
institucional foi definida por Dadoun (1998) como aquela situação em que “todas as instituições, organismos, ou órgãos
componentes do sistema democrático, procuram afirmar-se e desenvolver-se às custas dos outros”, estabelecendo uma
organização de poder onde “a função útil e ‘a autoridade competente’ transformam-se em ‘autoridade de comando’, em
dominação”. Além disto, a violência institucional expressa-se na atuação “de uma polícia que no contato direto com os
inumeráveis desafios cotidianos às leis e regras” é “intimada a responder à violência pela violência (...)” (Dadoun, 1998, p.
98/99).
O destaque que damos aos efeitos perversos da violência política ou institucionalizada não nos coloca numa posição de
que os crimes cometidos por cidadãos comuns sejam menos graves que os crimes cometidos por autoridades, mas, neste texto,
propomo-nos a refletir sobre os efeitos subjetivos produzidos pelas constantes práticas de violência cometidas por políticos e
policiais no Estado de Alagoas.
Realizamos uma pesquisa com o material discursivo produzido pelos três principais jornais locais, nos anos de 1998 e
1999, e constatamos que o tipo de violência que ganhou maior visibilidade e expressividade no espaço público do Estado, foi a
violência política e policial. A partir desta constatação, buscamos identificar alguns elementos que compõem o que denominamos
de cultura de violência destacando os efeitos que produzem entre os alagoanos, e o significado que estes atribuem aos episódios
de violência no Estado, referenciados em bases coronelistas12 e patriarcais, e numa certa “cultura sertaneja”13 fortemente
arraigada em códigos culturais que realçam um habitus violento com valores como a honra, a coragem e a valentia14.
Evidente que as marcas desse habitus violento guardam estreitas ligações com a formação econômico-social do Brasil,
que atendeu ao projeto perverso de colonização, montado no autoritarismo e na exploração predatória de nossas riquezas humanas
e bens culturais. Não é por acaso que projetos políticos predatórios, expressos no uso privado do poder público do Estado, têm
encontrado terreno e respaldo em nossa sociedade, tendo sido a tônica das últimas experiências governamentais em nosso país e,
particularmente, no Estado de Alagoas. Esta lógica de poder tem informado toda uma cultura política no Estado, reforçando a
habitus violento no campo das relações políticas. É o que pudemos constatar a partir do material empírico que coletamos em nossa
pesquisa de campo.
Correlacionamos algumas representações expressas pelos alagoanos sobre a violência no Estado e práticas que revelam
a banalização da violência nas relações sociais. Identificamos alguns traços que compõem a cultura de violência, que se expressa
tanto nos discursos como nas práticas de alguns segmentos da sociedade alagoana15. Esta cultura de violência está presente tanto

11
Importante estabelecer a distinção entre o sentido da afirmação de que “os homens são desiguais” da afirmação de que “os homens são diferentes”. Segundo
Companato, existe uma “distinção capital entre desigualdade e diferenças. Enquanto aquelas representam a negação da dignidade comum do ser humano, estas,
muito ao contrário, são expressões de sua inesgotável capacidade criadora” (Campanato, 1998:13).
12
A política de mando imposta pelos “novos coronéis” também está arraigada na mentalidade da população que se submete a este jugo em “troca” de proteção. A
quebra deste “contrato” pode implicar na eliminação daquele que subverteu a ordem estabelecida. O que consubstancia a política coronelista é a convicção de que o
coronel está acima da lei, ou melhor, que a lei existe para além das fronteiras de suas propriedades, não ultrapassando o limite (im)posto pelas “porteiras de suas
fazendas” (cf. Carvalho 2001:19).
13
Importante registrar a tese, transformada em livro, A derradeira Gesta, de Luitgarde Barros, que nos apresenta a história do sertão, contada numa linguagem quase
poética, a partir da análise do que ela denomina de “Cultura Sertaneja” (Barros 2000).
14
No “imaginário do sertanejo” a honra está acima dos direitos humanos, e isto faz com que o crime seja sempre “justificado” em defesa da honra. Há muitos
registros, na história do Estado de Alagoas, de crimes cometidos exatamente em nome desta honra que, em nossa cultura, tem sido defendida com muita coragem e
valentia.
15
Tenório sugere que a compreensão da violência historicamente demarcada no Estado de Alagoas deve ser buscada no “trinômio violência-poder-cultura”, que
concorre para o uso indiscriminado da violência tanto pelos ricos como pelos pobres (Tenório 1995:88).

695
em atos que expressam uma violência institucionalizada (violência política e violência policial), como em atos de violência
praticados pelo cidadão comum.
No período de 1998 a 1999 que delimitamos para estudo16 Alagoas viveu um momento ímpar em sua história,
particularmente em função da divulgação de matérias jornalísticas que explicitavam o envolvimento de autoridades com o crime
organizado. A publicização destes fatos, em certa medida, representou um rompimento com a lei do silêncio17 imposta
secularmente em Alagoas. Pressupõe-se que esta lei, que é abraçada culturalmente por muitos, seja por medo ou convicção,
funciona como uma ameaça, onde se sabe que falar pode custar a própria vida. Esta lei, que faz silenciar, é o que garantiu e
garante a reprodução do crime organizado que, dessa forma, se coloca como um sistema planificado de produção da violência, e
parece estar integrado no campo da cultura do Estado.
Acompanhamos vários acontecimentos discursivos referentes aos episódios de violência local, expressos em múltiplas
falas de denúncias e indignações, que significaram a abertura de processos de apuração de dezenas de “crimes misteriosos” no
Estado. Esta nova dinâmica discursiva, que envolveu amplos segmentos da sociedade alagoana, produziu efeitos significativos no
cenário político local, particularmente com a revelação de uma rede organizada para o crime no Estado, envolvendo políticos e
policiais, possibilitando a descoberta de crimes que estavam literalmente encobertos nos vários “cemitérios clandestinos”18
situados em terras alagoanas. A descoberta desses cemitérios constituiu uma das principais provas da atuação organizada para o
crime no Estado.
Nosso trabalho demonstra que os alagoanos tomaram conhecimento de uma rede articulada para o crime através das
páginas dos jornais locais, onde foram estampadas figuras de policiais, delegados, políticos, funcionários de órgãos públicos
envolvidos com o crime em Alagoas. É perigoso generalizar, mas é importante reconhecermos que as instituições às quais estes
“agenciadores do crime” estavam vinculados sofreram um abalo em sua credibilidade, e que o público que teve acesso àquelas
imagens jornalísticas levará um tempo para resgatar a confiança e restaurar a legitimidade das mesmas.
Desde o primeiro momento que iniciamos nossas reflexões sobre a violência em Alagoas, tínhamos a convicção de que
alguns fatores culturais, ideológicos e éticos eram mais importantes para decifrarmos os episódios de violência local do que os
fatores econômicos. E, de fato, a violência que ganha maior visibilidade nas páginas dos jornais locais (nestes dois anos
estudados) é aquela que envolve autoridades e pessoas que ocupam posições importantes na sociedade alagoana. Observamos que
os crimes comuns, que também não são poucos, ocupam lugares secundários no espaço jornalístico19. Esta constatação vem
reforçar nossa suposição inicial de que a violência em Alagoas foge aos padrões e às conformações da violência urbana, comuns a
outros Estados do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco. Aqui a violência tem bases políticas e,
portanto, culturais, e não funciona como “estratégia de sobrevivência”, mas sim, como “estratégia de manutenção de poder”.
Apesar de o poder econômico caminhar junto com o poder político, e de este último estar intrinsecamente associado à violência
no Estado, não nos arriscamos a afirmar que a marca da violência circunscrita no Estado de Alagoas seja aquela relacionada à
violência urbana, mais vinculada a fatores de ordem econômica. Há fatores culturais e ideológicos que dão sustentação a um
habitus violento no Estado, e que constituem variáveis importantes para compreensão da dinâmica de violência produzida em
nível local.
É importante que nós, cientistas sociais, enfrentemos a discussão sobre a atual crise de credibilidade e legitimidade por
que passam as instituições políticas e sociais como expressão de uma crise da própria Lei, como expressão do esgarçamento da
Lei na esfera subjetiva20, sendo este um componente importante para compreendermos as várias manifestações de violência em
nossa sociedade, inclusive a violência política. Sugerimos que a crise da autoridade que vivenciamos na esfera política e social
tem certamente alguma relação com o declínio da autoridade paterna vivenciada na esfera das micro-relações familiares21.
Na pesquisa que realizamos uma pesquisa para efeito de elaboração de nossa tese de Doutorado, defendida em 2002,
identificamos o elevado índice de notícias sobre violência na imprensa local. A tabela abaixo ilustra o número absoluto e as
porcentagens de notícias de violência que ocupam as manchetes principais dos três principais jornais locais, nos dois anos que
tomamos para análise.

16
O crime organizado continua a existir no Estado de Alagoas; o que cresceu nesses dez anos foi o índice de violência urbana que era insignificante no momento em
que realizamos esta pesquisa.
17
Tratando sobre as organizações mafiosas, Maierovitch afirma: “Nas máfias, a carga intimidatória é interna e difusa. Dirige-se aos mafiosos e aos cidadãos comuns,
não-agregados. O medo incutido gera a sujeição aos interesses das organizações (...). Controlando espaços territoriais, os moradores já submissos, recusam-se a
colaborar com as autoridades em investigações de crimes: é a solidariedade pelo medo (a lei do silêncio)”. ( 2001, p. 5).
18
Em alagoas existem mais de 40 “cemitérios clandestinos” onde são enterrados pessoas consideradas indigentes, e também servem de local de desova dos corpos
vitimados pelo crime organizado.
19
Ressaltamos que o índice de violência urbana hoje já ocupa mais espaço na mídia.
20
Referindo-se à imprescindibilidade da Lei como parâmetro de regulação das relações sociais a psicanalista Leão (2003) afirma: “Quando essa Lei não se inscreve no
sujeito ou quando a inscrição é insuficiente, as regras sociais não encontram ressonância e as consequências podem ser vistas na malha social sob a forma de
transgressões da Lei, que vão da indisciplina até os crimes hediondos” (Leão 2003, p. 49).
21
Entendemos que os mesmos sujeitos que ocupam os lugares da lei e as transgridem, são os que tiveram problemas na inscrição da Lei num âmbito mais subjetivo,
mas isto não nos leva a afirmação de que não há o que se fazer no âmbito social, pois tudo se define na esfera subjetiva.

696
Tabela 1 -Número de manchetes principais com temáticas relacionadas à violência em Alagoas
O Jornal* Gazeta** Tribuna***

N° % N° % N° %

Total de exemplares no ano 158 52,84 144 47,21 198 63,25


de 1998 sobre violência
Total de exemplares no ano 177 57,46 125 41,80 171 57,38
de 1999 sobre violência
* Nº total de exemplares que circulou no ano de 1998 foi de 299, e em 1999, 308.
** Nº total de exemplares que circulou no ano de 1998 foi de 305, e em 1999, 299.
*** Nº total de exemplares que circulou no ano de 1998 foi de 313, e em 1999, 298.

Ainda que nosso trabalho não estivesse situado no campo da pesquisa quantitativa, que utiliza a variável estatística para
formulação de inferências teóricas é significativo o registro desses dados por constituírem um indicativo do lugar que a violência
ocupa no espaço jornalístico local, assim como são reveladores do interesse da população alagoana a respeito desta temática.
A análise dos enunciados permitiu identificar que o tipo de violência que possui maior visibilidade e destaque nas
matérias de capa, dos três jornais e anos analisados, é a violência política ou institucionalizada, que ganha expressão através da
violência política e da violência policial.
Sabemos que a edição de um jornal destaca, na manchete principal, aquela notícia que pode causar maior impacto e
interesse junto ao público leitor. Como a imprensa seleciona intencionalmente os fatos que se transformam em notícias, ela
também seleciona o enunciado que tomará o espaço da manchete principal, decisivo na vendagem de seus exemplares. Alguns
depoimentos de jornalistas admitem que uma manchete sobre violência pode até dobrar a vendagem de um jornal. Este dado
determina a edição de uma manchete principal, confirmando o que se pode obter com a exploração da violência pela mídia22, a
despeito dos efeitos que venham a produzir junto ao público consumidor, seja em termos de pânico e de desconstrução da imagem
da autoridade, como tem sido a marca das manchetes nestes dois anos de análise.
O discurso jornalístico “reflete um trabalho de elaboração coletiva do imaginário social” (Mariani 1999, 112),
constituindo-se num campo de significação de realidade para o sujeito, que vê o mundo através das lentes dos jornalistas,
tradutores e intérpretes dos fatos, expressos em acontecimentos discursivos. A alta frequência com que as notícias de violência
são veiculadas nos/pelos jornais alagoanos produz efeitos de banalização da violência e representações sociais que interferem na
constituição da própria realidade social e política do Estado. Estes recortes de violência expressos cotidianamente nos jornais
locais atuam, junto à população, como “mecanismos de naturalização e institucionalização dos sentidos, apagando alguns
processos históricos em detrimento de outros” (Mariani 2000, p.112). A reprodução diária de imagens da violência pela imprensa
produz efeitos de “evidência do senso comum”, reforçadas pelo “efeito de repetição”, que têm contribuído para banalizar a
violência no Estado de Alagoas, apagando as bases da formação sócio-histórica que constituem o fundamento último de todas
estas práticas de violência institucionalizada.
Os meios de comunicação apresentam esquemas de explicação da realidade que passam a constituir modelos
inconscientes de percepção dos fatos, definindo um habitus em forma de condutas e comportamentos sociais, na medida em que
atuam no processo de definição de valores e delineamento de mentalidades políticas e ideológicas junto à sociedade (cf Serra
1980, p. 54). Os jornais influenciam a construção da realidade social na medida em que as representações23, expressas nos jornais,
definem práxis sociais e políticas dos vários segmentos que compõem a sociedade. É muito comum, e até esperado, que os
sujeitos reproduzam as análises e avaliações interpretativas construídas no espaço jornalístico. Como nos alerta Mariani, “se não
repetimos uma interpretação, pelo menos somos agendados a pensar em determinadas questões ou a pensar de determinado
modo nos fatos colocados em evidência pelo Jornal” (1999, p. 111). Aquilo que se relaciona à televisão, pode ser estendido aos
meios de comunicação em geral: são “instrumentos de criação da realidade”, pois podemos observar que “tanto certos
acontecimentos podem virar notícia como determinadas notícias criam o acontecimento” (Mariani 1999, p.111). Ao processar as
informações, traduzindo-as, interpretando-as e transmitindo-as á população, os meios de comunicação se tornam “o árbitro do
acesso à existência social e política” (Guareschi 2000, p. 43).
Ao introduzir a dimensão subjetiva no estudo da violência e dos direitos humanos estamos admitindo que a sociedade é
um espaço de convívio entre sujeitos cindidos e descentrados, que referenciam suas ações tanto pelos ditames conscientes quanto
inconscientes. Ao introduzir o elemento subjetivo na discussão sobre violência e direitos humanos estamos admitindo que a

22
Um jornalista chegou a afirmar o seguinte: “(...) a maior vendagem que a gente teve aqui, inclusive de esgotar edição, foi em cima do caso de Coronel Cavalcante.
Porque também ele representava um tipo de anti-herói, principalmente para a classe mais pobre. Ele era ao mesmo tempo odiado, respeitado, e as pessoas tinham
medo. Ele era quase onipresente em determinadas localidades no Estado de Alagoas.”
23
Segundo Rondelli,(1998), “Os meios de comunicação têm a capacidade de operar como produtores de consenso, por agregarem e comporem vários discursos e por
refletirem produções socioculturais, definições e representações sociais” (Rondelli 1998, p. 151).

697
sociedade tem que ser pensada como o espaço da contingência e do imponderável, vez que o humano desconhece, quase sempre,
as motivações que fundam suas ações e práticas sociais. É isto que os constituem sujeitos marcados por contradições e
ambiguidades que, em última instância, revelam o conteúdo consciente e inconsciente de suas ações, o que existe de consciente e
inconsciente em seus pensamentos e representações sociais, sendo o que os tornam sujeitos imprevisíveis, singulares e
contingentes em sua historicidade frente aos dilemas sociais.
Neste sentido, afirmamos que cada sujeito vivencia de forma singular as experiências de violação dos direitos humanos,
seja em relação a si mesmos ou em relação ao outro. Daí ser necessário o estabelecimento de referenciais sociais em termos de
leis, regras, normas, costumes e hábitos que possam balizar e orquestrar as relações sociais em torno de códigos éticos e culturais
minimamente recíprocos e integradores. Entendemos que o reconhecimento e a efetivação das leis, que instauram direitos e
deveres na esfera social, constitui um pressuposto fundamental para o balizamento das relações entre sujeitos sociais na
contemporaneidade.
Assumimos, portanto, a postura teórica que reconhece o lugar da Lei tanto na estruturação do sujeito como na
estruturação do tecido social. Feitos estes esclarecimentos teóricos, passemos a discussão de algumas manchetes de jornais que
revelam a subversão da Lei pelas próprias autoridades, para podermos dimensionar o efeito que podem produzir no público leitor:
- Três deputados sob suspeita (Justiça decretou há oito dias busca e apreensão nas casas de Beltrão, Albuquerque e
Tenório) – O Jornal, 12/02/98.24
- Contrabando de Armas. Documento da PF confirma envolvimento de deputados (Revelação está nos autos do processo e
de um mandado de busca e apreensão em mãos do Juiz da 11ª Vara, Hélder Loureiro) – Tribuna de Alagoas, 12/02/98.
- Ex-prefeito envolvido com máfia (Polícia encontra irregularidades em empresas de Múcio Amorim e Flavio Orosco) – O
Jornal, 15/02/98.
- Criada CPI para investigar crime organizado (Comissão terá autonomia para convocar depoimentos, indiciar envolvidos
e vasculhar estrutura policial em Alagoas) – Gazeta de Alagoas, 18/02/98.
- Prefeita envolvida com crime organizado (Empregado de Fidélis diz que Vera Lúcia mandou desenterrar e jogar em
açude cadáver de homem executado por seu filho) - Gazeta de Alagoas, 28/02/98.
- Prefeito envolvido em pistolagem (Cícero Cavalcante contratou delegado para assassinar vereador da oposição em
Matriz) – O Jornal, 01/03/98.
- Deputado acusado de 12 crimes (Superintendente do INSS leva fazendeiro a PF e denuncia Albuquerque por pistolagem)
– O Jornal, 05/03/98.
- Prefeita é indiciada por ocultação de cadáveres – O Jornal, 11/03/98.
- Vereador paga R$ 30 mil para assassinar secretário de Obras (Advogado denuncia que cinco pistoleiros da quadrilha de
Camilo metralharam Pedro Sales) – Tribuna de Alagoas, 17/03/98.
- Suruagy vai depor sobre o caso Vianna (Polícia Federal convoca ex-governador para dizer oficialmente o que sabe sobre
o crime) - Tribuna de Alagoas, 12/05/98.25
- Chacina na Gruta. Deputada Ceci Cunha , o marido e mais dois familiares são assassinados a tiros de 12 e pistola 9MM.
– Tribuna de Alagoas, 17/12/98.26
- Augusto Farias acusa Talvane, que aponta governador como suspeito na morte de Ceci Cunha (Parlamentar diz que
deputado arapiraquense armou complô para assassiná-lo e assumir sua vaga na Câmara) – Gazeta de Alagoas, 21/12/98.27

Estas manchetes de jornais são contundentes ao anunciar o envolvimento de deputados, prefeitos e ex-prefeitos,
vereadores e governadores com o crime organizado no Estado. Em parceria com a “gang fardada”, estes políticos, que pertencem
à esfera dos poderes Executivo e Legislativo, são denunciados, publicamente, por contrabando de armas, por envolvimento com a
máfia e o crime organizado, por crimes de pistolagem, por ocultação de cadáveres e práticas de homicídios.
As manchetes explicitam a articulação dos políticos com a estrutura criminosa montada pelos agentes da polícia,
demonstrando a conivência e a co-participação dos políticos nos crimes cometidos pela “gang fardada”. Assim como os policiais,
os políticos subvertem a ordem, com atos de perversidade sem precedentes, se considerarmos que todos ocupam o lugar da Lei.
Este é um elemento decisivo para delimitação de um habitus violento que passa a ser uma referência para a sociedade se
considerarmos, como afirmamos anteriormente, que os sujeitos envolvidos com o crime são portadores de um poder simbólico
construído junto ao campo social.
A explicitação desta rede articulada em função do crime em Alagoas, com a participação de autoridades políticas e
policiais do Estado, faz pensar sobre os efeitos simbólicos que estão sendo produzidos em gerações de jovens e adultos, que

24
Os três nomes citados ocupavam à época os cargos de Deputados Estaduais em Alagoas.
25
A autoridade citada foi governador do Estado por dois mandatos, e Silvio Viana era Secretário da Fazenda, em sua gestão, quando foi assassinado.
26
Ceci Cunha foi assassinada no dia de sua diplomação como Deputada Federal.
27
Talvane Albuquerque e Augusto Farias ocupavam na época o cargo de Deputados Federais. E o governador referido é Manoel Gomes de Barros.

698
assistem a práticas cotidianas de crimes envolvendo autoridades, produzindo o esgarçamento das referências superegóicas28
necessárias à instalação do sujeito no processo civilizacional. Freud faz uma “analogia entre o processo civilizatório e o caminho
do desenvolvimento individual” mostrando que há uma “concordância entre o superego cultural e o individual”. Diz ele: “O
superego de uma época de civilização tem origem semelhante à do superego de um indivíduo. Ele se baseia na impressão deixada
atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes (...)” (1999, p. 44).
A psicanálise tem contribuído com importantes reflexões acerca das possíveis consequências sociais da não
internalização da Lei Paterna. Sobre esta questão afirma Cotta (1998): “A impunidade gozada pelos homens públicos,
especialmente no Brasil, nos fala da falta de Lei. Não da Lei objetiva. Mas da falta de Lei interna, da falta da internalização da
Lei Paterna, tão necessária para a introjeção dos “boundaries” e para regular a relação entre os homens” (Cotta 1998,p. 125).
É preciso observar que as transgressões cometidas pelas autoridades não expressam apenas desajustes na relação entre Estado e
Sociedade, mas revelam as deformações de sua estrutura subjetiva (de um adulto), que não suporta vivenciar a frustração. Esses
políticos que subvertem a Lei fazem uso do seu poder simbólico para garantirem a impunidade para os seus atos delituosos e
transgressores. Neste sentido, agem para que a Lei seja aplicada ao outro, jamais para si próprio. Vivemos numa sociedade onde
nossos políticos, “esses rígidos senhores abigodados, tão cônscios e orgulhosos de sua virilidade”, estão sempre a manipular a
sociedade e a seduzi-la, para conseguir seus objetivos escusos, na certeza de sua impunidade, tal qual o “filho eleito”, amado e
perdoado por sua mãe29 (cf. Cotta 1998). Pior ainda é pensar que a falta de Lei Paterna faz com que não haja uma efetiva e eficaz
atuação dos homens responsáveis pelas instituições públicas. Isto gera uma sensação de desamparo e orfandade que deixa os
sujeitos à deriva de qualquer interdito que os barre na possibilidade de transgressão. Dessa forma, a marginalidade se espraia na
malha social.
A psicanálise tem contribuído para refletirmos sobre a função da autoridade a partir da “metáfora paterna”, que
reconhece e institui o lugar da autoridade na sustentação do “fio e da trama do tecido social”. Essa abordagem se sustenta nos
seguintes pressupostos: “que todo grupo se constitui tanto a partir de uma identificação entre seus membros quanto a partir de
uma referência exterior a ele mesmo (...)” que possui a “função ordenadora, regulando os afetos e as condutas coletivas”; esse
princípio de autoridade é o que garante o funcionamento das instituições ou de quaisquer formações coletivas (Araújo 2001, p 17).
Sem a figura de autoridade, que assume simbolicamente a “função paterna”, interditando e instituindo a barra da Lei, um grupo
não pode sobreviver como grupo, pois se instaura o que Hobbes denominou de Estado de Natureza, um estado de guerra de todos
contra todos (cf. Araújo 2001, p. 22).
Tomando como referência o livro de Freud Psicologia das massas e análise do Ego, Araújo (2001) defende a tese
freudiana de que os sujeitos precisam de uma referência de autoridade, da figura de um líder que é “antes de tudo um operador
simbólico” que exerce a função paterna. Assim, o Estado representa, na modernidade, esta função que possibilita a interiorização
coletiva da lei e da castração, ao tempo em que promove a sensação de amparo e proteção. A ausência do Estado, ou a subversão
desta “função paterna” pode “significar o fracasso social da imagem e da metáfora paterna”, uma perda de referência que pode
levar ao caos social (Araújo 2001).
Colocando a questão nesses termos, reconhecemos que este tema nos desafia não só como cientistas sociais, mas,
principalmente, como sujeitos na medida em que estamos a todo o momento sendo indagados acerca de nossa própria posição
com relação à Lei30. Todos os enunciados apresentados representam um movimento de destituição da figura de autoridade
política, que produz a fragilização da função e do referencial de autoridade fundamental para manter minimamente um
ordenamento social. Na verdade, a imagem transmitida por estes enunciados é de uma sociedade sem limite e sem lei, onde as
próprias autoridades, que ocupam um espaço de alteridade, agem como se não representassem, para além do cargo público, um
lugar de poder e influência junto à sociedade. Estas revelações produzem o efeito da “banalização do mal” e da “trivialização do
trágico”, onde o matar e o morrer tornam-se uma atividade banal (Guareschi 1994).
Assim como os policiais, os políticos parlamentares também experimentam o efeito de generalização, reforçado pelo
fato de não existirem enunciados, com a mesma frequência e intensidade, que mostrem ações positivas desenvolvidas por outros
políticos que não fazem parte do esquema do crime organizado em Alagoas. Nos jornais estudados, o que se ressalta é tão
somente o lado pervertido da atividade política e policial. Não caberia censurar o tratamento desta temática no espaço jornalístico;
no entanto, é importante refletir acerca dos efeitos da abordagem que tem sido dispensada a esta temática, considerando que os
jornais atuam no processo de formação de opinião política junto à sociedade. As imagens negativas transmitidas através da
imprensa certamente compõem a representação que o alagoano tem da polícia e da política no Estado. As imagens negativas que

28
O superego é uma instância das formulações freudianas que estabelece o ditame da lei. De maneira sucinta é possível descrevê-lo como sendo o resultado do
fascínio pela alteridade que representa o ideal, de forma que aquilo que se constitui ideal é, contundentemente, o determinante dos princípios da ação humana, da Lei
que rege o sujeito.
29
Para este psicanalista, nesses casos há sempre um pai ausente e/ou fraco, por conseguinte, há falhas na introjeção da Lei Paterna. Ao mesmo tempo, há uma certa
simbiose com essa mãe permissiva, consequentemente, uma identificação com ela. Essa identificação com a mãe permissiva e sedutora, quando levada para a esfera
social, gera a impunidade que vemos todo momento.
30
Importante dizer que nossa posição em relação à Lei não estará melhor ou pior instalada em função de nossos conhecimentos teóricos sobre o tema em questão, até
porque a inscrição da Lei não se dá pela via intelectual, mas pela via de complexas operações psíquicas, pela experiência subjetiva em nossa mais tenra idade.

699
vinculam o crime ao poder público do Estado atingem, mais do que pessoas, as instituições políticas e policiais do Estado,
revelando que existem tentáculos e ramificações do crime organizado nessas instituições que constituem os pilares do Estado
Democrático de Direito. Além das práticas violentas dos políticos e policiais, as representações expressas no espaço da mídia,
contribuem para a formação e consolidação de um habitus violento que tem sido historicamente constituído na sociedade
alagoana.
Os efeitos desta atuação criminosa das autoridades, reveladas pela mídia e assistidas pela sociedade de forma ampla e
irrestrita, são incomensuráveis por representar uma quebra da ordem institucional. São revelações de um habitus político violento
que, no mínimo, constitui um estímulo à prática de atos violentos, além de produzir o efeito da descrença na atividade política e
nos políticos como um todo.
O bloco de enunciados que se segue demonstra a reação da estrutura do crime organizado ao processo de investigação.
São manchetes que revelam o quanto a impunidade tem reforçado um habitus político violento na sociedade alagoana:
- Gang ameaça metralhar superintendente da PF (Federação de Polícia Federal avisa aos bandidos: ‘se atacarem
qualquer agente , a reação será imediata’) (22/01/98 – Gazeta)
- Máfia faz primeira queima de arquivo31 (Quadrilha desafia operação policial e executa subtenente envolvido em assaltos)
(05/02 /98 - O Jornal).
- Advogada recebe ameaça de morte (Ana Cícera teme ser assassinada por ter denunciado ex-delegado federal no caso
Anderson) – (06/03/98 – Tribuna)
- Exclusivo: ameaça de morte de Juiz pode Ter partido da PM. (Sindicância rastreia ligações do celular reservado ao
comando da polícia militar. Uma das seis ligações telefônicas ameaçando de morte o Juiz Jerônimo Roberto pode ter sido
feita no celular reservado ao comando da polícia militar de Alagoas) – Tribuna de Alagoas, 15/03/98.
- Polícia Civil descobre cemitério clandestino com quinze cadáveres (Delegado confirma que as vítimas fazem parte da
queima de arquivo da gang fardada) – Tribuna de Alagoas, 06/02/98.
- Queima de arquivo, assalto e desova (Crime organizado volta a agir com violência e audácia em Maceió e no interior) –
O Jornal, 13/05/98.
- Juiz sofre atentado a bomba na Jatiúca (Crime organizado inicia ações para amedrontar juizes e impedir que gang
fardada seja investigada) - Tribuna de Alagoas, 19/06/98.
- Juiz, promotores e escrivão recebem ameaças de morte do crime organizado (Bilhete anônimo adverte magistrado que
todos que investigam gang fardada serão assassinados) (05/09/98 – Tribuna).

Esses enunciados mostram como o processo de investigação do crime organizado desencadeou uma série de ações de
intimidação com ameaças de morte, eliminação de testemunhas como forma de queima de arquivo, atentados a bomba e
divulgação de cemitérios clandestinos. Diante de tais constatações, é difícil envolver a sociedade no processo de elucidação dos
crimes a partir de suas denúncias. Se mesmo as pessoas do mais alto escalão do governo e da Justiça estavam sendo ameaçados
de morte, como um cidadão comum se pronunciaria sobre os fatos criminosos que tinham conhecimento. A certeza da impunidade
fazia com que os criminosos agissem sem medo de represálias, intimidando até mesmo juízes e promotores que tomavam a frente
das investigações.
As “ameaças de morte” e “queimas de arquivo” tentavam produzir um efeito de intimidação junto aos juízes,
promotores, delegados, policiais e políticos empenhados no esclarecimento dos fatos, e também junto à população que se mantém
temerosa para fazer denúncias e acusações32. De fato, muitas pessoas foram mortas, como queima de arquivo, com o objetivo de
dificultar a desarticulação da rede montada para produzir o crime em Alagoas. A descoberta dos cemitérios clandestinos provocou
um efeito de medo na população, que pôde ver, sem maquiagem, o poder de perversão daqueles que faziam parte do crime
organizado e do sindicato do crime em Alagoas. Os cemitérios clandestinos era a prova maior do habitus violento que
referenciava os políticos e os policiais no estado. Evidente que esta constatação faz crescer um sentimento de medo e insegurança
na sociedade, assim como produz um estímulo que as pessoas façam justiça com as próprias mãos, explicitando ainda mais um a
certeza da impunidade no Estado.
Como assinalamos anteriormente, as investigações dos crimes em Alagoas não evoluíam e não tinham êxito exatamente
porque os autores dos crimes compunham a estrutura de segurança do Estado. A prática de intimidação é comumente utilizada
pelos políticos e policiais, como uma forma de manter o silêncio, provocado pelo medo de morrer. Esta é a forma que o crime
organizado utiliza para manter o controle da população e para estagnar os inquéritos policiais que ficavam (e ficam) sem
testemunhas, portanto, sem provas materiais.

31
Expressão utilizada para denotar o sentido das mortes cometidas pelos crime organizado quando eliminam pessoas “sabiam demais” porque testemunharam ou
tiveram acesso a informações sobre os atos criminosos e os delitos cometidos pela máfia, gangue ou quadrilha organizada para o crime. A “queima de arquivo”
significa, portanto, o silenciamento da pessoa que tinha arquivado em sua memória as informações sobre os crimes que podem incriminar uma pessoa ou um grupo.
32
Neste período, a Polícia Militar cria o “Disque-Violência” para possibilitar à população um canal de denúncia anônima, que mantivesse a segurança das pessoas
dispostas a contribuir com as investigações.

700
Considerações finais
Os sistemas de disposições e práticas pautadas pelo habitus violento continuam a ser de absoluta referência e atualidade
no contexto atual da política alagoana. Apesar de termos retratado um contexto político referente a uma conjuntura de dez anos
atrás, temos dados que nos revelam que a violência política e policial em Alagoas continua tão intensa quanto antes, com o
acréscimo de que hoje além desta violência institucionalizada, vemos crescer a cada dia uma violência urbana que tem vitimado,
principalmente, os jovens numa faixa etária de 18 e 24 anos de idade. Evidente que a certeza da impunidade produz um solo
bastante fértil para o crescimento da criminalidade no Estado.
Não podemos deixar de assinalar que o declínio da alteridade, seja no estado público ou provado, constitui um dos
fatores cruciais para a frouxidão ética e moral que tem gerado tantos atos de violência e intolerância na realidade alagoana. É
fundamental perceber como esta violência institucionalizada tem ampliado as possibilidades de atuação da violência urbana no
Estado de Alagoas, mas este não foi o objetivo a que nos propomos neste paper.
É preciso perceber que algo faz uma ligação entre o habitus violento produzido e propagado por nossos políticos e
policiais, e o habitus violento que consubstanciam as práticas de jovens que estão matando e morrendo a partir de motivações que
mostram uma articulação perversa de dois valores inscritos na atualidade, quais sejam: a “desvalorização da vida” e a
“banalização da morte”. Parece-nos que estes são os mesmos valores que reforçam as práticas criminosas de políticos que abusam
do poder simbólico que dispõem para matar, roubar,, corromper, desviar recursos e produzir desmandos nas esferas do poder em
nossa sociedade. Se aceitarmos esta tese, estamos diante de um grave desafio: desconstruir o habitus violento historicamente
consolidado no Estado, e construir de um habitus democrático que passe a ser um referencial legítimo e reconhecido para o
conjunto das disposições e práticas dos sujeitos no campo social.

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comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes.

Memória e pertencimento: o discurso criminalizante e o samba como "território" de


resistência. Uma experiência na periferia de uma grande metrópole brasileira
Adriana Geisler
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Fundação Oswaldo Cruz
[email protected]

701
Resumo: Considerando os sentimentos de medo e de insegurança manifestados pelos habitantes dos grandes centros urbanos brasileiros, esse
trabalho busca compreender como a criminalização da pobreza tem sido produzida e vem se manifestando no tecido social, e em que medida o que
se pode denominar de “território do samba” tem se apresentado como resistência a esse processo.
Para tanto, além do levantamento bibliográfico relativo à temática escolhida foi realizada uma pesquisa exploratória de base documental que teve
como cenário um Centro de Cidadania criado pelos integrantes de uma Escola de Samba do Rio de Janeiro. A análise do material coletado foi feita
a partir de categorias que emergiram da base documental, a saber: memória e pertencimento.
A partir do contexto analisado, e sem “desperdiçar a experiência” de construção e autoconstrução cidadã dos moradores de um sítio da periferia de
uma grande metrópole brasileira, foi possível observar que, o universo do samba pode ser um “agente” catalizador de “subjetividades desejantes”
– para falar com Guattari (1999), isto é, de subjetividades realizadoras de liberdade. Nas palavras de Geisler (2006), “reconhecendo-se como filho
da cidade, e extraindo suas motivações e convicções das lutas coletivas, o sujeito se constitui a partir de um processo de auto-organização
comprometido com a memória dos vencidos e enraizado na tradição histórica não oficial”.

Introdução
Reconhecendo que uma determinada concepção de violência - isto é, aquela que reduz violência à criminalidade -
parece redefinir a própria noção de espaço público no mundo contemporâneo, esse trabalho busca compreender como a
criminalização da pobreza tem sido fabricada em “escala global” e em que medida o que se pode denominar de “território do
samba” tem se apresentado como expressão “local” e contra-hegemônica a esse processo.
Para tanto, além do levantamento bibliográfico relativo à temática escolhida foi realizada uma pesquisa exploratória de
base documental que teve como cenário um Centro de Cidadania criado pelos integrantes de uma Escola de Samba do Rio de
Janeiro. A análise do material coletado foi feita a partir de categorias que emergiram da base documental, a saber: memória e
pertencimento. Empregamos, para tanto, a categorização analítica. Este tipo de categorização consiste em utilizar classes,
categorias para agrupar os dados e, assim, transmitir seu significado. Os dados foram, portanto, agrupados e interpretados de
acordo com a fundamentação teórica.
No primeiro item, intitulado “Criminalização e configuração da sociedade brasileira: uma segregação que fez (e faz)
história”, buscamos remontar o processo de exclusão de algumas parcelas da população brasileira - nominadamente, os negros e
as camadas subalternizadas - à colonização.
No item seguinte, “Violência e criminalidade”, procuramos caminhar na contramão dos que, ao reduzirem violência à
criminalidade, retiram o caráter público das políticas de segurança, responsabilizando as populações subalternizadas não somente
pelo medo que se difunde nas grandes metrópoles como também pelas próprias “violências” as quais estão submetidas.
No terceiro tópico, considerando a relação intensa que o samba tem com o cotidiano dos moradores de um bairro da
periferia da cidade do Rio de Janeiro, procuramos compreender como o que denominamos de “teritório” ou “ambiente” do samba
pode potencializar o sujeitos a entrarem em contato com o seu passado, com a história de sua comunidade e com as tradições de
seu povo, podendo assim, se reconhecer, simultaneamente, como modificador da sua própria história e do espaço em que vive.

Criminalização e configuração da sociedade brasileira: uma segregação que fez (e faz) história.
Apesar de ter sido reforçado pelo processo de exclusão produzido pelo capitalismo ao longo de sua história, a
segregação social no Brasil encontra suas origens na colonização. Segundo Nascimento (1994), os três personagens clássicos da
segregação social nesse país foram os índios, os negros e os trabalhadores rurais.
Fundamentais na ocupação do novo território pelos portugueses, os índios foram, de acordo com este autor, “os
primeiros excluídos necessários” do Brasil.
Sabemos que, no Brasil mercantilista, a exploração da mão-de-obra indígena se adequava perfeitamente às exigências de
substituição da política de escambo pela produção de mercadoria (pau-brasil). Durante o século XVII, o desenvolvimento da
economia da colônia exigiu o aumento do número de trabalhadores na lavoura. A substituição da mão-de-obra indígena pela
africana – supostamente mais resistente - conferiu aos negros, nesse momento, o estatuto de mercadorias. À semelhança dos
indígenas do período anterior, os negros não eram, obviamente, considerados cidadãos.
Como suporte ideológico aos maus tratos impingidos pelos colonos europeus às demais etnias que habitavam o Brasil
colônia, diversas teorias surgiram para ratificar esta visão europocêntrica de mundo. A superioridade da cultura e da raça européia
foi sustentada por diversos intelectuais da época. Esses estudiosos correspondem ao que se pode denominar hoje de “amoladores
de facas”, pois, como veremos, seus discursos descontextualizados, aparentemente neutros e desvinculados de uma análise
histórica do poder, contribuem indiretamente na fabricação da violência.
Como corolário desse sistema disciplinar e excludente, o processo de criminalização no Brasil encontra na colonização
suas raízes, sendo reforçado pela herança escravocrata, através da implantação de um sistema penal de tradição genocida, seletiva
e hierarquizadora.
Para Malaguti Batista (2003), a ciência jurídica da época deu suporte ao regime escravocrata, produzindo tanto uma
política de lei e de ordem quanto incentivando a sua concretização por meio de ações policiais contra a população afro-brasileira.

702
De acordo com esta autora, esse regime econômico e social esteve na base de um sistema penal genocida que, ao articular direito
penal público e o direito penal privado, manipulou as agências do Estado Imperial – burocrata, orientando-as com vistas ao
homicídio, a mutilação e a tortura dos negros desse período.
No entanto, na contramão de um direito penal que agia de forma a colaborar com a implantação de um sistema penal
cada vez mais segregante, seletivo e punitivo, a mão-de-obra escrava ia impondo, por meio de levantes e insurreições, diversos
abalos ao ordenamento introduzido pela escravidão. O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão e embora nele tenha
sido proibido o tráfico negreiro, o tráfico ilegal resistiu por um bom tempo. A história da formação e da consolidação da
resistência negra nesse país se liga a história dos primeiros escravos que, conhecedores do significado da liberdade, chegam ao
Brasil sem estar dispostos a se submeter a qualquer regime de escravidão. Podemos dizer que, nessa época, os levantes e
manifestos dos negros eram tão temidos quanto à descida da população que habita as favelas atualmente.
Para Neder apud Malaguti Batista (op. cit.), o fim da escravidão e a implantação da República não romperam jamais
com aquele ordenamento, nem do ponto de vista sócio-econômico, nem no cultural. Vale dizer, que no contexto da abolição da
escravatura e da proclamação da república, o Código Penal de 1890 tanto punia a vadiagem - em seu artigo 399 - quanto punia a
greve - em seu artigo 206 - o que configurava como crimes o não trabalhar e/ou o parar de trabalhar. Essa não ruptura, talvez, nos
ajude a compreender as atuais e constantes ondas de medo quanto a uma suposta “rebelião negra”. Dito de outro modo, os
moradores das grandes metrópoles brasileiras têm medo de que a população da favela desça os morros. Portanto, “nem o fim da
escravidão e nem a República romperam com o legado da fantasia absolutista do controle social, da obediência cadavérica. A
atuação da polícia nas favelas cariocas nos dias de hoje é a prova viva deste legado”. (p.32).
O medo é, portanto, o solo fértil para a implantação das políticas de lei e de ordem. É como se, para falar com Malaguti
Batista (op. cit.), a massa negra, escrava ou liberta, se transforma num gigantesco Zumbi que assombra a civilização; dos
quilombos ao arrastão nas praias cariocas. Ao estudar as operações policiais que, no intuito de eliminar as epidemias na corte
imperial na segunda metade do século XIX, derrubam as habitações coletivas, Chalhoub apud Malaguti Batista (op. cit.) vai
afirmar que o conceito de “classes perigosas” surge nessa época. “Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle
social no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras de doenças”. (p. 37)
Os cortiços - locais de habitação da população pobre - eram vistos como espaços fétidos, de vagabundagem e
disseminador de doenças. Como potenciais transmissores de doenças, os pobres passaram a ser um mal e se transformaram na
corja da sociedade. No Brasil oitocentista, portanto, a pobreza era encarada como defeito moral e a tortura rotineira como “castigo
justo”. Assim, “o processo violento de despejo e demolição de um célebre cortiço, o Cabeça-de-porco, levada a cabo numa
verdadeira operação de guerra, apresenta um sentido de “torturante contemporaneidade”. Calorosamente aclamado pela imprensa,
a destruição do “valhacouto de desordeiros” é um dos marcos iniciais de uma concepção que se fundava para a gestão das
diferenças na cidade; construía-se a noção de que as classes pobres eram perigosas, e de que a cidade poderia ser gerida
“tecnicamente” ou “cientificamente” (op. cit, p. 37 e 38)
A lógica das “classes perigosas” tem contribuído historicamente tanto para fundamentar políticas genocidas de controle
social quanto para inibir do exercício de cidadania. Se no passado essa política, conhecida como “bota–abaixo”, ratificou a
ideologia do discurso criminalizante, hoje a difusão de imagens do terror pede políticas violentas de controle social. Sendo assim,
as estruturas jurídico-policiais fundadas no nosso processo civilizatório nunca se desestruturam, nem se atenuam. É como se a
memória do medo construísse uma arquitetura penal genocida cuja clientela-alvo mudou de índios para pretos e pobres.
Para Nascimento (1994), antes os indivíduos destas classes eram objeto de um processo de “domesticação”, de
adestramento – para usar a expressão preferida por Foucault. No período de disseminação de mudanças no processo produtivo ao
longo dos séculos XVII a XIX, e mesmo na primeira metade do XX, as escolas, os presídios os hospícios, a urbanização, entre
outros - além de uma sofisticada legislação e mecanismos claramente repressivos – foram sendo criados com o objetivo de
produzir uma força de trabalho requerida pela expansão do emprego. No início do século XXI, no entanto, parte dos trabalhadores
não interessa mais à economia e os mecanismos de domesticação se diluem, perdem eficiência, começam a se quebrar ou,
simplesmente – ou de forma paradoxal - transformam-se em obstáculos de integração no mundo do trabalho.
Batista (op. cit.) vai afirmar que no final do século XIX, tem início a transição para o capitalismo, que levou a
configuração política republicana e federativa do Brasil. Estava em vigor um sistema penal cujo eixo era constituído por penas
corporais. Com a república, implantavam-se, ao mesmo tempo, a ordem burguesa e a pena privativa da liberdade.
De acordo com Nascimento (op. cit.), com o Estado Novo e a política populista, se iniciam as formas e os instrumentos
pelas quais se dá a integração dos trabalhadores urbanos. Isso ocorreu, no entanto, através de uma engenharia institucional cujo
resultado é uma cidadania excludente. Assim, o mundo da cidade se opôs ao mundo rural, formado por uma população
majoritariamente de excluídos. Migrar significa ampliar consideravelmente suas possibilidades de “ter direito a ter direitos”.
Para este autor, no pós-guerra predominava a idéia do pobre como “Jeca Tatu”: um indivíduo indolente, preguiçoso e
espacialmente distante. A pobreza que até então se encontrava praticamente restrita ao mundo rural, passa a ser tema de folclore
em nossa literatura e mesmo no cinema nascente.

703
Já a partir dos anos 1960 – 1970, o pobre já se avoluma no espaço urbano, mas é tido como um “malandro”, como
alguém que não gosta de trabalhar. Com o aumento da população, há um aumento da disponibilidade da mão-de-obra. De acordo
com Nascimento (op. cit.), a repressão passa a ser a demanda social e de mercado para os chamados “desqualificados” - isto é,
àqueles que não interessam ao mercado por não terem qualificação para ocupar os postos de trabalho disponíveis. Grupos de
extermínio se formam nas grandes cidades latino-americanas.
Batista (op. cit.) vai mencionar que nessa década também a ditadura militar forneceu um modelo muito adequado às
relações entre o capitalismo e o sistema penal. Com uma política do “arrocho salarial”, os militares asseguravam mão-de-obra
barata às multinacionais e o sistema penal prendia os grevistas e os que eram considerados “vadios”.
Na década seguinte, nos idos de 1980, o Brasil, segundo Nascimento (op. cit), vai assumir não uma forma dual de
cidadania - isto é, que separa os que têm direitos dos que não os têm – mas, uma configuração fragmentada, pela qual uns têm
mais direitos do que outros, “enquanto outros ainda começam a habitar o espaço do não-direito. A cidadania excludente é
substituída, dessa forma, pela cidadania fragmentada ou hierarquizada” (p.74 e 75).
Segundo Rocha apud Nascimento (op. cit.), a pobreza alcançou uma visibilidade marcante durante essa mesma década.
Nos últimos quarenta anos, a pobreza havia se deslocado do campo para a cidade e em 80 começava a deslocar-se para as
metrópoles. Com as migrações há um aumento rápido das populações das metrópoles que não estavam preparadas para receber
essas populações de imigrantes. Os “recém chegados” foram habitar os mesmos espaços que as populações pobres expulsas dos
cortiços.
Nascimento (op. cit.) esclarece que entre os anos oitenta e noventa, a pobreza tornou-se urbana e metropolitana e,
portanto, mais visível. A sua representação transformou-se completamente. O pobre passa a ser visto como um bandido em
potencial. Sua imagem corresponde, sobretudo, a dos moradores de rua e, entre estes, a dos “pivetes” – “menores que cheiram
cola e roubam os transeuntes nas praças e ruas das grandes cidades”. Sua figura mais ilustrativa é a do “bandido” urbano;
indivíduo normalmente negro e nordestino. Para Nascimento (op. cit.), na produção do novo excluído, juntam-se numa única
imagem o “pobre” e o “bandido”.
Segundo este autor, os pobres são hoje o alvo privilegiado de um processo de demonização e exclusão. Os chamados
“desqualificados”, como “agentes incômodos”, são gradativamente afastados do espaço de representação por meio de mecanismos
diversos - dentre os quais o da saturação da política. Em uma perspectiva comparada, cada vez mais, surgem em todo o mundo,
novas formas de intolerância, a saber: o crescimento da xenofobia na França, do neonazismo na Alemanha, das Ligas na Itália e
das milícias e grupos de extermínio no Brasil.

Violência, controle social e criminalização da pobreza: os “novos demônios”


Segundo Batista (2003), as sociedades contemporâneas selecionam um reduzido número de pessoas que, de acordo com
a sua vulnerabilidade, serão submetidas à sua coação. A seletividade provoca uma distribuição (seletiva) em forma de epidemia
que vai atingir somente aqueles que têm baixa defesa perante o poder punitivo. São aqueles que não têm acesso à mídia, a uma
educação de qualidade, que se enquadram no estereótipo estabelecido e que vão por isso mesmo realizar o que se pode denominar
de “obras toscas da criminalidade” (fatos grosseiros, de detecção mais fácil). Podemos afirmar, que essa seletividade é mais
acentuada, portanto, em sociedades estratificadas, isto é, com maior polarização de riqueza e escassas possibilidades de
mobilidade vertical. Ou seja, no mundo capitalista em que ter dinheiro é ter poder, a população pobre é que é a vítima da
seletividade.
Batista (2003) e D’Elia (2007) vão afirmar ainda, que o processo seletivo de criminalização se desenvolve em duas
etapas, denominadas, respectivamente, de primária e secundária. A criminalização primária é aquela que envolve a produção
legislativa, isto é, aquela que vai definir o que é crime e quais as penas estabelecidas para cada crime. A criminalização
secundária é aquela que se relaciona com a atividade punitiva propiamente dita, isto é, aquela que vai detectar os crimes e fazer
cumprir as punições estabelecidas. Cada um desses processos será exercido por um determinado tipo daquilo que o autor chama
de agência criminalizante.
Para estes autores, a seleção criminalizante secundária se condiciona às suas limitações operativas e também se orienta
pelo poder de outras agências. Ela se manifesta selecionando justamente as chamadas “obras toscas”.
Para D’Elia (2007), os candidatos a criminalização são as empresas mais débeis, presas fáceis da extorsão e, na cidade
do Rio de Janeiro, são representadas pela tríade preto - pobre - favela. Dessa forma, “o esteriótipo do bandido vai-se consumando
na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas vestido com tênis, boné, cordões,
portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de um sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o
circunda”. (p.21).
D’Elia sugere que esta seletividade exerce uma função de excluir da competitividade do mercado este setor debilitado.
Sobre isso Malaguti Batista (2003) vai dizer que apenas 20% da força de trabalho no mundo movem à economia e que 80% são

704
"economicamente supérfluos". Esse quadro faz com que a segurança seja a maior reinvidicação política, e o principal antídoto
contra a "metaincerteza".
A esse grupo social de “economicamente supérfluos”, Nascimento (2000) vai chamar de: a) “desnecessários
economicamente”, pois não têm condições de ingressar no processo produtivo moderno; b) “de incômodos politicamente”, pois
são responsabilizados pelos erros e mazelas da política e, c) de perigosos socialmente, na medida em que são vistos como
bandidos em potencial.
Ainda em Nascimento (op. cit.), o processo de urbanização acelerada, o progresso dos meios de comunicação e o
bloqueio da mobilidade social, estão relacionados ao crescimento da violência urbana. Malaguti Batista (2003) observa que, na
atual conjuntura da revolução tecnocientífica, assistimos ao enfraquecimento do Estado com o colapso das políticas públicas, o
aumento do desemprego e do subemprego e o rebaixamento dos salários e da renda per capita. Todo esse quadro neoliberal atinge
níveis mais dramáticos na marginalização profunda das classes urbanas.
As políticas neoliberais colaboraram para o aumento da criminalidade e com isso o fortalecimento do discurso
criminalizante. Para Wacquantt apud Malaguti Batista (op. cit.), “a destruição deliberada do Estado Social e a hipertrofia
crescente do Estado Penal nos últimos vinte e cinco anos são processos concomitantes e complementares”. (p.82) Segundo o
autor, é perceptível nesse período o constante aumento da população de encarcerados. Além disso, a infra-estrutura prisional
aumenta também o número de trabalhadores sem emprego, excluídos do consumo e consequentemente da vida social. Essa
desarticulação do Estado de Bem-Estar Social se articula no Brasil, segundo Malaguti Batista (2003) com o desenvolvimento do
Estado Neoliberal, fortalecendo um sentimento de insegurança que provém de uma mão-de-obra constantemente ameaçada pelo
desemprego e pela fome. O Estado além de deter o privilégio legítimo da violência, detém o monopólio da criação das leis e,
segundo Karam (1991), torna-se o centro do exercício do poder político da classe ou classes que exercem dominação sobre as
outras. Nessa perspectiva, suas funções vão corresponder aos interesses específicos das classes dominantes.
Segundo Batista (2003), a empresa criminalizante e os empresários morais, que são aqueles que determinam quem serão
os vítimizados e quem serão os criminalizados, conciliam os interesses das classes dominantes. Com o alcance das agências de
criminalização vão disseminar esses discursos de modo a alcançar todas as camadas da sociedade. Os empresários morais são o
que, segundo Geisler (2004), Baptista vai chamar de “amoladores de facas”, isto é, os intelectuais que com seus discursos
aparentemente neutros e desvinculados da luta política, atuam indiretamente na fabricação de vítimas e no incentivo disfarçado
aos atos genocidas.
Podemos dizer, portanto, que esse Estado Penal – fruto da transfiguração do Estado Providência em Estado Penitência -
é a forma concreta do espetáculo de lei e de ordem que se agravou com o advento do neoliberalismo. Para Malaguti Batista, “esta
nova ordem traz estratégias de privatização e desregulamentação (...), produzindo exigências políticas contraditórias, porém
complementares: por um lado, a exigência de incrementos das liberdades do consumidor e, por outro, o discurso de ‘lei e ordem’
para as vítimas do processo de privatização e desregulamentação, consumidores falhos”. (p. 79) O que Malaguti Batista (2003) vai
chamar de consumidores falhos são os “novos demônios”, isolados em guetos criminalizados e clientes potenciais do poder
daquilo que Nils Christie vai denominar de “indústria da prisão” (agências de criminalização, empresários morais e empresas
criminalizantes).
No mesmo sentido, Martinez (1994) vai reforçar a idéia de que se o Estado Penal é um instrumento de dominação e a
mídia, ao colaborar com a sua legitimação, é fundamental nesse processo. Nas palavras de Malaguti Batista (op. cit.), “uma
importante característica dos sistemas penais do capitalismo tardio é sua vinculação com a mídia. Nilo Batista afirma que, no
presente, assistimos à ultrapassagem da sua função comunicativa para a ‘executivação dessas agências de comunicação social do
sistema penal’. Ele aponta a necessidade que o empreendimento neoliberal tem “de um poder punitivo onipresente e capilarizado,
para o controle dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza” (p. 106)
Ainda em Malaguti, os efeitos desse processo de incriminação da pobreza podem ser detectados em todo o mundo
globalizado. Para Baratta (1997), segundo a mesma autora, “na opinião pública e nos meios de comunicação de massa, esses
crimes se caracterizampor uma distribuição regular dos papéis da vítima e do agressor, respectivamente entre os grupos sociais
‘privilegiados’ e ‘respeitáveis’ e entre os grupos marginalizados e ‘perigosos’ (estrangeiros, tóxico dependentes, pobres, pessoas
sem família, desempregados ou sem qualificação profissional)” (p. 83).
Os meios de comunicação têm o papel de disseminar os modelos para os papéis sociais, isto é, possibilitam a
disseminação do que é “normal” e do que é “desviante”. Para tanto, naturalizam a idéia de que a violência é “coisa de pobre”, ou
seja, mecanismo exclusivo dos desafortunados, generalizando assim, uma lógica caótica que desorienta a sociedade civil e
penaliza ainda mais a vida do enorme contingente de excluídos, agora perseguidos e discriminados por mais essa roupagem de um
preconceito que se recicla e, por si só, tenta se justificar. A luta pela hegemonia do discurso criminológico se dá na esfera das
comunicações, e o que se observa é a subordinação do discurso político às agências de comunicação. Para ela, a difusão de
imagens de terror produz políticas violentas de controle social.
Segundo Batista (2003), ao se fixar uma imagem pública do delinquente, com componentes de classe social, étnicos,
etários, de gênero e estéticos, estabelecesse o esteriótipo que acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização

705
secundária. “O estereótipo criminal se compõe de caracteres que correspondem a pessoas em posição social desvantajosa e, por
conseguinte, com educação primitiva, cujos eventuais delitos, apenas podem ser obras toscas (delitos de fácil detecção)”. (p.48)
Em Batista (1990), os que moram na favela são comumente vítimas de prisões ilegais nas aparatosas operações
policiais. Somente os pobres são presos por vadiagem e os que cometem ações delituosas no mundo dos negócios sequer são
considerados criminosos. Por outro lado, segundo Bauman apud Malaguti Batista (op. cit.), a combinação de estratégias de
exclusão, criminalização e brutalização dos pobres, impede a condensação de um sentimento de injustiça capaz de rebelar-se
contra o sistema. As políticas públicas se convertem em administração tecnocrática da desigualdade e dos riscos e ajudam a
neutralizar as estratégias de reivindicação das massas empobrecidas.
Segundo Karam (1991), a população pobre e miserável do Brasil que tem seus direitos básicos (saúde, alimentação,
reprodução, habitação, crescimento, liberdade e segurança) violentados, isto é, desrespeitados, são as principais vítimas do
descompromisso do Estado com os direitos humanos. E é nesse vácuo deixado pelo Estado que as organizações criminosas
acabam crescendo e submetendo essa população ao seu poder; colaborando para a disseminação do discurso criminalizante.
Batista (1990) vai dizer que é na “ausência do Estado”, isto é, no vácuo das responsabilidades omitidas pelo Estado,
pequenas quadrilhas, organizadas principalmente em torno do comércio de drogas ilícitas, logram controlar imensas comunidades
desorganizadas pela prática do “clientelismo” e pela elevada taxas de desempregados e subempregados.
Batista (1990) também vai mencionar que a ausência do Estado e de seus serviços vai conferir ao traficante um status
privilegiado. Ele pode prover transporte, auxilio para construção, alimentação, dinheiro. Muitas vezes, esse traficante assume o
papel de “protetor” da comunidade. Segundo Malaguti Batista (2003), o emprego inflacionário do sistema penal é o sinal que nos
adverte para uma intranquilidade, um medo social que, em nosso caso é consequência inevitável da pauperização marginalizadora
que a hegemonia neoliberal está acrescendo a seus legítimos antecessores desde o escravismo colonial.
Martinez (1997) afirma que é clara a participação da massa nas tomadas de decisão nos momentos de crise e de
convulsões sociais. Em Malaguti Batista (2003) vê-se que o pânico é disseminado em alguns momentos para que as populações se
manifestem de forma a legitimar o propósito das elites.
Para Batista (2003), as classes mais desfavorecidas são vitimizadas e acabam apoiando as propostas de controle social
mais autoritárias e irracionais. Ao estarem totalmente expostas a mídia e sem ter acesso a uma educação que lhes permita o
raciocínio crítico e o estímulo à capacidade de contestação, essa mesma classe que é estigmatizada e marginalizada, também
julga, condena e acredita nos discurso criminalizante.
Mas será que podemos reduzir todo o problema a isso? È evidente que as classes menos favorecidas estão submetidas a
um sistema econômico e punitivo que as vitimiza. Ademais, elas também ajudam a legitimar o discurso dominante que as
culpabiliza pelas suas próprias mazelas. Mas será que este discurso de vitimização - culpabilização não esconde a capacidade
dessas população de resistir à exclusão, reforçando sua impossibilidade de ter direito a ter direitos? Para além de uma perspectiva
que considera o que podemos denominar de macropolítica, precisamos nos voltar para aquilo que essas populações vem
produzindo no sentido de sua legitimação e na direção da recuperação de seu direito de ter direitos.
Não raro, essas classes paupérrimas e marginalizadas criam alternativas para sobreviver, que são percebidas quando nos
deparamos com a existência de diversas associações de moradores, centros comunitários e outros grupos organizados por sujeitos
dessas localidades que vão oferecer oportunidades de mudança e ao mesmo tempo de formação do pensamento crítico das
populações de suas regiões. Esses grupos vão buscar muitas vezes no resgate da história da formação de suas comunidades e em
seu cotidiano, motivos para erguer a sua “auto-estima” e, com isso, para buscar um futuro melhor. É o que passaremos a discorrer
no item a seguir, com o auxílio do material coletado em um Centro de Cidadania construído em meio a esse “ambiente” do samba
em um bairro da cidade do Rio de janeiro.

O “território” do samba como espaço de construção de cidadania: uma experiência na periferia de uma grande metrópole
brasileira
Conforme nos adverte Souza Santos (2001), o olhar através do qual o sujeito do conhecimento se coloca a conhecer a
realidade tem desvalorizado ou “desperdiçado” uma gama de experiências capazes que resgatar, de fato, qualquer expectativa de
mudança social. Procuramos, portanto, neste trabalho, para além do levantamento bibliográfico relativo à temática escolhida,
realizar uma pesquisa exploratória de base documental. A análise do material coletado foi feita a partir de categorias que
emergiram da base documental, empregando-se, para tanto, a categorização analítica. Este tipo de categorização consiste em
utilizar classes, categorias para agrupar os dados e, assim, transmitir seu significado. Os dados foram, portanto, agrupados e
interpretados de acordo com a fundamentação teórica.
Para Leopardi (2001), a análise qualitativa feita através da categorização exige “agrupar expressões emitidas acerca do
tema, a partir de suas semelhanças e em categorias escolhidas pelo próprio pesquisador que poderá ser : semântica (categoria
temática) ;sintática (a partir de verbos, adjetivos e outros); léxica (ordenamento da frase); ou, expressiva (semelhança das
catecterísticas ou problemas de linguagem). A categorização deve ser homogênea, incluir todo o texto e nunca repetir o mesmo

706
registro em duas categorias diferentes. Já a análise visa à compreensão desses dados apreendidos pela categorização, buscando
uma percepção das manifestações”(p. 151).
A investigação foi desenvolvida a partir de documentos fornecidos por um Centro de Cidadania criado pelos integrantes
de uma Escola de Samba do Rio de Janeiro. É no meio dessa parcela da população que tem seus direitos violentados que o samba
se criou como forma de resistência no Rio de Janeiro, segundo Augras (1998), em terreiros fundados por mães-de-santo baianas.
Vimos com Malaguti Batista (2003), que na Cidade Nova, camadas paupérrimas foram expulsas do centro da cidade pelo que
ficou conhecido como o “bota abaixo” de Pereira Passos. Esse violento processo de despejo e demolição foi aclamada pela
imprensa e marcou o início da idéia de que as classes pobres eram perigosas. Simultaneamente, nesse quadro social que
correspondeu ao início do século XIX, nas noites do Rio de Janeiro, como um sussurro por liberdade dos trapiches da Prainha até
os confins da Cidade Nova o samba ressoava. Como legítimo representante da cultura popular, ele surgia da criatividade do povo
para criar e retratar a sua vida e o seu gosto estético.
No entanto, o samba cresceu, e as rodas de samba cada vez mais passaram a ser frequentadas por pessoas influentes; as
perseguições diminuíram e o samba conquistou espaço. No final dos anos vinte, o samba havia empreendido o caminho rumo à
respeitabilidade, ganhando espaço na mídia. “Longe de serem desordeiros, as novas formações estavam dizendo de sua
importância na transmissão do saber” (Augras, p.25). Para Augras (1998), foi dessa importância que o samba passou a ter na
transmissão do saber, que teve origem o termo escola de samba.
Por espalhar-se e ganhar espaço na transmissão de conhecimento que o samba precisava ser controlado. Então surgiram
os concursos, que ao premiar determinada agremiação de Escola de Samba vai torná-lo um modelo para ser seguido, sendo eficaz
como forma de controle social.
O samba de cultura popular passa a ser uma cultura de massa, se descaracterizando. “Na música popular difundida pelo
rádio, surge o samba ‘apologético-nacionalista’, do qual o melhor exemplo é Ari Barroso. (...) O desfile oficial garante a
premiação das escolas cujo samba conseguiu ‘civilizar-se” (Augras, op. cit, p.53).
Segundo Augras (1998), o samba mudou para atender aos requisitos dos concursos, e aqueles que não se adéquam são
desqualificados, chamados de maestrecos e poetaços do morro. São justamente esses poetaços que são acusados de impingir
temáticas africanas.
O samba que entra em oposição aos interesses das classes dominantes é ignorado e esquecido pela mídia fazendo com
que poucos tenham acesso a essas formas de expressão e se livrem das correntes midiáticas. Segundo Augras (1998), a influência
do candomblé no nascimento do samba carioca teria de ser prontamente esquecida, pois atrapalhava o projeto cultural que incluía
a exigência do branqueamento.
Nos desfiles, o controle se dava por meio das regras que proibiam os instrumentos de sopro e impediam o uso de carros
mecânicos. Para Augras (1998), essa era uma forma de sugerir que o samba não era mais algo de malandro, e sim trabalho braçal.
As letras das músicas eram controladas e só era cantado aquilo que interessava às elites.
Sendo assim, o samba crítico e que faz oposição às elites é cortado, descartado, diminuído e há pouca disseminação
desses nos meios de comunicação de massa, o que os torna algo alcançável para poucos (intelectuais de classe média e
frequentadores das rodas de samba). Os que têm acesso a esse repertório muitas vezes se manifestam e criam alternativas de
resistência ao sistema tentando colaborar para que outros consigam se livrar dos estigmas ou possam lutar contra eles.
Essas pessoas vão buscar erguer territórios de resgate da cidadania, lugares de pertencimento, que, de acordo com
Geisler (2006), podem ser identificados como espaços de construção de cidadania coletiva – para usarmos a expressão de Gohn. A
cidadania coletiva é aquela na qual o caráter universal do conceito se mantém na prática, entrando em oposição à cidadania que,
na sociedade capitalista, visa a atender as necessidades de exploração do capital, ou seja, a cidadania individual - também nos
termos de Gonh. Nas palavras de Geisler (op.cit), “no âmago desta nova forma de ser, criam-se as condições para o nascimento de
uma nova concepção de cidadania: a cidadania como pertencimento”.
Resgatada em sua dimensão coletiva e emancipatória, a cidadania como pertencimento, isto é, como complexo
fenômeno psicossocial, sugere, dessa forma, a adoção da noção de sujeito coletivo. Distante de uma noção de sujeito que se
individualiza na estrutura abstrata da relação jurídica criada pelo aparato do Estado, a noção de sujeito coletivo passa a indicar
“(...) uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem
defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas.” (Sader, 1988: 55).
Surgem iniciativas como a denominada “viagem sentimental a Oswaldo Cruz” que, segundo Pavão (2008, b) motivou
vários desdobramentos. Segundo este autor, nos dias de hoje, num contexto caracterizado pela diversidade, torna-se relevante à
compreensão da importância da memória coletiva, principalmente das tradições do samba.
Ainda em Pavão (op. cit.), o projeto “viagem sentimental a Oswaldo Cruz” fazia ressurgir a Oswaldo Cruz das primeiras
décadas do século XX, a qual tinha a vida comunitária baseada na solidariedade e no companheirismo. Valores esses que foram
fundamentais na formação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela. Estendendo o conceito que Ribeiro aplicou em seu
estudo sobre as redes de sociabilidade no bairro de Madureira, Pavão (2008b) vai carinhosamente apelidar Oswaldo Cruz de
“subúrbio musical”. Ribeiro apud Pavão (op. cit.) demonstra que grande parte das redes de sociabilidades na “capital dos

707
subúrbios” tem a musicalidade como referência. Segundo Pavão (2008a), a Escola de Samba Portela, recebeu esse nome devido a
uma estrada do bairro, o que demonstra que a localidade, a história do bairro da região está muito ligada à Agremiação.
Pavão (op. cit.) diz também que o “Movimento Acorda Oswaldo Cruz”, o qual ele considera o início do processo de
“redescobrimento” do samba pelos moradores da região, surgiu da necessidade de que esses conhecessem a história de seu bairro.
Pavão (op. cit.) acredita que esse resgate da história da formação do bairro e da valorização do samba, que se confundem diversas
vezes, favorece a auto-estima dos moradores, que apesar das desventuras, encontram na memória coletiva de seu bairro motivos
para sentir orgulho.
Pavão (2008, b) vai salientar que, no início da década de 1920, as dificuldades no bairro de Oswaldo Cruz foram
superadas com união. “Os laços de amizade entre os moradores ajudavam a enfrentar a dor que se transformava em canção”
(p.43). Se, historicamente, segundo a avaliação de Fleury (1997), enquanto expressão da relação jurídica entre o cidadão e seu
Estado, a cidadania tem se prestado a negar a existência de classes sociais; por outro, seu reconhecimento é absolutamente
imprescindível para a constituição e organização das classes dominadas.
Definitivamente, o samba tinha uma ligação muito forte com o cotidiano dos moradores de Oswaldo Cruz, e era a forma
encontrada por aquela população para se expressar e buscar se auto-reconhecer e se autodeterminar no meio de tantas
dificuldades. O autor vai se recordar que as lideranças locais de Oswaldo Cruz sempre foram bastante atuantes, desenvolvendo
projetos na área cultural e na área da cidadania que, na atualidade, como já vimos, ocupam o espaço que o Estado Neoliberal não
consegue alcançar. Para usar os temos de Marques Neto (1994): “o reconhecimento daquela identidade coletiva equivale ao
reconhecimento de sua própria capacidade de auto-organização e de autodeterminação”. (p. 26)
Em Oswaldo Cruz, a Associação de Moradores de Oswaldo Cruz (AMOC) e o Centro Comunitário de Capacitação
Profissional Paulo da Portela (CCCP), sem querer ocupar o papel do Estado, fazem, segundo Pavão (op.cit.), um excelente
trabalho. Além de proporcionar cursos de qualidade e atividades conforme as necessidades da localidade, O CCCP foi criado pela
AMOC e tem como objetivo capacitar para a vida com solidariedade humana buscando viabilizar e despertar a cidadania em sua
plenitude”.
Dentro desses projetos de valorização do samba e resgate da memória coletiva de Oswaldo Cruz existe também o
“pagode do trem” que ao permitir uma participação democrática, possibilita que pessoas de todas as classes e idades tenham
acesso, e retira a centralização cultural do centro e da zona sul, inclusive, usando a mídia ao seu favor.
O CCCP está envolvido em todos esses eventos, além de desenvolver projetos como pré-vestibular para os menos
favorecidos, alfabetização para adultos e cursos profissionalizantes, valorizando a cultura negra e preservando a riqueza cultural
do bairro.
Ao desenvolver o pré-vestibular, por exemplo, o CCCP dedica-se não só à preparação para o vestibular, mas também a
formação em seu sentido mais amplo, isto é, aquela que se relaciona à construção de um espírito crítico e do exercício da
cidadania.
Esse pré-vestibular tem a intenção de dar ao aluno condições para concorrer a uma vaga na universidade, auxiliar na
formação do caráter, da personalidade e do intelecto, dentro de uma visão integral do homem. Busca fortalecer os moradores no
sentimento de cidadania pela ação solidária e incentiva-los a entrarem na universidade buscando resgatar sua auto-estima e seu
potencial.
Sendo assim, esse centro comunitário, que busca alternativas à segregação urbana através da formação do sujeito,
fugindo aos projetos de cunho assistencialista, encontrou no samba o material necessário para mobilizar a localidade. Nas palavras
de Geisler (op.cit), “reconhecendo-se como filho da cidade, e extraindo suas motivações e convicções das lutas coletivas o sujeito
se constitui a partir de um processo de auto-organização comprometido com a memória dos vencidos e enraizado na tradição
histórica não oficial”.

Considerações Finais:
As manifestações de violência urbana ganham cada vez mais relevância no cenário mundial. As questões relativas à
segurança pública e a violência tem sido foco das preocupações governamentais e dos cidadãos em grande parte das sociedades
ocidentais. Segundo Wacquant (2001), todas as sociedades têm comunidades estigmatizadas que se situam na base do sistema
hierárquico de regiões que compõem uma metrópole, nas quais os parias urbanos habitam e no qual se concentram os problemas
sociais, atraindo a atenção negativa da mídia, dos políticos e dos dirigentes do Estado.
A violência no que concerne às preocupações cotidianas dos cidadãos comuns e às políticas de segurança pública tem
seu sentido reduzido à criminalidade urbana. Essa forma de ver a violência faz recair sobre determinada parcela da população a
culpa pela violência e pelo medo difundido.
Transversalmente a esse crescimento do índice de violência, como consequência do desenvolvimento das políticas
neoliberais vemos um aumento no índice desemprego. Na mudança do Estado de Bem-Estar Social para o Estado Neoliberal
houve uma redução do Estado, uma política de privatizações e de flexibilização das relações de trabalho. Vale dizer que essa

708
precarização dos serviços públicos coincide com o interesse das classes dominantes de conseguir mercado consumidor, prestando
os serviços que são de responsabilidade estatal e cobrando pelos mesmos.
Esses fatores colaboraram com o abandono das populações empobrecidas, que com a redução do Estado e as
privatizações deixaram de ser atendidas pelo Estdo em algumas de suas necessidades. A parcela da população que foi vítima da
flexibilização das relações de trabalho – isto é, que está subempregada - e a parcela da população que está desempregada é
desqualificada para assumir os novos postos de trabalho criados com o avanço tecnocientífico. O chamado “progresso
tecnológico” extinguiu determinados postos de trabalho. A popilação empobrecida - e não tem condições de pagar os serviços
privados - ficam a margem da sociedade.
Ao mesmo tempo essa população que não tem suas necessidades básicas supridas são vistas pelas classes dominantes
como perigosas, sendo vítimas de um poder punitivo seletivo e segregante.
As classes dominantes vão se utilizar das agências de criminalização para manter o controle social sobre a força de
trabalho. Ou seja, o poder punitivo e a ideologia das classes perigosas vão servir para que as classes dominantes possam ter sob
seu controle tanto a força de trabalho indispensável para que possam obter lucros, quanto os economicamente supérfluos.
Para que as agências de controle social não sofram nenhum enfrentamento por parte das classes estigmatizadas, as elites
se utilizam de seus intelectuais para que legitimem sua ideologia.
Com o surgimento dos meios de comunicação de massa, as elites fazem uso da mídia para disseminar sua ideologia para
toda a sociedade, fornecendo às pessoas informações trabalhadas de forma a incorporá-las no ideário popular.
Porém, nem todos os grupos sociais estão submetidos à dominação ideológica, alguns grupos sociais criam alternativas
à ideologia dominante buscando uma sociedade mais igualitária.
Esses grupos vão desenvolver projetos que colaboram com a formação de sujeitos com espírito crítico e capazes de
exercer sua cidadania como forma de resgate de seu direito de ter direitos.
Nesse contexto, o universo do samba pode ser um “agente” potencializador de “subjetividades desejantes” – para falar
com Guattari (1999), isto é, de subjetividade realizadoras de liberdade. A partir do momento em que se entra em contato com o
que denominamos de “território” ou ambiente do samba, o sujeito pode entrar também em contato com o seu passado, com a
história de sua comunidade e com as tradições de seu povo, podendo assim, se reconhecer, simultaneamente, como modificador
da sua própria história e do espaço em que vive.
Em outras palavras, ao entrar em contato com o samba o sujeito pode se deparar com suas raízes e pode se ver munido
de conhecimento e força para poder mudar a sociedade em que vive. Esse sujeito também pode compartilhar com outros, aquilo
que aprendeu, o que pode permitir a proliferação de outros grupos sociais que se organizem em associações e centros
comunitários com vistas a construção de projetos buscando a melhoria na qualidade de vida das populações marginalizadas.

Referências Bibliográficas
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Mestrado defendida na PUC-Rio.
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709
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Wacquant, L. (2001). Os condenados da cidade. Rio de Janeiro, RJ: Editora Revan.

Sistema de justiça criminal brasileira e cidadania dos aprisionados: prisão como


castigo ou agente ressocializador?
Celina Amália R. Galvão Lima Lima
Universidade Federal do Ceará
[email protected]

Resumo: As prisões brasileiras são alvos de críticas por serem consideradas ineficientes, no seu papel fundamental que é o da ressocialização.
Como falar em ressocialização quando o quadro das mesmas é caótico, com superpopulação carcerária, conflitos internos e externos, o crime
organizado “comandando” o interior dos presídios, extorquindo, ameaçando e determinando execuções de pessoas que estão dentro e fora dos
presídios. Esta situação traz para a sociedade questionamentos sobre a fragilidade das Políticas Públicas, especificamente a Política de Segurança
Pública no que diz respeito à eficiência e eficácia do sistema penal brasileiro. A Lei de Execuções Penais (Lei 7.210 de 1984), com todas as
alterações posteriores, inclusive a Lei de Penas Alternativas é considerada moderna, em sua essência preconiza a “ressocialização das pessoas
condenadas” não adotando um caráter exclusivamente punitivo, mas assume um caráter restaurativo. Na prática, poucas das regras estabelecidas
na LEP são respeitadas. Ao contrário do que determina a LEP, na maioria dos presídios e penitenciárias, os presos de alta periculosidade dividem
o mesmo espaço com os mais vulneráveis, abusos do sistema judiciário, violência institucionalizada, superlotação carcerária, são exemplos
emblemáticos de desrespeito aos direitos humanos dos prisioneiros. Esta breve análise demonstra que as relações de conflito se estabelecem entre
os agentes da lei e os prisioneiros, o que torna a convivência entre as partes difícil e contribui para prejudicar o objetivo final da prisão que é a
ressocialização dos apenados. Esta pesquisa realiza uma reflexão sobre a integração e sociabilidade entre servidores do sistema penal e
aprisionados.

INTRODUÇÃO
As prisões brasileiras, inclusive as do Estado do Ceará, são alvos de críticas por serem consideradas ineficientes, no seu
papel fundamental que é o da ressocialização. Pergunta-se como se pode falar em ressocialização quando o quadro das mesmas é
caótico, com superpopulação carcerária, conflitos internos e externos, com o crime organizado “comandando” o interior dos
presídios, extorquindo, ameaçando e determinando execuções de pessoas que estão dentro e fora dos presídios. São crimes
perpetrados por ordem de detentos, que ultrapassam os limites dos muros do sistema penal e que trazem para a sociedade
questionamentos sobre a fragilidade das Políticas Públicas, no caso às de Segurança Pública no que concerne ao sistema penal
brasileiro.
A discussão em torno das prisões tem como eixo central o aumento da criminalidade, que as superlotam. As delegacias e
cadeias de nosso país são verdadeiros “depósitos” de presos que cotidianamente enviam para presídios e penitenciárias um
número cada vez maior de pessoas que estão em conflito com a lei. Este expressivo número de indivíduos encarcerados é um
reflexo do crescimento do crime nas cidades, onde a população exige cada vez mais das autoridades de segurança que atuem de
forma repressiva, prendendo os infratores.
Ora, esta prática de controle policial do crime, tem como consequência final a superlotação do sistema carcerário. O que
assume proporções funestas, tendo em vista que o sistema carcerário tem se mostrado ineficiente no seu objetivo maior que é o de
reintegrar à sociedade o indivíduo que cometeu delitos e foi apenado. Observa-se que um expressivo número de egressos do
sistema prisional volta a delinquir. Dentre outras citamos as seguintes razões: inexistência de uma política eficiente de
acompanhamento por parte das autoridades competentes para o egresso do sistema penal; o estigma da sociedade em relação ao
preso, havendo uma forte rejeição para acolhê-lo; a ausência de perspectivas no que diz respeito a oportunidades de trabalho; a
sedução do crime organizado que o captura para a prática de crimes.
A Lei de Execuções Penais (Lei 7.210 de 1984) - LEP, com todas as alterações posteriores, inclusive a Lei de Penas
Alternativas é considerada como bastante moderna, em sua essência preconiza a “ressocialização das pessoas condenadas” não
adotando um caráter exclusivamente punitivo, mas assume um caráter restaurativo. Isto é, além do foco na humanização, estimula
a justiça criminal a utilizar penas alternativas como: Pecuniária, prestação de serviços à comunidade ou à ente público, limitação
de fim de semana.. Ao mesmo tempo em que a LEP reconhece os direitos humanos dos presos, protege os direitos individuais,
garantindo assistência médica, jurídica, educacional, social, religiosa e material.
Na prática, contudo, poucas das regras estabelecidas na LEP são respeitadas. Ao contrário do que determina a LEP, na
maioria dos presídios e penitenciárias, os presos de alta periculosidade dividem o mesmo espaço com os mais vulneráveis, abusos

710
do sistema judiciário, violência institucionalizada, superlotação carcerária, são exemplos emblemáticos de desrespeito aos direitos
humanos dos prisioneiros.
Reincidentes violentos e réus primários, detidos por delitos menores, frequentemente dividem a mesma cela, situação
esta que, combinada com as condições difíceis das prisões, a ausência de supervisão efetiva, a abundância de armas e a falta de
atividades, resulta em situações de abuso entre os presos. Detentos poderosos matam outros presos impunemente; extorsão e
outras formas mais brandas de violência são comuns. Via de regra, a questão das prisões brasileiras toma espaço na mídia,
fomentando discussões na sociedade quando ocorrem rebeliões e também denúncias. Fora deste contexto, a situação dos apenados
no Brasil passa ao largo de outros problemas considerados mais importantes para a sociedade, como, por exemplo, os ligados às
áreas de saúde e educação.
O sistema penal do Estado do Ceará, tal qual o de outros Estados brasileiros enfrenta sérios problemas de estrutura e
funcionamento. A imprensa local divulga alguns deles como crimes, rebeliões e a superlotação carcerária e cobra das autoridades
de Segurança Pública ações concretas que objetivem por fim a motins e rebeliões.
O aumento da criminalidade urbana em Fortaleza - Ce, e novas medidas implantadas para combatê-la através de
projetos como o Ronda do Quarteirão1, têm aumentado o número de indivíduos presos e consequentemente de apenados que são
enviados para os presídios estaduais. Um agravante para esta condição é o fato de existir, nas penitenciárias, um grande número
de presos ainda não julgados colocados junto aos presos já condenados, ou ainda os que continuam presos mesmo depois de já ter
cumprido o tempo estabelecido em sua pena. Situações como estas ocorrem em face da morosidade da justiça e ou da ineficiência
relacionada à assistência judiciária. A população carcerária aumenta cada vez mais, já não havendo espaço físico suficiente para
atender a demanda que se põe. Novas unidades prisionais foram construídas no Estado e outras estão em processo de construção.
Entretanto, os problemas inerentes a espaço físico continuam presentes. Ou seja, o crescimento da população carcerária é mais
rápido que a criação de vagas nos presídios no Ceará.
Observa-se que o quadro das prisões torna-se mais perverso diante da superpopulação carcerária, que conduz à
promiscuidade, mortes violentas entre presidiários, assassinatos de agentes penitenciários, à ociosidade, como consequência da
ausência de trabalho organizado e a distribuição de privilégios, obtidos muitas vezes graças à corrupção. Misturam-se presos
comuns com presos de alta periculosidade, presos doentes com sadios; insetos transitam em seu meio; celas que exalam mau
cheiro; os presos são submetidos a revistas humilhantes; as facções controlam o tráfico interno e têm poder de vida e morte sobre
os outros.
Portanto, os presídios e penitenciárias de nosso Estado representam uma clara oposição do que se espera de um sistema
prisional adequado e eficiente, tendo em vista que são constatados: superlotação, assistência material, médica e jurídica
deficientes, envolvimento dos presos em atividades que são de competência dos agentes prisionais, práticas violentas dos agentes
penitenciários, ineficiência no controle disciplinar e de acesso ao presídio decorrente da falta de pessoal e de equipamentos
adequados para este fim.
Diversos são os conflitos e enfrentamentos que se estabelecem no espaço prisional e trazem à tona uma realidade de
difícil convivência dos presos entre si e dos mesmos com os agentes penitenciários cuja especificidade do trabalho os leva a
desenvolver suas atividades com bastante proximidade dos apenados. Portanto, compreender as relações conflituosas que se
constroem no interior dos presídios é um dos focos deste trabalho. Procura-se analisar as condições objetivas e subjetivas que
contribuem para o surgimento dos conflitos em um presídio. Será privilegiado como campo de estudo o Instituto Penal Paulo
Sarasate e a Penitenciária Industrial Regional do Cariri (PIRC), que têem como principal característica a contradição entre si. O
IPPS com excesso de presos e o PIRC com vagas ociosas.
O Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), está localizado a mais ou menos 30km de Fortaleza, no Município de Aquiraz.
É um presídio estadual de segurança máxima, essencialmente masculino cuja população carcerária está composta por uma média
de 1300 homens. Os últimos números do mês de junho de 2008, apresentados pela Secretaria de Justiça apontam que o IPPS está
com 1256 presos, onde a maior parte não trabalha. O IPPS tem capacidade para 940 presos, tendo um excedente de 316 presos.
A Penitenciária Industrial Regional do Cariri (PIRC) é uma unidade prisional cearense localizado na cidade de Juazeiro
do Norte. É situada no Sitio Touro, s/n, Zona Rural - Juazeiro do Norte. Foi inaugurada em 17 de novembro de 2000 e é
administrada pelo governo do Estado do Ceará em parceria com a Companhia Nacional de Administração Prisional Ltda
(Conap). Na PIRC, os internos trabalham na confecção de jóias, bolas de futebol e em marcenaria. A cada três dias de trabalho, a
pena do preso diminui um dia. Embora governo e CONAP afirmem que a parceria é legal, muitos defendem que a custódia de
presos é função exclusiva do poder público, não podendo a iniciativa privada administrar presídios. Desde 2006, tramita na Justiça
do Trabalho uma ação que visa anular a parceria. Atualmente abriga 459 presos, tendo capacidade para 549, segundo dados do dia
24 de junho de 2008 fornecidos pela Secretaria de Justiça em seu sitio na Internet. Hoje sobram 90 vagas nessa Unidade Prisional.
Diversos motins e rebeliões já ocorreram no IPPS. Apreensão de armas, drogas e telefones celulares faz parte da rotina
daquele presídio. Surgem denúncias de que funcionários e policiais militares estão envolvidos em contravenções, como facilitação

1
Faz parte do Projeto na área de Segurança Pública do Governo do Estado do Ceará, iniciado no final do ano de 2007 (Programa de Policiamento Comunitário).

711
de fugas, transporte de armas e telefones celulares para dentro do presídio e conivência com familiares de detentos para a prática
de atos ilícitos. Conflitos violentos também são divulgados pela imprensa. No ano de 2008 um agente penitenciário foi
assassinado ao sair de seu plantão no IPPS e conforme foi noticiado, a ordem de matá-lo foi dada por um presidiário que cumpre
pena no IPPS, as investigações apontam como possível motivação o fato do agente “ser rígido”, e ter usado de violência física
contra um detento. Ao findar 2008 foram contabilizados dezoito assassinatos de detentos dentro do IPPS. Crimes estes cometidos
por outros detentos.
Compreender os conflitos2 e contravenções construídos no mundo do crime, no cotidiano de quem está preso, também é
o objetivo deste trabalho. Para isso, através da fala dos informantes, pretende-se desvendar a realidade deste mundo desconhecido.
Ao se proceder a uma análise deste contexto, questões importantes como o trabalho do agente penitenciário na instituição, a
ociosidade como geradora de conflitos, o exercício de práticas violentas, o trabalho e o papel da religião como fatores positivos
para a ressocialização dos detentos serão abordadas.
As instituições penais são instâncias de poder que utilizam técnicas para moldar o comportamento do detento, através de
regras e normas que não respeitam o eu, a individualidade do sujeito. Dessa maneira, estimulam a resistência. Busca-se entender o
que significa dormir e acordar durante anos a fio dentro de uma cela, convivendo com certos companheiros muitas vezes
indesejáveis, que foram impostos pela direção da instituição, tomando banho de sol durante uma hora, duas vezes por semana,
submetidos a regras de disciplina que vão desde horários de dormir e fazer refeições até as que estabelecem as relações sexuais.
A prisão, além de retirar a liberdade do indivíduo, subtrai também sua individualidade, sua dignidade e modifica o seu
eu. O mais grave de todo esse processo é que a promiscuidade, e as péssimas condições de vida a que são submetidos os detentos
os transformam, muitas vezes, de criminosos comuns em indivíduos de alta periculosidade.
Pretende-se conhecer quem é esse ser humano que cometeu crimes, até mesmo considerados bárbaros, e quais são as
estratégias que utiliza para sobreviver e como os conflitos fazem parte deste cotidiano. Entender como se tecem relações muitas
vezes violentas entre detentos e agentes prisionais, presos entre presos, ou ainda, relações que ultrapassam o limite da legalidade,
surgindo contravenções perpetradas pelos “agentes da lei” é um dos vieses deste projeto.
Outro eixo proposto é o da ressocialização. Será observada a questão do trabalho como elemento ressocializador, pois
pretende-se compreender a construção e o conflito de identidades –“trabalhador” ou “vagabundo”- através da experiência do
trabalho penal nas unidades prisionais industriais do Estado do Ceará, realizando um estudo comparativo entre a Penitenciária
Industrial Regional do Cariri e o Instituto Penal Paulo Sarasate.
Será também analisada a ressocialização sob a ótica da religião, para tanto se busca observar mudanças de
comportamento dos detentos que participam de atividades religiosas realizadas pela Pastoral Carcerária e por grupos evangélicos
que atuam nos presídios.
Analisar-se-á os cursos de formação dos agentes penitenciários e se existe capacitação continuada para os mesmos, pois
se entende que muitos dos conflitos e enfrentamentos que se dão no interior das prisões entre estes atores e os presos, ocorrem
pela ausência do entendimento teórico sobre as instituições penais e o papel do agente penitenciário.
Portanto, para realizar uma comparação destas duas penitenciárias entende-se que é importante conhecer outras
experiências que vivenciam as mesmas contradições enfrentadas pelas unidades prisionais aqui pesquisadas. Para tanto, deve-se
tomar como referência nacional os presídios federais e os presídios tidos como “modelo” no sistema carcerário de países
desenvolvidos, no tocante à perspectiva do trabalho e ressocialização.

JUSTIFICATIVA
A criminalidade e as medidas adotadas para combatê-la faz emergir uma complexa discussão sobre o sistema
penitenciário. Como foi citado anteriormente, a Política de Segurança Pública está demonstrando fragilidade em proporcionar
segurança ao cidadão. Assistimos no Brasil a uma proliferação de crimes, que produz na sociedade uma cultura do medo. Parte da
população entende que a “resposta” correta dos órgãos de justiça criminal para tal questão é a de penalizar com maior rigor os
infratores apontando muitas vezes como alternativas a redução da maioridade penal, privatização dos presídios e até mesmo a
implantação da pena de morte para crimes hediondos.
Cabe ressaltar que em um país como os Estados Unidos que tem a mais rígida política de combate ao crime no mundo
desenvolvido, com altos índices de encarceramento, as elevadas taxas de criminalidade não diminuem. Portanto, se deduz que
encarcerar mais não significa diminuição da criminalidade.
No Brasil, percebe-se uma clara disposição das autoridades de Segurança Pública em promover o encarceramento para
o combate o crime. Portanto, pode-se afirmar que o aumento do número de encarcerados está diretamente ligado ao crescimento
da violência urbana. Na tentativa de deter a criminalidade parte-se da presunção que o isolamento do indivíduo criminoso em

2
Ao se referir sobre essas relações conflituosas Norbert Elias (2000), analisa a relação entre Estabelecidos e Outsiders na comunidade fictícia de Winston Parva
apontando que nas relações entre dois grupos quaisquer que disputam o poder, “as tensões e os conflitos” inerentes a essa forma de relação pode manter-se latente (...)
ou aparecer abertamente.

712
instituições penais trará uma proteção para a sociedade. Todavia, esta retirada do indivíduo criminoso não tem assegurado
“tranquilidade”, tendo em vista que os presídios e penitenciárias brasileiras contribuem sobremaneira para tornar mais violento o
indivíduo que ali ficou trancafiado.
Entendemos que a discussão sobre reincidência penal perpassa inicialmente pelo cumprimento da pena; ou seja, pelas
vivências e aprendizados acumulados no período em que o autor de práticas delituosas ficou isolado da sociedade. Sabe-se que o
atual quadro das prisões brasileiras é de extrema precariedade, onde a superpopulação carcerária leva a promiscuidade e a
péssimas condições de vida, transformando muitas vezes criminosos comuns em pessoas de alta periculosidade.

