Relatório Brasil Da CIDH OEA 2021
Relatório Brasil Da CIDH OEA 2021
Relatório Brasil Da CIDH OEA 2021
Doc. 9
12 fevereiro 2021
Original: Português
2021
cidh.org
OAS Cataloging-in-Publication Data
ISBN 978-0-8270-7176-6
OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Membros
Joel Hernández
Antonia Urrejola
Flávia Piovesan*
Esmeralda Arosemena de Troitiño
Margarette May Macaulay
Julissa Mantilla Falcón
Edgar Stuardo Ralón Orellana
Chefe de Gabinete da
Secretaria Executiva da CIDH
Norma Colledani
10 RESUMO EXECUTIVO
14 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO
19 A. DISCRIMINAÇÃO HISTÓRICA
19 1. Pessoas afrodescendentes
24 2. Comunidades afrodescendentes tradicionais ou tribais – quilombolas
29 3. Povos indígenas
39 4. Mulheres e a violência de gênero
45 B. DISCRIMINAÇÃO SOCIOECONÔMICA
45 1. Pessoas trabalhadoras rurais, camponesas e de migração forçada
48 2. Pessoas em situação de rua, população sem teto, vivendo em
favelas e áreas periféricas
91 B. PESSOAS MIGRANTES
93 1. Pessoas migrantes venezuelanas
96 2. Xenofobia, desafios sociais e formais
98 C. PESSOAS LGBTI
102 CAPÍTULO 4 SEGURANÇA CIDADÃ
187 A. CONCLUSÕES
194 B. RECOMENDAÇÕES
Situação dos Direitos Humanos no Brasil 10
RESUMO EXECUTIVO
RESUMO EXECUTIVO
2. Nesse sentido, no Capítulo 2 do presente relatório, a CIDH analisa a situação das pes-
soas afrodescendentes, incluindo as comunidades quilombolas (equiparadas a co-
munidades tribais, segundo os parâmetros internacionais), mulheres, povos indíge-
nas, camponeses e trabalhadores rurais, pessoas sem-terra e sem-teto, assim como
aquelas que moram em favelas e áreas periféricas. Para tanto, a Comissão buscou o
ponto de conexão entre as violações sofridas por esses indivíduos e comunidades e a
sua estreita vinculação com o processo de exclusão histórica no que diz respeito ao
acesso à terra, bem como à privação efetiva a direitos econômicos, sociais, culturais
e ambientais. Na análise da Comissão, muitas dessas pessoas, por conta da discrimi-
nação baseada na origem étnico-racial, acabam em um ciclo de pobreza que as impe-
le a situações habitacionais extremamente precárias e, por consequência, as expõem
à violência perpetrada por grupos e organizações criminosas, a exemplo das milícias
e do tráfico de drogas; bem como àqueles que atuam no tráfico de pessoas (interno e
internacional) ou na exploração de condições de trabalho análogo à escravidão.
7. A CIDH também coletou informações que mostram que o sistema de justiça, em sua
maioria, não avançou em investigações, condenações e reparações às vítimas de vio-
lência institucional. Na opinião da Comissão, conforme destacado no capítulo 5, há
um alto índice de impunidade desses crimes, o que, em intersecção com a discrimi-
nação estrutural, consolida um diagnóstico de racismo institucional presente no sis-
tema de justiça. Essa impunidade seletiva também pode ser observada nos crimes
ocorridos durante a ditadura civil-militar no país. Apesar do progresso alcançado
por diferentes órgãos que buscaram estabelecer a verdade, a CIDH destaca que gra-
ves violações de direitos humanos relativos a esse período seguem impunes.
1
Organização dos Estados Americanos | OEA
INTRODUÇÃO
15
CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO
10. A delegação da Comissão Interamericana foi chefiada pela então Presidenta da CI-
DH, Comissária Margarette May Macaulay, e integrada pela então Primeira Vice-Pre-
sidenta, Comissária Esmeralda Arosemena de Troitiño; pelo Comissário Francisco
Eguiguren Praeli; pelo Comissário Joel Hernández García; e pela Comissária Antonia
Urrejola Noguera, Relatora para o Brasil. Adicionalmente, integraram a delegação, a
Secretária Executiva Adjunta, María Claudia Pulido; a então Chefe de Gabinete da Se-
cretaria Executiva, Marisol Blanchard Vera; o Relator Especial para a Liberdade de
Expressão, Edison Lanza; a Relatora Especial para os Direitos Econômicos, Sociais,
Culturais e Ambientais (DESCA), Soledad García Muñoz; acompanhados por especia-
listas da Secretaria Executiva.
11. Durante sua permanência no Brasil, a CIDH realizou reuniões com autoridades na-
cionais dos distintos Poderes e esferas do Estado, tais como do então Ministério dos
Direitos Humanos, do Supremo Tribunal Federal, do Ministério das Relações Exte-
riores, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, da Procuradoria-Geral da Repú-
blica e membros dos Ministérios Públicos estaduais, da Defensoria Pública da União
e Defensorias Estaduais, bem como com outras autoridades municipais e estaduais.
A Comissão também se reuniu com representantes de um amplo grupo de organi-
zações da sociedade civil, movimentos sociais, defensoras e defensores dos direitos
humanos, pessoas afrodescendentes e quilombolas, povos indígenas, trabalhadores
rurais, pessoas em situação de pobreza e sem-teto, líderes de movimentos de defesa
dos direitos de diversos grupos em situação de discriminação histórica, líderes do
movimento LGBTI, moradores de favelas, familiares de policiais assassinados, entre
outros. Paralelamente, a CIDH teve a oportunidade de encontrar-se com represen-
tantes de organizações internacionais do Sistema das Nações Unidas e membros do
corpo diplomático internacional alocados no país.
12. A delegação dividiu-se em 6 grupos, que estiveram nos estados da Bahia, do Mara-
nhão, do Mato Grosso do Sul, de Minas Gerais, do Pará, do Rio de Janeiro, de São Pau-
lo, de Roraima, bem como em Brasília. Na ocasião, recebeu uma grande quantidade
de depoimentos de vítimas de violações de direitos humanos e de seus familiares,
assim como pôde analisar documentos, leis, projetos de lei e outras informações re-
levantes aos direitos humanos no país. Durante a visita, a CIDH teve a chance de co-
nhecer instituições do Estado, incluindo locais de privação de liberdade; um centro
de acolhimento e cuidados para migrantes e refugiados na fronteira com a Venezue-
la; uma unidade do sistema socioeducativo, entre outros. Também visitou espaços de
quilombos, territórios de comunidades indígenas e a zona de consumo de drogas po-
pularmente conhecida como “Cracolândia”, na cidade de São Paulo.
14. No marco de sua missão, a Comissão Interamericana assinou dois acordos de coope-
ração com o Ministério Público Federal e com o Conselho Nacional do Ministério Pú-
blico objetivando estabelecer mecanismos formais de cooperação na defesa e promo-
ção dos direitos humanos no continente. Nesse marco, a CIDH volta a recordar que
os Ministérios Públicos Estaduais e o Ministério Público Federal, as Defensorias Pú-
blicas Estaduais e a Defensoria Pública da União desempenham um imprescindível
papel para a efetiva garantia dos direitos humanos e para a manutenção da ordem
democrática no país.
15. Como resultado da visita, a Comissão apresenta o presente relatório, que está con-
formado por seis capítulos que fazem uma detalhada análise da desigualdade extre-
ma e da vulnerabilidade a que algumas pessoas, grupos, comunidades e populações
estão sujeitas no Brasil, por conta da discriminação histórica a que sempre estive-
ram submetidas. Para tanto, se utilizou, além da informação coletada durante a vi-
sita, de investigações de ofício e insumos provenientes dos diferentes mecanismos
com os quais conta a Comissão, tais como audiências públicas, reuniões de trabalho,
solicitações de informações e medidas cautelares. A CIDH também recorreu às deci-
sões e recomendações de organismos internacionais especializados, bem como tex-
tos e publicações dos principais meios de comunicação do país, entre outros.
nalistas e pessoas LGBTI. Essa primeira análise permitiu que se atualizasse, em grande
parte, os diagnósticos realizados pela CIDH em sua anterior visita ao país.
17. Por sua vez, a CIDH analisou temas conexos à segurança dos cidadãos, incluindo in-
dicadores de violência e criminalidade e análises da política pública de segurança.
Nesse sentido, foi possível observar o déficit de responsabilização dos agentes públi-
cos por violações de direitos humanos cometidas, um problema que o país enfrenta
desde sua transição para a democracia. Na oportunidade, observaram-se os avanços
e desafios do país para a construção de um arcabouço político-institucional que via-
bilize a efetivação de direitos humanos, incluindo a intrínseca correlação entre esses
temas e as condições para o exercício de direitos civis e políticos (liberdade de ex-
pressão e informação, liberdade de associação e protestos, combate aos discursos de
incitação ao ódio e à discriminação e participação democrática), bem como de direi-
tos sociais, econômicos e culturais (como a educação e saúde).
18. Cumpre destacar que a Comissão reconhece que o Brasil possui um sistema demo-
crático e um Estado de Direito com sólidas instituições democráticas e de direitos
humanos. Contudo, destaca que o país enfrenta desafios na superação de aspectos
estruturais historicamente negligenciados, bem como apresenta preocupantes re-
trocessos em algumas políticas que podem resultar em impactos negativos sobre os
direitos humanos de sua população.
2
A DISCRIMINAÇÃO HISTÓRICA
E A DISCRIMINAÇÃO
SOCIOECONÔMICA COMO
CAUSAS DA DESIGUALDADE
ESTRUTURAL
A. DISCRIMINAÇÃO HISTÓRICA
1. Pessoas afrodescendentes
21. Esse padrão discriminatório está presente nos inúmeros obstáculos observados pela
CIDH para que essas pessoas ascendam e exerçam seus direitos, principalmente no que
diz respeito à participação efetiva em espaços democráticos, no acesso ao mercado de
trabalho formal e na participação em espaços gerenciais no setor corporativo privado;
na saúde e educação de qualidade; no acesso à moradia digna, assim como no efetivo
acesso à justiça. Além disso, a CIDH constatou, com especial preocupação, processos
sistêmicos de violência perpetrados por agentes do Estado, especialmente por aqueles
vinculados às instituições policiais e sistemas de justiça baseados em padrões de perfi-
lamento racial4 com um objetivo de criminalizar e punir a população afrodescendente.
1 O conceito de discriminação estrutural pode ser encontrado em CIDH, Informe sobre pobreza y derechos
humanos en las Américas. OEA/Ser.L/V/II.164 Doc. 147. 7 setembro 2017, pár. 393
2 O conceito de racismo institucional pode ser encontrado em CIDH, Informe sobre la situación de los dere-
chos humanos en la República Dominicana. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 45/15. 31 dezembro 2015, pár. 92.
3 CIDH, Informe sobre la situación de derechos humanos en Brasil, OEA/Ser.L/V/II.97, Doc. 29 rev.1, 29 setem-
bro 1997.
4 O termo perfilamento racial está consolidado nos anais dos Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Sobre isso, ver: CIDH, Informe de Mérito N° 23/03, Néri da Fonseca, aprovado em 11 de março de 2004; as-
sim como CIDH, Informe de Mérito Nº 66/06, Simone André Diniz, aprovado em 21 de outubro de 2006.
22. Segundo as cifras oficiais em nível nacional relativas ao ano de 2019, a sociedade brasi-
leira estava composta por 56,8% de pessoas afrodescendentes5 . Apesar desse elevado
percentual, a Comissão verificou os baixíssimos números de participação democrática
dessa população. No processo eleitoral realizado em 2018, dos 1.752 candidatos eleitos
para cargos eletivos em todos os níveis dos poderes executivos e legislativos brasilei-
ros (municípios, estados federados e nacional), somente 27,86%, ou seja, um total de
488 pessoas, se reconhecem como afrodescendentes6 . O setor privado não apresenta
um cenário diferente, uma vez que, segundo dados nacionais relativos ao perfil de pro-
fissionais no âmbito corporativo, somente 4,7% dos cargos executivos e gerenciais das
maiores empresas do Brasil são ocupados por pessoas afrodescendentes7.
24. O quadro de desigualdade estrutural gerado pela discriminação racial torna-se ainda
mais evidente quando analisados os dados da educação das pessoas afrodescendentes
no Brasil. Segundo informação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
enquanto 3,9% da população branca com 15 anos ou mais é considerada analfabeta,
esse percentual aumenta para 9,1% quando entre as pessoas afrodescendentes. A in-
formação ainda dá conta de que, em 2018, 44,2% dos jovens afrodescendentes do sexo
masculino com idade entre 19 e 24 anos não concluíram o ensino médio. Por sua vez,
entre os jovens afrodescendentes nessa faixa etária, o índice atinge 33% em compara-
ção aos 18,8% dos jovens não afrodescendentes11.
5 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua tri-
mestral, 2019.
6 Tribunal Superior Eleitoral, Estatísticas Eleitorais - Eleições Gerais de 2018, em 11 de dezembro de 2019.
7 Instituto Ethos, Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e suas Ações Afir-
mativas, maio de 2016.
8 Ministério da Saúde, Portaria GM/MS no 992, 13 de maio de 2009.
9 ONU Brasil, Quase 80% da população brasileira que depende do SUS se autodeclara negra, em 5 de de-
zembro de 2017.
10 Conselho Nacional de Saúde, Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019 por causa da EC 95/2016, em 28 de Fe-
vereiro de 2020.
11 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua tri-
mestral, 2019.
27. Os dados apresentados acima possuem uma correlação que representam um ciclo de
violação interdependente dos direitos humanos. Sobre isso, deve-se notar que o ciclo
de violência racial começa arraigado nos padrões culturais de inferiorização e sub-
jugação étnico-racial disseminados na sociedade brasileira, gerando a discriminação
estrutural histórica, o preconceito e a desigualdade, que, por sua vez, resultam na ma-
nutenção de uma perversa cultura de dominação racial em um ciclo infindável de vio-
lações. Esse ciclo faz com que os processos de exclusão e discriminação socioeconômi-
cos também afetem os direitos à integridade e à vida de grande parte dessas pessoas.
origem étnico-racial17. Preocupa ainda mais quando observada a faixa etária desses
homicídios e a forma com que foram cometidos. Segundo os dados disponíveis, 78%
das vítimas são jovens afrodescendentes do sexo masculino, de faixa etária entre 15 a
29 anos18 . Já a taxa de mortalidade das mulheres afrodescendentes cresceu 22% entre
2006 e 201619. Soma-se a isso o fato de que, entre os anos 2015 e 2016, 75% das pes-
soas assassinadas em intervenções realizadas por agentes das forças de segurança do
Estado eram afrodescendentes20, crimes que na sua maioria permanecem impunes21.
29. Fato que chega a sugerir um processo de “limpeza social” destinado a exterminar
setores considerados “indesejáveis”, “marginais”, “perigosos” ou “potencialmente
delinquentes”, que conta com a anuência estatal 22 . Segundo informado pelo Estado,
pesquisas qualitativas realizadas nos últimos anos pelo Ministério de Justiça e Segu-
rança Pública mostram que a abordagem policial é feita de “maneira seletiva, discri-
cionária e subjetiva, pouco porosa a ao controle ou regulação pública”23 .
30. No estado do Rio de Janeiro, a CIDH foi informada sobre a violência exercida pelas
forças de segurança pública que, segundo dados do Instituto de Segurança Pública
(ISP), no ano de 2019, resultou em 1.819 mortes em supostos confrontos com civis.
Este número indica um incremento de 18% em relação ao ano anterior, bem como
a maior taxa de mortalidade policial registrada na história do estado. Do total acu-
mulado de vítimas, 78,5% eram pessoas afrodescendentes, como o caso de Eduardo
Jesus Ferreira, de 10 anos, que foi alvejado por policiais enquanto estava sentado na
porta de sua casa em abril de 201524 .
31. No estado de São Paulo, por sua vez, durante o ano de 2019, foram registradas 716
mortes, das quais 65% dessas eram pessoas afrodescendentes, devido ao supos-
to confronto entre agentes da polícia e civis. Essa cifra representa um aumento de
11,5% em relação ao ano anterior 25 . Ainda segundo testemunhos, muitos desses cri-
mes estão na impunidade total, como no caso do massacre de mais de 500 pessoas
em 2006, no evento que ficou conhecido como Crimes de Maio.
32. Segundo os dados publicados pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos,
destaca-se que 67% das vítimas de violência policial no âmbito nacional se identifi-
caram como afrodescendentes do sexo masculino, com idades que variam entre 20 e
40 anos26 . De acordo com o informado pelo Estado, as decisões de atuação das tropas
policiais não são precedidas de investigação prévia, mas baseadas em conceitos dis-
criminatórios em relação à “vestimenta, bens que possui ou local frequentado, bem
como comportamentos estereotipados associados às culturas negras urbanas perifé-
ricas” por parte dos agentes de segurança 27.
33. A Comissão Interamericana afirma que esses assassinatos não podem ser conside-
rados atos isolados de violência, mas sim um processo sistemático e generalizado
conduzido por instituições de segurança e órgãos judiciais do Estado direcionados
a exterminar pessoas afrodescendentes com requintes de extrema crueldade28 . Isso,
na opinião da CIDH, poderia se aproximar, perigosamente, de processos que buscam
extinguir, no todo ou em parte, as pessoas dessa origem étnico-racial.
34. Por outro lado, a Comissão reconhece os esforços do Estado para lidar com esse e
outros problemas relacionados. Em particular, a Comissão destaca o trabalho reali-
zado pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR),
criada em 2003 como Secretaria Especial vinculada à Presidência da República e ho-
je inserida no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A
SNPPIR se destacou pela liderança no processo de elaboração dos marcos legais e de
políticas públicas ainda vigentes na defesa e proteção dos direitos das pessoas afro-
descendentes, como a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2003)29, o
Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2009)30 e o Estatuto da Igualdade
Racial (2010), em cujo marco se criou o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade
Racial (SENAPIR)31 . Ademais, destaca o importante papel do Conselho Nacional de
25 Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, Relatório Anual de Prestação de Contas 2019, fevereiro de
2020. Pág. 30.
26 Agência Brasil, Disque 100, ministério explica dados sobre violência policia, 26 de junho de 2020.
27 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 6.
28 Sobre isso, ver Corte IDH, Sentença do Caso Nº. Favela Nova Brasília vs. Brasil, par. 150, em 16 de feverei-
ro de 2017.
29 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto n 4.886, de 20 de novem-
bro de 2003.
30 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto n° 6.872, de 4 de junho
de 2009.
31 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei no 12.288, de 20 de julho
de 2010.
37. No Brasil, esses povos são conhecidos como quilombolas e, apesar de sua formação
diversa, possuem em comum não apenas a resistência contra a escravidão e explo-
ração do passado brasileiro, como também o modo de vida que desenvolveram tradi-
32 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 3.
33 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 4.
34 Banco Mundial, Afrodescendientes en Latinoamérica: Hacia un marco de inclusión, 2018.
35 IBGE, Síntese de Indicadores Sociais, Uma análise das condições de vida da população brasileira, 2019, p. 27.
36 CIDH, Situación de los derechos humanos de los pueblos indígenas y tribales de la Panamazonia, par. 7, em 29
setembro 2019.
37 Corte IDH, Pueblo Saramaka vs. Surinam, pág. 60, de 28 de novembro de 2007.
cionalmente nos territórios que ocupam, seu sistema de autogoverno e sua forma co-
letiva de organização. Sobre os povos quilombolas, a Comissão observa que, apesar
de só ter havido um reconhecimento formal de sua condição de povo tribal cem anos
depois da abolição da escravatura, com a promulgação da Constituição de 198838 , es-
se reconhecimento não resultou em sua inclusão socioeconômica efetiva nem repa-
ração integral a essas comunidades. Segundo informado pelo Estado brasileiro, so-
mente por meio do Decreto Nº. 6.040/2007, que estabeleceu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) é que
o Estado começou a corporificar o reconhecimento gerado pela Constituição, por
meio dos eixos de garantia de acesso a territórios tradicionais e seus recursos natu-
rais, infraestrutura social e econômica adequada, inclusão social e educação diferen-
ciada, ademais de fomento à produção sustentável39.
40. A CIDH foi informada pelo Estado a respeito de que em dezembro de 2017, 3.051 co-
munidades quilombolas haviam sido certificadas pela Fundação Cultural Palmares,
38 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
39 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. ps. 7 e 8.
40 Segundo dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(CONAQ), são 2847 comunidades quilombolas certificadas no Brasil e 1533 em processamento. Sobre isso
veja-se: CONAQ, Resiliência Quilombola, 6 de junho de 2020.
41 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 10.
43. A Comissão vem alertando sobre os conflitos que ocorrem por interesses privados ou
públicos nos territórios quilombolas sem que haja uma ação do Estado voltada a prote-
ger os seus habitantes. Além disso, em muitas ocasiões, essas ameaças, coações e atos
de violência acabam na impunidade dos seus perpetradores e autores intelectuais47.
42 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 9.
43 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 10.
44 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 10 e 11.
45 Ministério Público Federal, Inquérito Civil nº 1.14.000.000833/2011-91, 2011.
46 Justiça Global, Nota da Justiça Global de pesar pelo assassinato do quilombola José Izídio Dias, 27 de no-
vembro de 2019.
47 CIDH, Pueblos indígenas, comunidades afrodescendientes y recursos naturales: Protección de derechos huma-
nos en el contexto de actividades de extracción, explotación y desarrollo, OEA/Ser.L/V/II.Doc. 47/15, 2015,
par. 256.
44. A Comissão ainda observou que a instalação de um muro pelas Forças Armadas no
quilombo Rio dos Macacos poderia potencialmente afetar o modo de vida tradicional
da comunidade, especialmente em relação à pesca, agricultura e rituais religiosos
dessas pessoas. De acordo com informação recebida da comunidade, a construção do
muro aumentou a condição precária de saneamento básico dentro do território48 .
45. Na opinião da CIDH, tais restrições ao uso e gozo das terras, territórios e recursos
naturais das comunidades quilombolas comprometem a sua capacidade de “‘preser-
var, proteger e garantir a relação especial que mantém com seu território’, para que
possam ‘continuar vivendo seu modo de vida tradicional e para que sua identidade
cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e tradições distin-
tas sejam respeitados, garantidos e protegidos (…)”49. E recorda ao Estado que a sua
obrigação internacional, no que diz respeito à garantia da sobrevivência dos povos
tribais quilombolas, implica não apenas os processos de reconhecimento de fato e de
direito de seus territórios, mas também a adoção de medidas efetivas voltadas para
a manutenção do seu modo de vida tradicional e do seu desenvolvimento.
46. Em particular, a CIDH destaca o dever do Estado de garantir que todas as ações ou
práticas que obstruam ou impeçam o acesso à água potável e ao saneamento básico,
operados por atores privados, oficiais do Estado brasileiro ou membros de suas For-
ças Armadas, cessem imediatamente. A CIDH considera que o acesso à água está inti-
mamente ligado ao respeito e à garantia de vários direitos humanos como o direito à
vida, à integridade pessoal e o princípio de igualdade e de não discriminação.
47. Durante a visita, a CIDH também teve a oportunidade de se reunir com as populações
quilombolas do município de Alcântara, no Maranhão, que vivem nas proximidades
do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), do Ministério da Defesa. Na ocasião, a
Comissão foi informada de que, apesar do reconhecimento, em 2004, daquelas po-
pulações como comunidades quilombolas50, assim como da publicação do Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI) da Comunidade Remanescente do Qui-
lombo de Alcântara em 200851, a titulação do território foi submetida a um processo
de conciliação solicitado pelo Ministro da Defesa à Advocacia Geral da União. 52 A es-
se respeito, a CIDH observa com preocupação que a demora no processo de titulação
poderia afetar diretamente o direito de 3.350 famílias que vivem nesse território53 .
48 Geledés, Marinha ergue muro, e quilombolas de Rio dos Macacos temem ficar sem acesso a água, 2017.
49 Corte IDH, Pueblo Saramaka vs. Suriname, Sentença de 28 de novembro de 2007.
50 Fundação Palmares, Comunidades certificadas, 08 de junho de 2004.
51 Diário Oficial da União, Regularização Fundiária das Terras da Comunidade Remanescente de Quilombo
de Alcântara, 05 de novembro de 2008, pág. 125 e 126.
52 Senado Federal, Jobim recorre à AGU por terras de Alcântara, 4 de fevereiro de 2009.
53 Organização Internacional do Trabalho, Direct Request (CEACR) - adopted 2019, published 109th ILC session
(2020), 2020.
48. A CIDH também foi informada a respeito da preocupação das comunidades qui-
lombolas da área de Alcântara diante de um novo despejo forçado por conta da ex-
pansão da área da base para lançamentos de foguetes, previsto no Acordo de Sal-
vaguarda Tecnológica assinado pelo Estado brasileiro e pelos Estados Unidos de
América em 201954 .
49. Nesse sentido, a Comissão entende que o Estado deve realizar processos de consulta
de boa-fé, de maneira culturalmente adequada, prévia, livre e informada, relativa a
todas as modificações de natureza física que sejam realizadas no território tradicio-
nal ou próximo a ele, além de atividades do CLA que possam afetar as comunidades,
sejam aquelas que geram resíduos, poluição sonora, movimento significativo de pes-
soas na área ou que impõem restrições ao seu direito à livre circulação. Na mesma
linha, devem ser realizadas consultas sobre iniciativas e projetos de lei que visam
envolver a participação das comunidades quilombolas nos benefícios do projeto55 .
50. Por sua vez, sobre o conflito entre o Comando do Exército e a Comunidade Quilom-
bola do Forte Príncipe da Beira, em Rondônia, o Estado brasileiro informou sobre a
disponibilização de recursos para o Exército Brasileiro para o cumprimento da Ação
Civil Pública Nº. 6050-05.2014.4.01.4101. Tais recursos serão utilizados com a finali-
dade de instalar um sistema de monitoramento por videocâmaras nas áreas estraté-
gicas, viabilizando a circulação dos quilombolas residentes56 .
51. A Comissão recorda ao Estado sobre sua obrigação de realizar consultas para obter o
consentimento livre, prévio e informado segundo costumes e tradições das comuni-
dades quilombolas, sempre que se trate de planos de desenvolvimento em larga esca-
la dentro de territórios tribais57. A CIDH enfatiza que o alcance da expressão “planos
de desenvolvimento ou investimento em larga escala” deve ser entendido como todo
“processo de investimento de capital público e/ou privado, nacional ou internacio-
nal para a criação ou melhoria da infraestrutura física de uma determinada região;
a transformação a longo prazo das atividades produtivas com as correspondentes
mudanças no uso da terra e direitos de propriedade sobre ele; exploração em larga
escala de recursos naturais, incluindo recursos do subsolo, construção de centros
urbanos, fábricas, instalações de mineração, usinas, refinarias, complexos turísticos,
instalações portuárias, bases militares e empresas similares”58 .
54 Ministério da Defesa, Conhecendo o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas Brasil e Estados Unidos, 2019.
55 Câmara dos Deputados, Projeto cria fundo para beneficiar comunidades afetadas pela base de Alcântara,
19 de abril de 2019.
56 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 13.
57 Corte IDH, Pueblo Saramaka vs. Suriname, Sentença de 28 de novembro de 2007.
58 Nações Unidas, Informe do Relator Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos e das Liberdades Funda-
mentais dos Indígenas, Sr. Rodolfo Stavenhagen. Doc. E/CN.4/2003/90, 21 de janeiro de 2003, parágrafo 6.
52. A consulta prévia deve ser realizada não apenas em assuntos relacionados ao terri-
tório ou que gerem impacto ambiental, mas também em relação às regulamentações
que digam respeito à livre circulação em territórios tradicionais, mudanças na estru-
tura administrativa governamental e licenciamento ambiental59. Nesse sentido, a CI-
DH reconhece as iniciativas desenvolvidas pelo Ministério Público Federal do Brasil
com a finalidade de estabelecer, de maneira amplamente participativa e transparen-
te, protocolos de consulta comunitária que abordem a diversidade de povos e comu-
nidades indígenas e quilombolas.
3. Povos Indígenas
59 Racismo Ambiental, Expansão da Base de Alcântara pode desabrigar 2700 famílias quilombolas, 19 de
março de 2019.
60 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
61 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 18.
62 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto nº 5.051, de 19 de abril
de 2004.
63 Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Política Indigenista, 9 de junho de 2020.
2.057/1991 - Estatuto dos Povos indígenas64 , que, segundo informação, ainda segue
em tramitação no Congresso Nacional.
56. Apesar dos avanços registrados na legislação, a CIDH vê como grave e preocupante
a situação dos povos e comunidades indígenas do Brasil. Aos registros de ameaça de
invasão aos seus territórios por não indígenas, somam-se profundos desafios quanto
à titulação e proteção de suas terras e, em inúmeros casos, os povos e comunidades
indígenas se veem sem a necessária proteção do Estado. Nesse âmbito, a Comissão
manifesta sua grande preocupação a respeito do processo de revisão das políticas
indigenistas e ambientais do país, o que tem favorecido as ocupações ilegais das ter-
ras ancestrais, encorajado atos de violência contra suas lideranças e comunidades in-
dígenas, e autorizado a destruição ambiental de seus territórios.
59. Além de incertezas quanto à sua posição institucional, a CIDH nota que a FUNAI tem
sido fortemente afetada por cortes orçamentários67. Segundo estimativas da socieda-
60. Portanto, a Comissão assevera que, como órgão federal responsável pelas políticas
públicas para os povos e comunidades indígenas no Brasil, a FUNAI deve contar com
recursos físicos e materiais adequados, assim como um mandato forte perante as de-
mais instituições do Estado. O enfraquecimento da institucionalidade das políticas
indígenas no país, combinado com o enfraquecimento das políticas ambientais, ten-
de a erodir a capacidade do Estado de cumprir com a sua responsabilidade interna-
cional de proteção dos povos indígenas.
62. Por outro lado, a CIDH recebeu informações sobre a precariedade das políticas de
saúde indígenas71. Por sua vez, o Estado enviou informação sobre a existência da Se-
cretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), criada em 2010 para garantir saúde com
um enfoque étnico-racial no Sistema Único de Saúde. De igual maneira, alertou para a
existência de programas de saúde dental aos povos indígenas, que contaria com 923
profissionais, além da aplicação de estratégias de vacinação às pessoas indígenas, que
garantiu 141 mil doses de vacina em 201572 . A CIDH reitera que os povos indígenas têm
68 Instituto Socioambiental (ISA), PEC 241 vai congelar orçamento da Funai no fundo do poço, 26 de outu-
bro de 2016.
69 Associação de Servidores da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), A Política Indigenista no PPA e na LOA
70 Diário Oficial da União, Instrução Normativa Nº 8, 20 de fevereiro de 2019.
71 Ver capítulo 6 do relatório.
72 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 15.
o direito coletivo e individual de usufruir do mais alto nível possível de saúde física,
mental e espiritual, bem como de exercer seus próprios sistemas e práticas de saúde.
Da mesma forma, possuem o direito de usar todas as instituições e serviços de saúde e
assistência médica acessíveis à população em geral. Consequentemente, os Estados em
consulta e coordenação com os povos indígenas devem promover sistemas ou práticas
interculturais nos serviços médicos e sanitários prestados nas comunidades indígenas,
incluindo a formação de técnicos e profissionais de saúde indígenas.73
64. A CIDH reitera as disposições da Corte Interamericana no caso povo Xucuru e de seus
membros vs. Brasil (2018), no sentido de que a falta de delimitação e demarcação efe-
tiva dos limites do território sobre o qual existe um direito de propriedade coletiva
por um povo indígena pode gerar um clima de incerteza permanente entre os mem-
bros dos referidos povos. Essa mesma decisão estabelece que a incerteza sobre os
limites dos direitos de propriedade no contexto de extensão territorial gera, por con-
sequência, a insegurança sobre até que ponto os povos originários podem livremen-
te usar e usufruir dos seus respectivos bens79.
73 Declaración Americana sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas, art. XVIII
74 O artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 estabeleceu o prazo de
cinco anos para a conclusão da demarcação de todas as terras indígenas.
75 O que, segundo informação do Estado, representaria uma área de aproximadamente 116.900.565,3634
hectares - Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Di-
reitos Humanos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 18.
76 Antecedentes entregues por Indian Law Resourse Center, Situación de los Derechos Humanos de los Pueblos
Indígenas Brasil, p. 2 [en archivo de la CIDH] de 8 de dezembro de 2018.
77 Câmara dos Deputados, CCJ aprova PEC sobre atividades agropecuárias em terras indígenas, 27 de agosto
de 2019.
78 Câmara dos Deputados, CCJ aprova PEC sobre atividades agropecuárias em terras indígenas, 27 de agosto
de 2019.
79 Corte IDH. Caso Pueblo Indígena Xucuru y sus miembros Vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Repa-
raciones y Costas. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Serie C No. 346, parágrafo 188.
65. Da mesma forma, durante sua visita, a CIDH recebeu informações que afirmam que
desde a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 2009, no marco da Peti-
ção nº 3.388/RR, que tem como objeto o caso sobre as terras Raposa Serra do Sol, ins-
titucionalizou-se a tese do Marco Temporal no Brasil. De acordo com essa orientação,
os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupadas a partir de 5
de outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição Federal). Em 20 de julho de
2017, o Parecer 001/2017 GAB/CGU/AGU estabeleceu que todos os órgãos da Adminis-
tração Pública Federal, incluindo a FUNAI, deveriam seguir estas diretrizes. 80 No en-
tanto, a CIDH observa com preocupação que a decisão do Supremo Tribunal Federal
que suspendeu a aplicação da tese do Marco Temporal, possui caráter preliminar e ain-
da pode ser revertida. Ademais, a Comissão destaca que a referida sentença aponta pa-
ra um efeito erga omnes que seria adotado na decisão final, situação que trará impacto
a todos os processos de demarcação de territórios indígenas já concluídos e futuros.
66. No entender da CIDH, a tese do marco temporal desconsidera os inúmeros casos nos
quais povos indígenas haviam sido violentamente expulsos dos territórios que ocupa-
vam tradicionalmente e, apenas por essa razão, não o ocupavam em 1988. Nesse senti-
do, a Comissão considera a tese como contrária às normas e padrões internacionais e
interamericanos de direitos humanos, especialmente a Convenção Americana sobre os
Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas81.
67. Nesse sentido, a CIDH alerta para o fato de que a aplicação da tese do Marco Tempo-
ral potencialmente afetará 748 processos de demarcação administrativa em anda-
mento no país, uma vez que a FUNAI estaria impedida de avançar com esses proces-
sos por orientação de sua própria consultoria jurídica. Ademais, a AGU poderia não
recorrer de decisões nas quais o juízo de primeira instância anule a demarcação de
terras após verificar a ausência de ocupação indígena na área em 1988. Tais casos
seriam impedidos de serem levados a instâncias superiores. A Comissão também re-
gistra que a tese do Marco Temporal foi aplicada em várias decisões judiciais adota-
das pelos tribunais regionais federais, ensejando o cancelamento dos processos de
demarcação das terras Limão Verde, Buritim do povo Terena e Guyraroká do povo
Guarani-Kaiowá, todas no Mato Grosso do Sul82 .
68. Sobre isso, no período de sua estada no Brasil, a Comissão visitou a terra indígena de
Guyraroká, população para a qual o Supremo Tribunal Federal (STF) aplicou a tese
do marco temporal e anulou processos de demarcação já iniciados por meio do rela-
tório de identificação e delimitação que havia sido publicado em 25 de novembro de
2004 83 . A Comissão observou que a comunidade ainda permanece fora da maior par-
te de seu território, ocupando atualmente menos de 5% dos 11.401 hectares identifi-
cados. A CIDH também foi informada de que, como resultado da aplicação do marco
temporal, a comunidade corre o risco iminente de ser despejada.
69. Por sua vez, a CIDH pôde verificar que a grave situação humanitária sofrida pelos po-
vos Guarani e Kaiowá é decorrente, em grande parte, da violação de seus direitos ter-
ritoriais. Em visita à terra indígena Dourados-Amambaipeguá, recebeu-se abundan-
te informação sobre as vítimas do chamado “Massacre de Caarapó”, em que Clodiodi
de Souza foi morto e outros seis indígenas ficaram feridos, incluindo um menino de
12 anos. Também foi se tomou conhecimento dos frequentes ataques realizados por
milícias armadas que causaram várias mortes e desaparecimentos. Adicionalmente,
informações dão conta que as forças policiais frequentemente realizam operações,
como a denominada operação Caarapó I, ocorrida em 25 de abril de 2017, que contou
com mais de 200 policiais e um helicóptero, que não observaram os padrões interna-
cionais e direitos humanos dos povos indígenas84 .
71. Segundo informado, uma das graves consequências da violação do direito à terra
tem sido a remoção de crianças indígenas de suas famílias. Em Caarapó, a Comissão
visitou o Centro Educacional Maria Ariane (CEMA), no qual, das 19 crianças alojadas,
17 eram indígenas. Em Dourados, no ano de 2018, foram registradas 34 crianças in-
dígenas em abrigos. O processo de abrigamento de crianças indígenas reflete o qua-
dro de carências e violações vividas pelas comunidades indígenas, especialmente em
um contexto de privação do direito à terra, como observado no caso dos indígenas
da etnia Guarani-Kaiowá.
72. Sobre as implicações quanto ao direito à terra, a Comissão alerta para a interpretação
restritiva que está sendo feita com relação ao direito à consulta livre, prévia e infor-
mada sobre medidas que possam afetar os povos indígenas. A Comissão Interameri-
cana verificou que, como no caso das comunidades quilombolas, esse direito estaria
83 STF, AR: 2686 DF - Distrito Federal 0069660-65.2018.1.00.0000, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julga-
mento: 30/04/2018, Data de Publicação: DJe-086, 4 de maio de 2018.
84 JusBrasil, “MPF/MS quer que Justiça Federal conduza feitos da Operação Caarapó I”
73. Ao mesmo tempo, a Comissão parabeniza as iniciativas dos povos e comunidades in-
dígenas na elaboração de protocolos autônomos de consulta e consentimento 86 . Tais
instrumentos constituem um exercício legítimo do direito dos povos indígenas de
participar dos processos consultivos de acordo com suas próprias diretrizes cultu-
rais. 87 Todavia, tais protocolos carecem de institucionalização pelo Estado, a fim de
que sejam devidamente cumpridos e passem a incorporar a prática do Estado em to-
das as situações que demandem consulta.
74. A CIDH também recebeu informações sobre o processo decisório que levou à constru-
ção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, na Amazônia brasileira. Segundo informa-
do, Belo Monte tem sido objeto de 20 processos de Ação Civil Pública (ACP) ajuizadas
pelo Ministério Público Federal (MPF) desde 2001, tendo como fundamento a ausência
de consentimento livre, prévio e informado. Sobre isso, toma-se nota de que o projeto
na bacia do rio Teles Pires possui 6 Usinas Hidrelétricas (UHEs) planejadas, das quais
4 estariam em etapa de construção. Ademais, na bacia do Tapajós, serão 43 UHEs e 80
Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), o que afetaria cerca de um milhão de pessoas
incluindo 10 nações de aldeias nativas, 25 projetos de assentamentos e cerca de 600
pescadores tradicionais88 . A Comissão reitera as disposições da Corte Interamericana
de Direitos Humanos no sentido de que “quando se trat[e] de planos de desenvolvimen-
to ou investimento em larga escala que tenham maior impacto no território, o Estado
tem a obrigação de não apenas consultar [os povos indígenas], mas também de obter o
consentimento prévio, livre e informado, de acordo com seus costumes e tradições”89.
75. Sobre esse projeto, segundo o informado pelo Estado, desde setembro de 2019, re-
presentantes da SNPIR vêm atuando junto à Câmara de Conciliação e Arbitragem da
85 Corte IDH. Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Fondo y Reparaciones. Sentença de 27 de
junho de 2012. Série C No. 245, parágrafo 301.
86 A Comissão tomou conhecimento de vários protocolos de consulta, incluindo: Consentimento Wajãpi;
Protocolo de Consulta Juruna (Yudjá) da Terra Indígena Paquiçamba de Volta Grande do Rio Xingu; Pro-
tocolo de Consulta para dois Povos Indígenas do Território do Xingu; Protocolo de Consulta ao Povo Wai-
miri Atroari; Protocolo de Consulta dois Instituto Kayapó-Menkragnotiassociadosao Kabu e o projeto de
Protocolo de Consulta dois Povos Indígenas de Oiapoque. Rede de Cooperação Amazônica, “Consulta pre-
via, libre e informada”, 22 de abril de 2019.
87 Corte IDH. Caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Ecuador. Fondo y Reparaciones. Sentencia de7 de
junho de 2012. Serie C No. 245, pár. 177.
88 Antecedentes entregados por Indian Law Resourse Center “Situación de los Derechos Humanos de los Pue-
blos Indígenas Brasil”, p. 5 [arquivo da CIDH] de 08 de dezembro de 2018.
89 Corte IDH, Caso del Pueblo Saramaka Vs. Suriname. Excepción Preeliminar, Fondo, Reparaciones y Costas.,
Sentença de 28 de novembro de 2007, Serie C N° 172, parágrafo. 134.
76. Da mesma forma, a CIDH foi informada sobre diversos projetos de mineração que
afetam total ou parcialmente terras indígenas e unidades de conservação na Ama-
zônia brasileira. De acordo com informações da sociedade civil, dos 44.911 pro-
jetos de mineração realizados na Amazônia brasileira em 2016, 17.509 afetaram
total ou parcialmente terras indígenas ou unidades de conservação, em grande
parte devido à obra de dos garimpeiros (garimpeiros). Na verdade, cerca de 70%
dos projetos estão relacionados com a exploração ou intenção de explorar este mi-
neral. A maior parte dos projetos (10.686) está sendo realizada em unidades de
conservação federais, seguidos de 4.181 em terras indígenas e 3.390 em unidades
de conservação estaduais91 . Esses dados, somados às recentes declarações de altas
autoridades do país sobre a liberalização da extração mineral na Amazônia, geram
extrema preocupação a respeito dos impactos ao meio ambiente e da sobrevivên-
cia dos povos indígenas e comunidades tribais.
77. Por sua vez, a Comissão Interamericana recebeu informações sobre casos em que as
decisões judiciais favoráveis às ações do Ministério Público Federal sobre direitos dos
povos indígenas foram paralisadas em sede de “Suspensão da Segurança”92 . Por meio
dessa figura jurídica, os presidentes dos tribunais suspenderam decisões judiciais de
instâncias inferiores, alegando ameaça à ordem social e econômica. Conforme rela-
tado pela sociedade civil, esse mecanismo estaria sendo utilizado de modo discricio-
nário e em detrimento da proteção constitucional concedida ao meio ambiente e às
aldeias. Entre os efeitos causados pelo uso da “Suspensão de Segurança”, pode-se ci-
tar o caso do complexo hidrelétrico do rio Teles Pires, onde foram destruídos espaços
sagrados para as aldeias Munduruku, Kayabi e Apiaka, causando danos irreversíveis
ao patrimônio cultural e espiritual das comunidades indígenas da região93 .
90 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 14.
91 Antecedentes proporcionados por Indian Law Resource Center. Situación de los derechos humanos de los
pueblos indígenas en Brasil, p. 6 [arquivos da CIDH], 8 de dezembro de 2018.
92 A figura da Suspensão de Segurança surgiu no ordenamento jurídico brasileiro em meio a um regime de
exceção junto à edição da lei do Mandado de Segurança (Lei 191/1936), instrumento de defesa Estado, dos
direitos individuais contra atos manifestamente ilegais do que foi prevista a possibilidade de que a decisão
contrária ao agente público pudesse ser suspensa se considerada lesiva ao interesse público. Justiça Glo-
bal (Brasil), Justiça nos Trilhos (Brasil), Sociedade Paraense de Direitos Humanos – SDDH (Brasil), Terra
de Direitos (Brasil), Instituto Socioambiental – ISA (Brasil), Asociación Interamericana para la Defensa Del
Ambiente – AIDA (regional) y International Rivers (internacional), “Situação do direito ao acesso à justiça e
a suspensão de decisões judiciais (ação de suspensão de segurança) no Brasil”, p.5. Março de 2014.
93 GT Infraestrutura, Nota pública sobre a violação de direitos indígenas na construção de hidrelétricas no
Rio Teles Pires. Força Nacional, atuando como segurança privada, reprime povos indígenas em hidrelétri-
ca na Amazônia [no arquivo da CIDH] 22 de março de 2018.
94 Imazon, A boletim do desmatamento da Amazonia legal, 28 de fevereiro de 2019.
a terra indígena de Arara, situada na área de influência direta de Belo Monte, foi in-
vadida por madeireiros. Por sua vez, dezenas de grileiros invadiram a Terra Indígena
Uru-yo-wau-wau95 , assim como há notícia que os povos indígenas foram ameaçados
por invasores armados. Esses exemplos dão conta de inúmeras denúncias referentes
a conflitos entre povos indígenas, madeireiros e agricultores que se multiplicaram
no último ano, revelando uma tendência de violência e obstrução dos direitos dos po-
vos indígenas96 . Sobre isso, o Estado informou que desde julho de 2019 a SNPIR vem
acompanhando a articulação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Polícia Fe-
deral para garantir que os direitos desses povos indígenas sejam preservados97.
79. Por sua vez, o Estado informou sobre a mediação de conflito judicial nos Municípios
de Rodelas e Paulo Afonso, na Bahia, no marco da desapropriação das terras para a
destinação à comunidade indígena Tuxá, que havia sido removida para a construção
da Usina Hidrelétrica de Itaparica. De igual maneira, o Estado brasileiro brindou in-
formação sobre uma visita de instituições do Estado ao território indígena Canabra-
va-Guajajara, no município de Barra da Corda, no Maranhão, para entender a situa-
ção de conflito lá existente, assim como gerar estratégias de minimização deste 98 .
80. A Comissão nota que um dos principais problemas associados às questões de defesa ter-
ritorial e ambiental são intimidações, ameaças e ataques contra defensores, líderes e co-
munidades indígenas que defendem seu território.99 Durante sua visita, a CIDH se reuniu
com uma delegação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a qual infor-
mou sobre tentativas sucessivas de criminalizar suas lideranças. A CIDH também alerta
que, no primeiro semestre de 2019, houve vários ataques contra comunidades indígenas
em várias regiões do Brasil, como Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul; Tunimba na
Bahia; Pankararu em Pernambuco e o assassinato do líder Wajãpi no Amapá100.
95 Associação Interamericanapara a Defensa doAmbiente; International Rivers; Conectas; Fórum Teles Pi-
res; Operação Amazônia Nativa, “Solicitação de audiência sobre sucessivos retrocessos na garantia de di-
reitos humanos dos povos indígenas no Brasil”, p.6 [arquivo da CIDH] 06 de março de 2019.
96 Amazônia real, “Asurini capturam cinco garimpeiros na terra indígena, mas PF de Altamira libera acusa-
dos’’, 21 de março de 2019.
97 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 13.
98 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 14.
99 A CIDH reitera que, nesses casos, os atentados ou perdas de um dos líderes ou defensores têm um impacto
direto no exercício dos outros direitos dos membros do grupo e aumentam o sentimento de desamparo.
Como exemplo, em 2017, a CIDH recebeu informações sobre um ataque ocorrido no “Povoado de Bahias”,
município de Viana (MA), contra membros do povo indígena Gamela, no domingo, 30 de abril de 2017,
algumas dezenas de membros do povo Gamela que ocupavam um território que eles reivindicam como
território ancestral teriam sido atacados por facões por um grupo de camponeses. Nesses ataques, dois
indígenas tiveram as mãos decepadas, um teve as pernas decepadas, cinco foram baleados e treze pes-
soas foram feridos com facão. El país, Conflito por terras no Maranhão termina com denúncia sobre mãos
decepadas, 2 de maio de 2017; The Guardian, Brazilian farmers attack indigenous tribe with machetes in
brutal land dispute, 1 de maio de 2017; Comissão Pastoral da Terra: Povo Gamela sofre ataque premedita-
do de fazendeiros contra suas vidas e lutas, 1 de maio de 2017.
100 El País, “Assassinato de liderança Wajãpi expõe acirramento da violência na floresta sob Bolsonaro”, 29
de julho de 2019.
81. Durante sua visita, a CIDH ainda expressou sua preocupação sobre a situação dos di-
reitos humanos dos povos indígenas em isolamento voluntário ou de contato inicial.
A CIDH reitera a extrema vulnerabilidade a que esses povos amazônicos estão expos-
tos, resultado da presença de pessoas e atividades externas relacionadas à indústria
extrativa que alteram seu sistema de vida, visão de mundo e representação sociocul-
tural, além de aumentar o risco de propagação de doenças comuns em pessoas sem
imunidade101 . Nesse sentido, recebeu-se informação que demonstra, por exemplo, a
situação urgente de saúde que afeta as comunidades indígenas Yanomami que vivem
no sul da Venezuela e no norte do Brasil, resultado de surtos descontrolados de sa-
rampo. A falta de prestação de serviços médicos culturalmente adequados a esses
casos coloca em risco não apenas a vida de cada pessoa, mas também a sobrevivên-
cia física e cultural de suas comunidades102 .
82. Apesar dos desafios apresentados, a Comissão reconhece o esforço de diversas ins-
tituições do Estado comprometidas com a preservação, proteção e garantia dos di-
reitos das populações indígenas no Brasil. Como exemplo, a CIDH registra a recente
resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece um protocolo pa-
ra a atuação de juízes em processos penais nos quais estejam envolvidas pessoas
indígenas. A resolução prevê, por exemplo, a oferta de intérprete a requisição de
perícia antropológica para a instrução do processo, bem como a consulta à comu-
nidade de origem da pessoa indígena, acerca de mecanismos próprios para a sua
responsabilização103 .
83. De igual maneira, a CIDH reconhece a relevância da FUNAI como principal institui-
ção federal de promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas, destacadamente
do direito à autodeterminação e do direito à terra assegurados na Constituição Fe-
deral. Juntamente com a FUNAI, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI),
criado pelo Decreto nº 8.593 de 17 de dezembro de 2015104 , assume papel central na
gestão democrática da política indigenista no país.
101 CIDH, Comunicado de imprensa No. 144/17, CIDH y ACNUDH expresan preocupación sobre denuncias de
masacre en contra de indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial en la Amazonía brasileña, 21,
de setembro de 2017.
102 A CIDH, por meio de seu sistema de petições e casos, emitiu relatórios de admissibilidade em casos como
o dos membros da comunidade indígena de Ananas e outros contra o Brasil. CIDH. Informe de Admisibili-
dad No. 80/06, Petición 62/02 – Miembros de la comunidad indígena de Ananas y otros (Brasil), 21 de outu-
bro de 2006. Da mesma forma, a CIDH concedeu inúmeras medidas cautelares em favor de vários povos
indígenas da Amazônia no Brasil, por exemplo, no caso dos povos Wapichana, Patamona, Ingaricó, Taure-
pang e Macuxi, bem como das comunidades indígenas da bacia do rio Xingu., Pará. CIDH. Brasil (2004). 6
de dezembro de 2004, parágrafo 13; CIDH. MC 382/10 Comunidades Indígenas de la Cuenca del Río Xingu,
Pará, Brasil, 1 de abril de 2011.
