A Decadência Espiritual No Nosso Tempo e A Busca Humana Pela Existência Autêntica
A Decadência Espiritual No Nosso Tempo e A Busca Humana Pela Existência Autêntica
A Decadência Espiritual No Nosso Tempo e A Busca Humana Pela Existência Autêntica
Anete Roese**
Adilson Schultz***
Resumen
*
Artigo de reflexão. Pesquisa realizada com apoio do Conselho Nacional de Pesquisa e
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, para o projeto “A situação espiritual do
nosso tempo: crise e busca da existência responsável”.
**
Doutorado em Teologia, Instituto Ecumênico de Pós Graduação em Teologia da Escola
Superior de Teologia, EST, São Leopoldo/RS. Professora adjunta da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Correio eletrônico: [email protected]
***
Doutor em Teologia, Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo/RS. Professor adjunto
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Professor no Centro
Universitário Metodista Izabela Hendrix. Correio eletrônico: [email protected]
theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
La decadencia espiritual de nuestro
tiempo y la búsqueda humana de la
existencia auténtica
Resumen
El texto que sigue presenta una reflexión sobre la degradación
488 de la dimensión espiritual de la humanidad en el mundo con
temporáneo, la crisis y frustración del ser humano frente a la
situación que vive, y el deseo de una existencia auténtica. Esta
reflexión se basa en las obras de dos autores importantes de
épocas distintas: La situación espiritual de nuestro tiempo,
de Karl Jaspers y ¿Rumbo o abismo? Ensayo sobre el destino
de la humanidad, de Edgar Morin. A partir de estas obras y
sus autores, dialogaremos con otros grandes escritores, como Paul
Tillich, Viktor Frankl y Erich Fromm, quienes se ocuparon de
investigar la situación espiritual de la humanidad.
Palabras clave: Situación espiritual, existencia auténtica, valores,
crisis, responsabilidad, Karl Jaspers, Paul Tillich, Viktor Frankl,
Edgar Morin, Erich Fromm.
1
Morin, Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, 93.
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As contextualizações das diferentes eras nos ajudarão a compreender os
modos de vida criados em épocas anteriores e que tem reflexos sobre o tempo
atual. São eras que se prorrogam, se intensificam, apresentam superações e
consequências, causam sofrimentos diversos, sobretudo uma frustração exis
tencial e espiritual que pode ser identificada na civilização ocidental no atual
momento. É imperativo nesta época, portanto, lançar o olhar para o passado,
490 um passado capaz de nos dar um quadro relativamente considerável para po
dermos compreender o contexto que nos circunda atualmente.
Esta questão é especialmente importante considerando que estamos no
início de um século e sobre este século não podemos tecer considerações su
ficientemente aprofundadas se não considerarmos o século XX que há pouco
nos antecedeu e que empreendeu duas guerras mundiais, uma bomba atômica
e epidemias como o HIV que marcaram e marcam várias gerações desta hu
manidade ainda vivas. Para compreender a decadência espiritual que afeta a
humanidade hojeé necessário, pois, caracterizar os tempos e contextos nos quais
a humanidade desenvolve os seus modos de vida.
Antes de uma caracterização do contexto é importante dizer que a
compreensão da questão espiritual aqui segue o proposto na abordagem
fenomenológica. Ou seja, temos a convicção de que o ser humano contempla,
além das dimensões física e psíquica, também uma dimensão espiritual.
A característica da dimensão espiritual é a potencialidade e capacidade
moral, cujas demandas são a liberdade e a responsabilidade. A dimensão espi
ritual é o âmbito da capacidade de decisão, reflexão e avaliação, relacionadas aos
atos de compreensão, reflexão, avaliação, decisão, do pensamento. À dimensão
psíquica competem os atos como as reações, os instintos, impulsos, como o
medo, os desejos, as emoções. Da dimensão física temos consciência em razão
do tato– que é o que nos dá a possibilidade de perceber os limites do corpo e
a orientação no espaço.