TABELA 1 CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA – TOTAL GERAL

Fonte: Ministério da Justiça

O Brasil é o quarto país do mundo no item explosão carcerária. No início dos anos noventa, o Brasil tinha a taxa de 60
presos para cada 100.000 habitantes; em 1999 este número aumentou para 113; em 2001 chegou a 145 e em 2002 a 150. No final
de 2007 a população carcerária está em 422.373 pessoas, o que elevou a taxa para aproximadamente 230 presos para cada 100.000
habitantes. Considerando que o sistema carcerário brasileiro comporta 300 mil presos, temos uma defasagem de cerca de 120 mil
presos, que estão amontoados nas Cadeias Públicas, Delegacias e penitenciárias do país.
A Administração Prisional no Ceará tem a frente a COSIPE (Coordenadoria do Sistema Penal), a qual é vinculada à
Secretaria da Justiça e cidadania (SEJUS), custodiando indivíduos que infringiram as normas da sociedade, tendo como função
promover a educação, saúde, trabalho e assistência material básica, de forma a contribuir para a futura reinserção social do preso.
Os dados abaixo, divulgados pelo Ministério da Justiça, esboçam o quadro do sistema penitenciário estadual. É
importante que se observe que os números são conflitantes com a realidade, principalmente quando apontam 7.943 vagas no
sistema penitenciário estadual.
TABELA 2 - DADOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO ESTADUAL
DEZEMBRO 2006
Regime Fechado Regime Semi- Regime Aberto Provisório Medida de
Aberto Segurança
Homens: 3.883 Homens: 1.481 Homens: 626 Homens: 5.144 Homens: 187
Mulheres: 137 Mulheres: 34 Mulheres: 20 Mulheres: 228 Mulheres: 0
Total: 4.020 Total: 1.515 Total: 646 Total: 5.372 Total: 187

Total de Estabelecimentos: 169


População do Sistema Penitenciário: 11.740
Vagas do Sistema Penitenciário: 7.943
Secretaria de Segurança Pública: 0
População Prisional do Estado: 11.740
Fonte: Ministério da Justiça

713
TABELA 3 – DADOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO ESTADUAL

DEZEMBRO 2007
Regime Fechado Regime Semi- Regime Aberto Provisório Medida de
Aberto Segurança
Homens: 4.058 Homens: 2.036 Homens: 621 Homens: 4.883 Homens: 180
Mulheres: 137 Mulheres: 62 Mulheres: 19 Mulheres: 190 Mulheres: 0
Total: 4.195 Total: 2.098 Total: 640 Total: 5.073 Total: 180

Total de Estabelecimentos: 144


População do Sistema Penitenciário: 12.186
Vagas do Sistema Penitenciário: 8.089
Secretaria de Segurança Pública: Não Informado
População Prisional do Estado: 12.186
Fonte: Ministério da Justiça

Os dados acima do Ministério da Justiça demonstram um aumento na população carcerária no período compreendido
entre dezembro de 2006 e dezembro de 2007.
O relatório mensal a seguir da Secretaria de Justiça do Estado do Ceará aponta números preocupantes de
superpopulação carcerária no Estado.

TABELA 4 Relatório mensal do efetivo de presos existente nas Unidades Penais do Estado do Ceará em 24 de junho de 2008-SEJUS.

Nº Presídio Capacidade Nº de Preso Vagas Excedente


1 IPPOO I* 395 190 205 -205
2 IPPOO II 492 606 -114 114
3 CPPLALAL 900 1073 -173 173
4 CPPLDFAOBL 900 1090 -190 190
Total 2687 2959 -272 272

Nº Presídio Capacidade Nº de Preso Vagas Excedente


1 IPPS 940 1256 -316 316
2 IPF(Fechado) 374 269 105 -105
3 PIRC 549 459 90 -90
4 PIRS 500 540 -40 40
Total 2363 2524 -161 161

Nº Presídio Capacidade Nº de Preso


1 IPF(Regime Semi-aberto) 46

Nº Presídio Capacidade Nº de Preso Vagas Excedente


1 Hospital 30 54 -24 24
2 Ins. Psi. Gov. S.Gomes 104 151 -47 47
Total 134 205 -71 71

Nº Presídio Capacidade Nº de Preso Vagas Excedente


1 Amanarí 120 1147 -1027 1027
2 Santana do Carirí 40 19 21 -21
Total 160 1166 -1006 1006
Fonte: Secretaria de Justiça do Estado do Ceará

É fato que a criminalidade está aumentando e causando grande impacto nas agências de controle da ordem pública, que
vêem sua capacidade de resposta diminuída. O número crescente de crimes violentos promove desconforto social, aumentando a
sensação de insegurança, aliado ao fato de que a criminalidade urbana está caracterizada por outro aspecto que a agrava que é o
crime organizado.

714
Exige-se, portanto, dos órgãos de segurança que na “luta” contra a criminalidade, efetue o maior número de prisões que
for possível. Em contrapartida, quando as autoridades criminais determinam que o indivíduo que cometeu um crime seja recolhido
a um presídio, este não possui condições adequadas para o recebimento. A falta de espaço e as condições de insalubridade irão
submeter este indivíduo a condições bastante precárias de sobrevivência. Esta contradição produz uma cultura organizacional que
estimula o conflito e o surgimento de práticas ilegais.
O poder disciplinar da equipe que trabalha com os presidiários lhe autoriza a tomar medidas punitivas quando considera
pertinente, e muitas vezes as punições ocorrem mesmo não havendo comprovação de alguma falta disciplinar do detento. Isto vai
de encontro ao que está disposto no Art. 59 da LEP: Praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado o procedimento para sua
apuração, conforme regulamento assegurado o direito de defesa. A “lei do silêncio” parece imperar nas relações muitas vezes
conflituosas entre prisioneiros e equipe administrativa da Instituição, para que se mantenha uma convivência mais fácil para os
detentos; ou seja, mesmo sentindo-se injustiçados por algum ato, os detentos evitam denunciar abusos às autoridades ou à
imprensa, com medo de represálias, efetuando então “a justiça” de acordo com suas regras, chegando inclusive à extremos de
violência.
Torna-se contraditório apontar saídas para ressocialização ou reinserção na sociedade, após o indivíduo ter cumprido
pena em instituições penais com as características citadas acima.
Alguns dados sobre conflitos no sistema prisional do Ceará, foram divulgados por jornais locais como o Povo e o Diário
do Nordeste.
Período - janeiro de 2007 à junho de 2008
Número de fugas , incluindo Cadeias Públicas : 28
Homicídios entre presidiários : 31
Motins / rebeliões : 17
Funcionários reféns nos motins / rebeliões : 02
Apreensões de drogas / celulares : 29
Túneis : 11
Assassinatos de Funcionários: 05

É importante destacar que, certamente estes números estão sujeitos á uma subnotificação. Observa-se que trancafiar
pessoas propicia o surgimento de comportamentos agressivos, rebeliões e fugas que dão visibilidade a uma situação carregada de
debilidades e contradições.
Esta breve análise demonstra que as relações de conflito se estabelecem entre os agentes da lei e os prisioneiros, o que
torna a convivência entre as partes difícil e contribui para prejudicar o objetivo final da prisão que é a ressocialização dos
apenados. Tendo em vista os aspectos abordados, esta pesquisa propõe realizar uma reflexão sobre a integração e sociabilidade
entre servidores do sistema penal e aprisionados.
O foco deste projeto portanto, é o de, ao analisar o Instituto Penal Paulo Sarasate e a Penitenciária Industrial Regional
do Cariri, observar os conflitos, a formação dos agentes penitenciários e as ações relativas à Política Penitenciária do Estado do
Ceará, na questão da ressocialização. Desta maneira, busca-se entender o espaço da conflitualidade destes dois presídios,
realizando uma análise comparativa entre o público (IPPS) e o privado (PIRC), o lugar do trabalho e da religião na administração
dos conflitos. Pesquisas realizadas mostram que a maioria da população carcerária tem interesse em trabalhar, em virtude da
remição da pena e para acabar com a ociosidade, mas apenas alguns conseguem atingir este objetivo, em decorrência do Estado
não dispor de verbas suficientes para honrar a remuneração dos presos. Normalmente, as atividades laborativas que desenvolvem
na instituição, estão ligadas a manutenção e limpeza da mesma.
A remição tem em vista o trabalho dentro do estabelecimento prisional. Está intimamente vinculada à disciplina dentro
do presídio, servindo de controle da população carcerária, que, em tese ocupada, não dispõe de tempo para fugas ou atos de
indisciplina.
A contagem do tempo para fim de remição é feita à razão de um dia de pena por três de trabalho (art. 126, § 1º, da LEP),
e somente devem ser computados os dias efetivamente trabalhados, excluídos os dias de descanso obrigatório, domingos e
feriados (art. 33, caput, 2ª pte, da LEP).
Por fim, espera-se que o diagnóstico feito no Sistema Penal do Estado contribua para reforçar os laços sociais e as
práticas profissionais mais eficazes, racionais e humanas dentro do sistema carcerário estadual.
Compreender as estruturas criadas como alternativas para o encarceramento na linha de um programa denominado de
TERCEIRIZADO pelas autoridades estaduais tem sido uma experiência bastante utilizada. Os dados apresentam uma clara
evolução nas condições de vida do preso, com mais higiene e acompanhamento da saúde, além da maior oportunidade de
trabalho. Pretendemos, no entanto, avaliar a eficácia do trabalho desenvolvido nesses espaços, compreendendo as diferenças
substanciais entre o presídio tradicional e aquele administrado através de um contrato firmado pelo estado com uma empresa
privada.

715
Questiona-se a legalidade desse contrato, no entanto, o que pretendemos compreender extrapola a esfera da legalidade.
A perspectiva é saber como são desenvolvidos o acompanhamento dos presos nesses dois espaços diferenciados e avaliar o grau
de satisfação tanto dos agentes que trabalham com os presos, da direção e dos próprio presos que, na medida do possível,
respeitadas as normas internas de segurança, serão ouvidos através de métodos adequados de investigação, conforme
esmiuçaremos na descrição da metodologia da pesquisa.

QUESTIONAMENTOS E PRESSUPOSTOS
A presente pesquisa parte dos seguintes pressupostos;

As Políticas de Segurança Pública no Brasil, apesar de alguns esforços ainda apresentam um caráter repressivo mais
expressivo do que as de prevenção na luta contra a criminalidade. Consequentemente o encarceramento tem aumentado
notoriamente no país, trazendo como consequência imediata a superpopulação carcerária.
A superpopulação carcerária produz efeitos bastante negativos para os aprisionados, contribuindo sobremaneira para o
acirramento de conflitos nos presídios. Também é um dos fatores responsáveis pelas condições subhumanas das penitenciárias e
pela ineficiência do processo de ressocialização dos detentos.

OBJETIVO GERAL
Compreender os conflitos, como se manifestam no espaço das prisões, tendo como referência a ressocialização, para
que se realize um diagnóstico preciso das penitenciárias a partir do qual seja possível propor práticas profissionais mais eficazes,
racionais e humanas dentro do sistema carcerário estadual.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Entender os presídios enquanto espaço de conflitualidade;
Realizar uma análise comparativa entre presídios público (IPPS) e um privado (PIRC);
Realizar uma análise comparativa entre presídios nacionais e internacionais e os presídios do Estado do Ceará
escolhidos para a pesquisa;
Compreender a construção e o conflito de identidades através da experiência do trabalho penal de profissionais, direção
e dos próprios presos nas duas unidades prisionais do Ceará;
Entender o lugar da religião e do trabalho na administração de conflitos;
Mapear os principais conflitos que se estabelecem no interior das penitenciárias;
Analisar os cursos de formação e capacitação dos agentes penitenciários;
Investigar as práticas cotidianas dos agentes prisionais;
Analisar as condições de trabalho a que os agentes penitenciários estão submetidos e as situações causadoras de baixa
motivação profissional;
Propor estratégias a serem utilizadas pela Secretaria de Justiça na melhoria da qualidade de vida dos detentos e dos
agentes de segurança.

METODOLOGIA
A Metodologia de investigação passa inicialmente pela coleta de dados oficiais em relação às duas unidades prisionais.
São realizados questionários e entrevistas qualitativas com os detentos, agentes penitenciários e demais agentes de
segurança que atuam nos presídios, bem como coletados dados quantitativos. Portanto, a pesquisa é baseada em dados qualitativos
e quantitativos.
Na pesquisa estão sendo utilizadas técnicas de entrevistas individuais semi-estruturadas; análise de documentos oficiais,
reportagens que se refiram ao sistema penitenciário nos jornais locais de grande circulação como O Povo e Diário do Nordeste;
observações sistemáticas, grupos focais e aplicação de survey.
O interesse nos questionários e nas entrevistas é compreender as prisões e entender os conflitos geradores de violência
neste espaço, a partir do olhar e da fala dos atores sociais que o compõem.
As incursões realizadas no campo empírico da investigação e observações sistemáticas possuem um caráter etnográfico
e possibilitarão uma análise qualitativa de profunda inserção no campo para observar, narrar e descrever fatos e eventos de forma
densa no sentido empregado por Clifford Geertz (1978), ou seja, achar conexões lógicas e significados que permitam
compreende-los.

716
Foram criados 6 (seis) grupos focais com: agentes penitenciários e Policiais Militares, direção e presos nas duas
unidades prisionais. Um grupo focal reunindo os agentes e Policiais Militares das duas unidade prisionais, para aprofundamento
das questões em caráter comparativo.
O grande mérito do Grupo Focal é a possibilidade de colocação dos principais conflitos dentro dos presídios na mesa de
discussão, resguardando a identidade do informante e possibilitando um debate de idéias e formulação de propostas de solução
dos conflitos a partir do senso comum, que podem ser analisadas posteriormente pelos pesquisadores.
Os dados quantitativos estão sendo coletados através de métodos de survey nas duas unidades prisionais escolhidas.
Permitirão traçar um perfil comparativo dos encarcerados e dos presídios no que concerne à idade, tipologia de crime, número de
detentos trabalhando, relação do trabalho e da religião na ressocialização, número de conflitos violentos ocorridos no período de
um ano; quantidade e periodicidade dos cursos de formação e capacitação ofertados aos agentes penitenciários no decorrer de
doze meses.
Os dados subjetivos irão permitir compreender como pensam e vivem os indivíduos que estão nas prisões, de que forma
constroem seus conflitos, suas avaliações a respeito do cotidiano em uma penitenciária e das políticas públicas implementadas no
sistema penal, suas práticas cotidianas para sobreviverem encarcerados. Também trarão um novo olhar sobre o agente
penitenciário, pois estes através de suas falas explicitarão como entendem o seu papel enquanto trabalhador do sistema penal, os
estresses a que são submetidos diariamente, o temor por sua integridade física, fatores que contribuem para sua baixa estima e
pouca motivação para o desenvolvimento de suas atividades.
A pesquisa qualitativa permite também uma avaliação dos conteúdos, ementas e qualidade dos cursos ofertados para os
agentes penitenciários.
Ainda na perspectiva metodológica, pretendemos construir um quadro comparativo entre as experiências de unidades
prisionais do Estado do Ceará, presídios brasileiros e estrangeiros.

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A pena privativa de liberdade na penitenciária de São Luiz Gonzaga, no interior do


Estado Rio Grande do Sul/ Brasil
Cristina Kologeski Fraga
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
[email protected]

Eliana Mourgues Cogoy


Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
[email protected]

Júlio Cezar Dal Paz Consul


Polícia Militar do Rio Grande do Sul/Brasil
[email protected]

Maria Alice Canzi Ames


Unijuí
[email protected]

Elisângela Maia Pessoa


Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
[email protected]

Resumo: Este texto é oriundo de uma pesquisa que teve como objetivo central analisar os mecanismos que contribuem na questão da reincidência
do encarcerado da penitenciária de São Luiz Gonzaga, no interior do Estado do Rio Grande do Sul/Brasil. Metodologicamente buscou inspiração
na abordagem crítico-dialética uma vez que se propõe um estudo propositivo e comprometido com sugestão de melhorias, possibilitando entender
as implicações da pena privativa de liberdade para os sujeitos que a cumprem e os mecanismos visíveis e invisíveis que constituem os mais
variados tipos de violência que contribuem na reincidência penal. A pesquisa é do tipo qualitativo, um estudo de caso que tem como unidade de

718
referência a penitenciária de São Luiz Gonzaga. Para a coleta de dados, realizou-se entrevistas com os funcionários da penitenciária, análise
documental das entrevistas de ingresso e questionários aos presos. As conclusões sugerem que a penitenciária estudada precisa ser analisada sob
um prisma heterogêneo, contraditório e complexo, que cumpre a função de conter uma massa social descartável, absorvendo o miserável do
interior do Rio Grande do Sul, tendo em vista que o perfil sócio-econômico do preso evidencia uma situação de vulnerabilidade social adicionado
à baixa escolaridade e ausência de qualificação profissional. Ao profissional da área social, é necessário um trabalho de sensibilização e
desmistificação do espaço prisional em que o cárcere seja visto dentro de sua heterogeneidade que abarca pessoas que têm o direito as
oportunidades na sociedade e no mercado de trabalho.
Palavras-Chave: Pena privativa de liberdade, violência, reincidência penal, segurança.

Introdução
Este artigo é proveniente de pesquisa intitulada “A Construção de mecanismos que contribuem na reincidência do preso
na Penitenciária de São Luiz Gonzaga1- PSLG”, cujos constrangimentos financeiros foram suportados pelo Conselho Nacional do
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq2. A investigação foi do tipo qualitativo e constituiu-se em um estudo de caso
que teve como unidade de referência única a penitenciária de São Luiz Gonzaga, com o objetivo de conhecer e analisar os
mecanismos que contribuem na questão da reincidência do preso da penitenciária de São Luiz Gonzaga/RS.
O sistema carcerário da Penitenciária de São Luiz Gonzaga foi pesquisado durante o ano de 2007 e início de 2008 e foi
delimitado como objeto de estudo pelo interesse e disponibilidade dos profissionais e gestores em participar da investigação. Sua
localização geográfica situa-se numa região específica do extremo Sul brasileiro, a Região das Missões, composta por 25
municípios3, abrangendo uma área total de 1.297, 922 Km², com uma população de 35.2333 habitantes, da qual um percentual
considerável destes residem na área urbana (87,93%) e uma pequena parcela (12,07%) reside na área rural. O Produto Interno
Bruto per capita médio é de R$ 9.135,89 (nove mil, cento e trinta e cinco reais e oitenta e nova centavos); de acordo com dados
do IBGE4.
São Luiz Gonzaga, o município de localização da penitenciária em foco, foi fundado pelo Padre Miguel Fernandes em
1687, sendo parte de um dos Sete Povos das Missões. Seu território é sulcado por muitos arroios e pelos rios Ijuí, Piratini e
Ximbocu. Fez parte da República Guarani desde sua fundação, até 1756 quando, em consequência do Tratado de Madri - 1750 -
os índios e os jesuítas foram expulsos pelos exércitos português e espanhol.
A unidade penitenciária de São Luiz Gonzaga foi criada em novembro de 1997, possui uma capacidade para 160 presos,
é considerada de segurança média e compõe uma das dez casas prisionais da 3ª Delegacia Regional cuja sede é em Santo Ângelo
no Rio Grande do Sul.
Em razão da característica de segurança média da Penitenciária pesquisada, realizaram-se várias aproximações no
processo de coleta de dados: entrevistas individuais com os funcionários da penitenciária, análise documental das entrevistas de
ingresso dos presos e questionários que foram enviados aos presos da penitenciária. Os sujeitos entrevistados foram os
funcionários da penitenciária (gestores: delegado da 3 ª Delegacia Regional e diretor da penitenciária), técnicos (psicóloga e
assistente social) e agente de segurança da referida penitenciária, alguns previamente selecionados e outros escolhidos no
momento da coleta. Durante o estudo realizou-se, também, observação no interior da penitenciária, incluindo as galerias, celas,
salas da aula, sala da direção, dos técnicos, padaria, refeitório e demais espaços internos da unidade. Destaca-se que, desde o
início do processo de sensibilização dos sujeitos da penitenciária até o final da coleta foi concedido o máximo de acesso possível
ao local pesquisado.
Após o trabalho de campo, realizou-se o processo de análise e interpretação dos dados coletados e observados no
estabelecimento penitenciário, num esforço de descrever o máximo possível e de dar visibilidade à realidade do sistema carcerário
de São Luiz Gonzaga. Realizou-se também a releitura das anotações do caderno de campo, a fim de que se evidenciassem as
categorias de análise desse estudo: Prisão, Violência e Reincidência.
Em termos de estrutura, o artigo aborda, primeiramente, os caminhos percorridos à elaboração da pesquisa - a sua
construção metodológica -, após, expõe os principais achados da pesquisa e, por fim, realiza as considerações finais explicitando
sugestões de melhorias à Penitenciária estudada.

1
A Penitenciária de São Luiz Gonzaga está localizada na BR 285 – KM 447 na região das Missões no Sul do Brasil, com 168 presos condenados à pena de reclusão em
regimes nas modalidades fechado e semi-aberto, em função de crimes relacionados à área de abrangência da 3ª Delegacia Regional, com sede em Santo Ângelo no Rio
grande do Sul, sendo a unidade caracterizada como de segurança média.
2
N.E - Edital MCT/CNPq 50/2006 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. Modalidade: Auxílio à Pesquisa – APQ. Processo: 401221/2007-5.
3
N. E. – A região Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul é composta pelos seguintes municípios: São Luiz Gonzaga, Bossoroca, Caibaté, Cerro Largo, Dezesseis de
Novembro, Entre-Ijuis, Eugênio de Castro, Garruchos, Giruá, Guarani das Missões, Mato Queimado, Pirapó, Porto Xavier, Rolador, Roque Gonzales, Salvador das
Missões, Santo Ângelo, Santo Antônio das Missões, São Miguel das Missões, São Nicolau, São Paulo das Missões, São Pedro do Butiá, Sete de Setembro, Ubiretama e
Vitória das Missões.
4
Esses dados foram obtidos junto ao Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) e dos sites: Prefeitura Municipal de São Luíz Gonzaga: Histórico do municipio.
Disponível em: http://www.saoluizrs.com.br/. Acesso em: 14 fev. 2008 e São Luíz Gonzaga. Dísponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Luiz_Gonzaga.
Acesso em: 14 fev. 2008.

719
Construção metodológica da pesquisa
Neste estudo buscou-se inspiração na abordagem dialético-materialista5, uma vez que, possibilitava uma maior
aproximação com a realidade do sistema carcerário de São Luiz Gonzaga. As referências de Kosik (1995) permitiram entender a
complexidade que constitui a pena e os mecanismos de reincidência social na penitenciária local, para além da superfície, de sua
expressão fenomênica, que se apresentava no aparente, ou seja, nas palavras do autor, o “pseudoconcreto”. Exigiu, pois, em ir
fundo na realidade pesquisada, com aproximações incansáveis, de muitas idas e vindas, na tentativa de alcançar a sua essência,
reconhecendo-o como pertencente a um todo estruturado e dinâmico.
A problematização acerca dos mecanismos da violência e da reincidência penal exigiu uma abordagem que
ultrapassasse o aparente e o imediato, o olhar crítico e alongado, que tornou possível ultrapassar preconceitos para desvelar o
objeto de estudos. Para abarcar a complexidade da temática investigada, a metodologia da pesquisa foi planejada de forma a
articular técnicas quantitativas e qualitativas. Segundo Martinelli (1994), enquanto as pesquisas quantitativas servem para trazer
retratos da realidade, dimensionar os problemas que se investigam, as metodologias qualitativas aproximam pesquisador/sujeitos
pesquisados, permitindo ao primeiro conhecer as percepções dos segundos, os significados que atribuem às suas experiências, seu
modo de vida, ou seja, oferece subsídios para trabalhar com o real em movimento, em toda a sua plenitude.
A presente pesquisa classifica-se como um estudo de caso que se deteve sobre uma instituição específica, a
Penitenciária de São Luiz Gonzaga que, mesmo não permitindo generalizações estatísticas, possibilita generalizações analíticas.
Para Chizzotti (2000, p. 102):
O estudo de caso é uma caracterização abrangente para designar uma diversidade de pesquisas que coletam e registram
dados de um caso particular ou de vários casos a fim de organizar um relatório ordenado e crítico de uma experiência, ou de
avaliá-la analiticamente, objetivando tomar decisões a seu respeito ou propor uma ação transformadora.

Segundo o mesmo autor, o caso é tomado como unidade significativa do todo e, dessa maneira, revela-se suficiente para
fundamentar um julgamento fidedigno e também propor uma intervenção. O estudo de caso constituiu-se como uma maneira
específica de investigar o objeto desta pesquisa, baseado numa unidade de análise que recaiu sobre uma instituição, a
penitenciária de São Luiz Gonzaga e permitiu maior variedade na utilização de técnicas de coleta e análise dos dados.
Do ponto de vista da abordagem qualitativa, é indispensável explicitar a possibilidade de aproximação com as
experiências profissionais dos sujeitos pesquisados que este tipo de pesquisa proporciona. Conforme esclarece Martinelli (1994, p.
25), “[...] muito mais do que descrever um objeto, buscam conhecer trajetórias de vida, experiências sociais dos sujeitos, o que
exige uma grande disponibilidade do pesquisador e um real interesse em vivenciar a experiência da pesquisa.”
A pesquisa qualitativa não requer, portanto, um número elevado de sujeitos investigados, pois se trata de observar a
intensidade e a profundidade das questões que estão sendo trabalhadas com aqueles sujeitos que se escolheu intencionalmente.
Dessa forma, o estudo buscou analisar a reincidência no sistema penitenciário local, visto como expressão da violência
sob a perspectiva da privação, a partir dos aspectos sociais, identificados sob o ponto de vista dos encarcerados, dos gestores,
profissionais e técnicos do sistema carcerário de São Luiz Gonzaga. Ouvir as diferentes vozes dos sujeitos que compõem a
pesquisa mostrou-se como sendo uma possibilidade ímpar na apreensão dos fatores que contribuem na reincidência penal na
penitenciária de São Luiz Gonzaga e as possibilidades de ressocialização do sujeito preso.

Procedimentos Metodológicos
Buscou-se, nesse estudo investigar a realidade da penitenciária de São Luiz Gonzaga sob diversos ângulos: sob o ponto
de vista dos próprios apenados, a respeito do atendimento institucional carcerário, sobre as medidas privativas de liberdade e as
implicações do cárcere em seus modos de vida. O estudo pretendeu voltar-se não somente à descrição da realidade do cárcere
como também para a contribuição de propostas efetivas no que se refere ao sistema carcerário local.
Nesse sentido, partiu-se da premissa, de que a questão da violência social do sistema carcerário é um campo fértil de
estudos e pesquisas contemporâneas e que, portanto, cabe a Universidade, iniciá-los, aproximando-se dessa realidade,
desmistificando-a, promovendo o debate, indagando, discutindo e produzindo conhecimento para que a sociedade seja capaz de
entender o processo social que se estabelece nas relações sociais locais, produtoras de um isolamento que promove cada vez mais
violência e desigualdade social.
A primeira etapa da pesquisa consistiu no levantamento bibliográfico acerca das categorias privilegiadas no estudo:
pena privativa de liberdade, violência e reincidência penal. Tal levantamento subsidiou a análise dos resultados e possibilitou um
necessário distanciamento crítico e propositivo com o objeto de estudo.

5
Neste estudo, trata-se da dialética, seguindo a concepção de Kosik (1995, p. 20), ou seja, como método de transformação da realidade. Para o autor: “A dialética é o
pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade.”

720
A segunda etapa consistiu na aproximação com a penitenciária local. Para tanto, a primeira providência foi solicitar
formalmente, por meio de requerimento endereçado ao Delegado responsável pela 3ª Delegacia Penitenciária Regional, o
consentimento para realizar o estudo na Penitenciária de São Luiz Gonzaga, ocasião em que se deixou cópia do projeto de
pesquisa. Uma vez autorizada a pesquisa pelo Delegado, deu-se início às atividades de coleta de informações.
Tendo-se clareza das implicações éticas e legais, no que se refere à realização de pesquisa com seres humanos, os
procedimentos de coleta de informações foram sempre norteados pelo respeito aos sujeitos, na sua liberdade em participar ou não
do estudo. Sendo assim, o primeiro passo consistiu em explicar os propósitos da pesquisa e, uma vez, verificada a possibilidade de
entrevistas, foram explicitados os objetivos da mesma, bem como, o compromisso ético, expresso no Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
No que se refere à realização das entrevistas, sempre foi solicitada a permissão dos sujeitos para serem gravados os
diálogos. Uma vez autorizadas, as entrevistas foram então, gravadas, e posteriormente, transcritas, categorizadas e analisadas pela
equipe de pesquisadores.
Outra questão que mereceu toda a diligência na postura ética da equipe de pesquisadores, diz respeito ao cuidado de
assegurar sigilo aos participantes para que estes não fossem identificados em suas falas e nem nos questionários respondidos.
Sendo assim, os funcionários entrevistados serão denominados de A, B, C, D e E, não sendo designados pelo gênero feminino
para não correr risco de identificar de alguma forma os entrevistados. Quanto à função também não serão discriminados, visto que
na área técnica existe apenas uma assistente social, uma psicóloga e, como gestores, um diretor, um delegado, o que possibilitou
designá-los apenas de funcionários da penitenciária de São Luiz Gonzaga nas narrativas das entrevistas.
Isso posto, iniciou-se a fase da coleta de dados empíricos referentes à penitenciária local, constituindo-se de cinco
entrevistas individuais, com os funcionários da penitenciária (gestores: delegado da 3 ª Delegacia Regional e diretor da
penitenciária), técnicos (psicóloga e assistente social) e agente de segurança. Salienta-se que as entrevistas foram realizadas sob
autorização por escrito, de um consentimento livre e informado. Tal procedimento, de acordo com Goldim (1997), consiste numa
autorização que visa, fundamentalmente, a resguardar o respeito aos sujeitos do estudo. As entrevistas geralmente foram
realizadas na própria penitenciária, com exceção da entrevista com o delegado que aconteceu em Santo Ângelo e no local de
residência de uma das entrevistadas que estava em férias e que aceitou cordialmente participar da pesquisa.
Concomitantemente, também foi realizada análise documental de 120 entrevistas de ingresso dos presos a partir de um
roteiro norteador. A coleta de dados referente à pesquisa documental ocorreu na própria penitenciária, contando com o apoio
efetivo dos funcionários desta Unidade Carcerária.
Finalmente, foram enviados 168 questionários à população carcerária que constituíam o universo existente no dia da
coleta. Nessa ocasião de entrega dos questionários optou-se por ir, pessoalmente ao refeitório dos presos no horário de jantar e,
junto aos pequenos grupos autorizados à refeição naquele instante, teve-se um contato direto com a totalidade da população
carcerária do regime fechado do estabelecimento penal pesquisado. Nessa oportunidade, a equipe identificou-se deixando
evidente que se tratava de uma pesquisa acadêmica e que os pesquisadores eram exteriores à instituição carcerária. Também,
falou-se sobre a pesquisa, explicaram-se os procedimentos de coleta de dados da mesma, o compromisso com o sigilo e a
importância da participação de cada sujeito. Ao final, solicitou-se que, quem aceitasse participar da pesquisa, poderia deixar o
questionário preenchido numa urna que foi deixada em ambos os refeitórios até o dia seguinte, quando, então, se iria pegar os
questionários. Considerou-se que tal gesto surtiu efeito junto à população carcerária que, na percepção dessa equipe respondeu de
maneira satisfatória. Na ocasião, deixaram-se os questionários em cima da mesa no refeitório e solicitou-se que pegassem os
mesmos somente quem estivesse disposto a colaborar. No dia seguinte, quando se voltou à penitenciária, surpreendeu-se
positivamente com a forte adesão dos presos, ao total, 92 questionários foram devolvidos: 62 do regime fechado e 30 do regime
semi-aberto.
Salienta-se que durante todo o estudo também se realizou observação livre no interior da penitenciária, incluindo as
galerias, celas, refeitórios e demais espaços internos da unidade onde se contou com uma extraordinária receptividade,
colaboração e participação por parte dos sujeitos que compõem esse lugar. Vale destacar que, desde o início do processo de
sensibilização dos sujeitos da penitenciária até o final da coleta foi concedido o máximo de acesso possível ao local pesquisado.
No processo de análise dos resultados, os diferentes dados coletados foram organizados e sistematizados para
possibilitar sua análise a partir dos objetivos propostos. As informações obtidas no levantamento de dados e na coleta de
documentos foram trabalhadas com base nos procedimentos da análise de conteúdo, como ferramentas auxiliares do método
dialético.
Com base em Bardin (1979), seguiram-se as três etapas essenciais no processo de uso da análise de conteúdo: a pré-
análise, que foi a fase de organização do material de pesquisa, a descrição analítica, onde o material organizado foi submetido a
um estudo aprofundado com base nos referenciais teóricos da pesquisa e a interpretação referencial, onde os elementos da
pesquisa foram relacionados com as variáveis mais complexas como um todo e da totalidade social em que estão inseridos, ou
seja, os mecanismos que contribuem coma reincidência penal em São Luiz Gonzaga.

721
Alguns resultados
Breve descrição da Penitenciária de São Luiz Gonzaga/PSLG
A estrutura geral do sistema está constituída pelos seguintes órgãos: Governo do Estado; Secretária de Segurança
Pública; Superintendência dos Serviços Penitenciários, que é subordinada à Secretaria de Segurança Pública (SSP). A SSP, no Rio
Grande do Sul, é o órgão estadual responsável pela execução administrativa das penas privativas de liberdade, das restritivas de
direito e das medidas de segurança. Nesse Estado existem as Delegacias Regionais. Cada Delegacia possui um responsável geral
que tem um cargo administrativo denominado de Delegado. Geralmente, o Delegado do estabelecimento penal é um agente
penitenciário que foi promovido ao cargo por um tempo determinado.
A penitenciária em estudo compõe a 3ª Delegacia Penitenciária Regional, possui sede em Santo Ângelo no Estado do
Rio Grande do Sul e é integrada por dez estabelecimentos penitenciários, quais sejam: Albergue Estadual de Ijuí, Albergue
Estadual de Santo Ângelo, Presídio Estadual de Cerro Largo, Presídio Estadual de Santa Rosa, Presídio Estadual de Santo Cristo,
Presídio Estadual de São Borja, Penitenciária Estadual de São Luiz Gonzaga, Presídio Estadual de Três Passos, Presídio Regional
de Santo Ângelo e Penitenciária Modulada Estadual de Ijuí. Cada estabelecimento prisional possui um diretor que, de acordo com
o Artigo 75 da Lei de Execução Penal - LEP, parágrafo único, deverá residir no estabelecimento, ou nas proximidades, e dedicará
tempo integral à sua função. O mesmo artigo da LEP prevê ainda os seguintes requisitos: I - que o ocupante do cargo de diretor de
estabelecimento deverá ser portador de diploma de nível superior de Direito, ou Psicologia, ou Ciências Sociais, ou Pedagogia, ou
Serviços Sociais; II – possuir experiência administrativa na área; III – ter idoneidade moral e reconhecida aptidão para o
desempenho da função.
No caso da penitenciária em estudo, o diretor reside no estabelecimento penitenciário, embora não preencha o requisito I
da LEP, não possui curso superior, tão pouco qualquer um daqueles cursos exigidos no requisito I. De acordo com o que foi
informado pelos entrevistados, a direção dos estabelecimentos prisionais, tal como o de delegado, é um cargo político que muda a
cada novo mandato do governo estadual.
Segundo a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, a política penitenciária do Estado deve ter como objetivo a
reeducação, a reintegração social e a ressocialização do preso, definindo como prioridades a regionalização e a municipalização
dos estabelecimentos penitenciários, a manutenção de colônias penais agrícolas e industriais e a escolarização e profissionalização
dos presos.
A Penitenciária de São Luiz Gonzaga possui uma estrutura física externa da unidade constituída por um muro alto,
quatro guaritas externas (porém apenas duas possui guardas permanentes) e um portão de ferro na entrada da unidade por onde
entram os visitantes, funcionários, carros e as viaturas que realizam a transferência e movimentação de presos.
Nesse portão de entrada sempre tem um guarda, que, geralmente é um dos presos chamados “presos de confiança” ou
um soldado da Brigada Militar para solicitar a identificação dos visitantes. De um modo geral, o pátio da penitenciária apresenta
uma aparência de limpeza. A grama e árvores da parte externa do local suavizam o ambiente. O estacionamento para funcionários
e visitantes e a casa do diretor da Unidade, nos fundos, quase confunde o local, dentro da ótica de um ambiente residencial, não
fosse pelas guaritas externas com os policiais da Brigada Militar de plantão permanente no alto.
A arquitetura da penitenciária, em si, com sua estrutura inconfundível gradeada, com as salas dos funcionários, do
diretor, refeitório, padaria, escola, corredores, galerias e celas, lembra as instituições fechadas ou totais tão bem descritas por
Goffman na sua obra clássica “Manicômios, Prisões e Conventos”. n
Ao chegar ao portão de acesso de entrada da unidade o visitante deverá tocar a campainha e esperar, quando atendido,
deverá se identificar na portaria dizendo a quem veio procurar naquele local. Esse portão de acesso ao interior da penitenciária
tem como regra permanecer, em toda e qualquer ocasião, sempre fechado e cadeado.
Após a portaria, atravessando a parte interna da Unidade, encontra-se do lado esquerdo a localização das salas da
administração, da equipe técnica, o alojamento feminino, um banheiro (feminino), uma sala “depósito” de arquivos da PSLG, a
sala do diretor e o refeitório dos funcionários. No lado direito encontra-se o alojamento, um banheiro masculino e o espaço que é
o “albergue” dos presos que estão no regime semi-aberto e que estão trabalhando e a sala de revista corporal. Seguindo em
direção ao interior da Penitenciária, ainda nesse espaço intermediário, existe uma sala da segurança equipada com câmera, a
inspetoria, onde se pode visualizar e controlar toda a parte interna da unidade, incluindo galerias, celas e pátio interno. Em frente a
inspetoria localiza-se o parlatório.
Seguindo para o interior da Penitenciária de São Luiz Gonzaga encontra-se uma outra porta com grade, também sempre
trancada com cadeado que dá acesso a um espaço bem mais restrito, no qual em suas laterais estão localizadas as portas de ferro,
que dão acesso às galerias.
Também, do lado direito estão localizadas as salas de aula, um núcleo do EJA que vai desde os níveis de alfabetização
até o ensino médio, ainda nesse espaço está localizado a cozinha e os refeitórios para os presos. A arquitetura de PSLG retrata
uma unidade voltada para a segurança média, conforme se propõe.
A Penitenciária de São Luiz Gonzaga pode ser caracterizada como uma “instituição total”, utilizando-se os termos de
Goffman, pois objetiva encarcerar e conter as pessoas que cometeram delitos na sociedade, seu foco é a punição, disciplina e a

722
manutenção da segurança. Para Goffman (2001, p.16): “Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à
relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo,
portas fechadas, paredes altas [...]”.
O caráter total ou de “fechamento” desse estabelecimento penitenciário é evidente não só pelas guaritas com
permanente vigia, grades, cadeados explícitos no seu interior e exterior, como também pelo conjunto de normatizações, regras,
proibições, deveres e obrigações impostos à população carcerária. A seguir, serão descritas algumas rotinas do cárcere a partir de
anotações constantes nos cadernos de campo da equipe de pesquisadores e de suas técnicas de observações e entrevistas.

As rotinas da Penitenciária de São Luiz Gonzaga


A rotina da penitenciária de São Luiz Gonzaga é uma constante, abarca os 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias do
ano. Às 7hs da manhã o encarcerado é obrigado a sair da cela. Nesse horário, o carcereiro abre a cela, é necessário descer para o
refeitório, mesmo que não se deseje tomar café da manhã.
Ainda durante o turno da manhã, é realizada, sistematicamente, uma conferência para contagem dos presos. Nesse
momento, a população carcerária precisa descer, depois retorna à cela e esta é trancada. No horário matinal, quando não tem aula
e nenhuma atividade, voltam para a cela e só saem novamente, quando esta volta a reabrir, às 11h30min, horário de almoço. A
regra instituída nesse momento é a de que mesmo que não queiram almoçar, precisam descer, obrigatoriamente, e depois voltar
para a cela.
Caso o preso se recuse a descer para o café ou almoço, o carcereiro, vai chamá-lo e adverti-lo, na primeira vez, caso
continue rescindindo, será aberto um procedimento administrativo por deixar de cumprir as normas. Como resultado de tal
descumprimento, pode advir um castigo ou suspensão de seu direito de visitas. Isso significa que o preso não tem o direito de ficar
dormindo direto, por exemplo, até as 10h. E, após as 7h30min, às 8h30min tem a troca de plantão, daí a conferência é geral. Para
trocar de turma de serviço, a outra equipe que assume precisa chamar todos os detentos, nome por nome para conferir cada um
que se encontra no cárcere. Os detentos saem da cela com as mãos entrelaçadas, respondem à chamada e entram novamente. Não
tendo outra atividade podem retornar a cela e permanecer lá até as 11h30min, horário do almoço.
Às 11h30min é o horário que almoçam, depois sobem para a cela e então se tranca tudo. Eles têm direito a duas horas
diárias para tomar sol no pátio, então às 15h saem para o pátio e permanecem lá até às 17h. Nesse período de tempo também os
presos só podem permanecer nas celas caso estiverem doentes porque nesse horário os seguranças vistoriam as celas. A vistoria
compreende a verificação minuciosa na cela, ou seja, se tem algum furo na parede, grade cortada, por isso a necessidade de todos
estarem no pátio.
Após o banho de sol, voltam às celas, vão tomar banho, às 18h30min é horário da janta e, terminada, voltam e, é
realizada novamente a contagem de quantos têm em cada galeria. Fecham-se novamente as galerias e estas somente serão abertas
no dia seguinte, às 7h.
Dessa forma, o preso permanece confinado numa cela que tem aproximadamente 3x4m que tem quatro presos dentro
convivendo 22h por dia. A isso, é importante sinalizar que a penitenciária como uma instituição social total, possui uma rotina
institucionalizada e massificada. De acordo com Goffman (2001, p.11):
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com
situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
formalmente administrada.

Esse espaço físico fechado representa para os presos à reclusão a massificação de seus comportamentos e a adaptação
constante e permanente de hábitos e costumes instituídos, disciplinando horários e institucionalizando uma vida permeada de
rotinas. Dentro dessa instituição total, os presos consideram o tempo que não passa como o que tem de pior na cadeia (51%) em
função da ausência de atividades propostas na unidade. Todavia esse espaço não é considerado reclusão somente para quem está
preso, segundo esse funcionário: “Aqui todo o mundo é, de certa forma, um pouco preso também” (Funcionário X).
Foucault (1987) ao discorrer sobre as instituições completas e austeras refere citando Baltard, a prisão deve ser um
aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico,
sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições, implica uma especialização, é
onidisciplinar. Além disso, a prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua
tarefa; sua ação deve ser ininterrupta; disciplina incessante. Seu modo de ação é a coação de uma educação total, o que o autor
refere de reformatório integral.
A rotina carcerária é permeada por um padrão de comportamento cotidiano, conforme Foucault (1987), uma disciplina
incessante que, no caso da PSLG somente tem alguma variação quando são realizadas as visitas que ocorrem todas as quartas-
feiras, sábados e domingos quando então os presos podem ver seus familiares, amigos e parentes.
Nas quartas-feiras e domingos, é permitida a entrada de crianças nos locais incluindo apenas os parentes de primeiro
grau, isto é, pai, mãe, cônjuge, filhos e irmãos. Aos sábados as visitas são mais restritas e especiais, é o dia, por excelência, em

723
que os presos podem também receber visita das namoradas, companheiras, esposas, o dia da denominada visita íntima. Como o
nome sugere, os presos têm uma hora para satisfação de suas lascívias, no cárcere. Ainda é importante salientar, que uma vez por
mês, na última quarta-feira de cada mês, foi instituída a “visita do amigo”, nesse dia os presos podem receber visita dos demais
parentes e amigos.

A Pena Privativa de Liberdade na Ótica da População Carcerária


Perseguindo as categorias básicas desse estudo, quais sejam, a pena privativa de liberdade, violência e reincidência
penal, construiu-se um questionário que foi enviado aos 168 presos que existiam na Unidade no dia da coleta. Destes, retornaram
92 respondidos, sendo eles, do regime semi-aberto e fechado. A seguir, serão expostos os resultados que demonstram a percepção
dos presos sobre as questões elencadas.
De acordo com as informações coletadas a respeito da existência de filhos, há uma diferença significativa nos regime
fechado e semi-aberto, enquanto que a maioria dos respondentes afirmou não possuir filhos no fechado (52%). No regime semi-
aberto, esse número é totalmente inverso, a esmagadora maioria (77%) dos presos do semi-aberto afirmou possuir filhos.
As visitas que os presos recebem são, em sua maioria, dos pais, ou seja, no regime fechado totaliza 46%, divididos entre
mãe como a visitadora mais frequente (27%), e pai (19%); no regime semi-aberto esse número é quase o mesmo, porém sobe um
pouco, a mãe aparece em 28% das visitas e o pai 20%. A companheira (13%) e namorada (5%) aparecem como visitantes em 18%
dos casos no regime fechado e no semi-aberto, somente a companheira aparece em 18% dos casos como visitante, há ausência de
visita de namoradas, até em função de estarem numa situação de transição, entre o cárcere e a liberdade.
A Portaria Nº 145-SSP/RS, de 28 de novembro de 2007, institui o Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e
Materiais em estabelecimentos prisionais da Superintendência de Serviços Penitenciários. Tal Portaria prevê que todo preso terá
direito a, no mínimo um (01) e, no máximo dois (02) dois dias de visita semanalmente, preferencialmente aos domingos e às
quartas-feiras, devendo ser considerado o padrão de comportamento do preso, as características do estabelecimento prisional e a
necessidade de preservar as condições de segurança e propiciar adequadas condições de revista. No caso da penitenciária em
estudo, a população carcerária tem direito a três dias de visita: quarta-feira, sábado (somente visita íntima) e domingo.
A mencionada Portaria especifica que o ingresso de visitantes limita-se ao número máximo de 02 (dois) visitantes
maiores de 18 (dezoito) anos para cada preso em dia de visita. Ficam liberados desse limite os filhos do preso, desde que com
idade inferior a 18 anos. Estabelecem como condições básicas para o ingresso de visitantes: estar devidamente identificado e
credenciado junto ao estabelecimento prisional; submeter-se à revista pessoal e nos pertences e, finalmente, ter a concordância do
preso que irá visitar.
A maioria dos presos é favorável à visita de crianças na prisão, tanto para os do regime fechado (68%) quanto para os do
regime semi-aberto (52%). Há, também, os que se posicionaram a favor de visitas de crianças com restrições, isto é, somente no
caso de serem filhos do preso: para os sujeitos presos do fechado (24%) e para os do semi-aberto (32%). As respostas dos que se
colocam contra a visita de crianças na prisão são uma minoria (2%) para os presos do regime fechado e (3%) dos que estão no
semi-aberto.
Vale ressaltar, porém, que entre os gestores, técnicos e funcionários entrevistados a situação é bem inversa, eles
problematizam a visita de crianças na prisão. Na opinião de alguns pesquisados, não é uma questão de proibir as visitas, mas
restringi-las: “A criança tem que manter o vínculo com a família que está aqui, principalmente com aqueles que têm penas mais
longas, porque quando ele chegar em casa, será um completo estranho, e fica complicado refazer essa relação, mas o que eu não
concordo é que tenham visita duas vezes [...]” (Entrevistado E)
Os entrevistados evidenciaram uma preocupação com as visitas de crianças duas vezes por semana, sendo que uma
delas ocorre na quarta-feira, dia letivo e que muitas vezes a criança deixa de ir à escola para visitar o pai. Outra questão que
preocupa esse funcionário da PSLG é a naturalização da prisão para a criança que vem com frequência ao estabelecimento penal:
“As crianças estão tão acostumadas que quando chegam para visitar, colocam as mãos na parede para fazer a revista, faz parte e é
do cotidiano da vida dessas crianças”. (Entrevistado D).
Outros funcionários entrevistados não são contra as visitas, mas afirmam a importância de se limitá-las para um dia na
semana, de preferência aos domingos, para que não venha a atrapalhar o dia letivo dessa criança, que esta não tenha que faltar
aula. Para estes, trata-se de limitar o vínculo, inclusive nos casos de filhos. Pensam, ainda, que a família que tem um familiar
preso, poderia vir a receber um acompanhamento e orientação por parte dos técnicos, pois entendem que o problema não é a
criança vir, mas a institucionalização dessa criança.
A visita de crianças é um assunto polêmico e delicado que precisa ser discutido com muito mais evidência, seriedade e
levando-se em conta a complexidade que essa questão implica. Precisa ser levada em conta à importância dos laços afetivos entre
pais/filhos, o dia da semana em que essa visita acontece para que não venha a atrapalhar um dia letivo na escola e a frequência
com que essa visita ocorre. Há que se questionar, principalmente, se realmente é necessária, a visita dessa criança ao

724
estabelecimento penal? Que tipo de relações possui com o preso visitado que justifiquem sua visita e sua entrada precoce no
estabelecimento penal?
Essas são algumas das questões que precisam ser discutidas com a direção do estabelecimento, os agentes de segurança,
os profissionais da equipe técnica: advogado, assistentes sociais e psicólogos. É uma questão polêmica que precisa ser pautada,
discutida, escutada e proposta uma normatização que especifique e normatize a visita de crianças e adolescentes nos
estabelecimentos penais.
A maioria dos presos é favorável à visita de adolescentes na prisão em qualquer caso, tanto para os do regime fechado
(71%), quanto para os do regime semi-aberto (52%). Destaca-se também, os que se posicionaram a favor de visitas com
restrições, somente nos casos de filhos: fechado (21%) e para os do semi-aberto (33%). As respostas dos que se colocam contra,
são uma minoria (2%) fechado e (3%) dos que estão no semi-aberto.
A visita de adolescentes na prisão também não é uma questão tranquila para os profissionais entrevistados. Para os
entrevistados é preciso ficar atento, pois: “Eu me preocupo com as adolescentes porque elas vêm e muitas delas já são
companheiras de alguns deles” (Entrevistado E).
A visita de adolescentes também é um assunto que precisa ser polemizado e discutido pelos profissionais do sistema
prisional, como no caso da visita de crianças. Também é necessário que se leve em conta à importância dos laços afetivos entre
pais/filhos e o dia da semana em que essa visita ocorre para que não venha a atrapalhar um dia letivo na escola. Para esse
funcionário a adolescente fica muito exposta lá dentro do estabelecimento, pois: “Eu me preocupo com as adolescentes assim,
porque elas vêm e muitas delas já são companheiras de alguns deles”. (Entrevistado E).
Ao ser questionado a respeito de que idade essa situação começa a acontecer na Penitenciaria de São Luiz Gonzaga, o
funcionário explica: “Tem de todas as idades, 14, 15, 16 e elas recebem autorização judicial para vir fazer visita íntima para eles
[...]” (Entrevistado E).
Quanto à preocupação desse funcionário com essa questão, encontra eco nas reiteradas autorizações judiciais de
meninas que iniciam precocemente não só a sua entrada no estabelecimento penal como visitante de parente, pai ou irmão, mas
também, ou para ser visitante íntima do companheiro. Essa questão pode ser corroborada no citado questionário a seguir, em que
o preso é favorável a visita de adolescentes em qualquer caso, pois: “A minha companheira tem 16 anos”.
De acordo com a Portaria Nº 145- SSP/RS, de 28/11/2007 que especifica um regulamento geral para ingresso de visitas
e materiais em estabelecimentos prisionais da Superintendência dos Serviços Penitenciários quando se refere a visita íntima,
impõe que esta é reservada ao cônjuge ou companheiro(a) estável, sendo prevista como uma concessão da administração prisional
e tem por finalidade o estreitamento de relações conjugais e familiares. A mesma Portaria explicita ainda que, como concessão, a
visita íntima pode ser suspensa ou restringida pelo cometimento de falta disciplinar do preso ou por ato inapropriado do visitante.
As visitas íntimas quebram a rotina dos presos na cadeia. De acordo com os pesquisados, 53% dos que estão no regime
fechado recebem visita íntima, pelo menos às vezes. Os diálogos com os funcionários da penitenciária denotam que em muitos
casos os presos têm relacionamentos com adolescentes. Para esse sujeito preso a visita tem um significado especial e muito
profundo que ele sintetiza da seguinte forma: “Sou a favor porque uma visita para um preso é meia cadeia”.
As respostas à questão da visita íntima para os presos que estão no regime semi-aberto enseja uma divisão na percepção
dos presos (50%), porém recebem visitas com maior regularidade. Destaca-se também que um significativo percentual (40%)
afirmou não receber visita íntima, até por estarem numa situação de transição entre o cárcere e a liberdade. A cultura que permeia
o sistema prisional é relatada por um dos funcionários da penitenciária, ao referir que “Sexo e droga na cadeia tem que existir,
nem de mais, nem de menos, mas na medida certa porque senão fica difícil de conter os presos”. (Funcionário Y).
De acordo com os presos participantes do regime fechado, a renda familiar de uma considerável parcela, na época da
pesquisa era menos de um salário mínimo (45%); e 34% de 1 a 2 salários mínimos, o que totaliza que em 79% dos respondentes
possui uma renda familiar de até 2 salários mínimos. Em relação à população carcerária do regime semi-aberto, o percentual dos
que possuem renda familiar de até um salário mínimo, cai um pouco, ficando com um 27%, enquanto que o percentual dos que
percebem de 1 a 2 salários sobe para 37%, ou seja, 64% dos respondentes do regime semi-aberto possui uma renda entre menos
de 1 salário até dois salários mínimos.
Em outros termos, a Penitenciária de São Luiz Gonzaga absorve sujeitos pobres e jovens da região das Missões gaúchas
uma vez que a situação social e econômica evidencia um significativo número de presos numa situação de extrema
vulnerabilidade social. Nesse sentido, a síntese dos indicadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2004
não deixa dúvidas sobre o problema da segurança pública no Brasil e a sua expressão mais dramática revela o verdadeiro
genocídio que vem atingindo a população jovem, especialmente a juventude masculina do Brasil. Segundo o IBGE, em 2003 as
mortes violentas por causas externas entre os jovens continuaram a aumentar. No Brasil, a mortalidade masculina no grupo etário
de 20 a 24 anos chega a ser quase dez vezes superior à feminina. No caso específico das mortes por causas externas, verificou-se
que, enquanto sua incidência nas mulheres desse grupo etário manteve-se praticamente inalterada de 1980 a 2003, entre os
homens as taxas aumentaram de 121, em 1980, para 184 óbitos para cada 100.000 jovens.

725
Soares (2004, p.6), ao refletir sobre essa contabilidade mórbida a que está submetida a juventude brasileira, assinala que
o mais extraordinário e paradoxal é a natureza autofágica desse genocídio: “São, sobretudo, jovens pobres (entre 18 e 24 ou 29
anos, conforme o critério aplicado) que matam jovens pobres. Eles estão dos dois lados desse processo fratricida, como vítimas e
como perpetradores.”
Além disso, há de se questionar o paradoxo desse processo, pois se por um lado os alvos de mortes são os jovens pobres
e negros, existe na sociedade uma idéia muito difundida que os criminaliza, acusando-os de serem os responsáveis pela prática de
crimes. Em verdade, constata-se uma associação entre cor da pele, pobreza e criminalidade.
De acordo com as respostas constantes da totalidade dos questionários, no regime fechado, 71% dos respondentes
afirmaram não ter cumprido algum tipo de medida sócio-educativa na adolescência, 11% não responderam e 18% admitiram já ter
cumprido medida sócio-educativa na adolescência. Em relação aos do semi-aberto, as respostas diferem de maneira significativa,
83% afirmaram não ter cumprido medida sócio-educativa, ninguém (0%) admitiu ter cumprido medida sócio-educativa e 17 % se
omitiram em responder a questão.
Segundo os participantes da amostra, 31% dos que cumprem medida no regime fechado tinha menos de 18 anos quando
praticou o primeiro delito, 15% afirmaram ter idade entre 18 a 20 anos, 13% entre 20 a 22 anos e, 31% afirmaram ter mais de 23
anos quando praticaram o primeiro delito. Em relação à população do regime semi-aberto, 30% afirmaram ter praticado o
primeiro delito quando tinham menos de 18 anos, 13% afirmaram ter praticado o primeiro delito com idade entre 18 e 20 anos e o
mesmo percentual para os com idade entre 20 a 22 anos. Salienta-se que em 33% dos casos os presos do regime semi-aberto
afirmaram ter praticado o primeiro delito com idade acima de 23 anos.
De acordo com os sujeitos participantes, do regime fechado, 43% dos tipos de delitos praticados diziam respeito aos
crimes contra o patrimônio – furto, roubo e latrocínio -, sendo na modalidade de formação de quadrilha apenas 1%6, destaca-se
que 12% não responderam a questão. Em outra linha de tipos de delitos, acentua-se também o homicídio (29%) dos casos. Em
relação aos do regime semi-aberto, o que também chama a atenção são os delitos praticados contra o patrimônio – furto e roubo
(53%) - dos casos. No entanto, agora, a omissão de respostas sobe para 17%. Mais uma vez, o crime contra o patrimônio se
destaca na motivação do aprisionamento, ficando os prisioneiros por homicídio num patamar de 23% da massa carcerária. Disso,
depreende-se que os delitos cometidos por essa população carcerária dizem respeito, fortemente aos crimes cometidos contra o
patrimônio e, seguidos dos crimes contra a pessoa.
De acordo com os respondentes, indubitavelmente, o pior numa cadeia é o lapso temporal que não passa. Interessante
frisar que, para os presos do regime fechado, esse fator tem uma significativa relevância em relação aos dos presos do regime
semi-aberto. Tal fato pode ser justificado pela perversidade do tempo ser mais sentido no regime fechado. Por outro lado, que os
detentos do regime fechado (12%) têm maior banalização pela superlotação carcerária do que os do regime semi-aberto (27%).
Nos questionários dos respondentes, “o melhor na prisão”, aparece uma nítida diferença em relação ao regime de sua
pena (fechado e semi-aberto), pois, notório é o maior desencantamento com o sistema, dentre aqueles que cumprem a punição em
um regime fechado (31%), contra 19% dos detentos em regime semi-aberto. Por outro lado, nota-se uma maior motivação a
considerar a biblioteca do presídio como algo positivo dentro do sistema, entre os presos do regime semi-aberto, em que pese o
baixo índice de escolaridade visto anteriormente. Ressalta também, a diferença de percepção entre os apenados do regime fechado
com os do regime semi-aberto, no que tange aos alojamentos do presídio, onde, oito por cento dos primeiros consideram um ponto
positivo contra uma totalidade do regime semi-aberto que, em momento algum, apontou tal fato como positivo.
Em relação aos motivos que contribuem para a reincidência penal, tanto os presos do regime fechado como do regime
semi-aberto, são uníssonos em afirmar que em primeiro lugar está o preconceito da sociedade com o ex-preso e, em segundo
lugar, a falta de oportunidade de trabalho. Como motivador da reincidência, os respondentes apontam de forma quase
insignificante o fato de terem retornado ao meio onde viviam antes.
De acordo com as respostas dos questionários, e em consonância com a pergunta anterior em que apontaram como um
dos principais motivos da reincidência a falta de trabalho, os respondentes, tanto do regime fechado como do regime-aberto,
indicam como projeto futuro ao reconquistar sua liberdade o de procurar um trabalho. Todavia, pelos dados apontados no gráfico
acima, percebe-se uma diferença de intenção entre os presos do regime fechado com os do regime semi-aberto, pois os primeiros
numa proporção 73% pretendem procurar trabalho enquanto que um por cento (1%) acalentam a vontade de retornar a senda
criminosa. Já nos do regime semi-aberto, o percentual que deseja procurar um labor sobe para 83% dos respondentes e, sem
nenhuma incidência de, novamente, procurar o caminho criminoso.

Reinserção social x reincidência: a visão dos sujeitos pesquisados


A seguir serão apresentadas as narrativas dos sujeitos pesquisados a respeito das categorias reincidência e
ressocialização dentro de uma perspectiva das limitações existentes e das possibilidades reais.

6
A modalidade de formação de quadrilha é uma agravante considerada quando o crime for cometido pelo acordo de vontades de mais de três pessoas.

726
De acordo com esse funcionário entrevistado a reincidência acaba sendo um fato, pois o preso readquire a liberdade e
volta para o mesmo meio onde vivia anteriormente e o caminho é o retorno ao cárcere. Para este entrevistado, os profissionais da
área técnica, assistentes sociais e psicólogos podem ter um papel muito importante na reinserção do preso:
A reincidência é um fato, não vejo outro caminho senão a questão do trabalho para se diminuir à reincidência. O preso sai
em liberdade e volta para aquele meio, onde ele começou tudo e recomeça tudo e o fim é novamente a prisão, não tem como
ser diferente. E a ressocialização do preso deveria se dar pelos profissionais da área do sistema. Em São Luis Gonzaga
existe uma coisa muito boa nesse sentido, pois tem uma Assistente Social que trabalha diretamente com a questão da
família, ela vai visitar e acompanha a família do preso, faz um assessoramento, a psicóloga auxilia nisso e diria que na
região, acho que São Luis Gonzaga em termos de corpo profissional do sistema é o que tem melhor condição e, em
contrapartida, na rua é o que tem mais dificuldade. (Entrevistado A)

Para esse outro funcionário a reincidência é algo bastante comum, a sua experiência profissional mostra que existem
casos em que o sujeito volta algumas vezes para o cárcere: “É bastante comum. Nesses [...] anos que eu trabalho aqui, têm presos
que já entraram e voltaram 3, 4 vezes e tem um foragido, mas está a 28 anos cumprindo pena. Agora ele está foragido, no
momento em que a polícia pegá-lo, vai retornar e ficar mais um tempo aqui”. (Entrevistado B)
Na visão desse entrevistado o preso tem acompanhamento sistemático no estabelecimento penal pesquisado, entretanto a
questão passa a ser mais preocupante, paradoxalmente, quando o egresso retorna à sociedade, pois fica desamparado pelas
diferentes instâncias:
Eu acho que ele tem aqui dentro todo um acompanhamento. O problema é quando ele sai, cumpre a pena e sai. Terminou a
pena, ele assina o alvará, a gente larga aqui na frente e ninguém quer saber de nada. Ninguém. Nem o judiciário, nem o
executivo, ninguém. [...] Terminou a pena, saiu na porta, sai mais perdido do que quando entrou e aí o que vai fazer?
(Entrevistado B)

O depoimento desse funcionário, o Entrevistado B deixa claro a contradição do sistema penitenciário e a sua lógica de
encarceramento, pois além de punir o sujeito pelo delito cometido durante o cárcere, continua a puni-lo com o desamparo após o
cárcere. A liberdade que deveria representar um recomeço de vida e novas possibilidades, passa a ser uma sucessão de portas
fechadas e de muitas dificuldades de recomeço, senão de retorno ao crime e ao encarceramento.
Para esse outro entrevistado, há uma questão séria que é a da rejeição da sociedade com o ex-preso, alguns deles tentam
a reinserção, mas quando se deparam com o preconceito e o fracasso diante da procura de emprego, a volta ao crime acaba sendo
a alternativa encontrada: “Normalmente, eles voltam a cometer crimes ou procuram emprego e não conseguem, pois são
rejeitados por serem ex-detentos. Tinha que ter alguma coisa, quando saírem da prisão, um encaminhamento, uma ocupação”.
(Entrevistado D).
O Entrevistado A percebe uma limitação muito séria nas condições desfavoráveis do município de São Luiz Gonzaga,
que muitas vezes não consegue sequer inserir quem está em liberdade: “[...] São Luis Gonzaga, [...] pelo que a gente sabe do
próprio município, é que é um município carente, pobre. Como oferecer frentes para quem está preso, se muitas vezes não se tem
para quem está em liberdade? É uma coisa muita complexa”. (Entrevistado A).
Para o entrevistado E tem a questão cultural, de ausência de recursos e de falta de perspectivas:
Uma é a cultura, ele já vem com uma cultura instituída, digamos que chega aqui aos 18, para ti conseguir refazer e colocar
isso de uma forma positiva para a vida, vai levar anos em cima disso, isso se tu tiveres todos os instrumentais a teu dispor,
ou que ele tenha acesso, e se não tiver, como é o limite de estar encarcerado, às vezes distante da família, e nem todos os
direitos dele está conseguindo garantir, então fica mais difícil ainda. Tem essa questão cultural, tem a questão da falta
mesmo de recursos, para que a pessoa consiga refletir, se tivesse uma outra forma de conseguir refletir aquele delito como
prejudicial para ele e ele tivesse uma perspectiva do que fazer depois, positiva, além daquela que ele está acostumado, assim
está aculturado no hábito dele. (Entrevistado E).

As narrativas das entrevistas sugerem que as limitações para a reinserção social são muitas, ficando espaços estreitos e
limitados aos caminhos de possibilidades. Nesse sentido, para o entrevistado A um desses caminhos possíveis poderia ser de se
fazer um pacto com o município, um protocolo de ação conjunto, onde o prefeito poderia instalar dentro da penitenciária uma
fábrica, por exemplo, confeccionado com a mão-de-obra prisional para ser aplicado no município. E com alguns presos, se
poderiam realizar trabalhos na comunidade; pois tem várias atividades que podem ser utilizadas e canalizadas para essa mão-de-
obra do preso. Segundo o mesmo entrevistado: “Pode sair das prisões pessoas com potenciais de trabalho muito grande, tudo é
uma questão de oportunidade, só tem que haver esse convênio entre prefeitura e sistema”. (Entrevistado A).
Para este funcionário já existem tentativas dessa monta em outros municípios do Estado Gaúcho no sentido de captar
esse apoio do poder local, da prefeitura, por meio de um trabalho da administração do estabelecimento penal.
O entrevistado D percebe como da alternativa a qualificação profissional, nesse caso, cursos profissionalizantes:
Seriam esses cursos profissionalizantes, pois é a única alternativa. Não para trabalhar como empregado, pois muitos deles
têm condições de saírem daqui e trabalharem como autônomos; um curso de eletricista, que é uma coisa que não precisa

727
correr em busca do emprego, pois muitas vezes os donos de empresa não querem empregar esses sujeitos que saíram da
prisão, mas trabalhando como autônomo, a pessoa mesmo consegue a sua clientela. Tem o caso de um marceneiro que saiu
da prisão, só tinha o maquinário que estava em casa, juntou dinheiro e comprou mais maquinários, hoje ele faz portas,
janelas, faz tudo e vão a casa dele procurar por serviços e ele nunca correu atrás. E ele começou aqui dentro da prisão a
fazer esse tipo de serviço. (Entrevistado D)

Esse entrevistado também comentou a respeito da inserção de um curso de informática no interior da PSLG, pois
segundo este, muitos dos detentos não conhecem um computador e essa seria uma proposta de inclusão digital dentro da
Penitenciária:
A gente sabe que é difícil para a sociedade, mas o papel dela é importantíssimo, tem que se dar oportunidade, tem que ter
alguma chance, porque senão como ele vai reconstruir? Porque a ressocialização se dá nesse momento, não tem como tu
ressocializar lá dentro. Nós [...] que vamos ressocializar o preso? Nós vamos dar condições para que eles tentem, para que
eles tenham novas perspectivas, mas que ele volte a se ressocializar quando ele tiver saindo, é lá fora que ele vai se
ressocializar, não tem como ressocializar uma pessoa fora da sociedade, é uma fase muito difícil à saída da prisão, o apoio
da sociedade, é difícil para os dois lados, para a sociedade também. (Entrevistado C)

A reinserção social foi percebida também como a reincerção ao mundo do trabalho, um grande desafio que exige
capacitação profissional para tal:
Pelo perfil do preso de São Luiz Gonzaga, a grande contribuição seria que ele conseguisse se inserir no mercado de trabalho
e que ele se capacitasse para isso, ele não precisasse do ‘vamos dar um emprego para porque ele é preso’, como se fosse
uma vantagem ou porque ele é um coitado, está estigmatizado de qualquer forma, mas que conseguisse se capacitar para
concorrer com todos os outros trabalhadores. Essa garantia que ele tem que é a garantia do sustento, para ele trabalhar,
porque a grande maioria dos nossos presos, salvo raras exceções, não estão qualificados para assumir trabalho nenhum. Só
de biscate, que vai ficar na ponta de chapa, quando a lavoura absorver, que é sazonal e é uma pequena quantia que eles
absorvem, porque a lavoura está toda mecanizada e aqui é uma região de lavoura, ou a saída é ir buscar fora uma oferta de
trabalho e ele não tem estrutura para pegar a família e ficar migrando, procurando trabalho. (Entrevistado E).

Criar junto à comunidade local políticas de prevenção ao encarceramento pode ser uma das estratégias que o
entrevistado E citou, conforme fragmento de entrevista a seguir: “A gente costuma indicar assim, porque faz parte do perfil do
preso aqui que seria a qualificação, a inserção no mercado de trabalho, que tivesse capacidade de concorrer e que tivesse
condições de manter o tratamento para a dependência, já que há uma incidência muito grande aqui dentro”. (Entrevistada E)
As respostas dos sujeitos respondentes ensejam mudanças de olhar e de postura, não somente dos gestores, técnicos e
demais operadores do sistema carcerário, mas de toda a sociedade brasileira para que mude o seu modo de julgar uma população
punida de muitas maneiras pelos delitos cometidos. A isso, é importante destacar o desejo demonstrado pelos sujeitos de buscar
trabalho para se reinserir na sociedade, a solicitação de um voto de confiança, o clamor insistente para que a sociedade pare com
preconceitos e discriminações em relação ao preso e ex-preso. As respostas provocam uma reflexão no sentido de se acreditar nas
possibilidades de mudança para que o “passado não condene” permanentemente e insistentemente o ex-preso e, a outra questão
que provoca uma reflexão, no mínimo, instigante, é a de que a justiça, no caso o cárcere, tira tudo do sujeito, quando ele não tem
chance nenhuma lá fora, julga-se que está preparado para voltar à sociedade e o preso sai perdido e o que acaba restando é o
crime. A questão que talvez precise ser discutida é: Será que é esse o saldo que a sociedade espera depois de tanta condenação ao
encarcerado?
Nessa linha, vale as sábias considerações do Entrevistado A, pois este convoca a sociedade inteira, todos os grupos
sociais a refletir sobre as oportunidades concedidas ao preso:
Não existe recuperação do ser humano sem o apoio de todos os grupos que fazem parte da sociedade, marcada pela
desigualdade social, na qual fazemos parte. Algumas tentativas são possíveis de serem modificadas e as pessoas não podem
esquecer nunca é que o preso faz parte da sociedade e do município. Quem vai decidir que tipo de gente vai ter naquele
convívio social é a própria sociedade; a polícia reprime, as cadeias seguram. Mas tudo é paliativo e quando retornar começa
tudo de novo. [...] (entrevistado A).

Realmente é preciso desmistificar o cárcere, promovendo o debate, indagando, discutindo e produzindo conhecimento
para que a sociedade seja capaz de entender o processo social que se estabelece nas relações sociais locais, produtoras de um
isolamento que promove cada vez mais violência e desigualdade social. Reverter o quadro crítico em que se encontra a sociedade,
mais do que punir os infratores que a pesquisa realizada mostrou a maioria são pobres, semi-analfabetos e sem qualificação
profissional, exige o fortalecimento do Estado em suas ações junto a comunidade e com políticas de inserção da sociedade em
geral.
Para tanto, exige-se romper com atuações isoladas, trazendo-se para a sociedade a consciência primordial de que
Segurança Pública é sim, questão de Polícia, mas não somente, é também da sociedade como um todo. Por outro lado, tem-se
clareza de que enquanto o Estado brasileiro continuar com níveis de desigualdades sociais tão extremas, desemprego e,
consequentemente, violência urbana, não serão os organismos repressores do Estado de maneira solitária, repressora e contensora

728
que irão combater as manifestações da questão social em suas diversas ramificações, pois estas exigem urgentemente ações
preventivas do Estado e da sociedade civil. Em outros termos, a segurança pública não pode continuar sendo pensada como uma
questão isolada de repressão e de contensão.
Uma das alternativas pode ser a de se investir em políticas de prevenção da violência e criminalidade, tais como: saúde,
educação, moradia e lazer para que os jovens não estejam postas à mercê do crime e do tráfico de drogas. Sendo assim, os
profissionais da área social, bem como, os operadores da Segurança Pública, de forma individual e coletiva, cabe-lhes o desafio
ético de difundir na sociedade práticas educativas e reflexivas que levem a um aprimoramento no trato da questão, principalmente
à juventude, que precisa aprender as lições básicas para viver na sociedade. Do contrário, a vida amarga da fome, da privação, da
violência, será a escola que lhes ensinará os referenciais básicos para ajudar reproduzir um clima de violência insuportável.

Considerações Finais
A partir da interpretação dos dados coletados é possível concluir que a penitenciária pesquisada precisa ser vista sob um
prisma heterogêneo, contraditório e complexo, que cumpre a função de conter uma massa social indesejável, o “lixo humano” da
sociedade. Por um lado reproduz, em menor escala, a violência das grandes prisões reafirmando o espaço de controle,
institucionalização de regras e comportamentos internos onde o que continua valendo é o sistema da “vingança privada”, por
outro lado, isola e afasta do convívio social o miserável da região das Missões gaúchas uma vez que a situação social e econômica
evidencia um significativo número de presos numa situação de extrema vulnerabilidade social com baixa escolaridade, sem
qualificação profissional e, que, não raras vezes, mesmo diante de uma lógica perversa, o cárcere, ainda passa a ser visto como um
lugar com melhores condições de estrutura, se comparado com seu próprio lar.
É fundamental uma sensibilização e desmistificação do espaço prisional, tanto para a comunidade carcerária como para
a comunidade “extramuros”, como algo que absorve o homogêneo. É necessário captar o cárcere dentro de sua heterogeneidade
que abarca pessoas que cometeram diversos delitos, portanto, uma diversidade de pessoas, com direito a serem vistos, também na
prática, como um ser humano, de terem novas oportunidades na sociedade e no mercado de trabalho.
O estudo indica que algumas questões precisam ser aprofundadas em outros estudos, bem como sugestões e proposições
ao estabelecimento penal pesquisado, tais como:
- A necessidade de se problematizar, debater, discutir, ouvir os sujeitos que trabalham nos estabelecimentos penais a
respeito das visitas de crianças e adolescentes no cárcere. Algumas questões a serem problematizadas: Como estas visitas devem
acontecer? Quando? Com que frequência? O que fazer para prevenir uma cultura de naturalização e banalização do espaço
prisional, no sistema familiar dos presos?
- A urgência de se discutir e problematizar a autorização judicial de adolescentes como visitadoras íntimas dos presos.
- A relevância de estudos e pesquisas posteriores que investiguem a incidência e alternativas de prevenção do suicídio
nos estabelecimentos penitenciários.
- A necessidade de sensibilizar a comunidade local para participar de modo efetivo e sistemático da construção de uma
rede de apoio, composta pela comunidade externa local, integrado, principalmente, pelo Ministério Público, Conselho Municipal
de Saúde, Conselho Municipal de Assistência Social, Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e prefeitura local.
- A necessidade de sensibilização e estabelecimentos de parcerias entre a população carcerária e a comunidade local
para instituição de grupos de auto-ajuda para tratamentos da dependência química no interior do estabelecimento penal.
Por fim, o ponto crucial da questão carcerária vai ao encontro da necessidade dos trabalhadores sociais trabalharem
numa perspectiva de sensibilização e desmistificação do espaço prisional como algo que absorve o homogêneo. É essencial captar
o cárcere dentro de sua heterogeneidade que abarca pessoas muito distintas entre si, ou seja, não há uma identidade de grupo nos
sujeitos encarcerados, o que eles têm em comum é o fato de serem pobres, jovens, semi-alfabetizados ou não alfabetizados e
depois do cumprimento da pena, passam também a serem discriminados e etiquetados na sociedade. Por isso, o encarceramento
precisa estar na agenda prioritária da sociedade como um todo.

Referências
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729
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Martinelli, M. L. (1994). O uso de abordagens qualitativas na pesquisa em Serviço Social. In: M. L. Martinelli. O uso de
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Estudos e Pesquisa sobre Identidade – NEPI, n.1.
RIO GRANDE DO SUL. Portaria Nº145-SSP/RS, de 28 de novembro de 2007 - Regulamento Geral para ingresso de visitas
materiais em estabelecimentos prisionais da Superintendência dos Serviços Penitenciários. Estado do Rio Grande do Sul,
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RIO GRANDE DO SUL. Regimento Disciplinar Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul. Estado do Rio Grande do Sul,
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Soares, L. E. (2004). O drama da invisibilidade. Documento disponibilizado pelo autor (Mimeografado).

Da atualidade e da oportunidade do tema "Tráfico de Mulheres para fins de


exploração sexual"
Tânia Teixeira Laky de Sousa
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]

Resumo: No momento presente existe uma temática, que continua válida e oportuna, que trata do "Tráfico de Pessoas para fins de exploração
sexual comercial", tanto no Brasil, na Europa e, certamente, no mundo. O presente trabalho tem como fulcro pesquisar e apresentar as violações
dos direitos alienáveis que sofre a mulher sob condição de tráfico, a saber: o direito de não ser escravizada e não ser submetida à servidão
involuntária ou à condição praticamente de escravidão; o direito de estar livre de toda forma de exploração; de estar livre de um tratamento
desumano e cruel; de estar livre de todas as formas de violências e torturas físicas e psicológicas; o direito de estar livre da discriminação baseada
em gênero; o direito à saúde; o direito à garantia da liberdade de ir e vir; o direito à garantia de exercer sua personalidade, sua aptidão legal, para
fazer valer direitos e para obter obrigações.
Dada a importância, atualidade e oportunidade do tema ora estudado, analisaremos a situação da mulher traficada que perde todas suas liberdades,
garantidas por lei e em lei, em especial perde sua cidadania e a sua dignidade como ser humano, e enquanto sujeito de direitos.

Deparamo-nos com uma notícia, em 9 de outubro de 2008, intitulada Deputados podem investigar na Espanha, feita pela
jornalista Marília Assunção correspondente de Brasília para o jornal O Popular, o mais importante jornal goiano, que dizia: “Uma
comissão de deputados federais pode fazer uma investigação na região de Badajoz, na Espanha, a respeito da imigração e da
exploração sexual forçada de mulheres de Goiás e de outros Estados do Brasil nesta região, que fica na fronteira com Portugal.
Foi o que propôs ontem a deputada federal Íris Araújo (PMDB-GO) que presidiu uma audiência pública da Comissão de
Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, convocada para debater o problema da imigração que
alimenta redes de tráfico de seres humanos. Na audiência, a série de reportagens feitas pelo POPULAR em Portugal e Espanha
sobre a escravidão sexual de goianas que imigraram – em Badajoz as autoridades estimam que 80% das brasileiras são de Goiás
-, foi comentado e considerado um importante exemplo, ‘uma contribuição atualizada acerca do funcionamento dos esquemas de
exploração’, frisou Íris. A audiência foi solicitada pela deputada goiana após a publicação da série em junho, a segunda do
jornal na Europa, a primeira foi em 2000. Participaram membros da comissão, de organizações não-governamentais e
convidados de órgãos públicos e privados”, no portal do Ministério Público do Estado de Goiás.
Já em setembro de 2006, a Polícia Federal brasileira desarticulou o tráfico de pessoas, em ações realizadas nos estados
de Goiás e São Paulo e na Espanha, a PF prendendo 18 pessoas que foram acusadas de participar de envio do mulheres para o
exterior.
Duas quadrilhas desbaratadas e acusadas de aliciar e encaminhar mulheres de Goiás para prostituição na Espanha foram
desarticuladas naquela ocasião em duas ações simultâneas desenvolvidas pela Superintendência da Polícia Federal (PF) em Goiás.
As operações efetuadas pela polícia brasileira receberam os nomes Castela e Madri e foram desencadeadas em parceria com a
Embaixada da Espanha. Naquela ocasião, dezoito pessoas haviam sido presas suspeitas de tráfico de mulheres e de participação
no esquema. Dessas, nove foram capturadas em Goiás, uma em São Paulo e oito na Espanha. Os policiais também detiveram 16
mulheres que haviam sido aliciadas e que trabalhavam em boates naquele país da Europa. Todas foram deportadas.
Entre as pessoas que foram presas está o espanhol Aquilino Gonzales Iglesias, apontado como o “chefe do esquema” e
proprietário das boates na Espanha onde as vítimas trabalhavam. A brasileira Magna Pires da Costa, a Karen, é o braço direito do

730
espanhol, tida como a principal aliciadora do grupo em Goiás e acusada de contratar serviços de outras aliciadoras em Goiânia,
Minaçu e Campinorte, e Maria Corina Fernandes, mãe de Mônica Xavier Fernandez, também considerada aliciadora. O delegado
Luciano Dornelas da Polícia Federal de Goiânia, que coordenou as operações, revelou que o grupo integrado por Magna Costa
atuava há pelo menos quatro anos aliciando mulheres para fins de tráfico de exploração sexual. A quadrilha, segundo o mesmo
delegado, seria responsável, no ano de 2005, pelo embarque de cerca de cinquenta mil mulheres brasileiras para a Espanha.
A ação da Polícia Federal brasileira pode ter levado à desestruturação dos dois grupos acusados de tráfico de mulheres,
em 2004 e 2005. Naquela oportunidade, foram presas em Natal duas mulheres que seriam responsáveis pelo tráfico e detidas sete
jovens cooptadas para trabalhar como prostitutas. Segundo informações do delegado Luciano Dornelas, a PF do Rio Grande do
Norte constatou que o grupo tinha ramificações em Goiás e atuava com predominância na capital e em municípios do norte do
Estado. A princípio a Polícia Federal em Goiânia deflagrou a chamada Operação Castela. No desenrolar daquela investigação, os
policiais identificaram outra vertente do bando e desencadearam outra investigação, chamada Operação Madri.
A aliciadora Magna Costa, conforme o delegado Dornelas, tem atuação comparada à das irmãs Zenilde e Zenaide
Borges, presas em 2005 e condenadas a 11 anos e 10 meses de prisão. De acordo com as investigações, Magna Costa recebia
cerca de 800 reais de comissão do espanhol pelo aliciamento e embarque de cada mulher para a Espanha. As jovens, segundo a
Polícia Federal, eram atraídas por Patrícia Miranda de Moraes, que residia em Goiânia, e por Edite de Souza Lício, também
conhecida como Suzi, que trabalhava para Magna Costa em Minaçu, cidade do interior de Goiás. Os policiais federais, no
desenvolvimento das investigações, também apuraram naquela ocasião que cada uma das mulheres que ia para a Espanha chegava
àquele país com uma dívida contraída de 4 mil euros referentes a passagens, roupas, alimentação e hospedagem.
Segundo a Polícia Federal em Goiás, uma das principais colaboradoras de Aquilino Gonzáles, a atual mulher dele Leila
Márcia de Oliveira Ribeiro, também foi presa naquela operação. Com a quebra do sigilo bancário do acusado na Espanha,
revelou-se que ele fez remessas de dinheiro no Brasil para Magna Costa e Leila Ribeiro. Cada uma das jovens que atuava como
prostituta, segundo as investigações, recebia 50 euros por programa para fins de exploração sexual, a prostituição. O delegado Dr.
Luciano Dornelas disse que não há dados sobre o número de programas feitos por dia por essas mulheres traficadas.
As ações para a prisão dos acusados de tráfico de mulheres no Estado de Goiás tiveram início às 6 horas na cidade de
Goiânia, e nas cidades do interior de Goiás: Minaçu e Jussara. A aliciadora Magna Pires da Costa foi presa na casa dela no Setor
Sudoeste da capital goianiense. No local, os policiais apreenderam o carro dela, um Ford EcoSport, computador, vários
comprimidos do remédio Citotec - usado indevidamente para provocar aborto - e formulários de receita para medicamentos
especiais, assinados em branco. Nessa ocasião também foram presas nas três cidades acima declinadas Mônica Geralda Costa,
Leila Márcia de Oliveira e Silva, Vânia Aparecida Dias, Divina Eliente Oliveira dos Santos, Patrícia Miranda de Moraes, Edite de
Souza Lúcio e Kátia Geraldina Gonçalves. Segundo o Dr. Luciano Dornelas, Kátia Geraldina Gonçalves estaria repassando
informações da conta corrente de Leila Márcia para Magna Costa sem autorização judicial.
Na cidade interiorana de Goiás, Jussara, os policiais federais prenderam, naquela ocasião, Maria Corina Fernandes,
também acusada de aliciamento e tráfico de mulheres. As investigações constataram que ela exigia que as jovens assinassem
Notas Promissórias, consideradas título cambiário em que seu criador assume a obrigação direta e principal de pagar a soma
constante no título. Sendo assim, a nota promissória nada mais era do que uma promessa de pagamento antes do embarque para a
Espanha, e para sua emissão eram necessárias duas partes, o emitente ou subscritor, criador da promissória no mundo jurídico, e
o beneficiário ou tomador, que é o credor, nesse caso a aliciadora do título. Duas agências de turismo estiveram diretamente
envolvidas no esquema. Na Espanha, as prisões foram efetuadas nas cidades de Orense e Leon. Apesar de residir naquele país, o
espanhol Aquilino Gonzales foi capturado no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. O delegado Luciano Dornelas informou
que, ao saber da ação policial na Espanha, ele fugiu para o Brasil. Acreditamos que ele crê na impunidade tão comum aqui no
Brasil.
Dados apontam que há cerca de setenta mil brasileiras trabalhando como prostitutas em países latino-americanos, na
Europa, América do Norte e Japão. A informação faz parte do relatório sobre a situação da população mundial, publicado pelas
Nações Unidas (ONU), e que destaca a migração de mulheres no mundo. Segundo o relatório da ONU, o tráfico de mulheres para
exploração sexual é uma das atividades ilegais mais lucrativas e só perde para o contrabando de armas e de drogas.

O Fundo da ONU para População indica que entre 600 mil e 800 mil pessoas são alvo de tráfico no mundo todos os
anos, e a tendência é aumentar. Pode-se afirmar que dessas vítimas 80% são mulheres e meninas que acabam em trabalhos sexuais
ou como domésticas, escravas em pleno século XXI. A Ásia foi tida como o local que mais sofre com esse fenômeno. Nessa
região, 225 mil mulheres seriam alvos do tráfico todos os anos. Número altamente vergonhoso e que nos deixa indignados.
Os estudos que falam desse fenômeno contemporâneo na América Latina, utilizam dados coletados pelo Departamento
de Estado norte-americano para alertar que cerca de 100 mil latino-americanos são vítimas do tráfico a cada ano. É sabido que o
maior número de pessoas viria do Brasil, seguido por Colômbia e República Dominicana, segundo os dados de Washington
compilados pelas Nações Unidas.

731
Para a ONU, o tráfico de pessoas é o maior exemplo do “lado negro da globalização”. O fenômeno é gerado por uma
demanda cada vez maior e alimentado pela pobreza e desemprego nos países de origem das vítimas. O fluxo de mulheres e
meninas é fonte de lucros milionários para aqueles que exploram o corpo da mulher como uma mercadoria. Segundo as
estimativas do relatório da ONU, o tráfico de pessoas movimenta por ano mais de US$ 32 bilhões e mais da metade desse
dinheiro fica nos países ricos, para onde são levadas as vítimas. Há que se registrar aqui que, diante do grave problema, a ONU
tem pedido que os governos tomem medidas para proteger a população feminina que migra.
Sabe-se que o tráfico de pessoas tem se tornado, nas últimas décadas, um problema de dimensões cada vez mais
preocupantes. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) assinalam que, durante o ano de 2005, o tráfico de pessoas
fez aproximadamente 2,4 milhões de vítimas. A OIT estima que 43% dessas vítimas sejam subjugadas para exploração sexual,
sendo que 98% são mulheres, e 32% para exploração econômica da mão-de-obra. O tráfico de pessoas é também uma das
atividades criminosas mais lucrativas, podendo o lucro anual chegar a mais de 32 bilhões de dólares. O Levantamento do
Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC) mostra também que, para cada ser humano transportado de um
país para outro, o lucro das redes criminosas pode chegar a mais de US$ 30 mil por ano.
Daí entendermos que o tráfico de pessoas não é apenas um delito, é causa e consequência de intoleráveis desrespeitos
aos direitos humanos. É uma ofensa e violam os seguintes direitos inalienáveis: o direito de não ser escravizado e,
consequentemente, não ser submetido à servidão involuntária ou à condição praticamente de escravidão, como se fosse rês; o
direito de estar livre de exploração; o direito de estar livre de um tratamento cruel e desumano; o direito de estar livre de todas as
formas de violência e torturas físicas e psicológicas; o direito de estar livre da discriminação baseada em gênero; o direito à saúde;
a garantia da liberdade de ir e vir.
Uma das pesquisas mais importantes e de abrangência nacional, no Brasil, foi a Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres,
Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial – PESTRAF – realizada em 2002. Esse estudo apontou a
existência de 241 rotas de tráfico interno e internacional de crianças, adolescentes e mulheres brasileiras, mostrando a gravidade
do problema no Brasil.
O Congresso Nacional, através da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), conduziu trabalhos significativos,
em 2003, objetivando investigar as situações de violência e as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no país. Das
diversas ações realizadas pela CPMI, entre elas reuniões e audiências públicas, resultou um relatório final que contém uma série
de proposições legislativas, baseadas nas conclusões das investigações feitas, algumas das quais já foram contempladas nas
alterações do Código Penal Brasileiro e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Hazeu (2007), ao falar das pessoas traficadas, afirma:
“A exploração do seu trabalho garante o funcionamento de setores econômicos que lucram e não conseguiriam funcionar
com trabalhadores livres, que exigem a garantia dos seus direitos. O mercado de sexo, o trabalho doméstico, a confecção de
roupas baratas, a coleta agrícola, etc. sustentam-se na exploração de estrangeiros sem direitos e impedidos de ir e vir. Os
governantes não contam com seus votos e sim com aqueles que se aproveitam deles, como os exploradores e consumidores
(HAZEL, 2007).”1

Concordamos com o autor acima, pois daí resulta a invisibilidade da pessoa traficada, tanto no local de origem quanto
no local de destino, porque, se essa pessoa não pode votar, ou seja, exercer a sua cidadania, está sendo usada como “objeto de
direito”, em situação de ilegalidade. A mulher traficada perde a sua liberdade e a sua cidadania: ter direito a uma vida digna, à
igualdade perante a lei, a ter direitos civis respeitados. E nunca poderá participar do destino da sociedade em que está inserida:
votar, ser votada, ter direitos políticos. Sabemos que os direitos políticos e civis não asseguram a democracia sem os direitos
sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho honrado, ao
salário justo, à saúde, a uma aposentadoria digna para garantir-lhe uma velhice tranquila. Dessa forma entendemos que “exercer a
cidadania em sua plenitude é ter direitos políticos, civis e sociais e, por outro lado, cumprir todos os deveres que lhe são
impostos, na forma da lei”, conforme ensina-nos Pinsky (2003).2
Isso posto, a pessoa traficada de quem falamos perde a sua visibilidade, porque está em situação de ilegalidade no país
de destino, e passa a ser “objeto de direito” de traficantes, que violam todos os seus direitos como pessoa humana, deixando,
assim, de ser sujeito de direitos.
Essas pessoas traficadas deverão ter tratamento justo, seguro e não–discriminatório como “vítimas”, além da reinserção
social, e adequada assistência consular no país onde estiverem traficadas, deverão também ter proteção especial e acesso à Justiça.
Há que se ressaltar que a denominação “vítimas” aplica-se não só aos cidadãos brasileiros, mas a todos e quaisquer cidadãos
estrangeiros que são traficados para o Brasil, afinal este é considerado um país de destino, trânsito e origem para o tráfico.

1
Marcel HAZEL, Políticas Públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: a quem interessa enfrentar o Tráfico de Pessoas? Artigo escrito para a Política
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, do Ministério do Estado de Justiça, fev. de 2007.
2
Jaime PINSKY, História da Cidadania. Revista Espaço Acadêmico, Ano II, nº 23, passim.

