A Decadência Espiritual No Nosso Tempo e A Busca Humana Pela Existência Autêntica

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 28

A decadência espiritual no nosso

tempo e a busca humana pela


existência autêntica*

Anete Roese**
Adilson Schultz***

Resumen

O texto que segue apresenta uma reflexão sobre a degradação da


dimensão espiritual da humanidade no mundo contemporâneo,
a crise, a frustração do ser humano diante da situação que vive
neste tempo e a vontade de uma existência autêntica. A reflexão
se baseia em duas obras de dois autores importantes, de épocas
di­ferentes: A situação espiritual do nosso tempo, de Karl Jaspers,
e Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, de
Ed­gar Morin. A partir destas duas obras e autores dialogaremos
com outros grandes autores, como Paul Tillich, Viktor Frankl e
Erich Fromm, que se ocuparam com a investigação da situação
espiritual da humanidade.
Palavras-chave: Situação espiritual, existência autêntica, valores,
crise, responsabilidade, Karl Jaspers, Paul Tillich, Viktor Frankl,
Edgar Morin, Erich Fromm.

*
Artigo de reflexão. Pesquisa realizada com apoio do Conselho Nacional de Pesquisa e
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, para o projeto “A situação espiritual do
nosso tempo: crise e busca da existência responsável”.
**
Doutorado em Teologia, Instituto Ecumênico de Pós Graduação em Teologia da Escola
Su­perior de Teologia, EST, São Leopoldo/RS. Professora adjunta da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Correio eletrônico: [email protected]
***
Doutor em Teologia, Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo/RS. Professor adjunto
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil, PUC Minas. Professor no Centro
Universitário Metodista Izabela Hendrix. Correio eletrônico: [email protected]

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
La decadencia espiritual de nuestro
tiempo y la búsqueda humana de la
existencia auténtica

Resumen
El texto que sigue presenta una reflexión sobre la degradación
488 de la dimensión espiritual de la humanidad en el mundo con­
tem­poráneo, la crisis y frustración del ser humano frente a la
situación que vive, y el deseo de una existencia auténtica. Esta
reflexión se basa en las obras de dos autores importantes de
épocas distintas: La situación espiritual de nuestro tiempo,
de Karl Jaspers y ¿Rum­bo o abismo? Ensayo sobre el destino
de la humanidad, de Edgar Morin. A partir de estas obras y
sus autores, dia­­logaremos con otros grandes escritores, como Paul
Tillich, Viktor Frankl y Erich Fromm, quienes se ocuparon de
investigar la situación espiritual de la humanidad.
Palabras clave: Situación espiritual, existencia auténtica, valores,
crisis, responsabilidad, Karl Jaspers, Paul Tillich, Viktor Frankl,
Edgar Morin, Erich Fromm.

The Spiritual Decline of our


Time and the Human Quest for
Authentic Existence
Abstract
This paper offers a reflection about the degradation of the spi­ri­
tual dimension of men today, the crisis and frustration of human
beings concerning their current situation, and their desire for
authentic existence. This reflection is based on the works of two
im­portant authors from different time periods: The Spiritual
Situation of Our Time, by Karl Jaspers, and Heading for the
Abyss? An essay on the fate of humanity, by Edgar Morin,
These works and their authors are the point of departure of a
dialogue with other famous writers, such as Paul Tillich, Viktor
Frankl and Erich Fromm, who devoted themselves to investigate
about human spirituality.
Key words: spiritual situation, authentic existence, values,
crisis, responsibility, Karl Jaspers, Paul Tillich, Viktor Frankl,
Edgar Morin, Erich Fromm.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


Introdução
A decadência espiritual no nosso tempo pode ser identificada em três instân­
cias relativas ao modo de vida do ser humano na sua interação com o meio,
com o próximo e consigo mesmo. A relação do ser humano com o meio onde 489
vive está degradada, o poder de decisão e ação sobre o mundo foi transferido
às máquinas e o distanciamento da realidade já impede que se veja implicado
no mundo que o cerca. A relação do ser humano com seu semelhante está
igual­mente deteriorada, e a violência é um dos sintomas de que este mundo
hu­mano está em profunda crise.
Da mesma forma uma crise profunda se abate sobre o ser humano e o seu
mundo próprio, levando-o a uma situação de sofrimento psíquico e espiritual
de grandes proporções, que se manifesta também no uso desmedido de drogas
lícitas e ilícitas. Trata-se de uma situação complexa, que levou a uma decadência
es­piritual de graves dimensões e que na sequência será analisada.
Para a caracterização desta era na qual vivemos lançaremos mão de um
livro escrito por Karl Jaspers nos anos 1930, publicado no Brasil em 1968,
intitulado A situação espiritual do nosso tempo. Neste estudo Jaspers faz uma
leitura da situação da humanidade desde o seu contexto que é muito profunda
e apropriada para que possamos compor uma visão ampla o suficiente para
uma compreensão da situação do sofrimento da humanidade no tempo atual.
Também laçaremos mão dos escritos do filósofo e teólogo Paul Tillich
que aponta a modernidade como era da ansiedade espiritual. Recorreremos
tam­bém ao livro de Morin (2011), cujo título instigante pergunta: Rumo ao
abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. O livro de Morinse volta para
o contexto moderno para verificar as manifestações singulares de uma época
co­mo a modernidade, para depois pensar sobre o tempo atual. Segundo Edgar
Morin, “o século XXI assistirá ao prosseguimento dos processos culturais con­
correntes, antagônicos e, por vezes, complementares que se manifestaram no
fim do século XX”.1

1
Morin, Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade, 93.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
As contextualizações das diferentes eras nos ajudarão a compreender os
modos de vida criados em épocas anteriores e que tem reflexos sobre o tempo
atual. São eras que se prorrogam, se intensificam, apresentam superações e
consequências, causam sofrimentos diversos, sobretudo uma frustração exis­
ten­cial e espiritual que pode ser identificada na civilização ocidental no atual
momento. É imperativo nesta época, portanto, lançar o olhar para o passado,
490 um passado capaz de nos dar um quadro relativamente considerável para po­
dermos compreender o contexto que nos circunda atualmente.
Esta questão é especialmente importante considerando que estamos no
início de um século e sobre este século não podemos tecer considerações su­
ficientemente aprofundadas se não considerarmos o século XX que há pouco
nos antecedeu e que empreendeu duas guerras mundiais, uma bomba atômica
e epidemias como o HIV que marcaram e marcam várias gerações desta hu­
ma­nidade ainda vivas. Para compreender a decadência espiritual que afeta a
humanidade hojeé necessário, pois, caracterizar os tempos e contextos nos quais
a humanidade desenvolve os seus modos de vida.
Antes de uma caracterização do contexto é importante dizer que a
com­preensão da questão espiritual aqui segue o proposto na abordagem
fenomenológica. Ou seja, temos a convicção de que o ser humano contempla,
além das dimensões física e psíquica, também uma dimensão espiritual.
A característica da dimensão espiritual é a potencialidade e capacidade
moral, cujas demandas são a liberdade e a responsabilidade. A dimensão espi­
ritual é o âmbito da capacidade de decisão, reflexão e avaliação, relacionadas aos
atos de compreensão, reflexão, avaliação, decisão, do pensamento. À dimensão
psíquica competem os atos como as reações, os instintos, impulsos, como o
medo, os desejos, as emoções. Da dimensão física temos consciência em razão
do tato– que é o que nos dá a possibilidade de perceber os limites do corpo e
a orientação no espaço.
A fenomenologia identificará os atos de controle no campo espiritual, e se
diferem dos atos do campo psíquico ou corpóreo. Estes últimos são registrados
e só mediante este registro, de um sentimento, por exemplo, há uma reação.
Há, pois, uma capacidade ou uma dimensão capaz do controle da psique e do
cor­po e esta dimensão é a espiritual. Não se trata da antiga divisão entre corpo

