Avaliações em Larga Escala e A Intrínseca Relação Com o Currículo
Avaliações em Larga Escala e A Intrínseca Relação Com o Currículo
Avaliações em Larga Escala e A Intrínseca Relação Com o Currículo
0903
Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre as avaliações em larga escala como políticas públicas e a relação
dessas avaliações com o currículo como mecanismo para fortalecer a ação regulatória do Estado, com base nas ideias
preconizadas pelo neoliberalismo. Como metodologia, utiliza-se o enfoque argumentativo de caráter bibliográfico:
Afonso (2009), Bonamino e Sousa (2012), Burbules e Torres (2004), Corazza (2005), Gimeno Sacristán (2013),
Libâneo (2019), entre outros, fundamentam o estudo. Nessa perspectiva, currículo e avaliação não se resumem à
prescrição de conteúdos ou competências, tampouco a exames ou testes em momentos pontuais, pois percorrem
uma educação emancipatória e desvinculada das vertentes gerenciais.
Palavras-chave: Avaliações em larga escala. Currículo. Educação básica. Qualidade.
Abstract: The objective of this article is to reflect on large-scale evaluations as public policies and the relationship
of these evaluations with the curriculum as a mechanism to strengthen the regulatory action of the State, based on
the ideas advocated by neoliberalism. As a methodology, the argumentative approach of bibliographic character is 1
used: Afonso (2009), Bonamino and Sousa (2012), Burbules and Torres (2004), Corazza (2005), Gimeno Sacristán
(2013), Libâneo (2019), among others, support the study. In this perspective, curriculum and evaluation are not
limited to the prescription of content or skills, nor to exams or tests at specific moments, as they go through an
emancipatory education and unrelated to management aspects.
Keywords: Large scale assessments. Curriculum. Basic education.
Resumen: El objetivo de este artículo es reflexionar sobre las evaluaciones a gran escala como políticas públicas y
la relación de estas evaluaciones con el plan de estudios como mecanismo para fortalecer la acción reguladora del
Estado, en base a las ideas defendidas por el neoliberalismo. Como metodología, se utiliza el enfoque argumentativo
del carácter bibliográfico: Afonso (2009), Bonamino y Sousa (2012), Burbules y Torres (2004), Corazza (2005),
Gimeno Sacristán (2013), Libâneo (2019), entre otros, apoyar el estudio. En esta perspectiva, el plan de estudios
y la evaluación no se limitan a la prescripción de contenido o habilidades, ni a exámenes o pruebas en momentos
específicos, ya que se someten a una educación emancipadora y no están relacionados con aspectos gerenciales.
Palabras clave: Evaluaciones a gran escala. Plan de estúdios. Educación básica.
*
Doutora em Educação: Currículo pela PUCSP. Docente Adjunta da Universidade Federal do Tocantins.
E-mail: [email protected].
**
Mestre em Educação. Docente no curso de Licenciatura em Pedagogia - Universidade Federal do Tocantins / Campus Arrais
[email protected].
INTRODUÇÃO
Tomamos como ponto de partida a compreensão de que a avaliação tanto passou a ocupar a cen-
tralidade nas discussões políticas em âmbito nacional e internacional, no cenário educacional quanto
provoca apreensão devido ao caráter complexo e subjetivo do ato de avaliar. Nas discussões nesse campo,
acentuam-se o caráter econômico e a forma como as políticas se estruturam, ligadas a alguns termos
como capital humano, flexibilização, qualidade, responsabilização, gerencialismo, prestação de contas
acerca dos resultados educacionais. Tais termos são oriundos de uma proposta educacional cunhada nos
princípios da globalização e do neoliberalismo.
A respeito da globalização, sublinhamos que, apesar de ela repercutir em mudanças econômicas,
culturais, sociais, tecnológicas, “[...] a forma de sua importância e suas tendências futuras não estão de-
terminadas, [...] bem como a globalização em si não é um fenômeno unificado e global” (BURBULES;
TORRES, 2004, p. 18). Com isso, queremos alertar sobre a globalização, a qual pode afetar alguns
espaços com maior intensidade e de forma diferenciada. A globalização articulada às políticas neoli-
berais é caracterizada por uma visão do Estado Fraco, no sentido de identificar o mundo como espaço
competitivo na lógica econômica e visualizar os estudantes como capital humano, cujo papel é o de se
tornarem trabalhadores eficientes.
A ênfase educacional está em preparar os estudantes para o trabalho e com poucos recursos, uma
vez que o investimento do Estado é mínimo e usa a escassez de recursos como justificativa, por isso
promove cortes como prerrogativa para a manutenção do seu papel no campo da educação. Em contra-
partida, exige-se muito, ou seja, há pouco investimento, mas é preciso justificar o que se faz para que não
ocorram mais cortes. A lógica é esta: se não produz, não recebe investimento, e a forma de averiguar/
regular como está a educação são avaliações externas.
Por outro lado, na visão neoconservadora, prevalece a lógica do Estado Forte1, que se fundamenta
numa visão romântica do passado, em que reinava a harmonia, quando havia um conhecimento real, em
que prevalecia a moralidade e cada pessoa reconhecia e sabia qual era o seu lugar, numa visão estática
e previsível, e “[...] quando comunidades estáveis, guiadas por uma ordem natural, nos protegiam das
ruínas das sociedades” (BURBULES; TORRES, 2004, p. 51). Alinhada a essa visão ideológica, estão os
“[...] currículos nacionais, testes nacionais, um ‘retorno’ a padrões mais elevados, uma revitalização da 2
‘tradição ocidental’ e o patriotismo” (BURBULES; TORRES, 2004, p. 51). O Estado Forte materializa-
-se como Estado regulador e, para isso, utiliza-se da noção de competência, substituindo a autonomia
permitida pela autonomia regulada, estabelecendo a padronização, a racionalização no processo educa-
cional. “Esse regime de controle baseia-se não na confiança, mas em profunda suspeita dos motivos e da
competência dos professores” (BURBULES; TORRES, 2004, p. 53). Os autores acrescentam que, “[...]
para os neoconservadores, o controle seja equivalente à noção de producer capture tão poderosa entre
os neoliberais [...]” (BURBULES; TORRES, 2004, p. 54) e que, na perspectiva dos neoconservadores, o
mercado não é capaz de sanar esse problema. Para eles, somente o Estado Forte e “[...] intervencionista
garantirá que apenas conteúdos e métodos ‘legítimos’ sejam ensinados sendo que professores e estudantes
devem ser vigiados/fiscalizados por meio de testes de âmbito estadual e nacional”.