732
Estudos de Casos – “deportados” e “não admitidos”
É necessário, aqui, delimitar o que entendemos pelos termos que serão adotados nos Estudos de Casos. O termo
“deportado” será aqui aplicado com a seguinte idéia ou noção jurídica de deportação, que é o ato que visa devolver o estrangeiro,
consiste na sua saída compulsória. Este ato fundamenta-se no fato de que o estrangeiro entra ou permanece irregularmente no
território nacional, ou por estar com o passaporte vencido, ou por estar portando documento falso. Com a deportação, não se pode
falar que decorreu de prática de delito no território nacional, o que na verdade houve foi a não observância aos cumprimentos dos
requisitos objetivos e legais, exigidos para entrar, permanecer ou ficar naquele país.
Por outro lado, o termo “não admitido” será aqui aplicado com fulcro no art. 11º. do DL 244/98, norma portuguesa,
que nos orienta sobre o “cidadão estrangeiro não admitido” em que a recusa de entrada encontra guarida no artigo acima e tem os
seguintes pressupostos: não cumprimento cumulativo das condições de entrada (passaporte, visto, etc.), e perigo ou grave ameaça
para a ordem pública, segurança nacional ou relações internacionais de EM da EU ou da CAAS. A competência será do SEF, com
base no art. 18º, do DL 244/98. As consequências, observando o art. 22 do mesmo diploma legal, serão: reembarque no prazo de
48 horas ou manutenção em centro de instalação temporária (Lei 34/94, de 14 de setembro/zona internacional do aeroporto),
determinado pelo juiz (DL85/2000, de 12 de maio).3
De acordo com Neves Miranda:
“A Polícia Federal brasileira está incumbida por determinação constitucional de executar os serviços de Polícia Marítima
Aérea e de Fronteiras, o Departamento de Polícia Federal encontra no setor aeroportuário brasileiro, senão a mais
importante, estratégica e diversificada, uma de suas principais áreas de atuação. Com efeito, é na área de atuação das SFTI
(Seção de Fiscalização do Tráfego Internacional) que o DPF exerce plenamente seu desiderato de resguardar a União da
incidência dos diversos atos ilícitos sob sua responsabilidade apuratória, incluídas as diversas medidas preventivas e
repressivas cujo rol normativo consubstancia a síntese das medidas de Segurança Pública de sua competência exclusiva com
os ditames da Soberania Nacional. Tudo isto, é claro, em sintonia com as normas internacionais a que o Brasil está
submetido por força dos diversos Tratados e Convenções de que é signatário.”4

Os Estudos de Casos que apresentaremos foram realizados pela ASBRAD – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
DEFESA DA MULHER, DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE, respeitável Organização Não-Governamental, localizada no
município de Guarulhos – São Paulo, tendo como parceiros o Ministério da Justiça, o Governo do Estado de São Paulo, a
Fundação Casa e outros que fizeram a referida pesquisa no órgão da Polícia Marítima e de Fronteiras, da Polícia Federal
Brasileira, responsável pelos recebimentos dos “deportado(as)” e “não admitidos(as)”. Essas pessoas regressaram de outros países
e desembarcaram no Aeroporto Internacional André Franco Montoro, em Cumbica, Guarulhos, São Paulo, e em outros aeroportos
nacionais. Os dados abaixo foram disponibilizados pela Polícia Federal:
O número de “deportados(as)” e “não admitidos(as)”, vindos de diversas cidades européias, que chegaram ao Brasil, no
ano de 2004, foi de 22.500 pessoas;
Nos aeroportos nacionais de Belém, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre, desembarcaram 7.500 pessoas, neste
período;
Das 22.500 pessoas que retornaram para o Brasil, 15.000 delas desembarcaram no Aeroporto Internacional André
Franco Montoro, em Guarulhos, sendo que 4.500 eram mulheres, ou seja, 33%.
A ASBRAD realizou a primeira pesquisa de campo no Aeroporto Internacional de Guarulhos, de 12 de março até 03 de
abril de 2005, ou seja, durante 22 dias. A cobertura de vôos com concentração de “deportados(as)” e “não admitidos(as)” era entre
5h30min e 10h30min e entre 16h30min e 21h30min. A ASBRAD realizou essa pesquisa para detectar possíveis conexões entre
pessoas “deportadas” ou “não admitidas” com o trabalho sexual e o tráfico internacional de pessoas. Os objetivos do trabalho
proposto pela ASBRAD foram: traçar o perfil social do universo de pessoas “deportadas”, entre elas mulheres e transgêneros;
apreender as motivações que as conduziram a viajar; esquadrinhar os eventos em torno da deportação; identificar situações
vinculadas a trabalho sexual; identificar casos de pessoas traficadas nesse universo.
A pesquisa da ASBRAD foi exploratória, com abordagem sócio-antropológica, e utilizou-se da metodologia quantitativa
através de aplicação de questionários fechados: amostragem: 226 pessoas foram escolhidas e foram aplicados 175 questionários,
houve aproximadamente 22% de recusa; metodologia qualitativa por observação, entrevistas semi-estruturadas, com perguntas
abertas, foram feitas oito entrevistas, sendo que cinco delas foram gravadas. A equipe de campo foi formada por oito
pesquisadores, com o apoio permanente da ABRAD.
Esta pesquisa apresentou os seguintes resultados iniciais, no universo integrado por “deportados(as)” e “não
admitidos(as)” , com base nos 175 questionários aplicados: a maioria absoluta do universo é integrado por “não admitidos(as)” ,
cerca de 76%, houve poucos casos vinculados a não documentação ou documentação incompleta, no total aproximadamente de

3
DL244/98, de 8 de agosto.
4
Marcelo Baeta Neves Miranda, disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1603.

733
8%. A maioria absoluta desse universo são mulheres, cerca de 92%. A maioria absoluta saiu pela primeira vez do Brasil, cerca de
69%. Entre as “deportadas”, a maioria absoluta, cerca de 51% estavam com prazo de permanência vencido. As cidades de retorno
das “deportadas” estão assim dispostas, em ordem decrescente: Lisboa – cerca de 26%, Paris – cerca de 15%, Madrid – cerca de
11%, Milão – cerca de 10% e Londres – cerca de 10%. Os países de destino estão dispostos em ordem decrescente: 1) Lisboa
(cerca de 34%), 2) Espanha (cerca de 27%), 3) Inglaterra (cerca de 12%) e 4) Itália (cerca de 11%). As faixas etárias eram, na sua
maioria, de pessoas entre 18 e 24 anos (cerca de 37%) e entre 25 e 30 anos (cerca de 27%). Dessas pessoas, cerca de 38% se
declararam de cor branca. Quanto à escolaridade, cerca de 45% possuíam ensino médio completo, cerca de 16% tinham o ensino
fundamental completo , 12% declararam ter o ensino médio incompleto e 12% disseram ter o ensino superior incompleto. Quanto
ao estado civil, a maioria não tinha cônjuge ou companheiro, cerca de 63,3%, o restante fazia parte do rol de solteiras, viúvas,
divorciadas, desquitadas. A maioria dessas pessoas declararam que não tinham filhos, totalizando cerca de 54%, das restantes,
tinham 1 filho, cerca de 42%; tinham 2 filhos, cerca de 34%; tinham 3 filhos, cerca de 16%. Ao responderem quanto à
naturalidade, cerca de 23% disseram que nasceram em Goiás; 15% em São Paulo; 13% no Paraná e 13% em Minas Gerais.
Quanto à renda individual, foram declarados de 1 a 3 salários mínimos, cerca de 43%; de 4 a 10 salários mínimos, cerca de 25% e
sem rendimentos, cerca de 16%.
Quanto à vinculação com intermediários e com a questão da prostituição, a maioria decidiu viajar por ter sido convidada
ou contatada por alguém, cerca de 56%. A nacionalidade da pessoa que a convidou ou a contatou é majoritariamente brasileira,
mas há cerca de 41% de pessoas estrangeiras envolvidas no caso. Dessas pessoas entrevistadas, um grupo relativamente reduzido
declarou ter contraído dívidas com quem o ajudou a viajar, cerca de 24%. A maioria confirmou que teve “ajuda” para viajar,
cerca de 66%, e as demais, cerca de 33%, confirmaram ter recebido só as passagens.
Quanto às “deportadas”, cerca de 16% declarou ter trabalhado como prostitutas, no exterior, e apenas uma declarou que
foi forçada a exercer a prostituição.
A segunda pesquisa de campo teve abordagem qualitativa e durou um período de dois meses. Houve entrevistas em
profundidade com nove agentes vinculados ao trabalho com prostituição e com migração ilegal. Essas entrevistas em
profundidade foram realizadas com mulheres e com “trans”, no total de nove pessoas, que ofereciam serviços sexuais em
Barcelona, Bilbao e Madri. Foram feitas entrevistas de controle com duas brasileiras que, inseridas nas mesmas redes de relações
que as anteriores, não ofereciam serviços sexuais. Enfim, foram feitas entrevistas de controle com dois clientes de serviços
sexuais de nacionalidade espanhola. Houve trabalho de observação em âmbito de prostituição, em clubes e ruas, e em entidades
que oferecem apoio a trabalhadoras do sexo.
Podemos concluir que todas essas 22.500 pessoas que foram reencaminhadas ao seu país de origem precisam ser
tratadas como sujeitos de direitos: direito ao trabalho digno, direito de não ver suas liberdades violadas, direito de não ser
submetido a tratamento desumano e degradante, direito à dignidade, etc. E o mais importante é reconhecer o trabalho como direito
universal. Por outro lado, compete ao Governo Brasileiro, através de implantação de Políticas Públicas, desenvolver programas de
geração de emprego e renda para grupos, nas regiões mais vulneráveis, como por exemplo, no Estado de Goiás, que fica no
coração do Brasil e é local de onde mais saíram cidadãs brasileiras para tentar a sorte em outros países, conforme demonstrou a
pesquisa da ASBRAD.
Por outro lado, tem que haver o aprimoramento das ONG’s- Organizações Não Governamentais, com as “vítimas” que
sofreram esse tipo de violência, pois o trabalho multidisciplinar com essas pessoas “deportadas” ou “não aceitas” poderá levar a
polícia a desbaratar essas organizações criminosas de tráfico internacional para fins de comércio sexual, sem deixar de enfocar o
trabalho no âmbito educacional, com campanhas de esclarecimento em escolas e com a distribuição de material informativo aos
que viajam ao exterior e aos grupos mais vulneráveis.
A sociedade civil também poderá encampar esta luta, ajudando na conscientização de todos os brasileiros, pois o tráfico
de seres humanos existe, é real e afeta não somente as classes sociais menos favorecidas, a ameaça é para todos,
independentemente de sexo, cor, idade e classe social.
Sérgio Suiama, apresentou várias propostas, que elencaremos aqui. Há ainda mais propostas para erradicar o crime de
tráfico de pessoas, entre elas a de melhorar o atendimento consular aos cidadãos brasileiros radicados no exterior, proposta que
está sendo discutida no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. Os agentes da Polícia Federal estão sendo capacitados
para atuarem no controle das fronteiras, na expedição de passaportes e nos aeroportos brasileiros. Tem havido o aprimoramento
dos mecanismos de cooperação internacional em matéria de natureza penal tornando, assim, mais céleres as comunicações entre
os órgãos envolvidos nas atividades de inquisição.5

5
Sérgio Gardenghi SUIAMA, Tráfico Internacional de Pessoas, Procuradoria da República, São Paulo, 2006.

734
Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DA MULHER, DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. Programa de Assistência a
Crianças e Adolescentes Vítimas de Tráfico para Fins de Exploração Sexual, trabalho encerrado em Setembro/2007, sites:
www.partners.net e www.asbrad.com.br
BONAVIDES, Paulo & VIEIRA, R. A. Amaral. Textos políticos da história do Brasil. Fortaleza: Imprensa Universitária da
Universidade Federal do Ceará, s/d, p. 556-562 In: CALDEIRA, Jorge e outros. CD-ROM Viagem pela História do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras,1997.
BRASIL. Relatório da Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
Brasília:UNICEF/SEDH-PR, 2004. (Mimeo).
HAZEL, Marcel. Políticas Públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: a quem interessa enfrentar o Tráfico de Pessoas?
em: Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas , do Ministério do Estado de Justiça, fev. de 2007.
LEAL, Maria Lúcia. Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no
Brasil.Brasília: PESTRAF/CECRIA, 2002.
MIRANDA, Marcelo Baeta Neves. Atuação da Polícia na área aeroportuária. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1603
ONU. Caderno. ”A iniciativa global contra tráfico de pessoas”. UNIFEM, UNFPA, UNICEF. Brasília, 2007.
PINSKY, Jayme. História da Cidadania. Revista Espaço Acadêmico, Ano II, nº 23, passim.
SEVERINO, Antônio Joaquim, Metodologia do Trabalho Científico. 23. ed. rev. e atual. - São Paulo: Cortez, 2007.
SUIAMA, Sérgio Gardhenghi. Tráfico Internacional de Pessoas. Procuradoria da República São Paulo, 2006.
TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das mulheres? São Paulo: Brasiliense, 2006.
DL244/98, de 8 de agosto, disponível em: http://www.fd.unl.pt/docentes docs/ma/CUS_MA_1127.ppt#271,15,Imigração ilegal
(art. 136.º, n.º 1 DL 244/98)

Eco da violência urbana: o cotidiano das crianças trabalhadoras do narcotráfico


brasileiro
João Diogenes Santos
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
[email protected]

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados de pesquisa sobre o universo das crianças e adolescentes que trabalham para
o narcotráfico no município de Vitória da Conquista - BA. A utilização do trabalho infanto-juvenil no tráfico vem crescendo no país e se espalha
pelas cidades médias do interior do Brasil, e Vitória da Conquista é um exemplo desse fenômeno. Esses trabalhadores são crianças e adolescentes,
oriundos das classes dominadas, que ocupam postos hierárquicos do tráfico, seja como “olheiros (observadores), “aviões” (entregadores),
“vapores” (vendedores), “gerente da boca” (uma espécie de administrador dos negócios ilícitos do tráfico), ou até mesmo como seguranças
armados. Verificamos que algumas desses trabalhadores precoces buscam essas atividades como um meio perverso de sobrevivência, pois em seus
cotidianos enfrentam as diversas formas de violência, que vão desde o não-acesso às condições elementares de sobrevivência ao cerceamento da
“condição humana”. Essa realidade de exploração e violência é entendida por meio das reflexões de Hannah Arendt, Giorgio Agamben, Francisco
de Oliveira, entre outros. Para entender tal universo, examinamos as ocorrências registradas no Conselho Tutelar do citado município e
entrevistamos crianças e adolescentes envolvidos nessa atividade ilícita.

A realidade vivida por uma significativa parcela da população infanto-juvenil, as crianças e os adolescentes em situação
de risco pessoal e social1, agravou-se de forma insustentável. Tal situação intensificou devido à conjugação da desigualdade
econômica, acentuada nos últimos anos pelo neoliberalismo, com uma cultura política, erigida ao longo da formação histórica do
país, que persiste em projetar seus traços no presente, e delineia um processo de negação quase permanente dos direitos,
ensejando, assim, um grupo social de “vulneráveis”, ou “descartáveis” que, segundo as análises de Loic Wacquant (2001), estão
condenados a uma “vida de riscos”. Essas crianças e esses adolescentes experimentam em seu cotidiano várias formas e
manifestações de violência, que vão desde a violência no âmbito doméstico à violência estrutural, sem acesso às condições
elementares de sobrevivência (alimentação, saúde, moradia, educação, transporte, lazer, entre outras)

1
O termo situação de risco pessoal e social “refere-se às crianças e aos adolescentes, oriundos das classes subalternas, que são mais vulneráveis à violência, por não
terem acesso aos bens materiais e culturais e nem às garantias dos direitos, estabelecidos legalmente”. Neste sentido, apresentam-se aqui, em consonância com o
Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, as principais situações de risco: “abandono da família, abuso, negligência e maus tratos nas famílias e nas instituições;
trabalho abusivo e explorador, dependência de substâncias químicas e álcool, violência e exploração sexual, conflito com a lei, em razão de cometimento de atos
infracionários, entre outras”.

735
Essa realidade revela a costumeira omissão do Estado, que não implantou, ou o fez de forma restrita, políticas de
atenção integral às crianças e aos adolescentes. Em vez disso, oferece a esse contingente populacional o descaso, a negligência, o
espancamento, a tortura, as agressões físicas e até a morte. Desta forma, uma grande parcela da população infanto-juvenil, oriunda
das classes subalternas, convive em condições insustentáveis à condição humana, e muitas necessitam trabalhar para promover ou
contribuir com o orçamento familiar.
O caráter do capitalismo permite que haja condições sociais para que esse contingente de força de trabalho seja incluído
no processo de valorização do capital, podendo ser por meio das Estratégias Perversas de Reprodução da vida (SANTOS
FERREIRA, 1998).
Estamos denominando de estratégias perversas de reprodução da vida, como formas precárias de sobrevivência, que
estão submetidas ao contingente de desempregados. Essas formas precárias de sobrevivência tornam a única maneira que esse
contingente possui para objetivar a sua existência.
Tais estratégias perversas caracterizam pelas condições precárias de trabalho, as que degradam ainda mais a condição
humana dos trabalhadores. No entanto, é por meio dessas condições que os componentes das classes de baixo poder aquisitivo,
em especial as crianças e os adolescentes, necessitam para garantir a sua sobrevivência. Essa realidade está intimamente ligada à
violência, em que o castigo, a extorsão, os salários baixos, a falta de direito trabalhista, entre outros compõem o cotidiano desses
trabalhadores.
São inúmeros contextos do trabalho infanto-juvenil2·: no espaço doméstico, nas ruas das cidades (engraxates,
carregadores, guardadores de carro, flanelinhas, vendedores, exploração sexual, etc.), na construção civil, nas oficinas de carros,
nas fábricas, no meio rural, entre outros espaços. Entre esses inúmeros contextos, selecionamos para analisar neste artigo a
exploração do trabalho infanto-juvenil no narcotráfico, que é marcada pelas várias formas de violência.
Tal realidade trágica vem sendo tecida em um contexto de extrema desigualdade, intensificado nos últimos anos por
uma acumulação capitalista comandada pela ideologia neoliberal, que se articula com traços persistentes de uma sociabilidade e
uma cultura política excludentes. Na tentativa de refletir sobre a problemática destacada, o presente artigo parte da compreensão
de que o fenômeno da violência articula de forma dialética às questões econômicas, às práticas políticas e culturais, urdidas no
processo histórico da formação brasileira. Tal premissa orienta o estudo desta problemática.
Inicialmente, compreende-se a violência como um fenômeno heterogêneo e multifacetado, implicado nos movimentos
contraditórios do capitalismo. O capital para se reproduzir pressupõe um processo econômico, político e social desigual. Essa
lógica, historicamente constituída, produziu a exploração, a fome, a pobreza e a miséria que marcam a “questão social”.
Ao longo das últimas décadas, a dinâmica do capitalismo acarretou transformações econômicas, políticas e sociais que
intensificaram as condições precárias desse numeroso contingente populacional. São pessoas que convivem no seu cotidiano com
o desemprego estrutural, a discriminação, a falta de infra-estrutura básica (água, eletricidade, pavimentação, iluminação,
saneamento básico, etc), a concentração da posse da terra, a escassez de moradia, os salários baixíssimos, as péssimas condições
de trabalho, o terror e o medo, entre outras tragédias. Marcada, portanto, pela desigualdade e injustiça, pode-se dizer que essa
realidade produz a existência de uma população de “vulneráveis”. Francisco de Oliveira (1995) assinala, em artigo elaborado para
subsidiar discussões na Cúpula Social realizada em Copenhague, em 1995, que o aspecto econômico, ainda que possa ser a base
para o enquadramento desta categoria, não explica suficientemente a existência dos grupos sociais vulneráveis. Ao tentar definir
esses grupos, esclarece:
Os grupos sociais vulneráveis não o são como portadores de atributos que, no conjunto da sociedade, os distinguiriam. Eles
se tornam vulneráveis, melhor dizendo, discriminados pela ação de outros agentes sociais. Isto é importante não apenas
porque os retira da condição passiva de vulneráveis, mas porque identifica processos de produção da discriminação social, e
aponta para sua anulação. Ainda que as políticas sociais públicas sejam uma das exigências mais prementes para atenuação
das várias “vulnerabilidades”, elas não esgotam o repertório de ações que se situa muito mais no campo dos direitos. Ou,
dizendo de outra forma (...), para que as políticas sociais públicas que se fazem absolutamente indispensáveis prosperem e
atinjam seus objetivos é preciso antes de tudo situa-las no campo dos direitos, retirando-as da conceituação de carências
(OLIVEIRA, 1995, pp. 9-10).

Ao destacar o caso brasileiro, Oliveira (op.cit. p. 18) assevera que os grupos vulneráveis não podem ser circunscritos
apenas em termos econômicos, mas se quisermos avançar em sua compreensão “deve-se transitar da ‘noção de carências sociais
para o terreno dos direitos”, sem a qual todos os obstáculos se antepõem à construção de uma sociabilidade democrática e à
efetivação dos direitos de cidadania.
Marilena Chauí (1994, p. 28), é outra autora que se dedicou a estas questões. Em artigo que analisa as raízes teológicas
do populismo no Brasil, assinala:

2
O trabalho infanto-juvenil está sendo entendido como a ocupação e dispêndio de energia física e mental de crianças e adolescentes que trabalham para gerir ou
contribuir com o orçamento familiar, possibilitando a sobrevivência imediata da família, em seus diversos arranjos. Inúmeros desses trabalhadores precoces vivenciam
experiências de violência, traduzidas, geralmente, pela exploração, com carga horária extenuante, de 10 a 12 horas de trabalho, em condições péssimas e insalubres no
ambiente de trabalho, com salários baixos e, em alguns casos, o não-pagamento de qualquer gratificação.

736
(...) no caso do Brasil, a estrutura autoritária da sociedade não permite o surgimento das instituições democráticas. Essa
impossibilidade possui base material, isto é, articula-se à maneira como se realiza a divisão social das classes. A polarização
social se estabelece entre o pólo da carência absoluta e o pólo do privilégio absoluto.

Para a autora, a sociedade brasileira opera em dois pólos complementares, o “das carências e o dos privilégios”. O
primeiro - pólo das carências - está relacionado com o escasso acesso a um conjunto de meios e recursos materiais e culturais que
asseguram a reprodução social das pessoas. Então, segundo Chauí, a vivência em uma realidade de múltiplas carências é
inconciliável à existência de uma cultura democrática e cidadã. Já o pólo dos privilégios se constitui de uma cultura política,
depositária da “indistinção entre público e privado”, que impossibilita, nos termos de Hannah Arendt, a partilha de um mundo
comum, por meio de espaços públicos3, onde a ação política pode acontecer e interesses e acordos podem se efetivar. E, mais
grave, transforma direitos em privilégios, conservados pelo autoritarismo, pelo personalismo e pelas relações de favor.
As breves considerações expostas nos remetem ao universo complexo em que a sobrevivência por meio de péssimas
condições de vida e a violação de direitos abrem a “questão social” para a espinhosa correlação entre “vulneráveis” e a violência.
Marisa Feffermann (2006, p.14), ao analisar a realidade de jovens envolvidos no tráfico de drogas, na cidade de São
Paulo, afirma:
Não existe relação direta entre pobreza e violência, e sim violência estruturada, perpetrada pelo Estado, que vem oprimido
grande parcela da população e que muitas vezes impede o próprio sustento. Esta população está sob grande vulnerabilidade
social, e em decorrência disto, vive situações de desrespeito e privações. Estas condições não são definidoras para a adesão
ao crime, mas podem ser vereda propiciadora para que setores ilegais e criminosos se expandam, como no caso do tráfico de
drogas. É nesses lugares que o tráfico torna-se visível, em regiões em que o Estado é omisso e/ou violento. Esses lugares
tornam-se campos férteis para atividades ilícitas. (grifos meus)

Nas considerações de Feffermann, a ausência do Estado ou a violência estatal manifestam-se, entre outras, por ações
coercitivas perpetradas pelo aparato policial, que vão desde o abuso de poder, aos homicídios, fazendo com que a população
considere a polícia ineficaz e temida, sobretudo aqueles que moram em favelas, bairros periféricos ou precários das médias e
grandes cidades brasileiras.
Tais argumentações, em certa medida, aproximam-se das reflexões de Paula Miraglia (2006, pp.111-112), em artigo que
discute a relação entre violência e pobreza, ao sublinhar que
podemos pensar na pobreza na sua dimensão material - essa seria a primeira definição – e, neste sentido é possível ilustrá-la
como a fome, o pouco acesso aos bens e serviços, problemas de moradia, saúde e educação. Há, no entanto, uma outra
dimensão, bem menos concreta que essa, mas também bastante contundente: um sistema de direitos baseado em privilégios,
a pequena presença do Estado, um sentimento de injustiça, estigma e preconceito, que advém de uma situação de pobreza ou
daquilo que hoje se chama de exclusão social, vulnerabilidade social ou situação de risco. (...) [Nestes termos], falar de
pobreza é indiscutivelmente falar de violência. (...) podemos [portanto] nos perguntar se a violência não é nossa versão local
da pobreza.

Estas argumentações permitem afirmar que o fenômeno da violência só pode ser entendido na tessitura do contexto
social que, no entanto, requer o cuidado da investigação sociológica para se evitar a associação linear entre violência e pobreza.
Como assinala Vera Telles (2006, p.11), ao analisar as regiões periféricas da cidade de São Paulo: é nessas regiões periféricas da
cidade “que se concentram as situações de tragédia, pois nesses territórios urbanos crescem a pobreza, o desemprego, a
precariedade urbana e, também, a violência”. Nos termos da autora:
(...) como bem sabemos, todo cuidado é pouco quando se trata de lidar com as proximidades da pobreza e criminalidade,
sobretudo nesses tempos em que a nossa velha e persistente, nunca superada, criminalização da pobreza vem sendo
reatualizada sob formas renovadas, (...). Mas todo cuidado é pouco também porque não é coisa simples entender o que anda
acontecendo por esse lado da cidade de São Paulo (não só nela). O fato é que também aqui, no lado pobre (e expansivo)
dessas recomposições, o mundo social está alterado (TELLES, op.cit. p. 52).

Se a violência se insere neste patamar que vincula o universo econômico, social e político, cabe, no entanto, destacar
que ela também encontra suas raízes num legado histórico de práticas de mandonismo, personalismo e relações de favor, que
tecem uma sociabilidade, em que é quase impossível se estabelecerem espaços públicos. Estas práticas que compreendem os
direitos como privilégios, encaram as medidas estatais (criação de programas, projetos e serviços sociais; infra-estrutura urbana;

3
Para Hannah Arendt, o mundo é “um espaço intermediário entre as pessoas, que só se realiza pela palavra na medida em que se torna discurso no espaço público”
(ARENDT apud: KEINERT, 2005, p.15). É nesse mundo que o homem manifesta seu discurso e sua ação política, pois “embora o mundo comum seja terreno comum
a todos, os que estão presentes ocupam nele diferentes lugares (...). Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem em ângulos
diferentes. É este o significado da vida pública (...). Nas condições de um mundo comum, a realidade não é garantida pela ‘natureza comum’ de todos os homens que o
constituem, mas, sobretudo, pelo fato de que, a despeito de diferença de posição e da resultante variedade de perspectiva, todos estão sempre interessados no mesmo
objeto. Quando já não se pode discernir a mesma identidade do objeto, nenhuma natureza humana comum, e muito menos o conformismo artificial de uma sociedade
de massa, pode evitar a destruição do mundo comum”(ARENDT, 1995, p.67).

737
equipamentos públicos, entre outras) como atos de benevolência dos governantes ou parlamentares. Melhor dizendo, tais medidas
são entendidas como meras concessões dos agentes públicos.
Nestes termos, a sociedade brasileira urdiu uma cultura política cujas práticas têm a sua raiz no processo de expansão do
capitalismo brasileiro que associa, de forma não-excludente, elementos do legado histórico com os princípios econômicos
modernos. É nesse sentido que a interpretação de Francisco de Oliveira (2003, p. 60), em artigo clássico em que critica a
concepção dualista da sociedade brasileira, enriquece este raciocínio. “A expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo
relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo (...)”. A combinação desses aspectos contraditórios compõe o
motor que dinamiza a economia e serve de alicerce à sociedade. Assim sendo, os avanços econômicos, amalgamados aos traços
da cultura política, penetram o cotidiano das pessoas e possibilitam a existência de todo tipo de violência, criando freios para a
existência da mediação, do diálogo e da divergência entre os sujeitos históricos.
É possível, portanto, afirmar que o fenômeno da violência brota das entranhas das desigualdades econômicas e dos
traços persistentes da cultura política, arraigados há tempos na sociedade brasileira, e se exprimem de forma reeditada no contexto
atual, moldando as relações sociais e as instituições. Tais aspectos compõem a peculiaridade política brasileira, tendo como uma
das facetas, conforme nos ensina, novamente, Francisco de Oliveira (1999, p. 9), a permanente tentativa das classes dominantes
em destruir “os esforços constantes e continuados dos dominados (...) para alcançar patamares mínimos de cidadania e convívio
democrático, esteio da figura insubstituível do Estado direito democrático.”
As classes dominantes, quando encetaram restringir a efetivação dos direitos e criar uma convivência democrática,
estabeleceram, sob os auspícios da ideologia neoliberal, uma “reação conservadora”4 com relação aos avanços e garantias de
direitos conquistados em um contexto de efervescência política, correspondente ao período entre 1964 e 1990, denominado por
Oliveira (2003) como a “era de invenções”. Conquanto extensa, vale citar o que define, para o autor, este período que, grosso
modo, estende-se de 1964 a 1990:
[Um período marcado pela construção de] uma nova sociabilidade e uma nova política, reinvenção daquela cuja base social
podia ser reconhecida, da qual as linhas de força emergiam com certa clareza, determinando as opções de política “policial”
dentro do campo criado pelas poderosas transformações. As mais importantes operações de construção da agenda estiveram
calcadas no permanente “esforço de Sísifo” das classes dominadas, expressas, em primeiro lugar, no renascimento do
sindicalismo em novas bases, com a emergência das frações do proletariado operando na base produtiva das multinacionais
do automóvel. E, em segundo, mas não secundário lugar, no deslocamento do campo das políticas sociais operadas pelos
novos movimentos sociais [...]” (OLIVEIRA, 2003, pp.194-195).

As diretrizes do receituário neoliberal, assinaladas na citação, adotadas no país na década de 90, se acirraram a partir de
1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, configurando o “desmonte das anteriores invenções”5. O crescimento
econômico, assentado no neoliberalismo e seus correlatos – a financeirização da economia e a reestruturação produtiva –,
aprofundou a desigualdade social e econômica, em que milhares de pessoas passaram a experimentar o desemprego estrutural, a
precarização do trabalho, a corrosão dos seus direitos e uma violência sem limite. É a partir dos anos 90 que este cenário
representa o que Oliveira (Idem) chamará de “era de indeterminação”, em que o “processo de supressão da política”, traço
presente na trajetória histórica brasileira, se revelou de maneira paradigmática.).
Entre outras, a era da “indeterminação” é caracterizada por um forte “processo de despolitização” que acirra o quadro
das “vulnerabilidades”, que dá ensejo a que milhares de pessoas sobrevivam em meio à truculência e ineficiência da polícia, em
restrições de mobilidade social, escassez de serviços públicos básicos, e, por isso, muitos se submetem ao “rentável comércio de
mercadorias ilícitas - entre elas, (...) o tráfico de drogas (...) É como se [essas pessoas vivessem] um presente inteiramente
capturado pelas urgências do momento, e não restasse muito mais do que a sua gestão cotidiana (...)” (TELLES, 2006,p. 43).
Quanto à realidade das crianças e dos adolescentes em situação de risco, os que estão vinculados ao tráfico de
entorpecentes, o processo acelerado de destituição de direitos, a ausência de oportunidades para se inserir no mercado de
trabalho6, no caso dos adolescentes acima de 16 anos7, e as diversas formas de violência, vivenciadas no cotidiano, são fatores que

4
Oliveira (1998. pp. 225-226) assinala que “a partir da década de 90, a sociedade brasileira passa a ser presidida pelo signo da reação do conservadorismo, em sentidos
sociológico e político fortes (...). [Fernando] Collor começou a inversão para a reação e o conservadorismo. Destrutivamente, ele atacou as principais instituições
públicas de um precário ‘Estado do bem-estar’, avançando impiedosamente no desmantelamento do aparelho do Estado para as políticas públicas (...). [No entanto] é
com Fernando Henrique Cardoso que a inversão se completa, se radicaliza, amadurece e ganha foros de projeto de hegemonia.”
5
“O período de Fernando Henrique Cardoso aprofundou, num grau insuspeitado, o desmanche iniciado. Privatização total das empresas estatais, deslocando o campo
de forças no interior da própria burguesia, desmontando o tripé empresas ‘estatais-privadas nacionais – multinacionais’, que deslizou para a predominância da última
nos principais eixos da acumulação de capital (...). A relação Estado/burguesias se altera radicalmente, transformando o Estado numa espécie de refém do novo poder
econômico centrado nas multinacionais produtivas e financeiras. Reforma da carreira dos funcionários públicos, pesados ajustes nos salários, uma às vezes sutil, e
muitas vezes declarada, modificação no estatuto do trabalho, buscando desregulamentá-lo e deixando ao ‘mercado’ a resolução dos litígios e contratos, emoldurados
num discurso que apropriava antigos temas das reformas, anulando o dissenso, privatizando a fala e destruindo a política, o período FHC completou o desmanche
conforme sua promessa de superar a Era de Vargas” (OLIVEIRA,1998, p.225).
6
De acordo com a pesquisa, A ocupação dos jovens nos mercados de trabalho metropolitanos, realizada pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Socioeconômicos –, em 2005, no Distrito Federal e em cinco regiões metropolitanas do país (Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo), os
jovens, inseridos em cenário de escassez de emprego, tornam um dos segmentos mais “frágeis na disputa por um posto de trabalho e para quem o problema do
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738
impulsionam inserir esta população num universo próximo ao que Agamben (2002) chama de “vida matável”, ou seja, “a vida que
pode ser descartada”. Portanto, são crianças e adolescentes que vivenciam as situações de risco e têm suas condições peculiares de
desenvolvimento (físico, psicológico, lúdico e criativo) aviltadas, ou suas existências interrompidas.
O quadro da tragédia vem sendo dimensionado, em termos estatísticos, por organismos nacionais e internacionais.
Apenas para dar um exemplo, pode-se apontar para números constantes do Mapa da Violência IV: os Jovens no Brasil, produzido
e publicado pela UNESCO, que revelam a dimensão da violência, em que o homicídio se torna a principal causa de morte entre os
jovens brasileiros de 15 a 24 anos. Com base nos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do SIM (Sistema
de Informações sobre Mortalidade) e do DATASUS (Banco de Dados do Ministério da Saúde), o Mapa mostra que, “em 2002, os
homicídios foram responsáveis por 39,9% das mortes dos jovens brasileiros”8.
No centro dessa realidade trágica, as atividades ilegais: o tráfico de entorpecentes, assaltos, contrabandos, sequestros,
latrocínio, assassinatos, entre outros, passam a ser uma das alternativas perversas de reprodução da vida. Isso gera uma
sociabilidade entremeada pela violência. Trata-se, agora, de uma “Cidade de Deus” espalhada por todas as cidades brasileiras,
tornando-se real e mais assustadora do que o filme de Francisco Meireles e Kátia Lund9, porque não é uma ficção baseada em
fatos reais, mas são os fatos reais que se materializam enquanto realidade de todo o Brasil. Também há outros filmes
documentários que revelam que essa realidade trágica configura-se como problema central tanto nas metrópoles como nas cidades
do interior do país10.
A utilização do trabalho infanto-juvenil no tráfico vem crescendo no país e se espalha pelas cidades médias do interior
do Brasil. O município de Vitória da Conquista -BA é um exemplo desse fenômeno. Fundamentando nas entrevistas e na
constatação do Conselho Tutelar, verificamos que algumas crianças e adolescentes buscam o tráfico de entorpecentes como um
meio perverso de sobrevivência ou, como informa um jovem11: “(...) têm crianças e adolescentes que são forçados pelos adultos
[traficantes] a entrarem no ‘movimento”12.
Portanto, pode se afirmar que a violência contra crianças e adolescentes acentua-se ainda mais com o crime organizado,
principalmente com o narcotráfico. A “organização criminosa” utiliza a mão-de-obra infanto-juvenil nos postos hierárquicos do
tráfico, seja como “olheiros” (observadores), “aviões” (entregadores), “vapores” (vendedores), “gerente da boca” (uma espécie de
administrador dos negócios ilícitos do tráfico), ou até mesmo como seguranças armados (DOWDNEY, 2003). Neste universo
ilícito, crianças e adolescentes envolvidos no tráfico são assassinados por grupos rivais ou por policiais.13
Os adolescentes que são explorados pelo tráfico de drogas vivem uma “vida de risco”, pois muitos enfrentam em seus
cotidianos a violência, e alguns não conseguem chegar até os dezoito anos de idade (FEFFERMANN, 2006 e SILVA e SILVA,
2005). Em Vitória da Conquista, não fugindo da realidade nacional, existe essa situação. Constantemente adolescentes são
assassinados, segundo os registros do Conselho Tutelar. Alguns policiais, afirma uma Conselheira Tutelar14:
Alguns policiais nos dizem que só os adolescentes, os que trabalham para o narcotráfico, completarem dezoito anos, que
eles irão sumir da cidade. Aí, aparece nas manchetes dos jornais ou no rádio a notícia da morte do jovem, apresentando a
causa como oriunda das briga das “gangs” rivais. Não é verdade, nós os conselheiros tutelares sabemos o que está
acontecendo realmente.

Corroborando com essa afirmação, um adolescente de 16 anos, por meio de entrevista, relatou a sua tragédia pessoal:

desemprego é mais latente”, e, quando consegue uma ocupação, geralmente, é de forma precária. Esta pesquisa está disponível na íntegra no site:
www.dieese.org.br/esp/estpesq24-jovensocupados.pdf - Acessado em 27 de dezembro de 2006.
7
A Emenda Constitucional nº 20, de 16 de novembro de 1998, estabelece que somente os adolescentes entre 16 e 18 anos podem ingressar no mercado de trabalho, em
atividades que não sejam perigosas, insalubres nem noturnas.
8
“Em alguns estados, como Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, em torno da metade, ou mais ainda, das mortes de jovens resultaram de
homicídios” (WAISELFISZ, 2004, pp.25-26).
9
Aqui se aludi ao filme Cidade de Deus, 2002, de Fernando Meirelles e de Kátia Lund, baseado no livro de mesmo título, de autoria de Paulo Lins. Esse romance
narra as diferentes histórias dos moradores do Conjunto Habitacional da Cidade de Deus no Rio de Janeiro. As histórias se desenrolam da fundação do Conjunto, na
década de 60, à violência generalizada do tráfico no início dos anos 90. E os principais personagens do livro são crianças e adolescentes, como Zé Pequeno,
Barbantinho, Zé das Alfaces, Marreco, Alicate, Busca-Pé, entre outros.
10
Além da Cidade de Deus, há outras produções cinematográficas que encenam as alternativas perversas de reprodução da vida. Entre eles, destacam-se o Rap do
pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000) de Marcelo Luna e Pedro Caldas; Notícias de uma guerra particular (2000), de Kátia Lund e João Moreira Salles;
Falcão: meninos do tráfico (2006), de M. V. Bill e Celso Athayde.
11
Entrevista realizada em janeiro de 2006, em Vitória da Conquista.
12
A expressão “movimento” significa tráfico. Tanto nos morros do Rio de Janeiro, como na periferia da cidade de Vitória da Conquista, a denominação é a mesma.
Cf: DOWDNEY (2003).
13
A respeito deste assunto veja o livro de Luke Dowdney, intitulado Crianças do Tráfico: um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de
Janeiro. O autor apresenta uma radiografia do narcotráfico do Rio de Janeiro, reconstruindo historicamente as origens das facções criminosas nos bairros populares e o
momento em que tais facções passaram a utilizar a mão-de-obra infanto-juvenil no rico comércio de drogas. Também analisa o universo deste trabalho e suas
consequências nefastas para esta população. Segundo Dowdney (2003), estima-se que 5 a 6 mil crianças e adolescentes estejam trabalhando para as facções de droga
no Rio de Janeiro.
14
Entrevista concedida em 16 de dezembro de 2004.

739
moço, caí aqui [Delegacia de Vitória da Conquista] porque faço as coisas erradas [trabalha para o narcotráfico como
vendedor] fui espancado pelos policiais como se fosse um bicho, apanhei muito. [...] eles dizem [os policiais] que sou um
perigo para a sociedade, por isso, vou morrer. Qualquer dia, eles vão me levar e me matar. Quero sair de Conquista, estou
ameaçado de morte pelos policiais. Eles vão fazer igual como fizeram com meu irmão15, ele foi morto pelos policiais com
vários tiros. (...)16

De acordo com o relato dos entrevistados, verifica-se que a prática corriqueira de assassinatos cometidos por alguns
policiais torna-se invisível pelo pacto do silêncio, pois os meios jornalísticos omitem os fatos. O Estado, por sua vez, não
investiga as denúncias do Conselho Tutelar e, com isso, a morte prematura assola as famílias das vítimas.
Consideramos pertinente relacionar a morte vaticinada dos jovens de 18 anos de Vitória da Conquista com um trecho do
mito de Aquiles, quando Thetis, a “deusa do mar”, mãe de Aquiles, profetizou que ele morreria na “flor da juventude”17. A morte
prematura do jovem helênico significa, metaforicamente, o heroísmo, a vida de glória, princípio fundamental da cultura grega
antiga (a Paidéia), pois Aquiles pôde escolher entre uma existência anônima e uma morte heróica no campo de batalha.
Já nos tempos atuais, os assassinatos anunciados dos conquistenses retratam a falta de opção dessa parcela da juventude
que, devido às condições econômicas, à falta de acesso aos bens materiais e culturais e à omissão do Estado em não efetivar
políticas públicas, ingressa no mundo do tráfico, numa vida “não-heróica”, em que as expectativas futuras lhe são negadas. O
trágico dessa realidade histórica, diferentemente daquela de Aquiles, é que não é Thetis que comunica aos jovens de 18 anos que
eles morrerão na “flor da idade”, mas as autoridades policiais que, além de anunciarem, concretizam a “profecia”.
Na referida entrevista, a presidente do Conselho Tutelar expõe a quantidade de crianças e adolescentes que são mortos
no município pelo envolvimento no tráfico, eliminados pelos traficantes ou pelos grupos de extermínio ligados à polícia.
[... nós levantamos nesses três anos de fevereiro de 2001 a fevereiro de 2004 cerca de cinquenta adolescentes assassinados
pelos grupos de extermínio, sem falar dos que estão desaparecidos, como o caso de um menino que está desaparecido, mas
nós sabemos que ele está morto; até o momento, o corpo não apareceu. Fora esses casos. [..., é triste dizer isso, têm jovens
que irão morrer quando completar 18 anos e nós não podemos fazer nada [....18

Os relatos explicitam a situação insustentável enfrentada pelas crianças e pelos adolescentes do município de Vitória da
Conquista, que são utilizados como mão-de-obra no tráfico de drogas. Convivem com a agressividade e a violência e estão sob o
“fio da navalha”, ou seja, são constantemente ameaçados. Muitos são massacrados, vítimas dos assassinatos ou dos
“desaparecimentos”. Em meio a esse massacre anunciado, o Conselho Tutelar, instância autônoma encarregada de zelar pelo
cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes, conforme determina o ECA, torna-se impotente diante da impunidade e
da banalização da morte das vítimas.
O Estado brasileiro utiliza seu aparato policial coercitivo para conter as “classes perigosas”, utilizando formas violentas
de controle social, por meio de chacinas, torturas e grupos de extermínio. Segundo Silva (2004, pp.64-65),
o extermínio é uma forma particular de homicídio, ainda que nem todo homicídio possa ser considerado como extermínio.
Além de particularizar-se como uma forma de homicídio doloso e qualificado, o extermínio caracteriza-se (...) como um
crime continuado, ou seja, seus implementadores matam seguidamente, sem que haja dependência do intervalo temporal
dessas mortes, revelando objetivos e situações que se repetem de maneira sistemática. Esse delito, portanto, constitui uma
prática dolosa que visa, continuamente, eliminar indivíduos ou grupos.

As inúmeras mortes dos jovens das periferias das médias e grandes cidades remetem à expressão cunhada pelas classes
dominantes como “inimigos comuns”, ou como “classes perigosas”, pois, nesta concepção, são responsabilizados pela
criminalidade, tornando-se passíveis às ações enérgicas do aparato policial que, muitas vezes, podem levar as pessoas deste grupo
social à execução sumária. Como sublinha Gey Espinheira (2004, p. 44-45), ao analisar o crime organizado no subúrbio
ferroviário de Salvador:
Há um tipo humano considerado desprezível: é jovem, homem, pardo/negro e pobre. Um inimigo [comum] que se parece
com perfil da maioria da população quando se consideram as idades, os gêneros, as cores e as rendas: 70% dos baianos
jovens do sexo masculino. Este tipo social constitui a principal vítima de assassinatos em Salvador e na Bahia. A destruição
da juventude é terrível. O Brasil se posiciona como um dos países mais cruéis do mundo que elimina uma proporção que
não tem oportunidade de ingresso no sistema formal de trabalho (...).

15
O irmão do entrevistado morreu em 2003, com 18 anos, por envolvimento em roubos e venda de drogas.
16
A entrevista aconteceu em 11/1/2005, nas dependências da Delegacia de Vitória da Conquista. O adolescente estava preso havia 58 dias. Até aquela data não tinha
tido nenhuma audiência com o promotor ou com o juiz, somente as visitas dos conselheiros tutelares.
17
Aquiles é um herói dos poemas da Ilíada de Homero. O escritor grego narra o mito de Aquiles, nascido da união de um mortal com a “deusa do Mar”, Thetis, que
lhe deu a imortalidade. No entanto, o filho da “deusa” possuía uma parte do seu corpo vulnerável, o calcanhar. Quando inicia a guerra entre as cidades gregas e Tróia,
Thetis comunica a Aquiles, que se ele for para a guerra morrerá e se tornará imortal pelos seus feitos heróicos (HOMERO, 2002).
18
Entrevista concedida em 10 janeiro de 2005.

740
Nessa mesma linha de reflexão, Luiz Eduardo Soares (2005, p.89), em um texto que analisa a violência policial no Rio
de Janeiro, quantifica as pessoas assassinadas pelo aparato policial, quando afirma:
(...) as mortes provocadas por ações policiais cresceram 298,3% nos últimos sete anos. Chegamos, portanto, ao espantoso
número de 7.998 vítimas letais da violência 53,8 por 100 mil habitantes. Exatamente o dobro da média brasileira. Isso
significa que 18 pessoas foram assassinadas no Estado do Rio diariamente, oito das quais na capital. A maioria era jovem,
do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, pobres e negros, moradores das áreas mais pobres da cidade. Trata-se de uma
tragédia cuja dimensão humana é incomensurável e cujas consequências são extensas e profundas nos mais diversos
âmbitos, da economia à psicologia coletiva.

Silva e Silva (2005), baseando-se nos dados do Datasus, salientam que, em 2000, o total de homicídios no país foi de
45.919 casos. O número de pessoas entre 14 e 24 anos assassinadas foi de 17.762, alcançando 32,82% do total, que representa
uma média de 50 jovens mortos por dia. Quando se especifica o grupo etário de 15 a 18 anos, a média de mortes fica em torno de
16 casos por dia. Essa pesquisa comprova que a maioria dos casos de homicídios, tanto da população entre 15 e 18 anos quanto da
população juvenil, ocorre com indivíduos do sexo masculino. Em razão dos dados impressionantes, os autores afirmam que está
havendo um genocídio no país, que atinge a população juvenil masculina, entre 14 e 24 anos.
Tais dados ainda nos levam a pensar que a violência policial contra essa parcela da população é uma constante nas
grandes e médias cidades brasileiras. Como se observa, a atitude adotada pelo Estado brasileiro constitui-se em verdadeiro
extermínio de uma parcela significativa da população juvenil.
Além dessa situação de extermínio, alguns jovens, parafraseando Sérgio Buarque de Holanda, são “desterrados do
próprio espaço” (casa, rua, bairro, cidade e até o estado), condenados a viver em um “não-lugar”, fora do convívio público, não
podendo ser “vistos, nem ouvidos e, muito menos, expressar suas opiniões livremente”, pois foram sentenciados à morte pelos
traficantes ou pelos policiais. Portanto, não podem retornar à sua cidade de origem e ao convívio familiar.
Os relatos apontam para aquilo que se caracteriza como uma realidade insustentável à condição humana, principalmente
para o momento vital dessa humanização, que são a infância e a adolescência. Os trabalhadores do narcotráfico, que trazem
gravados nos seus corpos e na memória as marcas da violência, as práticas recorrentes da prisão (espancamento, humilhação,
tortura, agressão psicológica, entre outras mazelas) e as condições deploráveis, revelam uma vivência de dor, de violência, de
medo, explicitando, conforme Sérgio Adorno, uma “experiência precoce de punição”19, cujas trajetórias se configuram contrárias
às determinações do ECA.
Essa situação faz pensar, novamente, nas formulações de Giorgio Agamben sobre estado de exceção, em que a figura do
homo sacer se relaciona às pessoas que podem ter suas vidas aniquiladas pela vontade do soberano e aglutinadas em grupo sem
direitos: “(...) aquele que é banido, [e não apenas posto fora da lei ou indiferente a ela], mas abandonado por ela, ou seja, exposto
e colocado em risco no limiar em que a vida e o direito, externo e interno, se confundem” (AGAMBEN, 2002, p.36). Isto
acontece, porque o estado de exceção não se diferencia do estado de direito, tornando os cidadãos submetidos ao poder do
soberano e, nessa condição, tem-se uma “vida exposta que pode ser morta, sem que se cometa um homicídio” (Idem. p. 171).
No esteio desta interpretação, os relatos dos adolescentes, descritos e analisados, nos possibilitam assinalar que as
vítimas desta violência possuem vivências próximas à “vida nua”, as quais podem ser descartáveis, aniquiladas, despojadas dos
direitos, pois perderam sua visibilidade na dimensão pública. Não são “ouvidos e nem vistos”, como se não existissem,
compelidos ao terreno da indiferença, pois as vidas desses sujeitos metamorfoseiam-se, utilizando a expressão empregada pela
adolescente entrevistada, “em morte”, cujo sofrimento não causa comoção da sociedade em geral e nem medidas estatais
eficientes que promovam a transformação de tal realidade. Portanto, na trilha de Agamben, sublinha-se que a sistêmica violência
experimentada por esses trabalhadores parece não se configurar como crime, é algo semelhante à “vida matável e insacrificável”
do homo sacer.

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19
Adorno (1993, p.185), em um texto que analisa as trajetórias das crianças que foram impelidas a trilharem os caminhos da criminalidade, assinala que são pessoas
que vivenciam “experiência precoce de punição”. E segundo o autor, são “duplamente punidas”. De um lado, “pelas diversidades das condições materiais de existência
e pela destituição dos direitos, os que possibilitariam fazer de seu universo um mundo eminentemente infantil, um mundo onde realidade e o caráter lúdico da
convivência com os outros se encontram entrelaçados em uma unidade indissociável. [Do outro lado], são punidas pela criminalização de seu comportamento e
responsabilizadas pelo aumento da criminalidade e da violência”. Nesta chave interpretativa, pode-se afirmar que essas crianças e esses adolescentes são
“menorizados”, ou seja, aquelas crianças e aqueles adolescentes que estão desprovidos de seus direitos, ficando, assim, “expostos a vários tipos de violência e
exploração por parte dos adultos” (Adorno, 1991:7).

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Quando o petro-capitalismo encontra a cleptocracia: crime organizado em Angola


em contaxtos de integração e fragmentação
Gabriela Araujo Sandroni
Universidade do Minho/UNESP
[email protected] ou [email protected]

742
Colaborador: Caio Simões de Araujo
Universidade de Coimbra
[email protected]

Resumo: Nas últimas décadas houve uma expansão da área de atuação do crime organizado que, transgredindo as fronteiras nacionais, tornou-se
um ator global. Essa mundialização do crime é observada através do aumento dos mercados em que realizam o tráfico de armas, pessoas e drogas,
estando geralmente aliada à corrupção e à lavagem de dinheiro. Como afirma Castells, as redes do crime transnacional muitas vezes estão
profundamente enraizadas na própria estrutura estatal, interferindo directamente no processo político. Segundo Organizações Internacionais e
ONGs, Angola destaca-se no contexto africano devido a suas altas taxas de corrupção, pelo tráfico de pessoas e pela existência de redes de crimes
organizado, factores estes que inibem o crescimento económico, a distribuição de renda, e o desenvolvimento social e político no país. Como
Estado-membro da Southern African Development Community (SADC), Angola vem sofrendo pressões constantes da comunidade internacional e
das forças regionais de integração no sentido de regionalizar e internacionalizar o combate ao crime transnacional. No entanto, o governo tem
resistido a estas tendéncias, prefirindo se isolar em matéria de cooperação policial, como se pode perceber pela recusa em assinar e ractificar a
Convenção de Palermo. Fortemente assentado no que se chamou de petro-capitalismo, o Estado angolano está profundamente envolvido pelas
redes do crime transnacional, facto que só poderá reverter-se com o aprimoramento das intituições e do processo democrático e com a actuação
política da sociedade civil organizada.

O Crime Organizado Transnacional é um tipo de crime penal caracterizado por um grupo de três ou mais pessoas que
existem depois de um determinado tempo e agem com a intenção de cometer um ou mais infrações graves ou infrações
estabelecidas conforme a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional para obter diretamente ou
indiretamente uma vantagem financeira ou material. Em razão da sua internacionalidade, a única maneira eficaz de diminuir sua
atuação no Sistema Internacional é através da cooperação transnacional monitorada pelas Nações Unidas.
A cooperação internacional tem como um dos seus primeiros pressupostos a idéia da autoridade, isto é, o respeito por um
Estado à existência de outros Estados, cujos objetivos podem e devem ser por eles próprios traçados. Assim, a idéia
hobbesiana da vida internacional como a guerra de todos contra todos, tempera apenas pela moderação que a própria razão e
o autointeresse ditassem, representa, paradoxalmente, um momento importante na evolução do pensamento político e da
própria idéia de cooperação, na medida em que contribui para enterrar os mitos que tornariam qualquer cooperação
autêntica impossível.1

Adotada pela Assembléia Geral no encontro do Milênio realizado em novembro 2000, o seu processo de elaboração do
texto ocorreu em 10 sessões promovidas entre os dias 19 de janeiro de 1999 e 28 de julho de 2000 por um Comitê Ad Hoc. Os
protocolos adicionais foram agendados em uma sessão complementar realizada entre os dias 2-27 de outubro de 2000.
Participaram em Viena mais de 120 delegados e diversos observadores durante esses encontros. Após esses onze encontros, o
Comitê Ad Hoc distribui os textos finais para a Assembléia Geral, seguida por uma conferência de alto nível em Palermo. O
tratado, então, somente estaria aberto para assinaturas na sede da ONU em Nova Iorque, entre os dias 12 e 20 de dezembro de
2000.2 Não obstante essa Convenção teve o escopo de discutir medidas de combate ao crime organizado transnacional: assistência
mútua e medidas de padronização jurídica das leis nacionais dos países envolvidos. Nas palavras da delegada estadunidense
Elisabeth Verville: “A convenção permitirá que os governos evitem e combatam o crime organizado transnacional de forma mais
eficaz, através de um conjunto comum de ferramentas que incluem técnicas de legislação criminal e através da cooperação
internacional.”3 Ressalta-se ainda que embora esse tratado seja um desejo comum de mais de 130 países, não atingiu todos os
Estados signatários da Convenção, dentre eles a Angola, pois, esta embora tenha assinada, não a ratificou. Paralelamente, essa
decisão do Estado angolano é discutida por diversos pesquisadores e representantes do próprio país, os quais em sua maioria
concordam que as vantagens do tratado em questão sobrepõem as desvantagens. Segundo a vice-ministra da Justiça de Angola,
Guilhermina Prata, a Convenção de Palermo deve ser encarada como um contributo ao combate ao crime organizado e suas
desvantagens não devem ser um entrave à sua ratificação e adesão e que constitui um passo decisivo no combate ao crime
organizado e transnacional, uma vez que a convenção, além de definir os novos conceitos para este tipo de crimes, institui vários
mecanismos de cooperação internacional.
A utilização da extradição de criminosos e a transferência de presos, respeitando-se as legislações nacionais, a assistência
judiciária mútua e técnicas de investigação conjunta são também vantagens que os países membros que aderem à convenção
podem ter no combate ao crime organizado.

1
AMORIM, 1992 apud MARCOVITCH, Jacques. Competição, cooperação e competitividade. In: ______.
Cooperação internaciona: estratégia e gestão. São Paulo: Edusp, 1994. p. 52.
2
UNITED NATIONS. Global programme against transnational organized crime: results of a pilot survey of forty selected organized criminal groups in sixteen
countries. 2002. Disponível em:
<http://www.unodc.org/pdf/crime/publictions/Pilot_survey.pdf>. (Consultado na Internet em 30 de novembro de 2008).
3
VERVILLE, Elizabeth. Estados Unidos adotam convenção global contra o crime organizado
internacional. Disponível em: http://usinfo.state.gov/journals/itgic/0801/ijgp/ig080103.htm (Consultado na Internet em 30 de novembro de 2008)

743
Entretanto, a vice-ministra da Justiça sublinhou que a ratificação e adesão à convenção possui algumas desvantagens,
nomeadamente a intimidação das testemunhas, legislações internas desajustadas, a falta de harmonia entre as diversas
legislações dos Estados-membros e o perigo da dupla incriminação, entre outros. 4

Nessa configuração, deliaremos nesse artigo o contexto da Angola na Convenção de Palermo no ambiente internacional,
permeando alguns aspectos do contexto do sistema internacional que esta se insere. Evidencia-se que a análise dessa matéria não é
acurada devido a qualidade das informações obtidas.
One of the biggest barriers to probing the links between crime and other social indicators is the extremely poor quality of the
crime data, especially for Africa. This matter is explored at length in Annex C of this Report. While this key weakness
precludes complex statistical analysis, there are social factors that many theorists have argued influence the extent of
criminal activity. Some of these are discussed below.5

Ator internacional negativo do Sistema Internacional, o crime organizado transnacional desenvolve atividades
econômicas ilícitas e os meios para auferir seus objetivos podem ser tanto legais como ilegais. Indiferentemente dos demais atores
internacionais, sua essência é marcada pela temporalidade histórica e por alguns fenômenos que facilitam o modus operandi do
grupo criminoso, dentre eles destacamos as inovações tecnológicas, os processos de integração, a globalização, a pobreza e a
corrupção. Seu surgimento é uma incógnita, mas credita-se que o crime organizado obteve uma maior visibilidade no final da
Guerra Fria, concomitantemente com o seu processo de securitização. É interessante explicar o papel da tecnologia no
intercâmbio financeiro e no fluxo de informação, e também como forma de constituir a temporalidade histórica. A tecnologia
diminui o espaço mundial, possibilitando um contato mais complexo entre os seres humanos. Mais ainda, o espírito capitalista
pode ser considerado a força motriz porque somente através do valor atribuído ao capital e ao conhecimento individual foi
possível investir nas pesquisas tecnológicas que propiciaram o intercâmbio comercial, político e cultural entre os Estados.
Portanto, o sistema capitalista per se exige uma reciclagem diária, buscando sempre a melhoria da tecnologia com o escopo de
facilitar a vida humana, seja em tempos de guerra ou de paz; e por conseguinte, o aumento da riqueza. Logo, o capitalismo
aperfeiçoa e cria mecanismos para dependência mútua agir com maior eficaz, pois, essa dependência é necessária para manter o
ciclo de riqueza da Aldeia Global.6 É nesse ambiente de interdependência mútua em que se insire o crime organizado. Ademais, o
desenvolvimento do crime organizado imprimi a fragilidade do Estado, ou melhor, a perda deste do seu principal poder: o
monopólio da coerção. Dessa maneira, observamos que as suas estruturas governamentais angolanas foram sucateadas durante os
15 anos em que esteve em guerra; impossibilitando, portanto, a eliminação deste ator que acabou por perpertuar-se num ambiente
marcado pela corrupção e pelo tráfico de drogas, pessoas, armas e diamantes.
The criminal networks who greedily profited from this conflict, and whose participation was essential, have not been fully
identified, prosecuted or eliminated. Rather, they have merely gone underground, and the likelihood is that they are
operating from countries still embroiled in conflict.
In many cases the warring factions are not trying to take over the state apparatus, or resolve political and social
grievances—but trying to gain and later maintain control over export-based resources, such as diamonds (e.g.,UNITA in
Angola, RUF in Sierra Leone), drugs, and logging, and sometimes humanitarian aid. Conflicts and criminal activities are
therefore closely linked. In some cases, such as in the Democratic Republic of Congo, the control of export resources by
foreign armies is allegedly a major cause for the continuation of the conflict… Conflicts that have developed because of
internal political rivalries may… gain a momentum of their own. Continuing economic plunder may become both a key
military objective and a major source of resources to continue fighting (as in Sierra Leone). Criminal activities are at the
core of the civil war economy in Africa. 7

No contexto da relações internacionais, o crime organizado transnacional participa da dependência mútua, englobando a
maioria dos participantes do sistema de maneira lícita e ilícita. Na primeira o crime organizado transnacional utiliza-se de
empresas lícitas ou do apoio estatal para legalizar de maneira fictícia as atividades ilícitas realizadas. Já na ilícita, é uma
interdependência de diversos crimes organizados. A fragmentação das atividades dos criminosos, por conseguinte, favoreceu a
interdependência entre as mais diversas formas de crime organizado. Dessa maneira os cartéis da Colômbia possuem ligações
com as máfias italianas e assim por diante. Essa hipótese é levantada por Phil Williams, o qual afirma que as organizações
criminosas estão aumentando a cooperação entre si com o escopo de atingir seus objetivos em comum. Ainda mais, em seu artigo
Cooperation Among Criminal Organizations, Williams argumenta que o crime organizado é uma continuação dos negócios

4
Jornal de Angola. Angola ainda não aderiu à convenção sobre crime organizado, diz Guilhermina Prata. http//angonoticias.com/full_headlines_.php?id=11691
(Consultado na Internet em 30 de novembro de 2008)
5
UN Office on Drugs and Crime (2005). Crime And Development in Africa.
6
Sandroni, G. A. (2007). A Importância da Convenção de Palermo no Combate ao Crime Organizado Transnacional. Franca, São Paulo, Brasil. Trabalho de
Conclusão da Licenciatura em Relações Internacionais da UNESP.
7
UN Office on Drugs and Crime (2005). Op. Cit.

744
internacionais por meios ilícitos.8 Agora é chegado o momento de analisarmos a Angola no contexto da Convenção de Parlemo.
País marcado pela guerra civil e pela corrupção, o crime organizado tornou-se um ator intrínsico no seu governo devido a
necessidade dos partidos políticos buscarem armamento e dinheiro externo para financiarem o conflito. Atraindo, portanto,
diversos tipos de crime organizado, os quais forneciam seus serviços em troca dos diamantes africanos, dentre eles o crime
organizado russo:
As was the case in Sierra Leone, this brought the rebel leadership into contact with great wealth and organized crime
connections. As in Sierra Leone, Angola’s diamond trade has been linked to Russian organized crime in the person of Victor
Bout, the owner of Air Cess, a company that features prominently in the United Nations Supplementary Report of the
Monitoring Mechanism on Sanctions against UNITA.9

A guerra civil angola foi uma fonte lucrativa para o crime organizado durante 15 anos, ou melhor, ainda permanece. Sua
profunda desigualdade no distribuimento da riqueza fez com que as atividades desenvolvidas pelo crime organizado quebrassem o
ciclo de pobreza e também utilizassem seus recursos naturais para financiar as atividades ilícitas.
Wide inequality in distribution of wealth, unchecked demographic growth associated to rapid, unplanned and often chaotic
urbanization, are all features common to West African societies, and factors contributing to the increased relevance of crime
and criminal activities as a viable and profitable option for breaking the cycle of poverty10
Angola, another country recovering from conflict, is one of many in Africa that are losing millions of dollars’ worth of
national resources that could be ploughed into development. The Southern African nation attracted scores of transnational
crime syndicates during its decades-long civil war as the rebel National Union for the Total Independence of Angola
(UNITA) traded diamonds and other natural resources to fund its war against the government. When the war ended in 2002,
some of its fighters switched from military activities to transnational crime.11

Sem embargo, o fato do crime organizado ter sido fortalecido durante seu conflito civil e alcançado esferas
governamentais foi a principal razão que impossibilitou o seu implantamento real. Ainda mais, a corrupção angolana alcança
níveis altíssimos e está relacionada indiretamente com a atuação do crime organizado no país, o qual devido a sua característica
atípica, confunde-se muitas vezes com o próprio governo. O Estado torna-se incapaz de exercer suas obrigações, refletindo
negativamente na economica, na política e na sociedade.
“…Organized crime is indicated as a serious problem involving trafficking of, among other commodities, diamonds,
narcotics and war surplus small arms. To a considerable extent, such criminal activity was institutionalized by UNITA as
part of its war economy, which placed Angola at the hub of a network of criminal enterprise, working symbiotically with
criminal elements of regional governments and security forces. Conflict in the two Congos only served to deepen criminal
penetration across their remote frontiers with Angola. While UNITA was defeated on the battlefield in 2001-02, this also
provided an incentive for some elements to complete the transition from military to transnational criminal activity.”

De acordo com o relatório Crime and Development in Africa do Escritório de Drogas e Crime das Nações Unidas o
crime é o principal fenômeno que prejudica o desenvolvimento da Angola. Diante disso, a Angola foi pressionada
internacionalmente a se posicionar perante tal ator negativo. Contudo, aproveitou a Convenção de Palermo para assinar o tratado
histórico de combate ao crime organizado, mas não o ratificou devido a incompatilibilidade de interesses nacionais. Observa-se
que anteriormente, a Angola também não ratificou as seguintes Convenções acerca do mesmo assunto: Single Convention on
Narcotic Drugs (1961), Convention on Psychotropic Substances (1971), Convention against the Illicit Traffic in Narcotic Drugs
and Psychotropic Substances (1998), Convention against Corruption. Ademais, embora a Angola seja membro da Southern
African Development Community (SADC) e o tratado interno de funcionamento da SADC afirma que a segurança internacional é
uma das prioridades da organização, esta não tem um poder de coerção suficiente para monitorar e combater o crime organizado
transnacional nos seus países membros. Concluí-se, então, que o Estado Angola não promove uma política séria de combate ao
crime organizado transnacional e a possibilidade de ratificar a Convenção de Palermo, criando mecanismos eficazes de combate, é
surreal.

8
Sandroni, G. A. (2007). Op cit.
9
UN Office on Drugs and Crime (2005). Op. Cit.
10
Andrés, A. P. 2008. WEST Africa Under Attack: Drugs, Organized Crime And Terrorism As The New Threats To Global Security. UNDOC.
11
Africa Renewal. (Vol.21 #2 ,2007). Organized crime targets weak African States. http://www.un.org/ecosocdev/geninfo/afrec/vol21no2/212-organized-crime.html
(Consultado na Internet no dia 30 de novembro de 2008)

745
Plantios de Maconha no Brasil, o Caso do polígono da Maconha: Atores e Relações
Sociais na Cadeia Produtiva
Paulo Cesar Pontes Fraga
Universidade Estadual de Santa Cruz
[email protected]

Resumo: A proposta dessa comunicação é a análise das relações estabelecidas entre diversos atores na rede da cadeia produtiva de cannabis
sativa no denominado Polígono da Maconha, no Nordeste Brasileiro. Baseado em pesquisas desenvolvida pelo autor, busca-se revelar as
diferenciadas formas e associações produtivas, que reproduz formas de contratação de mão de obra e de cultivo de produtos agrícolas tradicionais,
demonstrando que a violência e a repressão ao plantio passou a envolver atores até então não atrelado ao cultivo ilícito.

Introdução
O investimento acadêmico na complexa análise da questão das drogas ilícitas no Brasil tem se efetivado,
essencialmente, em duas direções. A primeira engloba os estudos dos denominados efeitos de determinadas substâncias
psicoativas sobre os usuários (Carline et all., 2004; Carline e Napo, 2003; Gálduroz et all., 2005; Mastroianni et all., 2005) e,
consequentemente, suas implicações nas relações sociais. A outra frente abarca a compreensão das formas de organizações
criminais produzidas pelo comércio varejista ilegal de drogas em grandes cidades, sobretudo, o Rio de Janeiro, e seus efeitos
sobre o processo de socialização na delinquência e no aumento das taxas de homicídios (Zaluar, 2004, 1985; Misse, 2002). Pode-
se, não obstante, ainda, identificar outras frentes de investigações científicas realizadas, como aquelas que buscam compreender o
processo de legalização no mercado financeiro do dinheiro oriundo do tráfico de drogas e a formação de redes criminosas no país
para a “lavagem de dinheiro” (Osório, 2002, 1997, 1996 a, 1996b; Minguardi, 1998a, 1998b ) e outras focadas no uso ritualísticos
e recreativos de substâncias psicoativas (MacRae,2004, 2001). Essas duas últimas linhas, contudo, ainda que de importância
basilar para o aprofundamento e ampliação do conhecimento sobre a temática e contando com estudos de extrema relevância e
profundidade analítica são ainda bastante incipientes. A produção de pesquisas e os debates produzidos encontram-se em
patamares diferenciado, no tocante ao número de estudos e de abordagens, das duas primeiras direções apontadas anteriormente.
As orientações desses estudos nas duas primeiras frentes podem ser mais bem entendidas pelo maior impacto destas
questões no cotidiano das principais cidades brasileiras. Ao serem consideradas agravos de saúde e complicador das políticas de
segurança pública, a questão da problemática do uso de substâncias consideradas ilícitas e de seu comércio varejista atrai
investigadores e investimentos no sentido de maior entendimento do fenômeno e na busca de soluções para atenuar as suas
consequências. Nesta direção, os estudos buscam, também, aprofundar questões referentes ao sentido que a própria criminalização
do uso, do comércio e da produção de determinadas substâncias psicoativas têm representado para a sociedade brasileira e, em
geral, para o mundo.
Pesquisas reconhecem, independente das diferenças de abordagens ou de suas orientações teóricas, ser o Brasil um
importante consumidor de substâncias psicoativas consideradas ilícitas como a cocaína1, maconha, ecstasy e possui um comércio
varejista violento, cujas consequências têm atingido importantes instituições como a escola, as relações de vizinhança, ceifado
vidas e incrementado negativamente indicadores sociais e econômicos. Como observa Zaluar (1999), os estudos sobre crimes e
violência aumentaram a partir da década de 1990 ao compasso do aumento das taxas de homicídios e de crimes. Deve-se
reconhecer, todavia, que a faceta violenta das drogas no Brasil é consequência de elementos próprios de nossa formação social e
muitas vezes não podem estar atrelados ao negócio das drogas de consumo proibido.
Existe, contudo, uma faceta da questão das drogas no Brasil ainda pouco estudada e com investigações preliminares
carentes de maior aprofundamento e de investimento, principalmente no referente aos estudos sócio-antropológicos. Trata-se da
violência e das relações oriundas do cultivo de plantas consideradas ilegais para o consumo, como o caso do plantio de cannabis
sativa.
O baixo investimento de investigações nesta temática pode ser explicado por diversos motivos: a não consideração do
Brasil como país produtor de plantas de consumo proibido; as dificuldades de investigação advinda das dificuldades de trabalho
de campo pela especificidade da atividade ilegal, fator restritivo a uma maior aproximação entre pesquisadores e pesquisados;
entre outros.
Nos últimos anos, contudo, começam a surgir reflexões voltadas para a compreensão da dinâmica do plantio de
maconha no Brasil, focados, notadamente, na representação deste plantio como alternativa econômica em regiões sem uma

1
Segundo dado do DEA, o Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, ainda que tal afirmação seja contestada por alguns estudiosos.

746
política agrária definida; as novas relações sociais oriundas da institucionalização do plantio e; a violência que envolve este
cultivo em algumas localidades (Iullianeli, 2000; Ribeiro, 2000 e Fraga, 2003, 2000). Estes estudos ainda se ressentem de maior
aprofundamento e focalização. Restringem-se , em sua grande parte, ao plantio no chamado Polígono da Maconha, região com a
de maior concentração deste tipo de cultivo no país.
A região do Polígono da Maconha é, reconhecidamente, aquela que apresenta a área de maior extensão de plantio. Esta
constatação, contudo, não desconsidera a existência de outras regiões no Brasil onde se concentram parcelas significativas de
plantios como em municípios no Estado do Maranhão, de Mato Grosso do Sul, parte de Minas, interior de São Paulo. Nota-se, nos
últimos anos, a dispersão de plantios em áreas até então inexistentes, devido à maior repressão no Polígono.
Apesar da existência de plantações em outras partes do Brasil, a produção nos municípios do Baixo e Submédio São
Francisco2 tem se destacado pelo alto volume. Outro elemento a ser realçado é a antiga presença da planta na região, embora o seu
cultivo em grande escala seja um evento mais recente voltado para o mercado. As conclusões, mesmo parciais, as quais os estudos
sobre a temática no Polígono da Maconha têm chegado não podem, entretanto, ser transportadas para outras realidades no país,
onde, igualmente, cultiva-se maconha. Fatores históricos, culturais e estruturais tornam a plantação da diamba nesta região
específica no sentido da construção de determinadas relações entre atores envolvidos ou não no plantio.
Este artigo pretende contribuir para o incipiente debate acerca do aprofundamento do conhecimento das relações
estabelecidas entre atores diferenciados envolvidos direta ou indiretamente com o plantio de cannabis sativa na região
denominada Polígono da Maconha ou, como é preferível nomear, evitando-se estigmas, a região do Baixo e Submédio São
Francisco. As reflexões aqui engendradas são provenientes da experiência do autor em trabalhos na região há dez anos e mais,
recentemente, de um trabalho experimental realizado no ano de 2006 para subsidiar a feitura de um projeto ainda inconcluso.
Participação em dois levantamentos sobre a situação dos direitos humanos em trabalhos desenvolvidos junto com ONGs e
organizações sindicais; uma pesquisa sobre a situação dos jovens e o plantio de maconha com recursos do Ministério da Justiça.
Este trabalho, portanto, busca refletir experiências de investigações e reconhece a especificidade e diversidade da região.
De outra maneia, compreende como a questão do plantio envolve atores diferenciados e é capaz de proporcionar
institucionalidades a partir de práticas que consolidam por meio de seu ilegalismo. Para manter o anonimato das pessoas e de
organizações que prestaram depoimentos, os nomes, quando citados, são fictícios evitando que sua revelação implique em
possíveis problemas de segurança.

Antecedentes da Presença da Maconha na Região


O denominado Polígono da Maconha abrange uma vasta região, localizada no entroncamento de quatro estados da
federação: Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Recentemente, com a descoberta de plantações da erva na Chapada do Araripe,
a Polícia Federal também tem considerado o Ceará como pertencente à região pela sua proximidade. Originalmente, contudo,
cidades do Ceará não estavam contabilizadas na geometria do Polígono . Corresponde a uma ampla área, metade dela situada em
Pernambuco. O número de cidades varia, segundo o órgão que a contabiliza, mas a cifra situa-se entre 20 e 30 municípios.
Cidades como Orocó, Cabrobó, Belém do São Francisco, Salgueiro e Floresta se destacam como locais com existência de
significativas áreas de cultivo de maconha. Salgueiro se notabiliza tanto por sua importância como município onde há expressivas
plantações, quanto por sua localização estratégica, atravessado por quatro importantes rodovias que o conecta a outros estados do
Nordeste, condição fundamental para o escoamento da produção local.
A região é reconhecidamente a maior produtora da planta no país. Dados da Polícia Federal, sobre a atuação do órgão na
erradicação de pés de maconha no ano de 2005, indicam que dos 1.544.680 pés destruídos em ações, 1.413.965 (91,53 %)
estavam localizados na região Nordeste e a quase totalidade no chamado Polígono da Maconha.
Ainda, segundo números do órgão e de informações obtidas com pessoas envolvidas em elos diferenciados da rede de
plantio e escoamento do produto, a produção local está voltada, praticamente, para o abastecimento dos Estados do Nordeste,
notadamente, Pernambuco, Ceará e Bahia. A maconha produzida no Submédio São Francisco não se destina, pelo menos
atualmente, às principais cidades consumidoras do país como Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Alegam-se dois motivos
para que isso não ocorra: a melhor qualidade da maconha produzida no Paraguai, que se dirige a estes mercados maiores, com um
teor mais significativo de THC3 e; a longínqua distância a ser percorrida pelo produto produzido no Polígono e que deve ser
escoado em vias que apresentam péssimas condições de tráfego, aumentando o custo e o risco de apreensão da droga.
O Paraguai é considerado o principal abastecedor do mercado de cannabis sativa do Cone Sul (Gallardo, 2006). Com
um consumo interno baixo, condições excelentes para a plantação da erva que propiciam a unidade da planta alcançar o tamanho
de até 3 metros de altura, quando a média, geralmente, se situa em metro e meio, desencadeando uma elevada produção, que

2
O Vale do São Francisco está subdivido em Alto, Médio, Submédio e Baixo. O submédio São Francisco insere áreas dos Estados da Bahia e Pernambuco,
abrangendo municípos dee Remanso até a cidade de Paulo Afonso (BA), e inclui as sub-bacias dos rios Pajeú, Tourão, Vargem e do rio Moxotó, último afluente da
margem esquerda.
3
tetrahidrocanabinol (THC) é o princípio ativo da cannabis sativa.

747
possibilitou a queda do preço e o aumento de sua diversidade. No país, pode-se encontrar a maconha mentolada, a denominada
manga-rosa (com mel) e a tradicional. Fala-se que a diversidade da cannabis paraguaia se oriunda da prática de manipulação
genética, mas não há comprovação de tal fato. Acredita-se ser de nacionalidade brasileira os principais produtores do país. Os
cultivadores do país vizinho são os principais fornecedores para Argentina, Chile e Uruguai.
O Brasil possui uma produção considerável de maconha, mas insuficiente para abastecer a demanda nacional (Gallardo,
op. citado). Neste sentido, consideráveis proporções da maconha consumida no sudeste e do sul do país, advêm do Praguai. A
maconha paraguaia entra no Brasil pelo Mato Grosso do Sul, pela cidade fronteiriça de Ponta Porá e Dourados, proveniente de
Pedro Juan Caballero e Capitán Bado. Proporção considerável de maconha ingressa no país vem pelo Rio Paraná, cuja boa
navegação ( e corrupção) facilita a entrada. Segundo estimativas da Polícia Federal brasileira, a maconha em Capitán Bado, no
lado paraguaio da fronteira, o Kg tem preços variados entre R$ 15,00 a R$ 30,00. Na cidade de Dourados, no Estado do Mato
Grosso do Sul, a mesma quantidade é encontrada entre de R$ 150,00 a R$ 200,00. Na capital do Estado, Campo Grande, R$
200,00 a R$ 250,00. Na principal cidade do país, São Paulo, dez gramas do produto é avaliado em R$ 5,00 (Polícia Federal,
2005).
Em 1997, por ocasião do trabalho da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, que resultou no Relatório "Violência
no Polígono da Maconha", aventou-se a possibilidade da produção regional de maconha estar atrelada ou com ramificações com o
grupo criminoso Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, devido a prisão em Salgueiro do traficante conhecido como "Ostinho do
Fubá", que se passava por comerciante, tendo, inclusive, conquistando a simpatia das pessoas locais, tendo seu nome indicado
para compor o Lyons Clube da cidade. Nada se pôde comprovar, entretanto, a respeito desta ligação. Ainda que o envolvimento
de grupos criminosos do sudeste do país com a produção regional da erva fosse possível, este fato não indicaria a possibilidade da
maconha da região se destinar aos grandes centros consumidores do país. A hipótese mais viável seria a diversificação do negócio
destes grupos criminais para a região, mantendo a produção para o mercado para o qual sempre se destinou.
A CPI do Narcotráfico, implementada pela Câmara Federal, em 1999, identificou, como veremos mais a frente, que em
municípios do Submédio São Francisco, como Floresta e Salgueiro, as rixas entre famílias, conflito históricos, e o envolvimento
das mesmas com atividades ilícitas e de grilagem de terra migraram para o plantio de maconha, quando esta atividade econômica
tornou-se possível, rentável e alternativa. O envolvimento de políticos dos executivos municipais, juízes, deputados, vereadores e
policiais constitui-se elemento fundamental para que a atividade de plantio ganhasse contornos violentos.
Registra-se a presença de cannabis na região há bastante tempo. Apontamentos sinalizam para a plena adaptação de
condições climáticas locais para o cultivo da planta e da existência de uso coletivo e/ou ritualístico da maconha. Burton (1869),
em trabalho exploratório às margens do Rio São Francisco no século XIX, identificou como o clima e a vegetação eram propícios
para o seu cultivo. O explorador inglês, entretanto, referia à possibilidade de plantações visando à produção de tecidos, a partir da
utilização das fibras de cânhamo, produto bastante apreciado pelo mercado e largamente utilizado na época.
Mais recentemente, Pierson (1972), em trabalho desenvolvido para o governo brasileiro na década de 19504, descreve
situações tanto de uso da cannabis sativa em determinadas localidades, como de plantio às margens do Rio em, pelo menos cinco
localidades. Pierson, na verdade, refere a cidades do Baixo São Francisco.
O uso de maconha em Passagem Grande parece constituir sempre uma experiência social, contudo, desde que os habitantes
aparentemente a fumam apenas em grupo. Um círculo, ou “roda”, é formado, passando o cachimbo de mão em mão. À
medida em que o indivíduo passa-o à pessoa ao seu lado, ele ou ela, diz: “Ajoie, Marica!5” cantando então uma canção,
conhecida como “lôa”, em louvor da maconha. Em uma roda observada pelo nosso pesquisador6oito pessoas participaram.
Cada uma delas puxou três ou quatro vezes e passou a marica ao vizinho, dizendo “Ajoie, Marica!”, fazendo em seguida sua
louvação.
Diz-se na localidade, que o uso da maconha produz euforia, tagarelice, “vontade de dançar”, e, quase sempre, fome intensa.
Concluída a roda observada pelo pesquisador, o equivalente a um samburá de camarão foi comido pelos oito membros do
grupo. (Pierson, 1972:50-51)

Em pesquisas e visitas à região , quando se indagou a moradores, trabalhos rurais não envolvidos com o plantio de
maconha e outros atores locais se tinham informações sobre o uso tradicional da maconha, as respostas geralmente eram
negativas. Fala-se que na região sempre houve plantio, mas a atividade era destinada à venda, no entanto, não se soube precisar
exatamente este tempo, ou seja, há mais de 30 anos ou não. Uma importante liderança religiosa de Salgueiro em entrevista ao
autor deste artigo disse que há cerca de vinte anos atrás era possível observar plantios em grandes áreas próximas às principais
rodovias da região como em Cabrobó, Orocó e Salgueiro. Tinha informações, já nesta época, do plantio dirigir-se aos principais
mercados consumidores do Nordeste e do país. As constantes operações da Polícia Federal e da SENAD, entretanto, segundo sua

4
O trabalho foi desenvolvido na segunda metade dos anos de 1950 para a Comissão do Vale do São Francisco (CDVS), mas somente foi editado em 1972 pela
Superintendência do Vale do São Francisco (SUVALE), órgão do regime militar que a substituiu .
5
Originalmente, em Pierson (1972) existe a seguinte nota de nº 50: “Isto é, “Ajoelhe-se”!, um fato que indicou ao nosso pesquisador que outrora poderia ter sido feita,
ao receber-se o cachimbo, uma genuflexão “em homenagem à maconha.” (Pierso, 1972, 95)
6
Originalmente, em Pierson (1972) existe a seguinte nota de nº 51 “Em seguida a trabalho cuidadosamente planejado para obter permissão dos participantes.”

748
avaliação, levaram os plantadores a tomarem maiores precauções e medidas visando à proteção da atividade. Passaram a cultivar
em áreas de caatinga e nas ilhas fluviais do Rio São Francisco. O mesmo informante declarou, ainda, nunca ter ouvido falar de
consumo tradicional/ritual de maconha na região e se algum dia houve, não existiria mais.
Nos deslocamentos pelas estradas da região, pôde-se observar por duas vezes a venda de aguardente com folha de
cannabis curtindo em seu interior. Quando indagados se era uma forma de consumir a cachaça muito apreciada na região, a
resposta foi que era comum o consumo da bebida naquela forma. Entretanto, nunca observou-se tanto em botequins ou em casas
de pessoas consumidoras de aguardente aquele tipo de consumo, nem nunca ouvi-se falar de outros informantes desta forma de
consumir a cannabis. Provavelmente, a bebida somente deva ser vendida nas estradas para eventuais consumidores ou o seu uso é
bastante restrito ou reservado.
Pierson (1972) cita uma forma de consumo de maconha mergulhada em líquido, que seria comum na região e de seu
consumo generalizado entre os setores populares.
Na área em torno de Passagem Grande é geral o uso da maconha entre as classes mais baixas da população. Não se conhece
membro da elite que a use. Consta-se no local que a maconha foi, de início, trazida para o Brasil pelos escravos africanos,
presumidamente de Angola, desde que é conhecido popularmente na localidade como “fumo de Angola”. Embora no Sul, a
maconha seja usada sorrateiramente sob a forma de cigarros , em Passagem Grande é fumada com uma espécie de narguilê
primitivo, composto de uma garrafa comum, de boca estreita, cheia de água e o canudo do cachimdo de maconha, conhecido
como “Marica”, mergulhado no líquido. As sumidades floridas da maconha são colocadas no fornilho de barro do cachimbo
e acesas com um fósforo. O fumo é “lavado”, dizem os moradores, pelo reservatório de água antes de chegar à boca do
fumante. (Pierson, 1972: 95)

Pernambucano (1937) ao realizar estudos e pesquisas sobre a maconha em Recife, relata o seu uso bastante frequente
nos setores populares, em ocupações laborais como barcaceiros e jornaleiros e entre indivíduos situados nas franjas da
marginalidade como malandros e meretrizes. Alguns trabalhadores faziam uso da diamba para aliviar os sofrimentos da profissão,
do duro desempenho diário de suas atividades. Narra, ainda o autor, serem barcaceiros os principais importadores da erva para a
capital pernambucana, pois revela, curiosamente, que na época Pernambuco possuía uma plantação diminuta. A maconha
consumida na cidade vinha principalmente de Alagoas e Sergipe obtidas de “velhas que vivem de plantal-a (pág.191)”. Embora,
não faça nenhuma menção direta em seu texto sobre de qual parte especificamente destes estados viriam o produto, é bastante
provável que tivesse sido trazido das regiões do Baixo e/ou do Submédio São Francisco.
Objetiva-se ao trazer para o debate a questão da presença da maconha na região e da possível existência de um tipo de
consumo tradicional da erva, considerar a possibilidade de uma experiência anterior do plantio, que aumentou ao compasso de
uma demanda de mercado propiciada, entre outros fatores pela proibição do uso. Ou seja, havia plantios anteriores, mas que se
incrementaram nas últimas décadas por uma procura maior pelo produto no mercado dos Estados a que se dirige. Ainda que não
seja possível afirmar a ocorrência de uso tradicional disseminado da erva na região, os estudos anteriormente citados parecem
evidenciar que na região havia uma relação de determinados grupos e atores com um consumo coletivo em localidades
específicas.
Uma questão, contudo, que parece se evidenciar é a permanência de plantio há mais de um século. Pierson (op..citado)
já relatava, em seus apontamentos, como às margens do rio São Francisco nos anos de 1950 já era possível observar plantações de
cannabis, nos quatro Estados, cujos municípios compõem as regiões do Baixo e do Submédio São Francisco e acusava o comércio
clandestino da região para outras cidades do sudeste do país e para Salvador. Outro elemento evidenciado pelo antropólogo
americano diz respeito à baixa repressão policial ao plantio. Este dado, somada às informações que o autor deste artigo pôde obter
junto a atores locais, parecem evidenciar o fato de que a repressão dos órgãos policiais só se amplia no final dos anos de 1980 e
1990.
A maconha, embora seu plantio seja proibido por lei, é cultivado clandestinamente em Passagem Grande e, sabe-se, nas
vizinhanças de quatro outras cidades às margens do rio, no mesmo Estado, bem como na outra margem, no vizinho Estado
de Sergipe e em dois outros Estados. É tomado cuidado menos para evitar a polícia do que possíveis portadores do “mau
olhado” (Ver Doença e Seus Tratamentos) que segundo se diz, “meramente andando entre as plantas podem fazê-las
murchar, tão sensíveis são elas e tal influência”. Depois que as sumidades ou bolotas ficam floridas, são colhidas, secadas, e
vendidas em pacotes de 100gramas. Um barbeiro local, recebe-os de um município vizinho, levando-os a uma cidade rio
acima onde, segundo se diz, são vendidos nos navios que partem para o Sul a fim de serem revendidas, especialmente em
Salvador, Rio e Santos. Como contrabando, as flores são misturadas com os galhos da planta. (Pierson, 1972: 457)

A Região e o Aumento das Áreas de Plantio em um Contexto de Desigualdades


Mello (2004) observa que o emprego de formas de violência como a utilização de jagunços, capangas e de cabras para a
resolução de conflitos de terra, de rixa de famílias e de disputas políticas era disseminado no Nordeste ao longo de todo o período
do ciclo do gado. Tal recurso era bastante comum a ponto de haver em ocasiões específicas deslocamento de tropas estaduais e
federais para determinadas regiões como no caso ocorrido no Ceará em 1914, com a derrubada do governo ou na Bahia, em 1920,

749
com a ameaça de deposição do poder público estadual. O próprio Governo Federal, entretanto, lançou mão do recurso, por
intermédio de chefes políticos sertanejos, na repressão á Coluna Prestes. Jagunços foram utilizados para compor a linha de frente
na conenção ao avanço do movimento liderado pelo líder comunista.
Os sertões nordestinos foram cenários de lutas intensas entre jagunços que compunham “exércitos” particulares, numa
demonstração de arbítrio do poder privado dos chefes municipais. Em cidades como Floresta e Belém do São Francisco, assim
como em outras municipalidades de Pernambuco, estas brigas entre famílias e a ameaça aos movimentos sociais se estendem até
hoje. Os jagunços, os cabras e os capangas, contudo, foram substituídos pelos pistoleiros de aluguel, esta figura urbana
responsável por assassinatos de lideranças sindicais, religiosas e dos inimigos de determinados chefes locais. Mello (2004) relata
o não registro deste personagem na década de 1930, mas ele pode ser uma derivação moderna dos tocaieiros, homens que ficavam
dias a espera de sua vítima, espreitando nas curvas das estrada ou em meios de caminho. Com hábitos e características diferentes,
contudo, o pistoleiro de aluguel não tocaia sua vítima, mas vai ao encontro dela. É solitário, não possui relação direta com o
mandante, mas recebe instruções e presta conta de seus serviços, geralmente, a um intermediário. Barreira (1998) em estudos
sobre os crimes de pistolagem no Ceará, observou que a atuação dos pistoleiros estava ligada praticamente a duas situações: ao
voto, na manutenção do mando político e na questão da terra, na preservação e/ou conquistas de domínios territoriais. Na questão
da terra, o alvo da ação dos pistoleiros representa as lideranças camponesas e religiosas que lutam junto aos trabalhadores e na
disputa pelas representações políticas, os litigantes são grupos familiares.
Os dados sobre homicídios em cidades da região como Belém de São Francisco e Floresta apontam para a coincidência
do aumento das taxas deste evento com o incremento da produção e da consequente repressão de forças policiais. Dos anos de
1997 a 2000, as taxas de homicídios de Floresta credenciaram-lhe a condição de município com a mais elevada taxa deste evento
no país. Neste período, das 10 cidades mais violentas do país, considerando esse indicador, três estavam situadas na área do
Polígono (Floresta, Belém do São Francisco).
A maior coerção ao plantio a partir dos anos de 1990 acarretou na presença mais frequente de armamentos com poderio
maior como fuzis e submetralhadoras. Quando havia uma repressão mais incisiva da polícia, parte dos armamentos se deslocava
para outras atividades criminosas como assalto a ônibus e caminhões de cargas. Durante um bom período, trafegar pelas rodovias
que cortavam os municípios da região era atividade de alto risco. Estes elementos atrelados ao fato de que as antigas rixas
políticas e de poderio de famílias tradicionais da região migraram também para o negócio da maconha.
No Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito Destinada A Investigar o Avanço e a Impunidade do Narcotráfico
(2000), depoimentos apontaram a participação de membros de famílias envolvidas em rixas antigas na atividade do narcotráfico
De acordo com as declarações do codinome “Sertão”, no município de Floresta, existem vários políticos envolvidos com
narcotráfico, assassinatos e assaltos. São feitas denúncias, o Tribunal de Contas apura, comprova as irregularidades e não dá
em nada. Que, toda denúncia que é feita, dá em nada, como tem cargas roubadas, plantio de maconha dentro da fazenda de
Afonso Augusto Ferraz. Que, existem denúncias contra a própria polícia .Que, tem um ten. da polícia, Fabrício Ferraz,
filho do vereador Babá Ferraz, traficante, fornecedor de vários plantios de maconha. Já foi preso por porte ilegal de arma,
por formação de quadrilha, mas continua impune. Que, há poucos dias, foi preso um caminhão carregado com maconha,
com palmas. Que, os donos da carga seriam Donizete Novaes, Reginaldo Novaes, Torres Novaes e Babá Ferraz. Que,
Rinaldo Ferraz é um dos que manipulam o sertão com o tráfico de drogas, cocaína, armamento pesado, assaltos a bancos e
a carro-forte, juntamente com a equipe de Gracinha Ferraz, Jorge Grampão e um ex-policial chamado Claudionor. Que,
tem um empresário chamado Eraldo Menezes, que também manipula o tráfico de assalto e cargas roubadas, junto com os
companheiros como o Sales, o Chico e o Armando de Petrolina.Que, sonegam impostos, trazendo mercadorias sem nota
fiscal. Que, levam maconha, cocaína e armas para Recife e entregam para Rinaldo Ferraz, Estênio Ferraz, Mauro Ferraz.
Que, Dozinete Novaes e Geraldo Novaes transportam maconha para Recife e entregam para o Rinaldo Ferraz.