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


e alma, pois a fenomenologia parte da análise dos atos, e “pelo registro dos atos
po­demos chegar à estrutura do ser humano”.2
Os atos permitem que se reconheça a existência da alma, e que a mesma
pode ser dividida em duas dimensões: uma psíquica e uma espiritual. Estas duas
e a dimensão corpórea estão absolutamente integradas no ser humano, sendo
que em algumas pessoas uma das dimensões pode estar mais desenvolvida ou
491
me­nos desenvolvida. A consciência é o ponto de convergência das operações
dado que ela não tem caráter físico, psíquico ou espiritual, “é a dimensão com
a qual nós registramos os atos”.3 Esta questão será elucidada ao longo do texto
à medida do desenvolvimento da questão que o texto se propõe analisar, que
tra­ta da decadência espiritual do nosso tempo e da busca por uma existência
autêntica.

O tempo moderno e atual


Morin4 destaca o desenvolvimento econômico, mercantil e capitalista, bem
como a ideia de uma era planetária com a economia de trocas e a dominação
do mundo pelo oeste da Europa como características dos tempos modernos; o
sur­gimento de Estados-nação (Portugal, Espanha, Inglaterra, França) e, depois,
o surgimento do individualismo também devem ser acrescentados. Não há,
por­tanto, uma data ou acontecimento específico que marca o surgimento da
era moderna.
O Renascimento vai gerar a problematização de tudo: a natureza, Deus, o
ser humano e a realidade. O pensamento moderno, diz Morin, “é marcado por
uma grande disjunção, muito bem formulada por Descartes, entre dois domínios
que se tornaram incomensuráveis, o do espírito, do sujeito, da filosofia; e o da
matéria, da extensão do corpo, da ciência, da realidade empírica”.5
A modernidade é marcada por princípios antagônicos e complementares.
A ciência, por exemplo, depende da verificação, do conflito de ideias e
do antagonismo com outros sistemas de pensamento tal como a religião.

2
Bello, Introdução à fenomenologia, 41.
3
Ibid., 34.
4
Morin, Rumo ao abismo?
5
Ibid., 21.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
Posteriormente, a técnica ganha importância no cenário mundial, se associa à
ciência e produz o conceito de tecnociência no século XX.
Três grandes mitos caracterizam a modernidade: o mito do progresso; o
mito do domínio do universo e o mito da felicidade, este difundido pela mídia
e vendido como um produto que todo indivíduo poder obter.6 Ainda que a
492 ideia do domínio do universo esteja relativamente em crise, afetado pela crise
am­biental e pelo apelo ecológico, o mito do progresso se atualizou e hoje é
difun­dido com a ideia do “desenvolvimento”; e o mito da felicidade também
se atualizou por meio do mito da beleza e da juventude.
A era moderna revela uma imensa capacidade de invenção, criação
e de­senvolvimento, sobretudo no século XX. Isso se verifica no campo da
ciência – dimensão predominante da modernidade, no desenvolvimento da
técnica, da economia e do capitalismo. Há que se observar, no entanto, que
simultaneamente à capacidade inventiva, a modernidade também é a era dos
grandes contrastes e destruições. Há, por um lado, aprofundamento da miséria
e, por outro, um crescimento do desenvolvimento de instrumentos que facilitam
e que dinamizam a vida humana.
A própria ciência tanto será responsável por grandes descobertas na
me­dicina com suas tecnologias de diagnóstico e de cura de doenças, quanto
pelo desenvolvimento de tecnologias de morte. O desenvolvimento técnico
colocou a humanidade diante de um dilema: a técnica tanto facilitou a
vida cotidiana da humanidade, quanto submeteu os trabalhadores a lógicas
produtivas padronizadas, repetitivas, que, junto com o furor do desejo de lucro
produzem escravidão e submissão. A técnica, a lógica e a tecnologia levaram a
uma submissão da sociedade à máquina artificial.
Segundo Morin, “a crise da modernidade surgiu a partir do momento
em que a problematização, nascida da modernidade e que se voltava para
Deus, a natureza, o exterior, se voltou, então, para a própria modernidade”.7
A crise está relacionada com o paradoxo de que a modernidade8 produz o bem

6
Ibid.
7
Ibid., 23.
8
Verificaremos ao longo da reflexão que não é possível fazer uma cisão clara entre a modernidade
e a época que se segue a esta era. O fenômeno que será denominado de mundialização por

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


estar e o mal-estar, os extremos, as promessas excessivas de felicidade, cura e
as pretensões da ciência de ocupar o lugar de Deus e da religião, propondo a
sal­vação e explicando a origem e o fim do mundo.
Segundo Jaspers, o “problema da situação do tempo” começa a se colocar
a partir da guerra, certamente a primeira Guerra Mundial. Antes o tema não
era senão uma preocupação de poucos. No entanto, “agora” se torna uma
493
pro­blemática de todos, diz, ainda que continue sendo inesgotável, impreciso
e fugidio. Até então, o ser humano estava “preso à terra e cativo do céu”9, ins­
talado no seu lugar sem buscar transformações.

Os sinais da situação do nosso


tempo e a fisionomia de uma crise
Para Jaspers, o ser humano se perdeu na pura organização da existência, da
organização exterior do mundo a partir de um sentimento de utilidade. E esta
organização exterior da existência é a ruína da atividade espiritual. A huma­
nidade está como que perdida em meio à avassaladora oferta de sentidos.
O turbilhão da existência moderna subtrai ao homem uma visão límpida do
que, na realidade, acontece. Vagamos na existência como num mar sem que
possamos escapar-lhe ou espraiar-nos numa margem firme a permitir-nos uma
perspectiva nítida da totalidade. O redemoinho só permite abranger o que, por
ele arrastados, logramos.10

Segundo o autor, há uma “suposta evidência generalizada” que leva a


hu­manidade a associar a existência com assistência material, com base numa
produção racional e técnica, sobretudo para garantir a sobrevivência das massas.
Ademais, o indivíduo em meio ao turbilhão, não está conseguindo se esquivar
do “maquinismo” –supostamente necessário– típico do desenvolvimento

