Cristãos em Babel - Egbert Schuurman
Cristãos em Babel - Egbert Schuurman
Cristãos em Babel - Egbert Schuurman
Egbert Schuurman
Copyright @ 1987, de Paideia Press Ltd
Publicado originalmente em inglês sob o título
Christians in Babel
pela Paideia Press Ltd,
P.O. Box 1000, Jordan Station, Ontario, LOR ISO, Canadá.
1a edição, 2016
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I
É um privilégio apresentar este clássico de Egbert Schuurman ao
leitor cristão de língua portuguesa. Schuurman, nascido em 1937 na
Holanda, é autor de diversos livros sobre a filosofia da tecnologia,
tratando do tema sempre a partir duma perspectiva cristã. Estudou
engenharia civil e, depois, fez seu doutoramento em filosofia sob
orientação de Hendrik van Riessen (1911-2000). Schuurman
posteriormente teve uma carreira paralela de professor universitário
e de político pelo partido da União Cristã, servindo como senador
em seu país entre os anos de 1983 e 2011.
Van Riessen, seu orientador, fora um dos pioneiros,
juntamente com Jacques Ellul (1912-1994) a criticar, do ponto de
vista cristão, o impacto da tecnologia na reorganização da
sociedade moderna. A diferença entre Ellul e van Riessen é
ilustrativa da diferença entre Schuurman e outros críticos
contemporâneos da tecnologia. O francês Ellul, embora protestante,
adotou a teologia neo-ortodoxa e, posteriormente, deixou-se
influenciar por vertentes mais radicais. Apresentou uma crítica
revolucionária à sociedade tenocrática, principalmente por conta do
seu efeito totalitário e regulador na vida moderna. Isso se alinhava à
sua defesa do anarquismo como uma opção viável para a política
cristã.[1] Van Riessen, por outro lado, contribuiu ativamente com a
abordagem reformacional na filosofia holandesa, fazendo parte da
segunda geração desse movimento juntamente com J. P. A. Mekkes
(1898-1987), outra figura influente na carreira de Schuurman.[2] Com
Mekkes e van Riessen, Schuurman aprendeu a julgar o papel da
tecnologia na sociedade moderna e a nossa visão da história e do
futuro à luz das Sagradas Escrituras. Entendeu, assim, que nada na
cultura humana é neutro: pelo contrário, nosso pensamento e
prática ou traz honra e louvor ao Deus Vivo, ou o rejeita e despreza.
Essas duas influências se fazem notar neste panfleto,
Cristãos em Babel, publicado em inglês em 1987 e agora
disponibilizado pela primeira vez em língua portuguesa. Os temas e
preocupações típicos do final da Guerra Fria se tornam evidentes
quando, por exemplo, o autor descreve a iminência dum confronto
nuclear de proporções catastróficas (p. 39) ou o perigo de ideologias
revolucionárias e utópicas inspiradas por uma nova variedade de
tradição marxista (p. 13-16). Ao aposentar-se da política em 2011,
Schuurman discorreu sobre a urgência de problemas mais familiares
ao público atual, especialmente as consequências negativas duma
sociedade materialmente rica, mas composta por adultos que
basicamente se comportam como adolescentes — drogas,
sexualidade desenfreada, vulgarização — significativamente,
características que podemos identificar não somente no “velho
mundo” da Europa mas também entre certos grupos emergentes
nas sociedades dos países em desenvolvimento.[3]
II
Cristãos em Babel apresenta uma crítica em tom profético à
sociedade pós-cristã, que se faz otimista em excesso quanto ao
poder da ciência, da mente humana e da tecnologia. Segundo os
entusiastas desse humanismo tecnológico, a esperança para
resolver nossos problemas sociais, biológicos, ambientais, etc. está
na descoberta científica e na sua aplicação prática. Tal aplicação se
move pelo ideal de controle da natureza e da sociedade. Essa
ambição de controle tem gerado tendências autoritárias e alienantes
na nossa organização social. Diante disso, cabe ao crente olhar
criticamente para o papel da tecnologia e da ciência, principalmente
considerando o patamar messiânico em que foram colocadas por
nossa cultura pós-cristã.
Seguindo o brilhantismo de Herman Dooyeweerd (1894-
1977) e de van Riessen, Schuurman situa essa tendência pós-cristã
dentro da cosmovisão humanista moderna, em que dois polos
opostos operam em tensão como base religiosa.[4] Por um lado, um
valor absoluto afirmado nessa cosmovisão nega qualquer restrição à
autonomia do ser humano, individual ou coletiva, afirmando o motivo
fundamental da “liberdade”. Tal liberdade leva ao impulso de
controlar o mundo à nossa volta, tornando-o em objeto à nossa
disposição. Esse ideal de controle emerge como algo necessário em
virtude do outro motivo fundamental e absoluto, o da “natureza”.