Apesar de os neoliberais defenderem um Estado Fraco e os neoconservadores um Estado Forte,
podem reforçar-se mutuamente em longo prazo. Isso poderá ocorrer em virtude de a centralização do
mecanismo de controle e a regulação do conteúdo serem o passo inicial para a articulação com o mer-
cado, por meio de planos de certificação e liberdade de escolha. Nessa linha de pensamento, à medida
que os resultados dos exames e testes são publicizados, viabilizam a comparação/ranqueamento entre as
escolas. Os testes/exames certificam e classificam as escolas em boas e más. Nesse âmbito, depreende-se
que haverá maior procura pelas escolas bem classificadas, consideradas boas escolas, em detrimento das
que não ocupam boa classificação, que tenderão a ser classificadas de ruins.
Todavia, para uma parcela de estudantes (particularmente para os mais vulneráveis), a opção será
permanecer em escolas que não foram bem avaliadas, devido à infraestrutura e condições precárias para
1
Para mais aprofundamento sobre o tema, sugerimos a leitura de BURBULES, N. C.; TORRES, C. A. Globalização e Educa-
ção: perspectivas críticas. Tradução Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed Editora, 2004. E GENTILI, P. A.; SILVA, T.
T. da (Orgs.). Neoliberalismo, qualidade total e educação: visões críticas. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
a oferta de ensino. Somam-se a isso a distância entre a moradia dos estudantes e a localização das escolas
mais bem classificadas. Além do mais, pais e estudantes poderão ser responsabilizados e acusados por
não saber escolher boas escolas. Esse cenário aponta que a educação “[...] está envolvida em mudanças
culturais mais amplas, que são essencialmente contraditórias” (BURBULES; TORRES, 2004, p. 34).
Este artigo está organizado da seguinte forma: nas considerações iniciais, apresentamos um re-
corte sobre o contexto de criação das políticas públicas voltadas para a avaliação em larga escala, desde
os anos 1990 do século XX; em seguida, o currículo como objeto das avaliações em larga escala e sua
articulação com a qualidade da educação; e, por fim, os desafios e incertezas no campo educacional com
ênfase no currículo e na avaliação.
2
Disponível em: http://inep.gov.br/educacao-basica/saeb/historico. Acesso em: 20 maio 2020.
Áreas do conhecimento,
Ano Público-alvo Abrangência Formulação dos itens
disciplinas avaliadas
1990– primeira
Língua Portuguesa,
edição: avalia uma 1ª,3ª, 5ª e 7ª Escolas Currículo de sistemas
Matemática, Ciências
amostra de escola séries do E.F públicas- amostral. estaduais.
Naturais, Redação.
públicas.
1993– repete
o formato da
Língua Portuguesa,
avaliação piloto 1ª,3ª, 5ª e 7ª Escolas Currículo de sistemas
Matemática, Ciências
e possibilita séries do E.F públicas- amostral. estaduais.
Naturais, Redação.
aprimoramento do
processo.
1995– adoção da
Língua Portuguesa,
teoria de resposta 1ª, 3ª, 5ª e 7ª Escolas Currículo de sistemas
Matemática, Ciências
ao item e aos séries do E.F públicas- amostral. estaduais.
Naturais, Redação.
questionários.
Matrizes de referência
1997– são Língua Portuguesa,
4ª, 8ª séries Escolas públicas. – avalia competências,
instituídas as Matemática, Ciências
do E.F e e 3ª Escolas particulares- define descritores
matrizes de Naturais, Física, Química,
série do E.M amostral. (conteúdos curriculares
referência. Biologia.
e operações mentais).
Matrizes de referência Língua Portuguesa,
1999– 5ª edição 4ª, 8ª séries Escolas públicas. – avalia competências, Matemática, Ciências
marcada pelos testes do E.F e 3ª Escolas particulares define descritores Naturais, Física, Química,
de Geografia. série do E.M amostral (conteúdos curriculares Biologia, História e
e operações mentais). Geografia.
2001– novo foco: Matrizes de referência
os testes avaliam 4ªe 8ª séries Escolas públicas. – avalia competências,
Língua Portuguesa e
somente Língua do E.F e 3ª Escolas particulares- define descritores
Matemática.
Portuguesa e
Matemática.
série do E.M amostral. (conteúdos curriculares
e operações mentais).
4
Matrizes de referência
4ªe 8ª séries Escolas públicas. – avalia competências,
2003– mantém o Língua Portuguesa e
do E.F e 3ª Escolas particulares- define descritores
formato de 2001. Matemática.
série do E.M amostral. (conteúdos curriculares
e operações mentais).
Matrizes de referência
2005– SAEB
4ª e 8ª séries Escolas públicas. – avalia competências,
reestruturado e a Língua Portuguesa e
do E.F e 3ª Escolas particulares define descritores
criação da ANEB e Matemática.
série do E.M amostral (conteúdos curriculares
ANRESC.
e operações mentais).
Escolas públicas. Matrizes de referência
4ª e 8ª séries Escolas particulares- – avalia competências,
2007– surge o Língua Portuguesa e
do E.F e 3ª amostral mais define descritores
IDEB. Matemática.
série do E.M estratos censitários (conteúdos curriculares
do IDEB. e operações mentais).
continua
conclusão
Áreas do conhecimento,
Ano Público-alvo Abrangência Formulação dos itens
disciplinas avaliadas
Escolas públicas. Matrizes de referência
2011- o SAEB
4ª e 8ª séries Escolas particulares- – avalia competências,
permanece no Língua Portuguesa e
do E.F e 3ª amostral mais define descritores
mesmo formato das Matemática
série do E.M estratos censitários (conteúdos curriculares
edições anteriores.
do IDEB. e operações mentais).