Morin (Rumo ao abismo?) e que segue ou supera a modernidade mostra que ele será em
algumas situações um aprofundamento ou agravamento do que se verificou na modernidade
–mundializando fenômenos, generalizando– os e dando a real sensação de uma crise de estru­
turas, valores, instituições.
9
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 10.
10
Ibid., 49.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
econômico. Não há como negar que a organização da existência está alterada,
“ameaça ruir e afigura-se irrealizável”, diz Jaspers.11
A crítica da razão instrumental (Escola de Frankfurt), segundo Morin,
é justamente a crítica deste modelo que se debruça apenas sobre a eficiência
dos meios, ignorando os fins. Este tipo de lógica é a que leva aos campos de
494 con­centração, diz. A crise que afeta a lógica da modernidade afeta os mitos que
lhe são mais caros –justamente a ideia do progresso– porque sinaliza os limites
da relação sociedade e natureza quando esta última é considerada passiva e é
dominada e explorada; afeta o mito da felicidade porque o “paraíso” prometido
por meio da ciência, da técnica, do desenvolvimento não chegou para a maioria
da humanidade; e o mito da dominação do mundo é afetado porque este intuito
de dominação levou à dizimação de povos e a desastres naturais incalculáveis.
No mito da felicidade, acreditamos, reside um dos pontos mais sensíveis
da crise da modernidade e que atinge o abismo no processo de mundialização.
Este mito moderno da felicidade levou a uma busca desenfreada e a uma
obrigação de um bem estar constante. O indivíduo precisa mostrar que está
bem, afinal o mercado capitalista moderno é regido por uma ideologia que
pe­renemente insinua que é capaz de criar e oferecer todos os produtos naturais
e artificiais que conduzem à felicidade. Morin cita várias evidências da crise do
mito da felicidade (menciona fadiga, abuso de psicotrópicos, drogas lícitas, etc.).
A cidade radiosa transforma-se em cidade tentacular com sua vida racio­
nalizada, suas poluições, seu estresse; por meio da destruição das solidariedades
tradicionais, e seu individualismo gera solidão e tristeza. Acreditou-se poder
edificar uma civilização de segurança, mas percebe-se no presente que, longe
de eliminar o risco, ela produz novos.12
A crise do mito da felicidade explica em parte o que, cremos, levou a
um dos fundamentos de uma profunda crise de sentido. A falsa promessa de
felicidade suprema, de uma espécie de paraíso ou de salvação que viria com o
de­senvolvimento, já não era mais o discurso religioso, mas da ciência moderna.
Ora, o modelo de desenvolvimento não trouxe a prometida felicidade, antes
revelou tantas contradições que a humanidade é capaz de produzir que a crise

11
Ibid., 50.
12
Morin, Rumo ao abismo?, 27.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


existencial se tornou inevitável diante da constatação da impossibilidade e da
irrealidade da promessa.
Jaspers identifica esta problemática e a coloca sob o conceito da alegria e
do contentamento. No contexto da organização universal, onde a massa humana
é coagida a incorporar uma existência padronizada, a alegria é desmantelada com
a fragmentação da totalidade em vista das produções parciais, com o trabalho
495
em série. Não há mais continuidade de tarefas ou ideias.
O mundo técnico com seus mecanismos e suas urgências impõe outra
forma de existência onde a alegria é relativizada. Em vez de uma profissão rea­
lizada humanamente, surge o fenômeno da alegria no trabalho pelo rendimento
técnico a separar o ser-si-próprio13 do ser humano como simples dinamismo
fun­cional, o que, em muitas atividades, arruína irremediavelmente o próprio
rendimento.
Segundo Jaspers, inclusive a atividade espiritual está submetida à abso­
lutização dos organismos da existência, tais como os poderes materiais e as
questões econômicas tomando-as como forças autênticas, se coloca a serviço das
mesmas, reúne os pressupostos que justificam os eventos do mundo. O espírito
não mais reconhece a sua originalidade pessoal. “O que, durante milênios, foi o
mundo do homem parece, hoje, desabar.”14 O modelo moderno de organização
da existência se pauta em formas mecânicas de assistência a estruturas a serviço
de uma massa anônima. O que está em jogo parece ser apenas o meio em si e
não o fim, nem mesmo algum sentido essencial.
Acima argumentamos que os mitos se atualizaram e hoje funcionam
como mito da beleza, da juventude e do desenvolvimento. São fenômenos que
re­ve­lam o mecanismo sobre o qual a humanidade pauta a sua existência no
mundo atual e que contrastam com tantos sofrimentos de caráter espiritual.
A questão consiste em que o ser humano não mais encontra contentamento
nes­te modo de existência, pois carece profundamente daquilo que lhe sustenta
o va­lor e a dignidade.

13
O ser-si-próprio se constrói a partir da relação com o mundo circundante e o mundo humano
fazendo as apropriações pessoais desta relação dinâmica na qual o ser vai se autotranscen­den­do
à medida que toma consciência de si e da sua relação com a realidade.
14
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 127.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
Para Jaspers, o ser humano pode estar prestes a sacrificar o ser placentá­rio
no qual nasce para a sua própria autenticidade. Eis porque, em geral, existe a
cons­ciência do caos quanto aos valores fundamentais. Tudo vem a ser posto
em dúvida; tudo se acha ameaçado na sua substância.
Os sinais da crise se evidenciam ao se buscar as razões profundas da
496 mes­ma, que também são encontradas na crise do Estado, na crise da cultura,
na crise do ser humano. Segundo Jaspers, quando o governo não alcança uma
for­mação substancial da vontade coletiva o “sentimento consensual vacila e logo
tudo cambaleia”. A crise da cultura pode ser revelada por meio da desagregação
de tudo o que emana do espírito, e a crise do ser humanopode ser verificada
quando a organização absoluta da massa anônima alcança os seus limites, a
conse­quência é um estremecimento de tudo em volta.
Jaspers descreve a fisionomia da crise como a de “uma inteira falta de
confiança”. O fato de termos ancoradouro nas ciências positivas, em convenções
sólidas e no direito formal não levou a atitudes confiantes, antes apenas indica
uma capacidade de cálculo. A existência parece basear-se unicamente em inte­
resses e, consequentemente, “a consciência da substancialidade do todo acaba
por apagar-se”. A confiança já não é um valor que existe no campo da totalidade,
desfaz-se em simulacros, apenas em espaços restritos ela é praticável.
Tudo é atingido pela crise, inabarcável em todos os seus elementos e incom­
preen­sível do ponto de vista das suas causas, de efeitos ineutralizáveis, que nos
compete assumir como parte integrante do nosso destino, sofrer e superar.
Enun­cia-se, sob formas bem diversas, o carácter fugidio desta crise.15

No momento presente temos sinais claros de crise nas instâncias go­ver­


namentais, culturais e humanas sinalizada nos protestos ao redor do mundo
presentes nas manifestações de jovens que ocupam as ruas contra os governos e
modelos de política em países árabes, na Europa e na América Latina. Os protestos
são contra a corrupção na política, contra os governos autoritários, a falta de
in­vestimentos em saúde e educação, o alto custo de vida, entre outras coisas.
Nestes contextos surge uma esperança de um mundo melhor, de governos
que tomem em conta a vontade da população, a retomada de valores humanos

15
Ibid., 123-124.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


que considerem o bem comum e as necessidades comuns, e a esperança de su­
peração de uma massa antes “anônima”, que agora sai às ruas e luta por direitos.
Segundo Jaspers, a “unificação planetária”, o que Morin nomeia como
“mundialização”, produziu um nivelamento, um aplainamento e uma ge­
neralização que levou à superficialização das coisas, à indiferença e à nulidade das
mesmas. Tudo isso não levou, no entanto, a uma comunicação autêntica entre
497
as diferentes culturas e os diferentes saberes. O sentimento que se adianta é de
que o vasto mundo está estreito e limitado. Os vínculos se desfazem e “nota-se
hoje uma perda da insubstituível substância contínua, impossível de estancar”.16

