Pedagogia - Hospitalar - Escola No Hospital de Câncer Infantil
Pedagogia - Hospitalar - Escola No Hospital de Câncer Infantil
Pedagogia - Hospitalar - Escola No Hospital de Câncer Infantil
PIRACICABA, SP
(2008)
A CRIANÇA EM TRATAMENTO DE CÂNCER E
SUA RELAÇÃO COM O APRENDER:
EXPERIÊNCIAS NUM PROGRAMA
EDUCACIONAL EM AMBIENTE HOSPITALAR
Piracicaba – SP
2008
Banca Examinadora:
Orientadora: Profa. Dra. Maria Cecília Rafael de Góes
_____________________________________________
Profa. Dra. Cristina Broglia Feitosa de Lacerda
_____________________________________________
Profa. Dra. Kátia Regina Moreno Caiado
_____________________________________________
Profa. Dra. Lúcia Helena Reily
_____________________________________________
Ao amigo Flaviano Agostinho de Lima, cujo incentivo foi fundamental para o início das
atividades do Programa Dédalo, focalizado neste trabalho.
Às amigas Sonia Ijano Batista e Aimée Amaro de Lolio, sempre presentes com palavras
tão valiosas de estímulo, e aos inúmeros colegas de trabalho que tiveram sempre um
gesto de incentivo e apoio durante a caminhada.
Aos meus pais Odette e Geraldo e minha irmã Conceição, por terem sido minha
fortaleza na infância.
Às professoras Dra. Ana Luiza Bustamante Smolka e Dra. Cristina Broglia Feitosa de
Lacerda, pelas valiosas contribuições apresentadas no exame de qualificação.
Este estudo aborda questões relativas à educação escolar de crianças com câncer. Em
razão do tratamento, que requer internação e idas freqüentes ao hospital para os
cuidados médicos necessários, esses sujeitos precisam afastar-se da escola por períodos
variáveis, longos ou recorrentes. Desde o diagnóstico, seguido das fases de tratamento e
acompanhamento, eles vêem sua vida profundamente alterada e enfrentam intenso
sofrimento físico e psíquico, aliado a uma restrição do convívio social. Neste trabalho
buscamos analisar a significação que essas crianças atribuem ao aprender, no âmbito de
um programa educacional implementado e coordenado pela autora, em um hospital de
câncer infantil de uma cidade do interior de São Paulo. O programa recebe crianças e
adolescentes, mas, para a análise aqui pretendida, focalizamos a faixa etária de 6 a 12
anos, tendo em vista que observações preliminares haviam indicado uma grande
dificuldade desses pacientes diante das demandas do processo escolar. Embora o
programa continue ocorrendo, fizemos um recorte temporal para análise, abrangendo
um período de dois anos (2005-2007). As situações de atividades foram registradas em
anotações feitas pela coordenadora durante e após cada sessão. Devido a critérios éticos
não foram empregados recursos de vídeo, sobretudo pelos sentimentos ligados à auto-
estima da criança, cuja aparência é muito afetada pelo tratamento. A implementação do
estudo foi referenciada em proposições de L. Vigotski e A. Leontiev, no que concerne
ao desenvolvimento infantil e ao processo ensino-aprendizagem; além disso, contamos
com aportes de Canguilhem e Foucault, na discussão dos conceitos de saúde e doença, e
de autores que se reportam à pedagogia hospitalar no Brasil. Os registros das sessões
foram examinados à luz do objetivo – captar indícios de como as crianças significam o
aprender – e foram organizados em três unidades temáticas: 1) o desejo de aprender, 2)
as “lições” que as crianças pedem e 3) o ser aluno (doente) na escola. As análises
indicam que as crianças demonstraram uma enorme receptividade ao programa e, apesar
de poderem realizar diferentes atividades, inclusive com o computador, sempre pediam
lições tipicamente escolares (como contas, ditados, leitura). Nos diálogos com a
coordenadora ou parceiros, elas se referiam a sua situação escolar, seja por estarem
afastadas seja por enfrentarem as dificuldades dos retornos. Suas falas evidenciam que a
escola está despreparada para recebê-las. Esses alunos são encorajados a meramente
copiar tarefas, pois não são feitas adaptações para que alcancem o ritmo de atividade da
classe; constrangem-se pelo fato de serem aprovadas independentemente do
desempenho insuficiente; ressentem-se do preconceito e do estranhamento
demonstrados pelos demais alunos e pelos adultos. Apresenta-se, então, um aparente
paradoxo que envolve essas crianças e a comunidade escolar. O desejo de fazer lição, no
hospital, muito provavelmente corresponde a querer “ser aluno”, vivendo e aprendendo,
mas não na escola real que elas encontram. O conjunto destes achados indica o nítido
desejo que manifestam para aprender, como forma de preservar seu núcleo vital
saudável. Por outro lado aponta para a urgente necessidade de ações conjuntas das
instituições escolar e hospitalar, visando ao atendimento do direito à educação e à
melhoria das condições de vida de crianças com câncer.
Cette étude montre des questions qui concernent l`éducation scolaire d`enfants
malades de cancer. À cause du traitement qui demande hospitalisation et de fréquentes
allées et venues à l`hôpital pour les soins nécessaires, ces petits doivent s`éloigner de
l`école pendant de différentes périodes, parfois très longues, d`autres, plus courtes.
Depuis le diagnostic, suivi d`étapes de traitement et de leurs conséquences, les malades
voient leur vie profondément alterée et affrontent non seulement forte souffrance
physique et psychique et encore la réduction de leurs liens sociaux. Dans ce travail,
nous avons cherché faire l`analyse de la signification que ces enfants attribuent à
l`apprentissage, au champ d`action d`un programme éducatif implanté et coordonné par
l`auteur, dans un hôpital d`enfants malades de cancer d`une ville située dans l`état de
São Paulo. Le programme reçoit des enfants et des adolescents, mais pour l`analyse
qu`on veut y faire, on a considéré les tranches d`âge de 6 à 12 ans, puisque des
observations préliminaires avaient montré une grande difficulté de ces patients à l`égard
des éxigences du quotidien de l`école. Quoique le programme continue à se développer,
nous avons fait une coupe temporelle pour analyse qui puisse comprendre une période
de deux ans (2005 – 2007). Les situations qui concernent les activités ont été notées par
la coordonatrice durant et après chaque séance. À cause de critères éthiques on n`a fait
appel à aucun recours de vidéo, en tenant compte les sentiments de l`auto-estime de
l`enfant, dont l`apparence est durement atteinte par le traitement. L`exécution de l`étude
a été basée dans des propositions de L. Vigotski et A. Leontiev, en ce qui concerne le
développement infantile et au processus enseignement-apprentissage; de plus, on
compte sur des apports de G. Canguillem et M. Foucault, à propos de la discussion des
concepts de santé et maladie, et d`auteurs qui discutent la pédagogie hospitalière au
Brésil. Les enregistrements des séances ont été examinés à la lumière de l`objectif -
obtenir des indices sur la manière que les enfants signifient l`apprentissage – et ont été
organisés en trois unités thématiques: 1) le désir d`apprendre; 2) les “ devoirs” que les
enfants demandent; 3) être un élève (malade) dans l`école. Les analyses indiquent que
les enfants ont démontré une très grande réceptivité au programme et, malgré la
possibilité de pouvoir réaliser plusieurs activités, y compris l`ordinateur, ils
demandaient toujours des leçons typiquement scolaires (par exemple, des comptes, des
dictées, des lectures). Dans les dialogues avec la cordonnatrice ou avec ses auxiliaires,
ils parlaient de leur situation scolaire, soit parce qu`ils sont éloignés de l`école, soit à
cause du retour et les difficultés prévues par eux. Leurs discours mettent en évidence
que l`école n`est pas du tout préparée pour les accuillir. Ces élèves sont encouragés à ne
faire que de copies vu que des adaptations nécessaires ne sont pas faites pour qu`ils
puissent atteindre le rythme d`activité de la classe; ils se sentent gênés parce qu`ìls
passeront leurs examens malgré leur performance insuffisante; ils éprouvent les
conséquences du préjugé parce qu`ils sont différents des autres, une situation nettement
démontrée par les collégues et par les adultes aussi. Alors un visible paradoxe entoure
ces enfants et la communauté écolière. Le désir de faire leurs devoirs dans l`hôpital
correspond probablement au besoin de vouloir “être élève”, être en vie en apprenant,
mais pas dans la réalité de l`école qu`ils trouvent. L`ensemble de ces découvertes
indique le désir net qu`ils démontrent d`apprendre, une manière de préserver leur noyau
vital sain. Par contre ceci montre le besoin urgent d`actions unies des institutions
écolières et hospitalières,dont le but sera le droit à l`éducation et l`amélioration des
conditions de vie des enfants atteints par le cancer .
APRESENTAÇÃO 1
CONSIDERAÇÕES FINAIS 84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 90
APRESENTAÇÃO
O interesse pelo tema desta pesquisa surgiu de minha experiência docente, tanto
no âmbito do desenvolvimento de recursos digitais para o processo de ensino-
aprendizagem como na realização de projetos de extensão. Nessas atividades, cuja
diretriz é considerar o conhecimento como direito de todos, intensificou-se minha
preocupação com crianças que apresentam graves problemas de saúde, tendo de
atravessar momentos dolorosos de tratamento e por vezes necessitando internação
hospitalar. Trata-se de aprendizes que por algum motivo são afastados do ambiente
escolar e se vêem restringidos quanto ao convívio social. Para contribuir com iniciativas
de melhoria da qualidade de vida desses sujeitos, particularmente no que concerne às
suas experiências educacionais, dei início em 2005 ao programa de extensão que
chamarei de Dédalo 1.
Esse programa concretizou-se por meio de uma parceria entre uma Universidade
e um Hospital de Câncer Infantil, numa cidade de porte médio do Estado de São Paulo.
O Hospital é uma entidade beneficente criada com a finalidade de prestar assistência
integral a crianças e adolescentes (0-18 anos) portadores de neoplasia maligna. Realiza
cerca de 120 atendimentos mensais e suas ações abrangem, também, a assistência social
extensiva aos familiares do paciente (alojamento, alimentação).
Nesse contexto, minha atenção orientou-se para o oferecimento de experiências
de aprendizagem para crianças e adolescentes no ambiente hospitalar, de maneira a
1
Justificando a nomeação do programa: Dédalo, engenhoso inventor que foi aprisionado juntamente
com seu filho Ícaro na Ilha de Creta, sob as ordens do Rei Minos. Diante das limitações
impostas pela prisão, muitos teriam desistido, pois Minos controlava a terra e o mar, mas
Dédalo, ao contrário, começa sua grande criação: Asas. Quando a invenção termina, Dédalo e
Ícaro voam em liberdade, um outro trilhar num mundo de aprendizagens, no qual a firmeza da
terra não mais existe, a ventania e o imprevisto fazem parte de seu viver. Ícaro maravilhado com
sua conquista seguiu rumo ao Sol, fazendo com que esse fosse seu último vôo, porém morreu
realizando seu grande sonho, embalado nas “asas da liberdade”. Da mesma maneira, o
Programa Dédalo, foi traçado, consciente dos desafios, perdas e conquistas que ocorrem ao
caminhar, orientado para um novo trilhar que não se detém diante das dificuldades, ao contrário,
investe em possibilidades.
fortalecer seu núcleo vital saudável, como recomenda Vigotski (1997) nas discussões
sobre o desenvolvimento humano comprometido por fatores orgânicos.2
Direcionando o olhar para o caso específico de combate ao câncer, constatei que
o tratamento exige períodos de grande limitação dos espaços de convivência. O
afastamento das atividades escolares torna-se inevitável e as oportunidades de
atividades recreativas ou lúdicas estreitam-se marcadamente. Por isso no programa
educacional busquei atender as crianças e adolescentes em tratamento como educandos,
não como pacientes. Ademais, concordando com Fonseca (2003), entendo que essa
atuação deve basear-se não apenas no que diz respeito ao desempenho acadêmico, mas
também nos processos pelos quais a criança está passando e na perspectiva que ela tem
de sua cura.
Quando o programa começou, tentei formalizá-lo como classe hospitalar,
portanto subordinado à secretaria de educação e vinculado a alguma escola. Não foi
possível obter acolhimento para essa proposta. Apesar da frustração, as experiências
com as crianças e o estudo bibliográfico mostraram-me que a não vinculação a
instâncias outras, além da universidade e do hospital, teve a vantagem de propiciar um
tateio e uma flexibilidade na forma de conduzir o trabalho. Desse modo, pude refletir
sobre condições muito importantes para o atendimento das crianças e adolescentes, o
que me proporcionou maior conhecimento e sensibilidade para tentar novamente a
configuração oficial de uma classe hospitalar. Essa formalização está em andamento e
deverá se completar no ano de 2008.