Escolas
5º e 9º anos públicas- censitário. Língua Portuguesa e
Matrizes de referência.
do E.F Escolas Matemática
particulares- amostral
2013– Alfabetização 9º ano do Escolas Ciências Naturais sem
Matrizes de referência.
em foco. E.F públicas- amostral. resultados divulgados.
Escolas
3ª e 4ª séries públicas- amostral. Língua Portuguesa e
Matrizes de referência.
do E.M Escolas particulares- Matemática.
amostral.
Escolas
5º e 9º anos públicas- censitário. Língua Portuguesa e
Matrizes de referência.
do E.F Escolas particulares- Matemática.
2015– Devolutivas amostral.
pedagógicas Escolas
3ª e 4ª séries públicas- censitário. Língua Portuguesa e
Matrizes de referência.
do E.M Escolas particulares- Matemática.
amostral.
Escolas
5º e 9º anos públicas- censitário. Língua Portuguesa e
Matrizes de referência.
do E.F Escolas particulares- Matemática.
2017– SAEB
amostral. 5
Escolas
censitário.
públicas- censitário.
3ª e 4ª séries Língua Portuguesa e
Escolas particulares- Matrizes de referência.
do E.M Matemática.
amostral mais
adesão.
Creche e Estudo públicas
pré- escolas amostral- Estudo BNCC
da E.I piloto.
Escolas públicas-
2º ano do Língua Portuguesa e
amostral e Escolas BNCC
E.F Matemática.
privadas-amostral.
Escolas
5º e 9º anos públicas- censitário. Língua Portuguesa e
2019– Novo SAEB. Matriz de referência.
do E.F Escolas particulares- Matemática.
amostral.
Escolas públicas-
9º ano do Ciências da Natureza e
amostral e escolas BNCC
E.F Ciências Humanas.
privadas-amostral.
Escolas
3ª e 4ª séries públicas- censitário. Língua Portuguesa e
Matriz de referência.
do E.M Matemática.
Escolas particulares.
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do INEP3, 2020.
3
Disponível em: http://inep.gov.br/educacao-basica/saeb/historico. Acesso em: 20 maio 2020.
Com apoio nos dados do quadro, verificamos que, na primeira e segunda versões de avaliação, foi
mantido o formato e, da segunda edição para a terceira (1995), há mudança na metodologia de construção
do teste e adota-se a Teoria de Resposta ao Item4 (TRI), cujo objetivo foi comparar os resultados das
avaliações; além da inserção de questionários, o objetivo consistiu em levantar informações contextuais
sobre os sujeitos e instituições escolares. Verifica-se, ainda, que, da primeira à terceira edição, o público-
-alvo, abrangência, formulação dos itens e áreas do conhecimento e disciplinas avaliadas permanecem
os mesmos, embora, em cada edição, exista registro de aprimoramento dos instrumentos. Em 1997, os
itens passaram a seguir as matrizes de referência do SAEB, as quais avaliam competências e definem os
conteúdos curriculares e operações mentais. O público-alvo muda, e as escolas avaliadas são as públicas
e, a partir desse ano, uma amostra de escolas privadas passa a ser avaliada. A quinta edição em 1999 foi
marcada pelos testes de Geografia.
Em 2001, criou-se um novo foco, e as disciplinas, objeto de avaliação, são Língua Portuguesa e
Matemática. Em 2003, é mantida a estrutura da avaliação de 2001. Na oitava edição, em 2005, a Portaria
Ministerial nº 931, de 21 de março de 2005, reestruturou o SAEB, que passou a ser composto de duas
avaliações: Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB), que continuou sendo chamada de SAEB,
e Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), conhecida como Prova Brasil. A ANEB man-
teve os procedimentos da avaliação amostral das redes públicas e privadas com o critério de no mínimo
dez estudantes por turma, com foco na gestão da educação básica. E a ANRESC avaliava as escolas de
escolas públicas, de forma censitária, que atendiam no mínimo 30 estudantes matriculados na última etapa
dos anos iniciais (4ª série/5º ano) ou dos anos finais (8ª série/9º ano) do ensino fundamental de escolas
públicas, possibilitando resultados por escola.
Observa-se que, no período de 2001 a 2011, as avaliações mantêm os critérios, quer dizer, público-
-alvo, abrangência, formulação de itens e áreas do conhecimento, disciplinas avaliadas. Em 2013, por
meio da Portaria nº 482, de 7 de junho de 2013, foi estabelecido o foco na alfabetização, com a Avaliação
Nacional da Alfabetização (ANA) prevista no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC),
programa que passa a compor o SAEB. Ainda em 2013, os estudantes do 9º ano do E.F realizaram ava-
liação de Ciências em caráter experimental e foi aplicado, como estudo experimental, um pré-teste de
Ciências Naturais, História e Geografia, que não gerou resultados para a edição.
Em 2015, o SAEB passou a contar com a plataforma denominada devolutivas pedagógicas. Os 6
dados obtidos nas avaliações e disponibilizados nessa plataforma são descritos e comentados por espe-
cialistas, tendo por objetivos aproximar as avaliações externas ao contexto escolar, auxiliar gestores e
professores na compreensão dos itens da ANRESC ou Prova Brasil, para que se planejassem ações e
aprimorasse o aprendizado dos estudantes. Em 2017, o SAEB tornou-se censitário e abriu a possibilidade
de adesão pelas escolas privadas que ofertam a última série (3ª ou 4ª) do ensino médio. Desse modo, as
escolas públicas e privadas que atendiam o E.F e E.M passaram a ter resultados no SAEB e no Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Ressaltamos que as escolas privadas continuam partici-
pando em caráter amostral. Ademais, no período de 2015 a 2017, os estudantes do E.F e do E.M foram
submetidos a avaliações dos conteúdos de Língua Portuguesa e Matemática.
Em 2019, a Portaria nº 366, de 29 de abril de 2019, estabelece as diretrizes de realização do Sistema
de Avaliação da Educação Básica (SAEB), todas as avaliações que compunham o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica passaram a ser denominadas SAEB. A Educação Infantil passou a ser
avaliado em caráter de estudo-piloto, com aplicação de questionários eletrônicos exclusivamente para
professores e diretores, pois secretários municipais e estaduais também passaram a responder a questio-
nários eletrônicos. Na educação infantil, não há previsão de testes cognitivos. As mudanças ocorrem a fim
de adequar as avaliações externas à Base Nacional Comum Curricular5 (BNCC), que se torna referência
na formulação dos itens do 2º ano do E.F, para os conteúdos de Língua Portuguesa e Matemática e do
9º ano do E.F, para Ciências da Natureza e Ciências Humanas, aplicadas de forma amostral. Vejamos o
que permanece e o que muda no SAEB desde 2019.