O modo de organização da
existência e suas conseqüências
Jaspers alerta que em cada época da história o ser humano sofre uma decadência,
olha para o passado e de longe vê o que foi perdido. Menciona Ranke e um
trecho do seu diário, de 1840, onde diz: “antigamente as grandes convicções
eram coletivas e nessa base se procurava ir cada vez mais longe. Hoje tudo se
reduz a uma espécie de pronunciamento e nada mais”. E continua com a menção
de Ranke que conclui dizendo que hoje “nada prevalece, tudo se perde. Quem
qui­ser abrir caminho terá de falar a linguagem de um partido e agradar-lhe”.17
Estas palavras sobre os sentimentos acerca de um tempo e sobre o espírito
de um tempo ditas há mais de um século e meio atrás são muito ilustrativas, pois
nos dão a ideia de certa percepção dos limites das estruturas políticas e sociais e
de um esfacelamento das estruturas morais que sustentavam a sociedade. Estas
considerações nos soam atuais, ou seja, servem para pensar sobreo tempo atual.
Se consideramos a mundialização da cultura, das informações produzidas
pela mídia hegemônica que a toda hora prenuncia alguma decadência, si­na­
lizando o domínio da violência gerando medo, instabilidade, insegurança o que
prevalece é a sensação de um mal-estar generalizado, sendo que a substância
hu­mana fundamental parece perder-se mais e mais.
Já no século XIX, segundo Jaspers, o tempo foi abalado por um “sen­
timento de perigo”. Desde então, o ser humano “sente-se ameaçado”. Para

16
Ibid., 126.
17
Ibid., 23.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
exemplificar, o autor se referencia em Hegel dizendo que diante do “des­
moronamento da época” reconhece que é necessário conciliar tanto a filosofia
quanto a realidade. Em seguida cita Grundvig, que quer um retorno ao
cristianismo, e que diz: “O nosso tempo acha-se à beira de uma viragem, quiçá
a mais importante da história; o que era velho desapareceu, e eis que o novo
vacila sem poder libertar-se.”18 Na sequência Jaspers ainda se refere a Kierkegaard
498 que postula um cristianismo original, o do início. De todo modo, para Jaspers,
...uma consciência se difunde, a de que tudo fracassa, a de que tudo é incerto,
mo­vediço, que nada de fundamental é suscetível de prova; é uma vertigem
sem fim que se projecta em recíprocos logros e ilusões nascidas de movimentos
ideológicos. Solta-se a consciência da época do ser para se debruçar sobre si própria.
Quem assim pensa sente-se a si mesmo como nada. A sua consciência do
fim é simultaneamente a do nada do seu próprio ser. Ora, solta do tempo, a
consciência deu uma cambalhota.19

No texto Rumo ao abismo? –escrito em 2011–, Edgar Morin se refere


aos processos que tem como mote o “progresso humano” e que trazem, por
um lado, progressos locais e possíveis progressos futuros e, por outro, trazem
tam­bém “perigos mortais” para toda a humanidade. São desenvolvimentos que
che­gam a produzir verdadeiras regressões, diz o autor. Regressões tão graves
que remetem à volta à barbárie.
O autor cita o progresso científico que produziu armas de morte químicas
ou biológicas que podem matar em massa; o progresso técnico e industrial
que levou à degradação da biosfera; a mundialização do mercado econômico
sem autorregulação ou regulação exterior que levou aos extremos de riqueza e
de pobreza. Esta mundialização, segundo Morin, provocou e provocará crises
su­cessivas e seu avanço se apresenta em forma de caos. Ademais, a questão se
agra­va porque os campos da ciência, da indústria, da técnica e da economia
não tem regulação política, ética ou do pensamento.
Para Morin, duas barbáries estão aliadas com força no momento atual,
a velha barbárie –cheia de ódio, destruição, morte, com as mais diversas mo­ti­
vações no campo das nações, religiões, étnicas ou civis, e a barbárie tecnicista–

18
Ibid., 25.
19
Ibid., 27.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


do cálculo que não toma em conta a dimensão humana do ser humano, com
sua história, seu sofrimento, sua vida, seus sentimentos.
Para o autor, há um avanço dos processos regressivos, que pode estar
re­lacionado com um feedback positivo desintegrador, verdadeiras retroações de­
sintegradoras, estreitamente vinculadas com a retroação positiva do quadrimotor
ciência – técnica – indústria – economia. A aliança entre as barbáries de eras
499
his­tóricas com a barbárie hostil e sem rosto da técnica na civilização atual é
capaz de destruições ainda não exatamente evidentes para a humanidade, mas
mos­tram-se como ameaças claras.
Por um lado, os sinais de algo não vai bem são agudos e até crônicos. Por
outro lado, a diversão, a distração promovida pela indústria do entretenimento
é tão acachapante que temos que refletir com mais elementos se não há uma
verdadeira inconsciência sobre o “espírito deste tempo”. Segundo Frankl20, o
refúgio em divertimentos baratos está relacionado à frustração da vontade de
sen­tido. Ou seja, a hipótese de uma consciência maior de um tempo são apenas
os sinais visíveis manifestos nos sintomas que sinalizam para uma profunda
decadência do espírito humano.
Para o francês Félix Guattari, em seu livro As três ecologias, publicado nos
anos 1990, ao lado das grandes transformações protagonizadas pelas sociedades
humanas nesta era, a humanidade assiste a grandes desequilíbrios, seja no meio-
ambiente natural, social, cultural ou subjetivo (interno). Guattari aponta que
...os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de
uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao
mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a
vida conjugal e familiar se encontra freqüentemente ‘ossificada’ por uma espécie
de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão reduzidas
a sua mais pobre expressão.21

Há evidências de uma sensação de mal-estar no tempo atual quando


no senso comum se ouve queixas de que não há mais estruturas fundamentais
que orientem o ser humano sobre o seu ser e o seu fazer; quando se questiona

20
Frankl, Em busca de sentido.
21
Guattari, As três ecologias, 1.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
sobre o papel da família tradicional e as consequências de sua desestruturação,
bem como o fracasso do modelo de casamento, do modelo de educação for­
mal, a corrupção na política, o fracasso das religiões tradicionais em seu papel
moralizador.
Estes questionamentos estavam presentes com certa força no final do
500 século XX, mas há indícios de que no século XXI há um declínio da força de
questionamento sobre as razões destas mudanças e a volta ao inconsciente.
O excesso de uso de drogas, entorpecentes, antidepressivos, pelo menos no
caso brasileiro22, maior mercado de remédios para dormir do mundo, tanto
in­dicam para uma frustração, como para uma decadência da força de reflexão,
e de criação de uma nova realidade.
Jaspers chama à atenção para o movimento da humanidade de regresso
de uma situação de maior consciência ao inconsciente. Um grito se ouve, diz o
autor, e a volta ao inconsciente significa a volta ao “inconsciente do sangue, da
fé, da terra, da alma, da história e do mistério”. O retorno da religião é uma das
ca­racterísticas desta volta ao inconsciente, pois “no fundo incrédulo, o homem
procura, à força, acreditar, destruindo, para tal, a consciência”.23
Tal grito constitui um logro. O homem carece, para continuar homem, de
per­manecer na consciência. [...]. A vulgar existência, que tudo encara como
possível de conhecimento e de finalidade prática, terá que ser ultrapassada por
um honesto, autêntico labor filosófico, mediante a sintaxe límpida de todos os
mo­dos da consciência. Não é possível disfarçar, renunciar à consciência, sem
se excluir a si próprio do processo histórico da humanidade.24