A fenomenologia identificará os atos de controle no campo espiritual, e se
diferem dos atos do campo psíquico ou corpóreo. Estes últimos são registrados
e só mediante este registro, de um sentimento, por exemplo, há uma reação.
Há, pois, uma capacidade ou uma dimensão capaz do controle da psique e do
corpo e esta dimensão é a espiritual. Não se trata da antiga divisão entre corpo
2
Bello, Introdução à fenomenologia, 41.
3
Ibid., 34.
4
Morin, Rumo ao abismo?
5
Ibid., 21.
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Posteriormente, a técnica ganha importância no cenário mundial, se associa à
ciência e produz o conceito de tecnociência no século XX.
Três grandes mitos caracterizam a modernidade: o mito do progresso; o
mito do domínio do universo e o mito da felicidade, este difundido pela mídia
e vendido como um produto que todo indivíduo poder obter.6 Ainda que a
492 ideia do domínio do universo esteja relativamente em crise, afetado pela crise
ambiental e pelo apelo ecológico, o mito do progresso se atualizou e hoje é
difundido com a ideia do “desenvolvimento”; e o mito da felicidade também
se atualizou por meio do mito da beleza e da juventude.
A era moderna revela uma imensa capacidade de invenção, criação
e desenvolvimento, sobretudo no século XX. Isso se verifica no campo da
ciência – dimensão predominante da modernidade, no desenvolvimento da
técnica, da economia e do capitalismo. Há que se observar, no entanto, que
simultaneamente à capacidade inventiva, a modernidade também é a era dos
grandes contrastes e destruições. Há, por um lado, aprofundamento da miséria
e, por outro, um crescimento do desenvolvimento de instrumentos que facilitam
e que dinamizam a vida humana.
A própria ciência tanto será responsável por grandes descobertas na
medicina com suas tecnologias de diagnóstico e de cura de doenças, quanto
pelo desenvolvimento de tecnologias de morte. O desenvolvimento técnico
colocou a humanidade diante de um dilema: a técnica tanto facilitou a
vida cotidiana da humanidade, quanto submeteu os trabalhadores a lógicas
produtivas padronizadas, repetitivas, que, junto com o furor do desejo de lucro
produzem escravidão e submissão. A técnica, a lógica e a tecnologia levaram a
uma submissão da sociedade à máquina artificial.
Segundo Morin, “a crise da modernidade surgiu a partir do momento
em que a problematização, nascida da modernidade e que se voltava para
Deus, a natureza, o exterior, se voltou, então, para a própria modernidade”.7
A crise está relacionada com o paradoxo de que a modernidade8 produz o bem
6
Ibid.
7
Ibid., 23.
8
Verificaremos ao longo da reflexão que não é possível fazer uma cisão clara entre a modernidade
e a época que se segue a esta era. O fenômeno que será denominado de mundialização por
Morin (Rumo ao abismo?) e que segue ou supera a modernidade mostra que ele será em
algumas situações um aprofundamento ou agravamento do que se verificou na modernidade
–mundializando fenômenos, generalizando– os e dando a real sensação de uma crise de estru
turas, valores, instituições.
9
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 10.
10
Ibid., 49.
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econômico. Não há como negar que a organização da existência está alterada,
“ameaça ruir e afigura-se irrealizável”, diz Jaspers.11
A crítica da razão instrumental (Escola de Frankfurt), segundo Morin,
é justamente a crítica deste modelo que se debruça apenas sobre a eficiência
dos meios, ignorando os fins. Este tipo de lógica é a que leva aos campos de
494 concentração, diz. A crise que afeta a lógica da modernidade afeta os mitos que
lhe são mais caros –justamente a ideia do progresso– porque sinaliza os limites
da relação sociedade e natureza quando esta última é considerada passiva e é
dominada e explorada; afeta o mito da felicidade porque o “paraíso” prometido
por meio da ciência, da técnica, do desenvolvimento não chegou para a maioria
da humanidade; e o mito da dominação do mundo é afetado porque este intuito
de dominação levou à dizimação de povos e a desastres naturais incalculáveis.