103 Conselho Nacional de Justiça, Resolução Nº. 287, 25 de junho de 2019.
104 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto n.º 8.593, de 17 de de-
zembro de 2015
84. A Comissão recorda ao Estado sobre a importância de assegurar, aos povos indíge-
nas, o direito à memória e à verdade. A CIDH observa que a ditadura civil-militar no
Brasil (1964-1985) foi propulsora do paradigma assimilacionista e de tutela em nome
de um alegado “interesse nacional” (ocupação de terras, construção de estradas, etc.),
que causou diversas violações de direitos às populações indígenas105 . A esse respeito,
a Comissão recebeu com beneplácito a informação de que o Ministério Público Fede-
ral (MPF) tem diligenciado, em sedes administrativa e judicial, visando a obtenção de
reparações para diversas etnias; no entanto, tais iniciativas têm sido pouco frutíferas.
A Comissão chama a atenção para a importância de tais reparações não apenas como
reconhecimento das violações no passado, mas também como sinal de compromisso
com a não-repetição. Nesse sentido, destaca-se a situação dos Waimiri Atroari, cujas
terras e vidas foram severamente impactadas pela construção da BR 174, nos anos
1970, e agora se acham ameaçadas pelo projeto do “linhão de Tucuruí”106 .
85. Ademais, a CIDH destaca os apontamentos feitos pela FUNAI durante a visita, no senti-
do de que as comunidades indígenas no Brasil enfrentam problemas concretos, tais co-
mo invasões e degradações territoriais e ambientais, exploração sexual, fornecimento
e uso de drogas, exploração de trabalho, incluindo infantil, e êxodo desordenado.
86. Por fim, a Comissão Interamericana ressalta ao Estado que a discriminação étni-
co-racial sofrida pelos povos indígenas, centrada na assimilação cultural histórica
dessas populações e na invasão dos seus territórios ancestrais, levou a que essas
pessoas estejam expostas a violações diversas, como a violência experimentada nos
territórios por grupos ilegais de extração de recursos naturais, assim como a ausên-
cia de uma política robusta que garanta a essas populações o acesso efetivo e cultu-
ralmente adequado aos seus direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. De
igual maneira, a CIDH sublinha que a deterioração da proteção provida pelo Estado
na proteção dos territórios indígenas eleva o risco de extermínio das populações an-
cestrais, seja pelos confrontos com os invasores, seja pela destruição do meio am-
biente e formas de subsistência, seja pela assimilação cultural e processos de ade-
quação dessas populações às vontades das maiorias.
105 Comissão Nacional da Verdade, Relatório: Volume II, texto 5 - Violações de direitos humanos dos po-
vos indígenas.
106 O Globo, MP quer reparação a indígenas por mortes em conflitos durante ditadura, 01 Abr 2019
lheres e acentuam a situação de risco a que estas estão expostas. Essas sociedades
estão baseadas no machismo, no patriarcalismo, na prevalência de estereótipos
sexistas que geram processos de discriminação estrutural e que acabam por permi-
tir e tolerar a violência em todas as suas dimensões (físicas, psicológicas, sexual, eco-
nômica, etc.).107 Em especial, durante a visita, a CIDH recebeu abundante informação
sobre os níveis agravados de violência contra as mulheres. Dessa forma, destaca que
o mero reconhecimento da violência contra a mulher como problema público, e não
como um dado das relações privadas, levou décadas para ocorrer no país108 .
88. A CIDH recorda o avanço logrado com a adoção da Lei Nº. 11.340/06, de 7 de agos-
to de 2006 (Lei Maria da Penha), entre outras políticas públicas que visam gerar es-
paços seguros para as mulheres vítimas de violência, a exemplo da Casa da Mulher
Brasileira109. Ademais, entre os anos de 2012 e 2013, o Congresso brasileiro instau-
rou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar “a situação
da violência contra a mulher” no país e as “denúncias de omissão por parte do poder
público com relação à aplicação dos instrumentos instituídos em lei para proteger
as mulheres em situação de violência”110 . Os trabalhos da Comissão deram ensejo à
edição da Lei Nº. 13.104, de 9 de março de 2015, que tipificou o crime de “feminicí-
dio”111 . Além disso, segundo informado pelo Estado, em 2018 houve a sanção da lei
Nº. 13.772/2018, que tipifica no código penal o crime de registro não autorizado de
intimidade sexual, assim como em 2019, a sanção da Lei Nº. 13.871/2019, que obriga
o agressor a ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS) os custos com as vítimas de
violência doméstica112 .
89. Por sua vez, a CIDH foi informada pelo Estado de diversos outros esforços com o ob-
jetivo de erradicar a violência e discriminação contra as mulheres. Observa-se de
maneira positiva a implementação de Delegacias de Defesa da Mulher, especializadas
no atendimento de vítimas de violência física, moral e sexual. No entanto, deve-se
ressaltar que a implementação de tal instituição não é equânime e que o estado de
São Paulo reúne 1/3 de todas as 133 unidades de todo o país. A CIDH também foi
informada sobre a fase final de implementação do Protocolo Único de Atendimento e
107 CIDH, Violencia y discriminación contra mujeres, niñas y adolescentes: Buenas prácticas y desafíos en Améri-
ca Latina y en el Caribe, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 233, 14 novembro 2019. Parágrafo 94.
108 Apenas em 1962 as mulheres adquiriram plena capacidade civil e se tornou inexigível permissão mas-
culina para que pudessem trabalhar. E apenas com o advento da CF/1988 a mulher foi reconhecida como
igual aos homens em direitos e obrigações. Cf. Ana Paula Antunes Martins, O Brasil é um país machista?
Correio Braziliense, 26/04/2014.
109 Senado Federal, Casa da Mulher inaugurou o atendimento integrado, 2015.
110 Senado Federal, Relatorio Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito Sobre a Violencia Contra as
Mulheres, 2013.
111 Tecnicamente o feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio quando cometido “contra a mulher
por razões da condição de sexo feminino (art. 121, VI), assim considerado quando envolve “violência do-
méstica e familiar” ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (art. 121, VI, § 2º I e II).
112 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 21 e 22.
90. Não obstante tais avanços no plano legislativo e de políticas públicas, a Comissão
constata que a violência contra as mulheres segue apresentando índices dramáticos,
com cifras alarmantes de assassinatos de mulheres por razões de gênero no país114 .
Segundo informações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CE-
PAL), 40% do total de assassinatos de mulheres nessa macrorregião ocorrem no
Brasil115 . No mesmo sentido, segundo informações das Secretarias de Segurança,
em 2017 foram registrados 4.539 assassinatos de mulheres, dos quais 1.133 foram
classificados como feminicídios. Isso representou um aumento de 6,1% em relação a
2016, quando foram registradas 4.245 mortes (sendo 929 feminicídios)116 . Em 2019,
apesar da redução no número de homicídios de mulheres, foram registrados 1.314
feminicídios, um aumento de 7,3% em relação ao ano anterior117. Evidencia-se ain-
da, nessas estatísticas, a sobrevitimização de mulheres afrodescendentes. Tais dados
corroboram acerca dos impactos diferenciais da violência e da insegurança sobre
grupos já historicamente sujeitos à discriminação estrutural.
91. Adicionalmente, a Comissão observa, com preocupação que, na maioria dos casos, as
mulheres assassinadas haviam denunciado seus agressores, enfrentado graves epi-
sódios de violência doméstica ou sofrido prévios ataques ou tentativas de assassina-
to. Da mesma forma, identificou-se que, em muitos desses casos, os agressores eram
ou haviam sido cônjuges ou parceiros das vítimas, assim como metade desses homi-
cídios foram cometidos por armas de fogo e que, em sua maioria, ocorrem dentro de
suas próprias casas118 . Nesse sentido, a Comissão vê com extrema preocupação as
113 VER: República Federativa do Brasil, Comissão Interamericana De Direitos Humanos, Visita In Loco, Rela-
tório Com Informações Adicionais, Maio De 2019, Correspondencia con la CIDH, Nota no.141, 17 de maio
de 2019. Archivo CIDH.
114 CIDH, Comunicado de imprensa No. 024/19, CIDH manifiesta su profunda preocupación ante la alarmante
prevalencia de asesinatos de mujeres por razones de género en Brasil, 4 de fevereiro de 2019; Exame, Taxa
de feminicídios no Brasil é a quinta maior do mundo, 7 de agosto de 2018; El Pais, América Latina é a re-
gião mais letal para as mulheres, 27 de novembro de 2018.
115 CEPAL, Al menos 2.795 mujeres fueron víctimas de feminicidio en 23 países de América Latina y el Caribe en
2017, 15 de novembro de 2018; CEPAL. Observatorio de Feminicidios 2016 – 2017, s/f.
116 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Edição 2018 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2018. O
uso de dados da Segurança Pública se justifica, neste caso, pois eles permitem distinguir entre mortes en-
quadradas ou não como feminicídios. Os dados da Saúde, por sua vez, mostram um total de 4.936 mortes
de mulheres, o maior número registrado desde 2007.
117 G1, Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em 2019,
5 de março de 2020
118 Atlas da Violência 2019. Brasília: Ipea e FBSP, pp. 39 e seguintes; Correio Brazilense, Feminicídios e tenta-
tivas de assassinato disparam no Brasil em 2018, 8 de janeiro de 2019. GLOBO, Quase Metade Dos Femini-
cídios São Cometidos Por Armas De Fogo, Revela Estudo, 21 de janeiro de 2019; O TEMPO, Quatro em cada
dez mulheres assassinadas em MG levou tiro, 20 de janeiro de 2019.
93. A Comissão reconhece os esforços envidados pelo Estado para erradicar as mortes
violentas intencionais de mulheres, como as leis e políticas públicas citadas acima. Em
particular, destaca a previsão, na Lei Maria da Penha, de que os homens denunciados
no seu marco percam o direito à posse de arma. Não obstante, a CIDH continua rece-
bendo informações acerca dos obstáculos enfrentados pelas mulheres para acessarem
a justiça e essas medidas de proteção. Entre esses obstáculos estão a tolerância social
que existe ante a violência contra as mulheres, reforçada pela ideia de que as mulheres
seriam “propriedade” dos homens; a persistência de atitudes estereotipadas e discri-
minatórias por parte de agentes do Estado; a lentidão da justiça e dos processos para
a obtenção de medidas protetivas, assim como a falta ou a inexpressiva presença de
entidades especializadas na temática espalhadas pelo território brasileiro124 .
119 El País, Bolsonaro cambia la ley por decreto para facilitar la venta de armas, 16 de janeiro de 2019.
120 El País, Armas matam mulheres, 16 de janeiro de 2018; El País, Mulheres dizem não às armas e sabem o
porquê, 22 de janeiro de 2018.
121 ARTIGO 19, Dados Sobre Feminicídio No Brasil, março de 2018.
122 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Atlas
da Violência 2017. 2017
123 CIDH. Observaciones preliminares de la visita in loco de la CIDH a Brasil. 5-12 de novembro de 2018.
124 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, Março
de 2017; El País, América Latina é a região mais letal para as mulheres, 27 de novembro de 2018; Correio
Braziliense, Feminicídios e tentativas de assassinato disparam no Brasil em 2018, 8 de janeiro de 2019.
94. A Comissão Interamericana recomenda que o Estado não apenas continue imple-
mentando leis e políticas públicas voltadas à erradicação da violência de gênero,
mas que também adote medidas que visem a promover o ideal de igualdade de gê-
nero no país, de modo que a dignidade e a autonomia das mulheres passem a ser
mais amplamente reconhecidas pela população, superando-se as hierarquias so-
ciais explícitas ou implícitas por razão de gênero. Adicionalmente, mas tão impor-
tante quanto, que essas medidas garantam a interseccionalidade entre as políticas
de igualdade de gênero e outras, como as de igualdade racial e promoção e prote-
ção da juventude, a fim de contemplar a situação específica da discriminação racial
estrutural das meninas, jovens e mulheres afrodescendentes.
95. Em relação à violência sexual, segundo as informações obtidas pela CIDH, somente em
2017 foram registrados 60.018 casos de estupro em todo o país, uma média de quase
165 casos por dia. Também se observou uma tendência de crescimento dessa forma de
violência, com os registros de 2017 representando um aumento de 8,4% em relação
ao ano anterior125 . Já em 2018, segundo informação pública, houve um incremento no
número de casos, que alcançou a cifra de 66.041 registros. Desses, a CIDH destaca com
preocupação que 72% foram cometidos contra vítimas menores de 18 anos126 .
96. A Comissão nota com especial preocupação o aumento, nos últimos cinco anos, de ca-
sos de violência sexual grupal ou coletiva. Dados do Ministério da Saúde indicam que
os casos de violência sexual coletiva passaram de 1.570, em 2011, a 3.526, em 2016
e, segundo o registro dos hospitais, o número de vítimas de violência sexual coletiva
duplicou nesse período, tendo ocorrido, em 2016, uma média de dez casos por dia no
país127. A esse respeito, 20,4% dessas violações foram cometidas em São Paulo128 , a
cidade que ocupa o primeiro lugar no mundo entre os grandes centros urbanos que
oferecem maior risco sexual para as mulheres129. De acordo com os dados do Institu-
to de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 80% das vítimas de estupro no estado
tem até 30 anos130 .
125 GLOBO, Casos de estupro aumentam no Brasil: foram 60 mil registros apenas em 2017, 10 de agosto de 2018.
126 G1, País tem recorde nos registros de estupros; casos de injúria racial aumentam 20%, 10 de setembro de
2019.
127 Folha de São Paulo, País registra 10 estupros coletivos por dia; notificações dobram em 5 anos, 20 de
agosto de 2017.
128 El Mundo, Música para violar en grupo en Sao Paulo, 1 de abril de 2018.
129 Thomas Reuters Foundation, The world’s most dangerous megacities for women, 2017.
130 O Globo, Mais de 80% das mulheres vítimas de estupro no Rio têm até 30 anos, 30 de abril de 2019.
vando em conta a variável raça –, a taxa nacional de estupros para mulheres dessa
origem étnico-racial em 2017 foi de 247 para cada 100 mil, enquanto a mesma taxa
para as demais mulheres foi de 175131 .
98. Por sua vez, o Estado indicou que esse crescente número de registros de violência e
outras formas de agressão sexual se explica “em grande parte em função de uma mu-
dança positiva na atitude das vítimas, que agora passaram a reportar as agressões
e violências sofridas,” em um país no qual as informações disponíveis indicam que
apenas 10% das violências são denunciadas. Segundo informações recebidas, o es-
tado de São Paulo tem promovido campanhas de conscientização visando estimular
denúncias relativas a crimes sexuais com o objetivo de identificar os responsáveis,
ao mesmo tempo em que fortalece as estruturas de apoio às vítimas.
99. A Comissão também foi informada sobre a criação da política pública denominada
Programa Bem-Me-Quer, que desde 2001 oferece serviços integrados de segurança,
saúde e assistência social para as mulheres vítimas de violência sexual na capital
do estado de São Paulo. De acordo com números enviados pelo Estado brasileiro,
no ano de 2018 o Programa atendeu 1.322 vítimas de crimes sexuais, das quais
90% foram vítimas de estupros. Igualmente, em outubro de 2018, São Paulo pas-
sou a ser o estado com o maior número de entradas no Banco Nacional de Perfis
Genéticos, com 2.899 perfis. Segundo o informado, isso permitiu a identificação de
64 criminosos em série, incluindo uma pessoa responsável por seis estupros, cuja
autoria era, até então, desconhecida 132 .
101. Por sua vez, a Comissão toma nota da informação do Estado sobre recentes mudan-
ças estabelecidas em legislações que permitem mais proteção e direitos às mulheres.
Nesse sentido, a Comissão saúda o Decreto Legislativo Nº. 172/2017, que estabelece
que as pessoas trabalhadoras domésticas, que em sua maioria é formada por mulhe-
res, possuem os mesmos direitos trabalhistas dos demais trabalhadores. De igual
maneira, observa de maneira positiva a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, em
2018, que garante recursos repassados aos partidos pelo Fundo Eleitoral, estabele-
cendo a aplicação mínima de 30% do total recebido para a candidatura feminina135 .
B. DISCRIMINAÇÃO SOCIOECONÔMICA
102. A situação de conflito de terras no Brasil tem estreita vinculação com a história de
discriminação estrutural econômica, somada aos processos de desigualdade social
que marca a sociedade brasileira. Segundo os arquivos do Estado brasileiro, o pro-
cesso de distribuição de terras, desde o tempo em que o país era uma colônia portu-
guesa até meados de 1945, não sofreu grandes alterações, mantendo a concentração
da propriedade e posse sob alguns poucos indivíduos ou famílias. Apesar da chegada
de imigrantes no período de 1889 a 1930, que tiveram acesso a um maior número de
propriedades, a estrutura se manteve praticamente inalterada136 .
103. Ainda segundo informação oficial, somente em 1964, com as discussões travadas nos
anos anteriores, que se avançou nos processos de democratização da terra por meio
da assinatura de um decreto presidencial que previu a desapropriação de terras pú-
blicas destinadas à reforma agrária no país. Apesar desse primeiro grande impulso
e da elaboração do Estatuto da Terra (1964), nos anos dos governos militares (1964
a 1984), o plano de reforma agrária foi eclipsado pela modernização do latifúndio,
estratégia que fez com que se incorporassem as propriedades menores para a cons-
trução de grandes espaços de cultivo, como o de soja, para a exportação137. Somente
a partir da redemocratização é que se iniciou um processo de redistribuição de ter-
ras para fins de reforma agrária com fundamento na função social da propriedade,
estabelecida no art. 186 da Constituição Brasileira de 1988138 . Sobre isso, a Comissão
135 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 23.
136 INCRA, Reforma Agrária Compromisso de todos, 1997.
137 INCRA, Reforma Agrária Compromisso de todos, 1997.
138 Ministério Público Federal, A Reforma Agrária e o Sistema de Justiça, 2019.
destaca que, apesar dos grandes esforços realizados pelo Estado na democratização
da terra e na diminuição das desigualdades realizados até o ano de 2019, os proces-
sos de distribuição das terras foi suspenso por um memorando emitido dia 3 de ja-
neiro de 2019, que terá impacto direto em 250 processos em curso no momento139.
105. A esse respeito, a Comissão Interamericana tomou conhecimento de que, em 2019, fo-
ram registrados cerca de 1.254 conflitos pela terra no país. Esses envolveram 578.968
pessoas e resultaram em 28 mortes por conta de 53.313.244 hectares143 . Esse número
representou um aumento de 47% em um intervalo de 9 anos. Além disso, segundo a
sociedade civil, a cifra foi registrada ao mesmo tempo em que houve uma mudança na
estratégia de exigir reforma agrária, como pode ser observado pela diferença entre as
238 ocupações relatadas no ano de 2012, para as 43 em 2019. Sobre o tema, a CIDH
ressalta a notícia de que esse fenômeno estaria conectado com a crise dos movimentos
sociais, a despolitização, a interferência de setores religiosos conservadores e o des-
monte de políticas públicas destinadas aos acampamentos, como saúde e educação144 .
106. Durante sua visita, a Comissão observou a situação do acampamento Hugo Chávez,
localizado na Fazenda Santa Tereza, no município de Marabá, sudoeste do Pará. Se-
gundo os testemunhos coletados na ocasião, além da situação precária em que os as
450 famílias ocupantes viviam, incluindo a necessidade de prover educação às crian-
ças por eles mesmos, foi possível observar resquícios da violenta tentativa de deso-
cupação realizada pelas forças de segurança pública e por seguranças particulares
conhecidos como “jagunços”. Segundo o relatado, durante o episódio, foram dispara-
dos tiros e atearam fogo a moradias, comumente conhecidas como “barracos”.
139 Repórter Brasil, Governo Bolsonaro suspende reforma agrária por tempo indeterminado, 08 de janeiro
de 2019.
140 CIDH, Comunicado de Imprensa No. 57/17, CIDH expressa preocupação com o incremento da violência no
campo no Brasil, 2 de maio de 2017.
141 CIDH, Comunicado de Imprensa No. 168/18, CIDH condena os assassinatos de defensores de direitos huma-
nos vinculados ao direito ao meio ambiente, terra e trabalhadores rurais no Brasil, 27 de julho de 2018.
142 CIDH, Comunicado de imprensa Nº. 9/19, CIDH manifesta preocupação com atos de violência contra tra-
balhadores rurais no Brasil, 18 de janeiro de 2019.
143 Comissão Pastoral da Terra (CPT), Relatório Anual: Conflitos no Campo Brasil 2019, 2020.
144 Comissão Pastoral da Terra (CPT), Relatório Anual: Conflitos no Campo Brasil 2019, 2020.
107. A Comissão ainda destaca que esse modus operandi de violência na desocupação não é
um fator isolado, ocorrendo em espaços de conflitos fundiários, com características de
política pública. Como exemplo dessa situação, durante a visita, a Comissão recebeu in-
formação sobre o massacre do Pau D’Arco, no estado do Pará, no ano de 2017, em que 10
trabalhadoras e trabalhadores rurais foram assassinados por forças de segurança pú-
blica e seguranças privados na desocupação da Fazenda Santa Lúcia. Segundo informa-
ção da sociedade civil, esse massacre ficou marcado como o segundo maior massacre
rural em 20 anos. A CIDH destaca o fato de que 17 policiais estiveram envolvidos e que
até hoje não houve avanço significativo no julgamento e condenação dos acusados145 .
108. Merece atenção o fato de que o local do massacre do Pau D’Arco é o mesmo no qual,
em 1996, ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás, que deixou 21 trabalhadores
rurais mortos. Segundo informações sobre ocorrido, relata-se que 1.500 pessoas
sem-terra estavam acampadas na região e protestavam em uma rodovia do estado
quando, com o aval do Secretário de Segurança Pública do estado, as forças de se-
gurança reprimiram a marcha com o uso de violência e executaram manifestantes.
Sobre isso, segundo a informação de público conhecimento, até o presente momento,
nenhum dos envolvidos foi condenado.146
109. Ademais, a Comissão recebeu com preocupação a informação de que o Estado estaria
promovendo a legalização de milícias e, de certa forma, armando-as em territórios
rurais147, além de estar facilitando a aplicação da excludente de ilicitude das forças
militares na atuação voltada à reintegração de posse.148
110. A Comissão Interamericana toma nota da informação brindada pelo Estado brasilei-
ro que dá conta do Programa Nacional de Crédito Fundiário, que, desde 2003, permi-
te que agricultores rurais adquiram sua terra. De igual maneira, destaca-se o Pro-
grama de Fomento às Atividades Rurais, criado pela Lei Nº. 12.512/2011, como uma
estratégia para o enfrentamento à pobreza e ao combate à fome, por meio daquelas
pessoas que estão inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico)149.
145 Frontline Defenders, Brazil: two years since the Pau d’Arco massacre, still no justice, 24 de maio de 2019.
146 Comissão Pastoral da Terra, Eldorado dos Carajás 17/04/1996, 8 de julho de 2020.
147 Comissão Pastoral da Terra, Balanço da Reforma Agrária 2019, 8 de julho de 2020.
148 Agência Brasil, Governo prepara lei de uso de GLO em reintegração de posse no campo, 25 de novembro
de 2019.
149 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 26.
111. De acordo com as normativas interamericanas, “o direito à habitação não deve ser in-
terpretado em um sentido estrito ou restritivo, sendo equiparado, por exemplo, com
o mero abrigo provido por um teto sobre a cabeça dos indivíduos, ou exclusivamente
como uma mercadoria. Diferentemente, isso deveria ser visto mais propriamente co-
mo um direito a viver, onde quer que seja, com segurança, paz e dignidade”150 . Nes-
se sentido, a CIDH destaca que o direito à moradia deve abranger a habitação ade-
quada, o que significa “ter um local onde você possa se isolar, se desejar, com espaço
adequado, segurança adequada, iluminação e ventilação adequadas, infraestrutura
básica adequada e uma situação adequada em relação ao trabalho e serviços bási-
cos, tudo a um custo razoável”151 . Durante a visita in loco ao Brasil, CIDH recebeu in-
formações sobre a histórica ausência de políticas públicas eficazes para a ocupação
da terra urbana e a concreta realização do direito à moradia no país, prevalecendo,
frequentemente, os interesses das empresas imobiliárias sobre os da população que
vive nas ruas em histórica situação de vulnerabilidade.
112. A Comissão destaca que a pesquisa realizada entre os anos de 2007 e 2008 pelo Es-
tado brasileiro identificou uma população estimada de 31.992 pessoas adultas em
situação de rua, das quais 82% eram pessoas registradas como de sexo masculino;
53% tinham entre 22 e 44 anos; e 67% se autodeclararam afrodescendentes. Além
disso, os dados identificaram que 70,9% trabalhavam ou exerciam alguma atividade
remunerada, sendo 1,9% de maneira registrada, e somente 15,7% viviam dos recur-
sos que pediam nas ruas. Ademais, chama a atenção que 24,8% dessas pessoas não
possuíam documentação que as identificassem, o que, na opinião da CIDH, pode ge-
rar um impedimento ou uma restrição dessas pessoas no acesso a direitos e serviços
essenciais. Adicionalmente, a Comissão destaca que, segundo registrado, 88,5% afir-
mou estar recebendo algum auxílio do Estado, entre eles aposentadoria, Bolsa Famí-
lia e Benefício de Prestação Continuada152 .
113. Por sua vez, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publi-
cado em outubro de 2016, estimou que a população em situação de rua no Brasil já
contabilizava 101.854 pessoas153, cifra que se aproximava das 112.000 pessoas em
situação de rua informados à CIDH pelo então Ministério dos Direitos Humanos no
marco da visita. Segundo dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚni-
150 Comité DESC, Observación general 4, El derecho a la vivienda adecuada, U.N. Doc.E/1991/23,parágrafo 7.
151 Comité DESC, Observación general 4, El derecho a la vivienda adecuada, U.N. Doc.E/1991/23, parágrafo 7.
152 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Rua: Aprendendo a Contar: Pesquisa Nacional
sobre a População em Situação de Rua, 2009.
153 IPEA, Estimativa da população em situação de rua no Brasil, outubro de 2016.
co), em 2019, existiam 107.576 famílias em situação de rua no país.154 Nesse sentido,
preocupa extremamente à Comissão não só o alto número de pessoas em situação de
rua no país, mas o aumento registrado de cerca de 300% dos últimos 8 anos. Além
disso, a CIDH aponta que a ausência de dados oficiais precisos sobre esse fenômeno
dificulta enormemente a construção de políticas públicas adequadas para o enfren-
tamento de tal problema.
114. Apenas em São Paulo, estima-se que esse contingente tenha aumentado em um total
de 53% entre 2015 e 2019155 , ao mesmo tempo em que a abordagem de pessoas que
vivem nas ruas por agentes municipais teria quadruplicado entre os anos de 2018 e
fins do ano de 2019.156
115. Por sua vez, o Estado forneceu informações à Comissão sobre seus órgãos e políticas
públicas destinadas à atenção às pessoas em situação de rua. Segundo documento
do Ministério da Cidadania submetido em 2018, a Secretaria Nacional de Assistência
Social (SNAS) seria o órgão responsável, em sentido amplo, pela gestão das políticas
públicas dirigidas à população em situação de rua. Tais políticas públicas estão en-
quadradas no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
116. Nesse cenário, a CIDH destaca o Plano Nacional de População em Situação de Rua, esta-
belecido pelo Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que define a população em
situação de rua como “grupo populacional que tem em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia conven-
cional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espa-
ço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unida-
des de acolhimento, para pernoite temporário ou como moradia provisória”157. Sobre
isso, segundo os dados do Ministério, os serviços de atenção especificamente dirigidos
à população em situação de rua seriam administrados, de forma institucionalizada,
nos chamados “Centros Pop”, cujo principal objetivo é prestar assistência à população
em situação de rua durante o dia. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos
relata que estão sendo feitos esforços para também oferecer serviços à noite.
117. Em todas as reuniões realizadas durante a visita in loco, a CIDH pôde constatar que
as pessoas que vivem na rua ou nas favelas não desfrutam de moradia adequada nem
da segurança, paz e dignidade exigidas para a garantia do direito à habitação, como
154 República Federativa do Brasil, Comissão Interamericana de Direitos Humanos – Visita in loco Relatório
com informações adicionais, maio 2019.
155 Secretaria de Comunicação de São Paulo, Prefeitura de São Paulo divulga Censo da População em Situa-
ção de Rua 2019, 31 de janeiro de 2020.
156 UOL, Abordagens a moradores de rua quadruplicam e somam meio milhão em São Paulo
157 Presidência da República, Decreto nº 7.053, 23 de dezembro de 2009.
é o caso da comunidade de Vila Nova Palestina, em São Paulo. Desde 2013, quando
participantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto ocupou um espaço urbano
de 1 milhão de metros quadrados, a comunidade continua buscando a regularização
desta ocupação.158 Em Coroadinho, no estado do Maranhão, a Comissão visitou um
dos bairros mais pobres do país, onde observou que seus habitantes estão sujeitos à
marginalização social e ao abandono do Estado, sem receber atenção às suas neces-
sidades básicas. Aproveita-se para reconhecer o papel das mulheres que vivem nesta
comunidade, que atuam para impedir o agravamento da situação social.
118. Em São Paulo, a CIDH recebeu denúncias de pessoas em situação de rua, sobre abu-
sos policiais, maus-tratos e, principalmente, a falta de perspectiva de um projeto de
vida digno, com acesso mínimo aos serviços públicos fundamentais. Não há fontes de
água potável nas ruas da cidade e o acesso à água é difícil devido à falta de uma polí-
tica para fornecer água a essa população159. No mesmo sentido, a Comissão também
foi informada de que, quando há remoção de pessoas em situação de rua, não exis-
tem estratégias ou alternativas para garantir o direito à moradia dessa população.
119. Outro aspecto da vulnerabilidade das pessoas em situação de rua está relacionado à
capacidade de manutenção dos núcleos familiares. A CIDH recebeu informação sobre
casos em que a assistência prestada às mulheres com recém-nascidos não leva em
conta seu direito à maternidade e de cuidar de seus filhos. Segundo o relatado, mãe
e filho são comumente separados precocemente em um cenário em que a criança é
enviada para um centro de acolhimento, que pode ter um caráter provisório (quando
há chances de retorno à família biológica), ou em caráter definitivo, em que há uma
perda irreversível do poder familiar e pode resultar em um processo de adoção ou
na permanência da criança no centro até que complete 18 anos160 . De igual maneira,
a Comissão tomou conhecimento de nota técnica do Ministério da Saúde e Desenvol-
vimento Social e Combate à Fome de 2016 que estabelece um fluxo de atendimento
às mulheres nessa situação. Contudo, a falta de divulgação da nota técnica e de orça-
mento fragiliza a sua eficácia161 .
158 Fundação Fiocruz, Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, 10 de junho de 2020.
159 Unisol e Movimento Nacional da População em Situação de Rua, Relatório final do projeto “Mais direitos
para população em situação de rua”, Dezembro 2018.
160 Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, Relatório de pesquisa sobre o exercício da maternidade em situa-
ção de rua no município de São Paulo, 08 de novembro2018.
161 Folha de São Paulo, 24 de junho de 2018; Oscar Vilhena Vieira, Justiça, ainda que tardia, 9 de junho de 2018.
lação em situação de rua. Além disso, a realocação de famílias pobres as obriga a deixar
áreas centrais para morar em bairros mais distantes sem infraestrutura. Nesse sentido,
faz-se necessário que, a despeito das medidas de austeridade fiscal, sejam mantidas e
ampliadas as políticas habitacionais e de atendimento à população em situação de rua.
121. A esse respeito, a Comissão registra que, em 2014, houve uma demanda qualitativa
de moradias (residências carentes de serviços de infraestrutura) de 11,3 milhões de
unidades, e quantitativa (novas residências) de 6,1 milhões de unidades, sendo 5,3
milhões nas áreas urbanas e 750 mil nas áreas rurais. Dessa demanda, 83.9% con-
centra-se nas famílias que recebem até 3 salários-mínimos. Ademais, a Comissão to-
ma nota que o país possui 7,2 milhões de lares vagos, sendo 79% no setor urbano
e 6,4 milhões estariam em condições de receber famílias162 . A falta de acesso a ali-
mentos, água, saneamento e outros serviços públicos essenciais, como eletricidade,
foi observada pela Comissão em relação a vários grupos populacionais no Brasil, in-
cluindo aqueles vivendo em favelas, em áreas periféricas ou em situação de rua.
122. Nesse marco, a CIDH reconhece que o Brasil tem realizado esforços para construir
uma política habitacional ampla e efetiva. Esse é o caso dos Centros POP, que ofe-
recem serviços especializados para as pessoas em situação de rua163, bem como o
programa “Minha Casa Minha Vida”, que tem como objetivo permitir a aquisição de
casas por famílias classificadas como de baixa remuneração. Segundo um estudo do
Senado Federal do Brasil, de 2009 a 2016, 4.542.59 casas foram adquiridas nas con-
dições de tal programa. Nesse programa, 91% das famílias contempladas possuía
renda mensal que as colocava nas categorias 1 e 2 do programa, as de menor ren-
da164 . No entanto, observa-se que, por cortes orçamentários e reconfigurações, essa
política vem sendo afetada. Dados de 2019 indicam que a categorizada “faixa 1”, ou
seja, aquela formada por famílias com renda de até R$ 1.800 (equivalente a cerca de
US$360,00), foi especialmente prejudicada, por conta de atrasos nos repasses de re-
cursos do Estado às construtoras, o que gerou 57% menos entregas de habitações
em comparação ao ano anterior165 . A CIDH ainda toma nota de que para 2020, o orça-
mento estimado para o setor é 50% menor que o de 2019166 .
123. Na análise da Comissão, políticas públicas voltadas ao acesso à habitação são de ex-
trema importância no enfrentamento da pobreza e da pobreza extrema, já que possi-
bilitam oportunidades àquelas pessoas dos setores economicamente mais vulneráveis
162 Senado Federal, Avaliação de Políticas Públicas: Programa Minha Casa Minha Vida, outubro de 2017.
163 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 27.
164 Senado Federal, Avaliação de Políticas Públicas: Programa Minha Casa Minha Vida, outubro de 2017.
165 Folha de São Paulo (com dados oficiais), No 1º ano de Bolsonaro, educação, saúde e social pioram, crimi-
nalidade recua e economia vê equilíbrio
166 Exame, Em 2020, recursos para Minha Casa Minha Vida serão 50% menores.
C. CONSEQUÊNCIAS DA DISCRIMINAÇÃO
SOCIOECONÔMICA: AS VÍTIMAS DE TRABALHO
FORÇADO OU EM CONDIÇÃO ANÁLOGA À
ESCRAVIDÃO E DO TRÁFICO DE PESSOAS
125. Esse processo pode ser observado nos casos emblemáticos em análise pelo Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, alguns dos quais já foram julgados pela Corte
Interamericana e resultaram na condenação do Estado. No caso Garibaldi vs. Brasil, a
sentença de 23 de setembro de 2009 estabelece a responsabilidade do Estado por não
investigar e punir a execução extrajudicial de um trabalhador rural168 . Mais recente-
mente, no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil, em sentença de 20 de
outubro de 2016, a Corte Interamericana condenou o Estado pela ausência de prote-
ção dos trabalhadores contra práticas de trabalho forçado e servidão por dívidas169.
Este último caso reflete como o conflito pela posse da terra soma-se a práticas de
exploração do trabalho rural, algumas das quais assumem características análogas
à escravidão. A Comissão destaca que, ao mesmo tempo em que o Brasil foi o último
país da região a abolir a escravidão, em 1888; o contencioso internacional em Direitos
Humanos no país demonstra a persistência de práticas de raiz escravocrata.
167 CIDH, Pobreza y derechos humanos, OEA/Ser.L/V/II.164, Doc. 147, 7 setembro 2017, recomendação 6.
168 Corte IDH, Caso Garibaldi vs. Brasil, sentença de 23 de setembro de 2009.
169 Corte IDH, Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016.
127. A respeito do tema, a CIDH toma nota de que, segundo informação recebida, no Bra-
sil, existe um ciclo de perpetuação do trabalho em condição análoga à escravidão, o
que faz com que muitas pessoas trabalhadoras sejam resgatadas mais de uma vez. A
situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica em que se encontram as obriga
a deixarem suas cidades de origem em busca de atividades com melhores remunera-
ções. Atraídas por falsas promessas feitas por aliciadores ou pelas más condições de
vida nos locais em que vivem, as pessoas se submetem a condições de trabalho que
lhes retiram a dignidade, a liberdade e, muitas vezes, as expõem a situações de ex-
trema violência física e/ou psicológica. A informação recebida confirma que, nos ca-
sos em que esses trabalhadores conseguem sair da condição análoga à de escravidão,
seja por ação da fiscalização, seja pela fuga dos locais de trabalho, a ausência de polí-
ticas públicas efetivas para mitigar sua vulnerabilidade socioeconômica faz com que
fiquem suscetíveis a aceitar outro trabalho que, novamente, lhes insere no ciclo do
trabalho escravo contemporâneo171 . Segundo informação do Estado brasileiro, nos
últimos 20 anos, cerca de 50 mil trabalhadores foram resgatados dessa situação172 .
128. Sobre isso, a Comissão destaca que, no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde
vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já emitiu sentença sobre a
responsabilidade do Estado na proteção de trabalhadores contra o trabalho forçado,
assim como seu dever de proporcionar às vítimas reparações e medidas de não-re-
petição173 . Na respectiva sentença, a CIDH sublinha que a Corte considerou o Estado
responsável internacionalmente por violar o art. 6.1 da Convenção Americana, assim
170 Corte IDH, Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, sentença de 20 de outubro de 2016.
Par. 269.
171 Escravo Nem Pensar, O ciclo do trabalho escravo contemporâneo, 24 março 2014.
172 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 28.
173 Corte IDH, Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, Sentença de 20 de outubro de 2016.
174 Corte IDH, Caso Trabajadores de la Hacienda Brasil Verde vs Brasil, Sentença de 20 de outubro de 2016. Par.
315 a 321.
175 Organização Internacional do Trabalho, Combatendo o trabalho escravo contemporâneo: o exemplo do
Brasil/ International Labour Office; ILO Office in Brazil. - Brasília: ILO, v. 1, 2010.
176 Repórter Brasil, Trabalho escravo contemporâneo: 20 anos de combate (1995 – 2015),24 de janeiro de 2015.
177 MPT, OIT, Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil.
178 MPT, OIT, Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil.
179 MPT, OIT, Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil.
180 Sakamoto, L. “Trabalhar por comida: indígenas são resgatados da escravidão em MS e SP”. Uol Notícias, 15
de setembro de 2019.
131. De igual maneira, destaca-se o cadastro de empresas e pessoas autuadas por ex-
ploração de trabalho escravo, mais conhecido como “Lista Suja”182 . Trata-se de um
mecanismo que divulga para a sociedade os empregadores que adotam essa práti-
ca, além de permitir o monitoramento das cadeias produtivas por parte de empresas
preocupadas com a efetividade do cumprimento da legislação trabalhista por seus
fornecedores. Contudo, causa preocupação à CIDH que, nos anos de 2015 e 2016, essa
lista não tenha sido publicada. Em 2017 e em 2018, o Poder Executivo também pu-
blicou sua lista com atraso, fazendo-o somente mediante ordem judicial requerida
pelo Ministério Público do Trabalho183 . Em 2019, a lista publicada continha 187 em-
pregadores, responsáveis pelo aliciamento de 2.375 trabalhadores, em sua maioria
relacionados a fazendas, obras de construção civil, oficinas de costura, garimpos e
mineração184 . Ainda causa espanto à Comissão que, na oportunidade de acessar a lis-
ta de 2019 em sua página oficial, a versão atualizada não possa ser encontrada185 .
132. A expropriação de imóveis urbanos e rurais nos quais houver o flagrante da explora-
ção de trabalho em condição análoga à escravidão constitui uma medida importante
no combate a essa prática. Nesse sentido, a CIDH destaca a reforma do art. 243 da
Constituição Federal, que ocorreu por meio da Emenda Constitucional nº 81/2014, e
que representou um avanço em relação ao combate ao trabalho em condição análoga
à escravidão, constituindo um grande elemento para dissuadir empresas de contra-
tar trabalhadores em condições que lhes retirem sua dignidade ou liberdade, bem
como para sancionar e punir adequadamente quem o faz.
134. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 2017 e 2018, 25 denún-
cias de ocorrência de trabalho em condições análogas à de escravidão no âmbito ur-
bano foram recebidas, as quais envolveram 382 trabalhadores, dos quais 209 foram
181 CONJUR, Em aplicação rara de artigo, juiz condena dois a prisão por trabalho escravo, 22 de janeiro de 2020.
182 Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Cadastro de Empregadores - “Lista Suja”.
183 Ministério Público do Trabalho, MPT pede a publicação atualizada da lista suja do trabalho escravo, 25 de
outubro de 2017.
184 Agência Brasil, Atualização da Lista Suja do Trabalho Escravo tem 187 empregadores, 3 de março de 2019.
185 Ministério do Trabalho, Cadastro de Empregadores, 10 de junho de 2020.
135. Além disso, no marco da visita, a Comissão foi informada de que 613 trabalhadores fo-
ram resgatados mais de uma vez de contextos de exploração188, o que demonstra que as
atuais políticas públicas no país não evitam completamente a prática de exploração do
trabalho em condições análogas a de escravidão, assim como não impede a sua repeti-
ção. Além disso, há empregadores que são flagrados reiteradas vezes explorando mão
de obra escrava. O caso da Fazenda Santa Vicunha, localizada no estado de Mato Grosso,
ilustra o problema: uma mesma família foi flagrada explorando trabalho em condições
análogas a de escravidão em 3 propriedades distintas e em 5 ocasiões diferentes. O to-
tal de trabalhadores que foram resgatados nesses 5 resgates distintos foi de 324189.
136. A CIDH recebe com beneplácito a informação sobre iniciativas locais e regionais em de-
senvolvimento, como o Ação Integrada, que tem o objetivo de promover a inclusão so-
cioeconômica de trabalhadores resgatados, assim como de famílias e comunidades vul-
neráveis a essa situação190. E ademais observa que o desconhecimento de direitos por
parte dos trabalhadores é outro desafio a ser superado pelo Estado brasileiro. Nesse
sentido, durante a visita, a Comissão recebeu informação a respeito da situação atual
da política pública de repressão ao trabalho em condição análoga à escravidão no Brasil.
Sobre isso toma nota que a Portaria nº. 1.129/2017191 restringiu o conceito de trabalho
em condição análoga à escravidão, representando um retrocesso na defesa dos direitos
do trabalhador no campo. Por sua vez, a CIDH saúda a decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral em suspender liminarmente a Portaria 1.129/2017 em 23 de outubro de 2017192 .
186 Comissão Pastoral da Terra, Trabalho Escravo 2017 – 2018, 10 de junho de 2020.
187 Repórter Brasil, Trabalho Escravo Urbano, 10 de junho de 2020.
188 OIT, Em 15 anos, 613 trabalhadores foram resgatados pelo menos duas vezes da escravidão, 2 de feverei-
ro de 2018.
189 G1, Justiça condena dono de fazenda a pagar R$ 6 milhões por manter dezenas de trabalhadores em situa-
ção de escravidão em MT, 05 Out 2018.
190 INAI, Instituto Ação Integrada.
191 Secretaria-Geral da Presidência da República, Portaria Nº 1.129, de 13 de outubro de 2017.
192 Supremo Tribunal Federal. Ministra Rosa weber suspende efeitos da portaria ministerial sobre trabalho
escravo, 24 de outubro de 2017.
193 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 29.
138. Contudo, foi observado que que o orçamento direcionado para a erradicação do tra-
balho em condição análoga à escravidão diminuiu pela metade entre 2014 e 2017195 .
Além disso, o número de auditores-fiscais do trabalho, agentes públicos com pode-
res para resgatar trabalhadores em condições análogas a de escravidão, está aquém
do quantitativo necessário, tendo em vista que um terço do quadro desses servido-
res está vago atualmente196 . A Comissão também pôde verificar que houve uma re-
dução aproximada de 50% do orçamento do Ministério Público do Trabalho no ano
de 2019197, fato que pode criar obstáculos para que membros da instituição partici-
pem das fiscalizações promovidas pelo Grupo Móvel. Sobre isso, tendo em vista que
o Brasil assumiu o compromisso de fortalecer o Ministério Público do Trabalho e o
Grupo Móvel do Ministério do Trabalho no Acordo de Solução Amistosa realizada no
âmbito do Caso nº 11.289 (José Pereira), a CIDH destaca que a manutenção desse ce-
nário poderia representar o descumprimento desse acordo.
194 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 29.
195 Aos fatos, Dinheiro gasto no combate ao trabalho escravo cai à metade em três anos, 23 de outubro de 2017.
196 Senado Federal, A inspeção do trabalho no Brasil enfrenta falta de auditores fiscais e de recursos finan-
ceiros, 3 abril de 2018.
197 O Globo, Conselho do MP dá cinco dias para Dodge refazer proposta orçamentária do MPU, 29 agosto 2018.
198 Nações Unidas, Brasil pode deixar de ser referência mundial no combate ao trabalho escravo, alerta OIT,
09 fevereiro 2017.
199 International Labor Organization, Observation (CEACR) – Forced labour convention, 1930 (No. 29) – Bra-
zil, June 2016.
140. Em 2019, a Comissão foi informada sobre a edição da Medida Provisória nº 870/19,
convertida na Lei Nº. 13.844/2019200, que extinguiu o Ministério do Trabalho e
transferiu as suas competências para outros órgãos governamentais não especializa-
dos, como o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o Ministério da Cidadania
e o Ministério da Economia, o que poderia causar prejuízos à articulação e coordena-
ção de políticas públicas trabalhistas. Com o novo desenho institucional, a repressão
ao trabalho em condição análoga à escravidão e o desenvolvimento de políticas para
reduzir a vulnerabilidade social dos trabalhadores com maior potencial de serem ví-
timas desse tipo de exploração ficam sob a responsabilidade de órgãos distintos, o
que poderia enfraquecer a construção de soluções e a elaboração de políticas para a
erradicação do trabalho em condição análoga à escravidão no país.
141. No mesmo sentido, observa-se com preocupação a absorção por parte do Ministério
da Economia de competências relacionadas à fiscalização e à regulação do trabalho.
A CIDH adverte que um potencial conflito de interesses entre a estrutura ministerial
e os objetivos principais da atividade fiscalizatória das atividades trabalhistas pode-
riam fragilizar os mecanismos de proteção social dos trabalhadores.
142. Além disso, com base nas informações prestadas pelo Ministério Público do Traba-
lho, a Comissão observa que alguns pontos da Reforma Trabalhista brasileira, apro-
vada em julho de 2017, poderiam favorecer situações de precarização das relações
de trabalho, o que, em situações extremas, poderia levar ao aumento de práticas ex-
ploratórias em condições análogas às de escravidão, bem como gerar impedimentos
para que os trabalhadores busquem reparação perante o Poder Judiciário, a exemplo
das restrições no acesso à Justiça e a limitação da indenização por danos morais, fi-
xada de acordo com o salário do trabalhador.
200 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei Nº 13.844, de 18 de junho
de 2019.
144. A Comissão recorda que os vínculos entre trabalho forçado e tráfico de pessoas fica-
ram evidentes no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil. As dinâmicas
presentes naquele caso, embora relativas ao trabalho no campo, repetem-se também
nos espaços urbanos e afetam, destacadamente, às pessoas migrantes. Nesse sentido,
as vulnerabilidades adicionais a que estão sujeitas as famílias migrantes as expõe a
vulnerabilidades que geram grande potencial para que sejam aliciadas por redes de
tráfico de pessoas e de trabalho forçado.
145. Nesse sentido, além dos inúmeros casos de trabalho forçado identificados em áreas
rurais, a CIDH pôde observar a ocorrência de trabalho forçado em zonas urbanas, em
muitos casos conectados com o tráfico de pessoas202 . Embora o combate a este fenô-
meno demande cooperação internacional, constitui atribuição do Estado garantir as
medidas necessárias para a libertação dos trabalhadores rurais e urbanos em situa-
ção análoga à de escravidão. Sobre isso, obtiveram-se notícias de casos recorrentes
de trabalho forçado no âmbito urbano, especialmente em grandes capitais como São
Paulo, onde migrantes vítimas de tráfico de pessoas foram resgatados em oficinas
de costura subcontratadas por grandes grupos empresariais, sendo alguns transna-
cionais. Parte desses migrantes eram oriundos de países da América do Sul, como
Bolívia e Paraguai203 . Em São Paulo, 60% dos trabalhadores resgatados atuavam em
confecções e mais de 30% eram mulheres204 .
146. Contudo, a Comissão toma nota de que o tráfico de pessoas também ocorre de forma
internacional, não só para os cidadãos brasileiros que buscam oportunidades no ex-
terior, como cidadãos de outros países que procuram no Brasil melhores condições
de vida. Nesse sentido, a CIDH foi informada sobre o caso de um adolescente chinês
de 17 anos, vítima de uma rede internacional de tráfico de pessoas. O adolescente
foi resgatado de trabalho em condições análogas às de escravo no estado do Rio de
Janeiro e, segundo informação pública, ele havia chegado ao país no ano de 2012 com
a passagem paga pela própria mãe205 .
201 United Nations Office on Drugs and Crimes, Protocol to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons,
Especially Women and Children, supplementing the United Nations Convention against Transnational Organi-
zed Crime, December, 25th, 2003.
202 Repórter Brasil, Trabalho Escravo Urbano, 10 de junho de 2020.
203 Repórter Brasil, Trabalho escravo nas oficinas de costuras, 2016.
204 MPT, OIT, Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil, 10 de junho de 2020.
205 Repórter Brasil, Adolescente chinês é resgatado da escravidão com ajuda de tradutor online, 23 de outu-
bro de 2014.
147. Por outro lado, a CIDH tomou conhecimento da aprovação da Lei Nº. 13.334/2016,
que trata da prevenção e punição ao tráfico interno e internacional de pessoas, bem
como de medidas de proteção às vítimas. Segundo informações apresentadas pelo
Ministério da Justiça e Segurança Pública, a nova legislação busca harmonizar o or-
denamento jurídico brasileiro com o Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas (Protocolo de Palermo). O Ministério ainda relatou a
promulgação do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criado
em 2018, que terá duração de 4 anos. 206
148. A CIDH igualmente saúda o governo brasileiro pela aprovação da Lei da Migração207,
sancionada em 2017 e que traz avanços em relação à anterior legislação sobre pes-
soas imigrantes de 1980. A Comissão observa de que a nova lei consolida as garan-
tias e proteções necessárias para que as pessoas imigrantes e suas famílias não este-
jam vulneráveis ao tráfico de pessoas e ao trabalho forçado, estando de acordo com
o estabelecido na Constituição Federal de 1988. Esse é o exemplo do seu art. 3º e 4º,
que prevê a autorização de residência para aquelas pessoas que hajam sido vítimas
do tráfico de pessoas208 .
149. Sobre isso, apesar da Comissão reconhecer os grandes desafios conectados com a re-
solução desses crimes, faz um alerta ao Estado de que a solução a longo prazo deve
que estar alicerçada em um processo de cooperação entre os entes federativos inter-
nos, assim como internacionais de maneira a diminuir as desigualdades estruturais
a que as pessoas estão submetidas nos locais onde vivem. Dessa maneira, é possível
construir um processo sustentável de solução do problema, indo além das soluções
individuais, caso a caso.