22
Matéria publicada na revista Super interessante do mês de julho de 2010, intitulada “Nação
Rivotril”, mostra que o Brasil é o maior consumidor deste calmante de tarja preta do mundo.
A matéria mostra que o remédio é prescrito por médicos para crises de ansiedade, mas é suado
para dar conta das pressões do dia a dia como insônia, conflitos nos relacionamentos, etc. A
ma­téria também revela que o Brasil é o maior consumidor de clonazepan, princípio ativo do
rivotril, do mundo. A previsão para 2010 era de que naquele ano seriam consumidas 2,1 to­
ne­ladas de clonazepan no Brasil (Versolato, “Nação Rivotril”, http://super.abril.com.br/saude/
nacao-rivotril-587755.shtml, Super interessante [acesso em 15 mai, 2013]).
23
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 221.
24
Ibid., 221.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


Massificação e ameaça ao ser autêntico
Jaspers já percebeu claramente como o avanço da técnica e da mecanização
afe­tavam a existência. As novas invenções permitiram pensar outro modelo de
produção e organização nas indústrias que a partir da serialização da produção
podiam aumentar o rendimento dos trabalhadores. O curso do desenvolvimento
era determinado pela racionalização da atividade e pela mecanização. A dimen­ 501
são autêntica do ser humano, no entanto, sucumbe diante da massificação a
que a mecanização conduz. Jaspers conclui que um ser humano deixa de ser
ele próprio à medida que se identifica com uma massa anônima.
A massa “isola o indivíduo, reduzindo-o a um átomo abandonado à sua
avidez de existência”.25 A massa anônima, diz Jaspers, comporta um “carácter
dissol­vente” que leva o ser humano a agir segundo uma vontade que não é dele
próprio. A massa não tolera autonomia. Cada qual deve se colocar a serviço
da roda viva, do aparato que sustenta a massa. A massa anônima não tem ca­
rá­ter axiológico, mas funciona pela quantidade que representa, sendo uma
gran­deza vaga.
A tensão entre a organização técnica e o mundo da existência humana
se evidencia no fato de os limites da organização da existência revelarem um
antagonismo típico dos tempos modernos. A organização da massa e a ma­
ssificação levaram à construção de um “aparato universal da existência” que
destruirá o mundo humano. O seu presente sucumbe nas heranças do passado
e nos projetos do futuro. A existência cotidiana, no entanto, exige algo do
indivíduo, pois ela vem “nimbada pelo espírito de uma totalidade, de um
microcosmos presente de modo sensível, por medíocre que seja”.26 Mesmo
descrente e submetido à máquina é neste mundo, é neste mesmo espaço que
o ser humano deverá encontrar o rumo e realizar o seu ser-si-próprio. Segundo
Jaspers,
...falta-nos uma rigorosa delimitação ao nível da totalidade que, inconscientemente,
revele, antes de qualquer trabalho, o caminho de uma fecundidade coerente,

25
Ibid., 59.
26
Ibid., 63.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
susceptível de amadurecimento. De cem anos para cá se torna cada vez mais
nítido que o homem dedicado à criação do espírito se vê remetido à sua solidão.27

Para Frankl28, no esforço e na luta pela existência significativa o ser hu­


mano se engaja em imitar os outros no que dizem e no que fazem, ações que
geram conformismo e levam ao totalitarismo massificante, que suplantam a
502 auten­ticidade própria de cada ser. A artificialidade e a superficialidade das rela­
ções revela o domínio do mecanismo também nelas e o caráter funcional das
mes­mas. As relações são disfarçadas, transvestidas de um aspecto conciliante,
estão degeneradas. Tudo deve ter um ar de apaziguamento. Fala-se de muitas
coi­sas e a contradição entre elas não causa mal-estar. Não há conexão entre a
éti­ca e a falta dela.
A tendência para a destruição do nicho doméstico, da vida familiar,
cres­ce à medida que a absolutização da organização universal da existência
aumenta. Este mundo original da família, a qual o ser humano busca sempre
retor­nar como que por um “instinto invencível”, é aos poucos engolido pela
dominação do modo de organização universal da existência. Segundo Jaspers,
as “tendências dissolventes” apresentam uma moral excludente, não toleram
nen­hum modelo alternativo ao da classe hegemônica. É o mundo público, o
mun­do externo que rege a existência hodierna.29
A tendência dissolvente dos laços sociais se impõe com força total na
sociedade industrializada e burocratizada, onde se constrói uma ideologia de
re­lações a partir do mundo do trabalho. Trabalhadores e trabalhadoras devem
se relacionar artificialmente, mantendo a falsa alegria sob a aparente simpatia.
O processo de desumanização é crescente. Haja vista que os problemas no
mundo do trabalho, a falta de motivação, as doenças e acidentes relacionados
ao trabalho que se avolumam. Os “elementos da criatividade”30 são banidos do
mun­do do trabalho. A autenticidade não é uma característica bem acolhida no
mundo do trabalho contemporâneo.

27
Ibid., 196.
28
Frankl, Sede de sentido.
29
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 87-88.
30
Fromm, A revolução da esperança, 49.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


As crueldades das quais os seres humanos são capazes tornaram-se fla­
grantes. Os estímulos gerados pela inquietação e pelo medo geram mais atividade;
a submissão às exigências cresce para os que têm meia idade sob pena de serem
excluídos; poupança, seguros de toda espécie, assistência social, a tudo recorrem
os indivíduos ameaçados nestes tempos em que o “sentimento de insegurança
vital”31 se aprofunda, mesmo diante das promessas de prolongamento da vida
pela ciência. Agora, a angústia vital alcança o domínio físico. Afinal, quanto 503
mais distante de compreender a sua significação neste mundo, o que resta é a
fu­ga para a doença que servirá de proteção nestas circunstâncias.
A dinâmica da existência, com sua organização e mecanismos, permite
momentos de esquecimento, de apaziguamento e de organização que dão o
sentimento de co-pertencimento e segurança. A organização, no entanto, não é
capaz de eliminar a angústia, antes, a organização total da existência precipita a
ines­capável angústia vital. A angústia que escapa mesmo diante da organização
só pode ser
...domada pela angústia da existência como encontro do ser-si-próprio com o
transcendente, a implicar um impulso religioso ou filosófico. A angústia vital
cresce necessariamente quando o elemento transcendental da existência se acha
neutralizado.32

A origem espiritual da decadência humana


A decadência tem, segundo Jaspers, uma origem espiritual. A noção de auto­
ridade subjacente aos vínculos humanos, base da confiança e que dava ao in­
di­víduo a consciência do ser se desfez. A autoridade perdeu seu terreno ante
a crítica no século XIX, de onde advém o cinismo característico da existência
mo­derna, cuja qualidade maior é o silêncio diante da vulgaridade que se
apresenta por todos os lados. A severidade das obrigações desapareceu e o
hu­manismo perdeu sua humanitas justificando “a partir de ideais exangues,
o que há de mais esporádico e espúrio”.33 Hoje “a realização no fracasso pode
ser tão real como no êxito”.34

