Minimas-Estorias-Gerais Myriam Fraga

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MYRIAM fRAGA
Mínimas Estórias Gerais

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O que vou escrever agora, neste diário de bordo, talvez não lhes
diga respeito. O balouço do navio é que torna trêmulas minhas le-
tras. Estou só no convés. Diante de mim, vejo a ilha. Mais adian-
te, a difícil passagem. Amanhã tentarei. Os outros dormem, pois
teremos pela frente um dia difícil. Na linha da arrebentação, na
praia defronte, começo a perceber vultos escuros que se esgueiram.
São eles. Devem ser eles. Sinto um baque no coração, como se as
águas todas do mar refluíssem em meu peito. Súbito, um alarido,
e, na praia, todos os fogos se acendem. Aqui termina a viagem.
Myriam Fraga

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As vastas mínimas navegações
de Myriam Fraga
Carlos Ribeiro

As Mínimas Estórias Gerais que compõem este livro nos tra-


zem uma vertente pouco conhecida e ainda não devidamen-
te apreciada da obra de Myriam Fraga. Nelas, diversamen-
te da lírica poética, em versos, da escritora, abarcada por
onze títulos — de Marinhas (1964) ao recém-lançado Poe-
mas (2017) —, desenham-se contos e crônicas publicados,
de forma esparsa, ao longo de vinte anos, na coluna Linha
D´Água, assinada pela autora no jornal A Tarde, de Salvador.
Daquela coluna, algumas crônicas já haviam sido reu-
nidas no livro Ventos de verão, em 2016. Mas é aqui, neste
volume, que a densidade de sua prosa ficcional ganha maior
visibilidade e relevância, na iluminação de suas epifanias,
percorrendo os territórios mapeados de sua Ars Poetica, ple-
na de temas e personagens mitológicos, reinos fictícios, lu-
xos de fantasia, labirintos da infância, sótãos e porões, bar-
cos à deriva, unicórnios, crepitar de abelhas, mas também
o devaneio de uma mulher num final de tarde, o prosaico
relato de marido infiel em dia de Carnaval, a Ilha de Itapa-
rica, artistas de cinema, ruas e objetos familiares, tristeza,

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melancolia, tédio. E, sobretudo, as evocações de um tempo
antigo, o sopro da poesia que vem de um longe — para lá da
arrebentação — de um tempo em que as ilhas eram verdes.
O mundo real aqui e o vento uivante lá fora.
Na pequena nota introdutória que antecede os escri-
tos, extraída da belíssima crônica “Navegações”, Myriam
refere-se a este livro como um diário de bordo. Diário de uma
viagem que se transfigura, em cada palavra dita, em jorna-
da existencial que inclui um múltiplo repertório de histórias
não contadas cuja força maior está no não dito. Seu com-
bustível é, ao mesmo tempo, a força do mito, da lenda, e o
cotidiano prosaico marcado pelo desencanto de seus perso-
nagens, pelo narrador (redivivo) e pela força da narrativa.
Narrar, aqui, é ultrapassar os limites da prosa e a própria
capacidade de dizer, aceitando os contrastes e os paradoxos
como elementos inevitáveis do ser.
Nesse diário de bordo, pode-se entrever, aqui e ali, o
mito revisto pelo olhar feminino, como no primoroso conto
“Ressurreição”. A recuperação das estórias contidas na história
pelas vozes que foram silenciadas. A recriação do mundo, da
história do mundo fora das muralhas impostas pelo patriar-
calismo redutor. A ressurreição de tempos pretéritos, remo-
tos, sob a luz do século XXI, mas que já não se prendem aos
limites dos calendários. O elemento mágico. O fantástico.
O sonho. A grandeza do momento perfeito em contraste
com a consciência de sua brevidade. A vaga percepção de
um ponto de passagem para um mar profundo, um oceano
maior. A liberdade. A corrida. A bebida. A sobremesa. O
amor. O sexo. A magia da cidade. O desejo violento de fuga.

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A felicidade entrevista. A beleza do instante. O sentimento
da perda. O reencontro e o eterno renascimento.
Em suas Navegações, Myriam exerce com maestria a
arte de viajar sem sair de casa. Tal como a poeta Emily Di-
ckinson, cuja “vida foi sempre uma permanente viagem. E,
no entanto, ela nunca saía de casa”, suas viagens se realizam
aqui, pela imaginação, pela poesia, pela arte da palavra. Evo-
cação de lugares distantes e distintos, reais e imaginários.
Silêncio, revelação, graça. E cujas referências estão, no final
das contas, na própria Literatura, tendo o mar como símbo-
lo maior da Odisseia que é o viver. “Para os que ainda não
conhecem os segredos dessas navegações, esclarecemos que
as melhores viagens são sempre as marítimas. Não há nada
que se assemelhe ao barrufo das ondas numa tarde calma
ou ao nascer do dia num navio singrando águas profundas
quando o céu, tingindo-se de vermelho, salpica de sangue as
espumas como se fossem pássaros degolados”.
Consagrada, desde cedo, por sua notável obra poética
— na qual, conforme definição precisa da ensaísta e profes-
sora Evelina Hoisel, “[...] estabelece-se intensa interlocução
com uma tradição literária, apropriando-se dos mitos e dos
símbolos que constituem o patrimônio cultural do Ociden-
te, postos em diálogo com os elementos de uma vivência
local, paisagens e cenários, atravessados por personagens da
história da Bahia e do Brasil” —, Myriam parece ter, ela
mesma, dado menor atenção à sua produção em prosa. Tal-
vez, quem sabe, pela reserva em aceitar-se também como
prosadora de alto nível e, podemos afirmar agora, das mais
expressivas entre os ficcionistas contemporâneos. Ou pela

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consciência de que é, em tudo o que fez, essencialmente,
poeta. Inclusive, conforme depoimento do poeta, letrista
e editor Claudius Portugal, como administradora cultural à
frente da Fundação Casa de Jorge Amado, na qual ocupou,
durante trinta anos, a presidência.
Diz Claudius:
[...] Saibam todos que aquela casa azul, fisicamente
aberta nas suas portas e janelas para o Largo do Pelou-
rinho, é uma das antenas da Bahia com o mundo, feita
com trabalho e sonho, e é ela também mais um poema
de Myriam. Poesia não se faz somente com versos. A
vida tem de ser — creio nisso cada dia mais, haja o que
houver —, em tudo, uma permanente arte poética.
Como escritora e administradora cultural; como mãe,
amiga e avó; como “madrinha” de um grande número de
autores revelados nos projetos e concursos promovidos por
ela em instituições como a Fundação Cultural do Estado da
Bahia e a própria Fundação Casa de Jorge Amado; como
membro atuante da Academia de Letras da Bahia, à qual se
dedicou por longos trinta anos e na qual ocupava o cargo de
vice-presidente no momento último de sua presença física
entre nós, Myriam conseguiu exercer a arte mágica de dis-
solver fronteiras — entre pessoas, entre gêneros (literários,
jornalísticos, acadêmicos), entre ideologias e instituições.
Voltando ao campo da escrita, das páginas e dos li-
vros, percebe-se claramente, nestas Mínimas Estórias Gerais,
a dissolução de uma fronteira na qual estaria, de um lado,
a produção poética que coloca a autora de Purificações ou o

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sinal de talião entre os mais importantes poetas líricos da se-
gunda metade do século 20 — aqueles textos “nascidos da
necessidade” e de uma “alquimia” ou espécie de “magia”,
conforme ela mesma disse em seu depoimento ao proje-
to Com a palavra o escritor — e, do outro, a prosa (contos e
crônicas, sobretudo estas últimas), como uma espécie se-
cundária de textos circunstanciais, mais fáceis, dirigidos ao
“leitor comum”, não iniciado nos insondáveis mistérios da
arte poética.
Nada mais ilusório. Na verdade, o que o leitor encon-
trará aqui, nesta seleção feita pela própria autora, poucos
anos antes de atravessar a fronteira do insondável, “encan-
tando-se”, como diria o grande Rosa, é um conjunto de tex-
tos que a coloca também entre os mais refinados contistas
e cronistas brasileiros contemporâneos (penitencio-me aqui
pelo escrúpulo besta de não dizer universais). O conto, a crô-
nica e o poema, de e em Myriam Fraga, são como três praias
distintas nas quais as marés cambiantes da poesia circulam,
ora em ondas cristalinas, ora em misteriosos e insondáveis
redemoinhos.