No mito da felicidade, acreditamos, reside um dos pontos mais sensíveis
da crise da modernidade e que atinge o abismo no processo de mundialização.
Este mito moderno da felicidade levou a uma busca desenfreada e a uma
obrigação de um bem estar constante. O indivíduo precisa mostrar que está
bem, afinal o mercado capitalista moderno é regido por uma ideologia que
perenemente insinua que é capaz de criar e oferecer todos os produtos naturais
e artificiais que conduzem à felicidade. Morin cita várias evidências da crise do
mito da felicidade (menciona fadiga, abuso de psicotrópicos, drogas lícitas, etc.).
A cidade radiosa transforma-se em cidade tentacular com sua vida racio
nalizada, suas poluições, seu estresse; por meio da destruição das solidariedades
tradicionais, e seu individualismo gera solidão e tristeza. Acreditou-se poder
edificar uma civilização de segurança, mas percebe-se no presente que, longe
de eliminar o risco, ela produz novos.12
A crise do mito da felicidade explica em parte o que, cremos, levou a
um dos fundamentos de uma profunda crise de sentido. A falsa promessa de
felicidade suprema, de uma espécie de paraíso ou de salvação que viria com o
desenvolvimento, já não era mais o discurso religioso, mas da ciência moderna.
Ora, o modelo de desenvolvimento não trouxe a prometida felicidade, antes
revelou tantas contradições que a humanidade é capaz de produzir que a crise
11
Ibid., 50.
12
Morin, Rumo ao abismo?, 27.
13
O ser-si-próprio se constrói a partir da relação com o mundo circundante e o mundo humano
fazendo as apropriações pessoais desta relação dinâmica na qual o ser vai se autotranscendendo
à medida que toma consciência de si e da sua relação com a realidade.
14
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 127.
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Para Jaspers, o ser humano pode estar prestes a sacrificar o ser placentário
no qual nasce para a sua própria autenticidade. Eis porque, em geral, existe a
consciência do caos quanto aos valores fundamentais. Tudo vem a ser posto
em dúvida; tudo se acha ameaçado na sua substância.
Os sinais da crise se evidenciam ao se buscar as razões profundas da
496 mesma, que também são encontradas na crise do Estado, na crise da cultura,
na crise do ser humano. Segundo Jaspers, quando o governo não alcança uma
formação substancial da vontade coletiva o “sentimento consensual vacila e logo
tudo cambaleia”. A crise da cultura pode ser revelada por meio da desagregação
de tudo o que emana do espírito, e a crise do ser humanopode ser verificada
quando a organização absoluta da massa anônima alcança os seus limites, a
consequência é um estremecimento de tudo em volta.
Jaspers descreve a fisionomia da crise como a de “uma inteira falta de
confiança”. O fato de termos ancoradouro nas ciências positivas, em convenções
sólidas e no direito formal não levou a atitudes confiantes, antes apenas indica
uma capacidade de cálculo. A existência parece basear-se unicamente em inte
resses e, consequentemente, “a consciência da substancialidade do todo acaba
por apagar-se”. A confiança já não é um valor que existe no campo da totalidade,
desfaz-se em simulacros, apenas em espaços restritos ela é praticável.
Tudo é atingido pela crise, inabarcável em todos os seus elementos e incom
preensível do ponto de vista das suas causas, de efeitos ineutralizáveis, que nos
compete assumir como parte integrante do nosso destino, sofrer e superar.
Enuncia-se, sob formas bem diversas, o carácter fugidio desta crise.15
15
Ibid., 123-124.