Marques (2003) afirma que as brigas de família no sertão podem ou não estar ligada a fatores políticos, os alvos e
alianças compostas nestas rixas, contudo, são ou produzem efeitos políticos. A autora descreve briga e política como episódios
das relações sociais, nos contextos onde estão inseridas, como parte de um todo possível, coincidente e tampouco excludente, que
são provisórias e substituíveis.
O envolvimento de membros de famílias em contendas e a maior implicação de outros atores e personagens como
jovens, pequenos agricultores, aliado a fatores estruturais, possibilitaram que a violência atingisse um número maior de pessoas.
Este fato pode ser explicado tanto pelas características de atividades ilícitas de necessitarem diminuir os riscos que ameaçam suas
atividades, utilizando-se de meios violentos, mas também porque o aumento da rede e dos elos da cadeia do plantio de certa forma
ganhou uma institucionalidade maior. Consequentemente, esta institucionalidade originou em torno de si novos comportamentos e
práticas. Pode-se afirmar que o aumento das atividades está vinculado ao envolvimento de grupos locais com certa influência na
região, mas que nos últimos anos a maior repressão não somente acarretou no envolvimento de outros atores até então fora das
redes, proporcionando novas práticas sociais e uma maior socialização com a questão.
As estratégias também tiveram que ser revistas com a maior coação. Se antes era possível plantar em locais visíveis,
hoje o plantio se dá em áreas mais abrigadas e de difícil acesso. Algumas inovações legais como a desapropriação para fins de
reforma agrária, sem direito á indenização, de fazendas e terras onde fossem encontrados cultivos da erva, contribui também para

750
a mudança de estratégias. Uma consequência ambiental é a presença cada vez maior de plantios na caatinga, em áreas de
preservação. Acusamos, também, como consequência desta nova estratégia, casos de pessoas que plantam maconha nas terras de
seu vizinho, próximo ao limite dos terrenos, pois se houver flagrante na plantação ele não perde suas terras. As estratégias vão se
moldando à nova realidade de maior repressão.
Neste processo, portanto, o uso de meios violentos para resolver diferenças passou a atingir também atores fora do ciclo
tradicional da rede. No ano de 1997, uma importante liderança sindical dos trabalhadores atingidos pelas barragens, ativista do
Pólo Sindical do Submédio São Francisco foi morta. Seu crime foi encomendado e executado por um pistoleiro, porque Fulgêncio
Manoel dos Santos fizera denúncias contra o assédio e as ameaças que trabalhadores rurais vinham recebendo de traficantes que
queriam vê-los plantando maconha em suas terras, sobretudo, nas agrovilas. A ameaça a lideranças do movimento sindical rural
não se restringiu a esse fato. Outras lideranças passaram a ser intimidadas ao se manifestarem contra a forma como os traficantes
passaram a atuar na região.
Houve um aumento de homicídios praticados por pistoleiros. Na cidade de Floresta durante um período muito tenso, ao
final dos anos de 1990, quando se seguiram vários assassinatos, a polícia proibiu os condutores de motocicletas de usarem
capacetes, decisão que infringe o Código Nacional de Trânsito, pois muitos assassinos usavam os capacetes de suas motos para
preservarem sua identidade ao praticarem crimes.
Os jovens têm sido o grupo mais atingido por toda a violência proveniente da intensificação de tensões relativas ao
plantio. Geralmente, são os mais envolvidos como guardiões de plantações ou em atividades correlatas, próprias do universo desta
atividade ilícita. Segundo informações de um jovem plantador, seu ingresso no cultivo se deu aos 13 anos, quando com a morte
prematura de seu pai teve que assumir perante a família a responsabilidade do sustento da mesma. Como o plantio de produtos
tradicionais como cebola, milho e feijão não lhe davam retornos financeiros suficientes resolver aderir ao plantio. No seu caso, o
plantio era no sistema de meieiro. Ele recebia todos os insumos (sementes, adubos...) e, depois, a colheita era dividida entre os
dois. Quem vendia a erva era o “patrão”, forma como se referia à pessoa com quem negociava. O recurso advindo da venda era
dividido entre os dois. Não havia controle por parte do plantador do preço pelo qual era vendida a produção.
Alegou que passou a desempenhar atividades no plantio de maconha por falta de opção, mas, com o passar do tempo,
como o recurso que conseguia era maior do que qualquer outra atividade que pudesse desempenhar ficou alguns anos no negócio
até ser preso em uma operação da Polícia Federal. Declarou que sua entrada na atividade ocorreu, além da necessidade de
sustentar sua família, por observar o ganho de pessoas que estavam plantando obtinham. Adquiriam bens não acessíveis a um
trabalhador rural assalariado ou pequeno produtor como motos, carros e conseguiam melhorias consideráveis em condição de
vida.
Reconhecia que a atividade era ilegal, mas ponderava que não estava prejudicando ninguém, pois não efetiva roubos,
mas, apenas, trabalhava em um cultivo ilegal. Sua fala trás duas questões interessantes: o reconhecimento de que cultivar a
maconha é um trabalho, embora considerado ilegal, uma atividade laboral que requer esforço. Como requer esforço e não está
prejudicando individualmente ninguém, então, não se considerava um bandido, numa alusão à diferenciação de sua atividade
daquelas praticadas por outros trabalhadores rurais era o fato de estar envolvido em um cultivo considerado proibido, mas a
natureza de seu trabalho não era distinta da praticada por lavradores de produtos agrícolas tradicionais.
Uma outra questão a se destacar é o impacto do próprio plantio sobre a economia local. Salgueiro, no início dos anos
2000, possuía quatro agências bancárias e muitas lojas de “marca”, situações difíceis de se observar em uma cidade sertaneja
(Fraga, 2003). Segundo alguns depoentes, este crescimento pode ser atrelado a presença do plantio na região. Sobre esta questão,
uma importante liderança religiosa acrescenta:
Estou aqui há 14 anos e vivi o período mais vivo do plantio e eu me lembro dos primeiros anos que vinha visitar essas
comunidades. Não se via motos, mas em dois ou três anos já se tinha em tudo o que era casa. Eram os jovens que
conseguiam, pois o sonho era plantar, vender a maconha e comprar a sua moto, tinham transporte tranquilo, eles
sobreviviam. Então se percebia que era tão normal. Isso, que os jovens perguntavam se era pecado isso, era coisa comum.
Eles iam à Igreja fazer a primeira comunhão e se confessar. Eu perguntava se não tinha outra saída, como plantar feijão, mas
não tinha água. Com a maconha só precisa de um pouco d`água e para feijão como é que faz, quantos hectares tem que
plantar sem água? Então era uma coisa tranquila, não havia perseguição porque o comércio era bem protegido e as pessoas
bem protegidas. Um cara veio aqui do Comando Vermelho do Rio de Janeiro que foi preso, alugou uma casa aqui e era o
cabeça de tudo. É só ir na casa saber quem alugou, quem era o cara, para descobrir a máfia que tem por trás, porque a CPI (o
padre refere-se à CPI do Narcotráfico realizada em 1999) tinha a finalidade de pegar peixes grandes. Queremos deputados,
aí era Ibope, a CPI não pegou a máfia. Na minha previsão não melhora não, as coisas vão piorar. Eu acho que vai aumentar
e tomara que não entre outro tipo de droga, porque infelizmente não tem política que resolva esse drama da nossa juventude.
(KOINONIA)

O sistema de meieiro, entretanto, não é a única forma de relação entre agentes no plantio de maconha. Há casos de
contratação por assalariamento ou de compra da produção de pequenos produtores que são contratados para plantar e vender toda
a sua plantação para um determinado negociante. Na ocasião de uma visita à região, em 2006, foi possível conhecer a história de
Severino. Trata-se de um pequeno produtor de Orocó e plantava maconha há pelo menos três anos e sabia do risco de perder suas

751
terras se fosse o cultivo da planta foose descoberto por agentes policiais. Sua família estava envolvida com a plantação localizada
no fundo de suas terras, emaranhada a outros plantios tradicionais. Era uma pequena lavoura, com um número bastante reduzido
de covas, mas que oferecia um risco bem grande ao produtor rural, no entanto, a pequena plantação de maconha era a principal
fonte de recursos daquela produção familiar.
Diferentemente de Severino, Antônio é um diarista envolvido no plantio de maconha. Na época da entrevista, tinha
dezoito anos completos a poucos meses, mas confessou trabalhar desde os treze anos com o plantio. Sua condição de diarista o faz
se envolver com outros plantios tradicionais como de frutas como o mamão, com feijão e cebola. Estudou até o primeiro ano do
ensino médio, mas havia abandonado os estudos. Confessou que gostava bastante das atividades estudantis e se considerava um
bom aluno. Deixou de estudar porque não conseguiu conciliar o trabalho com a atividade discente. Alegava muito cansaço, pois
chegava em casa tarde e já cedo estava na lavoura para o trabalho. Disse que iniciou no plantio, pois tinha vários colegas que já
estavam na atividade e, também, conhecia várias pessoas que ganhavam mais na diária do cultivo de maconha que resolveu entrar,
pois recebia mais do que a diária de outros produtos. Informou que em sua cidade Orocó, muitas pessoas estavam envolvidas com
o plantio e que chegava a ganhar em uma colheita entre dois mil e três mil reais, o que corresponde a um período de três a cinco
meses. Durante o período do cultivo, geralmente, nunca se abandona o local de plantio, evitando que haja roubo por parte de
algum outro grupo. Por isso, montam-se acampamentos, onde pessoas se revezam na vigilância. O cuidado com o plantio visa
mais que algum outro grupo possa vir roubar o plantio do que a resistência ãs operações policiais. Comumente, quando a polícia
descobre e reprime um plantio nunca há troca de tiros, mas procura-se fugir abandonando o cultivo.
Os três casos evidenciam a diversificação na forma de plantação e de contratação de pessoas no plantio e colheita da
maconha. A distinção das formas de envolvimento acarretou na inclusão de mais agentes no contexto desse cultivo ilícito. A
repressão policial não diminui o número de atores envolvido, ao contrário, mas implicou em novas estratégias.

Tecendo Considerações
Como evidenciamos no início deste artigo, há ainda um hiato nos estudos no Brasil sobre a produção de plantas
consideradas ilícitas como a maconha. Na Bolívia e no Peru, as plantações de coca têm fins lícito e ilícitos, devido aos uso
seculares, terapêuticos e culturais da denominada mama coca. Parte da coca vai para a produção de cocaína, mas o uso tradicional
é forte e representa parte significativa da economia de milhares de agricultores.
No Brasil, não há um uso tradicional da maconha, como nos moldes da folha de coca desses países andinos. Todavia,
parte significativa dos envolvidos no plantio da maconha é de camponeses que em uma política agrária que os beneficie voltaram-
se para o cultivo da maconha como alternativa de renda. As cadeias de Salgueiro e de Recife têm entre seus hóspedes, número
significativo de trabalhadores rurais, cujo crime foi plantar cannabis. Durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso iniciou-
se uma experiência de substituição de plantios que não seguiu adiante, talvez pela própria ineficiência dessas alternativas em um
contexto social tão complexo.
É fundamental compreender a dinâmica das relações que e produziram entre os atores sociais nesta região, a partir do
incremento do plantio de maconha. Parte da violência não está atrelada ao plantio. Existem lugares onde plantios ilícitos não
estão, necessariamente, atrelados à violência. No entanto, o sistema de produção, beneficiamento e venda de subtâncias
psicoativas consideradas ilícitas, devido ao seu ilegalismo, pode se apropriar de relações sociais com forte presença de conflitos e
intensifica-las. Uma outra característica do narcotráfico é o número significativo de agentes que ele envolve no seu sistema
produtivo. Na região aqui descrita, tato a repressão quanto o incremento da produção envolveu nos elos da cadeia um número de
agentes de diferenciados estratos sociais.
Compreender toda esta dinâmica é fundamental no sentido de criar políticas públicas que não penalizem ainda mais o
elo mais fraco de toda a cadeia produtiva: o trabalhador rural. A política de redução de danos talvez necessite não só atingir o
usuário, mas também alcançar o trabalhador rural.

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753
“Negócios e trapaças: O lucrativo comércio marítimo ilícito de africanos no
município de Macaé (1830-1865)”
Josane Rodrigues Boechat
Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO/Niterói
[email protected]

Resumo: A pesquisa propõe estudo acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira metade do século XIX, no município de Macaé.
Chama a atenção para os navios que atuavam nessa atividade ilegal, que foram autuados no tráfico de contrabando de africanos negros boçais
vindos da África. Assim, a pesquisa propõe averiguar a prática do tráfico ilegal da cidade de Macaé, a rota do tráfico ilegal, do contrabando e
pirataria de africanos, na influência da economia do comércio negreiro com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de
contrabando de negros africanos no território da província, dos traficantes residentes na província ou imediações, as apreensões feitas na
costa do município, seja por navios da polícia da marinha brasileira ou inglesa, como, quantos navios e quem dos traficantes foram
apreendidos como suspeitos por contrabando e pirataria. Os desembarques clandestinos se processam nos portos, nas praias desertas, com a
colaboração muitas vezes da população litorânea. Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática ilegal, na
região do município de Macaé. Vários foram os barcos suspeitos de tráfico, contrabando e pirataria nas imediações da cidade de Macaé como
o navio brigue escuna Tentativa e o iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante, de tantos outros foram apresados e removidos em
depósito para a Casa de Correção da Corte para inquérito e responder ao processo-crime de tráfico, contrabando e pirataria.
Palavras-chave: Tráfico. Escravidão. Escravos.

A comunicação tem por objetivo demonstrar pela analise do período do comércio ilegal de africanos vindos através
do Atlântico para o Brasil.
O trabalho ainda não está concluído estando em fase de construção, mas desvela desde já um complexo sistema
legal onde processava uma emaranhada rede. Implicava numa sociedade conivente, por um país agro-exportador
expressamente representado por uma demanda de mão-de-obra escravista. A tudo isso, somava-se ao comércio, através do
contrabando de africanos. A partir fim do tráfico legal pelas Leis de 18311 (BETHELL, 1976, p.76) e 18502 impedindo sua
negociação livre dificultando seu trânsito, portanto implicando a um comércio ilegal.
Assim, o nascente país que despontava Brasil, mantido por uma economia escravista dependente, já com uma
permanência de quase 300 anos, passa a sofrer sanções por parte das autoridades brasileiras também pela política inglesa que
interpõe de modo abrangente dificultando o comércio transatlântico.
A essa dificuldade somam-se acordos Brasil – Inglaterra regida por decretos, artigos e leis fundamentando aos
ingleses e brasileiros a levar a cabo e por fim ao comércio transatlântico de escravos feito, a partir dos apresamentos de
navios que comercializavam com a Costa d’África, carga humana.
Deste modo, o Brasil torna grande provedor no contrabando de africanos, que são embarcados e trazidos da Costa
d’ África sendo então, desembarcados muito deles nas praias desertas e afastadas ao longo do litoral brasileiro em cidades
litorâneas implicadas na manutenção do tráfico e ao abastecimento não só do próprio local do ocorrido desembarque dos
africanos, mas também no intercâmbio do comércio interno do país.
Com isso, os navios negreiros que faziam o tráfico com a África levando na ida para o continente negro, produtos
brasileiros como cachaça, fumo, cacau, e tantos outros artigos, sua volta ao continente brasileiro era abastecido por um
carregamento de africanos para manutenção da escravidão.
Assim, o processo-crime do Iate Rolha e da Garoupeira Santo Antonio Brilhante com a apreensão por contrabando,
tráfico e pirataria de africanos negros é o tema de estudo e propõe acerca do tráfico ilegal e suas implicações na primeira
metade do século XIX, no município de Macaé.
A rota do tráfico ilegal, do contrabando e pirataria de africanos, na influência da economia do comércio negreiro
com a província, a incidência com o que ocorria o desembarque de contrabando de negros africanos no território da
província, dos traficantes residentes na província ou imediações, as apreensões feitas na costa do município. Os
desembarques clandestinos se processam nos portos, nas praias desertas, com a colaboração muitas vezes da população
litorânea.
Tem por sua estrutura uma divisão que se apresenta por Ofícios do escrivão, na nomeação por este mesmo receber
impedimento para fazer parte do processo como também da designação do Dr. Auditor Geral da Marinha encarregado de
fazer junto a Comissão, a Corte, o Ministério dos Negócios e da Justiça, a Marinha de Guerra Imperial3.

1
Diogo Antonio Feijó, padre liberal, responsável pela aprovação do projeto de Barbacena, (com algumas emendas) tornando lei em 7 de novembro de 1831.
Feita em obediência a um compromisso do Brasil com a Inglaterra a fim de extinguir o tráfico de escravos, libertava os africanos chegados ao Brasil após sua
assinatura.
2
Lei nº. 581, de 4 de setembro de 1850 – Lei Eusébio de Queirós - Estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos neste Império. Em 4 de setembro
de 1850 foi sancionada a lei que, depois de uma sucessão de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico de escravos no Brasil. A lei tomou o nome de seu
propositor, o então ministro da Justiça Eusébio de Queirós.
3
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ).

754
Sendo assim, dá-se prosseguimento ao processo a partir de ofícios por meio do escrivão determinado e de
despachos de Avisos feitos em Cartórios, tudo por ordem do Dr. Auditor Geral. As intimações e de comparecimentos para
auto de perguntas mais diligências. Devidas Cartas Ofícios são outro meio de se fazer à mediação e deferência do caso em
questão. Não só de relatórios são deferidos as questões, mas no ato de remoções e de transferências como também o ato de se
fazer um relatório constando de uma lista ou rol, perfazendo uma relação dos africanos apreendidos constando o mesmo de
vários itens na apresentação e reconhecimento, na distinção dos africanos, seja por marcas ou mesmo de sua etnia até mesmo
pela sua idade e sexo. A relação é feita constando às referências que possibilitam o reconhecimento e o registro dos africanos
apreendidos. A relação é utilizada na transferência dos africanos quando em depósito das instituições públicas ou privadas, e
no reconhecimento dos africanos, como é anexado um resumo da lista ou rol de africanos.
A transferência em depósito tanto dos africanos quanto a tripulação é mais outro apêndice que consta dos processos
no tramite do mesmo para que este possa ser transparente, evidente e específico para o entendimento daqueles que o venha
lê-lo. A Casa de Correção emite um ofício do montante recebido em depósito, incorporado ao processo, dirigido ao Doutor
Auditor Geral da Marinha.
As juntadas são cartas ofícios, citando avisos, relatórios ou mesmo referências atualizando e acrescentando ao
processo fatos ocorridos a que venha esclarecer ao processo-crime. Acrescenta algum novo episódio, evento ou uma
passagem, engrossando o processo–crime.
Os ofícios de aviso são cartas referidas de uma instituição ou repartição a outra na qualidade de esclarecer ou
incorporar com fatos que serão incorporados no decurso do processo-crime como sendo mais um fator de justificar ou então
de reafirmar o ato cometido.
Além desses tópicos da estrutura do processo como item, temos o inquérito de perguntas e diligências que são feitas
à tripulação, mestres e passageiros da embarcação apreendida e também a tripulação do navio apresador como de
testemunhas sem deixar de mencionar os próprios africanos.
A lista de objetos é mais um recurso do processo. Listando e descrevendo os itens encontrados a bordo da
embarcação apresadas, demonstra nos artigos arrolados a justificativa da certeza da apreensão do navio.
Diligências de perguntas e respostas são argumentos ou mais, para formalizar o crime de contrabando, tráfico e
pirataria de africanos novos. São alegações, inquirindo, aos envolvidos, aqueles que se encontravam no momento da
apreensão da embarcação estando a bordo ou não; caracteriza-se por indagações a cerca da investigação; com intenção de
provar o crime ou refutar o mesmo.
Passa-se então, a serem feitos inquisições a testemunhas as quais podem ser a tripulação e passageiros das
embarcações apresadas e também do navio apresador na qualidade de poder fazer um acareamento das respostas dadas por
ambas as testemunhas. Assim, se ouve tantas quantas testemunhas forem necessárias para se ter uma visibilidade geral das
respostas e poder fundamentar as questões e se chegar então a uma conclusão.
O auto de inventário judicial, arrecadação e depósito dos pertences do iate feito na presença de um membro da
tripulação e mais testemunhas na qualidade de assegurar a veracidade do mesmo, elemento de valorizar os objetos
encontrados procedendo ao inventário e de desocupação formulando bases para delegar ao inquérito um fator positivo ou
negativo do apresamento.
Com isto, são feitos uma lista dos objetos encontrados que venham incriminar ou reabilitar o mesmo. Constituindo
de averiguação em demonstrar a criminalidade ou não nos aspectos que venham indicar sua culpabilidade como referência às
escotilhas fechadas ou com grades, os mastros reais em outras redes enfim, peças que fazem parte do navio, possibilitam
realçar o envolvimento do mesmo no tráfico. Desse modo ficam sob judice do depositório delegado para esse fim.
No mesmo dia em que foi feita a apreensão do iate Rolha no porto de Macaé, foi também apresado nas imediações
do litoral indo, em direção a Cabo Frio, uma garoupeira de nome Santo Antonio Brilhante, sendo interceptada pelo mesmo
vapor de guerra Urânia e constatado a presença de quatro africanos a bordo. Portanto essa embarcação foi redirecionada seu
destino para o porto de Macaé, onde os negros africanos encontrados a bordo da garoupeira foram incluídos, no rol com os
africanos do iate Rolha.
Assim, tão logo uma relação feita dos africanos contrabandeados no iate Rolha e na Garoupeira Santo Antonio
Brilhante, distinguindo nesse documento cada qual, fazendo uma contagem, pela sua origem como nação e marcas étnicas e
constando as idades presumíveis, o local proveniente de seu embarque ou mesmo de seu apresamento na Costa da África,
para então que se faça à denúncia pública e a remoção dos mesmos para a Casa de Correção juntamente da tripulação, tanto o
mestre, a tripulação e até mesmo o passageiro passam por toda a segurança necessária e de recomendação a uma fortaleza em
que a bordo de um navio de guerra, pelo Doutor Auditor. Somente em último caso serão conduzidos para a Cadeia do
Arsenal. Fica a tripulação na obrigação de serem responsáveis durante o julgamento pela sua manutenção dos africanos.
Essa relação acusa nessa listagem 95 africanos do sexo feminino entre elas 27 mulheres adultas e 78 mulheres
muitos jovens estando na faixa etária de 8 a 12 anos de idade, constando também 117 africanos do sexo masculino dentre eles
29 homens e 96 jovens em idades que variavam entre 10 a 15 anos. O total de indivíduos apreendidos foi de 221 entre
africanos e tripulação, todos destinados a Casa de Correção em depósito.
Interessa, também, nesse estudo dar conta dos sujeitos envolvidos nessa prática ilegal, bem como dos destinos e
cotidianos dos africanos negros apreendidos na região do município de Macaé. Destacaram-se em Macaé os traficantes:
Victorio Emmanuel Paretto (italiano), José Bernardino de Sá (português), Joaquim Ferramenta, José de Souza Velho,

755
Francisco Domingues de Araújo. Assim, aumentando o preço abusivamente, enriqueciam, justificando as dificuldades
encontradas para transportar os africanos, sendo um dos maiores negócios da época.
A proibição do tráfico veio aumentar abusivamente o preço dos escravos trazidos da África, justificada pela
dificuldade para o transporte, e assim, os traficantes sediados no litoral brasileiro, tornavam-se cada vez mais ricos, fazendo
do tráfico ilegal um negócio altamente rentável da época: O tráfico ilegal mostrava-se tão intenso que consta a entrada no
país (...) 3.000 africanos desembarcados ilegalmente em 1851, em barracões e em armazéns no município de Macaé,
informado por Charles Hamilton James, embaixador inglês. 4
Torna-se notório, o tráfico ilegal, não só em Macaé, mas, nos arredores, de Cabo Frio, São João da Barra, Cabo de
São Tomé, Ponta de Búzios, Itapemirim, Paraty, Marambaia, Angra dos Reis; mantinham elementos de ligação, escolhendo
locais de desembarque, e estabelecem as praias desertas e de pequenos barcos para ter contato com os navios negreiros,
passam a adotar sistemas de comunicação como códigos, avisos e sinais costeiros, para a sua própria segurança.
A terra fluminense5 foi um viveiro de escravos, tendo sido aqui introduzidos por vários pontos de entrada, de onde
seguiam a outros locais, podendo ser por via fluvial ou por picadas feitas nas matas, os que se destinavam ao interior do
Brasil chegando até Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, uma relação com o contrabando e comércio inter-regional.
O mínimo e o máximo exigido é que o julgamento aconteça num prazo de duração de 8 meses. O processo em
média: 6 meses para a abertura do processo; 37 dias para que as comissões venham dar suas sentenças; 70 dias para que a
sentença fosse executada nos casos de navios condenados; 28 dias antes que os escravos por ventura encontrados fossem
libertados até então permaneciam a bordo.
No final do inquérito a embarcação é julgada e considerada “boa presa”, devido à embarcação apresentar um
número tal de apetrechos indicando ser um navio devidamente aparelhado ao tráfico de africanos. É disposto um veredicto e
uma sentença que muitas vezes a venda em leilão do navio é necessária para cobrir o pagamento do tramite do julgamento
como também pelo crime de tráfico, contrabando e pirataria do qual foram acusados e julgados formalizando a contravenção.

Bibliografia e Fontes Primárias


Fontes primárias:
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Microfilme
AN ─ 114  2001  AGM;
AN ─ 115  2001  AGM;
Manuscritos
Série Justiça
IJ6  468 – Africanos. 1834 – 1864.
IJ6  469 – Africanos. 1824 – 1864.
IJ6  470 – Africanos. 1840 – 1868.
IJ6  471 – Africanos livres. 1834 – 1864.
IJ6  472 – Tráfico de africanos. Navios suspeitos. 1838 – 1860.
IJ6  480 – moeda falsa e tráfico de africanos. 1836 – 1864.
IJ6  481 – Moeda Falsa. 1855.
IJ6  510 – Moeda falsa e tráfico de africanos.
IJ6  521 – Tráfico de africanos – 1853 – 1865.
IJ6  522 – Tráfico de africanos. 1841 – 1865.
IJ6  523 – Africanos livres. 1833 – 1864.
IJ6  525 – Africanos 1831 – 1864.
IJ6  15 – Tráfico de africanos.
IJ6  16 – Africanos livres.
IJ1  450 – Africanos. Carta de emancipação.
IJ1  974 – Ministério da Marinha ao Ministro da Justiça.
IJ1 1067 – Ministério da Justiça – 1877.
Série Guerra
Códices  807  v.7  Diversos  1840;
Códices  807  v.2  Diversos  Império  1839;
Códices  807  v.15  Diversos  Portos  Brasil.
Caixas Topográficas  Escravos  2627, 1, 3; 2627, 1, 2; 2627, 2, 28;
Caixas Topográficas  Inventários  2635, 4, 23.

4
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos; São João da Barra; Macaé; São Fidélis. RJ: Editora Achhiamé. 2000. pp.78
5
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. Ed. Parceria Editorial. 2000. p. 24.

756
Referências Bibliografias:
BARROS, Aidil J.Paes & LEHFELD, Neide A de Souza. Projeto de Pesquisa. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos,
1807-1869. Rio de Janeiro: EDUSP / Expressão e Cultura, 1976).
CASADEI, Thalita de Oliveira. Os escravos na terra fluminense. RJ: Ed. Parceria Editorial, 2000.
DIÁRIO OFICIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria Regional da República da 1ª Região. Coordenadoria
para erradicação das formas contemporâneas de escravidão e para questões indígenas. Diário Oficial. Lei nº. 581, de 4 de
setembro de 1850 – Lei Euzébio de Queirós. Estabelece medidas para repressão do tráfico de Africanos neste Império. Em 4
de setembro de 1850 foi sancionada a lei que, depois de uma sucessão de medidas inócuas, determinou o fim do tráfico de
escravos no Brasil. A Lei tomou o nome do seu propositor, o então ministro da Justiça Euzébio de Queirós.
OSCAR, João. Escravidão & Engenhos: Campos, São João da Barra, Macaé, São Fidélis. RJ: Editora Achiamé, 1998.
PARADA, Antonio Alvarez. Tráfico de negros africanos no litoral do nosso Estado. “S.D.”
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-
1850). Campinas, SP: Editora da UNICAMP/CECULT, 2000. (Coleção Várias Histórias).

Violências e Conflitos Intersubjetivos no Brasil Contemporâneo


Arthur Costa
Universidade de Brasília
[email protected]

Resumo: No Brasil, podemos distinguir três tendências relacionadas ao aumento da violência: a) o aumento dos crimes contra o patrimônio,
b) a emergência de novos padrões da criminalidade organizada e c) o aumento da violência interpessoal. Neste trabalho, discutiremos esta
última tendência. Sua consequência mais visível é o aumento da mortalidade por homicídios. Sugerimos que a chave para entender este
fenômeno violento é a compreensão do contexto nos quais estas mortes ocorreram, ou seja, o tipo de conflito, seu significado para as partes
envolvidas, seu objeto e sua estruturação. Finalmente, sustentamos que das três tendências descritas anteriormente, a violência intersubjetiva
é a mais dramática e a que tem recebido menos atenção das autoridades brasileiras.

Introdução
No Brasil a violência tem feito parte da história e do cotidiano dos cidadãos, especialmente dos grupos social e
politicamente desprivilegiados, tais como as mulheres, crianças, jovens, idosos, grupos étnicos, trabalhadores rurais e
homossexuais. A violência, no entanto, ganhou grande visibilidade nas últimas décadas, devido ao enorme crescimento da
mortalidade por homicídio e da criminalidade nas áreas urbanas.
Nesse contexto, três grandes tendências podem ser observadas: a) o aumento dos crimes contra o patrimônio,
particularmente os roubos, furtos e extorsão mediante sequestro, b) a emergência de novas dinâmicas relacionadas à
criminalidade organizada, em especial, o tráfico internacional de drogas e c) o aumento dos conflitos intersubjetivos
violentos.
Certamente, a consequência mais visível da violência é o acentuado crescimento da mortalidade violenta,
especialmente nas grandes regiões metropolitanas do país. Este crescimento pode ser verificado pelo aumento das taxas de
mortalidade por homicídio, que saltou de 11,4 homicídios por 100 mil habitantes em 1980 para 23,6 em 2005, representando
um aumento de 110%. Pode-se afirmar que os homicídios são umas das principais causas de mortalidade da população
brasileira.
Estas mortes não se distribuem de forma igual na sociedade. De forma geral, os bairros com atendimento deficiente
de serviços públicos, com precária infra-estrutura urbana, baixa oferta de empregos, serviços e laser são flagrantemente os
mais afetados pela violência letal. No que se refere à distribuição etária da mortalidade por homicídios, os dados revelam que
é a população jovem masculina a mais atingida por essa violência.
Entretanto, continua sendo uma grande incógnita os fatores que explicam o espantoso crescimento da mortalidade
por homicídios nas últimas décadas. Análises mais agregadas que procuram relacionar indicadores socioeconômicos com
níveis de mortalidade por homicídio não têm sido capazes de explicar o fenômeno. As pesquisas não evidenciaram relação
entre as tendências dos níveis de escolaridade, de desemprego ou de desigualdade social e econômica nas últimas décadas
com os níveis crescentes de violência (Cerqueira e Lobão 2002; Sapori e Wanderley 2001; Beato, 1998).
As estatísticas sobre homicídios refletem apenas algumas das consequências de uma variedade enorme de conflitos
sociais. Portanto, a leitura dos indicadores não pode dar lugar à idéia simplificadora de reduzir o fenômeno da violência a
uma única espécie de comportamento social. Por ser polissêmico e multifacetado, o conceito de violência abrange uma série
de comportamentos sociais cujas explicações repousam em diferentes causas. Deste modo, sugerimos que os estudos sobre o
fenômeno deveriam considerar os diferentes tipos de conflitos sociais e as formas de administrá-los.
Neste trabalho, iremos concentrar nossa reflexão sobre os conflitos intersubjetivos violentos, cuja consequência
mais visível é o aumento da mortalidade por homicídios. Argumentamos também que a chave para entender este fenômeno

757
violento é a compreensão do contexto nos quais estas mortes ocorreram, ou seja, o tipo de conflito, seu significado para as
partes envolvidas, seu objeto e sua estruturação. Finalmente, sustentamos que das três tendências descritas anteriormente, a
violência intersubjetiva é a mais dramática e a que tem recebido menos atenção das autoridades brasileiras. Nas seções
seguintes trataremos que cada um destes itens.

As Três Tendências Violentas


Embora possam guardar algum tipo de relação, o aumento dos crimes contra o patrimônio, o surgimento de novas
tendências da criminalidade organizada e aumento dos conflitos intersubjetivos, devem ser analisados de forma separada,
pois apresentam objetos próprios, dinâmicas diferentes e consequências específicas.
Aqui nos parece útil distinguir os aspectos instrumentais e expressivos da ação humana. Os primeiros referem-se
aos aspectos objetivos como os meios e os fins da ação. Já os aspectos expressivos dizem respeito aos elementos subjetivos
da ação humana, ou seja, ao significado e sentido que lhes conferimos.
Obviamente, toda ação humana envolve aspectos instrumentais e expressivos. O que varia é a ênfase que damos a
cada um destes aspectos. Esta distinção analítica pode ser útil para o estudo da violência. Nos assaltos e roubos a
estabelecimentos comerciais, bem como nos conflitos relacionados ao negócio do crime, os aspectos instrumentais destas
ações são bastante evidentes. Já nos casos da violência intersubjetiva, a dimensão cultural e expressiva ganha maior destaque.
Embora tenha aumentado o número de furtos e roubos à residência, o comércio continua sendo o principal alvo dos
crimes contra o patrimônio. Dentre as diversas teorias que buscam explicar as motivações para estes crimes, certamente a
proposta de Robert Merton (1959) é a mais influente. Para o Sociólogo estadunidense, a desigualdade social e a falta de
recursos materiais para manter os padrões de consumo ditados pela sociedade estariam por detrás deste tipo de
comportamento. Desta forma, os crimes contra o patrimônio seriam meios ilegítimos para a realização de valores
culturalmente compartilhados. Entretanto, trata-se de saber se estes grupos sociais (normalmente jovens) buscam
simplesmente se conformar aos valores já existentes ou se na verdade o que está em questão é a constituição de novos
valores.
Se por um lado, as motivações deste tipo específico de criminalidade ainda são objeto de debate, suas
consequências já são bastante conhecidas. Sabemos que os crimes contra o patrimônio não se distribuem de forma
homogênea pelo espaço urbano. Ao contrário, existe uma concentração espacial deste tipo de crime, influenciada pelas
condições sócio-econômicas e demográficas das áreas urbanas. Alguns locais concentram uma proporção grande dos crimes
contra o patrimônio.
Os grupos sociais mais afetados por este tipo de criminalidade têm adotado diversas estratégias para lidar com este
problema. Aumentam as demandas sobre as instituições policiais: cobram-se contração de maiores efetivos policiais,
aquisição de equipamentos mais modernos e adoção de programas especiais de policiamento das áreas comerciais e
residenciais. Também temos verificado o crescimento e a sofisticação de sistemas de vigilância privada. Acompanhando a
tendência mundial, a sociedade brasileira tem se deparado com o crescimento do número de firmas de vigilância privada.
Devido às características do aparato legal e burocrático brasileiro, boa parte destas firmas é irregular e está submetida à
fiscalização precária. Com relação às áreas residenciais, observamos nos últimos 20 anos, o surgimento de novos padrões de
moradia, condomínios verticais e horizontais, cuja característica comum é a centralidade da preocupação com a segurança
dos seus moradores. Estes condomínios são verdadeiros “enclaves fortificados” (Caldeira 2000).
Entretanto, as áreas comerciais dos bairros de classe alta e média não são as únicas afetadas por este tipo de
criminalidade. Nossos estudos mostram que outras regiões menos nobres também concentram crimes contra o patrimônio. As
principais vítimas são pequenos comerciantes, tais como donos de bares, açougues, padarias etc. Nestes casos, as vítimas
dificilmente contam com a atenção das unidades policiais e tampouco podem dispor de um sofisticado e caro aparato de
segurança privada. Nessas áreas, são frequentes os relatos sobre a atuação de grupos de extermínio e justiceiros. O
vigilantismo, como é conhecido este fenômeno, tem sido empregado para conter o crime e controlar determinados grupos
sociais como prostitutas, homossexuais e grupos indígenas (Rosenbaum e Sederberg 1976). Os grupos de justiceiros atuam à
margem da lei, frequentemente são integrados por policiais e contam, via de regra, com apoio financeiro de comerciantes.
Uma consequência observável do crescimento da criminalidade contra o patrimônio é o endurecimento da
legislação penal e processual penal. Aumentaram-se as penas de alguns crimes e reduziram-se suas garantias processuais. O
resultado disso é o acentuado aumento da população prisional brasileira. O fenômeno não acontece exclusivamente no Brasil,
mas aqui ganha cores dramáticas quando constatamos a precariedade do atendimento jurídico às pessoas de baixa renda e as
péssimas condições dos estabelecimentos penitenciários. Apesar das graves suas consequências sociais, o aumento da
criminalidade contra o patrimônio responde por uma pequena parcela do número de homicídios. De forma geral, os
latrocínios respondem por uma pequena proporção do número total de homicídios. No Distrito Federal, por exemplo, os
latrocínios responderam por menos de 8% das mortes por homicídios ocorridas entre 2003 e 2007 (Costa, 2007).
A noção de crime organizado esconde mais do que releva as nuanças das práticas sociais a ela associadas (Misse
2007). Ela refere-se ao comércio formal ou informal de produtos legais ou ilegais. O contrabando envolve geralmente o
comércio irregular de produtos legais. Já a venda de produtos piratas implica no comércio informal de produtos ilegais. O
narcotráfico está relacionado à comercialização ilegal de produtos também ilegais. Grupos se organizam para produzir,

758
adquirir ou comercializar estes produtos. Qualquer que seja a modalidade, o crime organizado fundamentalmente refere-se a
um negócio, o crime-negócio (Zaluar 2004).
Com relação ao crime organizado, chama atenção nas últimas décadas o surgimento de novas dinâmicas
relacionadas ao tráfico de drogas ilícitas. Embora seja um importante setor da economia global, o tráfico de drogas opera a
partir de organizações criminosas fundadas em bases locais e étnicas, nas quais os aspectos culturais desempenham papel
fundamental.
Outro aspecto relevante do tráfico de drogas é a sua flexibilidade e versatilidade. Seu modus operandi é a formação
de redes em níveis locais, nacionais e internacionais, como destacou Manuel Castels (1999). No caso Brasileiro em especial,
nos últimos anos pudemos perceber a melhoria da capacidade de coordenação e articulação das ações de diferentes facções
criminosas (novas ou pré-existentes). Isto se deve, em parte, às características do sistema penitenciário brasileiro. Há
inúmeros relatos sobre como o convívio nas prisões entre membros de grupos criminosos deu origem às redes de crime
organizado (Adorno e Salla, 2007).
Mais recentemente, temos assistido ações realizadas por estes grupos criminosos contra estabelecimentos policiais e
outros órgãos da administração pública. Isto tem chamado a atenção das autoridades políticas, das lideranças policiais, dos
militares, bem como tem contribuído bastante para aumentar o sentimento de insegurança da população em geral. Em função
disso, cresce a pressão para que as forças de repressão intensifiquem suas atividades. Também aumenta a pressão para que se
estabeleçam penas mais duras contra este tipo de crime.
Entretanto, os efeitos deste tipo de crime organizado não desafiam apenas a autoridade dos agentes estatais. Sua
mais grave consequência é sentida pelas pessoas que residem nas áreas onde estes grupos criminosos se instalam. A expansão
do comércio ilegal de drogas encontrou condições favoráveis nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos brasileiros.
No Rio de Janeiro, as características das favelas - alta mobilidade interna, fácil controle das vias de acesso e ausência do
Estado – proporcionaram condições favoráveis para que o varejo do comércio de drogas fosse deslocado para o seu interior.
No plano comunitário, a presença do comércio varejo de drogas, cuja principal expressão é a “boca de fumo”, veio
a deteriorar ainda mais o já frágil tecido social.1 Em alguns lugares, as quadrilhas organizadas transformaram-se no poder
central das favelas. Moradores incômodos foram expulsos ou mortos, bem como as associações de moradores foram
esvaziadas e perderam substancialmente participação no debate político. De modo geral, a presença dessas quadrilhas alterou
profundamente toda a rede de sociabilidades locais, das famílias aos blocos de samba (Arias, 2007).
No plano individual, as quadrilhas de narcotraficantes exercem uma grande influência sobre a juventude pobre das
favelas. O pertencimento a um grupo criminoso e a posse de uma arma operam como mecanismos de reconhecimento num
cenário de exclusão e invisibilidade social. Nesse contexto, a violência deixa de ser simplesmente uma estratégia de ação e
passa a ser o próprio instrumento de expressão social. Esse tipo de violência expressiva põe em cena, não uma juventude
miserável, mas uma juventude pobre que aspira reconhecimento social (Wieviorka 1997; Peralva 1997 e 2000).
Algumas pesquisas têm destacado a relação entre a criminalidade organizada e a mortalidade violenta, em especial
o tráfico de drogas (Zaluar 1999 e Beato et al 2001). A probabilidade de morte violenta tende a aumentar quando se verifica
algum tipo de envolvimento com estas atividades. Entretanto, parte significativa dos homicídios registrados no Brasil pode
ser computada às violências intersubjetivas não necessariamente relacionadas ao tráfico de drogas ou aos crimes contra o
patrimônio. Analisando as ocorrências policiais da região metropolitana de São Paulo, Renato Lima (2002) constatou que
92,4% dos homicídios estão relacionados a conflitos sociais, que muitas vezes surgem como pequenas controvérsias e
acabam por desembocar em um ato violento.
De forma geral, os estudos sobre a violência, articulados à teoria do Estado, tendem a encobrir aquelas expressões
de violência que ocorrem nas relações cotidianas entre as pessoas comuns que mantêm algum tipo de vínculo – vicinal, de
amizade, amoroso, afetivo, familiar, entre outros – que passa a ser denominado como constituinte da violência interpessoal.
Este tipo de violência historicamente faz parte do cotidiano de boa parte da sociedade brasileira. Trata-se de
conflitos entre pessoas conhecidas cujo resultado muitas vezes é a morte de uma das partes. Estas situações compreendem
conflitos entre cônjuges, parentes, amigos, vizinhos e colegas de trabalho. Resultam geralmente de conflitos cotidianos, nos
quais os atores sociais envolvidos são incapazes de administrá-los de forma a não produzirem aquelas mortes.
A noção de conflito Intersubjetivo aponta, portanto, para o contexto relacional do qual emerge a discórdia. O
conflito intersubjetivo inclui aqueles que ocorrem em espaços de relativa intimidade, como os domésticos e conjugais e, para
além deles, os que acontecem na vizinhança, nos espaços de lazer (especialmente nos bares), de trabalho, de negócios, de
culto.
A noção de conflito intersubjetivo é útil para distinguir os antagonismos abrigados nas relações quotidianas
daqueles que surgem de relações contingentes nas quais os objetivos da ação são claramente definidos (Costa e Bandeira,
2007).

1
Para um apanhado geral sobre os efeitos das quadrilhas de narcotraficantes nas comunidades carentes ver Zuenir Ventura, Cidade Partida (1994) e Paulo Lins,
Cidade de Deus (1997).

759
O Sentido da Violência
Nos estudos e pesquisas sobre a violência, existe uma concepção dominante a respeito da pacificação das
sociedades modernas, bem como sobre a crescente monopolização da força física por parte do Estado. Nestas condições, os
indivíduos estariam compelidos a reprimir seus impulsos violentos. Desta forma, há uma tendência de se buscar entender a
violência em termos racionais e estratégicos. As questões relativas ao que esta violência significa para seus autores e vítimas
(ou o que ela expressa) têm sido tratadas de forma secundária (Wieviorka, 2004).
Deste modo, o comportamento violento é visto como uma estratégia ilegítima para alcançar determinados objetivos.
Por outro lado, estamos inclinados a pensar que os casos em que esta estratégia e objetivos não são claramente definidos
como situações anormais, irracionais nas quais a violência está desprovida de sentido. Isto talvez explique porque
frequentemente nos referimos a uma “violência sem sentido” quando não conseguimos reconhecer facilmente os meios e fins
daquela ação.
Entretanto, ao invés de definir a violência a priori como irracional, nós deveríamos considerá-la como uma forma
de interação ou expressão. Uma forma de ação que foi histórica e socialmente construída e que é capaz de dar sentido e
significado à violência. Qualificar a violência com irracional, sem sentido ou significado, apenas reflete uma tendência de
analisar os casos de violência de forma dissociada do seu contexto. De fato, sem o conhecimento das suas circunstâncias e
sem qualquer descrição do seu contexto, é provável que muitos casos de violência sejam considerados “irracionais” e “sem
sentido”. Ironicamente, este tipo de abordagem fecha as portas para os estudos exatamente onde eles deveriam começar: na
análise da forma, do significado e do sentido da violência (Blok, 2001).
Esta visão instrumental é mais grave quando nós sabemos que diversas formas de violência rotuladas com
irracionais ou sem sentido são orientadas por normas, protocolos e prescrições. Noutras palavras, são estruturadas e
ritualizadas. Sabemos, por exemplo, que muitos casos de homicídios resultam de insultos. Nós também sabemos que o
significado do insulto varia de acordo com o contexto social e cultural, bem como verificamos que algumas pessoas são mais
sensíveis aos insultos do que outras. Quando realizados em público, os insultos podem incluir formas de violência verbal e
agressão física. Isto é particularmente válido para aquelas sociedades que desenvolveram forte senso de honra, como os
cientistas sociais têm apontado. Para os homens destas sociedades, a forma mais recorrente de preservar a sua honra e
resguardar a sua reputação é o uso da violência.
Ao invés de tomar a violência como um objeto de pesquisa propriamente dito, devemos considerar seus diversos
sentidos e contextos nos quais ela ocorre. Assim, parece-me muito mais promissor que as análises sociológicas e
antropológicas sobre o tema concentrem suas atenções nos conflitos sociais intersubjetivos, especialmente naqueles que
resultam em violência.

Conflito Social, Objeto e Estrutura


Para alguns autores, o conflito social aparece como algo provisório, circunscrito a algumas situações especiais e de
caráter transitório. Karl Marx, por exemplo, analisou o conflito social moderno a partir dos aspectos econômicos das relações
sociais. Não há dúvida que a posse e a distribuição desigual dos meios de produção produziu um tipo muito singular de
conflito social, a luta de classes. Segundo Marx, a eliminação da propriedade privada levaria ao fim das dissensões sociais.
Entretanto, não foi exatamente isto que se verificou ao longo do século XX. Nas sociedades pós-insdustriais temos
assistido ao declínio da intensidade e a uma melhor estruturação de antigos conflitos sociais, em especial os conflitos
interpessoais e os conflitos trabalhistas. Por outro lado, surgiram novos conflitos étnicos e religiosos e grande intensidade e
baixo grau de estruturação.
Para Emile Durkheim, o surgimento do conflito social moderno seria consequência da fragilidade dos mecanismos
de integração social. As transformações sociais e a consequente substituição de um tipo de solidariedade mecânica por outra
solidariedade orgânica estariam por trás dos novos conflitos sociais. À medida que as sociedades modernas desenvolvessem
novos mecanismos e integração social, os conflitos sociais tenderiam a desaparecer.
De fato o surgimento de novos conflitos sociais pode gerar o estabelecimento de outros mecanismos de integração.
Entretanto, nem todos os conflitos desempenham esta função integradora. Apenas aqueles cujos objetivos, valores e
interesses em disputa não contradizem os pressupostos básicos nos quais a relação social está fundada. Por outro lado, a
ausência de conflito não pode ser tomada com indicador de estabilidade da estrutura social.
Estes dois autores fundadores da Sociologia acabaram por limitar as reflexões sobre os conflitos sociais, posto que
os tomaram como exceção e não como regra, como transitórios e não como constantes. Em outras palavras, como patológicos
e não como normais. Isto levou a uma visão demasiado rígida e limitada do conflito social, incapaz de lidar com a enorme
variedade de suas causas, bem com de suas formas de manifestação.
Além disso, ambos autores basearam suas análises nas estruturas sociais, sem considerarem a intencionalidade dos
atores envolvidos. Tanto para Marx, quanto para Durkheim, o conflito é resultado de um fenômeno social específico, da
distribuição desigual para propriedade privada para o primeiro e do aprofundamento da divisão social do trabalho para o
segundo. Não resta dúvidas que ambas mudanças estruturais levaram ao surgimento de novos conflitos sociais e ao
acirramento dos já existentes. Entretanto, ao desconsiderarem a importância dos atores sociais, os dois autores deixaram de

760
explorar aspectos fundamentais para o entendimento dos conflitos sociais, como sua intensidade, sua regulação, a ideologia
que o expressa e seu significado cultural.
Foi de fato Georg Simmel quem elaborou uma teoria sociológica do conflito. Para ele, longe de se revelar
patológico, o conflito entre atores sociais (e não estruturas) funciona como um processo positivo para a vida social. Sua
análise do conflito, explorando suas variedades, teve e tem grande impacto nos estudos do que alguns passaram a chamar
sociologia da conflitualidade (Simmel, 1995). Uma das dimensões principais da obra de Simmel é a sua tentativa de entender
as formas de sociação que tornam a sociedade uma realidade. Sua ênfase era entender os vínculos sociais que se estabelecem
entre as pessoas. Daí o seu esforço para compreender e analisar as mais diversas formas de interação social (Vandenberghe,
2004).
Para Simmel, o conflito é certamente uma das formas de sociação mais importantes. Ele é “destinado a resolver
dualismos divergentes; é uma forma de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da aniquilação de uma das
partes conflitantes" (Simmel, 1993, p. 11). Ele aponta que a configuração social não é dada apenas pelos elementos
convergentes desta sociedade, mas também por seus elementos dissociativos. É exatamente esta tensão que irá moldar as
estruturas sociais. Tais estruturas não são resultado da simples soma ou subtração destes elementos, como se pudéssemos
atribuir-lhes sinal positivo ou negativo. Para o sociólogo alemão, "os elementos negativos e duais jogam um papel
inteiramente positivo nesse quadro mais abrangente, apesar da destruição que podem causar em relações particulares"
(Simmel, 1993, p. 126). Neste sentido o conflito não é patológico e tampouco é a negação da sociedade, mas condição de sua
estruturação.
Se por um lado sua existência é normal numa sociedade, por outro, podemos verificar uma grande variedade de
conflitos. Apesar desta variedade, podemos analisá-los a partir das seguintes características: a) seus efeitos sobre os grupos
sociais, b) sua intensidade, c) seus objetos e objetivos e d) sua forma de estruturação.
A existência de conflitos tem importantes efeitos sobre as dinâmicas sociais intra e extragrupos. Ele serve para
estabelecer e manter identidades e fronteiras entre diferentes grupos sociais. De forma geral, a distinção entre nós e eles é
estabelecida por meio do conflito social, uma vez que há necessidade de construir e afirmar as identidades coletivas.
O conflito também sustenta a coesão e a unidade do grupo. Ele é, portanto, um elemento estabilizador da estrutura
social (Coser, 1961). Ao mesmo tempo em que destrói, ele também constrói relações. Nesta concepção, o conflito possui
funcionalidade para a manutenção da estrutura social. As hostilidades não só preservam os limites no interior do grupo do
desaparecimento gradual, mas muitas vezes são cultivadas para garantir a sua sobrevivência. Segundo Simmel, quando um
grupo entra numa relação de antagonismo com um poder exterior, ocorre o estreitamento das relações entre os seus membros
e a intensificação da sua unidade em consciência e ação. Como o oponente é o mesmo para todos os elementos do grupo, eles
se unem.
A intensidade do conflito também pode variar bastante. Bem como, os conflitos mais intensos podem suprimir ou
agravar outros conflitos sociais menos radicais. Simmel sugere que a discórdia dentro do grupo será mais intensa quando as
partes envolvidas tiverem algo em comum e forem próximas uma das outras. Ou seja, quanto mais próximas forem as partes,
maior a intensidade do conflito. Isso ocorre porque os participantes são obrigados a suprimir s sentimentos de hostilidade.
Entretanto, é provável que o acúmulo destes sentimentos intensifiquem o conflito quando este eclodir. Noutras palavras, o
conflito será mais passional e radical quando eclode a partir de relacionamentos próximos (Coser, 1961).
O conflito pode ser radicalizado quando os membros mais tolerantes são expulsos do grupo em nome da coesão
interna. Por outro lado, a unidade do grupo pode se perder quando não há mais um adversário externo. De acordo com
Simmel, o grupo passa a repetir no seu interior o conflito que antes era travado contra os adversários externos. Para certos
grupos é sinal de “sabedoria” política cuidar para que existam alguns inimigos, a fim de que a unidade dos membros continue
efetiva.
Quanto ao objeto, os conflitos também podem variar bastante. O conflito pode se dar por antagonismos habituais ou
por antagonismos momentâneos. No primeiro caso, o conflito é abstrato. Refere-se a um estado de espírito abstrato e
duradouro. Já no segundo caso, o conflito é concreto, diz respeito a um objeto de disputa real (simbólico ou material). De
qualquer forma, como assinala Simmel, os efeitos resultantes dos conflitos não são determinados pelos interesses em disputa,
mas pela sua duração e intensidade.
Apesar dos seus esforços para analisar os efeitos da intensidade e da duração dos conflitos sobre os grupos sociais,
Simmel não fez distinção entre “comportamento conflitivo” e “sentimento de hostilidade”. Sem dúvida, o primeiro é uma
forma de sociação. Já o último não implica necessariamente em algum tipo de interação social. A confusão entre
comportamento e atitude nos trás algumas dificuldades para a análise dos conflitos sociais.
Primeiro, o conflito pode mudar os termos de uma relação social, enquanto a hostilidade não afeta necessariamente
esta relação. Segundo, a hostilidade pode ser descarregada não apenas contra o objeto original, mas também contra objetos
substitutos. Simmel não concebeu as situações nas quais o comportamento conflitivo contra um objeto específico foi
bloqueado. Nestes casos, os sentimentos de hostilidade podem ser dirigidos para objetos substitutos. Terceiro, a satisfação
deste sentimento de hostilidade pode ser alcançada por meios alternativos, capazes de aliviar as tensões existentes.
A expressão dos sentimentos de hostilidade pode se dar de três formas. Primeiro, a hostilidade pode ser dirigida
diretamente contra a pessoa ou grupo que é a fonte de frustração. Os enfrentamentos entre grupos étnicos antagônicos pela
ocupação das posições de poder ou recursos econômicos escassos numa sociedade é um exemplo disso.

761
Em segundo lugar, este sentimento de hostilidade pode ser deslocado para outros objetos substitutos. São comuns
as revoltas de grupos contra a violência e arbitrariedade policial. Frequentemente, membros de uma comunidade expressam
sua revolta quebrando e incendiando ônibus, carros e trens, uma vez que não podem expressar de forma clara e direta seu
descontentamento com a polícia.
Este deslocamento de objeto está relacionado à supressão dos conflitos. Um conflito social pode ser suprimido ou
bloqueado pela força. Foi o caso dos inúmeros conflitos políticos que aconteceram no interior dos regimes autoritários e
totalitários. Já os conflitos raciais e de gênero, via de regra, são suprimidos por uma série de práticas sociais mais sutis,
porém não menos eficazes, que os confinaram à invisibilidade. Embora estas práticas sociais sejam capazes de bloquear os
conflitos, não são capazes de suprimir os sentimentos de hostilidade e de antagonismo.
E finalmente, pode haver o relaxamento das tensões através de atividades que permitam satisfação por si mesmas.
O teatro, as competições esportivas e outras formas de entretenimento podem prover este tipo de relaxamento das tensões.
Mas nestes casos, podemos notar que embora a hostilidade possa ser expressa, o padrão de interação social permanece
inalterado.
A distinção entre deslocamento dos meios e deslocamento dos objetos é de grande significado sociológico. Estas
questões nos trazem um problema central para a teoria do conflito. Até que ponto as práticas sociais, destinadas a canalizar as
hostilidades e evitar danos ou alterações no objeto original da disputa podem servir de mecanismos de relaxamento das
tensões? Até que ponto, este deslocamento de meios de expressão das hostilidades podem manter a estrutura social
inalterada?
Existem casos em que o conflito surge exclusivamente de impulsos agressivos que buscam expressão não importa o
objeto. Nestas situações, a escolha dos objetos é puramente acidental. Ralf Dahrendorf (1972) sugere a distinção entre objetos
(interesses) manifestos e latentes. Os primeiros referem-se a objetos conscientemente definidos, sobre os quais cabe uma ação
racional orientada para alcançá-los. Já os interesses latentes não são pré-definidos e a busca de objetivos não é racionalmente
orientada.
Para entender este tipo de dinâmica, é importante distinguir entre conflito real e conflito irreal ou imaginário. Os
conflitos reais surgem pela frustração de uma demanda específica sobre um objeto de disputa. Neste caso, o conflito é um
meio para alcançar um fim. Os conflitos irreais não são produzidos pela disputa sobre um objeto específico, mas pela
necessidade de expressão as tensões e frustrações de uma das partes. Neste caso, a escolha dos rivais e dos objetos não é
necessariamente orientada na direção de um resultado específico. Os conflitos reais não envolvem necessariamente
hostilidade e agressividade. Nos conflitos irreais, a hostilidade e a agressividade são extravasadas através do conflito, sem a
necessidade de um objetivo definido.
Podemos também analisar os conflitos de acordo com a sua estruturação. Ou seja, os mecanismos existentes para
regulá-los e os limites de ação das partes envolvidas. Em diversas sociedades, tem sido frequente a tentativa de promover a
regulamentação dos conflitos. Isto é, o estabelecimento de regras (tácitas ou explicitas) e práticas sociais, que definam as
formas legítimas de manifestação do conflito.
Há, portanto, dois aspectos que são essenciais para a estruturação dos conflitos. As regras e práticas sociais
precisam ser aceitas pelos participantes, bem como devem estabelecer limites a sua ação. Para isto é necessária a criação de
instituições capazes de administrar os conflitos. Bem como é necessário o ajuste das práticas sociais e dos valores que às
orientam a estas instituições. Frequentemente, estas regras e práticas são internalizadas pelos indivíduos através de um longo
e complexo processo de socialização. Podemos dizer que a observação destas regras e práticas produzem a
institucionalização do conflito.
Na Europa, América do Norte e mais recentemente na América Latina foram estabelecidos regimes democráticos.
Apesar da variação quando ao seu funcionamento e resultados gerados, o estabelecimento destes regimes permitiu a
institucionalização do conflito político. Isto se deu pelo estabelecimento de regras para a participação e disputa política. Para
isso, foi necessária a criação de um sistema eleitoral transparente e o estabelecimento de um sistema partidário capaz de
responder às demandas e anseios da sociedade. Além disso, as práticas e os valores atores políticos foram ajustados aos
princípios de funcionamento dos regimes democráticos. Em suma, nas modernas democracias, a estruturação do conflito
político se deu através da criação e aperfeiçoamento de instituições e práticas políticas.

Considerações Finais
A estruturação do conflito social, de forma a evitar suas consequências violentas, é resultado de um complexo
processo social que envolve tanto a construção de instituições específicas quanto a mudança de hábitos e comportamentos
individuais. O surgimento desse tipo específico de autocontrole, que Norbert Elias chamou de "processo civilizador", não
pode ser dissociado do processo de construção do Estado-nação. Como Elias coloca, "a estabilidade peculiar do aparato de
autocontrole mental que emerge como traço decisivo, embutido nos hábitos de todo ser humano 'civilizado', mantém a
relação mais estreita possível com a monopolização da força física e a crescente estabilidade dos órgãos centrais da
sociedade" (Elias, 1994, p. 197).
Entretanto, não existe um único “processo civilizador”. Existem importantes variações na forma e no alcance desse
processo descrito por Elias. No que concerne às Américas, nas sociedades que tiveram sistemas escravocratas, a violência
física e à punição brutal contra determinados segmentos sociais nunca foi completamente abandonada como forma de

762
controle social. Do mesmo modo que as sociedades de passado colonial (e às vezes escravocrata) acabaram desenvolvendo
formas diferentes de controle social, muitas das quais passavam pela delegação de poderes estatais à determinados segmentos
sociais para exercer uma espécie de controle social privado. Pode-se dizer que esse processo acompanhou e reforçou a
estrutura de poder implantada. Além disso, em regiões de economia periférica, como a América Latina, estas formas de
controle social têm sido reforçadas pelo seu passado de dependência e de crise fiscal (Costa, 2004).
No Brasil contemporâneo, os aspectos que mais chamam a atenção no funcionamento das instituições estatais
destinadas à administração de conflitos é a desigualdade de tratamento e a exclusão de determinados segmentos sociais. Esta
desigualdade e exclusão social, longe de apontarem para o mal funcionamento dos tribunais e das polícias, são aspectos
constitutivos do sistema de justiça criminal e segurança pública brasileiros, como sugere Roberto Kant de Lima (2004).
O sistema de justiça certamente desempenha papel central na estruturação dos conflitos interpessoais. Entretanto,
no caso brasileiro, boa parte da população não tem acesso à justiça. As barreiras que impedem os mais pobres e socialmente
vulneráveis a requisitarem os serviços da justiça não são apenas de ordem material e procedimental, são também simbólicas.
As exigências processuais constituem obstáculo ao acesso à justiça. Além da morosidade dos processos, os
cidadãos precisam constituir um advogado para que possa representá-los em juízo. Dada a precariedade de funcionamento
das defensorias públicas, torna-se difícil e caro iniciar um processo judicial. Em função disso, alguns estados brasileiros
criaram recentemente juizados especiais, nos quais o procedimento é mais rápido e os cidadãos podem litigar sem
necessidade de advogados ou defensores. O problema nestes casos é a forma como os juízes e mediadores se colocam diante
dos cidadãos, exigindo comportamentos e argumentações distantes da realidade social dos segmentos mais pobres.
Outra instituição importante para a estruturação dos conflitos interpessoais são as polícias. No Brasil, são
frequentes as denúncias de violência, corrupção e arbitrariedades por parte dos policiais. De fato, as pesquisas têm
demonstrado que a população confia muito pouco nas policiais brasileiras (ISER, 1996).
Além disso, os policiais têm dificuldade de perceber seu trabalho como um serviço prestado à população. Em 2007,
equipes de pesquisadores visitaram 160 delegacias de polícia no Brasil para verificar que as condições de atendimento ao
público. De forma geral, constatou-se que boa parte das delegacias de polícia tem condições inadequadas para atender ao
público (Altus, 2007)2.
Além disso, há uma grande relutância dos policiais em atuarem nos casos de conflitos domésticos e de conflitos
entre vizinhos. O quadro torna-se mais grave na medida que constatamos que, devido às dificuldades de acesso à justiça, as
polícias são as principais instituições estatais capazes de administrar conflitos interpessoais.
Obviamente, a estruturação dos conflitos interpessoais não depende apenas do funcionamento da justiça e da
polícia. Há uma grande variedade de práticas e estruturas sociais capazes de limitar os resultados dos conflitos. Exatamente
por isso, nos últimos anos tem surgido alguns programas e projetos sociais destinados a reduzir a violência, em especial os
homicídios.3 Os projetos para redução da violência existentes no Brasil têm sido implantados nas periferias das grandes áreas
metropolitanas. Eles têm em comum o fato buscarem fortalecer os vínculos sociais e as solidariedades locais, aumentar a
auto-estima dos jovens e melhorar integração destas comunidades com as diversas instituições estatais. No plano político,
estes projetos, via de regra, são de iniciativas municipais (Sento-Sé, 2005).
Apesar de relativamente bem sucedidas, são raras as iniciativas deste tipo. Para se ter uma idéia, entre 2000 e 2005,
do total de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, apenas 7% foram aplicados na implantação de projetos para
redução da violência, tais como policiamento comunitário, centros integrados de segurança e cidadania, justiça comunitária
etc. Por outro lado, cerca de 86% dos recursos destinaram-se à compra de equipamentos viaturas, armamentos, material de
comunicações e informática. Cerca de 4% dos recursos destinou-se à construção ou reforma de instalações policiais e 3%
foram utilizados no treinamento e formação dos policiais (Costa e Grossi, 2007).
As ações governamentais no campo da segurança pública e da justiça criminal têm dado grande enfoque nos
problemas relacionados ao crescimento dos crimes contra o patrimônio e a ameaça representada pela melhoria da capacidade
de coordenação dos grupos de crime organizado. Nesse sentido, a ênfase das ações governamentais recai na contratação de
mais policiais, na compra de equipamentos mais sofisticados e no endurecimento da legislação penal e processual penal.
Muito pouca atenção por parte das autoridades governamentais tem sido dispensada aos problemas relacionados à violência
interpessoal. Talvez isto ocorra porque este tipo de violência atinge fundamentalmente os segmentos mais pobres da
sociedade brasileira.

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2
Disponível em: http://www.ucamcesec.com.br/at_proj_conc_texto.php?cod_proj=225.
3
O projeto “Fica Vivo” em Belo Horizonte e o projeto “Afroatitude” no Rio de Janeiro e os Centros Integrados de Cidadania em São Paulo são bons exemplos
desse tipo de iniciativa. Há também o exemplo da cidade de Diadema, no estado de São Paulo, onde foram implementadas várias iniciativas com vistas a redução
dos homicídios.

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Política e Questão de Família


Ana Claudia Marques
Universidade de São Paulo
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Resumo: O objetivo do trabalho é mostrar porque e até que ponto as brigas de família (localmente conhecidas como "intrigas" ou
"questões") no "sertão do Pajeú", no estado de Pernambuco, são também brigas políticas. No intuito de compreender o problema proposto,
perspectivas nativa e exógenas serão consideradas, com privilégio das primeiras, concernentes aos significados atribuídos às brigas de
família. Com esse procedimento não se pretende eleger um ponto de vista mais correto, mas antes trazer à tona uma série de relações
envolvidas naqueles significados. No propósito de compreender as brigas de família sob a forma como transcorrem no sertão do Nordeste
brasileiro me levaram a focalizar os diferentes eventos que em sucessão compõem esses processos de vingança. Através dessa demarche que
privilegia apreensões parciais e nao totalizantes desses processos, busco uma compreensão de distinções e superposições de seus aspectos
jurídicos, políticos, familiares, que se sobredeterminam, mas não se esgotam por exclusão uns dos outros, nem devem ser confundidos.

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Entre o legal e o ilegal, as fronteiras são frequentemente tênues. Por vezes, tudo não passa de um deslocamento de
sentido. Nas estórias narradas nos sertões pernambucanos, tenho assistido a sucessivos deslocamentos significativos, a
pretexto de personagens e de acontecimentos, que dificultam ou impossibilitam qualquer classificação substantiva dos
mesmos, ao lado ou ao largo das instituições políticas, jurídicas e administrativas. Com essa afirmação não pretendo sugerir
que tais instituições sejam ali fracamente constituídas, e muito menos alvo de desprezo por parte dos sertanejos ou ainda
mero objeto de apropriações indevidas pelos interesses privados. Todas essas hipóteses, confirmadas ou não, conduziriam a
uma análise distanciada dos modos efetivos como as relações entre os diversos atores dessas narrativas, as instituições aí
incluídas, se processam. Meu propósito nessa comunicação é justamente mostrar sua plena imersão em um campo social, no
qual como qualquer outro personagem e acontecimento ganham múltiplos e não raro contraditórios sentidos. E que, por isso
mesmo é que ali, assim como presumo que em qualquer outra parte, elas fazem sentido.
Nesse propósito proponho examinar algumas narrativas de algumas estórias que compõem a história do sertão
pernambucano, mais exatamente da região do Pajeú das Flores, conforme se registram nas memórias de seus atores e autores.
Com esse intuito, as fontes selecionadas tendo por critério fundamental o fato de terem sido produzidas por um “público”
desses processos, que neles intervieram diretamente ou foram por eles afetados na medida em que tomam parte nesse campo
social (ou dessa comunidade moral). Textos publicados, registros escritos e narrativas orais formuladas de autoria, por assim
dizer, nativa, constituem a base das minhas próprias narrativas. Por mera conveniência de exposição, vou tratar das diferentes
estórias em ordem cronológica, mas não se deve entender com isso que estejam dispostas em alguma série evolutiva. Uma
segunda ressalva deve ser feita quanto à inevitável parcialidade dos sentidos atribuídos pelos narradores a um conjunto de
atores e acontecimentos – conjunto ele mesmo já dotado de sentidos implicitamente atribuídos, porque definido pela e na
própria narrativa. Apesar de minha própria seleção das estórias visarem a evidenciação da multiplicidade de sentidos, a
totalidade deles é inapreensível e de qualquer maneira desnecessária à argumentação, por excedê-la.
Comecemos então por uma limitada sequência da mais famosa estória sertaneja, protagonizada pelo seu mais
notável personagem, Lampião, conhecido como o Rei do Cangaço. Detenho-me na fase inicial de suas peripécias, que
abrange desde um momento em que sua condição de cangaceiro é ainda ambígua até se ter substantivado inteiramente e
impulsionado uma outra mudança de status em um conjunto de seus conterrâneos que, cada vez mais empurrados para o lado
de seus inimigos, acabam por ingressar na Força Pública e Pernambuco. As memórias de João Gomes de Lira (1990),
testemunha e participante de vários desses episódios e cuja credibilidade é muitas vezes exaltada, proporcionam um
encadeamento detalhado de vários acontecimentos que deram o rumo dessa estória e permitem a percepção de seu
cruzamento com várias trajetórias individuais e coletivas emprestando-lhes e derivando delas seus próprios sentidos.
Em 1917, em decorrência de sérias desavenças com vizinhos e na vã tentativa de evitar males maiores, José
Ferreira veio instalar-se com sua família nos arredores do nascente povoado de Nazaré. Essa mudança foi intermediada por
um antigo professor, que ensinou a ler seus filhos e notara muito cedo o “visível sinal de inteligência”, por parte daquele que
viria a se tornar o mais célebre cangaceiro do Nordeste. Domingos Soriano de Souza, o tal professor, possuía um cartório na
fazenda Algodões e junto a seus vizinhos, todos proprietários de parcelas dessa grande fazenda um dia arrendada da Casa da
Torre, assistia e protagonizava o erguimento do novo povoado. Além das letras, Domingos Soriano legou terras em
patrimônio, que recebeu provisoriamente Nossa Senhora das Dores como padroeira e onde se erigiria mais tarde uma Igreja,
no intuito de ajudar a consolidar um povoado que se anunciava na afluência de visitantes que já faziam do cartório e da feira
recentemente oficializada um motivo para se encontrarem pacificamente nos domingos e dias santos. Homem de boas
intenções, Domingos Soriano intermediou a venda de um terreno ao velho José Ferreira que ao se retirar da antiga moradia
tratou um acordo com seus desafetos no sentido das duas famílias respeitarem seus lugares de residência.
Essa mudança e esse acordo nos permitem apreender alguns sinais importantes a respeito do estado das relações
entre as duas famílias naquele momento, sem que seja necessário entrar em maiores detalhes da desavença. A retirada de
desafetos é uma modalidade consagrada de tentativa de pacificação, quando as hostilidades já são incontornáveis, mas se
pretende ainda conter o desencadeamento descontrolado da querela, quando ela se constitui plenamente em uma questão,
promissora dos piores danos às vidas dos litigantes e de suas famílias. Como dizia um patriarca daquela região, “mais vale
um mau acordo do que uma boa questão”. Uma retirada diz algo mais, contudo. Ela denuncia desigualdades entre os
desafetos, que podem ser no plano material, do prestígio e das reputações, planos que boa medida se justapõem e se
confundem. Por isso mesmo tais acordos são de difícil realização e recorrentes descumprimentos. Aqueles que se retiram, em
proveito daqueles que ficam, carregam consigo o peso de uma certa derrota ou do reconhecimento de um erro. Esse peso,
convém dizer, não é coisa que se admita, mas algo que compreendemos a partir de um conjunto de indícios, proporcionados
por vários episódios para os quais se buscaram acordos. Relutância demonstrada em aceitá-los; retomada da questão, que
supostamente teria por meio do acordo se encerrado, a pretextos aparentemente menores; invasões mal disfarçadas do
território do inimigo; o próprio recurso à intervenção de mediadores de alto prestígio para a proposição do acordo e de seus
termos; uma distinção mais evidente em algum dos planos mencionados, todos esses são fatores que permitem entrever os
maus sentidos passíveis de serem atribuídos a um acordo, que podem fazê-lo cair por terra.
Aparentemente, a retirada para o nascente povoado foi mal assimilada pelos filhos do velho José Ferreira. Eles
vinham de uma trajetória ascendente de prosperidade no ramo da almocrevaria, que os levara a conhecer vários núcleos
urbanos sertanejos, já instalados em uma fazenda da comarca de Vila Bela, onde serviam no posto policial como auxiliares de
um tio nomeado ali Inspetor de Quarteirão. Deixariam para trás certo conforto e certo prestígio para virem se instalar no
recém criado distrito de Nazaré, antes que suas primeiras edificações estivessem construídas. Com que disposição terão feito

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a mudança? Dificilmente obteremos respostas conclusivas. Mas Gomes de Lira menciona testemunhos da chegada dos
Ferreiras encabeçados pelo tio Inspetor de Quarteirão, montados em bons cavalos, mantendo certa distancia entre eles, e
equipados de chapéu com abas quebradas, barbicacho passado no queixo, roupa de mescla e rifles. Atitude que o autor
assimila a de experientes cangaceiros e portanto indicativa de que se mantinham em estado de guerra.
Nos meses que se seguiram a chegada, os Ferreiras retomaram suas atividades como almocreves. Porém, o acordo
de respeito aos limites territoriais foi rompido. Gomes de Lira afirma (op.cit:34) que a ruptura partiu dos irmãos Ferreiras.
Registra-se mais comumente uma visita de Saturnino a Nazaré que lhes valeu uma emboscada no mesmo dia, a que
responderam com um cerco, no dia seguinte, à residência de uma tia de Virgulino, repelida após longa troca de tiros.
Esses acontecimentos não atingiam diretamente outros habitantes de Nazaré, visto que se sucederam em locais mais
retirados do povoado. O rotina não terá sido abalada pelas desavenças dos novos vizinhos, embora seu desafeto tivesse
alguma ligação com moradores dali, sendo casado na mesma família Nogueira de que alguns membros foram co-fundadores
de Nazaré. As hostilidades entre os Ferreiras e os nazarenos resultaram, segundo Gomes de Lira, de um mal entendido.
Em um dia de feira, um bando de cangaceiros entrou no povoado. Eles estavam sob o comando do famoso
Cindario, um braço armado da família Carvalho na questão em que confrontavam os Pereiras. Os nazarenos mantiveram
neutralidade nessa questão tanto quanto possível, mas nem sempre essa disposição se realiza plenamente. Gomes de Lira
menciona (id.ibid. :37) que seu pai e um tio, homens que pela idade e pela honorabilidade eram respeitados como lideranças
do vilarejo, exigiam de Cindario que ele devolvesse umas pistolas que retirara a um conterrâneo. Uma conduta apropriada a
homens respeitáveis que se incumbiam de garantir a ordem e o respeito nos seus lugares, e que para isso se mostravam
destemidos, mesmo diante de um cangaceiro ousado a ponto de tomar armas de um cidadão, uma atitude muito insultuosa do
ponto de vista de um sertanejo.
A fundação de um lugar e seu domínio se apóiam em séries de atos e enunciados performativos1. Uma oração no
patrimônio, a construção de uma igreja e de uma escola, a oficialização de uma feira e também a instauração de uma
autoridade, de caráter policial, que se incumbe da manutenção da ordem no lugar. Gomes Jurubeba construíra ao longo da
vida uma reputação adequada a esse encargo, que desempenhava espontaneamente, mesmo antes de ocupar oficialmente o
posto de subdelegado de polícia. A frente de um grupo pequeno e igualmente destemido (e antecipado por sua corajosa irmã),
Gomes Jurubeba encara as armas do cangaceiro e exige que deixe o povoado. Assistindo a toda a cena e no intuito de sair em
defesa dos nazarenos contra um grupo que, afinal, era aliado de seus inimigos (Nogueiras de Vila Bela apoiavam
genericamente os Carvalhos contra os Pereiras), Virgulino tenta intervir, mas é rudemente impedido por homens de Cindario.
A esse ensaio mal sucedido de aproximação dos vizinhos em torno de uma causa comum, seguiu-se um encontro
bem mais desastroso, por ocasião de uma emboscada armada pelos Ferreiras contra um Nogueira que, ferindo o acordo de
não aproximação, entrou em Nazaré a pretexto de negócios. Ainda sob influência da invasão dos cangaceiros, segundo
Gomes de Lira, alguns nazarenos partiram para o local de onde provinham o ruído de tiros e nesse grupo de defensores da
ordem contava um irmão de Virgulino. Ao avistarem homens armados, começaram a atirar antes mesmo de identificá-los. De
sua parte, os Ferreiras consideraram a interpelação um apoio a seus inimigos e acusaram os nazarenos de coiteiros dos
Nogueiras. O desentendimento não se desfez, apesar da insistente negativa do grupo ali chegado. Virgulino estava furioso e
não recuou mesmo constatando a presença de seu irmão e de um padrinho de S. João no grupo que o atacou. Entre eles estava
de novo presente Gomes Jurubeba, que diante da atitude agressiva, exige a saída imediata do grupo armado que ameaçava o
arruado. Os ânimos se exaltaram de parte a parte e, desde então, a relação entre Ferreiras e nazarenos foram marcadas pela
tensão e, mais tarde, pela hostilidade aberta.
Nos dias de feira, os irmãos Ferreiras surgiam ostensivamente armados, causando temor em todos, ameaçando
dessa forma o desenvolvimento do comércio e do lugar. A cada aproximação do grupo, cada vez mais assimilados em sua
atitude a cangaceiros, Gomes Jurubeba os evitava. Mas quando o encontro acontecia, ele tampouco recuava. Em meio a esse
ambiente, acontece um confronto mais sério durante o qual Livino, um dos irmãos Ferreiras é ferido e, diante de tanto
desassossego, seu velho pai decide retirar-se novamente com os filhos, dessa vez para bem mais longe, em Alagoas. Contudo,
a família sofre cercos por lá, que acabam resultando na morte dos pais. De retorno a Pernambuco, os Ferreiras juntam-se a
um bando de cangaceiros que atuava em nome da família Pereira, sob o comando de Sinhô Pereira. Ao cabo de algum tempo,
Virgulino assume a chefia desse bando e assim fortalecido volta a ameaçar Nazaré. Agora, na condição inequívoca de
cangaceiros e tendo por grande inimigo o velho Gomes Jurubeba, cuja atitude de sempre evitá-los, de não lhes estender a mão
em cumprimento e na insistência em desarmá-los lhes soa como um desafio. Na verdade, há quem proclame que Gomes
Jurubeba se torna para Lampião seu inimigo número 2, e não resta dúvida que se tratará sempre um dos nomes situados no
topo da vasta lista de inimigos do cangaceiro, próximo ao daquele seu vizinho e primeiro desafeto e ao policial responsável
pela morte de seus pais.
A história do cangaço de Lampião é longa e complexa e sempre poderá ser apropriada desde muitos pontos de
vista. Nesse momento, a ênfase nesse período inicial de seus combates me parece muito sugestiva de um panorama moral que
tem sido muito superficialmente explorado na vasta literatura que o fenômeno suscitou. Que Lampião e seus maiores
perseguidores integrassem uma mesma comunidade moral, para recorrer a um conceito de Bailey (1971), não deve causar
surpresa a ninguém. Mas a sua relevância e as consequências que se pode depreender dela não me parecem tão evidentes e de

1
No sentido que Austin atribui ao termo.

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fato só me ocorrem em função de um trabalho etnográfico que vem sendo realizado em um campo social que não coincide
exatamente com aquele, nem no tempo nem no espaço, mas que guarda fortes ligações com ele (estaria em variação
contínua?).
Voltemos ao cenário. Se para a família Ferreira a mudança de logradouro deve ter significado um custo social
importante, sem prejuízo equivalente para seus inimigos, uma forma de recuperação de sua antiga posição no seio da mesma
comunidade (moral) passaria necessariamente pela consolidação dos vínculos no seio de uma nova vizinhança que não lhes
era absolutamente desconhecida. A retirada da família Ferreira não correspondeu a um completo desterro2. A nova residência
foi definida em função da localização de parentes e mediada por um prestigioso homem de letras da região. Alguns dos novos
vizinhos eram a eles relacionados há vários anos (um dos patriarcas do povoado era um padrinho de S. João) e as atividades
comerciais dos três irmãos os tornavam conhecidos de muitos. E, mais do que isso, a disposição demonstrada pelos irmãos
era reveladora de seu interesse em tomar parte nessa comunidade, sobretudo exibida nas horas que se fazia necessário
expulsar pelo braço armado as presenças indesejáveis do frágil povoado, mas também na presença observada nos momentos
de confraternização. Vários dos episódios registrados ocorreram em dia da feira semanal e a vida anterior ao cangaço de
Virgulino lhe valeu notoriedade nos bailes, como dançarino e tocador de harmônica de oito baixos. Seu talento como
domador de animais também costuma ser mencionado.
Contudo, por uma série de vicissitudes, mas talvez também como efeito de disposições contrárias as deles, o lugar
que essa comunidade moral lhes reservou expressava uma forte externalidade em relação a ela (ou ao seu núcleo solidário e
dominante) e dessa condição os irmãos Ferreiras parecem ter-se ressentido, conforme sugerem a acusação dirigida aos
nazarenos, de serem coiteiros de seus inimigos, e a tensa relação que se constitui entre eles e Gomes Jurubeba em particular.
Porém, os termos em que se realizam as relações entre os Ferreiras e os Nazarenos indicam que, paradoxalmente, a inclusão
de ambas as partes na mesma comunidade moral prevaleceu, ainda que como inimigos e acarretando um forte deslocamento
dessa mesma comunidade.
O ponto de virada aconteceu alguns anos mais tarde, em 1923, por ocasião da celebração do casamento de uma
prima dos Ferreiras realizado em Nazaré, para a qual eles foram convidados. Naquela altura, Lampião era já o bandido mais
procurado do interior do estado e contava com a policia sempre em seu encalço. Sua presença na festa não passaria mesmo
despercebida, mas ele fez da ocasião a oportunidade de uma apresentação ostensiva, fazendo-se acompanhar de quinze
homens fortemente armados e ameaçando matar e chicotear seus vários inimigos pessoais ali residentes. Essa postura
ameaçadora não desencadeou nenhum ato correspondente, contudo, até o dia seguinte, apos uma noitada de baile e uma
missa pela manhã, e mesmo assim suscitada pela chegada inesperada de uma força volante, que tampouco esperavam
encontrar os cangaceiros dentro do povoado. Surpreendidos, os dois lados inimigos tomaram posições, enquanto um grupo de
nazarenos dedicados à defesa de sua terra tentavam, durante um bom tempo em vão, aproximar-se dos policiais para lutarem
ao lado deles. Como em outras ocasiões, atirava-se sem saber exatamente em quem e os nazarenos foram confundidos pelos
policiais com cangaceiros. Com dificuldade, o equívoco se desfez, mas daí por diante os nazarenos compreenderam que as
hostilidades em relação a Lampião mudara de caráter e que não contavam mais com meios de defesa contra eles ao terem
saltado do plano das ameaças verbais para o da luta armada. A única alternativa encontrada pelos inimigos de Lampião foi o
ingresso na policia. Gomes Jurubeba saiu em recrutamento, mas de início encontrou poucos aderentes e alguns críticos da
vida de soldado. Com o passar do tempo, o alistamento na Força Pública se tornou regular para todo jovem nazareno ao
completar seus 15 ou 16 anos (Gomes de Lira, op. Cit.:108). Em consequência disso, o conjunto desses conterrâneos
passaram a formar a “Força de Nazaré”, conhecida não só pela sua composição como também pelas suas singularidades.
A partir desse episódio, a inimizade – e porque não dizer questão – travada entre Ferreiras e nazarenos passaram a
ser vividas como um embate entre cangaceiros e policiais, entre forças legais e ilegais. Mas esse deslocamento das condições
de atualização de hostilidades, apesar das fortes continuidades com a modalidade de antagonismo anterior também introduz
modificações relevantes. A entrada no cangaço, assim como nas forças volantes implicaram na adoção de novos modos de
vida que apesar de de alguma forma inseridos no seio de uma comunidade moral, guarda em relação a ela algum grau de
externalidade (embora não exclusão).
No que diz respeito aos Ferreiras, das narrativas sobre o início de suas desventuras se pode depreender que uma
saída da luta contra seus inimigos – sem dúvida sempre possível – implicaria em uma derrota social, de certa forma uma
externalidade para baixo, se podemos formular dessa maneira. Contra inimigos bem assentados na política municipal, a
maneira encontrada para se posicionar foi se aliando a outros inimigos em posição equiparável, o grupo de Sinhô Pereira. A
entrada na ilegalidade desfrutava de início de certa legitimidade. Mais tarde, quanto mais evidencia advogar em causa
própria, mais se acentuam as conotações de banditismo atribuídas ao cangaceirismo atualizado por eles, ainda que a
aproximação com lideranças políticas e a simpatia a outras causas que se sucederam pelos quase vinte anos seguintes tenham
sido fatores que ajudaram a matizar e multiplicar os significados assumidos pela forma de cangaço que inventaram.
Conforme já foi sustentado em outras oportunidades (Marques 1999; Villela 1999) a não submissão de seu braço armado ao
comando de outrem, assim como a recusa do desterro são posturas associadas a uma produção territorial nomádica que
reconheço no cangaço.

2
Sobre as produções territoriais próprias ao cangaço ver especialmente Villela (1999).

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O que dizer, por outro lado, com relação a seus inimigos e perseguidores? O ingresso na Força Pública implicou
também para eles na adoção de novas relações territoriais. Protagonistas de um projeto de fundação de povoado, dispostos a
investir e defender aquele patrimônio incondicionalmente, alguns dos mais proeminentes nazarenos se viram forçados a
adotar a exemplo de seus inimigos um modo de vida marcado pelos deslocamentos e pelas armas. Com algumas importantes
diferenças, é certo. Seu local de residência permanecia fixo e a ele sempre se pretendia retornar. Vemos também que não
concretizam um movimento nomádico tão radical quanto o dos inimigos ao percebermos que os seus deslocamentos são
determinados pelos daqueles. Assim posto, ao nos determos sobre os dois processos de desterritorialização, percebemos que
apesar dos cangaceiros terem sido ao deles levados em virtude de um diferencial desfavorável nas relações de poder ali
vigentes, cabe-lhes todo a potência criativa desse campo de relações. Aos seus perseguidores, eles serão tanto melhor
sucedidos na medida em que se deixarem arrebatar por algum devir cangaceiro.
Eles mesmos demonstram ter consciência dessa profunda afinidade, quando comparam a feras tanto perseguidores
quanto perseguidos (op.cit.: 291). Optato Gueiros, em suas memórias de comandante de volante, admite ter comandado
“verdadeiras feras” e que “uma tropa composta dessa gente, naqueles tempos, só não era o mesmo cangaceiro porque não se
consentia que matassem e furtassem, mas o desejo de fazer tudo isso alguns deles tinham”. (1953:163-4). Nada mais
semelhante a um cangaceiro do que um soldado de volante, podemos verificar ao fitarmos algumas das fotos da época3. Uma
semelhança que rendeu muitas anedotas, como a daquele corneteiro que atrasado em relação a sua tropa em razão de um
combate, viu-se acampado junto aos cangaceiros, cometendo um engano de que tampouco os inimigos se aperceberam
(op.cit: 167). Essa semelhança quase tornava indiferente o lado sob o qual um sertanejo em desmantelo poderia buscar abrigo
e proteção4. E não faltam exemplos de homens que conheceram os dois lados (Mello 1985: 132-133).
As narrativas sobre o cangaço esclarecem como perseguidor e perseguido se assemelham, conhecem, compreendem
e observam mutuamente. Admiram-se em alguma medida. Entre alguns deles, uma sintonia particular parece ter surgido. Diz-
se que Davi Jurubeba (sobrinho de Gomes Jurubeba) chorou ao receber a notícia da morte de Lampião e por toda a sua vida
sustentou que seu inimigo foi traiçoeiramente envenenado e não cercado como ficou registrado na história. Por sua vez,
Lampião terá declarado mais de uma vez que dentre seus temíveis inimigos de Nazaré, o mais bravo deles era Davi Jurubeba
(Gomes de Lira op. Cit: 595).
Davi Jurubeba adquiriu celebridade na sua vida em armas, destacando-se como perseguidor de cangaceiros e
destemido soldado, mas cujo nome também se apontou como justiceiro. Já idoso, ele foi o responsável pela denúncia de um
famoso escândalo financeiro envolvendo um seguro agrícola para o plantio de mandioca, no qual esteve envolvida parte
substancial da fina flor da sociedade regional. Acusam-no de um transito particularmente desenvolto pela legalidade e pela
ilegalidade.
Certo parente de Davi, de quem ele se tornou inimigo, redigiu uma pequena biografia do antigo soldado, visando
com ela, aparentemente, salvaguardar sua própria reputação em detrimento da dele. Nesse documento, o ex-tenente da Força
Pública pernambucana é lembrado também como um rapazote “traquinas”, que desde cedo acompanhou o pai, ex jagunço de
Conselheiro que encontrou refúgio nos arredores de Nazaré, em peripécias condenáveis. As acusações registradas no
documento são graves, sobre elas não busquei nem obtive confirmação e ainda é preciso acrescentar que foram pronunciadas
por um dos principais prejudicados pela denúncia do escândalo. Mesmo assim, a argumentação do autor da biografia dá conta
de como se torna concebível a conversão de um fora da lei em seu defensor.
Segundo ele, Davi e seu pai foram expulsos da região da Nazaré por seus próprios parentes em razão de serem
dados à terrível prática de roubo de bodes. Durante um longo percurso então empreendido, terão cometido uma série de
outros furtos de animais, até terem sido presos em uma cidade não distante de Nazaré. Assim detidos, resolveram pedir ajuda
a dois de seus mais ilustres parentes, Gomes Jurubeba, de Nazaré, e o major da Guarda Nacional João Gregório Ferraz
Nogueira. Ambos recusaram atendê-los. Mas lhes veio em auxílio a viúva de um chefe político regional que com sua
influência os conseguiu libertar e trazer de volta à terra. Ali chegados, deparam-se já com as “demandas de Lampião (...),
ocasião em que Davi foi aproveitado, mas mesmo sob o comando de superiores honestos Davi ainda procurava ter os seus
desabafos com as pessoas de quem ele tinha furtado bodes ou tentado furtar bois mansos (...)”.
Por sua vez, o próprio autor da biografia acusatória de Davi terá cruzado algumas vezes as fronteiras entre a lei e a
ilegalidade, segundo acusações publicamente dirigidas à sua pessoa, ironicamente, também por um primo. Em edição de
agosto de 1981 do Diário de Pernambuco por meio de uma carta assinada denunciou-se a existência de um ’sindicato da
morte’ “chefiado por um homem que se escuda no sobrenome da família” do autor da denúncia. Um manuscrito não
publicado, provavelmente do mesmo acusador, atribuiu ao mesmo “chefe” a responsabilidade intelectual de mais de uma
dúzia de assassinatos cometidos naquela região.
Entrar no mérito da veracidade de todas essas acusações dirigidas a parentes muito próximos está alem dos
propósitos dessa análise. Aqui basta considerar as acusações enquanto tais, da mesma forma que as defesas que delas
resultam. Sobre os dois acusados, especialmente sobre o segundo, ouvi e li, além das delações, inúmeras considerações
favoráveis a seu caráter e a seus atos incontáveis vezes dedicados à defesa e à proteção dos seus parentes, vizinhos e
correligionários. Pois essa mesma pessoa considerada por muitos um “justiceiro”, responsável pela feroz perseguição de seus

3
“O quepe cedia ante a sedução do chapéu de couro (...)” (Mello, 1985: 106).
4
Desmantela-se aquele que em razão de questão cai na ilegalidade ou precisa sair em busca de vingança.Tornar-se cangaceiro ou soldado de volante foram
soluções disponíveis tanto para aqueles que se queriam proteger quanto causar danos aos inimigos.