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Sumário

As vastas mínimas navegações


de Myriam Fraga
Carlos Ribeiro 7

Mínimas estórias gerais


No labirinto 19
O sonho 22
A intrusa 24
A viagem 26
Pavão real 29
Barco à deriva 32
Carta 35
O unicórnio no jardim 38
Última noite em Sodoma 40
A oitava praga 43
Ressurreição 45
Navegações 48
A loba 51
História antiga 53
Ciao, marcelo 55
A predileta 58
Neve no quintal 61
Uma alegria para sempre 64
Ritos de passagem 67

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A fênix 70
Final de labirinto 72
A última ceia 74
Os oráculos 76
Os ventos uivantes 78
Um homem de coragem 80
Escorpião 84
O arquipelágo e os ventos 86
Reflexões de Elizabeth Taylor ante a notícia
da morte de Richard Burton, seu quarto
(Ou quinto) marido 89

Crônicas da província
A casa de Valdete 93
Águas do São Francisco 96
Assombrações e guardas noturnos 98
Circuito na comunicação 101
Do porão à clarabóia 103
Feliz aniversário 106
Fragmentos de um retrato de mulher 109
História de um poema 112
Lembranças de um poeta 115
Lembrancas de um poeta (ii) 117
Lindoca 120
Maneiras de gostar 124
Meu cavalo por um reino 127
Natal 129
O caso das baleias 132
Uma rua chamada saudade 135

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A casa do Rio Vermelho 139
Minha amiga Auta Rosa 142
Totoca 146
Um cão do Tibet 149
Um gato, de manhã 154
Malhado 157
As lanchas de mar grande 161
Lembranças 164
Santo Antônio rogai por nós 166

Esparsas
As adolescentes voadoras 171
Crônica nostálgica à Cidade da Bahia 173
Devoções 176
Elegia para um morto em sua cadeira 180
Fundo de gaveta 181
Janelas 183
Jorge Amado, para sempre 185
Lisboa revisitada 188
Maratona 192
Nostradamus não está com nada
(ou o amargo sabor das profecias) 194
O calor da fogueira 196
Pássaros 198
Réquiem para um poeta assassinado 200
Hermafrodito 201
Tristeza 203
Metamorfose 205
Papai noel não existe 207

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A difícil travessia ‘ 212
Caminho sem volta 214
Cave ne cadas 216
Um retrato no jornal 218
Nós somos o mundo 220
História natural 222
Menudos 224
Sic transit... 227
Gralhas & gralhas 229

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Mínimas estórias gerais

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No labirinto

E ra um bebê muito estranho. Tinha a face peluda e gran-


des olhos líquidos. E um focinho rosado com ventas
que sopravam um bafo morno sobre o seio da mãe, onde
mamava sem cessar com um apetite de monstro.
A princípio, fizeram o possível para escondê-lo. O pai,
horrorizado, recolheu-se aos aposentos reais (porque era um
rei, isto é preciso que se diga) e odiou o filho e a mãe. Aquilo
era castigo, só podia ser castigo. Onde já se viu um mortal,
ainda que fosse um rei, afrontar um deus, assim, impunemen-
te? Eis no que dera despertar a hybris divina, a terrível inveja
dos deuses. Agora, o resultado estava ali. A poderosa cabe-
ça equilibrando-se no corpinho que se fazia atlético. Aquela
criança dividida entre dois mundos, entre desejos opostos,
entre opostas vontades.
Assim o tempo foi passando...
Já estava quase adolescente, e sua força era descomunal.
Vencia a todos nos jogos, sempre. Vivia pelos corredores do
palácio a passear sozinho, em púrpuras, as pontas dos chifres
aflorando, perigosamente afiadas, cruelmente polidas.
Um dia, pela primeira vez, matou um pássaro. Foi du-
rante a festa das colheitas. Não quis explicar por que matara
o pássaro. Ou talvez não pudesse. Havia tantas coisas sem
explicação em sua natureza contraditória. Quando devorou o
bicho, o gosto do sangue fez-lhe mal. Vomitou sobre o mar

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de Creta todo o nojo, todo o pasmo de sua humana condição.
Mas, no fundo, alguma coisa lhe dizia que isso era apenas o
começo. Seria sempre assim. Um eterno e cruel devorador de
inocentes.
Por muitos dias, dias e noites a fio, sentira o gosto amar-
go do sangue. A língua se enrolava na boca, lacerava-se. Aí
então, ele deixava o palácio, sozinho, às escondidas, e ia correr
pelos campos, solto e bravio como um touro selvagem. Vol-
tava exausto. Fiapos de relva e flores enrolados nos chifres,
e no coração um cansaço feliz de bicho inocente, de puro
animal sadio.
Quando isso acontecia, sua mãe o acariciava e chorava.
E ele via em seus olhos desenhar-se um remorso, revolver-se
um desejo e, então, sabia que ela também não era feliz e tinha
medo.
Crescer era assustador. Havia sempre pairando no ar
um propósito, um projeto homicida. Viu, ou antes, pressen-
tiu quando as pedras foram sendo amontoadas à sua volta,
cuidadosamente cimentadas, cautelosamente empilhadas. A
cada manhã ao acordar, elas estavam mais próximas, elas
estavam mais perto, e a realidade era sua aspereza cinzenta e
o caminho cada vez mais difícil, no emaranhado de paredes
que se multiplicavam.
E cada vez mais longe a inocência das fugas noturnas,
a correria de animal livre pelos campos. Agora, só a solidão
e aquelas pedras como flores crescendo, como um pólipo
gigantesco, aquelas pedras e a solidão, mais nada.
O vento, à noite, infiltrava-se pelas frestas, uivando
como um lobo faminto e, então, ele tinha medo e se tornava

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cruel. Percorria sem cessar o longo labirinto de salas e cor-
redores que se comunicavam e se sucediam, até encontrar-
se novamente no salão dos espelhos, onde grandes placas de
metal polido refletiam sua imagem embaciada, para que sou-
besse sempre, para que nunca esquecesse por que estava ali e
não lamentasse seu destino.
E, então, ele soltava um urro como um grito de fera e
debatia-se com fúria contra paredes decoradas com desenhos
de grandes chifres curvos e figuras de machados duplos que
se multiplicavam por toda parte, inexplicavelmente.
De manhã, a cada manhã, ouvia o mar batendo nos ro-
chedos. Sentia, então, um leve perfume no ar, e o som de
cânticos abafados invadia docemente o silêncio das pedras.
Mas, em algumas ocasiões, os cantos se alteavam, e ha-
via grande clamor e alarido. Então, ele sabia que logo teriam
início os rituais de sacrifício. Durante toda a noite, seus lábios
de touro ruminariam flores e ervas aromáticas. E, ao desper-
tar da madrugada, estaria quase apaziguado.
Mas, no fundo de seu coração de homem, haveria uma
inquietação, uma ansiosa expectativa. As vítimas lhe seriam
apresentadas, uma a uma. E não haveria complacência.

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O sonho

O sonho começara com os tambores. Era o sinal. Pulei,


pulou da cama — rede, jirau? — num átimo.
— Preciso ver Jim Hawkins — ele disse. — Eu es-
preitava.
E partimos a cavalo. Ele na frente. Notei que montava
ligeiramente de lado, meio adernado. E tinha a graça e a elegân-
cia de um barco. Eu mais atrás, orgulhosa de olhá-lo. O casaco
de couro, franjas ao vento, as botas altas. Havia calma e decisão
nos gestos. Eu, confiante, no rastro. Adivinhava-lhe a força na
cintura delgada. Cavalgava. Era ele ou era eu, quem cavalgava?
Chegamos à aldeia pela tarde. Era um campo de xa-
drez. Um tabuleiro. Dos quadros pretos, as cabanas se ele-
vavam, distribuídas em grupos, salteadas. Cones perfeitos
na luz que se alongava e incidia nos rostos de bronze, para-
dos, nas estátuas. Eles também esperavam.
Deslizávamos em silêncio, e o silêncio pesava na anca
dos cavalos. De repente, os tambores novamente, os tantãs
ritmados. No fundo e à direita, o conselho dos velhos, em
círculo. Nosso destino estava ali, na brasa dos cachimbos. Foi
então que vimos o triângulo. Desenhado no chão, prolonga-
do. A base a perder-se no ocaso, e o vértice voltado para nós.
Era todo dividido em casas como os jogos que em criança de-
senhávamos na calçada. E era todo riscado em triângulos me-
nores, em círculos, em pássaros estilizados e escrita sagrada.

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Havia uma placa no portão e uma frase. Uma sentença
já meio apagada:
hesitar é matar-se
Às nossas costas, as águas se fecharam. Não haveria
retorno. Assim estava escrito. Só o lento caminhar em círcu-
los. O galope pesado, os cascos como chumbo. O alarido. O
acusador e seu dedo encurvado.
Vi quando o derrubaram com suas achas. Ele voltou
para mim o rosto pálido, o lado esquerdo do rosto. Seus
olhos, incrédulos, perguntavam:
— Por quê?
— Também não sou culpada — gritei —, caímos na
emboscada. — E senti duas flechas ardentes nas espáduas.
— Acordar é renascer de um sonho que nos mata?
Tentei regressar. Decifrar o triângulo enorme como
um mapa. Talvez a chave estivesse em seu bojo, em seus
pássaros hieráticos. Cerrei os olhos com raiva. Dormir. Vol-
tar. Mas, nas pálpebras fechadas, deslizava o vazio de um
sono sem mácula.
Isso o Tenebroso já sabia. Em seu monte de solidão
e esterco, há milênios sabia, adivinhava. O momento é um
peixe que salta, um lampejo de prata. Nenhum caminho re-
gressa, nenhum rio.
Não se sonha duas vezes o mesmo sonho — isto eu
me lembro — estava escrito na décima casa.