Meu interesse por analisar mais detidamente essa experiência levou-me a
focalizá-la no projeto de doutorado. Entretanto, havia muitos ângulos a explorar e era
preciso delimitar a pesquisa. Então, optei por tematizar a questão da disposição a
aprender manifestada pelas crianças e considerar o grupo de 6 a 12 anos, que se
encontrava na etapa do ensino fundamental.
Desse modo, considerando o contexto de um programa de atendimento
educacional em ambiente hospitalar, o presente estudo teve por objetivo investigar a
receptividade de crianças com câncer a situações de ensino-aprendizagem e explorar
alguns indicadores de como elas significam o processo de aprender. Embora o programa
não tenha tido um caráter oficial de classe hospitalar, o propósito mais amplo é
2
A grafia do nome do autor varia em diferentes traduções. Ao longo deste texto utilizaremos
uma só forma (Vigotski), porém serão preservadas as grafias diferenciadas nas Referências
Bibliográficas.
2
problematizar o papel da escola no desenvolvimento dessas crianças, em seu próprio
espaço físico e no espaço hospitalar.
Para a fundamentação da pesquisa, apoiei-me em referências teóricas para
questões amplas sobre saúde-doença, especialmente em Canguilhem e Foucault, e para
o desenvolvimento na infância, especialmente em Vigotski e Leontiev. Além disso,
realizei um levantamento bibliográfico sobre a chamada pedagogia hospitalar, incluindo
pesquisas da área médica e aquelas relativas à legislação específica da classe hospitalar.
Mesmo sem a intenção de chegar a um delineamento de “estado da arte”, durante o
estudo da literatura pude constatar a escassez de trabalhos publicados, sendo que a
maioria deles encontra-se em anais de congressos.3
O presente texto está organizado em quatro capítulos. O primeiro capítulo,
Saúde-doença e infância: a criança com câncer, traz discussões sobre os conceitos de
saúde e doença e aborda a problemática da criança com câncer, configurando esse
cenário de infância como desafio para a instituição escolar e apontando para alguns
aspectos da legislação sobre pedagogia hospitalar. No segundo capítulo,
Desenvolvimento do psiquismo e comprometimentos de saúde, exponho proposições da
abordagem histórico-cultural, assumida como referência teórica tanto para a
compreensão dos processos de desenvolvimento e aprendizagem, como para o
delineamento de uma educação desejável a ser oferecida a crianças que apresentam
sérios problemas orgânicos. O terceiro capítulo, Um programa de atendimento
educacional em hospital de câncer infantil, consiste da caracterização do programa
Dédalo e do ambiente hospitalar em que é implementado. No quarto capítulo, A
significação do aprender por crianças com câncer, são relatadas a metodologia e as
análises do estudo realizado, que, como já mencionado, não abrangeu as ações do
programa como um todo, mas referiu-se a um grupo de crianças e abrangeu um recorte
temporal de dois anos. Segue-se a seção de Considerações finais, com a reafirmação do
direito da criança doente à educação escolar e a problematização da precariedade de
ações hoje destinadas a esse sujeito nas instituições hospitalar e escolar.
3
Cabe registrar que o número 73 dos Cadernos CEDES (vol. 27, 2007) é uma publicação recente que se
destaca por focalizar a educação da criança hospitalizada.
3
1 SAÚDE-DOENÇA E INFÂNCIA: A CRIANÇA COM CÂNCER
4
entrelaçam-se, não constituem opostos, ao contrário, elas se encontram em permanente
interdependência e transformam-se uma na outra.
Os conceitos que construímos sobre saúde e doença são manifestados não apenas
por palavras, estão intimamente relacionados com o agir, particularmente no que
concerne à escolha e efetivação de uma terapêutica. Se a doença é vista como um mal, a
terapêutica busca um restabelecimento do estado normal; se é concebida como falta ou
excesso de algo, a terapêutica consiste em uma compensação quantitativa que permita o
retorno ao equilíbrio. Outra maneira de encarar a doença é vê-la como um erro. Neste
caso o médico procura, no próprio organismo, o distúrbio que provocou o desequilíbrio.
Deixar de relacionar a doença como um mal e encará-la como erro é vê-la não mais
como imprudência ou excesso a recriminar, pois os doentes passam a ser vistos como
vítimas do acaso, quando um órgão falha e as funções orgânicas tendem ao fracasso.
Não se trata mais da doença como um mal necessário ou como resposta a faltas ou
excessos individuais; agora a procura é por respostas para falhas do próprio organismo.
Tais concepções de doença são criticadas por Canguilhem (2000), porque para
ele a doença não é o oposto da saúde, nem uma variação quantitativa do estado normal.
Esse autor argumenta que é indispensável dar atenção às questões conceituais, pois é o
caminho para compreender as transformações na atitude do homem em relação à
doença. Para o autor, o estar doente é mais que um estado físico, é uma construção
histórica da doença. A existência de um estado físico débil é inegável, porém é a
construção social que define o normal e faz do patológico um agente do processo que
vai além da própria debilidade física. Assim, as normas são mutáveis. Por exemplo,
estabelecemos normas em função da idade; aceitamos como normal que a doença ocorra
com o passar do tempo e não no início do ciclo de vida; uma mudança tida como normal
em uma pessoa idosa é considerada doença num jovem. Nesse sentido, não estamos
diante de uma condição determinada e determinante, fixamos normas e escolhemos
modelos.
5
É preciso admitir que o homem normal só sabe que é normal
num mundo em que nem todo mundo o é, e sabe, por
conseguinte que é capaz de ficar doente. (...) O homem normal
se sente capaz de adoecer, mas experimenta a certeza de afastar
essa eventualidade. Portanto para que o homem normal possa se
considerar como tal, e crer na sua normalidade, precisa não do
antegosto da doença, mas de sua sombra projetada.
(...) O homem normal é o homem são, e o homem normal só se
torna doente enquanto são. Nenhum homem são fica doente,
pois ele só é doente quando sua saúde o abandona, e nesse
momento ele não é mais são. O homem dito são não é são. Sua
saúde é um equilíbrio conquistado à custa de rupturas
incoativas. A ameaça da doença é um dos elementos
constitutivos da saúde. (CANGUILHEM, 2000. p. 260- 261)
6
Para julgar o normal e o patológico não se deve limitar a vida
humana à vida vegetativa. Em última análise, podemos viver, a
rigor, com muitas malformações ou afecções, mas nada
podemos fazer de nossa vida, assim limitada, ou melhor,
podemos sempre fazer alguma coisa e é nesse sentido que
qualquer estado do organismo se for uma adaptação a
circunstâncias impostas acaba sendo no fundo normal, enquanto
for compatível com a vida. (CANGUILHEM, 2000, p. 162).
7
certamente um forte aliado do controle, que dá ao médico poderes semelhantes aos da
religião.
Para apreender o significado da doença é preciso considerar a época histórica e o
meio social em que ela é vivida e quanto maior a relação estabelecida entre doença e
morte, doença e incapacidade, mais a tristeza estará envolvida. E a tristeza pode ser
acompanhada de outros sentimentos, inclusive a vergonha que surge não apenas pelo
risco de contágio e pelas seqüelas deixadas, mas também pela parte do corpo em que a
doença se manifestar. Assim, é moralmente preferível uma doença cardíaca a uma
intestinal, pelo significado que a sociedade atribui ao coração em relação ao sentimento
e à sujeira em relação ao intestino.
A doença apresenta-se como uma coleção de sintomas sob um olhar social e
ganha forma quando é revelada no encontro entre médico e paciente. Foucault (2001)
aponta quatro grandes momentos constituintes dessa revelação. O primeiro diz da
estrutura alfabética da doença onde o médico cria para sua ciência um palco definido e
limitado, uma linguagem que isolada não faz sentido, mas na reunião dos elementos
oferece um panorama definido, como os enunciados dos problemas definem expressões
para os matemáticos. O segundo refere-se à redução nominalista que é efetuada quando
o médico remete os indivíduos aos nomes das doenças. Os sintomas isolados são letras
que constituem a palavra correspondente à doença. O doente passa a ser a doença e
como tal é estigmatizado e tratado. O terceiro diz respeito a uma redução química dos
fenômenos patológicos na busca da extrema verdade, na busca da essência através não
apenas da decomposição, mas também da tentativa descobrir uma estrutura implícita, de
desvendar segredos para além do visível, através do resultado de inúmeros exames
laboratoriais. O quarto implica a experiência clínica identificada com a sensibilidade,
com o tato que apalpa os órgãos e o golpe de vista que vai além do que vê. Em
decorrência desses quatro momentos constituintes da clínica, perceber a doença, para o
profissional, é perceber o organismo e não a pessoa.
Ao longo da história, essa imagem das técnicas médicas tem resultado, segundo
Souza (1998), num grande descaso com o paciente. Para superar o problema é preciso
tornar possíveis uma ruptura com a medicina moldada pela frieza, pelo impessoal, e
uma transformação social pela qual o paciente passe a ser visto como uma pessoa, cujas
necessidades vão além da busca biológica de preservação da vida.
8
A idéia de mudança alcançou efetivamente a classe médica apenas há 30 anos,
com a Declaração Alma-Ata4, da Conferência Internacional sobre Saúde, que
disseminou a idéia de que saúde não é ausência de doença, mas um estado amplo da
vida e um compromisso mundial.
4
http://www.opas.org.br/coletiva/carta.cfm?idcarta=14
5
http://www.opas.org.br/coletiva/carta.cfm?idcarta=15
9
Como resultado, foi se firmando a sistematização desse paradigma,
contribuindo para uma abordagem mais humanística das questões de saúde. No
entanto, embora mudanças positivas venham sendo sentidas paulatinamente, o
modelo tradicional ainda tem uma forte presença na atualidade. Ademais, em se
tratando de crianças, vemos ainda hoje que a preocupação com esse processo pouco
reconhece a especificidade da infância.
10
A infância tomou diferentes conotações dentro do imaginário
do homem em todos os aspectos sociais, culturais, políticos e
econômicos, de acordo com cada período histórico. A criança
seria vista como substituível, como ser produtivo que tinha uma
função utilitária para a sociedade, pois a partir dos sete anos de
idade era inserida na vida adulta e tornava-se útil na economia
familiar, realizando tarefas, imitando seus pais e suas mães,
acompanhando-os em seus ofícios, cumprindo, assim, seu papel
perante a coletividade. (GUIMARÃES, 2004, p.54)
11
legislação. Mesmo assim, apesar dos debates intelectuais sobre
a definição de infância e de diferenças culturais com relação ao
que esperar da criança e para a criança, sempre existiu um nível
substancial de entendimento compartilhado de que a infância
implica um espaço separado e seguro, delimitado com relação
ao espaço da vida adulta, no qual a criança pode crescer,
brincar e se desenvolver. (UNICEF, 2005).
Como adultos procuramos explicações para essa fase da vida, fase em que se
desenvolvem valores e se testam limites e possibilidades, em que o sorriso e a lágrima
chegam com facilidade, época em que cada movimento é sempre acompanhado de
muita curiosidade e vontade de aprender. O desenvolvimento individual ganha forma
nas experiências de convivência coletiva, que ao mesmo tempo fazem de cada infância
algo único.
O adoecimento infantil acomete uma fase crucial do desenvolvimento humano e,
nas palavras de Nigro (2004), em doenças como o câncer constitui uma violência
impositiva em razão da necessidade de tratamento e internação. Isso é algo que não se
discute, acata-se. O estar doente exige um esforço físico e psicológico para a
preservação da vida, além de um esforço social redobrado para enfrentar os tratamentos
agressivos, que podem provocar mutilações, e a percepção de um anúncio da morte.
Ademais, a criança entra em grande sofrimento à medida que é despojada de suas
roupas, de seus pertences e do convívio com a maioria de seus familiares. Porém,
mesmo diante dessa fragmentação da vida, ela continua a ter fantasias, emoções e
sentimentos, o que demanda uma visão de tratamento que contemple as especificidades
da infância.
Segundo o INCA, surgem anualmente entre 12 e 13 mil casos de crianças com
câncer no Brasil. Atualmente (2007) é a terceira causa-morte de crianças entre 1 e 14
anos de idade. Essa alta taxa de mortalidade tem como um de seus principais fatores a
falta de tratamento correto principalmente pela dificuldade no diagnóstico.
O câncer infantil impõe um olhar atento para a vida que ainda em seu início
torna-se debilitada, necessitando de cuidados especiais em espaços que são distintos
daqueles envolvidos na maioria das rotinas, em especial o espaço hospitalar. O
tratamento de uma doença, principalmente quando exige hospitalização, agride o mundo
infantil e fere o modo rotineiro de viver, fato que é acentuado quando a criança adoece
gravemente e passa por internações recorrentes que ameaçam sua vida e a retiram do
12
ambiente em que estava, um ambiente protetor em maior ou menor grau. O afastamento
de várias esferas de seu meio social torna-se inevitável, muitas perdas são percebidas e
o receio da morte instala-se.