3 OUTROS GRUPOS EM
SITUAÇÃO ESPECIAL
DE RISCO
150. Nos últimos 20 anos, a Comissão vem dedicando especial atenção às condições de-
ploráveis de detenção que caracterizam as instituições de privação de liberdade no
Brasil, que, além dos sérios riscos à vida e à integridade das pessoas privadas de
liberdade, constituem per se situações de tratamento cruel, desumano e degradan-
te209. Essas condições envolvem níveis alarmantes de superlotação, em sua maioria
de pessoas afrodescendentes, infraestrutura precária, falta de separação entre pes-
soas sub judice e condenadas e notável insuficiência de agentes penitenciários. Além
disso, prevalecem cuidados médicos negligentes, alimentação inadequada devido à
sua escassez e baixo valor nutricional, falta de higiene, acesso inadequado à água,
falta de itens essenciais, falta de programas eficazes de reintegração social e falta de
tratamento diferenciado em relação aos diferentes tipos de população210 . Da mesma
forma, nos centros de privação de liberdade, existem situações que ameaçam a inte-
gridade pessoal dos visitantes das pessoas detidas, principalmente através da reali-
zação das chamadas inspeções vexatórias.
151. Nos últimos anos, efetivamente, as violações de direitos humanos ocorridas nos sis-
temas de privação de liberdade no Brasil têm sido objeto de um crescente número
de casos submetidos à consideração da Comissão Interamericana de Direitos Huma-
nos, chegando a 9.009 beneficiários nos últimos 5 anos, entre adultos e adolescentes.
Em alguns deles, a Comissão outorgou medidas cautelares por entender que as con-
dições de privação de liberdade feriam o princípio da dignidade humana e, portanto,
demandavam medidas urgentes a fim de que não houvesse perdas irreparáveis211 .
209 CIDH, Observaciones Preliminares de la Visita in loco de la CIDH a Brasil, 12 de novembro de 2018. Ver tam-
bém: Informe del Relator Especial sobre la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes,
Informe sobre misión a Brasil del 3 al 14 de agosto de 2015, A/HRC/57/Add.4, 29 de janeiro de 2016, pará-
grafo 113.
210 Senado Federal, Em Discussão! Os principais debates do Senado Federal, 2016.
211 MC 114-10– Personas privadas de libertad en el Departamento de la Policía Judicial (DPJ) de Vila Velha,
Brasil; MC 199/11 – Personas privadas de libertad en la Prisión Profesor Aníbal Bruno, Brasil; MC 367/13
- Pessoas privadas de liberdade no Complexo Penitenciário de Pedrinhas; MC 60/15 – Adolescentes pri-
vados de liberdade em unidades de atendimento socioeducativo de internação masculina do estado do
Ceará, Brasil; MC 302/15 – Adolescentes privados de liberdade no Centro de Atendimento Socioeducativo
do Adolescente (CASA), Brasil.
153. A CIDH reconhece que o Sistema Socioeducativo encontra suas bases no Estatuto da
Criança e do Adolescente, o qual, por sua vez, observa a Convenção sobre os Direi-
tos da Criança. Portanto, tem-se presente que o Sistema Socioeducativo e o Sistema
Prisional são distintos e que, para crianças e adolescentes, requerem-se medidas de
proteção especiais e particulares à sua idade e estágio de desenvolvimento. Todavia,
para fins deste relatório e em função do quadro de violações observadas quando da
visita ao país, alguns paralelos serão traçados entre os dois sistemas.
154. O Brasil é o país com a terceira maior população carcerária do mundo, registrando
um total de 755.274 pessoas privadas de liberdade em 2019 e uma taxa de superlota-
ção de 170,74%. Ao mesmo tempo, a taxa de presos provisórios, que chega a 229.823,
ou seja 30,43% do total da população carcerária. Do total dessa população privada
de liberdade baixo esse regime, 94,16% são homens e 5,83% são mulheres. A CIDH
destaca o fato de que entre 2000 e 2019, a população carcerária aumentou 224.5%214 .
156. A respeito, o Relator Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre tortu-
ra e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos e degradantes estabeleceu
que o alto grau de racismo institucional verificado no Brasil ocasiona que os afro-
descendentes corram um risco significativamente maior de prisão em massa, abu-
so policial, tortura, maus-tratos e discriminação nas prisões216 . Da mesma forma, de
acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a essas pessoas são
proferidas sentenças mais altas pelos mesmos crimes cometidos pelo restante da
população217. Nesse sentido, quando uma pessoa afrodescendente é acusada, ela tem
maior probabilidade de ser encarcerada ou mantida na prisão sem a possibilidade de
aplicar medidas alternativas a ela 218 .
157. Da mesma forma, a CIDH destaca que, embora a população carcerária brasileira seja
composta principalmente por homens negros e jovens, o grupo que mais cresce é o
das mulheres, também jovens e negras. De igual maneira, no período de 2006 a 2019,
a população carcerária de mulheres cresceu quase 116,27%219. A respeito, segundo
informado pelo Estado, apesar de somente 4,91% do sistema prisional ser composto
por mulheres, ao se comparar o ano de 2000 com o de 2017, a taxa de aprisionamen-
to feminino cresceu 675%220
215 Ministério da Justiça e Segurança Pública, Infopen Relatórios Analíticos, dezembro 2020.
216 Relator Especial sobre la tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, Informe sobre
Misión al Brasil del 3 al 14 de agosto de 2015, A/HRC/57/Add.4, 29 de janeiro de 2016, par. 29.
217 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A aplicação de penas e medidas alternativas: relatório de pes-
quisa. 2015.
218 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A aplicação de penas e medidas alternativas: relatório de pes-
quisa. 2015.
219 Ministério da Justiça e Segurança Pública, Infopen, 9 de março de 2020.
220 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 35.
221 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 35.
159. A CIDH reconhece os vários esforços do Estado brasileiro nessa área, principalmen-
te os que visam reduzir a prisão preventiva, como aumentar a eficácia do controle
judicial das detenções por meio de audiências de custódia e promover a aplicação de
medidas alternativas222 . Em particular, a CIDH destaca a incorporação do enfoque
de gênero na aplicação da prisão domiciliar, com a decisão de fevereiro de 2018 do
Supremo Tribunal Federal que concede essa medida a mulheres e adolescentes em
prisão preventiva que estejam grávidas, com filhos e filhas de até 12 anos ou encar-
regadas de pessoas com deficiência 223 . Além disso, durante a sua visita, a Comissão
foi informada sobre vários programas focados na reintegração social224 .
160. A CIDH observa que o aumento da população carcerária e os altos níveis de superlota-
ção decorrem principalmente de uma política criminal que tenta solucionar problemas
de segurança privilegiando o encarceramento. A CIDH reitera que não há evidências
empíricas que demonstram que políticas baseadas em maiores restrições ao direito à
liberdade pessoal tenham um impacto real na redução do crime e na violência ou que
resolvam, num sentido mais amplo, os problemas da insegurança cidadã225 .
161. Uma amostra disso se reflete nas políticas de drogas iniciadas desde os anos 90 e
que tem como objetivo principal criminalizar o consumo e o tráfico dessas subs-
tâncias. Apesar de o Estado ter realizado várias ações para contemplar tratamen-
tos diferenciados aos crimes relacionados às drogas (uso e tráfico), verifica-se no-
tável aumento no número de pessoas privadas de liberdade por delitos de drogas
no Brasil. Segundo dados oficiais disponíveis, entre 2006 e 2016, esse contingente
aumentou 272% 226 .
222 Essa promoção foi realizada, por exemplo, através da criação da Política Nacional de Alternativas Penais
e da emissão do ato administrativo nº 42 [portaria] do Ministério da Justiça do Brasil sobre o gerencia-
mento da vigilância eletrônica. Esses esforços foram destacados pela CIDH anteriormente. CIDH, Informe
sobre medidas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/Ser.L/V/II.163. Doc.
105, 3 de julho de 2017, parágrafos. 112 e 126.
223 CIDH, Comunicado de imprensa 049/18, CIDH saluda decisión a favor de mujeres encarceladas en Brasil.
Washington, D.C., 14 de março de 2018.
224 Entre essas ações se destacam os programas educacionais, de leitura e artesanais. Da mesma forma, a
CIDH também teve conhecimento de iniciativas destinadas a envolver outros setores da população nesse
sentido, como as organizações da sociedade civil. Informações fornecidas à CIDH pelas autoridades peni-
tenciárias do Maranhão e durante a visita ao Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em 6 e 8 de novembro
de 2018. Da mesma forma, o Estado de São Paulo informou que o processo de reintegração social é uma
das condições fundamentais para a luta contra a reincidência e o encarceramento em massa. República
Federal do Brasil, Relatório com informações adicionais sobre a visita in loco, maio de 2019, p. 53. Relató-
rio enviado à CIDH por meio da nota 141 da Missão Permanente do Brasil junto à OEA, 17 de maio de 2019.
225 CIDH, Informe sobre medidas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/
Ser.L/V/II.163. Doc. 105, 3 de julho de 2017, parágrafo 86, e CIDH, Informe sobre el uso de la prisión preven-
tiva en las Américas, OEA/Ser.L/V/II., Doc. 46/13, 30 dezembro 2013, parágrafo. 100.
226 Nesse sentido, em 2006, o Departamento Penitenciário Nacional informou que um total de 47.472 pes-
soas foram presas por crimes relacionados às drogas. Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário
Nacional, Sistema integrado de informaciones penitenciárias - InfoPen, dezembro de 2006. Em 2016, es-
se número aumentou para 176.808 pessoas. Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional,
Sistema integrado de informaciones penitenciárias- InfoPen, junho de 2016.
162. A CIDH destaca o impacto dessa política sobre as comunidades pobres e periféricas,
bem como na exacerbação de disparidades raciais nas prisões e na super-representa-
ção de afrodescendentes no sistema de justiça criminal.
163. A CIDH também enfatiza que essas políticas afetaram desproporcionalmente as mu-
lheres, o que mostra claramente que o crime de tráfico ou uso de drogas constitui a
principal causa do seu encarceramento. Assim, 62% das mulheres são privadas de li-
berdade por esse tipo de delito227, em contraste com apenas 26% no caso dos homens.
Entre 2003 e 2016, a população carcerária de mulheres triplicou de 9.683 para 41.087
pessoas, 62% delas mulheres afrodescendentes228 . Esses números são especialmente
preocupantes para a CIDH, considerando que a maioria dessas mulheres ocupa apenas
posição de “apoio” ao realizar o transporte e pequena comercialização de drogas229.
164. Em relação à prisão provisória, apesar dos esforços do Estado para reduzir seu uso,
principalmente com a adoção de audiências de custódia e a incorporação da perspec-
tiva de gênero na aplicação de medidas alternativas, vários desafios persistem pa-
ra que a política criminal e penitenciária brasileira esteja em plena sintonia com os
parâmetros internacionais de direitos humanos. Entre esses desafios estão: políticas
criminais que apostam no encarceramento como solução para a insegurança do cida-
dão; pressão da mídia e da opinião pública para combater a insegurança através da
privação de liberdade e defesa jurídica inadequada 230 .
165. Como já mencionado, a CIDH também observa que 30,43% da população carcerária, o
equivalente a um total de 229.823 pessoas privadas de liberdade, estão em prisão pro-
visória231. Esses números mostram que a prisão provisória é claramente aplicada de
maneira contrária ao seu caráter excepcional. A este respeito, a Comissão reitera que o
uso da prisão provisória deve ser limitado pelo direito à presunção de inocência, além
dos princípios de excepcionalidade, legalidade, necessidade e proporcionalidade.
166. Nesse sentido, a Comissão recorda que um dos principais avanços para reduzir o
uso da prisão provisória e que representa uma boa prática em nível regional é a im-
plementação de audiências de custódia. 232 A CIDH toma nota que essas audiências
constituem um mecanismo recentemente adotado pelo Estado brasileiro para evitar
privações desnecessárias de liberdade e comprovar o caráter indispensável da ma-
nutenção do encarceramento. 233 De acordo com a Resolução Nº. 213, de 15 de dezem-
bro de 2015, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), essas audiências exigem que as
pessoas detidas em flagrante, independentemente da motivação ou natureza do cri-
me, sejam apresentadas à autoridade judicial dentro de um período de 24 horas após
ser privado de liberdade para ser ouvido com a presença do Ministério Público e da
Defensoria Pública 234 .
167. Atualmente, as audiências de custódia estão operando nas capitais dos 26 esta-
dos do país e no Distrito Federal. Segundo dados do Judiciário, desde o início de
sua implementação e até junho de 2017, foram realizadas 258.485 audiências de
custódia em todo o país. Destas, 55,32% (em 142.988 casos) resultaram em pri-
são provisória. No estado do Rio Grande do Sul, a taxa de decretação de prisão
provisória atinge 84,83% e, por sua vez, os estados de Mato Grosso do Sul, Ron-
dônia, Tocantins e Pernambuco mostram números acima de 60%. Os estados que
apresentam números abaixo de 50% são Bahia, com 38,75%; Amapá com 42,14%
e Mato Grosso com 43,72% 235 . Os números anteriores constituem um avanço, prin-
cipalmente considerando que, de acordo com as informações de que a Comissão
dispõe após 2011, com a entrada em vigor da Lei das Medidas Cautelares 236 , o per-
centual de decretação da prisão provisória em casos de crimes em flagrante era
superior 237. Apesar disso, a prisão provisória em aproximadamente 55% dos ca-
sos reflete que essa medida continua a ser aplicada de maneira contrária à excep-
cionalidade da sua natureza.
232 Nesse sentido, a CIDH já havia se pronunciado anteriormente. CIDH, Informe sobre medidas dirigidas a re-
ducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/Ser.L/V/II.163. Doc. 105, 3 de julho de 2017, pará-
grafo. 186 e ss, e CIDH, Comunicado de Imprensa 29/16, CIDH celebra el aniversario de la implementación
de las audiencias de custodia en Brasil, 7 de março de 2016
233 CIDH, Comunicado de Imprensa 29/16, CIDH celebra el aniversario de la implementación de las audiencias
de custodia en Brasil, 7 de março de 2016.
234 Nesse sentido, a autoridade judicial decidirá sobre a inadmissibilidade de quaisquer medidas punitivas,
a determinação de detenção preventiva, a aplicação de medidas alternativas ou com relação à adoção de
outras medidas necessárias à preservação dos direitos do acusado Conselho Nacional de Justiça do Brasil,
Resolução 213 de 15 de dezembro de 2015, artigo 1.
235 Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “Dados Estatísticos / Mapa de Implantação de audiências de custódia”,
junho de 2017.
236 Por meio desse regulamento, o Código de Processo Penal do Brasil foi modificado para garantir o princí-
pio de excepcionalidade da prisão preventiva, através da extensão de medidas alternativas à prisão pre-
ventiva; tais como fiança, mecanismos de monitoramento eletrônico, prisão domiciliar, entre outros. Pre-
sidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei Nº 12.403, de 4 de Maio de 2011.
237 Por exemplo, nos casos do Rio de Janeiro e São Paulo, as taxas de confirmação de prisão preventiva totali-
zaram 72,3% e 61,3%, respectivamente. Após a implementação das audiências de custódia, o percentual
caiu para 57% no Rio de Janeiro e para 53% em São Paulo. Ministério da Justiça e Departamento Peniten-
ciário Nacional, Brasil, “Implementação das Audiências de Custódia no Brasil: Análise de experiências e
recomendações de aprimoramento”, p. 25, 2016.
171. Além disso, a decisão proferida pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal,
de 20 de fevereiro de 2018, concedeu prisão domiciliar a mulheres e adolescentes em
prisão preventiva que estejam grávidas, que tenham filhos com até 12 anos ou que
238 Corte IDH. Assunto do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho em relação ao Brasil. Medidas Provisórias
Resolução de 31 de agosto de 2017, parágrafo 27.
239 CIDH, Informe sobre medidas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/
Ser.L/V/II.163. Doc. 105, 3 de julho de 2017, parágrafo 192. Em particular, a Comissão alertou que, apesar
do alto número de denúncias de maus-tratos e tortura, e que a investigação de 74% das 1.152 denúncias
registradas no Tribunal de Justiça de São Paulo havia começado, em fevereiro de 2016, não se havia de-
terminado responsabilidade dos agentes de segurança em qualquer um dos casos. Conectas, Nota à Im-
prensa “Audiências de custódia fazem um ano: o que mudou?”, 25 de fevereiro de 2016.
240 Câmara dos Deputados, Proposta de Decreto Legislativo n. 317/2016, 2016.
241 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei No. 13.257, de 8 de março de
2016,; CIDH, Informe sobre medidas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/
Ser.L/V/II.163. Doc. 105, 3 de julho de 2017, parágrafo 213.
242 Lei 13.257/2016 que altera o artigo 318 do Código de Processo Penal (Estatuto da Primeira Infância),
Brasil, com vigência a partir de 8 de março de 2016, artigo 318, incisos IV e V; CIDH, Informe sobre me-
didas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/Ser.L/V/II.163. Doc. 105, 3 de
julho de 2017, parágrafo 213.
sejam responsáveis por pessoas com deficiência. Conforme decidido pelo STF, os tri-
bunais do país teriam um período de 30 dias para cumprir esta decisão243 .
172. Adicionalmente, a CIDH saúda a decisão do Supremo Tribunal Federal que determi-
na a transferência de mulheres trans em cumprimento de pena em presídios mascu-
linos para presídios femininos, uma vez que se reconheceu que “transexuais e tra-
vestis encarceradas são um grupo sujeito a uma dupla vulnerabilidade” (sic)244 . Em
opinião da Comissão, a decisão representa importante passo para que a privação de
liberdade deixe de resultar em violações múltiplas para grupos vulneráveis e estig-
matizados e avance com a aplicação dos princípios da igualdade e não discriminação
com base na identidade e/ou expressão de gênero.
173. Durante a visita, a CIDH também pôde observar condições preocupantes nos
centros de detenção visitados, como a superlotação. Nesse sentido, segundo in-
formações prestadas pelas respectivas autoridades carcerárias, a Penitenciária
Agrícola de Monte Cristo - com capacidade de alojamento de 650 pessoas - con-
tava com quase o dobro da ocupação, somando um total de 1.248 pessoas deti-
das. Igualmente, o Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, com capacidade para
1.699 homens, abrigava 4.093. Já na Cadeia Pública Jorge Santana, das 750 vagas,
tinha uma ocupação de 1.833 pessoas detidas no dia da visita 245 . A este respeito, a
Comissão enfatiza o recente pronunciamento da Corte Interamericana no sentido
de que, quando as condições do estabelecimento se deterioram como resultado da
superlotação e outras violações daí decorrentes, “o conteúdo aflitivo da penalida-
de ou privação de liberdade preventiva é aumentado a ponto de que se torna ilegal
ou antijurídica”246 .
174. Da mesma forma, nas prisões visitadas, a CIDH observou com especial preocupação
o confinamento permanente de pessoas privadas de liberdade, inclusive adolescen-
tes, diante da alegada falta de agentes penitenciários nos centros de detenção, que,
Cadeia Pública Jorge Santana, registrava 1 agente para quase 366 internos. A Co-
missão notou que essa situação faz com que os detidos se encontrem praticamente
o tempo todo em suas celas (caracterizadas por altos níveis de superlotação e condi-
ções deploráveis) e sem acesso a programas educacionais ou relacionados ao traba-
lho. Nesse sentido, a CIDH reafirma ao Estado que a privação de liberdade sob condi-
ções de confinamento prolongado e sem a possibilidade de ter acesso a esses tipos de
243 CIDH, Comunicado de imprensa 049/18, CIDH saluda decisión a favor de mujeres encarceladas en Brasil.
Washington, D.C., 14 de março de 2018.
244 Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
527 Distrito Federal, 26 de junho de 2019.
245 Os dados relacionados à atual acomodação desses centros foram obtidos durante as visitas in loco da CI-
DH entre 9 e 10 de novembro de 2018.
246 Corte IDH. Asunto del Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho respecto de Brasil. Medidas Provisionales. Re-
solución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 22 de novembro de 2018, parágrafo 92.
175. O confinamento prolongado nas prisões brasileiras também tem sido motivo de
preocupação para o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o qual
ressalta que a falta de agentes penitenciários suficientes é contrária aos regulamen-
tos brasileiros. Em particular, a Resolução Nº. 1/2009 do Conselho Nacional de Políti-
ca Penal e Penitenciária estipula que cada agente de segurança deve ter apenas cinco
pessoas encarcerada sob custódia 247 .
177. A situação das aproximadamente 400 pessoas nas celas “A” e “B” é de particular ris-
co, principalmente devido ao mau estado de saúde em que muitas delas estão. Em
muitos casos, essas pessoas foram presas em flagrante no contexto de operações po-
liciais e teriam sido feridas por arma de fogo. A CIDH advertiu sobre o quadro visivel-
mente infeccioso desses ferimentos e, a esse respeito, foi informada pelo Mecanismo
de Prevenção e Combate à Tortura no Rio de Janeiro acerca da falta de pessoal médi-
co para atender tais detentos249. Com relação às pessoas detidas e feridas no âmbito
das operações armadas, a CIDH recebeu a preocupante informação sobre o fato de
que estas não estavam sendo apresentadas nas audiências de custódia.
178. A Comissão toma nota da realização de uma reunião, em 2020, de entes estatais de
diversos níveis para tratar sobre as medidas a serem adotadas por cada um dos en-
volvidos no relativo aos problemas enfrentados no Presídio Evaristo de Morais, na
Cadeia Pública Jorge Santana e no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho objeto de
247 Mecanismo Nacional de Prevención y Combate de la Tortura, Informe de misión a unidades de privación de
la libertad en el estado de Roraima, 2017, parágrafo 143
248 No dia da visita (9 de novembro), por exemplo, nas celas “A” e “B” com capacidade para 75 pessoas e 67
pessoas respectivamente, havia aproximadamente 200 presos.
249 Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, “Recomendações sobre Siste-
ma Prisional, Sistema Socioeducativo e Fortalecimento Institucional do Sistema Estadual de Prevenção à
Tortura”, Informe para la CIDH, 10 de novembro de 2018, p. 10.
179. Outro aspecto que chamou a atenção da CIDH foi a situação precária dos serviços
de saúde nas prisões brasileiras. Nesse sentido, e apesar do progresso relatado pelo
Estado na questão251, a Comissão observou e foi informada da negligência nos cui-
dados médicos, decorrente principalmente da falta de pessoal médico e da falta de
medicamentos e equipamentos necessários. Em particular, a CIDH alertou que a su-
perlotação, a falta de higiene e ventilação inadequada constituem uma séria ameaça
à saúde dos detentos. Isso se deve principalmente ao aumento do risco de contágio
de doenças infecciosas, como a tuberculose, aspecto este que também é reconhecido
pelo próprio Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)252 . Nesse contexto, a Co-
missão lembra que os órgãos do Sistema Interamericano afirmaram em várias oca-
siões a obrigação dos Estados de fornecer serviços de saúde oportunos e adequados
às pessoas sob sua custódia. Em particular, em relação à tuberculose, a fim de eli-
minar o risco de sua transmissão, é imperativa a implementação de medidas admi-
nistrativas e ambientais apropriadas, de acordo com as disposições relacionadas ao
assunto da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana
da Saúde (OPAS)253 .
180. Por outro lado, apesar da adoção de algumas medidas que incorporam a perspectiva
de gênero em centros penitenciários254 , a CIDH observou a falta de atendimento mé-
dico feminino e a falta de programas efetivos de reintegração social. Em particular,
250 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 37 e 38.
251 Entre esses avanços, a publicação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Priva-
das de Liberdade no Sistema Penitenciário (2014) e a implementação do Sistema Horus para gerenciar
e acompanhar a dispensação médica no sistema penitenciário. (2017). Departamento Penitenciário Na-
cional, Coordenação de Saúde da Coordenação-Geral de Promoção da Cidadania e do Departamento de
Atenção Básica do Ministério da Saúde, “Saúde Prisional”, junho de 2018, p. 3 e 5.
252 Em particular, o Departamento Penitenciário Nacional estabeleceu que as condições físicas e a superpo-
pulação favorecem a disseminação da tuberculose intramural. Além disso, indicou que, sendo uma doen-
ça transmitida pelo ar, e que os recursos humanos ainda não são suficientes para controlar, diagnosticar
e tratar precocemente os casos identificados. Departamento Penitenciário Nacional, Coordenação de Saú-
de da Coordenação-Geral de Promoção da Cidadania e do Departamento de Atenção Básica do Ministério
da Saúde, “Saúde Prisional”, junho de 2018, p. 5.
253 Para mais informações, veja Organização Pan-Americana da Saúde, “Guía para el control de la tuberculosis
en poblaciones privadas de libertad de América Latina y el Caribe”, 2008. p. 75; Organização Mundial da
Saúde, “El control de la tuberculosis en prisiones: manual para directores de programas”; Corte IDH. Asunto
del Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho respecto de Brasil. Medidas Provisionales. Resolución de la Corte
Interamericana de Derechos Humanos de 31 de agosto de 2017, parágrafo. 54.
254 Nesse sentido, por exemplo, a CIDH foi informada de que o DEPEN está em processo de aquisição de veícu-
los para transportar mulheres durante a gravidez, em trabalho de parto ou com deficiência. Além disso,
incentiva o treinamento contínuo de funcionários penitenciários sobre tratamento com perspectiva de
gênero e abordagens diferenciadas. Coordenação de Políticas para Mulheres e Promoção de Diversidades,
Coordenação-Geral de Promoção da Cidadania e Departamento Penitenciário Nacional, novembro de 2018.
181. A esse respeito, a CIDH lembra que, de acordo com os Princípios e Boas Práticas para
a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, as mulheres privadas
de liberdade têm direito a acesso a cuidados médicos especializados, que respondem
adequadamente às suas características físicas e biológicas, bem como suas necessi-
dades de saúde reprodutiva 258 . Além disso, os Estados devem fornecer regularmente
às mulheres os itens essenciais para suas próprias necessidades de saúde259. Com re-
lação às mulheres trans, os estados têm a obrigação de fornecer assistência médica
que reconheça qualquer necessidade específica com base na identidade de gênero e
ou expressão de gênero260 .
182. A CIDH foi também informada sobre a realização arbitrária de revistas corporais
nas prisões de adultos e em centros de adolescentes, o que constitui uma violação do
direito à integridade pessoal das pessoas que visitam. Nesse sentido, os visitantes,
e especialmente as mulheres, seriam forçados em muitos casos a se despir e expor
seus órgãos genitais, a se curvar e se levantar repetidamente no que se conhece co-
mo “agachamento”261 . Nesse sentido, o Subcomitê de Prevenção da Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes alertou, desde 2012, que
255 Ouvidoria Geral da Defensoria Publica do Rio de Janeiro, Rede e Movimentos Contra Violência e outras or-
ganizações, “Sistema Prisional e Genêro: Informações e Recomendações”. Informações fornecidas à CIDH
em 10 de novembro de 2018 e Rede de Justiça Criminal; “Discriminação de gênero no Sistema Penal”, 9ª
edição, setembro de 2016.
256 Ouvidoria Geral da Defensoria Publica do Rio de Janeiro, Rede e Movimentos Contra Violência e outras or-
ganizações, “Sistema Prisional e Genêro: Informações e Recomendações”; Informações fornecidas à CIDH
em 10 de novembro de 2018.
257 Informação proporcionada à CIDH durante a reunião virtual com organizações da sociedade civil, cele-
brada em 29 de junho de 2020.
258 CIDH, Principios y Buenas Prácticas sobre la Protección de las Personas Privadas de Libertad en las Améri-
cas, OEA/Ser/L/V/II.131, Documento aprovado pela Comissão em seu 131 ° Período Ordinário de Sessões,
realizado de 3 a 14 de março de 2008. Princípio X “Salud”.
259 CIDH, Principios y Buenas Prácticas sobre la Protección de las Personas Privadas de Libertad en las Améri-
cas, OEA/Ser/L/V/II.131, Documento aprovado pela Comissão em seu 131 ° Período Ordinário de Sessões,
realizado de 3 a 14 de março de 2008. Princípio XII “Albergue, condiciones de higiene y vestido”.
260 The Yogyakarta Principles, Principios de Ygyakarta sobre la aplicación de la legislación internacional de de-
rechos humanos en relación con la orientación sexual y la identidad de género, Princípio 9.B.
261 DPEN, As Revistas Íntimas Realizadas em Visitantes dos Presos no Sistema Penitenciário Brasileiro, 2016;
Organização de Direitos Humanos, Projeto Legal; Associação de Familiares e Amigos de Presos (AMPA-
RAR), Conectas, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Instituto Pro Bono; Núcleo Especia-
lizado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Informação proporcionada à
CIDH em 17 de julho de 2018, no marco da reunião de trabalho do 169 PS, celebrada em Boulder Colorado
em 2 de outubro de 2018; e Rede de Justiça Criminal “Discriminação de Gênero no Sistema Penal”, 9ª edi-
ção, setembro de 2016.
183. Por fim, e tendo em vista as condições alarmantes de detenção que prevalecem nas
prisões brasileiras, a CIDH recorda o que foi apontado pela Corte Interamericana no
sentido de que podem eventualmente violar o artigo 5.6 da Convenção Americana,
ou seja, não poderiam cumprir o objetivo essencial da punição, que é a reintegração
social de pessoas privadas de liberdade265 .
262 Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes,
“Informe sobre la visita al Brasil”, CAT/OP/BRA/1, 5 de julho de 2012.
263 Relator Especial sobre la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes, Informe sobre mi-
sión al Brasil del 3 al 14 de agosto de 2015, A/HRC/57/Add.4, 29 de janeiro de 2016, parágrafo 38.
264 CIDH, Informe sobre los derechos de las personas privadas de libertad en las Americas, OEA/Ser.L/V/II. Doc.
64, 31 de dezembro de 2011, parágrafo 590, y CIDH, Principios y Buenas Prácticas sobre la Protección de
las Personas Privadas de Libertad en las Américas, OEA/Ser/L/V/II.131, Documento aprovado pela Comis-
são em seu 131° Período Ordinário de Sessões, realizado de 3 a 14 de março de 2008. Princípio XXI.
265 Corte IDH. Asunto del Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho respecto de Brasil. Medidas Provisionales. Re-
solución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 22 de novembro de 2018, parágrafo 85.
266 Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes,
Visita al Brasil del 19 al 30 de octubre de 2015: Observaciones y Recomendaciones, CAT/OP/BRA/3, 16 de
fevereiro de 2017, parágrafo 41; Human Rights Watch, The State let Evil Take Over, The Prison Crisis in the
Brazilian State of Pernambuco, 15 de outubro de 2015.
267 Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes,
Visita al Brasil del 19 al 30 de octubre de 2015: Observaciones y Recomendaciones, CAT/OP/BRA/3, 16 de
fevereiro de 2017, parágrafo. 41.
268 Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes,
Visita al Brasil del 19 al 30 de octubre de 2015: Observaciones y Recomendaciones, CAT/OP/BRA/3, 16 de
fevereiro de 2017, parágrafo. 41.
185. A falta de controle por parte das autoridades penitenciárias foi observada pela Co-
missão durante sua visita à Prisão Agrícola de Monte Cristo, em Roraima. Esse recin-
to seria praticamente governado por uma facção criminosa que impede até os agen-
tes e autoridades penitenciárias de entrarem nos pavilhões onde residem os presos,
que são os que abrem e fecham as celas. Essa situação também foi observada pelo
próprio Conselho Penitenciário do Estado de Roraima e pelo Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura 269.
186. Em janeiro de 2017, ocorreram três massacres em centros de detenção que resultaram
na morte de pelo menos 130 pessoas: a primeira em Manaus (Amazonas); o segundo
em Boa Vista (Roraima); e o terceiro em Nísia Floresta (Rio Grande do Norte). Por meio
de comunicado de imprensa, a CIDH condenou esses atos de violência e solicitou que o
Estado os investigasse, a fim de identificar e punir os responsáveis270. Assim mesmo,
em 2018, a CIDH voltou a se pronunciar sobre atos de violência nas prisões brasileiras
no Pará, Ceará e Goiás, que resultaram na morte de pelo menos 24 pessoas271. Padrões
esses de violência que também foram observados no Sistema Socioeducativo272 .
187. Um tema que merece especial destaque se relaciona aos testemunhos repetidos e con-
sistentes atos de sobre tortura e tratamentos desumanos e degradantes cometidos
nos centros prisionais por agentes carcerários. Em particular, a CIDH recebeu infor-
mações sobre esse tipo de tratamento cometido por agentes de forças especiais de
custódia, como o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) e o Grupo de Inteligência Tática
(GIT), que, segundo informação, possuiriam treinamento militar e têm a função ga-
rantir segurança e ordem nos casos de tumultos e tentativas de fuga, bem como exe-
cutar procedimentos de inspeção para localizar armas, telefones celulares e drogas273 .
269 Conselho Penitenciário do Estado de Roraima, Ofício No 003/2018. Boa Vista, Roraima, 7 de novembro de
2018; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Informe de misión a unidades de privación
de la libertad en el estado de Roraima, 2017, parágrafo 121.
270 CIDH, Comunicado de imprensa 2/17, CIDH condena la muerte de casi un centenar de personas en cárceles
de Brasil. Washington, D.C., 11 de janeiro de 2017.
271 Nesse sentido, em 10 de abril de 2018, como resultado de uma tentativa de fuga maciça no Centro Prisional
de Recuperação do Pará III, uma unidade pertencente ao Complexo Penitenciário de Santa Izabel, pelo me-
nos 21 pessoas perderam a vida; entre eles, um guarda prisional; cinco estagiários e 15 membros do grupo
organizado. Em 29 de janeiro de 2018, ocorreu um tumulto na prisão pública de Itapajé, localizada no es-
tado do Ceará, que resultou em 10 pessoas perdendo a vida. Em 1º de janeiro, foram apresentados atos de
violência semelhantes que resultaram na morte de 9 pessoas privadas de liberdade da Colônia Agroindus-
trial de Regime Semi-Aberto de Aparecida de Goiânia, no estado de Goiás. CIDH, Comunicado de imprensa
084/18, CIDH condena la muerte de al menos 21 personas en cárcel de Brasil. Washington, D.C., 23 de abril de
2018; CIDH, Comunicado de imprensa 030/18, CIDH condena la muerte de diez personas en cárcel de Ceará,
Brasil. Washington, D.C., 16 de fevereiro de 2018, y CIDH, Comunicado de imprensa 003/18, CIDH condena la
muerte de personas privadas de libertad en cárcel de Brasil. Washington, D.C., 11 de janeiro de 2018.
272 CIDH, Comunicado de imprensa 202/17V - CIDH encerra visita ao Brasil, Washington, D.C., 15 de dezem-
bro de 2017.
273 Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Informação No. 4/2018MNPCT/SNC/MDH, 10 de
novembro de 2018, p. 3, e Informe de misión a unidades de privación de la libertad en el estado de Roraima,
2017, parágrafos 120 e 283. Nesse sentido, Associação de Familiares e Amigos de Presos (AMPARAR);
Conectas Direitos Humanos; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto Pro Bono;
Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo, Informa- ção
proporcionada à CIDH em 17 de julho de 2018, no marco da reunião de trabalho del 169 período ordiná-
rio de sessão, celebrada em Boulder Colorado em 2 de outubro de 2018.
188. Por exemplo, em suas visitas à prisão Jorge Santana e à prisão agrícola de Monte
Cristo, em Roraima, a CIDH observou a presença de integrantes do GIT (Grupo de In-
tervenção Tática), caracterizados pelo visível porte de armas e pela impossibilida-
de de reconhecimento ou identificação por terem rostos cobertos com capuz. Sobre
isso, a Comissão destaca-se a importância do trabalho das instituições de controle
e fiscalização, como o Ministério Público, os Tribunais de Justiça e os Mecanismos
de Prevenção e Combate à Tortura, a fim de que práticas abusivas sejam coibidas e,
quando cometidas, os responsáveis sejam julgados e punidos.
189. Com relação às ações dessas forças especiais, a Comissão recebeu recentemente de-
núncias sobre o uso excessivo da força e maus-tratos cometidos pelo GIR em São Paulo,
a Força-Tarefa de Intervenção Prisional no Rio Grande do Norte e GIRs em outros esta-
dos do país.274 Em particular, segundo informações da sociedade civil, destaca-se o uso
de cães treinados para assustar os detentos; inspeções vexatórias de mulheres; dano a
pertences dos internos; uso de balas de borracha, gás de pimenta e gás lacrimogêneo
indiscriminadamente; além de punições e espancamentos coletivos275 . A CIDH recorda
que o Comitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura já havia se pronunciado
sobre isso, tendo recebido “várias queixas sobre o uso da força por unidades especiais
da polícia militar que realizam intervenções nas prisões”276 . A Comissão toma nota
com preocupação sobre o fato de um crescente uso dessas operações poderiam ter re-
lação com técnicas punitivas de forma extrajudicial às pessoas privadas de liberdade,
bem como a adoção de regimes disciplinares de exceção e suspensão de direitos277.
190. A CIDH ainda destaca que, conforme relatado por vários depoimentos, a maioria das
pessoas, incluindo adolescentes, não relata a prática de tortura e maus-tratos nas
prisões brasileiras por medo de represálias, tema de especial preocupação, uma vez
que poderia ser um indicativo de que essa violação de direitos humanos tende a ser
ainda mais grave. Da mesma forma, nos casos em que as queixas a esse respeito são
registradas, a Comissão recebeu informação de certa leniência por parte dos órgãos
191. Ainda sobre o tema, a CIDH alertou que apenas seis estados possuem leis que esta-
belecem um mecanismo para prevenir a tortura e que, dentre eles, somente dois im-
plementaram efetivamente um mecanismo de prevenção. Nesse sentido, a Comissão
reitera a solicitação ao Estado brasileiro a tomar as medidas apropriadas para pro-
mover a criação de mecanismos para prevenir e combater a tortura, bem como pro-
porcionar todas as condições necessárias para a realização do trabalho, incluindo
pessoal, recursos físicos e técnicos280 . Da mesma forma, a CIDH observa que, recente-
mente, foram tomadas medidas que dificultam o trabalho desse tipo de mecanismo,
em particular, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e do Meca-
nismo de Prevenção e Combate à Tortura no estado de São Paulo, como demissões de
seus membros e a total ausência de recursos para a execução dos trabalhos281 .
192. A respeito, a CIDH destaca o papel do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tor-
tura (CNPCT) e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT),
que compõem o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura282 na consolida-
ção da institucionalidade de direitos humanos presente no país. Nesse sentido, reafir-
ma que o trabalho realizado por essas instituições é fundamental para o cumprimen-
to dos compromissos assumidos pelo Estado na defesa, promoção e consolidação da
agenda dos direitos humanos. O Mecanismo Nacional, criado pela Lei nº 12.847, de 2
de agosto de 2013283, assim como suas contrapartes estaduais, é um agente essencial
para a identificação, denúncia e monitoramento dos casos de tortura no país.
193. Dessa maneira, a CIDH reitera sua especial preocupação com o Decreto Presiden-
cial nº 9.831, de 10 de junho de 2019284 , que determinou a destituição dos membros
do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e, consequentemente, a
execução de seu mandato a favor da proteção das pessoas privadas de liberdade. Tal
278 Informações fornecidas à CIDH por mães de pessoas detidas em Minas Gerais, durante reunião com a so-
ciedade civil de 30 de julho, 10 de novembro de 2018, Rio de Janeiro.
279 CIDH, Graves violaciones a los derechos humanos en el marco de las protestas sociales en Nicaragua.OEA/
Ser.L/V/II. Doc. 86, 21 de junho de 2018, parágrafo 190. Neste sentido, CIDH, Informe sobre los derechos
humanos de las personas privadas de libertad en las Américas, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 64, 31 de dezembro de
2011, parágrafo 343.
280 CIDH, Comunicado 209/17 - CIDH culmina visita ao Brasil - “Anexo com as conclusões e observações”.
Washington, D.C., 15 de dezembro de 2017.
281 CIDH, Comunicado de Imprensa 149/19 – A CIDH expressa preocupação pelas ações que afetam o funcio-
namento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate contra a Tortura no Brasil. Washington, D.C.,
14 de junho de 2019.
282 Informe do Estado com Informações Adicionais, maio de 2019.
283 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 12.847, 2 de agosto de 2013.
284 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto nº 9.831, 10 de junho de 2019.
decisão fez com que a referida entidade fique praticamente sem funcionar até que
sejam nomeados os novos membros que, de acordo com uma das suas disposições
e contrariamente à prática corrente, não receberão qualquer remuneração pelo seu
trabalho285 . Da mesma forma, ao solicitar informações ao Estado brasileiro em feve-
reiro de 2019, a CIDH expressou preocupação com algumas limitações que o Meca-
nismo enfrentaria para cumprir sua função de fiscalizar centros de detenção. Contu-
do, a Comissão saúda a informação brindada pelo Estado sobre a decisão liminar da
Justiça Federal de suspensão do Decreto286 .
194. Por outro lado, em relação ao Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura no estado
de São Paulo, em 16 de janeiro de 2019, o governo do Estado vetou o Projeto de Lei Nº.
1257/2014, aprovado pela Assembleia Legislativa, que pretendia criar este mecanismo
a nível local287. A Comissão destaca as manifestações de repúdio da sociedade civil a
esse respeito288 , as quais se somaram à nota pública de 23 de janeiro de 2019 do Mi-
nistério Público Federal dos Direitos do Cidadão289. Paralelamente, por meio de carta
datada de 5 de fevereiro de 2019, dirigida à Assembleia Legislativa do Estado, tanto a
CIDH quanto a ACNUDH pleitearam pela criação, instalação e funcionamento do Me-
canismo de Prevenção e Combate à Tortura no Estado. Nesta ocasião, a Comissão rea-
firmou a responsabilidade inalienável do Estado de prevenir a tortura, condenar sua
prática e punir, em todos os momentos, todos os autores materiais e intelectuais.
195. Nesse contexto, a CIDH reitera que os centros de privação de liberdade devem estar
sujeitos à constante monitoramento e controle independentes. A maneira pela qual
as pessoas privadas de liberdade são tratadas deve ser sujeita a um controle rigo-
roso, levando em consideração a situação especial de risco que enfrentam devido às
condições intramurais e ao controle total do Estado no que diz respeito ao exercício
dos seus direitos. Os mecanismos de monitoramento criados sob o Protocolo Opcio-
nal à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, ratificado pelo Brasil em 12 de
janeiro de 2007, são especialmente importantes para proteger os direitos fundamen-
tais das pessoas privadas de liberdade, bem como cumprir as obrigações internacio-
nais de direitos humanos do Brasil.
285 CIDH, Comunicado de Imprensa 149/19 – A CIDH expressa preocupação pelas ações que afetam o funcio-
namento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate contra a Tortura no Brasil. Washington, D.C.,
14 de junho de 2019.
286 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 41 e 42.
287 Veto total ao projeto de Lei nº 1257, de 2014 Diário Oficial Poder Executivo – Seção I, 17 de janeiro de 2019.
288 IBCCRIM, Comunicado de imprensa “IBCCRIM e organizações parceiras manifestam indignação com veto
de João Dória ao Comitê e o Mecanismo de Prevenção e Enfrentamento à Tortura no Estado de São Paulo”,
18 de janeiro de 2019.
289 Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Comunicado de imprensa “PFDC defende projeto de lei que
institui Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura em São Paulo”, 23 de janeiro de 2019.
196. A CIDH também verificou, durante a visita e no processo de elaboração deste relató-
rio, que cresce no país a prática de se conceder a gestão de estabelecimentos penais
à iniciativa privada. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional do Mi-
nistério da Justiça e Segurança Pública 291, em 2018 havia 32 estabelecimentos prisio-
nais sendo geridos por empresas privadas nas modalidades de cogestão292 e parceria
público-privada (PPP)293 . Os estabelecimentos em cogestão somavam 29 e concen-
travam 12.223 vagas; os em PPP somavam 3 e concentravam 2.016 vagas. Por outro
lado, relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário (2015)
indicava que 8 estados realizavam estudos para efetivação de PPP em unidades que,
na sua totalidade, concentrariam outras 23.136 vagas294 .
197. Com efeito, em janeiro de 2019 o governo estadual de São Paulo tornou pública a pro-
posta de transferir para a iniciativa privada por meio de PPP a gestão de 12 unidades
em construção, as quais concentrarão 12 mil vagas, bem como de outros três com-
plexos (número de vagas ainda indeterminado) a serem construídos no processo de
expansão do sistema prisional estadual 295 . No âmbito federal, durante a campanha
eleitoral de 2018, figuras públicas chegaram a anunciar que pretendiam incluir esta-
belecimentos prisionais em pacotes de privatizações296 .
198. Diante do anúncio do governo de São Paulo, diversas organizações da sociedade civil
emitiram Nota Técnica 297, em que indicam fundamentos técnicos e jurídicos contrá-
rios à decisão do executivo local de privatização dos presídios. Entre eles está o com-
promisso assumido pelo Estado brasileiro perante as Nações Unidas no âmbito do úl-
timo ciclo de Revisão Periódica Universal (RPU) de reduzir sua população carcerária
em 10%. Ainda segundo a informação, em todo o mundo, a concessão da gestão de
estabelecimentos prisionais ao setor privado guarda forte correlação com a amplia-
ção no número de presos, ou seja, o encarceramento em massa.
290 Neste relatório, assim como na literatura especializada, privatização é um gênero que pode abrigar diver-
sas modalidades e níveis de delegação, pelo Estado, de um serviço público.
291 Dados Gerais Brasil, Parcerias Público-Privadas no sistema prisional, Ministério da Justiça (2018, p.3).
292 Modalidade na qual o ente privado fornece empregados, equipamentos e serviços voltados ao atendimen-
to da população prisional.
293 Modalidade na qual o ente privado não apenas fornece empregados, equipamentos e serviços voltados
ao atendimento da população prisional, mas também pode assumir encargos de construção e reforma
do estabelecimento.
294 IPEA. Boletim de Análise Político-Institucional, 2018.
295 Agência Brasil, Governo paulista anuncia privatização de quatro presídios, 18 de janeiro de 2019.
296 Canal do Partido Social Liberal – PSL no Youtube, O Brasil Entrevista Bolsonaro, 2 de agosto de 2018.
297 Consultor Jurídico, Privatizar gestão dos presídios aumentará violação a presos, dizem entidades, 10 de
maio de 2019.
199. Sob a perspectiva dos direitos humanos, é imperioso destacar a experiência bra-
sileira com a privatização de estabelecimentos penais e o elevado número de atos
violentos ocorridos nesses espaços, como a do Complexo Penitenciário de Pedrinhas,
no Maranhão e do Complexo Penitenciário Anísio Jobim – COMPAJ, no Amazonas298 .
A respeito, em ambos os complexos privatizados, a CIDH destaca episódios que re-
sultaram em grave violação de direitos humanos, como os massacres de 2013299 e
2019300 respectivamente.
201. A respeito deste assunto, a Comissão toma nota do argumento utilizado pelos Esta-
dos a respeito da economia que a implementação desses modelos pode representar
no déficit das contas públicas, no entanto, destaca a informação de que muitos des-
ses estabelecimentos geridos em regime de cogestão ou PPP apresentam maiores
custos por vaga/pessoa presa e, como regra, dão preferência a presos por crimes não
violentos ou com maiores chances de reintegração social, o que não representaria,
então, qualquer vantagem à economia pública 301 . Nesse sentido, a CIDH ressalta o pa-
radoxo gerado pelo modelo privado, visto que é um sistema que demanda um eleva-
do número de encarceramentos para sua viabilidade. Ao mesmo tempo, recorda ao
Estado que o foco do processo penal deve estar atrelado à redução do encarceramen-
to e, consequentemente, à redução de seus custos, por meio da aplicação de políticas
públicas sociais que permitam a que essas pessoas tenham acesso a meios de subsis-
tência não relacionados a atividades ilícitas.
298 O COMPAJ era gerido pela empresa Umanizzare durante os massacres de 2017 e 2019, enquanto no Com-
plexo de Pedrinhas parte dos serviços haviam sido concedidos à iniciativa privada, com destaque para a
segurança, prestada pela empresa Atlântica.
299 Conselho Nacional de Justiça, Relatório de Inspeção nos Estabelecimentos Prisionais do Maranhão – Ofí-
cio 363/GB/2013, 27 de dezembro de 2013.
300 G1, Em 2017, 56 presos foram assassinados em massacre no Compaj, 27 de maio de 2019.
301 Conectas, Proposta de Privatização de Presídios em SP é Inconstitucional e Fere Tratado da Onu, 30 de
maio de 2019.
202. A CIDH identificou que há no Brasil a preferência por soluções de política pública ba-
seadas na privação de liberdade, em detrimento de medidas alternativas. Os núme-
ros do levantamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE),
por exemplo, demonstram que dos 27.799 atos infracionais imputados aos 26.450
adolescentes em atendimento no sistema, 32% correspondem a condutas que não
atentam contra a vida ou a integridade pessoal (tráfico, furto, porte de arma de fogo
e receptação). Já os atos cometidos mediante grave ameaça ou violência à pessoa (ho-
micídio, tentativa de homicídio, latrocínio, estupro e ameaça de morte) representam
17% do total302 . Ainda assim, 70% dos adolescentes cumprem medidas de privação
de liberdade, o que demonstra desconsideração ao princípio da excepcionalidade
previsto no art. 40(4) da Convenção dos Direitos da Criança.
203. Sobre isso, em sua visita de trabalho em 2017, a CIDH já havia observado o contexto
estrutural e generalizado de atos de violência nos centros de internação de adolescen-
tes, tais como: alegações de abusos e maus tratos cometidos por outros internos e pela
equipe desses centros ou com o seu conhecimento, homicídios, atos de tortura, rebe-
liões, fugas, superlotação, instalações insalubres e falta de programas que sirvam efe-
tivamente para o objetivo socioeducativo e de inserção social dos adolescentes em con-
tato com a lei penal, assim como outras situações violadoras de direitos humanos303 .
204. Nessa ocasião, a CIDH observou nas unidades do sistema socioeducativo problemáticas
similares às observadas no sistema prisional, tais como superlotação, péssimas condi-
ções de saúde e alimentação, maus-tratos e tortura. Embora o sistema socioeducativo
tenha como finalidade um processo educativo que transforme a realidade de adoles-
centes em conflito com a lei, na prática a Comissão observou um contexto de privação
de liberdade que, assim como no sistema prisional, reflete padrões de racismo institu-
cional, criminalização da pobreza e violações de direitos humanos por agentes do Esta-
do, em total dissonância com as normas interamericanas de direitos humanos304 .
205. Nesse contexto, a CIDH recebeu informações do último levantamento feito pelo Esta-
do indicando que, em 2018, o Brasil dispunha de 453 unidades para o cumprimento
de medidas, incluindo os regimes de internação integral (330) e semiliberdade (123),
as quais estavam concentradas majoritariamente na região sudeste, seguida da re-
302 Ministério dos Direitos Humanos, Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca-
tivo 2016, Gráfico 10, 15 de janeiro de 2018.
303 CIDH, Comunicado de imprensa 202/17V - CIDH encerra visita ao Brasil, Washington, D.C., 15 de dezem-
bro de 2017.
304 CIDH, Comunicado de imprensa 209A/17 – Anexo: CIDH encerra visita ao Brasil, Washington, D.C., 15 de
dezembro de 2017.
gião nordeste. 305 Essas unidades são regidas pelo Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE), criado pela Lei Nº. 12.594, de 18 de janeiro de 2012306 .