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A intrusa

U m belo dia ela chegou e abancou-se ali, naquela cadeira.


A casa toda se alvoroçou. Houve um rebuliço geral, um
desmanchar de paredes, um balançar de alicerces. Logo de
saída, ela declarou sua verdadeira intenção:
— Eu cheguei para ficar e vou mudar tudo — ela disse.
E foi aí que os habitantes da casa se entreolharam e
sorriram, alguns. Outros apenas suspiraram. E o telefone
não parou mais de tocar, e as visitas se avolumaram, os co-
chichos se multiplicaram.
— Esta casa está muito mal administrada — ela disse — e
a governanta empalideceu. — Vou trocar o carro, o motorista,
a cozinheira, o jardineiro. E, por falar nisso, é preciso remover,
imediatamente, aquele louco do jardim. Aumentem a segurança,
levantem os muros, ponham cadeados nas portas, ferrolhos nas
janelas. — Ela disse isso mesmo e rodou entre os dedos seu lon-
go colar de pérolas de Maiorca.
Dia após dia, noite após noite, ela ali sentada, como uma
rainha em seu trono. Ao redor, a casa se movendo como um
satélite gigantesco, cada vez mais devagar, cada vez mais len-
tamente. Os antigos donos já não tinham sossego. A presen-
ça da Outra na sala afligia-os, incomodava. Onde estava sua
antiga paz, a alegria de família bem-humorada e briguenta?
Agora, não ousavam dar mais festas, estranhos em sua pró-
pria casa. Falavam baixinho, olhando para os lados, sentindo-

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se vigiados pela multidão de robôs que invadia os corredores.
Em todas as portas, um invisível cartaz dizia: “Proibido”. E
ela, na cadeira, sentada, empanturrando-se de doces.
Todos os dias, manhãs e tardes, semanas a fio, meses
sem conta. A erva começou a crescer no pátio, e os ferro-
lhos rangiam nas portas por falta de graxa; só os robôs pas-
seavam lentamente com seus olhos vidrados. Uma goteira
infiltrou-se no teto e derreteu os livros. Ela não se importou
nem um pouco, mas ficou furiosa quando começaram a ati-
rar pedras nas janelas. Eram pedras redondas e brilhantes e
desprendiam um odor forte de limões maturados.
Foi, então, que um antigo serviçal da casa respirou
bem fundo este cheiro adstringente e, sem pressa alguma
mas sem qualquer hesitação, disse alto e bom som que não
aguentava mais a insólita presença. Ela se fez de surda e
continuou a devorar pacotes de bombons e litros de suco
artificial sabor morango.
Há vários dias não aparece, trancada na biblioteca. Os
robôs estão agitados e levantaram mais uma fileira de tijolos
no muro dos fundos. Há em redor um ar pesado de insatis-
fação e conivência. Desde a manhã, todos esperam o trin-
cado argentino da pedra nos vidros. Ela parece calma. Pela
tarde, escreveu três cartas e duas conferências, mas, quando
ouviu o barulho na vidraça e o cheiro limpo da primeira
pedra espalhou-se na sala, compreendeu, pela primeira vez,
vagamente, que ficar ali talvez fosse suicídio.

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A viagem

A estrada era longa e, no caminho poeirento, a marca das


sandálias deixava um rastro comprido que se perdia no
horizonte. Tantas léguas, meu Deus, tanta distância... Tantos
dias caminhando naquela secura, naquela arenosa e infindável
travessia. Um desconforto, um calor que subia das entranhas,
dos panos que cobriam o corpo seco, tentando em vão pre-
servar o que ainda restava de umidade na pele desidratada.
Chamavam àquilo caminho, mas era só um traço apa-
gado na vasta planura de onde, havia muito, a vegetação de-
sertara. Somente cactos, raras bromélias sugando a frescura
das pedras amontoadas a esmo. Xique-xiques, um ou outro
umbuzeiro teimoso, e o sol multiplicando-se no brilho das
areias, nos infinitos mínimos cristais com que é feito um
deserto.
De tempos em tempos, o grito áspero do gavião cor-
tando o silêncio e o círculo dos urubus negrejando no co-
balto do céu indicavam que a vida e a morte ainda cumpriam
o curso de seus jogos enigmáticos. ­
Caminhavam lentamente, amparando-se um no outro,
e, embora não estivessem propriamente sozinhos, pois uma
vizinhança, igualmente silenciosa, seguia-lhes os passos, a
solidão construíra a seu redor uma tão espessa proteção,
que era como se fossem únicos sobre a terra.
À noite, descansavam à beira da estrada, recostados

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em algum tronco caído ou no parco almofadado das trou-
xas, tentando não pensar no que o dia seguinte lhes reser-
varia, tentando acreditar na misericórdia divina e nos desíg-
nios de Deus, às vezes tão difíceis de aceitar.
Um casal como tantos outros que por ali caminha-
vam. Ela quase uma menina, disfarçando a silhueta volumosa
numa túnica que mal encobria o ventre que se destacava no
corpo magro. Ele, mais velho, marcado pelo cansaço e pelo
sofrimento, os braços robustos e as mãos calejadas, sempre a
amparar o passo da mulher que ora gemia baixinho e parecia
desfalecer no desespero da caminhada, ora se punha a tagare-
lar sobre coisas incompreensíveis; sobre anjos que apareciam
às vezes ao cair da tarde e estrelas e emissários. e, então, seu
rosto se punha subitamente a brilhar, e ela, em lágrimas, batia
no peito e se dizia escolhida, dizia-se bem-aventurada.
Embora não compreendesse, ele adivinhava que algu-
ma coisa misteriosa estava acontecendo, algo muito além do
seu parco entendimento de operário, de homem temente à
lei de Deus e dos homens, cumpridor de deveres e de obri-
gações. Mas, embora reconhecendo sentir por aquela mu-
lher um amor desmedido, talvez preferisse que as coisas se
passassem de outro modo.
Temia por ela e pela criança ainda por nascer, e dava-
lhe um frio no coração vê-la sentada à noite a contemplar o
céu, procurando uma estrela — a mais brilhante, a maior, a
mais bela das estrelas — que viria avisá-la de que a hora era
chegada.
Naquele dia, haviam caminhado mais do que nunca —
ou seria o cansaço que dobrava as distâncias? Ao chegarem

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à vila já repleta de romeiros, perambularam de porta em
porta à procura de um abrigo. Mas todas as portas se fecha-
vam, e não havia hospedaria em qualquer parte que pudesse
recebê-los.
Na última casa da última rua, ela já quase desfalecen-
do, foram, enfim, atendidos por uma alma compassiva que,
apontando-lhes um estábulo, permitiu-lhes que ali se alojas-
sem aquela noite. Embora cansado, procurou acomodar a
mulher da melhor maneira possível, improvisando-­lhe uma
cama sobre as palhas, e tremeu de medo quando ela lhe dis-
se que era chegado o momento.
Ela arfava suavemente, e de novo sua face resplande-
cia. Mas não soltou um grito, sequer um gemido. E, quando
o menino nasceu, embalou-o cantando cantigas muito es-
tranhas.
Naquela noite, muitos viram quando a estrela — a
maior, a mais bela, a mais perfeita e brilhante — riscou o
escuro do céu e pareceu equilibrar-se na ponta do telhado.
Muitos viram, mas, embalados pela música, pelas danças,
pelo vinho, não entenderam o sinal. Apenas alguma pobre
gente que por ali pastoreava ovelhas e cabras percebeu, ao
raiar do dia, aquela estrela que se apagava lentamente, com
sua cauda brilhante cortando o céu como uma faixa de aljô-
far, e aproximou-se curiosa para conhecer o milagre.
Mas encontraram apenas uma mãe amamentando seu
filho e um homem cansado que tentava inutilmente reacen-
der o borralho. E ele contou-lhes que a criança nascera na-
quela noite e que se chamava Messias.