31
Ibid., 95.
32
Ibid., 95.
33
Ibid., 127.
34
Ibid., 153.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
Para Morin, o humanismo ficou acanhado e não conseguiu se contra­por
ao individualismo ocidental reinante e que afeta profundamente as relações
em todos os níveis, alastrando o egocentrismo, a autojustificação, o interesse
pessoal. O humanismo não conseguiu implantar valores como a colaboração,
a re­ciprocidade, a mutualidade, a cooperação e a interdependência e a co­de­
pendência – estes últimos no sentido de desconstrução da noção de que o ser
504 humano é indivíduo independente dos outros seres humanos e seres vivos
em geral.
Resiste naqueles valores individualistas difundidos até a alma das so­
cie­dades ocidentais o problema da incompreensão generalizada que separa os
seres humanos dos seus grupos de convívio como as famílias, no seu grupo de
trabalho, que afeta os valores que educadores deveriam ensinar, que impossibilita
que mais pessoas se associem em cooperativas, sindicatos de forma a colaborarem
entre si. Reside aí, segundo Morin, a “exasperação das incompreensões” e a
“exas­peração dos conflitos”.35
Para Edgar Morin, trata-se de fato de uma crise da alma, do espírito. Esta
crise imposta pela organização material da existência “gera um apelo ao Orien­
te interior e vai procurar no Oriente exterior seus remédios. Por que ocorre
esse apelo à ioga, ao budismo, essa busca na Nova Era, como se a civilização
ma­terial criasse um vazio espiritual e um divórcio entre corpo e espírito...”36
O teólogo Paul Tillich37 interpretou os diferentes tipos de ansiedade
enfrentados pela civilização ocidental ao longo de sua história como grandes
pe­ríodos de ansiedade, e identificou três tempos e três tipos de ansiedade: um
na civilização antiga, outro na Idade média e outro no período moderno. São,
pa­ra o autor, ansiedades em que o não-ser ameaça o ser.
Segundo Tillich, no final da civilização antiga predomina a ansiedade
ôntica, no final da Idade Média predomina a ansiedade moral, e no período
mo­derno, o que mais nos interessa aqui, predomina a ansiedade da vacuidade e
da insignificação. Neste período, a auto-afirmação espiritual do ser é ameaçada

35
Morin, Rumo ao abismo?, 88.
36
Ibid., 27.
37
Tillich, A coragem de ser.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


pelo não-ser de modo relativo no caso da vacuidade e de modo absoluto no
caso da insignificação.
Nesta era perdeu-se o genuíno “sentimento de Deus”, a “preocupação
suprema”, segundo Tillich. A humanidade está numa profunda depressão espi­
ritual, uma frustração existencial – na qual tenta encontrar novos significados,
em­penhada numa nova busca de referenciais de valor e sentido e que apontam
505
para o sentido da vida. A pior ameaça é a ameaça de ser lançado ao nada, a
ameaça do não-ser. Segundo Tillich,
Vacuidade e perda de significação são expressões da ameaça do não-ser à vida
espiritual. Esta ameaça está implícita na finidade do homem e realizada no
extravio do homem. Pode ser descrita em termos de dúvida, sua função criadora
e destruidora na vida espiritual do homem. O homem é capaz de perguntar
por­que está separado de embora participando em, daquilo sobre o que está
perguntando. Em toda pergunta está implicado um elemento de dúvida, a
certeza de não haver.38

Viktor Frankl39 compreende esta situação como um adoecimento es­pi­


ritual da humanidade, não se tratando mais de um fenômeno individual ou
local. Entre as razões deste adoecimento espiritual estaria a falta de sen­tido,
o vazio existencial causado pelo fim das tradições que antes davam su­porte
às condutas humanas, dos valores, da consciência da capacidade de auto­
transcendência – própria do ser humano, considerando sua necessidade de
encontro com o outro e de ir além de si. Para Forghieri,
...a consciência de si e o autoconhecimento implicam a autotranscendência; esta
é a capacidade do ser humano transcender a situação imediata, ou, em outras
palavras, a capacidade de ultrapassar o momento concretamente presente, aqui
e agora, o espaço e o tempo objetivos. Pela autotranscendência a pessoa traz o
passado e o futuro para o instante atual de sua existência e se reconhece como
sujeito responsável por suas decisões e atos.40

Ao se referir ao adoecimento espiritual do nosso tempo, Frankl caracteriza


–o através dos sintomas da adição– o uso desmedido de drogas lícitas e ilícitas

38
Ibid., 37.
39
Frankl, A presença ignorada de Deus.
40
Forghieri, Psicologia fenomenológica. Fundamentos, método e pesquisas, 32.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
que aponta para uma via de desespero ante a necessidade de sobreviver neste
mundo recorrendo a artifícios que substituem brevemente esta realidade por
outra; da agressão, que não apenas se explica pela violência em si, mas como
uma manifestação de revolta diante de um mundo excludente para a maioria;
da depressão, que não deixa de ser uma recusa na participação de determinada
rea­lidade; da banalização da sexualidade, em relação à qual pode-se apontar um
506 pa­radoxo impressionante no tempo atual, pois justamente a época na qual mais
se fala de sexo e de prazer sexual mais se toma drogas para ter prazer e potência
e em que mais se verifica ausência de prazer sexual em índices significativos.
Ou seja, é necessário tomar remédios para obter prazer.
Neste tempo “atual”, considera Jaspers, o ser humano encontra-se
“desenraizado”. O caminho transcorrido até aqui parece ter sido misterioso e
oculto para ele mesmo, ainda que vivesse “na imediata consciência da unidade da
existência e da consciência dela”. Hoje, segue Jaspers, queremos ir ao “sedimento
da realidade” na qual vivemos e por esta razão “perdemos pé”, uma vez que
as estruturas da unidade estão arruinadas e assim somente discernimos de um
lado a existência ou de outro a consciência dela.41
Para Jaspers a consciência deste movimento no qual a humanidade
entrou contempla uma dualidade que consiste no fato de que, dado que o
mun­do é indefinido, o ser humano em vez de sua esperança matar a sede na
transcendência, apega-se no mundo capaz de ser transformado, com a crença
nu­ma plenitude terrestre. Resulta que o indivíduo se depara com os limites dos
efeitos de seus esforços diante do confronto com as possibilidades concebidas
de forma muito abstrata.
Ademais, acrescentando o fato de que “o devir das coisas do mundo
em que ele parece insignificante como força transformadora da totalidade”42
é res­ponsável pela criação de um “sentimento de impotência”, ou seja, este ser
hu­mano que se julgava capaz de dominar o mundo vê-se cativo do movimento
e do rumo das coisas.
Morin entende que estas contradições da modernidade chegaram a um
“grau paroxístico”. Segundo este autor contemporâneo, “tudo se passa como

41
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 10.
42
Ibid., 12.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


se houvesse uma agonia, no sentido original da palavra, ou seja, uma luta
entre as forças da vida e as forças da morte”.43 Com Morin podemos entender
que a crise, seus sintomas e seu sentido, apontados através dos autores acima
ci­tados, se estende até os dias de hoje, e, cremos, se apresenta de modo mais
agudo e revela a decadência espiritual do ser humano e a sua dificuldade na
ma­nutenção de valores e sistemas historicamente aprimorados pela própria
sociedade humana. 507

Organização da existência e reivindicação


de uma existência autêntica
Com o processo de desmitização protagonizado pela ciência o mundo se de­
ssacraliza e qualquer lei de liberdade se perde diante do estabelecimento da
or­ganização, da cooperatividade e da obediência. Vontade alguma se mostra
eficaz para o restabelecimento de uma axiomática autêntica; a consciência se
perdeu nesta era, e a objetividade tornou-se ambígua, o autêntico transfigurou-
se naquilo que se perdeu, a substância revela-se perplexidade e a realidade “um
baile de máscaras”, diz Jaspers. E “ante o problema de saber o que restará ainda
hoje em dia, a resposta a formular é apenas a consciência do perigo e da perda
co­mo sentimento de uma crise radical”.44
O indivíduo sempre corre o perigo de se perder na massa anônima –
que no mundo contemporâneo é absolutizada como entidade que poderia
dar resposta aos desejos e determinar o sentido da vida do ser humano. No
en­ten­dimento da abordagem fenomenológica, no entanto, o indivíduo como
pessoa, na qualidade de sua existência transcendental, está além de ser apenas
mem­bro de uma massa, pois comporta uma autenticidade em sua humanidade,
cuja dimensão deve cumprir.
Para Jaspers, a constante invocação das massas e sua absolutização tem o
intuito de sustentar atividades vazias de sentido, de não enfrentar a si próprio,
não assumir as responsabilidades que conclamam o indivíduo a assumir o
com­promisso da promoção humana.