4
Desenvolveu-se na década de 1950, principalmente com os trabalhos de Frederic Lord. É utilizado em avaliações educacio-
nais cujo interesse e necessidade são a estimação da qualidade dos itens e da habilidade dos alunos. Os modelos de Teoria de
Resposta ao Item permitem, mediante informações indiretas sobre uma determinada característica não observável do indivíduo,
obter uma estimativa dessa característica para cada elemento da amostra (SOARES; CESAR; MAMBRINI, 2001, p. 125).
5
Aprovada em 20 de dezembro de 2017.
Permanece
As matrizes de referência de Língua Portuguesa e Matemática das etapas do 5º ano, 9º ano e 3ª série que
compõe a série histórica do IDEB até 2021.
Periodicidade bienal de aplicação de instrumentos e divulgação de resultados em atendimento ao que preconiza
a meta 7 do Plano Nacional de Educação (PNE) – Resolução nº 13/005/2015 com vigência de 2014 a 2024,
bem como a estratégia 7.10, como mecanismo para o monitoramento do plano.
Muda
Não haverá referência a siglas, como ANEB – ANRESC – ANA - ANEI6 - Prova Brasil. As avaliações externas
comporão o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) como sistema que funciona de maneira
orgânica acompanhadas das etapas, áreas de conhecimento e tipos de instrumentos envolvidos.
Unificação das agendas para a aplicação dos instrumentos de avaliação até 2021. E a aplicação dos
instrumentos de avaliação em anos ímpares, 2019 e 2021, e a divulgação dos resultados e indicadores em 2020
e 2022. Anteriormente, a Prova Brasil era aplicada, a cada dois anos e nos anos pares, à ANA.
Elaboração de novos indicadores e o estudo de fatores associados ultrapassando a visão de aferição apenas
no campo da proficiência cognitiva. Nesse sentido, passa a fazer parte do SAEB, dimensões que, segundo o
MEC, fazem parte da dimensão da qualidade educacional, tais como profissionais, investimento, atendimento,
equidade, gestão, ensino-aprendizagem.
Inclusão da educação infantil, uma vez que esta é a primeira etapa da educação básica e está fundamentada
na meta 1.6 do Plano Nacional de Educação (PNE) - Resolução nº 13/005/2015 com vigência de 2014
a 2024. Ressalta-se que, nesta etapa, não haverá aplicação de testes cognitivos e a inclusão da aplicação
de questionários aos dirigentes, gestores, professores, com a finalidade de verificar a qualidade da
infraestrutura, da gestão e de pessoal nas creches e pré-escolas. Os questionários para a educação infantil serão
disponibilizados em plataforma eletrônica. Os indicadores para a qualidade da educação infantil.
Implantação de novas matrizes de língua Portuguesa e Matemática, sendo o segundo ano do ensino
fundamental etapa de referência de acordo com o artigo 12 da Resolução CNE nº 2, de 22/12/2017, que trata da
Base Nacional Comum Curricular (BNCC). E ainda serão utilizados itens de resposta construída.
Implantação das áreas de Ciências da Natureza e Ciências Humanas para o 9º ano do E.F, tendo como
referência a BNCC e em cumprimento à meta 7.7 do PNE, com itens de resposta construída. Em 2020, haverá
novos indicadores para essas áreas.
Aprimoramento dos questionários em atendimento ao que prevê o art.11 do PNE. A previsão é a de que, para
7
estudantes, o questionário seja em papel e, para os dirigentes, diretores e professores, questionários online e
offline. A intenção é coletar informações a respeito do desempenho discente.
As escolas particulares que ofereçam as etapas avaliadas poderão participar da avaliação desde que façam
a adesão mediante índice de recolhimento. Essa adesão tem respaldo no art. 209 da Constituição Federal de
1988; no art. 7 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e nas metas 7.35 e 11.8 do PNE.
Aperfeiçoamento das plataformas para o SAEB, o módulo para adesão das escolas particulares, com previsão
de funcionamento em 2019 e o módulo para a divulgação dos resultados preliminares e interposição de
recursos, tendo perfis específicos de acesso para gestor da escola, gestor do município e gestor estadual, com
previsão para 2020.
A décima medida de aprimoramento são os novos formatos e conteúdos para a divulgação das informações do
SAEB, por meio de narrativas multimídias e novos painéis de divulgação.
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do INEP, 2020.
Outro aspecto a salientar é que os estudantes do E.F farão avaliações de Língua Portuguesa,
Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas e, para as duas primeiras áreas, as avaliações
serão censitárias para a escola pública e amostral para a escola privada e, nas duas últimas áreas, amostral
tanto para as escolas públicas quanto para as escolas privadas.
De acordo com Castro (2009), o Brasil conseguiu implantar um sistema de avaliação que pode
ser considerado um dos mais eficientes do mundo. Esse destaque é feito por causa da abrangência, uma
vez que englobam todos os níveis, modalidades e etapas da educação básica e com informações sobre os
gestores, professores, alunos, bem como sobre a infraestrutura, as dimensões administrativas, pedagó-
gicas, de gestão e aspectos socioeconômicos. Contudo, as avaliações não são utilizadas para a melhoria
6
Nem sequer chegou a existir.
da qualidade do processo de aprendizagem dos estudantes nos diferentes níveis e modalidades. Faz-se
necessário refletir sobre as avaliações externas e o currículo e se essa situação
[...] constitui o intento mais sistemático para transformar a escola em uma instituição produtiva
à imagem e semelhança das empresas. Daí que nela se façam referência aos alunos sempre em
sua condição de ‘clientes-alunos’ e que se transponha – sem matizes- a semântica dos negócios
à dos processos pedagógicos (GENTILI, 2007, p. 147, grifos do autor).
