Poemas Myriam Fraga
Poemas Myriam Fraga
Poemas Myriam Fraga
Poemas
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I
Onde navega o sangue,
Onde navega
O barco silencioso dos dias,
Dos meus dias,
Esta proa singrando
Meus contrários.
Meu destino, este traço
Onde a vida se assume
Mais completa
E onde navega
O rio de meu sangue,
Aí navegas, companheiro,
Argonauta. Mais que um filho,
Um vidente.
II
Aí navegas,
Ó pescador de instantes.
Tuas redes
Colhem peixes estranhos,
Colhem asas.
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III
Aqui estou
Diante do incrédulo
Espelho de teus olhos.
O pássaro que soltei
Aprisionaste
Na armadilha de vidro
Com que enlaças
O consciente encanto
Do que faço.
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Um gosto amargo
Na boca, e o fel
Escorrendo nas veias.
Um silêncio, um oco,
Um silvo nos ouvidos.
No coração, um latejar
Aflito. Cinco
Sentidos apagados.
Metade morto,
Metade vivo,
Recomeço.
Não sei se é fim,
Ou se é princípio.
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Volto ao azul.
Regresso ao não buscado,
Ao nunca visto,
Sequer jamais sonhado.
Volto ao azul,
Ao derradeiro anseio
Do esperado,
Navegante a navegar
No rumo dos contrários.
As ilhas, sempre as ilhas...
E o ignorado porto,
Desfeito, arremessado
Pelas marés do tempo
Ao enigma do outro lado.
Volto ao azul.
No abismo da memória,
Invento os passos
Da criança que fui,
Outrora, em alguma parte.
Perto era o mar e, em volta,
O escuro... E meu cansaço.
Por que não me tomavam
Ao colo e me afagavam?
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I
Para além de sofrimentos e de alarmes
Permanecem os ossos sob a terra,
Testemunhas da fúria inexorável
Com que o tempo dissolve seus achados,
Enquanto o mundo gira, e o pó da tarde
Se dispersa rumo ao lar, à antiga casa
Onde goteja o inútil pesadelo
De reinventar o silêncio no alarido
De pássaros sangrando nas paredes.
II
Na solidão do mar, este suplício
De decifrar portulanos no infinito
Azul que a luz encerra, na incerteza
De encontrar caminhos do outro lado,
Onde um país estranho se reinventa
E, pedra sobre pedra, constrói seus alicerces,
Suas muralhas, seus castelos, suas pontes
De solidão e sombra e desespero
De antigos caminhantes de outras terras.
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IV
Tanto tempo perdido, tanto esperdício
Do tempo que passou e nunca foi vivido.
O último farol na praia ilumina o caminho
Dos náufragos do sonho na última viagem.
Agora já é tarde, e nada mais tem sentido,
A vida não tem sentido, isto um dia foi dito,
Porque os homens morrem e não são felizes.
E nada justifica o medo de encontrar-se
A receita da morte, entre papéis, esquecida.
V
Como a luz do sol refletida em poças d’água,
Com muito brilho e nenhuma profundidade,
Meus pensamentos giram sobre a mente
À medida que o dia aos poucos se consome
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VI
Diante do mar, na infinitude azul,
A celebrar o tempo dos contrários,
Volto ao perdido, aos dias que se foram,
Ao esquecido país de minha infância
E, tropeçando e caindo e inventando
A cada passo um novo precipício,
Talvez não imaginasse — ou talvez não quisesse —
Que outras perdas viriam e que, muitas vezes,
É preciso perder para encontrar-se inteiro.
VII
Na memória de um tempo imaginado,
Amarro os alicerces de meu canto.
Cachorra de olhos mansos, a marca
Dos dentes em minha mão, lembrança
Mais antiga. Sensação que perdura
No escuro poço sem fundo das origens,
Ao separar das águas, tormento da passagem,
Paraíso de serpentes ocultas sob as folhas
Tão reais como o terror dos pesadelos.
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Do azul da piscina,
As águas cálidas,
Ergue-se Adônis.
Pernas perfeitas,
Cintura de grifo,
Braços como asas
A nascer das espáduas.
Os pés deslizam
Sobre o chão molhado.