206. A CIDH observa que o sistema socioeducativo brasileiro segue padecendo de gravís-
simos problemas, em particular de condições degradantes de privação da liberdade.
Com efeito, nos últimos anos a Comissão outorgou a Medida Cautelar Nº. 60-15 em
favor dos adolescentes em atendimento nas unidades de internação do Ceará, e a Me-
dida Cautelar Nº. 302-15, em favor dos adolescentes em atendimento no Centro de
Atenção Socioeducativo do Adolescente (CASA) de São Paulo, o que demonstra a ur-
gência e a gravidade da situação.
207. Durante a visita in loco, a Comissão esteve no Centro Socioeducativo Dom Bosco,
no Rio de Janeiro, onde a Comissão constatou problemas de natureza estrutural/
arquitetônica e recebeu relatos de maus-tratos, tortura e violência. A CIDH foi in-
formada também de que o número de adolescentes atendidos no Centro à época
ultrapassava em 42% a sua real capacidade. 307 No estado de Pernambuco, em 2018,
as unidades apresentaram uma taxa de ocupação de 209,35%, segundo informação
do Conselho Nacional do Ministério Público, expondo a grave crise de superlotação
do sistema. Assim mesmo, a Comissão observa que a falta de vagas nas unidades
para o cumprimento de medidas de internação é um problema nacional, tendo re-
cebido informações a respeito da superlotação também em Acre, Sergipe, Rio Gran-
de do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba, Roraima, Bahia, Paraná, Mara-
nhão e no Distrito Federal 308 .
208. De igual maneira, a Comissão destaca que embora a lei Nº. 12.594/2012 tenha es-
tabelecido parâmetros para a construção das unidades de internação309, os edifícios
atuais ainda seguem os padrões arquitetônicos dos centros de privação de liberda-
de de adultos, contrariando o princípio da socioeducação e da justiça restaurativa.
Além disso, as informações recebidas pela Comissão durante a visita dão conta das
péssimas condições de internação a que estão submetidas as/os adolescentes310 .
305 Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Panorama da execução dos programas socioeducativos
de internação e semiliberdade nos estados brasileiros, 2019.
306 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, Ins-
titui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
307 CIDH, Visita in loco ao Brasil, realizada entre 5 e 12 de novembro de 2018, visita ao Centro de Socioeduca-
ção Dom Bosco.
308 Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Panorama da execução dos programas socioeducativos
de internação e semiliberdade nos estados brasileiros, 2019.
309 Presidência da República, Lei Nº. 12.594, 18 de janeiro de 2012.
310 ANCED, Relatório da situação dos direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil no âmbito da
justiça juvenil, pág. 15, novembro de 2018. Ver também, Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE/GO),
Relatório de inspeção do Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) de Goiânia/GO, págs. 2-6, julho
de 2017; ver também, Projeto Legal, Juventudes privadas de liberdade e suas famílias, pág. 10, novembro
de 2018.
209. A CIDH toma nota de que, no que concerne ao enfrentamento do déficit de 5.000 va-
gas reportadas no ano de 2019, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos
(MMFDH) investirá R$ 165.163.373,53 para a construção de unidades adicionais que
implantarão 612 vagas nos Estados do Amapá, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Rio de Ja-
neiro, Santa Catarina e Tocantins, de acordo com o informado pelo Estado311 .
210. Somam-se a isso, as graves notícias recebidas sobre atos de violência presentes nas
unidades. Segundo os dados oficiais disponíveis, 39 adolescentes morreram dentro
das unidades de internação em 2016, sendo 97% dos casos de forma violenta 312 . Se-
gundo informações da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal, mor-
rem em média mais de 2 adolescentes por mês nessas unidades socioeducativas313 .
212. A CIDH observa que a segurança nas unidades do sistema socioeducativo também
pode ser afetada por mudanças na política de controle de armas no país, princi-
palmente a partir das iniciativas que visam autorizar o porte de armas de fogo por
agentes socioeducativos, a exemplo das leis já aprovadas em Rondônia, Minas Gerais
e Santa Catarina e o projeto ainda em tramitação no Rio de Janeiro315 . Embora tais
leis autorizem o porte de armas fora das unidades, há um risco adicional de que elas
contribuam para o agravamento da violência dentro do sistema socioeducativo.
213. Ademais, se teve informação de que os adolescentes que chegam a usar os mecanis-
mos de ouvidoria para denunciar os atos de violência sofrem represálias de nature-
311 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 43.
312 Ministério dos Direitos Humanos, Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeduca-
tivo 2016, Gráfico 16, 15 de janeiro de 2018.
313 Senado Federal, “CPI Assassinato de Jovens”, 2016.
314 Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE/GO), Relatório de inspeção do Centro de Atendimento So-
cioeducativo (CASE) de Goiânia/GO, pág. 20, julho de 2017. ANCED, Relatório da situação dos direitos
humanos de crianças e adolescentes no Brasil no âmbito da justiça juvenil, pág. 10, novembro de 2018.
CNDH, CONANDA, PFDC/MPF, Relatório de monitoramento das medidas cautelares 60-15 da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) outorgadas em face das violações de direitos humanos do
Sistema Socioeducativo do Estado do Ceará, pág. 55, outubro de 2017.
315 Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), Nota Técnica nº 04: análise sobre leis e
projetos de lei estaduais para porte de armas de fogo a agentes socioeducativos, 14 de dezembro de 2018.
za física e psicológica, o que contribui com a impunidade dos agressores. 316 Em al-
guns casos, foram relatadas a aplicação de reprimendas cruéis como a privação de
peças de cama e a obrigação de dormir diretamente no concreto frio, sem o colchão
nem cobertas 317.
214. A CIDH observa ainda a existência de unidades de internação que não contam com
equipe multidisciplinar adequada para prover acesso aos serviços de saúde e edu-
cação. De acordo com as informações recebidas, algumas unidades deixam os ado-
lescentes sem aulas por vários meses seguidos, prejudicando os esforços de integra-
ção social e profissional. 318 O mesmo acontece com o acesso aos serviços de saúde. A
atenção básica à saúde dos adolescentes é feita em equipamentos externos, o que por
consequência exige traslado e escolta, que, segundo o informado, nem sempre estão
disponíveis em razão da falta de pessoal319.
215. Sobre isso, a Comissão recorda que a privação de liberdade de adolescentes por in-
fração penal não autoriza o Estado a restringir outros direitos humanos320 . Em dis-
tintas oportunidades, a CIDH há assinalado que, no momento da aplicação das me-
didas de privação de liberdade, os Estados sempre devem considerar o interesse
superior dos adolescentes, o que significa garantir todos os direitos não restringi-
dos pela medida socioeducativa, que incluem, especialmente, o direito à alimentação
adequada, à educação e à saúde321 .
216. Assim mesmo, constata-se que, desde a visita realizada às unidades do sistema so-
cioeducativo em 2017, não houve ações significativas do Estado para superar as ob-
servações realizadas à época, em que a CIDH observou sobre a persistência de de-
safios consideráveis enfrentados no funcionamento operativo do SINASE, os quais
apresentavam padrões de abusos, maus tratos, tortura, falta de condições de segu-
rança, e deficiências estruturais nas instalações e na gestão desses centros322 .
316 ANCED, Relatório da situação dos direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil no âmbito da
justiça juvenil, pág. 11, novembro de 2018.
317 Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE/GO), Relatório de inspeção do Centro de Atendimento So-
cioeducativo (CASE) de Goiânia/GO, págs. 20-23, julho de 2017.
318 Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE/GO), Relatório de inspeção do Centro de Atendimento So-
cioeducativo (CASE) de Goiânia/GO, pág. 13, julho de 2017.
319 Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE/GO), Relatório de inspeção do Centro de Atendimento So-
cioeducativo (CASE) de Goiânia/GO, pág. 33, julho de 2017.
320 CIDH, Justiça juvenil e direitos humanos nas Américas, OEA/Serv.L/V/II. Doc. 78, par. 437, 13 de julho
de 2011.
321 CIDH, Justiça juvenil e direitos humanos nas Américas, OEA/Serv.L/V/II. Doc. 78, par. 443, 13 de julho
de 2011.
322 Comunicado de imprensa, “CIDH encerra visita ao Brasil”, 15 de dezembro de 2017.
também conhecido como ECA), define que são crianças as pessoas com até doze anos
de idade incompletos, e adolescentes aquelas entre doze e dezoito anos323 . Nesse sen-
tido, a Comissão toma nota com satisfação que a definição de criança e adolescente
na legislação brasileira está em consonância com aquela estabelecida pela Convenção
dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 21 de novembro de 1990324 .
218. Já o artigo 104 do Estatuto define que as pessoas menores de 18 anos de idade são
criminalmente inimputáveis, de maneira que não responderão por conduta delituo-
sa nos termos da legislação penal e processual, a qual apenas se aplica à população
adulta. Por outro lado, o ECA estabelece que são aplicáveis, ao adolescente que prati-
que um ato infracional, as medidas socioeducativas previstas no artigo 112, as quais
variam desde advertência à internação em estabelecimento educacional. 325 Quando a
conduta definida como ato infracional é praticada por criança, o Estatuto determina
a aplicação das medidas de proteção descritas no artigo 101, excluindo as crianças
das medidas socioeducativas. Dessa forma, o Estatuto estabelece a idade mínima de
12 anos para a submissão dos adolescentes à justiça juvenil especializada em conso-
nância com o artigo 40(3)(a) da Convenção dos Direitos da Criança.
219. A Assembleia Geral das Nações Unidas, ao adotar as regras de Beijing, recomendou
que não se deve fixar idade demasiadamente precoce para o começo da imputabili-
dade, devendo ser considerada a maturidade emocional, mental e intelectual da pes-
soa 326 . Por sua vez, o Comitê dos Direitos da Criança, interpretando o parágrafo 4 das
Regras de Beijing, concluiu que o estabelecimento de uma idade mínima menor que
12 anos para efeitos da responsabilidade penal não é internacionalmente aceitável e
recomendou que os Estados deveriam adequar as idades a esse mínimo absoluto e
seguir aumentando a idade progressivamente327. A CIDH também já se manifestou
no sentido de que os Estados devem garantir que as crianças e adolescentes que se-
jam acusados de cometer um delito não sejam processados penalmente sob as regras
de imputabilidade aplicável aos adultos, e que nenhuma criança abaixo da idade mí-
nima seja submetida à justiça juvenil especializada 328 .
323 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990, art. 2º,. Observa-se que a lei não faz a mesma ressalva quanto a idade
completa/incompleta, a exemplo do que foi indicado na definição de criança. Dessa forma, considera-se
que a linguagem do texto é intencional no sentido de incluir as pessoas com 18 anos completos na defi-
nição de adolescente.
324 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de
1990, Promulga a Convenção dos Direitos da Criança.
325 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
nº 8.069, de 13 de julho de 1990, art. 103. É considerado ato infracional a conduta descrita em lei como
crime ou contravenção penal. A lei considera a idade na data em que for praticado o ato infracional.
326 ONU, Regras mínimas das Nações Unidas para a administração da justiça juvenil, Resolução A/40/33, par.
4.1, 29 de novembro de 1985.
327 Comitê dos Direitos da Criança, Observação Geral nº 10, Os direitos da criança na justiça juvenil, CRC/C/
GC/10, par. 32, 25 de abril de 2007.
328 CIDH, Justiça juvenil e direitos humanos nas Américas, OEA/Serv.L/V/II. Doc. 78, par. 36, 13 de julho de 2011.
220. Nesse sentido, a Comissão observa que a legislação brasileira atual cumpre com os
parâmetros internacionais por estabelecer a inimputabilidade penal a todas as
crianças e adolescentes e a submissão à justiça juvenil especializada apenas aos ado-
lescentes, privilegiando a aplicação de medidas especiais socioeducativas, como for-
ma de estimular sua reintegração construtiva à sociedade329.
221. Não obstante, a CIDH vê com extrema preocupação as iniciativas legislativas que
buscam reduzir a idade de imputabilidade penal no Brasil, a exemplo da proposta de
emenda à Constituição (PEC) nº 171/1993, já aprovada pela Câmara dos Deputados e
que agora tramita no Senado Federal330 . A proposta visa reduzir a idade de imputa-
bilidade penal para 16 anos nos casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão
corporal seguida de morte. Mais recentemente, foi apresentada ao Senado Federal
a PEC Nº. 15/2019, que permitiria ainda a imputabilidade de adolescentes com ida-
de igual ou superior a 15 anos, a depender da avaliação do juiz sobre a consciência
quanto à ilicitude da conduta 331 .
223. A Comissão reitera que a aplicação de uma justiça juvenil especializada, focada em
um processo restaurativo e de reinserção social, é a política que melhor atende ao
interesse superior das crianças e adolescentes, em particular devido às diferenças
de natureza física e psicológica em relação aos adultos333 . Dessa forma, qualquer di-
minuição da idade de imputabilidade penal deve ser evitada. Ademais, a alta taxa de
329 O princípio da justiça restaurativa está presente no art. 40 da Convenção dos Direitos da Criança. Ver
também CIDH, Justiça juvenil e direitos humanos nas Américas, OEA/Serv.L/V/II. Doc. 78, par. 26, 13 de
julho de 2011.
330 A PEC nº 171/1993 foi enviada ao Senado Federal e tramita sob número 115/2015.
331 Senado Federal, Proposta de Emenda à Constituição nº 15 de 2019: prescreve a inimputabilidade penal
dos menores de dezesseis anos e estabelece as condições para imputabilidade dos maiores de quinze e
menores de dezoito anos, 14 de março de 2019.
332 Comitê dos Direitos da Criança, Observação Geral nº 10, Os direitos da criança na justiça juvenil, CRC/C/
GC/10, par. 30, 25 de abril de 2007.
333 CIDH, Justiça juvenil e direitos humanos nas Américas. OEA/Serv.L/V/II. Doc. 78, par. 26, 13 de Julho de 2011.
4. Comunidades terapêuticas
226. A Comissão toma nota de que em abril de 2018, o Poder Executivo anunciou a desti-
nação de 87 milhões de reais para atender a população das comunidades terapêuti-
334 CIDH, Informe sobre o uso da prisão preventiva nas Américas, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 46/13, par. 213, 30 de
dezembro de 2013.
335 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Secretaria Nacional de Política de Drogas, Ministério de Justi-
ça, Perfil das Comunidades Terapêuticas no Brasil, 2017.
336 Ministério da Justiça, “Comunidades Terapêuticas são tema de Conferência Latino-Americana”, 12 de ju-
lho de 2017.
337 Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conectas Direitos Humanos, Conselho Federal de
Psicologia e Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Open Society Fundations, 25 de outubro de 2018.
p. 2. Informações fornecidas à CIDH durante a visita in loco.
cas. 338 Diversas entidades locais, como o Conselho Federal de Psicologia e o Ministé-
rio Público Federal, se posicionaram contrariamente a essa decisão, alegando que o
financiamento dessas entidades contraria a necessidade de uma abordagem comuni-
tária para a promoção da saúde mental339. Ademais, registra-se que diversas organi-
zações da sociedade civil também se pronunciaram no mesmo sentido, assinalando
que esse tipo de investimento se dá em detrimento de tratamentos cujo método prin-
cipal é o da reabilitação e não o da internação340 .
227. Nesse sentido, um relatório publicado em 2017 pelo Conselho Federal de Psicolo-
gia, Ministério Público e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
apontou a inexistência de um marco regulatório coerente para o funcionamento
das comunidades terapêuticas no Brasil. Os órgãos governamentais relevantes têm
trabalhado com normativas que refletem distintos níveis de entendimento quanto
ao papel a ser desempenhado por estas instituições no marco de uma política de
cuidados e reabilitação 341 .
229. A ausência de mecanismos de controle pelo Estado abre espaço para que práticas ar-
bitrárias e violadoras de direitos humanos ocorram no âmbito destas instituições. A
CIDH foi brindada com informação que dá conta de variadas formas de violação de di-
338 Ministério da Justiça, Governo destina R$ 87 milhões a comunidades terapêuticas, 25 de abril de 2018.
339 Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradora Fe-
deral dos Direitos do Cidadão, Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, 2018.
340 Conectas Direitos Humanos, Conselho Federal de Psicologia e Plataforma Brasileira de Política de Drogas,
Informações fornecidas à CIDH no âmbito da reunião de trabalho da CIDH do169 POS, celebrada em7 de
julho de 2018.
341 CFP, MNPCT, PFDC, “Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas”, 2018.
342 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, LEI Nº 13.840, de 5 de junho de 2019.
343 Ministério da Saúde, Portaria Nº 3.449, de 25 de outubro de 2018.
344 Ministério da Cidadania, Portaria Nº 562, de 19 de março de 2019.
230. Ademais, a Comissão foi informada sobre a forte presença religiosa no funcionamento
dessas instituições. Sobre isso, a CIDH foi informada de que em muitas dessas insti-
tuições terapêuticas, o tratamento oferecido se baseia na prática religiosa e, por ve-
zes, em detrimento de atenção médica ou tratamento especializado. Ainda seguindo
a informação, esse tipo de atuação exigiria a submissão da pessoa internada a cren-
ças alheias às suas, em um processo de imposição348 , que em análise da CIDH poderia
violar o direito à liberdade religiosa das pessoas. De igual maneira, organizações da
sociedade civil denunciaram medidas dirigidas à doutrinação religiosa, à proibição de
manifestações de outras religiões distintas das da instituição, assim como à obrigação
de que pacientes participem de atividades religiosas sob ameaça de castigo físico349.
231. Em relação à internação forçada, ao tempo em que a Comissão toma nota da infor-
mação brindada pelo Estado da proibição peremptória para realizar internações
voluntárias ou involuntárias350, destaca que tanto o Mecanismo Nacional de Preven-
ção à Tortura como organizações da sociedade civil reportaram restrições à saída
de pessoas internadas. Na informação, estão reportados casos de pessoas que estão
345 Conectas Direitos Humanos, Conselho Federal de Psicologia e Plataforma Brasileira de Política de Drogas,
Informações fornecidas à CIDH em 7 de julho de 2018, no âmbito da sessão de trabalho do 169 ° período
ordinário de sessões, realizado em Boulder, Colorado, em outubro de 2018. Mecanismo Nacional de Pre-
venção e Combate à Tortura, Conectas Direitos Humanos, Conselho Federal de Psicologia, Plataforma Bra-
sileira de Políticas sobre Drogas, Open Society Fundations, Informações fornecidas à CIDH durante a visi-
ta in loco, 25 de outubro de 2018. p. 5.; Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção
e Combate à Tortura, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Relatório da Inspeção Nacional em
Comunidades Terapêuticas, 2018.
346 Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradora Fe-
deral dos Direitos do Cidadão, Ministério Público Federal, Relatório da Inspeção Nacional em Comunida-
des Terapêuticas, 2018. pp. 80 e 141; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório
de missão a unidades de privação de liberdade no estado de Roraima, 2017, parágrafo. 58.
347 Relator Especial sobre la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes, Informe del sobre
misión al Brasil del 3 al 14 de agosto de 2015, A/HRC/57/Add.4, 29 de janeiro de 2016. parágrafo 147.
348 Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradora Fe-
deral dos Direitos do Cidadão, Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, 2018. p. 80;
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de missão a unidades de privação de
liberdade no estado de Roraima, 2017, parágrafos 67 y 92.
349 Conectas Direitos Humanos, Conselho Federal de Psicologia e Plataforma Brasileira de Política de Drogas,
Informações fornecidas à CIDH em 7 de julho de 2018, no âmbito da sessão de trabalho do 169° período
ordinário de sessões, realizado em Boulder, Colorado.
350 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 48.
232. A CIDH chama a atenção para a informação adicional recebida que mostra que ado-
lescentes têm sido submetidos a tratamentos em comunidades terapêuticas, o que,
considerando a vulnerabilidade adicional a que estão sujeitos, assim como a impor-
tância da convivência familiar e comunitária, poderiam resultar em distintas viola-
ções. Particularmente, a Comissão expressa preocupação para o fato de que embora
o Ministério da Saúde estabeleça que as comunidades terapêuticas só podem receber
para internação pessoas adultas, inspeção nacional desses estabelecimentos verifi-
cou que alguns deles também internavam adolescentes, violando, portanto, o ECA.
Ademais, essas instituições não de valiam de qualquer meio para assegurar a prote-
ção e reabilitação, de maneira diferenciada, desses indivíduos353 .
351 Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradora
Federal dos Direitos do Cidadão, Ministério Público Federal, Relatório da Inspeção Nacional em Comu-
nidades Terapêuticas, 2018. pp. 57, 58 E 72; Conectas Direitos Humanos, Conselho Federal de Psicologia
e Plataforma Brasileira de Política de Drogas, Informações fornecidas à CIDH em 7 de julho de 2018, no
âmbito da sessão de trabalho do 169 ° período ordinário de sessões, realizado em Boulder, Colorado, em
outubro de 2018; Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura,
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Ministério Público Federal, Relatório da Inspeção Nacional
em Comunidades Terapêuticas, 2018.
352 Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradora Fe-
deral dos Direitos do Cidadão, Ministério Público Federal, Relatório da Inspeção Nacional em Comunida-
des Terapêuticas, 2018. pp. 57. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conectas Direitos
Humanos, Conselho Federal de Psicologia, Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas, Open Society
Fundations, 25 de outubro de 2018. p. 2. Informações fornecidas à CIDH durante a visita in loco.
353 Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradora Fe-
deral dos Direitos do Cidadão, Ministério Público Federal, Relatório da Inspeção Nacional em Comunida-
des Terapêuticas, 2018.
354 BBC News Brasil, Governo expôs dados pessoais de 1,3 mil adolescentes e outros 30 mil dependentes quí-
micos por 3 anos, 2 de julho de 2019.
355 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 48.
234. Por fim, levando em conta o que foi assinalado por diversos órgãos das Nações Uni-
das, a CIDH recorda que não está cientificamente comprovado que a privação da li-
berdade das pessoas que consomem drogas em centros hospitalares contribua para
a sua efetiva reabilitação357. Dessa forma, a CIDH reitera a importância de promo-
ver alternativas à privação de liberdade de pessoas que façam uso problemático de
drogas, mediante tratamentos de tipo ambulatorial, que evitem a institucionalização
das pessoas e que permitam uma abordagem dessa questão desde um enfoque de
saúde e direitos humanos358 .
B. PESSOAS MIGRANTES
235. A Comissão tem estabelecido que, ao mesmo tempo em que as migrações podem ge-
rar inúmeros benefícios, tais como o favorecimento do multiculturalismo e do cres-
cimento econômico, também impõe grandes desafios em relação aos direitos huma-
nos dos migrantes. Entre esses, os principais desafios estão ligados à persistência
de políticas, leis e práticas estatais que negam aos migrantes a condição de sujeitos
de direitos ou estabelecem um padrão discriminatório de tratamento, agravando a
situação de especial vulnerabilidade em que tendem a se encontrar 359.
236. No âmbito da visita, a CIDH pôde verificar o aumento da migração entre os países
do Cone Sul, facilitada pelos Acordos de Residência do Mercosul, destacando-se a
migração do povo boliviano para São Paulo. Além disso, merece especial menção a
migração haitiana após o terremoto de 2010, bem como a chegada massiva de pes-
soas venezuelanas como consequência da grave crise socioeconômica e política, bem
como da escassez de alimentos e a dificuldade de acesso a tratamentos médicos e
medicamentos na Venezuela. Nesse sentido, observa-se que houve um aumento ex-
pressivo no número de migrantes no Brasil entre 2006 e 2015, correspondendo a um
incremento de 160% 360 . Ademais, se considerado o período entre 2005 e 2016, esse
356 Conselho Federal de Psicologia, Conanda se posiciona contra a presença de adolescentes nas comunida-
des terapêuticas, 3 de junho de 2016.
357 Organización Mundial de la Salud, Principios de tratamiento de personas drogodependientes, março de
2008.
358 CIDH, Informe sobre medidas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas, OEA/
Ser.L/V/II.163 Doc. 105, 3 de julho, parágrafo 155.
359 CIDH, Derechos humanos de migrantes, refugiados, apátridas, víctimas de trata de personas y desplazados
internos: Normas y Estándares del Sistema Interamericano de Derechos Humanos.
360 G1, Em 10 anos, número de imigrantes aumenta 160% no Brasil, diz PF, 25 de junho de 2016.
aumento chega a 178%. Até 2018, os fluxos migratórios mais expressivos eram re-
presentados pelos haitianos, bolivianos, venezuelanos e sírios361 .
237. Em relação ao direito dos migrantes no país, a Comissão ressalta a nova Lei de Migra-
ção (Lei 13.445/2017), que modernizou o regime regulatório da migração e adotou
como eixo principiológico central os direitos humanos das pessoas migrantes. Nesse
aspecto, a lei incorporou o princípio de não criminalização da migração, bem como a
não discriminação e o repúdio à xenofobia. Da mesma forma, estabeleceu como me-
canismos de proteção o acolhimento humanitário, mediante a emissão de um visto
ou residência temporária para situações que não estavam previstas anteriormente,
tomando em consideração a experiência brasileira com os haitianos e a proteção de
apátridas362 . A CIDH também destaca a regulamentação desta lei por meio da edição
do Decreto Nº. 9.199/2017363 .
239. A CIDH também tomou nota que o Brasil recebeu mais de 80 mil pedidos de refúgio
em 2018, número que coloca o Estado como o sexto país de destino para refugiados
no mundo365 . A Comissão recebeu informações sobre os desafios nos processos de
avaliação dos pedidos de refúgio, tais como o atraso nos procedimentos, alguns dos
quais se encontravam há mais de dois anos aguardando parecer do Comitê Nacional
para os Refugiados (CONARE)366 . Em explicação recebida pelas instituições do Esta-
do, tal situação se deve, em parte, ao fato de que a legislação brasileira não estabe-
lece um prazo para a conclusão desses procedimentos. A isso soma-se o fato de que,
até março de 2018, havia 86.000 pedidos de asilo pendentes de resolução para serem
361 Ministério da Justiça e Segurança Pública, Brasil registra mais de 700 mil migrantes entre 2010 e 2018,
22 de agosto de 2018.
362 CIDH. CIDH saluda aprobación de la nueva Ley de Migración en Brasil, 16 de junho de 2017.
363 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 49.
364 Contribuição da sociedade civil para a CIDH sobre migrantes e refugiados, 9 de novembro de 2018.
365 Caritas, Atuação com migrantes e refugiados.
366 Folha de S.Paulo, Estrangeiro espera 2 anos por análise de pedido de refúgio no Brasil, 20 de junho de 2018.
240. Durante a visita, a Comissão recebeu informações que dão conta de casos graves de
inadmissibilidade de refugiados no aeroporto do Rio de Janeiro. Também conheceu
sobre a existência do Grupo de Trabalho sobre Inadmissibilidade em Guarulhos369,
que, junto com a Prefeitura de Guarulhos, o Ministério Público Federal, a Defensoria
Pública da União (DPU), o Ministério do Desenvolvimento e a Assistência Social do
Município de Guarulhos (SDAS) e o ACNUR, colabora com o Posto Avançado de Aten-
dimento Humanizado ao Migrante370 .
241. Durante a visita, a CIDH recebeu informações sobre a situação dos venezuelanos que
migraram para o Brasil, compondo o maior movimento migratório que o Brasil te-
ve na história recente. Segundo estimativas oficiais, em 2019, uma média de 500 ve-
nezuelanos cruzaram por dia a fronteira brasileira. Além disso, estima-se que cerca
de 264 mil venezuelanos vivem atualmente no Brasil, sendo que 37 mil com status
de refugiado reconhecido pelo Estado, tornando-o o país com o maior número de re-
fugiados venezuelanos reconhecidos na América Latina 371 .
242. Sobre isso, a Comissão toma nota com satisfação da decisão, de junho de 2019, do Co-
mitê Nacional para os Refugiados (CONARE) de reconhecer a condição de refugiados
a venezuelanos, aplicando a hipótese de grave e generalizada violação de direitos hu-
manos à situação da Venezuela 372 . Até outubro de 2019, o Brasil havia recebido mais
de 120 mil pedidos de refúgio de pessoas venezuelanas373, dos quais 46 mil haviam
sido concedidos374 .
367 G1, Brasil tem 86 mil estrangeiros aguardando resposta sobre refúgio e 14 funcionários para avaliar pe-
didos, 03 de março de 2018.
368 Contribuição da sociedade civil para a CIDH sobre migrantes e refugiados, 9 de novembro de 2018.
369 Contribuição da sociedade civil para a CIDH sobre migrantes e refugiados, 9 de novembro de 2018.
370 Ministerio Público Federal, MPF, instituições públicas e sociedade reforçam parceria para proteger mi-
grantes retidos no aeroporto de Guarulhos (SP), 25 de fevereiro de 2019.
371 ACNUR, Brasil torna-se o país com o maior número de refugiados venezuelanos reconhecidos na América
Latina, 31 de janeiro de 2020.
372 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 50.
373 Agência Brasil, Acnur: concessão de refúgio a venezuelanos pelo Brasil é um “marco”, 06 de dezembro
de 2019.
374 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Hu-
manos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 50.
243. Essa onda migratória também foi estimulada pela extensão, em março de 2017, da
Residência do Mercosul à Venezuela, implementando uma autorização de residên-
cia temporária de até dois anos para nacionais de países fronteiriços para os quais
o Acordo de Residência ainda não estava em vigor 375 . Essa medida foi seguida pelo
anúncio de que cidadãos venezuelanos, com permissão de residência temporária de
dois anos, poderiam solicitar residência permanente, desde que solicitassem três
meses antes da permissão temporária expirar, comprovassem meios de subsistência
e não tivessem antecedentes criminais376 .
244. Uma grande parte dos migrantes e solicitantes de refúgio venezuelanos chegaram
ao Brasil solicitando assistência humanitária urgente, o que gerou um aumento de
3.500% na demanda de serviços médicos em Roraima desde 2015377. Da mesma for-
ma, a CIDH tomou conhecimento de centenas de mulheres venezuelanas que migra-
ram em busca de assistência materna, o que resultou em 1.024 partos atendidos, re-
presentando 255% a mais do que em 2016378 .
245. Por outro lado, a Comissão pôde constatar a implementação da “Operação Acolhida”
como uma boa prática adotada pelo Estado, consistindo em um programa de coo-
peração entre os governos federal, estadual e municipal. Tal programa dedica-se à
atenção da chegada massiva de venezuelanos através dos centros de atendimento e
de um programa de realocação voluntária, distribuição de três refeições diárias, kits
de higiene, segurança, aulas de português, atividades para crianças, entrega de ma-
téria-prima para artesãos indígenas Warao, telefonemas para comunicação com pa-
rentes na Venezuela, entre outras atividades. A CIDH parabeniza a decisão do gover-
no de seguir com a implementação do programa mencionado379.
246. Após visitar Pacaraima e Boa Vista, no estado de Roraima, em particular o Centro
de Assistência e Triagem de Migrantes em Pacaraima, a CIDH observou que foram
implementadas medidas para garantir o direito de solicitar e receber refúgio, com
o intuito de que venezuelanos possam fazer a solicitação imediata de residência, ter
abrigo temporário e acessar documentos como o Registro de Pessoa Física (CPF) e a
Carteira de Trabalho (CTPS). Nesse sentido, a Comissão recebeu informação de que,
durante o primeiro ano da “Operação Acolhida”, foram atendidos 21.106 venezuela-
375 Conselho Nacional de Imigração, Resolução Normativa No. 126, 02 de março de 2017.
376 Ministério da Justiça e da Segurança Pública, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Trabalho,
Portaria Interministerial Nº 9, de 14 de março de 2018. “Art. 3º - O imigrante poderá requerer, no período
de noventa dias anteriores à expiração do prazo de dois anos previsto no § 1º do art. 1º, autorização de
residência com prazo de validade indeterminado desde que: I - não apresente registros criminais no Bra-
sil; e II - comprove meios de subsistência”.
377 BBC, Ataque a venezolanos en Brasil: disturbios en Pacaraima contra campamento de inmigrantes, 20 de
agosto de 2018.
378 G1, Os ‘brasilanos’: a geração de brasileiros filhos de venezuelanos que nasce em Roraima, 03 de novem-
bro de 2018.
379 Agência Brasil, Gobierno extiende programa de acogida a venezolanos, 18 de janeiro de 2019.
nos, dos quais 10.020 solicitaram refúgio e 10.970 solicitaram residência temporá-
ria 380 . Nesse período, foram emitidos 56.000 Cadastros de Pessoa Física (CPF), mais
de 22.000 consultas médicas e 53.000 vacinas foram aplicadas381 . Por sua vez, em
2017 e 2018, foram emitidas 35.515 CTPS382 .
249. No entanto, para a CIDH, permanece preocupante a situação dos migrantes que ain-
da se encontram em situação de rua e que aguardam acolhimento nos centros de
atendimento mencionados. Estes indivíduos se encontram expostos a um contexto
de extrema vulnerabilidade e, nesse sentido, recomenda-se que o Estado amplie a co-
bertura da política “Operação Acolhida”, a fim de garantir a inserção dessas pessoas
em situação de rua, bem como promova a garantia dos seus direitos.
250. Além disso, a CIDH recebeu informações de que, em 5 de agosto de 2018, a fronteira
em Roraima foi fechada devido a uma decisão judicial385 e apenas reaberta em 7 de
agosto, depois que o Tribunal Regional Federal da Primeira Região revogou a decisão
380 Presidência da República, Comitê Federal apresenta balanço de ações de acolhimento de venezuelanos,
04 de dezembro de 2018.
381 Nações Unidas, Agências da ONU lembram um ano da operação de acolhimento de venezuelanos, 29 de
março de 2019.
382 Presidência da República, Comitê Federal apresenta balanço de ações de acolhimento de venezuelanos,
04 de dezembro de 2018.
383 Presidência da República, Comitê Federal apresenta balanço de ações de acolhimento de venezuelanos,
04 de dezembro de 2018.
384 Presidência da República, Comitê Federal apresenta balanço de ações de acolhimento de venezuelanos,
04 de dezembro de 2018.
385 G1, Juiz manda suspender entrada de venezuelanos no Brasil pela fronteira de RR, 06 de agosto de 2018.
de fechamento386 . A Comissão repudia esse tipo de medida, pois viola o direito das
pessoas de deixarem livremente o território venezuelano, bem como de solicitar e
receber refúgio, proteção complementar ou outra resposta de proteção no Brasil387.
251. Além do número significativo de venezuelanos, nos últimos anos o Brasil também re-
cebeu migrantes de outras nacionalidades. Entre 2011 e 2015, por exemplo, o país
registrou a entrada de 65 mil haitianos388 . De igual maneira, segundo informação, os
sírios representaram 36% do número total de migrantes que obtiveram status de re-
fugiado no Brasil389. A Comissão observa que, no caso da migração de haitianos, exis-
tem dificuldades no acesso à documentação básica e aos serviços de educação, saúde
e emprego, demonstrando fragilidades no processo concessão de vistos humanitá-
rios e abrindo espaço para a atuação ilegal de intermediários e para a exposição ao
tráfico de pessoas390 .
386 France 24, Brasil reabre la frontera con Venezuela tras nueva orden judicial, 08 de agosto de 2018.
387 CIDH. Resolución 2/18. Migración forzada de personas venezolanas.
388 Geledes, Haitianos relatam rotina de humilhações e preconceito no Brasil, 21 de maio de 2018.
389 ACNUR, Dados sobre Refúgio no Brasil, 2019.
390 The Intercept Brasil, Nova onda de haitianos está vindo do Chile para o Brasil com a ajuda de coiotes, 16
de agosto de 2018.
391 BBC, Ataque a venezolanos en Brasil: disturbios en Pacaraima contra campamento de inmigrantes, 20 de
agosto de 2018.
392 The Intercept Brasil, Virou rotina agredir e assassinar venezuelanos em Roraima, 28 de novembro de
2019.
393 DW, Após conflito, 1.200 venezuelanos deixam Roraima, 19 de agosto de 2018.
394 DW, Inmigrantes venezolanos en Brasil: “Somos tratados como animales”, 24 de agosto de 2018.
395 BBC, Crisis en Venezuela: centenares de migrantes venezolanos en Brasil huyen de vuelta a su país después de
que uno de ellos fuera linchado, 10 de setembro de 2018.
254. A esse respeito, a Comissão toma nota da informação brindada pelo Estado que rela-
ta que a legislação brasileira repudia e prevê a prevenção à xenofobia, ao racismo e
quaisquer formas de discriminação397.
255. Por fim, a CIDH foi informada sobre denúncias de exploração e discriminação no traba-
lho, nas quais migrantes e refugiados relataram trabalhar mais horas que os nacionais
e receberem salários abaixo do pago aos demais trabalhadores brasileiros, além de
serem submetidos, em alguns casos, a condições de trabalho degradantes e jornadas
exaustivas398 . De acordo com uma pesquisa realizada pela OIM, 38,9% dos migrantes
venezuelanos no Brasil consideraram que foram vítimas de exploração laboral399.
256. A Comissão também teve notícia de trabalhadores migrantes que foram resgatados
de situações de trabalho análogo ao escravo, alguns deles em um contexto de tráfico
de pessoas, como o caso de 4 chineses vivendo em condições análogas às de escravos
em pastelarias do Rio de Janeiro400 . A esse respeito, a Comissão enfatiza as opera-
ções lideradas pelo Estado destinadas a combater o trabalho análogo ao escravo, co-
mo as que resultaram no resgate de 10 migrantes venezuelanos401 . Sobre isso, a CIDH
enfatiza a necessidade de redobrar esforços relativos à adoção de medidas que ga-
rantam uma resposta às vítimas, incluindo a prevenção, investigação e eventual pu-
nição desses fatos, sem discriminação, e com enfoque de gênero, assim como ações
informativas voltadas à conscientização da população no combate à xenofobia.
396 Contribuição da sociedade civil para a CIDH sobre migrantes e refugiados, 9 de novembro de 2018.
397 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 51.
398 DW, Venezolanos explotados en el norte de Brasil, 30 de agosto de 2018.
399 OIM, Monitoreo de flujo migratorio venezolano. Con énfasis en niñez y adolescencia, outubro de 2018.
400 Agência Brasil, Quatro Chineses são Resgatados de trabalho Escravo em Pastelarias do Rio, 22 de março
de 2016.
401 Presidência da República, Comitê Federal apresenta balanço de ações de acolhimento de venezuelanos,
04 de dezembro de 2018.
257. Ademais, a CIDH saúda a informação recebida do Estado no que diz respeito ao Ob-
servatório das Migrações Internacionais (ObMigra), que tem como objetivo ampliar
o conhecimento sobre fluxos migratórios e apontar estratégias para a construção de
novas políticas públicas dirigidas aos fenômenos migratórios. 402
C. PESSOAS LGBTI
258. O Brasil tem um grande desafio quanto à defesa e promoção dos direitos da popula-
ção LGBTI. Ao tempo em que registrou importantes avanços, segundo informação, o
país possui um dos maiores índices de violência contra as pessoas cuja orientação
sexual, identidade e/ou expressão de gênero e características sexuais divergem do
padrão aceito pela sociedade de toda discriminação e violência endêmicas que ocor-
rem no país. Para a CIDH, alcançar essa proteção envolve, essencialmente, a criação
e o fortalecimento de mecanismos voltados ao atendimento a essas pessoas, além de
políticas e projetos para promover seus direitos, incluindo a mudança cultural por
meio de uma educação inclusiva de perspectiva diversificada de gênero.
259. A CIDH tem destacado vários avanços na proteção dos direitos humanos das pessoas
LGBTI no Brasil. O reconhecimento de que essa população se encontra sob especial
risco permitiu ao Estado brasileiro a construção de uma institucionalidade parti-
cipativa representada pelo Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Pro-
moção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/
LGBT)403 e seus correspondentes nos estados e municípios. A CIDH observa que a
existência de conselhos com a representação dos segmentos da população LGBT tem
sido essencial para fazer chegar ao Estado as prioridades e desafios existentes.
260. Também no poder executivo, o Brasil se destaca por possuir uma Diretoria de Pro-
moção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, encarrega-
da pela coordenação e articulação de políticas públicas para a população LGBT. Essa
institucionalidade, criada em 2009 sob a forma de uma coordenação-geral404, tem sido
fundamental na criação de políticas públicas com sensibilidade para a questão LGBTI.
Nesse particular, a Comissão destaca o Programa de Combate à Violência e à Discrimi-
nação contra LGBT405, o Sistema Nacional de Promoção de Direitos e Enfrentamento à
Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Sistema Nacional
402 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 53.
403 Inicialmente criado em 2001 pela Medida Provisória 2216-37 de 31 de agosto de 2001 e modificado pelo
Decreto nº 7388, de 9 de dezembro de 2010.
404 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto nº 6.980, de 13 de outubro de 2009.
405 Presidência, Brasil sem homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de
Promoção da Cidadania Homossexual, 2004.
LGBT)406 , e o programa Rio Sem Homofobia. A CIDH apela para que o Brasil continue
avançando na institucionalidade da agenda de direitos humanos através da garantia
de sua permanência, da destinação de um orçamento adequado e de um pessoal trei-
nado para a manutenção de um trabalho eficaz na garantia desses direitos.
261. A CIDH observa que o Estado continua a apresentar um dos mais altos índices de
violência contra pessoas LGBTI na região. A esse respeito, a Comissão observa que
as pessoas LGBTI ainda são vítimas de altos níveis de violência praticadas com re-
quinte de crueldade, e que as pessoas trans são particularmente afetadas. Além dis-
so, a Comissão observa com preocupação uma tendência de regressão na proteção
e promoção dos direitos das pessoas LGBTI no país, o enfraquecimento do quadro
institucional nos mecanismos de garantia dos direitos humanos, especialmente das
pessoas LGBTI, bem como o aumento do uso de discursos que incitam ao ódio e que
tendem a aumentar as taxas de ataques contra pessoas de diferentes orientações se-
xuais e identidades de gênero.
263. Sobre o perfil das vítimas, de acordo com as informações recebidas pela CIDH sobre
o ano de 2018, os homens gays são as pessoas mais afetadas pela violência (191), se-
guido das pessoas trans (164), que em sua maioria são afrodescendentes, expondo a
interseccionalidade da discriminação. Além disso, essas estatísticas refletem que as
pessoas trans são mais expostas a mortes violentas e, em números absolutos, têm 17
vezes mais chances de serem mortas quando comparadas aos homens gays 410 . Assim
mesmo, a Comissão destaca a alta taxa de suicídio entre as pessoas LGBT que, segun-
do informações da sociedade civil, registrou-se 100 casos em 2018, representando
24% do total de mortes de pessoas LGBTI no Estado411 .
264. A CIDH também preocupa a violência sofrida por mulheres lésbicas, em particular
aquelas vítimas de violência sexual. Dados de 2017 apontam 2.379 casos de estupros
406 Lex Magister, Portaria Nº. 766, de 3 de julho de 2013, 3 de julho de 2013.
407 Universa, Falta de Dados Camufla Aumento da Violência contra População LGBTI, 5 de junho de 2019.
408 Rádio Senado, Brasil é o país onde mais se assassina homossexuais no mundo, 17 de maio de 2018.
409 Grupo Gay da Bahia, População LGBT Morta no Brasil 2018, pág. 01, 22 de setembro de 2017.
410 Grupo Gay da Bahia, População LGBT Morta no Brasil 2018, pág. 02, 22 de setembro de 2017.
411 Grupo Gay da Bahia, População LGBT Morta no Brasil 2018, pág. 10, 22 de setembro de 2017.
de lésbicas no país, o que corresponde a 6 vítimas por dia. Em 61% dos casos a mes-
ma vítima teria sido estuprada mais de uma vez 412 .
265. Por sua vez, embora o Brasil não possua legislação específica que criminalize atos
homofóbicos e transfóbicos, a Comissão tomou nota com satisfação da decisão do Su-
premo Tribunal Federal do Brasil no ano de 2019 que equiparou ao crime de racismo
(previsto na Lei 7.716/1989) toda a violência baseada em preconceito e discrimina-
ção com base na orientação sexual e identidade de gênero das vítimas 413 . A despeito
da decisão, faz-se ainda necessário que se construa um marco legislativo no país que
garanta, inequivocamente, a proteção da população LGBTI contra manifestações de
ódio e a discriminação.
266. A Comissão apela ao Estado para que tome todas as medidas necessárias para apli-
car a devida diligência para prevenir, investigar e sancionar a violência contra pes-
soas LGBTI, independentemente de a violência ocorrer no contexto da família, da co-
munidade ou da esfera pública, o que inclui instalações educacionais e de saúde. Da
mesma forma, no que se refere à investigação de crimes contra pessoas LGBTI, ou
aqueles que se consideram como tais, a Comissão apela aos Estados que investiguem
a possibilidade de que atos violentos foram cometidos devido à orientação sexual, as-
sim como a identidade e/ou expressão de gênero da vítima.
267. De igual maneira, a CIDH recebe com especial preocupação as informações sobre os
atos de violência cometidos contra pessoas trans e de gênero diverso. Segundo dados
da sociedade civil, 164 dessas pessoas foram violentamente assassinadas em 2018 414
e 124 em 2019, majoritariamente na região Nordeste415 . Segundo o levantamento de
2019, 80% desses crimes mostram alto requinte de crueldade, como o caso de Quelly
da Silva, mulher trans que, depois de morta na cidade de Campinas, no Estado de São
Paulo, teve seu coração arrancado e substituído por uma imagem religiosa416 . Além
disso, a Comissão observa a tendência de que essas vítimas sejam, na maioria das
vezes, afrodescendentes e sofram dessa violência nas ruas devido à sua situação de
extrema vulnerabilidade a que estão expostas 417.
268. Por sua vez, a Comissão também recebeu com preocupação informações de que o ní-
vel de pessoas trans vivendo com HIV varia entre 18% e 31% no país, enquanto a
412 Gênero e Número, “No Brasil, 6 mulheres lésbicas são estupradas por dia”, 22 de agosto de 2019.
413 BBC, STF aprova a criminalização da homofobia, 13 de junho de 2019.
414 Grupo Gay da Bahia, População LGBT Morta no Brasil, relatório GGB 2018,13 de junho de 2019.
415 Brasil de Fato, Em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, 29 de janeiro de 2020. ANTRA e
IBTE, Dossiê: assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019, 2020.
416 CIDH, Comunicado de imprensa No. 065/2019 – CIDH expresa preocupación por recientes ataques violentos
contra personas LGBTI en la Región, 14 de março de 2019.
417 CIDH, Informe Pobreza y Derechos Humanos, OEA/Ser.L/V/II.164 Doc. 147, 7 setembro 2017, parágrafo 443.
prevalência na população em geral é de 0,4% 418 . A CIDH lembra ao Estado que não
são as pessoas LGBTI que facilitam a propagação do HIV; pelo contrário, é a discrimi-
nação e a vulnerabilidade enfrentada por essas pessoas que as torna mais vulnerá-
veis à infecção419, e apela ao Brasil que crie e implemente políticas abrangentes para
garantir o direito das pessoas LGBTI, principalmente das pessoas trans, a acessar
serviços de saúde sem que estejam sujeitas à discriminação ou violência.
269. Assim mesmo, a Comissão tomou conhecimento da decisão do Supremo Tribunal Fe-
deral do Brasil de abril de 2018 que reconheceu a mudança de identidade de gênero
de acordo com o gênero percebido pela pessoa e por meio de um processo célere, sem
a necessidade de autorização judicial ou laudos médicos. Não obstante, de acordo
com as informações prestadas à CIDH durante a visita, o Provimento nº. 73 do Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ), que regula o processo de mudança, exige um grande
número de documentos e os processos ainda carecem de celeridade. Acrescente-se
a isso as várias demandas impostas pelos cartórios de registro civil e, às vezes, pelo
próprio sistema judicial420 . Espera-se que o Brasil possa definir, por meio de atos dos
três poderes, políticas públicas que consolidem esse progresso em termos de cidada-
nia e dignidade para a população trans.
270. Por fim, a CIDH observa com beneplácito que, segundo informado, as eleições de
2018 marcaram um recorde de candidaturas de pessoas trans. Organizações da
sociedade civil identificaram pelo menos 53 postulações de pessoas que se identi-
ficaram como trans ou de gênero diverso. 421 O número representa quase dez vezes
o registrado em 2014, quando apenas cinco candidaturas foram contabilizadas 422 . A
Comissão toma nota de que esse aumento segue a decisão do Tribunal Superior Elei-
toral (TSE) de expandir a interpretação dada ao termo “sexo” contido na Lei Eleitoral
de 1997, que deve ser lida como gênero. Dessa forma, a cota de 30% para candidatas
femininas passa também a beneficiar as mulheres trans 423 .
418 Naciones Unidas, No Dia Laranja, ONU Brasil aborda violência de gênero contra mulheres trans e traves-
tis, 25 de fevereirode 2019.
419 CIDH, Avances y Desafíos hacia el Reconocimiento de los Derechos de las Personas LGBTI en las Américas,
OAS/Ser.L/V/II.170, Doc. 184, 7 de dezembro de 2018, p. 10, parágrafo. 10.
420 Información recibida por la CIDH en el marco de la visita in loco realizada en 2018.
421 Nexo Jornal, O recorde de candidaturas de trans. E seus desafíos, 27 de setembro de 2018.
422 Nexo Jornal, O recorde de candidaturas de trans. E seus desafíos, 27 de setembro de 2018.
423 Nexo Jornal, O recorde de candidaturas de trans. E seus desafíos, 27 de setembro de 2018.
4 SEGURANÇA CIDADÃ
271. A Comissão observou uma piora nos indicadores de segurança e dados sobre violên-
cia desde seu último relatório sobre o país em 1997. A CIDH observa que esse quadro
tem implicado na afetação de distintos direitos humanos como os direitos à vida, à
integridade e à liberdade e à segurança pessoal424 . Ao tempo em que reconhece que
essa experiência impacta toda a sociedade, a Comissão nota com preocupação que
essa situação atinge especialmente os grupos expostos a situações de vulnerabili-
dade como os jovens afrodescendentes, pessoas indígenas, pessoas trans, comuni-
cadores sociais e defensores dos direitos humanos. A CIDH também reputa grave a
situação de violência contra as mulheres que incluem ataques e ameaças à vida, à
integridade física e à liberdade sexual.
424 CIDH, Informe sobre Seguridad Ciudadana y Derechos Humanos, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 57, 31 dezembro
2009. Par. 18.
425 CIDH, Comunicado de imprensa Nº. 271 - CIDH culmina su 170 Período de Sesiones, 18 de dezembro de 2018.
A. VIOLÊNCIA SELETIVA
274. Os dados oficiais mais recentes indicam um total de 57.358 homicídios no país no
ano de 2018. 427 Em termos proporcionais, isso resulta em uma taxa de 31,6 homicí-
dios por 100 mil habitantes, o que representando uma redução de 10.8% em com-
paração com o ano de 2017428 , quando pela primeira vez na história o país ultrapas-
sou a taxa de 30,8 por 100 mil habitantes 429. Em que pese essa redução, a Comissão
alerta para a informação de que os jovens entre 15 e 29 anos representam mais de
77,9% das vítimas de homicídios no ano de 2018. 430 Ademais, segundo dados de 2017,
o Brasil figura como o quinto país com as maiores taxas de homicídios de crianças
no mundo431 .