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inimigos, seria capaz também de dividir seu último pão com um amigo ou alguém que notasse precisar. E essa sua
sensibilidade lhe valia reconhecimento e sua reputação também chegou a lhe valer muitos votos, nunca para si mesmo, mas
para amigos da política a quem apoiou em vários pleitos.
A amizade, nos sugeriu Wolf (1966), constitui um tipo de relação diádica que se desenvolve em sociedades
complexas nas quais os recursos são fraca e muito irregularmente distribuídos (aí se poderia incluir as instituições da
legalidade), como uma forma de incrementar o acesso a eles. Soma-se a laços de filiação, compadrio ou afinidade que se
fortalecem em esferas que a princípio não são delimitadas pelo parentesco, mas que persistem na ausência ou insuficiência de
outras formas de regulação do acesso aos recursos, que sempre implicam em custos muito mais elevados de implantação
social do que aqueles arcados pela família, em razão de sua característica multifuncionalidade. Essa explicação, datada, sem
dúvida ajudou a reforçar o grande divisor entre sociedades complexas e semi-complexas, cujas relações política e econômicas
estariam mais ou menos imiscuídas nas teias das relações sociais (Gellner & Waterbury 1977; Polanyi 1957 [1944]; cf.
Cunha 2006). Não caberá aqui retomar uma já longa discussão a respeito de uma presumida precariedade ou ausência das
instituições formais nas sociedades complexas menos desenvolvidas5, suposição que talvez revele mais sobre a antropologia e
sobre os antropólogos do que sobre as sociedades sobre as quais eles se vêm debruçando (Rapport &Overing 2000). Cabe
antes destacar de que forma se legitimam certas práticas que ferem a norma jurídica, e que não obstante despertem oposições,
suscitam não menos nem mais fracos apoios. Ou mesmo estar também atento ao potencial criativo porque de ruptura e não
somente de destruição também implícito na noção de corrupção (Hardt & Negri 2000).
Essas considerações impelem a ajustar o foco sobre uma forma de relação, a amizade, caída em desuso nas análises
sociais das sociedades complexas após um curto período de consagração6. De uma maneira ou de outra, em qualquer campo
social, a amizade pode ser uma relação relevante na experiência concreta do encontro com as instituições e com as leis
(forma particular e recorrente de enfrentamento de adversidades ou tão somente diversidade de interesses). Um encontro que
parece corresponder a um modo de resposta – quem sabe de resistência – às imposições normativas e reguladoras em termos
de codificação informal.
As acusações publicadas naquela edição do Diário de Pernambuco se dirigiam a um homem que teria se incumbido
de fazer justiça contra aqueles que de seu ponto de vista ameaçava a ordem pública e a integridade física de seus parentes e
amigos, duas coisas que tendiam a confundir-se. Ta intento só pode ser levado a efeito, por sua vez, graças a forte amizade
construída entre ele e um capitão da policia militar destacado para servir na região justamente em decorrência de uma série de
assassinatos cometidos por razões de vingança. Antes mesmo de pisar na delegacia, o dito capitão foi convidado a entrar na
casa daquele cidadão e, desde então, a causa da ordem com as de seu anfitrião. Não apenas porque ambos passaram a
perseguir o pior inimigo dele e de sua família – conhecido como “vingador”, porque seus crimes foram também cometidos a
pretexto da vingança do assassinato de seu pai por parentes de seu perseguidor, eles também membros do corpo policial
militar – mas porque em contrapartida o capitão passou a contar com seu irrestrito apoio na perseguição daquele a quem
considerava bandidos. Os jornais locais noticiaram uma série de prisões, torturas e assassinatos atribuídos as arbitrariedades
privadas praticadas não obstante por indivíduos que se pretendiam a serviço do interesse público. Uma espécie de reedição
dos tempos de perseguição aos cangaceiros, quando por tantas vezes os policiais das forças volantes, equiparados a “feras” se
fizeram acusados de atos tão brutais cometidos contra inocentes como aqueles de autoria dos seus perseguidos.
Da mesma forma que cangaceiros e policiais dividiram as adesões pelos sertões nordestinos, e por razões da mesma
ordem, em escala apropriada as questões entre famílias costumam dividir o campo social em que estão inscritas entre aliados
e inimigos, simpatizantes e “indiferentes”(esta categoria tende a ser lida na chave da hostilidade, mais do que na da
neutralidade). As finas tramas das redes de solidariedade fazem com que cada um de seus participantes seja atingido em
algum grau pela troca de hostilidades. Não houve diferença de natureza, a esse pretexto, entre os acontecimentos dos anos 20
e 30 e os dos anos 80. O capitão e seu amigo causaram muita admiração entre aliados e profundo amargor aos inimigos7. Mas
a divisão nesse caso atingiu um grupo de parentes bem próximo dos protagonistas, causando ali uma divisão de difícil gestão.
Como já discuti em outro momento, uma questão não deve atingir um núcleo de parentes próximos (Marques 2002)8, por
motivos morais mas também em razão da divisão que instaura ou reforça, ameaçadora dos laços de solidariedade que se
tendem a produzir nessa rede. Amizade e inimizade parecem ser duas faces de uma mesma relação.
Em razão das acusações sofridas pela dupla de justiceiros, por parte dos primos de um deles, na denúncia do
escândalo financeiro e da chefia de uma rede de pistoleiros, os dois amigos foram presos. O Período em que estiveram na
cadeia tornou-se oportunidade para reconfiguração de laços de solidariedade e amizade, conforme registra a intensa troca de

5
Um exercício nessa direção resultou na reunião de trabalhos de vários colegas em Marques (2007), nos quais são abordadas com distintos enfoques as
interpenetrações de diferentes esferas de relações, que do ponto de vista analítico da das ciências sociais – Foucault sugeriu o quanto essas ciências devem a uma
abordagem jurídica da sociedade e portanto a um ponto de vista que parte da regra e sobretudo das proibições para dar conta do social (1994, v.IV:184) –
deveriam permanecer destacadas das influências informais, pessoais, familiares.
6
Pitt-Rivers é o responsável pelo destaque a essa relação em The People of Sierra.
7
Davi Jurubeba fez parte sucessivamente dos dois lados, de início apoiando o primo com sua vasta experiência adquirida, mais tarde acusando-o de
arbitrariedades. A denúncia do escândalo financeiro de reverberação nacional teve a dupla inimiga como um de seus principais alvos.
8
Desde a primeira monografia de Evans-Pritchard sobre os Nuer (1978 [1940]) e de suas considerações sobre sistemas políticos segmentares, em conjunto com
Meyer Fortes (1940), em função do modo de gestão de conflitos de sangue por meio da compensação material ou vendetta, tanto quanto da intensidade das
relações de vizinhança e parentesco, distinguiu-se um espectro próprio de níveis segmentares no interior dos quais esses conflitos tendem a acontecer e para
alem ou aquém dos quais são implausíveis ou inadmissíveis. Razões morais (senão sobrenaturais) de prevenção ou de condenação se acrescentam as de ordem
jurídica e política.

769
cartas entre um deles e seus parentes e amigos. Em seu favor, o irmão de um dos acusadores repetiu em cartas endereçadas a
vários familiares que considerava seu primo.
“Nosso parente e isto eu reconheço e quanto ao seu modo de viver é problema dele. E quanto a viver sempre
protegendo elementos que alguém julgue nocivos a comunidade, por outro lado, julgo eu, que são elementos necessários e
que muitas vezes precisamos de seus trabalhos. Muitas vezes criamos cobras para nos defender de outras cobras. Isto é que é
a realidade e se o [primo] assim procede está simplesmente herdando do nosso antepassado” (carta datada de 6 de setembro
de 1980)9.
A gravidade das declarações feitas nessas cartas é melhor apreensível quando acompanhadas das reprovações
dirigidas pelo seu autor à “deslealdade” que atribui ao procedimento de seu irmão. Nas correspondências trocadas com o
preso também ficaram registradas as iniciativas de vários parentes no sentido de mediarem e darem fim “a tanta briga e
desunião da família” (carta datada de 21 de maio de 1981).
A troca de acusações e as manifestações de solidariedade não se reduziram ao âmbito dos familiares dos
protagonistas. O vaqueiro de um dos presos declara em carta a seu patrão e compadre a sua ansiedade por seu retorno: sem
ele, “a policia não presta. [sua esposa] disse que sem você [ela] não vota. Só se você sair” (carta de 26 e agosto de 1982). Em
sua singeleza, a carta expressa com precisão o escopo e os sentidos que esses laços de solidariedade pautados na amizade
atingem. Corrobora essa interpretação um trecho de carta dessa vez escrita pelo preso a um chefe político sertanejo.
L., quem já esteve aqui [em visita à prisão] comigo por duas vezes foi L.L. [chefe político do município vizinho ao
primeiro], disse-me que está disposto a me ajudar em todos os sentidos, até economicamente e que [seu município] espera
por mim. T com Dr. I [ambos correligionários] também estão solidários comigo, inclusive já empregaram [minha filha] na
prefeitura e disseram-me que outras oportunidades serão dadas a mim para que eu possa através de meus filhos e amigos
possa sustentar meu pequeno reduto eleitoral que tenho [nesse segundo município], como também receber a visita de nosso
amigo Z.M. e muitos outros de [meu município] todos solidários a meu ponto de vista e sofrimentos” (carta datada de 1o de
abril de 1984.
Essa troca de correspondência certamente poderia ilustrar alguns dados concretos das ligações de clientelismo e
patronagem vigentes naquele universo social. Poderia ser usada também para sugerir a má fé como propósito e guia para
dessas relações. De minha parte, prefiro torcer girar algumas vezes esse caleidoscópio de signos e de relações para me
entreter um pouco mais com as diferente configurações que possam surgir. Clientelismo, corrupção, nepotismo talvez
intitulem algumas, mas não podem dar conta de todas as combinações configuracionais Também me parecem corresponder
mais a efeitos de superfície do que a causalidade dessas relações.
O recorte temporal e a seleção de circunstâncias distintas que propus10 permitem vislumbrar, segundo creio, um
panorama social protagonizado por indivíduos e coletividades, sem que essa agência se traduza necessariamente em algum
esquema manipulatório e privatista. Nesse universo, as pessoas são a todo momento forçadas a agir e a tomar decisões, em
função de suas relações e das reputações que queiram produzir. Há sempre mais de uma resposta possível e os efeitos que
elas podem produzir nos destinos de cada um e na configuração social geral não estão jamais sob o controle absoluto dos
protagonistas, que percebem de antemão que a lei e a ordem não são necessariamente os caminhos mais seguros, por vezes
tampouco considerados os mais corretos. Pois não se pretendeu sustentar aqui que as opiniões aqui selecionadas sejam
representativas de algum consenso geral e ainda menos que no sertão pernambucano se registra um código cultural de
tolerância relativa às transgressões. Distintos níveis de tolerância coexistem ali (como em qualquer outra parte) com a mais
pura fé na ordem, nas boas intenções e nos bons princípios que guiam as condutas de lideranças como as que foram trazidas a
primeiro plano11.
Os princípios normativos das relações políticas democráticas, previnem qualquer favorecimento pessoal ou
coletivo. Frequentemente esses princípios vão de encontro a outro que baseia as obrigações de dádivas e retribuições entre
parentes e amigos. Assim posto, notamos que uns princípios não antecedem outros logicamente, mas competem entre si e
tendem a prevalecer em diferentes situações sociais12. Manter a ordem, desse ponto de vista, pode ser uma tarefa com
múltiplos significados e por vezes não redutível ao simples cumprimento da lei. Sem dúvida, uma tal constatação abre
brechas largas e perigosamente sujeitas a toda sorte de abusos. Na verdade, eles estão presentes por toda parte, em todas as
instâncias e esferas. O convite à contemplação do cenário árido do sertão, da compreensão da multiplicidade de signos que ali
operam, serve não para reduzi-lo em exotismos mas para treinar um olhar para uma paisagem mais supersaturada, de modo a
poder melhor enxergá-la em outras partes, entre nós mesmos.

9
O arquivo pessoal do acusado que reúne esse material me foi gentilmente cedido por seus filhos.
Uma carta datada de 27 de fevereiro de 1979, do mesmo autor endereçada ao mesmo primo em comum a ele e ao prisioneiro, traz uma ligeira variação no mesmo
comentário. “Quanto ao [nosso primo] ser chefe de pistoleiros. Não o condeno, porque precisamos muitas vezes dessa classe de gente. Julgo natural e acho
mesmo que [e preciso ter parentes nesse quilate. Aqui já protegi muito gente assim, portanto não posso condená-lo. Depende mito das condições em que se vive.
Só não gosto é de cabra safado”.
10
Outros exemplos poderiam ter sido analisados ao lado desses e se aqui não constam é sobretudo por falta de espaço. De todo modo, eles foram já trabalhados
em outros momentos (Marques 2002; 2003).
11
A esse pretexto é preciso salientar as muitas declarações de fé na inocência dos personagens aqui tratados, assim como as de compreensão das injustiças
sofridas por um personagem como Lampião. As acusações promovem defesas no mesmo nível de intensidade.
12
Para uma análise interessante dessa concomitância segmentariamente organizada,ver Herzfeld (2005).

770
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Jornais
Diário de Pernambuco

Os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no


Brasil – Primeiras Impressões
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo;
PUCRS
[email protected]

Fernanda Bestetti de Vasconcellos


PUCRS
[email protected]

Eduardo Pazinato da Cunha


UFSC
[email protected]

Resumo: A presente pesquisa, que conta com o apoio do CNPq, busca investigar o funcionamento dos Juizados Especiais de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, criados pela Lei 11.340/06, a partir de duas capitais de estados da região sul do Brasil, Porto Alegre e
Florianópolis. O presente artigo reflete os resultados da pesquisa em uma etapa intermediária. Partindo de uma análise do processo de criação
da Lei, foram realizadas entrevistas com a juíza e a delegada de polícia responsáveis pelo Juizado e pela Delegacia da Mulher em Porto
Alegre, bem como a observação de audiências. O levantamento realizado permite identificar as limitações da nova Lei, bem como as
deficiências estruturais do sistema de justiça para atender as demandas da clientela a qual presta atendimento. Neste sentido, pode-se dizer
que a lei traz consigo algumas mudanças positivas, como a possibilidade de medidas protetivas, de caráter preventivo, concretamente
efetivadas em alguns casos, mas perde e retrocede por não prever a possibilidade de mediação entre as partes, o que apresenta-se ainda como
a melhor alternativa para solucionar a conflitualidade doméstica.

A Expansão Penal e a Lei 11.340/06


Analisando aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais contemporâneas, o criminólogo espanhol
Jesus-María Silva Sánchez constata a existência de uma tendência dominante na grande maioria dos países no sentido da

771
introdução de novos tipos penais, assim como de um agravamento das penas para os já existentes, fato que o leva a
caracterizar o momento atual como de expansão do direito penal. Silva Sánchez reconhece que a questão é complexa,
procurando relacionar o fenômeno, assim como David Garland1, com causas mais profundas e múltiplas, que fundam suas
raízes no modelo social que vem se configurando no decorrer das últimas décadas. Segundo ele, há que se reconhecer a
existência de uma verdadeira demanda social por mais proteção frente ao incremento da criminalidade, canalizada de modo
mais ou menos irracional como demanda de punição.
Buscando formular hipóteses explicativas para o fenômeno, Silva Sánchez vai arrolar alguns fatores que
justificariam a cristalização deste consenso. Um deles seria o surgimento de novos bens jurídicos considerados socialmente
relevantes para a obtenção da tutela penal. Tal situação seria verificável tanto pelo surgimento de novas esferas de ação
potencialmente delitivas, como o ciberespaço, como pelo reconhecimento da relevância de determinadas condutas delitivas
antes consideradas de menor importância, como a violência no ambiente doméstico, e ainda a deterioração de realidades
tradicionalmente abundantes, levando à criminalização das condutas lesivas ao meio ambiente.
Outro fator apontado por Silva Sánchez para a expansão do Direito Penal é a mudança de posição de boa parte dos
criminólogos de esquerda, que se tornam os novos “gestores atípicos da moral”. Uma vez que se passa a visualizar os sujeitos
pertencentes aos estratos inferiores da sociedade como titulares de bens jurídicos individuais ou difusos, como vítimas
potenciais mais do que como autores potenciais de delitos, a esquerda passa a assumir as demandas de maior proteção que
surgem de tais setores. As associações ecológicas, feministas, de consumidores, de vizinhos, pacifistas, anti-discriminatórias
e de defesa dos direitos humanos passam a encabeçar a tendência de progressiva ampliação do Direito Penal no sentido da
crescente proteção de seus interesses específicos2.
É nesse contexto que deve ser compreendida a criação de novas leis de proteção à mulher, em diferentes contextos,
buscando dar conta de um fenômeno que vitimiza cotidianamente um grande número de mulheres em todo o mundo. Como
lembra Bárbara Soares3,
com a criminalização da violência que acontece no espaço doméstico, redefinem-se os sentidos da individualidade, dos
direitos, das responsabilidades e as fronteiras entre o mundo público e o mundo privado. Se estas fronteiras nunca
foram estáveis e definitivas na história do Ocidente, é certo, também, que o espaço público nunca esteve tão
confundido com a intimidade e com a vida em família, como nesse início de século, em nome de expectativas
igualitárias e do amplo acesso aos direitos civis – como tem acontecido sobretudo na América do Norte e em alguns
países da Europa.

Soares destaca que esse processo pode ser lido de formas diferentes. De um lado, como sintoma de aumento do
controle social e das formas de dominação, regulação e racionalização da vida coletiva, que se sofisticam e se tornam
crescentemente pervasivas. A sociedade estaria tornando-se mais regulatória e opressiva, já que nem a família, nem as
relações íntimas estariam a salvo do controle externo e das investidas da lei. O mundo laicizado e desencantado estaria
submetido ao imperativo da razão técnica e ao jugo dos especialistas, que passam a legislar sobre esferas antes reservadas à
família e às relações íntimas. A vida privada se institucionaliza e é devorada pela lógica do processo burocratizante que
prevalece na vida pública. O refúgio do afeto e do valor é invadido pelos guardiões da nova racionalidade política e pelos
profissionais da subjetividade, que passam a administrar o amor, a sexualidade, as emoções e as tradições familiares,
imiscuindo-se no terreno das crenças, dos hábitos, das relações interpessoais.
Por outro lado, a autora sustenta que esse processo pode ser interpretado de outra maneira: o processo de
redefinição de direitos, baseado em uma releitura desnaturalizante da vida social, encabeçada primordialmente pelas
feministas, indicaria, também, uma expansão da democracia e uma extensão do sentido da individualidade. O lar, o casal e a
família deixam de funcionar como mônadas impenetráveis, como núcleos decisórios, auto-referidos e possuidores de direitos
próprios, para se desmembrarem em novas unidades socialmente significativas, competindo legitimamente e em igualdade de
condições pelo acesso aos direitos civis.
Na direção inversa à que a primeira leitura sugere, o mundo privado estaria, nesse caso, se arremessando sobre a
esfera pública, impondo suas temáticas e o contaminando com suas feridas, suas paixões, seus desejos, sua irracionalidade e
selvageria. Em vez do simples controle dos excessos, dos afetos, dos desvios e diferenças, o movimento contra a violência
estaria transferindo para o domínio público as turbulências, perplexidades e incertezas vividas na privacidade. Estaria
desestabilizando e redefinindo o foco das percepções sobre dominação, controle e poder. Por romper as velhas estruturas do
patriarcalismo e desnaturalizar os dispositivos que asseguram o livre exercício da violência familiar, estaria,
pragmaticamente, produzindo condições de ampliação da democracia, a despeito de seus efeitos colaterais.
Mesmo considerando os excessos e os novos problemas que advêm da intervenção externa sobre a família, numa
perspectiva emancipatória a segunda leitura parece plausível, uma vez que em última instância é contra a limitação da
cidadania plena e a expansão do acesso à igualdade de direitos que se organiza o movimento contra a violência de

1
GARLAND, D. (2001). La Cultura del Control. Barcelona: Gedisa ed.
2
Sobre a utilização do discurso punitivo pelos defensores dos Direitos Humanos e as consequências deste fenômeno, vide o excelente trabalho de Helena
SINGER (1998).
3
SOARES, B. M. (1999). Mulheres Invisíveis – Violência conjugal e as novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (pp.32).

772
gênero/doméstica/conjugal. Estaria assim contemplada a racionalidade ética de uma intervenção institucionalizada neste
âmbito.
Resta, no entanto, indagar acerca da racionalidade pragmática ou teleológica das intervenções que se pretende fazer
sobre a realidade social por meio de reformas legais, especialmente no âmbito do direito penal. Uma lei é irracional, neste
âmbito, se fracassa em seu propósito de influenciar o comportamento humano, por motivos subjetivos ou objetivos, ou se
produz efeitos não previstos e/ou não desejados, o que somente pode ser observado por meio de técnicas de implementação e
monitoramento.
Dominguez Figueirido4 propõe a análise do processo legislativo com base no reconhecimento da existência de uma
serie de interações que têm lugar entre elementos distintos e que dão lugar a diversos níveis ou âmbitos de racionalidade.
Entre os âmbitos de racionalidade legislativa estão a comunicativa ou linguística (capacidade do emissor da norma transmitir
com fluidez a mensagem ao receptor); jurídico-formal (inserção harmoniosa da nova lei no sistema jurídico); ética
(sustentabilidade ética dos valores orientadores das condutas prescritas e dos fins buscados pela lei); e pragmática ou
teleológica (adequação da conduta dos destinatários ao prescrito na lei e capacidade de alcançar os fins sociais perseguidos).
A elaboração da Lei 11.340/06 parte, em grande medida, de uma perspectiva crítica aos resultados obtidos pela
criação dos Juizados Especiais Criminais para o equacionamento da violência de gênero. Os problemas normativos e as
dificuldades de implantação de um novo modelo para lidar com conflitos de gênero levaram diversos setores do campo
jurídico e do movimento de mulheres a adotar um discurso de confrontação e crítica aos Juizados, especialmente direcionado
contra a chamada banalização da violência que por via deles estaria ocorrendo, explicitada na prática corriqueira da aplicação
de uma medida alternativa correspondente ao pagamento de uma cesta básica pelo acusado, ao invés de investir na mediação
e na aplicação de medida mais adequada para o equacionamento do problema sem o recurso à punição.
É o que se verifica, por exemplo, na manifestação da Desembargadora Maria Berenice Dias, em obra publicada
sobre a Lei 11.340/065:
A ênfase em afastar a incidência da Lei dos Juizados Especiais nada mais significa do que reação à maneira
absolutamente inadequada com que a Justiça cuidava da violência doméstica. A partir do momento em que a lesão
corporal leve foi considerada de pequeno potencial ofensivo, surgindo a possibilidade de os conflitos serem
solucionados de forma consensual, praticamente deixou de ser punida a violência intrafamiliar. O excesso de serviço
levava o juiz a forçar desistências impondo acordos. O seu interesse, como forma de reduzir o volume de demandas,
era não deixar que o processo se instalasse. A título de pena restritiva de direito popularizou-se de tal modo a
imposição de pagamento de cestas básicas, que o seu efeito punitivo foi inócuo. A vítima sentiu-se ultrajada por sua
integridade física ter tão pouca valia, enquanto o agressor adquiriu a consciência de que era “barato bater na mulher.

Nas pesquisas realizadas sobre o funcionamento dos JECrim, não há, no entanto, um consenso sobre o significado
de sua implantação para o equacionamento judicial da violência de gênero. Alguns perceberam os JECrim como benéficos à
luta das mulheres por dar visibilidade ao problema da violência de gênero, que antes não chegava ao âmbito judicial em
virtude da obrigatoriedade do inquérito policial, que acabava não sendo realizado. Outros entenderam que os Juizados
ampliaram a rede punitiva estatal, judicializando condutas que antes não chegavam até o judiciário, mas em muito pouco
contribuíram para a diminuição do problema da violência conjugal, pela impunidade decorrente da banalização da alternativa
da cesta básica.
Contrariando os estudos que concluíram que a Lei 9.099/95 estaria desfavorecendo as mulheres no acesso à Justiça,
a pesquisa realizada por Wânia Pasinato Izumino6 nas Delegacias de Defesa da Mulher do estado de São Paulo, no período de
1996 a 1999, revelou um aumento expressivo no número de registros policiais de lesões corporais e ameaças, permitindo
concluir que Delegacias da Mulher e Juizados Especiais Criminais representaram importantes espaços de referência para as
mulheres em situação de violência.
Para Pasinato, a decisão de recorrer à polícia e a capacidade legal de intervenção no processo judicial, conquistada
pelas vítimas sob a nova legislação, revelaram um modo de exercício de poder pelas mulheres, em um modelo alternativo à
justiça tradicional que poderia responder às expectativas das mulheres vítimas de violência e explicitar outro tipo de vínculo
entre gênero, conflito e Justiça. A autora trata a possibilidade de manutenção ou retirada da representação pela vítima,
viabilizada pela Lei 9.099/95, como um mecanismo de empoderamento das mulheres, pois estas deixariam de ser vítimas
passivas para atuarem de forma ativa, reagindo à situação de violência que enfrentam. A capacidade de dispor da
representação revelaria formas através das quais as mulheres podem exercer poder na relação com os companheiros.
Entretanto, a autora chama a atenção para o fato de que o problema não está na possibilidade da vítima se manifestar,
retirando a representação, mas na ausência de mecanismos que permitam que ela seja informada de seus direitos e das
consequências de sua renúncia à representação.
Em um movimento capitaneado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Mulher, que se pautou pela tentativa de
elaboração normativa por meio da participação direta de mulheres em vários estados, deixou-se de lado o que há uma década

4
DOMÍNGUEZ FIGUEIRIDO, J. L. (2003). Sociologia Jurídico-Penal y Actividad Legislativa. In BERGALLI (Coord.), Sistema Penal y Problemas Sociales.
Valencia: Tirant lo Blanch (pp.264).
5
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6
IZUMINO. W. (2004). Delegacias de Defesa da Mulher e Juizados Especiais Criminais: mulheres, violência e acesso à justiça. XXVIII Encontro da
Associação Nacional de Pós Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS. Caxambu, Minas Gerais, CD-ROM.

773
era visto como um novo paradigma, aberto à mediação e à busca do consenso, e verificou-se a adesão à tese da utilização do
direito penal para a proteção de interesses legítimos de redução da violência.
Em relação às lesões corporais leves, a Lei 11.340/06 instituiu um aumento da pena máxima em abstrato, se a lesão
for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou,
ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, que passou a ser punido com três
meses a três anos de detenção. Com essa medida, retirou dos JECrim a competência para o processamento deste delito, e
previu a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
Optou-se ainda por prever expressamente, no art. 41, que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar
contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099/95. Agora, caso o juiz entenda necessário
o comparecimento do agressor em programa de recuperação e reeducação, a medida é tomada de forma impositiva, e não
mais como parte de uma dinâmica de mediação, ou mesmo de transação penal.
A exclusão do rito da Lei 9.099/95, expressa no art. 41 da Lei 11.340/06, para o processamento de casos de
violência doméstica, acaba com a possibilidade de conciliação, que se constituía em uma oportunidade das partes discutirem
o conflito e serem informadas sobre seus direitos e as consequências de seus atos. Além disso, reenvia estes delitos para a
Polícia Civil, pois agora dependem novamente da produção do inquérito policial. Embora a Lei tenha sido bastante minuciosa
ao orientar a atividade policial, são conhecidas de todos as dificuldades existentes, tanto estruturais quanto culturais, para que
estes delitos venham a receber por parte da Polícia o tratamento adequado, o que certamente vai implicar uma redução do
acesso ao Poder Judiciário.
Incluindo a prisão preventiva como medida protetiva de urgência cabível em determinadas circunstâncias, a nova
lei concedeu ainda ampla discricionariedade ao juiz para decidir sobre a necessidade da segregação cautelar do indivíduo
acusado da prática de violência contra a mulher, valendo-se de relações domésticas e familiares.
As medidas não-penais de proteção à mulher em situação de violência, previstas nos artigos 9º, 22 e 23 da Lei
Maria da Penha, mostram-se providências muito mais sensatas para fazer cessar as agressões e, ao mesmo tempo, menos
estigmatizantes para o agressor, assim como a ampliação da definição da violência contra as mulheres. Entretanto, inseridas
em um contexto criminalizante, pode-se imaginar que logo estaremos assistindo à colonização das medidas protetivas pelas
iniciativas tendentes à punição (mesmo antes da condenação) dos supostos agressores, nos casos que conseguirem ultrapassar
a barreira do inquérito e alcançarem uma audiência judicial, quem sabe quanto tempo depois do momento da agressão. E
ainda, como lembra Maria Stella de Amorim7,
embora festejada por todos, inclusive pelos autores aqui citados e que não lhe pouparam observações, a
operacionalização e a eficácia da Lei Maria da Penha pode sofrer da mesma fragilidade institucional que os JECrim. Se
este despenalizava, a Lei Maria da Penha penaliza a violência contra a mulher. Se o JECrim falhou, por falta de
políticas auxiliares no combate desta violência grave e ainda bastante arraigada nas sociedades atuais, inclusive na
brasileira, a Lei 11.340/06 amparou-se em rede de proteção do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria
Pública, dos Executivos Federais, Estaduais e Municipais, de equipes multidisciplinares e de organizações não
governamentais. Mas, estará esse extenso manto protetor suficientemente articulado para conceder proteção à mulher
vítima da violência doméstica e familiar?

Com referência às relações das mulheres com o mundo do direito, Ana Lúcia Sabadell8 salienta que há algumas
décadas pesquisadoras oriundas dos movimentos de mulheres começaram a estudar a possível contribuição do sistema
jurídico para a perpetuação das violações dos direitos da mulher. Surgiram, assim, estudos que realizavam tanto leituras
internas, relativas à estrutura do direito positivo, como leituras externas, relativas à eficácia e às relações entre o direito e a
cultura machista/sexista.
Salientando as dificuldades para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, Sabadell, lembra os
limites do direito para resolver o problema. Para ela, esses limites tornam-se claros na escassa eficácia secundária das normas
que combatem “no papel” a violência doméstica e também no fato de que a eventual punição do agressor quase nunca resolve
o problema de forma satisfatória para a mulher.
Em importante estudo sobre o papel do sistema judiciário na resolução dos conflitos de gênero, Wânia Pasinato
Izumino9 conclui, seguindo hipótese elaborada a partir de outros estudos, (que a Justiça, ao julgar os casos que lhe são
apresentados, pauta-se não apenas pelo crime e a presença de elementos que comprovem sua ocorrência (autoria,
materialidade e os vínculos pertinentes a esses dois aspectos), mas por móveis extra-legais que se referem aos
comportamentos sociais das vítimas e de seus agressores. Em relação aos casos que envolveram conflitos de gênero, os
papéis sociais são sempre referenciados às instituições família e casamento e aos aspectos definidores desses papéis sociais
nessas instâncias: sexualidade feminina e trabalho masculino10.

7
AMORIM, M. S. (2007). Acesso à Justiça e Administração Judicial da Violência contra a Mulher Brasileira – Políticas de despenalização e de penalização.
Anais do XIII Congresso da Anpedi. HTTP://conpedi.org/manaus////arquivos/anais/campos/maria_stella_de_amorim.pdf (consultado na Internet em 20 de
Agosto de 2008).
8
SABADELL, A. L. (2008). Manual de Sociologia Jurídica (4ª Ed.). São Paulo: Revista dos Tribunais. (pp. 259).
9
ARDAILON, D. & DEBERT, G. G. (1987). Quanto a vítima é mulher. São Paulo: Cedac.
10
IZUMINO, W. P. (2004). Justiça e Violência Contra a Mulher. São Paulo: FAESP/Anna Blume. (pp. 268).

774
Analisando a aprovação, no Brasil, da Lei 11.340/06, Nilo Batista11 lembra que, a partir dos anos sessenta do século
XX, germinaram nas ruas e na academia três importantes movimentos: o feminismo, a criminologia crítica e o do uso
alternativo do direito. Segundo o autor, o feminismo acabou, durante longo tempo, atuando de forma indiferente à
criminologia crítica. Para ele, diante das opressões a que estavam historicamente submetidas as mulheres no âmbito privado,
frequentemente letais, era compreensível que lideranças feministas e grupos ou partidos integrados ao movimento
depositassem alguma esperança no emprego do poder punitivo, no sistema penal do Estado previdenciário. No entanto, com
as mudanças produzidas nas últimas décadas, com a substituição do estado social pelo estado penal, a defesa de uma
ampliação e reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e da comunidade, acaba por
reforçar os riscos e impasses identificados na sempre seletiva criminalização secundária. Conforme Batista,
Para observar as características político-criminais da Lei nº11.340, de 7.ago.06, é importante recordar que os sistemas
penais do capitalismo pós-industrial se dividem em dois grandes campos: um deles, aplicável às infrações do “bom
cidadão”, se vale do discurso sobre a deterioração prisional para, recorrendo à transação penal, à suspensão condicional
do processo, ao sursis, às penas restritivas de direito etc., deixá-lo no shopping exercendo sua boa cidadania; o outro,
aplicável às infrações do “inimigo”, do consumidor frustrado, silencia sobre a deterioração prisional para impor penas
privativas de liberdade neutralizantes. (...) A Lei nº 11.340, de 7.ago.06, inspirada diretamente na Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, tem como principal característica
político-criminal exprimir uma demanda clara por sofrimento penal físico.

A conclusão do penalista e criminólogo carioca é que o efeito positivo da lei, de estimular o debate sobre as
opressões privadas às quais são submetidas as mulheres, fica neutralizado pela ênfase que se conferiu à intervenção punitiva.
Segundo Batista, a opção retributivista-aflitiva da lei representa uma contribuição para o grande encarceramento em curso.
Para Maria Filomena Gregori12, as mulheres agredidas não buscam, necessariamente, a separação de seus parceiros.
A autora entende que não há uma simples dominação das mulheres pelos homens, estas não são meras vítimas de seus
companheiros, não existe, numa relação, um estabelecimento dualista e fixo dos papéis de gênero. Embora a dualidade
vítima-agressor facilite a denúncia da violência, Gregori destaca que deve haver limites para essa visão jurídica dualista: “A
construção de dualidades – como ‘macho’ culpado e mulher ‘vítima’ – para facilitar a denúncia e indignação, deixando de
lado o fato de que os relacionamentos conjugais são de parceria e que a violência pode ser também uma forma de
comunicação, ainda que perversa, entre parceiros.”13
Analisando a recente legislação aprovada na Espanha para o combate à violência de gênero (Ley Orgánica de
Protección Integral Contra a Violencia de Género – LOVG), Elena Larrauri14 começa refletindo sobre os inconvenientes da
excessiva intromissão do sistema penal para resolver problemas sociais. Pretender atacar todos os casos de violência contra a
mulher nas relações conjugais e domésticas recorrendo ao sistema penal supõe, segundo ela, um excesso que acarreta em
custos para a mulher. Para Larrauri, esta criminalização exorbitante não é responsabilidade das feministas, e sim de um modo
de governar denominado “populismo punitivo”, que pretende resolver problemas sociais recorrendo sistematicamente ao
direito penal, com significativas vantagens eleitorais para seus defensores. Foi esta forma de governar que seduziu um
determinado tipo de feminismo punitivo, caracterizado por exigir e defender a constante elevação das penas.
Frente aos múltiplos debates propiciados pela entrada em vigor da LOVG, Larrauri propõe uma agenda de estudos
que enfrente algumas das seguintes questões centrais:
a) A necessidade de avaliações permanentes dos efeitos da lei, com uma reflexão necessária sobre os critérios que serão
utilizados para esta avaliação;
b) Estudar e debater como conseguir a mudança da mensagem atual, que põe destaque na criminalização de um problema
social, a outra alternativa que situe o objetivo de alcançar uma melhor proteção das mulheres em primeiro lugar;
c) Conhecer sobre quem está recaindo o peso da crescente criminalização produzida sobre os delitos relacionados com a
violência de gênero, a partir da hipótese de que a repressão penal segue recaindo exclusivamente sobre os grupos sociais
mais vulneráveis, ou seja, quem acaba nas prisões são os de sempre: os excluídos sociais, os pobres, os imigrantes
ilegais, etc.

A experiência do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher na cidade de Porto Alegre15
Com a Lei n° 11.340/06 (Maria da Penha), passam a ser criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher, os quais passam a realizar o processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais decorrentes da
prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, o

11
BATISTA, N. (2008). “Só Carolina não viu” – Violência Doméstica e Políticas Criminais no Brasil. In MELLO, A. R. (org.). Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris. (pp. Ix).
12
GREGORI, M. F. (1992). Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Paz e terra.
13
GREGORI, M. F. (1992). Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Paz e terra. (pp. 134).
14
LARRAURI, E. (2007). Criminología Crítica y Violencia de Género. Madri: Ed. Trotta, (pp. 134-138).
15
O presente tópico contou com a colaboração de Gabriela Ramos de Freitas, bolsista de iniciação científica do CNPq e acadêmica de Direito pela PUCRS,
responsável pela observação das audiências nos meses de agosto e setembro de 2008, e de Thais Sardá, jornalista e especializanda em Ciências Penais pela
PUCRS, que realizou as entrevistas com a Juíza Osnilda Pisa e com a Delegada Nadine Farias, no mês de outubro de 2008.

775
Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher teve seu funcionamento iniciado no Fórum Central da
cidade, no dia 25 de abril de 2008.
As audiências do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Porto Alegre ocorrem no Foro
Central da cidade de Porto Alegre, situado na Rua Márcio Veras Vidor, 10, no quinto andar, na sala nº 507, e o horário de
funcionamento do Juizado é o mesmo do Foro, das 10:30 às 11:30 e das 13:30 às 18:30. O cartório do respectivo Juizado fica
ao lado da sala de audiências, na sala nº 501.
Ao acompanhar algumas audiências no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher percebe-se uma
constância do perfil e da forma como é tratada essa conflitualidade. Desde que a atual magistrada assumiu o Juizado, em
maio de 2008, as audiências iniciais, com a presença da vítima, ocorrem de forma individualizada, e não mais em grupos,
como ocorria anteriormente. As mulheres aguardam sentadas no corredor do Foro, e se chegam acompanhadas do acusado,
são separadas e sentam-se há alguma distância. Adentram na sala de audiência de forma constrangida, sentam do lado direito
da juíza e ao lado da defensora pública e de frente para o seu agressor.
Diariamente são atendidas em torno de 20 mulheres, a audiência dura uma média de 10 minutos. As mesas estão
dispostas em forma de “u” e a grande maioria das vítimas faz uso da Defensoria Pública. O perfil predominante é de casais
que moram na periferia da cidade e com baixa escolaridade. De acordo com a palavra das vítimas, o alcoolismo é um dos
principais motivos das agressões e pedidos de medida preventiva, embora nenhum dos agressores confirme o vício na bebida.
Nos casos observados, nenhuma mulher havia sido espancada, a violência física não tinha ocorrido. Todavia, o que
ocorreu na totalidade dos casos foi a violência psíquica na forma de ameaças, ofensas e humilhações na frente dos filhos. São
uniões de 10 anos em média, que se apresentam perante o Juizado, e as mulheres chegam na audiência esgotadas
emocionalmente, pois já vem suportando por vários anos uma situação de violência conjugal.
Após a separação de fato, a situação em relação aos filhos é um dos motivos de conflito, como na questão da
definição do horário de visitas. Algumas vezes, a pedido da mulher é aplicada uma medida preventiva, como forma de evitar
o encontro do ex-casal. Para tanto fica designada em ata uma terceira pessoa, responsável pela entrega da criança para o pai.
Outro ponto de conflito é a questão do pagamento da pensão alimentícia. Quando o pagamento não é feito, a mulher acaba se
expondo ao exigir pessoalmente para o seu ex-marido, deixando-o irritado com esse “tipo de cobrança”. Em grande parte dos
casos são trabalhadores autônomos ou desempregados, sem carteira de trabalho, e sem condições de ter uma constância nos
depósitos da pensão. Um aspecto também muito significativo é o problema da moradia, pois na maioria dos casos não há
condições financeiras para viabilizar a separação do casal, que se mantém em coabitação. O que torna complicada a
convivência, pois já estão separados de fato.
A juíza esclarece de forma didática para o casal, o papel que tem o Judiciário de intermediar o conflito entre eles, e
a responsabilidade assumida por eles perante a juíza em suas decisões. Nas sextas-feiras há o reforço desse procedimento,
pois uma equipe transdisciplinar de alunos do curso de Direito da Uniritter e do curso de psicologia da UFRGS, conversam
antes da audiência com o casal, explicando as possibilidades existentes e as consequências de prosseguir, de arquivar ou de
suspender o processo.
Um dos procedimentos adotados pela magistrada em relação ao problema do alcoolismo, é o encaminhamento do
homem agressor a grupos de apoio como Alcoólicos Anônimos, indicando a necessidade dele realizar o tratamento. É exigido
o comparecimento em 12 sessões, devendo ser comprovado por meio de um controle de frequência. Após comparecer às
sessões, o acusado deve retornar para uma nova audiência, ficando o processo suspenso durante este período. Muitas vezes a
própria mulher, vítima da violência, acompanha o parceiro nas sessões, como forma de estimular a sua cura. O Bairro
Partenon centraliza o maior número de grupos do AA na cidade. Segundo a juíza,
(...) pensando no que as vítimas efetivamente desejam, o Ministério Público está propondo ao demandado,
independente de se ter o inquérito policial, em situações em que as partes continuam com o convívio, ou dependendo
da não gravidade do fato, a frequência a grupos de auto-ajuda ou a um tratamento específico. Então, nós estamos
fazendo mensalmente o grupo dos que estão aceitando essa proposta. Quem é dependente de álcool está frequentando o
A. A. [Alcoólicos Anônimos], quem é dependente de outras drogas o Narcóticos Anônimos, ou o grupo do Amor
Exigente para quem tem dependência química, e que tem casos de violência. Em alguns casos também tratamento
psicológico ou psiquiátrico como forma alternativa ao processo, que é uma medida mais efetiva para prevenir a causa
que está gerando a violência, como é o caso do alcoolismo ou de alguns transtornos psiquiátricos, isso vai prevenir
novas violências e a demora para ser encaminhado para um programa. (Dra. Osnilda Pisa, juíza responsável pelo
Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher).

Outro procedimento adotado é o encaminhamento da mulher vítima de maus tratos ao Centro de Referência às
Vítimas de Violência (CRVV), que é um programa mantido pela Prefeitura para dar assistência às vítimas. Outra
possibilidade é o encaminhamento do casal para atendimento psicológico, e passam a frequentar as reuniões do grupo Amor
Exigente. Após as reuniões, devem retornar para uma nova audiência já pré-agendada com a juíza.
De acordo com a percepção da juíza Osnilda Pisa, segunda magistrada a assumir a direção do Juizado, ao mesmo
tempo em que a lei Maria da Penha traz importantes mecanismos para a prevenção da violência contra a mulher, ela
representa um retrocesso no que tange à extinção da possibilidade legal da solução do conflito através do acordo entre vítima
e agressor, anteriormente possibilitada pela atuação dos JECrims.

776
A falha para mim foi que, depois de tantas discussões levantadas em torno da lei Maria da Penha, uma que me parece
preocupante é a exclusão da aplicação da lei n°. 9.099, uma lei que na área criminal foi inovadora, porque permitiu que
antecipadamente, sem a instrução do processo, que a acusação, o Ministério Público, pudesse transacionar com o
indiciado e, mediante a que ele assumisse uma medida alternativa de imediato, ele não responderia ao processo.
Cumprida a medida, o processo seria baixado e, não ficariam antecedentes. O problema da Lei Maria da Penha é que
ela não permite isso. Então, ao invés de que se possa aplicar uma medida imediata de encaminhamento a um programa
de reeducação e reabilitação, isso vai demorar, por mais rápido que seja um processo, praticamente um ano. Isso,
porque esse processo não teve recurso, porque se tiver recurso, vai demorar mais. E ainda se tem mais alguns casos em
que, decorrido já mais de um ano, ainda não chegou o inquérito policial. A demanda na delegacia é muito grande e a
delegada não está conseguindo mandar os inquéritos dentro do prazo. (Dra. Osnilda Pisa, juíza responsável pelo
Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher).

A juíza passou a organizar o funcionamento do Juizado Especial buscando uma maior efetividade das ações de
prevenção dos atos de violência contra a mulher. Desta forma, modificou, primeiramente, a forma anteriormente utilizada de
atendimento às vítimas que registravam a ocorrência policial na Delegacia da Mulher em Porto Alegre. Este ato significou o
fim das chamas “audiências mutirão”, nas quais eram reunidas mais de cem vítimas em uma mesma audiência, onde as
mesmas deveriam decidir se dariam andamento ao processo, por meio da representação, ou se iriam optar por seu
arquivamento.
Em grande parte dos casos, o registro da ocorrência policial significa a busca por um tratamento eficaz contra o
alcoolismo e o uso de drogas. Neste sentido, as vítimas costumam apelar ao Judiciário para fazer cessar a violência, sem que
isso signifique, necessariamente o fim do relacionamento entre as partes envolvidas. Assim, no momento anterior às
mudanças realizadas pela atual juíza, não dar continuidade ao processo equivalia ao não acesso a qualquer tratamento para o
agressor e a perda de qualquer tipo de confiança no sistema por parte da vítima, já que em nenhum momento sua demanda
era atendida.
Assim, para que este trabalho de atendimento à demanda real de grande parte das vítimas seja realizado, a juíza, ao
receber os pedidos de medida protetiva de urgência16, encaminhadas antes da realização do inquérito policial exigido pela lei

16
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público,
devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia,
sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas,
se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do
Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la,
se sobrevierem razões que a justifiquem.
Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo
da intimação do advogado constituído ou do defensor público.
Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor.
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em
conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as
circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público.
§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de
dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do
porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação
ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973
(Código de Processo Civil).
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as
seguintes medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a
ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

777
Maria da Penha para que se dê prosseguimento ao processo, passou a marcar audiências com as partes, no sentido de verificar
quais suas reais necessidades e, na verdade, tentar realizar um acordo entre elas sem a necessidade da realização do processo
criminal. Logo, o problema enfrentado pela demora na realização do inquérito policial, peça necessária para o andamento do
processo, é reduzido, garantindo a celeridade necessária para o eficaz atendimento às vítimas.
Eu vou marcando as audiências sem esperar chegar o inquérito, porque se eu for esperar cinco meses ou um ano para
chegarem os autos, o que vai acontecer com essas pessoas nesse meio tempo? Eu estou me desgastando para tentar
atender com rapidez essas pessoas. Então, se chega aqui dizendo que depois ele ficou bonzinho e a vítima diz que não
quer mais o processo, eu aviso na delegacia, dependendo da situação, ou eu encaminho para o A. A.. Então, eu aviso a
delegada que aquele processo não tem mais possibilidade de punibilidade e ela não precisa mais fazer aquele inquérito.
Então, o que eu faço aqui, o que eu consigo resolver aqui, a delegada não precisa fazer o inquérito lá. Acabo eu
trabalhando aqui para a delegada, porque o que eu consigo resolver aqui, ela não precisa resolver lá. Toda estrutura é
deficiente: então, a minha angustia é poder atender as pessoas e, para mim, atender as pessoas é efetivamente atender
as pessoas, e não o papel. O Judiciário, e quando eu falo em Judiciário, não é o Poder Judiciário, mas todo o sistema
faz muito papel e pouco resultado. O que há de efetividade, por exemplo, no registro na delegacia de uma ocorrência?
A medida protetiva? Bom, se eu deferir uma medida protetiva, o que vai mudar? O que a gente vê é que as pessoas
chegam aqui muito desestruturadas. Não importa nem o nível cultural e nem o nível econômico, mas as pessoas
quando terminam um relacionamento, o término de um relacionamento é uma coisa muito dolorida. E se não houver
uma efetiva intervenção para essas pessoas, não adianta fazer papel, fazer inquérito e um ano depois é muito tarde para
decretar uma medida, principalmente quando a situação tem origem na vítima. (Dra. Osnilda Pisa, juíza responsável
pelo Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher).

De acordo com a juíza, o trabalho realizado pela Polícia Civil no atendimento às vítimas apresenta problemas,
como a demora na realização do inquérito policial e a apresentação precária de informações, no que tange aos pedidos de
medida protetiva encaminhados para o Juizado.
Os documentos [documentos que apresentem a situação da vítima e do acusado] nunca são apresentados, nos pedidos
de medida protetiva nunca vêm os documentos necessários anexados, como a certidão de nascimento dos filhos, por
exemplo. Só vem a palavra da vítima, de uma maneira muito sucinta. Em muitos casos, não vem nenhum documento
que comprove a propriedade da casa. E acontece de, em muitos casos, se pedir a medida de afastamento da casa do seu
dono e a mulher usa a Lei Maria da Penha para poder ficar numa casa que nem é dela e ela quer lá ficar. Então, é uma
situação muito complicada, é muito angustiante e, o que eu tenho feito em casos de medida protetiva de afastamento é
que excepcionalmente, como ocorreu nesse caso aqui e que só agora eu vejo que não era necessário, porque ela queria
só dar um susto no moço, senão, em todos os outros casos, eu designo a audiência. Então, nesta audiência, eu tenho a
oportunidade de ouvir a vítima e ouvir o agressor. E nessa oitiva, a gente pode tirar um embasamento mínimo para
deferir ou não, ou encontrar uma medida para ajudar as pessoas a encontrarem uma solução. (Dra. Osnilda Pisa, juíza
responsável pelo Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher).

A necessidade de produção do inquérito policial para casos de violência doméstica, exigência que havia sido
retirada pela Lei 9.099/95, que criou a figura do Termo Circunstaciado, representa um expressivo crescimento do volume de
trabalho para a Polícia Civil, e as dificuldades enfrentadas crescem à medida em que cresce a demanda por seus serviços. De
acordo com a delegada titular da Delegacia da Mulher, Dra. Nadine Farias,
A lei trouxe uma demanda muito maior para os nossos atendimentos, aumentando em quase cinquenta por cento o
número de ocorrências em relação ao período posterior à lei Maria da Penha, e, infelizmente, a lei fala em equipes
multidisciplinares para o atendimento, em rede de atendimento e hoje em Porto Alegre a gente tem pessoas que
trabalham em diversos órgãos e que acabam se comunicando para tentar arrumar uma solução para os casos. Mas não
existe de maneira efetiva uma rede de atendimento. Infelizmente, hoje a delegacia de polícia é o primeiro órgão que
elas procuram e se elas conseguem atingir o objetivo, que pode ser se separar do marido, conseguir alimentos para os
filhos, ou afastar o agressor do lar, se tiver sucesso em todo o decorrer do procedimento, na cabeça desta mulher a
informação que fica é a de que a delegacia funcionou ou a delegacia não funcionou, quando, na verdade, não depende
só de nós. (Dra. Nadine Farias, delegada titular da Delegacia da Mulher).

No sentido de aperfeiçoar o atendimento às vítimas de violência doméstica que procuram a Delegacia da Mulher, a
delegada acredita ser necessária a criação de serviços que as amparem em um momento anterior ao contato com a autoridade
policial.
Eu acho que deveria ser diferente. Eu acho que essa mulher deveria ser recebida, primeiramente, por um assistente
social ou por um psicólogo e, ai sim, seria encaminhada para a defensoria pública para resolver todos os problemas
cíveis, como separação, pedido de alimentos, enfim. Só depois para a delegacia para resolver o problema criminal, para
ver se realmente o agressor cometeu um crime. Gostaria que fosse uma coisa em que, na mesma porta que ela entrou,
que ela pudesse ter acesso a todos esses órgãos. Um acompanhamento psicológico, um tratamento de saúde tanto para
ela quanto para o agressor, que são duas pessoas que precisam de tratamento. Isso é o mundo ideal. Isso é o que a lei
prevê. (Dra. Nadine Farias, delegada titular da Delegacia da Mulher).

Pode-se perceber que, mesmo que realizem etapas distintas de um mesmo processo, as operadoras possuem idéias
convergentes a respeito das dificuldades vivenciadas na aplicação da lei Maria da Penha. Os discursos são marcados pela
busca de soluções adequadas para que possam ser atendidas as demandas de vítimas de violência doméstica e familiar.

778
Considerações Finais
O conflito de gênero que está por trás da violência doméstica não pode ser tratado pura e simplesmente como
matéria criminal. O retorno do rito ordinário do processo criminal para apuração dos casos de violência doméstica não leva
em consideração a relação íntima existente entre vítima e acusado, não sopesa a pretensão da vítima nem mesmo seus
sentimentos e necessidades.
A leitura criminalizante apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos
interpessoais, não corresponde às expectativas das pessoas atendidas nas delegacias da mulher e tampouco ao serviço
efetivamente realizado pelas policiais naquela instituição. Certamente o mais adequado seria lidar com esse tipo de conflito
fora do sistema penal, radicalizando a aplicação dos mecanismos de mediação, realizada por pessoas devidamente treinadas e
acompanhadas de profissionais do Direito, Psicologia e Assistência Social. Os Juizados Especiais Criminais abriram espaço
para experiências bem sucedidas neste âmbito, como as várias alternativas de encaminhamento do caso (compromisso de
respeito mútuo, encaminhamento para grupo de conscientização de homens agressores, etc.) dão conta. No entanto, a falta de
adesão normativa e institucional a mecanismos efetivos para a mediação dos conflitos e o equívoco da banalização da cesta
básica deflagraram a reação que agora assistimos.
Com a realização da presente pesquisa, ainda em andamento, busca-se analisar o tratamento judicial concedido à
conflitualidade social em geral, e mais especificamente à violência contra a mulher, pelos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, criados pela Lei 11.340/06, a fim de avaliar a adequação dos mesmos ao objetivo de administração
deste tipo de conflitualidade social. Verificou-se, pelas entrevistas realizadas e a observação de audiências, uma atuação
voltada à resolução dos conflitos através da experimentação de práticas que não ocorrem, necessariamente, de acordo com o
previsto pela Lei n°. 11.340/06. Pode-se dizer que a atuação da juíza responsável pelo Juizado de Porto Alegre busca
soluções para os conflitos através da negociação entre as partes, buscando muitas vezes evitar o prosseguimento de um
processo criminal e a materialização da culpa criminal, o que, neste caso, significa procurar espaços de diálogo entre as
partes, buscando opções de solução que possam evitar a estigmatização do agressor.
A falta de uma rede de atendimento que ligue as instituições com a área da saúde e que proporcione serviços e
atendimento tanto às vitimas quanto aos agressores dificulta a solução de grande parte da demanda. Tanto a juíza quanto a
delegada reconhecem a necessidade de tratamento médico e psicossocial para a clientela que costumam atender diariamente
no cumprimento de suas atividades profissionais.
A experiência do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em Porto Alegre demonstra
as limitações da nova Lei, bem como as deficiências estruturais do sistema de justiça para atender as reais demandas da
clientela a qual presta atendimento. Neste sentido, pode-se dizer que a lei traz consigo algumas mudanças positivas, como a
possibilidade de medidas protetivas, concretamente efetivadas em alguns casos, mas perde e retrocede por não prever a
possibilidade de mediação entre as partes, o que, segundo a juíza responsável pelo Juizado em Porto Alegre, apresenta-se
ainda como a melhor alternativa para solucionar conflitos.

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Civilização Brasileira

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Programa Pró-Egresso de Toledo: a ação do serviço social
Eugênia Aparecida Cesconeto
Pontíficia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP doutoranda Serviço Social
[email protected]

Resumo: Este artigo tem por objetivos divulgar as ações desenvolvidas no Programa Estadual de Assistência ao Apeando e ao Egresso (Pró-
Egresso de Toledo); construir um saber sobre a temática; defender o processo de inclusão dos apenados. A organização atual dá-se através de
um Convênio, firmado entre a UNIOESTE/ Campus de Toledo e a Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania- SEJU, para o período de um
ano. Atende um total de 13 municípios da região oeste do Paraná - Brasil. Tendo como objetivo do seu atendimento social auxiliar e
acompanhar anualmente uma média de 300 pessoas, encaminhadas pela Vara Criminal e pela Vara do Juizado Especial Criminal para
cumprimento da pena, expressa através do termo circunstanciado ou sentença. O processo metodológico detalha a forma como foram
organizadas as ações do programa de outubro de 2004 a dezembro de 2007, contando com o trabalho de docentes e discentes da UNIOESTE
e também discentes da UNIPAR. Apresenta a ação do Serviço Social porque a coordenação Programa encontrava-se sob a responsabilidade
de uma Assistente Social que formulou e acompanhou a operacionalização do projeto de extensão. Destacando como o Serviço Social deve e
pode desenvolver o fortalecimento das relações entre os sujeitos estigmatizados e despertar à comunidade para a necessidade de mudar o
rumo dos tratamentos dispensados as situações de violência e criminalidade, promovendo o processo de inclusão social dos apenados e
egressos, bem como, a desmistificação da identidade socialmente construída. Assim, procura-se demonstram e divulgar a viabilidade e
concretude de um projeto social.
Palavras-chave: Direito; Justiça; Serviço Social

Introdução
Este texto tem por objetivos divulgar as ações desenvolvidas no Programa Pró-Egresso de Toledo e construir um
saber sobre a temática. O Programa Pró-Egresso é um dos órgãos executores da Lei de Execução Penal nº 7.210/84,
subordinado diretamente ao Patronato Penitenciário do Estado, vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania
(SEJU). Atende atualmente em Toledo, junto a Central de Conselhos.
A organização atual dá-se através de um Convênio, firmado entre a UNIOESTE/ Campus de Toledo e a Secretaria
de Estado da Justiça e Cidadania - SEJU, para o período de um ano. Atende um total de 13 municípios da região oeste do
Paraná. Tendo como objetivo do seu atendimento social auxiliar e acompanhar, uma média anual de 300 pessoas (egressos e
apenados), encaminhados pela Vara Criminal e pela Vara do Juizado Especial Criminal para cumprimento da pena
determinada em audiência, expressa através do termo circunstanciado ou sentença servindo como núcleo da prática
profissional, extensiva aos estudantes universitários.
Cabe lembrar que a atuação do programa em Toledo não é nova, ela ocorre deste 1984, alternando os convênios e
consequentemente as coordenações entre a Prefeitura Municipal de Toledo e a Unioeste, sendo a coordenação retomada pela
Universidade no ano de 2003. No momento o trabalho é realizado através de um Projeto de Extensão do Curso de Serviço
Social da UNIOESTE/Campus de Toledo, e a equipe de trabalho compõe-se de docentes e discentes dos cursos de Serviço
Social e Filosofia e um psicólogo (técnico administrativo) e também discentes do curso de direito, da UNIPAR, do curso de
História da UNIMEL, indiretamente contamos com colaboradores diversos.
O Assistente Social ao defender uma ação consciente para com os sujeitos apenados, deve e pode desenvolver o
fortalecimento das relações entre os sujeitos estigmatizados e despertar a comunidade para a necessidade de mudar o rumo
dos tratamentos dispensados as situações de violência e criminalidade.

Determinantes Históricos da Pena Alternativa


Predomina “(...) no Brasil a falsa crença de que somente se reduz a criminalidade com a definição de novos tipos
penais, o agravamento das penas, a supressão de garantias do réu durante o processo e a acentuação da severidade da
execução das sanções, posição mundialmente generalizada”. Reforça-se a necessidade de instituir novos tipos penais
puramente repressivos que advém do aumento da penalização, e da limitação de garantias ao apenado. Assim, defende-se que
a pena de prisão deva ser aplicada para grandes e pequenos delitos sem distinção, é comum a recusa e a crença sobre a
validade da aplicação das penas restritivas de direito (Delmanto,1991).
O direito penal brasileiro mostra seus limites ante o aumento da criminalidade, da impunidade e da morosidade da
justiça. Por outro lado, para inúmeros juristas e teóricos do direito1 a pena de prisão está falida como pena principal e como
pena geral. A prisão deve ser imposta somente em relação aos crimes graves e delinquentes de intensa periculosidade, “nos
outros casos deve ser substituída pelas medidas e penas alternativas e restritivas de direitos, como multa, prestação de
serviços a comunidade, limitação de fim de semana interdição temporária de direitos, sursis, etc” (Jesus, D. 1999).

1
César Roberto Bitencourt, Michael Foucault, Manuel Pedro Pimentel, René Aniel Dotti e outros (JESUS, 1999, p. 12, 15).

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Estas foram as medidas apontadas pela ONU no IX Congresso sobre Prevenção do Crime e Tratamento do
Delinquente, realizado no Cairo (1995), como nos Congressos anteriores2. O que se pretende com o uso das medidas
alternativas é “desafogar o sistema prisional”, bem como a “Justiça”, para que dessa forma a prisão possa ser tratada com
mais cuidado no que se refere aos delitos mais graves, restando o valor preventivo da Justiça Penal e a sanção criminal.
É certo que a resposta penal para os delitos e qualquer tipo de delito, ainda é o uso da pena privativa de liberdade, a
prisão, mesmo tendo plena consciência de que a prisão é um caldeirão preste a explodir a qualquer momento, isso decorre da
falsa idéia arraigada na consciência do povo de que somente a prisão configura a resposta penal. “... Na sua realidade e nos
seus efeitos visíveis, a prisão vem denunciada como o grande fracasso da Justiça Penal” (Foucault, 1977). Nesse sentido, diz
Zaffaroni (apud Jesus, 1999: p. 14) “devemos estar convencidos de que a pena privativa de liberdade é o recurso extremo
com que conta o Estado para defender seus habitantes das condutas antijurídicas de outros”.
O Código vigente, na visão de Jesus (1999), expressa uma legislação eclética por incorporar princípios das escolas
Clássica e Positiva, bem como, o que havia de melhor nas legislações modernas de orientação liberal.
Segundo Dotti (1995: p.11), a partir da metade dos anos 50, e certamente, por influência das regras mínimas da
Organização das Nações Unidas, e a inspiração do movimento revolucionário das prisões abertas, houve a tendência de
denunciar a crise da pena privativa de liberdade, devido sua execução sucessiva e da constante violação dos direitos humanos
do presidiário. Nesse ambiente, sobressai-se a proposta do Conselho da Magistratura do Estado de São Paulo da chamada
prisão albergue, que mais tarde inseriu-se nos projetos de reforma do sistema positivo a partir do Anteprojeto elaborado por
Nélson Hungria e publicado pelo Ministério da Justiça em 1963.
A esperança a respeito de alternativa à liberdade, dirigiu o olhar no sentido de diminuir as consequências do
encarceramento contínuo. Desenvolviam-se as tendências da prisão albergue, da prisão de fim de semana e da
institucionalização de mecanismos que permitissem a individualização da pena nos procedimentos de execução. Após
alterações do anteprojeto, aprovou-se o Código Penal de 1969, que “por não espelhar expressão política jurídica de nossa
época” fora várias vezes prorrogado a “Vacatio legis” e modificado o texto em 1973, e finalmente revogado em 1978 (Neto,
1987: p.7).
Nos movimentos de reforma legislativa para os anos 70, com o grande Congresso de Direito Penal e Ciências
Afins, foram discutidas e recomendadas alternativas – também em sua forma processual – para que o grave problema da
superlotação carcerária tivesse soluções mais adequadas. O resultado obtido foi a edição da Lei nº 6.416, de 24 de maio de
1977, que ampliou as possibilidades da suspensão condicional da pena e do livramento condicional e adaptou a pena de multa
aos padrões financeiros então vigorantes. Estabeleceu também, um sistema progressivo na execução da pena privativa de
liberdade.
A Lei nº 6.416/77 alterou a Parte Geral do Código Penal, principalmente no que se refere ao sistema de pena.
Segundo Jesus (1999: p.2), verificou-se que as modificações introduzidas eram insuficientes para acompanhar a nova
realidade social. O aumento assustador da criminalidade congregava-se com a desconfiança popular em torno das instituições
penais. Para o referido autor “formava-se uma dupla inconciliável: Justiça morosa e direito penal excessivamente liberal.
Resultado: Impunidade”.
O Governo nomeou uma comissão para cuidar da Reforma penal de 1984 e com isso, “dar feição mais realista ao
direito penal brasileiro”. Apesar de inegáveis “aperfeiçoamentos, a legislação penal continua inadequada às exigências da
sociedade brasileira. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como
resposta básica ao delito; a rejeição social dos apenados e seus reflexos no incremento da reincidência; a sofisticação
tecnológica, que altera a fisionomia da criminalidade contemporânea, são fatores que exigem o aprimoramento dos
instrumentos jurídicos de contenção do crime, ainda os mesmos concebidos pelos juristas na primeira metade do século”
(Jesus, 1999: p. 2).
Os autores da Reforma Penal de 84 procuraram encontrar fórmulas que pudessem substituir a pena privativa de
liberdade – a prisão, para crimes considerados leves, ou seja, de baixa periculosidade. A princípio a tentativa seria uma
“experiência pioneira”, imaginada simplesmente como penas restritivas de direitos, respectivamente, a nova parte do Código
Penal Art. 43 e a Lei de Execução Penal as Penas Restritivas de Direitos Cap.II, sendo elas:
“I – prestação de serviços à comunidade;
II – interdição temporária de direitos; e
III – limitação de fim de semana”3.

Com a Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998, ampliou-se o rol das penas alternativas
Art 43: I – Prestação pecuniária. (Inciso acrescentado pela Lei 9714/98)
II – Perda de bens e valores. (Inicio II acrescentado pela Lei 9.714/98)
III – Vetado. (A pena de recolhimento domiciliar foi vetada na sanção presidencial à Lei 9714/98 Penas
Alternativas)
IV – Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; (...). (V. arts. 46,55 e 78, 1º, CP)

2
Congressos realizados pela ONU sobre a prevenção do crime e tratamento do delinquente Gênova, 1995; Londres 1960; Kioto, 1970; Estocolmo, 1975;
Gênova, 1975; Caracas, 1980; Milão 1985; e Havana, 1990. (Jesus, 1999, p. 13).
3
Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, institui a Lei de Execução Penal, artigo alterado posteriormente pela Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998.

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V – Interdição temporária de direitos. (...). V.arts. 55 a 57, CP. (...)
VI – Limitação de fim de semana. (...).
A ampliação das penas restritivas oferece maior número de opções aos juizes no momento de condenar infratores
por crimes leves, ou seja, de baixa periculosidade, pois proporciona maior flexibilidade e variedade na opção da escolha.
Uma significativa alteração ocorreu no artigo 44 da nova Lei. A pena privativa só seria substituída por uma
restritiva se a condenação for de até um ano de reclusão. A nova lei (9.714/98) prevê a substituição até 4 anos de prisão,
observando, é claro, se o crime não foi cometido com violência ou grave ameaça a pessoa. O que essa lei proíbe é o uso da
violência física e moral, admitindo a substituição, desde que presente os demais requisitos estabelecidos pelo artigo 44.
A prestação pecuniária referente ao artigo 45 do Código Penal nada mais é que o pagamento em dinheiro à vítima, a
seus dependentes ou a entidades públicas ou privadas com destinação social, de importância fixada pelo juiz. Esta pena
pecuniária, rotulada de restritivos de direitos tem natureza reparatória.
Na prestação de serviço à comunidade o trabalho pode ser realizado em entidades públicas, abrangendo as diretas e
as indiretas (empresas públicas, sociedades e economias mista, empresa subvencionada pelo poder público, etc). O serviço
também pode ser prestado em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres,
desde que cumpram programas comunitários ou estatais. A pena deve ser realizada uma hora de tarefa por dia, de modo a
não prejudicar a jornada normal de trabalho do apenado. Cabe ao juiz, na dosagem da quantidade da pena privativa de
liberdade a ser substituída por alternativa, fixá-las em dias e não em meses para evitar dúvida.
A nova lei, (9.714/98), faculta ao condenado a prestação de serviços à comunidade superior a um ano (e até quatro)
cumpri-la em menor tempo, nunca inferior à metade da quantidade da pena substituída, conforme demonstra o § 4º do artigo
46. Por exemplo, um réu condenado a dois anos pode prestar serviços à comunidade em tempo menor, um ano, resgatando a
pena. Neste caso a pena deve ser cumprida de acordo com o caso concreto, não havendo mais a limitação no parágrafo 3º do
artigo 46.
O Inciso IV do artigo 47 foi introduzido pela lei 9.714/98. A proibição de frequentar determinados lugares refere-se
a restrição do direito a liberdade do condenado.
O que se observa, no entanto, na operacionalização da nova lei é a falta de credibilidade por parte dos juizes em
aplicar as penas restritivas de direitos, bem como as demais penas restritivas.
Todavia o jurista Maurício Kuehne, ressalta que a preocupação dos juizes refere-se a falta de fiscalização do
cumprimento da pena prestação de serviços à comunidade, o que leva os juizes a não aplicar esta modalidade de pena. “Esta
fiscalização tem e deve ser formada”. Ele ressalta a existência no Estado do Paraná o Programa Pró-Egresso4, mantido pelo
Departamento Penitenciário.“E se nós temos um programa, é preciso que os juizes se conscientizem e encaminham a
fiscalização das penas alternativas a esse programa” (Jornal O Estado do Paraná, 2000).
A substituição da pena privativa pelas restritivas de direitos passa a ser a meta fundamental a atingir-se. Dessa
forma, o juiz atenderá ao “fim colimado”, que é “manter o condenado na comunidade realizando as suas atividades
laborativas normais” minimizando a população prisional dentro da filosofia do novo sistema (Neto, 1987: p. 9).
Seguindo a linha de raciocínio, embora existam experiências concretas de que as penas alternativas dão certo, ainda
alguns juizes estão com dificuldades de estruturar o controle e gerenciamento destas penas. Mesmo ante tantas dificuldades
há a divulgação pelos meios de comunicação da eficiência das penas alternativas para crimes leves, pois é econômico, reduz
a reincidência e é ressocializante.
A política criminal e penitenciária compreende um conjunto de procedimentos por meio do qual a sociedade
organiza respostas aos fenômenos criminais, bem como a execução das penas. Essa política tem como objetivo principal
delinear o caminho pelo qual os juristas devem seguir a execução das ações nessa área, e para maior compreensão dividiu-a
em duas partes sendo que a primeira visa à prevenção do delito e à administração da justiça criminal e a segunda parte se
refere à execução das penas e das medidas de segurança.
Destaca-se a seguir a ação do Programa Pró-Egresso de Toledo, como integrante oficial na estrutura dos órgãos
executores da Política Criminal e Penitenciária e responsável pela execução das penas restritivas de direito no município e
região.

Programa Pró-Egresso de Toledo


Em regra, quem acompanha o cumprimento das penas, com os recursos necessários, é o Poder Executivo, através
do sistema penitenciário, sob controle do Poder Judiciário. Quando se trata de penas privativas de liberdade, o Judiciário
encaminha ao Executivo par o devido cumprimento em presídios e penitenciárias. Quando se trata de penas restritivas de
direito, o próprio Judiciário é que deverá fazer o acompanhamento.
Nesse sentido pensando no acompanhamento dos apenados o Judiciário do Estado do Paraná implantou um
trabalho piloto denominado Projeto Albergue, na cadeia pública de Londrina. Transformado posteriormente em resolução nº

4
Programa Pró-Egresso: Instituição de Natureza Pública que presta serviços ao indivíduo que sofreu uma sanção penal e cumpre pena em regime aberto,
livramento condicional, sursis, trabalho extremo, liberdade vigiada, prestação de serviços à comunidade e prisão albergue, ou aqueles que condenados
permanecem nas cadeias públicas das comarcas (situação essa alterada em 2006).

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99, de 23 de maio de 1977, sob o nome Themis - Deusa da Justiça (Paraná, 1978). Em 1985, mudou-se esta denominação
para Programa Estadual de Assistência ao Apeando e ao Egresso (Paraná, 1985). Em 1995, o governo do Estado do Paraná
com a alteração do Estatuto Penitenciário do Estado, através do Decreto nº 1.276, de 31 de outubro de 1995, criou o
Patronato Penitenciário de Curitiba e o Pró-Egresso. Essa denominação está em vigor até os dias de hoje, incorporou os
trabalhos já existentes nessa área, através de convênios com as Universidades e/ou Prefeituras do Estado (Paraná, 1995).
A cidade de Toledo acompanhou essas alterações, pois desenvolve atividades nessa área desde de 1984. Com a Lei
de Execuções Penais - LEP nº 7.210/84 e principalmente, a partir da Constituição Federal de 1988, o Serviço Social assume
nova postura frente à Política Criminal e Carcerária, pois ela estabelece normas procedimentais e também regras de direitos e
deveres dos apenados. Segundo o Código de Processo Penal, os tipos de penas são três: 1) Penas Privativas de liberdade que
limita a liberdade da pessoa; 2) Penas Restritivas de direito constam na alteração determinada pela Lei nº 9.714/98; e 3) Pena
de Multa que se resolve na forma de pagamento em dinheiro (Brasil, 2004).
O Serviço Social inserido no contexto das mudanças sociais foi parte desse processo, construído lentamente, mas
que mostrou sua riqueza, assim como de outras profissões. Entendendo que a prática profissional do Serviço Social, segundo
Iamamoto (2000), expressa a sua dimensão política e metodológica, no campo jurídico ao conquistar espaço e
reconhecimento como um trabalho especializado e não pela tentativa de abarcar uma infinidade de atividades imediatistas, ou
de suprir as deficiências de outros setores sociais.
O campo jurídico é uma das áreas de atuação dos assistentes sociais, portanto para o desenvolvimento de sua ação
não pode abrir mão do conhecimento inerente a mesma, e também as determinações da questão social na atualidade, onde se
verifica que há uma fratura entre desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e relações sociais que o
conformam. “Fratura esta que vem se traduzindo na banalização da vida humana, na violência escondida no fetiche do
dinheiro e da mistificação do capital ao impregnar todos os espaços e esferas da vida social” (Iamamoto, 2007, p. 144).
Portanto, não podemos esquecer que a Política Criminal e Penitenciária, assim como as demais políticas, foram
relegadas a um segundo plano, a justificativa pauta-se na falta de recursos e até o fato de a pobreza, a violência, e a segurança
(expressões da questão social) terem sido administradas a partir da repressão policial (civil e militar). O que ocorre muitas
vezes é uma inversão da situação, entende-se a pobreza e a violência como violação dos direitos de “segurança” daqueles que
não são pobres e/ou excluídos.
O Serviço Social assume em sua intervenção as expressões da questão social, que atinge em uma dimensão
estrutural, a vida dos sujeitos na luta pela cidadania, no embate pelo respeito aos direitos civis, políticos e sociais e aos
direitos humanos, é um processo de conformismos e rebeldias, expressando a luta pelo reconhecimento dos direitos sociais e
políticos de todos os indivíduos (Guindani, 2001).
Na área jurídica cabe ao Assistente social desenvolver um trabalho técnico de perícia social em processos mediante
determinação judicial; Atender a demanda social nas questões sócio-jurídicas, através de trabalhos de orientação, mediação,
prevenção e encaminhamento; Contribuir para o entrosamento do judiciário com instituições que desenvolvem programas na
área social; Orientar e acompanhar as famílias dos egressos e apenados; Gerenciar e operacionalizar os projetos de acordo
com a área em que está atuando diretamente; Administrar e executar programas de prestação de serviços a comunidade e
participar do Conselho de Comunidade (previsto na Lei de Execução Penal), onde não houver Assistente Social especifico
para a área criminal; Gerenciar o setor de Serviço Social, elaborando e executando programas com a utilização do
instrumental adequado ao contexto sócio-jurídico; Atende determinações judiciais relativas à pratica do Serviço Social,
sempre em conformidade com a Lei nº 8.662, de 7/6/93, que regulamenta a profissão, e a Resolução nº 273/93, de 13/3/93,
Código de Ética.
E é com base no Código de Ética Profissional do Assistente Social de 1993, que os profissionais desenvolvem suas
ações, ou seja, pauta-se em princípios e valores humanistas, guiados pela liberdade como valor central, defesa intransigente
dos direitos humanos, aprofundamento e consolidação da cidadania, equidade e justiça social, eliminação de formas de
preconceito e a garantia do pluralismo, compromisso com a qualidade dos serviços prestados: o que remete a luta no campo
democrático popular, pela construção de uma nova ordem societária.
Ao defender uma ação consciente aos sujeitos apenados, sobre suas vulnerabilidades socioculturais, o Assistente
social deve e pode desenvolver o fortalecimento das relações entre os sujeitos estigmatizados e despertar a comunidade para a
necessidade de mudar o rumo das proporções assumidas pela violência e criminalidade. Com isso promove o processo de
inclusão social dos apenados, bem como, a desmistificação da identidade socialmente construída. Como exemplo podemos
citar o êxito do cumprimento da pena de prestação de serviços à comunidade, pois o Assistente Social caracteriza-as como
um mediador entre juiz da execução, sentenciado, entidade e comunidade; atuando de forma a chamá-los à reflexão e
conscientização de seus papeis sociais.
O Serviço Social como parte integrante da equipe do Programa Pró-Egresso, presta assistência sócio–jurídica aos
usuários, sendo estes em sua maioria pessoas de baixo poder aquisitivo e do sexo masculino, além de serem um grande
número de desempregados ou que trabalham informalmente. Isso ocorre porque os egressos ao saírem da prisão não se
“enquadram” nos padrões exigidos pelo mercado de trabalho, segundo Evangelista (1983, p. 65), “ao deixar o cárcere [...], o
apenado carrega a marca do delito, a qual vai dificultar as suas relações com o mundo exterior, sobretudo no que se refere à
inserção no mercado de trabalho”.
O Programa Pró-Egresso teve suas atividades iniciais pautadas na organização do projeto de extensão cadastrado
em 2003, junto à pró-Reitoria de Extensão da UNIOESTE, “Assistência ao apenado e ao egresso da cidade de Toledo”, que

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se estrutura pelas seguintes linhas de ações: Atendimento e acompanhamento no cumprimento da pena (encaminhar para os
serviços e bens públicos; mediar relação usuário, entidade e juizado de execução penal; cadastrar entidades para prestação de
serviço à comunidade – PSC; fiscalizar a PSC; oportunizar o apoio familiar); Qualificação Profissional (oferta e/ou
encaminhamento a cursos profissionalizantes; divulgação e encaminhamento a vaga de emprego); Escolarização (Encaminhar
e acompanhar a frequência na rede de ensino, realizando palestras informativas); Divulgação do Programa; Atendimento
Psicológico (quando é constatada necessidade e/ou por determinação judicial) e Atividades Administrativas. Ainda
desenvolvemos atividades como: Seleção anual de estagiários; Viabiliza-se novas parcerias; Reuniões de equipe; Reuniões de
Supervisão; Participação em eventos referentes à temática ou área afim.
No atendimento individual ao apenado e egresso o objetivo é explicitar a função do Programa, bem como, obter
informações sobre o usuário para ações posteriores tais como: encaminhamento, acompanhamento e fiscalização da pena. A
pena Prestação de Serviço á Comunidade (PSC) - que é a maioria das determinações judiciais - o usuário será encaminhado
conforme modalidade de “infração”, suas habilidades5, sua disponibilidade de horário e a disponibilidade das instituições
cadastradas para PSC, observando que o local deve ser preferencialmente próximo de sua residência.
Na entrevista, busca-se levantar dados da história de vida do usuário, onde reside, com quem, profissão, religião,
filiação, idade, naturalidade, situação econômica, escolaridade, se houve reincidência ou não, as suas habilidades, bem como
as causas do crime. Além disso, objetiva também, dentro das possibilidades e atribuições de cada área atender as
necessidades sociais, humanas e psicológicas dos egressos e dos apenados, dando-lhes assistência, orientação e procurando
trabalhar o fortalecimento da identidade e a autonomia, estimular a tomada de decisões e assumindo responsabilidades,
respeitando elementos necessários à convivência social e familiar. Mensalmente, ou conforme a sentença determinada, os
egressos e apenados devem comparecer ao Programa para assinar o termo de comparecimento, recebendo também o
acompanhamento pelo Serviço Social e pela Psicologia.
A atuação nesta área coloca-nos a todo instante a reflexão acerca do seguinte princípio do Código de Ética do
Serviço Social de 1993, “empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à
participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças”, bem como incentiva a busca de alternativas
concretas aos problemas vivenciados nesse espaço profissional (Coletânea de Leis, 2003).
A prática social pautada na dimensão técnica, política e ética, assim como a autonomia para direcionar o processo
de trabalho junto ao Programa trouxe como resultado:
 A conquista de um espaço físico junto a Central de Conselho em Toledo, com sala para reuniões e um mini-auditório
para realização de eventos;
 A negociação junto aos Fóruns para doação de veículos e equipamentos, pois considera-se essencial para a execução das
ações propostas, em Toledo recebemos dois equipamentos de informática em 2006;
 A discussão e aprovação na Conferência Municipal de Assistência Social da inclusão do Programa Pró-Egresso na rede
de serviços sócio-assistenciais;
 Organização do evento “Refletindo a política criminal e carcerária em Toledo”, realizado nos dias 13 e 14 de outubro de
2005, no mini-auditório da UNIOESTE, como ação concreta teve-se a retomada das atividades do Conselho de
Comunidade em Toledo; reeditado em 2007;
 Realização de reuniões com as entidades que recebem egressos e apenados para prestação de serviço, com a presença do
juiz e do promotor, reforçando a integração da comunidade na execução da política pública;
 Realização de cursos nas delegacias de Toledo e Assis Chateaubriand, sendo que a produção ficou a disposição dos
detentos;
 Visita as delegacias com o Grupo de Apoio a Marginalizados Scheideweg da Alemanha, atividade ecumênica e cultural
realizada em 2005;
 O Conselho da Comunidade em parceria com o Programa Pró-Egresso de Assis Chateaubriand repassou aos detentos da
48ª DRP material para confecção de artesanato, comercializado na casa da cultura e os valores arrecadados foram
revertidos aos detentos;
 Realização de um Curso de Sabão, para as esposas de detentos e apenados, em parceria com as Senhoras Rotarianas de
Assis Chateaubriand – ASR, em outubro de 2006;
 Realização de um Bazar da Pechincha em parceria com as Senhoras Rotarianas de Assis Chateaubriand – ASR, em
novembro de 2006;
 Realização de visitas aos familiares dos detentos de Assis Chateaubriand a fim de repassar cestas natalinas, a cerimônia
de entrega ocorreu em dezembro de 2006, na sede do programa;
 Reativação da Pastoral Carcerária de Assis Chateaubriand;
 Readequação do espaço físico em Assis Chateaubriand, com divisórias, mobília, novos equipamentos de informática,
entre outros em 2006;
 Visitas aos Fóruns para apresentação dos acadêmicos e da proposta de trabalho do programa, acha vista a troca
constante de juízes e promotores em cidades de pequeno porte, por serem consideradas de passagem;

5
Conforme o Código Penal estabelece no Artigo 46 § 3o as tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma
hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. (Incluído pela Lei nº 9.714, de 1998).

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 Contato com os órgãos públicos para estabelecer parcerias, como o atendimento psicológico, atendimento jurídico, entre
outros;
 Cedência de uma profissional (Psicóloga) que compõe o Conselho de Comunidade de Assis Chateaubriand para atuar
junto ao Programa (20 horas/semanais);
 Solicitação e encaminhamento para os bens e serviços públicos como atendimento a saúde, cesta básica, documentos,
indicação para emprego, entre outros;
 Produção e apresentação de artigo sobre o Programa Pró-Egresso, no III Ciclo de Estudos e Debates – Linguagens do
Cotidiano, realizado em 2005, na UNIOESTE/ Toledo; no VI SEU - Seminário de Extensão da Unioeste, realizado em
2006, Francisco Beltrão; e no Simpósio Nacional de Ciências Humanas, em 2006, Marechal Cândido Rondon;
 Apresentação da proposta reordenada de trabalho ao Colegiado de curso do Serviço Social estabelecendo metas
coletivas a serem cumpridas, pois mesmo o Pró-Egresso sendo uma extensão, o Curso e o Campus, ainda não o
reconhece como tal;
 Produção de 4 Trabalhos de Conclusão de Curso na área Serviço Social;
 Emprego Formal de 6 egressos após a realização da Prestação de Serviço a Comunidade, resultado da valorização das
habilidades e qualificação individuais dos egressos e apenados;
 Aprovação de 2 acadêmicos em Concursos Públicos na região resultado do aprendizado desenvolvido no espaço do
Programa, em 2005; e a aprovação de 2 (dois) acadêmicos em Concurso Público promovido pela Prefeitura Municipal
de Toledo, em 2006;
 Inclusão de uma acadêmica estagiária no quadro de funcionários da delegacia de Toledo;
 Reconhecimento pela comunidade do trabalho desenvolvido pelo Programa, através da divulgação constante, como a
apresentação no quadro “Cidadania em Debate” promovido pela Rádio FM Educativa Sul Brasil, e também matérias nos
jornais locais, destaca-se a solicitação por parte das entidades de prestadores de serviço;
 Participação do Supervisor do Programa na organização do Dia da Cidadania no Município de Toledo, idéia que nasceu
de uma das ações proposta para atendimento aos detentos, porém ao longo das negociações tornou-se um evento para a
comunidade geral;
 Início da organização da biblioteca na delegacia de Toledo para empréstimo aos detentos, doação de livros e revistas,
material repassado no mês de novembro de 2005 ao Conselho de Comunidade;
 Negociação com o Conselho de Comunidade para transformá-lo em uma entidade mantenedora das ações desenvolvidas
pelo Programa Pró-Egresso, ou seja, reconhecimento enquanto uma política pública de responsabilidade estatal;
 Desvinculação no termo de Convênio da Sub-sede de Assis Chateaubriand, reduzindo o número de municípios
atendidos;
 Participação da Coordenadora do Programa na reunião sobre o problema da superlotação carcerária da Cadeia Pública
de Toledo, parceria Conselho da Comunidade, Poder Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil-
Subseção Toledo, Conselho de Segurança, Agentes Políticos, Autoridades Policiais e demais representantes da
sociedade em Toledo, realizada no dia 13 de outubro de 2006, no Tribunal do Júri no Fórum da Comarca de Toledo;
 O Programa Pró-Egresso de Toledo estabeleceu um Termo de Parceria com o Conselho de Comunidade de Toledo,
visando estabelecer as regras para a execução do “Projeto de Inserção dos Egressos e Apenados nos Cursos
Profissionalizantes” ofertados pelo SENAR, SENAC e SENAI, na unidade da cidade de Toledo – Paraná;
 O Programa Pró-Egresso de Toledo estabeleceu um Convênio em parceria com o Conselho de Comunidade junto as
entidades que ofertam cursos profissionalizantes SENAR e SENAI, o SENAC; sendo que a realização dos cursos
contabiliza horas de prestação de serviço e/ou ensino conforme sentença;
 Realização do Curso de Jardinagem, ofertado pelo SENAR, na sede do Sindicato Rural Patronal de Toledo, em outubro
de 2006, com a participação de 9 (nove) egressos;
 Realização do Curso de Qualidade no Atendimento para Frentistas, na sede do SENAC de Toledo, custeado pelo
Conselho da Comunidade, em novembro de 2006, com a participação de 6 (seis) egressos;
 Encaminhamento de egressos para realização de Curso de Eletricista Predial, na sede do SENAI, em dezembro de 2006;
 Atuação da Coordenadora como Perita junto a 2ª Vara Criminal;
 Aumento da procura pelo atendimento por parte dos familiares dos apenados e egressos;
 Redução da reincidência criminal.

Considerações Finais
O Programa Pró-Egresso visa atender o beneficiado de acordo com suas necessidades tanto sociais como
psicológicas, realizando um acompanhamento mais próximo dos problemas enfrentados pelos mesmos no âmbito familiar,
institucional e social. O Serviço Social tem contribuído muito nesse espaço de intervenção profissional, pois a sua prática
cotidiana se dá através de lutas pelos direitos sociais e por uma melhora na qualidade de vida dos usuários, exigindo
competência profissional, e esta não se dá de forma mágica, mas através de experiências concretas. O trabalho pauta-se no
reconhecimento e enfrentamento da perversa base de compreensão da criminalização no contexto sócio-histórico atual.

785
O trabalho desenvolvido no Programa Pró-Egresso de Toledo tem demonstrado a viabilidade e concretude de um
projeto social, pela articulação ensino (estágio curricular), pesquisa (trabalhos de conclusão de curso e dissertações) e
extensão (atuação profissional). A importância e os benefícios de tal Programa são inegáveis, primeiro pela possibilidade de
criar alternativas ao problema carcerário, segundo pela redução do gasto operacional de um processo jurídico, e terceiro pela
defesa constante dos profissionais da área social em garantir os direitos sociais sob a responsabilidade do Estado e com
qualidade.
Entende-se assim, que a prática do Serviço Social tem contribuído para a construção de alternativas teórico-
metodológicas na execução penal, principalmente pela sua capacidade de intervir nos conflitos através de mediações,
conciliações, orientações e encaminhamentos, e a sua capacidade de aproximar a generalidade do direito legal e a
especificidade de cada situação particular. O Assistente Social compromete-se ainda com a articulação de recursos e
programas que contribuem para a solução de questões sociais mais amplas.

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Vulnerabilidade e exclusão X emancipação e gerenciamento do risco: o papel das


políticas públicas penais e de programas de apoio a ex-presidiários no Brasil
Lígia Madeira
BLICCollege/ PPGSociologia- UFRGS/ Faculdade de Direito- PUCRS e Unisinos
[email protected]

Resumo: A pesquisa, fruto de tese de doutorado, investiga o apoio a egressos do sistema penitenciário no Brasil, a partir de um estudo das
produções legislativas, das políticas públicas, e da implementação de políticas sociais, a partir da criação de programas de apoio, surgidos no
país, a partir da década de 1990.
O estudo revela que a preocupação com tal categoria social é fruto de uma série de mudanças sofridas pelo Estado brasileiro pós-
redemocratização, que implementa constitucionalmente os preceitos de proteção aos direitos humanos, focaliza o problema da pobreza a
partir da produção de políticas sociais universalistas e de transferência de renda; e, no âmbito penal, atua mediante um modelo dual: para os

786
crimes de camadas altas, constitui-se um modelo liberalizante; enquanto para criminosos comuns, endurecem-se as legislações e agravam-se
as penas.
No caso específico dos egressos, o desenvolvimento de programas de apoio é parte de uma mudança no papel centralizador do Estado -
rompendo-se com a perspectiva weberiana do monopólio do uso legítimo da violência -, voltada a incorporar a sociedade civil como ente
fundamental.
Sob o ponto de vista dos egressos, a inserção em programas de apoio dá visibilidade a esta categoria social, ao mesmo tempo em que permite
alguns ganhos de capital social. No entanto, em uma lógica disciplinar, os programas contribuem à extensão das redes de controle pós-
prisionais, que acompanharão as trajetórias de egressos mesmo depois do termino do cumprimento de suas penas. Como referencial teórico,
parte-se da teoria sobre o Estado social, a temática das políticas públicas e sociais; o aporte teórico produzido pela criminologia crítica; bem
como o arcabouço bourdiano e foucaultiano, no que diz respeito ao disciplinamento e ao habitus.

O apoio a egressos do sistema penitenciário no Brasil: contexto de surgimento, políticas públicas penais e programas de
apoio
No início da década de 1970 o sistema penitenciário brasileiro já era visto como falido. Em 1975, em decorrência
dos graves problemas encontrados nas prisões, foi instalada na Câmara dos Deputados uma Comissão Parlamentar de
Inquérito para apurar a situação penitenciária no país. Trechos do relatório da CPI, publicados na Exposição de Motivos da
LEP, demonstravam as condições prisionais da época:
É de conhecimento geral que “grande parte da população carcerária está confinada em cadeias públicas, presídios,
casas de detenção, e estabelecimentos análogos, onde prisioneiros de alta periculosidade convivem em celas
superlotadas com criminosos ocasionais, de escassa ou nenhuma periculosidade, e pacientes de imposição penal prévia
(presos provisórios ou aguardando julgamento), para quem é um mito, no caso, a presunção de inocência. Nestes
ambientes de estufa, a ociosidade é a regra: a intimidade inevitável e profunda. A deterioração do caráter, resultante da
influência corruptora da subcultura criminal, o hábito da ociosidade, a alienação mental, a perda paulatina da aptidão
para o trabalho, o comprometimento da saúde são consequências desse tipo de confinamento promíscuo, já definido
alhures como ‘sementeiras de reincidências’, dados os seus efeitos criminógenos” (Relatório à CPI do Sistema
Penitenciário, p. 2, apud Exposição de Motivos da Lei de Execuções Penais, 1984, n. 100).

Em decorrência dessas constatações e da tentativa de inserção no Brasil do modelo criminal do welfarismo penal,
em 1984 é promulgada a Lei de Execuções Penais – LEP1 –, que regulamenta a execução criminal. Essa legislação, fruto de
uma reforma penal promovida na parte geral do Código Penal de 1940, visa incorporar os regramentos internacionais de
proteção aos direitos humanos, especialmente as Regras Mínimas de Tratamento dos Reclusos, editadas pela ONU, em 1957
e 1977 (ONU, 1977).
O modelo de execução criminal previsto pela LEP propõe a atuação em três âmbitos. No âmbito federal, o
Ministério da Justiça e seus órgãos, como o Depen e o CNPCP são responsáveis pela definição da política criminal. No
âmbito estadual, as secretarias de segurança pública e o Poder Judiciário atuam na configuração e execução das políticas de
segurança e penitenciárias. Já no âmbito municipal, as varas criminais e de execução penal são responsáveis pelo
cumprimento das penas, bem como pelo incentivo à criação de Conselhos de Comunidade, como órgãos de atuação da
sociedade civil voltados a participar das questões referentes à segurança pública.
Na LEP, a pena de prisão passa a ser vista como uma instituição falida; em consequência, são propostas uma série
de alternativas para sanar sua ineficiência no que tange aos índices de reincidência e aos problemas vivenciados intra-muros.
Como uma tentativa de humanização do sistema penitenciário, são concedidas legalmente uma série de garantias aos presos:
de assistência material, educacional, social, religiosa e à saúde. Dentre esses direitos, o trabalho e a educação são, na visão
legal, primordiais. O trabalho é entendido como dever social e condição de dignidade humana, tendo finalidade educativa e
produtiva. Já a assistência educacional, de acordo com o Art. 17 da LEP, “compreenderá a instrução escolar e a formação
profissional do preso e do internado”. Estipula, ainda, a obrigatoriedade do ensino fundamental. Tais direitos, de
responsabilidade do Estado, estão explicitados no art. 10 e objetivam “prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em
sociedade”, um objetivo claro da perspectiva teórica do welfarismo penal.
Os egressos da prisão, durante o período estipulado acima, passam a ser beneficiários das mesmas garantias que os
presos, por previsão do parágrafo único do art. 10 da LEP: “a assistência estende-se ao egresso”.
Reproduzindo no âmbito da legislação federal os regramentos internacionais de proteção aos reclusos, aparece, pela
primeira vez, a preocupação com egressos do sistema penitenciário, conceituados pelo art. 26 como: “I – o liberado
definitivo, pelo prazo de 1 (um) ano a contar da saída do estabelecimento; II – O liberado condicional, durante o período de
prova”. Apesar da obrigatoriedade legal, a efetivação da LEP, a partir da formulação de políticas públicas focalizando
egressos só irá ocorrer em meados da década de 1990.
A Lei de Execuções Penais foi concebida num contexto de transição entre o welfarismo penal, que se voltou para o
tratamento e a correção dos indivíduos desviantes, que deveriam, via atuação estatal, ser reincluídos na sociedade, e o Estado
penal, caracterizado pelo reconhecimento dos limites do Estado em gerenciar e controlar a criminalidade, cuja contrapartida é
a entrada de novos atores, provenientes, em sua maioria, da sociedade civil (GIDDENS, 2002; GARLAND, 2005, 2003). No

1
Lei n. 7210 de 11 de julho de 1984.

787
entanto, é preciso estar atento às particularidades da política criminal brasileira, uma vez que “no Brasil, o direito tem se
caracterizado, historicamente, pela combinação de uma rebuscada, bem formulada e fundamentada argumentação segundo os
parâmetros das tendências liberais (a partir dos modelos erigidos no centro hegemônico do capitalismo) com práticas
autoritárias” (NEDER, 1994, p. 28).
Também é preciso ter em conta as condições prisionais brasileiras. Assumindo que na década de 1970 o sistema
penitenciário era visto como falido, de lá para cá, a situação das prisões no Brasil só piorou. Ao longo das décadas, relatórios
vêm dando conta dos graves problemas decorrentes de superlotação, dos maus-tratos, das violações de direitos, que
culminam em uma taxa exorbitante de reincidência, estimada em cerca de 70%, na ausência de dados precisos.
Somado a este problema, a partir do final da década de 1970 e início de 1980, o país passa a vivenciar um aumento
da criminalidade, especialmente em grandes centros urbanos, alterando significativamente o perfil do sistema carcerário e de
seu público alvo: cada vez mais o encarceramento recai sobre condenados por crime de roubo e tráfico de drogas, este
considerado hediondo pela legislação de 1990.
Há um grande número de estudos que demonstram as origens (NEDER, 1994) e mazelas do sistema carcerário
brasileiro (ADORNO, 1991c, 1991d, 1994, 2002a, 2002b; LEMGRUBER, 1996; KARAM, 1995; ZALUAR, 1994;
PINHEIRO, 2000; RODLEY, 2000, BOLÍVAR O., 2000).
Esses estudos explicitam como se constroem as carreiras criminais, a partir da entrada em estabelecimentos penais.
Nessa gama de pesquisas, os autores demonstram ser a prisão um duplo erro econômico, na medida em que não reprime a
criminalidade e tem um alto custo econômico para o país. Quanto às consequências individuais da prisão, quando da saída
dos criminosos, verifica-se haver um círculo vicioso, pois além de não conter a criminalidade, o sistema carcerário ainda
pode ser considerado como uma “pós-graduação” para o crime.
Há também outros problemas, mais graves, como os de violação dos direitos humanos dentro das prisões, que são
responsáveis, quando não por violações físicas, por uma violação moral muito grande, estigmatizadora do indivíduo, perante
si próprio, mas principalmente perante a sociedade (PINHEIRO, 2000).
As prisões (em todo o país) escancaram uma podridão que ressalta a arrogância e o descaso das elites e dos
governantes em relação aos direitos (em geral), mas, sobretudo, aos direitos humanos das classes subalternas. O
esgarçamento das relações sociais em situações de crise econômica, social, política e moral como a vivida
presentemente tende a fazer emergir esta podridão (...) (NEDER, 1994, p. 12).

