A Geografia de Estrabão
A Geografia de Estrabão
A Geografia de Estrabão
RESUMO: Este artigo visa a oferecer um sumário de tudo quanto se produziu a respeito de um dos mais
completos documentos escritos que a Antiguidade nos legou, a Geografia, de Estrabão. O objetivo é
apresentar determinadas informações importantes sobre esta fonte, tais como história dos manuscritos,
edições existentes e traduções disponíveis. Além disso, apresentarei alguns dos estudos que
pesquisadores de várias nacionalidades têm realizado, especialmente no Brasil. Para finalizar, apontarei
de forma sucinta a proposta de trabalho que deverá resultar em minha Dissertação de Mestrado, a qual
envolve Estrabão e sua relação com a península Ibérica.
P ALAVRAS-CHAVE: Estrabão, Geografia, Península Ibérica, Roma, Historiografia.
ABSTRACT: This article aims to provide a summary of all that is written about one of the most complete
written documents that had came to us, Strabo’s Geography. The goal is tried to present certain important
information about this source, such as the manuscript's history and editions and translations available.
Furthermore I will present some of the studies that researchers from various nationalities have done,
including Brazil. Finishing, I will indicate briefly my proposal of work that should result in my dissertation,
which involves Strabo and his relationship with the Iberian Peninsula.
KEY-WORDS: Strabo, Geography, Iberian Peninsula, Rome, Historiography.
Introdução
1
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo; membro do
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano e Mediterrâneo Antigo (Leir-MA/USP).
2
Neste artigo, Antiguidade possui uma delimitação espacial e temporal: Europa, Ásia e África antes do
século VII d.C. Não aprofundarei discussões sobre Antiguidade nas Américas, nem acerca de marcos
temporais.
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Cujo título é Mudanças Culturais na Península Ibérica: A Visão de Estrabão, sob a orientação do prof. dr.
Norberto Luiz Guarinello.
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Estas e outras conjecturas biográficas foram retiradas da tese de doutorado de Sarah Pothecary, Strabo and
the Inhabited World, defendida na universidade de Toronto, Canadá, 1995.
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Estrabão e a Historiografia
Se não há um debate historiográfico declarado, ao menos várias divergências
permeiam os escritos sobre este autor. Há um consenso geral sobre sua predisposição
ao estoicismo – ele próprio se declara estóico (livro 7, capítulo 3, parte 4) – entretanto,
quando se trata de suas opiniões e visões de mundo, as interpretações de sua obra
tomam rumos distintos.
Começando pelo nascimento de Estrabão. Autores revisionistas, como a
canadense Sarah Pothecary (2002, pp. 387-438) e a americana Katherine Clarke 1997),
propõem um recuo de 63 a.C. para cerca de 50 a. C – fato que tornaria possível
estender a morte de Estrabão para o final da década de 20 d.C. Autores consagrados,
como Claude Nicolet (1988), François Lassere (1983, pp. 867-896) e Benedict Niese
(1883, pp. 567-602) fixam como datas prováveis os anos de 64-63 a.C. Essas últimas
foram inferidas a partir da interpretação de expressões utilizadas pelo próprio autor ao
longo dos livros: “no meu tempo” (καθ’ήµας) ou “pouco antes do meu tempo de vida”
(µικρονπρο ήµων). É exatamente na releitura e na análise de toda a Geografia que
aquelas primeiras autoras sustentam suas teses de recuo. Ao reinterpretarem essas
expressões, isto é, ao afirmarem que elas não se referem ao período de vida dele
próprio, e sim de todos aqueles que agora vivem sob a égide de Roma – e das
transformações que seu exército vem provocando (Pothecary, 1997, pp. 235-246) –
Sarah Pothery e Katherine Clarke puderam recuar a data de nascimento de Estrabão
para a década de 50 a. C, colocando-o como espectador privilegiado da passagem da
República para o Império. Com essa proposta, nosso geógrafo é alçado ao posto de
excepcional observador do governo dos dois primeiros imperadores, podendo-se assim
defender a extensão da data da morte e da revisão da Geografia.
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A Geografia
Além da Geografia, sabe-se que Estrabão também escreveu uma obra chamada
Comentários Históricos. Desta, infelizmente, possuímos pouquíssimos fragmentos –
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Para comentários sobre outras traduções, consultar o artigo “Editions of Strabo’s Geography”, no site
http://web.archive.org/web/20070313201041/http://members.aol.com/spothecary/editions.html.
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apresentar, isto é, houve somente resistência por parte dos locais? Não houve nenhuma
outra forma de contato, como, por exemplo, a aliança dos generais romanos com lideres
de comunidades locais?
Com essas e outras indagações em mente, procurei uma fonte que me parecia, e
ainda parece, interessante para pensar tais questões. O livro III da Geografia de
Estrabão é a parte da obra deste grego de Amaseia que pretende descrever a Ibéria.