O modo de organização da
existência e suas conseqüências
Jaspers alerta que em cada época da história o ser humano sofre uma decadência,
olha para o passado e de longe vê o que foi perdido. Menciona Ranke e um
trecho do seu diário, de 1840, onde diz: “antigamente as grandes convicções
eram coletivas e nessa base se procurava ir cada vez mais longe. Hoje tudo se
reduz a uma espécie de pronunciamento e nada mais”. E continua com a menção
de Ranke que conclui dizendo que hoje “nada prevalece, tudo se perde. Quem
quiser abrir caminho terá de falar a linguagem de um partido e agradar-lhe”.17
Estas palavras sobre os sentimentos acerca de um tempo e sobre o espírito
de um tempo ditas há mais de um século e meio atrás são muito ilustrativas, pois
nos dão a ideia de certa percepção dos limites das estruturas políticas e sociais e
de um esfacelamento das estruturas morais que sustentavam a sociedade. Estas
considerações nos soam atuais, ou seja, servem para pensar sobreo tempo atual.
Se consideramos a mundialização da cultura, das informações produzidas
pela mídia hegemônica que a toda hora prenuncia alguma decadência, sina
lizando o domínio da violência gerando medo, instabilidade, insegurança o que
prevalece é a sensação de um mal-estar generalizado, sendo que a substância
humana fundamental parece perder-se mais e mais.
Já no século XIX, segundo Jaspers, o tempo foi abalado por um “sen
timento de perigo”. Desde então, o ser humano “sente-se ameaçado”. Para
16
Ibid., 126.
17
Ibid., 23.
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exemplificar, o autor se referencia em Hegel dizendo que diante do “des
moronamento da época” reconhece que é necessário conciliar tanto a filosofia
quanto a realidade. Em seguida cita Grundvig, que quer um retorno ao
cristianismo, e que diz: “O nosso tempo acha-se à beira de uma viragem, quiçá
a mais importante da história; o que era velho desapareceu, e eis que o novo
vacila sem poder libertar-se.”18 Na sequência Jaspers ainda se refere a Kierkegaard
498 que postula um cristianismo original, o do início. De todo modo, para Jaspers,
...uma consciência se difunde, a de que tudo fracassa, a de que tudo é incerto,
movediço, que nada de fundamental é suscetível de prova; é uma vertigem
sem fim que se projecta em recíprocos logros e ilusões nascidas de movimentos
ideológicos. Solta-se a consciência da época do ser para se debruçar sobre si própria.
Quem assim pensa sente-se a si mesmo como nada. A sua consciência do
fim é simultaneamente a do nada do seu próprio ser. Ora, solta do tempo, a
consciência deu uma cambalhota.19
18
Ibid., 25.
19
Ibid., 27.
20
Frankl, Em busca de sentido.
21
Guattari, As três ecologias, 1.
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sobre o papel da família tradicional e as consequências de sua desestruturação,
bem como o fracasso do modelo de casamento, do modelo de educação for
mal, a corrupção na política, o fracasso das religiões tradicionais em seu papel
moralizador.
Estes questionamentos estavam presentes com certa força no final do
500 século XX, mas há indícios de que no século XXI há um declínio da força de
questionamento sobre as razões destas mudanças e a volta ao inconsciente.
O excesso de uso de drogas, entorpecentes, antidepressivos, pelo menos no
caso brasileiro22, maior mercado de remédios para dormir do mundo, tanto
indicam para uma frustração, como para uma decadência da força de reflexão,
e de criação de uma nova realidade.
Jaspers chama à atenção para o movimento da humanidade de regresso
de uma situação de maior consciência ao inconsciente. Um grito se ouve, diz o
autor, e a volta ao inconsciente significa a volta ao “inconsciente do sangue, da
fé, da terra, da alma, da história e do mistério”. O retorno da religião é uma das
características desta volta ao inconsciente, pois “no fundo incrédulo, o homem
procura, à força, acreditar, destruindo, para tal, a consciência”.23
Tal grito constitui um logro. O homem carece, para continuar homem, de
permanecer na consciência. [...]. A vulgar existência, que tudo encara como
possível de conhecimento e de finalidade prática, terá que ser ultrapassada por
um honesto, autêntico labor filosófico, mediante a sintaxe límpida de todos os
modos da consciência. Não é possível disfarçar, renunciar à consciência, sem
se excluir a si próprio do processo histórico da humanidade.24
22
Matéria publicada na revista Super interessante do mês de julho de 2010, intitulada “Nação
Rivotril”, mostra que o Brasil é o maior consumidor deste calmante de tarja preta do mundo.