Esse processo de sofrimento é como uma jornada que tem início com o
diagnóstico da doença. A criança, antes no auge de seu dinamismo, entra num processo
de internações sucessivas. As restrições trazidas pela doença e pelo tratamento causam
debilidades e afetam a atividade física, o que muitas vezes agrava a angústia causada
pela enfermidade, podendo levar a um estado estressante que terá conseqüências para o
quadro clínico. Mas a atenuação dessas conseqüências de ordem emocional encontra
algumas barreiras, entre as quais vale destacar a frieza, ainda existente, dos profissionais
que lidam com a vida e a morte. Foucault (2001) indica a maneira distante com que
médicos tratam pacientes, camuflando esse distanciamento em normas, cujo objetivo
centra-se na doença, em suas palavras. “Paradoxalmente, o paciente é apenas um fato
exterior em relação àquilo que sofre; (...) o sucesso da cura depende de um exato
conhecimento da doença”. (p.7), o olhar médico reconhece o paciente, mas apenas para
colocá-lo em suspenso como espaço de desenvolvimento da doença.
Essa característica parece dever-se, em grande parte, ao desenvolvimento
histórico da doença; embora possa ocorrer com outras doenças, isso se torna marcante
no caso do câncer, que despontou como uma das maiores causas de mortalidade já na
década de 20 do século passado, segundo dados do Instituto Nacional do Câncer
(INCA). Com o tempo, o avanço da tecnologia e os investimentos na saúde pública, a
doença que tinha o estigma de patologia incurável passa a ser considerada como
recuperável, embora continuando com números alarmantes6. Na medicina os esforços
para a descoberta da cura tornaram-se intensos. A cura era buscada a qualquer preço, o
que parece ter levado o profissional, por longos anos, a ocupar-se mais da doença em si,
desenvolvendo uma maneira fria de lidar com o paciente. Mesmo hoje, com a
valorização da qualidade de vida e com o aumento dos sobreviventes, tem-se observado
o impacto desse tratamento na qualidade de vida dessas crianças, colocando em questão
o desgaste dramático dos tratamentos tentados e a qualidade de vida proporcionada às
6
No século passado o câncer foi o segundo responsável pelos casos de morte no mundo, com as
pesquisas atuais espera-se que em 2.020 tenhamos 15 milhões de casos novos com 12 milhões
de morte. Fonte: INCA. Disponível em <http://www.inca.gov.br/situacao > no dia 25 de janeiro
de 2007.
13
crianças que encontram ou não encontram a cura. Lopes, Camargo e Bianchi (2000)
referem a esse problema:
Tanto para os pacientes que encontram a cura como para os que falecem, existe
um preço alto, que não costumamos observar, como aponta Siqueira (2003):
7
Revista. Associação Médica Brasileira. V. 46, nº3. São Paulo: jul./set 2000.
14
quando crianças são hospitalizadas pela condição específica de câncer notam-se
seqüelas diferentes daquelas observadas nos casos de internação por outras doenças. A
diferença deve-se principalmente à agressividade do tratamento, que se associa com
outras limitações como o afastamento escolar. Para Silva e Colaboradores (2006) as
complicações relacionadas ao tratamento de câncer acompanham a dimensão do
problema, dividindo-se em agudas e tardias.
15
Embora esses apontamentos das pesquisas sejam muito relevantes, nossa
preocupação orienta-se mais para a condição atual da criança em tratamento e
acompanhamento.
Considerando o diálogo que aqui estabelecemos com diferentes autores a respeito
de saúde-doença e comprometimento da saúde na infância, torna-se claro que a criança
com câncer requer cuidados que extrapolam os processos orgânicos. Para seu
desenvolvimento psíquico deve-se promover, tanto quanto possível, oportunidades de
uma convivência social favorecedora de processos emocionais e intelectuais, o que
torna indispensável pensar as experiências educacionais, sobretudo as escolares, que lhe
são oferecidas.
8
Existem no Brasil 6.400 Hospitais, entre públicos e privados e 66 Classes hospitalares existentes no País
atualmente, segundo dados do Ministério da Educação, a maior parte delas em hospitais públicos (Jornal
Estado de São Paulo, 11 set 2006).
16
O atendimento educacional em ambiente hospitalar, antes dependentes de
movimentos isolados, ganha impulso a partir de sua oficialização pela legislação
brasileira. Com o reconhecimento dos direitos de sujeitos enfermos à saúde,
educação e lazer, as classes hospitalares começaram a surgir. No caso do Brasil, essas
classes resultaram de uma proposta da Sociedade Brasileira de Pediatria, acolhida
pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que
levou à promulgação dos Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados
(Resolução nº. 41, de 13/10/1995). Essas classes estão previstas, ainda, nas Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (Resolução nº. 2, de 11/9/01,
do Conselho Nacional de Educação) e no documento Classe Hospitalar e
Atendimento Pedagógico Domiciliar, elaborado pela Secretaria de Educação Especial
(SEESP/MEC) em dezembro de 2002.
Esse atendimento ficou sob a alçada da SEESP, que o regulamentou em 1994,
apresentando diretrizes para subsidiar a organização de atividades pedagógicas em
ambiente hospitalar e domiciliar, e para fundamentar a ação do docente que trabalha
com crianças impedidas de freqüentar a escola por motivo de saúde. O atendimento
pedagógico em ambiente hospitalar recebeu o nome de “classe hospitalar”.
17
jovens e adultos matriculados ou não nos sistemas de ensino
regular, no âmbito da educação básica e que se encontram
impossibilitados de freqüentarem escola, temporária ou
permanentemente e, garantir a manutenção do vínculo com as
escolas por meio de um currículo flexibilizado e/ou adaptado,
favorecendo seu ingresso, retorno ou adequada integração ao
seu grupo escolar correspondente, como parte do direito de
atenção integral. (BRASIL, 2002, p. 13)
18
Embora as argumentações de documentos oficiais e de organizações civis
confirmem o reconhecimento desse direito à educação, ainda se faz necessário ativar
outros mecanismos sociais para efetivação e preservação desse direito. Para Matos
(2006):
19
Analisando os programas educacionais desenvolvidos em hospitais quanto ao
objetivo de sua atuação, Fontes (2005) identifica duas visões diferentes que pautam o
funcionamento da classe hospitalar. Uma defende a presença dos professores no
ambiente hospitalar seguindo os moldes da escola regular, procurando contribuir para o
continuidade da aprendizagem de conteúdos instrucionais e diminuição do fracasso
escolar. A outra visão, embora valorize os conteúdos instrucionais, prioriza a construção
de uma prática pedagógica que considere o contexto e o tempo hospitalar: busca
desenvolver o trabalho escolar, sem estar totalmente atrelada a ele, com uma liberdade
de atividades dirigidas à parte recreativa e emocional.
20
governo e exercício de liberdade que levem à tomada de
decisões, elaboração, execução e manutenção do projeto de
vida pessoal. (...) interage com o enfermo/hospitalizado,
criando uma atitude de reforço para que este não se deixe abalar
diante de sua enfermidade, (...) que revigorado em sua
autonomia, prossiga tomando decisões fecundas, tanto em
relação à pessoa quanto à manutenção de uma atitude de
esforço, de luta e otimismo para a vida presente e para um
possível futuro. (MATOS, 2006, p. 96-97)
21
recreativo-educacional, sem concentração nas atividades tipicamente escolares. Como
será esclarecido oportunamente, o desdobramento dessa iniciativa, mesmo mantendo
uma atenção ao recreacional, passou a ter um caráter educacional-escolar.
Este estudo apoiou-se na abordagem histórico-cultural, assumindo o pressuposto
de que o oferecimento de experiências de aprendizagem para a criança no ambiente
hospitalar fortalece seu núcleo vital saudável, como recomenda Vygotski (1997) nas
discussões sobre o desenvolvimento infantil comprometido por fatores orgânicos. Esta
referência teórica é apresentada no capítulo a seguir.
22
2 DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO E COMPROMETIMENTOS DE
SAÚDE NA INFÂNCIA.
23
Pensando no homem como ser social, vemos o desenvolvimento do psiquismo
como construção ocorrida nas interações do homem com o meio social, cujas atitudes
individuais estão carregadas de trocas com o meio. O homem, ao nascer possui
características genéticas específicas da espécie humana, no entanto, seu
desenvolvimento ocorre na relação social. É nessa relação que o individuo vai
interagindo e se apropriando do mundo, interiorizando e definindo seu
desenvolvimento. Para Leontiev (1978) a interiorização é a transformação das ações
exteriores em interiores que acontecem gradualmente.
Vemos então que a experiência individual é historicamente construída,
incorporando as produções históricas e culturais da sociedade. Experiência única,
manifestação da relação individual, mas também produto do desenvolvimento de
numerosas gerações, e transmitida de uma geração a outra. Assim o desenvolvimento
segundo a abordagem histórico-cultural, não nega o fator biológico, mas reconhece ser
um processo enraizado nas relações entre a história individual e social. Para Vigotski
(1993) o desenvolvimento é:
24
como sujeito único. Trata-se de um processo dinâmico que caminha do social para o
individual. No entanto, como salienta Pino (2004), esse movimento de internalização
não é dicotomizado entre o “dentro” e “fora” ele acontece em um movimento dialético
entre as hipóteses que o indivíduo traz consigo e as representações sociais.
Smolka (1992, 2000) discute o uso de diferentes expressões que remetem ao
fenômeno da internalização e aponta o cuidado que deve ser observado no emprego do
termo, visto que:
25
constituir um meio de apropriação da cultura e pelo papel que assume ao coordenar e
organizar as ações humanas.
A linguagem é um sistema simbólico, um mediador composto por signos, que
permite a transmissão e assimilação das construções sociais. O indivíduo internaliza o
sistema de linguagem de seu grupo social e, por meio dele, tem acesso a experiências
que lhe permitem incorporar o conhecimento e as práticas sociais dos coletivos de que
participa. Ou seja, a linguagem tem papel fundamental nas relações entre indivíduos,
mediando a internalização das significações socialmente produzidas e constituindo o
psiquismo de forma singular.
Reconhecer a força do meio social não é, no entanto, negar a importância da
natureza biológica do organismo, mas libertá-lo das amarras hereditárias e dos limites
de disposições inatas.
Apesar de o homem, no momento do nascimento, trazer as características da
evolução de sua espécie, o desenvolvimento ontogenético depende, sobretudo, das
aprendizagens vivenciadas no meio social e é resultado das relações sociais concretas e
da apropriação das significações produzidas pela sociedade. Assim se dá a individuação
do sujeito, numa noção de indivíduo que não está relacionada a características
homogêneas. Como afirma Góes (2000), o singular, construído ao longo do
desenvolvimento, está entrelaçado com o heterogêneo, pois os papeis e posições do
sujeito são variáveis. Isso é verdade no que diz respeito tanto à personalidade, em seu
conjunto, quanto a cada esfera de funcionamento psíquico. A autora reitera essa visão
ao apontar para interpretações convergentes de Vigotski e Pierre Janet:
Dessa maneira, podemos ver o processo de individuação não mais como algo
solitário; ao contrário, trata-se de um complexo constituído de múltiplas facetas, que
tem suas raízes nas relações humanas. Em outras palavras, “a singularização vem das
26
experiências do grupo social” (GÓES, 2000, p. 119). Tornar-se indivíduo é parte
essencial do desenvolvimento ontogenético, produto da aprendizagem nas interações
com agentes mediadores da cultura.
Nessa visão de formação do sujeito, o conhecimento não decorre de uma ação
direta do sujeito sobre a realidade. O contato com a realidade é sempre mediado por
outros sujeitos. Desse ponto de vista, a educação ganha uma nova dimensão, na medida
em que os processos psíquicos não se desenvolvem por condições dadas geneticamente
nem existem no individuo como potencialidades inatas, nem ocorrem simplesmente em
função da idade. As condições para o conhecimento estão na relação do indivíduo com a
cultura e dependem das atividades concretas em que ele se envolve.
Na discussão sobre desenvolvimento e aprendizagem, Vigotski salienta que
esses dois processos são distintos, porém estreitamente vinculados, pois mantêm entre si
uma relação de interdependência. A aprendizagem, que envolve necessariamente a
mediação social, alimenta o curso do desenvolvimento. Por isso, em relação à criança,
as experiências educativas não devem ser orientadas para o nível de desenvolvimento já
alcançado; nas palavras de Vigotski (1994) “o bom aprendizado é somente aquele que
se adianta ao desenvolvimento” (p. 117). Ao discutir os modelos teóricos existentes
sobre as relações entre desenvolvimento e aprendizagem, Vigotski (2004) classificou-os
em três grupos.
O primeiro grupo tem como tese central “a independência dos processos do
desenvolvimento infantil em face dos processos de aprendizagem” (VIGOTSKI, 2004,
p. 466). O ensino-aprendizagem é visto como algo externo, a ser combinado com a
marcha de desenvolvimento da criança. Dessa maneira a aprendizagem não modifica o
desenvolvimento, o que em última análise exclui a influência da experiência. O ciclo de
desenvolvimento antecede a aprendizagem, visto que se deve aguardar a maturação para
que as experiências possam ser assimiladas. O segundo grupo tem como tese “encarar a
aprendizagem como desenvolvimento” (VIGOTSKI, 2004, p. 468). Aqui se enquadram
as teorias de aprendizagem que se sustentam nos princípios de condicionamento. Como
o processo central é a aprendizagem, sendo o desenvolvimento um acúmulo de
aprendizagens, o desenvolvimento tem seu papel apagado e é tornado sinônimo de
aprendizagem.