A historiografia acerca da chegada dos romanos à Ibéria é, em sua maioria, de
origem espanhola e portuguesa. E uma parcela considerável desses autores – destaco o
espanhol José Maria Blázquez e o português Jorge de Alarcão – volta seus olhares
exclusivamente para as populações locais pré-romanas, dados seus anseios em buscar
origens e ressaltar identidades nacionais contemporâneas. Buscam, também, e muitas
vezes de forma inconsistente, ressaltar as características de resistência de algumas
populações da região. Por meio de estudos arqueológicos e linguísticos e da leitura de
fontes escritas antigas, alguns especialistas propuseram quadros variados de populações
convivendo antes, e mesmo depois, da chegada dos romanos.
José Maria Blázquez e Jorge de Alarcão são nomes importantes quando se trata
de estudar a presença romana na península Ibérica. O primeiro, em História de España
Antigua, tem como foco a Espanha, enquanto Alarcão estuda Portugal. Em inúmeros
artigos6, Blázquez também analisa a Ibéria e tenta encaixá-la dentro da lógica
econômica, social e política pensada por ele para o Império romano. Alarcão, por sua
vez, e de certa forma, procura fazer o mesmo, privilegiando, todavia, Portugal7. Ambas
as abordagens estão presas às propostas daquelas pesquisas, que usam
indiscriminadamente o conceito de romanização, ou seja, não criticam elementos-chave
para que se possa pensar além da simples assimilação do poder, da economia, da
política e da cultura romana pelas populações locais; detêm-se em grandes quadros
teóricos fechados, quase nunca abrindo espaços para elementos novos que possam
mudar as estruturas preestabelecidas. Esses autores têm claramente grandes qualidades
e contribuições para trabalho da natureza que proponho, entretanto, devem ser lidos
com um olhar ainda mais crítico em função de suas especificidades.
Outro grande especialista em populações pré-romanas, José Mattoso trata do
tema da chegada dos romanos à região atualmente circunscrita ao território português,
privilegiando as visões daqueles que já habitavam essa localidade. No livro História de
6
Alguns exemplos são: Blázquez, 1961, pp. 3 e ss.; Blázquez, 1971; 1962, pp. 71-129 e 1996, pp. 55-80.
7
Alarcão, 1974; e capítulos I ao V do vol. I de Alarcão, 1987.
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Portugal (Mattoso, 1992) utiliza algumas das descrições de Estrabão para desenvolver
suas ideias.
Uma das pesquisadoras mais influentes em minha pesquisa tem sido a francesa
Monique Clavel-Lévêque. Ela centra-se numa abordagem filológica da Geografia que
serviu como modelo teórico para a análise que desenvolvi acerca do livro III. Mais
preocupada com o livro IV, que trata da descrição da Gália, a autora propõe um estudo
das expressões πρότερον (outrora) e νυν (hoje) para compreender a visão de Estrabão
sobre essa região. A autora percebe que há uma clara diferença quando da utilização
dessas duas expressões, segundo a qual πρότερον aparece sempre ligado a termos
referentes à barbárie, à desordem; ao mesmo tempo, νυν está associado à chegada dos
romanos, da civilidade e da ordem. Monique Clavel-Lévêque propõe que o geógrafo
preocupa-se em demonstrar o quão bom o presente é para os povos dominados pelos
romanos.
Em minha leitura, segui Clavel-Lévêque na pesquisa semiológica e filológica
desses termos, associando-os a uma análise estrutural da obra. O livro III está divido
em cinco capítulos, contendo, grosso modo, uma breve introdução e a descrição de
quatro regiões da península. Estrabão não se baseia em divisões administrativas oficiais
para realizar sua descrição, sendo que sua obra segue o padrão da maioria dos
“périplos” de sua época, isto é, os relatos começam no oeste e se dirigem para o levante
(CUBERO, 1992, pp. 14). Assim, a primeira região sobre a qual detém seu relato é a
Turdetânia (capítulos I e II), que, segundo o próprio autor, seria a região mais
“civilizada” (3, II, 15) (do grego politikon), e que conta com maior presença romana;
localiza-se a sudoeste da península, e a ela dedica mais páginas e atenção. Em seguida
temos a Lusitânia (capítulo III), que abarca as terras das margens do Tejo até o litoral
norte da península, sendo que o limite a leste não é claro, mas encontra-se próximo ao
começo da meseta central espanhola. Continuando o relato, o geógrafo apresenta o
resto da península continental (capítulo IV), o que, grosseiramente, poderímos chamar
de Ibéria pois, apesar da predominância de iberos na região, nem mesmo Estrabão é
contundente ao afirmar que nessa localidade só se encontram iberos. O último capítulo
(V) é dedicado às ilhas que circundam a península.
Com essa metodologia, inferi a existência de um padrão na construção dos dois
livros. Em ambos os casos, Estrabão confronta termos e os hierarquiza, vendo com
bons olhos os ligados ao presente romano em detrimento dos que ilustram as regiões da
Ibéria antes da chegada de Roma. Entretanto, para além da simples oposição decorrente
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dessa análise, isto é, entre “civilizados” e “bárbaros”, o autor da Geografia lembra que
há uma variedade enorme de populações convivendo há tempos na península. Dessa
constatação derivam outras questões, a saber: como explicar a proposta
heterogeneidade desses “bárbaros”? Por que Estrabão se preocupa em detalhá-los?