A matéria mostra que o remédio é prescrito por médicos para crises de ansiedade, mas é suado
para dar conta das pressões do dia a dia como insônia, conflitos nos relacionamentos, etc. A
matéria também revela que o Brasil é o maior consumidor de clonazepan, princípio ativo do
rivotril, do mundo. A previsão para 2010 era de que naquele ano seriam consumidas 2,1 to
neladas de clonazepan no Brasil (Versolato, “Nação Rivotril”, http://super.abril.com.br/saude/
nacao-rivotril-587755.shtml, Super interessante [acesso em 15 mai, 2013]).
23
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 221.
24
Ibid., 221.
25
Ibid., 59.
26
Ibid., 63.
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susceptível de amadurecimento. De cem anos para cá se torna cada vez mais
nítido que o homem dedicado à criação do espírito se vê remetido à sua solidão.27
27
Ibid., 196.
28
Frankl, Sede de sentido.
29
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 87-88.
30
Fromm, A revolução da esperança, 49.
31
Ibid., 95.
32
Ibid., 95.
33
Ibid., 127.
34
Ibid., 153.
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Para Morin, o humanismo ficou acanhado e não conseguiu se contrapor
ao individualismo ocidental reinante e que afeta profundamente as relações
em todos os níveis, alastrando o egocentrismo, a autojustificação, o interesse
pessoal. O humanismo não conseguiu implantar valores como a colaboração,
a reciprocidade, a mutualidade, a cooperação e a interdependência e a code
pendência – estes últimos no sentido de desconstrução da noção de que o ser
504 humano é indivíduo independente dos outros seres humanos e seres vivos
em geral.
Resiste naqueles valores individualistas difundidos até a alma das so
ciedades ocidentais o problema da incompreensão generalizada que separa os
seres humanos dos seus grupos de convívio como as famílias, no seu grupo de
trabalho, que afeta os valores que educadores deveriam ensinar, que impossibilita
que mais pessoas se associem em cooperativas, sindicatos de forma a colaborarem
entre si. Reside aí, segundo Morin, a “exasperação das incompreensões” e a
“exasperação dos conflitos”.35
Para Edgar Morin, trata-se de fato de uma crise da alma, do espírito. Esta
crise imposta pela organização material da existência “gera um apelo ao Orien
te interior e vai procurar no Oriente exterior seus remédios. Por que ocorre
esse apelo à ioga, ao budismo, essa busca na Nova Era, como se a civilização
material criasse um vazio espiritual e um divórcio entre corpo e espírito...”36
O teólogo Paul Tillich37 interpretou os diferentes tipos de ansiedade
enfrentados pela civilização ocidental ao longo de sua história como grandes
períodos de ansiedade, e identificou três tempos e três tipos de ansiedade: um
na civilização antiga, outro na Idade média e outro no período moderno. São,
para o autor, ansiedades em que o não-ser ameaça o ser.
Segundo Tillich, no final da civilização antiga predomina a ansiedade
ôntica, no final da Idade Média predomina a ansiedade moral, e no período
moderno, o que mais nos interessa aqui, predomina a ansiedade da vacuidade e
da insignificação. Neste período, a auto-afirmação espiritual do ser é ameaçada
35
Morin, Rumo ao abismo?, 88.
36
Ibid., 27.
37
Tillich, A coragem de ser.
38
Ibid., 37.
39
Frankl, A presença ignorada de Deus.
40
Forghieri, Psicologia fenomenológica. Fundamentos, método e pesquisas, 32.
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que aponta para uma via de desespero ante a necessidade de sobreviver neste
mundo recorrendo a artifícios que substituem brevemente esta realidade por
outra; da agressão, que não apenas se explica pela violência em si, mas como
uma manifestação de revolta diante de um mundo excludente para a maioria;
da depressão, que não deixa de ser uma recusa na participação de determinada
realidade; da banalização da sexualidade, em relação à qual pode-se apontar um
506 paradoxo impressionante no tempo atual, pois justamente a época na qual mais
se fala de sexo e de prazer sexual mais se toma drogas para ter prazer e potência
e em que mais se verifica ausência de prazer sexual em índices significativos.