275. Contudo, a Comissão chama a atenção para a conexão entre essas mortes e a parcela
da população exposta à discriminação estrutural e os grupos expostos a situações
de especial vulnerabilidade. Nesse sentido, esses homicídios refletem a e potencia-
lizam a reprodução da desigualdade no país, seja em sua dimensão socioeconômica –
com vitimização desproporcional de afrodescendentes e pessoas expostas à pobreza
e à pobreza extrema –, seja em sua dimensão democrática – com a vitimização cres-
cente de defensores e comunicadores sociais.
276. A CIDH pode constatar, com extrema preocupação, que as mortes violentas no Brasil
não incidem de forma aleatória em parcelas da população. Essas tendem a vitimar
desproporcionalmente segmentos sociais que sofrem da discriminação estrutural
e, por conseguinte, estão expostos à violência estrutural interseccional, principal-
426 CIDH, Informe sobre Seguridad Ciudadana y Derechos Humanos, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 57, 31 de dezembro de 2009.
427 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Violência em Números 2019, 26 de junho de 2019.
428 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Violência em Números 2019, 26 de junho de 2019.
429 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Edição 2018 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2018.
430 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Violência em Números 2019, 12 de julho de 2020.
431 Save the Children, En Deuda con la Niñez – Informe sobre la Niñez en el Mundo 2017, 31 de maio de 2017.
277. Isso representou uma taxa de homicídios dessa parcela da população de 43,1 por 100
mil habitantes, ao tempo em que a taxa para o restante da população foi de 17 por
100 mil. 435 Análises inferenciais, ou seja, que calculam a probabilidade de um indi-
víduo ser vítima de homicídio com base em suas características sociodemográficas,
também encontram nas características étnico-raciais um fator determinante436 .
279. A Comissão pôde observar que os fatores de risco de vitimização de homicídio as-
sociados a raça e classe não são independentes, mas se somam na medida em que
incidem sobre pessoas situadas na intersecção dessas características de forma que
uma pessoa jovem, que já é estatisticamente mais propensa a se tornar uma vítima
de homicídio, corre risco ainda maior se for afrodescendente do gênero masculino e/
ou morador de áreas periféricas de grandes cidades. A CIDH entende que, nesse sen-
tido, a dinâmica é extremamente adversa para a solidificação de uma cultura de paz
e respeito aos direitos humanos no país, pois faz com que segmentos inteiros da po-
pulação vivam em meio a um sentimento de constante perigo e incerteza. Isso, ade-
mais, gera desconfiança em relação às próprias instituições do Estado.
280. A CIDH toma nota ainda dos dados dos registros de ocorrências policiais de 2018,
coletados pelo Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisional e
432 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Violência em Números 2019, 12 de julho de 2020.
433 Atlas da Violência 2019. Brasília: Ipea e FBSP, pp. 49 e seguintes.
434 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Edição 2017 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2017.
435 Atlas da Violência 2019. Brasília: Ipea e FBSP, pp. 49 e seguintes.
436 Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho. “Democracia Racial e Homicídios de Jovens Negros na Cida-
de Partida”. Texto para Discussão n. 2267. Brasília: Ipea, 2017.
437 RIBEIRO, Eduardo; CANO, Ignacio. Vitimização letal e desigualdade no Brasil: evidências em nível muni-
cipal. Civitas - Revista de Ciências Sociais, [S.l.], v. 16, n. 2, p. 285-305, set. 2016. ISSN 1984-7289. Acesso
em: 12 jun. 2020. Pág. 288 e 289.
sobre Drogas – SINESP, que foram apresentados pelo Estado na audiência pública
Sistema Penal e Denúncias de Violações dos Direitos das Pessoas Afrodescendentes no
Brasil, os quais sugeriram reversão na tendência histórica de aumento da violência
letal no país. 438 A esse respeito, toma nota dos questionamentos de estudiosos de
segurança pública em relação à confiança dos dados utilizados pelo SINESP dadas
as dificuldades apresentadas na coleta uniformizada da informação por parte dos
estados da federação 439.
281. Assim mesmo, a Comissão observa que estes novos números mostram que a diminui-
ção dos homicídios não ocorre de maneira uniforme no país. Ao contrário, enquanto
em algumas unidades subnacionais (estados e um municípios) houve considerável
diminuição, a CIDH destaca que em outras houve notável aumento das cifras de ho-
micídios. Ademais, nota-se que mesmo que o número agregado de mortes violentas
possa estar em queda, cresce o número de mortes em decorrência de ação policial,
os quais, na maioria das vezes, tem como vítimas afrodescendentes jovens do sexo
masculino e em situação de pobreza ou pobreza extrema440 . Em especial, o estado do
Rio de Janeiro, vem registrando recordes históricos no número desses eventos, o que,
segundo informado, tem levado especialistas a cogitarem de um processo de “estati-
zação” das mortes de pessoas 441 .
282. A CIDH mantém, portanto, recomendação para que o Estado garanta o direito à se-
gurança aos seus cidadãos, especialmente aos grupos historicamente expostos à dis-
criminação estrutural, de acordo com os parâmetros adotados no âmbito do sistema
interamericano. Dessa forma, a CIDH insta o Brasil a projetar e colocar em operação
planos e programas de prevenção social, comunitária e situacional, visando enfren-
tar os fatores que favorecem a reprodução de comportamentos violentos na socie-
dade, em particular. Adicionalmente, urge-se treinar as forças policiais para o uso
adequado da força letal dentro da estrutura e dos padrões internacionais, especial-
mente os Princípios Básicos das Nações Unidas sobre o Uso da Força e Armas de Fogo
por Autoridades Policiais.
438 CIDH, 172 Período de Sessões, Audiência Pública Sistema Penal e Denúncias de Violações dos Direitos das
Pessoas Afrodescendentes no Brasil, 9 de maio de 2019.
439 Folha de São Paulo, Governo Bolsonaro monitora crimes com banco de dados incompleto, 2019.
440 O Globo, Vítimas de letalidade policial são mais jovens’, diz pesquisador; em 80 horas, cinco morreram no
Rio, 2019.
441 Rede de observatórios de Segurança, Operações policiais no Rio: helicópteros e mortes, 2019.
283. Em sua visita ao país, a Comissão Interamericana havia recebido, com preocupação,
diversos relatos e registros sobre o surgimento, a atividade e a expansão de organi-
zações criminosas no Brasil como o Primeiro Comando da Capital, Comando Verme-
lho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, e outras
associações como localmente denominadas. A CIDH observa que esses grupos orga-
nizados, comumente chamados de “facções criminosas”442 , exploram atividades ilíci-
tas – em especial o tráfico de drogas – cujos negócios invariavelmente se expandem
para incluir roubos de carga, sequestros, lavagem de dinheiro, entre outros. Tais ne-
gócios, por sua vez, dependem do controle de territórios (em geral, comunidades ex-
postas a uma situação de especial vulnerabilidade) e mercados consumidores para
os produtos produzidos ou negociados ilicitamente. Esse processo de garantia e con-
trole dos territórios gera conflitos com os agentes de segurança pública, bem como
com outras organizações criminosas.
284. A respeito, a CIDH foi informada que a diversificação e expansão dessas organizações
criminosas têm tido impacto em distintos aspectos da segurança pública, tais como na
gestão dos centros de detenção, na corrupção de agentes públicos, no controle de áreas
e comunidades socialmente vulneráveis e nas mortes violentas443 . Nesse sentido, con-
forme informação acessada pela Comissão, existem coincidências entre as variações
nos indicadores de homicídios por estado e os conflitos dentro dessas organizações
criminosas, ou entre algumas delas444 . A CIDH observa que no sistema prisional, em
particular, os conflitos entre organizações criminosas têm se mostrado diretamente
relacionados a massacres e rebeliões com saldos de centenas de mortes.
285. Por outro lado, a Comissão destaca a informação sobre existência de grupos para-
militares chamados de milícias. Essas organizações criminosas são formadas por
policiais ou ex-policiais que surgiram para alegadamente combater o tráfico de dro-
gas, mas que acabaram por se tornar gestoras de uma série de atividades ilícitas, in-
cluindo assassinatos e outros tipos de violência. 445 Assim como com o narcotráfico,
o domínio das milícias sobre territórios tira proveito da ausência ou insuficiência do
Estado (e até mesmo do mercado) na oferta de serviços para comunidades carentes
(por exemplo, de transporte e gás de cozinha). A provisão desses serviços pelas milí-
442 Diversas obras culturais contribuíram para a popularização do conhecimento sobre essas facções, a
exemplo dos livros, filmes e séries como Elite da Tropa, Cidade de Deus e Tropa de Elite.
443 Bruno Paes Manso e Camila Caldeira Nunes Dias, A guerra – A ascensão do PCC e o mundo do crime no
Brasil, 2. Ed, São Paulo: Todavia, 2018.
444 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e FBSP, Atlas da Violência 2019, 2019, pp. 11.
445 Ignácio Cano e Thais Duarte, “No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)”, Rio
de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012 (com dados da CPI das milícias da Assembleia Estadual do Rio
de Janeiro).
286. Os registros disponíveis indicam que esse controle despótico dos territórios pelas
milícias se traduz em maior acesso ao poder do Estado, o que as fortalece ainda mais.
Em áreas dominadas por “milícias”, a competição eleitoral é coibida pelo uso da força
e da violência com o favorecimento de candidatos a cargos eletivos comprometidos
ou ao menos não hostis a essas organizações e sua capacidade de controlar territó-
rios e intermediar a oferta de serviços 448 . A Comissão nota que essa relação promís-
cua promove a formação de uma ampla rede de proteção ou, no mínimo, favoreci-
mento aos negócios gerenciados por essas organizações criminosas, permitindo que
permaneçam e floresçam nos territórios ocupados.
287. A CIDH chama a atenção para as múltiplas violações de direitos envolvidas no funcio-
namento dessas organizações, tais como na forma como as facções fazem o recruta-
mento e a gestão de seus “filiados”; na disputa por rotas de tráfico de drogas e armas,
inclusive transnacionais; nas dinâmicas opressivas que essas organizações insti-
tuem nos territórios os quais estabelecem a base para seus negócios; e na condução
de suas atividades criminosas 449.
288. Por outro lado, a CIDH recorda que a melhor maneira de lidar com a violência, in-
segurança e criminalidade é por meio de políticas públicas abrangentes e holísticas,
levando em consideração as várias causas estruturais, o trabalho sobre fatores de
risco, bem como reforçar os fatores de proteção que existem.
289. Ademais, reafirma que, para combater esse tipo de violência, é necessária a colabo-
ração de vários setores e instituições de maneira coordenada, incluindo agentes e
forças de segurança, as instituições de justiça. Assim mesmo, como uma medida pre-
ventiva para evitar que essas organizações se fortaleçam e proliferem, é essencial
entender a relação entre o crime organizado e as desigualdades, gerando uma res-
posta também na garantia ao acesso à saúde e educação de qualidade, aos serviços
446 Ignácio Cano e Thais Duarte, “No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)”, Rio
de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012 (com dados da CPI das milícias da Assembleia Estadual do Rio
de Janeiro).
447 G1, Medo das milícias supera o de traficantes em comunidades do Rio, diz Datafolha, 18 de fevereiro de 2019.
448 Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquéri-
to Destinada a Investigar a Ação de Milícias no Âmbito do Estado do Rio de Janeiro, 2008.
449 Karina Biondi, Sharing This Walk: An Ethnography of Prison Life and the PCC in Brazil, University of North
Carolina Press, 2016; Gabriel Feltran, Irmãos – Uma história do PCC, São Paulo: Companhia das Letras,
2018; Estadão, Domínios do Crime, 10 anos dos Ataques do PCC; UOL, 25 Anos De PCC, 2018; Ignácio Cano
e Thais Duarte, “No Sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)”, Rio de Janeiro:
Fundação Heinrich Böll, 2012.
sociais, ao emprego, à cultura, ao esporte e lazer. Essas políticas devem ser capazes
de responder às necessidades de curto, médio e longo prazo no que diz respeito à se-
gurança e à observância dos direitos humanos 450 .
291. De igual maneira, a Comissão toma nota que a Constituição Federal do Brasil de 1988
garantiu a liberdade de imprensa em seu art. 5, IX e art. 220, bem como a liberdade de
associação (art. 5º, XVII). 452 Não obstante, as estatísticas de violência e insegurança
(inclusive pelas mortes violentas) demonstram que o Brasil segue se mostrando hos-
til à atividade dos jornalistas e comunicadores sociais, bem como de ativistas e defen-
sores de direitos humanos. A CIDH vê esse quadro com preocupação, tendo em vista
suas implicações para a manutenção de desigualdades estruturais e históricas.
293. De igual maneira, durante a visita ao país, a CIDH recebeu informação de que co-
municadores sociais sofreram graves agressões, tanto por meios virtuais como por
meios físicos, na cobertura da última campanha eleitoral para as eleições de 2018.
Essas notícias indicaram que entre os meses de janeiro a outubro daquele ano, no
450 CIDH, Violencia, niñez y crimen organizado, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 40/15, 11 de novembro de 2015.
451 Relatoria Especial para Liberdade de Expressão, Preliminary Evaluation Of Freedom Of Expression In Gua-
temala, item 36, 2000.
452 Presidência da República, Constitituição da República Federativa do Brasil, 11 de junho de 2020.
453 CIDH, Informe Anual de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos 2015, p. 76-78.
454 Conselho Nacional do Ministério Publico. Violência contra comunicadores no Brasil: um retrato da apura-
ção nos últimos 20 anos, 2019. Para 2015, a ENASP e o CNMP registraram 8 ocorrências, número menor
que aquele documentado pela Relatoria da CIDH.
294. Ainda no contexto da visita, recebeu-se informação por parte do governo brasileiro,
de que comunicadores sociais ameaçados em função de seu trabalho seriam incluí-
dos como grupo especificamente protegido no Programa de Proteção aos Defenso-
res de Direitos Humanos. A CIDH recebeu com beneplácito a notícia de que em 3 de
setembro de 2018, essa ampliação do escopo do Programa foi oficializada por meio
da nº. 300, do então Ministério dos Direitos Humanos, quando a política passou a ser
denominada “Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comuni-
cadores Sociais e Ambientalistas”. Além disso, o governo informou da ampliação do
orçamento dedicado a esse programa para os exercícios de 2019-20. A CIDH saúda o
Estado brasileiro pela adoção de tais medidas.
296. Por sua vez, em junho de 2018, a CIDH condenou os assassinatos de defensores e de-
fensoras de direitos humanos, especialmente em casos envolvendo a defesa do meio
ambiente, dos direitos dos trabalhadores rurais, e do direito à terra em meio rural.
Durante a visita, a CIDH pode comprovar, por informação recebida, sobre o aumento
desses casos. De acordo com relatório publicado em 2017 pela Comissão Pastoral da
Terra (CPT)460, durante aquele ano foram registrados 71 homicídios de ativistas ou
defensoras e defensores de direitos no campo, o que representou um aumento signi-
455 Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). 8 de outubro de 2018. Abraji registra mais de
130 casos de violência contra jornalistas em contexto político-eleitoral.
456 CIDH, Criminalización de la labor de las defensoras y los defensores de derechos humanos, 2015.
457 É o caso de milícias ou esquadrões da morte, por vezes formados por integrantes de forças de segurança,
que serão abordados adiante neste capítulo e em outras partes deste relatório.
458 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei Nº 13.260, de 16 de Março
de 2016.
459 CIDH, Comunicado de Imprensa No. 238/18, CIDH conclui visita ao Brasil, 2018.
460 CPT, Conflitos no Campo Brasil 2017.
ficativo em relação às 61 mortes dessa mesma natureza em 2016, assim como aos 50
casos de 2015. Na esteira desse crescimento, a sociedade civil apontou que, em 2017,
o Brasil se tornou o país com o maior número de assassinatos de defensoras e defen-
sores do meio ambiente no mundo461 . No mesmo sentido, a CIDH reitera seu repúdio
e preocupação com o assassinato com requintes de execução da vereadora Marielle
Franco462 , que hoje ainda se encontra em investigação no nível estadual463, bem como
a admoestação de Jean Wyllys 464 , ambas figuras públicas e detentoras de mandatos
legislativos que atuavam na defesa dos direitos humanos. Nesse sentido, a Comissão
Interamericana reitera veementemente que ataques a representantes eleitos devem
ser considerados como ataques à própria democracia, e, por conseguinte, devem ser
investigados com a máxima minúcia, incluindo o intuito de esclarecer as motivações
do crime, além de seus responsáveis materiais e intelectuais julgados e sancionados.
297. A CIDH anota que a exposição de defensores e defensoras de direitos humanos à vio-
lência no Brasil tem chamado a atenção da comunidade internacional. Segundo le-
vantamento da fundação Front Line, o Brasil teria figurado, em 2018, como o 5º país
com o maior número de homicídios de defensores e defensoras de direitos humanos
no mundo465 . Por fim, a CIDH aduz preocupação com a segurança dessas pessoas, des-
tacando o dever positivo do Estado e da sociedade brasileira de lhes garantir a vida,
a liberdade, e a integridade física a que tem direito, como cidadãos do país, e sem as
quais não são capazes de exercer suas atividades profissionais, políticas e cívicas.
C. RESPOSTA DO ESTADO
298. A CIDH registra que, desde a produção de seu último relatório para o Brasil em 1997,
houve avanços na formulação de políticas públicas compatíveis com normas e parâ-
metros dos paradigmas da segurança cidadã. Muito embora o Estado não tenha lo-
grado transformar estruturalmente as instituições de segurança pública depois da
transição democrática, muitos avanços incrementais foram sendo alcançados, in-
cluindo a edição da Lei Nº. 13.675/2018, que instituiu Sistema Único de Segurança
Pública (SUSP). Em que pesem tais avanços, a CIDH ressalta a persistência e, em mui-
tos casos, a prevalência, na política criminal, penitenciária e de segurança pública
461 Global Witness, At what cost? Irresponsible business and the murder of land and environmental defen-
ders in 2017.
462 CIDH, CIDH repudia assassinato de vereadora e defensora de direitos humanos no Brasil.
463 A Comissão toma nota da decisão de negação de deslocamento de competência na investigação e julga-
mento do caso. A respeito, veja-se: STJ, Caso Marielle: investigação sobre mandantes do crime fica no Rio
de Janeiro, 27 de maio de 2020.
464 CIDH, Resolução 85/2018, Medida Cautelar No. 1262-18, Jean Wyllys de Matos Santos e família em relação
ao Brasil.
465 Front Line Defenders, Front Line Defenders Global Analysis 2018, 2019.
1. Avanços, interrupções e riscos de retrocessos na formulação de políticas
públicas de segurança compatíveis com normas a parâmetros de direitos
humanos (segurança cidadã)
300. A CIDH toma nota dos esforços realizados pelo Brasil, em especial a partir dos anos
1990, para reorganizar o arcabouço político-institucional e alterar sua abordagem
no enfrentamento da violência e da criminalidade, assegurando o respeito aos di-
reitos humanos. A respeito, a Comissão toma nota da criação, em 1997, da Secre-
taria Nacional de Segurança Pública, no âmbito do então Ministério da Justiça, a
qual passou a representar uma unidade de coordenação de proposições reformis-
tas até então dispersas na agenda federal. 466 Assim mesmo, destaca o plano nacio-
nal de segurança pública denominado O Brasil diz não à violência, no ano 2000, o
qual, apesar de algumas limitações, trazia proposições condizentes com uma abor-
dagem de segurança cidadã, tais como a “integração operacional das policiais” e
a “integração de programas sociais de prevenção”467, complementado pelo Fundo
Nacional de Segurança Pública, de 2001, que habilitou o governo federal a induzir
mudanças significativas na segurança pública468 .
466 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto nº 2.315, de 4 de setem-
bro de 1997.
467 Fabio de Sá e Silva, ‘Nem isto, nem aquilo’: trajetória e características da política nacional de segurança
pública (2000-2012) In: Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, p. 412, 2012; Entre o Plano e o Sis-
tema: o impasse da segurança pública, In: Boletim de Análise Político-Institucional, v. 3, p. 37-44, Brasília:
Ipea, 2013.
468 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro
de 2001.
302. Assim mesmo, em 2007, o Estado lançou o Programa Nacional de Segurança Pública
com Cidadania (PRONASCI) que estendeu a experiência dos GGIs para os municípios,
onde atuam guardas municipais e se dá a implementação de diversas políticas so-
ciais relevantes para a prevenção da violência e da criminalidade470 . Assim mesmo, é
importante destacar a visão holística dessa política, que fomentou projetos de pre-
venção em territórios vulneráveis, estimulou práticas de “policiamento de proximi-
dade” e promoveu políticas de formação e valorização de agentes da segurança pú-
blica por meio do Bolsa Formação e da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança
Pública (RENAESP). Dessa forma, a CIDH valora positivamente a experiência do PRO-
NASCI no adensamento de um paradigma da segurança cidadã na consciência e na
prática de gestores e operadores da segurança nas três esferas de governo.
303. Por outro lado, a Comissão ressalta os esforços do Brasil para suprir a lacuna históri-
ca de participação social na governança da segurança pública no período em análise.
A respeito, em 2009, a CIDH sublinha a 1ª Conferência Nacional de Segurança Públi-
ca (I CONSEG). De igual maneira, no mesmo ano, instalou a primeira composição do
Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), que congregou representantes
do governo (1/3), dos trabalhadores da segurança pública (1/3) e da sociedade civil
(1/3) na tarefa de discutir e propor mudanças nas políticas de segurança. 471
304. A Comissão Interamericana toma nota das críticas feitas pela sociedade civil quanto
aos limites desses esforços sucessivos de reorganização, na medida em que eles não
teriam sido capazes de superar a herança institucional da política de segurança na-
cional implementada até os anos 90. Contudo, também se tem a compreensão de que
mudanças de paradigma estrutural tomam determinado período para surtir efeitos.
Nesse sentido, também que as mudanças seguiram sendo implementadas até o ano
469 Fabio de Sá e Silva, ‘Nem isto, nem aquilo’: trajetória e características da política nacional de segurança
pública (2000-2012) In: Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 6, p. 412, 2012; Entre o Plano e o Sis-
tema: o impasse da segurança pública, In: Boletim de Análise Político-Institucional, v. 3, p. 37-44, Brasília:
Ipea, 2013.
470 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 11.530, de 24 de outubro
de 2007.
471 Alberto Liebling Kopittke Winogron, Fernanda Alves dos Anjos e Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira,
“Reestruturação do Conselho Nacional de Segurança Pública: desafios e potencialidades”, Revista Brasilei-
ra de Segurança Pública, ano 4, v. 6, p. 146-159, 2010; Fabio de Sá e Silva e Fabio Deboni, “Participação so-
cial e governança democrática na segurança pública: possibilidades para a atuação do Conselho Nacional
de Segurança Pública.” Texto para Discussão 1714. Brasília: IPEA, 2012.
2018, quando o Estado editou a Medida Provisória nº. 821 (convertida, depois, na Lei
nº. 13.690, de 10 de julho de 2018), que criou, na estrutura federal, o Ministério da
Segurança Pública472 . Pouco depois, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº. 13.675,
de 11 de junho de 2018, que criou uma Política Nacional de Segurança Pública e Defe-
sa Social (PNSPDS) e instituiu um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)473 .
305. A Comissão chama a atenção para o fato de que a Lei nº. 13.675/2018 estabeleceu,
como princípios e fundamentos da PNSPDS e do SUSP, a mesma importância entre a
prevenção e a repressão (art. 4º, incisos V e VI), a atuação articulada entre União, Es-
tados e Municípios (art. 5º, inciso IV) e suas respectivas forças de segurança, o pla-
nejamento estratégico e sistêmico de ações (art. 5º, II), assim como a participação
social (artigos 4º, VII, 5º, XIV e 24, III), especialmente mediante Conselhos (artigos
6º, V, 9º, § 1º, II e 19). A lei também instituiu mecanismos para o monitoramento e a
gestão da informação, como o SINESP, citado acima, bem como a produção de estu-
dos e a formação profissional em segurança; além de ter buscado vincular a destina-
ção dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário
Nacional ao cumprimento, por estados e municípios, das metas e objetivos a serem
definidos no âmbito do “sistema” que instituiu.
306. A CIDH entende que os termos da PNSPDS e do SUSP são, em geral, condizentes com
os parâmetros interamericanos de segurança cidadã, na medida em que conjugam
ações de prevenção e repressão, de maneira planejada e refletida, com a integração
entre diferentes esferas de governo e forças de segurança, e com base no permanen-
te diálogo entre Estado e sociedade. A CIDH saúda o Brasil pelo progresso alcançado
no período em análise e insta o Estado a continuar investindo em políticas de segu-
rança cidadã.
307. Para tanto, a Comissão ressalta que a produção de dados é um fator fundamental no
desenho, implementação e monitoramento das políticas públicas de segurança. So-
bre isso, a Comissão volta a ressaltar o avanço representado pela Lei Nº. 13.675/2018
(SUSP e PNSPDS), a qual prevê a adoção de uma base nacional de informações e indi-
cadores em segurança pública. Na análise da CIDH a implementação desse dispositi-
vo, que deve estar desagregado por idade, raça/etnia, gênero e orientação sexual e
localidade, ajudaria a identificar situações em que as mortes ocorreram pela atuação
das polícias.
308. Assim mesmo, a CIDH recorda que as políticas públicas devem prever condições de
trabalho dos funcionários públicos, como policiais e outros agentes encarregados da
segurança cidadã, de forma a evitar que estes trabalhem sob condições de estresse e
de risco, de maneira que se destaca o vínculo estrito entre a melhoria em suas con-
309. Por outro lado, a CIDH contrasta esses avanços com o surgimento de diversas ou-
tras medidas que foram e seguem sendo adotadas no país em detrimento dos parâ-
metros de direitos humanos estabelecidos pelo Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. A esse respeito, a CIDH observa, com preocupação, a deterioração das es-
truturas de governança da segurança no período subsequente à aprovação da Lei nº.
13.675/2018. Destaca-se que, em 2019, no contexto de sua última reforma adminis-
trativa, o governo brasileiro voltou a juntar os Ministérios da Justiça e da Segurança
Pública, o que poderia gerar, na opinião da Comissão, retrocessos na implementação
da agenda de segurança cidadã. A CIDH recorda ao Estado sobre suas obrigações in-
ternacionais no âmbito da defesa e promoção dos direitos humanos e urge para que
quaisquer mudanças na estrutura institucional preservem a capacidade de imple-
mentação dos programas em matéria de segurança pública com o enfoque dos parâ-
metros da segurança cidadã.
310. A CIDH também expressa sua preocupação para retrocessos relativos à participação
social na governança da segurança, dado a agenda de diminuição das instituições
participativas na estrutura do Estado, que acabou por extinguir o Conselho Nacional
de Segurança Pública474 , eliminando, assim, o espaço de maior grau de participação
da sociedade civil em detrimento daqueles com composição mais restrita a agentes
estatais. Além disso, a Comissão deixa registrada a informação recebida pelo Estado
de que essa mudança teria sido no esforço de realizar a melhoria da participação so-
cial uma vez que haveria abundância de espaços com esta finalidade475 .
311. A CIDH observa com imensa preocupação o fato de que parte significativa e crescen-
te da violência letal no Brasil é causada pela ação de agentes estatais. Segundo dados
das Secretarias Estaduais, entre 2009 e 2018 um total de 35.414 pessoas foram mor-
474 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei 13.675, 11 de junho de 2018.
475 CIDH, Comunicado de imprensa 248/19: CIDH culmina su 173º Período de Sesiones. Anexo: Resúmenes de
Audiencias 173 Período de Sesiones, 4 de outubro de 2019.
tas em decorrência de ação policial (em serviço e fora de serviço). Entre 2013 e 2018,
esse número aumentou em 178,5%, saltando de 2.212 para 6.620. No mesmo período,
o número geral de mortes aumentou em 6,5%, saltando de 53.646 para 57.117476 .
312. No estado de São Paulo, por exemplo, entre abril de 2007 e maio de 2017, mais de
cinco mil pessoas morreram em decorrência de ações da polícia militar. 477 Embora
esses números tenham caído em 2018, voltaram a subir no primeiro trimestre do
ano de 2019, que, segundo os dados, apontam para 182 casos de pessoas mortas em
decorrência de ação policial em todo o estado. Segundo a informação, esse número
trata-se de 24% a mais que no mesmo período do ano anterior. A CIDH anota que es-
se crescimento ocorre na mesma medida em que declinam o número total de mortes
(–5%) e de criminalidade violentas (–9%), de tal maneira que aumenta a participa-
ção da letalidade policial na letalidade violenta (de 18% no 1º trimestre de 2019 para
19% no mesmo período de 2019)478 .
313. Por outro lado, segundo estudo da Fundação das Nações Unidas para a Infância (UNI-
CEF), o número de crianças e adolescentes mortos em São Paulo entre 2014 e 2018
em decorrência de ação policial, chegou a superar o número de mortos em outras
circunstâncias (homicídios, latrocínio, acidentes de trânsito, suicídio, feminicídio e
lesão corporal seguida de morte). Foram 580 mortes em decorrência de ação policial,
contra 527 das demais mortes. Nota-se ainda mais preocupante que os números de
mortes não decorrentes de ação policial sofreram uma queda de 50% no período as-
sinalado479, o que, na análise da Comissão, tende a indicar que a elevada mortandade
de crianças e adolescentes ocorreu por conta da ação policial.
314. Da mesma forma, no Rio de Janeiro, as mortes provocadas por ação policial nos cinco
primeiros meses do ano 2019 atingiram proporções verdadeiramente históricas. Se-
gundo dados do Instituto de Segurança Pública do Estado (ISP-RJ), houve 731 de mor-
tes por ação policial no período, 20% a mais que o contabilizado no mesmo período
de 2018.480 Números que indicam uma média de 4,87 mortos por dia, a mais elevada
da série estatística registrada em 21 anos.481 Preocupa a CIDH, ademais, o fato de que
segundo a informação, considerados os primeiros cinco meses de cada ano, os agentes
policiais foram responsáveis por 38,7% em 2019, um aumento de 22.4% em dois anos.
476 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, 26 de junho de 2019.
477 Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de
Maio de 2006 na perspectiva da antropologia forense e da justiça de transição - relatório final, 2019. Pág. 15.
478 Instituto Sou da Paz, Sou da Paz Analisa – Estatísticas Criminais no Estado de São Paulo, 1º Trimestre, 2019.
479 Deutsche Welle, Em São Paulo, crianças e adolescentes na mira da polícia, 21 de junho de 2019.
480 Rede de observatórios de Segurança, Operações policiais no Rio: mais frequentes, mais letais, mais assus-
tadoras, 2019.
481 Estadão, Com 434 mortes, letalidade policial no Rio no 1º trimestre de 2019 é a maior em 21 anos, 2019.
315. Faz-se mister registrar, ainda, que a maioria das vítimas dessas mortes é de jovens,
negros e pobres. Segundo a informação acessada pela Comissão, em estados especí-
ficos estima-se que as pessoas afrodescendentes estejam entre 60-65% das vítimas
em São Paulo482 e por 90% no Rio de Janeiro. 483 Adicionalmente, em São Paulo, quase
80% desses mortos em 2018 tinham até 29 anos. 484
316. Se bem o recorte de situação socioeconômica raramente estar presente nos dados,
a CIDH destaca que em 2018, o Ouvidor da Polícia Militar de São Paulo comentou à
imprensa que 27% das vítimas foram mortas na condição do que foi caracterizado
como ‘fundada suspeita’, ou seja, a ideia preconcebida por agentes policiais devido
à situação socioeconômica e étnico-racial das pessoas de que essas cometeram ou
cometerão algum ato criminoso485 . Sobre isso, a Comissão recorda ao Estado a ne-
cessidade de se abolir todas as práticas que utilizem estereótipos com base étnico
racial, socioeconômico, bem como qualquer outra situação de cunho discriminatório
por parte de agentes de segurança pública e profissionais da justiça.
317. A CIDH chama a atenção para o fato de que esse tipo de violação de direitos por parte do
Estado brasileiro já foi objeto de apuração e contencioso no SIDH. No caso “Favela Nova
Brasília vs. Brasil”486, em que foram evidenciados não apenas as deficiências graves e
estruturais nos métodos de investigação, persecução e sanção no âmbito criminal, mas
também nos padrões de uso excessivo da força e racismo institucional pelas forças de
segurança contra as pessoas que vivem em favelas. Nesse sentido, a Comissão recorda
ao Estado a obrigação de se “adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de
Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial”487.
318. Não obstante, segundo depoimentos das vítimas recebidos pela CIDH durante a visi-
ta, esses padrões persistem e continuam informando execuções extrajudiciais siste-
máticas e em massa, principalmente contra jovens afrodescendentes de sexo mascu-
lino expostos à situação de pobreza e pobreza extrema. Além disso, a CIDH destaca
o caso relatado sobre uma operação da Divisão Especial de Investigação e Captura
(Deic) da Polícia Civil de Alagoas, na área rural de Santana do Ipanema, naquele esta-
do, que haveria resultou em 11 mortes 488 .
482 UFSCAR, Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo, 02 de abril de 2014; UOL, Em SP, 64%
das pessoas mortas pela PM no ano passado eram pretas ou pardas, 4 de março de 2019.
483 UOL, 9 em cada 10 mortos pela polícia no Rio são negros ou pardos, 26 de julho de 2017.
484 UOL, Em SP, 64% das pessoas mortas pela PM no ano passado eram pretas ou pardas, 4 de março de 2019.
485 UOL, Em SP, 64% das pessoas mortas pela PM no ano passado eram pretas ou pardas, 4 de março de 2019.
486 Corte IDH, Sentencia de 16 febrero de 2017, excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas, pár. 01,
208, 323.
487 Corte IDH, Sentencia de 16 febrero de 2017, excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas, pár. 369.
488 UOL, Polícia vai apurar ação que matou 11 em Alagoas após fotos vazadas e suspeita de execução. 10 de
novembro de 2018.
319. A Comissão foi informada, ademais, que as execuções extrajudiciais passaram a ser
um traço característico na resposta a ataques por facções organizadas ou grupos cri-
minosos contra a polícia, na retaliação, por agentes do Estado, contra as instabilida-
des provocadas por esses grupos em disputas pelo controle do território, como o ca-
so ocorrido em 2006 em São Paulo. Segundo informação disponível, em maio daquele
ano, uma facção criminosa deflagrou rebeliões em diversos estabelecimentos penais
do estado, assim como ataques a várias delegacias e estações policiais e de seguran-
ça pública no estado. Tais fatos geraram uma ação de resposta por parte de agentes
estatais e grupos de extermínio, resultando na violência exacerbada, execuções su-
márias, chacinas, centenas de homicídios e diversos desaparecimentos489, que viti-
maram cerca de 564 pessoas 490 .
320. Ainda de acordo com a informação, essa contra ação da polícia teria envolvido um
padrão de execução no qual as vítimas foram atingidas por grandes quantidades de
disparos em regiões de alta letalidade (cabeça e tronco) e, na maioria dos casos, fei-
tos pelas costas e à curta distância. Além disso, foi relatado alteração do local do cri-
me pelos agentes do Estado ou ausência de testemunhas, o que dificulta ou impede
uma investigação mais aprofundada. 491 Adicionalmente, a Comissão toma nota das
notícias de que os agentes de segurança teriam forjado “provas” contra as vítimas
para justificar as execuções. Segundo informação da sociedade civil e própria mãe
de uma das vítimas do caso, “existem duas polícias, uma que mata e outra que não
investiga (...) em um país que apesar de não contar com pena de morte, essa é selada
pelo fuzil do [agente] policial (...) no intuito de ‘tratar’ a pobreza” (sic) e ainda com-
plementa que “não se pode conceber criar um filho para ser morto pelo Estado usan-
do balas do imposto que elas mesmas [mães] pagam com seu trabalho (...)” comple-
mentando que essa violência não afeta somente a pessoa que foi morta, mas também
gera um impacto irreparável nas suas famílias. Segundo a fala da mãe que perdeu
seu filho “isso [ação violenta das forças de segurança do Estado] mata não só seus
filhos, mas também a elas mesmas” (sic)492 .
321. Outro exemplo envolve uma operação da Polícia Militar do Estado da Bahia na Vi-
la Moisés, Bairro do Cabula, em 6 de fevereiro de 2015. O evento resultou na morte
de 12 jovens, na grande maioria negros, além de 6 sobreviventes com diversos fe-
rimentos. Na operação, foram disparados 143 tiros, 88 dos quais cravaram o corpo
das vítimas. De acordo com a polícia, a ação visava capturar assaltantes de caixas-
-eletrônico, que se refugiaram no bairro do Cabula e com os quais houve intensa tro-
489 Secretaria de Direitos Humanos, Relatório Sobre os Crimes de Maio de 2006, 2013.
490 Agência Brasil, Crimes de Maio causaram 564 mortes em 2006; entenda o caso, 12 de maio de 2016.
491 UNIFESP, Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da antro-
pologia forense e da justiça de transição, 2018, p. 214.
492 CIDH, Audiências Públicas realizadas no 167º Período de Sessões: Denúncias de execuções extrajudiciais
pela polícia no Brasil, 01 de março de 2018.
322. A CIDH também registra haver recebido notícias sobre um possível massacre, em 01
de fevereiro de 2018, nas favelas de Coroa, Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres, região
central da cidade do Rio de Janeiro. Segundo as informações recebidas pela Comis-
são, após uma operação policial com a participação do Batalhão de Operações Espe-
ciais (BOPE) e do Batalhão de Choque, quinze jovens habitantes da região teriam si-
do assassinados no que vem a ser a operação policial no Rio de Janeiro com o maior
número de mortes nos últimos doze anos 494 . Além disso, teve-se notícia do assassi-
nato de pelo menos nove pessoas em 20 de janeiro de 2019, na Marambaia, cidade de
Itaboraí, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. O massacre teria ocorri-
do após o assassinato do policial militar Rodrigo Marques Paiva495 .
323. Mais recentemente, a Comissão condenou a ação policial da polícia militar do estado
de São Paulo, realizada na favela de Paraisópolis em 1º de dezembro de 2019, que
teria gerado pânico e tumulto entre os frequentadores de uma festa popular de rua
- “baile funk” – e, na tentativa de evacuar o local, as pessoas teriam pisoteado as ou-
tras, resultando em 9 pessoas mortas, incluindo dois adolescentes, um de 14 e outro
de 16 anos, além de deixar ao menos 7 feridos 496 .
324. Dessa forma, destaca que as consequências sociais dos efeitos da violência institu-
cional são devastadoras para as famílias e afetam profundamente o tecido social das
comunidades. Nesse contexto, as vítimas e familiares que se reuniram com a CIDH
durante a visita relataram o grave impacto em suas vidas em decorrência de atos de
violência praticados pelos agentes policiais. Esse sentimento, associado à impunida-
de pelas violações de direitos humanos cometidas por agentes dos estatais, gera uma
“cultura de violência” e cria um ambiente de desconfiança nas instituições do Estado,
bem como a falta de segurança.
325. A Comissão observa que, como no caso das 26 pessoas executadas na favela de No-
va Brasília, no Rio de Janeiro, em 1995 e 1996, os agentes policiais utilizam da fi-
gura do auto de resistência, um excludente de ilicitude que põe o peso das ações na
reação das vítimas, para encobrir seus crimes. 497 Sobre isso, a CIDH ressalta que,
por força de resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia
Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil, publicada em 04 de ja-
neiro de 2016 498 , mortes como as de maio de 2006 em São Paulo, assim as de Nova
Brasília, deixaram de ser registradas como “autos de resistência” e passaram ca-
racterizadas como “homicídios resultante da oposição à intervenção policial”. A CI-
DH saúda o Estado por essa mudança, já que permite maior transparência e contro-
le social em relação à atuação das forças de segurança. No entanto, a CIDH pondera
que a nova terminologia ainda poderia gerar uma presunção de culpabilidade por
parte da vítima, ao supor que estaria agindo em oposição ou resistência às opera-
ções policiais 499.
497 United Nations Human Rights Council, Report of the Special Rapporteur on extrajudicial, summary or arbi-
trary executions, Philip Alston - Follow-up to country recommendations – Brazil, 28 de maio de 2010.
498 Departamento de Polícia Federal, Conselho Superior de Polícia, Resolução conjunta nº 2, de 13 de outubro
de 2015.
499 Amnistía Internacional, Nota Pública: Resolução do Conselho Superior de Polícia mantém a lógica dos “au-
tos de resistência”, 5 de janeiro de 2016.
500 Human Rights Watch. Brasil: Violência Policial Continua Sem Freios, 18 de janeiro de 2018
501 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, 2019.
328. A abundante quantidade de informação recebida durante a visita, assim como cole-
tadas em audiências públicas502 e outros mecanismos da Comissão, permite que se
conclua sobre o envolvimento ou mesmo a ação de agentes estatais em violações do
direito à vida (art. 4, 1 da CIDH), à integridade pessoal (art. 5 da CIDH), bem como
supressão das garantias judiciais (art. 8 da CIDH), estabelecidos pelo SIDH. Especial-
mente em relação ao primeiro, a Comissão reitera que o direito à vida é o mais fun-
damental dos direitos humanos, uma vez que é a base para o exercício de todos os
outros direitos. Nesse sentido, o artigo 4 da Convenção Americana declara que “toda
pessoa tem o direito de ter sua vida respeitada (...) Ninguém pode ser arbitrariamen-
te privado da vida”. A Convenção estabelece com absoluta clareza que o direito à vida
não pode ser suspenso sob nenhuma circunstância, incluindo em casos de flagrante
confronto com o crime organizado.
329. A CIDH enfatiza que essas violações tendem a se dar em desfavor de grupos especí-
ficos, como pessoas afrodescendentes e pessoas em situação de pobreza e pobreza
extrema. Dessa forma, considerando as gravíssimas violações de direitos humanos,
de acordo com os parâmetros interamericanos de uso da força, uso sistemático, con-
tínuo, e massivo de execuções extrajudiciais, individuais e coletivas que possuem a
participação das forças de segurança, a Comissão Interamericana ressalta a poten-
cial caracterização da responsabilidade internacional do Estado quanto à prática do
crime de lesa humanidade503 .
330. Finalmente, a CIDH reitera que o uso da força deve basear-se nos princípios de direito,
de absoluta necessidade e proporcionalidade. Em outras palavras, o uso da força é um
último recurso que deve ser limitado tanto qualitativamente quanto quantitativamen-
te, sendo mobilizado apenas para evitar um episódio mais sério do que aquele que le-
vou a intervenção do Estado, sem que ele seja utilizado como forma de controle social
letal. Dessa forma, recorda a obrigação do Estado de identificar, julgar e sancionar os
responsáveis por esses e outros fatos similares de maneira expedita e exaustiva.
502 Sobre isso, veja-se em: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Audiências Públicas realizadas
no: 175º Período de Sessões: Violência policial contra a população afrodescendente no Rio de Janeiro e
São Paulo, Brasil; 173º Período de Sessões: Combate à tortura no Brasil, 27/09/2019; 168º Período de
Sessões: Denúncias de violações de direitos humanos no âmbito da intervenção federal no Rio de Janei-
ro, 08/05/2018; 167º Período de Sessões: Denúncias de execuções extrajudiciais pela polícia no Brasil,
01/03/2018; 165º Período de Sessões: Segurança cidadã e situação dos direitos humanos nas favelas do
Rio de Janeiro, 23/10/2017; 154º 168º Período de Sessões: Denúncias de assassinatos de jovens afrodes-
cendentes no Brasil, 20/03/2015.
503 Grupo Interdisciplinario de Expertos independiente, Informe GIEI Nicaragua - Informe sobre los hechos de
violencia ocurridos entre el 18 de abril y el 30 de mayo de 2018, pág. 226 e 226.
331. No Brasil, uma parcela importante da segurança pública está debaixo da lógica
militarizada, sendo grande a força responsável pelo policiamento ostensivo e pela
preservação da ordem pública, ou seja, que atua de maneira mais próxima à popula-
ção. Após a redemocratização do país, as ações de segurança foram colocadas intei-
ramente sob os cuidados de civis, ainda que tenha sido mantida, na Constituição do
país, uma organização de caráter militar (a polícia militar), que, segundo informação,
é a responsável por grande parte da violência e mortes cometidas por agentes do Es-
tado no Brasil504 . Além disso, a CIDH vê com extrema preocupação a tendência de mi-
litarização das políticas de segurança no Brasil.
333. A CIDH observou com bastante preocupação que em 16 de fevereiro de 2018, o go-
verno brasileiro editou o Decreto n. 9.288506 , o qual decretou intervenção federal no
Rio de Janeiro e transferiu o comando das forças de segurança pública do estado pa-
ra um general do Exército. A respeito, durante a visita, a Comissão recebeu informa-
ções acerca do Plano Estratégico do Gabinete de Intervenção Federal - Rio de Janeiro
(GIF-RJ), o qual envolveu diferentes linhas de ação emergencial e estruturais visando
reforçar as capacidades da polícia e do sistema penitenciário. Por sua parte, o Estado
ressaltou que o plano de intervenção incluiu ações relacionadas aos direitos huma-
nos, tais como o recrutamento de profissionais de saúde e a doação de medicamen-
tos; e afirmou que houve uma melhora significativa nos indicadores de crimes contra
a vida e contra a propriedade.
504 NY Times, “Licança para Matar: por trás do ano recorde de homicídios cometidos pela polícia do Rio, 18
de maio de 2020; veja-se também: G1, Conselho da ONU recomenda fim da Polícia Militar no Brasil, 30 de
maio de 2012; Conselho de Direitos Humanos da ONU, Revisão Periódica Universal – Brasil, 9 de julho de
2012; Istoé, Brasil diz não à ideia da ONU de pôr fim à PM, 19 de setembro de 2012.
505 Ministério da Defesa, Histórico de Operações de GLO 1992-2019.
506 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto Nº 9.288, de 16 de feve-
reiro de 2018
334. Por outro lado, o Observatório da Intervenção, coordenado pelo Centro de Estudos
de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, concluiu que
a implementação do Plano Estratégico resultou em um quadro preocupante, ob-
servando que índices sensíveis de violência permanecem elevados, como tiroteios,
massacres (chacinas) e mortes violentas e mortes decorrentes de ações das autori-
dades do Estado. De fevereiro a dezembro de 2018, ocorreram 6.041 mortes, sendo
1.375 em decorrência de ação policial e houve mais de 100 mil roubos. 507 Assim
mesmo, os homicídios tiveram queda de 8,2%, mas as mortes em decorrência de
ação policial aumentaram em 33,6% 508 . Além disso, não se avançou na luta contra
o crime organizado por meio de mudanças na gestão da polícia, integração e in-
teligência. Em mesmo sentido, um estudo coordenado pelo Ouvidor da Defensoria
Pública do Estado do Rio, que teve como base em mais de 300 relatos de moradores
das comunidades, identificou 30 tipos de violações praticadas sistematicamente
pelas autoridades estatais sob a Intervenção Federal, como roubo e furto, danos
ao patrimônio, violência sexual, extorsão, ameaças e agressões físicas, execuções,
disparos aleatórios, entre outros509.
335. Em 2018, a CIDH e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos
(ACNUDH) manifestaram profunda preocupação com a edição e as possíveis conse-
quências do Decreto n. 9.288/2018, que autorizou a intervenção federal com a utiliza-
ção das forças armadas no Rio de Janeiro. A esse respeito, alertaram para o impacto
desproporcional que uma intervenção de caráter militar na segurança pública pode
ter sobre os direitos humanos, em especial dos afrodescendentes, dos adolescentes
e dos que residem nas áreas mais pobres. 510 Além disso, lembraram que o Estado de-
veria limitar ao máximo o uso das forças armadas para o controle de distúrbios in-
ternos. Isso se deve ao fato de que o treinamento que recebem é destinado a derrotar
militarmente um inimigo, e não para promover a proteção e controle de civis.
337. De acordo com a doutrina e a jurisprudência constante dos órgãos do sistema inte-
ramericano de proteção dos direitos humanos, reitera-se também que a jurisdição
militar, além de apresentar sérios problemas para que a administração da justiça se-
ja imparcial e independente, essa jurisdição não é foro competente para investigar
e, julgar e punir autores de violações de direitos humanos. De fato, em seu relatório
sobre o caso Vladimir Herzog vs. Brasil, a CIDH enfatizou que a jurisdição militar deve
ser aplicada somente quando houver um ataque contra bens jurídicos e penais por
ocasião das funções particulares de defesa e segurança do Estado, e nunca para in-
vestigar violações de direitos humanos515 .
338. Nesse mesmo sentido, a Comissão vem reiteradamente afirmando que: “[o] sistema
de justiça criminal militar possui certas características particulares que impedem o
acesso a um recurso judicial eficaz e imparcial nesta jurisdição. Uma delas é que a ju-
risdição militar não pode ser considerada como um verdadeiro sistema judicial pois
não faz parte do Poder Judiciário, e sim depende do Poder Executivo. Outro aspecto
é que os juízes do sistema judicial militar, em geral, são membros do Exército em ser-
viço ativo, o que os coloca em posição de julgar seus companheiros de armas. Tal fato
torna ilusória a exigência de imparcialidade, uma vez que os membros do Exército
muitas vezes se sentem obrigados a proteger aqueles que lutam ao lado deles em um
contexto difícil e perigoso516 .
339. Pode-se exemplificar as graves preocupações destacadas nesta seção com o even-
to ocorrido em 7 de abril de 2019, quando o veículo em que se encontrava o músico
Evaldo Rosa dos Santos, um homem afrodescendente, acompanhado de amigos e fa-
512 Corte IDH, Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, Sentença de 24 De Novembro
De 2010. Par. 257.
513 Ministério público Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 5901, 2018.
514 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, IBCCRIM pede para atuar como amicus curiae em ADI sobre a
lei que transfere para a Justiça Militar o julgamento de oficiais das Forças Armadas acusados da prática
de crimes dolosos contra a vida, 13 de março de 2018.
515 CIDH. Informe No. 71/15 Caso 12.879, Informe de Fondo Vladimir Herzog y Otros Vs. Brasil, 28 de outubro
2015, parágrafo 174.
516 CIDH. Informe No. 71/15 Caso 12.879, Informe de Fondo Vladimir Herzog y Otros Vs. Brasil, 28 de outubro
2015, parágrafo 176.
340. Na ocasião, o Exército emitiu nota alegando que os militares se depararam com um
“assalto em andamento” e teriam reagido a tiros disparados por criminosos a bordo
do veículo. Perícias, testemunhas e mesmo vídeos gravados por moradores518 evi-
denciaram que se tratava de uma família que se dirigia a um chá de bebê. Mais tarde,
o Exército afirmou que sua primeira nota fora emitida com base em “informações
iniciais transmitidas pela patrulha” e que houve “confusão” em relação a outro veí-
culo, esse sim envolvido em ocorrência criminosa. Inicialmente, dez militares pre-
sentes na ação foram presos519. Porém, em 23 de maio de 2019, o Superior Tribunal
Militar (STM) concedeu liberdade a esses agentes. Para além do uso completamente
desproporcional da força que vitimou Evaldo e Luciano, do viés de raça e classe que
possivelmente guiaram a operação, e das aparentes tentativas do Exército de forjar
uma justificativa para o curso de ação adotado. 520 O caso reitera as dúvidas sobre a
capacidade da justiça militar de apreciar, com isenção, a conduta de pares suscitadas
pela Comissão.