Quais as implicações dessa variedade de olhares para algo que ele próprio incluía em
uma mesma categoria (“bárbaros”)?
No intuito de responder a essas questões, deti-me a Lusitânia. Nela são
apresentados nominalmente alguns povos, mas nem todos são descritos, assim como
em outras localidades. Estrabão preocupa-se em detalhar, na localidade em questão, o
povo que, segundo suas fontes8, por mais tempo lutou contra os romanos: os lusitanos.
Estes, por sua importância, dão nome à região. Suas principais características – dormir
no chão, usar cabelos longos, não beberem vinho, usarem vestimentas cotidianas e de
guerra, consumirem determinados tipos de alimentos e possuir grande capacidade
bélica – acabam se tornando símbolos da Lusitânia.
Estrabão fará o mesmo com os celtiberos, iberos e turdetanos, dentre outros.
Temos, portanto, que o autor da Geografia, para além da dicotomia civilização versus
barbárie, opta por detalhar estes últimos. Subdividindo-os em grupos cuja
caracterização é atribuída por ele próprio, a partir da leitura das fontes com as quais
teve contato, Estrabão tem como finalidade pontuar essas identidades, pois somente seu
detalhamento seria capaz de individualizá-los dentro de um todo maior. Assim, é no
processo de nomeação e criação desses grupos identitários que nascem as
especificidades das regiões que ele descreve. Pode-se dizer, inclusive, que ele
diferenciou os vários povos que habitavam as diferentes regiões com o objetivo de
melhor descrevê-los.
Tal procedimento contribui para que Estrabão possa explicar, por exemplo, o
motivo pelo qual algumas das diversas localidades adotaram mais facilmente os
costumes romanos e outras resistiram por mais tempo. Ou seja, uma das principais
especificidades das regiões descritas são suas velocidades de assimilação dos costumes
romanos e da incorporação delas às áreas sob influência de Roma. Preocupando-se com
a diferença entre elas, e não especificamente com a identidade de cada uma, Estrabão
pôde estruturar sua obra e melhor compreender essa parte da oikoumene.
8
Estrabão utiliza os livros I e II de sua Geografia para discutir fontes e conceitos, entretanto, ao longo dos
outros quinze apresenta querelas mais específicas entre os autores que utiliza. Artemidoro de Éfeso, Políbio e
Posidônio, sendo este último sua principal fonte para o livro III, estão entre os mais citados por Estrabão.
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Apesar de alguns caminhos começarem a ser trilhados com essa proposta – que
deve e será mais bem trabalhada – outras questões têm surgido conforme o
aprofundamento da leitura do livro III da Geografia. As próximas providências serão,
portanto, trabalhar com expressões e conceitos que Estrabão usa pra classificar esses
povos, localidades, populações etc. Fazer uma análise crítica e estrutural do uso de
εθνων (traduzido por nation na edição bilíngue da Loeb, mas de tradução
extremamente complexa) por Estrabão, por exemplo, para a repensar as formas de
organização da Ibéria proposta por ele, assim como se e de que maneira a incorporação
dessa região ao poderio romano interferiu no processo de constituição do Império.
Considerações Finais
Estrabão e sua Geografia têm sido sistematicamente estudados no meio
acadêmico internacional. Sua produção é rica e numerosa, mas de difícil acesso. As
bibliotecas brasileiras possuem poucas das obras resultantes dessas pesquisas, e o que
vem sendo produzido recentemente ainda não chegou por aqui. Entretanto, os meios
eletrônicos tornaram-se os principais auxiliares na difícil tarefa de superar esses e
outros obstáculos.
Uma das autoras mais citadas neste artigo, e em minha pesquisa, Sarah
Pothecary possui um website dedicado aos estudos estrabonianos, com artigos, noticias
e referências ligadas a este tema. Algumas das informações que não possuímos nos
livros disponíveis podem ser encontradas no endereço http://sarahpothecary.com/.
Há também acervos eletrônicos que disponibilizam revistas que contêm artigos
sobre Estrabão, tais como o da Biblioteca Miguel de Cervantes9, e o do Jstor10.
Mesmo assim, não possuímos grandes obras que sintetizem os diferentes estudos
sobre esta importante fonte. Este artigo não pretende de forma alguma exercer este
papel. Mas sim apresentar, brevemente, o que pude, em pouco mais de dois anos de
pesquisa, com a ajuda de meu orientador Norberto Luiz Guarinello e dos amigos do
Laboratório de Estudos sobre o Império Romano e Mediterrâneo Antigo, reunir sobre
Estrabão, e suas relações com a Ibéria e o Império Romano.
9
http://www.cervantesvirtual.com
10
http://www.jstor.org/
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