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Pavão Real
Para Evandro de Castro Lima, in memoriam

O grito soava estranho no silêncio da noite. Misto de uivo


e grasnido, essa noturna voz, agourenta e inquietante
como a voz de um fantasma. Era, no entanto, apenas o rouco
apelo da beleza, a súbita explosão de um arco-íris em cio.
Nas malhas finas da infância, no tortuoso labirinto
que é a infância sempre relembrada, havia um pavão real
passeando majestoso o espanto de suas penas. Não era
como uma realidade palpável, grafito decalcado nos muros
da memória. Apenas uma impressão de passagem, um hós-
pede do espanto, um desdobrar de cores, um súbito cintilar
de azul no amarelo das chamas.
Ali, plantado no quintal, era uma ave ou uma fogueira?
Uma radiosa aparição, um milagre repetido no desdobrar
da cauda em leque. Cem olhos vigiando nossa indefesa ino-
cência.
Um homem indefeso admirou-se, mais uma vez, no
espelho. Os cem olhos da infância lhe devolveram o segre-
do. Seus olhos azuis brilharam mais que as pedras azuis,
mais que o cobalto azul dos vidrilhos ofuscantes. A perfei-
ção colou-se a seu corpo a cada nó de laçada, a cada ponto
de bordado, a cada gota de miçanga. De muito longe, ainda
lhe chegavam os ecos, aplausos da avenida, a multidão exta-
siada ao resplendor de seus brilhos, ao luxo da fantasia.

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Agora, no silêncio do quarto, era apenas um homem
sozinho à mercê do imprevisto, nas garras do implacável.
Um homem e seus olhos azuis desenhando fantasmas nos
corredores do espelho.
Seria a realidade aquele brilho azul dos vidrilhos ace-
sos, a naftalina dos armários amontoados de mantos, cetros,
arminhos, a coroa do príncipe, a flecha dos arqueiros? Ou
o ciscar dos galos no velho quintal da casa onde a infância
dissolvera-se aos gritos, e partir ou ficar era apenas a linha
sutil que divide os precipícios?
A verdade era aquele tanque limoso e os bigodes cres-
pos do pai, a repartir o pão, sentado como um deus na cabe-
ceira da mesa, enquanto as sombras invadiam, lentamente,
o espaço da sala?
Ou a fúria da revelação, o opróbrio, o anátema? E a
bênção negada na hora da partida. A bênção negada, quando
nada mais havia a esperar além das lágrimas, além de todo
além, como a crueldade dos galos dilacerando-se no pátio?
Apenas um homem sozinho e cansado. O triunfo tal-
vez não lhe pesasse tanto, agora que ele começava a des-
pir-se devagar, como uma crisálida rompendo, cautelosa, as
fibras do casulo.
Quando a dor o pegou de surpresa, com um golpe
seco no peito, lembrou-se novamente do galo caindo en-
sanguentado a seus pés, num rodopio de penas. Mas isso
fora há muito tempo, no velho quintal sombreado de man-
gueiras.
Isso fora há muito, muito tempo, e era uma noite es-
cura, embora fosse dia, e a rejeição doesse em seu coração

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com a mesma violência das bicadas que estraçalhavam o co-
ração dos galos, e o desprezo, escorrendo dos bigodes do
pai, como restos de sopa, tingisse de sangue os punhos da
camisa.
Agora, só restavam mesmo as lembranças e as penas
azuis do pavão, a cauda imensa com cem olhos abertos na
penumbra do quarto. Mais uma bicada feroz no coração e
o choro desatado da mãe naquela noite, há tanto tempo... E
novamente um cansaço infinito, um cansaço, um cansaço...

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Barco à deriva

A princípio, ninguém queria acreditar que estava mesmo


acontecendo. Afinal, nenhum alarme soara, nenhuma
sirene, nada perturbara a rotina de bordo. Os passageiros mo-
viam-se calmamente, lentamente, e a tripulação parecia estar
tão ocupada! Havia mesmo no convés uma azáfama desusa-
da, um arrastar de baldes, um brunir de metais, um esfregar
de vidros. Como se, de repente, tudo dependesse de uma boa
escovadela, e o destino de todos pudesse ser decidido mercê
da destruição das traças e das teias de aranha.
No convés superior, tudo estava tranquilo. Alguns se
espichavam sonolentos nas espreguiçadeiras, mantas fofas
nas pernas, olhos perdidos em livros ilegíveis ou, bem longe,
seguindo o voo altíssimo de sereníssimas gaivotas. Os mais
jovens, divertiam-se na piscina com um barulho infernal,
pernas e braços batendo na água clorada, aos gritos, atiran-
do-se bolas de borracha e respingos azulados.
À noite, os passageiros mais graduados seriam convi-
dados a jantar com o comandante e, então, falariam vaga-
mente de suas vidas passadas, dos problemas e aventuras
que tinham deixado bem longe, na cidade encravada nas
encostas da baía.
Na segunda classe, mocinhas assustadas repeliam as
investidas dos oficiais mais afoitos, sonhando com o dia
em que poderiam ir ao baile com os cabelos arrumados,

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vestidas de tafetá e rendas de Bruxelas. Elas seguravam os
seios nas mãos e suspiravam debruçadas na amurada vendo
o navio deslizar, como um peixe enorme, na superfície das
águas. E, às vezes, até cuspiam e ficavam distraídas olhando
as espumas engolirem o rastro de saliva, e era como se um
pouco delas mesmas ficasse ali rolando, eternamente.
Do porão, nem se tinha notícias. Daquele povo que
ficava tão lá embaixo, perto do coração do navio, ouvindo o
pulsar das máquinas e respirando um enjoativo bafo de alca-
trão e maresia. Por sobre as trouxas, amontoadas, dormiam
crianças, e as mulheres dividiam tristezas, náusea e comida
enlatada.
O primeiro aviso chegou de madrugada. Um ligeiro
estalido, e um rato precipitou-se, apressado, por uma fresta
da vigia. Houve também um leve estremecer de enxárcias
quando a proa embicou, desgovernada, contra a crista das
ondas e rodopiou em seguida. Todas as estrelas giraram no
céu, e a marinhagem, assustada, entreolhou-se. Não havia
comando! Na ponte vazia, a ausência falava mais claro que
todos os sinais. O comandante sumira. Uma deserção? Um
motim? Um acidente qualquer?
Debalde, os oficiais se esforçavam para camuflar o
acontecido. Uns amarravam o leme, outros estudavam as
cartas, alguns observavam o horizonte, e outros tentavam,
em vão, decifrar os portulanos. Mas, com a ausência, crescia
a sensação da orfandade.
Todo mundo fingia acreditar que seguiam um roteiro,
mas, no fundo do coração, lhes faltava coragem de admitir
que navegavam em círculos.

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Como se nada estivesse acontecendo, todos mantinham a
calma e tentavam continuar com as costumeiras tarefas. O que
ninguém ousava perguntar era até quando poderiam resistir,
desde que descobriram que o leme também estava quebrado.

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Carta

F oi só então que reparou como a luz se adoçava em tons


de cinza. Esfriara de repente, e os olhos fatigados pro-
curaram refrigério no verde das árvores, ali, bem em frente,
no que ainda restava da antiga Mata Atlântica, no bosque
lavado pela chuva da véspera, que, como uma ilha silencio-
sa, cercada pelos longínquos mil ruídos da cidade ao redor,
garantia-lhe a fatia de paz, a ração mínima que ainda sobrava
a defendê-la do cotidiano a lacerar-se nos vidros, nos muros,
nas imperfeições, nos prodígios.
Diante de si a carta. A longa estória sofrida, inventada,
repetida, a triste realidade do que nunca existira, mas que se
fazia tão presente, cristalizando-se em letras esparramadas
sobre o branco do papel, que acabava por acreditar que real-
mente existira. Ou será que existira realmente? A verdade é
uma construção de múltiplos espelhos refletindo apenas a
imagem que cada um deseja ver. O resto é ficção.
Por trás das árvores, atrás do delicado perfil das copas,
sobrepostas em tons rosados, fiapos de nuvens de um azul
sombreado destacavam-se na transparente cúpula esverdeada
do céu que se abismava no mar, além, muito além do presu-
mível horizonte.
Subitamente, os ruídos da noite se adensavam. O ci-
ciar monótono das cigarras misturando-se ao coaxar dos
sapos, ao martelar dos grilos e, antecipando-se ao séquito
dos habitantes do escuro, o gargarejo agourento das corujas.

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A longa, inesperada carta, tão cheia de amargura a
queimar-lhe os dedos, tão destituída de qualquer esforço,
por mais leve que fosse, de entendimento ou de perdão.
Cruamente, loucamente, insensatamente, antigas estórias
reinventadas, episódios sem nenhuma importância interpre-
tados com uma fúria meticulosa e confusa. A confusão or-
ganizada dos doentes, dos que só enxergam o mundo atra-
vés das lentes gelatinosas de sua própria demência.
A carta pesando em suas mãos como o último tijolo
de um templo arruinado, como um mapa onde as linhas
se emaranhassem, embaralhadas pelo rancor, pelo azedume,
pela amargura, num roteiro sem sentido e sem direção.
A mulher que está sentada na varanda, naquele fim de
tarde de outono, com os olhos abismados no verde lavado
pela chuva, sabe que um dia ainda será atingida pelos esti-
lhaços, sabe que aquela fúria desatada e ao mesmo tempo
serena não se contentará com nada que não seja o repisar
cruel de fatos dos quais nem ao menos se tem certeza de
terem existido realmente, mas ardem, em seu coração revol-
tado, como brasas de vez em quando sopradas.
Pensa no tempo — quanto tempo! — desperdiçado
com esse sofrimento que lhe corrói as entranhas, que lhe
salga as palavras, que a impede de viver como todo mundo
seus pequenos momentos de alegria. Pensa na carta, nas que
vieram antes e nas que ainda virão.
Estremece ao vento frio que sopra de longe, daquele
ponto de mar cinzento que se percebe à distância, e chega
à conclusão de que não pode carregar para sempre a culpa
por um crime que não cometera, que talvez nunca tenha

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acontecido realmente, e que a persegue como o calor de
chamas mordendo o papel que aos poucos se enovela e se
desfaz em cinzas, apagando de uma vez por todas (até quan-
do?) a solidária tentativa de suicídio ou de perdão.