Vigotski alerta para o fato de que, a despeito da aparência de oposição entre o
primeiro e o segundo grupo, eles acabam sendo extremamente parecidos na medida em
27
que criam limites e inibem oportunidades. Já o terceiro grupo de teorias tenta
compatibilizar os dois anteriores, de forma que:
28
na coletividade. Os motivos geradores da atividade são o que lhe confere sentido. Eles
atuam como agentes impulsores e, apesar de serem manifestações individuais, têm sua
gênese no meio social, num mundo transformado pelo processo histórico e pela
construção coletiva. Nesse mundo existem as diferenciações de classes, que são
independentes da vontade individual e colocam o desenvolvimento humano atrelado a
um sistema de relações sociais desiguais. É através da atividade como prática social que
o individuo interage com a sociedade.
29
para a criança que ela se torne plenamente consciente de uma esfera de relações que é
totalmente nova para ela” (p. 71).
Portanto, a atividade principal não é definitiva, ela passa por transições que
correspondem à necessidade interior da pessoa e à “agenda” estabelecida pelo grupo
social. Ferreira (1994) interpreta essas idéias, chamando atenção para o fato de que o
grupo social tem padrões para o lugar ocupado pela criança e, de acordo com suas
possibilidades e necessidades, ele redefine sua posição e reorganiza sua atividade. Essa
reorganização atinge diretamente o indivíduo e faz com que determinada atividade,
antes secundária, ultrapasse outras atividades, passando a desempenhar o papel de
atividade principal. Na pesquisa que realizou, a autora problematiza a educação
oferecida a sujeitos com deficiência mental, mostrando que a escola especial assume
uma posição indefinida quanto à atividade principal do educando.
A mudança nas atividades envolve também mudanças relacionadas às ações e às
operações. Leontiev concebe a atividade, as ações e as operações em um sistema com
três níveis inter-relacionados. No primeiro nível está a atividade, culturalmente definida
e associada ao motivo; no segundo, as ações e no terceiro as operações.
Para o sujeito, então, o objetivo da ação é seu fim imediato trazido à consciência,
mas na verdade há sempre uma relação com o motivo da atividade. Toda ação se
vincula a uma atividade e é realizada por operações. Entretanto, ação e operação
distinguem-se, pois a ação pode ser realizada por diferentes operações. Consideremos,
por exemplo, o cavalgar. Alguém cavalga por ser um vaqueiro da zona rural, um
praticante de hipismo, um membro de cavalaria. Mas essa ação “igual” não é realizada
pelas mesmas operações, visto que estas dependem do tipo de atividade em que
ocorrem. Os motivos de cada um podem vincular-se às necessidades da atividade
trabalho ou ao lazer ou a vários outros contextos de atividade – a postura, a forma de
movimentar-se, o manejo do cavalo etc. são distintos em cada caso.
30
Vemos, assim, que esses três níveis não existem isoladamente, mas são tecidos
nas relações sociais. Voltando à criança, ela é reconhecida e se reconhece como
membro do grupo, ocupando seu lugar na sociedade. Com o desenvolvimento, a
atividade antes principal, como o brincar na idade pré-escolar, passa a secundária,
dando lugar para a atividade escolar. Essa mudança só é efetivada na relação entre a
criança e a sociedade. Como diz Leontiev (1988), “é precisamente a sociedade que
constitui a condição real, primária, da vida da criança, determinando tanto seu conteúdo
quanto sua motivação” ( p. 82). Precisamente por isso não podemos caracterizar de
maneira geral (independente da cultura) a noção de atividade principal. Tudo depende
das condições reais de vida e é preciso lembrar que a criança pertence a um grupo social
e a uma determinada época. Há diferentes infâncias, não uma infância abstrata. Numa
sociedade temos crianças com e sem acesso à atividade de estudo, instrucional; outras
entram prematuramente na atividade trabalho e assim por diante.
32
Dado que, desde o nascimento, a criança está em um mundo historicamente
organizado, o autor entende os princípios gerais dos processos humanos são os mesmos
para crianças em condição normal e para aquelas que apresentam especificidades de
desenvolvimento correspondentes a características orgânicas não típicas. Entretanto,
nesse segundo caso há especificidades na formação sócio-psicológica e a educação
precisa estar atenta a isso, particularmente às conseqüências sociais do
comprometimento orgânico. As necessidades advindas de condições peculiares existem
e não podem ser ignoradas, é claro. Contudo, a ação social deve ser direcionada para as
possibilidades de desenvolvimento da criança, para experiências de aprendizagem que
elevem seus modos de funcionamento e favoreçam sua inserção nas diferentes esferas
da vida cultural.
Criticando a centração das ações educativas no “quadro orgânico”, Vigotski
(1997) diz que devemos reconhecer a enfermidade, mas, sobretudo, observar a pessoa
que apresenta essa enfermidade. Além de dirigir a atenção ao sujeito, é importante
lembrar que o comprometimento orgânico não conduz à idéia de um desenvolvimento
inferior, mas de um desenvolvimento que ocorre de outra forma. Assim, na dependência
do que a vida social propicia à criança, as necessidades provenientes de um
comprometimento não precisam resultar em incapacidades ou, mais especificamente,
em insucesso escolar.
Nesse sentido, importa o favorecimento de aprendizagens significativas, o que
não é realizável em propostas uniformes de ação. Além disso, é preciso focalizar os
aspectos qualitativos do desenvolvimento e não buscar referências em indicadores
quantitativos, que costumam limitar expectativas a um ideal métrico e, com isso,
promover o “conformismo” relacionado ao fracasso. Isto é, o conformismo do outro
pode conduzir ao “pouco exigir” diante da criança, possibilitando menos e excluindo
mais. Ao invés de propiciar elementos propulsores de desenvolvimento, a postura de
passividade educativa faz surgir o gosto do insucesso, da incapacidade e da
desvalorização social.
No contexto escolar o ensino deve ser diferenciado em função das
potencialidades e necessidades da criança. Ao considerar a diferença, corre-se o risco de
tentar reduzir a criança ao seu déficit, acentuando dificuldades e limites, uma educação
marcada por impossibilidades. Nessa linha Góes (2007) destaca em Vigotski o conceito
de potencialidade, que corresponde ao de plasticidade, uma das propriedades básicas e
primárias que constitui qualquer matéria viva:
33
Devido à plasticidade dos processos do indivíduo, a deficiência
não possui somente o caráter de obstáculo porque é também um
desencadeador do desenvolvimento, se o grupo social propiciar
caminhos especiais, muitas vezes por vias alternativas, para sua
superação. (p. 5)
34
3 UM PROGRAMA DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL EM HOSPITAL
DE CÂNCER INFANTIL
35
A preocupação com essa situação levou-me a fazer contatos com o hospital em
que as crianças eram tratadas e submeti à administração a idéia de um programa de
atividades educacionais em parceria com a universidade. Obtive anuência para realizar
observações que me permitiriam conhecer a instituição e compor a proposta com maior
detalhamento. Observei a rotina hospitalar por quatro meses e o programa foi
oficialmente iniciado em novembro de 2004, após os trâmites para sua aprovação pelo
hospital e pela universidade.
Ao propósito geral de criar um ambiente de caráter educacional e recreativo
estava vinculado o interesse em contribuir para a continuidade da aprendizagem escolar
dos educandos-pacientes. Inclusive, no começo, tentei formalizar o programa como
classe hospitalar, portanto subordinado à secretaria de educação e vinculado a alguma
escola do município. Não foi possível obter acolhimento para essa proposta. Apesar da
frustração, as experiências posteriores com as crianças e o estudo bibliográfico
mostraram-me que a não vinculação a instâncias outras, além da universidade e do
hospital, teve a vantagem de propiciar um tateio e uma flexibilidade na forma de
conduzir o trabalho. Desse modo, pude refletir sobre condições muito importantes para
o atendimento das crianças e adolescentes, o que me proporcionou maior conhecimento
e sensibilidade para tentar novamente a configuração oficial de uma classe hospitalar.
Essa formalização está em andamento e deverá se completar ainda em 2008.
Todo esse percurso de situações vividas para entrar no hospital, conhecê-lo e dar
início às sessões de atividade provocou vários questionamentos que me levaram a tomar
esse trabalho como objeto de meus estudos de doutorado em educação, com um projeto
de pesquisa de campo a ser exposto no próximo capítulo.
36
3.2 Caracterização do programa educacional
3.2.1 As atividades
37
apreciar a própria imagem, afetada pela doença e pelo tratamento. Então, escolhem
entre diferentes possibilidades (gifs animados, super-heróis, uma figura montada etc.).
A Figura 1 mostra a página de acesso da sala virtual e personagens desse
ambiente. A sala virtual foi elaborada a partir do Teleduc, ambiente gratuito criado pela
Universidade Estadual de Campinas. Esse ambiente possui ferramentas de interação e
propicia o desenvolvimento de atividades, correção e acompanhamento dos usuários.
Entre as ferramentas de interação destacam-se o fórum mural e o correio. Há
personagens que representam as crianças e foram por elas escolhidos e personagens
criados, que assumem diferentes perfis. Entre eles alguns aparecem com maior
freqüência nos diálogos virtuais, como o Sol, o Zangado e a Antenas. O Sol acompanha
a criança no percurso das histórias, pois além de procurar ser divertido, tem por objetivo
estabelecer proximidade com a criança; é também um narrador que facilita o
entendimento da história. O Zangado consegue conquistar as crianças com seu mau
humor, ganhando a amizade principalmente dos meninos. Para me representar criei
Antenas, bolinha vermelha saltitante e atrapalhada, que vive dando trombada em tudo,
precisando sempre de atendimento médico.
38
Essas informações referem-se ao uso do computador, que foi mais focado na
fase inicial do programa. No desdobramento das sessões, chamaram nossa atenção os
pedidos das crianças por tarefas manuscritas. Isso levou a um necessário
redirecionamento das atividades. Incluímos, então, experiências não restritas à sala
virtual, ampliando as atividades digitais, com acesso a sites e exploração de CDs
educativos, e inserindo recursos como livros de histórias e textos com exercícios
escolares, o que expandiu o componente presencial de maneira significativa.
39
Figura 2 – Espaço ocupado pelo programa antes da reforma.
40
Figura 3 – Espaço ocupado pelo programa após a reforma.
41
3.2.3 Os adultos e profissionais participantes do programa
42
anos de funcionamento, a psicóloga esteve mais próxima do trabalho, sendo ocasional o
envolvimento da assistente social. A psicóloga auxiliava no agendamento,
redirecionando os dias de tratamento dos pacientes para que coincidissem com os dias
das sessões. Às vezes participava das atividades por algum tempo, observando e
interagindo com as crianças. De modo geral, os encontros dessas profissionais com a
pesquisadora eram esporádicos e breves.
Esse quadro mudou no primeiro semestre de 2007. A psicóloga desligou-se do
hospital e sua substituta, de competência incontestável, encontrava-se em processo de
adaptação ao conjunto de seus compromissos. Então, a assistente social passou a atuar
de forma mais constante no programa. Até o momento é ela que encaminha as crianças
a partir das entrevistas com os pais e o paciente, além de fazer acompanhamento
espaçado das sessões. Visto que, com o tempo, por vontade própria algumas crianças (e
seus acompanhantes) começaram a vir exclusivamente para as atividades do programa,
essa profissional toma providências para que o hospital ofereça ambulância e
alimentação também nesses casos.
Vale registrar a colaboração de outros integrantes da equipe hospitalar, como,
por exemplo, a dentista do hospital que flexibiliza seus horários de atendimento, de
maneira a respeitar o término das sessões e, assim, contribui para valorizar e incentivar
a continuidade do programa.
As considerações feitas até aqui abordaram questões práticas do andamento do
programa, mas para compor uma visão do trabalho desenvolvido é indispensável que
situemos um pouco os pacientes na rotina do hospital e no contexto dos problemas
gerados pela doença e pelo tratamento.
43
3.3 A rotina hospitalar dos pacientes
44
- Cirurgia
A cirurgia é o mais antigo processo e, na maioria dos casos, associa-se a outro
tipo de tratamento. É bastante agressiva e normalmente realizada após sessões de
químio ou/e radioterapia. No processo cirúrgico para retirada de um tumor existe
sempre a amputação de partes do corpo; no melhor dos casos, ela se resume a uma
pequena área próxima ao tumor e, nos casos mais agressivos, chega à retirada de órgãos
e membros do corpo, devido à disseminação das células cancerígenas. Além dos efeitos
imediatos, existem outros, que ainda são pouco estudados, chamados efeitos tardios; o
tema já foi mencionado no primeiro capítulo, neste momento iremos indicar apenas os
efeitos tardios mais comuns no tratamento do câncer infantil, a começar pelo cirúrgico,
no Quadro I.