Fruto da falência da pena de prisão como instrumento de ressocialização e reintegração social e do descumprimento
da Lei de Execuções Penais, verifica-se, também, o problema da reincidência criminal – objeto de pesquisa realizada por
Adorno no estado de São Paulo (ADORNO, 1989, 1991a) -, cujo impacto negativo no tocante ao aumento dos índices de
criminalidade é aterrorizante. Tal dado demonstra que, ao contrário do que defende a legislação, as penas só têm caráter
retributivo ao crime cometido, ou seja: o sistema judiciário-criminal encarrega-se de tirar o criminoso do convívio social por
determinado período de tempo, fazendo com que pague com a reclusão o fato que cometeu, mas, ao sair, o sistema não lhe dá
condições de retornar à sociedade como cidadão apto a reintegrar-se, e isto acaba transparecendo nestes índices alarmantes de
reincidência.
Em decorrência da falência da prisão como instituição voltada a inibir a criminalidade, da preocupação do Estado
em reduzir os altos índices de reincidência e da necessidade de implementação efetiva da LEP no tocante aos egressos do
sistema penitenciário, surgem, a partir de 1990, programas de apoio.
Por iniciativa dos poderes públicos estaduais e municipais, e da sociedade civil – através da atuação de
universidades, cooperativas, fundações e ONGs – são implementados programas que visam à reinserção social, com uma
atuação baseada no tripé: trabalho, escolarização-profissionalização e saúde.
A partir do início da década de 1990 surgem programas de apoio na maioria dos estados: 27 programas,
distribuídos em 17, das 27 unidades da Federação. No final da década de 1990, duas iniciativas acabam reforçando a criação
desses programas: em 1997 a Igreja Católica lança a Campanha da Fraternidade com o tema “A Fraternidade e os
Encarcerados”, incentivando a participação da sociedade; a partir de 2000 o Ministério da Justiça e a Secretaria Nacional de
Segurança Pública passam a conceder financiamento público para o desenvolvimento de projetos de redução da violência.
A implementação desses programas nos âmbitos estadual e municipal desperta o interesse em âmbito federal, em
órgãos do Ministério da Justiça, como o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP – e a Secretaria de
Reinserção Social, do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, ambos preocupados em desenvolver uma política
mais abrangente de apoio a egressos em todo o país2.
No âmbito do Poder Executivo Federal, tal preocupação deu origem a práticas denominadas ações de reinserção
social: um conjunto de intervenções técnicas, políticas e gerenciais levadas a efeito durante e após o cumprimento de penas
ou medidas de segurança, no intuito de criar interfaces de aproximação entre Estado, comunidade e pessoas beneficiárias,
como forma de lhes ampliar a resiliência e reduzir a vulnerabilidade frente ao sistema penal (MJ/ DEPEN, 2005, s. p.).
Como resultado da implementação desses programas, surge a preocupação de órgãos como o Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária/ CNPCP e a Secretaria de Reinserção Social, do Departamento Penitenciário Nacional/

2
Esses órgãos emitem uma série de resoluções incentivando a criação e a manutenção dos programas de apoio a egressos nas unidades da federação, bem como
sugerindo o desenvolvimento de relatórios sobre tais práticas, sob a responsabilidade dos Conselhos Penitenciários Estaduais.

788
DEPEN, ambos pertencentes à estrutura do Ministério da Justiça, com o tema dos egressos e através da criação de resoluções,
pareceres e programas incentiva-se o desenvolvimento de políticas e ações voltadas a sua reinserção social.
Criados em nível estadual e municipal, os programas de apoio são fruto de constatações a respeito da falência da
pena de prisão e do modelo monopolizador de Estado, que passa a ser visto como incapaz de, sozinho, dar conta do problema
da criminalidade, da violência e especialmente da reincidência criminal.
A partir de atuações dos poderes públicos e da sociedade civil, desenvolvidos pelos poderes Executivos, Judiciário,
Prefeituras, universidades, cooperativas, fundações e ONGs, os programas de apoio visam à reinserção social de egressos e a
redução dos índices de reincidência. Para tanto, atuam baseados nos ditames da LEP no que diz respeito à concessão de apoio
a trabalho, educação e saúde.
Entre as iniciativas analisadas (FAESP e PAS, em Porto Alegre; Agentes da Liberdade, no Rio de Janeiro; e Pró-
Egresso, em Maringá/PR), depreendemos que a preocupação egressos, é oriunda da constatação da impossibilidade de
sobrevivência para aqueles que, sem qualquer auxílio, saem da prisão e tentam manter-se afastados do crime.
Para a realização das atividades voltadas a inclusão de egressos, os programas desenvolvem atividades para a
conquista de cidadania formal, promovendo o acesso a documentos; condições de sobrevivência, através de doações de
alimentos, roupas e calçados e vales-transporte; acesso à saúde; bem como atividades visando a qualificação e a colocação no
mercado de trabalho. Para isso, os programas constroem redes de parceiros, de conveniados e através de órgãos públicos
encaminham egressos para a escolarização formal, profissionalização e vagas de trabalho.
Embora os programas de apoio tentem, não há um número muito grande de egressos encaminhados à educação e ao
trabalho. Há dificuldade no angariamento de vagas, da mesma forma que empecilhos como o estigma dificultam o acesso de
egressos ao mercado de trabalho. Aqui é importante mencionar que o trabalho aparece como o principal elemento de
reinserção e inclusão social para todos os programas. No entanto, a falta de vagas somada à desqualificação do público-alvo
acaba por resultar em experiências apenas temporárias, que serão substituídas por trabalhos precarizados e informais, assim
que os egressos deixarem de ser apoiados.
Neste aspecto, é importante salientar que todos os programas analisados atuam no apoio a egressos do sistema
penitenciário, ou seja, durante o período de estipulação legal, apoiando egressos em livramento condicional e egressos em
liberdade total, durante o período de um ano a contar do término da execução das penas (LEP). Após o término do apoio o
egresso volta à condição de ex-presidiário, o que terá novas implicações, como iremos expor a seguir.
Os programas de apoio lidam com uma clientela prisionizada e estigmatizada, cujo perfil demonstra as mazelas da
sociedade brasileira: são preferencialmente homens; solteiros, apesar de terem filhos e, muitas vezes, com uniões estáveis
informalmente constituídas; com idades e escolaridades baixas; com uma grande representatividade negra (encontrada,
obviamente, em demasia no caso do Rio de Janeiro, mas sobrerrepresentada no caso de Porto Alegre); condenados - pela
prática de crimes contra o patrimônio (roubo e furto), de entorpecentes, homicídios ou sexuais – a penas médias; com índices
relativamente baixos de reincidência (por volta dos 30%); desempregados ou trabalhando na informalidade; em ocupações
desqualificadas; sem renda ou com renda insuficiente.
Diante de tal universo, é preciso demonstrar os aspectos positivos e negativos do apoio promovido pelas iniciativas.
Como aspectos positivos, embora os programas sustentem o fato de suprirem lacunas na atuação estatal, seja de descasos
prisionais, seja por dificuldades dos poderes Judiciário e Executivo realizarem suas atribuições; de serem iniciativas
financeiramente viáveis, pelo dispêndio baixo de recursos; bem como terem atuações que resultam em redução de
reincidência; acreditamos que há aspectos ainda mais importantes.
O primeiro deles diz respeito à constituição de redes sociais, seja de instituições, seja de egressos, que são
fundamentais para a atuação voltada a ex-presidiários, e se apresentam como a única alternativa de garantir sobrevivência
para essas populações em vulnerabilidade. As redes institucionais permitem, como vimos, o acesso à saúde, à educação e ao
trabalho; mas são as redes de egressos, cuja formação é propiciada pelo espaço disponibilizado pelos programas de apoio, são
imprescindíveis como forma de construção de novas perspectivas de vida, de sociabilidade, de conquista de cidadania e
inclusão.
O segundo aspecto de grande importância diz respeito à própria construção de visibilidade desta categoria social,
que é formada a partir da criação dos programas de apoio. Aqui é interessante trazer a hipótese de que o programa acaba
criando o egresso, ou seja, antes da criação dos programas de apoio e da estipulação legal de garantias não havia egresso, da
mesma forma que não havia qualquer visibilidade para aqueles que saíam das prisões. As iniciativas acabam por constituir o
grupo social e dar-lhe visibilidade, o que é fundamental para a implementação de novas medidas, políticas e ações.
Com relação aos aspectos negativos, todos os programas salientam as dificuldades em focalizar um grupo
completamente carente de recursos e auxílios. Além disso, todos os programas vêem nas condições dos egressos problemas a
serem enfrentados, seja no aspecto relacionado às experiências e marcas prisionais, como estigmatização, prisionização e
perda de identidade, seja com relação a seu perfil desqualificado, em termos profissionais e educacionais.
No entanto, há outros aspectos restritivos na atuação dos programas de apoio. O primeiro deles refere-se à
temporariedade: assim como o atendimento aos egressos é temporário, muitas iniciativas também têm uma existência
temporária, especialmente aquelas que são fruto de convênios ou de projetos que precisam de renovação anual, ou estão
sujeitas a poder discricionário dos agentes ou órgãos a que estão atreladas.
O segundo aspecto que precisa ser salientado refere-se à insuficiência de vagas, frente a um universo em constante
crescimento. É preciso analisar a atuação dos programas de apoio relacionada às tendências da política criminal

789
contemporânea e ao surgimento do Estado penal, que no Brasil será responsável pela ampliação crescente das vagas e do
número de presos, o que levará a um déficit cada vez maior dos programas, que já atingem hoje uma parcela pós-prisional
insignificante do ponto de vista quantitativo.
Além disso, é preciso questionar, também relacionando as atuações com as tendências atuais da política criminal, o
quanto as iniciativas estão inseridas em uma lógica de controle social e gerenciamento do risco, que teria por consequência a
manutenção longe do crime por parte dos egressos apoiados.

A clientela dos programas: egressos do sistema penitenciário em trajetória


Para a construção desta tese, fizemos a apropriação de um termo jurídico, que está relacionada a um modelo
criminológico, conectado a modelos de Estado social, que crê na ressocialização e inserção social a partir da atuação das
agências formais de controle criminal. Assim, só há egressos no contexto de uma concepção de integração social: o termo
egresso é um conceito jurídico-legal presente no artigo 26 da Lei de Execuções Penais. Explorando historicamente o
surgimento e o desenrolar da proteção aos oriundos do cárcere, percebe-se que o paradigma criminológico por trás de tal
preocupação é o welfarismo penal.
A discussão sobre a atuação de políticas sociais e penais e de programas de apoio a ex-presidiários é parte de um
discurso recuperador/ressocializador e a tônica por trás da existência de uma preocupação com pessoas oriundas da prisão é,
como caracteriza Moraes (2005), salvacionista. Não existem egressos fora de uma concepção welfarista. Neste momento
buscamos compreender esses indivíduos não mais através de uma definição legal, mas como uma categoria sociológica.
Partindo da trajetória, acreditamos poder compreender os ex-presidiários como categoria sociológica, uma vez que
a passagem pela prisão é uma marca coletiva que define suas trajetórias, da mesma forma que carências materiais, familiares,
infra-estruturais definiram suas trajetórias até a vida criminal. Partimos do pressuposto de que a trajetória é fundamental por
marcar a constituição do egresso, estando ligada a habitus e capitais como heranças determinantes na construção das posições
no espaço social. Além disso, sustentamos que a existência de categorias como estigma, religião, redes e trabalho definem
essas trajetórias, tornando-os passíveis de investigação como grupo social.
A fim de conhecermos tais trajetórias de vida, investigamos grupos de ex-presidiários que se constituíram em
clientela dos programas analisados nas cidades de Porto Alegre e Rio de Janeiro. Nosso intuito é realizar, como bem explicita
Castro (1984, p. 101) “uma interpretação sociológica da perspectiva de vida de egressos do sistema penitenciário”.
As trajetórias dos egressos no Rio de Janeiro são marcadas pelas experiências com o tráfico de drogas. Neste
sentido, é interessante ver o quanto este modo de vida pode oferecer poder, valorização, capital econômico, e de forma mais
incisiva que em outros tipo de criminalidade, a volta ao tráfico, ou mesmo a volta ao morro como local de origem é uma
tentação constante na vida dessas pessoas. Apesar da sedução das drogas e de suas aparentes possibilidades, há a certeza de
que esta vida é curta, pois a morte ou o aprisionamento apresentam-se como o fim.
Para fazer frente a estas experiências, é preciso romper com esta vida e procurar novas possibilidades, geralmente
voltando-se à família, à religião ou ao trabalho, precarizado, informal, mas honesto.
Em termos de esperanças e oportunidades, não há grandes expectativas, a não ser a conquista diária de mais espaço,
melhores condições e, principalmente, de uma vida tranquila, com dignidade. Sabendo que as grandes chances se foram, resta
a construção de responsabilidades pessoais, a valorização por cuidar de si e dos outros, e neste aspecto, o programa e as redes
constituídas a partir dele são fundamentais.
As análises de trajetória dos egressos em Porto Alegre revelam similitudes e diferenças com as trajetórias de
egressos no Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, assim como no Rio, as grandes esperanças resumem-se em conquistar algum
tipo de renda, que possa satisfazer o sustento da família e da casa, neste aspecto, a procura de oportunidades, de alguma
chance aparece na fala de todos os egressos. Há, em função da experiência de vida, uma constatação de que não restam
muitas possibilidades aos egressos, seja em função do estigma, seja em função da desqualificação educacional e profissional.
Com relação às trajetórias pós-prisionais, os egressos demonstram a importância da passagem pelos programas de
apoio, pelo acesso a meios de sobrevivência, a experiências de trabalho, às redes de sociabilidade, mas também deixam claro
que a conquista de cidadania e de inclusão, após a saída do cárcere é fruto, por um lado, de apoio externo, e de outro, de uma
espécie de “conversão” (que pode ser religiosa, pelo trabalho, pela família), que implique em mudança de valores, criação de
novas expectativas e principalmente, em assunção de responsabilidades e disposição para mudar de vida.
No entanto, apesar das dificuldades, é marcante na fala dos egressos a certeza de que a vida do crime, acessada em
função ora de necessidade, ora de aventura e dinheiro fácil, ora de fatalidade, não leva a lugar algum que não seja a morte ou
novamente a prisão, e isto não é mais vislumbrado como possibilidade para os egressos que buscam os programas de apoio
em Porto Alegre.
Em tendo uma condição marcada pelo estigma, pelas dificuldades materiais, pela experiência da passagem
prisional, questiona-se quais as esperanças e oportunidades para egressos do sistema penitenciário.
De tudo o que vimos até aqui, é importante perceber o quanto as trajetórias de vida dos egressos estão marcadas
pelas experiências familiares, escolares que constituíram sua infância e adolescência. Salvo raras exceções, os históricos dos
egressos são de desestrutura familiar, expulsão e fracasso escolar, péssimas condições econômicas, que resultaram em
envolvimentos criminais.

790
A chegada ao crime é, na maioria das vezes, decorrente de necessidade, de oportunidades e aventura para sujeitos
despidos de grandes expectativas e chances. O crime é, para as camadas populares, a possibilidade de subir na vida, ter
acesso a bens de consumo, a mulheres, viver bem, desfrutando a vida. No entanto, selecionados desde cedo pelas malhas do
sistema penal, as experiências de sucesso frustram-se pelo aprisionamento e pela constatação de que a prisão não é
brincadeira.
Chama muito a atenção na fala dos egressos sobre uma tomada de consciência propiciada pela chegada à prisão.
Muito embora não tenham privilegiado tanto as experiências prisionais em suas falas e as prováveis violações de direitos
humanos sofridas no cárcere, e embora saiba-se que a pena privativa de liberdade não cumpre com o previsto, não disciplina,
não promove mudanças a não ser no sentido da prisionização, para estes egressos a prisão levou à constatação de que o fim
para pobres envolvidos com a criminalidade é a morte ou o aprisionamento.
Aqui cabe mencionar mais uma vez a idéia de que os egressos desta pesquisa passaram por processos de
“conversão”, como uma ruptura de valores e assunção de novas responsabilidades, o que pode ocorrer pelo acesso à família,
ao trabalho, ou à religião, mas que leva-os a querer andar “no caminho do bem”. Se a leitura crítica quanto ao papel desta
conversão, em muitas vezes propiciada pelas religiões evangélicas pentecostais, dentro ou fora das prisões, é de que estas
promovem controle social, na visão dos egressos o controle é visto como algo necessário e vislumbrado de forma a garantir
que suas ações e atitudes irão dar-se no caminho “reto”.
Havendo, pois, uma seletividade na busca pelos programas de apoio dada em função dessa disposição a “mudar de
vida”, é preciso questionar em que medida as iniciativas auxiliam nas trajetórias pós-prisionais dos egressos. Neste aspecto, é
importante perceber que os programas apresentam-se como mediadores para as pequenas conquistas obtidas pelos egressos:
acesso à cidadania formal, pelo porte de documentos; acesso a meios de sobrevivência, como alimentação, transporte,
vestuário; acesso à saúde, pelo encaminhamento a redes públicas; acesso a escolarização, pelo encaminhamento à escola e a
cursos profissionalizantes; e acesso ao trabalho. É claro que os programas, como bem demonstrado, atuam de forma precária,
não propiciando todos os apoios para todos os egressos, sendo as concessões também seletivas. No entanto, há um grande
envolvimento para satisfazer tais metas, como a criação de parcerias, de convênios, de redes de assistência.
Não é possível esquecer-se das condições precárias e dos limites encontrados dia-a-dia por cada ex-presidiário, na
busca por trabalho, na discriminação pela ficha não-limpa, na temporariedade dos auxílios e apoios e da própria condição de
egresso (como ex-presidiário detentor de direitos). Não é possível esquecer também que os programas de apoio desenvolvem
possibilidades de controle dos egressos, seja pelo mapeamento de seu “paradeiro”, seja pela constante averiguação quanto as
suas informações judiciais. Apesar de tudo isso, só há chances com auxílio, só através das redes, da construção de
visibilidade para este universo, através das concessões e da abertura de espaço que se poderá permitir que estes egressos
deixem de ser homens infames.
É preciso refletir sobre o papel e o impacto dos programas de apoio na vida e nas trajetórias dos egressos,
discutindo a respeito de suas esperanças e oportunidades.
Analisando-se as trajetórias de vida dos egressos entrevistados percebe-se questões marcantes: são pessoas
geralmente de origem pobre, com históricos de baixa escolarização e qualificação profissional, com famílias desestruturadas,
ingressaram na criminalidade por necessidade, aventura, dinheiro fácil ou fatalidade, e tiveram, com a experiência prisional,
uma constatação de que é preciso mudar de vida, para manter-se vivo, uma vez que para pobres envolvidos com a
criminalidade só resta a morte ou a prisão.
Aqui cabe retomar a idéia de “conversão”, sustentando que os egressos que chegam a programas de apoio passaram
por um processo de troca de valores que os faz buscar uma nova possibilidade de vida, uma quebra de habitus, que os leve a
uma nova trajetória. Para a absorção desses novos valores é necessário romper com expectativas propiciadas pelo mundo do
crime, como poder, valorização, dinheiro, e reduzir as esperanças para pequenos ganhos diários, pequenas oportunidades.
Se a chegada aos programas de apoio dá-se, justamente, em função dessa esperança, a passagem pelos programas
resulta em ganhos e frustrações. Os programas não conseguem atender todas as demandas, há limites em sua atuação: nem
todos conseguem acesso a trabalho, nem todos obtêm qualificação, no entanto, através dos programas os egressos conseguem
acesso à cidadania formal, a assistências, como alimentação, roupa e transporte.
Apesar de tudo, os programas apresentam-se como o espaço destinado a eles, como o local de sociabilidade e as
redes formadas a partir desta inserção serão fundamentais para a manutenção longe do crime e a ampliação das pequenas
chances. Como já salientado, há construção de visibilidade para um universo excluído e invisível.
Por fim, é preciso sustentar que, muito embora permaneçam como sujeitos estigmatizados vivendo precariamente
em uma sociedade excludente, após o apoio e a “conversão” voltam a ter esperanças e pequenas oportunidades que
diminuirão o peso de sua condição de homens infames.

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As Penas Alternativas superam as prisões no Brasil, hoje. É um avanço ou um


retrocesso?
Tânia Teixeira Laky de Sousa
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]

793
Resumo: No primeiro semestre de 2008, o número de pessoas cumprindo penas e medidas alternativas disparou em relação aos presos no
Brasil. Até o final de junho do mesmo ano, 498.729 pessoas cumpriam pena ou medida de liberdade, conhecida como PMA. Verificou-se
que foi 13,4% a mais do que as 439.737 pessoas em situação de cárcere, com fulcro nos dados estatísticos oficiais do Departamento
Penitenciário Nacional. Se excluirmos os presos que aguardam o julgamento atrás das grades, podemos dizer que o número de pessoas que
cumprem penas alternativas no Brasil é de 118,6%. Na presente pesquisa, analisamos os dados de dezembro de 2007, segundo os quais havia
422.522 pessoas cumprindo penas alternativas no Brasil, menos do que os 423.373 presos encarcerados. Entre dezembro de 2007 e junho de
2008, podemos dizer que o número de pessoas cumprindo pena ou medida de liberdade saltou para 18%, e o número de presos caiu para
4,1%. Se compararmos com as estatísticas de 2006, o salto é ainda maior: 65,5% em relação aos que cumpriam pena ou medida de liberdade;
em face do número de presos, caiu para 9,6% dos detentos. Sabe-se que a justiça brasileira prende em demasia. Com os dados estatísticos
acima, podemos questionar: houve avanço? Houve retrocesso? O que pretendemos mostrar nesta pesquisa é a situação atual das Penas
Alternativas no Brasil de forma crítica, analisando os dados estatísticos oficiais e a legislação penal e processual penal brasileira.

Introdução
O homem "não tem natureza, tem história, sendo que o passado, a experiência anterior, deságua e forma o presente,
pois somos hoje a consequência do que já havíamos sido.”
Ortega y Gasset

"Não há criminosos incorrigíveis, e sim incorrigidos"


Concepcíon Arenal

A presente comunicação trata de um dos temas mais importantes e discutidos da política criminal brasileira
contemporânea – as Penas Alternativas. Apontaremos alguns documentos históricos que serviram de sustentação para a
implantação do instituto das Penas Alternativas no Brasil. Inicialmente, podemos afirmar que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos é um dos documentos básicos das Nações Unidas, foi adotada e proclamada em 1948, e, ao considerar o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis, é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo e serviu como um dos precedentes de tendência que resultaria na
recomendação de penas alternativas.
Em 1955, em Genebra, houve o 1º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e Tratamento de
Delinquentes. As penas alternativas foram aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU, através da Resolução 663
C (XXIV) de 1957 aditada pela Resolução 2976 (LXII) de 13 de maio de 1977, que em 25 de maio de 1984, através da
Resolução 1984/47, o Conselho Econômico e Social aprovou treze procedimentos para a aplicação efetiva das Regras
Mínimas para tratamento dos presos. Dentre esses procedimentos, encontramos a recomendação de aplicação da pena não-
privativa de liberdade.
O Pacto Internacional dos Direitos Políticos e Civis, por sua vez, foi adotado pela Resolução nº 2.200-A da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e veio reforçar a implantação, execução e fiscalização
das alternativas à pena de prisão. No Brasil, foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12.12.1991 e ratificado em 24
de janeiro de 1992. Passou a vigorar, aqui, em 24.4.1992, promulgado pelo Decreto nº 592, de 6.7.1992. As Regras Mínimas
das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade, conhecidas como “As Regras de Tóquio”,
foram adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/110, de 14 de Dezembro de 1990. Estas
Regras Mínimas vieram enunciar uma série de princípios básicos tendo em vista favorecer a recusa de medidas não-
privativas de liberdade, assim como garantias mínimas para as pessoas submetidas a medidas substitutivas da prisão. No
tocante às Regras de Tóquio, elas estão organizadas na forma de oito seções, com vinte e três artigos, formando o corpo deste
importante documento. Vamos, aqui, apontar apenas o espírito das seções I e II, a saber:
Seção I - são desenvolvidas idéias gerais que formam a base das Regras de Tóquio. Apresentam-se os princípios
gerais, nos quais advoga-se a favor da promoção das medidas não-privativas de liberdade e por uma participação maior da
comunidade, além de destacar a importância cabal da racionalização das políticas de Justiça Penal.
Seção II - refere-se às medidas não-privativas de liberdade que podem ser aplicadas em substituição a um
procedimento ou na fase anterior ao julgamento, de forma a evitar-se a prisão preventiva. Apóia-se nos princípios da
presunção de inocência e da intervenção mínima, considerando a prisão como a última ratio, medida extrema, só aceitável
quando absolutamente necessária, face à periculosidade do agente.
Faz-se necessário observar que as Regras de Tóquio, por tratar-se de um documento de caráter internacional,
revestem-se de certa maleabilidade e adaptabilidade, respeitando as peculiaridades de cada país signatário, bem como o
princípio da auto-determinação dos povos, introduzidos nos artigos 1º e 55 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
e no artigo 4º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Na nossa norma ordinária, a reforma do Código Penal em 1984 foi inspirada na doutrina de Francisco de Assis
Toledo, através da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, que introduziu no ordenamento jurídico as penas restritivas de
direitos, entre elas a de prestação de serviços à comunidade. Outra inovação legislativa foi a criação da Lei nº 9.099, de 26 de
setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais – JECRIM, que estabeleceu novos
procedimentos para crimes de menor potencial ofensivo, instituindo novos institutos como o da transação penal, o da
suspensão condicional do processo e a aplicação imediata de penas restritivas de direito nas modalidades previstas no Código

794
Penal. Nesta lei as infrações de menor potencial ofensivo estão conceituadas no art. 61, como sendo “as contravenções penais
e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento
especial.”
A professora, advogada e pedagoga Gisele Leite, em artigo no sítio “Diálogos Jurídicos”, intitulado “Vigiar para
Punir”, em 03/04/2007, ensina-nos:
"O crime, por incrível que pareça, não é necessariamente nocivo para o sistema social, o que faz Durkheim apontar
a funcionalidade do crime. O referido filósofo promoveu a despatologização do crime e assinalou o funcionalismo do crime e
da pena. (...)
“O crime é indispensável à evolução normal da moral e do direito. É fator de saúde pública. É fundamental o
legado de Durkheim para se entender o crime, o criminoso e o castigo nas sociedades contemporâneas. Sua teoria sistêmica
veio contrariar o determinismo positivo lombrosiano dominante à sua época. E, profetiza: Não há sociedade sem crime.
Delito é a representação dos conflitos sociais mais agudos, por agredir sentimentos como a moral e ética social.
Nada é bom indefinidamente e sem medida. Para a própria evolução da autoridade é imprescindível que não seja
excessiva, seja portanto, contestada. Muitas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral por vir um
encaminhamento ao direito que será".
Entendemos, então, serem o crime, as contravenções e as transgressões fenômenos eminentemente sociais,
consequentemente, fenômenos históricos. Dessa forma esses fenômenos vão, sempre, obedecer às estruturas dialéticas de
determinada sociedade.
Sendo o delito um fenômeno social, ele nasce na sociedade, e só poderá ser refreado pela ação conjunta do governo
e da sociedade. Uma política de destaque e valorização da pena de prestação de serviços à comunidade visa promover ação
conjunta, essa é a proposta do governo paulista.
Na presente comunicação, vamos analisar o fato de as penas alternativas superarem as prisões no Brasil hoje.
Indagaremos se este fenômeno é um avanço ou um retrocesso. Aproveitamos para apresentar a realidade de São Paulo como
o Estado brasileiro que conta com o maior número de presos, no Brasil, com o total de 146 presídios, assim distribuídos: três
unidades de segurança máxima; 74 penitenciárias; sete centros de progressão penitenciária; dois institutos penais agrícolas e
cinco hospitais.
O Estado paulista através da Lei nº 8.209, de 04.01.93, criou e o Decreto nº 36.463, de 26.01.1993, organizou a
Secretaria da Administração Penitenciária, a primeira no Brasil a tratar com exclusividade dos assuntos penitenciários, sendo
seguido do Estado do Rio de Janeiro, que também criou uma Secretaria com os mesmos objetivos. A SAP – Secretaria da
Administração Penitenciária de São Paulo está trabalhando em um Programa Integrado de Prestação de Serviços à
Comunidade desde 1997, com a primeira iniciativa entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário no Estado de São Paulo.
Esta iniciativa consolidou-se através da Vara de Execuções Criminais, mediante Portaria nº 08/97 da Corregedoria dos
Presídios de São Paulo, que tornou a SAP apta a administrar, acompanhar e fiscalizar as penas de Prestação de Serviços à
Comunidade, por intermédio da Central de Penas e Medidas Alternativas. Foram criadas as Centrais de Penas e Medidas
Alternativas objetivando promover a expansão quantitativa e qualitativa da aplicação das penas de prestação de serviços à
comunidade no Estado de São Paulo, oferecendo ao Judiciário programas de acompanhamento e fiscalização até a efetiva
execução das Penas e Medidas Alternativas, bem como a elevação dos potenciais preventivos, retributivos e ressocializadores
a partir da idéia de eficiência e qualidade no acompanhamento e de rigor e seriedade na fiscalização.
O Estado de São Paulo tem vinte e cinco Centrais de Penas e Medidas Alternativas já implantadas pela Secretaria
da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, que tem como objetivo fornecer suporte técnico, administrativo,
orientação e acompanhamento da prestação de serviços à comunidade, visando o autor da infração penal e a participação
social. Segundo a SAP, “a intervenção desenvolvida pela equipe técnica das Centrais de Penas e Medidas Alternativas visa
auxiliar as Varas de Execução Criminal, JECRIM e Ministério Público, porém é vista como órgão da execução penal que
está inserida em um contexto de política criminal e seu objetivo é dirigido para o fiel cumprimento das penas ou medidas
alternativas” (Bitencourt, 2007). Para o Diretor da SAP - Secretaria da Administração Penitenciária, Dr. Mauro Rogério
Bitencourt: “processo de trabalho das equipes técnicas enquadra-se dentro de uma prática de natureza psicossocial, porém
a demanda e o produto desse trabalho são jurídicos, de natureza processual ou penal, e devem seguir o tratamento legal em
todos os seus procedimentos e consequências, porém sempre temos em vista as necessidades apresentadas pelos infratores
que em sua maioria não são jurídicas”. (Bitencourt, 2007). E finaliza:
“A pena/medida alternativa: trata-se de uma medida punitiva de caráter educativo e socialmente útil, imposta ao
infrator, em substituição à pena privativa de liberdade. Portanto, não afasta o indivíduo da sociedade, não o exclui do
convívio social e de seus familiares e não o expõe aos males do sistema penitenciário” (Bitencourt, 2007). Assim,
apresentamos as principais atividades desenvolvidas pelas Centrais de Penas e Medidas Alternativas da SAP: captação de
vagas; entrevista psicossocial; encaminhamento; acompanhamento; controle de frequência; visitas aos postos de trabalho;
reuniões com representantes dos postos de trabalho e com beneficiários; levantamento de demandas; discussão na
comunidade; encaminhamentos para atendimentos específicos; informações aos órgãos encaminhadores (Juízes e
Promotores).
A Lei 9.099/95 veio em resposta aos anseios da sociedade brasileira e sob observação ao mandamus constitucional
disposto no artigo 98, inciso I, da Carta Cidadã. O Poder Legislativo editou, aprovou a referida lei e implantou um
procedimento penal diferenciado em face do ordenamento jurídico pátrio.

795
As penas alternativas, em matéria penal no Brasil, têm se apresentado como um importante avanço no combate à
criminalidade de pequeno porte - menor potencial ofensivo - e, na prática, decorrem quer de condenação penal, por crime em
que se dá a substituição da pena aplicada, artigo 43 do Código Penal, quer de algumas disposições da lei 9.099/95, hipóteses
essas de transação penal sem julgamento de mérito de um processo crime.
Dentre as penas alternativas, duas receberam maior destaque: as de Prestação de Serviços à Comunidade e as de
Prestação Pecuniária. Esta última em regra pela entrega de cestas básicas a instituições beneficentes apontadas pelo juiz, e, às
vezes, até mesmo de remédios, superando as interdições e as restrições de direito, de menor repercussão social.
A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo lançou um documento chamado “Manual de Orientação
do Prestador de Serviço”, explicando, a título de “primeiros passos” ao réu, “O que significa Prestação de Serviço à
Comunidade - PSC?”, e dá como resposta à pergunta por ela mesma formulada:
“Significa que você recebeu um benefício concedido pelo sistema de justiça e, ao invés de cumprir sua pena na
prisão, trabalhará gratuitamente para a comunidade, sem ser prejudicado em sua carga horária de trabalho, pelo período
determinado pelo Juiz.” (SAP, s/d)
A pergunta seguinte deste manual, é: “Como começa minha Prestação de Serviço?”, e é dada a seguinte resposta
pela SAP:
“Depois de passar pela audiência com o Juiz, você será encaminhado à Central de Penas e Medidas Alternativas
(CPMA) que é o órgão responsável pelo acompanhamento e fiscalização de sua pena. Na CPMA, você será entrevistado por
um profissional habilitado que o encaminhará a uma instituição para que realize um serviço de sua competência.”(SAP, s/d)
A terceira pergunta do referido documento é: “Em qual instituição irei realizar minha PSC?”, e o manual dá como
resposta:
“A instituição em que você irá prestar seus serviços faz parte de um cadastro da Central de Penas e Medidas
Alternativas. Elas podem ser públicas ou privadas, sem fins lucrativos. São escolas, creches, hospitais, associações,
Organizações Não-Governamentais (ONG), entre outras. Todas elas atendem uma população socialmente vulnerável da
comunidade. Sua contribuição nesta instituição pode ser muito importante!” (SAP, s/d)
De forma didática, o manual segue com perguntas e respostas para as orientações de praxe, e a próxima pergunta é:
“Como devo me apresentar à instituição?”
“Você será encaminhado pela equipe da Central a uma instituição, por meio de um documento que conterá seus
dados (Ficha de Encaminhamento). Deverá procurar a pessoa responsável por você no local - que irá entrevistá-lo e
orientá-lo na função que lhe foi designada. Todo e qualquer problema durante a sua PSC deve ser comunicado
primeiramente ao seu responsável. Caso julgar necessário, procure também a Central de Penas e Medidas Alternativas.
Sempre seja pontual.” (SAP, s/d)
Este manual contém informações preventivas e importantes, a saber: “IMPORTANTE: caso você não possa
comparecer no dia e horário combinados com a organização, deverá comunicar a pessoa responsável por você, de
preferência com antecedência. Este dia não trabalhado deverá ser reposto.
Caso você adoeça, leve o atestado médico, porém o dia não será abonado, somente justificado e deverá ser reposto
também. Não se esqueça: a instituição conta com os seus serviços. Procure se colocar como qualquer outro profissional
membro da instituição. Vista-se adequadamente no dia do cumprimento de sua pena.” (SAP, s/d)
Outra questão colocada no Manual Orientação do Prestador de Serviço da SAP é sobre “O DIA-A-DIA DA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. Como será feito o controle das minhas horas trabalhadas?”, e disciplina:
“Todo mês, deverá ser entregue à CPMA o seu controle mensal de frequência. Para cada mês trabalhado será
preenchida uma folha que deve ser assinada e carimbada pelo responsável. É sua responsabilidade assinar esta folha todos
os dias em que prestar serviço. É sempre bom ter uma cópia desses documentos com você, pois em caso de extravio, terá
prova documental do cumprimento da pena. Na Central de Penas e Medidas Alternativas estas horas serão computadas e
descontadas do montante de horas a cumprir.” (SAP, s/d)
No caso de descumprimento sem justificativa, o Manual diz que:
“O Juiz será imediatamente comunicado e tomará as providências judiciais cabíveis. A partir de então, a Central
de Penas e Medidas Alternativas deixa de ser responsável por seu acompanhamento.” (SAP, s/d)
E, finalizando, o “Manual de Orientação do Prestador de Serviço” dispõe:
“TÉRMINO: E quando todas as horas da pena forem cumpridas? A equipe técnica da CPMA fará um ofício
informando o Juiz sobre o efetivo cumprimento da pena. Você deverá comparecer na CPMA para ser orientado sobre o que
fazer a partir de então, e sairá com uma declaração que atesta o término do cumprimento da pena.” (SAP, s/d)
O Manual de Orientação do Prestador de Serviço, da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo, foi realizado pelo Departamento de Reintegração Social Penitenciário, idealizado e redigido pela Dra. Márcia
Antonietto e sob a coordenação do Dr. Mauro Rogério Bitencourt.
Na legislação que disciplina e é pertinente à aplicação das penas e medidas alternativas encontramos amparo legal
em inciso do Artigo 5º, da Constituição Cidadã de 1988, quando trata da prestação social alternativa. Já na Lei 7.209/84, que
reformou o Código Penal Brasileiro, foram introduzidas as Penas Restritivas de Direitos. E na Lei 7.210/84 – a conhecida Lei
de Execução Penal; e, ainda, na Lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Civis e Criminais abordando as Medidas
Alternativas; já na Lei 9.714/98 – Lei das Penas Alternativas, e finalmente, na Lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais
no âmbito da Justiça Federal.

796
As Penas Alternativas no Brasil são aplicadas sempre em substituição à pena privativa de liberdade às pessoas que
cometeram crimes considerados de menor potencial ofensivo e também de média gravidade, que foram condenadas à pena de
até quatro anos, desde que sem violência ou grave ameaça à pessoa, com fulcro no rol taxativo do artigo 43 do Código Penal
Brasileiro, a saber:
Prestação de serviços à comunidade; Interdição temporária de direitos; Proibição do exercício de cargo, função ou
atividade pública, bem como de mandato eletivo; Proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de
habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; Suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir
veículo; Proibição de frequência a determinados lugares; Limitação de fim-de-semana; Prestação pecuniária em favor da
vítima ou entidade com destinação social; Perda de bens e valores; Prestação de outra natureza.
Como podemos observar, a pena de prestação de serviços à comunidade, como exemplo de pena alternativa, tem
visibilidade, é sensível à comunidade e deve ser vista sob a ótica de que esta pena se encaminha tanto para quem recebe, pois
tem caráter de reeducação, ressocialização, reintegração social, como para quem se destina, que é a sociedade, na medida em
que intimida e visa desestimular o cometimento de novos delitos.

As penas restritivas de direitos, no Brasil


Segundo Christiano Jorge Santos (2007), as penas restritivas de direitos estão previstas no Código Penal brasileiro,
nos artigos 43 a 48, e gozam de caráter substitutivo ou vicariante, isto quer dizer que no direito pátrio não são previstas nos
preceitos secundários das normas penais incriminadoras, esta é a regra geral. Há exceção feita ao CTB – Código de Trânsito
Brasileiro – Lei nº 9.503/1997, artigos 302 e seguintes; e à Lei de Droga, Lei nº 11.343/2006, no art. 28. Nesses casos, em
regra, tais penas substituem as penas privativas de liberdade se forem atendidos certos requisitos.
Ensina-nos, ainda, que os requisitos para efetivar a referida substituição, com fulcro no artigo 44 do Código Penal
brasileiro, são que: o crime não seja cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa; a pena não seja superior a quatro
anos (exceto nos crimes culposos, quando não há limite quantitativo, portanto); a culpabilidade, os antecedentes, a conduta
social e personalidade do condenado (circunstâncias judiciais do art. 59, caput do CP, portanto), bem como os motivos e as
circunstâncias, indicarem que essa substituição seja suficiente; o condenado não seja reincidente em crime doloso (situação
excepcionada no próprio art. 44, § 4º, que prevê ser possível a substituição se “em face da condenação anterior a medida seja
socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime”, hipótese última
denominada reincidência específica).
Apresentamos, abaixo, o didático quadro com os artigos que tratam das Penas Restritivas de Direitos, no Brasil,
com fulcro na doutrina ensinada pelo professor Christiano Jorge Santos (2007):

Penas Restritivas de Direitos


Prestação pecuniária Possui caráter reparatório e consiste em pagamento à vítima, a seus dependentes ou a
art.45, § 1 entidade assistencial, em valor não inferior a um salário mínimo nem superior a 360
salários mínimos. Tal pena obriga, como se verifica pelo próprio nome, o criminoso
a reparar o dano causado. Assim, o valor aqui pago a título de pena deverá ser
abatido em eventual indenização cível que sobrevenha pelo fato, se os beneficiários
forem coincidentes.
Prestação inominada Assim chamada por não ter a lei conferido-lhe nome específico, é uma variável da
art.45, § 2 hipótese anterior, aplicável somente com a aceitação da vítima ou seu representante,
consistente em “prestação de outra natureza”. Aqui, não havendo valor mínimo, tem
sido, na prática, a hipótese que acaba gerando conversão da pena em entrega de
“cestas básicas”.
Perda de bens e valores Aqui se cuida de bens do condenado que são perdidos em favor do Estado, mas que,
art.45, § 3 diferentemente dos efeitos da condenação (art.91, CP), não atinge bens de origem
ilícita. Na perda de bens e valores, os bens são lícitos do condenado, ocorrendo
verdadeiro confisco em prol do Fundo Penitenciário.
Prestação de serviços à É a mais importante das penas alternativas, pois possui significativo caráter
comunidade ou entidades educativo, além de manter as características retributiva e preventiva da pena, quando
públicas cabível a substituição. Corresponde ao cumprimento de tarefas em locais designados
art.46 ao condenado, que deverá cumpri-las gratuitamente (é pena e não trabalho). As
tarefas deverão, na medida do possível, ser adequadas às aptidões do sentenciado e
serão cumpridas “à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de
modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho” (art.46, § 3). O § 4 merece
explicação, para que não se entenda que o preso escolhe a quantidade de pena a
cumprir (obviamente entre escolher uma pena de dois anos e uma de um ano, todos
optariam pela última). A norma prevê a hipótese de um indivíduo ser condenado a
cumprir pena substitutiva em lapso temporal superior a um ano; no caso, três anos.

797
Deveria cumprir suas tarefas neste intervalo de tempo, uma hora por dia. O que a lei
lhe faculta é que, para diminuir seu compromisso, trabalhe para a comunidade mais
do que uma hora por dia. Poderá aumentar suas horas diárias, mas deverá prestar
serviços, no mínimo, por um ano e meio.
Interdição temporária de Aplica-se a pena a todos os servidores públicos ou àqueles que, mesmo
direitos - art.47 temporariamente, exercem tais misteres (art.327, CP), inclusive ocupantes de cargos
inciso I – Proibição de eletivos. Deve ser, como pena substitutiva, fixada em prazo determinado e não se
exercício de cargo, função ou confunde com efeitos da condenação do art.92, I, CP.
atividade pública
Inciso II – Proibição do Aplicáveis àqueles que cometem crimes no exercício de suas atividades laborativas,
exercício de profissão, desde que seu exercício condicionou-se a autorização, licença, etc.
atividade ou ofício que
dependam de habilitação
especial, de licença ou
autorização do poder público
Inciso III – Suspensão de Trata-se de pena praticamente inócua, pois somente aplicável, segundo a doutrina,
autorização ou de habilitação para os delitos de trânsito e, em se tratando de veículo automotor, tal situação
para dirigir veículos regulamenta-se pelo Código de Trânsito Brasileiro (Lei n9.503/1997). Pode-se aqui
cogitar a aplicação desta pena substitutiva para o causador de um acidente na direção
de um ciclomotor (ex: biciclo com motor cuja potência não ultrapasse 50cc e cuja
velocidade não supere os 50km/h, como eram chamadas as “mobiletes”), pois este
não é “veículo automotor” e, portanto, seus condutores não se enquadram na lei
especial.
Inciso IV – Proibição de O código permite que o juiz substitua a pena privativa de liberdade pela restrição da
frequentar determinados circulação do condenado. Na prática, se não houver a especificação da espécie de
lugares lugar, a pena resta inócua. Normalmente a previsão é para que os condenados por
delitos praticados sob influência de álcool fiquem proibidos de frequentar botequins,
bares e similares (estabelecendo-se também limitação de horário “a partir das 21 h”,
por exemplo).
Limitação de final de semana Trata-se de uma das mais inócuas penas do nosso ordenamento jurídico, quanto mais
art.48 na medida em que não há casa do albergado (ficando o condenado orientado a
cumprir a pena em sua casa), tampouco fiscalização eficiente, via de regra. Assim, a
pena consiste na obrigatoriedade de permanência do preso, durante o final de
semana, em sua própria casa, pelo tempo que durar sua pena (um ano, dois anos,
etc.), por cinco horas diárias. Ora, o tempo de cinco horas foi criado para ser
cumprido em casa do albergado ou “outro estabelecimento adequado”, situação que,
se existente, poderia ter algum efeito (assistindo a palestras, realizando atividades,
etc.). Todavia, ficar cinco horas em casa, aos sábados e domingos, é quase uma “não
pena”, quanto mais se pensarmos que é o mínimo que uma pessoa dorme, por
exemplo.

As Penas Alternativas no Brasil no primeiro semestre de 2008


Sabe-se que, atualmente, o número de cidadãos brasileiros cumprindo Penas Alternativas, no Brasil, aumentou
rapidamente em relação aos presos encarcerados. Os dados não-oficiais referentes ao primeiro semestre apontam que, até
junho de 2008, 498.729 pessoas cumpriam pena ou medida em liberdade – PMA. Dessas pessoas acima enumeradas, 11.34%
a mais dos que os 439.737 encarcerados, segundo dados do jornal diário paulista “O Estado de S. Paulo”, em 24.04.2008,
pela Agência Estado, portanto, podemos considerar estes dados como oficiosos. Segundo ainda este jornal, só o Estado do
Rio Grande do Norte não informou o número de presos até junho de 2008. Nesse caso, o jornal usou os dados disponíveis em
31 de maio do referido ano. Como se trata de um Estado brasileiro com menos de 1% dos detentos, isso não interfere de
forma significativa nas estatísticas. Comenta, ainda o jornal, que em dezembro de 2007 havia 422.522 pessoas cumprindo
penas alternativas, menos do que os 423.373 presos. Entre dezembro de 2007 e fim de junho de 2008, o número de pessoas
cumprindo PMAs - Penas e Medidas Alternativas saltou 18% - ante 4,1% no número de presos. Em comparação com 2006, o
salto é ainda maior: 65,5% em relação aos que cumpriam PMAs - Penas e Medidas Alternativas - ante 9,6% dos detentos.
Márcia de Alencar, Coordenadora-Geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alternativas do Depen, do
Ministério da Justiça, afirma que, apesar do avanço, a Justiça brasileira ainda prende em demasia. Segundo ela, há pelo
menos 54 mil presos condenados por crimes que já prevêem a substituição da condenação em cárcere por penas alternativas.
Segundo ela, o aumento no número de pessoas cumprindo condenação em liberdade se deu "prioritariamente, por um
incremento legal dos crimes passíveis de penas alternativas". Em 2002, apenas cinco leis tipificavam crimes com

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possibilidade de aplicar PMAs. De acordo com ela: "Hoje, o número de leis para aplicação de PMAs chega a 12". Estas
informações foram obtidas no jornal O Estado de S. Paulo, do dia 24.07.2008.
Já os dados oficiais do Infopen, sistema de estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), apontam,
em junho de 2008, 493.737 pessoas presas (condenados e provisórios) e 498.729 pessoas que estavam cumprindo, ou
cumpriram no decorrer do 1º semestre de 2008, Pena Restritiva de Direito, popularmente conhecida como Pena e Medida
Alternativa (PMA). Dessa forma podemos afirmar que o número de cumpridores de penas e medidas alternativas ultrapassou
o número de presos no Brasil. É o que apontou o levantamento, oficial, de dados do 1º semestre de 2008, consolidados pela
Coordenação-Geral de Política, Pesquisa e Análise da Informação do Depen.
O InfoPen é um programa de computador (software) de coleta de Dados do Sistema Penitenciário no Brasil,
para a integração dos órgãos de administração penitenciária do país, possibilitando a criação dos bancos de dados federal e
estaduais sobre os estabelecimentos penais e populações penitenciárias. É um mecanismo de comunicação entre os órgãos de
administração penitenciária, criando “pontes estratégicas” para os órgãos da execução penal, possibilitando a execução de
ações articuladas dos agentes na proposição de políticas públicas, com o objetivo geral de oferecer à União informações
confiáveis, subsidiárias à administração do Sistema Penitenciário Nacional e para o direcionamento de políticas públicas
neste mesmo âmbito.
Os objetivos específicos do Infopen são: interligar todos os estabelecimentos prisionais (estaduais e federais) com o
Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça; obter um panorama atualizado sobre a situação prisional e
processual dos presos e internados no território brasileiro; processar outros informes estratégicos que nortearão a adoção de
posturas públicas dentro do contexto penitenciário nacional.
Quanto aos benefícios esperados do Infopen, destacam-se: maior eficiência e visibilidade no acompanhamento das
penas, dos presos e da realidade de cada estabelecimento de execução penal; cadastro único de instituições, de presos, de
servidores, advogados e visitantes; suprir de informações, o processo de tomada de decisão penitenciária e ações de
inteligência e de contra-inteligência penitenciária.
Segundo o Ministério da Justiça, hoje o Brasil conta com dezoito varas judiciais especializadas, complementadas
por duzentos e sessenta e quatro estruturas montadas de monitoramento e fiscalização de penas e medidas alternativas, entre
Núcleos e Centrais, formando o conjunto de equipamentos públicos existentes sobre o tema no país. Tais serviços envolvem
instituições do sistema de justiça - Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública –, do Poder Executivo e
entidades da Sociedade Civil Organizada, fundamentais à garantia do bom cumprimento das decisões judiciais, conforme
demonstra o Relatório sobre Serviços Públicos de Penas e Medidas Alternativas existentes no Brasil, publicado no site do
Ministério da Justiça, no endereço eletrônico.
A Coordenadora-Geral do Programa de Fomento às Penas e Medidas Alternativas do Departamento Penitenciário
Nacional – DEPEN – Dra. Márcia de Alencar afirmou, em 28 de abril de 2008, à Agência Brasil, que os condenados que
cumprem penas alternativas reincidem menos do que aqueles que passam por uma prisão. Ela declara com base em dados dos
serviços de monitoramento e fiscalização de penas alternativas, da Comissão Nacional de Penas Alternativas – Conapa – e,
ainda em, informações encaminhadas por tribunais dos estados ao Ministério da Justiça.
Ela declarou, ainda, que: “o dado demonstra que, das pessoas que passam pela prisão, 70% a 85% voltam a
praticar crimes, enquanto a taxa de reincidência das pessoas que passam por penas alternativas varia de 2% a 12%”. E
disse, ainda, que “um cumpridor de pena alternativa custa para o Estado brasileiro apenas 10% dos gastos exigidos com um
condenado preso.”
Márcia de Alencar destacou que 90% das pessoas condenadas à prestação de serviço comunitário são pobres, na
acepção jurídica do termo, e são encaminhadas para as políticas sociais de base – escolarização, profissionalização, geração
de emprego e renda – desenvolvidas pelas Políticas Públicas do Poder Público em nível municipal e federal.
Ela dá a seguinte explicação: “muitas vezes, para pessoas em regime de pena alternativa, o crime na vida delas é
uma situação eventual e acidental. É o momento em que o Estado intervém para evitar que este cidadão entre na fileira da
criminalidade propriamente dita e vá para as penitenciárias”, viver sob situação de cárcere.(AB,2008)
E finaliza apresentando dados do Ministério da Justiça, de 2007, que indicam que a aplicação de penas alternativas
cresceu 412% (quatrocentos e doze por cento), no país, em cinco anos. Alencar ressaltou que pessoas condenadas por crimes
dolosos, com penas superiores a quatro anos de detenção não são contempladas “em hipótese alguma” com as penas
alternativas, pelo risco que representam à sociedade. Concluiu dizendo que “pena alternativa não esvazia presídio”.
Neste estudo indicou que, em 2007, 422.522 pessoas cumpriram penas e medidas alternativas – PMA. Este número
é praticamente equivalente ao de presos em dezembro do mesmo ano, ou seja, 422.373 entre condenados e presos
provisórios.
Os dados de 2002, se comparados com os dados de 2007, nos mostram que o crescimento de penas e medidas de
segurança foi de 412,6%. Temos que levar em consideração que, no mesmo período, o número de presos aumentou 69,4%,
no país.
No Brasil, com o advento da criação de leis especiais, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha, a Lei Anti-Drogas
e a Lei do Torcedor Infrator, ampliaram-se as possibilidades de aplicação de PMAs – penas e medidas alternativas. Há
também um trabalho de conscientização feito pelo governo, Depen, junto ao sistema judiciário dos estados brasileiros.
Para Márcia de Alencar: “com o mesmo rigor que o governo investiu na criação do sistema penitenciário federal
para crimes de alto potencial ofensivo, que colocam em risco até a soberania nacional, com a criação de penitenciárias

799
federais em Campo Grande, Mato Grosso do Sul e Catanduvas, no Paraná, o governo federal também investiu nas penas
alternativas para os crimes menos graves”.
No ranking de aplicação de penas e medidas alternativas por estado, em 2007, o Rio de Janeiro ocupou a primeira
colocação com 136.324 casos, seguido de São Paulo, com 118.047 casos. Há que se considerar que estes dois estados
brasileiros respondem por mais de 50% do total de PMA – pena e medida alternativa aplicadas no Brasil.
Há que se registrar, aqui, que esse tipo de sanção substitutiva é aplicada a crimes de menor potencial ofensivo,
como disciplina a lei.
O Dr. Herbert José Almeida Carneiro, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Coordenador do
Programa PAIPJ - “Programa de Assistência Integral ao Paciente Judiciário”, fez uma pesquisa intitulada: “Análise e
Diagnóstico das Penas Alternativas no Brasil”, que mostrou alguns dados sobre Centrais de Apoio e Varas Especializadas
tomadas isoladamente, dados da CENAPA – Centro Nacional de Apoio às Penas e Medidas Alternativas - e das próprias
Centrais de Apoio e Varas Especializadas.
Esta análise foi feita no Distrito Federal, em 2005; em São Paulo, em 2003 e 2005; no Rio de Janeiro em 2004 e
2005; em Minas Gerais, em 2002 e 2005 e, finalmente, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, em 2004 e 2005.
No Distrito Federal, a referida pesquisa demonstrou que o total de beneficiários cumprindo penas e medidas
alternativas sob acompanhamento, em outubro de 2005, era de 1920 pessoas. Houve o número de 248 entidades cadastradas,
em outubro de 2005, no DF.
Constatou-se, nesta pesquisa, que no Distrito Federal o índice de reincidência se mantém entre 6% e 10%. Segundo
os dados da Vara de Execuções do Distrito Federal, já existe um índice de aplicação de penas e medidas alternativas
correspondente a 60%, no mesmo período analisado. Dentre os beneficiários, 75% deles relatam que tiveram mudanças
positivas na vida, através do cumprimento da pena, apontando a auto-estima melhorada, o amadurecimento e a possibilidade
de ajudar o próximo.
Os dados do Estado de São Paulo referem-se ao período de 2005, conforme dados da referida pesquisa, em que o
total de beneficiários com penas e medidas alternativas em acompanhamento foi de 2500 pessoas cumprindo penas e medidas
alternativas. Houve o número de 327 entidades cadastradas, em 2005, no estado bandeirante. O destaque, aqui, é para a
parceria com a FDE - Fundação de Desenvolvimento da Educação, que tem convênio com aproximadamente 560 escolas, nas
quais mais de 890 beneficiários estão em cumprimento de penas de prestação de serviços à comunidade.
No Estado do Rio de Janeiro, na Central de Penas e Medidas Alternativas, temos a seguinte realidade, constatada na
referida pesquisa: o total de beneficiários cumprindo penas e medidas alternativas em acompanhamento foi de 1461 pessoas,
em 2004, e 1776 pessoas em agosto de 2005, constatado um aumento significativo de 315 pessoas cumprindo penas e
medidas alternativas. No Rio de Janeiro, no ano de 2004, houve 298 entidades cadastradas, sendo que 158 desses locais são
frutos do convênio com a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. No ano de 2005, houve 398 entidades cadastradas, entre
este total 230 foram através de convênio firmado com a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.
Segundo dados da CPMA - Central de Penas e Medidas Alternativas do Rio de Janeiro, a estatística de reincidência,
em 2004, se mantinha em torno de 10%. Em 2005, este índice teve um decréscimo significativo de apenas 2,5%. A CPMA
do Rio de Janeiro desenvolveu o “Programa de Justiça Terapêutica”, e conta com o apoio do Conselho Estadual Anti-Drogas,
como instituição conveniada, além de outras 34 instituições parceiras em 2005. Há que se registrar que, em 2004, eram
apenas dez instituições parceiras.
As cidades de Contagem, Ribeirão das Neves e Juiz de Fora, que se localizam no Estado de Minas Gerais,
apresentaram as seguintes realidades: o total de beneficiários cumprindo penas e medidas alternativas entre os meses de
agosto e julho de 2005 foi de 3994 pessoas. Nestas cidades, no ano de 2004, houve 220 entidades cadastradas, e, no ano de
2005, totalizaram 403 entidades, um aumento significativo de 183%. Nesta pesquisa também constatou-se que 88% dos
beneficiados eram do sexo masculino, e o restante, 12% das beneficiadas, do sexo feminino.
A cidade de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, no Setor de Fiscalização de Penas Substitutivas,
das Varas de Execuções Criminais, apresenta a seguinte realidade: foi criado o PIS – Programa de Intervenção Social, com o
objetivo de detectar as necessidades dos beneficiários que cumprem penas e medidas alternativas, através de atendimentos
em grupos, com a finalidade de encaminhá-los para sede social local em escolas, atendimento médico-ambulatorial,
regularização de documentação, emprego, etc. No período de novembro de 2004 até setembro de 2005, foram realizados 610
acompanhamentos dessas pessoas, em cumprimento de PMA. Outro programa surgiu em Belo Horizonte com o objetivo de
prestar assistência integral aos portadores de sofrimento mental, que cometeram infrações de menor potencial ofensivo,
intitulado PAI-PJ – “Programa de Assistência Integral ao Paciente Judiciário”.
A última cidade brasileira, aqui apresentada, na referida pesquisa foi a cidade de Porto Alegre, capital do Rio
Grande do Sul, que aponta a seguinte realidade: a VEPMA - Vara de Execução das Penas e Medidas Alternativas foi
implantada em 2001. O total de pessoas beneficiadas, e em cumprimento de pena de prestação de serviço à comunidade, em
2004, foi de 576 pessoas, e no período de 31/08/2005 este número subiu para 614 beneficiários. O número de entidades
cadastradas em 2004 era de 80 entidades, em 2005 este número subiu para 112 entidades. Houve neste último período o
convênio firmado com a Secretaria da Educação. Em Porto Alegre, algumas instituições conveniadas com a VEPMA – Vara
de Execução das Penas e Medidas de Segurança, têm hoje em seus quadros de funcionários-voluntários pessoas que
cumpriram pena de serviço à comunidade, que continuam a trabalhar junto às mesmas instituições.

800
Conclusões
Diante do exposto, e em face do tema que nos coube apresentar “As Penas Alternativas superam as prisões no
Brasil, hoje. É um avanço ou um retrocesso?”. Entendemos que caracteriza um avanço.
Concordamos com a afirmativa da Dra. Márcia de Alencar, coordenadora-geral do DEPEN, que asseverou que as
penas alternativas são um progresso para o sistema brasileiro. Ela diz, na reportagem da Agência Brasil em 28.04.2008, que:
“a ampliação das penas alternativas tornou o sistema penitenciário brasileiro mais equilibrado. Hoje temos um sistema que
garante uma resposta penal do Estado proporcional e razoável em função da infração cometida. Uma pessoa que furta uma
galinha não é uma pessoa que tem talento criminal de um traficante. O Estado não pode responder da mesma forma e a
sociedade tem que compreender isso”.
Dessa forma, a prisão fica relegada somente às pessoas perigosas. Aplicar as penas alternativas é a única forma de
minimizar o drama da prisão, e temos que levar em consideração a superpopulação carcerária, que é caótica.
Por outro lado, as conclusões da “Análise e diagnóstico das Penas Alternativas no Brasil”, feitas pelo ilustre Juiz de
Direito do Tribunal de Minas Gerais, Dr. Herbert José Almeida Carneiro, que elenca as seguintes opiniões definitivas: “a
criação de uma cultura de penas alternativas; a necessidade de integração das Centrais e Varas especializadas em
acompanhamento e execução das penas alternativas e a necessidade de engajamento de toda a sociedade na aplicação das
penas alternativas.”(s/d)
É sabido que vivemos no Brasil, a nossa realidade carcerária é caótica, desorganizada, onde se gasta muito com o
sistema penitenciário, e os resultados colhidos são considerados infrutíferos. Seria melhor se pudéssemos vislumbrar um
cenário onde as autoridades brasileiras, ao invés de se ocuparem com as penas e medidas alternativas, pudessem investir nos
direitos sociais, garantidos pelo artigo 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida como nossa Carta
Cidadã, promulgada em 1988, com vinte anos de existência e que reza:
Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Assim, se as autoridades investissem nos setores primários da sociedade, garantindo o direito à vida, entendida vida
com dignidade, com acesso à educação, à saúde, ao trabalho honrado e decente, na melhor distribuição de renda, considerada
responsável por esse tipo de criminalidade que presenciamos no Brasil, se o artigo supramencionado estivesse sendo
cumprido, acreditamos que a criminalidade no Brasil não seria tão expressiva.
O Ministro de Estado da Justiça do Brasil, Nelson Jobim, em 18.12.1996, assegurou: “Mas, se infelizmente não
temos, ainda, condições de suprimir por inteiro a pena privativa de liberdade, caminhamos a passos cada vez mais largos para
o entendimento de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu
isolamento do meio social. Para os crimes de menor gravidade, a melhor solução consiste em impor restrições aos direitos do
condenado, mas sem retirá-lo do convívio social. Sua conduta criminosa não ficará impune, cumprindo, assim, os desígnios
de prevenção social especial e de prevenção geral”.(Lima, 2002)
Na presente comunicação, pudemos perceber que as penas e medidas alternativas, se forem aplicadas, bem
monitoradas e fiscalizadas pela Comissão Nacional de Penas Alternativas – Conapa, que é o órgão responsável pelo
monitoramento e fiscalização de penas alternativas, no Brasil, é um avanço, na medida em que é mais útil à sociedade que o
encarceramento do infrator. Pudemos perceber na pesquisa apresentada pelo Juiz Dr. Herbert as declarações daqueles que
vivenciaram o cumprimento de pena alternativa, que volto a apontar: “Dentre os beneficiários, 75% deles relatam que
tiveram mudanças positivas na vida, através do cumprimento da pena, apontando a auto-estima melhorada, o
amadurecimento, e a possibilidade de ajudar o próximo”(s/d). Tendo sido resgatados valores e casos de recuperação integral
do infrator, quando o Estado-Juiz, lhe dá um voto de confiança, podemos dizer uma segunda chance.
Finalizando, quando abordamos a temática sobre pena e medidas alternativas – PMA, estamos diante de um novo
paradigma em face do direito penal, na verdade estamos vendo surgir uma nova forma de justiça penal. Não podemos
esquecer que as penas restritivas de direito, conhecidas como penas alternativas, estão destinadas às pessoas que não
representam nenhum perigo para a sociedade, seja pela infração de menor potencial cometida, seja pelos seus antecedentes
criminais ou pela sua conduta social e o estudo da sua personalidade. O objetivo da intervenção da Justiça Criminal é
prevenir o crime e promover a segregação punitiva daquele que cometeu delito, papel do Estado. Sabemos que aquele que
não se portou bem na sociedade, delinquindo, terá que pagar pelo seu ato para que haja equilíbrio na sociedade. É necessário
reconhecer a importância da aplicação da pena e medida alternativa e consequente inserção desta pessoa na sociedade, tendo
inclusive de fazer a reparação à vítima pelo dano causado à mesma.
A aplicação da pena e medida alternativa representa um avanço, pois é considerada, como vimos, um dos meios
mais eficazes de prevenir a reincidência criminal, devido ao seu caráter eminentemente educativo e, em contrapartida,
socialmente eficaz. Desta feita, se o infrator cumprir a pena determinada em sentença criminal em liberdade, sob
monitoramento do Estado e observado pela comunidade, acreditamos que isto possibilitará a sua reintegração à sociedade.
Terminamos esta comunicação citando uma grande escritora brasileira, Cecília Meireles, que exemplarmente nos
ensinou:
“Liberdade – é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não
entenda.”

801
Referências Bibliográficas
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BITENCOURT, Mauro Rogério, Reintegração Social e Penas Alternativas, Protocolo disponível em:
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Brasil, Protocolo disponível em: http://www.redesol.org.br/trabalhosap/Herbert-MGPenasAlternativas-SaoLuis.ppt [Data de
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LEITE, Gisele (2007), Vigiar para punir, Protocolo disponível em:
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LIMA, Flávio Augusto Fontes de (2002), Penas e Medias Alternativa: Avanço ou Retrocesso?, Protocolo disponível em:
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Soalheiro, Marco António (2008).Condenados a penas alternativas reincidem menos no crime, diz coordenadora, Agência
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http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/04/28/materia.2008-04-28.0997832125/view [Data de acesso: 4 de Outubro de
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Carranca, Adriana (2008). Pela 1ª vez, penas alternativas superam prisões no País, Jornal Estadão: Caderno Cidades.
Protocolo disponível em: http://www.estadao.com.br/geral/not_ger211167,0.htm [Dra de acesso: 4 de Outubro de 2008]

Apoio familiar aos adolescentes egressos do sistema sócio-educativo da região de


Ponta Grossa – Paraná – Brasil
Dirceia Moreira
Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Cleide Lavoratti
Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Alides Baptista Chimin Junior


Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Elisa Stroberg Schultz


Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Fabiani Ramos Bach


Universidade Estadual de Ponta Grossa
[email protected]

Resumo: O presente artigo apresenta a experiência desenvolvida pelo Projeto de Extensão Universitária: Apoio familiar aos adolescentes
egressos do sistema sócio-educativo da região de Ponta Grossa, Paraná - Brasil, que integra o Programa Universidade Sem Fronteiras da
Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/SETI. Tem por objetivos principais promover a inclusão social dos
adolescentes egressos, através da mobilização dos gestores das políticas públicas e da sociedade, a fim de que sejam proporcionadas
condições para a acolhida e manutenção destes jovens no convívio familiar e comunitário. Também visa contribuir com o resgate e
fortalecimento dos vínculos familiares a partir de um trabalho interdisciplinar e intersetorial que prima pelo atendimento em rede, por uma
metodologia que, além do atendimento direto a adolescentes e suas famílias, desenvolve um sistema de informação que identifica as políticas
sociais municipais e os fatores de risco às condutas infracionais de adolescentes.
Palavras-chave: adolescentes egressos. famílias. políticas públicas.

802
Introdução
O Brasil possui no sistema sócio-educativo uma população juvenil de 39.578 adolescentes em conflito com a lei,
representando 0,2% do total de adolescentes brasileiros na idade de 12 a 18 anos (SINASE, 2006).
Esta estatística desmistifica a idéia diariamente repassada pela mídia em termos de dimensão da violência praticada
por jovens na sociedade brasileira, onde observamos que apenas 10% dos delitos são cometidos por adolescentes e destes
60% ocorrem sem grave ameaça as vítimas, ou seja, na sua maioria são infrações como os furtos que atentam contra ao
patrimônio e não contra a vida humana. No entanto, as infrações mais graves, embora raras, recebem um destaque tão
exagerado nos meios de comunicação que criam à impressão, no imaginário coletivo, de que a maior parte dos crimes
violentos é cometida por adolescentes. (ANDI, 2001)
No Paraná, até 2005, a realidade do sistema sócio-educativo demonstrava uma série de fragilidades expressas por
situações como: adolescentes em cadeias e delegacias; superlotação das unidades sócio-educativas; contratação temporária;
vínculo precário e qualificação insuficiente dos profissionais; ação educativa limitada e programação restrita em termos de
quantidade, diversidade e qualidade nas unidades de internação e semi-liberdade. (IASP, 2005)
Com a aprovação do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo/SINASE em 2006, que fornece os
parâmetros para a Política Nacional de Atenção ao Adolescente em Conflito com a Lei, estados e municípios passam a
realizar um reordenamento nos programas de execução de medidas sócio-educativas, visando organizar e articular a rede de
serviços com base nos princípios dos direitos humanos expressos nas legislações nacionais e internacionais que tratam da
temática.1 O Sistema Nacional enfatiza ainda a necessidade de municipalização do atendimento ao adolescente em conflito
com a lei “com vistas a fortalecer o contato e o protagonismo da comunidade e da família dos adolescentes atendidos.”
(SINASE, 2006, p.29)
Este artigo busca a partir do marco legal que norteia as ações direcionadas a adolescentes em conflito com a lei,
apresentar a experiência de um Projeto de Extensão, aprovado em 2007 pelo Programa Universidade Sem Fronteiras da
Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior/SETI que trabalha com adolescentes egressos do sistema
sócio-educativo da região de Ponta Grossa no estado do Paraná - Brasil e suas famílias.

Figura 01 – Localização e abrangência das ações do Projeto de Extensão Universitária: Apoio familiar aos adolescentes egressos do sistema sócio-educativo da
região de Ponta Grossa, Paraná – Brasil

1
O SINASE tem seus princípios orientados em âmbito nacional pela: Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente e internacional na Convenção
da ONU sobre os Direitos da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça Juvenil, as Regras de Beijing e Regras Mínimas das
Nações Unidas para a proteção dos Jovens Privados de Liberdade. (SINASE, 2006, p. 25)

803
Consta neste trabalho a fundamentação teórico-metodológica que tem norteado o Projeto, e a metodologia
construída de forma interdisciplinar para o atendimento aos adolescentes e as suas famílias. Também serão apresentados os
resultados parciais tanto do atendimento direto aos adolescentes e seus familiares, como da construção de um sistema de
informação que tem orientado as ações do Projeto de Extensão e buscará subsidiar as políticas de atenção ao adolescente em
conflito com a Lei na região de Ponta Grossa/Paraná - Brasil.

Contextualização do Projeto de Extensão no Município de Ponta Grossa/ Pr.


O município de Ponta Grossa – PR, até o ano de 2007, não contava com acompanhamento efetivo e sistemático dos
adolescentes desligados das unidades sócio-educativas, conforme preconiza o SINASE (2006), o que dificultava que os
egressos pudessem se inserir novamente em suas famílias e comunidades.
Por outro lado, o município de Ponta Grossa integra o novo Sistema Estadual de Atenção ao Adolescente em
Conflito com a Lei e centraliza o atendimento regional a esta demanda, conforme podemos observar no cartograma expresso
na figura 02.

Figura 02 - Unidades de privação e restrição de liberdade a adolescentes em conflito com a lei no Estado do Paraná – 2007

Semiliberdade
Internação provisória
Internação
Internação e internação
provisória

Fonte: IASP (2007)

A proposta de um Projeto de Extensão que acompanhasse os adolescentes egressos se deu pela necessidade de se
construir uma metodologia de trabalho que pudesse tanto atender os adolescentes egressos do sistema sócio-educativo e suas
famílias na sua reinserção social, como produzir dados estatísticos e sistema de informação sobre os fatores de risco às
condutas infracionais e as redes de apoio dos adolescentes e de suas famílias para subsidiar a formulação das políticas
públicas nesta área.
O projeto partiu de um estudo com as equipes técnicas das entidades de internação, internação provisória e de
medidas em meio aberto (Prestação de Serviços a Comunidade e Liberdade Assistida) no município de Ponta Grossa,
considerando as dificuldades no atendimento aos adolescentes e os índices de reincidência nas unidades.
De acordo com os dados colhidos através dos relatórios estatísticos do 1° semestre de 2007, nas unidades de
internação e internação provisória, foram atendidos 65 adolescentes no semestre, sendo que 23 eram reincidentes na mesma
unidade, correspondendo a um percentual de 35%. Destes, somente 3 não residiam em Ponta Grossa. Já o Programa
Municipal de Medidas Sócio-Educativas em Meio Aberto – PEMSE atendeu neste mesmo período 228 adolescentes em
medidas de Prestação de Serviços a Comunidade e Liberdade Assistida, onde o índice de reincidência foi de 30%.
Grande parcela dos adolescentes desligados dos programas de internação, de semiliberdade ou de medidas em meio
aberto, encontra-se em situação vulnerabilidade social, caracterizada por situações de risco como: “graves conflitos
familiares; desqualificação para o trabalho; precariedade habitacional; dependência de substância psicoativa (álcool ou
drogas); envolvimento no tráfico de drogas; inexistência de referência familiar; vinculação com a rua e grupos que expõem
estes adolescentes a vulnerabilidade; risco ou ameaça de morte.” (IASP, 2005, p.05)
A existência de um ou mais indicadores de risco supõe a necessidade de atenção especial ao adolescente, que deve
ser ofertada através de ações efetivas da rede de apoio, com abordagens diferenciadas para cada situação.

804
A proposta de estruturação de uma rede social visa o enfrentamento das situações de vulnerabilidade que colocam
os adolescentes egressos do sistema sócio-educativo em permanente risco, tais como: exclusão do sistema educacional, saúde
comprometida pelos agravos do abuso de álcool e drogas, desqualificação para o trabalho, condições precárias de moradia,
ambiente familiar marcado pela violência, desemprego e miséria, proximidade da criminalidade, dentre outros aspectos.
A fim de garantir os direitos sociais a esses adolescentes e suas famílias, torna-se necessária à integração das
políticas setoriais: saúde, educação, trabalho, habitação, cultura e esporte. Historicamente estas áreas de atenção básica
encontram-se desarticuladas, com ações fragmentadas e paralelismos, o que dificulta o atendimento às demandas dos seus
usuários. Assim, através do incentivo à construção da rede social, o Projeto de Extensão busca favorecer o atendimento
integral às necessidades dos adolescentes egressos do sistema sócio-educativo e de suas famílias.
Dessa forma o Projeto de Extensão: Apoio familiar aos adolescentes egressos do sistema sócio-educativo da região
de Ponta Grossa – PR tem por objetivos gerais: promover a inclusão social dos adolescentes egressos do sistema sócio-
educativo, através da mobilização dos gestores das políticas básicas e da sociedade, a fim de que sejam proporcionadas
condições para a acolhida e manutenção destes adolescentes no convívio familiar e comunitário. Também visa contribuir com
o resgate e fortalecimento das relações/vínculos familiares, visando aumentar as possibilidades do retorno do adolescente ao
convívio familiar e comunitário.
Como objetivos específicos o Projeto se propõe a:

 Atender as necessidades familiares através do encaminhamento para programas, serviços públicos ou comunitários,
oportunizando o acesso do adolescente e sua família às políticas sociais básicas: saúde, educação, trabalho,
habitação, esporte e cultura;
 Contribuir para a elevação da auto-estima dos membros familiares e reforçar afetos positivos através de oficinas de
vivências e criação de grupos de reflexão sobre os conflitos familiares;
 Possibilitar que a família reflita sobre seu papel social, tornando-se referência afetiva, protetiva e educativa para os
adolescentes;
 Identificar os determinantes do ato infracional e os bairros onde ocorrem os maiores índices de infrações para a
realização de trabalhos comunitários, subsidiando a elaboração e avaliação das políticas públicas de atenção ao
adolescente egresso do sistema de medidas sócio-educativas e sua família. (AFAESS/PG, 2007, p.03)

Fundamentos teórico-metodológicos:
O projeto emprega uma metodologia de trabalho em rede, tendo em vista a necessidade de articular as diferentes
iniciativas governamentais e não-governamentais que buscam atender as necessidades de famílias vulnerabilizadas/risco
social. Dessa forma, além de incentivar um trabalho com as famílias no espaço institucional de atenção ao adolescente em
conflito com a lei (através de grupos de reflexão, dinâmicas de grupos e vivências) os profissionais e acadêmicos envolvidos
também realizam encaminhamentos das famílias dos adolescentes egressos, para outras instituições que atendam as
necessidades que não podem ser sanadas nas medidas privativas de liberdade e meio aberto.
Somente a partir desta perspectiva de trabalho intersetorial (entre as diferentes secretarias municipais e estaduais)
e em rede (que agregue entidades públicas, particulares e comunitárias) é que se pode atender integralmente as demandas
sociais trazidas pela maioria das famílias dos adolescentes egressos do sistema de medidas sócio-educativas, reforçando
vínculos e o direito à convivência familiar e comunitária, conforme preconiza o artigo 19 do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Com o objetivo de promover um alinhamento conceitual da equipe do Projeto para o trabalho com família e com os
adolescentes, inicialmente foi realizada uma capacitação buscando subsidiar as ações desenvolvidas de forma técnica e
qualificada. Num segundo momento buscou-se o levantamento e mapeamento da rede apoio aos adolescentes e suas
famílias, prosseguindo com a identificação de fatores de risco. Para tanto, este projeto coordenado pelo Curso de Serviço
Social da Universidade Estadual de Ponta Grossa se articulou com o Grupo de Estudos Territoriais - GETE do Departamento
de Geociências para identificar estas redes.
Como a proposta metodológica tem no trabalho interdisciplinar um dos seus pilares principais, tendo em vista a
complexidade da questão objeto de intervenção do projeto, também foram inseridas as áreas de Direito, Educação,
Psicologia, Pedagogia, Informática e Educação Física as quais desenvolvem suas atividades através de subprojetos que
respeitam a especificidade de cada profissão, mas que convergem no atendimento aos objetivos e finalidades propostos no
Projeto. As diversas ações realizadas pelos profissionais estão articuladas em dois eixos operacionais: Atendimento direto aos
adolescentes e suas famílias e Sistema de Informação que contempla as políticas sociais municipais e os fatores de riscos às
condutas infracionais.

Atendimento aos adolescentes egressos do sistema sócio-educativo e suas famílias


Os critérios de seleção dos adolescentes para o Projeto foram definidos em conjunto com as equipes técnicas que
compõem o Sistema sócio-educativo da região de Ponta Grossa - Semi-liberdade e Centro de Sócio-Educação/ CENSE.

805
Também participou deste processo o Programa PEMSE (Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas do município
de Ponta Grossa).
Como o Projeto tem como meta o atendimento de 20 adolescentes e suas famílias, as equipes técnicas das entidades
de atendimento indicaram os adolescentes que mais necessitariam de um acompanhamento sistemático, continuo e técnico.
Desde que se iniciaram as atividades de seleção dos adolescentes até o presente momento, foram convidados a
participar do Projeto um total de 32 adolescentes, onde 4 foram indicados pelo CENSE, 5 pela Semi-liberdade e 23 pelo
PEMSE.
O trabalho com o adolescente egresso da medida sócio-educativa parte do pressuposto de que o sujeito atendido
deve aderir às ações de forma espontânea, pois é através dessa livre adesão que se pode intervir nos determinantes que
influenciam a prática do ato infracional, como o rompimento com os laços afetivos familiares e com a própria comunidade.
Do total de 32 adolescentes convidados para o Projeto, 23 eram do sexo masculino e 9 do sexo feminino,
predominando a presença de adolescentes do sexo masculino, tanto no atendimento como no cometimento do ato infracional.
Somente 12 adolescentes aderiram às atividades, sendo que, atualmente, encontram-se em atendimento sócio-jurídico 08
adolescentes, em função de que muitos se evadiram das unidades em que estão inseridos, não cumpriram a medida até o final,
não aderiram ao Projeto ou reincidiram em atos infracionais.
Embora o trabalho tenha seu foco no atendimento ao adolescente egresso das medidas sócio-educativas, para se
estabelecer um vínculo entre o profissional e o sujeito, pautado na confiança, segurança e respeito, optou-se por iniciar o
trabalho com alguns adolescentes em processo de desligamento da unidade em que estavam inseridos, mas, ainda, em
cumprimento de medidas.
Em relação aos adolescentes que estão em atendimento podemos identificar o seguinte perfil2:

 11 adolescentes são do sexo masculino e 1 é do sexo feminino;


 Sobre o ato infracional cometido o que predomina é o furto com 67% dos casos que geralmente ocorre para a
aquisição de drogas, 17% de agressão, 8% de porte de arma e em igual percentual tentativa de estupro (8%);
 100% são de famílias que apresentam fragilidades no relacionamento afetivo para com esse adolescente;
 80% destes adolescentes relatam ter no seu meio familiar, indivíduos que já cometeram crimes ou atos infracionais
e que estão ou já estiveram em cumprimento de medida sócio-educativa como também em cumprimento de pena no
sistema prisional;
 é relevante o número de adolescentes que fazem uso abusivo de drogas, sendo que 75% relatam tal envolvimento,
predominando o uso de crack e maconha. Durante os atendimentos evidenciou-se a enorme dependência dos
adolescentes pelo crack, a qual se torna o grande motivador do cometimento de atos infracionais.

Todos os adolescentes que passam por medidas sócio-educativas têm ou em algum momento tiveram problemas
que ocasionaram a situação vivenciada. As motivações que levaram ao cumprimento da medida são semelhantes, sendo as
principais a violência familiar, o abandono, a falta da figura paterna ou materna, a situação sócio-econômica, o uso de drogas
dentre outros.
Além do atendimento individual com o adolescente o qual é pactuado no Plano Personalizado de Atendimento –
PPA, a intervenção junto às famílias objetiva o acompanhamento e fortalecimento da mesma no restabelecimento dos
vínculos. As visitas são realizadas objetivando maior aproximação com a realidade vivenciada identificando questões sócio-
jurídicas para o acompanhamento e encaminhamentos necessários possibilitando a organização de um novo projeto de vida.

Estruturação geoespacial de informações das redes sociais institucionais na área urbana de Ponta Grossa.
Um dos eixos metodológicos do Projeto tem por objetivo a criação de instrumentos de organização de dados
geoespaciais sobre as instituições públicas e privadas de apoio e as condições concretas de vida dos adolescentes egressos e o
seu contexto familiar e social cotidiano, bem como o monitoramento das ações e resultados alcançados pela equipe envolvida
no projeto.
As informações sobre os recursos existentes, e que podem ser mobilizados pelos gestores públicos numa
determinada ação social, nem sempre estão claras e acessíveis aos gestores de projetos de inclusão de grupos sociais
vulneráveis, dificultando a tomada de decisões e o desenvolvimento de ações integradas. Além disso, é importante enfatizar
que as próprias instituições públicas utilizam-se de ações personalistas na organização e detenção de dados cruciais para a
efetivação de ações na gestão pública.
Tendo em vista estas dificuldades, busca-se a criação de uma estrutura organizacional de trabalho que supere a
perspectiva de análise setorizada de áreas disciplinares. Uma vez criada a base de dados e devidamente alimentada, mesmo
com a mudança da equipe, por exemplo, será possível dar continuidade às ações pretendidas.

2
Todas as informações contidas neste perfil dos adolescentes foram coletadas através de relatos orais com os adolescentes e os profissionais das entidades de
atendimento sócio-educativo de Ponta Grossa/PR.

806
Sabe-se que há uma perda de legitimidade social em relação às ações de planejamento e gestão do Estado,
conforme discute Souza (2002) afetando com maior intensidade os grupos sociais de menor renda e mais dependentes das
ações públicas. Em Ponta Grossa/PR, como pode ser observado no cartograma da figura 3, há uma coincidência das áreas
com precariedade de infra-estrutura que se soma à baixa escolarização formal da população residente. Este é o contexto de
existência das famílias da maior parte dos adolescentes que integram o sistema de sócio-educação e que deverão constituir-se
em destino dos adolescentes após a sua saída das instituições educacionais.

Figura 03 - Relação entre chefes de família analfabetos e domicílio sem ligação a rede geral de esgoto - Ponta Grossa/PR

Constata-se, portanto, a inserção do adolescente egresso num contexto de carências e precariedades de várias
ordens. Desde uma habitação com pouco espaço para acolhê-lo, até áreas de moradia dominadas por grupos do crime
organizado em torno do tráfico de drogas que realizam pressão junto aos adolescentes para fazerem parte de sua rede
criminosa. Assim, para o Projeto a análise do espaço na composição da re-inserção dos adolescentes egressos do sistema de
sócio-educação é fundamental para luta por melhoria das condições de vida dos adolescentes e de suas famílias. Segundo o
geógrafo Lacoste (1972), é imprescindível o conhecimento sobre o espaço para nele melhor combater e assim melhor
planejar e gestionar.
Num primeiro momento a equipe de trabalho tem procurado levantar as potencialidades existentes de instituições
que podem ser acionadas na proteção e cuidado do adolescente egresso e sua família, como as escolas próximas, os postos de
saúde, as áreas de atuação das Unidades de Saúde da Família, ONGs e Igrejas. Um cadastramento básico, por exemplo, reúne
informações iniciais a serem utilizadas no processo de trabalho e se constitui como ferramenta importante para o
planejamento e gestão.
Para realização do cadastramento institucional, foi criada uma base de dados georeferenciada para identificar os
serviços públicos a serem acionados para instituir a rede de apoio aos adolescentes e suas famílias. Para isso foi estruturado
um cadastramento institucional urbano subdividido em três momentos. Primeiramente, foi realizado um levantamento
indireto, com a identificação das instituições no município através da consulta do sistema SOS102, no qual se encontrou
nomes de grande parte das escolas (130 das 170 existentes) e postos de saúde. Com o auxílio do GoogleEarth® pode-se
localizar algumas destas instituições, porem este processo apresentou alguns problemas como à localização errada das
instituições ou a impossibilidade de sua localização, já que não estava cadastrada no referido sistema.
Num segundo momento, um levantamento semi-direto de dados se realiza, consistindo em contato com instituições
públicas (prefeitura, núcleo regional de educação, etc.), onde foi solicitada a relação de todas as entidades mantidas pela
instituição com seus respectivos endereços e telefone para contato.

807
O terceiro, e último momento refere-se ao levantamento in loco, fazendo uso de equipamentos GPS (Global System
Position – Sistema de Posicionamento Global) e veículo para deslocamento, sendo dividida a área urbana em setores como
mostra o cartograma expresso na figura 3. Cada setor consiste no agrupamento de várias vilas que possuem acessibilidade em
comum. Deste modo, são feitos levantamentos com aplicação de questionários em todas as instituições dos referidos setores.
Aquelas instituições que não haviam sido localizadas pelos processos anteriores passam a ser se utilizado do GPS para retirar
coordenadas UTM in loco.

Figura 04 - Divisão setorial por vilas para cadastramento institucional Ponta Grossa – PR.

A organização desta etapa do trabalho se deu a partir do “Guia para Cadastro Institucional de Ponta Grossa/PR”,
disponível no endereço eletrônico http://www.territoriolivre.net. Com este levantamento, a configuração espacial da rede de
apoio estará concluída. Vale lembrar que nenhum dos processos descritos acima é executado isoladamente, necessitando
sempre de uma sobreposição (Indireto com Semi-Direto e vice-versa).
Todas as informações constituem um Sistema de Informações Geográficas (SIG), cujos resultados são enviados
para um sistema criado na internet chamado GETE-WebMap (http://www.territoriolivre.net). Este sistema permite que todos,
através da internet, tenham acesso à rede de apoio institucional de forma interativa3. Para a operação do GETE-WebMap, foi
produzido um manual que se encontra disponível no mesmo endereço eletrônico.
Com estas informações estruturadas é possível identificar na área de moradia (respectivo setor) do adolescente, as
instituições e os serviços que podem ser mobilizados na constituição de sua rede de apoio, otimizando seu processo de
reinserção social.
Contribuir para a inserção dos adolescentes em suas famílias e destas em grupos comunitários e políticas públicas
intersetoriais que reforcem as relações de reciprocidade e vínculos interpessoais, constitui-se num dos objetivos do Projeto de
Extensão. Os adolescentes egressos das medidas sócio-educativas demandam serviços que exigem um reordenamento da
esfera pública no sentido de prover suas necessidades básicas.
Assim, a atuação em rede, prevista no Projeto, pode possibilitar a inclusão destes sujeitos em outros espaços
públicos e privados que melhorem significativamente suas condições de vida através da criação de vínculos relacionais
afirmativos. Vínculos estes que são essenciais para a construção de um novo Projeto de Vida.

3
Este trabalho foi realizado utilizando-se de softwares livres, não possuindo qualquer restrição com relação ao uso ou modificação dos softwares. Percebendo a
importância de liberar informações para o uso da sociedade, também registramos todo mapeamento na licença Creative Commons.
(http://creativecommons.org/licenses/by/2.5/br)

808
Considerações finais
Os Projetos de Extensão Universitária enquanto articuladores da relação teoria-prática tão desejada pelos
educadores não trazem benefícios apenas para os sujeitos e comunidades envolvidas. As atividades desenvolvidas por
acadêmicos, docentes e profissionais vem proporcionando aos sujeitos de diferentes áreas o desenvolvimento de habilidades
sociais tais como a iniciativa, a tolerância, a coragem de enfrentar o novo, a criatividade e o dinamismo tão necessário aos
profissionais na atualidade, realizando um processo de realimentação da formação profissional de alunos de graduação e pós-
graduação fortalecendo a interdisciplinaridade e instigando a produção de pesquisas na área.
É necessário enfatizar que a Extensão exige dos envolvidos um esforço no repensar das práticas educativas dentro e
fora das salas de aula, e dos posicionamentos éticos quer seja com alunos, mulheres, crianças ou jovens.
Este repensar obriga a desafiar o medo de romper, muitas vezes com as certezas pregadas pelo rigor da Ciência e
exige uma abertura para o novo, para o senso comum, para a experiência cotidiana, para os saberes que a todo o momento
estão sendo produzidos fora dos muros da Universidade e que também são saberes necessários ao desenrolar da vida humana.
Trabalhar com Extensão requer então a compreensão do outro como sujeito, que possui vontades e perspectivas que
diferem muitas vezes daquelas dos agentes extensionistas, e que para o desenvolver do trabalho impõe a prática do diálogo,
da cooperação, da parceria e do apreender com o outro.
Enfim, trabalhar com Extensão nos faz refletir primeiramente o próprio significado do termo e a ideologia
desenvolvimentista imbutida no mesmo: estender o quê e a quem ? Se da prática é que deve emanar toda pesquisa social,
como, enclausurados em nossas Universidade queremos saber o que é mais necessário e importante para atender as
necessidades dos sujeitos sociais?
Quem sabe a própria prática da Extensão, sem se pretender “Extensão de algo a alguém” possa ser o caminho para
responder estes questionamentos e para aproximar mais a Universidade da sociedade civil e de suas demandas sociais.

Referências:
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sócio-educativo da região de Ponta Grossa – PR./ AFAESS/PG. Ponta Grossa:UEPG.