342. Da mesma forma, a CIDH foi comunicada sobre o projeto de lei Nº. 9432/17, já apro-
vado pela Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional, que propõe re-
517 O Globo, Os 257 tiros contra o carro de Evaldo dos Santos Rosa, 23 de maio de 2019.
518 Canal do The Intercept Brasil no Youtube, 80 tiros: Exército fuzilou o carro de uma família em Guadalupe,
8 de abril de 2019.
519 The Guardian, Brazil: 10 soldiers arrested after firing more than 80 bullets into family’s car, 8 de abril de
2019.
520 UOL, 80 tiros: STM decide soltar militares presos por mortes de músico e catador, 23 de maio de 2019; No
julgamento do STM, a Ministra Maria Elizabeth Rocha afirmou textualmente: “Ao utilizar-se da mentira,
que comprometeu o Comando Militar do Leste e a própria credibilidade do Exército, eles influíram para
que viessem aos autos o ofício três fotos de viaturas atingidas. Tais viaturas, de fato, possuem marcas de
tiro. Mas se trata de veículos completamente diferentes dos usados na ação. Ou seja, os militares forja-
ram, com informações inidôneas, que haviam sido alvejados na ação”.
521 CIDH, Relatório Nº 26/09 - Caso 12.440 Admissibilidade e Mérito (Publicação) Wallace de Almeida, 2009 ,
item 4 das recomendações.
formar o Código Penal Militar propondo um novo conceito de “legítima defensa”, que
seria mais amplo. Segundo informação, a nova proposta adota o conceito de legítima
defesa ponto IV do projeto de Lei Anticrime, que visa: 1. permitir que os juízes re-
duzam a pena pela metade, ou deixem de aplicá-la, se o excesso, na legítima defesa,
“decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção” (proposta de nova reda-
ção para o art. 23 do Código Penal); 2. incluir entre as hipóteses de legítima defesa a
ação de policiais “em conflito armado ou risco de conflito armado” e na presença de
reféns (proposta de nova redação para o art. 25 do Código Penal); e 3. permitir que a
autoridade policial deixe de prender ou que a autoridade judiciária conceda liberda-
de provisória a acusados de crimes que aparentam terem sido praticados em “legíti-
ma defesa” (proposta de nova redação para os artigos 309 e 310 do Código de Pro-
cesso Penal)522 . Ademais, em 23 dezembro de 2019, foi aprovado o Decreto Nº. 10.189,
o qual concede indulto a policiais que, no exercício da sua função ou em decorrência
dela, tenham cometido crime com excesso culposo523 .
343. Sobre isso, a CIDH recebeu manifestação de diversas organizações da sociedade civil
e das profissões jurídicas, alertando para o risco de que essas alterações criem, em
favor da polícia e de particulares, uma espécie de “licença para matar”. Em face des-
sas manifestações, a CIDH realizou audiência pública, na qual recebeu manifestação
do Estado. Referida manifestação buscou justificar tais medidas com base na explo-
são da violência letal e na necessidade de dissuadir a prática desses crimes, inclusive
com menção a teorias econômicas da criminalidade.
344. Por sua vez, a Comissão destaca que o processo de militarização e os altos padrões
de violência estabelecidos por essa lógica também geram riscos para os funcioná-
rios públicos encarregados da segurança dos cidadãos, assim como para suas fa-
mílias. Segundo informações, entre 2009 e 2016, 2.996 agentes das forças de se-
gurança foram mortos durante o serviço ou nas horas de descanso524 . No âmbito
da visita, a CIDH se reuniu com familiares de agentes das forças de segurança que
expressaram sua preocupação pela impunidade desses crimes. A Comissão recorda
ao Estado a necessidade de adoção de medidas de profissionalização dos agentes
do Estado responsáveis pela segurança dos cidadãos, bem como de uma política
pública que tome em conta a segurança e os direitos dos agentes do Estado encar-
regados de sua aplicação.
345. A CIDH volta a afirmar que, segundo o paradigma da segurança cidadã, a produção
da segurança deve ser vista não apenas como produto da punição de crimes, inclu-
522 Câmara dos Deputados, CCJ aprova mudanças no Código Penal Militar com novo conceito de legítima de-
fesa, 28 de novembro de 2019.
523 Presidência da República, Decreto Nº 10.189, 23 de dezembro de 2019.
524 Ipea - Zilli, Luís. Letalidade e Vitimização Policial: características gerais do fenômeno em três estados
brasileiros. Nº 17. 71-80, 2018.
346. Da mesma forma, a CIDH reitera que os Estados têm a obrigação de garantir a segu-
rança e salvaguardar a ordem pública e, portanto, tem o poder de usar a força para
garantir esses fins. No entanto, esse poder é limitado pela observância dos direitos
humanos, cujo gozo implica não apenas a obrigação do Estado de não infringir tais
direitos, mas também de exigir a proteção e a preservação dos direitos humanos.
Portanto, as ações do Estado no cumprimento de suas obrigações de segurança de-
vem garantir que qualquer risco aos direitos básicos seja minimizado, garantindo o
estrito cumprimento dos princípios e parâmetros internacionais. A CIDH roga, assim,
ao Estado brasileiro, que pondere sobre a adequação entre suas políticas públicas de
segurança e esses princípios e parâmetros.
4. Controle de armas
348. A CIDH recorda que, em 2003, o Brasil logrou aprovar legislação avançada em ma-
téria de controle de armas (Lei Nº. 10.826), restringindo o acesso destas a agentes
525 CIDH, Informe Sobre Seguridad Ciudadana y Derechos Humanos, 2009, Pág. 7-8.
526 Ipea e FBSP, Atlas da Violência 2019. 2019. Pág. 42.
527 Ipea e FBSP, Atlas da Violência 2019. 2019. Pág. 42.
do Estado com poder de polícia, bem como aos que comprovarem efetiva necessida-
de, segundo requisitos rígidos528 . A Comissão destaca que estudos encontraram evi-
dência de que essa legislação foi capaz de frear significativamente o crescimento das
mortes violentas intencionais no país. Segundo se pôde estimar, na ausência dessa
legislação, a taxa de homicídios teria crescido 12% a mais em relação à observada
após a aprovação do texto529. Nesse particular, encoraja-se a que o Estado continue
perseguindo políticas compatíveis com políticas de redução de armamento de fogo
na sociedade, implementando, ademais, política estrita de controle de armas, seja
com o aperfeiçoamento dos sistemas de registro, seja com a proteção reforçada das
fronteiras e o combate ao tráfico internacional de armas.
349. Nesse sentido, observa-se, com preocupação a edição de sucessivos decretos pelo Es-
tado que buscam facilitar a posse de armas a diversas categorias de cidadãos, bem
como o Projeto de Lei Nº. 3723/19, que visa flexibilizar regras relativas ao porte530 . A
Comissão Interamericana recorda que essas alterações estão acompanhadas de am-
pliação do escopo jurídico da legítima defesa, o que poderia representar, em opinião
da Comissão, a autotutela e a despublicização das políticas de segurança.
350. Sobre o tema, a Comissão registra que durante a audiência pública Sistema Penal e
Denúncias de Violações dos Direitos das Pessoas Afrodescendentes no Brasil, o Es-
tado apresentou informação segundo a qual os decretos editados não excedem os
termos da Lei nº. 10.826/03, bem não haveria correlação entre acesso a armas e
violência já que nos países escandinavos, que possuem baixos índices de violência, é
grande a quantidade de cidadãos que possuem armas de fogo531 .
351. Além disso, a Comissão recorda sobre os possíveis efeitos perversos dessa facilitação,
com destaque ao chamado “Massacre de Suzano”, quando em março de 2019, dois jo-
vens invadiram a escola pública Raul Brasil, no município de Suzano, e dispararam
tiros contra alunos, professores e funcionários, deixando um saldo de dez mortos e
11 feridos. 532 Na investigação desses crimes, apurou-se que a maior parte das mortes
foi provocada por armas de fogo (em particular, o revólver Taurus, calibre 0.38), três
das quais foram compradas de um caminhoneiro, um segurança e um membro de um
clube de tiro533 .
352. No entanto, verifica-se que essas medidas sofrem forte questionamento no país, in-
clusive no tocante à sua legalidade, conforme demonstram pesquisas de opinião534 ,
manifestações de organizações da sociedade civil535 , reações do parlamento536 , e
ações judiciais propostas pelo Ministério Público Federal537. A essas posições, regis-
tram-se estudos que estimam que cada a cada 1% a mais de armas de fogo postas em
circulação no país, há um aumento de 2% na taxa de homicídio. 538 A CIDH se soma a
esses diferentes interlocutores, alertando para os riscos presentes na facilitação do
acesso a armas pelos cidadãos, tendo em vista o papel específico e bem documenta-
do que esses equipamentos desempenham na dinâmica da violência no Brasil e exor-
ta o Estado brasileiro, a reconsiderar essas e outras medidas e proposições em vias
de adoção, tendo em vista a sua contradição com as normas e parâmetros regionais
de direitos humanos.
534 VEJA, Datafolha, 64% dos brasileiros são contra a posse de armas, 11 de abril de 2019; G1, Ibope, 73% são
contra a flexibilização do porte de armas e 26% são a favor. 3 de junho de 2019.
535 G1, Novo decreto de porte de armas é criticado por entidades. 2019.
536 Senado Federal, Projeto de Decreto Legislativo n° 233, de 2019, 2019; Projeto de Decreto Legislativo n°
233, de 2019. Susta o Decreto nº 9.785, de 07 de maio de 2019, que regulamenta a Lei nº 10.826, de 22 de
dezembro de 2003, para dispor sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercializa-
ção de armas de fogo e de munição e sobre o Sistema Nacional de Armas e o Sistema Nacional de Gerencia-
mento Militar de Armas. Aprovado em 18/06/2019.
537 O Globo, MPF pede à Justiça para suspender trechos dos decretos das armas de Bolsonaro, 10 de julho
de 2019.
538 Daniel Cerqueira, Causa e consequências do crime no Brasil. Tese (Doutorado) – Departamento de Econo-
mia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
5
Organização dos Estados Americanos | OEA
IMPUNIDADE
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CAPÍTULO 5 IMPUNIDADE
353. Durante a sua visita, a CIDH recebeu abundante informação sobre a impunidade dos
responsáveis por violações de direitos humanos no Brasil. Se por um lado a Comis-
são tomou nota dos altos índices de encarceramento, bem como dos elevados núme-
ros de assassinatos gerais da população, por outro também foi possível observar os
altos índices de mortes causadas por ações de agentes do Estado. Contudo, no que
diz respeito aos assassinatos cometidos por policiais e forças de segurança, a CIDH
pôde observar altos índices de impunidade, se comparados com os demais autores
de delitos no país e com a falta de acesso à justiça para familiares e vítimas de vio-
lações de direitos humanos. Em especial, a CIDH preocupa-se em como essa impu-
nidade é mantida por práticas e estruturas institucionais corruptas que impedem a
efetivação de justiça nestes casos e fragilizam o estado de direito e a democracia539.
355. Nos casos julgados no Sistema Interamericano contra o Brasil houve responsabiliza-
ção por violações aos direitos à garantia e à proteção judicial previstos nos artigos
8º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Da mesma forma, desta-
cam-se as decisões recentes da Corte Interamericana nos casos Vladimir Herzog542 e
539 CIDH, Corrupción y derechos humanos: Estándares interamericanos, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 236, 6 de dezem-
bro de 2019. Par. 127.
540 Corte IDH, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 5 De Fevereiro de 2018. Par. 242.
541 CIDH, Situación de los derechos humanos en México, OEA/Ser.L/V/II. Doc. 44/15, 31 dezembro 2015.
Par. 412.
542 Corte IDH, Caso Herzog e Outros vs. Brasil, Sentença De 15 De Março De 2018.
Gomes Lund e outros543 pela total impunidade em relação aos crimes contra a huma-
nidade cometidos durante a Ditadura Militar brasileira e a negativa de cumprimento
de suas resoluções, isolando o Brasil em relação a demais países da região que revi-
saram suas leis de anistia e levaram a julgamento os responsáveis por essas viola-
ções de direitos humanos.
356. A esse respeito, a Comissão reitera a doutrina e jurisprudência dos órgãos do Sistema
Interamericano, de que a “impunidade propicia a repetição crônica das violações de di-
reitos humanos e a total vulnerabilidade das vítimas e de seus familiares”544 . Assim, a
ausência de investigação das violações a direitos humanos e de responsabilização dos
perpetradores transcende o direito individual das vítimas e de seus familiares à justi-
ça e à verdade, pois se converte em um fator para a repetição dessas violações.
357. Assim mesmo, durante sua visita, a CIDH recebeu informações durante a visita de
que há uma cultura da impunidade que reflete um modus operandi das instituições
de segurança pública e sistema de justiça desde a ditadura cívico-militar brasileira,
especialmente em relação a agentes do Estado que praticam violações de direitos hu-
manos. Essa cultura seria parte de um legado autoritário, que continua a agir na for-
ma de regras, procedimentos e práticas que sobreviveram à transição democrática
e manifesta-se principalmente nas ações de autoridades policiais e/ou militares que,
apesar de serem formalmente contrárias ao estado de direito, acabam sendo aprova-
das pela população ou até mesmo pelas autoridades estatais.
358. Uma de suas mais graves manifestações é o uso da força letal pelos órgãos de segu-
rança do Estado e a impunidade em relação a esses crimes, o que acaba influindo na
avaliação da qualidade da democracia, do estado de direito e no crescimento de um
sentimento de descrença nas instituições de segurança e justiça 545 . A esse respeito, a
CIDH nota que pesquisas recentes demonstram uma queda da confiança da popula-
ção no Poder Judiciário e que no ano de 2017 somente 24% da população expressava
ter confiança no sistema de justiça546 .
359. Neste sentido, a CIDH afirma ser necessário que os Estados tenham o enfrentamento à
impunidade em relação a violações de direitos humanos como um eixo central de sua
agenda política, a qual deve ser adotada transversalmente pelos órgãos do Estado, in-
clusive com a devida dotação orçamentária para que os órgãos do sistema de justiça
possam contar com os recursos humanos e técnicos e com a estrutura necessária pa-
543 Corte IDH, Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha Do Araguaia”) Vs. Brasil, Sentença de 24 De Novembro
de 2010.
544 Corte IDH, Caso de la Paniaga Morales e Outros (Panel Blanca) vs. Guatemala, Sentença de 8 de março de
1998. Série C. No 37, par. 173.
545 FGV, 2015.
546 Fundação Getúlio Vargas, Relatório ICJBrasil 1o semestre/2017, 2017, Pág. 14.
361. Se considerado que esse índice se refere às denúncias, é possível ainda pressupor
que haja um percentual ainda menor de condenações e, consequentemente, um ele-
vadíssimo grau de impunidade para esses crimes. O relatório da Comissão Parlamen-
tar de Inquérito sobre os Autos de Resistência (mortes ocorridas durante operações
policiais) promovida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro afirma que 98%
dos casos ocorridos entre 2010 e 2015 foram arquivados549.
362. Esse tem sido o parâmetro dos casos que chegaram ao conhecimento da CIDH por
meio de denúncias individuais e também dos casos apresentados pelas organiza-
ções da sociedade civil e do próprio estado durante a visita, dos quais se destacam
alguns. No Rio de Janeiro Comissão recebeu informações sobre a impunidade em
muitas das chacinas na cidade do Rio de Janeiro, como a Chacina de Acari, cujo in-
quérito foi arquivado 25 anos após o crime sem indicar qualquer responsabilidade;
a Chacina do Borel, que também está impune após 16 anos. É também o caso das
chacinas da Favela Nova Brasília, recentemente decidido pela Corte Interamerica-
na, no qual não houve sequer julgamento dos crimes denunciados passados mais de
20 anos de sua ocorrência 550 .
363. Durante a visita à cidade de São Paulo, a CIDH também recebeu informações sobre
os casos das execuções de maio de 2006551, ambos atualmente tramitando perante a
CIDH, nos quais, apesar de terem ocorrido mais de 500 mortes, não houve nenhuma
condenação transitada em julgado com punição dos responsáveis. A CIDH também
recebeu informações sobre a Chacina de Osasco, Barueri e Itapevi, ocorrida no dia 13
547 CIDH. Relatório sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos, OEA/Ser.L/V/II. Doc.57, adotado em 31 de
dezembro de 2009, par. 112.
548 Conselho Nacional do Ministério Público, Relatório Nacional da Execução da Meta 2: um diagnóstico da
investigação de homicídios no país, 2012. Pág. 22.
549 G1, Relatório final da CPI dos Autos de Resistência da Alerj é aprovado, 28 de julho de 2016.
550 Corte IDH, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 5 de Fevereiro de 2018.
551 Conectas, Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da an-
tropologia forense e da justiça de transição, 24 de maio de 2018.
de agosto de 2016, quando 17 pessoas foram assassinadas e outras cinco ficaram fe-
ridas. De acordo com as informações, houve denúncia do Ministério Público do Esta-
do de São Paulo e condenação pelo Tribunal do Júri, contudo essa decisão foi anulada
pelo Tribunal de Justiça do Estado e deverá ser realizada novamente552 . Também foi
informada a respeito de outras chacinas ocorridas nos últimos 10 anos que tampou-
co têm condenações judiciais definitivas.
365. Se esse é o padrão de impunidade em relação à violência de estado nos centros urbanos,
a CIDH recebeu informação que em relação a violações de direitos humanos ocorridas
no campo esse índice é ainda menor. Sobre isso, a Comissão toma nota de que passados
24 anos, a execução de 271 trabalhadores rurais e lideranças em Eldorado dos Carajás
pelas forças policiais ainda permanecem impunes554 . Igualmente, cita-se o massacre de
Corumbiara, ocorrido na Fazenda Santa Elina, no município de Corumbiara, em Ron-
dônia, em 1995. Na ocasião, 355 camponeses torturados, usados de escudo e 3 mortos,
dos quais 2 executados por policiais e seguranças privados a mando de latifundiários.
A CIDH toma nota da informação de que, em que pese o julgamento dessa causa ter sido
finalizado em 6 de setembro de 2000, segundo informações, nenhum camponês foi ou-
vido, e, dos 12 policiais acusados, somente 3 foram considerados culpados555 .
367. Finalmente, a CIDH nota que a impunidade em relação a esses crimes é contraditória
em um país com a terceira maior população carcerária do mundo. Essas prisões, con-
552 Conjur, TJ-SP anula julgamentos dos 73 policiais condenados por Massacre do Carandiru, 27 de setembro
de 2016.
553 CIDH, Informe Nº 34/00, Caso 11.291 – Carandirú vs. Brasil, 13 de abril de 2000.
554 Anistia Internacional, Massacre de Eldorado dos Carajás: 20 anos de impunidade e violência no campo, 15
de abril de 2016.
555 Mesquita, H. A., Corumbiara: o Massacre dos Camponeses. Rondônia, 1995., Tese (Doutorado em Geogra-
fia Humana) FFCLH/USP. São Paulo. 2001
369. Além disso, esse dever implica em que a investigação seja iniciada de ofício e sem
dilação, ademais de ser conduzida de forma imparcial e efetiva. Isso significa que
essa não pode ser uma “simples formalidade que tem o objetivo de, de antemão, ser
infrutífero, ou manuseada como mera gestão de interesses particulares, que de-
penda da iniciativa processual das vítimas, de seus familiares ou da contribuição
privada de elementos probatórios558 . Ressalta-se, ainda, que esse dever é agravado
quando estão ou podem estar implicados agentes estatais que detêm o monopó-
lio do uso da força. 559 Assim, a Comissão recorda que o dever de investigar não é
descumprido somente por não haver uma condenação ou pela impossibilidade de
comprovação dos fatos apesar dos esforços empreendidos, mas também quando o
Estado deixou de buscar efetivamente a verdade por meio de uma investigação ofi-
ciosa, exaustiva, séria e imparcial 560 .
370. De acordo com informações recebidas durante a visita ao país, o principal obstáculo
para a superação da impunidade relacionada à violência de estado está na fase in-
372. A informação se conecta com as denúncias recebidas por parte da sociedade civil
durante a visita da Comissão, que informaram sobre alteração das cenas dos cri-
mes em diversos dos casos relatados, problemas na coleta de provas por autorida-
des que não fazem parte da cadeia de custódia da investigação, como é o caso da
polícia militar, sobre a parcialidade nas investigações pois as autoridades respon-
sáveis pela investigação estão inseridas na estrutura estatal das instituições acu-
sadas de perpetrar o crime; e sobre a necessidade de capacitação da polícia cientí-
fica para a realização das perícias.
373. Algumas dessas questões também foram observadas pela Corte Interamerica-
na no julgamento do caso Favela Nova Brasília, no qual destacou que “a falta de
diligência tem como consequência que, conforme o tempo vai transcorrendo, se
prejudica indevidamente a possibilidade de obter e apresentar provas pertinentes
que permitam esclarecer os fatos e determinar as responsabilidades respectivas,
com o que o Estado contribui para a impunidade”564 . De igual forma, a Corte esta-
beleceu que para que seja efetiva a investigação de violações de direitos humanos,
561 International Human Rights Clinic, Justiça Global, São Paulo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e
Violência Institucional em Maio de 2006, maio de 2011. Pág. 7.
562 Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública (SeNASP), Investigação criminal de homi-
cídios, 2014. Pág. 26.
563 Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública (SeNASP), Investigação criminal de homi-
cídios, 2014. Pág. 28.
564 Corte IDH, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 5 de Fevereiro de 2018. Par. 181.
374. Outra questão que foi denunciada à CIDH durante a visita ao Brasil e que merece
destaque está vinculada com a necessidade de independência e imparcialidade dos
órgãos responsáveis pela investigação. A esse respeito, a Comissão reitera as conclu-
sões da Corte de que em casos de mortes decorrentes de intervenção policial é es-
sencial que o órgão investigador seja independente dos funcionários envolvidos no
incidente, o que implica a ausência de relação institucional ou hierárquica, bem como
sua independência na prática566 .
376. No caso da Favela Nova Brasília, a CIDH recorda que segundo a informação recebida
do Estado brasileiro, o Ministério Público brasileiro possui a atribuição constitucio-
nal para auxiliar nas investigações e de que essa competência foi confirmada pelo
Supremo Tribunal Federal no julgamento da RE Nº. 593.727569, também informou
que a Resolução Nº. 129, de 22 de setembro de 2015 regulamentou a atuação do Mi-
nistério Público no controle externo da investigação de morte decorrente de inter-
venção policial570 . Também chama a atenção para a criação da Política Nacional de
Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), que atribui a função de colaborador
na elaboração de estratégias e metas para alcançar os objetivos desta Po- lítica ao
Ministério Público, em consonância com a Lei nº. 13.675/18 571 .
565 Corte IDH, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 5 de Fevereiro de 2018. Par. 180.
566 Corte IDH, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 5 de Fevereiro de 2018. Par. 187.
567 Oficina da Alta Comissariada das Nações Unidas para Direitos Humanos, Protocolo de Minnesota Sobre la
Investigación de Muertes Potencialmente Ilícitas (2016) - Versión Revisada del Manual de las Naciones Unidas
Sobre la Prevención e Investigación Eficaces de las Ejecuciones Extralegales, Arbitrarias o Sumarias, 2017.
Par. 20.
568 Corte IDH, Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil, Sentença de 5 De Fevereiro de 2018. Par. 188.
569 Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário Nº. 593.727 Minas Gerais, 14 de maio de 2015.
570 Conselho Nacional do Ministério Público, Resolução Nº. 129, 22 de setembro de 2015.
571 Presidência da República, Lei Nº. 13.675, 11 de junho de 2018.
377. Contudo, a CIDH recebeu informações da sociedade civil no marco da visita de que
muitos dos profissionais do ministério público, apesar das bem definidas funções
da instituição, não possuem recursos para realizar investigações complementares e
que muitas vezes só agiam após iniciativa dos familiares e amigos das vítimas. Neste
sentido, a Comissão enfatiza a importância de dotar os órgãos de justiça, como o mi-
nistério público, com as capacidades técnicas e materiais para realizar investigações
diretamente em casos de mortes ocorridas no contexto de intervenções policiais.
380. A Comissão toma nota, a respeito, da informação enviada pelo Estado brasileiro, por
sua vez, que indica que a Justiça Militar integra o Poder Judiciário e membros gozam
de prerrogativas constitucionais de independência e imparcialidade e os processos
judiciais respeitam princípios da ampla defesa, do contraditório e da fundamentação
das decisões. Ademais, que a competência militar somente seria para crimes come-
tidos pelas Forças Armadas e não pelas polícias militares. Contudo, a CIDH recebeu
informação durante a visita de casos que decisões judiciais têm ampliado a aplica-
ção da Lei e atribuído competência militar a crimes cometidos por policiais militares
contra civis, como no caso do desaparecimento de Davi Fiuza, no estado da Bahia574 .
382. Sobre isso, a Comissão anota a informação brindada pelo Estado sobre o Projeto de
Lei do Senado Nº. 135, de 2018, que, segundo a informação, busca acrescentar dois
pontos ao Código Penal para cumprimento da medida de reparação no caso Nova
Brasília no tocante à participação das vítimas na investigação e processo.
383. A este respeito, a CIDH reitera sua doutrina e jurisprudência constante sobre a obriga-
ção do Estado de garantir a participação das vítimas e/ou seus familiares em todas as
etapas da investigação e do processo, de maneira que possam fazer questionamentos,
receber informações, aportar provas, formular alegações e exercitar seus direitos. A
Comissão ainda destaca que essa participação está baseada no direito de acesso à jus-
tiça, no direito à verdade e no direito a uma justa reparação. Contudo, deve-se reiterar
que o dever de investigar, julgar e punir é de responsabilidade do Estado e não deve
depender da iniciativa processual das vítimas e/ou de seus familiares.
384. Uma forma de melhorar a participação das vítimas e/ou seus familiares seria o
fortalecimento das Defensorias Públicas no país. Durante a visita, a CIDH recebeu
informações, especialmente nos estados da região Norte, sobre a ausência de de-
fensores públicos em número suficiente. Há dados de que faltam 10 mil defensores
públicos no país575 , o que reflete no exercício do acesso à justiça de vítimas e seus
familiares e também na composição socioeconômica e racial da população carce-
rária, que além de serem as maiores vítimas de violência do Estado, quando presas
não têm acesso à justiça.
385. De igual maneira, a Comissão destaca que o fortalecimento das defensorias públicas
também ampliaria o direito à reparação financeira, uma vez que se recebeu informa-
ção acerca de que as ações judiciais de reparação também são prejudicadas pela falta
de acesso à justiça e denegação de justiça por meio da demora ou arquivamento das
investigações. Segundo as informações recebidas, poucos familiares recebem indeni-
zação, os processos demoram anos no Poder Judiciário e muitas vezes não são deferi-
dos ou quando são o valor estabelecido como indenização é baixo576 .
386. Assim mesmo, o Estado brindou informação que dá conta de que, para garantir
a efetividade das investigações ou processos criminais, o Brasil instituiu, desde
2009, o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (PROVITA),
que garante proteção àquelas pessoas que foram coagidas ou expostas à violência
no marco de um processo judicial. Segundo informado, o programa está presente
em 13 unidades da federação e, em 2018, protegia cerca de 900 pessoas. Ademais,
o programa foi complementado, com o Sistema Nacional de Informações de Víti-
mas e Testemunhas (SISNAVT), para receber informação daqueles inseridos no
processo de proteção 577.
387. Por fim, casos como o de Nova Brasília, assim como a informação acessada sobre o
Massacre de Corumbiara e os crimes de maio de 2006, em São Paulo, há suficiente
evidência de processos de corrupção nos órgãos judiciais responsáveis pela análise
dos crimes. A Comissão nota que, como informado no capítulo 2, não apenas casos de
massacres envolvendo agentes de segurança, mas também casos de pessoas envolvi-
das no aliciamento e utilização do trabalho escravo no Brasil terminam impunes. Tal
característica indica a existência de um sistema estruturado de violência e execução
de pessoas “indesejadas” na sociedade brasileira, que ademais seguem protegidas
por um sistema de justiça que somente atua para encarcerar aqueles que pertencem
a esses grupos mais expostos à vulnerabilidade. De maneira similar e em contrarie-
dade ao entendimento do Sistema Interamericano, a Comissão nota que seguem im-
punes os diversos casos de tortura e desaparecimento cometidos ainda no período
da ditadura cívico-militar. Apesar dos tímidos avanços de reparação, ainda não há
informação sobre julgamentos e sanções dos perpetradores.
388. A Comissão deplora a impunidade e negação de justiça que existe no Brasil e observa
a responsabilidade internacional do Estado nos casos de violação dos direitos huma-
nos caso não sejam tomadas medidas adequadas para garantir que a justiça seja apli-
cada de maneira justa, imparcial e adequada no país.
389. Após a instauração de uma ditadura civil-militar em 1964, o Estado brasileiro pro-
moveu uma política de repressão que culminou na prática sistemática de graves vio-
577 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 62 e 63.
lações de direitos humanos. 578 Conforme dados do Estado, cerca de 50 mil pessoas
foram detidas somente nos primeiros meses da ditadura e outras inúmeras graves
violações a direitos foram cometidas neste período. 579 Passados mais de trinta anos
desde a redemocratização do país, preocupa a CIDH que ainda não se tenha assegu-
rado o direito das vítimas e de seus familiares de acessar à justiça sobre tais epi-
sódios. Por outro lado, a Comissão valoriza que, nas últimas décadas, tenham sido
desenvolvidas instituições e adotadas medidas diversas dirigidas a reconhecer e a
reparar violações de direitos humanos cometidas nesse contexto. 580
390. Nesse sentido, a CIDH destaca com especial atenção o papel fundamental das insti-
tuições de direitos humanos com enfoque no direito à memória e à verdade, com es-
pecial destaque à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos581 e a
Comissão de Anistia582 . Ambas as instituições têm o mandato de proteger o direito à
memória e a verdade das vítimas de violações dos direitos humanos e de seus fami-
liares, em cumprimento aos compromissos assumidos pelo Brasil em conformidade
com a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas.
391. Além disso, a CIDH saúda a iniciativa do Estado brasileiro de criar a Comissão Na-
cional da Verdade (CNV) por meio da Lei nº. 12.528 de 2011583 . O trabalho da CNV
cumpriu o papel de revelar a verdade sobre as violações de direitos humanos ocorri-
das durante o período de exceção no Brasil, mesmo que não haja gerado responsabi-
lidades e sanções contra os autores e perpetradores. Com base no trabalho realizado
pela CNV, é necessário que o Estado brasileiro avance na área de responsabilização
desses atos.
392. Por meio da Lei Nº. 9.140/1995, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente a mor-
te e o desaparecimento de 136 pessoas indicadas em “Dossiê” organizado por fami-
liares e defensores de direitos humanos a partir de 25 anos de buscas realizadas
por eles584 . A lei possibilitou o pagamento de indenização aos familiares das víti-
mas e instituiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),
578 CIDH, Demanda perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Julia Gomes Lund e ou-
tros (Guerrilha do Araguaia) (Caso 11.552) Contra a República Federativa de Brasil, 26 de março de 2009,
par. 51, 74; CIDH, Relatório de Mérito N°. 71/15, Caso 12.879, Mérito. Vladimir Herzog e outros. Brasil, 28
outubro de 2015, par. 55, 57.
579 Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos, Direito à verdade e à memória, 2007, Pag. 30.
580 CIDH, Demanda perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Julia Gomes Lund e ou-
tros (Guerrilha do Araguaia) (Caso 11.552) Contra a República Federativa de Brasil, 26 de março de 2009,
par. 232.
581 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995.
582 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei Nº. 10.559, de 13 de novembro de 2002.
583 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei no. 12.528 de 18 de novembro de 2011.
584 Brasil, Lei nº 9.140, 04 de dezembro de 1995; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Direito à verdade e à memória,
2007, Pag. 17.
393. Em 2002, foi aprovada a Lei Nº. 10.559, regulamentando a condição de Anistiado Po-
lítico prevista pela Constituição de 1988 e instituindo a Comissão de Anistia (CA)587.
A partir desta instância, o Estado passou a examinar outras hipóteses de danos cau-
sados a pessoas por atos que, entre 1946 e 1988, haviam tido motivação política e a
conceder medidas de reparação econômica e de restituição de direitos588 . Segundo
dados publicados pela Comissão de Anistia, até setembro de 2014, a instituição ha-
via recebido cerca de 74,440 requerimentos de anistia, tendo apreciado aproximada-
mente 64,500589.
394. Em 2011, o Estado brasileiro institui a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com a
finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos prati-
cadas no período de 1946 a 1988 “a fim de efetivar o direito à memória e à verda-
de histórica e promover a reconciliação nacional”590 . Em seu Relatório Final, a CNV
concluiu que, especialmente nos 21 anos do regime ditatorial instaurado em 1964,
foram cometidas graves violações de direitos humanos resultantes de uma ação ge-
neralizada e sistemática do Estado brasileiro e constatou o cometimento de crimes
contra a humanidade591 . Além disso, a Comissão Nacional da Verdade registrou ter ti-
do condições de confirmar 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime mi-
litar, indicando que “esses números certamente não correspondem ao total de mor-
tos e desaparecidos”. Neste sentido, a CNV aponta as graves violações perpetradas
contra camponeses e povos indígenas e indica ter existido um quadro de violência
que resultou em um expressivo número de vítimas no país592 .
395. Adicionalmente, a CIDH toma nota da criação da Projeto Direito à Memória e à Verda-
de no Poder Executivo Federal; de comissões estaduais de reparação; de comissões da
verdade estaduais, municipais e setoriais; e de outras instâncias com o mandato de
396. Por outro lado, a Comissão recebeu informação sobre os desafios enfrentados pelas
vítimas em busca de uma reparação integral e destaca, em particular, as lacunas
na identificação, reconhecimento e reparação aos danos morais e materiais às ví-
timas camponesas e indígenas594 . Durante o período investigado pela CNV, ao me-
nos 8.350 pessoas indígenas teriam sido mortas em decorrência da ação direta de
agentes governamentais ou da sua omissão, não obstante, seriam escassos os casos
reparados595 . Além disso, conforme estudo publicado pelo Estado em 2013, em um
grupo de 1.196 casos de camponeses e seus apoiadores, mortos e desaparecidos
entre 1961 e 1988, apenas 51 tiveram acesso à CEMDP e somente 29 tiveram seus
direitos reconhecidos596 .
397. Em fevereiro de 2020, a CIDH foi informada de que a Comissão de Anistia rejeitou 307
pedidos de reparação protocolados por camponeses que alegavam terem sido alvos
de perseguição política no marco das ações empreendidas pelo Estado em repressão
à Guerrilha do Araguaia597. Preocupa a CIDH que o Relator dos mencionados processos
tenha fundamentado sua decisão afirmando que as ações estatais contra a Guerrilha
593 Casa Civil, Portaria n° 204, de 13 de maio de 2009; Ministério da Justiça e Cidadania, Comissão de Anistia,
Relatório Anual da Comissão de Anistia, 2011; Ministério da Justiça e Cidadania, Comissão de Anistia, Rela-
tório Anual da Comissão de Anistia, 2012; Ministério da Justiça e Cidadania, Comissão de Anistia, Relatório
Anual da Comissão de Anistia, 2013; Ministério da Justiça e Cidadania, Comissão de Anistia, Relatório Anual
da Comissão de Anistia, 2014; Comissão Nacional da Verdade, Relatório, 2014. Pag. 27; Secretaria de Direi-
tos Humanos da Presidência da República, Ações do Projeto — “Direito à Memória e à Verdade”; Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Resolução N° 2, de 29 de novembro de 2017; Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Comissão do MDH possibilita retificação da certidão de óbito
de diplomata vítima da ditadura, setembro de 2018; Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do
Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Série C No. 219, par. 277; Corte IDH. Caso Herzog
e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353, par. 330.
594 Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas do Campo
(NMSPP/CPDA/UFRRJ), Relatório sobre a situação do Brasil acerca da Memória, Verdade, Justiça e Repara-
ção aos camponeses na oportunidade da visita in loco de 2018, 8 de novembro de 2018 (em arquivo CIDH).
595 Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos, 2014, p. 205.
596 Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Camponeses mortos e desaparecidos: ex-
cluídos da Justiça de Transição, 2013, p. 48.
597 O Globo, Com voto do relator em defesa da repressão dos militares durante a Guerrilha do Araguaia, co-
missão rejeita 307 pedidos de anistia, 18 de fevereiro de 2020.
398. Conforme informação enviada por organizações da sociedade civil no curso da vi-
sita in loco e posteriormente a esta, o Estado brasileiro estaria adotando medidas
diversas que teriam como efeito a desestruturação das políticas de reparação de-
senvolvidas nas últimas décadas 600 . Dentre elas, estaria a nomeação de integran-
tes que poderiam comprometer a independência e imparcialidade da Comissão de
Anistia e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em suas ati-
vidades de reparação e busca das vítimas de desaparecimento forçado 601 . A CIDH
toma nota de que o Ministério Público Federal propôs ações judiciais visando re-
verter as nomeações em ambos os órgãos, contudo, a CIDH observa que uma ação
foi rejeitada em primeira instância e outra teve denegada a medida cautelar de
afastamento requerida602 .
598 CIDH, Demanda perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Julia Gomes Lund e
Outros (Guerrilha do Araguaia) (Caso 11.552) Contra a República Federativa do Brasil, 26 de março de
2009, par. 104.
599 Justificando, Entidades denunciam revisionismo histórico e perseguição contra anistiados da ditadura
militar, 20 de fevereiro de 2019; O Globo, Planalto divulga vídeo que exalta golpe militar de 1964, 31 de
março de 2019; Rosalina Santa Cruz et al., Declarações do Presidente da República do Brasil referentes ao
desaparecimento forçado de Fernando Santa Cruz e desmonte da Comissão Especial sobre Mortos e De-
saparecidos Políticos (CEMDP), 1 de agosto de 2019 (em arquivo CIDH); Folha, Golpe de 64 é ‘marco para
a democracia brasileira’, diz Defesa, 30 de março de 2020; Estado de Minas, ‘Tortura é cascata para ga-
nhar indenização’, diz Bolsonaro sobre ditadura militar, 1 de março de 2020; Conta oficial da Secretaria
Especial de Comunicação Social da Presidência da República @SecomVc, ‘A Guerrilha do Araguaia tentou
tomar o Brasil via luta armada […]’, 5 de maio de 2020.
600 Grupo de Pesquisa Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição da PUCRS, Pendências, Ameaças
e Retrocessos no Processo de Justiça de Transição do Brasil, 8 de novembro de 2018, P. 8 (em arquivo CI-
DH); ISER, Relatório sobre a situação do Brasil acerca da Memória, Verdade, Justiça e Reparação na opor-
tunidade da visita in loco de 2018, 2 de novembro de 2018, p. 6-7; RESLAC, Diagnóstico sobre avances y
retrocesos en materia de políticas e iniciativas de memoria en el ámbito de los países que integran la RESLAC,
outubro de 2018, p. 14 (em arquivo CIDH).
601 Veja, General que considera Ustra herói integra nova Comissão de Anistia, 27 de março de 2019; Folha,
Novo chefe da Comissão da Anistia travou indenização a camponeses do Araguaia, 27 de março de 2019;
Exame, Bolsonaro troca membros da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, 1 de agosto de 2019.
602 MPF. ‘MPF aciona Justiça e questiona nomeação de membros para a Comissão de Anistia’. 6 de maio de
2019; MPF. ‘MPF pede à Justiça anulação do decreto que alterou composição da Comissão sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos’. 1 de outubro de 2019; Justiça Federal, JFRS extingue ação envolvendo a nomea-
ção de membros da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, 10 de outubro de 2019; Agência Brasil, Justi-
ça nega pedido de afastamento de 7 membros da Comissão de Anistia, 10 de maio de 2019.
603 CIDH, Informe Anual 2019, 6 de março de 2019, p. 320; Grupo de Pesquisa Justiça de Transição do PPGD/
UnB, ‘Síntese das ocorrências relativas à Comissão de Anistia (CA) a partir de janeiro de 2019’, 28 de
Agosto de 2019 (em Arquivo CIDH).
acordo com dados enviados pela sociedade civil, desde 2016, a Comissão de Anistia
vinha apresentando uma redução drástica do volume de solicitações de reparação
deferidas: se, em 2015, cerca de 36% dos requerimentos apreciados eram deferidos,
em 2018 essa proporção foi reduzida para próximo de 4% – representando uma “se-
vera restrição ao direito de anistia política”604 . Já em 2019, teriam sido negados 2,329
pedidos de anistia de um total de 2,717 solicitações, uma rejeição de 85% dos reque-
rimentos apresentados605 . Além disso, conforme informação da imprensa, no último
ano, houve um aumento de 141% no tempo de espera para o pagamento das indeni-
zações já deferidas pela Comissão de Anistia606 .
604 Coletivo Justiça de Transição, Informe sobre a Comissão de Anistia do Brasil, 9 de novembro de 2018, p.4
(em arquivo CIDH).
605 Metrópoles, Damares nega 99 pedidos de anistia a vítimas da ditadura militar, 25 de março de 2020; Es-
tadão, ‘Sob Damares, Comissão da Anistia nega 85% dos pedidos’, 16 de dezembro de 2019.
606 O Globo, Fila de pedidos de anistia com parecer favorável aumenta 141% no primeiro ano de governo, 19
de janeiro de 2020.
607 CIDH, Demanda perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Julia Gomes Lund e Ou-
tros (Guerrilha do Araguaia) (Caso 11.552) Contra a República Federativa do Brasil, 26 de março de 2009,
par. 233.
608 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 303.
609 ONU, Oficina del Alto Comisionado de Derechos Humanos (ACNUDH), Promoción de la verdad, la justicia,
la reparación y las garantías de no repetición. A/HRC/42/45, 11 de julho de 2019.
610 Associação dos Amigos do Memorial da Anistia et al., Manifesto à nação. A transição democrática está em
risco no Brasil: um alerta das vítimas da ditadura militar, 2019 (em arquivo CIDH); Carta-manifesto dos
coletivos terapêuticos de ex-perseguidos políticos e seus familiares, atendidos no Âmbito do Projeto Clí-
nicas do Testemunho, novembro de 2018 (em arquivo CIDH); CASC- Comitê Assessoramento da Sociedade
Civil para Anistia et al, Nota Pública contra o cancelamento do Memorial da Anistia, 13 de agosto de 2019
(em arquivo CIDH); Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça et al., Recomendações para a promoção de Me-
mória, Verdade, Justiça e Reparação, 8 de novembro de 2018 (em arquivo CIDH).
611 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 41, 232, 264.
612 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 267.
613 CIDH, Resolução 3/2019 ‘Princípios sobre Políticas Públicas de Memória nas Américas’, 9 de novembro
de 2019.
614 Comissão Nacional da Verdade, Relatório, 2014. Pag. 523.
615 Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Desaparecidos políticos: Remanescentes ósseos
de Dimas Casemiro serão entregues à família, agosto de 2018; Agência Brasil, Desaparecidos políticos:
Remanescentes ósseos de Dimas Casemiro serão entregues à família, 3 de dezembro de 2018; Comissão
de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Informações sobre a situação dos direitos humanos
no Brasil, com foco no tema Memória, Verdade e Justiça relacionadas às violações de direitos humanos na
ditadura militar e seus legados, 9 de novembro de 2018, p. 16 (em arquivo CIDH).
616 Comissão Nacional da Verdade, Relatório, 2014. Pag. 500-576.
403. Se, por um lado, o Estado documentou os diferentes métodos e técnicas utilizados pe-
lo regime militar para impedir a localização ou identificação dos restos mortais das
vítimas – como o sepultamento dos corpos em valas clandestinas ou a adulteração
dos registros públicos dos cemitérios617 – por outro, no que diz respeito às buscas e
identificação das vítimas desaparecidas, a CEMDP, em 2007, já apontava que os avan-
ços haviam sido reduzidos em razão de “dificuldades financeiras e falta de colabora-
ção dos órgãos oficiais”618 . Em Relatório apresentado após a sua exoneração, em julho
de 2019, a ex-presidente da CEMDP indicou que, em 2016, foi realizada uma reestru-
turação da instituição após longo período de desmobilização das suas atividades619.
Contudo, a nova sistemática de trabalho prevista jamais teria sido implementada620 .
617 Comissão Nacional da Verdade, Relatório, 2014. Pag. 502; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, Habeas Corpus: que se apresente o corpo. A busca dos desaparecidos políticos no Brasil, 2010.
618 Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos, Direito à verdade e à memória, 2007, P. 41.
619 Ministério Público Federal, Relatório Final da Presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desapa-
recidos Políticos exercida entre os anos de 2014 e 2019, 9 de agosto de 2019, p.1.
620 Ministério Público Federal, Relatório Final da Presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desapa-
recidos Políticos exercida entre os anos de 2014 e 2019, 9 de agosto de 2019, p. 2.
621 Corte IDH. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 263.
622 Corte IDH. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 263.
623 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Supervisão de Cumprimento de
Sentença. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 17 de outubro de 2014, par. 27, 36.
624 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Supervisão de Cumprimento
de Sentença. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 17 de outubro de 2014, par. 35.
405. Após a visita in loco, a CIDH tomou conhecimento da realização de mudanças subs-
tantivas no Regimento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos,
em particular: a) se retirou a exigência de seus membros terem “reconhecida atua-
ção na temática, objeto de sua atuação e com compromisso com a defesa de princí-
pios fundamentais da pessoa humana.”; b) se incluiu, como condição para instaurar
e instruir os procedimentos administrativos de busca e localização das vítimas de-
saparecidas, que os familiares fizessem uma “solicitação expressa” à CEMDP; c) se
determinou que “os requerimentos para o reconhecimento de pessoas desapareci-
das” deveriam ser apresentados no prazo de 120 dias “contado a partir da data da
publicação da Lei de regência e suas alterações posteriores”625 .
406. A CIDH observa com preocupação as alterações realizadas e recorda que, nos casos
de desaparecimento forçado, o dever de investigar exige que o Estado realize todas
as ações necessárias para determinar o destino ou paradeiro da pessoa desapare-
cida e que essa obrigatoriedade subsiste enquanto se mantenha a incerteza sobre o
destino final da vítima626 . Além disso, a CIDH frisa que essa obrigação de investigar
deve ocorrer ex officio, sem dilação, de uma maneira séria, imparcial e efetiva, de tal
modo que não dependa da iniciativa processual da vítima, de seus familiares ou do
aporte privado de elementos probatórios. 627 Ademais, conforme os Princípios Reito-
res para a Busca de Pessoas Desaparecidas da ONU, nos contextos onde o desapa-
recimento tenha ocorrido de maneira frequente ou massiva, o Estado deve realizar
a busca como parte de uma política pública integral em matéria de desaparecimen-
tos628 . Neste sentido, e considerando o grande lapso temporal decorrido desde as vio-
lações, a Comissão urge que o Estado reestruture suas ações de busca, localização e
identificação das vítimas desaparecidas, dando continuidade e fortalecendo os pro-
cessos que vêm apresentando resultados.
407. A Comissão Interamericana toma nota, no entanto, de que, desde 2012, a Comissão
de Anistia financia o Projeto Clínicas do Testemunho, que, em parceria com a socie-
dade civil, presta apoio psicológico a pessoas, famílias e grupos afetados por atos de
violência estatal praticados entre 1946 e 1988629.
625 Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Resolução Nº 1, de 27 de janeiro de 2016; Comis-
são Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Resolução Nº 4, de 14 de janeiro de 2020, art. 2, 3, 10.
626 Corte IDH, Caso Ticona Estrada y otros Vs. Bolivia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 27 de novem-
bro de 2008, par. 80; Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez Vs. Honduras. Fondo. Sentencia de 29 de julho de
1988, par. 181.
627 Corte IDH. Caso Tenorio Roca y otros Vs. Perú. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sen-
tencia de 22 de junho de 2016, par. 168.
628 Comitê das Nações Unidas contra o Desaparecimento Forçado, Principios Rectores para la Búsqueda de
Personas Desaparecidas, 2019.
629 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 64.
408. A CIDH também já afirmou ao Estado brasileiro que as diversas medidas destinadas
a reparar as graves violações de direitos humanos seriam insuficientes diante de um
contexto de completa impunidade dos respectivos crimes630 . Durante a visita in loco
e no seu período subsequente, a Comissão recebeu farta informação sobre o atual es-
tado das ações criminais pelos delitos cometidos ao longo da ditadura cívico-militar,
bem sobre os obstáculos que estariam impedindo o Brasil de cumprir com as suas
obrigações internacionais em matéria de justiça.
409. Conforme indicado pelo Ministério Público Federal (MPF), no ano de 2012, foi ofereci-
da a primeira denúncia em face de um agente do regime repressivo, acusando-o pelo
sequestro qualificado de 5 integrantes da Guerrilha do Araguaia631. Desde então, a ins-
tituição criou o Grupo de Trabalho Justiça de Transição com o objetivo de fornecer apoio
jurídico e operacional aos Procuradores da República para investigar e processar casos
de graves violações a direitos humanos cometidas durante o regime militar e estabele-
ceu outros grupos investigativos para atuar em casos específicos deste contexto632 . De
acordo com dados disponibilizados pela sociedade civil e pelo MPF, – até abril de 2020
– o órgão persecutório ofereceu 48 denúncias pedindo a responsabilidade de mais de 59
agentes por crimes como: homicídio, ocultação de cadáver, falsificação de laudos com o
objetivo de ocultar morte; genocídio de uma comunidade indígena, entre outros633.
410. Contudo, em relatório publicado em 2017, a instituição apontou que: “a quase totali-
dade das ações judiciais propostas encontra-se paralisada, em grau de recurso”, con-
cluindo que “o Poder Judiciário brasileiro tem se revelado, em geral, refratário em
reconhecer o caráter vinculante da decisão da Corte internacional” – referindo-se à
sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund e outros634 . Acompanhamen-
630 Corte IDH. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 247.
631 Ministério Público Federal, Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF
em matéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceção, 2017,
p. 20, 132.
632 Ministério Público Federal, Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF
em matéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceção, 2017,
p. 19-20.
633 Centro de Estudos de Justiça de Transição, Relatório do CJT/UFMG de acompanhamento das ações crimi-
nais de responsabilização individual sobre violações de direitos humanos perpetradas na ditadura bra-
sileira, 2018. p. 28 (em arquivo CIDH); MPF, ‘Força-Tarefa Araguaia: MPF denuncia novamente Sebastião
Curió por crimes na ditadura militar’, 19 de março de 2019; MPF, ‘Força-Tarefa Araguaia: MPF denuncia
militar por crimes praticados na repressão à Guerrilha do Araguaia’, 29 de maio de 2019; MPF, ‘MPF de-
nuncia ex-delegado do DOPS por incineração de 12 cadáveres durante a ditadura’, 1 de agosto de 2019;
MPF, ‘MPF denuncia chefe da antiga Guarda Rural Indígena por genocídio contra o Povo Krenak’, 18 de
outubro de 2019; MPF, ‘MPF denuncia ex-agentes da ditadura por morte de advogado em 1975’, 14 de no-
vembro de 2019; MPF, ‘FT Araguaia: MPF denuncia militares por mais três homicídios e ocultações de
cadáveres na repressão à Guerrilha do Araguaia’. 19 de dezembro de 2019; MPF, MPF denuncia ex-agente
da ditadura e legistas por morte de militante política em 1976, 24 de janeiro de 2020; MPF, MPF denuncia
seis ex-agentes da ditadura pelo assassinato de Vladimir Herzog, 17 de março de 2019; MPF, No aniversá-
rio do golpe militar, MPF oferece nova denúncia contra ex-agente da ditadura, 31 de março de 2020.