- Radioterapia
O tratamento por radioterapia consiste na utilização de radiações para destruição
do tumor, ou para impedir o aumento de células cancerígenas. No momento da
aplicação a criança não sente dor, porém, existe a necessidade de permanência em uma
mesma posição, exigindo uma imobilização que causa desconforto. Durante o processo
de aplicação poderão ser usados protetores de chumbo, para impedir que as células ou
órgãos sadios sejam atingidos.
A ausência da dor facilita a aplicação, porém os efeitos colaterais podem ser
muito prejudiciais, dependendo da intensidade do tratamento, do órgão afetado, das
condições gerais do organismo e da fase de desenvolvimento em que se encontra o
paciente. Segundo Costa e Lourenço (2002), existem déficits cognitivos que ocorrem
45
pelo efeito da irradiação no sistema nervoso central, principalmente quando aplicado até
o terceiro ano de vida. Esses efeitos podem ser temporários ou permanentes. Os
primeiros sintomas resultantes do tratamento envolvem cansaço e indisposição intensa,
perda de apetite e dificuldade para ingerir alimentos, pois em alguns casos a saliva
torna-se muito espessa. Há irritação da pele, que poderá escamar, coçar e até mesmo
queimar durante o tratamento, formando bolhas, secreções e provocando febre alta. É
comum ocorrer queda do cabelo.
Renal Hipertensão,
Diminuição do clearance de creatinina.
46
Tireóide Hipotiroidismo; Aumento de risco de nódulos.
Gastrintestinal Mal-absorção
Estreitamento intestinal, Disfunção hepática.
- Quimioterapia
A quimioterapia é amplamente utilizada, pois é o tratamento principal no caso de
leucemias e linfomas em crianças, sendo também, coadjuvante nos tratamentos de
radioterápicos e pós-cirúrgico. Consiste em uma associação de drogas que atacam as
células cancerígenas cuja toxidade acaba por atingir as células normais. Sua aplicação
vai além do desconforto, chegando a dores fortes. Normalmente a medicação é
introduzida na veia; para crianças, pela dificuldade e desconforto de aplicações
constantes, normalmente é utilizado um cateter, que é introduzido na veia por pequena
cirurgia. Esse procedimento permite que a medicação seja ministrada em pequenas
doses.
A quimioterapia pode ainda ser realizada via oral, por meio de comprimidos e
líquidos, via intramuscular, por meio de injeções subcutâneas em diferentes partes do
corpo, ou de maneira tópica, aplicada sobre a pele ou mucosa por meio de cremes,
pomadas e géis. Os efeitos mais comuns são tonturas, que surgem logo após a
aplicação, enjôos e vômitos, acompanhados por intensa fraqueza que limita os
movimentos, e diarréias fortes. A perda ou aumento de peso acontecem muito
rapidamente em resultado do próprio quimioterápico. Há conseqüências secundárias
como feridas na parte interna e externa da boca, o que dificulta a fala e a ingestão de
alimentos. Outro efeito que causa desconforto para a criança é a queda dos cabelos.
47
Quadro III – Efeitos tardios da quimioterapia
48
até cessarem totalmente. O quadro clínico é acompanhado com os exames que podem
indicar três situações, abaixo apontadas.
- Recidiva
Após determinado período, as células cancerígenas começam a aumentar, num
processo que pode ou não estar localizado no mesmo ponto do câncer original, o que
gera a necessidade de uma nova etapa do tratamento.
- Casos terminais
Nos casos terminais existem dois procedimentos médicos. O primeiro cessa o
tratamento, mantendo apenas com medicamentos paliativos para dor. Dá-se o retorno
para o lar, com visitas para monitoramento, sendo que a internação ocorre somente nas
últimas etapas da vida. Um segundo procedimento mantém o tratamento durante todo o
período da doença e as internações são intensificadas juntamente com os procedimentos
de tratamento (exames, medicamentos e cirurgias) até cessar a vida.
49
3.4 O tratamento hospitalar e a condição de vida do paciente
50
A doença é, assim, tomada em um duplo sistema de observação:
um olhar que a confunde e a dissolve no conjunto das misérias
sociais a suprimir; e um olhar que a isola para melhor
circunscrevê-la em sua verdade de natureza. (FOUCAULT, 2001,
p. 46).
51
percebido como negligente em relação a si mesmo, vazio de sentimento e insatisfeito
com a vida. É uma pessoa que merece sofrer para valorizar sua situação saudável.
Pessoas com problemas emocionais seriam candidatas ao câncer. A doença
decorreria da repressão e da resignação diante da paixão ou do ódio. Quando a causa é a
paixão reprimida, o mito do câncer indica para uma pessoa infeliz e desistente. Quando
se trata de ódio reprimido, que não transborda em uma explosão de raiva, haveria um
processo em que o ódio vai sendo cultivado e, ao longo do tempo, ele transforma-se
num tumor mortal.
Os discursos marcados pelo estigma permeiam o cotidiano da pessoa com câncer
também de outros ângulos. A par das atribuições de causas, há ainda uma construção
social que relaciona a doença a uma aniquilação individual e o tratamento a uma luta
militar que envolve explorações, invasões, bombardeios, infiltrações. Uma guerra
química em que o paciente sempre perde e o objetivo é perder o menos possível; nessa
mesma guerra em que existe a esperança de vencer, a derrota está igualmente presente.
É a necessidade de exames “exploratórios” que vão mapear as células “invasoras” a
serem extirpadas, “destruindo” o câncer que “devora”.
Apesar dos avanços tecnológicos e do aumento das chances de cura do câncer,
as dores físicas causadas pela doença e pelo tratamento só são equiparadas às dores
causadas pela segregação social que os estigmas produzem.
Essas considerações são fundamentais para compreender um pouco a situação de
vida em que se encontram as crianças aqui focalizadas. Elas apresentam trajetórias
diferentes em termos do processo de diagnóstico e enfrentamento da doença, mas em
vários pontos suas histórias se identificam, sobretudo pelos sentimentos de intensa
tristeza e pelo desejo de “retomar a vida”, em meio aos preconceitos que as atingem.
Mesmo ao receberem alta, sua alegria não parece ter o mesmo significado da
recuperação de outras doenças, pois o breve alívio da melhora logo se entrelaça com o
temor do retorno à condição que as afeta e da qual demonstram ter consciência, embora
de diferentes maneiras, a depender da idade ou etapa de desenvolvimento.
Ademais, outros problemas se colocam. Com a liberação pela temporária alta
médica, a criança deve voltar ao hospital para continuidade do tratamento. A distância
entre o hospital e a residência torna-se um obstáculo, acentuado pelas frágeis condições
físicas e financeiras. Quando não há possibilidade de realizar as viagens de idas e
vindas, a solução é a permanência da criança e da acompanhante na ala de apoio, que se
localiza no próprio hospital e consiste num espaço com quarto, banheiro privativo e
52
uma cozinha comunitária. Também a possibilidade maior ou menor de voltar à escola
gera a necessidade de um enfrentamento difícil.
Da perspectiva histórico-cultural, podemos dizer que a doença participa da
constituição da subjetividade da criança, marca profundamente sua história e os modos
de relação social em que se envolve. Suas vivências nas esferas da cultura são
seriamente afetadas, seja pela limitação de acesso seja pela imagem que passa a ser-lhe
atribuída.
Nessa situação de infância entendemos que se torna crucial a continuidade das
experiências de aprendizagem, particularmente daquelas que correspondem à atividade
instrucional da instituição escolar. Esse foi o núcleo do nosso interesse ao desenvolver a
pesquisa relatada a seguir, sobre o significado do aprender para crianças atendidas pelo
programa Dédalo.
53
4 A SIGNIFICAÇÃO DO APRENDER POR CRIANÇAS COM CÂNCER
54
o desenvolvimento da vida humana e de seus diferentes
significados no devir dos diversos meios culturais.
(TRIVIÑOS, 1987, p. 130)
55
primeiros tenham sido mais anotados, pelo fato de que a pesquisadora estava em
constante diálogo com as crianças.
Sempre que possível os segmentos interativos foram examinados sob diretrizes
da análise microgenética. Góes (2000) caracteriza essa abordagem nos seguintes termos.
56
4.2 As crianças no ambiente hospitalar e seu envolvimento em situações de
aprendizagem.
Situação 1 – Outubro/2005
Contexto: Lili (6 anos) iniciara o tratamento dois meses antes (agosto de 2005) e estava
ainda fazendo vários exames para confirmar o diagnóstico. Outra menina, Mary,
acabava de completar 7 anos e encontrava-se em fase inicial de tratamento.
Uma parte do grupo desenvolvia atividades nos micros, assessorada pela bolsista, e
outras crianças estavam sentadas comigo, em torno da mesa, em atividades de leitura e
desenho. Eu sabia que Mary e Lili tinham de se submeter à coleta da Líquor11.
10
Empregaremos o termo atividade no sentido comum de “tarefa”, “exercício”, “ocupação”. Entretanto,
no desdobrar das análises faremos referência à atividade na concepção de Leontiev (1978).
11
Líquor é nome mais usado entre os pacientes para a punção lombar. Esse procedimento consiste na
aspiração do Líquor para exame citológico e também para injeção de quimioterapia. A posição é
57
Mary chegou à sala se arrastando um pouco, mas veio sozinha. Sabrina, uma menina
mais velha que se encontrava na sala, perguntou qual médico tinha feito o exame, e se
ela conseguiu andar. Mary movimentou a cabeça afirmativamente. Entrei na conversa e
perguntei o que tinha acontecido.
Sabrina explicou que Mary teve o Líquor colhido, mas depois perdeu a sensibilidade
nas pernas e teve que ficar deitada. Foi um susto.
Mary: Eu fiquei mais brava quando falaram que você tinha aberto a salinha e eu não
podia vir. Assim que comecei a sentir as pernas vim pra cá.
Carmem: Bom... Então vamos estudar. Ela sentou-se ao meu lado e começou a
desenhar.
Enquanto fazíamos as atividades, escutávamos muitos gritos vindos da outra ala
do hospital, o que deixava as crianças em desconforto. Depois de algum tempo apareceu
correndo a Lili. Sua mãe vinha logo atrás. Quando percebeu que a menina entrou na
sala, a mãe parou. Entendi logo o que havia acontecido. Lili também estava realizando o
exame e, ao terminar, veio correndo para a "sala". Enxugou os olhos e sentou-se ao meu
lado.
As vindas ao hospital acontecem em função de consultas, exames, recaídas ou
quando não há perspectiva de melhora, de tratamentos paliativos. O rigor do tratamento
deixa marcas pelas dores sofridas, pela angústia do reinício da doença e pelo medo da
morte, entrelaçados à esperança de sobreviver. Nem sempre o desejo de ir à “sala” pode
ser manifestado pela própria criança, porém ela encontra meios para ser recebida, como
vemos nas situações 2 e 3.
Situação 2 – Junho/2006.
Contexto: Manoel (7 anos) adorava as atividades no computador. Um dia passava por
um exame, mas queria garantir sua vinda à “sala”. Sua mãe veio conversar comigo.
Mãe: Oi, professora. Você tem um espaço para o Manoel?
Carmem: Ele está internado?
Mãe: Ele tá fazendo um exame, mas tá chorando para vir aqui.
desconfortável, pois o paciente permanece na posição fetal a fim de evitar que a agulha se mova e cause
lesão medular. É feita na maioria das vezes com anestesia local e poucas vezes com anestesia geral e
causa efeitos bastante traumáticos física e psicologicamente.
58
Carmem: Se ele tem liberação do médico, é só trazer.
Enquanto ela foi buscá-lo, as crianças se organizaram para que ele pudesse ocupar um
micro. Existe entre elas essa solidariedade, uma ajuda mútua, principalmente quando a
situação envolve determinados procedimentos médicos. O menino chegou.
Manoel: Vim pra atividade.
Ele veio andando, sem ajuda, mas saía da sala a cada 10 minutos para ir ao banheiro,
pois para os exames tinha tomado um medicamento que dava a sensação constante de
precisar urinar.
59
crianças que vêm para consultas ou estão em acompanhamento, já liberadas da terapia.
No desdobramento do programa, começaram a ocorrer casos de comparecimento
exclusivo para as atividades do programa, sem vínculo com o agendamento de serviços
do hospital, por parte de crianças que retornaram às suas escolas.
Mesmo com dores ou desconfortos provocados pelo câncer ou pelo tratamento, essas
crianças mostravam um intenso interesse nas tarefas escolares. Essa busca tem suas
raízes nas relações sociais, podemos dizer, então, que o interesse manifesto resulta de
uma interação do indivíduo com o meio, com significados socialmente construídos. O
espaço do programa cria a possibilidade de suprimir uma necessidade cujo significado
tem origem no meio social, trata de ações educacionais culturalmente valorizadas e
socialmente manifestas nas práticas escolares. Vigotski (1991) indica a importância da
mediação social, cuja escola tem papel singular para a apropriação da cultura, sendo a
atividade o meio com qual o individuo interage com a sociedade.