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O unicórnio no jardim

S ei que você vai rir, meu jovem amigo. E vai até pensar
que eu sou uma mulher meio louca à procura de papo. Sei
também que, provavelmente, não lhe interessa nem um pou-
co esta nossa conversa. Mas, de manhã, quando eu acordei,
tinha um unicórnio pastando em meu jardim. Talvez você
nem saiba direito o que é um unicórnio, mas se se der ao
trabalho de procurar num bom dicionário, encontrará com
certeza: unicórnio, animal fabuloso, semelhando um cavalo
com um único e longo chifre na testa, etc... etc...
Eu sei, eu também tive um choque e pensei a mesmís-
sima coisa. Por que, afinal, perder tempo com um animal
que não existe? No entanto, ele está lá, bem no meio de um
canteiro de begônias. Mais real que uma girafa, mais plau-
sível que um rinoceronte. Seu longo chifre espiralado toca
de leve as flores do jasmineiro, e seus pés delicados pisam
as pedras sem mágoa; os casquinhos, brilhantes como ná-
car, desmunhecando levemente a cada nova pisada. Ah! E o
pelo! Branco, com reflexos prateados. Os olhinhos esbuga-
lhados revirando-se medrosos com um faiscar de ametistas.
E agora, o que fazer? Que armadilhas, que laços, que
propostas farei para que ele se aproxime? Para que paste em
minha mão com seu focinho morno e sua língua inocente?
Um unicórnio é um bicho encantado. Que se saiba, nunca,
em tempo algum, alguém conseguiu alcançá-lo. Para isto é

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preciso muita astúcia, muita paciência e uma absoluta força
de vontade. Dizem que o método mais seguro é armar-se
um laço de seda em sua trilha e, perto daí, colocar-se uma
virgem como isca. Eles são loucos por uma virgem, isto é
certo e sabido. Assim ele virá com seus passinhos miúdos e,
aos acenos da outra, vai esquecendo a prudência e zás! cai
no laço. O que torna as coisas mais difíceis é que tem de ser
uma virgem autêntica, daquelas que cobrem os joelhos ao
mínimo cúpido olhar e coram de pudor à mais leve tentativa
de assalto. Uma virgem dessas é hoje quase tão difícil quan-
to um verdadeiro unicórnio.
Bem, uma vez laçado, o animal é facílimo de conduzir.
A mansidão em pessoa. Só que alguns não se dão bem no
cativeiro; simplesmente, enlanguescem e morrem, ou con-
somem-se numa chama azul sem deixar rastro nem cinza.
Bem sei que esta conversa está comprida e maluca.
Mas tem um unicórnio pastando em meu jardim. Não sei de
onde veio. Surgiu pela manhã entre brumas e orvalho, e eu
o quero para mim. Sei que será difícil pegá-lo. Vou tentar me
aproximar aos poucos, suavemente, em perfeito equilíbrio
entre desejo e recato. Não usarei laços nem virgens. Apenas
nós dois no jardim, olho no olho, longas tardes a fio. A cada
passo um recuo, a cada ausência um retorno. Mas ele há de
comer um dia em minha mão — disto eu tenho certeza —,
sem artifícios, sem armadilhas.

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Última noite em sodoma

N esta cidade, Sodoma, eu cresci como uma árvore. Pés


enraizados no chão, cabelos como folhas soltas ao ven-
to. A princípio, entre as tendas cor de areia, misturada a outras
crianças e às cabras e ovelhas dos rebanhos que alimentam
meu povo. Depois, numa casa de tijolos cozidos ao sol, onde
às tardes me deitava aos pés de meu pai e ouvia de sua boca
muitas canções de guerra e aflições e longos relatos de he-
roísmo e crueldade. Minha casa, de assoalho polido e largos
portais lavrados, protegida do sol, amortecendo o calor nos
úmidos reposteiros. Ainda guardo, recortada e nítida na me-
mória, a lembrança das manhãs em que minha mãe lavava
roupa no tanque de arenito, e minha irmã passava unguentos
em seu longo cabelo acobreado.
Nesta cidade, Sodoma, aprendi muitos ritos, mas
guardei, como meus pais, a fé de meus antepassados como
relíquia, sob o fogo das trípodes. As chamas no altar me
falavam em sacrifícios, em longas esperas, em perseguições,
em tribos inteiras que morreram cantando. E era nisso que
eu pensava naquelas tardes suaves pontilhadas de moscas e
sombras de palmeiras.
Às vezes, desenhava na memória o perfil dos zigura-
tes, e a face estranha de um homem surgia em meus sonhos
com a persistência de um perfume. Sei — sempre soube —
que, do outro lado das paredes, mulheres bailarinas arroxea-

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vam as pálpebras e arregaçavam os vestidos, e seu corpo era
uma oferta permanente, um permanente desperdício. Mas
só os deuses entendiam seu ciciar de serpentes. Os homens
apenas as tomavam, e seu sexo era como sarça ardendo no
deserto, e o prazer era um jogo difícil, um difícil equilíbrio
entre o gozo e o malefício. Mas o meu Deus é o Deus de
meus pais, e só a Ele sacrifico. Às vezes, me parece cruel, e
sua longa mão inflexível chicoteia-me o corpo com a força
das lendas.
Isso eu pensava enquanto minha mãe tecia vestidos de
linho grosso com suas mãos que tinham a ligeireza das fa-
lenas. Um dia, minha irmã perdeu-se com um guardador de
camelos, e eu fui dada como esposa a um homem muito san-
to. Assim são cumpridos os desígnios de Deus e os costumes
da tribo. Agora, minha pele de tâmara madura explode ao
verão deste ardente solário. Em meus pés, borbulham águas
de algum oculto rio. Foi aqui, onde as águas se juntam, bem
no alto das coxas, que concebi duas filhas. As orações, como
óleo, escorrem da boca murcha de meu idoso marido. As
tâmaras fervilham nos cestos com um zumbido de abelhas.
Lembro, agora, aquela noite em que vieram os mensa-
geiros. Ouvi quando na sala falaram em voz baixa decretan-
do a falência de todos os vícios. Havia, lá fora, um resplen-
dor de guizos. No escuro da sala, orações e um levíssimo
palpitar de asas agitadas. Naquela hora, pensei no imperador
com suas barbas frisadas dormindo em palácio com as suas
mil concubinas: o pecado era uma fruta redonda e macia
maturando em alguma parte ao crepitar das abelhas. Com
o rosto em fogo e mãos que tremiam, servi figos secos e

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vinho aos hóspedes desconhecidos. A fímbria de minha tú-
nica roçou de leve as sandálias do viajante, nossos olhos se
encontraram, e eu soube naquele momento que deveríamos
partir ou seríamos destruídos.
Lá fora, o povo cantava entre fogos e alarido. Pensei
que talvez fosse bom caminhar novamente entre os becos
furtivos até as margens do rio. Mas não havia mais tempo,
nem seria prudente. A multidão ululava, e custava muito
acalmá-la com palavras que meu virtuoso marido arrancava
do coração como pedras de um saco. Os hóspedes se reti-
raram deixando-nos uma grande aflição e três pães ázimos
que comemos em silêncio.
Juntamos os objetos, os indispensáveis utensílios. Para
trás, ficou a infância, as tardes de sono, os aquecidos apo-
sentos com seus tijolos coloridos e seus reposteiros esvoa-
çantes.
Quando amanhã subir a colina, não olharei para ver
a destruição da cidade. Não devo olhar para trás, não devo
olhar. Mas alguma coisa me diz que esta viagem será para
mim o último sacrifício.
Não olharei para trás, talvez. Mas pressinto a força do
sal nas lágrimas que deslizam.