Como um barco, navega
Em plena luz dourada,
A penugem do peito a arfar,
Suavemente,
Na cadência de dunas
Sopradas pelo vento.
A tocha da beleza
Ilumina-lhe a face,
Enquanto Cronos, sorrateiro,
Aproxima-se com suas artes.
Ai! Adônis!
Rendido serás,
Como eu, um dia,
Pelas artimanhas do tempo
Fui vencida.
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Ponto de luz.
Um ponto de luz
No mais escuro
Do céu.
Apenas uma estrela
Que cresce e se aproxima
Com o ímpeto vertiginoso
Do mistério entrevisto.
Miragem?
De verdade ou mentira
Se arma o olho,
Pupila gasta ao não ver
De todo dia.
De ser não ser
Se tece o dividendo
Que cada homem carrega
E traz consigo
E que projeta
Em ponto luz no espaço,
Frágil, iridescente,
E, no entanto,
Intensíssima
Maravilha fugaz
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Quando eu morrer...
Não quero a paz dos eleitos,
Dos justos e dos ascetas,
Nem o destino das almas,
Eternamente despidas
Dos humanos devaneios.
Quero antes o paraíso
Vacilante dos inquietos,
O horizonte dos loucos,
Dos videntes, dos poetas.
Quero rolar nas esferas
De delirante paisagem,
Rodopio de asteroides,
Nos ventos desatinados
Dos quatro cantos do céu.
Quero vagar no caminho
De atormentadas galáxias
E navegar nos espaços
Vazios de astronautas,
De anjos e de profetas.
Entre círculos concêntricos,
Pelos ramos de um cipreste
Vou descer eternamente
Num voo desatinado
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Posso
Com aves
Construir
A lápide.
O obelisco
Se erguerá depois
Como um mastro
No vale.
Caligrafia de vento
E chuva e sol,
O epitáfio
Um dia será feito.
Somente
O eterno sabe
O que é eterno.
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Um anjo de bicicleta
Passou de madrugada
E carregou Chagall
Para o outro lado.
Deixaram um rastro
De alfazema,
Um risco luminoso.
E pássaros e peixes
E sereias
Explodiram de cor
No turbilhão gerado
Pelos pincéis em pânico
E pelas flores,
Borboletas de asas
Destroçadas.
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E o homem bradou:
“Que a solidão pereça!
E da lama da terra seja feito
Um deus à minha imagem
E semelhança!”.
E esculpiu-se
No magma provisório
Uma esperança
Que, ao final da vida,
Devolvesse ao pó
A matéria primeira.
E assim se fez no mundo
Esta inútil quimera,
Esta ilusão do eterno,
Este desejo
De regressar ao nada
De onde veio.
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A árvore do tempo
Tem raízes profundas.
Sua copa encantada
Desenha no chão
Um espaço sagrado
Na sombra que acolhe
Pedidos e oferendas.
À noite se escuta
Um choro de criança
E um súbito gargalhar
De pássaros invisíveis,
No farfalhar das folhas
Sopradas pelo vento.
Uma voz muito antiga,
Nascida das raízes,
Conta estórias do início,
Em que tudo o que havia
Era um grande silêncio.
E só o hálito do espírito
Que habitava em seus galhos
Reinventava os mistérios
De um povo esquecido,
Que amarrava o destino
Em laços de algodão,
Como se amarram as nuvens
No céu infinito.
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Naquele tempo,
O mundo era somente
De água e de silêncio.
Mas um dia,
Das profundezas do mar,
Surgiu a terra,
Como uma flor
Emergente,
Uma ilha sagrada.
O que se fez unido
Fez-se ausente,
E as águas invadiram
O coração da pedra.
Como juntar
O que se fez
Tão diferente?
O que nasceu unido
E se partiu?
Cumpra-se a sina:
O que era para ser uno
Se divida,
De um lado,
Espumas brancas
Do mar infinito,
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Quando nasci,
O mês era novembro,
Tempo de águas turvas
E de ventos
Em súbitas rajadas.
Apenas o veneno
De escorpiões acesos
No horóscopo
Redefinia o espaço
De meus dias.
Uma deusa
Dançava no terreiro,
E uma estrela vermelha
Refletia a oferenda
Que, numa salva
De prata, os mortos
Cantando lhe faziam.