60
tempo, além das exigências do tratamento hospitalar. O processo de tratamento é
marcado pela agressividade, fazendo com que a condição física fique debilitada. Como
visto anteriormente, as seqüelas podem ser de curta ou longa duração, ou ainda
permanentes. O envolvimento dos familiares torna-se intenso, porém mesmo eles têm
de respeitar limites, horários, número de visitas, procedimentos. Com Foucault (2001)
vemos que o espaço hospitalar é o espaço da doença, as relações humanas só acontecem
nessa estrutura de maneira controlada e vigiada e, ao mesmo tempo em que respeita as
necessidades do tratamento, também é fruto de uma construção médica marcada pelo
olhar analítico do doente-doença.
61
4.2.2 As “lições” que as crianças pedem
Situação 4 – Maio/2005.
Contexto: Leila (12 anos), Cacá (10 anos), Vânia (6 anos) e Marta (8 anos) estavam
realizando atividades no computador, quando Marta falou que queria outra coisa.
Marta: Oi, tia, vamos fazer lição?
Carmem: Que lição você quer?
Marta: Quero escrever... Pintar no papel.
Carmem: Bom eu não trouxe nada, mas, posso passar contas, problemas e, da próxima
vez, trago. Que tal?
Marta: Manda.
Carmem: Que série você está?
Marta: Eu passei para quinta, mas freqüentei mesmo até a terceira.
Carmem: Bom, vamos ver então... Você sabe adição e subtração?
Marta: Sei sim.
Carmem: Multiplicação?
Marta: Se for de vezes, sei sim.
Carmem: E divisão?
Marta: Essa não é tão fácil. Mas eu gosto de continhas. Problemas... Não!
62
Carmem: Então vamos ver se acerta essa?
Como ela tinha freqüentado regularmente até a terceira série, não sabia de qual ponto eu
partiria para continuar o processo de ensino. Então, passei as operações em um primeiro
momento adição e subtração e em seguida multiplicação e divisão.
(...)
Cacá, que agora está ao meu lado, pergunta se tem mais "continha”. Eu pergunto se ele
achou difíceis as contas de Marta. Ele sorriu e disse que gostaria de tentar. Copiei
alguns dos exercícios e acrescentei outros, entregando a folha em suas mãos.
Esse dia, no início de 2005, foi um dos responsáveis pela metamorfose do
programa, visto que ficou clara a necessidade de atender aos pedidos de “lição, contas,
exercícios”, que se intensificaram e continuam até o presente momento. Essa
expectativa das crianças, na maioria das vezes, decorre da necessidade de ajuda para a
aprendizagem na escola, como podemos notar na fala de Letícia.
Situação 5 – Fevereiro/2007
Contexto: Letícia (8 anos) já tinha terminado o tratamento e retornado à escola. Estava
em fase de acompanhamento médico e vinha ao hospital para visitas agendadas. Ao
saber do programa veio procurar a pesquisadora.
Letícia: Oi. Você é a professora?
Carmem: Sou sim. Qual o seu nome?
Letícia: Letícia.
Carmem: Olá Letícia. Você vai entrar na fila para mexer no computador?
Letícia: Quero brincar no computador, mas queria que você me ajudasse na escola.
Situação 6 – Março/2007
Contexto: Bolívar (12 anos) também é um caso em acompanhamento hospitalar que
estava freqüentando a escola. Porém em situação diferente da Letícia, apresenta várias
seqüelas do tratamento e da doença. Esse menino necessita utilizar um colete que
envolve o tronco, braços e pescoço. Ele rejeita essa estranha peça de vestuário e resiste
a usá-la. Entretanto, caso não use o colete, terá que passar por uma nova cirurgia muito
63
agressiva. Ficou com seqüelas auditivas e recebeu a doação de um aparelho, porém
sente vergonha desse item também. Num dia de consulta ele solicitou à assistente social
do hospital para participar do programa.
No primeiro dia em que Bolívar esteve presente, eu estava ocupada, combinando
atividades com as crianças. Uma voluntária pedagoga assumiu os trabalhos e fui
conversar com o menino e sua mãe. Ele estava na quinta série. Mostrou o caderno
escolar, com diferentes atividades de português, matemática, ciências etc. Reclamou de
dificuldades na escola. Observando o caderno eu não conseguia detectar qual era a
dificuldade, pois todas as tarefas estavam completas. Ele afirmava, porém, não entender
a matéria e queria muito aprender como seus colegas, mostrando que as muitas lições do
caderno eram resultado de cópia.
Mesmo as crianças que não se encontram freqüentando as aulas, manifestam o
desejo de fazer lição por conta do possível retorno à escola.
Situação 7 - Abril/2006.
Contexto: Marta (9 anos) estava no meio do tratamento e, nesse dia, conversamos sobre
a escola.
Carmem: Você está indo à escola?
Marta: Eu estava... no início do ano. Agora com a químio, não dá.
Carmem: Sente falta da escola?
Marta: Antes não sentia, no começo até gostei da idéia, mas agora... (faz uma pausa,
com o olhar perdido) eu queria voltar.
Em seguida pede:
E aí, tia, rola uma lição.
Marta que freqüentou até a terceira série do ensino fundamental, mas agora está
na quinta série, mostra em suas palavras a não consideração das diferenças, pois a
homogeneização da metodologia acaba desrespeitando a aprendizagem, salientando o
que a criança não sabe. A desconsideração da diversidade presente na sala de aula
coloca no próprio aluno a culpa pela não aprendizagem e, ao subestimar suas
potencialidades, a escola encobre-se na desculpa de um estado patológico. Alimenta-se
assim um estado de exclusão, fazendo com que as crianças doentes permaneçam aquém
do grupo, “sentenciadas” a uma vida escolar sem perspectiva de futuro.
64
A procura por atividades escolares é, na verdade, uma procura pela atividade
principal, como parte das práticas sociais, no sentido dado por Leontiev (1978). De
maneira semelhante, também Vigotski (2004) atribui um lugar privilegiado à educação
escolar, cujo papel deveria ser o de promover a elaboração de conhecimentos, ampliar o
acesso a significações sociais e assim fazer avançar o desenvolvimento.
Mas a disposição a permanecer na atividade principal por vezes exige dessas
crianças o estabelecimento de novas operações para realizar antigas ações, em função
das seqüelas do tratamento.
65
Figura 4 – Tentativa de Flor.
66
Ambas mostram um intenso receio de perder os movimentos ou de enfrentar
uma possível amputação. E esse receio vai além do medo da dor, do sofrimento pela
perda do braço. Ele diz respeito ao risco de não fazer parte do grupo social, ao estigma
da diferença. Canguilhem (2000) afirma que mesmo a amputação de membros e órgãos,
visando à volta a normalidade (para que a patologia não mais exista e a cura seja
alcançada com a volta da estabilidade física), não garante retorno às mesmas condições
de vida anterior. Curar biologicamente não tem o mesmo efeito de recuperar a
normalidade social, visto que o conceito empírico da doença pode continuar presente na
estigmatização feita pelo grupo social. Segundo o autor, “mais do que a opinião dos
médicos, é a apreciação dos pacientes e das idéias dominantes do meio social que
determina o que se chama doença” (CANGUILHEM, 2000, p.93).
Lembrando também do conceito de atividade principal, percebemos que essas
crianças sentem diretamente a necessidade de inserção na cultura, tanto assim que,
mesmo diante do receio da morte, acentua-se o medo de perder o lugar ocupado na
sociedade.
Para essas duas meninas, em fase escolar e alfabetizadas, suas funções e papéis
sociais já foram reorganizados em torno da atividade instrucional que passou a ser a
atividade principal. Com a doença, todo o seu desenvolvimento é afetado, o lugar
anteriormente ocupado por elas no mundo das relações sociais é atingido. Ajustam
então suas operações e ações, para preservar a capacidade de escrita e a sintonia com o
grupo social.
Situação 9 - Fevereiro/2007.
Contexto: Eu coordenava a sessão no espaço dos computadores. Letícia, com 8 anos,
veio falar comigo porque queria atividade no computador, mas preferia as atividades
escolares.
Carmem: Está tendo problemas na escola?
Letícia: É não sei escrever de mão, minha professora não ensina. Quero muito
aprender.
Carmem: Qual sua série?
Letícia: Estou na segunda.
Carmem: Quantos anos você tem?
Letícia: Oito anos.
Carmem: Vamos então?
Peguei minha pasta de atividades e, pensando em entender melhor sua dificuldade,
propus a Letícia diferentes exercícios relacionados à alfabetização. Entre outras coisas
pedi que nomeasse algumas figuras. Foi possível observar que ela escrevia apenas com
consoantes, sempre utilizando letras de forma.
68
Situação 10 - Março/2007.
Contexto: Bolívar, (12 anos), pediu por atividades de Português. No entanto, descobri
que seu problema se devia ao fato de nem estar alfabetizado. Observando seu caderno
notei que era completo, sem grandes erros.
Carmem: Tudo bem feitinho, Bolívar.
Bolívar: É, o que a professora não resolve, eu copio dos colegas.
Carmem: Em qual matéria você está com dificuldades? (Perguntei, pois não conseguia
ver a dificuldade olhando o caderno.).
Bolívar: Português.
Carmem: E suas notas na escola? Tem alguma ruim?
Bolívar: Não, vou indo.
Visto que o menino está na 5ª. série, não tem notas ruins e seu caderno está organizado,
tento entender qual era o seu problema.
Carmem: Vou fazer algumas perguntas pra você, só que você escreve a resposta. Qual
o seu nome?
Ele escreve o nome inteiro na folha.
O que você mais gosta? (Pergunto).
Ele olha para mãe, troca a caneta por um lápis. Ela diz 'gato', e ele escreve, depois risca
e tenta escrever minha pergunta, mas não consegue. Sua mãe vai ajudando. Ela disse
'gato' e ele escreve novamente. Depois tenta escrever (Figura 6), sempre com a ajuda da
mãe.
(Estava muito nervoso e parecia difícil para ele mostrar que não sabia).
69
Figura 6 – Escrita de Bolívar.
70
A consciência de não conseguir acompanhar os colegas de escola, a falta de
domínio da linguagem escrita e outras dificuldades fazem com que as crianças procurem
o programa como uma alternativa de aprendizagem, para continuidade de seus estudos.
Situação 11 - Março/2007.
Contexto: Letícia (8 anos) fazia acompanhamento médico comparecendo para consultas
bimestralmente. Nesse dia ela conversa com a assistente social.
Assist. Social: Como você está indo na escola?
Letícia: Ah! Estou mais esperta. Copio rápido. To contente.
Continuamos a atividade, corrijo com ela alguns erros da lição de casa. Refazemos a
lição. Noto que a mesma senhora acompanhava a menina em outros dias e quis
confirmar se era sua avó.
Carmem: Com quem você veio hoje?
Letícia: É minha vizinha. Minha mãe não pode vir, tem nenê novo. Mas eu venho bem,
gosto da aula.
Carmem: Mas você está faltando na escola, lá também tem aula.
Letícia: É diferente.
Carmem: O que é diferente?
Letícia: Aqui eu aprendo. Lá eu copio bastante, mas não entendo nada. Agora to
começando a entender um pouco.
Observo que ela está escrevendo a letra manuscrita com maior facilidade e vê mais
facilmente onde faltam letras. Realizando somas e subtrações mais elaboradas, porém
somente com unidade e dezena. Enquanto ela fazia a atividade, chamo a Isis (8 anos),
que se aproxima e tira o caderno da mala para me mostrar.
Ísis: Esse é meu caderno. Peguei a melhor professora, ela é boa, fica brava com quem
não obedece.
Carmem: Você gosta da escola?
Ísis: Gostei de hoje. Pintei o céu, faço lição, gosto de fazer lição. (Ela se refere às
atividades feitas no hospital).
Carmem: Mas na escola tem lição.
(Ela ficou em silêncio).
Isis: Não sei ler.
71
Pego uma folha em branco para que ela escreva o nome. Verifico que ela tem
dificuldade para manter sua escrita em linha reta. Peço que desenhe um cachorro e ela
desenha. Tento então que ela escreva a palavra cachorro. Ela fica parada e não faz nada.
Carmem: Você não quer tentar escrever?
Isis: Não, mas vou desenhar.
(Faz o desenho e olha com calma)
Isis: Posso terminar o desenho?
Carmem: Claro. O que vai fazer agora?
Isis: A Lua.
Situação 12 - Maio/2005.
Contexto: Celso (10 anos) estava em tratamento há cerca de quatro anos. Fazia o
tratamento desde a primeira série. Tinha freqüentado a escola esporadicamente, por
72
períodos de poucos meses. Conseguia ler frases simples, escrevia com alguns erros e
fazia pequenas operações de soma e subtração. Dizia não querer voltar à escola.
Carmem: Olá Celso. Como vai?