“Liberdade”, manifestada na noção de autonomia humana, e
“natureza”, manifestada na noção de limites externos a essa
autonomia são afirmadas ao mesmo tempo como motivos
independentes na cosmovisão pós-cristã. Fica clara a contradição
entre dois valores absolutos que impulsionam essa cosmovisão. Em
dada situação, um desses valores haverá de ceder ao outro.
Quando o ideal de controle se expande e passa a promover o uso
de poder não somente sobre o mundo natural, mas também sobre
outros seres humanos, esse ideal acaba por negar o ideal da
autonomia. A tensão não é só lógica, mas também prática, levando
a resultados desastrosos.
Com van Riessen e Dooyeweerd, Schuurman vê que a
ciência moderna e suas aplicações ganham um determinado sentido
dentro dessa cosmovisão e que, apesar de avanços e descobertas,
contêm dentro de si as raízes duma grave doença, cujos sintomas
temos visto nos males sociais e ambientais que permeiam o mundo
contemporâneo. Com Mekkes, por outro lado, Schuurman reafirma o
senhorio de Jesus Cristo sobre a história e principalmente sobre o
futuro. Nada no desdobramento da cultura humana acontece por
acaso. Mais ainda, a própria força dinâmica da história é Cristo, que
lidera a consumação do seu Reino, e cuja vitória final já está
decretada com autoridade divina.[5]
III
Como intelectual público, então, Schuurman tem procurado afetar o
pensamento e a prática cristã na sua inserção numa sociedade pós-
cristã. Em complemento a esse chamado e alerta aos crentes,
travou vários embates no plano político, nas décadas em que atuou
como senador pelo partido que Mekkes ajudou a fundar. Há alguns
aspectos interessantes na trajetória e nas ideias políticas de
Schuurman que devem ser destacados aqui. O leitor cristão desta
crítica aos efeitos deletérios de nossa cultura tecnocrática deve
tomar cuidado para não concluir erradamente que a solução para
esse problema passaria ou pelo rompimento revolucionário ou pela
reação anacrônica e retrógrada. Pelo contrário, o que recomenda
Schuurman é prudência e discernimento.
Em primeiro lugar, o cristão precisa entender, nas diversas
comunidades em que se insere, que é seu dever refletir sobre a
antítese entre a cultura pós-cristã que nos cerca e aquilo que seria
proposto por um engajamento mais bíblico, lembrando que a derrota
do sistema pós-cristão é uma questão de tempo, pois nada pode se
opor à vinda do Reino de Cristo (p. 45).
Contudo, em segundo lugar, é responsabilidade do crente
agir com discernimento, pois seria algo tremendamente
problemático simplesmente “apagar” todas as marcas do
desenvolvimento histórico e cultural que o mundo pós-cristão tem
obtido. Portanto, será um dever adicional do crente “reconhecer a
situação existente e achar formas de lidar com ela”, ao mesmo
tempo evitando a tentação do comodismo (p. 46). Em suma, temos
que começar com a situação atual e, partindo dela, “utilizar as
normas que foram dadas por Deus” para a formação histórica e
cultural.
Em terceiro lugar, essa mudança de rumo liderada pelos
cristãos deve ser engatilhada por uma aplicação mais rigorosa e
deliberada da cosmovisão bíblica (p. 47-8) mas, ao mesmo tempo, a
igreja institucional deve ser poupada de uma “hiperinflação”. Ela
tem, sim, a tarefa profética de denunciar o mal onde estiver, mas
cabe a outras associações cristãs promover objetivos e valores
culturais que vão além da proclamação do evangelho e da
ministração dos sacramentos — e isso deve ser feito sem perder de
vista o atual cativeiro babilônico do crente (p. 48-51).
Em quinto lugar, a política não tem o papel-chave nessa
guinada e redirecionamento que devemos, como crentes, promover
na nossa civilização. O ponto de partida é espiritual. O ponto
intermediário é ético e histórico. Só então a atuação política passa a
ter algum norte. Crer no contrário é defender “uma abordagem
superficial” que não lida com a raiz do problema (p. 52).