43
Morin, Rumo ao abismo?, 28.
44
Ibid., 128.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
Para que outra forma de organização da existência seja viável é necessário
paz e, para tal, tomada de decisões e compromisso com a comunidade. A exis­
tência comunitária exige que o indivíduo assuma compromissos. Estes podem
con­vocar o indivíduo a que assuma o ser si-próprio ou pode exigir que este ser
si-próprio se dissolva. No último caso o indivíduo será reduzido a “um ilimitado
ajus­tamento aplainante no plano da cooperação genérica”.45
508
Devemos considerar, no entanto, que o ser humano nunca é
completamente tragado pela organização da existência na sua individualidade.
Ele se revolta ao sentir-se sufocado e enredado pelas exigências deste padrão da
organização da existência. Há no ser humano “uma reivindicação da existência
como apelo do transcendente, que nele se acha latente”.46 O ser humano ainda
é um ser livre que busca a realização do seu ser-si-próprio e é também um ser
coexistencial.
É na liberdade do indivíduo que o limite deste modelo de organização da
existência pode ser encontrado, pois é a ele que “cabe realizar, por si próprio,
o que ninguém lhe poderá subtrair, no caso do homem optar pela sua própria
humanidade”.47 Sujeitar-se é desconectar-se do desejo próprio e original da
ver­dade profunda que diz respeito à integridade do ser. É romper com o sopro
original que deu e dá vida a cada ser.
Segundo Jaspers, para ser ele próprio o indivíduo se arrisca em nome
da sua “vontade de assumir o próprio destino a fim de alcançar o ser”.48 Se, no
entanto, o prazer de lograr algo pelo ato de criação, por onde o ser se realiza
na sua autenticidade, fica embotado a inesperada satisfação própria do ser hu­
mano já não pode se realizar. Se “tudo vem desprovido da cor de uma criação
pe­ssoal”,49 a impossibilidade de criar por si leva, então, à frustração existencial,
o sentido de se ver refletido na criação se perde.

45
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 119.
46
Ibid., 66.
47
Ibid., 92.
48
Ibid., 65.
49
Ibid., 69.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


No desespero de tomar as rédeas do próprio destino, de assumir seu ser o
in­divíduo assume riscos. A ambição pode se apresentar como via de realização
do ser-si-próprio, mas é ela mesma uma dissimulada força que em meio ao
desespero se apresenta como via de realização do transcendente. Assim se
apresentam as drogas que conduzem, momentaneamente, a outro mundo longe
da realidade concreta e insuportável do presente, e assim servem como via de
fuga desta organização mecânica da existência. Assim também se apresentam 509
o erotismo, o esporte e o lazer, as diversões de massa e, no cotidiano atual, as
redes sociais.
O problema consiste em que a autenticidade do ser humano está pro­fun­
damente ameaçada neste momento pelo domínio avassalador da organização
mecânica do aparato da existência e seus subterfúgios. Fromm considera que a
ordem social pode usufruir do ser humano para “quase” toda obra. Exatamente
“quase” lembra Fromm, pois é necessário tomar em conta que há consequências
para a imposição de certas condições.
O desempenho de ações requer estímulo e prazer, sem os quais o desem­
penho é nulo ou muito baixo. Ou seja, há que se considerar que o ser humano
não é completamente dominável, pois ele reage, quando não completamente
de­sam­parado, às imposições que tentam submetê-lo e tirar-lhe a humanidade.
Ele “tenderá a ser violento se a vida for demasiado enfadonha; tenderá a perder
toda a sua capacidade criadora se o transformarmos numa máquina”.50 O ser
hu­mano protestará “contra condições que tornam demasiado drástico ou
insuportável o desequilíbrio entre a ordem social e suas necessidades humanas”.51
O caminho de volta à autenticidade, ou à originalidade do ser humano,
a superação, no redemoinho da crise, pode ser encontrada por aquele que
...busca o caminho dos seus sedimentos originais, terá que passar através do
que se perdeu a fim de incorporar pela memória, medir as proporções do caos
para chegar a uma decisão sobre si próprio e fazer a experiência do disfarce a
par­tir de que logre alcançar a autenticidade.52

50
Fromm, A revolução da esperança, 79.
51
Ibid., 79.
52
Ibid., 129.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
Segundo Jaspers, o ser humano encontra a sua realização no campo
político, cujo meio é a organização da existência, por força da sua vontade de
to­talidade. Além disso, o ser humano encontra a sua realização por meio da
criação espiritual “pela qual acede à consciência da sua substância”.53
Por outro lado, o engajamento excessivo na organização da existência
510 levou o ser humano a afastar-se da sua capacidade de autocriação livre e conse­
quentemente da consciência das suas origens, do seu destino e da sua verdadeira
humanidade. O caminho político e o da criação espiritual são os campos onde
o ser humano pode resgatar a substância destas perdas. Mas não resgatará em
apenas um dos campos, porque isoladamente nenhum deles é capaz de oferecer
a totalidade do que o ser humano busca.
Urge, pois, segundo Jaspers, um “regresso às origens, ao ser humano”54 e
o caminho é aquele. Nesta perspectiva, o ser humano será capaz de relativizar
a organização exterior da existência centrada no pensamento utilitário que ora
domina a existência humana de modo danoso. A verdade instituinte da co­
munidade envolve uma fé histórica, e esta jamais será universal. Há uma verdade
que alcança a todos de modo igual que é a de um juízo razoável, “mas a verdade
do que seja o próprio homem, e que a sua fé lhe manifesta, separa os homens”.55
O ser humano, segundo Jaspers, na situação espiritual do nosso tempo, na
tentativa de se tornar ele próprio se esquiva e renuncia a forças que tentam impor
uma fé totalitária. O destino do espírito é a sua manifestação na polaridade
entre a subordinação à existência e espontaneidade original. Apaga-se na mera
dependência de uma irrealidade utópica; pode constituir a ideia fulcral das
es­truturas da existência, como pode suceder que ela morra, e o que antes fora
es­pírito subsistirá apenas, residualmente, como invólucro, máscara ou simples
sensação.