Celso: Vou indo.
Carmem: Fiquei sabendo que seu tratamento terminou, é isso mesmo?
Responde sorrindo muito.
Celso: É sim, vou só fazer acompanhamento.
Carmem: Então veio para se despedir?
Celso: Não, ainda vou fazer um montão de exames antes de ir para casa. E volto
sempre para ver se o tumor não volta.
Carmem: E hoje, o que vamos fazer? Vai preferir a Internet ou o CD-ROM?
Celso: Vou querer o CD do Rei Leão, aquele que tem a forca do Pumba.
Coloco o CD e pergunto por que motivo escolheu aquela atividade. Ele olha para o
chão.
Celso: É que não quero ir para escola, mas vou ter que voltar.
Carmem: Mas por que você não quer ir à escola?
Celso: Não sei, é muito chato. Fico lá sentado, olhando e desenhando. Os outros goza
de mim.
Carmem: Mas você aprende muita coisa também, não é?
Celso: Não sei nada, os outros sabem.
Carmem: O que você não sabe, aprende.
Celso: Então, passa umas lição pra mim.
Carmem: Claro, assim que você terminar sua forca com o Pumba. Ao final ele cai, ou
não, na lama?
Enquanto ele joga, preparo algumas contas e um ditado.
Logo ele termina o jogo e senta-se ao meu lado.
Carmem: Vou ditar algumas palavras, e você escreve.
Percebo que ele já escreve, embora com erros. Dessa maneira, leio uma história e peço
que ele a complete.
Em seguida conversei com a mãe e lhe entreguei algumas atividades. Eles estavam
alojados no prédio de apoio, pois não moravam na cidade. Orientei a estagiária para que
nos outros dias continuasse corrigindo as atividades com ele e passando outras,
inclusive com softwares educativos de leitura e matemática.
73
As crianças recém-afastadas da escola mostram tristeza por perder sua rotina e a
interrupção passa a ser tema de suas conversas. Já para aquelas que estão retornando à
escola, como Celso, o medo e a insegurança desse retorno tornam-se fortemente
presentes. O diagnóstico e o tratamento modificam antes de tudo a posição social da
criança, todos seus vínculos com as pessoas, em todos os momentos. A condição física
provoca sofrimento, mas a diferença que ela instaura nas relações sociais multiplica esse
sofrimento.
Constatamos, assim, que no retorno à escola o interesse pelas lições passa a ser
fruto da consciência do não saber. Diante da dificuldade para aprender naquele espaço,
as criança recorrem às oportunidades disponíveis no hospital. Muitas de suas falas
revelam que a reação negativa à escola é, de fato, reflexo da frustração diante da
realidade encontrada.
Situação 13 - Maio/2005.
Contexto: Nesse momento do tratamento, Cacá (10 anos) vai à escola esporadicamente,
porém as exigências do tratamento ainda impossibilitam o comparecimento assíduo.
Fiquei sabendo de seu retornou a escola, quando ele aparece para as atividades,
aproveito para perguntar o que está acontecendo.
Cacá mostra seu caderno.
Carmem: Muito bem, que beleza, (falo, olhando seu caderno) você está freqüentando a
escola?
Cacá: Vou de vez em quando, mas como tenho que vir ao hospital e tenho muita ânsia, a
professora disse que posso ficar em casa, sou muito esperto e quando voltar “pego”
tudo rapidinho.
Carmem: E você sente falta?
Cacá: Não, nem quero saber mais disso. Eles que fiquem pra lá.
Sua mãe vem chamá-lo para fazer Líquor. Ele me olha com tristeza.
Cacá: Tia, faz mais continhas pra mim? Se eu conseguir, volto aqui. (Suas palavras – se
conseguir – referem-se aos procedimentos médicos que muitas vezes necessitam de
internação, reações após o exame que impedem que a criança volte às atividades do
programa).
74
Situação 14 - Junho/2006.
Contexto: Num dia de atividade do programa várias crianças estavam na sala, Vânia
(7anos) entrou e pediu uma atividade.
Carmem: Você vai à escola?
Vânia: Às vezes.
Carmem: E gosta?
Vânia: Eu gosto, mas nem sempre.
Carmem: Do que gosta?
Vânia: De lição, da professora. Não gosto de ir ao banheiro.
Carmem: Como assim?
Vânia: É que me chamam de menino
(Ela perdeu totalmente os cabelos pelo tratamento).
Carmem: E o que acontece?
Vânia: Choro, e vou embora.
No caso das crianças que já passaram pelo tratamento do câncer, e estão em fase
de acompanhamento, num processo de retorno ao meio social do qual foram
temporariamente afastadas, a diferença do grupo social é fortemente marcada. Essas
crianças vivenciam a consciência de serem doente-doença, trazendo no semblante a
tristeza não apenas da condição orgânica, mas do estigma social. Se a doença exigiu
períodos de afastamento do meio, é nos períodos de retorno com seu grupo que o
isolamento se torna mais presente; é no encontro entre doentes e saudáveis que a
segregação dos “doentes” pelos “normais” acaba sendo evidenciada.
Como indicado, compareciam às sessões crianças em tratamento, afastadas da
escola, e outras que já tinham voltado à escola. Nas falas de todas apareciam
preocupações e desejos em relação à escola - uma angústia pelo retorno a um mundo do
qual foram temporariamente excluídas ou pelas dificuldades da retomada, e a vontade
de ter um desempenho semelhante aos dos colegas. A criança antes aceita pelo seu
grupo, em maior ou menor grau, retorna diferente. Faz um tratamento que as outras
desconhecem e seu organismo, agora enfraquecido, mostra seqüelas acentuadas pelo
olhar do outro. Situação que torna “estranho” o que antes era conhecido. O tempo de
afastamento é como um espaço suspenso sob seu olhar, mas o tempo da realidade
escolar continuou a caminhar.
75
Situação 15 - Março/2007.
Contexto: No caso de Bolívar (12 anos), sua tristeza está em copiar as atividades na
escola, porém não consegue ler.
Carmem: Bolívar você quer me falar alguma coisa sobre a escola?
Bolívar: Eu não sei ler
Ele fala muito nervoso, tira a blusa que estava vestindo apesar do dia quente, ajeita o
colete - que vai do pescoço até a cintura, com ferros e elástico -, que parece muito
desconfortável.
Carmem: E como você faz na escola?
Bolívar: Eu copio tudo.
Sua mãe começa a chorar. Ele faz uma pausa.
A voluntária do hospital que ouvia tudo se emociona e senta ao meu lado.
Bolívar: Meu sonho é aprender a ler.
Nesse momento, também fico paralisada por um instante. Ele está na quinta-série e
“sonha” aprender a ler.
Mãe de Bolívar (chorando): O sonho da vida dele é ler, mas ele ficou atrasado e eu não
tenho dinheiro para colocar em uma professora particular, a gente é pobre.
Carmem: Então vamos trabalhar juntos, cada um tem seu ritmo de aprendizagem. Para
que eu ajude... Você não precisa ter vergonha. Quando errar, vamos apagar e tentar
novamente. O que seria do fabricante de borracha se nós não errássemos?
Bolívar ri.
Ao conviver com as crianças doentes, constatamos que, como indicava
Vigotski (1997), o caminho para sua educação passa pela educação do grupo social, que
entre outras coisas não lhes propicia condições para continuar a aprendizagem escolar.
As crianças comparecem ao programa e pedem lições, principalmente pela frustração
com o retorno à escola, em razão do desempenho insuficiente ou, em suas palavras,
porque “não sabem”, “não conseguem acompanhar a aprendizagem dos colegas de
classe”.
Vemos, assim, que há uma grande diferença entre o querer aprender, que se
manifesta nas sessões, e o querer (gostar de) freqüentar a escola. A criança enfrenta
problemas na tentativa de voltar à rotina escolar – dificuldade para acompanhar o ritmo
de atividade da classe, além de sofrimento com o preconceito e o estranhamento
demonstrados pelos outros na escola. Apresenta-se, então, um aparente paradoxo que
envolve a criança e a comunidade escolar. O desejo de fazer lição muito provavelmente
76
corresponde a querer “ser aluno”, vivendo e aprendendo, mas não na escola real que a
criança encontra.
Mesmo que tenham tido dificuldades de aprendizagem antes da doença, é nítido
o fato de que o desempenho escolar dessas crianças tornou-se frustrante pela nova
conjuntura de vida – pelo que não pôde ser aprendido durante as interrupções da
freqüência à escola, pelas mudanças emocionais e pela falta de resposta da escola às
suas necessidades educacionais. Durante o afastamento elas não tiveram acesso a
experiências vividas aos modos de participação nas práticas sociais vivenciados por
seus colegas, as relações sociais nesse ambiente ficaram suspensas, mas a escola
continuou sua rotina e é nela que o aluno deve inserir-se.
Ser aluno entre alunos é o desejo cultivado pela criança que retorna, porém a
escola não leva em conta suas perspectivas e oferece uma falsa situação de acolhimento,
decorrente de desconhecimento ou despreparo e também de preconceitos. Não são
desenvolvidas ações para que o conteúdo escolar seja dominado pelo aluno (daí a cópia
de cadernos dos colegas) nem se dá valor a seu desempenho, que não é avaliado. A
criança é muitas vezes aprovada por condescendência. Os problemas de auto-estima
intensificam-se, pois a falta de um real acolhimento incute nela o sentimento de
impotência e incapacidade.
O isolamento decorrente acrescenta dificuldades para o desenvolvimento
infantil. Paradoxalmente, no retorno ao espaço escolar, quando a rede de relações
sociais pode novamente se expandir, a criança fica esquecida em meio a tantos alunos. E
como diz Vigotski (2004,), “Em parte alguma o ser humano se sente tão só quanto na
multidão à qual não está ligado (...)” (p. 320) e isso parece ocorrer na escola, instituição
que deve oferecer experiências que ampliem o conhecimento, a sociabilidade e a
comunicação viva entre as crianças.
77
4.3 Comentários gerais
78
Para esse autor, viver com saúde vai além dos limites físicos, normalmente envolve uma
procura permanente de um precário equilíbrio além das estruturas biológicas, pois
dependem do viver social. Se a sociedade acrescenta obstáculos para a continuidade da
aprendizagem, para o domínio de conhecimentos sistematizados e valorizados na
cultura, a criança passa a uma condição de mal-estar, num viver desacreditado. Como
diz Melo (2000), “a sociedade limita e delimita a capacidade de ação de um sujeito
estigmatizado, marca-o como desacreditado e determina os efeitos maléficos que pode
representar”. (p. 20).
No programa educacional hospitalar aqui relatado, constatamos que a
segregação dos que passam por esse processo (doença com risco de morte) provoca
grande limitação e até um impedimento da atividade principal da infância em etapa
escolar, nos termos de Leontiev (1978, 1988) ou da esfera principal de desenvolvimento
cultural e formação das funções psíquicas superiores, nos termos de Vigotski (2004).
Ao serem cerceadas na atividade de estudo, as crianças são colocadas numa espécie de
“limbo” das esferas da cultura, o que ocasiona grandes prejuízos para seu
desenvolvimento, à semelhança das análises de Ferreira (1994) sobre a vida escolar de
deficientes mentais. Pensando sobre as situações analisadas, nos parece ocorrer uma
desistência (pré-estabelecida) da sociedade, percebida pelas crianças, que por sua vez
vão ressignificando sua vivência e internalizando sua inferiorização. Inferiorização que
é reforçada pela condescendência e pela exceção, com a não obrigatoriedade do
aprender.
Isso contrasta com o observado nas sessões do programa. As crianças chegam
para as sessões de atividades suplantando dores causadas pela doença, pelas
intervenções médicas e pelas diferentes formas de tratamento. Suas falas indicam que
essa disposição advém de uma mescla de motivações, pois elas encontram nas
atividades um incentivo para realizar algo saudável, para encontrar forças diante do
sofrimento ou mesmo para fugir dos acontecimentos que provocam grande
constrangimento e tristeza. Existe um desejo manifesto de busca pela aprendizagem,
uma tentativa de resgate do lugar de aluno entre alunos, uma continuidade de
aprendizagem que se relaciona com a continuidade de futuro. A atividade escolar não
fica limitada apenas a uma lembrança, representa uma ponte para a vida... Além das
paredes erguidas pela doença. Notamos que no espaço do programa é preservado um
direito da criança a ser ”aluno”, que escolhe atividades e aprende, ao passo que,
79
enquanto paciente, ela é inevitavelmente tratada sem opinar, envolvida pela fria rotina
hospitalar.