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A oitava praga

D e um dia para o outro, chegaram os gafanhotos. Eles


vieram em nuvens negras, infinitos, vorazes. Nada es-
capou de sua sanha devoradora. Nem os campos plantados,
nem as rosas, nem mesmo as altas palmas dos coqueiros. Até
os homens foram molestados. Os bichos grudavam-se nos
cabelos, embrenhavam-se nas roupas, invadiam desvãos, en-
tupiam gavetas, mergulhavam na sopa, esponjavam-se na sa-
lada ou, simplesmente, não faziam nada. Postavam-se imóveis
diante de sua vítima, olhando-a fixamente com seus olhinhos
saltados, bolas de cristal girando, observando. Olhos que ver-
rumavam, que incomodavam em sua claridade, na absurda
limpidez de sua opalescência.
Eles vieram no bojo da noite, prenúncios de medo
e escuridão. Ao cair da tarde, um vento abrasador soprou
sobre o campo, as cancelas se abriram, e todo o gado sumiu
como se tragado por um redemoinho que se abismava na
treva. No horizonte, um sol vermelho, sangrento, dizia que
tudo estava escrito. No silêncio que se adensava, ouvia-se o
rumor dos gafanhotos que cobriam a terra, como um gran-
de monstro negro devorando as pastagens.
O mesmo vento agreste soprou e destruiu a cidade.
Telhas voaram, postes retorcidos, árvores arrancadas. A
ventania durou apenas dois minutos. Todos viram quando
o rapaz atirou a mãe pela janela. Na urna de vidro, os gafa-

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nhotos se agitaram. Antes ele tentara estrangulá-la. Enfiou-
lhe os polegares goela a dentro, deu-lhe dois pontapés no
ventre, pois odiava a matriz onde fora gerado. O parapeito
era alto, mas nada lhe parecia impossível, pois estava fortís-
simo e tinha a fúria a guiá-lo. Quando o corpo tombou com
um movimento de folha, ele mordeu as mãos e entregou-se
à polícia.
Bateram no sujeito até matar. Seu sangue esboçou na
parede uma mancha vermelha, fantástico desenho de algum
pintor futurista. Guarde-nos Deus do amor que pode nos
levar à morte.
A fome faz com que as feras fiquem como os homens.
Assim elas devoram a carne dos incautos. O lobo é o ho-
mem do lobo. Se pudéssemos detectar os sinais, o nó das
profecias... Desde muito antes, quando as águas se transfor-
maram em sangue, e os peixes todos morreram, e as mar-
gens putrefatas recendiam a podridão e morte, e batráquios
enlouquecidos invadiam as casas, num coaxar ensurdecedor,
podia-se ler os sinais de um novo cataclismo. A casa do pra-
zer virou mansão de Hades. E agora, que centauros ousarão
transpor as portas malditas?
Mas o mágico tirou da cartola um pombo degolado.
E novamente os gafanhotos rodearam as lâmpadas e apaga-
ram a candeia. O repórter, na televisão, fala de coisas terrí-
veis: de casas destruídas, cidades inteiras destruídas, pessoas
sendo retiradas aos poucos, mortos vivos, dos escombros.
Não tem nenhuma importância. Estamos todos anes-
tesiados.

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Ressurreição

E vieram umas mulheres de longe e se assentaram na pedra,


frente ao sepulcro. Um calor abafado fazia tremular o ar
em volta e tornava quase enjoativo o perfume dos bálsamos
que elas haviam trazido. Durante toda a noite, trovejara e, já
perto do amanhecer, um grande abalo, como um terremoto,
sacudira a terra. Talvez por isso a grande pedra estivesse revi-
rada, e a boca do túmulo se encontrasse aberta.
As mulheres tinham vindo de uma longa noite de ago-
nia e estavam cansadas. Ao amanhecer, depois de recolhe-
rem ervas aromáticas, óleos e perfumes, encaminharam-se
ao local do sepultamento, para que, lavando o morto e o
envolvendo em bálsamos, pudessem demonstrar, mais uma
vez, a extensão do seu amor e do seu padecimento. Mas ago-
ra estavam ali, paradas, sem coragem de penetrar na furna
sombria, sem forças para encontrar o corpo amado coberto
de manchas, lacerado de pregos, aviltado e corrompido em
sua humana carnadura.
Um sopro de ar fresco bafejou-lhes o rosto afogueado.
Um sopro perfumado, saído do oco sombrio, uma brisa vivifi-
cante como um hálito de primavera. E foi, então, que elas entra-
ram e viram. O sangue quase lhes faltava, petrificadas de espan-
to diante do inesperado. O morto não estava ali. Em seu lugar,
apenas uma ausência como um contorno nítido na lembrança.
Os panos do sudário, revolvidos, ainda guardavam manchas do

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sangue, mal estancado, apesar de todo o cuidado que tiveram
na preparação do corpo; as feridas lavadas com óleo fino, com
sumo de ervas e essências fortes. O morto não estava ali, e sua
ausência era quase um desamparo, uma orfandade multiplicada
pela dupla perda, pela dor da morte agora renovada.
Entreolharam-se assustadas, sussurrando entre si pa-
lavras de espanto e mágoa e temor. Quem poderia ter le-
vado o corpo, se havia guardas armados à porta, velando
toda a noite, e a ordem era prender qualquer suspeito que se
aproximasse? Elas próprias tinham conseguido passar por-
que eram apenas pobres, fracas mulheres, com seus potes
perfumados, cumprindo um ritual de dor e caridade. Pobres,
fracas mulheres sem nenhuma força além do amor desespe-
rado que as guiava.
Mas agora estavam ali diante do imprevisto. A imensa
pedra revirada, os lençóis que O amortalhavam atirados a
um canto, e os guardas, quando os encontraram, pareciam
paralisados de horror, olhos fixos, transtornados por uma
visão que os cegara mais que a sua própria maldade. Eles
estavam mudos, petrificados. E suas armas, no chão, já não
serviam para nada.
E foi, então, que elas viram, na sombra, surgir o ado-
lescente. Talvez ele estivesse ali, desde o primeiro instante,
desde o primeiro susto. Mas só agora, maravilhadas, davam-
se conta de sua insólita presença. Estava sentado na pedra,
bem no lugar onde a cabeça do morto repousara. Seu rosto
resplandecia, e suas vestes brilhavam. Na penumbra azu-
lada, adivinhavam-se as asas. Elas queriam perguntar pelo
morto, que destino tomara, mas a voz em suas gargantas

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parecia que estancara. Queriam perguntar quem era, o que
fazia ali, sentado e sereno, enquanto elas, agoniadas, busca-
vam uma resposta, uma explicação, um consolo.
Mas havia entre eles um vazio sem palavras; apenas o
fulgor dos olhos e o tremular suavíssimo das asas. E, então,
elas compreenderam e deram graças.

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Navegações

P ara Emily Dickinson, poeta nascida no século passado,


em Nova Inglaterra, Estados Unidos, a vida foi sempre
uma permanente viagem. E, no entanto, ela nunca saía de
casa. Em seu quarto-navio, vivia constantemente elaborando
roteiros, sempre vestida de branco, como uma vestal, a servi-
ço da poesia.
Para os que ainda não conhecem os segredos dessas
navegações, esclarecemos que as melhores viagens são sem-
pre as marítimas. Não há nada que se assemelhe ao barrufo
das ondas numa tarde calma ou ao nascer do dia num navio
singrando águas profundas, quando o céu, tingindo-se de
vermelho, salpica de sangue as espumas como se fossem
pássaros degolados.
E o que dizer das noites enluaradas, nas pequenas en-
seadas, quando o barco, a jusante, estica a corda da âncora
no quase limite do suportável, e a gente se debruça e olha a
linha da praia ali defronte com seus coqueiros esguios e os
olhos doces dos nativos espiando disfarçados entre as moi-
tas escuras da vegetação que desce até a praia. Ah, noites
encantadoras nos ancoradouros das ilhas!
Pode-se também pegar um cargueiro e atravessar o
Mar do Norte. Em certas épocas do ano, os fjords ficam le-
vemente rosados, e uma bruma macia envolve o navio, e é
como se fôssemos marujos fantasmas num veleiro perdido.