634 Ministério Público Federal, Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF em
matéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceção, 2017, p. 331.
to realizado por organizações da sociedade civil no final de 2018, indicou que – das
37 denúncias apresentadas até aquele momento – 27 haviam sido rejeitadas, parte
delas estando pendente de decisões recursais, e outras 5 denúncias haviam sido re-
cebidas, mas posteriormente tiveram seus processos suspensos635 .
411. A Comissão constata que, não obstante os esforços realizados em matéria de investi-
gação das graves violações cometidas durante o regime militar, efetivamente, poucas
demandas têm avançado nos tribunais, indicando um descumprimento da obrigação
internacional em processar e punir tais atos. A Corte Interamericana já estabeleceu,
reiteradamente, que essa obrigação assume particular importância diante da gravi-
dade dos delitos cometidos e da natureza dos direitos lesados, sendo especialmente
relevante em casos de desaparecimento forçado, execução extrajudicial, tortura e
outras violações graves dos direitos humanos636 .
412. Acerca do teor das decisões proferidas até o momento e dos obstáculos jurídicos
existentes ao seguimento das causas, diversas organizações da sociedade civil indi-
cam que os magistrados têm recorrido frequentemente a figuras como a prescrição
e a Lei de Anistia – Lei nº 6.683/79 – para rejeitar as denúncias ou interromper o
curso das ações judiciais637. Recentemente, a CIDH lamentou a publicação de duas
sentenças que aplicaram tais institutos jurídicos, determinando o encerramento dos
processos criminais relacionados ao caso Atentado ao Riocentro e caso Luiz Eduardo
Merlino638 . Além disso, em alguns casos, existiria uma recusa por parte dos julgado-
res em categorizar as graves violações de direitos humanos perpetradas durante a
ditadura como crimes contra a humanidade, e em decorrência disto, não estariam
reconhecendo a imprescritibilidade dos crimes sob julgamento639. A Comissão tam-
635 Centro de Estudos de Justiça de Transição, Relatório do CJT/UFMG de acompanhamento das ações crimi-
nais de responsabilização individual sobre violações de direitos humanos perpetradas na ditadura brasi-
leira, 2018. p. 28-29 (em arquivo CIDH).
636 Corte IDH. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353, par. 232;
Corte IDH, Caso Masacres De El Mozote Y Lugares Aledaños Vs. El Salvador. Sentencia De 25 De Octubre De
2012 (Fondo, Reparaciones y Costas), par. 244.
637 CEJIL, Documento de Apoio à Dívida Histórica, 2 de novembro de 2018, p. 1 (em arquivo CIDH); Interna-
tional Bar Association’s Human Rights Institute, ‘Informe para a Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos: Justiça de Transição em 2019: A judicialização de casos relacionados à Ditadura Militar no Brasil’,
novembro de 2019, p. 5, 6; Centro de Estudos de Justiça de Transição, Relatório do CJT/UFMG de acompa-
nhamento das ações criminais de responsabilização individual sobre violações de direitos humanos per-
petradas na ditadura brasileira, 2018. p. 28-29 (em arquivo CIDH); Grupo de Pesquisa Direito à Verdade
e à Memória e Justiça de Transição da PUCRS, Pendências, Ameaças e Retrocessos no Processo de Justiça
de Transição do Brasil, 8 de novembro de 2018 (em arquivo CIDH); Human Rights Watch, Reunião com
Sociedade Civil sobre Memória, Verdade e Justiça, 8 de novembro de 2018 (em arquivo CIDH); Comissão
de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Informações sobre a situação dos direitos humanos
no Brasil, com foco no tema Memória, Verdade e Justiça relacionadas às violações de direitos humanos na
ditadura militar e seus legados, 9 de novembro de 2018, p. 26-28 (em arquivo CIDH).
638 CIDH, Informe Anual 2019, 6 de março de 2019, p. 320.
639 Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, Informações sobre a situação dos direitos
humanos no Brasil, com foco no tema Memória, Verdade e Justiça relacionadas às violações de direitos
humanos na ditadura militar e seus legados, 9 de novembro de 2018, p. 26-27 (em arquivo CIDH); Interna-
tional Bar Association’s Human Rights Institute, ‘Informe para a Comissão Interamericana de Direitos Hu-
manos: Justiça de Transição em 2019: A judicialização de casos relacionados à Ditadura Militar no Brasil’,
novembro de 2019, p. 27, 28.
bém observa que, até a presente data, o Estado brasileiro não ratificou a Convenção
sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade,
e tampouco tipificou do delito de desaparecimento forçado, de acordo com os parâ-
metros interamericanos640 .
414. A Comissão também urge ao Estado brasileiro a ratificar a Convenção sobre a Im-
prescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade. Não obs-
tante, a CIDH considera pertinente recordar que, no caso Herzog e outros, a Corte
Interamericana examinou os elementos que caracterizavam os crimes cometidos
contra a vítima enquanto crimes contra a humanidade e dispôs sobre efeitos jurídi-
cos dessa qualificação643 . Nesta ocasião, a Corte afirmou que a tortura e morte do
jornalista foram consequência de uma máquina de repressão extremamente organi-
zada e estruturada para agir dessa forma e eliminar fisicamente qualquer oposição
democrática ou partidária ao regime ditatorial, utilizando-se de práticas e técnicas
documentadas, aprovadas e monitoradas detalhadamente por altos comandos do
Exército e do Poder Executivo644 . Dentre os efeitos atribuídos aos crimes dessa na-
tureza a CIDH destaca, em particular, o dever do Estado de punir os seus autores a
despeito da existência de normas de direito interno que estabeleçam estes crimes
internacionais e a sua imprescritibilidade, independente da ratificação da Convenção
sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Contra a Humanidade645 .
640 Centro pela Justiça e o Direito Internaciona et al, ‘Alternative report submitted to the UN Committee on En-
forced Disappearances (CED) in the context of the review of Brazil report’, 2020.
641 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 171.
642 Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 174.
643 Corte IDH. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353, par. 237-241.
644 Corte IDH. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353, par. 241.
645 Corte IDH. Caso Herzog e outros Vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No. 353, par. 214-
216, 231.
415. De acordo com denúncias apresentadas pelo MPF, o Comando Geral do Exército
brasileiro teria obstaculizado completamente o acesso a documentos que tenham
relação com o período 1964 a 1985, afetando as investigações das graves violações
cometidas durante a ditadura cívico-militar646 . Sobre esta questão, a Corte Interame-
ricana entendeu que, quando se trata da investigação de um fato punível, a decisão
de não entregar uma informação jamais pode depender exclusivamente de um órgão
estatal a cujos membros seja atribuída a prática do ato ilícito647. Neste sentido, a Co-
missão faz um chamado ao Estado brasileiro para que garanta, tanto aos operadores
de justiça, quanto ao público, o acesso técnico e sistematizado a tais informações, as-
segurando o direito irrenunciável das vítimas, de seus familiares e de toda a socieda-
de de conhecer a verdade sobre as graves violações aos direitos humanos648 .
416. A CIDH insta o Estado a manter irrestrito apoio institucional aos mecanismos de re-
paração histórica referentes aos períodos da ditadura cívico-militar a fim de garan-
tir o direito à memória e à verdade das vítimas de violações, bem como de seus fa-
miliares. A Comissão enfatiza que a jurisprudência do sistema reiterou que todas as
pessoas, inclusive os familiares mais próximos das vítimas de graves violações dos
direitos humanos, têm direito à verdade. Consequentemente, os membros de suas
famílias, bem como a sociedade em geral, devem ser informados sobre tudo o que
aconteceu em relação a essas violações.
417. Da mesma forma, a Comissão recorda que são inadmissíveis as disposições que pres-
crevem e estabelecem exclusões de responsabilidade penal que visam impedir a
investigação e punição dos responsáveis por graves violações de direitos humanos,
como tortura, execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias e desaparecimentos
forçados, tdos proibidos por violar direitos não derrogáveis reconhecidos pelo direi-
to internacional dos direitos humanos649.
646 Ministério Público Federal, Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF
em matéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceção,
2017, p. 21.
647 Corte IDH. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro
de 2010. Série C No. 219, par. 202.
648 CIDH. Informe “Derecho a la verdad en las Américas”, 13 de agosto de 2014, par. 71, 125; CIDH, Demanda
perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do
Araguaia) (Caso 11.552) Contra a República Federativa de Brasil, 26 de março de 2009, par. 178-180.
649 CIDH, Comunicado de imprensa 113/18 - CIDH llama al Estado de Guatemala a abstenerse de reformar
la Ley de Reconciliación Nacional, Washington DC, 25 de janeiro de 2019; CIDH. Informe No. 71/15 Caso
12.879, Informe de Fondo Vladimir Herzog y Otros Vs. Brasil, 28 outubro 2015, parágrafos 230, 235.
6 INSTITUCIONALIDADE
DEMOCRÁTICA E DE
DIREITOS HUMANOS
CAPÍTULO 6 INSTITUCIONALIDADE
DEMOCRÁTICA E DE DIREITOS HUMANOS
418. Desde a última visita feita pela Comissão em 1995, o Brasil apresentou considerá-
veis esforços de construção institucional voltados ao fortalecimento das garantias
democráticas. Nos vinte e três anos transcorridos entre as duas visitas, a comis-
são tomou conhecimento de algumas mudanças que reforçam o compromisso do
Estado brasileiro em consolidar instituições e políticas públicas promotoras da
democracia e dos direitos humanos. No entanto, registram-se também desafios
consideráveis e crescentes para que se alcancem os anseios de que o país desfrute
de uma vivência democrática plena, inclusiva, e que garanta direitos a todos e to-
das, sem distinção.
A. INSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA
419. A Constituição de 1988 lançou as bases para o estabelecimento de um Estado que fez
avanços na garantia de direitos com o objetivo de promover a inclusão social. Esta
mesma Constituição estabeleceu a independência entre os Poderes Executivo, Legis-
lativo e Judiciário, os quais, à sua maneira, desempenham papel fundamental para a
consolidação democrática e para a proteção dos direitos humanos no país. A separa-
ção entre os três poderes ocorre não apenas no nível federal, mas reflete-se também
na estrutura institucional existente nos estados, no Distrito Federal e nos municí-
pios. A autonomia, independência e respeito mútuo entre os três poderes são funda-
mentais para a construção de uma democracia saudável e estável650 .
421. A Comissão reconhece que o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Judi-
ciário têm um papel chave a desempenhar na identificação de violações de direitos
humanos, na proteção de vítimas, na responsabilização de violadores, e na repara-
ção de violações. Para tanto, os direitos humanos carecem de um lugar central e de
destaque em suas agendas, de modo que as populações historicamente vulneráveis,
excluídas e violentadas possam ter seus direitos protegidos em uma sociedade ca-
racterizada pela desigualdade política e econômica.
422. Em especial, a CIDH reconhece que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
(PFDC), que integra a Procuradoria Geral da República, conta com o mandato e a
legitimidade para exercer o controle das ações do Estado em conformidade com os
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Portanto, no marco do trabalho
do Ministério Público Federal, a CIDH considera fundamental que a PFDC tenha auto-
nomia, independência e recursos necessários para lembrar e cobrar o Estado quanto
às suas responsabilidades de proteção a todas as pessoas. Neste sentido, a CIDH ma-
nifesta preocupação ante as denúncias de ações de intimidação ao trabalho da PF-
DC651, conforme relatado em nota do Conselho Nacional dos Direitos Humanos652 .
423. Adicionalmente, a CIDH lembra que a missão de proteção dos direitos humanos fren-
te ao Estado não deve ser exclusiva da PFDC. O Ministério Público Federal e os Minis-
térios Públicos Estaduais devem, em toda a sua atuação, priorizar casos em que ha-
ja suspeita de violação dos direitos humanos. No Brasil, o Ministério Público ocupa
uma posição estratégica e fundamental na fiscalização da observância dos princípios
e normas de direitos humanos, a fim de que se enfrente o quadro de ainda numero-
sas e graves violações.
424. Dada a relevância central da Defensoria Pública para a garantia de direitos no país, a
CIDH congratula o governo brasileiro pela edição da Medida Provisória nº. 888/2019,
que evitou o fechamento de 43 escritórios da Defensoria Pública da União em diver-
sas partes do país653 . Na análise da Comissão, a realocação de servidores federais
que hoje servem a DPU em suas representações locais significaria a completa impos-
sibilidade de interiorização do órgão, negando, portanto, o direito de acesso à justiça
a milhões de cidadãos brasileiros.
651 Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humano, Organizações denunciam Brasil à ONU
e OEA por intimidações contra a Procuradora da República Deborah Duprat, 23 de outubro De 2019.
652 CNDH, Nota em Defesa das Defensoras e Defensores de Direitos Humanos no Brasil, 11 de setembro de 2019.
653 Senado Notícias. Publicada MP que garante funcionamento de unidades da Defensoria Pública. 19 de ju-
lho de 2019.
426. Por tudo isso, a CIDH manifesta grande preocupação com o conteúdo dos Decretos
nº. 9.759, de 11 de abril de 2019654 , e Nº. 9.812, de 30 de maio de 2019655 , que de-
terminam a extinção de dezenas de instituições participativas, entre as quais estão
incluídos colegiados fundamentais para as políticas de promoção e defesa dos direi-
tos humanos no Brasil, como a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infan-
til (CONAETI); a Comissão Nacional de Educação em Direitos Humanos; a Comissão
Nacional de Política Indigenista; a Comissão Nacional de Alfabetização e Educação
de Jovens e Adultos (CNAEJA); a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena. A
Comissão ressalta a importância de se manter em funcionamento as institucionali-
dades de democracia participativa em direitos humanos consolidadas no Brasil.
427. Adicionalmente aos mecanismos formalmente extintos, a Comissão observa que al-
gumas instâncias de participação, apesar de garantidas por lei, passam ainda por
um processo preocupante de esvaziamento e enfraquecimento. Exemplos incluem
o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), cuja institu-
cionalidade se apresenta ameaçada e enfraquecida656 . O CONSEA foi responsável por
significativos avanços no diálogo para a política de combate à fome no Brasil e seu
enfraquecimento pode ter consequências irreversíveis em um país que atualmente
enfrenta o aumento dos níveis de desemprego, pobreza e extrema pobreza.
428. Neste marco, a CIDH manifesta a preocupação de que a extinção destes canais de
diálogo intragovernamental e com a sociedade civil organizada representará a remo-
ção de importantes instrumentos de debate, controle e formulação de políticas de
direitos humanos, enfraquecendo a capacidade do Estado brasileiro para enfrentar o
atual quadro de desigualdades, vulnerabilidade e violência.
654 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto no. 9.759, de 11 de abril
de 2019.
655 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto no. 9.812, de 30 de maio
de 2019.
656 Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Em defesa da Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional: FBSSAN contra a extinção do Consea, 2019; FASE. Elisabetta Recine, Maria Emí-
lia Pacheco, Renato Maluf e Francisco Menezes. Extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional: comida de verdade e cidadania golpeadas. 2019.
429. A Comissão reconhece que nas últimas décadas, o Brasil tem sido um país de referên-
cia e um exemplo da manutenção e melhoria das políticas de direitos humanos por
diferentes governos, mantendo a linha institucional como compromisso de um Esta-
do e sua Constituição. Esta continuidade e maturidade crescente é fundamental para
o desenvolvimento nacional. O estabelecimento de uma política externa que prioriza
os direitos humanos foi uma das principais conquistas do período desde 1988, con-
forme estabelecido em sua Constituição. Internacional e regionalmente, o Brasil se
destacou, ao longo de sua história, por sua liderança na afirmação das normas inter-
nacionais de direitos humanos e na valorização do multilateralismo.
430. Conforme detalhado nas seções seguintes deste relatório, a CIDH entende que a ar-
quitetura institucional democrática do Brasil foi constituída por meio de um im-
portante processo de construção político-social, realizado a partir do período de
democratização do país. Porém, a CIDH observa com preocupação a diminuição da
intensidade no processo de fortalecimento institucional na área dos direitos huma-
nos. Em particular, observam-se retrocessos significativos na implementação de
programas, políticas públicas e na garantia de orçamentos em áreas essenciais, co-
mo verificado nas visitas e entrevistas realizadas durante a visita ao país. A institu-
cionalidade existente tem perdido empoderamento político, prioridade e centralida-
de nas ações e na comunicação do Estado. Ademais, algumas instituições, como as
instâncias de participação social, passam por um processo de extinção ou enfraque-
cimento, o que a Comissão vê com grande preocupação.
431. A Comissão destaca que o Brasil, por meio do Poder Executivo Federal, envidou esforços
para cumprir com compromissos internacionais que demandavam a construção de ins-
titucionalidades de direitos humanos. Em especial, em 2 de julho de 2014, deu-se impor-
tante passo para a constituição do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) a
partir do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), por meio da Lei
Nº. 12.986657. Embora ainda vinculado orçamentariamente ao Poder Executivo, o CNDH
tem sido um importante agente de consideração, deliberação e recomendação sobre ca-
sos de graves violações de direitos humanos no país e, segundo informação do Estado,
se assemelha a uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH)658 . As resoluções
657 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, LEI Nº 12.986, de 2 de junho de 2014.
658 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 65.
432. Por sua vez, o Estado informou a Comissão Interamericana de que, com o intuito de
consolidar a autonomia do CNDH, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Huma-
nos priorizou, no seu planejamento estratégico, o Projeto Nº. 2, que busca “a consoli-
dação da autonomia administrativa, de infraestrutura e orçamentária” do Conselho
Nacional de Direitos Humanos. Entre outras ações, estaria prevista a dotação orça-
mentária no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2020)660 .
434. A Comissão destaca que a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos cumpre uma
função essencial enquanto mecanismo de denúncia de graves violações de direitos
humanos. Em especial, destaca-se que a Ouvidoria oferece serviços essenciais de de-
núncia por meio do Disque 100 e do Disque 180, os quais são práticas internacional-
mente exemplares de comunicação entre os cidadãos e o Estado. Todavia, a observa-
659 AAJ. Declaración de la Asociación Americana de Juristas denunciando actuaciones del gobierno de Brasil con-
tra el Consejo Nacional de Derechos Humanos y otros Consejos.
660 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 65 e 66.
661 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 10.683 de 28 de maio de2003; De-
creto nº 4.671, de 10 de abril de2003; Decreto nº 5.174 de 9 de agosto de 2004; Decreto nº 6.980 de 13 de
outubro de 2009; Lei nº 12.314 de 19 de agosto de 2010; Decreto nº 7.256, de 4 de agosto de 2010; Lei nº
13.266, de 5 de abril de 2020.
-se que o Estado carece ainda de instrumentos e meios eficientes para o tratamento
e resolução das denúncias recebidas, sob risco de que estes importantes canais de
denúncia não sejam efetivos com relação a sua finalidade.
435. Assim mesmo, a CIDH destaca que outras duas instituições do Estado têm sido de
grande relevância para que o trabalho de defesa dos direitos humanos seja protegido
pelo Estado: o Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos,
Comunicadores e Ambientalistas662 , juntamente com seus correspondentes regio-
nais, e o Programa de Proteção a Vítimas de Testemunhas Ameaçadas de Morte663 .
A respeito, o Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos,
Comunicadores e Ambientalistas têm como papel garantir medidas de proteção a de-
fensores e denfensoras de direitos humanos que se encontrem em risco em função de
de sua atividade. De acordo com informações do Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos, o Programa alcança 342 defensoras e defensores664 . Todavia,
durante as várias reuniões realizadas pela Comissão durante sua visita ao país, fo-
ram citados incontáveis casos de defensoras e defensores de direitos humanos amea-
çados, perseguidos e mesmo assassinados. Este quadro de persistente vulnerabilida-
de muito alarma à CIDH, que destaca a necessidade de se ampliar e definitivamente
garantir a proteção de defensoras e defensores de direitos humanos no país.
436. Sobre o Programa, a CIDH recebeu informação do Estado que, em 2018, o orçamen-
to destinado para o seu funcionamento chegou a R$ 11,7 milhões665 . Ademais, o pro-
grama recebeu reforços orçamentários em nível federal até o final de 2019, além
de haver quase triplicado o orçamento de suas redes estaduais, que contariam com
nove convênios assinados para sua implementação em nível regional, embora nem
todos estejam válidos no momento. A CIDH saúda esta medida e insta o governo fe-
deral e os estados a agilizar este reforço e dotar o programa o mais cedo possível
de estrutura suficiente programa para acompanhar e fornecer uma proteção eficaz
e abrangente para pessoas defensoras dos direitos humanos que são acolhidas pelo
programa. Em particular, de acordo com as informações recebidas durante a visita, é
essencial que o programa atinja uma implementação efetiva em áreas rurais e áreas
distantes dos centros urbanos, onde ocorre a maioria dos atos de violência relatados.
437. Da mesma forma, em reunião realizada com o Ministério Público Estadual do Pa-
rá, foi apontada a necessidade urgente de avançar em uma melhor coordenação do
programa de proteção com os diferentes órgãos de segurança responsáveis pela
662 Criado pelo Decreto nº 8.724, de 27 de abril de 2016, e alterado pelo Decreto nº 9.937, de 24 de julho de
2019.
663 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999.
664 Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Sobre o PPDDH.
665 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 69.
666 CIDH, Informe “Hacia una política integral de protección a personas defensoras de derechos humanos”: Apro-
vado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 30 de dezembro de 2017, parágrafo 338.
667 CIDH, Informe “Hacia una política integral de protección a personas defensoras de derechos humanos”: Apro-
vado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 30 de dezembro de 2017, parágrafo 339.
deralização dos casos conforme requerido pelas vítimas ou seus familiares. De crimes
contra defensores rurais, indígenas e quilombolas a defensores de expressão nacional,
a CIDH insta o Estado brasileiro a mobilizar todas as ações necessárias à proteção de
defensoras e defensores de direitos humanos.
441. A CIDH reitera que o direito à liberdade de associação, no caso específico de defenso-
res de direitos humanos, constitui-se uma ferramenta fundamental que lhes permite
exercer plenamente seu trabalho, obtendo assim um maior impacto coletivo exercí-
cio das suas funções. Dessa forma, qualquer ato que diretamente ou indiretamente
tenda a impedir o direito de associação aos defensores ou, de qualquer forma, torna
eficaz os propósitos aos quais foram associados, constitui um ataque direto à defesa
dos direitos humanos.
442. Ainda no âmbito do trabalho do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Hu-
manos, destacam-se as ações de desenvolvimento e consolidação de uma política de
educação em direitos humanos. O Brasil fez avanços na criação de um Plano Nacio-
nal de Educação em Direitos Humanos, aprovado em 2012 pelo Conselho Nacional de
Educação668 . Resultado de ampla discussão com a sociedade civil e as universidades
por meio do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, o Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos do Brasil representa uma referência para a região.
Infelizmente, a CIDH recebeu, com preocupação, a informação de que o Comitê fora
extinto por meio dos Decretos Nº. 9.759, de 11 de abril de 2019669, e Nº. 9.812, de 30
de maio de 2019670 . O Comitê Nacional cumpria papel fundamental para a promoção
de diretrizes de educação em direitos humanos em todos os níveis de ensino, na edu-
cação formal e não-formal, além de desempenhar a tarefa de internalização, tradu-
ção e adaptação dos parâmetros internacionais para a realização de uma educação
promotora dos direitos humanos para toda a sociedade.
443. No Poder Executivo Federal, outras instituições merecem destaque pela importância
de seu trabalho para a promoção e defesa dos Direitos Humanos no Brasil. Entre elas
está a FUNAI, como instituição central de garantia dos direitos fundamentais da di-
versa população indígena do Brasil. Neste marco, a CIDH saúda a decisão do Supremo
Tribunal Federal que impediu a transferência de competência para identificar, deli-
mitar, demarcar e titular terras indígenas de órgãos especializados como a FUNAI e
668 Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, Resolução CNE/CP 1/2012. 31 de maio de 2012 – Se-
ção 1 – p. 48.
669 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto no. 9.759, de 11 de abril de 2019.
670 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto no. 9.812, de 30 de maio de 2019.
445. Além disso, a transferência da competência relacionada ao registro sindical pelo Mi-
nistério da Justiça poderia trazer riscos enquanto à garantia ao direito de associa-
ção dos sindicatos e movimentos de trabalhadores. Uma vez mais, a Comissão alerta
para um potencial conflito de interesses entre o objetivo original dessas estruturas
governamentais e as demandas por condições de trabalho justas, equitativas e sa-
tisfatórias, exacerbando ainda mais a fragilidade dos mecanismos de proteção dos
671 Portal do Supremo Tribunal Federal, Suspenso dispositivo de medida provisória que transferia demarca-
ção de terras indígenas para Ministério de Agricultura, 24 de junho de 2019; Câmara dos Deputados, Sus-
pensa medida provisória que coloca demarcação de terras indígenas na Agricultura, 24 de junho de 2019.
672 A Medida Provisória no. 870, editada em 1 de janeiro de 2019, alterou a estrutura administrativa do Po-
der Executivo Federal. Seis meses depois, algumas das alterações foram desfeitas pelo Congresso Nacio-
nal, mediante a aprovação da Lei no. 13.844 de 18 de junho de 2019 (quando da conversão da Medida
Provisória n. 870). Todavia, no mesmo dia da promulgação da lei, o Poder Executivo editou nova Medida
Provisória, de no. 886/2019, que retomava algumas das mudanças administrativas introduzidas pela MP
870. Diante disso, ações foram ajuizadas junto ao Poder Judiciário, que se manifestou liminarmente em
24 de junho de 2019, declarando inconstitucionais as mudanças que já haviam sido rejeitadas pelo Poder
Legislativo. No mesmo sentido, o Presidente da Mesa do Congresso Nacional emitiu Ato Declaratório em
25 de junho de 2019, estabelecendo a perda de eficácia das alterações introduzidas pela MP 886/2019.
446. A CIDH salienta que o direito ao trabalho, além de ser a base para a realização de
outros direitos, como o gozo de uma vida digna, cumpre uma função social e requer
proteção especial dos trabalhadores e de suas organizações pelo Estado. Além disso,
direitos consagrados a favor dos trabalhadores são inalienáveis, e as leis que os reco-
nhecem obrigam e beneficiam todos os habitantes do território. Nesse sentido, a CI-
DH apela ao Estado brasileiro a aplicar, no âmbito de suas medidas administrativas,
legislativas e judiciais, o princípio da progressividade e não-regressividade no cam-
po dos direitos sociais, em conformidade com o disposto no artigo 26, da Convenção
Americana e no artigo 1, do Protocolo de San Salvador.
447. A CIDH registra ainda que as construções institucionais feitas pelo Brasil ao longo
das últimas décadas representaram passos importantes em um caminho longo para
a plena garantia de direitos no Brasil. Dessa forma, a Comissão recorda ao Estado
quanto ao princípio da não-regressividade, conclamando todas as autoridades do
país a se comprometerem com a preservação dos avanços alcançados.
449. Neste marco, a CIDH observa com preocupação sobre as limitações impostas pela
Emenda Constitucional nº. 95/2016, que estabeleceu um limite para os gastos fede-
rais no Brasil pelo período de 20 anos. Dados os desafios ainda existentes quanto ao
acesso à educação infantil e ao ensino superior, a alfabetização de jovens e adultos,
673 G1, Ministério do Trabalho será dividido entre Justiça, Economia e Cidadania, 3 de dezembro de 2018.
674 UNESCO. Brazil. Education and Literacy.
450. A CIDH manifesta ainda preocupação com o processo de militarização de escolas pú-
blicas a partir da criação do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares.677 A ga-
rantia do direito à educação requer pedagogia que respeite a individualidade, promova
a cidadania e a socialização com respeito aos direitos humanos e que requer pessoal
especializado. Neste sentido, a Comissão chama a atenção para a distinta natureza das
forças armadas em comparação com aquela destinada à dinâmica educacional.
451. Por outro lado, a CIDH parabeniza o Estado pela adoção de medidas afirmativas no
âmbito do ensino universitário, que lograram aumentar as matrículas de estudantes
afrodescendentes nos cursos de graduação. Enquanto em 2011, do total de 8 milhões
de matrículas, 11% foram feitas por estudantes dessa origem étnico-racial, no ano
de 2016, o percentual de afrodescendentes inscritos subiu para 30% 678 . No entanto,
preocupa a CIDH o Projeto de Lei Nº. 1443 de 2019679, que busca revogar medidas de
ação afirmativa, como a Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, responsável pelo es-
tabelecimento das cotas étnico-raciais.
452. A CIDH recorda que o sistema interamericano enfatizou o dever dos Estados em
adotar medidas para garantir a igualdade real e jurídica entre as pessoas, além de
combater a discriminação histórica estrutural ou de fato contra as pessoas afrodes-
cendentes. Nesse contexto, é imperativa a implementação de medidas de ação afir-
mativa necessárias para garantir os direitos à igualdade e não discriminação às pes-
soas que sofrem da discriminação estrutural. Nesse sentido, a Comissão endossa as
medidas atualmente existentes nas universidades públicas e considera importante a
expansão desses programas para seguir avançando com o crescimento da presença
675 UNESCO, Global Education Monitoring Report: Migration, displacement and education. Building bridges, not
walls, p. 294, 2019.
676 Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, III Relatório Luz da Sociedade Civil da Agenda
2030 de Desenvolvimento Sustentável – Brasil, 2019.
677 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Decreto no. 10.004, 05 de setembro de 2019.
678 Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Censo do Ensino Supe-
rior, 2016.
679 Câmara dos Deputados, Projeto de Lei 1443/2019, Revoga a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que
dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível
médio e dá outras providências, 13 de março de 2019.
453. No que diz respeito ao direito à educação, a Comissão enfatiza que, em 2015, o Conse-
lho Nacional de Luta contra a Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos,
emitiu a Resolução Nº. 12/2015, estabelecendo parâmetros para a garantia das condi-
ções de acesso e permanência de pessoas travestis e trans (e todos aqueles com iden-
tidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais) nos sistemas e insti-
tuições de ensino680. Por sua vez, em 2018, o Ministério da Educação aprovou o parecer
do Conselho Nacional de Educação, editando a Portaria Nº. 33/2018 que permitiu o uso,
em toda a rede de Educação Básica do País, do nome social por pessoas trans e de gê-
nero diverso com mais de dezoito anos de idade681. Não obstante o conteúdo desses re-
gulamentos, a Comissão recebeu informações de que ainda há falta de preparação dos
profissionais da educação para atender às demandas específicas de estudantes trans.
454. Quanto ao ensino superior, desde 2002, alguns programas de pós-graduação em uni-
versidades públicas no Brasil adotaram políticas afirmativas por meio de destinação
de cotas em seus processos de seleção de estudantes a pessoas que sofrem discrimi-
nação estrutural. Nesse sentido, de acordo com um boletim do Grupo de Estudos Mul-
tidisciplinares de Ação Afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (GEMAA
- UERJ), nos últimos dois anos houve um crescimento de ações afirmativas em decor-
rência da Portaria nº. 13, 2016, estabelecida pelo Ministério da Educação (MEC)682 .
Apesar do documento não mencionar pessoas trans e de gênero diverso, alguns pro-
gramas de pós-graduação no país foram sensibilizados para a necessidade de políticas
de cotas para essas pessoas. Segundo o GEMAA, dos 610 programas de pós-graduação
acadêmica com ações afirmativas distribuídas pelo Brasil, apenas 12,62% reservam
vagas com base na identidade e/ou expressão de gênero das pessoas683 .
455. Apesar dos vários avanços na educação que incluem a perspectiva de pessoas cuja
orientação sexual e identidade e/ou expressão de gênero diferem dos padrões social-
mente aceitos, a Comissão relata sua preocupação com o projeto de educação autointi-
tulada em “defesa da ‘escola sem partido’”684 criticando a educação com perspectiva de
680 ENAP, Resolução Nº. 12/2015 do Conselho Nacional de Luta contra a Discriminação e Promoção dos
Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, vinculado ao Ministério dos Direitos
Humanos, 2015.
681 Secretaria Geral da presidência da República, Imprensa nacional, Diário oficial da União. Portaria Nº. 33,
de 17 de janeiro de 2018.
682 Ministerio de la Educación, Portaria Normativa Nº. 13, de 11 de maio de 2016.
683 Jornal O Casarao, Inclusão e Permanência: Políticas de Cotas para Pessoas Transexuais e Travestis na Pós-
-Graduação, 3 de outubro 2018
684 O projeto “Escola Sem Partido” surge como un movimento, que depois se transformou em um projeto de
lei que busca combater uma suposta “doutrina da esquerda”, practicada pelos professores nas escolas.
Sobre o tema ver: Folha de S. Paulo, Saiba como surgiu o termo ‘ideologia de gênero’, en 23 de outubro de
2018; ainda: Movimento Escola Sem Partido, em 31 de janeiro de 2019.
gênero.685 Esse projeto, corporificado no Projeto de Lei Nº. 7180/2014, exige que os pro-
fessores tenham uma posição neutra contra uma suposta “doutrinação ideológica de es-
querda” que, de acordo com os idealizadores do projeto, estaria ocorrendo nos centros
educacionais do país, incluindo o ensino de uma “ideologia de gênero”686 . De igual ma-
neira, preocupa a Comissão a declaração de autoridades contra a educação com pers-
pectiva de gênero687. Segundo informação, foram registradas declarações do Ministério
da Educação indicando o esforço de combater a educação de gênero nas escolas688 .
456. Na opinião da Comissão, o Projeto de Lei nº. 7180/2014 possui um grande potencial
de violar o artigo 13.2 do Protocolo de San Salvador enquanto ao direito à liberdade
de expressão dos educadores. Nesse sentido, a CIDH recomenda que o Estado discuta
as mudanças na educação com os pais das crianças e adolescentes, bem como com os
educadores, buscando “capacitar todas as pessoas a participarem efetivamente de
uma sociedade democrática e pluralista, alcançar uma subsistência digna, promover
compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais,
étnicos ou religiosos e promover atividades em favor da manutenção da paz”689.
457. Em relação à educação com perspectiva de gênero, a CIDH recorda ao Estado que a
perspectiva de gênero é uma ferramenta essencial para combater a discriminação
e a violência contra mulheres e pessoas com diversas orientações sexuais e identi-
dades de gênero; e um conceito que busca tornar visível a posição de desigualdade
e subordinação estrutural das mulheres aos homens devido ao seu gênero. Portanto,
a Comissão lembra ao Estado de sua obrigação em adotar medidas específicas para
modificar os padrões socioculturais de comportamentos heteronormativos, incluin-
do o desenho de programas educacionais formais e não formais para combater pre-
conceitos e costumes e todos os outros tipos de práticas baseadas em a premissa da
inferioridade das mulheres ou de outros grupos historicamente discriminados por
causa de sua diversidade sexual ou identidade de gênero.
458. A CIDH reconhece que o Brasil alcançou o importante feito de estabelecer um sis-
tema universal de saúde que integra e articula serviços em todos os níveis de com-
plexidade, fazendo-os presentes em todo o território nacional. O Sistema Único de
Saúde (SUS), apesar de seus desafios históricos em temas como violência obstétrica,
disponibilidade de medicamentos, entre outros, aparece como modelo de universali-
zação de saúde pública gratuita, representando o compromisso do Estado brasileiro
com a efetivação do direito à saúde. Dentro do SUS destaca-se ainda o Subsistema de
Saúde Indígena, o qual foi exemplo ímpar de política de saúde que acolhe o direito à
diferença na realização do direito à saúde.
461. Além disso, a recebeu-se denúncias de maus-tratos, agressões verbais e físicas, além de
atos de racismo por profissionais de saúde. Da mesma forma, destacam-se casos de ra-
cismo médico por omissão ou negligência no atendimento a mulheres grávidas, bem co-
mo a relativização do sofrimento dessas mulheres692 . Em especial, a Comissão destaca a
responsabilização por meio da condena internacional do Estado pelo Comitê de Acom-
panhamento da Implementação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, em sigla em inglês) no caso de Alyne da
Silva Pimentel Teixeira. Em que a uma mulher afrodescendente moradora do município
de Belford Roxo, no estado do Rio de Janeiro, faleceu em 2002 em consequência de vá-
690 OMS, Prevención y erradicación de la falta de respeto y el maltrato durante la atención del parto en cen-
tros de salud, Declaración WHO/RHR/14.23, Setembro de 2014.
691 Presidência da República, Secretaria de Políticas para as Mulheres, Relatório Anual Socioeconômico da
Mulher 2014, março de 2015.
692 Criola, A Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil Violências e Violações, 2017.
462. A respeito, a CIDH também recomenda a adoção de uma lei federal que determine
que todos os profissionais médicos tenham treinamento sobre a diáspora africana,
estudos sociais brasileiros e os direitos humanos, incluindo a responsabilidade de
respeitar e proteger os direitos fundamentais, tais como os direitos à vida e à inte-
gridade pessoal, sem discriminação.
463. Por sua vez, durante sua visita ao país, a CIDH recebeu relatos quanto à precarização
das políticas de saúde indígena. De acordo com as informações recebidas, durante
2019 houve um redirecionamento da gestão da saúde indígena, bem como a suspen-
são de contratos com organizações que trabalham com o Distrito Sanitário Especial
Indígena (DSEI)694 . Por isso, vários líderes indígenas vinculados ao Fórum de Presi-
dentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena e Organizações Indígenas de todo
o país denunciaram que o Estado estava tomando ações voltadas a paralisar o siste-
ma de atenção à saúde desses povos. Segundo as informações obtidas, se deixaria de
transferir recursos financeiros, contratados por meio de convênios com oito organi-
zações da sociedade civil, que prestam serviços de saúde em 34 Distritos Sanitários
Especiais Indígenas. Nesse contexto, a CIDH tomou conhecimento sobre a existência
de DSEIs com diversos problemas institucionais como ausência de recursos para pa-
gamento de medicamentos; falta de exames, vacinas; problemas com a remoção de
pacientes para centros de referência, assim como a falta de pagamento de servidores
que atuam em comunidades indígenas. Segundo o relatado, tais situações estrutu-
rais já teriam resultado na morte de pessoas indígenas695 .
693 United Nations, Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CEDAW), Communica-
tion No. 17/2008 - Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brazil, 29 de julho de 2011.
694 Conselho Indigenista Missionário, Abandono da saúde indígena pelo governo pode causar mortes “a cada
quatro horas”, 2019.
695 The Intercept Brasil, “Transplantada ou cardiopata? Falta de dinheiro faz médicos escolherem qual crian-
ça indígena atender”, 09 de abril de 2019.
696 A Organização Mundial de Saúde reconheceu a violência obstétrica como uma forma de violência contra
a mulher por ser uma imposição de um grau significativo de dor e de sofrimento evitável por meio do
uso, sem evidência científica, de medicamentos excessivos, de intervenções no parto e da realização de
práticas consideradas desagradáveis, dolorosas ou humilhantes para a mulher. OMS, Prevention and elimi-
nation of disrespect and abuse during childbirth, 3 de setembro de 2014.
465. Segundo pesquisa realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo em parceria com
o Serviço Social do Comércio (SESC), 1 a cada 4 mulheres no Brasil havia sofrido algum
tipo de violência obstétrica698 . Por sua vez, de acordo com informações recebidas pe-
la CIDH, há um aumento de partos realizados por procedimentos de cesárea, os quais
chegam a representar 56% do total da população estudada.699 Essa cifra seria extrema-
mente elevada em comparação com as recomendações da Organização Mundial da Saú-
de, que indicam como aceitável um índice entre 10% e 15%700. Esses dados sugerem que
as mulheres gestantes brasileiras estão sob maior risco de verem suas preferências ig-
noradas, sofrerem discriminação, maus tratos e sobremedicação de suas gestações, sem
dispor de medidas jurídicas adequadas de proteção. Ademais, a prevalência de estereó-
tipos discriminatórios e racistas, que consideram as mulheres negras “mais fortes” e
“resistentes à dor”, se soma à falta de acesso estrutural a serviços de saúde, resultando
em maior exposição das mulheres afrodescendentes a sofrerem violência obstétrica701.
466. Em audiência pública realizada pelo Ministério Público Federal no Mato Grosso do
Sul, identificaram-se padrões de violência obstétrica impostos a mulheres indígenas
e negras, como “desinformação, falta de privacidade, comentários depreciativos, ex-
cesso de toques vaginais, parto na posição horizontal, ausência de acompanhante,
ausência de “doulas”, episiotomia e cesárea de rotina, além do desrespeito às espe-
cificidades étnico-raciais, às evidências científicas e às legislações nacional e esta-
dual”702 . É comum que os serviços de atendimento de saúde reproduzam as práticas
de violência e de discriminação étnico-racial e de gênero que se encontram estrutu-
ralmente presentes na sociedade.
467. A esse respeito, a CIDH recebeu informações sobre o caso de Janaína Aparecida Qui-
rino, mãe de sete filhos e grávida de um oitavo, afrodescendente e em situação de
rua, a qual foi submetida a laqueadura involuntária na cidade de Mococa, São Paulo,
em cumprimento a uma sentença judicial. Considerando a gravidade dos fatos, a CI-
697 OMS, Prevención y erradicación de la falta de respeto y el maltrato durante la atención del parto en centros
de salud, Declaración WHO/RHR/14.23, Setembro de 2014.
698 Fundação Perseu Abramo, “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, Pesquisa de opi-
nião pública, Agosto de 2010.
699 Solicitude de audiência da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (REHUNA), Violência obstétri-
ca que mulheres sofrem no Brasil, no marco do 165 período de seções da CIDH, 3 de agosto de 2017.
700 Zanardo, G., Calderón, M., Nadal, A., Habigzang, L., (2017), Violência obstétrica no Brasil: uma revisão
narrativa, Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
701 Humanista, Violência obstétrica atinge 1 em cada 4 gestantes no Brasil, diz pesquisa, 28 de janeiro de 2018.
702 Ministério Público Federal, Audiência pública promovida pelo MPF debate aspectos da violência obstétri-
ca contra mulheres indígenas e negras, 6 de junho de 2019.
468. Na resposta aos questionamentos formulados pela CIDH, o Estado brasileiro informou
das várias ações que vem desenvolvendo no sentido de garantir o acesso a serviços de
saúde e a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres704, incluindo a dis-
tribuição gratuita de contraceptivos em todo o país, capacitações ao pessoal da saúde
e publicação de manuais e normas técnicas especializadas. Em especial, o Estado afir-
mou que “os direitos sexuais e reprodutivos devem ser entendidos como um direito e
não como uma forma de controle da natalidade” e, portanto, “incluem o direito a deci-
dir, de maneira responsável, ter ou não filhos, quantos filhos ter e em que momento da
vida; o direito a viver uma sexualidade plenamente responsável e sem medo, vergo-
nha ou culpa, independentemente do estado civil, idade ou condição física; o direito ao
acesso a serviços de saúde que garantam privacidade, segredo, qualidade e autonomia;
e o direito a exercer uma sexualidade e uma reprodução livres de discriminação, impo-
sição ou violência”. Ademais, o Estado recordou que o planejamento familiar é conside-
rado um direito dos brasileiros e das brasileiras, garantido pela Constituição Federal
e regulado pela Lei nº. 9.263 de 1996, que rege as práticas de esterilização705e exige a
obtenção do consentimento informado para a realização desse procedimento.
469. A CIDH recorda a Brasil, porém, que nos termos da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a violência contra a mulher
abrange a violência física, sexual e psicológica ocorrida na comunidade e cometida
por qualquer pessoa, incluindo perpetrada ou tolerada por agentes do Estado, abran-
gendo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres,
prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em
instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local706 .
470. Assim, enfatiza que o Estado deve garantir a investigação rápida, completa, indepen-
dente e imparcial dos incidentes de violência obstétrica e negligência médica, asse-
gurando a investigação de todas as partes potencialmente responsáveis e, conforme
o caso, o seu julgamento e pena. Da mesma forma, o Estado deve eliminar todos os
mecanismos legais e de fato para impedir investigações internas, processos crimi-
nais, processos civis e investigações federais.
703 CIDH, Carta de Solicitud de Información al Estado de Brasil, Violencia obstétrica contra mujer en situación de
calle, víctima de una esterilización forzada practicada por el Estado de Brasil. 14 de agosto de 2018. Arqui-
vo da CIDH.
704 República Federativa do Brasil, Respuesta a la solicitud de informaciones sobre esterilización no consentida,
Janaina Aparecida de Quirino, Correspondencia con la CIDH, 12 de setembro de 2018. Arquivo da CIDH.
705 Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 9.263, 12 de janeiro de 1996. Regula-
menta o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalida-
des e dá outras providências.
706 CIDH, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Conven-
ção de Belém do Pará”, 9 de junho de 1994.
471. Sobre a saúde de pessoas trans e de gênero diverso, a Comissão reconhece o esforço
do Estado que desde 2006, através da aprovação da Carta dos Direitos dos Usuários
da Saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS), assegurou o direito de registro de qual-
quer usuário com “nome pelo qual prefere ser chamado, independentemente do re-
gistro civil, não podendo ser tratado por número, nome da doença, códigos, de modo
genérico, desrespeitoso ou preconceituoso”707. Tal direito permite que essas pessoas
possam ser chamadas pelo nome que se identificam em qualquer serviço da rede pú-
blica de saúde. Dois anos depois, em agosto de 2008, o Sistema Único de Saúde pas-
sou a realizar cirurgias de redesignação sexual, também conhecidas como “transge-
nitalização”, para pessoas trans que desejam mudar seus órgãos genitais.708 Sobre
isso, nos últimos 10 anos, 474 procedimentos cirúrgicos foram realizados em transe-
xuais e travestis, segundo informações do Ministério da Saúde.709
472. No entanto, em 2018, foi relatado que quase 300 pessoas trans esperam cirurgia na
rede pública 10 anos após a ordem do SUS. Os mesmos médicos informaram a mídia
que as equipes ainda são poucas e não há profissionais suficientes para aumentar o
número de cirurgias por mês710 . Em geral, a média é de apenas uma ou duas cirur-
gias por mês em cada instituição. A maioria dos médicos afirma que o número de
hospitais que realizam as operações precisa aumentar para que o paciente não pre-
cise viajar, por exemplo, de Feira de Santana, na Bahia, para realizar o procedimento
em Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul711 .
473. A CIDH também tomou conhecimento de que uma pesquisa realizada em 2016 pelo
Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul (UFRGS), com 620 pessoas trans entre 18 e 64 anos dos es-
tados de São Paulo e Rio Grande do Sul mostram dados alarmantes sobre a relação
médico-paciente. Nesse sentido, 43,2% das pessoas entrevistadas disseram evitar os
serviços de saúde simplesmente por serem pessoas trans. A maioria, 58,7%, afirmou
ter sido discriminada durante os cuidados médicos e revelou apenas procurar um
hospital em última instância. Apenas 17,8% dos entrevistados disseram que nunca
sofreram discriminação durante uma consulta712 .
474. Além disso, a CIDH se pronunciou sobre as tentativas de modificar a orientação se-
xual ou a identidade de gênero das pessoas por meio de supostos tratamentos psico-
707 Ministério da Saúde, Carta dos direitos dos usuários da saúde, 2007.
708 Drauzio Varella, Como funciona o SUS para pessoas transexuais?, 5 de dezembro de 2017.
709 Globo, Quase 300 transgêneros esperam cirurgia na rede pública 10 anos após portaria do SUS, 19 de
agosto 2018.
710 Universa, Transexuais ficam ate cinco anos em fila de cirurgia de transgenitalização, 19 de agosto 2018.
711 Globo, Quase 300 transgêneros esperam cirurgia na rede pública 10 anos após portaria do SUS, 19 de
agosto 2018.
712 Drauzio Varella, Como funciona o SUS para pessoas transexuais?, 5 de dezembro de 2017.
475. Por outro lado, o Conselho Federal de Psicologia aprovou, em janeiro de 2018, a Reso-
lução Nº. 001/18, que proíbe os psicólogos “de propor, realizar ou colaborar com qual-
quer evento ou serviço, nas esferas pública e privada, que se refira à conversão, rever-
são, reajuste ou reorientação da identidade de gênero” de pessoas trans e de gênero
diverso717. O documento prevê que os profissionais da área ajam de acordo com os
princípios éticos e o conhecimento da profissão para ajudar a eliminar o preconceito
e não serão coniventes com nenhuma ação que favoreça a discriminação. A resolução
é semelhante à adotada pelo Conselho no caso de orientação sexual, cuja promessa ou
inversão de orientação sexual foi proibida por quase duas décadas no Brasil718 .
476. A Comissão lembra ao Estado que esses tratamentos “carecem de indicação médica
e representam uma séria ameaça à saúde e aos direitos humanos das pessoas afeta-
das”719. Assim mesmo, enfatiza que as várias orientações sexuais e identidades de gê-
nero não são doenças, já tendo sido retiradas da lista internacional de doenças da Or-
ganização Mundial da Saúde. Nesse sentido, a Comissão recomenda que o Estado adote
medidas para que o corpo diretivo dos serviços de saúde do Estado garanta processos
efetivos de regulação e controle dos médicos e profissionais de saúde que oferecem es-
ses serviços, bem como a divulgação de informações com base em evidências científi-
cas e objetivas sobre o impacto negativo que essas “terapias” têm na saúde.
713 CIDH, Violencia contra las Personas LGBTI, OAS/Ser.L/V/II Rev. 2 Doc. 36, 12 de novmebro de 2015, pa-
rágrafo. 200.
714 Conselho Federal de Psicologia, “Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão
da Orientação Sexual”, 22 de março de 1999.
715 The Guardian, Brazilian judge approves ‘gay conversion therapy’, sparking national outrage , 19 de setem-
bro de 2017
716 Huffpost, Bancada conservadora tenta aprovar cura gay e outros retrocessos contra LGBTs, 28 de junho
de 2018; Câmara dos deputados, Projeto de Lei 4931/2016,2016.
717 Conselho Federal de Psicologia, Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em rela-
ção às pessoas transexuais e travestis, 29 de janeiro de 2018.
718 O Globo, Conselho de Psicologia proíbe profissionais de realizar ‘cura’ de travestis e transexuais , 30 de
janeiro de 2018.
719 CIDH, Informe “Violencia contra Personas Lesbianas, Gay, Bisexuales, Trans e Intersex en América”. OAS/
Ser.L/V/II.rev.2, Doc. 36, 12 de novembro de 2015.
7
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
E INFORMAÇÃO
478. A CIDH observa, todavia, que persistem inúmeros desafios à efetiva garantia da li-
berdade de expressão no país. Além dos casos de jornalistas perseguidos e assassi-
nados, há outras crescentes restrições à liberdade de expressão, algumas delas ad-
vindas do contexto de polarização política do país. Por exemplo, a Comissão registra
com grande preocupação as restrições à liberdade de expressão e de cátedra vividas
por professores de todos os níveis de ensino diante de ameaças de denúncias em fun-
ção do conteúdo de suas aulas. O projeto de Lei Nº. 867/2015, apensado ao Projeto de
Lei Nº. 7180/2014 e que propõe criar o “Programa Escola sem Partido”721, se apro-
vado, representaria a institucionalização das violações à liberdade de expressão e
cátedra já vividas por professores. Além do projeto de lei federal, encontram-se ain-
da em tramitação projetos de lei de mesma natureza em 8 assembleias legislativas
estaduais e em 10 câmaras municipais de vereadores722 . A Comissão expressa sua
preocupação quanto ao exercício do direito à liberdade de expressão por parte de
professores e professoras caso esses projetos sejam aprovados.