Desse modo, é urgente rever a lógica da estandartização (padronização) da qualidade, da avaliação, dos
currículos, da aprendizagem e a instauração da qualidade social voltada para a formação do cidadão criador
e participante, solidário na construção de um mundo social pautado pelo diálogo e pelo desejo amoroso da
partilha e da reciprocidade. A qualidade educacional entendida como qualidade social precisa ser amparada
por iniciativas que privilegiem a democratização do acesso, democratização do conhecimento, democra-
tização da gestão, financiamento e regime de colaboração e valorização dos trabalhadores da educação.
Contudo, as avaliações não são utilizadas para a melhoria da qualidade do processo de aprendi-
zagem dos estudantes nos diferentes níveis e modalidades. Os resultados implicam a revisão dos cursos
de formação inicial e continuada de professores, na adequação e reorganização dos espaços físicos das
escolas e reorganização curricular, entre outros. No Brasil, as experiências de avaliação da educação
básica estão intrinsecamente relacionadas com o currículo escolar.
Portanto, há de se refletir sobre três períodos ou gerações da avaliação da educação básica no
Brasil e suas interfaces com o currículo escolar. A esse respeito, Bonamino e Sousa (2012) identificam
três gerações da avaliação educacional que, segundo as autoras, apontam consequências diferenciadas
para o currículo escolar.
Gerações da Avaliação
A primeira tem o caráter diagnóstico da qualidade da educação, porém sem causar consequências diretas para
as escolas e o currículo. Os resultados não são encaminhados diretamente para as escolas, são divulgados via
internet para a consulta pública. O objetivo é acompanhar a evolução da qualidade da educação.
A segunda tem consequências simbólicas porque os resultados são divulgados e as informações são 8
apropriadas pelos pais e pela sociedade. Isso mobiliza a equipe escolar a analisar os resultados disponibilizados
por meio de divulgação pública e pode gerar a pressão dos pais e da comunidade sobre a escola. Não tem
o intuito de estabelecer consequências materiais7, mas simbólicas8, porque decorrem da divulgação e da
apropriação das informações pelos pais e comunidade.
A terceira tem consequências materiais com forte responsabilização de acordo com os resultados de alunos
e escolas que podem gerar recompensas ou sanções, explícitas em normas, e que, segundo Zaponi e Valença
(2009), envolvem mecanismos de remuneração em razão de metas estabelecidas.
Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Bonamino e Sousa, 2012.
As Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (2010) expressam que o pro-
jeto político-pedagógico (PPP) das escolas deve conter ações voltadas para a avaliação interna e externa:
Art.44. O projeto político pedagógico, instância de construção coletiva que respeita os sujeitos
das aprendizagens, entendidos como cidadãos com direitos a proteção e à participação social
deve contemplar:
[...]
IX- as ações de acompanhamento sistemático dos resultados do processo de avaliação interna
e externa (Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, Prova Brasil, dados estatísti-
cos, pesquisas sobre os sujeitos da Educação Básica), incluindo dados referentes ao IDEB e/
ou que complementem ou substituam os desenvolvidos pelas unidades da federação e outros
(BRASIL, 2010b, p. 14).
7
Consequências materiais são chamadas de high stakes ou de responsabilização forte (CARNOY; LOEB, 2002; BROOKE, 2006).
8
Consequências simbólicas são chamadas de low stakes ou de responsabilização branda (CARNOY; LOEB, 2002; BROOKE, 2006).
Na seção IV, capítulo II, das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, que
trata da avaliação de redes de educação básica, encontramos menção ao sistema de avaliação em larga escala
e a informação de que a “qualidade” nessas avaliações é a forma de a escola garantir o seu funcionamento:
Art.53. A avaliação de redes de Educação Básica ocorre periodicamente, é realizada por órgãos
externos à escola e engloba os resultados da avaliação institucional, sendo que os resultados
dessa avaliação sinalizam para a sociedade se a escola apresenta qualidade suficiente para
continuar funcionando como está (BRASIL, 2010b, p. 16).
(1988), expressos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e nas Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica (2010b), ao apontar, em seu artigo 3º, que
[...] as etapas e modalidades da educação básica precisam evidenciar o seu papel de indicador
de opções políticas, sociais, culturais, educacionais, e a função da educação, na sua relação com
um projeto de Nação, tendo como referência os objetivos constitucionais, fundamentando-se
na cidadania e na dignidade da pessoa, o que pressupõe igualdade, pluralidade, diversidade,
respeito, justiça social, solidariedade e sustentabilidade (BRASIL, 2010b, p. 1).
Ora, para alcançar essa qualidade, é fundamental que o currículo não só garanta “[...] experiências
escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio às relações sociais que se travam nos
espaços institucionais, e que afetam a construção das identidades dos estudantes [...]” (BRASIL, 2010b,
p.4), mas, acima de tudo, respeite as características identitárias de um país diverso, cuja formação é
assentada em diferentes etnias, culturas, crenças, valores, como o Brasil, e fundamentais na organização
das políticas públicas educacionais curriculares e de avaliação.
Dentro desse quadro, as políticas públicas educacionais voltadas para as avaliações em larga
escala estão diretamente ligadas ao currículo, visto que o conteúdo dos testes e exames são as áreas do
conhecimento/disciplinas avaliadas, e, para a elaboração desses testes e exames, considera-se a matriz
de referência ou a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim, quanto mais as escolas e 10
professores forem regulados, controlados, maiores as possibilidades de formá-los na perspectiva tecni-
cista e de tê-los vinculados à lógica e necessidades do mercado e da indústria. Dessa maneira, o currículo
nacional ou o sistema nacional de avaliação poderiam tornar-se
[...] concessões necessárias da corrente neoliberal para assegurar o controle político do conhe-
cimento que interessa aos objetivos do mercado. Como as avaliações padronizadas têm foca-
lizado nas competências requeridas, essencialmente na resolução de problemas do cotidiano,
sem relação direta com uma ou outra disciplina, parece evidente que o tipo de conhecimento
priorizado é menos crítico e controvertido e mais seguro (APPLE, 1999, p. 183, grifo do autor).