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Também se pode perfeitamente ir aos polos. Ao nor-
te, a temperatura é mais amena, sobretudo na primavera,
quando as flores amarelas cobrem toda a superfície gelada.
Mas não é preciso ir tão longe para assistir às auroras bore-
ais. De vez em quando, regulo o calendário e posso vê-las,
tranquilamente, sentada em meu jardim. A última foi lin-
díssima, como se todos os arco-íris do mundo desabassem
subitamente sobre a minha casa. Havia uma música tocan-
do, não sei se Wagner ou Beethoven, algo assim muito gran-
dioso. Creio mais que era Wagner, porque, de repente, umas
mulheres muito brancas, em desabalada cavalgada, saíram
de uma nuvem e precipitaram-se na fímbria do horizonte,
seguidas por uma multidão de guerreiros loiríssimos. Eram
walkirias, certamente.
Há também umas viagens muita bonitas e que se
pode fazer de balão, sobrevoando os desertos dourados; um
susto no coração ao mais leve engrossar dos ventos, pois o
simum é um sopro poderoso e, quando sopra com raiva,
nem as cegonhas de Tebas nas colunas derrocadas fitando
o morno céu escapam à sua fúria. As nascentes do Nilo são
belíssimas. As águas brotam de repente de uma espécie de
cântaro e vão borbulhando, borbulhando através das dunas
escaldantes, e cada grão de areia se torna um tufo de papiro
onde as íbis satisfeitas, equilibrando-se em suas longas per-
nas, pousam para turistas munidos de paciência e modernís-
simas Pentax.
Mas, cuidado! Viajar é uma arte difícil que requer uma
dedicação total na elaboração dos roteiros. Qualquer desli-
ze, qualquer erro de cálculo e tudo estará perdido. É preciso

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esconder os mapas dos olhares curiosos, de preferência em
velhas arcas flibusteiras. Mas cuidado, cuidado, nada de ta-
bernas! Morgan e seus asseclas vigiam nossos passos. E à
noite, quando o vento assobia nas charnecas, fujam depres-
sa ao ouvir o som agourento das passadas de Flint.
***
O que vou escrever agora, neste diário de bordo, tal-
vez não lhes diga respeito. O balouço do navio é que torna
trêmulas minhas letras. Estou só no convés. Diante de mim,
vejo a ilha. Mais adiante, a difícil passagem. Amanhã tenta-
rei. Os outros dormem, pois teremos pela frente um dia di-
fícil. Na linha da arrebentação, na praia defronte, começo a
perceber vultos escuros que se esgueiram. São eles. Devem
ser eles. Sinto um baque no coração, como se as águas todas
do mar refluíssem em meu peito. Súbito, um alarido, e, na
praia, todos os fogos se acendem. Aqui termina a viagem.

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A loba

O uivo cortou o ar, e as duas metades da noite se abriram


como fruta. Um cheiro de sumos, de folhas, de raízes
encheu o espaço vazio entre as árvores da floresta. Perto, se
ouvia o rio, seu rumor, seu marulho. Um focinho úmido as-
pirou o vento que vinha de longe carregando os perfumes da
terra, o cheiro forte de corpos que se moviam na sombra, de
bichos rastejantes, de animais na tocaia. Viver, naquele ins-
tante, era estar sempre alerta. Orelhas aguçadas aos ruídos do
escuro. Músculos preparados para o súbito bote, para a fuga
ou o ataque. Sentia-se fraca. Apenas uma fêmea desgarrada
da alcateia, uma cachorra rejeitada pelo bando, deixada para
trás sem piedade ou remorso. Deixada para traz com seu so-
frimento, seu parto angustiado, sua ninhada perdida. O aban-
dono doía-lhe como um espinho na pata. Novamente, o uivo
cortou o ar e prolongou-se em latidos, curtos e selvagens,
desesperados e aflitos. Parou por um instante e lambeu o pelo
molhado, limpando o que ainda restava de sangue e líquido de
placenta. Uma sede profunda guiou-lhe os passos ao rio, e ela
se arrastou ganindo em busca da frescura das águas.
Com a sede aplacada veio o sono, e ela dormiu como
só dorme um animal cansado. E dormiu toda a noite e a
madrugada, até que os raios do sol aquecendo-lhe o pelo a
despertassem com novas forças e sede renovada. Outra vez,
dirigiu-se à margem do rio em passos miúdos, os ouvidos

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acesos temendo emboscadas. Súbito, um cheiro de homem
penetrou-lhe as narinas. Um cheiro adocicado e meio estra-
nho. Não o cheiro habitual do inimigo conhecido, do que
enfrentava o bando furioso em suas noturnas caçadas. O
que protegia os rebanhos e revidava com força quando ata-
cado. Um cheiro de homem, sim, mas um cheiro suave. Um
cheiro de filhotes!
Estavam dentro de uma espécie de cesto e tiritavam,
apesar do sol quente que iluminava brandamente seus cor-
pos pelados. Estavam ali como refugos da enchente. Me-
xiam-se de vez em quando e, de vez em quando, soltavam
um vagido débil como um ganir de cachorrinhos. Como
seus cachorrinhos ganiam enquanto tentava, inutilmente,
amamentá-los. Parou, de súbito, auscultando em torno, ten-
tando ouvir passadas, aspirando o ar que vinha do rio, suave
e cristalino como a transparência das águas. Os vagidos se
altearam um pouco, e ela assustou-se e retrocedeu, quedan-
do-se imóvel como uma estátua, a pata esquerda levantada e
o focinho fremindo ao vento frio que soprava. O estômago
contorcido por uma fome antiga, por um impulso ancestral
que lhe corria pelas fauces como uma saliva grossa, travan-
do-lhe os caninos e escorrendo-lhe pela goela que ansiava
saciar-se.
Por um momento apenas, breve tempo, desejou devo-
rá-los. Mas, quando seu focinho sequioso tocou de leve os
corpinhos gelados, ela sentiu o peso do leite nas tetas ma-
chucadas e, então, deitou-se a seu lado e deu-lhes o calor do
corpo e os peitos. E eles mamaram até fartarem-se.

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História antiga

— Sou tão feliz! — disse Níobe, sacudindo as tranças negras.


— Quem é mais poderosa do que eu, descendente dos deu-
ses? Princesa desta casa, destes muros de Tebas, soberana?
Por isso não vejo por que deva sacrificar a Latona, minha
rival, que é uma deusa, sem dúvida, mas em nada melhor do
que eu. Dizem até que sua ascendência não é lá essas coi-
sas. Não tem, como eu tenho, séculos e séculos de realeza no
sangue. Deuses são como os homens, semelhantes paixões,
as mesmas fraquezas. E eu sou mais do que ela, pois, além
do mais, tenho sete filhos varões e sete moças. Sete e mais
sete de invulgar formosura. Por isso todos me admiram e me
chamarão para sempre bem-aventurada. Enquanto ela... Bem,
seus filhos, Artemísia e Apolo, são divinos, com efeito, mas
são apenas dois. Como pode ela comparar-se comigo quando
vou ao templo coroada de flores, cercada pela prole do divi-
no Anfion, meu esposo muito amado? Anfion, o da flauta
maravilhosa, o construtor de muralhas. Quando ele tocou a
sua flauta sagrada, as pedras se juntaram, e as muralhas se
ergueram. Alguns preferem contar que foi com uma lira e
talvez falem a verdade, pois este é o instrumento que mais se
assemelha aos cornos de um novilho, e todo mundo sabe das
estórias que correm sobre as origens de Agenor, fundador
desta cidade e seu primeiro soberano...
Enquanto isso, no Olimpo, Latona — a devorar potes

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de ambrosia sabor baunilha, sorvendo, deliciada, longas taças
de néctar —, sentindo-se desafiada, chamou seu par de fi-
lhos: Diana, a caçadora, conhecida também como Artemísia,
e Febo, o Sol (ou Apolo, dá no mesmo) e segredou-lhes seu
despeito, sua ira sagrada.
Infelizes os que ousam despertar a inveja dos deuses!
Toda a cidade de Tebas ouviu o zumbido sinistro. E
viu quando as flechas começaram a cravar-se, uma a uma,
no coração dos infelizes príncipes. Apolo, certeiro, flechava
os rapazes, e Diana, sua irmã, sempre escoltada por galgos
alvíssimos, perseguia as meninas.
Enquanto isto, Níobe, aos berros, imprecava Latona
até que o último de seus filhos deu o último suspiro, e ela,
estalando de dor, se transformou em pedra. De seus olhos,
porém, continuaram a jorrar lágrimas copiosas. Hoje é uma
fonte cristalina. Mas ninguém bebe de sua água. É salgada.

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Ciao, Marcelo

S entada na sala. Cercada de papéis vermelhos rasgados e


de lembranças. A um canto a árvore, pinheirinho enfei-
tado de estrelas, de bolas, guirlandas prateadas e fiapos de
neve artificial, tão deslocados e insólitos nos ramos verdes, na
quentura que se irradiava, além das janelas abertas, para a es-
curidão da noite com seu silêncio compacto, entrecortado às
vezes por vozes longínquas, risos, músicas que chegavam em
ondas, tornando ainda mais impenetrável a penumbra que se
adensava em torno da mulher ali sentada, com os pés ligeira-
mente doloridos nos sapatos novos e as finas mãos de unhas
polidas cruzadas no regaço.
Mais um ano que findava. Mais um ano, menos um
ano. Um cheiro enjoativo de nozes, de peru, de champanhe
azedando nas taças seu líquido ouro desbotado inundava
agora a casa.
Há pouco, luzes acesas, a grande mesa posta e a fa-
mília reunida na troca de presentes. A solidariedade de ser
feliz quando é preciso, porque, senão, seria o desconcerto, o
caos, a face opaca do ignoto. Mas todos se foram e, sozinha
na sala, ela resiste à tentação do balanço, à contabilidade
amarga dos dias passados, dos múltiplos natais refletidos
nas bolas de aljôfar, como pequenos espelhos rutilantes.
Numa das bolas, a menina sorri no vestido de cam-
braia caprichosamente bordado. Sapatos pretos de verniz,