Finalmente, a política cristã que mais se conforma a uma
visão bíblica da realidade social e histórica é aquela que afirma a
diversidade das esferas da vida, cada uma soberana em seu próprio
âmbito. Por isso, seguindo Abraham Kuyper (1837-1920) e outros
intelectuais cristãos que influenciaram a plataforma de seu partido,
Schuurman manifesta-se a favor da “gente pequena” (para usar as
palavras de Kuyper) e contra a expansão tirânica do Estado
modernista e totalizante.[6]
IV
Na política cristã defendida por Schuurman, o Estado é somente
uma dentre várias instituições — e não o “todo” que abarca o resto
da sociedade como se fossem meras “partes”. Por isso, “o Estado
tem, diante da face de Deus, um lugar limitado e uma tarefa
definida”.[7] Ainda:
Futurologia evolucionária
Na ciência da futurologia moderna existe uma função religiosa. O
homem confia a vida à ciência e seus poderes. A tecnologia
científica tornou-se uma fonte profunda de inspiração para as
pessoas ansiosas em relação ao futuro. O homem contemporâneo
aceita o processo de evolução e, em seguida, aplica seu
conhecimento à eugenia para tentar fornecer às futuras gerações
um “equipamento interno” melhor. Assim, a tecnologia científica
moderna é vista como meio para melhorar o “equipamento exterior”
do homem. No passado, a evolução foi pensada para operar de
modo automático, sem intervenção humana; hoje, o homem
começou a crer na possibilidade de dirigir o próprio desenvolvimento
e o da sociedade.
Futurologia revolucionária
Os futurólogos revolucionários objetam com tenacidade ao futuro
estático e rígido, percebido pela elite tecnocrática. Seu palpite é que
esse futuro serviria apenas os interesses próprios da elite; a
injustiça presente, o sofrimento, o mal e a opressão, serão
reforçados em vez de eliminados.
Além disso, eles temem que a guerra nuclear, o aumento da
poluição ambiental, e o atual esgotamento dos recursos minerais e
energéticos — todos eticamente inaceitáveis para eles — serão,
pela lógica, opções viáveis para os tecnocratas. Os tecnocratas
admitem a utilização de medidas limitadas contra esses problemas,
apenas adiando-os. Em uma data posterior, eles virão de novo à
tona de forma muito mais aguda. De acordo com futurólogos
revolucionários, isso ocorre porque tecnocratas subordinam a
história ao progresso da ciência e da tecnologia. Seu erro significa
que as atuais forças culturais e econômicas, junto com todos os
seus males, apenas serão reforçadas em saltos quânticos.
Problemas e perigos
A realidade perdeu o significado de acordo com esse modo de
pensar. A realidade não é mais a criação, ricamente diferenciada, a
entidade viva e sustentada pela Palavra de Deus. Em vez disso, o
homem “cria” um mundo impulsionado pela dinâmica tecnológica e,
em seguida, tenta aceitá-lo como o mundo real, embora seja
desprovido de sentido. O homem moderno iguala o mundo
tecnológico à realidade total. Claro que a realidade criada não
permite essa redução. Todos os aspectos da realidade criada são
coerentes em uma unidade significativa. Todavia, se o homem nega
a coerência centrada em Deus, o desenvolvimento da realidade
humana provoca sua própria destruição. Ela pode vir com lentidão e
de forma cumulativa, mas virá.
É impossível a instituição de um mundo tecnológico
independente. O crescimento do desenvolvimento tecnológico é
limitado ao potencial da realidade criada. As fontes de energia e os
depósitos de minerais são limitados. Os problemas ambientais,
como a poluição de mares e oceanos e a contaminação do solo, da
água e do ar mostram como a tecnologia atual explora o meio
ambiente com perigo. A tecnologia também revela graves tensões
internas em torno de questões como a energia nuclear e a
biotecnologia. A crescente dependência da computação causou
desemprego, deslocamento social, solidão e alienação. As funções
específicas e únicas de cada pessoa, a responsabilidade individual
e criativa do homem — no contexto do mundo de experiência global
— está sendo eliminado de maneira sistemática do modelo
tecnológico da realidade. A cultura definida como unidade científica
e tecnológica se dilacera a partir de si mesma. Externamente reflete
uma abstração gelada, uniforme, impessoal e homogênea.
Criar um mundo científico e tecnológico independente e
deixá-lo dominar e destruir a globalidade da experiência traz sobre
nós os problemas e perigos que mencionei. Os problemas mostram
que a realidade é apenas uma, criada e mantida por Deus. Os
problemas também apontam que o conhecimento científico é
sempre impelido e permeado pelo conhecimento pré-teórico ou
suprateórico. A singularidade da visão cristã consiste no fato de o
conhecimento pré-teórico ou suprateórico se basear na fé,
fundamentada na revelação divina. Isso permite que os cristãos
sejam críticos e apreciadores da ciência e tecnologia. Observadas
do ponto de vista cristão, a ciência e a tecnologia só serão
significativas caso permaneçam em áreas limitadas da totalidade da
experiência humana, e não se tornem modelos pelos quais todos os
outros aspectos da vida são organizados — para seu próprio dano.