Ou seja, é necessário tomar remédios para obter prazer.
Neste tempo “atual”, considera Jaspers, o ser humano encontra-se
“desenraizado”. O caminho transcorrido até aqui parece ter sido misterioso e
oculto para ele mesmo, ainda que vivesse “na imediata consciência da unidade da
existência e da consciência dela”. Hoje, segue Jaspers, queremos ir ao “sedimento
da realidade” na qual vivemos e por esta razão “perdemos pé”, uma vez que
as estruturas da unidade estão arruinadas e assim somente discernimos de um
lado a existência ou de outro a consciência dela.41
Para Jaspers a consciência deste movimento no qual a humanidade
entrou contempla uma dualidade que consiste no fato de que, dado que o
mundo é indefinido, o ser humano em vez de sua esperança matar a sede na
transcendência, apega-se no mundo capaz de ser transformado, com a crença
numa plenitude terrestre. Resulta que o indivíduo se depara com os limites dos
efeitos de seus esforços diante do confronto com as possibilidades concebidas
de forma muito abstrata.
Ademais, acrescentando o fato de que “o devir das coisas do mundo
em que ele parece insignificante como força transformadora da totalidade”42
é responsável pela criação de um “sentimento de impotência”, ou seja, este ser
humano que se julgava capaz de dominar o mundo vê-se cativo do movimento
e do rumo das coisas.
Morin entende que estas contradições da modernidade chegaram a um
“grau paroxístico”. Segundo este autor contemporâneo, “tudo se passa como
41
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 10.
42
Ibid., 12.
43
Morin, Rumo ao abismo?, 28.
44
Ibid., 128.
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Para que outra forma de organização da existência seja viável é necessário
paz e, para tal, tomada de decisões e compromisso com a comunidade. A exis
tência comunitária exige que o indivíduo assuma compromissos. Estes podem
convocar o indivíduo a que assuma o ser si-próprio ou pode exigir que este ser
si-próprio se dissolva. No último caso o indivíduo será reduzido a “um ilimitado
ajustamento aplainante no plano da cooperação genérica”.45
508
Devemos considerar, no entanto, que o ser humano nunca é
completamente tragado pela organização da existência na sua individualidade.
Ele se revolta ao sentir-se sufocado e enredado pelas exigências deste padrão da
organização da existência. Há no ser humano “uma reivindicação da existência
como apelo do transcendente, que nele se acha latente”.46 O ser humano ainda
é um ser livre que busca a realização do seu ser-si-próprio e é também um ser
coexistencial.
É na liberdade do indivíduo que o limite deste modelo de organização da
existência pode ser encontrado, pois é a ele que “cabe realizar, por si próprio,
o que ninguém lhe poderá subtrair, no caso do homem optar pela sua própria
humanidade”.47 Sujeitar-se é desconectar-se do desejo próprio e original da
verdade profunda que diz respeito à integridade do ser. É romper com o sopro
original que deu e dá vida a cada ser.
Segundo Jaspers, para ser ele próprio o indivíduo se arrisca em nome
da sua “vontade de assumir o próprio destino a fim de alcançar o ser”.48 Se, no
entanto, o prazer de lograr algo pelo ato de criação, por onde o ser se realiza
na sua autenticidade, fica embotado a inesperada satisfação própria do ser hu
mano já não pode se realizar. Se “tudo vem desprovido da cor de uma criação
pessoal”,49 a impossibilidade de criar por si leva, então, à frustração existencial,
o sentido de se ver refletido na criação se perde.
45
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 119.
46
Ibid., 66.
47
Ibid., 92.
48
Ibid., 65.
49
Ibid., 69.
50
Fromm, A revolução da esperança, 79.
51
Ibid., 79.
52
Ibid., 129.