Representações sociais do fenómeno das drogas nos meios de comunicação de


massa1
Jeane Oliveira
Universidade Federal da Bahia, Escola de Enfermagem.
[email protected]

Márcia Sousa
Universidade Federal da Bahia

Resumo: O fenômeno das drogas constitui um problema globalizado com repercussões sociais e de saúde distintas. Os meios de
comunicação e opinião pública constituem uma importante fonte para o estudo das representações sociais, as quais são ferramentas
importantes para desvelar desigualdades e estereótipos. Objetivando apreender as Representações Sociais acerca do fenômeno das drogas em
reportagens divulgadas na imprensa escrita, propomos um estudo descritivo, de caráter qualitativo, a ser desenvolvido no período de
junho/2008 a maio/2009. Para tanto tomamos como lócus de investigação um jornal de grande circulação na cidade de Salvador – BA, no
qual será feita a identificação e seleção de reportagens que abordem o consumo, comércio e produção das drogas. O conteúdo de todas as
reportagens identificadas será analisado pela técnica de análise de conteúdo, tendo como categorias nativas: drogas, tráfico, traficante,
violência, pessoa usuária de drogas, saúde. Espera-se que os dados produzidos contribuam para possíveis mudanças na assistência
direcionada para pessoas usuárias de drogas e para novos trabalhos sobre a temática.

1
Trata-se de um projeto de pesquisa em andamento, desenvolvido com recursos próprios.

809
1 INTRODUÇÃO
Os processos sociais e culturais que acometem a vida dos seres humanos, de forma direta ou indireta, têm
ocasionado repercussões diversas para saúde. Tais processos estabelecem situações caracterizadas por desigualdades,
inclusive, desigualdade de gênero. Através dos meios de comunicação de massa, tanto aqueles que têm alcance geral quanto
aqueles voltados a categorias sociais específicas ou os de divulgação cientifica, valores, conhecimentos, crenças e modelos de
conduta são transmitidos desempenhando papel fundamental na conformação da visão da realidade (PAVARINO, 2003).
Desta forma a mídia constitui um importante instrumento de valorização das diferentes manifestações sociais, culturais, de
gênero ou de classes, contribuído assim para reprodução de estereótipos e preconceitos (SOUZA, 2006).
Ao longo da história, a opinião pública deixa de ser difundida pelo encontro direto entre pessoas ou grupos e a
mídia de massa se torna o mediador e divulgador de idéias sobre determinados acontecimentos, práticas e atitudes. A
urbanização e modernização das sociedades contribuíram para tal mudança. Na contemporaneidade é amplo o alcance e
poder de influência, sendo atribuído aos mesmos uma dimensão simbólica capaz de (re)elaborar a vida social, reorganizar os
meios de produção e transmissão da informação e de seu conteúdo simbólico. Os meios de comunicação de massa são
pensados e produzidos a partir de jogos de interesses e de poder de uma determinada parcela da sociedade ávida pela
manutenção da hegemonia econômica, da política, da coerção (THOMPSON, 1995).
Mensagens veiculadas pela mídia podem facilitar a produção de crenças sobre as substâncias psicoativas, reforçar
e\ou (re)criar representações elaboradas no grupo familiar, na escola e entre amigos. Este processo, se por um lado confirma a
dinâmica das representações sociais, por outro mostra o poder da mídia no fortalecimento e difusão de ideologias específicas
com grande poder de alcance (THOMPSON, 1995) e, portanto, com poder de reprodução de estereótipos, preconceitos,
crenças que geram desigualdades e exclusão social. Desta forma, os meios de comunicação e opinião pública constituem uma
importante fonte para o estudo das representações sociais, as quais são ferramentas importantes para desvelar desigualdades e
estereótipos.
Segundo RONZANI et al (2008) há uma incompatibilidade entre o enfoque dado pela mídia e o perfil de consumo
de drogas no Brasil que pode influenciar tanto as crenças sobre determinadas substâncias, quanto políticas públicas
direcionadas para tal problemática, no país. A droga, por muitas vezes, perpassou o sagrado e o profano, a legalidade e a
proibição suscitando, na contemporaneidade, discussões de várias ordens, principalmente, em torno de sua mercantilização e
consumo. O uso e/ou abuso de substâncias psicoativas vem ocasionando repercussões sociais e de saúde distintas para as
diversas sociedades, sendo considerado, atualmente, como um problema de saúde pública de ordem mundial.
De acordo com dados apresentados no Relatório Mundial sobre drogas (UNITED NATIONS PUBLICATION,
2007) a proporção de usuários de drogas entre a população de 15 a 64 anos permanece estável em todo o mundo, desde 2004.
Aproximadamente 208 milhões de pessoas, ou 4,9% da população entre 15 a 64 anos, usaram drogas pelo menos uma vez
nos últimos 12 meses. O chamado “uso problemático” (dependência química) permanece entre aproximadamente 0,6% da
população mundial.
No Brasil, em 2001, o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) realizou o I
Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrópicas, envolvendo 41,3% da população total do país, o equivalente a
47.045 907 habitantes das 107 maiores cidades do Brasil. Os dados apresentados assinalam que 50% da população estudada,
com mais de 35 anos de idade, fez uso na vida de tabaco e 68,7% do álcool (CARLINI et al., 2002). Com relação às drogas
ilícitas, houve destaque para o uso da maconha (6,9%), seguida dos solventes (5,8%) e orexígenos (4,3%) (GUALDURÓZ et
al.,2005).
Mundialmente, a taxa do uso na vida, de drogas ilícitas, ainda se mantém mais elevada entre os homens, porém
com tendências a igualdade entre homens e mulheres (UNITED NATIONS PUBLICATION, 2007; CARLINI et al., 2002).
A diminuição da proporção no uso de drogas entre os sexos, de um modo geral, e a predominância do uso de medicamentos -
mais especificamente benzodiazepínicos, estimulantes e anfetaminas - pela população feminina é também uma constatação
de ordem mundial (CARLINI et al., 2002; GORDON, 2002; MEDINA; SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2002; ZILBERMAN,
2003; WRIGHT, 2004).
Os problemas de saúde decorrentes do consumo de drogas por mulheres, além de incidirem diretamente nos seus
corpos, afetam também o feto, quando essas engravidam. Alterações no ciclo menstrual, na fertilidade, na gestação, no parto,
no risco de contrair e de desenvolver doenças sexualmente transmissíveis são frequentemente registradas entre mulheres que
consomem drogas (HOCHGRAF; BRASILIANO, 2004). Co-morbidades, como transtornos depressivos e de ansiedade,
apresentam-se com mais frequência entre mulheres, enquanto os homens tendem a desenvolver co-morbidades como
transtornos de personalidade (BECKER; DUFFY, 2002).
Socialmente, o consumo de drogas por mulheres, pelo menos daquelas consideradas ilegais, está em desacordo com
os papéis sociais e culturais destinados para as mesmas, quais sejam: mãe, esposa e cuidadora da família (ROMO, 2006).
Nessa perspectiva, a mulher que adota o consumo de drogas tende a ocultar tal conduta, tornando-se vulnerável a vários
agravos sociais e de saúde, dentre eles, a infecção pelo HIV (OLIVEIRA, 2001). Ademais, para mulher, a parceria com
homens usuários de drogas também constitui importante fator de vulnerabilidade pessoal e social, sobretudo pelo
estabelecimento de construções socioculturais que determinam a identidade masculina e feminina e, por conseguinte, as
relações entre pessoas de diferentes sexos.

810
Embora a heterogeneidade social e cultural dos usuários de drogas dos usuários de drogas seja consenso na
literatura (HOCHGRAF; ZILBERMAN; BRASILIANO, 1999; NIDA, 2002), ainda há uma “tendência à homogeneização,
como se todos os usuários pertencessem a uma mesma categoria social e devessem ser vistos a partir de um mesmo enfoque”
(ESPINHEIRA, 2004, p.11). Nesse direcionamento, a incorporação de uma perspectiva de gênero em estudos científicos ou
na assistência possibilita o e certo ao ssionais de saúde. I, a outros(as) pesquisadores(as) iante do consumo de drogas.
reconhecimento do impacto das relações de poder sobre a saúde de distintos grupos sociais com redirecionamento e
priorização dos cuidados no cotidiano da unidade de saúde (BANDEIRA; VASCONCELOS, 2002; AQUINO et al., 2003;
SCHRAIBER, 2005).
O uso da perspectiva de gênero em estudo realizado em Salvador-Ba, com profissionais de saúde de uma unidade
assistencial de saúde especializada na assistência a pessoas usuárias de drogas, apontou três grupos específicos de mulheres
usuárias de drogas, para as quais não são há visibilidades dentro do serviço de saúde não sendo destinadas às mesmas ações
de saúde específicas (OLIVEIRA; PAIVA; VALENTE, 2006).
De acordo com Connel (1987), as expectativas estereotipadas que são mantidas por homens e internalizadas pelas
próprias mulheres influenciam fortemente na produção de desvantagens das mulheres em relação aos homens, sendo que a
persistência desses estereótipos se dá pela família, escola, mídia de massa, dentre outras agências de socialização. Diante de
tais considerações, o referido autor define gênero como:
“um fator social imerso numa realidade social permeada por estruturas históricas, econômicas, políticas, morais e
outras que estimulam e/ou limitam sua incorporação no cotidiano das distintas pessoas, nas mais diversas sociedades”
(p. 26).

Compreende-se, assim que a transversalidade e interação das questões de gênero com classe social, raça, diferenças
de geração e cultura determinam diferenças de vulnerabilidade para homens e mulheres e para grupos, conforme as categorias
sexuais (SAFIOTI, 1992).
Estudo realizado por Oliveira (2008) com profissionais em atuação numa unidade básica de saúde, em Salvador-Ba,
mostra que a imagem da pessoa usuária de drogas está centrada na figura do homem, jovem, negro, pobre, com baixo nível
de escolaridade e envolvido com atos de marginalidade. Os dados do referido estudo levam a afirmar que, de acordo com a
realidade vivenciada na comunidade, os profissionais reconhecem o envolvimento direto e indireto das mulheres com o
fenômeno das drogas e as repercussões de tais envolvimentos para a saúde das mesmas, porém não reconhecem entre a(o)s
usuária(o)s do serviços, mulheres que estejam envolvidas com tal problemática. Tais representações reproduzem estereótipos
e estigmas relacionados às mulheres e as drogas. Ademais, apontam para necessidade de novas investigações em relação à
temática.
A temática das drogas se constitui objeto de investigação entre pesquisadora(e)s da cidade de João Pessoa com
fundamentação na Teoria das Representações Sociais. Segundo Maciel, Moreira, Gontiés (2001, 2004), as representações
sociais de profissionais da área de saúde e da área jurídica mostram-se permeadas por estereótipos que contribuem para o
confinamento de usuários de drogas em hospitais e/ou presídios e, consequentemente para manutenção do problema. Estudo
realizado com estudantes universitários da Universidade Federal da Paraíba, concluintes de cursos das áreas de tecnologia,
saúde e jurídica apontam para influência da formação profissional nas representações sociais acerca das drogas, sendo
salientados pontos divergentes entre as representações dos distintos grupos de estudantes (GONTIÉS; ARAÚJO, 2003;
COUTINHO, ARAÚJO; GONTIÉS, 2004).
Nosso argumento é que o resultante descortinamento de valores, noções e práticas individuais que orientam as
condutas no cotidiano das relações sociais que se manifestam através de estereótipos, sentimentos, atitudes, palavras, frases e
expressões em torno do fenômeno das drogas permitirá a construção de uma assistência de saúde e uma sociedade mais
equânime.
Face a essa tela, esta pesquisa propõe-se a fazer uma articulação entre a Teoria das Representações Sociais
(Moscovici, 2003), como suporte teórico e, gênero, enquanto categoria de análise, para analisar o conteúdo de reportagens
veiculadas pela mídia acerca do fenômeno das drogas.

2 OBJETIVOS
GERAL:

 Analisar, numa perspectiva de gênero, o conteúdo de reportagens divulgadas pela impressa escrita de Salvador-Ba
acerca do fenômeno das drogas.

ESPECÍFICOS:

 Apreender a imagem objetivada da pessoa envolvida com drogas divulgada pela impressa escrita de Salvador-BA
 Caracterizar o perfil bio-demográfico da pessoa envolvida com drogas segundo conteúdo/imagens apresentados nas
reportagens selecionadas.
 Identificar o contexto, as drogas e o envolvimento da pessoa no conteúdo das reportagens selecionadas.

811
 Relacionar a imagem e características da pessoa envolvida com drogas com construções socioculturais da
identidade masculina e feminina.

3 METÓDO
A presente pesquisa tem como objeto o fenômeno das drogas na comunicação de massa, numa perspectiva
psicossociológica e de gênero. Trata-se de uma análise documental, de caráter qualitativo, que terá como fonte de
informações reportagens que aborde o fenômeno das drogas (produção, comercialização e consumo) publicadas em um jornal
de grande circulação, destinado ao público geral. É um jornal de circulação diária e local no município de Salvador-Ba.
Serão selecionadas reportagens publicadas durante o mês de setembro de 2008. A escolha do período de coleta de
dados foi definida de acordo com cronograma de desenvolvimento da pesquisa sendo determinado um tempo para estudo e
discussão com as participantes sobre o enfoque teórico, a comunicação de massa, o método e técnicas de produção e análise
dos dados. No final do mês de agosto será iniciada a coleta de dados como teste piloto.
As reportagens serão acessadas, diretamente, pela via impressa, mediante assinatura do jornal. A seleção das
reportagens será feita, inicialmente, numa leitura detalhada de todo conteúdo dos jornais, buscando identificar nos títulos os
seguintes termos: substâncias psicoativas, drogas, álcool, anabolizante(s), anfetamina(s), ansiolítico(s), barbitúrico(s),
cigarro/tabaco, cocaína, crack, ecstasy, heroína, maconha, morfina, ópio, sedativo(s), solvente(s), medicamento(s), e tráfico,
traficante, usuário(a) de drogas. A fase seguinte consiste em leituras de todas as reportagens selecionadas, sendo excluídas
aquelas cujo conteúdo não contemple o tema do estudo.
Após seleção das reportagens, as mesmas serão cadastradas considerando: data da publicação,
caderno/seção/matéria, título, linha editorial. Será analisada, ainda, a diagramação e linguagem utilizadas, pois tais elementos
permitem a compreensão do contexto em que determinada representação social emerge, tendo em vista a disposição visual e
linguagem do jornal para comunicação com seu público-alvo.
Concluída a fase de seleção, os conteúdos das reportagens serão submetidos a análise de conteúdo (BARDIN,
2007). A análise de conteúdo temática é um procedimento bastante utilizado em estudos que adotam a Teoria das
Representações Sociais, sobretudo, pela possibilidade que apresenta de articulação entre o discurso como seu contexto de
produção (COUTINHO, 2001). Segundo BAUER (2003), a análise de conteúdo é uma técnica que “permite reconstruir
indicadores e cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, preconceitos e estereótipos e compará-los entre comunidade” e/ou
grupos sociais. Seu material clássico consiste em “textos que já foram produzidos para outras finalidades quaisquer, como
jornais ou memorandos de cooperações” (p. 195).

4 RESULTADOS ESPERADOS
Construção e consolidação de uma base de conhecimentos sobre a temática que sirva de subsídios para novas
investigações desenvolvidas pelos programas de graduação e pós-graduação da universidade proponente e outras instituições
de ensino e pesquisa; e para orientar a criação ou redirecionamento de projetos de intervenção, programas e políticas
específicas que visem reduzir as desigualdades sociais e de gênero de um modo de geral e, em especial, relacionadas ao
consumo de drogas.
Descrição de aspectos que determinam diferenças entre os sexos e que demarcam desigualdades sociais
relacionadas ao fenômeno das drogas;
Elaboração de artigos científicos e publicação em periódicos nacionais e internacionais;
Elaboração de relatórios parcial e final da pesquisa;
Apresentação de trabalhos em eventos técnico-científicos das áreas de saúde, educação, psicologia ou comunicação
social;
Formação de recursos humanos, através do estímulo ao desenvolvimento de monografias, teses e dissertações sobre
o fenômeno das drogas e a sua relação com as questões de gênero, no âmbito da graduação e da pós-graduação de
enfermagem da UFBA.
Consolidação de linhas de pesquisa dos grupos de estudos das instituições de ensino superior envolvidas, quais
sejam: Grupo de Estudos sobre Saúde da Mulher _ GEM/EEUFBA;
Realização de oficina de trabalho para divulgação dos resultados obtidos, com a participação de representantes do
jornal, de setores da educação, dos serviços de saúde e dos atores envolvidos na pesquisa.

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813
Um novo modelo de atendimento aos dependentes químicos
Ignez Silveira
Universidade Federal de Juiz de Fora
[email protected]

Ernani Simplício Machado


Centro de Ensino Superior - Juiz de Fora (CES-JF)
[email protected]

Resumo: Um dos grandes problemas sociais, de educação e de saúde pública é o uso e abuso de drogas tanto lícitas como ilícitas. As pessoas
procuram, cada vez mais, pelas drogas como forma de “fugir” de problemas, de querer novas emoções, por incentivo de “amigos”, dentre
vários outros fatores que os levam para esse mundo.
O número de dependentes, então, vem aumentando e vários tipos de tratamento foram surgindo com o objetivo de fazer com que eles deixem
de usar drogas e vejam o quão mal elas fazem em suas vidas, tanto fisicamente quanto psicologicamente.
Analisando os centros de reabilitação de dependentes químicos existentes atualmente, vê-se a necessidade de um programa mais abrangente
de tratamento, onde se possam unir as diversas técnicas utilizadas pelos mesmos.
Para isso, este trabalho apresenta idéias relevantes para se ter um novo modelo de atendimento aos dependentes químicos, onde todos os
aspectos são levados em consideração como o psicológico, o psiquiátrico, o físico, o espiritual, atendendo não só os usuários de drogas como
também suas famílias e toda a sociedade. Através de atividades variadas oferecidas pelo Centro, os dependentes terão maiores possibilidades
de se “curar” da dependência química.
Com isso, o objetivo deste estudo é mostrar que, através da interface sociologia, psicologia e arquitetura, pode-se chegar a um modelo de
tratamento diferente dos já existentes, onde as pessoas atendidas se sintam bem nos espaços do Centro e tenham maior motivação para se
tratar, já que os próprios ambientes auxiliarão no tratamento, atendendo às necessidades das atividades propostas.

1. Introdução
Em todo o mundo, o tema drogas está em constante evidência por se tratar de um problema social, de educação e de
saúde pública. As consequências advindas das drogas são as mais variadas, desde brigas familiares até assassinatos cometidos
pelos dependentes. Além disto, o tráfico de drogas também trouxe grandes problemas para a sociedade, devido à facilidade
de se obter a droga e as brigas entre traficantes que, frequentemente, causam a morte de inocentes.
Tratando-se das drogas no geral, incluindo álcool, tabaco, medicamentos psicotrópicos e as outras substâncias
psicoativas, têm-se um problema ainda maior já que muitas delas são lícitas e vendidas em “qualquer esquina”.
Muitos outros fatores, como o contexto sócio-cultural e econômico e a personalidade do usuário, são responsáveis
pela procura das drogas, o que mostra que não se torna dependente quem o quiser. Por traz das drogas, existem problemas
maiores que levam até elas. Infelizmente, os dependentes químicos são vistos, muitas vezes, como delinquentes ou marginais,
dificultando o acesso ao tratamento adequado.

Com o crescimento do número de dependentes, foram surgindo os centros de reabilitação, porém a maioria deles
funciona como sítios ou fazendas onde os dependentes ficam internados e de certa forma “isolados” da sociedade. O
Ministério da Saúde, então, estabeleceu que fossem criados os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial – que funcionam
como hospital-dia, não havendo internação. Quando ela é necessária, os dependentes são encaminhados a um hospital geral
ou psiquiátrico. No caso da dependência química, foi criado o CAPSad que trata de dependentes de álcool e drogas.

2. Influência do Espaço no Comportamento Humano


Muitos estudos já foram feitos sobre a influência do espaço no comportamento humano e chegaram à conclusão
que o espaço arquitetônico pode ter reações positivas ou negativas sobre as pessoas.
Portanto, cada ambiente de um projeto deve ser muito bem planejado para atingir seus objetivos. Às vezes, alguns
detalhes como a cor da parede, a posição da janela, a disposição dos móveis, a altura do pé-direito, dentre outros, podem
mudar completamente a sensação que a pessoa vai ter do ambiente. “O homem tem necessidade de adquirir relações vitais
com o ambiente que o rodeia para dar sentido e ordem a um mundo de acontecimentos e ações” (CARSALADE, 2001).

814
A interface entre Psicologia, Arquitetura e Urbanismo, então, é de extrema importância para esta análise das
sensações e percepções que o espaço causará no indivíduo, já que “favorece os estudos por uma melhor compreensão das
inter-relações entre o homem e o ambiente construído, bem como a produção de fundamentos e métodos projetuais capazes
de gerar arquiteturas e cidades mais adequadas às ações humanas e mais coerentes com os sentimentos e os valores dos
cidadãos” (DEL RIO; DUARTE; RHEINGANTZ, 2002).
Segundo o arquiteto Vicente Del Rio, entende-se a percepção como sendo um processo mental de interação do
indivíduo com o meio ambiente que se dá através de mecanismos perceptivos propriamente ditos e, principalmente os
cognitivos. Os primeiros estão dirigidos pelos estímulos externos, captados principalmente pela visão, que mais se destaca.
Os segundos são aqueles que funcionam segundo a compreensão da inteligência, uma vez que se pode admitir que a mente
não funciona apenas a partir dos sentidos e nem percebe essas sensações passivamente; existem contribuições ativas do
sujeito ao processo perceptivo desde a motivação à decisão e conduta. Tais mecanismos cognitivos incluem motivações,
humores, necessidades, conhecimentos prévios, valores, julgamentos e expectativas.
O estudo da percepção e dos processos cognitivos é vital para a compreensão de nossas inter-relações com o
ambiente. As intervenções no ambiente, seja ele natural ou construído, podem vir a influenciar a qualidade de vida de
gerações, e inúmeros são os planos e projetos cujos ambientes construídos provocam modificações imprevisíveis nas
respostas sensoriais das pessoas.
Essas respostas não são puramente emocionais ou psicológicas no sentido mais popular da expressão. A existência
de consequências neuropsicológicas e neuroendocrinológicas geradas pela percepção e pelos estímulos ambientais é um fato
comprovado. Os estímulos provocam respostas neuro-hormonais e imunológicas com potencial de inter-relacionar as
respostas afetivas a esses ambientes com a saúde mental e seu valor recuperativo.
Uma vez admitidas essas inter-relações, podemos entender por que ambientes construídos com pouca qualidade
físico-espacial são, comumente, vandalizados. Não sem razão, os cidadãos expressam seu descontentamento ou seu descuido
com o ambiente construído das cidades, especialmente aqueles grupos populacionais mais sacrificados da sociedade.
Sacrifício esse que não fica apenas na dimensão socioeconômica, mas que é cotidianamente reiterado pela qualidade do
ambiente físico em que são obrigados a viver e a sobreviver, desde as favelas até os famigerados conjuntos habitacionais.
Se o descontentamento social dessa população se manifesta constantemente por meio de condutas agressivas a
elementos físicos, principalmente aqueles entendidos como “públicos” ou situados junto a lugares públicos, essas condutas
são reforçadas pelo desconforto psicológico desses indivíduos.
O vandalismo é uma das manifestações psicossociais mais comuns. Sensação de abandono, dificuldade de
concentração, procura por drogas, incapacidade de relacionar-se com vizinhos, saudades constantes e tensão são
manifestações psicológicas.
Da mesma forma, reações de apego ao lugar podem, muitas vezes, manifestar-se de forma aparentemente
inesperada, mostrando que se pode influenciar tanto negativamente quanto positivamente.
Esses são resultados expressos das percepções, dos processos cognitivos e dos julgamentos e expectativas de cada
indivíduo. Embora nem todas as influências ambientais e suas consequentes manifestações psicológicas sejam tão evidentes
assim, eles são fatores constantes em nossas vidas, na maioria das vezes sob formas inconscientes que influenciam nossa
conduta e nosso desempenho diário.
Como as possibilidades projetuais são várias, citarei alguns exemplos de como o espaço pode influenciar no
comportamento humano, a partir de pesquisas feitas por diversos autores.
Para o psicólogo Robert Sommer (1973), pequenos detalhes, como a disposição das cadeiras, o desenho do
assoalho ou o formato da mesa em uma enfermaria de um hospital psiquiátrico, pode fazer grande diferença para a
comunicação e o tratamento dos pacientes. “As mesas quadradas têm a vantagem de permitir que uma pessoa conheça os
limites de seu território. Isso parecia uma consideração importante para uma pessoa mais velha, cuja única área pessoal seria
o espaço da mesa à sua frente. Com mesas redondas, uma pessoa nunca sabe onde termina o seu território ou começa o da
outra” (SOMMER, 1973).
Gaston Bachelard (1993), filósofo, fala sobre o que a casa representa para o homem e como ela o influencia. A casa
é um espaço de conforto e intimidade, um espaço que deve condensar e defender a intimidade, fazendo com que o homem se
sinta acolhido, protegido, etc. Apesar da casa ser um objeto geométrico, ela possui metáforas que acolhem o corpo humano, a
alma humana, abrindo-se o campo do onirismo.
O arquiteto Herman Hertzberger (1996), fala sobre os buracos e cantos perdidos no projeto. O arquiteto deve
acrescentar espaço, e não nos lugares óbvios que chamam a atenção de qualquer maneira, mas também em lugares que em
geral não despertam atenção entre as coisas. Esses cantos ou intervalos, muitas vezes, podem se tornar espaços de estar, de
encontro, sendo utilizados e valorizados no projeto.
Um outro exemplo, segundo Hertzberger, é quanto à dimensão de um espaço. Uma sala pequena demais para seu
objetivo é inadequada, assim como um espaço grande demais, não significa necessariamente que seja adequada para deixar as
pessoas à vontade. O tamanho da sala deve ser o suficiente para atender suas necessidades.
As “portas de vidro entre espaços igualmente públicos e, portanto, igualmente acessíveis, por exemplo,
proporcionam ampla visibilidade de ambos os lados, de modo que as colisões podem ser facilmente evitadas. Portas sem
painéis transparentes têm de dar acesso a espaços mais privados, menos acessíveis... Uma classificação adicional pode ser

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obtida mediante a forma dos painéis de vidro, o tipo do vidro empregado: semitransparente ou opaco, ou a meia-porta”
(HERTZBERGER, 1996).
Steen Eiler Rasmussen (1998), arquiteto, fala como a arquitetura possui diferentes percepções através da
ornamentação, da monumentalidade, dos efeitos contrastantes de sólidos e cavidades, etc. Um ponto importante é a questão
do ritmo na arquitetura obtido através da disposição das janelas em uma fachada, por exemplo, da sequência das colunas, da
simetria ou assimetria, etc.
Vê-se, então, que a arquitetura tem muitas formas de influenciar as pessoas através de vários detalhes projetados
para atender aos objetivos esperados. Com isso, vê-se a importância do estudo da psicologia, do conforto ambiental, da
relação entre os espaços construídos e os espaços abertos (livres), dentre outras coisas necessárias para o projeto, dependendo
do que o arquiteto espera da sua obra.
No caso de um Centro de Reabilitação de Dependentes Químicos, as preocupações são várias, já que se trata de
pessoas com problemas variados quanto ao seu estado psicológico, físico, mental e por isso, cada ambiente tem que ser
planejado de maneira que atenda às necessidades do Centro.

3. Reflexões Pertinentes
Assim como foram criadas mudanças para os ambientes hospitalares, há de se pensar em mudanças nos ambientes
de tratamentos especializados como, neste caso, no tratamento de dependentes químicos. Será que a nova legislação do
Ministério da Saúde é a melhor solução para o tratamento dos pacientes psiquiátricos? Ao mesmo tempo em que os pacientes
são tratados separadamente, na internação eles são encaminhados para um mesmo hospital. Como tratar de um esquizofrênico
junto com um dependente de álcool, por exemplo?
Com todas essas questões, vê-se que o ideal seria que o paciente fosse tratado num mesmo lugar. Tanto se ele for
um usuário leve, quanto um dependente com problemas graves de saúde física e mental, já que ele será mais bem assistido
por uma equipe especializada.
O CAPSad criado pelo Ministério da Saúde funciona como hospital-dia onde os dependentes ficam para as terapias,
oficinas e, quando necessário, são atendidos na enfermaria do próprio CAPS. Se em um caso particular, a internação se fizer
necessária, o dependente é encaminhado para um hospital geral ou psiquiátrico.
Assim, é necessário criar um espaço que atenda a todos os tipos de usuários de substâncias psicoativas. Para isso, é
preciso refletir sobre quais espaços são necessários para o projeto e como eles podem influenciar nas técnicas de tratamento
dos dependentes.
Vê-se que o tratamento não deve se direcionar apenas em questões psicológicas e psíquicas, mas também no
convívio entre os dependentes, suas famílias e a comunidade em geral. Com isso, espaços como área de esportes, biblioteca,
auditório, devem ser abertos para toda a comunidade de forma que se tenha uma maior interação entre os dependentes e a
sociedade. Isso fará com que a reinserção social seja mais fácil para os dependentes.
O setor de prevenção e pesquisa também deve atender toda a sociedade, pois está voltado a visitar escolas, centros
comunitários, etc, fazendo palestras e esclarecendo dúvidas sobre as drogas.
Segundo Robert Sommer (1973), na arquitetura de instituições, nem sempre se dá a atenção devida a áreas externas
como espaço habitável, esquecendo que os melhores lugares para fugir das pessoas estão fora dos edifícios. As pessoas, no
caso os dependentes, precisam, às vezes, também estar só, por isso são necessários os espaços livres, verdes, etc.
Uma preocupação do projeto também é quanto ao que o dependente espera do tratamento, se preocupando em ouvi-
lo para melhor atendê-lo.
É importante ouvir o que o paciente espera do seu tratamento, as pessoas gostam de apresentar suas opiniões.
Quando são submetidas a uma “imposição”, se sentem impotentes e afastadas das decisões. “O fato de perguntar às pessoas o
que é que desejam quanto ao ambiente ajuda a superar a despersonalização e a alienação institucionais” (SOMMER, 1973).
Vê-se que os objetivos paralelos frequentemente ligados a instituições para doentes mentais e dependentes
químicos são apenas: custódia (afastar pessoas desagradáveis e indesejáveis da sociedade) e terapia (mudança de
comportamento). Esses dois objetivos podem estar em conflito com aqueles que o paciente estabelece para si mesmo, pois,
apesar da terapia ser muito importante para o tratamento, outros fatores também devem ser levados em consideração.
Estudou-se, portanto, para cada setor do projeto o que se deve trabalhar para o ambiente ficar mais agradável e
como se deve tratar cada um deles de forma que atendam as necessidades previstas da melhor maneira possível.
As reflexões foram feitas através de estudos de diversos ambientes de edifícios, hospitais, escolas, praças, templos,
bibliotecas, dentre outros, já existentes no Brasil e no mundo, de forma que auxiliem nas reflexões do que se pretende com
cada ambiente proposto para o projeto.
A seguir têm-se as reflexões para cada espaço e exemplos relativos a eles.

3.1. Hall de Entrada (Recepção):


O hall de entrada e a recepção devem ser espaços receptivos e convidativos, para que, já de início, se tenha uma boa
impressão de todo o Centro; agradáveis de se estar, já que muitas vezes é necessário aguardar o atendimento e bem

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organizados para que as pessoas não se sintam “perdidas” no ambiente. Esses ambientes são como um “cartão de visitas” do
Centro, pois as pessoas vão chegar por eles e deles serão encaminhadas para os outros espaços.
Para a sala de espera, tem que haver uma preocupação quanto ao bem-estar e ao conforto de quem estiver ali
esperando para ser atendido. O trabalho com a iluminação, com o piso e a disposição dos móveis pode dar um diferencial
para ela.

Figura 01- Hall de entrada e recepção do Pronto Socorro Amil – SP

3.2. Setor Administrativo e Setor de Prevenção e Pesquisa:


Para esses setores, que terão praticamente a permanência dos funcionários durante todo o dia, as salas têm que ser
bem aconchegantes para que as pessoas não fiquem cansadas e estressadas, já que elas vão passar a maior parte do seu tempo
nessas salas. Portanto, é preciso estar atento para pequenos detalhes como a cor das paredes e dos pisos, uso de móveis
adequados e confortáveis, etc.
A ligação dessas salas com o exterior, através de janelas e aberturas, pode ajudar no bem-estar de quem estiver
nelas, havendo uma interação entre os espaços e tendo uma “vista” agradável.

Figura 02 - Sala da administração e atendimento do Centro Britânico – SP

3.3. Sala de Reuniões:


A sala de reuniões é um espaço de curta permanência, mas também de grande preocupação com detalhes quanto à
acústica e conforto para os médicos e funcionários que estarão sempre participando de reuniões, muitas vezes, diárias.
Assim como nas salas da administração, a ligação com o exterior é um ponto a ser pensado para não “enclausurar”
a sala, transformando-a num espaço fechado e desconfortável. O uso do vidro é uma opção para que se tenha esse contato
com o exterior que pode ser um jardim, uma vista, etc.

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Figura 03 - Sala de reuniões do Centro Britânico – SP

3.4. Auditório:
Existem os auditórios fixos e os móveis, esses últimos dão uma maior flexibilidade de disposição, porém não é
muito aconselhável para peças teatrais, por exemplo. E como ele irá atender também à comunidade, terá que ser
relativamente grande, oferecendo palestras, eventos, peças teatrais, apresentações diversas, etc. Fatores de extrema
importância são: o tratamento acústico, os níveis para colocação das cadeiras e altura do palco.
Além disso, o piso, o teto e a iluminação são bem relevantes para que o auditório seja aconchegante e, também, por
questões técnicas necessárias para o seu funcionamento.

Figura 04 - SESC – Santo André – SP

3.5. Biblioteca:
Como a biblioteca não funcionará somente como tal, também haverá espaço de convívio, de leitura, de estar, ela
terá que ser bem humanizada e bem distribuída. A idéia é que ela não passe a imagem de um lugar “sério”, onde as pessoas
não podem conversar, e sim mais um local de convívio do Centro. A biblioteca também será aberta à comunidade como
forma de pesquisa para a mesma.
Os espaços mais livres dentro da biblioteca dão a idéia de “descontração”, fazendo com que as pessoas se sintam à
vontade. A disposição das estantes e dos móveis influenciam muito na imagem que a biblioteca passa e na percepção dela
como um todo.

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Figura 05 - Biblioteca do Centro Britânico – SP

3.6. Setor de Oficinas e Terapias:


As salas de oficinas e terapias podem ser bem variadas quanto à cor, disposição, iluminação, acústica, de acordo
com o tipo de oficina e o tipo de terapia. Por exemplo, se tiver uma oficina de artes, pintura ou desenho, a sala poderá ter
cores, painéis e uma decoração diferente; terapia em grupo poderá ter uma mesa redonda ou então cadeiras soltas que serão
dispostas da maneira que se quiser; dentre outras. Essa flexibilidade dos ambientes é muito importante nesse setor.
Outro fator seria a integração com o exterior, transformando essas salas em espaços mais agradáveis e dando uma
maior motivação para os dependentes durante as oficinas ou terapias.

Figura 06 - Sala de oficinas da Escola Básica e Secundária Gonçalves Zarco

Figura 07 - Sala para terapia em grupo e sala para terapia individual - Pronto Socorro Amil – SP

3.7. Setor de Consultórios:


As salas destinadas aos consultórios médicos e psiquiátricos deverão possuir tratamento acústico, havendo
preocupação também com iluminação, ventilação e cores para se tornarem mais aconchegantes para os pacientes e médicos.
Além do consultório em si, outros espaços podem ser criados, como uma sala de descanso para os médicos,
funcionando como uma área tanto de descanso como de encontro dos médicos e psiquiatras.

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Figura 08 - Consultório de uma Clínica em Pelotas – RS

3.8. Setor de Internação:


A principal característica deste setor é não parecer um ambiente hospitalar ou de prisão. Ele deve ter um caráter de
casa, já que é um lugar de longa permanência dos pacientes, de forma que as pessoas o vejam como uma extensão de suas
casas. Para isso, muitos detalhes terão que ser estudados, trabalhando bem os corredores, os quartos (teto, parede, piso e
decoração), os banheiros, etc.
O tratamento do teto, por exemplo, com desenhos e formas diferentes, é de extrema importância, já que o paciente
passa muito tempo deitado e o teto é o seu plano de referência.

Figura 09 - Posto de enfermagem e sala de emergência do Pronto Socorro Amil – SP

3.9. Circulação:
As áreas de circulação, além de funcionarem como espaços de ligação dos ambientes, podem também ter outras
funções como no caso abaixo. Assim, as circulações não serão apenas um lugar de passagem. O uso de cores, iluminação,
espelhos, piso e formas diversificadas humanizam esses espaços, deixando-os mais agradáveis e menos “frios”.

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Figura 10 - Corredor e sala de espera do Hospital Paulistano – SP

3.10. Refeitório:
O refeitório, além de atender às demandas do centro, também será aberto à comunidade em caso de eventos
realizados no mesmo, portanto a idéia é que ele pareça um “restaurante”, bem organizado e aconchegante.
O exterior pode ter uma ligação forte com o interior do refeitório, ou até algumas mesas do mesmo pode estar no
exterior, havendo uma maior interação entre eles.

Figura 11 - Restaurante e livraria – SP

3.11. Área de Esportes:


A área de esportes funcionará como uma área de lazer e terapia. Ela será uma “praça”, porém com alguns espaços
fechados, como quadra, campo, salas de ginástica e piscina, sendo aberta à comunidade em caso de eventos e jogos.
A área de convivência da “praça”, como mesas, bancos e alguns espaços livres, será pública, podendo ser utilizada
por toda a sociedade.

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Figura 12 - Quadras Esportivas – Parque da Juventude – SP

3.12. Área Verde:


Os jardins e áreas verdes do Centro serão áreas de contemplação e de humanização dos espaços. A vegetação pode
estar integrada à edificação e à água, como nos jardins de inverno, pergolados, paredes externas e coberturas.
Alguns outros recursos, como espelhos d’água e fontes, utilizados para humanizar o ambiente serão estudados para
contribuir na composição do mesmo.
O paisagismo será muito importante para o projeto, dando ao Centro mais “vida” e tornando-o mais agradável.

Figura 13 - Jardim sob pérgulas e sala de espera com espelho d’água numa Clínica Médica – SP

3.13. Área Livre:


A área livre ou externa será bem humanizada através de esculturas, painéis decorativos, paginação de piso, etc. A
idéia do projeto é que o Centro tenha uma interação tanto entre os diversos espaços que o compõem como entre os espaços
construídos e os não-construídos. Para isso, como já foi dito anteriormente, o uso de janelas, aberturas em geral, vidro, dentre
outros elementos, será fundamental para que haja um diálogo entre todos os setores, juntamente com a área externa do
Centro.

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Figura 14 - Ampulheta – Hospital Albert Einstein – SP

3.14. Capela:
A capela será um espaço espiritual, funcionando como um “refúgio” dos dependentes para conversar com Deus,
tendo características diferencias dos demais espaços quanto à iluminação, sons, aromas e forma arquitetônica. O interior da
capela terá que ser muito bem trabalhado, para que as pessoas, de diferentes religiões, sintam convidadas a entrar e
permanecer nela, já que ela será um espaço independente de qualquer religião.

Figura 15 - Igreja do Jubileu – Roma – Itália

Figura 16 - Capela da Fazenda Veneza – Valinhos – SP

Além disso, alguns outros detalhes como, por exemplo, colocação de espelhos em alguns pontos do Centro, já que
os espelhos são importantes para que o paciente sempre esteja se olhando e com isso, veja que precisa melhorar, serão
utilizados para humanizar os ambientes e tornar o Centro um local agradável para todos.
Com essas reflexões, vê-se como é importante um estudo mais aprofundado de cada espaço de um projeto, tendo a
preocupação de fazer com que cada um deles atinja seu objetivo principal.

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Todas essas reflexões e preocupações com cada espaço são para melhor atender seus usuários e também auxiliar no
tratamento dos dependentes, já que através de ambientes bem humanizados e agradáveis, eles se sentirão melhores
fisicamente e psicologicamente, obtendo resultados positivos na “cura” da dependência química.
Portanto, se o objetivo de um projeto arquitetônico está além das questões físicas em si, onde o importante é o que
ele vai gerar nas pessoas através das suas intenções pré-definidas, deve-se estar sempre atento para os pequenos detalhes que
muitas vezes passam desapercebidos.
O estudo sobre conforto ambiental também é essencial para a elaboração desse projeto, pois ele trata de vários
detalhes importantes. Eficiência climatológica, acústica, ventilação, iluminação, presença de vegetação e de cores, conferem
mais dinamismo e vitalidade aos espaços. E toda essa preocupação com condições de conforto é para uma melhoria do
desempenho humano em suas diversas atividades.
Segundo Lúcia Mascaró, conforto ambiental “é a soma das condições físicas que propiciam ao organismo um
melhor desempenho com menor gasto de energia e consequente sensação psicofísica de bem-estar” (ADAM, 2001). As
condições de conforto e qualidade de vida são parte de situações mais amplas de salubridade ambiental e segurança, dentro
das quais se estabelecem padrões de garantia da integridade física e mental das pessoas e de seus direitos à saúde, ao bem-
estar e a um ambiente seguro, tanto física como socialmente.

4. Conclusão
De acordo com as reflexões e os estudos feitos dos espaços de um centro de reabilitação de dependentes químicos,
chega-se a conclusões importantes para o projeto de tal centro. Dentro deste contexto, a idéia deste trabalho é propor um
centro voltado para a reabilitação de dependentes químicos focando três pontos fundamentais: mente, corpo e espírito. Onde
os espaços criados auxiliem no tratamento dos dependentes, através destes três pontos.
Isso se daria da seguinte forma: para cada ponto fundamental (mente, corpo e espírito) existirão espaços adequados
onde se realizarão atividades voltadas para cada um deles. Por exemplo: em relação ao corpo, terão quadras, piscina, campo,
enfim, espaços voltados para a prática do esporte, além do setor de internação e consultórios que também está relacionado
com o tratamento do corpo. Em relação à mente, terão espaços naturais (jardins e espaços verdes em geral para
contemplação), oficinas, terapias, tudo voltado para trabalhar a mente do dependente. Já em relação ao espírito, terá uma
capela, que funcionará como um templo ecumênico onde o enfoque é o contato com Deus, sendo um espaço de reflexão e de
oração.
Com isso, a capela ficaria no centro de todos os espaços, pois o centro é o ponto de equilíbrio e este é dado através
do espírito. Em volta dela, então, estariam os outros espaços do projeto onde serão tratados mente e corpo dos dependentes,
completando a “tríade” dos pontos fundamentais para o tratamento. Os três pontos estão interligados, um dependendo e
complementando o outro.
A integração entre todos os espaços do Centro, tanto os construídos como os não-construídos, será um fator de
extrema relevância para o projeto, pois através dela que a concepção será concretizada.
Quanto à forma arquitetônica, o destaque será dado para a Capela, que apresentará uma forma diferenciada das
demais áreas do projeto, sendo um “símbolo” do Centro. O gabarito será baixo para facilitar os acessos e o controle de todo o
Centro, já que todos os espaços poderão ser vistos de qualquer ponto. Para um melhor entendimento, a seguir tem-se um
esquema e alguns significados das palavras corpo, mente e espírito.

C E M

CORPO – ESPÍRITO – MENTE


Espírito: centro de equilíbrio do ser humano.
Corpo e Mente envolvem o Espírito, complementando-o.
Os três se completam, um depende do outro.

824
C - Corpo = a parte material de um ser animado, conjunto, grupo, a parte principal de muitas coisas.

E - Espírito = alma, substância incorpórea e inteligente, alento vital; graça, inspiração, incitamento de ordem
divina.

M - Mente = inteligência, intelecto, poder intelectual do espírito.

5. Referências Bibliográficas
ADAM, R. S. (2001). Princípios do ecoedifício: interação entre ecologia, consciência e edifício. São Paulo: Aquariana.
BACHELARD, G. (1993). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.
BUCHER, R. (1992). Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas.
CARSALADE, F. L. (2001). Arquitetura: Interfaces. Belo Horizonte: AP Cultural.
DANIEL, H. (1991). SaúdeLoucura 3. São Paulo: Editora Hucitec.
DEL RIO, V., DUARTE, C. R., & RHEINGANTZ, P. A. (2002). Projeto do Lugar: colaboração entre psicologia,
arquitetura e urbanismo. Rio de Janeiro: PROARQ.
HERTZBERGER, H. (1996). Lições de Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes.
KAPLAN, H. I., & SADOCK, B. J. (1998). Manual de Psiquiatria Clínica. Porto Alegre: Artes Médicas.
KRAUSE, C. B. (2002). Bioclimatismo no projeto de arquitetura: dicas de projeto. Rio de Janeiro: PROARQ.
LEITE, M. C. (2003). Aspectos básicos do tratamento da síndrome de dependência de substâncias psicoativas. Brasília:
SENAD.
Ministério da Saúde. (2002). Legislação em Saúde Mental 1990-2002. Brasília: Ministério da Saúde.
MURAD, J. E. (1992). Drogas: o que é preciso saber. Belo Horizonte: Editora Lê.
RASMUSSEN, S. E. (1998). Arquitetura Vivenciada. São Paulo: Martins Fontes.
SOMMER, R. (1973). Espaço Pessoal: as bases comportamentais de projetos e planejamentos. São Paulo: EPU, Ed. da
Universidade de São Paulo.

A ordem pública e a segurança individual. A luta contra o cangaço e contra o


PCC
Jorge Villela
Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

Karina Biondi
Universidade Federal de São Carlos
[email protected]

Resumo: "Cangaço" e "Comandos". Duas modalidades de "delinquência", de formas, ações, locais e épocas diferentes (o Sertão Nordestino
do inçio do Século XX e o Sudeste do Século XXI) são, no entanto, comparáveis em amplitude, força, e foco das preocupações das
autoridades de segurança pública em suas épocas. O trabalho ora proposto pretende efetuar comparações entre os discursos dos juristas
pernambucanos da Primeira República acerca de um fenômeno de “banditismo rural” e dos juristas e cientistas sociais atuais acerca das
“organizações criminosas” existentes no Rio de Janeiro e em São Paulo na virada do século XX para o XXI.

Introdução
Este trabalho é, desde o início, um híbrido. Ele fala de dois momentos muito distintos da história. A virada do
século XIX para o XX, por um lado, a virada do XX para o XX, por outro. Fala de dois fenômenos distintos, ocorridos em
ambientes e espaços diferentes: o banditismo rural no Sertão de Pernambuco; o chamado crime organizados de uma
conurbação como é São Paulo. Mas seu tema central é o tratamento que estes dois fenômenos díspares recebem por parte das
autoridades responsáveis pelas respostas práticas a esses problemas ou pelas reflexões teóricas que se pretendem ora críticas,
ora coadjuvantes das soluções a serem apresentadas. Por conta das limitações de espaço, privilegiamos antes a apresentação
dos enunciados do que procuramos enfatizar as suas similitudes e as suas especificidades. Sabemos, no entanto, que
deveremos cumprir essa tarefa em outro momento. Vale apenas acrescentar que Ordem Pública e Segurança Individual são
expressões das autoridades pernambucanas dos séculos XIX/XX, mas que permanecem preocupações das autoridades
paulistas do XXI. Por serem expressões nativas, como se diz em antropologia, aparecem neste texto em itálico.
A porção média do estado de Pernambuco hoje chamada Sertão, à época chamada genericamente Interior, situada
na região chamada Norte durante a Primeira República (1889-1930), foi o alvo de intervenções atentas de autoridades de

825
diversos níveis e competências e que visavam manter a ordem pública e a segurança individual asseguradas naquelas
“distantes plagas”, como se dizia então.
A periferia de São Paulo, neste início de Século XXI, até certo ponto e ao contrário do que ocorre nas comunidades
existentes nos morros do Rio de Janeiro, ocupa uma posição equivalente. Tanto no que diz respeito à ação governamental,
quanto à percepção espacial que a população em geral tem dela (é longe, se costuma dizer), quanto ainda nas ações e
discursos provenientes tanto do que é propriamente policial quanto do que é do âmbito da reflexão e da busca de soluções
para esse “problema” que continua sendo, a seu modo, o da ordem pública e da segurança individual.
Porque estamos diante de dois problemas semelhantes para as autoridades político/policiais e para os intelectuais
que pretendem interpretar e sugerir soluções no ambiente de seus saberes: um fenômeno de banditismo. Para os
pernambucanos da virada do século XIX para o XX, tratava-se de lidar, ora como ameaça à segurança individual, para a
ordem pública, com um fenômenos de banditismo rural: o cangaço. Para as autoridades paulistas do século XXI, trata-se de
lidar com fenômeno de banditismo urbano, considerado pelas autoridades uma modalidade organizada de crime: o Primeiro
Comando da Capital (PCC).
Cada um dos conjuntos de enunciação têm, por certo, seus alvos, métodos, e referenciais teóricos. Não obstante,
cada um deles tangencia o outro, tanto para afastar-se dele, quanto para comunicar-se com ele.

1. Séculos XIX/XX – Sertão de Pernambuco: Cangaço


Lugar em que se identifica desde o Período monárquico como as plagas distantes e isoladas, selvagens, incultas, o
Sertão de Pernambuco segue hoje como uma quase incógnita. Salvo pelos trabalhos de Marques (e.g. 2003), Villela (e.g.
2004) e Silva (2000), não há notícias de outras pesquisas conduzidas na região. Os antropólogos que a estudam são, até o
momento, dois, sendo que uma pesquisa de doutorado começa a ser conduzida agora neste final de ano. Nenhuma delas é
proveniente do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco, onde existe um curso de mestrado e
outro de doutorado. É uma tendência de Pernambuco litorâneo, de Gilberto Freyre até o presente, dar as costas ao Sertão.
Para que se tenha uma idéia, não há, no Museu do Homem Nordestino, em Recife, um único chapéu de couro, o signo mais
relevante e popular do sertão por ser a peça mais famosa da indumentária do vaqueiro, na exposição permanente.
Pernambuco litorâneo, do Açúcar e do Frevo, faz questão de ignorar o seu contraponto interiorano.
Desde há muitas décadas, as principais notícias nos jornais da capital acerca do Sertão são as que aparecem nas
páginas policiais, ou seus equivalentes históricos. Havia num destes diários, desde a primeira república, uma seção específica
em cujo titulo se lia: “Banditismo no Interior”. O Sertão era definido como uma zona perigosa. O perigo era proveniente de
várias fontes: o isolamento, o coronelismo – espécie de patronagem que a intelectualidade brasileira considera a marca
específica da política da Primeira República. Mas também da ignorância da população, assim considerada pela distância dos
grandes centros, pela fome à qual estaria condenada em virtude das longas e frequentes secas que assolavam a região.
As principais preocupações das autoridades, fossem elas governadores, chefes de polícia, secretários gerais ou
juristas, concerniam ao roubo, aos agrupamentos de cangaceiros, às brigas que contrapunham famílias importantes e que
desencadeavam feudings cuja duração podia ser de poucos meses até algumas décadas. Mas também as preocupações
giravam em torno das revoltas contra o governo, das condições dos batalhões de polícia, da sua criação, dos seus efetivos
policiais, da criação de grupos especiais da policia para a perseguição e repressão do banditismo no interior.

Governadores
Nomeados, eleitos indiretamente ou, depois, pelo voto direto, os governadores pernambucanos, substitutos dos
antigos Presidentes da Província, foram o fruto de um emaranhado de relações, de criações jurídicas, alianças pessoais e
familiares. A efervescência política e social decorrente da mudança de regime político a partir de 1889 e o consequente
rearranjo das alianças e facções existentes no estado, a aspiração dos adesistas (“republicanos de 16 de novembro”, data que
alude o dia que se seguiu ao 15 de novembro de 1889, o da Proclamação da República) em envolver-se corretamente no novo
panorama dos poderes, o anseio dos “republicanos históricos” em pegar o que de direito lhes deveria pertencer, criaram nos
governadores de Pernambuco, desde o breve mandato de Sigismundo Gonçalves, profundas e constantes preocupações com a
“manutenção da ordem pública”. Na primeira década da República, a ordem parecia estar constantemente sobre o fio de uma
navalha. Atentados contra presidentes e governadores, ameaças de golpes militares, a Revolta da Armada, destruição de
jornais de oposicionistas ou situacionistas, o sebastianismo e os seguidos reveses em Canudos de permeio, geraram um clima
de instabilidade e desconfiança, alimentando a decretação de estados de sítio e de intervenções federais.
Nada disso, no entanto, implica na preocupação com a manutenção da ordem pública como uma simples resposta
natural à demanda criada pelas conturbações sócio-políticas. Aparentemente, segundo uma análise dos documentos deixa
transparecer, manter a ordem pública era um dos deveres mais elevados da administração de cada governador. Por este
motivo, talvez, os relatórios e as mensagens mostram-na muitas vezes imperturbável.
Duas grandes forças ameaçavam a ordem pública: os conchavos e motins contra os governos, ou seja, revoltas e
golpes e a que vinha das regiões consideradas mal controladas, bárbaras, selvagens do “municípios do interior”, sobretudo
aqueles do Sertão. Lá grassavam, segundo denunciavam as autoridades da capital, as antiquadas práticas dos chefetes de
baraço e cutelo, do mandão de aldeia. Lá, estas mesmas figuras, aliciadores de malfeitores, alimentavam seus ódios

826
recíprocos, fogueiras em que ressentimentos familiares serviam de lenha para o fogo da disputa e da inimizade política,
segundo a avaliação dos governantes da capital litorânea. E lá, neste vazio horizonte longínquo, situava-se o berço
inequívoco do cangaço. Pouco importava se em Recife os jornais diariamente noticiavam crimes a facadas e a tiros, revoltas
populares, atentados a políticos e tentativas de envenenamento de governadores. O maior perigo vinha do interior.
Portanto, uma das causas identificadas para o abalo na ordem pública era a própria atividade pública por
excelência: a política. Por um lado, nos grandes centros, ela promovia a inveja, a cobiça e fomentava motins. Por outro, dos
distantes rincões do estado, ela, assentada em antigas práticas não menos políticas, era a base do cangaço. Mas as duas
políticas, ambas consideradas ilegítimas, a local e a mais abrangente, tinham duas formas diferentes de promover a desordem:
uma predominantemente política, envolta que estava nos conluios partidários. A outra, envolvida com práticas ilegais e
crimes propriamente ditos. Uma e outra, à margem da lei, distinguiam duas formas de lutas anti-governamentais. Na
avaliação do governador, essa distinção era acompanhada por uma divisão geográfica: a fronteira entre o litoral e o interior.
Mas a identificação do sertão como zona perigosa devia-se também a um segundo motivo: a tese do isolamento.
Geralmente invocados sob as teses do abandono ou isolamento, na verdade às regiões longínguas do estado eram votados
modos de exercício de poder não muito diferentes daqueles em voga na capital. Mesmo assim, a tese do isolamento obteve
êxito nas ciências sociais brasileiras. Ela supõe a existência de uma fonte de poder, identificável no espaço, que perde sua
potência, eficácia e perfeição na medida que se afasta do centro de emanação. Além de dominantes nos escritos dos cientistas
sociais de ontem e de hoje, a tese do isolamento também dominou as avaliações dos governadores em suas mensagens e nos
textos de outras autoridades.
Dessas regiões longínquas vem a descrição feita por Barbosa Lima da hoje esquecida “Sedição de Triunfo”. De
modo que cabe perguntarcomo lhe pareceu ao governador a Sedição. Para ele os movimentos municipais anti-estaduais foram
apenas “inferiores pronunciamentos”, dado que “surgiram mais graves motins no alto sertão, sendo a ordem seriamente
perturbada” em “Flores e Triunfo”. E de que modo fora possível ao governo do estado restabelecer a ordem pública? Por
meio do mesmo expediente que assegurava às instituições do Estado a sua presença nas regiões longínquas:
Não tardou porém a reação dos homens ordeiros contra tais desatinos: em Tacaratu, Ingazeira, Salgueiro, Villa Bella,
Triunfo e Flores, organizou-se a resistência, apresentando-se grande número de paisanos dispostos a repelir os
invasores, entre estes apontando-se os mais ferozes facínoras que infestam o sertão tais como Quidute e Baiãozinho
(id. : 5).

Nota-se a interferência direta de paisanos armados em meio a uma revolta decorrente de arranjos políticos. Ao lado
dos interesses estaduais estavam os destacamentos volantes enviados da capital para o sertão. Junto a eles, os “homens
ordeiros” de diversos municípios. Do outro lado, a soldadesca local, aderente aos desígnios do padre Douettes e de sua
facção, o Partido Católico. Junto a eles, um corpo armado, composto de pessoas “iludidas” pelas palavras do padre-prefeito,
cujas fileiras seriam engordadas ainda por “ladrões e assassinos, atraídos pela probabilidade da vitória que lhes daria o saque
com todas as fascinações suscetíveis de seduzir facínoras” (ibidem). Se os contingentes policiais eram escassos, conforme
compreendiam os delegados dos municípios sertanejos, em momentos de ameaça à ordem, soldados eram urgentemente
enviados desde a capital. Barbosa Lima destacou “forte contingente do Corpo Policial ao mando do Tenente-Coronel José
Florencio de Carvalho” que “depois de vários tiroteios com os insurgentes, desbaratados sempre em tais escaramuças, entrou
na vila de Triunfo e daí expediu várias diligências que de todo derrotaram os pretensos revolucionários” (ib.).
Assim terminou a Sedição. Do ponto de vista do governador, houve um contingente armado, aliciado por meios
ilegais e ilegítimos, vítima de sua credulidade e fanatismo dos quais aproveitaram-se os chefes municipais. Vale ressaltar,
porém, a semelhança dos métodos empregados pelo governo para abafar a revolta, apenas modificando os sinais. Os paisanos
que aderiram à causa governista eram “homens ordeiros”, que se opunham aos “facínoras” extraídos da “Ribeira do Moxotó,
do Riacho do Navio e da Serra Negra”, zonas consideradas impenetráveis pela potência pública. Conforme disse-me uma
colaboradora de pesquisa, o lado inimigo deve achar que os “nossos meninos são bandidos, assim como nós achamos os
deles”. Exercício de perspectivismo não operado por Barbosa Lima.
O próximo governo, Joaquim Correia de Araújo, iniciado em 1896, usufrui da pacificação imposta à força por
Barbosa Lima. Mas lida com outros inimigos, alguns nativos, outras vindas de outro estado, na outra margem do Rio São
Francisco. Os nativos, segundo o governador, são criminosos que “infestam esses municípios” de Triunfo e Salgueiro. Os
externos, são a ameaça de invasão de “fanáticos ao mando de Antonio Conselheiro”.
Contra o primeiro grupo, o Estado apresenta suas armas: estaciona em Triunfo um contingente de 139 praças e em
Salgueiro um de 44, contra 12 em Vila Bela e 30 em Pesqueira. Cria um “Corpo Provisório” de 260 praças e 3 alferes.
Triunfo, município limítrofe com o estado da Paraíba, sofreria as influências de dois célebres cangaceiros da época: Manuel
Batista de Morais, o Antonio Silvino e de seu tio materno, de quem adotou o nome, Silvino Ayres Cavalcanti, ambos
envolvidos nos mesmos conflitos políticos na Paraíba.
Os “malfeitores, conhecidos pelo nome de cangaceiros” continuam sendo o alvo das preocupações do governo
seguinte, de Antonio Gonçalves Ferreira. Por este motivo, foram mantidos em Recife apenas 247 praças do total do efetivo,
disseminando-se “grande parte dela em destacamentos no interior”. Seu objetivo era “assegurar aos habitantes da zona
sertaneja, especialmente a compreendida nos limites deste com o estado da Paraíba, a mais completa tranquilidade. Para o
novo governador, o fortalecimento do contingente policial teria o poder de “garantir o prestígio da autoridade” e de “proteger
os cidadãos pacíficos contra o ataque de tais facínoras”. Daí que, na avaliação de Antonio Gonçalves, tal como ele a expõe ao

827
Legislativo estadual, a força policial opera como garantia da ordem estabelecida, não a deixando ao sabor dos caprichos de
grupos comandados sabe-se lá por quem.
Do ponto de vista da efetividade da ação policial, segundo os números apresentados pelo governador, foram presos,
apenas pelas forças comandadas por um dos diversos tenentes encarregados para a missão, 294 criminosos. Além das
capturas efetuadas, a segurança pública voltou-se para a apreensão de armas de fogo, pois, “sendo o porte de armas uma das
causas ocasionais dos crimes de sangue, convém eliminá-lo em benefício da segurança individual” (ib.). Assim, foram
apreendidas em todo o estado, neste ano, 1489 armas proibidas.
Mas é bem verdade que, segundo os números apresentados, identificar como violentos os municípios do interior,
liga-se muito mais à política e à imagem do interior, do que aos dados estatísticos. Dos 628 atentados à vida relatados, 488
ocorreram nos 34 municípios do litoral e apenas 180 nos 24 do sertão. Não há, do ponto de vista da análise quantitativa das
estatísticas, motivo para identificar-se constantemente o sertão como foco da ameaça à segurança individual. Mas isso é o que
acontecia ainda no governo de Sigismundo Gonçalves, para quem, em 1906, “a ordem pública não foi perturbada em todo
território do estado”, mas “infelizmente (…) não é bastante animadora a estatística dos crimes cometidos contra a segurança
individual e de propriedade”. Qual a fonte da preocupação do governador?
Mas, para além da identificação do banditismo no sertão como a causa dos males referentes aos “ataques à vida e à
propriedade”, à premência desta preocupação (note-se que o caso ocupa a primeira página da mensagem), valeria perguntar o
motivo pelo qual o caso de Antonio Silvino, assim como o precedente, de Silvino Ayres, caiu nos braços da segurança
privada e não nos da ordem pública. Sumariando rapidamente a história destes dois cangaceiros, temos que, em ambos os
casos, seus destinos foram traçados por disputas políticas na Paraíba. Antonio Silvino, nascido no município de Alagoa do
Monteiro, conviveu intimamente com disputas políticas entre os Batistas, dos quais descendia por linha materna e os Dantas,
em Teixeira. Por linha paterna, estava ligado ao município de Afogados, em Pernambuco, na divisa com a Paraíba. Ali, sua
vida familiar também se confundia com a política, seu pai sendo assassinado por um primo inimigo, aí encontrando-se o
estopim da vingança de Antonio Silvino. Sua carreira de cangaceiro foi guiada por Silvino Ayres, este último filho de um
deputado provincial no período monárquico.
Portanto, não soa estranho se os casos de Antonio Silvino e Silvino Ayres, problemas tanto públicos quanto
privados, fossem tratados como conturbações da ordem pública. São sempre possíveis interpretações a esse respeito: em
primeiro lugar, pode-se imaginar que ao governador seria menos oneroso admitir ameaça à ordem, tratando-se de um
problema localizado. Em segundo, é possível que problemas desta natureza fossem considerados objetivamente como casos
de polícia. Por fim, existe a hipótese plausível do desconhecimento, ou pelo menos da ausência de dados precisos sobre o que
se passava nos longínquos municípios do sertão, ou, ainda, da inadequação da colocação dos problemas em virtude da
incapacidade de compreensão da natureza exata das atividades dos grupos armados.
Seja como for, Antonio Silvino é o foco das preocupações do governador seguinte, quando, pela primeira vez, foi
considerado uma “escola de cangaço”. Assim, afirma Herculano Bandeira: “O banditismo exercido por Antonio Silvino,
Antonio Felix e outros imitadores desses celerados tem sido perseguido constantemente, a ponto de haver cessado a
frequência alarmante de assaltos, à mão armada, à população dos campos, perturbando-a no seu trabalho frutuoso e probo”
(Mensagem de 1909). O otimismo de Herculano, contudo, não parece partilhado por Dantas Barreto, o governador
salvacionista, para quem a “força pública, cujo estado era deplorável, em consequência do abandono a que fora lançada pelo
governo passado, mostra-se agora confiante na sua missão, com o moral erguido e preparado para a defesa da ordem
pública”, conforme dizia em sua mensagem lida durante a instalação da terceira sessão ordinária da sétima legislação (Tip. do
jornal de Recife, 1912). De resto, dois anos após esta nota, Antonio Silvino era preso pelo então alferes Teófanes Ferraz
Torres.
Neste momento, pela primeira vez nesta documentação, ao cangaço é atribuído o papel de desestabilizador, embora
de modo atenuado, da ordem pública: “Além dos maus elementos que continuam perturbando o desenvolvimento da zona
sertaneja, não obstante a ação empregada para seu extermínio, diversas dissensões, trazendo entraves à boa marcha dos
negócio públicos, se verificaram em diversos lugares”. O que teria mudado em relação à classificação anterior? Por certo, o
fato de haver-se alterado o núcleo estadual de poder, reciclando-se os nomes prestigiados, o modo de prestigiar os nomes, e o
interesse de identificar a situação política anterior à desordem. Por especulação, pode-se apresentar um outro motivo: ao
localizar focos de distúrbio da ordem onde antes havia apenas ameaças à vida, a política de segurança liberava-se para
estabelecer novos métodos de atuação.
Tal como era entendido anteriormente, o cangaço estava confinado a problemas de ordem individual, longe,
portanto, da esfera pública, circunscrito à ação policial localizada. Classificando-o como ameaça à ordem pública, ele
transforma-se em problema político ou de Estado. A guerra assume uma função policial e a ação policial investe-se da função
de defensora da ordem estatal. A intervenção direta se faz necessária para a manutenção da ordem. Toda uma reformulação
das articulações das forças políticas decorre desta ação. Para a população civil, inicia-se um período particularmente duro.
Poucos anos depois, o sertão pernambucano conhecerá a inauguração de um tempo de ocupação militar da área, por
contingentes nativos ou não, que perdurará até o ano de 1938.
1917 é a data do recrudescimento de uma briga entre famílias no município de Vila Bela, cujo último avatar é a
aparição do mais virulento de todos os fenômenos de banditismo na história do Brasil: o cangaço de Virgulino Ferreira,
vulgo Lampião. De 1922 a 1938, Lampião, logo apelidado de Rei do Cangaço e alvo de duas biografias ainda em vida,
mudou a face da segurança pública em Pernambuco e em outros 5 estados do Norte. Lampião tornou-se a principal

828
preocupação de todos os governadores e de todos os chefes de polícia pernambucanos. E foi o móvel de uma importante
modificação dos efetivos, batalhões, táticas e estratégias e combate ao banditismo.

1.2 Chefes de Polícia


Antes de nos dirigirmos a esse problema em particular, será proveitoso assinalar que muitos dos que ocupavam esse
cargo eram juristas formados na célebre e prestigiosa Faculdade de Direito de Recife, lugar não apenas de formação
advogados, mas de toda uma elite intelectual, via de passagem de todas as reflexões filosóficas, sociológicas e antropológicas
do século XIX brasileiro. Para que se tenha uma pequena idéia da força desta escola, foi através de um de seus alunos que o
pensamento de Nietzsche entrou no Brasil, cerca de 20 ou 30 anos antes de aparecer na França. É por meio destes intelectuais
que se conhece nos trópicos as teorias jurídicas de Gabriel Tarde, de Paul Topinard, de Cesare Lombroso. Vejamos, então,
um pouco das teorias sócio-jurídicas que esses senhores foram capazes de elaborar na condição mista, entre policial e
político, que é essa de chefe de policia.
Os crimes eram a obra de indivíduos, mas também de uma camada social. Eram o fruto de um determinado estado
social, o de miséria. Mas é preciso notar que esta miséria não é exclusivamente a material. Trata-se de miséria existencial
refletida na falta de instrução, por não frequentarem a escola, e de educação, por estarem imersos em meio corrompido. Os
dois fatores associados produzem este indivíduos criminosos1. E quais seriam os meios pelos quais se poderia resolver o
problema?
Em primeiro lugar seria necessário rever “a pena a que está sujeito o indivíduo pelo fato de manifestar suas
tendências para a realização de crimes”. Portanto, endurecimento das punições. Em segundo lugar, criar mecanismos para
que as prisões deixem de ser depósitos de criminosos, “muitas vezes sem abrigo nem alimento”, onde o detento
frequentemente “encontra na disposição penal um refúgio temporário, onde o menor lucro que aufere é o restabelecimento
das forças físicas”. Ao ser libertado, “volta o indivíduo ao seio da sociedade” e ela “reconhece-o sem modificação no
caráter”, dada a inexistência de meios ortopédicos que o transformem. O único resultado do tipo de prisão disponível é a
reincidência. Cenário passível de alteração se “a essa pena fosse adicionado o trabalho”. Neste caso, o chefe de polícia estaria
“certo de que poder-se-ia garantir um grande decrescimento na estatística dos crimes”.
Educação, meio sócio-cultural, reforma penitenciária. Para além da atualidade da pauta, esses três assuntos irão
permear os discursos dos chefes de polícia, muitos deles juristas ou de qualquer modo influenciados pelas idéias difundidas
pela Faculdade de Direito de Recife. Assim se nota no relatório apresentado por Antonio Pedro da Silva Marques, em 1897, a
referência a Garofalo para explicar as “causas complexas” das “transgressões”. Segundo Silva Marques, concorrem “para o
seu evento fatores físicos e sociológicos, representados pelo clima, temperatura, idade, hereditariedade, legislação, riqueza”.
Sendo aspectos “físicos”, passíveis da ação dos “sociológicos”, infere-se que “a legislação penal de um país, as suas leis
relativas à educação, produção e distribuição de riquezas influem poderosamente sobre a estatística criminal”. Por sua vez, as
leis garantem moralidade, enquanto o “bem estar social e a educação popular garantem ao mesmo tempo a segurança pública,
estreitando a esfera do crime”. A informação, sob a forma de números, é uma “fonte fecunda para os representantes do poder
público”. A estatística habilita o estudo das causas do crime e abre caminho, por consequência, para as reformas necessárias,
tanto nas leis penais quanto nas “político-econômicas”.
Reproduzindo partes do relatório do Chefe de Polícia ao Congresso, o governador Correia de Araújo, em 1899,
mostrava a aplicação de uma espécie de geoevolucionismo à criminologia e apontava o crime como “um produto mesológico,
influindo para a sua eclosão fatores físicos e sociais”. Sua ocorrência variava segundo a idade, a eficácia das leis, sendo que
“nossa legislação repressiva do crime, quer em sua parte substantiva, quer em sua parte adjetiva, não satisfaz plenamente os
interessados da defesa social, que vai sendo sacrificada pela minoração das penas”. É digno de nota o hiato temporal entre os
diagnósticos que os juristas fizeram das causas do crime com o dos governadores. Lembremos que se entre os últimos foi
preciso esperar pela segunda década do século XX, a educação aparece, na avaliação dos primeiros, como fator relevante de
luta contra a criminalidade já em meados do século XIX.
Silva Marques não descura a importância da polícia científica e denuncia o abandono votado pelas sucessivas
administrações estaduais ao gabinete antropométrico “de grande utilidade para a causa da justiça criminal”. Construído pelo
seu antecessor, o gabinete não fora ainda inaugurado. E em 1904, o então chefe de polícia anuncia: ainda sem funcionar os
aparelhos destinados à bertilhonagem, estão “completamente estragados”. Neste período a bertilhonagem havia-se tornado
obsoleta, tendo “começado a perder os créditos” de que vinha precedida. Por esta época estavam já reconhecidas “as
vantagens do sistema datiloscópico, finger prints do professor Galton de Londres”.
Essas passagens fazem o ponto da situação do sistema de segurança pública. Mas também apresentam as aspirações
dos responsáveis por sua manutenção, a angústia pelo fracasso e provável derrota futura, mantidas as condições então
existentes. E demonstram ainda em que correntes se insere o pensamento jurídico aplicado à repressão do crime. As medidas
sugeridas assemelham-se tanto a algumas apresentadas pelos ideólogos franceses do século XVIII: a crítica da prisão como
método exclusivo das punições penais, a elaboração de medidas paralelas, como as educacionais, a identificação das causas

1
Veja-se, igualmente, o relatório de 1866: “Os crimes de homicídio e ferimento são em geral praticados por indivíduos analfabetos, pertencentes à última
camada social. Esses indivíduos, além da ignorância em que vivem, pela falta de instrução, são educados em um meio corrompido, onde desde a infância se
entregam sem o menor motivo à prática de maus atos, que mais tarde os tornam viciados e propensos ao crime (: 2).

829
da criminalidade, a necessidade da certeza da pena para a redução dos delitos. Mas também misturam a essas críticas a defesa
do endurecimento das penas e das leis penais.
Da identificação à prevenção, de Garofalo a Enrico Ferri, passaram-se 26 anos. O relatório do chefe de polícia
Silva Rego, de 1923 , aponta a prevenção aos delitos como um dos “problemas mais sérios da defesa social”. A prevenção
repousa na remoção dos e no combate aos “germes do delito”. Novidade na perspectiva do combate ao crime? Sim e não.
Sim, pela introdução, nos relatórios, da noção de “prevenção”. Não, porque os “germes” mantêm o seu habitat: repressão
inadequada aos “delinquentes”, insuficiência de dados para programar a ação da repressão, impunidade, assentada,
insistentemente, na “instituição do júri” que “tem animado e fomentado a criminalidade pela sua escandalosa complacência,
sacrificando, dest’arte, virtualmente a função social da repressão”.
Como se verá logo adiante e depois, mais detidamente, a instituição do júri é uma das maiores preocupações das
autoridades responsáveis pela ordem pública. Ao seu lado, veremos, está a necessidade do desarmamento. Tanto num quanto
noutro caso, júri e desarmamento eram considerados fatores de entraves mais gritantes à contenção do crime nas regiões do
interior, sobretudo no sertão. Ambos aparecem como um enclave em pleno território da legalidade semeados na velha horta
das instituições estatais.
Preocupação renitente das autoridades nacionais, as instituições carcerárias não foram esquecidas por Silva Rego.
Todas, segundo sua avaliação, eram completamente ineficazes. Por este motivo, sugere ao Secretário Geral do Estado duas
providências “inadiáveis pelos proveitos, imediatos, que delas advirão” (:9). A primeira delas é a criação de duas “colônias
correcionais”. Uma destinada a menores desamparados e outra aos “vagabundos, mendigos, menos válidos, ébrios e
capoeiras”. A finalidade da colônia de menores era a de segregar fisicamente os delinquentes, por faixas etárias e por
periculosidade, da contaminação pelo “sub-solo de criminalidade constituído pelo imenso popular daquilo a que poderemos
chamar os micróbios do mundo criminal”. Será preciso evitar o “contato das crianças com os sentenciados”. A prisão
aparece, pois, sob um aspecto que a acompanha desde sua invenção como mecanismo penal de punição: escola do crime. É o
contato insalubre com os detentos mais experientes que transforma de uma vez por todas os jovens pobres em delinquentes.
Mas a prisão não era considerada a única força indutora. A cultura também servia como explicação. Pois foi pela
cultura que se explicou porque a região sertaneja era o locus, por excelência, da manifestação brutal de “crimes terríveis em
que andam sempre envolvidos, ora isolada, ora em meio a grupos do cangaço, muitos menores”. Diagnósticos jurídicos e
análise sociológica misturam suas perspectivas. As explicações das causas do cangaço derivadas do contágio, por assim
dizer, dos jovens pelas gestas dos cangaceiros generalizou-se de tal forma que talvez já não se possa dizer se ela é derivada
da análise sociológica, da interpretação dos juristas ou do senso comum. Talvez a antropologia física da Escola Criminal
Italiana – mas também de sua adversária, a Sociedade Antropológica de Paris – tenha lançado suas raízes no solo da
sociologia nacional mais profundamente do que pode imaginar a nossa vã filosofia. Principalmente se se leva em conta as
influências da Faculdade de Direito do Recife sobre reflexão social no Brasil e as leituras de Brocca e Topinard que lá se
faziam No relatório de Silva Rego, entretanto, há alguma referências, para além de Ferri:
…pelo menos chegava ao conhecimento dos meninos a história hedionda das muitas aventuras criminosas e a Lei da
imitação, de que nos fala o eminente magistrado francês Gabriel Tarde, é incontestável, tendo efeito mais positivo nos
espíritos mais fracos, como os das crianças.

Silva Rego descreve assim o processo transformação da criança em menor delinquente:


Sendo certo que é no período da infância que as primeiras paixões irrompem na alma do homem e com violência
significativa, deixando, para sempre, raízes, faz-se mister, em defesa da sociedade e dos bons costumes, que não fique
a criança desamparada, apreendendo o que mais empolgante lhe parecer, mas que pela prática dos bons exemplos, do
ensinamento ao trabalho … do bom procedimento, da instrução, ao menos rudimentar, numa colônia correcional,
sejam-lhe despertados o sentimento de amor à ordem e à humanidade… (ib. 12)

O público alvo da colônia imaginada pelo Chefe de Polícia são os desvalidos, os abandonados, os afetados por
“uma invencível fatalidade que lhes roubou os melhores amigos, os seus pais”. Entregues ao “ócio e à vagabundagem”, sem
lar, incapazes, subdesenvolvidas física e intelectualmente, os organismos devorados pelos “analfabetismo” e pela
“anquilostomia”, movidas pelo “instinto”, essas crianças são infensas ao trabalho honesto. Seu território existencial
empestado dos “micróbios do crime”, torna a “criança habitual no vício da rapinagem fácil”. Encarcerada pela primeira vez,
desaparecem-lhe “da alma os últimos refreios do senso moral. Irrompe o tipo do criminoso caracterizado”.
A colônia correcional dos adultos visa o asilo dos “parasitas sociais” cuja classificação Silva Rego toma do jurista
Leroy Beaulin. Esses são os que “não têm forças para trabalhar”; os que têm forças, porém são desprovidos dos meios para o
trabalho; e os que desfrutam de ambos, mas são carentes da vontade de trabalhar. Para os dois primeiros grupos, amparo. Para
o segundo repressão, atenção, prevenção.
Falta de educação, de instrução, de distribuição de riqueza, inadequação dos métodos de encarceramento e
impunidade, somados aos efeitos da hereditariedade. Eis aí, segundo a avaliação dos chefes de polícia de Pernambuco, no
período em questão, as causas da delinquência. Em meio às novidades do século XX, a identificação de um problema antigo,
tal como foi brevemente referido. Desde os primeiros relatórios, a dificuldade de punir criminosos era identificada à
instituição, polemizada no meio dos juristas, do júri. Ainda durante o Império, o chefe Domingos Pinto queixava-se ao
governador das “constantes absolvições do júri” (Relatório ao Presidente da Província 1886 : 4). Em 1900 Leolpoldo

830
Marinho alinhava, ao lado dos defeitos da legislação, da minoração da pena e à exiguidade do efetivo policial – sobretudo no
interior -, os problemas próprios da instituição do júri. Quatro anos mais tarde Manoel Moreira lamentava a “má
compreensão da salutar medida do habeas corpus”, da “impunidade dos delinquentes” e da “proverbial condescendência do
nosso júri”. Os três, somados à “falta de educação de uma população que mal compreende seus deveres, sempre pronta a
infringir as leis e a insurgir-se contra a autoridade” e à “deficiência da força pública destinada ao policiamento”, dizia
Moreira, constituem um quadro repleto de “entraves quase insuperáveis ao funcionamento regular do serviço sob minha
responsabilidade”. O “instituto jurídico essencialmente democrático” é avaliado por Moreira como uma “verdadeira
conquista liberal”. Formado por “cidadãos de critério, moralidade e bom senso”, o júri incumbe-se de “decidir a sorte de seus
pares”, possibilita a todos, segue Moreira, “a excelência da instituição de que ora ocupo”. Favorável ao júri em si, onde
Manoel Moreira identifica os seus problemas? Não nele mesmo, como é evidente, mas “nas condições morais dos indivíduos
que o devem compor”.
Na intenção de resolver este problema, afirmava Moreira, “a Reforma Judiciária, em seu artigo 27 exigiu para
exercer a função de jurado a renda annual de 2:000$000 na capital e de 5000$000 nos demais municípios”. Pretendia-se
assim garantir as “condições de independência e cultura de espírito”, ao mesmo tempo que o legislador cancelava “o mal do
júri”. Anos mais tarde, contudo, Silva Rego dizia que a “instituição do júri tem animado e fomentado a criminalidade pela
sua escandalosa complacência”, sacrificando a função social da repressão.
Os chefes de polícia estavam preocupados também com propostas para a ação policial. Assim, em 1918, o
comandante José Novaes apresenta as “Instruções Policiais”, que pretendiam regular a polícia militar de Pernambuco. Os
diversos tópicos das Instruções podem ser divididos nos seguintes temas: 1. A organização territorial das regiões policiais do
estado em oito circunscrições, sendo as do sertão Vila Bela e Salgueiro, cada uma comandada por um oficial comissionado;
2. As incumbências dos oficiais, a saber, dirigir o serviço policial da sede dos municípios limítrofes, mesmo se houver
delegados militares, e ainda organizar diligências volantes, prestar auxílio às autoridades locais, auxiliar as coletorias,
apreender contrabandos; fiscalizar os limites com os estados vizinhos, informar o chefe de policia de todos os acontecimentos
de sua circunscrição, fiscalizar as cadeias; 3. Atenção aos direitos da população local, inclusive acusados de crimes. Esta
terceira parte prende-se ao que se poderia chamar de respeito aos direitos do cidadão. Os oficiais deveriam cumprir as ordens
de habeas corpus, velar pelas garantias individuais, tratar com urbanidade as pessoas, independentemente de sua condição
social, cuidar para que não houvesse tortura e humilhação de presos, ser benévolo diante dos culpados. Deveriam também
não imiscuir-se em “questões particulares, podendo, entretanto, aceder a solicitações de pessoas paupérrimas e desprotegidas,
quando em iminente risco de verem suplantados os seus direitos” (:15). Essa última orientação liga-se ao artigo 2 segundo o
qual os comissionados deveriam “penetrar em qualquer outro município quando em perseguição de criminosos não
atendendo a solicitação em contrário” (Ênfases minhas). Mas também ao item e do quinto artigo, que aconselha o
comandante a “evitar que praças vivam promiscuamente com paisanos”.
Evitar convivência com paisanos, ignorar ordens locais na hora de penetrar em municípios vizinhos, informar
constantemente o chefe de polícia, todas essas orientações afastam o comissionado de sua circunscrição, das influências dos
interesses locais, do desrespeito aos direitos daí decorrentes e o subordinam pesadamente à capital. A tendência
centralizadora da polícia manifesta-se em outros momentos, como por exemplo em 1923, em plena guerra contra Lampião,
como se sabe um dos momentos em que as forças locais mais se apropriaram da polícia militar. Em seu relatório, Silva Rego
sugere reformas que habilitariam o chefe de polícia a “fazer a divisão policial de todos os municípios do estado…”; criaria
uma “polícia de carreira, além de cinco delegacias regionais, preenchidas por bacharéis”; instalaria uma rede telefônica
ligando o palácio do governo, a chefatura de polícia e o comando da Força Pública, delegacias e sub-delegacias da capital,
Inspetoria da guarda civil, quartéis da força pública, polícia marítima e Penitenciária e Detenção.
Diante das descrições generalizantes, apreensões em relação ao quadro social e propostas de reformas apresentadas
por alguns dos chefes de polícia, cumpre agora verificar o panorama diante do qual viviam eles.

1.2.1 O sertão dos chefes de polícia


No campo da escassez de recursos, são três os principais problemas que chegam aos chefes de polícia: a situação
das cadeias; a insuficiência dos contingentes; a impossibilidade de os municípios manterem a ordem pública em função dos
dois primeiros motivos, mas também pelo atraso dos pagamentos aos policiais destacados.
Também nos relatórios e correspondências dos chefes de polícia aparece a classificação binária entre “ordem
pública” e “segurança individual”, tópico que será, ao longo do tempo, substituído por “repressão ao banditismo”.
Em 1905 a ameaça à segurança individual é Antonio Silvino e o fracasso à sua repressão é justificado pelas
costuras que o cangaceiros fazem pela fronteira dos estados de Paraíba e Pernambuco e pela ajuda que recebem da população,
seja pelo “pavor que inspira sua presença e a fama de que é precedido e parte aliciada por donativo que ele distribui dos
dinheiros extorquidos”, diz em sue relatório do chefe de polícia Manuel Moreira. Começa, assim, a aparecer nos documentos
a figura do “coiteiro”, considerado principal inimigo das autoridades policiais nas três décadas vindouras. Através dessa
justificativa, ou seja, dos camponeses que ajudam os bandidos, a repressão arvorou-se no direito da ocupação militar, um
crescendo, um enorme território, de criminalizar as populações rurais de diversos estados, de interrogar energicamente
qualquer pessoa, suspeita ou não de fornecer proteção a cangaceiros.

831
Reiteradamente salientado, o problema da escassez de recursos para a manutenção da ordem e da segurança
individual é também uma justificativa, além de ser um apelo desesperado. As delegacias de Salgueiro, de Cabrobó, e de
Floresta reclamam, em 19/06, 05/07 e em 09/07, a “falta de pagamento de soldo das praças”. Os casos de Floresta e Flores
parecem mais graves. Era costume na época a existência de um fornecedor local de recursos públicos, recebendo
posteriormente com juros. Em Floresta já não há “pessoa alguma que queira fornecer”, recaindo o ônus sobre o próprio
delegado. O mesmo acontece em Flores:
Tendo o fornecedor dos presos pobres da cadeia pública desta vila deixado o fornecimento em razão da demora que
tem havido no recebimento das importâncias fornecidas, e, não sendo-me possível encontrar quem aceite tal encargo,
rogo-vos levando o fato ao conhecimento do Emo Governador, providências urgentes a fim de desaparecer semelhante
dificuldade

Em função das dificuldades de transportes e das longas distâncias entre o centro administrativo do estado e os
municípios sertanejos, costumava-se contratar um cidadão de cada município, em geral, obviamente, um comerciante, para
adiantar os pagamentos e demais necessidades materiais para as polícias locais. A essas pessoas dava-se o nome de
fornecedor. Não há nenhuma indicação clara dos dividendos tangíveis ou intangíveis colhidos por essas pessoas, salvo os
juros que recebiam pelo empréstimo.
O universo apresentado nos documentos dos chefes de polícia aparenta impotência quando se fala dos municípios
do interior. Não há efetivo, não há recursos, as cadeias são inseguras, as queixas são abundantes. Tudo isso em meio ao povo
em armas, espreitando desde o umbral a ordem pública. Em 1897, por exemplo, a força pública teve de guarnecer as
fronteiras com o estado da Bahia procurando evitar a invasão da “negregada horda de facínoras de Canudos” e para isso criou
um “corpo provisório”, lançando mão, como costumava acontecer, de paisanos. Canudos, porém, não era o único problema.
Devido ao número crescente de “criminosos, dois destacamentos volantes” passaram a operar no interior, um deles
percorrendo o Vale em Flores, Triunfo, Vila Bela e Afogados de Ingazeira. Vale lembrar que 1897 é época de atuação de
Silvino Ayres, tio e antigo chefe de Antonio Silvino, cuja atuação no cangaço perdurou por cerca de 25 anos. Assim, os
pequenos efetivos deveriam cuidar dos problemas crônicos de segurança e agudos como a da invasão dos jagunços do
Conselheiro.
Os recursos dispensados à polícia pelos governos pernambucanos impediam uma luta adequada a cangaceiros como
Antonio Silvino. No início de 1909 o efetivo total das Forças somava apenas 60 oficiais e 1466 praças para todo o território,
para todas as tarefas. Comparado ao total de 1892, 32 oficiais e 648 praças, houve o significativo aumento de 1,6 oficias e 48
praças por ano, em média. As leis do congresso estadual limitavam a contratação de efetivos, apesar de poderem ser
transgredidas pelo executivo em caso de necessidade considerada extrema. Tais emergências pareciam restringir-se às
ameaças diretas ao governo, portanto territorialmente circunscritas à capital. Para o sertão, servia a antiga instituição das
inspetorias, baratas ou gratuitas para o erário público, não havendo na documentação qualquer referência a salários ou diárias.
Mais uma vez, as distinções nativas entre as políticas estadual e local voltam à cena. Os usos e os costumes da
política local eram baseados na arbitrariedade, conforme nos dá a entender o informe de Herculano Lupércio (Relatório 1910
:37), para quem: “É normalíssima a vida nos municípios”, em que pesassem as “diversas reclamações” que “tem chegado às
mãos do Governo contra abusos das autoridade municipais que só botam imposições injustas e inconstitucionais” desafiando
as leis orgânicas. Os documentos estaduais, entretanto, não se referiam aos inspetores, mas essa omissão não silencia a
insuficiência do efetivo e é reveladora do abandono da lei e da ordem no interior, uma preocupação constante das autoridades
litorâneas. Se a política é a seu modo indivisa não se poderia ignorar a dor e o sofrimento dos pequenos e distantes
municípios, ainda que pouco se fizesse para mitigá-lo.
Por isso, em 1919, Olinto Vítor reconhece os problemas ocorridos durante as eleições de cinco municípios, entre
elas as de Triunfo, mesmo omitindo os problemas em questão. A política de Triunfo não era desconhecida na capital e estava
disponível aos leitores dos jornais recifenses. Na manhã de 24 de junho de 1919 o chefe político Deodato Monteiro fora
emboscado e assassinado por um bando liderado por Luiz Leão a mando, segundo os depoimentos constantes no processo
crime, de José Pereira Lima, de Princesa na Paraíba. O coronel José Pereira era aliado político dos Pessoa de Queiroz e do tio
deles, o ex-presidente da república Epitácio Pessoa. As conturbações da política de Triunfo foram consideradas irrelevantes
pelo secretário? Eram dele desconhecidas? Impossível dizer. Durante seis meses Triunfo viveu problemas graves. Deodato
Monteiro, que havia assumido a liderança política no município, anteriormente comandada por Manoel Pereira e Carolino
Campos, fora objeto de diversas denúncias. Vinte dias antes das eleições o delegado do município comunicava ao chefe de
polícia a ação de “um grupo de cangaceiros” contra o qual enviara “uma força em perseguição”. Na impossibilidade de
derrubar Deodato Monteiro, aparentemente, tiveram de matá-lo.
Se a conturbação em Triunfo não era tema para os relatórios, a grande questão entre as famílias de Vila Bela
tornou-se motivo de preocupação. “A despeito das medidas enérgicas postas em execução pelo Governo, a paz e a
tranquilidade da população sertaneja vêm se perturbando”, reconhecera Olinto Vitor:
Ninguém ignora as causas determinantes de tal situação que atravessa o interior do Estado, são as velhas inimizades
entre duas abastadas famílias – a dos Pereiras e a dos Carvalhos – originando lutas, mortes e depredações que, de
quando em vez, surgem no seio delas (Relatório 1919 : 16)

Na avaliação do secretário,

832
Essas lutas, avultam ainda porque aos grupos contentores desde logo se agregam foragidos de outros municípios, os
quais não se limitam a danificar e cometer as suas perversidades contra os membros das famílias aludidas, mas
estendem a sua ação nefasta contra pessoas completamente estranhas a esses acontecimentos (idem, ibidem).

Nessa avaliação dois relevantes processos são referidos. Um deles é de recrutamento de pessoas “foragidas de
outros municípios”. De modo que uma luta de tal proporção assume a função de agregar em torno de si um contingente
disperso de foras-da-lei. Ela age como um “conjugador”, é um agente de homogeneização. Talvez esse seja o documento em
que tal procedimento receba sua mais clara formalização. Avançando a análise para além da avaliação do secretário, pode-se
dizer que uma quantidade indeterminada de delinquentes passa a receber pagamento, proteção, alimentação, por vezes
fardamento e funções específicas. Alguns dentre eles formarão seus próprios subgrupos, outros catapultarão suas carreiras
baseados nesta primeira experiência. Foi o caso de Virgulino e seus irmãos.
Essa breve exposição aponta para várias direções. A totalidade da documentação que acaba de ser apresentada e
analisada aponta para diversas direções. Em primeiro lugar, como parece evidente, as autoridades estaduais estavam atentas e
eram constantemente informadas das peripécias dos grupos armados nos municípios do interior. Portanto, a tese do
isolamento, à qual apelaram muitos estudiosos é inadequada para explicar os fenômenos que ali ocorriam. Os políticos e seus
comissionados não apenas estavam informados como procuraram refletir a respeito das causas do fenômeno da violência –
revestida pelo nome de banditismo e cangaço – naquela região e procurar para elas soluções. Essas soluções tomaram forma
no discurso, mas raramente na ação. Os regulamentos de condutas e os incentivos no processo de civilização do interior
tiveram como contraponto a repressão. Esta, por sua vez, desempenhou um duplo papel no processo ao mesmo tempo
produtor, reprodutor e reformulador do povo em armas. Pois, através de dela, armaram-se grupos familiares para cumprir as
tarefas repressivas; que por sua vez provocaram a deriva de diversos indivíduos e grupos para as hostes dos homens em
armas que; enfim, eram o próprio argumento da repressão para realizar-se sem peias sobre uma grossa camada da população
que, ao longo do tempo, viu crescer em torno de si o que seria um dos mais longos e ostensivos períodos de ocupação militar
da história do Brasil.
A documentação mostra também como, em sua própria avaliação, os juristas que ocupavam postos comissionados
na segurança pública efetuavam uma divisão entre a política local e a estadual que correspondia a uma outra: as práticas
tradicionais, e portanto atrasadas e retrógradas, e as modernas e avançadas. A elas correspondiam ainda dois tipos de
políticos: aqueles preocupados apenas com as eleições, cegos para todo o resto e que não escolhiam meios para vencê-las; e
os que viam nesta atividade uma forma de trabalhar para o bem público.
Entre os meios ilícitos usados pelos mandões de aldeia estava, é claro, a proteção de criminosos. E entre os meios
de os proteger estava o emprego de algumas instituições estatais, tais como a polícia e a justiça, sob a forma do júri e dos
habeas corpus. Os chefes locais, segundo a avaliação de seus pares estaduais, eram aqueles que, ao mesmo tempo
constituintes do Estado, eram seus inimigo. Ao mesmo tempo parte integrante do sistema de poder legal e seu sabotador.