As contribuições de Sebarroja (2013) tanto nos auxiliam a analisar a concepção de educação vin-
culada e expressa na BNCC quanto apresentam quatro aspectos ou modelos das reformas curriculares
mais recentes na Espanha e em outros países:
a) social cujo foco está na discussão sobre na construção de comunidades educativas esco-
lares inclusivas que respeite a diversidade, na tentativa de minimizar a exclusão social e a
desigualdade existente na sociedade;
b) o modelo escolar leva-nos a refletir sobre qual o lugar e papel do Estado e do mercado na
regulação e no controle da escolarização, como priorizar e garantir a existência escola pública
e com qualidade frente à escola privada e as investidas dos processos de privatização;
c) o modelo de gestão diz respeito à organização e direção das escolas, se alinhado a formas
de organização verticais e muito hierárquicas com forte tendência ao autoritarismo com pouca
participação dos professores e agentes da comunidade, na forma de cargos e lideranças indi-
vidualizadas, ou mais horizontais, flexíveis e democráticas com equipes de direção e órgãos
mais democráticos; e
d) o modelo pedagógico cujo foco c pedagogia centra-se [sic] na pedagogia tradicional aca-
demicista e enciclopédica, com ênfase na compartimentalização das áreas de conhecimento
em disciplinas e a pedagogia por objetivos ou competências, nesse caso responsabilizando
os alunos que não demonstram interesse tampouco se esforçam em aprender ou a ênfase está
centrada nas práticas inovadoras e no discurso da neotecnocracia por meio de mensagens
explícitas ou subliminares de orientações gerais ou de regulações concretas (SEBARROJA,
2013, p. 512-514).
Dependendo da forma como esses modelos serão apropriados pelos docentes e comunidade escolar,
podem-se acentuar os interesses globais, neoliberais e neoconservadores, porque as escolas vivem num
amálgama diante da influência e dos mecanismos que o processo de globalização impõe à sociedade
como um todo, não se ignora que a educação se torne objeto de disputa.
Após a BNCC, são efetivadas mudanças no sistema de avaliação, visto que o modelo de avaliação
do SAEB anterior não está mais em sintonia com a orientação curricular que entra em vigência. Embora
reconheçamos a necessidade de adequação no tocante às avaliações externas, verifica-se que são prio-
rizadas determinadas áreas em detrimento de outras. Para o 2º, 5º e 9º anos do ensino fundamental e 3ª
e 4ª séries do ensino médio, priorizam-se Língua Portuguesa e Matemática; e Ciências da Natureza e
Ciências Humanas, avaliadas no 9º ano em regime amostral, tanto nas escolas públicas quanto privadas.
Avaliar prioritariamente Língua Portuguesa e Matemática pode gerar a falsa compreensão de terem maior
importância, o que vai ao encontro do currículo como instrumento de poder, privilegia o conhecimento
considerado poderoso e pode influenciar os docentes a privilegiar o estudo dessas áreas/conteúdos. Isso
repercute na qualidade da educação e cria-se o dilema: educação como instrumento de emancipação e
formação do sujeito crítico, ou educação técnica para responder a testes em momentos pontuais e clas-
sificar escolas e alunos. Os estudos de Neave (2001) salientam que as análises sobre o rendimento dos
estudantes, a produtividade das instituições revisados em momentos pontuais em situações de crise passam
[...] a ser objeto de mecanismos extremamente complexos e críticos, regularmente aplicados e
revisados e intimamente relacionados ao propósito estratégico não somente de orientar a política
da educação nacional, mas também, e ao mesmo tempo, de que a instituição fizesse sua própria
autoavaliação, a fim de poder discernir que lugar ocupava no cenário nacional e de planejar as
maneiras de melhorar ou considerar tal propósito estratégico (NEAVE, 2001, p. 224). 11
Por mais que se afirme serem inovadoras, ao tomar determinadas áreas e conteúdos oriundos dos
programas curriculares oficiais, ignoram-se a voz e a realidade dos sujeitos partícipes dos processos de
ensino e de aprendizagem. Além disso,
[...] as avaliações externas não se empenham em estudar os processos e sua relação com os
resultados ou, quando o fazem, isto ocorre através da seleção de determinadas variáveis que
são trabalhadas estatisticamente para se obter, em certos casos, medidas de associação entre
tais variáveis e as pontuações obtidas nas provas e, em outros, para determinar se existem ou
não diferenças significativas entre grupos formados para tal (RODRÍGUEZ, 2013, p. 532).
Em seus estudos sobre o currículo, Corazza (2005, p. 103), ao defender a ideia de um currículo
que pensa e age inspirado pelas teorias pós-críticas em educação, ou seja, um pós-currículo que enfatiza
as questões culturais e interculturais trabalhando a história e cultura global, etnocentrismo, políticas de
identidade e da diferença, interdisciplinaridade, entre outras, compreende que um pós-currículo “[...]
curriculariza as diversas formas contemporâneas da luta social”.
Sobretudo quanto ao campo político, a autora adverte que um pós-currículo se encontra compro-
metido com a educação pública, gratuita e de qualidade para todos. Rejeita as políticas socioeducativas
dos governos neoliberais que mundializam o capital e globalizam a exclusão, distribuem desigualmente
recursos universais, privatizam e mercantilizam a educação. Corazza (2005) protesta veementemente,
ao dizer que são
[...] políticas de morte, em suas diversas versões, que conservam e fortalecem modos de convi-
vência entre indivíduos, comunidades, povos e nações, pautados pelo sofrimento e humilhação,
Apple (2006) auxilia-nos a entender que, no contexto neoliberal, diferentes visões e interesses
sociais entram em disputa com o objetivo de controlar o campo social do poder em que estão implicadas
as políticas educativas e as práticas escolares. O autor aponta, ainda, que o controle não parte somente
dos organismos institucionais oficiais, mas também de agentes sociais, como os políticos, os planejadores
da educação, a grande imprensa, os pesquisadores, o empresariado, os movimentos sociais e culturais,
as entidades religiosas etc.
Desse modo, a qualidade educacional que a escola defende e pela qual luta é a qualidade social,
amparada por iniciativas que privilegiam a democratização do acesso, democratização do conhecimento,
democratização da gestão, financiamento e regime de colaboração e valorização dos trabalhadores da
educação. A qualidade social necessária à escola é a que atenta para os fatores internos e externos, as
dimensões culturais, socioeconômicas, a vida cotidiana, as expectativas das famílias e dos estudantes
quanto à educação e, acima de tudo, a um projeto de educação pautado na emancipação dos sujeitos que
ali se encontram.