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Segundo Jaspers, o ser humano encontra a sua realização no campo
político, cujo meio é a organização da existência, por força da sua vontade de
totalidade. Além disso, o ser humano encontra a sua realização por meio da
criação espiritual “pela qual acede à consciência da sua substância”.53
Por outro lado, o engajamento excessivo na organização da existência
510 levou o ser humano a afastar-se da sua capacidade de autocriação livre e conse
quentemente da consciência das suas origens, do seu destino e da sua verdadeira
humanidade. O caminho político e o da criação espiritual são os campos onde
o ser humano pode resgatar a substância destas perdas. Mas não resgatará em
apenas um dos campos, porque isoladamente nenhum deles é capaz de oferecer
a totalidade do que o ser humano busca.
Urge, pois, segundo Jaspers, um “regresso às origens, ao ser humano”54 e
o caminho é aquele. Nesta perspectiva, o ser humano será capaz de relativizar
a organização exterior da existência centrada no pensamento utilitário que ora
domina a existência humana de modo danoso. A verdade instituinte da co
munidade envolve uma fé histórica, e esta jamais será universal. Há uma verdade
que alcança a todos de modo igual que é a de um juízo razoável, “mas a verdade
do que seja o próprio homem, e que a sua fé lhe manifesta, separa os homens”.55
O ser humano, segundo Jaspers, na situação espiritual do nosso tempo, na
tentativa de se tornar ele próprio se esquiva e renuncia a forças que tentam impor
uma fé totalitária. O destino do espírito é a sua manifestação na polaridade
entre a subordinação à existência e espontaneidade original. Apaga-se na mera
dependência de uma irrealidade utópica; pode constituir a ideia fulcral das
estruturas da existência, como pode suceder que ela morra, e o que antes fora
espírito subsistirá apenas, residualmente, como invólucro, máscara ou simples
sensação.
53
Ibid., 129.
54
Ibid., 129.
55
Ibid., 130.
56
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 225.
57
Ibid., 225.
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atual momento a organização exterior da existência corrói a atividade espiri
tual da humanidade.
Morin, apesar de todo o argumento, não perdeu completamente a es
perança no ser humano, embora sua esperança seja quase a expectativa de um
milagre. Ele crê que a metamorfose está em processo. Mas alerta que ela não
512 está determinada. Incertezas, possibilidades de regressão e destruição não podem
ser descartadas neste processo. O autor guarda uma expectativa com relação a
uma nova consciência planetária –que poderia levar a uma nova civilização– e
que faria uma reforma, tendo em vista a preocupação ecológica e a busca da
qualidade de vida.
Morin aposta na possibilidade de que o improvável possa acontecer,
ainda que a probabilidade seja a de uma catástrofe. Não há determinismo com
relação ao futuro. Aliás, o passado já mostrou a capacidade de regeneração do
ser humano, quando diante de graves crises como na segunda guerra mundial.
Segundo o autor, “atitudes autotransformadoras despertam em caso de crise
quando as coisas rigidificadas se deslocam diante dos perigos”.58
Segundo Morin, o mundo abalado pela agressividade do quadrimotor
destruidor formado pela ciência moderna e hegemônica, a técnica, a indústria e a
ideologia do lucro necessita de uma mudança ao nível de uma metamorfose que
parece estar fora do nosso alcance. No entanto, guardamos também esperanças
em relação ao ser humano, e esperanças positivas. A esperança neste caso não
é impossível, mas ela é improvável, diz Morin. Mas o improvável é possível.
Além disso, é necessário contar com “o apelo à vontade diante da grandeza do
desafio”.59
Morin se refere à possibilidade de uma reação positiva com base no
fenômeno do mundo físico onde um feedback positivo sempre leva à desin
tegração ou explosão. No mundo humano, ao contrário, se antigas estruturas
cristalizadas se desintegram o feedback positivo pode levar à regeneração, ao
surgimento de novas forças capazes de transformação. Portanto, a ideia de uma
decadência ou de um abismo não significa por si um fim, mas a possibilidade
de uma regeneração.
58
Morin, Rumo ao abismo?, 32.
59
Ibid., 93.
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