480. Por outro lado, a CIDH registra que, em anos recentes no Brasil, o livre acesso à in-
formação foi significativamente ampliado a partir da promulgação da Lei de Acesso
Informação724 (Lei Nº. 12.527/2011), que facultou a todos os cidadãos a solicitação
de informações produzidas ou sob tutela do Estado. A efetiva implementação da lei,
sem restrições ou limitações, faz-se importante para que os cidadãos tenham amplo
conhecimento das informações de que detém o estado. A CIDH incentiva a que a Lei
Nº. 12.527 seja aplicada integralmente e sirva de inspiração para iniciativas de leis
locais e regionais.
481. Um espaço cívico vibrante, protegido de ataques ou ameaças, constitui a pedra angu-
lar de sociedades democráticas estáveis e que prestam contas à população. No entan-
to, durante a visita in loco, a Comissão recebeu denúncias sobre restrições à expres-
são crítica no contexto do protesto social e na defesa dos direitos humanos. A CIDH
tem verificado que esta situação se agravou nos últimos anos, especialmente desde
2013, com um aumento preocupante do número de restrições ao exercício dos direi-
tos humanos no contexto dos vários protestos sociais e manifestações que ocorrem
em todo o país725 . Segundo informação das organizações da sociedade civil houve o
aumento da presença da polícia militar nas manifestações em vários Estados, que ao
invés de proteger, agiram no sentido de dispersar os protestos, gerando um efeito
intimidatório sobre aqueles que desejam se manifestar.
482. Entre os atos de violência denunciados está a agressão sofrida pelo fotógrafo Sér-
gio Silva, que em 2013, ano marcado por diversos protestos, os quais tiveram início
em São Paulo e se espalharam pelo país, foi ferido por bala de borracha disparada
pela polícia militar ao cobrir uma manifestação em São Paulo. O incidente fez com
que o comunicador perdesse a visão no olho esquerdo. Também no contexto dos
chamados protestos de 2013, ganharam notoriedade duas outras situações, como
a de Rafael Vieira, um jovem afrodescendente catador de material reciclável, preso
no Rio de Janeiro por portar uma garrafa de água sanitária e outra de detergente,
materiais considerados “incendiários” pela justiça. O caso resultou em uma con-
denação de cinco anos de prisão726 num caso que possui fortes características de
racismo institucional do sistema de justiça brasileiro. De igual maneira, o caso de
Elisa Quadros Pinto, conhecida como “Sininho”, bem como outros 22 ativistas con-
724 Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei nº 12.527, de 18 de novembro
de 2011.
725 Artigo 19, Violações à Liberdade de Expressão, Relatório Anual 2013, 2014.
726 Artigo 19, Protestos no Brasil 2013, 2014.
483. Da mesma forma, em agosto de 2016, a estudante Deborah Fabri, que também es-
tava participando de uma manifestação em São Paulo, ficou ferida quando recebeu
fragmentos de uma bomba não letal lançada pela polícia militar. Por causa disso ela
também perdeu a visão do olho esquerdo728 . Em março de 2017, Edvaldo Alves, de 19
anos, foi ferido por uma bala de borracha enquanto participava de uma manifestação
contra a violência na cidade de Itambé, no estado de Pernambuco, que resultou em
sua morte um mês depois729. Além disso, a CIDH tem sido notificada da permanência
de leis restritivas e o uso de ações judiciais, como o Interdito Proibitório, a fim de
limitar a realização de manifestações730 .
485. A CIDH anota que o uso do aparato judiciário e policial para fins de repressão de mo-
vimentos sociais já foi objeto de contencioso no SIDH, tendo o Estado sido condenado
pela Corte a adotar medidas de reparação e não repetição732 . Durante a visita in loco,
a CIDH recebeu novas denúncias sobre esse tipo de expediente, especialmente em re-
lação a movimentos sociais pelo acesso à terra e à moradia. Um dos casos denuncia-
dos diz respeito à investigação instaurada pelo Ministério Público de São Paulo, que
resultou em denúncia e decreto de prisão de diversas lideranças na luta pela mora-
dia, entre elas a cantora negra Janice Ferreira Silva, conhecida como “Preta Ferreira”.
Tais lideranças são acusadas por crimes de “extorsão” e “enriquecimento ilícito” na
coleta de contribuições para a manutenção dos imóveis ocupados pelos integrantes
727 Conectas, Letter of complaint for human rights violations in the sentencing of 23 activists for exercising their
rights to Freedom of Peaceful Assembly and Association, 2018.
728 Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Comunicado Internacional – direito
ao protesto, 2018.
729 CNDH, Nota Pública do CNDH Sobre a Morte de Manifestante em Itambé-PE, 2017.
730 Instituto Humanitas Unisinos, Indígenas no Paraná são impedidos de realizer manifestação em vias pú-
blicas no oeste do Estado, 09 de abril de 2019.
731 CIDH, CP 09/19 CIDH manifesta preocupação com atos de violência contra trabalhadores rurais no Brasil,
18 de janeiro de 2019. CP 320/19 ONU Direitos Humanos e CIDH condenam assassinatos de lideranças
indígenas no Maranhão, Brasil. 09 de dezembro de 2019.
732 Corte IDH, Caso Escher e Outros vs Brasil. Setença de 6 de julho de 2009.
488. Também no âmbito da campanha eleitoral, mulheres que coordenaram ações para
demonstrar online e nas ruas suas posições foram submetidas a sucessivos episó-
dios de agressão física e assédio através das redes sociais738 . A CIDH vê com extrema
preocupação que, conforme relatado, as organizadoras da iniciativa online recebe-
ram ameaças diretas de violência física e sexual, seus perfis foram hackeados e fo-
ram vítimas de “doxing”739.
489. Finalmente, a CIDH também recebeu informação preocupante sobre uma série de
processos e persecuções penais, invocando crimes como o desacato e a difamação
contra jornalistas, ativistas de direitos humanos e manifestantes. Organizações da
sociedade civil informaram que existiria, por parte das instituições policiais, um uso
excessivo da lei do desacato contra essas pessoas para criminalizar expressões legí-
timas no marco de uma sociedade democrática740 . A esse respeito, a CIDH reafirma a
incompatibilidade das leis de desacato com o artigo 13 da Convenção Americana. A
Comissão enfatiza que o uso do direito penal desproporcionalmente para proteger
de forma privilegiada a honra de funcionários ou pessoas públicas, mesmo nos casos
em que uma condenação penal não ocorre, tem efeitos de silenciamento do exercício
jornalístico e dos que queiram participar do debate público; além de afetar a respon-
sabilidade dos funcionários e o próprio funcionamento do Estado. Do mesmo modo, a
CIDH recebeu informações sobre decisões judiciais que impedem a continuidade das
manifestações artísticas, baseadas em um conceito de moralidade pública incompa-
tível com uma sociedade democrática741 .
491. Por sua vez, o Estado informou à Comissão sobre os avanços implementados pela
Lei Nº. 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI), que estabelece o fim do
sigilo para documentos oficiais e aqueles que contenham informação sobre viola-
ção de direitos humanos. A referida lei ensejou o Sistema Eletrônico do Serviço de
Informações ao Cidadão (e-SIC), que permite que qualquer pessoa solicite informa-
ção a instituições do Poder Executivo. De igual maneira, outras ações vêm sendo
desenvolvidas, como a Plataforma de Cidadania Digital, instrumento central para
a disponibilização de informações, solicitações eletrônicas e acompanhamento de
serviços públicos.743
740 Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Calar Jamais. Um ano de denúncias contra viola-
ções à Liberdade de expressão, 2017. Pp. 18-19.
741 Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Calar Jamais. Um ano de denúncias contra viola-
ções à Liberdade de expressão, 2017.
742 Senado Federal, Projeto de Lei do Senado n° 272, de 2016, em 2 de fevereito de 2021.
743 Arquivos da CIDH, Nota de Resposta do Estado brasileiro ao Projeto de Relatório sobre os Direitos Huma-
nos no Brasil, recebida em 22 de dezembro de 2020. p. 71.
492. A CIDH observa que expressões de incitação ao ódio e discriminação por parte de al-
tos funcionários possibilitam o exercício da violência por grupos que professam dis-
cursos racistas, homofóbicos e misóginos. Nesse sentido, a CIDH declarou repetida-
mente que os funcionários públicos devem adotar um discurso público que contribua
para prevenir a violência por razões discriminatórias, o que exige que se abstenham
de fazer declarações que exponham diferentes grupos a um maior risco de atos de
violência. Dessa forma, as autoridades devem não apenas evitar difundir mensagens
de ódio contra pessoas por causa de gênero, orientação sexual, raça ou condição, mas
também contribuir decisivamente para a construção de um clima de tolerância e res-
peito no qual todas as pessoas possam expressar seus pensamentos e opiniões sem
medo de serem atacadas.
493. Durante a visita in loco, a CIDH observou com extrema preocupação as denúncias re-
cebidas com relação ao aumento de discursos que incitam à violência por motivos
discriminatórios no espaço público e nas redes sociais, especialmente em relação a
mulheres, pessoas LGTBI, afrodescendentes de setores urbanos ou movimentos so-
ciais que lutam por terra, moradia e meio ambiente. Conforme relatado, muitos des-
ses comentários nas redes sociais eram provenientes ou foram endossados por fun-
cionários ou candidatos a cargos públicos eletivos.
495. A CIDH também recebeu informações sobre o uso da homofobia como ferramenta po-
744 Human Rights Watch, A Voice for LGBT Rights Silenced in Brazil, 24 de janeiro de 2019.
745 BBC, Mujer, negra, lesbiana y pobre: quién era Marielle Franco, la concejala de Río de Janeiro cuyo brutal ase-
sinato hizo que multitudes a salieran a protestar en Brasil, 20 de março de 2018.
lítica. Nisso, em outubro de 2017, informações on-line foram divulgadas devido à en-
trevista de um dos candidatos à presidência do Brasil do qual seu oponente nas elei-
ções tinha sido o principal responsável pela criação e distribuição de um “kit gay” nas
escolas brasileiras. Esse material, embora nunca tivesse circulado, era um material
educacional criado em conjunto com a sociedade civil e de acordo com o plano Escola
sem Homofobia - política de educação sexual e contra o bullying nas escolas - que bus-
cava o ensino da perspectiva de gênero nas escolas746 . A inverdade das notícias sobre
o “kit gay” foi confirmada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que solici-
tou a suspensão de links de sites e redes sociais relacionados à denominação747.
497. Da mesma forma, a CIDH relembra que a liberdade de expressão deve ser garantida
não apenas em termos de disseminação de ideias e informações recebidas favoravel-
mente ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também em relação às que
ofendem, colidem, perturbam ou são ingratas a funcionários públicos ou a um setor
da população. No entanto, o artigo 13.5 da Convenção Americana estabelece que “es-
tará proibida pela lei toda a propaganda a favor da guerra e toda a apologia do ódio
nacional, racial ou religioso que constituam incitações à violência ou qualquer outra
ação ilegal similar contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas, por nenhum moti-
vo, inclusive os de raça, cor, religião, idioma ou origem nacional”749. Em particular, a
CIDH e sua Relatoria Especial consideraram que, à luz dos princípios gerais da inter-
pretação de tratados, a “apologia ao ódio” dirigido a pessoas com base em sua orien-
tação sexual, identidade de gênero ou diversidade corporal, constitui incitamento à
violência e, portanto, é contrário aos preceitos e obrigações de direitos humanos as-
sumidas pelo Estado brasileiro.
746 Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Combate à Discriminação, Brasil Sem Homofobia. Programa de
Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual, 2004.
747 Consultor Jurídico, Ministro do TSE determina remoção de vídeo sobre “kit gay”, 16 de outubro de 2018.
748 La Jornada. Discursos de odio en Brasil causan preocupación: ONU, 13 de outubro de 2018.; Europa
Press. La ONU manifiesta su preocupación por la violenta retórica en la campaña electoral de Brasil, 12
de outubro de 2018.; G1. ONU condena atos de violência durante período eleitoral no Brasil, 12 de ou-
tubro de 2018.
749 CIDH, Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 13.5.
499. A CIDH relembra que o funcionamento da democracia requer o mais alto nível possí-
vel de discussão pública sobre o funcionamento da sociedade e do Estado em todos
os seus aspectos. Em um sistema democrático e pluralista, as ações e omissões do
Estado e de seus funcionários devem estar sujeitas à rigorosa inspeção, não apenas
pelos órgãos de controle interno, mas também pela imprensa e pela opinião pública.
A gestão pública e assuntos de interesse comum devem estar sujeitos ao controle da
sociedade como um todo. O controle democrático da gestão pública através da opi-
nião pública promove a transparência das atividades do Estado e a responsabilidade
dos funcionários públicos sobre suas ações, além de ser um meio de atingir o mais
alto nível de participação cidadã. Portanto, o desenvolvimento adequado da demo-
cracia requer a maior circulação de relatórios, opiniões e ideias sobre questões de
interesse público.
500. Por outro lado, durante a visita in loco ao Brasil, as organizações da sociedade civil
também expressaram sua preocupação pelas expressões surgidas durante a campa-
nha eleitoral em relação a suprimir o “ativismo” e os fundos estatais direcionados à
sociedade civil750. Nesse sentido, a CIDH lembra a sua Declaração de Princípios sobre
a Liberdade de Expressão que, no seu 6º princípio, enfatiza que “Toda pessoa tem o
direito de externar suas opiniões por qualquer meio e forma”751. Tal determinação está
em conformidade com a Convenção Americana que, no seu artigo 13º, garante não ape-
nas a liberdade de pensamento e de expressão, mas reforça ainda a responsabilidade
dos Estados membros em proibir “toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso
que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”752 .
750 Folha de São Paulo. Bolsonaro diz que pretende acabar com ‘ativismo ambiental xiita’ se for presidente;
11 de outubro de 2018. Vice, Acabar com o ativismo é também cercear a liberdade da direita, 9 de outubro
de 2018.
751 CIDH, Declaração De Princípios Sobre Liberdade De Expressão, 2000.
752 Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos. Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expres-
são. 1969.
502. A CIDH relembra que funcionários públicos têm o dever de garantir que, com seus
pronunciamentos, não prejudiquem os direitos daqueles que contribuem para a de-
liberação pública por meio da expressão e disseminação de seus pensamentos, tais
como jornalistas, meios de comunicação e organizações de defesa de direitos huma-
nos. Tais funcionários têm o dever de atender ao contexto em que se expressam para
garantir que suas expressões não constituam, nas palavras da Corte, “formas de in-
terferência direta ou indireta ou pressão prejudicial sobre os direitos daqueles que
pretendem contribuir para a deliberação pública por meio de expressão e dissemina-
ção do seu pensamento”754 .
504. Durante sua visita, na cidade de São Paulo a Comissão recebeu a notícia sobre as gra-
ves ameaças recebidas por meio digital e também físico por vários jornalistas, prin-
cipalmente mulheres, durante a última campanha eleitoral. A Associação Brasileira
de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) registrou um total de 141 casos de ameaças e
violência contra jornalistas que cobriam as eleições entre janeiro e outubro755 .
753 CIDH, Relatório Anual dos trabalhos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2011.
754 Corte IDH. Caso Ríos y otros Vs. Venezuela. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Senten-
ça de 28 de janeiro de 2009. Serie C No. 194. Parágrafo 139.
755 Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Brasil: Jornalistas enfrentam intimidação du-
rante campanha eleitoral, 25 de outubro de 2018.
São Paulo denunciou que haveria uma “máquina de difamação” nas mídias sociais no
país. O jornal se refere ao caso de sua jornalista Constança Rezende que sofreu ata-
ques virtuais em 10 de março, além do próprio jornal que teria sido alvo dessas “mi-
lícias virtuais” ao publicar um relatório sobre o caso Rezende, mostrando que suas
declarações teriam sido alteradas. O Estado de São Paulo diz que essas “milícias vir-
tuais” teriam tentado desqualificar o jornal por meio da utilização da hashtag #Esta-
daoMentiu na rede social Twitter. Também informou que, de acordo com especialis-
tas em mídias sociais, esses ataques digitais teriam o apoio de robôs756 .
506. A respeito, a CIDH recebeu informações de que tanto o Supremo Tribunal Federal
(STF)757 quanto o Congresso Nacional758 iniciaram procedimentos para investigar
possíveis estruturas de produção e divulgação de notícias falsas. O desmonte de tais
estruturas parece fundamental não apenas para que se resguarde a qualidade da de-
mocracia no país, como também para que se protejam os direitos humanos das víti-
mas dos referidos ataques, incluindo profissionais de jornalismo.
507. A CIDH manifesta ainda grande preocupação diante das reiteradas ameaças recebidas
pelo jornalista Glenn Greenwald, do canal de notícias online The Intercept Brasil, que
após iniciar reportagens sobre a Operação Lava-Jato no primeiro semestre de 2019, o
jornalista e sua família foram alvo de inúmeras ameaças de morte, ofensas homofóbicas,
incluindo ameaças de deportação pelo próprio Estado. A Comissão ainda expressa sua
extrema preocupação com a informação de que a Polícia Federal do Brasil teria iniciado
investigações sobre o jornalista como forma de intimidação ao trabalho desenvolvido759.
A CIDH recorda que o livre exercício da atividade jornalística e da liberdade de expres-
são são pilares fundamentais de uma sociedade democrática, sendo responsabilidade
do Estado proteger e a respeitar essa atuação. Ademais, chama o Estado a investigar,
julgar e sancionar esses atos de ameaça e violência praticados contra jornalistas.
508. No mesmo sentido, durante a visita, a CIDH tomou ciência de medidas adotadas
pelo governo para incluir oficialmente comunicadores ameaçados devido ao seu
trabalho no programa de proteção a defensores de direitos humanos, sem que
demonstrasse que sua atividade estava especificamente relacionada a direitos
humanos 760 . Segundo a informação, o mesmo foi renomeado para “Programa de
Proteção para Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores Sociais e Am-
756 Estadão, Rede bolsonarista ‘jacobina’ promove linchamento virtual até de aliados, 16 de março de 2019.
757 STF, INQ 4781.
758 Senado Federal, Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - Fake News.
759 Washington Post, Glenn Greenwald becomes focus of Brazil press freedom debate, 12 de julho de 2019.
760 Knight Center for Journalism in the Americas. Comunicadores brasileiros ameaçados são incluídos ofi-
cialmente em mecanismo de proteção do Ministério de Direitos Humanos, 12 de setembro de 2018; Mi-
nistério dos Direitos Humanos. MDH inclui comunicadores e ambientalistas no programa de proteção aos
defensores dos direitos humanos, 3 de setembro de 2018.
509. A CIDH volta a afirmar que o assassinato de jornalistas constitui a forma mais ex-
trema de censura, e que os Estados têm a obrigação de identificar, por meio de uma
investigação completa, eficaz e imparcial, bem como julgar e sancionar os autores
desses crimes. Ademais, as autoridades investigativas não devem descartar o exer-
cício do jornalismo como motivo de assassinato e/ou agressão antes que a investiga-
ção seja concluída. Finalmente, a Comissão relembra o Estado de que a impunidade
desses casos contribui para a autocensura da imprensa.
761 Knight Center for Journalism in the Americas. Comunicadores brasileiros ameaçados são incluídos ofi-
cialmente em mecanismo de proteção do Ministério de Direitos Humanos, 12 de setembro de 2018; Mi-
nistério dos Direitos Humanos. Portaria No. 300,3 de setembro de 2018; Ministério dos Direitos Huma-
nos. MDH inclui comunicadores e ambientalistas no programa de proteção aos defensores dos direitos
humanos, 3 de setembro de 2018.
762 Ministério dos Direitos Humanos. MDH inclui comunicadores e ambientalistas no programa de proteção
aos defensores dos direitos humanos, 3 de setembro de 2018.
8 CONCLUSÕES E
RECOMENDAÇÕES
A. CONCLUSÕES
510. Passados 23 anos da primeira visita ao país, a Comissão constatou que o Brasil possui
um sistema democrático e um Estado de Direito com sólidas instituições democráticas
e de direitos humanos. Todavia, o Estado segue apresentando um cenário de extrema
desigualdade social baseada na discriminação estrutural contra pessoas afrodescen-
dentes e comunidades tradicionais quilombolas, indígenas, pessoas camponesas e tra-
balhadoras rurais, pessoas que vivem na pobreza ou em situação de rua, mulheres e
pessoas LGBTI. Na análise da CIDH, a concentração de renda e a discriminação basea-
da na raça, origem social, em estereótipos de sexo, gênero, orientação sexual e idade
resultaram na exclusão histórica desses grupos, que permanecem em situação de ex-
trema vulnerabilidade.
512. Na aferição da situação dos direitos humanos no Brasil, a condição de gênero mos-
trou-se fator agravante das experiências de desigualdade e discriminação que sub-
jazem aos processos estruturais de violação dos direitos humanos no país. O ma-
chismo e a misoginia continuam relegando a mulher a uma posição secundária na
economia e nos assuntos públicos, com evidentes diferenças salariais no mercado de
trabalho e sub-representação nos parlamentos e demais poderes, sobretudo nos car-
gos de cúpula. Essa discriminação agrava as desigualdades socioeconômicas e étni-
co-raciais, o que evidencia um dos problemas centrais relacionados a não efetivação
dos direitos humanos no Brasil.
que diz respeito ao ônus assumido por elas na criação e educação dos filhos, ao exer-
cício dos direitos sexuais e reprodutivos e acesso a cuidados de saúde. Nesse sentido,
a CIDH tomou nota de diversos casos violência obstétrica contra mulheres indígenas e
negras no Mato Grosso do Sul, e ficou particularmente tocada com o caso de Janaína
Aparecida Quirino, afrodescendente e em situação de rua, submetida à laqueadura invo-
luntária na cidade de Mococa, São Paulo, em cumprimento a uma sentença judicial.
514. Por outra parte, embora o sistema prisional, o sistema socioeducativo e as comuni-
dades terapêuticas sejam regidos por marcos legais e regulatórios distintos, a CIDH
observou, nos três casos, que o Estado não logrou garantir a proteção necessária às
pessoas que se encontram nessas instituições, sejam elas públicas ou privadas. Em
todos eles há registros de casos de tortura e maus-tratos, o que viola normas inte-
ramericanas e internacionais de direitos humanos. A CIDH observa que a falta de
controle do Estado em relação a esses recintos, o consequente autogoverno e as con-
dições deploráveis de detenção nas instituições de privação de liberdade causam
confrontos e tensões que resultam em altos níveis de violência e graves efeitos sobre
a vida e integridade pessoal. Nesse sentido, tanto a Comissão Interamericana quanto
a Corte observaram, com profunda preocupação, que as mortes ocorridas são cau-
sadas em um contexto sistemático de atos repetidos de violência, que resultaram na
concessão de diversas medidas cautelares e provisórias.
516. A CIDH observa que o país tem tido grande dificuldade em assegurar o direito à se-
gurança cidadã a um amplo contingente da sua população. A Comissão registra que
os mais afetados são os grupos mais vulneráveis por marcadores étnico-raciais e de
classe. As pessoas afrodescendentes, especialmente jovens do sexo masculino e de
origem familiar pobre, figuram como vítimas preponderantes de atos de violência le-
tal intencional, grande parte dos quais são cometidos em contexto de ação policial.
Tal desigualdade é reproduzida ou mesmo ampliada pela atuação do sistema de justi-
ça criminal: por um lado, é crônica a impunidade dos crimes cometidos contra essas
517. Casos como o de Nova Brasília, assim como a informação acessada sobre o Massa-
cre de Corumbiara e os crimes de maio de 2006, em São Paulo, demonstram uma le-
niência dos órgãos judiciais responsáveis pela análise desses crimes, o que configura
uma forma de denegação intencional de justiça nesses casos. A CIDH nota que não
apenas casos de massacres envolvendo agentes de segurança, mas também casos de
pessoas envolvidas no aliciamento e utilização do trabalho escravo no Brasil termi-
nam impunes. Na opinião da Comissão, tal característica poderia indicar a existência
de um sistema estruturado de violência e execução de pessoas “indesejadas” na so-
ciedade brasileira, que contariam com a proteção do sistema de justiça. Esse, por sua
vez, somente atuaria para encarcerar aqueles que pertencem a esses grupos mais ex-
postos à vulnerabilidade. De maneira similar e em contrariedade ao entendimento
do Sistema Interamericano, a Comissão nota que seguem impunes os diversos casos
de tortura e desaparecimento cometidos ainda no período da ditadura cívico-militar.
Apesar dos tímidos avanços de reparação, ainda não há informação sobre julgamen-
tos e sanções aos perpetradores, muitos deles já identificados. Em especial, a Comis-
são toma nota, com preocupação, dos recentes processos de desestruturação de polí-
ticas baseados na negação desse passado histórico por parte do Estado brasileiro.
518. A CIDH reconhece que, desde sua redemocratização, o Brasil avançou de maneira
significativa na construção de instituições e políticas públicas que ajudaram a re-
duzir o peso dessas desigualdades estruturais e do passado de violações de direitos
humanos, em muitos casos servindo de exemplo para outros países da região e do
mundo em desenvolvimento. Entre 1988 e 2018, o país promulgou uma nova Consti-
tuição, assinou e ratificou importantes tratados regionais e internacionais de direi-
tos humanos, além de ter modernizado sua legislação doméstica em diversas áreas
relevantes para os direitos humanos. Ademais, o país promoveu reformas no Poder
Executivo, em distintos órgãos do Poder Judiciário, consolidando estruturas com o
potencial necessário à promoção e à defesa dos direitos garantidos por essas leis e
tratados. Nesse passo, o Brasil estabilizou e fortaleceu sua democracia, passando a
realizar eleições livres, gerais e competitivas, além de ter criado e fortalecido insti-
tuições de participação e controle social sobre a ação dos governos. Finalmente, a Co-
missão considera que o país lançou programas e políticas bem-sucedidas, em áreas
como de direitos civis (e.g.: ações afirmativas e medidas anti-discriminatórias); so-
ciais, econômicas e culturais (e.g.: combate à pobreza e à desigualdade); e direitos
coletivos (e.g.: verdade e memória e proteção do meio ambiente). Contudo, a CIDH
destaca sua preocupação com recentes processos de ameaças e desestruturação des-
sas instituições e políticas construídas por mais de duas décadas.
520. Em relação ao conteúdo das políticas, uma área que suscita preocupação da CIDH en-
volve os direitos sociais, econômicos e culturais que, no contexto da crise econômica
vivenciada no país desde 2015, vem sendo impactadas por medidas de austeridade
fiscal. A esse respeito, a Comissão destaca a Emenda Constitucional Nº. 95, conheci-
da como “PEC do teto de gastos”, a qual vem impondo cortes severos e sucessivos no
orçamento em setores como saúde, educação e combate à fome e à pobreza. A CIDH
compreende a eventual necessidade de ajustes nas contas públicas, mas reitera que
tais processos devem buscar preservar essas áreas, sob o risco de penalizar justa-
mente os grupos expostos à situação de vulnerabilidade.
521. Por sua vez, nas últimas décadas, o Brasil galgou avanços importantes no reconheci-
mento e na proteção de pessoas LGBTI, incluindo a garantia do direito ao casamento
e uso do nome social. Nesse período, também há registros de ampliação da partici-
pação política de pessoas LGBTI, com recorde de candidaturas de pessoas trans e
de gênero diverso nas eleições de 2018. Por outro lado, a CIDH constata que o Brasil
continua registrando elevadíssimos índices de violência contra pessoas LGBTI, em
especial lésbicas e mulheres trans; e que, na medida em que uma retórica de “defesa
da família” e das tradições ganha tração no âmbito na sociedade, diversos direitos
dessas pessoas encontram-se sob ameaça.
524. A CIDH registra que a questão do crime e da violência ganharam posição central na
agenda de políticas públicas do Brasil a partir das eleições de 2018, contudo, destaca
com preocupação que a abordagem priorizada desde então se distancia dos parâme-
tros da segurança cidadã. Nesse sentido, a Comissão destaca que propostas recentes
de ampliação das hipóteses de legítima defesa e a flexibilização no acesso a armas de
fogo, assim como a transformação de comunidades pobres em verdadeiras trinchei-
ras de guerra nos estados, em especial no Rio de Janeiro, mostram-se incapazes de
incidir nas dinâmicas geradoras de violência, bem como tendem a agravar a situação
de vulnerabilidade e vitimização de jovens afrodescendentes, mulheres e pessoas
trabalhadoras rurais. Ademais, a CIDH destaca o impacto negativo de tais medidas
no longo prazo, que tende a minar a confiança dos cidadãos em relação ao Estado e
aprofundar fissuras históricas do tecido social.
526. Nas prisões do país, a CIDH observou uma carência generalizada de atendimento mé-
dico e de produtos de higiene para as mulheres, além de tratamento inadequado dis-
pensado a mulheres trans e de gênero diverso, que em muitas ocasiões são enviadas
para compartilhar celas com homens. Da mesma forma, recebeu diversos relatos e
denúncias de utilização de expedientes vexatórios na revista de mulheres que visi-
tam pessoas nas prisões. Nesse quadro de negação sistemática de direitos, a Comis-
são saúda medidas legais e judiciais adotadas para permitir a prisão domiciliar de
mulheres ou adolescentes gestantes, com filhos pequenos, ou que sejam responsá-
veis pelos cuidados de pessoas com deficiência.
528. Por sua vez, em seu primeiro relatório sobre o Brasil, a CIDH apontou a situação de
extrema vulnerabilidade vivenciada por pessoas defensoras de direitos humanos e
a urgência de que o Estado adotasse medidas para garantir a vida e a segurança de
tais pessoas. A CIDH destacou, em especial, a situação de defensores e defensoras de
direitos humanos com atuação em defesa do meio ambiente, de povos indígenas e de
populações envolvidas em conflitos por terra. Não obstante, esse tema foi um dos
que mais esteve presente no contencioso contra o Estado perante o Sistema Intera-
mericano de Direitos Humanos.
530. Durante a visita, a CIDH pôde não apenas confirmar a situação crítica vivenciada por
defensores e defensoras de direitos humanos, como também perceber e registrar a
deterioração das condições de que dispõem para o exercício de suas atividades. A CI-
DH considera que um dos principais problemas associados aos conflitos por terra e
aos deslocamentos forçados tem a ver com o assédio, as ameaças e os assassinatos
contra tais pessoas. A CIDH também observa com preocupação que a impunidade em
relação a esses atos de violência rural contribui para sua perpetuação e seu aumento.
Em muitos casos, tanto no campo quanto nas cidades, as forças de segurança do Es-
tado atuam mais para intensificar a repressão e a criminalização de grupos histori-
camente vulneráveis, fracassando em protegê-los e garantir seus direitos.
531. A CIDH enfatiza o fato de que os riscos associados à defesa dos direitos humanos pas-
saram a incidir até mesmo sobre indivíduos com mandato eletivo e, portanto, com
atuação dentro do aparato do Estado. A perseguição sofrida pelo ex-deputado Jean
Wyllys e o assassinato da ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco explicitam
a deficiência do Estado de garantir a vida e a segurança daqueles que se dedicam a
representar setores excluídos.
532. A CIDH não ignora avanços político-institucionais importantes alcançados pelo Bra-
sil na proteção a defensores e defensoras de direitos humanos, notadamente o Pro-
grama Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e
Ambientalistas, além de seus correspondentes estaduais, e o Programa de Proteção
a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas de Morte. Em sua interlocução com o Estado,
a CIDH recebeu garantias de ampliação no escopo e no orçamento disponíveis para
tais programas, embora, segundo registros recebidos pela CIDH, a execução de um
deles tenha sido posteriormente comprometida por suspensão de repasses e solicita-
ções de dados que poderiam expor os seus beneficiários, repita-se, pessoas em extre-
ma situação de fragilidade.
533. Nesse sentido, a CIDH exorta o Estado a manter e aperfeiçoar tais programas, ao pas-
so em que destaca a importância de medidas efetivas visando promover investiga-
ções rigorosas e céleres e para fazer cessar a flagrante impunidade dos autores de
ameaças e violência contra defensores e defensoras de direitos humanos – medidas
essas que, por seu escopo, requerem compromisso não apenas do Executivo, mas
também do Judiciário e do Ministério Público. A esse respeito, a CIDH chama especial
atenção para a baixa efetividade da previsão legal de federalização de crimes contra
defensores e defensoras de direitos humanos.
534. Dessa forma, a Comissão recorda, com veemência, ao Brasil que grande parte do pro-
gresso alcançado em matéria de direitos humanos não se deve apenas à ação do Es-
tado. As organizações e lideranças da sociedade civil estiveram à frente não apenas
das lutas pela redemocratização, mas também foram e são fundamentais no proces-
so de efetivação dos direitos garantidos no sistema democrático e nos compromissos
internacionais em matéria de direitos humanos firmados pelo Brasil. Nesse sentido,
a Comissão reafirma o valor essencial das pessoas defensoras de direitos humanos
para a manutenção e o fortalecimento da democracia.
535. A CIDH aduz que, durante a visita, recebeu informações de organizações da socie-
dade civil, movimentos sociais e da imprensa sobre uma redução progressiva do es-
paço da sociedade civil para expressar demandas e defender os direitos humanos. A
esse respeito, a Comissão foi informada sobre o uso da força para dissipar manifes-
tações e protestos por parte das forças de segurança; a abertura de processos penais
por desacato e difamação contra pessoas defensoras dos direitos humanos, manifes-
tantes e jornalistas; bem como a estigmatização contra aqueles que são percebidos
como ativistas sociais.
536. Ademais, a Comissão manifesta preocupação com a crescente violência contra jorna-
listas, a qual tem sido agravada pelas novas dinâmicas de comunicação e informação.
Além do número crescente de ataques físicos a profissionais da imprensa, o país tem
registrado práticas de difamação pelas redes sociais, muitas vezes com o uso de notí-
cias falsas. A Comissão lembra que é responsabilidade do Estado proteger e respeitar
o livre exercício da atividade jornalística, além de investigar e julgar atos de ameaça
e violência praticados contra jornalistas.
537. Por fim, a CIDH considera que a proliferação de discursos violentos e discriminató-
rios na esfera pública e nas redes sociais constituem um grande risco ao combate
efetivo à discriminação estrutural. A Comissão registra que essas campanhas são di-
rigidas especialmente contra os direitos das mulheres, afrodescendentes e comuni-
dades tradicionais quilombolas, povos indígenas, pessoas LGBTI, lideranças de movi-
mentos sociais e, até mesmo, agentes públicos cujos mandatos são voltados à defesa
de direitos. Na visita, a CIDH constatou que esses discursos não provêm apenas de
indivíduos ou grupos isolados, mas também de autoridades públicas e políticos elei-
tos, que deveriam estar empenhados na construção de um ambiente de tolerância e
respeito. A CIDH tem alertado para os efeitos deletérios da propagação de discursos
de ódio por autoridades públicas, os quais desafiam a manutenção de uma agenda de
direitos humanos baseada na democracia.
538. Com base em todo o anterior, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos reco-
menda ao Estado:
B. RECOMENDAÇÕES
3. Estabelecer uma política fiscal coordenada que possa contribuir com a redistribui-
ção da riqueza para a dimininuição das brechas de desigualdade, correções das de-
ficiências do mercado, investimentos necessários para o cumprimento dos direitos
humanos, especialmente os direitos econômicos, sociais e culturais:
Segurança cidadã
b. Exceções nas quais se autorize o uso da força mortal segundo critérios objetivos;
9. Tomar todas as medidas necessárias para prevenir, assim como aplicar a devida di-
ligência para investigar e sancionar a violência contra pessoas LGBTI, independen-
temente se essa violência ocorre no contexto familiar, na comunidade ou na esfera
pública, incluindo espaços educativos e de saúde.
10. Implementar legislação federal com o objetivo de exigir uma formação adequada dos
agentes e instituições públicas responsáveis pela aplicação da lei nos diferentes ní-
veis federativos (incluindo juízes, procuradores, defensores públicos e outros servi-
dores públicos, estaduais e federais) no que tange às obrigações de direitos humanos
relacionadas com a não discriminação, o combate a preconceitos implícitos e outros
tipos de formação na luta contra a discriminação.
11. Priorizar a alocação de recursos nas ações de inteligência em relação ao crime or-
ganizado, facções criminosas e milícias, em detrimento das ações de enfrentamento
bélico. Em particular, empreender esforços para rastrear as ações das organizações
criminosas, identificando seus agentes, sobretudo por meio do monitoramento dos
fluxos de capital, transações econômicas empresariais e trânsito de importação e ex-
portação por elas movimentados.
12. Adotar medidas para reverter a militarização das instituições policiais, incluindo:
Acesso à Justiça
13. Garantir a reparação adequada, rápida e integral para todas as vítimas de violência
policial e seus familiares, incluindo apoio financeiro, assistência médica e psicológi-
ca, bem como medidas que evitem a revitimização.
15. Adotar medidas decisivas para garantir a todas as mulheres vítimas de violência e
discriminação, acesso à justiça em todas as etapas (denúncia, investigação e proces-
so judicial) com informações acessíveis em termos de linguagem e sociocultural, com
pessoal treinado e com a devida assessoria jurídica.
Afrodescendentes
17. Desenhar, implementar e financiar sistemas governamentais para coletar dados pre-
cisos e desagregados e informações estatísticas e qualitativas sobre a situação dos
direitos humanos da população afrodescendente nos diferentes níveis da federação e
em temas como saúde, educação, instituições judiciais, entre outras, a fim de criar e
implementar leis interseccionais e políticas públicas adequadas para atender às ne-
cessidades e superar os obstáculos específicos enfrentados por essas pessoas.
18. Adotar políticas especiais e ações afirmativas para garantir o gozo e exercício dos
direitos e liberdades fundamentais de pessoas ou grupos que são vítimas de racismo,
discriminação racial e intolerância correlata, com o objetivo de promover condições
equitativas de igualdade de oportunidades, ações de inclusão e progresso para es-
sas pessoas ou grupos. As ações afirmativas devem ter especial enfoque nas áreas
de educação e mercado de trabalho, propiciando não somente o ingresso dessas pes-
soas ao mercado laboral de alto nível, como sua permanência.
25. Garantir o acesso à justiça e a reparação às violações dos direitos humanos dos po-
vos indígenas e quilombolas causadas no contexto das atividades extrativistas, ex-
ploração e aproveitamento dos recursos naturais.
26. Investigar, sancionar e reparar as ameaças, ataques e violência contra membros dos
povos indígenas e quilombolas causados por agentes estatais ou privados em decor-
rência de atividades de defesa ambiental ou em outros contextos, incluindo o caso do
“Massacre de Caarapó” e outros casos mencionados neste Relatório.
27. Tomar medidas decisivas contra a impunidade por violações de direitos humanos co-
metidas no contexto de negócios ou atividades ilegais contra povos indígenas e qui-
lombolas, por meio de investigações exaustivas e independentes, obtendo a sanção
de seus autores materiais e intelectuais e reparando o âmbito individual e coletivo
das vítimas.
28. Adotar as medidas necessárias para revisar e modificar disposições, ordens judiciais
e diretrizes (incluindo a tese de Marco Temporal e Suspensão da Segurança) que se-
jam incompatíveis com as normas e obrigações internacionais relativas aos direitos
dos povos indígenas sobre suas terras, territórios, recursos naturais e outros direi-
tos humanos dos povos indígenas.
30. Em consulta e coordenação com os povos indígenas e tribais, garantir o direito à saú-
de a partir do enfoque intercultural, de gênero e de solidariedade intergeracional, le-
vando em consideração as práticas de cura e os medicamentos tradicionais.
Mulheres
34. Investigar, processar e sancionar, com uma perspectiva de gênero e como prioridade,
as violações aos direitos humanos de mulheres e meninas, especialmente o feminicí-
dio de mulheres trans. Da mesma forma, investigar com a devida diligência os atos
de violência contra defensoras dos direitos humanos e outros grupos de especial ris-
co mencionados neste relatório.
35. Reforçar a capacidade institucional das instâncias judiciais, como o Ministério Pú-
blico, órgãos da polícia, tribunais e serviços de medicina legal e forense, por meio
da dotação de recursos financeiros, humanos e formativos, para combater o pa-
drão de impunidade dos processos envolvendo violência contra a mulher. Ademais,
fortalecer a aplicação de sanções e avançar com projetos de reparação por meio de
investigações criminais eficazes e não revitimizantes e com adequado acompanha-
mento judicial.
36. Implementar protocolos que contenham perspectiva gênero para crimes relaciona-
dos com a violência contra as mulheres, bem como avançar com processos transpa-
rentes de supervisão de sua implementação e correta implementação.
39. Adotar medidas integrais para respeitar e garantir os direitos à saúde sexual e re-
produtiva das mulheres, reforçando a disponibilidade e a continuidade na oferta de
serviços essenciais. Em particular, garantir o acesso à saúde materna de qualidade;
acesso seguro a métodos de contracepção, incluindo anticoncepcionais de emergên-
cia; interrupção voluntária da gravidez, quando aplicável; acesso a informações ver-
dadeiras e não censuradas; bem como à educação integral necessária para que mu-
lheres e meninas possam tomar decisões livres e autônomas.
Crianças e adolescentes
40. Tomar todas as ações necessárias para que o princípio da excepcionalidade seja
aplicado às medidas direcionadas aos adolescentes em conflito com a lei penal, em
particular para que a privação de liberdade seja aplicada como último recurso pos-
sível. Nesse sentido, medidas alternativas devem ser aplicadas ao processo, de mo-
do que os casos envolvendo crianças e adolescentes possam ser resolvidos por meio
de ações que promovam o desenvolvimento de sua personalidade e sua reinserção
construtiva na sociedade.
41. Adequar todas as unidades socioeducativas aos critérios estabelecidos pelas normas
internacionais na matéria, em particular no que se refere aos parâmetros arquitetô-
nicos que atendam a uma proposta socioeducativa, assim como à adequação aos mais
altos parâmetros de segurança, acomodação, educação, saúde e reinserção social.
42. Adotar medidas para permitir e estimular o contato dos adolescentes que cumprem
medidas socioeducativas com suas famílias e comunidades, promovendo a descen-
tralização territorial dos centros socioeducativos, de maneira que esses adolescen-
tes possam cumprir sanções de internação no mesmo local ou no local mais próximo
de sua casa, da casa de seus pais ou responsáveis e amigos.
43. Registrar e investigar de maneira séria, imparcial, eficaz e ágil todas as denúncias
recebidas sobre o funcionamento do sistema de justiça juvenil e fornecer uma res-
posta a todas as denúncias recebidas. Nos casos em que haja a constatação de viola-
ção dos direitos da criança nesse âmbito, adotar medidas para sancionar de maneira
administrativa, civil e/ou criminal os responsáveis; evitar a repetição dos fatos; bem
como proceder com a adequada reparação às vítimas e seus familiares.
44. Estabelecer um sistema de indicadores sobre justiça juvenil com base em padrões
internacionalmente acordados, de maneira que seja atualizado periodicamente, bem
como assegurando o acesso público a essa informação, que deve conter, no mínimo,
dados sobre: i) número total de adolescentes em cumprimento de medidas socioe-
ducativas, ii) número de adolescentes com dados desagregados por gênero, orienta-
ção sexual, identidade e/ou expressão de gênero, origem étnico-racial, condição de
migrantes, idade, assim como toda e qualquer característica que possa gerar riscos
interseccionais a adolescentes, e; iii) quantidade de adolescentes por tipo de regime
de medida socioeducativa, incluindo os diferentes tipos de internação.
45. Envidar esforços e alocar recursos suficientes para coletar e analisar dados estatís-
ticos oficiais de maneira sistemática sobre a violência e a discriminação contras pes-
soas LGBTI, ou cujas características sexuais variem de acordo com os padrões mas-
culino e feminino.
46. Adotar as medidas legislativas e políticas públicas necessárias para prevenir a vio-
lência, a discriminação e o preconceito contra as pessoas em razão de sua orientação
sexual, identidade e/ou expressão de gênero, ou cujas características sexuais variem
de acordo com os padrões masculino e feminino. Essas medidas devem levar em con-
sideração a intersecção de fatores que podem intensificar a violência, como é o caso
da origem étnico-racial.
47. Adotar políticas públicas integrais que consolidem os avanços em matéria de cida-
dania, igualdade e dignidade para a população trans e de gênero diverso, incluindo o
direito à identidade de gênero.
48. Criar e implementar políticas que garantam o direito das pessoas LGBTI, especial-
mente das pessoas trans e de gênero diverso, a acessar serviços de saúde sem que
sejam submetidas à discriminação ou à violência.
49. Adotar as medidas legislativas e de política pública necessárias para promover os di-
reitos das pessoas LGBTI, incluindo aquelas que propiciem mudanças culturais por
meio de uma educação inclusiva e com perspectiva de gênero diversificada.
50. Continuar avançando no marco institucional da agenda dos direitos humanos das
pessoas LGBTI, garantindo sua permanência, mediante dotação de orçamento ade-
quado e pessoal capacitado, de modo a manter um trabalho efetivo neste sentido.
51. Adotar medidas destinadas a garantir a igualdade perante a lei das pessoas com de-
ficiência, garantindo sua capacidade jurídica em igualdade de condições com as de-
mais pessoas.
52. Eliminar as leis, regulamentos e práticas que discriminem as pessoas com deficiên-
cia, inclusive no contexto de cuidados médicos e, em particular, no contexto de trata-
mentos médicos.
53. Adotar medidas que visem garantir o direito das pessoas com deficiência ao mais
alto nível de saúde possível, em igualdade de condições com as demais pessoas, eli-
minando barreiras que impeçam ou dificultem o acesso à informação, serviços e
bens de saúde.
55. Garantir os direitos das pessoas com deficiência na atenção à saúde sexual e repro-
dutiva, em particular o consentimento, a privacidade e a proteção contra tratamen-
tos cruéis, desumanos e degradantes.
56. Tomar medidas para assegurar que as pessoas com deficiência tenham acesso à jus-
tiça em igualdade de condições com as demais, eliminando práticas discriminatórias,
removendo obstáculos de qualquer tipo e implementando adaptações razoáveis.
58. Criar uma política de drogas com abordagem de reintegração social e de saúde públi-
ca, de forma que se evite tratamentos repressivos e criminalizadores contra aquelas
pessoas que tenham sido detidas por porte de drogas, ou que tenham cometido cri-
mes menores por seu uso problemático ou dependente.
59. Garantir o tratamento digno às pessoas sob custódia do Estado, de acordo com as
normas relativas à privação de liberdade e levando em consideração os riscos espe-
ciais que podem decorrer do gênero, origem étnico-racial, condição de migrante, ida-
de, orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero, assim como toda e qual-
quer característica que possa gerar riscos interseccionais.
60. Facilitar os meios para que as pessoas privadas de liberdade, assim como aquelas
que estejam cumprindo medidas de internação socioeducativa, possam denunciar
atos de tortura, tratamentos desumanos e degradantes, sem que sofram represálias
por suas denúncias.
61. Atuar de forma imediata e ex officio nos casos de denúncias de tortura, tratamentos
desumanos e degradantes, através de investigações efetivas e que permitam identifi-
car, sancionar e punir os responsáveis.
63. Adotar as medidas necessárias para assegurar que todas as pessoas detidas em fla-
grante delito tenham acesso às audiências de custódia, em particular, aquelas deti-
das em cidades pequenas e longe das capitais, bem como aquelas transferidas a hos-
pitais após se encontrarem feridas como consequência de operações policiais.
64. Tomar as medidas necessárias para garantir que, no âmbito da aplicação dessas au-
diências, a determinação da prisão preventiva seja realizada de forma excepcional e
de acordo com os princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade.
66. Fortalecer e dotar o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos de
estrutura suficiente para garantir a proteção efetiva e integral dos defensores de di-
reitos humanos, incluindo a assinatura de acordos estaduais para garantir a efeti-
va implementação desse programa em âmbito nacional. Da mesma forma, assegurar
uma coordenação eficaz com os órgãos de segurança responsáveis pela implementa-
ção das medidas de proteção, a fim de assegurar seu efetivo cumprimento.
67. Garantir a implementação efetiva e integral das medidas de proteção aos defenso-
res de direitos humanos, especialmente àqueles que se encontram nas áreas rurais e
longe dos centros urbanos.
68. Investigar, com a devida diligência, todos os atos de violência contra pessoas defenso-
ras de direitos humanos, considerando como hipótese investigativa que esses atos te-
nham sido cometidos em retaliação às suas atividades de defesa dos direitos humanos.
69. Promover a aplicação do dispositivo legal que prevê a federalização dos crimes co-
metidos contra pessoas defensoras de direitos humanos.
70. Adotar medidas positivas que promovam uma cultura de direitos humanos e um am-
biente livre de violência e ameaças, reconhecendo o valor e a importância do traba-
lho das pessoas defensoras de direitos humanos para o fortalecimento das institui-
ções democráticas e do Estado de Direito.
Tráfico de pessoas
72. Elaborar e implementar políticas públicas para reprimir a violência e outros fatores
que gerem deslocamento interno, especificamente entre as populações camponesas
e trabalhadores rurais que são obrigados a abandonar seus territórios de origem de-
vido à violência no campo.
73. Criar e implementar um quadro normativo com legislação específica sobre a identifi-
cação e proteção de pessoas em situação de deslocamento interno forçado.
74. Implementar, de forma integral, a Lei nº 13.445/2017 (Nova Lei de Migração) a partir
de um processo transparente, com a participação da sociedade civil e de acordo com
os princípios, normas e padrões interamericanos de direitos humanos. Em particular,
criando a Política Nacional de Migração, Refúgio e Apatridia, prevista no artigo 120
da referida Lei.
75. Definir planos nacionais de proteção integral dos direitos humanos e inclusão social
de todas as pessoas em situação da mobilidade humana residentes no país, levando-
-se em consideração fatores como gênero, origem étnico-racial, condição de migran-
tes, idade, orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero, assim como toda
e qualquer característica que possa gerar riscos interseccionais.
76. Aprofundar as ações de acolhimento humanitário, instituídas pela Lei das Migra-
ções, Lei nº 13.445/ 2017 e complementadas pelas medidas estabelecidas pela Lei nº
13.684/2018 a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente de fluxo migrató-
rio provocado por crise humanitária, especificamente no que diz respeito à manu-
tenção e o fortalecimento das ações de acolhimento das pessoas deslocadas da Ve-
nezuela no contexto da atual crise humanitária.
81. Assegurar acesso efetivo e garantias de devido processo nos procedimentos admi-
nistrativos referentes à solicitação de refúgio e à regularização migratória.
84. Criar um órgão para controlar o cumprimento das recomendações da Comissão Na-
cional da Verdade.
85. Fortalecer os mecanismos e ações voltados à reparação integral das vítimas de viola-
ções de direitos humanos perpetradas no contexto da ditadura civil-militar, incluindo
o desenvolvimento de medidas de reabilitação física e psicológica para as vítimas e
seus familiares, bem como a continuidade e o fortalecimento de políticas de memória.
86. Realizar, ex officio, todas as ações necessárias para determinar o destino ou paradeiro
das vítimas de desaparecimento forçado, identificando seus restos mortais e entregan-
do-os a seus familiares. As ações de busca devem fazer parte de uma política pública
abrangente sobre desaparecimentos, realizada por entidades independentes e impar-
ciais de forma sistemática e rigorosa, com recursos humanos e técnicos adequados e
garantindo a comunicação e ação coordenada com os familiares das vítimas.
88. Ratificar a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes
Contra a Humanidade.