53
Ibid., 129.
54
Ibid., 129.
55
Ibid., 130.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


Considerações finais
O indivíduo “paira na oca liberdade do nada”56, pois conta apenas consigo pró­
prio, porque já não encontra apoio nos outros, e não extrai a sua liberdade da
“substância que tudo penetra”57 e na qual já não se percebe imergido. A situação
do tempo na qual a humanidade se encontra exige, para ser contornada, um
es­forço extra humano. A noção da impossibilidade desta empreitada pode levar 511
a humanidade a esforços no sentido de remediar ou de se organizar somente
para dar respostas para o presente imediato e a limitar seu pensamento a fim
de não se impor mais sofrimentos.
Para Jaspers, o ser humano está desamparado, desenraizado, separado,
ameaçado, disperso, não tem comprometimento com o mundo no qual está
in­serido, perdeu a noção de autoridade e aseveridade das obrigações, mas precisa
correr o risco a fim de poder reencontrar-se a si próprio.
Os sintomas do adoecimento espiritual, que vão desde doenças como a
depressão, até o uso desmedido de drogas lícitas e ilícitas e a violência, segundo
Frankl, cujas causas seriam a frustração da vontade de sentido, a vacuidade, a
perda de significação e a perda do genuíno sentimento de Deus, e da preocupação
suprema, segundo Tillich, evidenciam a insatisfação do ser humano diante do
seu modo de organizar a existência. A busca da superação deste estado está
si­mul­taneamente presente neste adoecimento como sinal na frustração e na
constante vontade de criar outros modos de vida.
O ser humano como ser de transcendência é capaz de superar a cada
mo­mento a sua situação. A tensão entre a existência e o ser-si-próprio como ser
autêntico é a própria busca do ser humano pela sua qualidade humana. Abrir
mão de lutar seria perder a “referência cósmica”, parar de criar, de produzir de
cuidar, de preservar e apenas se submeter a fim de sobreviver e satisfazer as ne­
ce­ssidades básicas seria deixar o espírito se esvair e não crer mais em si mesmo.
Perder a referência cósmica equivale a perder o lugar no mundo, pois o
ser humano sendo um ser de transcendência é responsável, busca sentido, tem
uma capacidade espiritual que permite pensar o seu lugar neste mundo. No

56
Jaspers, A situação espiritual do nosso tempo, 225.
57
Ibid., 225.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
atual momento a organização exterior da existência corrói a atividade espiri­
tual da humanidade.
Morin, apesar de todo o argumento, não perdeu completamente a es­
perança no ser humano, embora sua esperança seja quase a expectativa de um
milagre. Ele crê que a metamorfose está em processo. Mas alerta que ela não
512 está determinada. Incertezas, possibilidades de regressão e destruição não podem
ser descartadas neste processo. O autor guarda uma expectativa com relação a
uma nova consciência planetária –que poderia levar a uma nova civilização– e
que faria uma reforma, tendo em vista a preocupação ecológica e a busca da
qualidade de vida.
Morin aposta na possibilidade de que o improvável possa acontecer,
ainda que a probabilidade seja a de uma catástrofe. Não há determinismo com
relação ao futuro. Aliás, o passado já mostrou a capacidade de regeneração do
ser humano, quando diante de graves crises como na segunda guerra mundial.
Se­­gundo o autor, “atitudes autotransformadoras despertam em caso de crise
quando as coisas rigidificadas se deslocam diante dos perigos”.58
Segundo Morin, o mundo abalado pela agressividade do quadrimotor
destruidor formado pela ciência moderna e hegemônica, a técnica, a indústria e a
ideologia do lucro necessita de uma mudança ao nível de uma metamorfose que
parece estar fora do nosso alcance. No entanto, guardamos também esperanças
em relação ao ser humano, e esperanças positivas. A esperança neste caso não
é im­possível, mas ela é improvável, diz Morin. Mas o improvável é possível.
Além disso, é necessário contar com “o apelo à vontade diante da grandeza do
desafio”.59
Morin se refere à possibilidade de uma reação positiva com base no
fenômeno do mundo físico onde um feedback positivo sempre leva à desin­
tegração ou explosão. No mundo humano, ao contrário, se antigas estruturas
cristalizadas se desintegram o feedback positivo pode levar à regeneração, ao
surgimento de novas forças capazes de transformação. Portanto, a ideia de uma
decadência ou de um abismo não significa por si um fim, mas a possibilidade
de uma regeneração.

58
Morin, Rumo ao abismo?, 32.
59
Ibid., 93.

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz


Morin indica quatro vias necessárias para uma reforma da humanidade: a
primeira trata da reforma da organização social; a via da reforma da educação, a
fim de que a humanidade possa evoluir espiritualmente; a via da reforma da vida
e a última – a via da reforma ética. Morin não explica especificamente cada via.
No entanto, se tomamos em conta a reflexão de Jaspers, em quem even­
tualmente Morin se baseia, haja visto a semelhança de muitos conteúdos deste
513
com aquele autor, podemos pensar que todas as vias convergem para o que
Jaspers formula em termos da organização da existência nos padrões da socie­
dade mecanizada e da necessidade de superação das consequências deste modo
de organização da vida como um todo.
Nenhuma das reformas é possível sem uma reforma ainda mais pro­
funda. Para uma mudança em níveis mundiais seria necessário, segundo Mo­
rin, acontecer uma “reforma das pessoas”, só esta reforma seria capaz de levar
à compreensão mútua tão necessária para uma sociedade mundializada, uma
“civilização mundializada” baseada em novos valores. Trata-se de uma “polí­
tica da humanidade e de uma política de civilização” que toma em conta a
necessidade de uma “reforma interior dos espíritos e das pessoas”.60
Nas palavras de Jaspers, se trata da necessidade de um regresso às origens
humanas, ou seja, às origens do potencial mais originalmente humano que é
a sua capacidade espiritual e de transcendência. A mudança deveria acontecer,
por­tanto, no nível do espírito humano, na dimensão psíquica, na interioridade
humana e no nível do pensamento.

Bibliografia
Bello, Angela Ales. Introdução à fenomenologia. Bauru, SP: Edusc, 2006.
Forghieri, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica. Fundamentos, método e
pes­quisas. São Paulo: Cengage Learning, 2009.
Frankl, Viktor E. A presença ignorada de Deus (6 ed.). São Leopoldo-Petrópolis:
Sinodal-Vozes, 2001.
_____. Em busca de sentido (14 ed.). São Leopoldo- Petrópolis: Sinodal-Vozes,
2001.

60
Ibid., 88-89.

theologica xaveriana – vol. 64 No. 178 (487-514). julio-diciembre 2014. bogotá, colombia. issn 0120-3649
_____. Sede de sentido (3 ed.). São Paulo: Quadrante, 2003.
_____. Um sentido para a vida. Psicoterapia e humanismo (13 ed.). Aparecida,
SP: Ideias & Letras, 2005.
Fromm, Erich. A revolução da esperança. São Paulo: Círculo do Livro, 1968.
Guattari, Félix. As três ecologias (17 ed.). São Paulo: Papirus, 1990.
514 Huisman, Denins. História do existencialismo. Bauru, SP: Edusc, 2001.
Husserl, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia (3 ed.). Porto
Alegre: Edupucrs, 2008.
Jaspers, Karl. A situação espiritual do nosso tempo. São Paulo: Moraes Editores,
1968.
Morin, Edgar. Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
Terra. “Jovens ignoram efeitos colaterais e ‘viciam’ em viagra.” Saude-Terra,
http://saude.terra.com.br/jovens-ignoram-efeitos-colaterais-e-viciam-
em-viagra-entenda,5c90a8969ac2a310VgnVCM3000009acceb0aRC
RD.html (acesso em 21 mai, 2013).
Tillich, Paul. A coragem de ser. São Paulo, Paz e Terra, 1991.
_____. Teologia sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 1967.
Versolato, Bruno. “Nação Rivotril.” Revista Super interessante, Julho 2010,
http://super.abril.com.br/saude/nacao-rivotril-587755.shtml (acesso
em 15 mai, 2013).

a decadência espiritual no nosso tempo anete roese y adisoln schultz

Você também pode gostar