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II
Tudo voltou a ser como era sempre:
As flores renascendo sobre os galhos
Das árvores perdidas na distância
Em um jardim de hortênsias que se abriam
Do rosa cor-de-rosa ao azul lavado.
E a menina escondida entre as folhagens
A esculpir um sonho que acabava
Quando a noite, descendo sobre a terra,
Reinventasse o pavor dos pesadelos.
III
Entre acácias floridas, entre o vermelho
Dos caládios sangrando nos canteiros,
Entre as flores da murta e o jasmineiro,
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IV
A avó tecia versos na varanda.
Mas ela não sabia que eram versos,
Ela apenas tecia e recontava
Um passado captado nas agulhas
Dos novelos de lã que tricotava.
A avó reconstruía no silêncio
Um roteiro de vidas feiticeiras
Que um dia, há muito tempo, se perderam
Na imensidão de um mundo sem fronteiras.
V
Viajante sem leme, sigo atenta
Ao rumo e oscilações da marinhagem.
Quanto tempo, senhor, quanto oceano
Precisamos ainda atravessar
Para que, ao fim da viagem, enfim desperte
O sentimento de não ter chegado
Ao cabo das tormentas, ao outro lado,
Onde nos reste, náufragos sem pátria,
O rendilhado abismo das espumas?
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VII
Quantas memórias, pensamentos vagos,
Sofrimentos vividos para nada,
Detalhes de minutos esquecidos
A badalar relógios inexatos
No delírio das horas apagadas,
Se todos os momentos que vivemos
São rastros que se extinguem na passagem
De uma ponte jogada sobre as águas
Deste rio que se chama eternidade.
VIII
Naquele tempo, havia uma piscina
E uma estátua de jovem com seu búzio
De onde jorravam água e profecias.
Duas meninas na borda, debruçadas,
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IX
Era um imenso jardim, era um jardim
Sem fronteiras definidas e limites,
Como um país selvagem que cumpria
Preservar, com suas árvores, com seus frutos,
Caminhos que galgavam precipícios
Onde estrelas no escuro azul sombrio
Limitavam o espaço do vazio,
Onde à noite soavam os atabaques
E os ebós floresciam nas esquinas.
X
Na casa da avó, um porão assombrado
Guardava velhos trastes esquecidos,
Só restos de existências já vividas,
Só traços de um caminho percorrido
Entre móveis destroçados pelo tempo
E arcas onde viviam os encantados,
Sortilégio de algumas coisas mortas,
Empoeirados portais do esquecimento,
Onde guardada dormia a nossa sorte.
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XII
Nas varandas abertas para o mundo
A desfrutar jardins de sombra e vento,
Procurávamos em vão o escondido
Tesouro que restou do esquecimento
Dos passos que, imutáveis, permanecem
Nas areias molhadas pelo tempo,
A percorrer as trilhas sob as árvores,
Num roteiro de caminhos que se abrem
Para além de horizontes e fronteiras.
XIII
Quando a manhã acender pelas esquinas
A alvissareira luz da madrugada,
E o fogo do sol clarear com suas brasas
A solidão da noite que se afasta
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XIV
As acácias floriam todo ano
Clareando os verões de minha infância,
As acácias de flores amarelas
Com seus cachos de luz florindo estrelas
No mistério da noite pelas sombras
Em que a traçar as rotas do futuro
Ao balançar dos ventos viageiros,
Construíamos barcos para o sonho
De navegar além da Taprobana.
XV
Algo ficou disperso nos caminhos,
Alguma coisa, talvez, foi esquecida
Nas curvas sinuosas dessa estrada
Que vai do centro da terra ao infinito
E se desdobra em múltiplas paisagens
Em que procuro em vão um ponto fixo
Onde amarrar as pontas do conflito
Que divide o que sou do que perdido
Ficou como destroços na passagem.
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XVII
Quando a morte fechar meus olhos calmos
E o canto sufocado na garganta
Silenciar um dia seu lamento,
Ficarão, qual vestígio que se apaga
No chão onde deixei minhas pegadas,
Os rastros de um perdido viajante
De quem restarão apenas como um sopro,
Na entrada do portal do esquecimento,
Palavras espalhadas pelo vento.