A escola traz implícita uma mensagem de futuro, da continuidade possível, e a
ação que nela se concretiza está dentro de uma idéia social de atividade. Ao atingir o
estágio escolar a criança e sua família vivenciam um tempo em que a escola passa a ser
o centro, tempo no qual “todo o sistema das suas relações vitais se reorganiza”
(LEONTIEV, 1978, p. 289). Com Vigotski (1997) reafirmamos a importância do papel
da educação, que pode propiciar experiências que se libertem das amarras do
diagnóstico que descrevem o futuro, valorizem as potencialidades e elevem o nível de
desenvolvimento psíquico. As amarras do diagnóstico têm efeitos dramáticos, como nos
lembra Foucault (1995):
80
É claro que o ponto essencial não consiste no fato de o escolar,
em geral, ser obrigado a fazer alguma coisa; mesmo antes de
entrar na escola a criança já tem obrigações. O ponto essencial é
que agora não existem apenas deveres para com os pais e os
professores, mas que há objetivamente, obrigações para com a
sociedade. Estes são os deveres de cujo cumprimento dependerá
sua situação na vida, suas funções e papéis sociais e, por isso, o
conteúdo de toda a sua vida futura. (LEONTIEV, 1988, p. 61)
81
de conscientização da escola diante das necessidades das crianças hospitalizadas e pelo
pouco reconhecimento dado pelo setor da saúde quando o assunto é pedagogia
hospitalar.
A partir das proposições teóricas que fundamentaram este estudo, entendemos
que as alterações físicas são impostas por processos patológicos, mas as delimitações
são marcadas pela cultura, que transforma o doente em sua doença, que não o vê em
suas potencialidades, mas em suas impossibilidades. As significações e ações da
sociedade diante da doença mostram que o interesse está menos nos benefícios a que o
indivíduo doente tem direito e mais nos malefícios que ele poderá causar para a
coletividade, como o contato com a anormalidade, o ônus social e o custo financeiro.
Pois o indivíduo não será uma pessoa produtiva nos moldes da normatividade social. A
sociedade que produziu o tipo ideal de individuo, segrega o que não corresponde a sua
norma deslocando-o ao “limbo”, um indivíduo vivo biologicamente, mas morto
socialmente.
O hospital e diferentes instituições fazem perdurar essa realidade. E a escola,
enquanto parte dessa rede de instâncias de representações e práticas sociais, assimila e
reflete certas imagens e formas de ação. Mas a escola tem uma especificidade que a
coloca num lugar especial e central para a criança em nossa cultura e por essa razão o
que ela oferece pode provocar (está provocando) efeitos muito prejudiciais à vida da
criança doente. Por outro lado, dadas as suas funções contraditórias, ela poderia
provocar outros efeitos e, com isso, assumir um papel efetivo na busca de mudanças.
Certamente as crianças com câncer enfrentam problemas nas diferentes esferas
da vida cotidiana. O que salientamos aqui é que a falta de conhecimento e o despreparo
dos educadores tornam a esfera escolar mais um peso a ser encarado. O enfrentamento
do preconceito que as crianças relatam, pode ser ilustrado pela situação seguinte,
quando o hospital recebeu uma visita “da escola”. Essas visitas monitoradas são
agendadas pelo hospital para que as escolas da região possam conhecer o trabalho ali
desenvolvido.
Situação 16 - Maio/2005.
Contexto - Nesse dia havia grande movimentação porque alunos e professores de uma
escola chegaram para conhecer o hospital e trazer presentes para os pacientes. Os alunos
desceram das vans, brincando e demonstrando alegria. Espalharam-se pelo corredor da
entrada do hospital, As crianças participantes do programa estavam na biblioteca com a
82
pesquisadora. Perceberam o que acontecia e tentaram continuar a atividade, mas a
presença de visitantes nem sempre era facilmente enfrentada. Nesse dia em especial foi
muito difícil.
Ao término da visita ao hospital, os alunos estavam muito curiosos para ver as crianças
doentes. Pela parte externa, encontraram acesso às vidraças da sala onde estávamos e se
amontoaram nas janelas. Fiz um convite para que entrassem, mas elas não quiseram.
Preferiram apenas olhar de fora, acompanhadas pelos professores. As crianças no
interior da sala viraram de costas para os visitantes.
Manoel (6 anos) falou: Tá vendo tia, não gosto de ser careca.
Carmem: Não é o fato de ser careca. Eles querem nos conhecer e ver o que fazemos.
Manoel Que nada... Eles querem espiar.
Nesse momento o menino foi chamado para consulta e saiu correndo. Os que estavam
na sala permaneceram em silêncio e não quiseram tocar no assunto. E demos
continuidade às atividades.
Ao se sentirem como objeto de observação, as crianças mostram-se angustiadas
porque percebem a curiosidade e o medo de aproximação dos visitantes. Esse
sofrimento, naturalmente, não tem efeito passageiro.
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
84
já argumentamos, a escola tem um papel fundamental por propiciar a atividade principal
de toda uma etapa de formação do sujeito.
Analisando as falas das crianças aqui estudadas, constatamos que elas possuem
uma forte vontade de aprender, visível nas sessões de atividade do programa. Embora
essa vontade seja muitas vezes suspensa pela sombra do tratamento, ela se evidencia
quando faz com que as dores sejam enfrentadas e os brinquedos abandonados (refiro-me
à disponibilidade da brinquedoteca no hospital), tornando-se uma fonte de mobilização
que pode ser nomeada como esperança de futuro. Essa esperança diz respeito a viver,
mas, como não se trata de um viver abstrato, é preciso considerar os vários espaços do
cotidiano em que ele transcorre. Nesse sentido, a busca pelo conhecimento parece ter
um valor de futuro projetado e a escola é a instituição que, em especial, traz esse valor.
Trata-se de uma idéia muito presente em nossa sociedade, apesar das funções
contraditórias da escola, uma idéia que é assimilada pela infância, sobretudo por
crianças que vivem uma infância assim peculiar.
Tal assimilação é provavelmente acentuada pela condição dessas famílias, que
têm um baixo nível sócio-econômico. As crianças em tratamento e em acompanhamento
precisam confirmar o que suas famílias falam da escola e do estudo. Como a mãe da Isis
sempre repete “se eu tivesse dinheiro... minha filha não estava assim”; ou como a mãe
do Bolívar diz “o sonho da vida dele é ler, mas ele ficou atrasado e eu não tenho
dinheiro para colocar em uma professora particular, a gente é pobre”. Dessa maneira, as
crianças sentem duplamente o peso social de sua doença: do não saber e da precária
condição de vida.
São conhecidos os problemas da estrutura e da organização escolar que
repercutem no processo ensino-aprendizagem e as precárias condições que os
professores enfrentam em seu trabalho. Diz-se que ela não atende efetivamente sequer a
seus alunos comuns, menos ainda os que têm necessidades especiais, como o grupo
focalizado neste trabalho. Contudo, não se pode pactuar com o misto de negligência e
piedade que conduz à ilusória facilitação oferecida ao aluno que está doente. Ele não é
ensinado e não se espera que aprenda; tudo se resolve com avaliações fictícias,
aceitação da mera cópia, promoção automática. Essa postura não só leva a um
desperdício do potencial e da vitalidade do aluno como também lhe traz um peso
adicional, pois ele percebe e expressa a exclusão e a inferioridade do lugar em que foi
colocado.
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Reiteramos que as análises apontam a necessidade urgente de ações integradas
entre o contexto hospitalar e o escolar, e indicam também que essa integração mostra-se
mais desafiadora do que sugere o discurso da lei. Assim como o espaço hospitalar, o
espaço escolar precisa ainda caminhar para a humanização, reconhecendo que os fatores
biológicos são fundamentais para a continuidade da vida, mas apenas quando
vinculados ao processo de apropriação dos conhecimentos e dos bens culturais, a que
tem direito essa pequena, mas não menos importante parcela da população infantil.
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num zoológico. Notava-se o “nojo”, no sentido de repulsa ou enjôo, mas não somente.
Considerando a origem da palavra nojo em latim, lembramos que se refere a luto,
desgosto causado por um acontecimento funesto ou ainda, como indica Silva (1964),
aborrecimento, confusão e tristeza sem medida (conforme uso encontrado nos Diálogos
de São Gregório, no século XIII). E tal jogo de sentidos nos coloca num turbilhão de
questionamentos. Sempre fiz parte do comum ou, como fala Canguilhem (2000), da
norma que ditou o normal. Essa experiência certamente não me colocou no lugar das
crianças, porém fez com que eu reconhecesse o lugar de onde eu vinha olhando, o que
certamente me calou, e um possível outro lugar para o qual talvez tenha me deslocado.
Um momento difícil
Foi numa terça feira do mês de abril de 2006. Cheguei ao hospital correndo, pois
já eram quase 9h e tinha certeza que as crianças me aguardavam na porta da biblioteca.
Ao sair no carro, ainda no estacionamento, vi um movimento estranho, muitas pessoas
chorando. Continuei andando e, na entrada do hospital, observei uma senhora que saía
chorando e gritando. Pensei em duas hipóteses: a mãe poderia ter tido a notícia que seu
filho tinha câncer ou seu filho teria falecido. Constatei que ela acabara de perder seu
filho e estava numa dor intensa. Relato esse fato buscando refletir sobre o que aconteceu
com as crianças presentes naquele dia. O caminho de ir e vir que a senhora fazia,
deixava um rastro de profunda tristeza nas crianças e familiares que ali estavam.
Algumas mães correram atrás de um copo com água e açúcar, e ofereciam à senhora sua
solidariedade. Outras abraçavam seus filhos e choravam. Outras, ainda, tentavam
disfarçar e segurar sua emoção. Escutei uma das crianças dizendo “que nada mãe, não
chora, ele era fraquinho, eu sou forte, tenho Jesus no coração”. Nesse momento senti
uma profunda impotência. Pensei: acalmar a mãe ou as outras mães, eu não conseguiria.
Então fui abrir a “sala”, que em um minuto ficou superlotada. Crianças e adolescentes
entraram na sala e logo pediram atividades. De lá só saíram para as consultas e
tratamento. Esse foi um dia muito triste e tive a certeza que as crianças estavam ali para
esquecer ou não pensar no que ocorria lá fora, se possível nem escutar.
Nesse acontecimento reconheci com maior clareza a complexidade de atuar com
crianças em ambiente hospitalar. Na indecisão do momento, os papéis que me
constituem, lutavam pelo melhor caminho, pela escolha da melhor atitude. A emoção
me impulsionou às lágrimas. Diante do rigor de um tratamento que esquarteja a auto-
estima, ferindo corpo e coração, espera-se no mínimo a cura, e ela pode não vir. Como
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mãe eu reconhecia (dentro do possível) a dor incomensurável daquela outra mãe. Como
professora eu via uma sombra no olhar das crianças aprendizes, o medo que pairava
sobre eles, mas tentava abrir uma janela que permitisse às crianças viver um processo de
aprender, para sonhar e pensar no futuro. Como ser humano, na incapacidade de
acalmar a dor, eu possibilitava às crianças um refúgio momentâneo, um breve momento
de afastamento do choro delas próprias e de suas mães. Por tudo isso, entendo que o
trabalho educacional nesse contexto não pode ser a réplica de uma sala de aula comum,
não pode pôr essas questões à margem.
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Isolamento é o espaço onde as crianças com baixa resistência permanecem para prevenir o
desenvolvimento de infecções virais ou bacterianas.
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coloquei roupão e touca, lavei as mãos e fui apresentada para a enfermeira de plantão.
Antes de chegar ao quarto, tivemos que esperar porque Anita passava por uma coleta de
sangue, e chorava muito. Entrei acompanhada da psicóloga e depois fiquei sozinha com
a criança e a mãe. Sentei-me próximo à cama, com o livro, e folhas de atividade. Tentei
conversar.
Carmem: Olá! Meu nome é Carmem e o seu?
Anita parou de chorar e me olhou com hostilidade.
Carmem: Sou professora, e fiquei sabendo que você adora fazer lição.
Mãe de Anita: Ela gosta sim, fala com a moça.
Nesse momento a mãe toca a menina. Com grande espanto, talvez pelo meu despreparo
e também pelo desconhecimento da situação, vejo a criança lançar um olhar fulminante
para sua mãe, que emudece e se encolhe no canto do quarto. Anita olha novamente pra
mim, e suas sobrancelhas infantis encontram-se numa expressão de total reprovação.
Tentando me recompor, pequei um livro, contei a história, cantei várias músicas e, com
o passar do tempo, notei que a testa não estava mais franzida, porém a menina não fez
nenhum movimento para participar, nem pronunciou qualquer palavra. Mostrei as
atividades, deixei o lápis de cor e saí do quarto. Na ocasião, pensei que a expressão da
menina estava dirigida apenas à mãe. Hoje, entretanto, penso que era a reprovação de
toda uma situação, inclusive de minha presença, que chegou tão tarde. Anita faleceu
durante a noite.
Essa experiência mostrou que entre o viver e morrer existe, sem dúvida, mais do que
fatores orgânicos e mesmo diante de um tratamento invasivo, que obriga a
procedimentos exterminantes da vontade, ainda resiste na criança o desejo de aprender,
de manter seu lugar entre os seus. O silêncio de Anita, enquanto eu contava histórias e
cantava, fez ecoar duras palavras dirigidas à consciência de todos nós, enquanto
membros da sociedade e particularmente enquanto educadores.
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