Emancipação no sentido freiriano, em que o aluno é protagonista, tem vez e voz e a escola é es-
paço de inclusão social, respeito às diferenças, tendo o diálogo como premissa básica, que estabelece o
trabalho colaborativo e a gestão participativa. Significa que, ao assumir a educação escolar com qualidade
social, o sistema educacional tem como meta e função garantir aos estudantes o acesso ao conhecimento
culturalmente sistematizado, além de assegurar a permanência e a redistribuição dos bens culturais que
sejam distribuídos entre todos sem distinção.
Conquista-se a emancipação mediante o diálogo, um movimento de renovação educacional e
práticas concretas da educação para e pela cidadania, oferecendo uma resposta concreta à deterioração
do ensino. Um espaço de companheirismo, de respeito à alteridade, à diversidade de culturas, em que
educandos/educadores tenham a possibilidade de manifestar, posicionar e sejam sujeitos de sua vida.
Corazza (2005) sustenta que um pós-currículo não pode aceitar conviver com nenhum dos currí-
culos oficializados pelos governos neoliberais, nem com seus programas de avaliação, seja na educação
infantil, no ensino fundamental, no ensino médio, seja no superior, porque tais currículos se fundamentam 12
no princípio de uma totalizadora identidade-diferença nacional.
DESAFIOS E INCERTEZAS
Estamos a viver uma época com contornos ainda muito indefinidos com relação à qualidade da
educação, mais difícil contar com referências políticas e teórico-conceituais consistentes e seguras quan-
to à realidade social e educacional. Fazem-se, assim, reflexões necessárias a esse contexto que nos traz
inúmeros desafios e incertezas.
Nesse sentido, Bonamino e Sousa (2012) discorrem sobre os riscos de as avaliações relativas a
políticas de responsabilização aumentarem a preocupação de diretores, coordenadores e professores em
preparar seus alunos para os testes, levando a um estreitamento do currículo escolar. Isso nos indica as
implicações para a avaliação da aprendizagem, quando as escolas passam a organizá-la, tomando por
referência o tipo de teste utilizado pela avaliação em larga escala.
Outra questão consiste na ampliação excessiva das funções da escola, e, para o processo de implan-
tação e avaliação, é preciso pensar na organização de tempos e espaços e sobre o currículo que impacta
diretamente a qualidade de educação. Diante desse quadro, a preocupação com a qualidade da educação é
primordial e justificam-se as reflexões, no sentido de utilizar a avaliação com caráter formativo, oportuni-
zando a autoavaliação para rever posturas, alterar rotas em benefício tanto da “[...] qualidade pedagógica
quanto da qualidade política, pois requer compromisso com a permanência do estudante na escola, com
sucesso e valorização dos profissionais da educação [...]” e pressupõe que escola deve “[...] conceber a
qualidade como qualidade social, que se conquista por meio de acordo coletivo” (BRASIL, 2010a, p.
16). Nessa esteira, questiona-se a seguinte ideologia: as pressões geradas pela competição, fomentada
pelos instrumentos avaliativos, farão com que sejam mobilizados processos e recursos que resultarão em
melhoria da qualidade de ensino?
Para além do pessimismo, sublinhamos que, com o cenário do COVID-19, está mais latente a
questão da exclusão tecnológica de grande parcela da sociedade, que é apresentada diariamente na mídia.
Isso nos leva a refletir: como estão ocorrendo os processos formativos? E que impactos poderão gerar
nos resultados das futuras avaliações externas, sobretudo porque se prioriza o conteúdo a ser dado em
detrimento das reais condições de acesso a eles e das questões emocionais, psicológicas e econômicas
dos estudantes?
Nessa linha de raciocínio, recorremos a Ramal (2002), que, ao tratar das tecnologias, propõe que
estamos inseridos em três cenários, a saber: o primeiro denominado tecnocracia domesticadora, com
uma multiplicidade de informações efêmeras e fragmentadas, tornando os alunos “escravos ambulantes
da tecnologia”; o segundo é o pay-per-learn, que acentua a exclusão, à medida que prioriza professores
com significativas habilidades técnicas em detrimento da capacidade crítica e da produção ou do uso das
tecnologias da informação e comunicação; e o terceiro é a cibereducação integradora, a escola híbrida,
integrando homem e tecnologia. Portanto, cabe-nos compreender e enfrentar as transformações no co-
tidiano da escola, refletir sobre mudanças implementadas por meio de decretos, projetos, referenciais,
sem mudar a condições práticas da escola que adote uma postura radicalizada da tecnologia que agrave
os problemas da educação e traga a bandeira da tecnologia para a resolução de todos os males.
Salientamos e reiteramos o descompasso com a realidade de nossos alunos e de parte dos pro-
fessores, que estão no cerne dos desafios e incertezas da qualidade da educação e visualizam as novas
propostas com relação ao uso das tecnologias no processo de ensino e aprendizagem, com desconfiança
e insegurança. De acordo com Castells (1999, p. 573), “[...] a sociedade em rede parece uma meta de-
sordem social para maior parte das pessoas [...]”, e vivemos em uma lógica incontrolável dos mercados,
tecnologia, ordem geográfica, apesar da evolução histórica da tecnologia, visto que
[...] a história está apenas começando, se por história entendermos o momento em que, após
milênios de uma batalha pré-histórica com a natureza [...] nossa espécie tem alcançado o nível
de conhecimento e organização social que no permitirá viver em um mundo predominantemente
social (CASTELLS, 1999, p. 573).
13
Além disso, inicia-se uma nova existência, pois somos forçados a estruturar outra lógica para nossa
sociedade e, nesse contexto, o processo educacional, considerando que nosso modo de agir, convicções,
crenças se desestabilizam, o currículo e a avaliação são fortemente afetados. “Mas este não é necessa-
riamente um momento animador porque, finalmente sozinhos em nosso mundo de humanos, teremos de
olhar-nos no espelho da realidade histórica. E talvez não gostemos da imagem refletida” (CASTELLS,
1999, p. 573-574). Portanto, diante dos desafios que surgem, o ideal de uma educação crítica e emanci-
padora fica no terreno da incerteza porque,
[...] afinal, o currículo, assim com a teoria que o explica, é uma construção histórica que se
dá sob determinadas condições. Sua configuração e seu desenvolvimento envolvem práticas
políticas, sociais, econômicas, de produção de meios didáticos, práticas administrativas, de
controle ou supervisão do sistema educacional, etc. (GIMENO SACRISTÁN, 2013, p. 10).