XVIII
Entre o mar e o sertão tracei meu rumo
Em terras do Recôncavo esquecido,
Ora a vagar nos pastos de Netuno
Onde galopam velas pela tarde,
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XIX
Quando a névoa, baixando sobre o rio,
Nas margens escondidas disfarçava
A barranca onde dormiam capivaras,
E o gado ia beber antes que a tarde
Apagasse o caminho que os levava
À noturna certeza dos currais,
Ao longe, o aboio triste anunciava,
Descendo a galopar pelas colinas,
A silhueta de couro de um centauro.
XX
À noite, reunidos na varanda,
Colhíamos lembranças de outros tempos
Que emboscadas no passado espreitavam
A ocasião de evocar o que existia,
Qual tesouro guardado nas gavetas.
Memórias esquecidas que dormiam
Esperando um milagre que fizesse
Reviver o que dado por perdido
Viesse de novo para a luz do dia.
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XXII
Os gatos pela sombra disfarçados
Laceravam a noite com seus brados,
Transformando o silêncio em algazarra.
Que fúria demoníaca os exaltava
Embolando-se em cio sob as árvores,
Multiplicando a fúria nos telhados?
Desespero de amor tão desvairado,
Imitação da morte anunciada
No mágico estertor do último ato.
XXIII
Viajante de inúteis travessias,
Sigo em busca da paz, vou à procura
Da trilha principal de meu destino.
Vou buscar o que um dia foi perdido
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XXIV
Quando a noite descia sobre a terra
E a luz do sol sumia no horizonte,
Eu, sozinha e perdida, me encontrava
A escutar no vazio do silêncio
Aquela voz que vinha do passado,
Onde ficara o amor e a mocidade,
Dizer sobre as ruínas que restavam
Que a vida era somente uma passagem,
Uma ilusão que aos poucos se apagava.
XXV
Aqui se instala o templo da memória,
O castelo dos jogos impossíveis,
O que nasce das cinzas do passado,
Entre atalhos e sombras construído,
A seguir o mistério das estrelas
Na vertigem que arrasta o peregrino
Que passou pela vida inutilmente
Em busca de encontrar o prometido
Reino do inexato, do imprevisível.
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XXVII
Pelas tardes de maio, transparentes,
Sigo em busca da luz daquele círio
Que fulgurava aceso sobre a mesa
Num castiçal de prata reluzente,
Junto à imagem da Virgem e de um livro
Onde minha mãe buscava, a cada dia,
A história de milagres que diziam
Da fraqueza do homem e da bondade
Que das mãos de outra mãe se repetiam.
XXVIII
Na liturgia clara das manhãs,
Em gaiolas de pássaros cativos,
Meu avô traçava as rotas do destino,
Enquanto minha avó se distraía
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XXIX
Entre árvores, a casa se encantava
Nas varandas voltadas ao nascente
Onde o sol, ao surgir, iluminava
O leque de memórias que se abria
Ao farfalhar das palmas dos coqueiros.
A casa cimentada pelos anos
Em lágrimas e risos e lembranças
Do que ficou perdido para sempre
Nas areias do mar do esquecimento.
XXX
Em frente ao cais, escuto o mar que canta
Ao borbulhar das ondas transparentes
Que afligem com suas vagas inconstantes
O coração de um aflito viajante
Que sente que, no fundo azul das águas,
Além do mistério que o habita,
Há no oceano a antiga voz dos ventos
A cantar um mundo eterno e inexistente
Onde mergulhará uma dia para sempre.
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XXXII
Da infância restaram alguns destroços,
Os peixes no aquário, a pequena sereia
Na concha de cristal iridescente,
Os bem-te-vis em busca de alimento.
Ficou da infância o amor que nada pede,
A menina crescendo entre begônias
À procura de um gato que se esconde,
E a voz do pai voltando para casa
Trazendo segurança e açúcar cândi.
XXXIII
Como o sangue a correr em minhas veias,
Circulação que atiça meus sentidos,
Tua lembrança me ocorre algumas vezes
Ao revolver passados tempos idos.
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XXXIV
Era um colar de contas coloridas
No pescoço das últimas sereias,
No dia em que nadávamos nas águas
De um mar azul de espumas transparentes.