2. Prisões e Periferias de São Paulo – 1992-2008


A Casa de Detenção do Carandiru, inaugurada na década de 20 como um presídio-modelo com capacidade para
1.200 homens, mas que chegara a ser considerada o maior presídio da América Latina ao abrigar quase 8.000 presos, fora
desativada e parcialmente demolida no ano de 2002, dez anos após o episódio que ficara conhecido como Massacre do
Carandiru, quando 111 detentos foram executados pelas forças policiais que invadiram a instituição no propósito de dar fim à
rebelião instaurada no Pavilhão 9.
Entre o Massacre e a desativação do presídio, o universo prisional sofreu grandes transformações, decorrentes de
processos simultâneos que transcorriam independentemente, mas que se tocavam a todo momento. O primeiro é o
crescimento vertiginoso da população carcerária do Estado de São Paulo, que totalizava cerca de 52.000 presos em 1992 e, ao
final de 2002, contara com quase 110.000. Este crescimento, contudo, ocorrera sem oferecer grandes alardes e o principal
motivo para esta discrição está relacionado ao segundo processo: a desativação das carceragens dos Distritos Policiais
concomitantemente à construção de várias unidades prisionais no interior do Estado ou, quando na Grande São Paulo, em
áreas mais afastadas do centro. Por fim, meses após o Massacre, em uma cadeia de segurança máxima, um pequeno grupo de
presos funda o Primeiro Comando da Capital, que, inicialmente, cresceu silenciosa e imperceptivelmente para a grande
maioria da população do Estado.
A desativação do Carandiru pode ser considerada um acontecimento que, longe de marcar o fim desses processos,
reúne-os em um ponto de congruência. A partir daí, os passageiros do metrô de São Paulo não mais avistaram detentos nas
janelas de suas celas, as unidades prisionais deixaram de ser cenário do cotidiano da maioria dos paulistanos, delegacias não
mais abrigavam presos que ofereciam perigo aos seus vizinhos. Por mais que a população carcerária aumentasse, ela não
estava mais sob os olhos da população paulistana. A mudança das prisões, das regiões centrais para as periféricas, e, em
seguida, para as cidades mais longínquas do interior paulista, fez também do PCC um fenômeno distante. Mesmo que atue
também nas periferias das cidades, trata-se sempre de áreas de atuação longínquas.

833
2.1 Poder Público
A primeira reação que o Poder Público teve frente ao PCC foi ocultá-lo, negar sua existência. No final de 1995, a
repórter Fátima Souza levou ao ar uma entrevista com o líder de uma rebelião ocorrida em uma das prisões de Hortolândia,
cidade próxima a Campinas, interior do Estado de São Paulo. O prisioneiro declarava pertencer “a uma fraternidade, um
comando que se espalhou pelas cadeias” para “lutar contra as injustiças, contra o sistema carcerário (...), contra o judiciário
(...) e pelos nossos direitos” (Souza, 2007: 9). As autoridades prontamente desmentiram o preso e transferiram-no para uma
cadeia mais segura. Nesta ocasião, o nome do comando ainda não fora revelado. Demorou ainda mais de um ano para que a
sigla PCC viesse a público, em matéria da mesma repórter. Mais uma vez, o governo desmentiu. Sobre o PCC, João Benedito
de Azevedo Marques, então secretário de Administração Penitenciária, declarou: “Uma ficção, uma bobagem. Balela. Estou
absolutamente convencido disso. Sou secretário há quase dois anos e nunca vi qualquer manifestação desse grupo” (: 16).
Em setembro de 1997, durante uma rebelião em um presídio no interior paulista, o secretário finalmente presenciou
uma manifestação do grupo: enquanto concedia entrevista coletiva, uma bandeira com a sigla do comando fora estendida
pelos presos rebelados. Mesmo assim, foi somente em 1999 que, após resgate de presos de uma delegacia, o Estado solicitou
à polícia uma investigação. Ao término das investigações, no final de 2000, a polícia já tinha convicção da força da facção,
mas o governo continuou a tratá-lo como um pequeno grupo de presos, sem expressão e com pouca influência dentro das
cadeias. Mesmo assim, decidiu transferir suas lideranças para prisões de outros Estados. Mas se o plano era enfraquecer o
comando, o resultado foi o inverso; as transferências possibilitaram a expansão do PCC para outros Estados e a aliança com
outras facções, especialmente com o Comando Vermelho, do Rio de Janeiro.
Somente oito anos após a fundação do Comando, precisamente em 18 de fevereiro de 2001, dia da primeira
megarrebelião (que envolveu 30 estabelecimentos prisionais), o Governo do Estado reconhece publicamente a existência e
força do PCC. Mas Nagashi Furukawa, então secretário da Administração Penitenciária, destacou que “as organizações
criminosas são minorias dentro dos presídios”. Até a Igreja Católica reuniu-se, na ocasião, para discutir a existência ou não
do PCC. Chegaram, então, à conclusão de que esses eventos seriam uma manobra para prejudicar o PSDB nas eleições que se
aproximavam.
Finalmente, em junho de 2001, o PCC foi denunciado como “organização criminosa”, pelo Ministério Público. Mas
nesta época, seus integrantes já não tentavam manter o comando no anonimato e divulgavam a sigla o quanto podiam.
Enquanto o poder público decidia se reconhecia, se desmentia, se minimizava ou se tomava providências, o PCC
desenhava, com sangue, a sua história. Após uma complexa trama de acontecimentos, Geleião, um dos fundadores do
Comando, é expulso do grupo, que passa para as mãos de Marcola. A polícia, então, decidiu usar esse conflito a seu favor e
ofereceu a Geleião os benefícios da delação premiada. O depoimento de um ex-integrante e fundador permitiu à polícia
entender melhor o PCC. Em novembro de 2002, o Secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, divulgou
em entrevista coletiva o organograma do PCC, que contava com postos de chefia, sub-chefia e pilotos.
Neste mesmo ano, havia sido inaugurado o Presídio de Presidente Bernardes, de segurança máxima, que serviria
para isolar as lideranças da facção. De fato, onze dos presos citados no organograma foram transferidos para lá. O diretor do
Deic, Godofredo Bittencourt, considera essa transferência uma vitória: “O PCC é uma organização falida. Não posso dizer
que está morta, porque é uma sigla forte, é como um câncer, fica sempre um pontinho. Mas é um câncer controlado, que
vamos, com paciência, extirpar.” (: 226).
Mas suas ações continuaram. Em março de 2003, Machadinho, juiz corregedor de presídios de Presidente Prudente,
foi assassinato e, em novembro, o PCC promove ao todo 70 atentados contra o poder público, principalmente as forças
policiais, com o objetivo de pressionar o governo para tirar seus líderes do Presídio de Presidente Bernardes. Em 2004, 8.000
pessoas se reuniram à frente da Secretaria de Administração Penitenciária para uma manifestação contra as novas regras das
visitas aos presídios.
Em Maio de 2006 veio a ação mais contundente: a segunda megarrebelião, que envolveu um número maior de
instituições penais – ao todo 84 instituições penitenciárias, das quais 10 fora do Estado de São Paulo – e resultou em um total
de 299 ataques a órgãos públicos, 82 ônibus queimados, 17 agências bancárias alvejadas a bombas, 42 policiais e agentes de
segurança mortos e 38 feridos2. O então governador de São Paulo, Cláudio Lembro (que assumira o posto de Geraldo
Alckmin, candidato à presidência da república), garantia que “São Paulo não se curvará ao crime”. Nagashi via como causa
dos ataques a transferência de 765 líderes do PCC para o Presídio de Venceslau II. Da mesma forma como começaram, os
ataques cessaram. Nagashi negou ter feito qualquer acordo, nesta ou em qualquer outra ocasião:
durante a minha gestão não se fez nenhuma espécie de concessão ao PCC. Pode ter havido uma ou outra concessão na
ponta, mas como atuação de Governo,uma concessão ao “partido”, à organização criminosa como uma forma de
manter a paz, isso nunca aconteceu. É claro que quem procura cumprir a lei sem fazer concessões acaba provocando
descontentamento e,consequentemente,rebeliões.

Mais recentemente, em entrevista à revista de Ciências Sociais Novos Estudos CEBRAP (n. 80 março/2008),
sediada um dos mais respeitados institutos de pesquisa na área, Nagashi deu ar de novidade a antigas questões do sistema

2
Conforme balanço divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, em 22/05/2006:
http://www.ssp.sp.gov.br/home/noticia.aspx?cod_noticia=8284.

834
penitenciário: defendia o poder da administração da prisão em conceder progressão de pena ou saídas temporárias, a
transferência de lideranças prisionais para outros Estados, a investigação, prisão e condenação dessas lideranças.
Foucault nos mostrou muito bem que a preocupação com a associação entre presos nasceu praticamente junto com
a própria criação das prisões. Mas o ex-secretário declara, por fim, que a formação de organizações nas prisões paulistas
teriam sido algo inédito:
em São Paulo aconteceu uma coisa inédita: algo que não existia na rua foi formado dentro das prisões. Creio que não
tenha havido outra motivação para isso a não ser a falta de controle do Estado sobre seus presos. Mas por que há falta
de controle? Porque havia muita gente presa num único lugar, sem que houvesse agentes ou servidores públicos
investigando a movimentação dos detentos. O modelo que se criou em São Paulo, há 40, 50 anos, sempre foi este: de
penitenciárias grandes, como as de Avaré, Araraquara, Presidente Venceslau, com 500, 800, 1.000 presos, poucos
funcionários, que não têm a menor condição de observar a atuação de cada preso. Então, daquele grupo enorme de
detentos que ficam conversando o dia inteiro, formar uma organização criminosa foi só um passo.” (: 31).

2.2. Cientistas Sociais


Maio de 2006. Foi quando os cientistas sociais foram chamados a dar alguma explicação para o que estava
acontecendo; uma iniciativa muito tardia se comparada à do Rio de Janeiro, cuja mobilização de cientistas sociais, sobretudo
antropólogos, remonta já há cerca de uma década. Em caderno especial do jornal Folha de São Paulo, o Caderno Mais de 21
de maio de 2006, o coordenador do Núcleo de Estudos da Violência e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, ambas instituições da Universidade de São Paulo, o sociólogo Sérgio Adorno, declara que “há dez ou quinze anos,
era inimaginável que um professor de uma universidade pudesse ser sequestrado ou atacado”. Mas que, em dias de PCC, ele
poderia virar uma “moeda de troca valiosa” na mão dos bandidos, se voltasse a frequentar o sistema prisional. Assim,
declarou existir “pouca informação segura, de análises ou pesquisas, sobre o crime organizado em São Paulo” em função da
dificuldade de fazer pesquisas nessa área, dada a necessidade de entrar as cadeias:
A gente não sabe se esse comando é centralizado. Aparentemente deve ser. Mas não podemos ter certeza de como as
ordens são transmitidas. Possivelmente se usa celular, mas não sabemos se é só isso. Tampouco sabemos como essas
ordens são encadeadas, como chegam à outra ponta e como são obedecidas.

Com isso, justificava a inexistência de pesquisas acerca de um comando cuja capacidade de articulação
demonstrava que “chegamos a um outro patamar na evolução da criminalidade e da violência” (grifos meus). O que se
pensava só existir nas prisões ou nos bairros periféricos ganhou visibilidade, por meio da violência, nas regiões centrais das
cidades.
A onda de ataques de 2006, pela sua amplitude e pelas proporções que alcançou, impulsionou uma mobilização nas
universidades em torno da necessidade de dar conta do fenômeno do “crime organizado” em São Paulo. Essa mobilização foi
condensada no lançamento do Dossiê Crime Organizado, pelo Instituto de Estudos Avançados da USP.
No primeiro artigo do Dossiê, Fernando Salla e Sérgio Adorno retomam os ataques de 2006. Os autores sustentam
que o sucesso destes acontecimentos foi garantido pela estrutura organizacional do PCC, “mantida por um quadro
hierarquizado de ‘funcionários’, disciplinados e obedientes, capazes de executar ordens sem questioná-las” (: 9), mas também
porque a confecção de leis e políticas não acompanhavam as mudanças da sociedade: “as políticas públicas de segurança
permaneceram sendo formuladas e implantadas segundo modelos convencionais, envelhecidos, incapazes de acompanhar a
qualidade das mudanças sociais e institucionais operadas no interior da sociedade” (2007 :10).
Por fim, e contrariando muitos outros analistas, afirmam que “há fortes evidências de que o encarceramento em
massa associado ao propósito de contenção rigorosa das lideranças dos grupos criminosos organizados tem produzido efeitos
adversos”, como os ataques de maio de 2006, que Adorno e Salla classificaram como “momentos de efervescência social
(Durkheim, 2000)” e, ao mesmo tempo, como “momentos de guerra (Foucault, 1997)”. Mesmo pensando as prisões como
“ambiente em que as relações sociais são arranjos precários, carentes de reciprocidade”, vêm esses eventos como ocasiões em
que “a solidariedade entre ‘irmãos’ é reforçada, assim como os vínculos entre aqueles que se encontram encarcerados e o
mundo exterior” (: 24). Trocamos, portanto, Enrico Ferri e Garofalo, pelo sociologismo durkheimiano.
Frente a essa natureza do ambiente prisional, propõem o modo pelo qual o poder público deve agir:
segurança, lei e ordem, justiça não podem ficar à ilharga de pressões do senso comum ou de interesses políticos de
momento (...). Na democracia, as autoridades são justamente eleitas para que, em nome dos cidadãos, decidam bem, [o
que] requer sabedoria técnica, senso de proporção e justiça na tomada de decisões, além da responsabilidade ética (:
25).

Isso toca aquela velha história da força do Estado, que não pode ceder às pressões públicas, mas também deve se
fazer chegar a todos os cantos, pois a existência de outros poderes continuam a ser atribuídos a sua ausência em determinadas
regiões. De volta, a velha tese do isolamento. Essa foi uma questão bastante discutida, tanto na Mesa-redonda sobre Crime
Organizado, promovida para o lançamento do Dossiê, quanto no Seminário Internacional sobre Crime Organizado, evento
promovido pelas três universidades paulitas (USP, UNESP e UNICAMP). Neste último evento, uma palestrante norte-
americana chegou a sugerir a necessidade de intervenção internacional para “garantir a democracia no Brasil”, uma vez que o
Estado brasileiro não se mostrava capaz de se fazer chegar a todo o seu território. Mais especificamente, na questão das

835
prisões, Guaracy Mingardi, doutor em ciência política pela USP e atualmente assessor do Ministério Público do Estado de
São Paulo, afirmou que
na cadeia, como em qualquer lugar, não existe vazio de poder. O Estado abdicou do poder dentro da cadeia, do poder
de regulamentar determinadas coisas. Abdicou há muitas décadas e deixou na mão dos criminosos. Se você abdica,
alguém vai tomar isso aí. O preso lá do fundão, como eu falei, está desprotegido... ele vai procurar alguém que proteja.
Ele já procurou. Essa é a nossa questão. Ele já procurou, ele já sabe o caminho. Então, esse poder foi preenchido e,
agora, não adianta só correr atrás. Pro Estado recuperar isso aí, é difícil. Quando eu falo ‘poder’, eu não estou falando
de força, de violência, estou falando de poder mesmo, certo? Poder de decidir o que acontece lá dentro. (...) Até
escolher o faxina, o Estado abdicou. Se o Estado abdica de todo poder, alguém ocupa. Então nós precisamos parar com
essa idéia de que cercar o preso e deixar ele lá, tá resolvido o problema. Porque ele vai sair de lá um dia. Se a gente
cercar e deixar ele lá, ele vai sair pior.

Em seguida, declara que, mesmo que o Estado consiga dar fim ao PCC, se não mudar o sistema, ou seja, se não
conseguir ocupar esse espaço com seu poder, outra organização ocupará, pois “o exemplo está dado”:
Acabou o PCC, se nós não mudarmos o nosso sistema, outra organização similar vai se apropriar do espaço que ele
deixou. Então a gente precisa tomar cuidado com isso. Os eventos de maio mostram que eles têm poder e perceberam
que têm poder. E se a gente não se adaptar e não trabalhar essa questão do poder deles, nós vamos perder cada vez
mais o espaço, não só da cadeia, mas como também nas ruas. Pois se a organização criminosa que nasce na cadeia, que
“é uma coisa diferente, que caminha por um local que a gente não sabe ainda (...), a grande questão é quando (...) saem
da cadeia.

Eis o problema: devolver para a cadeia a organização que ali nasceu e centrar os esforços em erradicá-la dentro das
prisões. Primeiro, restringir sua área de atuação. Depois, agir sobre essa área. A receita parece simples, mas não é. Para
mandar todos de volta à prisão, é necessária uma legislação que abarque esse tipo de atuação, é necessária a “definição do
tipo penal”. Para tanto, Getúlio Bezerra Santos apresenta o que chama de “tentativa conceitual” em torno do que é o “crime
organizado”, uma vez que esse conceito não é unânime. O delegado da Polícia Federal evoca a Convenção de Palermo, da
qual o Brasil é signatário, para a definição conceitual de “crime organizado”, que se diferenciaria de “quadrilha ou bando”,
crime previsto no já ultrapassado Artigo 288 do Código Penal, que fora criado para “combater Lampião e seu bando”.
Para combater o PCC, diziam os palestrantes, é necessária uma legislação mais sofisticada. Mas para tanto é capital
o entendimento do que é o PCC. Flávio Oliveria Lucas, juiz federal da 4ª Vara Criminal do Rio de Janeiro aponta-o como
uma semente de uma formação criminosa que nunca existira no Brasil, uma formação com motivação político-ideológica,
cuja legislação não conseguiria abarcar na tipificação de crime organizado. Mingardi nega tal característica e Getulio Bezerra
pondera que “esse outro tipo de movimento criminoso organizado”, “no momento em que esse grupo passa a capitalizar pra
poder atingir os objetivos político-ideológicos dele, ele cai na malha do crime-negócio”. E, de acordo com as diretrizes
estabelecidas pela Convenção de Palermo, é “crime organizado” aquele que visa o lucro.
Mas, como definir o PCC? Dr. Flávio pinta-o ao modelo de uma empresa, de estruturação vertical assentada “sobre
as bases de uma hierarquia”:
A organização criminosa vai se dar da mesmíssima maneira, desde que ela seja razoavelmente estruturada... isto vai
fazer com que ela se estruture a partir de níveis, de diferentes níveis. Então no ponto vertical, hierarquia e no ponto
horizontal, distribuição de tarefas. E aí, no que toca nesse plano vertical das organizações criminosas, entra de maneira
muito evidente aquela necessidade que o Dr. Getulio falou, de que os órgãos, quando da repressão das atividades
dessas organizações criminosas, não se centrem na repressão das atividades das pessoas que estão nas bases da
organização. Porque toda estruturação vertical parte do pressuposto de que aquele que tá lá na ponta final, na base da
pirâmide, aquele é fungível. Há uma fungibilidade do executor da tarefa; não há uma fungibilidade do patamar do
patamar superior, mas há uma fungibilidade, uma troca livre, sem que a substância seja alterada, daquela pessoa que
está lá na ponta, aquele que mata, aquele que vende o entorpecente, aquele que está a praticar a ameaça com a arma de
fogo no roubo de carga. Essa pessoa, se a atividade de repressão for voltada basicamente pra repreender elas, a
organização criminosa vai se manter incólume. De modo que, realmente, a repressão – e aí a polícia entra fortemente
nisso – tem que se dar no topo da pirâmide e não nas bases da pirâmide, sob pena de perpetuar as atividades das
organizações.

Mas como definir quem está no topo e quem está na base dessa pirâmide? A questão é controversa. Mingardi
afirma que o discurso do PCC visa angariar gente e que o “indivíduo pode optar pra entrar no PCC ou em algumas outras
organizações por causa desse discurso. Mas as lideranças já deixaram de estar preocupadas com isso há muito tempo. (...)
Agora, as atuais lideranças estão preocupadas é com o bolso. O preso é massa de manobra.”
Para Mingardi, mas também para Dr. Flávio, esse preso, do “patamar inferior”, estaria em busca de proteção, de
sentimento de pertença, já que não lucra ao ser membro do PCC. Mesmo um traficante internacional pode ser, sob esse
aspecto, um membro do “patamar inferior”. E isso não permite dizer que o PCC esteja praticando tráfico internacional, pois
essa é uma atividade individual deste que apenas busca proteção. Estes intelectuais vêem o PCC como uma pessoa jurídica,
que visa lucro, ao passo que aqueles que pagam para pertencer à organização são massa de manobra, indivíduos explorados
pela organização.
Mais uma vez, essa dimensão é associada, agora por Getúlio Bezerra, à falta de Estado:

836
No meu entendimento, esses movimentos dentro das prisões, é uma espécie de previdência. Primeiro pra se salvar, pra
se defender, porque o Estado ficou ausente historicamente. Ele criou um lixão, cercou e jogou o pessoal lá dentro. E
salve-se quem puder! Na ausência do Estado. Aí criou isso, aí começaram as siglas e isso deu um glamour, virou grife.
Agora, tanto como auto-defesa, Padre, como também pra praticar crimes. Porque se paga pra dormir, se paga pra beber
água, se paga pra fumar, se paga pra sair... tudo é pago, o tempo todo. Tem um tabelão maior do que essas tabelas dos
bancos.

Mas é uma falta de Estado que copia o Estado. Nenhum dos pesquisadores ou juristas que se debruçaram sobre o
fenômeno PCC conseguiram ver nele algo diferente de um Estado às avessas, uma cópia da forma, com outro conteúdo.
Foram incapazes de ver que o PCC já possuiu uma forma Estado, mas que as várias tentativas de capturas pelo Estado (fora)
resultaram em guerras internas que destruíram o Estado (dentro).
Cabe lembrar que da mesma forma como Goldman (1999) afirma que “o problema é que não podemos admitir que,
com a emergência do Estado, tudo se passasse como se o contra-Estado simplesmente deixasse de existir”, não podemos
admitir que, com a dissolução do Estado, tudo se passa como se ele desaparecesse por completo. Mesmo quando dissolvida a
forma Estado, ela continua presente e permite a existência dos mecanismos coletivos de inibição. São esses os mecanismos
que dificultam a definição conceitual do PCC, a apreensão de seu funcionamento, ao mesmo tempo em que é o vício de
Estado dos pensadores estadistas que criam a ilusão do PCC-Estado, do PCC-Empresa.

Representações de Justiça Polular na trajetória de um bandido social


César Barreira
Universidade Federal do Ceará
[email protected]

Resumo: A presença recorrente na historiografia de personagens que ocupam um lugar de bandido e de herói nos levou a refletir sobre a
construção e reprodução de uma memória, entre um misto de ficção e realidade, destes atores sociais. Existe uma mistura de valores que diz
respeito, não só à maneira como os bandidos são colocados na função de heróis, mas também, na função de “fora da lei”. Procuro
compreender, neste estudo, as representações que são realizadas sobre estes atores que constroem suas vidas no “mundo das contravenções”
e passam a serem vistos como “heróis populares”. Um dado importante é a construção de um “patrimônio cultural” que possibilita o
surgimento de uma “memória material” do bandido/herói. Essas questões, que servem de referência a pesquisa, têm como campo analítico e
empírico um personagem da historiografia portuguesa José Teixeira da Silva, conhecido por José do Telhado, que viveu na primeira metade
do século IXX. A miséria, a existência de outros bandos de salteadores, o clima de forte injustiça social e a ausência de uma justiça ou de
uma “justiça imparcial”, o impeliu para uma vida fora da lei e o tornado um "herói abortado". A máxima é que perseguia uma moral, uma
honra, tinha consciência das injustiças sociais e apregoava então proteger os humildes distribuindo com eles os produtos dos assaltos, tendo
como contra ponto a construção de uma “justiça popular”.

A presença recorrente na historiografia de personagens que ocupam um lugar de bandido e de herói nos levou a
refletir sobre a construção e reprodução de uma memória, entre um misto de ficção e realidade, destes atores sociais. Existe
uma mistura de valores que diz respeito, não só à maneira como os bandidos são colocados na função de heróis, mas também,
na função de “fora da lei”. Procuro compreender, neste artigo, as representações que são realizadas sobre estes atores que
constroem suas vidas no “mundo das contravenções” e passam a serem vistos como “heróis populares” Fundamentalmente,
procuro compreender a constituição ou a representação que é realizada sobre esses personagens, como também, os sujeitos
constitutivos de uma “justiça paralela”.
A representação do bandido-herói acompanha, geralmente, três momentos. O primeiro momento é o rompimento, a
quebra de amarras com os laços de dominação de um sistema opressor, injusto incorporado ou representado por um grande
proprietário de terra onipotente e cruel, ou por um sistema social injusto e opressor, reforçado por um sistema jurídico frágil,
ausente ou parcial, que protege os poderosos. O segundo momento é demarcado pelas práticas ou atos delituosos, dos crimes,
da vida nômade e aventureira do bandido-herói. E, por último, configura-se o momento em que o bandido-herói é
transvertido de protetor, justiceiro ou repartidor público.
O lugar do “bandido social”, definido por Eric Hobsbawm, é realçado por qualidades de valentia, ousadia, força e
aventureirismo. Na condição de detentor destas qualidades é colocado como herói, o que sempre vence. São eles justiceiros,
repartidores públicos, cangaceiros, bandoleiros ou mesmo matadores de aluguel. Existe uma mistura de valores que diz
respeito, não só à maneira como os bandidos são colocados na função de heróis, mas também, na função de “fora da lei”, tal
qual é veiculado pelas instituições judiciárias. Nesta mistura de valores e de códigos os contornos de uma determinada forma
de justiça, uma “justiça paralela”, são traçados. Os valores morais são pautados, tendo, de um lado, a generosidade, a
lealdade, a coragem, a independência e o desprendimento e do outro lado a ganância, a falsidade, a subserviência e a avareza.

837
O bandido pode ser o criminoso, como também o protetor, o justiceiro, o repartidor público, o herói1. Não existe
nestas circunstâncias um culpado a ser punido, mas sim, um meio social adverso, injusto, que propicia o surgimento desses
bandidos-heróis.
Poderíamos dizer que a construção do bandido-herói significaria algo próximo de uma “resistência popular” às
formas convencionais de mando político ou de uma estrutura injusta e excludente? Bem como, a constituição de uma “justiça
paralela” responde à fragilidade das instituições judiciárias?
Este estudo tem como campo analítico e empírico um personagem da historiografia portuguesa José Teixeira da
Silva, conhecido por José do Telhado, que viveu na primeira metade do século XIX, na região do distrito do Porto. O
surgimento desse personagem é explicado ou justificado, nos romances, que tratam dessa figura dramática, pela miséria
econômica reinante, principalmente, nas áreas rurais de Portugal, a existência de outros bandos de salteadores, o desencadear
das guerras civis, o clima de forte injustiça social e a ausência de uma justiça, por parte do Estado ou de uma “justiça
imparcial”. Este quadro o impeliu para uma vida fora da lei e o tornado um bandido ou um "herói abortado", pelas condições
sociais e políticas da época. A máxima é que ele tinha consciência das injustiças sociais e apregoava então proteger os
humildes, distribuindo com eles os produtos dos seus assaltos, bem como, perseguia uma moral, uma honra. Tendo como
corolário ou contraponto a construção de uma “justiça popular”.
A análise que desenvolverei, para compreender os valores e as práticas sociais deste personagem, se enquadra nas
perspectivas analíticas de Eric Hobsbawm e Edward Thompson. Ressalto, neste sentido, que tanto a ordem como a desordem,
o legal e o ilegal, bem como, as classificações sobre as práticas conflituosas, os comportamentos desviantes têm que ser
analisados como produção social. Estes citados autores trabalharam na perspectiva de compreender as rebeliões populares,
principalmente, do século XVIII e do século XIX. Para Hobsbawm
O banditismo social, fenômeno universal e praticamente imutável, pouco mais é do que um endêmico protesto
camponês contra a opressão e a pobreza; um grito de vingança contra os ricos e os opressores, um vago sonho de
conseguir impor-lhes alguma forma de controle, uma reparação de injustiças individuais (1987, p. 15).

Hobsbawm (1976) com a preocupação de construir e analisar os rebeldes primitivos, enquanto bandidos sociais,
aponta nove características que o definiriam: inicia sua carreira de marginalidade “não pelo crime, mas como vítima de
injustiça”; “corrige os erros”; “tira dos ricos e dá aos pobres”; “nunca mata, a não ser em legítima defesa ou vingança justa”;
“se sobrevive, retorna a sua gente como cidadão honrado”; “ele é admirado, ajudado e mantido pelo seu povo”; “morre
invariavelmente, apenas por traição; “é – pelo menos em teoria - invisível e invulnerável”; e, por último, “não é inimigo do
rei ou imperador, fontes da Justiça, mas apenas da nobreza local, do clero, e de outros opressores”.
Thompson analisando os motins ou as ações populares, do século XVIII na Inglaterra, detecta uma noção
legitimadora existente nestas práticas. Por noção de legitimação, o autor, entende
que os homens e as mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou
costumes tradicionais; e de que, em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. De vez em quando,
esse consenso popular era endossado por alguma autorização concedida pelas autoridades (2005, p. 152).

Existia no interior do processo de dominação uma “solidariedade simbólica” entre a autoridade (governo) e os
pobres, classificada como uma “economia moral”. O governo não reprime determinadas ações, de quebra da ordem, pelo fato
delas serem ligadas diretamente ou decorrente da luta pela sobrevivência, da busca pelo bem-estar comum. Essas noções
estavam ancoradas na tradição paternalista das autoridades inglesas2.
Na montagem deste estudo utilizo, fundamentalmente, a literatura existente sobre este “bandido-herói”. Busco
analisar e compreender qual a representação feita pelos autores, principalmente, romancistas sobre esse personagem,
privilegiando a sua trajetória construída de “homem honrado” e de “salteador”, tendo como suporte os valores de honra,
coragem e justiça. Segui a orientação de Hobsbawm que diz que este tipo de estudo não pode se limitar a somente aos
documentos existentes, é importante um contato com as pessoas e lugares dos bandidos. Nesta perspectiva realizei algumas
entrevistas, na região do distrito do Porto, área em que ele morou, como também praticou seus “grandes assaltos”. Tais
entrevistas foram feitas com pessoas mais idosas e com estudiosos do tema, privilegiando o entendimento de um universo
imaginário sobre esse “bandido-herói”. Realizei uma pesquisa em Jornais, do século XIX, nas cidades do Porto, em Lisboa e
Penafiel. Os jornais funcionaram como um contraponto, ou mesmo, como uma busca de maior veracidade de algumas
informações oferecidas nos livros. Li e assisti algumas peças de teatro, bem como, entrevistei os seus diretores. Assisti,
também, dois filmes, da primeira metade do século XX, sobre o Zé do Telhado. As peças de Teatro e os filmes entram,
também, como patrimônio cultural deste personagem.
Diante de uma temática bastante complexa e com um volume muito grande de informação e muito rico
sociologicamente, surge uma primeira preocupação: como abordar esta temática ou como construí-la sociologicamente? Não
é nosso intuito desfazer equívocos ou refutar afirmações, persigo a memória ou poderíamos dizer a “memória cultuada” sobre

1
Thomas Carlyle no livro “Os heróis”, que trata dos grandes homens, refere-se a seis tipos de heróis: Herói como divindade; Herói como protetor – Maomé;
Herói como poeta – Dante; Herói como sacerdote – Lutero; Herói como homem de letras – Rousseau; Herói como rei – Napoleão.
2
É importante ressaltar que essa prática, classificada como uma “economia moral”, ai ser encontrada nos períodos de estiagem nos sertões do nordeste, diante
das ações dos trabalhadores definidas como “saques”.

838
este personagem, bem como, as diferentes representações construídas sobre Zé do Telhado. Tento compreender como se
configura a construção simbólica deste personagem e, mais especificamente, a construção do seu capital simbólico.

Uma construção, uma trajetória


José do Telhado ou José Teixeira da Silva ou, simplesmente, Zé do Telhado é natural de Telhado, freguesia de
Castelões de Recesinhos, junta de Penafiel. Zé do Telhado era filho de um conhecido assaltante Português: Joaquim do
Telhado. Nasceu no dia 22 de Junho de 1818 e faleceu em 1875 em Angola, na região de Malange. É classificado pela
imprensa e por alguns romancistas que se dedicaram a esse tema, como o maior salteador/bandido do século XIX de
Portugal, tendo sido degredado, para a África, no início da década de 1860. É cantado e decantado por poetas, escritores,
cineastas, teatrolos e cordelistas.
Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo
aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de
garrote, quando se manifestam e apontam extraordinários destinos. A Calábria é um desprezado retalho do mundo; mas
tem dado salteadores de renome. Toda aquela Itália, tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores,
bailarinas, até em produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o seu bom gênio! Aí corre um livro intitulado: Salteadores
célebres de Itália. É ver como debaixo daquele céu está abalizada em alto ponto a graduação das vocações. Tudo
grande, tudo magnífico, tudo fadado a viver com os vindouros, e a prelibar os deleites de sua imortalidade. Schiller,
Victor Hugo, Charles Nodier, se fada má lhes malfadasse o berço em Portugal, teriam de inventar bandoleiros ilustres,
a não quererem ir descrevê-los ao natural nos pináculos da República Apenas um salteador noviço vinga destramente
os primeiros ensaios numa escalada, sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o
jornalismo com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça. A
civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham todos os mesmos
tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Ladrão de encruzilhada, que traz no peito à bala e o bacamarte
apontado ao inimigo, esse há-de ser o bode expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos do sol benéfico
da civilização. Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo. Os daquela escola tropeçam nas
honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam, acham-
se encravados nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do Código Penal.

Diz, algum tanto, como exemplo, desta lastimável anomalia a história de José Teixeira da Silva do Telhado, o mais
afamado salteador deste século (CASTELO BRANCO, 2004, p. 310- 312).

Com essas palavras Camilo Castelo, o grande romancista português, notabilizou José do Telhado. Esse romancista
o conheceu na Cadeia da Relação do Porto, entre 1860 e 1861, e no livro Memórias do Cárcere fez um longo relato sobre
esse personagem, fazendo, praticamente, uma biografia desse salteador português. Tal biografia carregada de admiração,
mas, sobretudo de cumplicidade com práticas delituosas prenhe de valoração social. Camilo germina um salteador ilustre, de
renome e celebre, dando asas à imaginação popular na construção de um lendário bandido romântico.
A obra do Camilo Castelo Branco “Memória do Cárcere”, especificamente o capítulo 26, é carregado de
simbolismo para se trabalhar a constituição da memória sobre José do Telhado. Podemos dizer que é o ponto germinador
desse quadro. Esse capítulo foi e é importante para cultuar a memória do Zé do Telhado para os letrados e também para os
não letrados, na medida em que ele foi publicado em livros populares e vendido, como literatura de cordel nas principais
feiras da região3.
Esse personagem da história portuguesa, conhecido como Zé do Telhado, tem como distintivo o fato de “roubar dos
ricos para distribuir com os pobres”, assumindo, neste sentido, o lugar de “repartidor público”. As representações presentes
nos romances sobre Zé do Telhado são geralmente bastante elogiosas. Augusto Pinto (2005, p. 5-6) diz:
José do Telhado, uma relevante figura do século dezenove, foi um homem de personalidade forte, que reagiu com toda
a sua força às injustiças que lhe bateram à porta (...). José do Telhado não perdoou, e como na guerra já tinha optado
por defender os mais fracos, assim prosseguiu, e sem se ter na conta de ladrão profissional, antes se intitulava um
“repartidor público”, roubando aos ricos para seu sustento e dos seus, e entregava uma parte desses mesmos roubos aos
mais necessitados.

Zé do Telhado comandou uma quadrilha de salteadores que tinha como aspectos importantes o fato de evitar “o uso
a violência física”, mas, principalmente, a máxima de fazer uma classificação moral das suas possíveis vítimas. Consta que os
seus roubos eram cometidos somente contra pessoas representadas como “velhacas”: mau patrão, mau esposo e homens ricos
e avarentos, incluindo, nesta classificação, alguns clérigos da Igreja Católica. Em alguns romances sobre esse personagem,
são relatadas situações em que ele anunciava os assaltados, como também ensejava uma solução, em um misto de acordo e
ameaça.

3
Encontrei várias versões deste texto, de Camilo Castelo Branco, em edições populares. Quase todas as publicações, se não, todas têm como grande fonte o
trabalho deste romancista. Reproduzindo as virtudes e os defeitos, como datas e fatos não verdadeiros. Podemos colocar como exceção um livro de literatura de
cordel, publicado em 1898, de autor desconhecido, e o livro de Campos Monteiro que se baseou nos processos judiciais e em sobreviventes do tempo do Zé do
Telhado.

839
Para os ricos, algumas vezes, dava o salvo conduto, que possibilitavam circular seguramente, como também,
mantinha certo comportamento dentro algumas normas esperadas.
A trajetória deste personagem é sempre mesclada entre um homem honrado e um quadrilheiro, tendo como forte
ingrediente, como é comum na vida de “bandidos-heróis”, uma grande paixão. No seu caso a paixão por uma prima,
conhecida por Aninhas. Tal paixão configura um homem com sólidos princípios morais, leal e galante, sendo cobiçado por
várias mulheres, mas mantendo sempre a fidelidade a sua escolhida. Depois de não obter permissão para casar com a prima
(decorrente do fato de não possuir uma boa condição econômica) faz uma “jura de amor” e parte, para outros lugares, quase
um exílio, em busca de riqueza e, fundamentalmente, de respeito. Reproduzindo, no fato de partir, de migrar, as trajetórias de
outros heróis populares. Ele segue para Lisboa para assentar praça no quartel.
Os relatos existentes sobre a sua vida destacam atributos qualificativos, como por exemplo: sentido de liderança,
fortes princípios morais, lealdade, coragem e valentia. Zé do Telhado teve uma vida militar, vinculando-se fortemente ao
exército do General Sá da Bandeira, sendo inclusive condecorado com a medalha “Torre e Espada”, por sua bravura, mas
principalmente pela lealdade ao seu comandante.
José do Telhado depois de uma vida conturbada, entre assaltos e participação na guerra civil portuguesa de meados
do século XIX, é preso e condenado ao degredo na África. Ele viveu em Xissa, Angola, região de Malange, até os seus
últimos dias de sua vida, e era considerado “um branco bom”. Augusto Pinto relata que “os negros mais pobres (de Angola)
durante muitos anos iam chorar, ajoelhados aos pés da sua campa, evocando ali muitas vezes o nome do pai dos pobres”
(2005, p. 342). Consta que na África desapareceu o salteador e reapareceu o herói, com fortes valores morais, de
generosidade, lealdade, coragem e desprendimento.

Memória, patrimônio e valores sociais


Na tentativa de compreender, um pouco mais, como um personagem, cuja representação social oscila entre um
enaltecimento e uma negação, entre fatos que marcam a vida de um bandido e de um herói consegue notoriedade perpetuada
por mais de um século, busquei alguns traços de sua trajetória. Interessei-me em analisar como a biografia do Zé do Telhado
é contada, quais os aspectos que são destacados e outros negados, ou não ditos, não revelados.
Um dado importante é a construção de um “patrimônio cultural”, sedimentado desse personagem, que possibilita o
surgimento de uma “memória material”.
Uma “memória louvada” passa a ser construída pelos escritores, teatrólogos, cineastas e narradores, negando, em
princípio, um possível lado violento, agressivo e cruel. Os textos escritos sobre este personagem, nesse estudo, ganham duas
dimensões: aparecem como fonte de dados e como patrimônio cultural construído e amparado na figura de José do Telhado.
Um dado bastante recorrente, em sua memória, é o lado romântico e galanteador para as mulheres, negando ou
desconstruindo aspectos de rudeza e violência. Aspectos estes constituintes, respectivamente, dos homens das aldeias e dos
bandidos. O romance com Aninhas é cantado e decantado, carregado de romantismo: juras de amor e fidelidade. A partir da
negativa de obter “a mão de Aninhas”, passando pela vida de salteador, até a partida para o degredo o casal é sempre
apresentado dentro de um contexto de paixão e romantismo. No período que morou no Brasil, segundo os romancistas, não
suportou saudade de Aninhas e teve que retornar para Portugal. Nos textos aparecem, constantemente, o enfrentamento com o
perigo para visitar sua esposa, criando-se uma relação de superação do medo superado pela saudade. O lado galanteador para
com as mulheres lhe rendeu amores platônicos, mas principalmente cumplicidade que facilitava suas espetaculares fugas após
os assaltos. Constituía-se uma figura que mesclava os atributos de protetor das mulheres e de um “Dom Juan”. No final dos
assaltos ele sempre saía beijando as mãos das damas e fazendo elogios a beleza feminina. Mantinha sempre uma postura de
cavalheiro, mesmo em situações delicadas, com algumas mulheres que exigiam cenas de amor.
Os valores de bondade, generosidade e desprendimento são atributos constantes nas representações sobre este
personagem. As máximas são repetitivas: “a inata bondade de José do Telhado aconselhava-o a poupar a quem o rodeava, aos
próximos”; “Ele era generoso, de uma generosidade particular, os humildes e necessitados viam nele um desvelado protetor
que a providencia divina lhes enviou”. O lado de generosidade e desprendimento o colocava como salteador altruísta, sem
apego aos bens materiais ou aos lucros dos assaltos. Nas narrações obtidas na região de Malange – Angola foi sempre de um
“branco bom, protetor dos negros”.
Os valores de coragem, valentia e firmeza colocavam Zé do Telhado e uma posição de superioridade e de destaque
diante dos outros, corroborando para um papel messiânico de protetor, líder e condutor. São narrados diversos
acontecimentos nos quais ele era chamado ou convocado, em sua casa e urgido na figura de líder. É importante ressaltar que
estes atributos configuram também um bandido-herói: ”valente como as armas e até dizem generoso como um rei”.
Outro aspecto bastante destacado, em sua trajetória, é o senso de justiça, construído, em princípio, uma “justiça
popular”. José do Telhado ministrava justiça a seu modo: “auxiliei aquele a quem roubei noutro tempo e abati o orgulho
desse ricaço que brincava com a pobreza” ou “a justiça será feita, disse Zé do Telhado, com a austera majestade de um juiz
togado”.
Em uma construção simbólica, este personagem aparece como fruto do período histórico português, mas,
fundamentalmente, do “destino”, retirando qualquer possibilidade de culpá-lo pelos seus atos. A justificativa do “destino”
entrecruzada com uma herança, que vinha do pai e de um tio-avô, os quais já fomentavam o terror na região surge
constantemente: “é o destino e contra o destino ninguém pode”, “o sangue de salteador já corria nas veias”.

840
Existe uma frase, que é colocada como sendo do Zé do Telhado, que diz: “É sina! A fatalidade obriga-me a receber
a herança do meu pai, que eu queria repudiar, meu irmão não resistiu à voz do sangue, a desgraça atira-me para o mesmo
charco. Cumpra-se o destino”.
Corroborando com o “destino”, que como diz um ditado popular, com “destino nem Deus pode”, surgem
constantemente, na biografia do Zé do Telhado, as “tentações” que ele teve que enfrentar. Tentações com forte teor cristão,
no sentido de ser testado. As tentações, das mulheres, para trair Aninhas, sua mulher e tentação, por parte de salteadores
(“maus elementos”), para entrar na quadrilha, no grupo de malfeitores. As tentações ou convocações eram carregadas de
dimensões simbólicas: de ausência de um líder ou de uma pessoa com sentimentos nobres. Nesta perspectiva, as tentações,
surgem com novos apelos: “Não serás um ladrão e sim um repartidor público”.
Depois de “cair em tentação” ou “seguindo o seu destino”, Zé do Telhado entra no grupo já ocupando a posição de
líder, estabelecendo diversas regras de comportamento:
De hoje em diante, a malta aqui reunida não será um bando de ladrões. Governamo-nos, mas eu só vou tirar aos que
têm mais, para dar aos que têm menos. Proíbo, ouvi bem: proíbo!, que alguma vez se tire aos pobres e a todos aqueles
que vivem honradamente do seu trabalho. Nesta nossa comunidade, também não consinto que se matem pessoas; e só
usaremos a força quando resistirem e nos obrigarem a isso. Também não admito que ninguém se aproveite da ocasião
para abusar das mulheres. (...) De hoje em diante, eu só estou como Repartidor Público. Tudo o que tirarmos aos outros
não será só para nós. Uma parte é para os pobres (CASTRO PINTO, 2007, p. 68-69).

Estas regras são importantes, diferenciando de outros grupos de salteadores, mas fundamentalmente, para
configurar, mesmo nas práticas delituosas, a figura ambígua de bandido-herói, transvertido de Repartidor Público. Nesta
perspectiva ganha concretude uma frase recorrente nos textos e narrações: “era um ladrão, mas era um ladrão bom”.
Em 1849 participa do 1º assalto realizado contra o solar do Sr. Maciel da Costa, na freguesia de Macieira Porto.
Em 1852 ocorre o assalto ao Solar de Carrapatelo. O assalto mais importante e com maior divulgação. A partir deste assalto
foi feito um grande cerco para a prisão de Zé do Telhado. A imprensa do Porto e uma boa parte da população começaram a
exigir um maior empenho das autoridades. Este assalto maculou bastante a trajetória, considerada correta do Zé do Telhado
nos assaltos. Em decorrência de dois aspectos. O primeiro é que ele ocorreu no mesmo dia e poucas horas depois do funeral
do dono da casa. O segundo é que um trabalhador da casa foi assassinado barbaramente4.
Como dito anteriormente este personagem responde e se inscreve em um período da história portuguesa com graves
crises política, econômica e social. Este período, meados do século XIX, é marcado pela existência de guerrilhas no campo,
guerras civis, existência de diversas facções políticas, revoltas populares (as principais foram a revolta da Maria da Fonte e a
Guerra da Patuléia), e a escassez de alimentos, principalmente, nas áreas rurais, havia uma crise de subsistência. Esta época é
classificada, pelos estudiosos, como um período agitado e turbulento das lutas civis, onde predominavam os desmandos e
arbitrariedades das autoridades. O que possibilita ou impulsionava as organizações populares. Tais organizações terminaram
sendo o celeiro, onde eram arregimentados os futuros combatentes nas guerras de facções políticas.
Como diz Augusto Pinto:
uma estúpida guerra civil, em que praticamente os envolvidos nem sabem por que lutam. Uma guerra civil é a pior
escola que qualquer pessoa pode frequentar, pois tudo se pode fazer sem temer qualquer lei; fica sempre a ganhar
aquele que mais matar e mais roubar, pois são estas façanhas que dão baixas ao inimigo e certo prestígio a quem as
pratica (2005, p. 15).

É importante reter que, nos textos escritos e nas narrações dos entrevistados, aparece claramente este contexto
político como responsável pelo surgimento do salteador Zé do Telhado. A situação política aparece constantemente nas
explicações: “é a política, desde que os Cabrais venceram não houve sossego para o Zé do Telhado. Alguns mudaram de
lugar para sobreviver”. A perseguição ao Zé do Telhado decorre do fato dele ter sido sargento patuléia e combatido contra os
Cabrais. Consta, nos textos, que uma propriedade dele foi extorquida e os empréstimos, que ele foi obrigado a fazer, para
sobreviver, foram sempre com juros muito elevados. Em determinado momento de sua vida, José do Telhado diz: “Eu nunca
me meti em política, os senhores oficiais é que me meteram nela”. Nas narrações e nos livros é citado o fato de Zé do
Telhado ter solicitado um lugar de Guarda do Controle no Porto e este lhe foi negado, com claras demonstrações políticas.

Atos heróicos e uma justiça popular


Na trajetória deste “bandido-herói é importante reter, para uma analise mais aprofundada, o sentimento de justiça e
de honra, configurando uma possível “justiça paralela” ou uma construção de uma “Justiça Popular”. Esta prática vai sendo
constituída em diversas situações. Zé do Telhado dizia sempre ao seu bando, “os ricos e os políticos é que hão de pagar para
os pobres”, fazendo uma crítica ao sistema social e político injusto e, ao mesmo tempo, justificava os seus atos delituosos.
Para alguns escritores, estas palavras, decorriam do fato de ser um saltador inteligente, culto, de boas maneiras e com
conhecimentos de estratégias militar,
Nesta dimensão colocava-se como repartidor público, fazendo justiça, em um posto outorgado pelo povo:

4
Alguns entrevistados acham que deve ter havido um contato anterior do Zé do Telhado com o dono a casa e este, provavelmente não cumpriu o acordo ou não
cedeu nenhuma quantia.

841
Os políticos têm sido a desgraça dos pobres. Prometem tudo, mas só prometem o que eles muito bem querem. Aos
pobres passam a vida a mentir-lhes. De hoje em diante serei repartidor público. Podes dizê-lo a toda a gente. O povo
há-de sabê-lo. E também quero que as autoridades o saibam. Porque este encargo foi-me dado pelo povo (CASTRO
PINTO, 2007, p. 70).

Os rompantes de uma construção de uma justiça aparecem nos diálogos a ele computados. Um diálogo sugestivo
dessas ações é sempre reproduzido nos romances, sobre este personagem:
Em um acerta noite assaltou um lavrador abastado que namorava uma moça e ia visitá-la quase todas as noites. O rapaz
teve que entregar o relógio, uma pulseira e algumas moedas para o Zé do Telhado.

- E disse: uma hora dessas você deveria estar em casa dormindo e não assaltando.

- E o Zé do Telhado teria dito e você também. Eu aproveito as trevas da noite para assaltar quem passa e você para ir
ter com a rapariga. Tudo é roubar. Eu roubo dinheiro e você a honra de uma mulher. Qual de nós é mais ladrão?

Meses depois a moça a parece grávida e tinha sido abandonada pelo rapaz.

- O Zé do Telhado se encontra com o rapaz e diz: Há pouco meses encontramo-nos os dois de noite, ambos a roubar.
Eu arrependi-me, e venho devolver o relógio, a corrente e o dinheiro que lhe roubei. Na certeza de que, se dentro de
um mês você não tiver restituído à rapariga o que lhe roubou, casando com ela, é um homem morto.

Dias depois o lavrador casou. (CASTRO PINTO, 2007, p. 98)

As ações em defesa dos pobres, dos humildes e das mulheres são sempre recorrentes. Uma vez obrigou a um padre
realizar um batizado, de graça, de uma criança pobre, que sua mãe não tinha dinheiro para custear as despesas. Em outra
situação roubou uma “junta de bois” para dar a um pobre lavrador que não disponha de dinheiro suficiente para a compra e o
vendedor não aceitou a proposta do trabalhador. Tendo inclusive humilhado o lavrador. Depois do ato consumado, o Zé do
Telhado diz: “isto é para aprender a não humilhar os humildes e deixar de ser tão avarento”.
Ganha destaque nas narrações e nos textos, a forma ousada e destemida como enfrenta as autoridades e os
poderosos, em defesa dos pobres e dos oprimidos. Estas ações são realçadas nas peças de teatro e nos filmes existentes sobre
este personagem, ganhando destaque o lado austero e não subserviente.
É importante destacar as representações que surgem, nesta perspectiva, de um Robin dos Bosques “que tirava dos
abastados e ricos sovinas para distribuir pelos necessitados honestos e labutadores”. São construídas as classificações, como
dito anteriormente, que só roubava dos ricos sovinas e maus patrões, para distribuir com os necessitados e honestos
trabalhadores.
As proezas ou atos heróicos são recorrentes nas representações sobre este personagem. Provavelmente, o primeiro
ato de heroísmo praticado em sua região, ocorreu na defesa de um amigo que estava quase sendo morto, em uma briga, na
Feira de Penafiel. Os aspectos importantes desta briga decorrem do seu amigo está sendo acusado, injustamente, de um ato
não cometido, bem como, haver um total desequilíbrio de litigantes, bastante desfavorável para o Zé do Telhado. O saldo
desta disputa é que o nosso herói saiu muito ferido, quase a beira da morte.
Quando era Lanceiro da Rainha salvou um jovem, em uma procissão em Lisboa. Este jovem estava sendo arrastado
por um cavalo, em alta velocidade, e foi salvo, heroicamente, por José do Telhado. Nesta mesma procissão ele dominou um
touro furioso, que tinha fugido do seu estábulo e que atacava a multidão.
Contam, também, proezas de Zé do Telhado em sua viagem de degredo, salvando uma mulher que se encontrava no
interior de um navio em chamas e ninguém se habilitava para resgatá-la.
Neste tom épico, Eduardo Noronha (s/d), romancista e autor de varias obras, sobre este personagem, diz que “José
do Telhado foi ungido a sacerdote para dar a extrema-unção a uma moça que estava agonizando”.
Zé do Telhado serviu em Lisboa no 2º Regimento de Lanceiros, tendo participado da Revolta dos Marechais
(1837), integrando a comitiva do Marechal Saldanha, mostrando suas qualidades de: corajoso, destemido e valente. O lado
heróico começa a ser configurado.
Em 1837 participa também da Revolução Popular, servindo a Junta como ordenança de Sá da Bandeira. Salva a
vida deste, recebendo a Medalha da Torre e Espada.
O capital militar do Zé do Telhado, obtido quando este serviu nos Lanceiros da Rainha e, principalmente, sua
participação nas guerras civil foi bastante útil nas suas práticas como salteador.
Campos Monteiro, que escreveu um livro sobre Zé do Telhado em 1930, baseado em depoimentos de pessoas
idosas, que conheceram o salteador, e o processo judicial, afirma que a quadrilha foi organizada da forma: o mais
militarmente possível. Ele era o Chefe e tinha um ajudante. Os salteadores eram divididos em três categorias: chefes de
divisão, divisionários e auxiliares. Existiam quatro divisões cada uma com cinco homens. Os auxiliares eram os informantes,
os quais não participavam dos assaltos, mas recebiam as suas cotas do lucro.
Campos Monteiro (2001) diz que a composição da quadrilha era bastante eclética tendo dois indivíduos com
autênticos títulos de nobreza, um padre, lavradores pobres e prostitutas, que serviam, fundamentalmente, como informantes.
Depois do assalto a Carrapatelo uma grande parte da quadrilha é presa e condenada.
É importante destacar que dentro de um clima de aceitação, negação e medo quase toda a população sabia quem
eram os quadrilheiros, como viviam e onde moravam.

842
O ato de não denunciar decorre de uma insegurança e medo, mas fundamentalmente, de uma aceitação social. Tal
aceitação resulta da não classificação das práticas dos bandidos sociais como delituosas, bem como, do fato da população
pobre necessitar de protetores e defensores.
Zé do Telhado dominou, assaltando nas estradas e nas quintas das pessoas mais abastadas da região, durante quase
uma década em uma vasta região do Norte do país. Apareceu tanto na zona do de Amarante como no Douro e no Minho,
frequentando a serra do Marão e as estradas de Barcelos e Braga, assim como as feiras e Penafiel, Vila Meã, Vila Verde e
Pico.
Um historiador, autodidata, residente em Vila Meã, e grande conhecedor da vida de José do Telhado, fazem uma
boa síntese das representações construídas sobre este personagem:
A história do Zé do Telhado é uma história popular. Toda a gente conhece o Zé do Telhado. E toda a gente fala do Zé
do Telhado com simpatia. Era o Robin dos Bosques cá do sítio... ele era especial... naturalmente que na época, as
vítimas não sentiram as coisas assim. Ele foi ferozmente perseguido, mas ele era um estrategista, de maneira que foi
muito difícil apanhá-lo, mas acabou por ser apanhado, e a história acabou. Ele acabou por ir para Angola. Teve uma
fase em que os pretos o consideravam quase um Deus, embora tivesse depois morrido na miséria, mas fez sucesso em
Angola, lá entre os pretos, foi uma figura simpática para eles, ele continuou como uma personalidade especial até ao
fim (entrevista realizada com José Mário Carvalho, em fev. de 2008).

Finalizando é importante ressaltar que existe atualmente uma disputa simbólica em relação aos bens culturais do Zé
do Telhado. O próprio personagem Zé do Telhado passa a ser disputado como capital cultural da região, Esta disputa
configura-se de diversas maneiras: pelo lugar que ele nasceu, pelas casas que lhe pertenceram ou que ele morou, bem como,
os principais lugares que ele assaltava, ou distribuía o resultado dos assaltos. Nesta perspectiva é sedimentado um vasto
patrimônio cultural, como por exemplo: uma Rua Zé do Telhado, um largo Zé do Telhado, um Hotel José do Telhado, um
vinho Zé do Telhado (constando no rótulo uma pequena história deste personagem), um edifício Zé do Telhado, uma receita
de bacalhau Zé do Telhado e uma empada Zé do Telhado. Existe uma vasta disputa sobre qual seria realmente a casa de José
do Telhado: uma casa em ruína, que consta em diversos folhetos; uma casa que, provavelmente ele residiu após o casamento
com Aninhas, atualmente bastante transfigurada, e, uma casa tombada como patrimônio cultural, que deve ter sido construída
no início do século XX.
O dado importante, deste patrimônio cultural do José do Telhado, é que ele realimenta e sedimenta uma memória e
as representações sociais sobre um personagem que configura com todas as letras um “herói popular”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO PINTO, José Manuel de. José do Telhado: Culpado e Inocente. Lisboa: Plátano Editora, 2003.
CASTRO PINTO, José Manuel de. José do Telhado: o Robim dos Bosques português? - Vida e Aventura. Lisboa: Plátano
Editora, 2007.
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.
HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos: estudos de fornas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. 2. ed.
Rev. e Amp. Rio de Janeiro: Zahar , 1978.
MONTEIRO, Campos. José do Telhado e os seus Quadrilheiros. Amarante: Edições do Tâmega, 2001.
NORONHA, Eduardo de. José do Telhado em África: romance baseado sobre fatos históricos. 4. ed. Porto: Domingos
Barreira, 1984.
NORONHA, Eduardo de. José do Telhado: romance baseado sobre fatos históricos. 4. ed. Porto: Domingos Barreira (s/d).
PINTO, Augusto. Quem foi José do Telhado. Lisboa: Moderna Editorial Lavores, 2005.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.

843
Amor e dor: um estudo sobre as punições corporais em crianças e adolescentes na
cidade de Natal/Rio Grande Do Norte/Brasil
Adriana Souza
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[email protected]

Resumo: Este trabalho realiza uma síntese do estudo sobre violência intrafamiliar levado a efeito no SOS Criança do Rio Grande do
Norte/Brasil: um serviço de atenção à criança e adolescente vítimas de violência doméstica. Buscou-se um diálogo teórico-metodológico
entre as abordagens quantitativas e qualitativas por meio de uma amostra aleatória de 101 casos, evidenciando os processos e as
representações presentes nos depoimentos dos pais das vítimas atendidas no SOS Criança no ano de 2007. Apresenta-se como resultado a
evidência de que a violência intrafamiliar é um assunto muito complexo, o qual envolve questões tanto socioeconômicas quanto culturais.
Embora reconheça a multicausalidade deste fenômeno, enfocaremos a questão cultural, já que em 78% dos casos foi constatada a presença de
punições corporais como práticas aceitas, e ainda legitimadas no Brasil. A pesquisa também apontou, baseada nos estudos de Nancy Fraser,
que a solução desse problema necessitava tanto de intervenção como de reconhecimento dos direitos da criança e do adolescente, isto é,
mudanças culturais em relação ao cumprimento e ao respeito aos direitos da criança e do adolescente, como também de redistribuição de
renda para que as famílias possam ter, enfim, condições dignas de sobrevivência. Assim, propõe-se a atuação do Estado promovendo
melhores condições socioeconômicas através de políticas públicas e da sociedade civil operando em uma (re) educação das relações entre
pais e filhos.

A história da criança fez sua trajetória à margem dos adultos, sofrendo violência, humilhações, sendo prisioneira da
escola, da igreja, da legislação, do sistema econômico, passando por abandonos, vivendo situações de violências cotidianas,
como abusos sexuais, doenças, queimaduras e fraturas que sofriam tanto no lar como no trabalho. Essas são situações vividas
por mais de três séculos a história da infância no Brasil (Del Priore, 1999).
O objetivo deste trabalho é expor a realidade de violência intrafamiliar sofrida por crianças e adolescentes atendidas
pelo SOS Criança do Rio Grande do Norte. A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes denota todas as ações
praticadas por parentes chegando a causar danos físicos, sexuais e psicológicos nas mesmas. Existem quatro tipos de
violência intrafamiliar reconhecidos: violência física, sexual, psicológica e negligência.
Optamos por utilizar o conceito de violência intrafamiliar por considerarmos o mais apropriado para a nossa
pesquisa, feita no SOS Criança do Rio Grande do Norte, pois nessa análise procuramos destacar a violência cometida
principalmente pelas mães. A violência cometida pelas mães constituiria um paradoxo em relação ao chamado “instinto
maternal”, envolvendo amor, proteção e até mesmo auto-sacrifício, daí nosso interesse. As maiores ocorrências acontecem
quando estes pais e filhos habitam um mesmo teto.
Essa percepção de direito de violência sobre um objeto menor se modificou com a preocupação da infância e
adolescência no ano de 1923 na quinta sessão da Liga das Nações, por meio da declaração dos direitos da criança e do
adolescente, os quais são: liberdade, igualdade, satisfação de suas necessidades básicas como alimentação, saúde, educação,
lazer e etc., como também amor e compreensão por parte de seus pais e da sociedade, e de proteção contra abandono,
crueldade e exploração, entre outros.
No Brasil a idéia do dever ou não de disciplinar corporalmente surge apenas no ano de 1980, e com ele uma vasta
campanha de questionamentos da “política nacional de bem-estar do menor” e do “código de menores”, surgem também
denúncias graves sobre a situação enfrentada pela infância brasileira, como também a constante violação de seus direitos. Isto
é, essas idéias surgiram em função de uma maior visibilidade da família. Portanto, foi em meados da década de 1980 que se
assegurou a batalha pela garantia dos direitos da infância e da adolescência, a qual foi sedimentada no artigo 227 de nossa
constituição atual.
Isto se consolidou com a implantação do Estatuto da criança e do adolescente em 1990, no qual é empregada
medida de proteção à vítima e a prevenção do fenômeno. O Código Penal reprime os abusos correcionais ao prescrever no
delito de maus tratos:
Art. 136 – Expor a perigo de vida ou a saúde de pessoas sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de
educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentos ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a
a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.

Apesar de no Brasil existir toda uma estrutura legal, ou seja, leis que garantem os direitos da criança e do
adolescente, não se reconhece o castigo físico como um abuso, algo que desrespeite os direitos da criança, mas sim, uma
prática necessária para que a criança seja bem educada, pois Brasil há toda uma cultura de que a criança deve obedecer seus
pais, pois eles são seus responsáveis legais e “naturais”.
Seguindo este pensamento os pais se vêem como se fossem donos de seus filhos, tratando-os muitas vezes de forma
violenta. Por exemplo, quem nunca ouviu um ditado que diz: “essa criança é assim porque nunca levou uma palmada”. Assim
mesmo tendo seus direitos garantidos pela lei as crianças e adolescentes não são reconhecidos pela sociedade. Portanto, há

844
uma necessidade de criar meios para que essa violência sofrida por crianças e adolescentes dentro de sua própria família seja
denunciada e apurada, como também repensada como uma relação entre pais e filhos que precisa ser repensada.
Na pesquisa realizada no SOS Criança nos anos de 2004 a 2005 observou-se que existem crenças e valores
familiares transmitidos através de gerações que sustentam um comportamento, pautado na violência. Em dos depoimentos
um mãe diz: “ela é muito desobediente, eu também apanhei e hoje eu agradeço pela educação que tive, porque sou uma
pessoa de bem e eu não tenho trauma nenhum”. Vejamos assim, que a sociedade condena apenas os atos extremos que
deixam marcas profundas, como é o caso de espancamentos, o mesmo não acontece com a palmada, aliás, a palmada nem é
considerada uma violência. A violência física e a ameaça de que dela emana exercem uma influência decisiva sobre os
indivíduos, saibam eles disso ou não. (Souza, A., 2005).
O SOS Criança do Rio Grande do Norte existe há 16 anos e, foi criado em 14 de Janeiro de 1992. Ele é um
programa emergencial, os profissionais registram os casos notificados; fazem visitas domiciliares e diagnósticos; atuam nas
famílias por meio de assistência social e jurídica da comunidade.
O SOS Criança atua na abordagem do caso, encaminha a criança para uma instituição ou busca a ressocialização
dos pais. Segundo dados do SOS Criança, são denunciados de cinco a dez casos por dia, que são violência física, negligência,
situação de risco, maus trato, abandono e etc. Os casos em que o SOS Criança tem acesso são casos que ocorrem com
famílias pobres, pois quando a denuncia é sobre a família da classe média e rica o programa não tem acesso ao domicilio no
qual possa everiguar a denuncia.
Os maiores agressores são as mulheres. Essas violências são comuns e praticadas em todas as classes sociais, em
todas as sociedades, e por serem praticadas às escondidas, seu combate torna-se mais complicado. Isto implica numa
transgressão do poder/dever de proteção que o adulto deveria ter, negando assim o direito das crianças e adolescentes de
serem tratados como cidadãos. Devido ao caráter privado e íntimo da família a sociedade legitima, facilita e esconde as
atrocidades cometidas contra crianças e adolescentes.
Na nossa análise responder perguntas como “o que leva pais a praticarem atos de agressão contra seus filhos?”;
“como a sociedade percebe a violência intrafamiliar? E compreender como as representações sociais influenciam, conservam
e alimentam essa cultura de violência, e como essa violência se baseia na autoridade dos pais sobre as crianças e
adolescentes.
Procuramos demonstrar que os castigos aplicados às crianças são possíveis de existir e serem aceitos pela sociedade
como meio de educar. Dessa forma os pais justificam a sua violência alegando autoridade sobre a criança como se fosse uma
autoridade natural por tê-la colocado no mundo, quando na verdade essa autoridade é social.
Em nossa análise buscamos abarcar a violência física e os maus tratos que são os tipos de violência intrafamiliar os
quais são mais notados nesse fenômeno cultural, e a negligência e a situação de risco que têm sua justificação na situação
econômica das famílias. Evidenciamos que no primeiro caso os pais não negam a prática, pelo contrário justificam que estão
educando seus filhos, mas já no segundo caso os pais se exime da culpa atribuindo-a a situação precária em que vivem.
Tentamos abordar esses dois ângulos da violência intrafamiliar. Por se tratar de um tema muito complexo precisa
de uma maior atenção da sociedade civil e das instituições governamentais.
A violência física é todo ato executado com intenção de causar dano físico interno ou externo, que pode ir de uma
leve dor, passando por um tapa até o assassinato, tendo como consequências físicas lesões cutâneas, oculares, vicerais,
fraturas, queimaduras, lesões permanentes e a morte.
A negligência é a omissão de responsabilidade em prover as necessidades físicas ou emocionais de uma criança ou
adolescentes, ou seja, pais ou responsáveis falham em termos de alimentar, de vestir adequadamente seus filhos, de lhes
prover segurança, se tais falhas não forem resultado das condições de vida além do seu controle. Já a situação de risco é a
exacerbação da negligência, a tal ponto que coloca a vida da criança ou adolescente em risco.
De acordo com o SOS Criança os motivos que os pais alegaram para cometerem o ato de violência são em geral
motivos fúteis como descarga de raiva, porque a criança está chorando muito, chegou atrasada, não obedeceu, valores
culturais de que somente através do castigo é que a criança aprende. Percebemos que em termos de motivos para punir de
forma violenta a criança, são argumentos que basicamente remetem a sua ação disciplinadora. Essa prática disciplinadora que
considera o castigo como meio de educar e que muitas vezes é levado à sua forma mais extrema: a violência física.
Ainda segundo os dados do SOS Criança a violência física são de 11,2% e os maus tratos são de 33,4%, isto é,
temos um total 44,6% dos casos envolvendo violência direta, seguido de 51,7% são de negligência e situação de risco que
envolvem violência indireta, por encontrarmos um percentual muito alto nessas categorias é que nós nos dedicamos a
compreender porque esse fenômeno ocorre tão intensamente aqui no RN, mas precisamente no SOS Criança.
Outro ponto importante é que 83,7% dos casos são cometidos pelas mães o que contradiz o mito do amor materno,
até hoje tão decantado em nossa sociedade, isto é, que a mãe é todo amor e carinho para seus filhos, de que ela tem toda a
atenção voltada para a proteção de sua prole. Talvez esse fenômeno ocorra porque são elas as que passam mais tempo com
as crianças, pois também notamos que a maioria das crianças vive somente com as mães.
Essa análise auxiliou na compreensão das relações de violência entre pais e filhos atendidos pelo SOS Criança, que
constituem a base estrutural quanto as representações sociais que retêm a vivência destas relações experimentadas pelos
atores e as significações por eles atribuídas às suas ações.
Para Sousa (1994) a existência das práticas de castigos nas culturas humanas faz parte da crença, existente e
mantida por essas culturas, para educar os indivíduos condicionando-os a seguir as leis sociais. Dessa forma os castigos são

845
aplicados e aceitos, pois há a crença de que só com o exemplo do castigo haverá obediência ás leis, ás normas, aos costumes
etc. Isto leva a uma “cultura do medo”, que faz com que todos aceitem como necessária e legítima a utilização da violência
sobre o corpo.
A violência é uma forma de relação social e está enraizada ao modo pelos quais os homens produzem e reproduzem
suas condições de existência social. A violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida, modelos de
comportamento existentes numa sociedade em um determinado período histórico. (Adorno S.1988 apude; GUERRA, 1998),
constituindo uma cultura da violência.
As sociedades contemporâneas têm produzido e reproduzido cenas de violência, tanto na esfera pública como
privada, atingindo todos os segmentos sociais, sendo um fenômeno universal que está presente na história humana desde suas
primeiras sociedades. Buscamos dessa maneira, mostrar que a violência intrafamiliar é fruto dessa cultura de violência. E que
abrange todas as classes sociais como violência da natureza interpessoal. Tanto a violência cultural, por exemplo, a
discriminação contra a criança, vista como inferior, como a econômica, a falta das condições básicas, são estruturais. A
violência física direta pode ser o resultado dessa combinação, naturalizando-a e justificando-a.
No Brasil, crianças e adolescentes são vítimas cotidianas da violência intrafamiliar, sendo este um fenômeno
universal e endêmico. As crianças espancadas pelos pais são reféns, as quais se encontram na situação de mais fracas não
podendo defender-se. E como são dependentes das mesmas pessoas que provocam dor e sofrimento estão à mercê
constantemente por vários anos se não houver uma intervenção.
A autoridade que o adulto tem sobre a criança é pensada como natural e por isso ela deve obediência, pois ele é
“naturalmente” superior, assim a criança é socialmente dependente do adulto que a obriga a submeter-se a ele. Quando na
realidade essa autoridade é social, dessa forma a autoridade é exercida invocando o bem da criança. Portanto, o que
percebemos é que a punição corporal é introduzida na célula familiar para treinar a criança à obediência e à submissão. Desse
modo o castigo é o meio utilizado para controlar a obediência, a qual funda suas raízes na violência e na coerção.
Praticado numa família que referenda basicamente a disciplina física, como um método adequado de educação,
podendo conduzi-la, muitas vezes, a limites exacerbados. A prática da violência física ainda é vista como um direito dos pais.
Avaliando-se as consequências e implicações provocadas pelas punições corporais e disciplinas físicas referidas
anteriormente, nota-se que essas são práticas comuns e aceitas nas comunidades atendidas pelo SOS Criança. Há uma pratica
geral: de que as pessoas sentem que bater em crianças pode ser aconselhável em algumas circunstâncias. Sendo assim, a
necessidade de estabelecer limites e dar um exemplo são maneiras de justificar o bater nas crianças. Caldeiras (2000).
Nesta contextualização das relações nas quais os pais utilizam a punição física em seus filhos. Discutiremos
especificamente as ações das mães nas relações com os filhos vendo-os como agentes socializadores, conforme verbalizações
feitas durante as entrevistas.
As frases mais comuns que as mães alegam para praticarem violência contra seus filhos são: “bati nela porque ela é
muito rebelde”; “ele é muito levado.” Isto é, as mães sempre justificam a agressão alegando que a criança é ruim, é levada,
rebelde, que a criança mentiu, são motivos que remetem a culpa nos filhos, quando na realidade são apenas justificativas para
a prática da agressão, pois toda a criança é impulsiva é a natureza dela.
Os depoimentos dado pelas mães ao SOS Criança o discurso enfoca a violência como o meio utilizado para
disciplinar, e na concepção delas é impossível buscar um modelo de aprendizagem que não utilize o castigo como meio de
educar.
Observamos que as mulheres ressaltam alguns atributos que a sociedade geralmente imputa ao caráter feminino:
nervosismo, descontrole emocional e que fazem parte da mística feminina tal como é concebida em nosso meio. “Eu bati
porque sou muito nervosa e ela é muito chorona e faz escândalo" Confirmando e, ao mesmo tempo, justificando seus atos em
nome de um nervosismo, de um descontrole emocional, a mulher repete os atributos que a sociedade lhe imputa.
Existem crenças e valores familiares transmitidos através de gerações que sustentam essas representações sociais da
violência. Exemplo: “ela é muito ruim, eu também apanhei e nunca recebi carinho de minha mãe”. Vale salientar que essa
criança de quem a mãe está falando tem apenas um ano de idade, portanto, ainda não conhece o que é bom ou ruim.
Notamos que as violências como violência física e maus tratos têm um enfoque diferente dos casos de negligência e
situação de risco, pois nos primeiros os pais afirmam a agressão, mas alegam que o fazem para educar, já no segundo tipo a
maioria dos pais nega a prática, mas em fim alegando que a negligência é provocada por causa da precariedade de suas
condições financeiras.
Como bem podemos observar nos discursos das mães: “eles ficam sem alimentação, porque o pai saiu de casa e não
me ajuda financeiramente.” Esse tipo de argumento as mães põem a culpa nos pais que as deixaram sozinhas com os filhos
para criar, esses pais são omissos em relação às crianças e as mães, deixando-as sem condições de darem uma vida digna a
seus filhos. Como também as condições difíceis de conseguir emprego, pois são mães que não tem qualificação no mercado
de trabalho e acabam ficando desempregadas ou vivendo de subempregos.
“Eu deixo eles sozinhos, pois tenho que trabalhar, não recebo ajuda nem do pai nem do governo”. Esse argumento
envolve tanto a omissão dos pais, quanto à falta de acesso aos programas sociais do governo. Assim as mães ficam
desprovidas de meios para que possam sobreviver com seus filhos. 47,6% das mães são dependentes ou dos pais dos filhos,
ou de familiares, isto é, essas mães estão fora do mercado de trabalho.
“Eu tenho que trabalhar, por isso que deixo eles sozinhos, pra ter como trazer algum alimento pra casa”; “eu
concordo em abrigar eles, eu não queria abandonar meus filhos, mas não tenho nem onde morar”. São argumento que

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referem-se à situação difícil tanto no sentido da dificuldade de trabalho, como a omissão dos pais e do Estado em prover os
meios necessários para que essas famílias tenham como viver, levando muitas mães a pedir esmolas, pois muitas das
acusações de negligência é porque as mães levam seus filhos para pedir nas ruas.
Essas representações evidenciam pelo menos três tipos de problemas: a dificuldade de trabalho (desemprego,
subemprego), a desestruturação da responsabilidade familiar quanto ao cuidado com a criança e a omissão dos pais em
relação às mães e às crianças.
Podemos explicar esse fenômeno por dois ângulos de análise. O primeiro são as transformações ocorridas no plano
social e econômico que afetam diretamente as condições socioeconômicas da população. E o segundo a ausência e
ineficiência de políticas públicas e instituições encarregadas de garantir a ordem pública e o respeito à cidadania.
Essas mães em sua maioria são as únicas responsáveis pelo sustento da casa, porém notamos também que elas não
trabalham, ou seja, são totalmente dependentes de ajuda externa. Assim constatamos que a maioria das mães não tem
condições financeiras de suprir as necessidades de seus filhos. Como também não aceitam o papel de culpadas pela violência,
afirmando que não depende delas e sim porque não recebem ajuda, nem do pai, nem do governo.
Os tipos de violência como a negligência e a situação de risco, estão associadas a situações de pobreza. Ou seja, já
que a negligência se define pela omissão no trato dos cuidados e necessidades da criança e a Situação de Risco é o
agravamento dessa situação que deixa a criança em risco de vida. É reconhecida a ausência de condições econômicas dessas
famílias. Assim podemos considerar que a negligência e a Situação de risco são provocadas principalmente pelas condições
precárias, as quais vivem as famílias.
No momento que a sociedade impõe aos pais direitos e deveres relacionados tanto a sociedade como a seus próprios
filhos, sem dar-lhes condições dignas de Direitos Sociais, Econômicos e culturais, cobrando deles que façam seu papel de
cidadãos sem condições para isso, fazendo com que eles não consigam garantir as necessidades básicas das crianças. Assim
violam os direitos essenciais da criança e do adolescente como pessoa e, portanto, uma negação de valores humanos
fundamentais como a vida, a liberdade e a segurança.
Portanto as famílias que se encontram nessas condições são constantemente rotuladas de desestruturadas. Esses pais
não possuem condições de garantirem as necessidades básicas de seus filhos, como educação, saúde, habitação digna, como
também afeto, e carinho. E muitas vezes essas crianças têm que sair de casa e buscar sustento pedindo nos sinais, nas ruas das
cidades, ou em trabalhos informais e/ou insalubres que não garantem a segurança das mesmas. Outra consequência dessas
condições é a perda do controle emocional por parte dos pais de família, e esses cometerem atos de violência contra seus
filhos que são os mais fracos devido ao estresse provocado pela situação precária em que vivem. É necessário que mudem
essa compreensão de que as crianças e adolescentes têm que ser educados através do castigo físico, e que busquem meios
alternativos como diálogo entre os pais e as crianças e adolescentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, o problema da violência intrafamiliar precisa tanto de reconhecimento, isto é, que a sociedade
reconheça que as crianças e adolescentes são seres humanos iguais, que necessitam de respeito, carinho e atenção para
desenvolverem-se, quanto de que o governo trabalhe mais efetivamente na questão de políticas públicas que visem resolver
os problemas da maioria da população, ou seja, que atuem no combate à desigualdade de forma que os pais tenham condições
de suprir as necessidades de seus filhos de forma que garanta o desenvolvimento dos mesmos.
Apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tenha possibilitado alguns avanços em relação à garantia
da cidadania das crianças e adolescentes, que atualmente são reconhecidos como sujeitos de direitos. Entretanto, o conceito
de criança nele presente mostra-se naturalizado, isto é, pressupõe-se uma concepção a-histórica, sem levar em consideração
as particularidades sociais e culturais, como se a idéia que se tem de infância hoje sempre tivesse existido, sem considerar as
várias distinções por classes sociais brasileiras.
Portanto, percebe-se que a “cultura da desvalorização” da criança e do adolescente, que os concebe como
indivíduos insignificantes, sem direito a participar de seu processo educativo, uma vez que são improdutivos
economicamente dentro do sistema capitalista vigente, em que pese a existência, em grande escala, do trabalho infantil. Essa
desvalorização em particular, juntamente com outros elementos como: desconhecimento da violência e de suas
consequências por parte dos pais como: culpabilização das famílias, desconhecimento da realidade dos familiares por parte
de muitos profissionais, etc. nos assinalam alguns dos multideterminantes da violência, que a tornam amplamente
referendada junto às famílias, apesar dos avanços do ECA.
Nancy Fraser (2001) propõe que a solução para a injustiça econômica é a reestruturação político-econômica, e a
solução para injustiça cultural é uma mudança cultural ou simbólica. Seguindo essa proposta colocamos que a questão da
violência intrafamiliar por ter as mesmas características ambivalentes, pois as crianças e adolescentes sofrem com a violência
por questões culturais como também econômicas, como podemos perceber no desenvolver desse trabalho. Assim necessitam
tanto de políticas de redistribuição como de políticas de reconhecimento.
Sabemos constitucionalmente que as crianças e adolescentes são bem amparados, constatamos que a situação do
menor ao longo dos 15 anos da Constituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se observou uma grande mudança
na realidade dessas crianças, pois a cultura ainda é um fator que conta muito na forma como as crianças são tratadas nos seus
lares, como também o aumento da pobreza só tem aumentado as péssimas condições que se encontram as nossas crianças.

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Portanto, há uma necessidade de transformar essa cultura para que realmente os direitos da criança sejam
cumpridos e respeitados. Porém para que se possa solucionar realmente a questão da criança na nossa sociedade é necessário
que se faça valer os direitos previstos constitucionalmente e ao mesmo tempo utilizar meios que possa mudar a nossa cultura
de que a criança precisa ser educada através do castigo físico que, os pais tenham sobre elas o poder dito “natural” de fazer o
que quiser e passar a tratar essas crianças como seres humanos iguais que precisam de reconhecimento como tal, por isso
consideramos que alcançaremos através da educação reconstruindo as relações na escola e dentro da família.
Entretanto, não podemos esquecer também o lado socioeconômico que sabemos que a maioria das crianças vivem
em ambientes desprovidos de saneamento básico, escolas de boa qualidade, alimentação adequada, saúde e etc.
Consideramos que essas crianças podem ter uma condição melhor e com reconhecimento elas conseguiram a valorização de
seres humanos iguais, assim podem elas próprias futuramente conquistarem seu espaço na sociedade.
Segundo, a experiência do SOS adverte que a criminalização da família ou do agente constitui-se apenas em um
paliativo para o problema e pode, em contrapartida, ser um fator de desagregação familiar. Porque a família que passa por
esse problema, se ela for devidamente atendida, ela pode e deve continuar sendo a principal referência afetiva para as
crianças e/ou adolescentes.
Sendo assim, a percepção da complexidade da violência intrafamiliar. Em nossa análise mostrou que essas famílias
enfrentam diversas questões distintas que a desqualificam como meio de proteção e segurança para a criança e adolescente,
que reforçam as condições predisponentes ás relações familiares violentas: desemprego; condições de pobreza; valores
culturais que justifiquem condutas violentas; conflitos conjugais; problemas psicológicos e afetivos; alcoolismo; drogas; falta
de serviços básicos, como creches, escolas, habitações condizentes com as necessidades dessas famílias, esses são alguns dos
fatos vividos por essas famílias no dia a dia.
Portanto, nos mostra que a violência intrafamiliar não pode ser observada apenas por um único serviço isolado,
Como também o reconhecimento dos Direitos das Crianças e Adolescentes pela sociedade garantindo assim o respeito
necessário aos mesmos.
Outro ponto é uma melhor redistribuição para que a população possa ter acesso aos bens de consumo necessários
para sua sobrevivência de forma digna. Há, portanto, necessidade de atuação de vários órgãos sociais. Essa atuação é
necessária diante da complexidade do problema. Deve haver uma atuação do Estado e da Sociedade Civil, como também o
envolvimento da comunidade, para que juntos possam atuar de forma mais efetiva junto às famílias que vivenciam a
violência intrafamiliar.

REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Ruth Vasconcellos Lopes. (2002). “A cultura da violência em Alagoas”: Um estudo em Representação Social”.
Tese de Doutorado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-graduação em Sociologia.
FOUCAULT, Michel. (1975). Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes.
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hoje novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Souza, Jessé. (Org.). Brasília: Universidade de Brasília, p. 245
– 275.
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PRIORE, Mary Del. (1991). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto.
PRIORE, Mary Del. (1999). A família no Brasil Colonial. São Paulo: Moderna,.
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(Re)construções da Juventude: Cultura e representações contemporâneas. ALVIM, Rosilene; FERREIRA, Edísio;
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http://dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos/livros/pdf/03_1492_m.pdf. (consultado na Internet em 25 de julho de 2006).
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Necivisa, v.2, n.2, p. 23-29.
SOUSA, Alípio. (1995). Medos, mitos e castigos: notas sobre a pena de morte. São Paulo: Cortez.
SOUZA, Adriana A. (2005). A outra face da família: sobre a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes.
Monografia de Conclusão de Curso, Ciências Sociais da UFRN, p.

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Reflexo das Ordenações Filipinas na Violência Doméstica Praticada no Brasil
Jaime Luiz Cunha de Souza
Universidade do Estado do Pará - UEPA
[email protected]

Daniel Chaves de Brito


Universidade Federal do Pará - UFPA
[email protected]

Resumo: Este trabalho é consequência das investigações desenvolvidas durante o período de doutoramento, no qual investigamos as origens
da violência na família brasileira e mais precisamente as razões pelas quais o homem (marido) agride. Uma das conclusões dessa pesquisa é
que a tradição familiar que se constituiu na sociedade brasileira manteve, e ainda mantém, uma ligação genética com a tradição jurídica
portuguesa, principalmente com as Ordenações Filipinas. Encontramos indícios dessa relação na forma como são racionalizados os motivos
das agressões e nos valores utilizados nas tentativas de justificá-las. Constatamos que alguns desses valores foram construídos e passaram a
ser legitimados a partir dos ordenamentos jurídicos portugueses dos séculos XVI e XVII, tendo sido, com o tempo, incorporados às rotinas
domésticas das famílias brasileiras. Entre os conjuntos normativos que mais influenciaram neste aspecto as Ordenações Filipinas é o que
projetou a maior e mais duradoura influência, pois serviu de base para a criação da tradição de família que se construiu nas terras brasileiras,
principalmente, no aspecto da tradição que se refere ao uso da violência no ambiente doméstico.
Palavras-chave: Norma Jurídica. Tradição. Família. Violência Doméstica. Marido Agressor.

1 Introdução
Nossa intenção inicial é pontuar alguns indícios que nos levam a crer que a tradição jurídica portuguesa do período
colonial teve um papel importante na construção da tradição de família que se instalou no Brasil, tendo servido para
consolidar valores e práticas sociais que com o tempo se radicaram no senso comum, os quais têm na violência, sob as suas
mais diversas modalidades, um de seus aspectos mais característicos.
Nossa reflexão buscará focalizar a relação entre aquilo que é juridicamente imposto e o que é socialmente
reproduzido. Nesse sentido, partiremos da hipótese de que os fatores que induzem a violência familiar, e especialmente à
violência dos maridos contra suas esposas, não foram construídos em decorrência das dinâmicas internas da sociedade
brasileira. Tais práticas entraram no Brasil inicialmente legitimadas pelos ordenamentos jurídicos portugueses dos séculos
XVI e XVII, e como diz Hobsbawn (2002) inventaram uma tradição.
Tomamos como objeto de nossa reflexão além das Ordenação Filipinas, alguns inquéritos policiais qualificados como
violência doméstica, instaurados na Delegacia de Defesa dos Direitos da Mulher após 07 de agosto de 2006, data da
promulgação da Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, que transformou a violência doméstica em crime1.
Assim sendo, dividimos a apresentação deste trabalho em cinco momentos: no primeiro, realizamos uma breve
discussão sobre a função social direito; no segundo, abordamos a relação entre a tradição jurídica e a violência; no terceiro,
explicitamos aspectos fundamentais da simbiose entre lei e tradição; no quarto, discutiremos as contradições entre aquilo que
é legalmente imposto e o que é socialmente legitimado e no quinto momento indicaremos como a história jurídica brasileira,
inclusive a mais recente, está impregnada de valores tradicionais francamente desfavoráveis às mulheres e, principalmente,
como a força dos costumes induz – e às vezes até mesmo impõe - hierarquias domésticas predominantemente baseadas em
violência.

2 A Norma Jurídica Como Condicionante da Vida Social


Sociólogos e juristas que se dedicam ao estudo das relações entre as normas jurídicas e as dinâmicas da vida social,
entre eles Friedman & Ladinsky (2002) e Rosa (2004), têm como inquestionável a relação dialética entre o Direito e a vida
social; esses e outros autores ressaltam, com significativa ênfase, a possibilidade de se moldar comportamentos
transformando-os em hábitos, a partir do poder coercitivo da lei. Partindo do princípio de que tal possibilidade se materializa
em fato concreto no âmbito das relações sociais, principalmente naquelas em que os efeitos da conexão entre as normas
jurídicas e tradição se faz mais evidente, é até certo ponto natural que as relações familiares se tornem o locus privilegiado
desse tipo de conexão, uma vez que no ambiente doméstico a presença implícita ou explícita da tradição é uma condição
permanente e indissociável.
Friedman & Landinsky (2002, p.206), ao comentar a respeito dessa relação afirmam ser o direito “um instrumento
institucional para ajustar as relações humanas à finalidade de assegurar algumas metas sociais concretas”. No mesmo sentido,
Rosa (2004) esclarece que o mundo moral não escapa às influências que o Direito distribui em toda a sociedade. Esse autor
também nos informa que tem sido observado, com frequência, que comportamentos ditados aparentemente pelas normas

1
Os inquéritos em questão foram instaurados na Delegacia de Defesa dos Direitos da Mulher da cidade de Belém, Estado do Pará, Brasil.

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morais tiveram origem em mandamentos jurídicos, os quais passaram a se refletir sobre os modos de pensar e as formas de
comportamento das pessoas e, depois de algum tempo, adquiriram conteúdo moral próprio, independente da fonte jurídica de
onde nasceram. A esse respeito complementa Rosa:
[...] No momento em que se forma um comportamento costumeiro decorrente daquela norma jurídica, ele passa a ter
vida independente, de modo que se projeta, por vezes, muito tempo após a revogação da norma e sua substituição por
outra. Isso se exemplifica no caso de leis posteriores que modificam institutos ou simples disposições de Direito, mas
que não chegam a ter eficácia real, continuando a prevalecer os comportamentos inspirados nas antigas normas legais
revogadas, porque tais comportamentos criaram força consuetudinária capaz de se sobrepor às novas determinações da
ordem jurídica.(Rosa, 2004, p.57).

Tudo o que se observa dentro de uma sociedade – diz Rosa -, é influenciado por alguma norma jurídica que se
infiltra nas formas de sociabilidade, modificando-as por vezes, reforçando-lhes os traços principais, dando-lhe maior vigor ou
reduzindo-lhe a força condicionante. Nesse sentido, as relações familiares historicamente foram afetadas pelo direito de
família, cujo fundamento pode ser encontrado no vínculo estreito que esse tipo de código jurídico mantêm com a tradição.
No sistema jurídico brasileiro, o Direito de Família ainda se constitui em um dos segmentos mais conservadores e, apesar de
alguns avanços, sua estrutura tende muito mais a manter a ordem existente, por esta ser transmissora dos valores culturais da
sociedade, do que desencadear mecanismos de mudança que sejam verdadeiramente transformadores.
É ainda Rosa (2004) quem nos esclarece estar a sobrevivência de práticas dominadoras ou de exercício de direitos
arbitrários e quase absolutos, baseada em normas costumeiras, tradições e mesmo mandamentos legais que, apesar de
considerados politicamente incorretos para os padrões atuais, ainda são observados em muitos segmentos sociais. Na
mediação dos conflitos familiares sobrevive de maneira recorrente, o uso da violência seja na forma explícita da agressão
física, seja nas formas implícitas das agressões simbólicas e psicológicas.
Tal constatação – continua Rosa - permite captar a interação existente entre o fenômeno jurídico e os demais
fenômenos sociais; principalmente, possibilita projetar o alcance dessa proximidade, particularmente nas funções de controle
social, uma vez que “a ordem jurídica se destina, precisamente, a abranger a vida grupal, de maneira a estabelecer nela a
regulação dominante da conduta coletiva e individual.”(Rosa, 2004, p.58).
A influência da norma jurídica tem o potencial de moldar opiniões e comportamentos grupais por meio de um
processo de aprendizado e de convencimento cujo objetivo fundamental é estabelecer os parâmetros do que é considerado
socialmente útil, ou bom, e ao mesmo tempo criar critérios relativos ao modo correto de agir. Os propósitos de tais
parâmetros não se constituem simplesmente em ameaça aos possíveis infratores pelas transgressões eventualmente
cometidas, mas principalmente, incorporam uma força com poder condicionante da opinião pessoal e grupal a respeito do que
é justo ou injusto, bom ou mau para a sociedade, que é responsável pela demarcação dos limites que separam o modo de
proceder adequado do inadequado.
Através da norma jurídica pode ser moldada, em parte, a opinião dominante na sociedade; nesse sentido, a norma
possui uma função aglutinadora na medida em que se antecipa ao processo histórico e atua diretamente como forma de
controle social e, subsidiariamente, configura o rol de influências recíprocas que agregam os diversos elementos
condicionantes da vida grupal. No caso da sociedade brasileira, essa antecipação fez com que o modelo de família que veio a
constituir-se estivesse em parte moldado pela tradição jurídica portuguesa, que projetou sobre a sociedade brasileira ainda
nos estágios iniciais do desenvolvimento de suas instituições, alguns parâmetros a respeito dos papéis a serem assumidos
pelos diversos membros da família, da forma como deveria ser feita a distribuição de poder e, principalmente, de quem
deveria ter a prerrogativa do uso da violência.
A maneira como o Estado português do período colonial legislou a respeito das relações domésticas e conjugais,
depois de algum tempo, se tornou uma forma naturalizada de conceber as relações familiares no Brasil. Esta naturalização
está nas origens do aparente paradoxo representado por relações que perduram, apesar do conteúdo de agressão e violência de
que estão impregnadas; ou

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