Não há uma política, foros estáveis, organismos ou instituições dedicadas à melhoria da qualidade
dos currículos, enquanto a qualidade da educação depende do que propusemos que os alunos aprendam
ou lhe impomos (GIMENO SACRISTÁN, 2013, p. 11).
Nessa linha de raciocínio, Morin (2001), ao tratar dos sete saberes necessários à educação do futuro,
situa a importância de saber navegar em um oceano de incertezas, através de arquipélagos de certezas.
Sobretudo pelo que preconiza Sebarroja (2013), “[...] a história tem demonstrado várias vezes que a defesa
de um Estado fraco e que retira direitos sociais é perfeitamente compatível e coerente com a tutela de
um Estado forte para garantir o controle ideológico e moral da cidadania” (SEBARROJA, 2013, p. 513).
Apesar de o sistema e a política de avaliação da educação brasileira estarem consolidados, em
2019 houve sua 15ª edição, existem limites a ser superados para alcançar os objetivos propostos. A tão
almejada educação de qualidade requer políticas públicas de inclusão. A pensar nas condições de oferta
da educação, no contexto social dos estudantes e das escolas, são inúmeros os desafios. Os
[...] esforços para que ninguém fique para trás, se evite o fracasso escolar e seja real o slogan
aprender ao longo de toda a vida não são conquistados fazendo-se diagnósticos do sistema, mas
contando com programas corretos de política educacional, formação e apoios aos professores
que abram caminho para o êxito da educação. Porém, acima de tudo, é imprescindível que haja
uma mudança de cultura. (GIMENO SACRISTÁN, 2013, p.11, grifo do autor).
Para Gentili (1996), na visão da pedagogia neoliberal, a educação tem por finalidade desenvolver
competências e habilidades para que os estudantes compitam no mercado de trabalho, atendendo à lógica
da classificação e hierarquização meritocracia. Portanto, torna-se primordial romper com a lógica e os
princípios e metodologias de gestão de política pública ditados pelos institutos e fundações empresariais,
excluindo o princípio de uma gestão democrático-participativa. Segundo Saviani (2020), o rompimento do
modelo democrático de gestão e a desresponsabilização do Estado ocorrem, principalmente, pela adoção
de uma política pragmática e de natureza gerencial, implementada por institutos e fundações educacionais 14
na definição de políticas educacionais, sem debate público das medidas adotadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No cenário apresentado, entende-se que as avaliações em larga escala lidam com uma visão es-
treita de currículo escolar diante do que as escolas se propõem como objetivos para a formação de seus
estudantes, existindo uma complexidade na utilização padronizada da aplicação dos testes para aferir
objetivos escolares relacionados a aspectos não cognitivos. Depreende-se que os sistemas educacionais
brasileiros se encontram sob a tutela de um projeto de nação marcado pela globalização conectada ao
neoliberalismo e neoconservadorismo e os impactos advindos dessa influência e interferência no processo
educacional contribuem para o surgimento de uma educação domesticadora.
Nessa direção, currículo e avaliação não se resumem à prescrição de conteúdos (ou competências)
nem às avaliações pontuais, pois percorrem uma educação emancipatória e desvinculada das vertentes
gerenciais. Onde fica a formação humana? Que sujeito pretendemos formar? Sabemos da relevância do
conhecimento, mas este por si só não desencadeia as transformações e melhoria da qualidade de vida,
precisa ser acompanhado de um projeto de nação que respeite a diversidade, reconheça o sujeito coletivo, o
diverso e o plural, as competências e habilidades no sentido de humanizar. Sobretudo, currículo e avaliação
devem estar assentados em uma educação como processo, que envolve tempos, espaços, ritmos, a qual é
dinâmica como a vida, que problematize e estabeleça ligações entre o saber científico e o empírico, que
tenha sentido. Enfim, é preciso construir outra relação educativa, uma educação que esteja, de fato, em
sintonia com a realidade social que vivenciamos, que desnude essa lógica da escola como empresa, dos
estudantes como clientes, do privilégio ao conhecimento técnico. Almejamos que currículo e avaliação
sejam permeados de sentido e significação, uma vez que o conhecimento deve estar a serviço da neces-
sidade humana. Ademais, acima de tudo, que mobilize cada criança, jovem ou adolescente a “ser mais”.
O ser mais diz respeito ao processo de conscientização e humanização do ser humano, de sua
condição de sujeito em construção e de sujeito inacabado, em constante transformação de si mesmo e do
mundo. É o processo de reflexão e conscientização de estar no mundo, de refletir sobre suas potencialida-
des, perspectivas e capacidades. Nesse sentido, na busca do ser mais, o ser humano assume como projeto
de vida a luta pela liberdade de expressão e de acesso aos bens culturais, como forma de emancipar a
si mesmo e aos outros. Conforme ressalta Freire (2005, p. 86), essa “[...] busca do ser mais, porém, não
pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí
que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos”.
Em conformidade com Freire no que diz respeito ao trabalho em comunhão, Saviani (2020) propõe
que é necessário articular ações de resistência no coletivo com fóruns nos âmbitos municipal, estadual
e nacional em defesa da escola pública. Contudo, não apenas se limitando aos profissionais envolvidos
na educação, senão proclamando o envolvimento dos sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais.
Ademais destaca para que ocorra “um desencadeando para uma grande mobilização de resistência ativa
contra o golpe jurídico-midiático-parlamentar que vitimou o país” (SAVIANI, 2020, p. 17).
Acreditamos na relevância e necessidade de pesquisas que investiguem a utilização dos resultados
das avaliações externas, com o objetivo de aperfeiçoar o sistema educacional, bem como o impacto dessas
avaliações no currículo escolar.
REFERÊNCIAS
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BONAMINO, A.; SOUSA, S. Z. de. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil:
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