A vida então era só o que valia,
E parecia perfeita e permanente,
Sob os raios de um sol vivo e distante,
Como uma estória escrita no improvável
Livro que em outra parte se escrevia.
XXXV
A moça jogou os dados sobre o abismo
E decidiu que morrer era possível.
A moça tirou a roupa que vestia
E só deixou os cabelos longos, lisos,
Cobrirem-na como um manto de ouro fino.
Nunca disse por onde e por que vinha
Com seu passo de leoa e de menina,
A moça cumpriu sua parte no destino,
O resto, só lembranças, foi perdido.
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XXXVII
No espelho, a mãe sorria de contente
Modelando o vestido da menina.
A mãe tinha unhas longas e perfeitas
E no dedo um dedal de ouro fino.
A pedalar na máquina de costura,
Segue fiando as teias do destino
Sem saber que o tempo sorrateiro
Ia bordando a rota de seus dias
No pano que esgarçava e que rompia.
XXXVIII
Quando, anos atrás, cheguei ao mundo,
Tinha comigo um livro de segredos,
Nele escreveram meu nome e um desejo.
Trazia a boca cheia de silêncio
E um coração sangrando no meu peito.
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XXXIX
Da infância restou-me o desamparo
De saber-me mortal e passageira
Ante a ilusão de um mundo construído
Num bastidor de nuvens e de areia.
Por muito tempo, em sonhos, esperava
Que alguém, regressando do outro lado,
Viesse, enfim, revelar-me a boa nova,
De um local onde os mortos se encantavam
E um deus cruel tecia a própria sorte.
XL
Na curva do caminho desta vida,
Cometo o desatino de pensar
Que, encoberto no tempo, está guardado
O que foi sonho um dia e se perdeu.
Metáfora esquecida que se esconde
No último patamar da longa escada,
Num roteiro sem fim e sem princípio,
De uma imperfeita história que se conta
Tão só pelo desejo de inventar.
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XLII
Quantas ilhas sonhei, quanto oceano
Inventei para um dia navegar,
Caminhos que busquei inutilmente
Em terras que cumpria conquistar.
Minha vida era um grande livro aberto
Onde eu lia sem cessar a mesma história,
Sem princípio, sem fim e sem enredo,
De uma cidade perdida no deserto
E uma esfinge que não pude decifrar.
XLIII
Quando acendem os fogos de meu canto,
Os meus pés caminhando sobre as brasas
E meus olhos perdidos no infinito,
Eu pergunto do fundo deste abismo:
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XLIV
Aquele rosto que amei na tempestade,
Aquele olhar que procurei na turbulência
E que um dia acreditei ter encontrado
No cais deserto, na hora derradeira,
Aquele rosto não existe, é pura ausência,
Uma tênue lembrança que se apaga
Na indecisão daquela despedida,
De uma viagem jamais realizada
No tormentoso oceano da existência.
XLV
Quando, mais uma vez, me fiz ao leme,
Havia um oceano a atravessar,
Havia um horizonte e havia um barco
E um destino que cumpria respeitar.
Não deixei para trás, nem mesmo um porto,
Que era mentira o cais que se afastava
Como ilusão a cidade que eu deixava,
Se tudo o que eu vivi e que eu amava
Eram apenas memórias inventadas.
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No princípio
Era apenas
O som.
Mas o som se fez
Letra, sílaba,
Palavra e poesia.
De repente,
Sólida paixão,
Reinventou-se,
Na pedra, na folha,
Na pele, na escrita,
Na página.
Mais que perfeito
Sinal, estigma,
Signo. Poema.
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I
Eu cumpro o rio.
Sonho ou vertigem
De ingrata lavra.
Só pedra e areia
Nas margens altas.
Eu cumpro a sina
Dos desgarrados,
Corpo de espuma,
Corais fanados.
De meu
Só filtrados gestos,
Líquida face.
II
Já não recordo
A nascente,
A fonte primeira ou brejo.
Já não sei dos meus antigos...
Sêmem de areia
Ou de sal?
Sei que vou,
Não mais regresso.
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III
Só leito de areia grossa
Áspero e amargo,
Sáfaro leito talhado
Em côncava espada.
O mesmo caminho aberto,
Mesma pisada,
Rasgar de primeira
Água, hímen
De barro.
IV
Em que precário traço
Me sustento e recomeço,
Reconstruindo o mar
Com meus achados?
Unindo desencontros,
Solidões, cansaços.
Terra dos claros,
Dos verdes,
Ou magra crosta fibrosa
Dentro de mim,
Nos meus tristes,
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V
Assim a terra lavada
De seus enigmas,
A terra saqueada
E isenta.
Não apenas praia
Ou areia cauterizada,
Nem ribanceira a prumo
Cortada.
Era margem
Mais crua,
Mastigada.
Presas agudas de barro,
Caninos de argila.
Travos.
Dorida fome de espadas.
VI
Que sei de minha presença
E do líquido compasso?
Sei que há cantos de afogados,
Consentidos,
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209
I
Há um olho
Perdido
Na distância
Onde o ouro
Do capim
Longe renasce.
Nos altos,
Na crista do monte,
O gado pasce.
II
Fazer fazenda,
Seu hálito de curral,
Seus verdes ásperos.
Mourão de cerca,
Arame que circula
O azul da tarde.
E finos bezerros alvos,
De ancas de marfim
E olhos rosados
Ruminando devagar
O tempo que não passa.
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IV
No escuro da noite
Decifra-se o enredo,
A sutura dos dias.
E enquanto o Outro,
O de cem olhos,
Vigia nossos passos,
Uma centelha
Acende a treva
E risca o espaço,
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V
Fazenda é este risco
No vazio, este rolar
Na relva azul dos sonhos.
São caramelos
Na língua,
A doçura da tarde,
O morno calor
Na pele, e os dedos
Buscando o âmago
Da terra
E o surdo
Cantarolar do rio
Ao longe,
Nos banhados.
VI
Quem planta no inexato
Sabe o tempo da espera,
O incerto ciclo das chuvas,
A tormenta das secas,
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VII
Fazenda é centro,
Umbigo do mundo,
Sombra da porteira
Onde enterrados estão
Os sonhos esquecidos.
As varandas abertas
Ao balançar das redes
No cansaço dos dias,
O laranjal florido,
O tanque dos patos,
E o tempo a escorrer
Das traves do telhado.
VIII
Fazenda
É o que se planta
E colhe.
A vida inteira
A semear no escuro
Do improvável.
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214
Subitamente,
Um filme acorda
Em minha mente.
Enrola, desenrola
E, de repente,
Numa tela irreal,
Abre-se em frente
Uma grande angular
A desdobrar-se
Em planos,
Multiplicando-se
Perdida nas esquinas
De uma cidade
Fantasma
Que se esconde.
Corta!
Sombras se apagam
E reaparecem,
Caminhando
Solitárias pelas ruas,
A perder-se nas dobras
Do vazio.
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216
Os tempos passados
Foram tempos
Em que viver não era assim
Tão perigoso,
Em que os dias escorriam
Nas vidraças,
E o relógio do mundo
Marcava suas horas
Até que o sol sumisse
No horizonte.
Naquele tempo,
Ainda havia sol
E horizonte.
2013-09-09
219
Faz de conta
Que tudo se passou
No campo do previsto.
Vestido de organdi,
Meias de seda,
Sapatos de verniz.
Faz de conta
Que eu sempre
Fui feliz.
Eu sempre fui feliz.
(Mas não sabia).
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224
O amor
É a mais perfeita
Imperfeição.
Felicidade na tristeza,
Subterfúgio às dores
Do mundo. Passos lentos
Em direção ao caos.
E ser feliz é apenas isso,
Essa tristeza do abandono,
Essa dor que contamina
O que inda resta,
De tudo o que não foi.
O pensamento doendo
Em cada canto
Onde se guarda o que faltou,
Mesmo que tudo...
Eu disse amor?
Queria dizer morte.
225
O país invisível
O país invisível 17
Pátria 18
Os navegantes 20
O degredado 22
Derrotado 23
O anacoreta 24
Travessias 25
O semeador 27
Cravo 28
Ressaca 30
Azul
Azul 35
Gênesis 38
Lanterna dos afogados 39
Tempo 42
Escrito no avião 43
O pequeno viajante 45
Em tempos de guerra 47
O transeunte 49
O outro lado da lua 50
O objeto 51
O companheiro noturno 53