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meias brancas de seda. Nas mãos, um urso amarelo talvez
grande demais para seus bracinhos curtos. Em outra bola,
a menina, mais crescida, estica a coleira de um cão, abrindo
espaço a uma série de meninas a espiar de dentro do vidro
iridescente com seus olhos brilhantes e o sorriso ainda imu-
ne ao tempo e sua pátina.
Subitamente, o pinheiro a farfalhar ao vento e o medo
de ir ao fim, de saber-se ali tão vulnerável e só, diante do
tremeluzir das bolas coloridas. Um rosto grave de mulher, a
debruçar-se entre as folhas, emerge do vidro prateado, teste-
munhando que alguma coisa mudou, que insidiosamente o
tempo cravou as suas garras na testa vincada, nos parênteses
da boca, na flacidez do rosto outrora tão perfeito.
À medida que a noite avança, o calor parece cristali-
zar-se em ondas concêntricas, irradiadas a partir do clarão
bruxuleante das velas queimando lentamente em castiçais
de prata. A penumbra concentra-se além do círculo de luz
da única lâmpada acesa no canto mais remoto, sob uma cú-
pula leitosa de opalina.
O corpo resvalou sobre almofadas macias. Um torpor
a dividi-la entre o sono e a vigília. No devaneio, como num
filme na tela dos cinemas, uma figura muito loura, muito
branca, exuberante em suas formas redondas a escapar dos
vestidos, e um frescor de águas, um cantar leve de fontes,
um apelo de sereias quando a transgressão ainda se fazia
possível.
Deitado entre flores, na foto do jornal, o homem era
bonito, mas parecia cansado. Um certo ar perplexo, um de-
samparado jeito de menino, que faziam seu encanto, defini-

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tivamente apagados. Por ele choravam, agora, a bela Sofia, a
estonteante Catherine, a apaixonada Flora.
Por ele choravam tantas mulheres no escuro das salas
de cinema, onde telas brilhantes buscavam por momentos
driblar a morte, reinventando um tempo paralelo em que
não se envelhece nunca, jovens eternizados em celuloide, a
própria Terra do Nunca condensada em rolos.
E ela chorava desamparada, na penumbrosa noite que
se abria em gomos como uma fruta madura; ela chorava por
ele e por um mundo que não existia mais e do qual pouca
coisa restara além do desejo infinito de ainda ser possível
lavar os pecados da inércia, ao final de uma longa noite de
loucuras, nas frias águas cristalinas da Fontana de Trevi.

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A predileta

A comunicação da chegada causava sempre um certo re-


buliço. A carta, escrita com a fina caligrafia inimitável,
anunciava a próxima vinda, como se fosse a coisa mais natural
do mundo visitar-se a família depois de tantos anos de silen-
ciosa abstinência, indiferente às notícias de casa, tão distante
e olímpica, como se nunca tivesse pertencido àquela gente.
Embora procurasse disfarçar a ansiedade, a mãe não
cabia em si de alegria e, com alvoroço, buscava atender a
todos os requisitos julgados indispensáveis ao conforto da
ingrata que não era capaz de lembrar-se sequer dos aniversá-
rios e que, no natal, enviava cartões convencionais ou pre-
sentes caros e inúteis que eram cuidadosamente guardados
no fundo dos armários.
E tinha início, então, o ritual de preparação ao gran-
de acontecimento. Das cômodas antigas, trancadas a sete
chaves, eram retirados os lençóis de linho bordados, restos
da antiga opulência, para que, lavados, perfumados e engo-
mados, vestissem a cama alta da velha mobília de madeira
torneada, que permanecia em desuso no quarto principal,
na penumbra das persianas fechadas, à espera do momento
glorioso em que seus pés pisassem as tábuas enceradas a
capricho, e ela espalhasse seu arsenal de cremes e frascos de
perfume no mármore da penteadeira, mirando-se com en-
fado nos espelhos bisotados, enquanto distribuía, no vasto

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armário de quatro portas, uma verdadeira coleção de roupas
da mais variada e fina procedência.
Na véspera do grande dia, a casa impecável, o assoalho
de largas tábuas já lavado e encerado, tudo tão limpo e esco-
vado, recendendo a detergente de limão; os tapetes batidos, as
cortinas arejadas, a mãe sentava-se na sala — ao pé do grande
relógio de bronze, onde uma ninfa languidamente media o
tempo de sua ansiedade — e concentrava-se em saborear o
prazer do próximo encontro, da oportunidade cada vez mais
rara de ter a filha ao pé de si, de abraçá-la, beijá-la, ajeitar-lhe
o cabelo, como fazia quando era criança, prendendo-lhe os
cachos rebeldes com grampos dourados e fitas de tafetá.
Os outros filhos mordiam-se de ciúmes e, em vão,
maldosamente, invocavam as ingratidões da predileta, seus
silêncios inexplicáveis, sua aparente indiferença, seu tédio
para com tudo o que se referisse à família.
Eles ali, sempre tão próximos, tão presentes, tão so-
lidários, não mereciam gozar dos privilégios daquela que,
como o filho da parábola, também se fora um dia, sem ex-
plicações e sem remorsos.
E agora que voltava, como sempre, tão superior e tão
cheia de não me toques, a mãe desdobrava-se para atendê-la
em todos os caprichos: travesseiros de pena, comidinhas
especiais em pratos de Limoges, os talheres de alpaca das
grandes ocasiões nas toalhas adamascadas sobre a mesa da
sala, onde se reuniam para a costumeira vassalagem, para
a contemplação embasbacada dos vestidos elegantes, dos
sapatos e bolsas admiravelmente combinados, dos cabelos
impecáveis, da maquilagem caprichada, da beleza que resis-

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tia bravamente ao tempo e que parecia fazê-la tão especial
e invejada.
E ela chegava com ares de dona, com poses de prin-
cesa. Criticava tudo sem a menor cerimônia, guardava as
almofadas de cetim e as estatuetas de bronze, trocava a
posição dos móveis que julgava deselegantes e antiquados.
Passava tardes inteiras nessas arrumações que a deixavam
satisfeitíssima e causavam grande desgosto à mãe, habituada
a manter tudo do mesmo jeito desde que, enviuvando, viera
morar naquela casa, que, embora não guardasse o fastígio de
outrora, tinha um certo ar senhorial no pé direito alto e nas
portas que abriam para as sacadas, onde podia apreciar a rua
e distrair-se na sua existência solitária.
Com olhos apaixonados e submissos, seguia os movi-
mentos da filha, deixando que ela virasse a casa pelo avesso
diante da admiração dos outros, que nunca conseguiam que
se mudasse um simples bibelô de cima da prateleira. O pres-
tígio da outra era indiscutível.
Depois de algum tempo, dando por finda a tempo-
rada, a visitante partia mais uma vez, deixando a mãe em
prantos e os irmãos aliviados.
Meia hora após a partida, ainda com os olhos inchados,
a mãe chamava a empregada e fazia tudo retornar ao que era
antes: os móveis, as estatuetas de bronze, os relógios, os pra-
tos na parede, até não restar nada fora de seus antigos lugares.
Só então, se recolhia ao quarto e, abrindo a grande es-
crivaninha de madeira, guardava bem no fundo o inútil e caro
presente que jamais seria usado e, desfiando, resignada, as
contas escuras do velho rosário, começava a sonhar com o
próximo regresso.

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Neve no quintal

N uma manhã de domingo, um homem acordou e, ainda


sonolento, dirigiu-se para a janela do quarto e abriu a
cortina.
O jardim brilhou diante de seus olhos com uma ex-
traordinária brancura. Neve! Estava nevando! Flocos bran-
cos ainda tremulavam na ponta dos galhos e docemente
despencavam como se fossem pétalas de uma flor invisível.
— Como pode ser isso — perguntou-se, admirado, —
se nesta terra nem inverno temos?
Olhou novamente como quem quer certificar-se, e lá
estava a pequena fonte, no meio do gramado, rebrilhando
seus cristais e seus peixinhos congelados.
— Devo estar louco — ele falou, com uma voz tão
alta e exaltada que a mulher, que ainda dormia, suspirou
qualquer coisa.
Ainda meio incrédulo, ele tentou acordá-la:
— Tá nevando lá fora.
Ela olhou para ele como quem olha uma porta que
lentamente se abre: curiosidade e temor. Mas, em seguida,
pensou melhor, virou-se para o outro lado, ajeitou as cober-
tas e tentou continuar a dormir. Antes resmungou alguma
coisa, mas ele não teve coragem de perguntar o que era.
Conhecia bem a sua cólera se ousasse insistir.
O homem caminhou lentamente até o banheiro, cum-

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priu religiosamente todos os seus rituais cotidianos e, só en-
tão, novamente olhou para fora.
Estava tudo do mesmo jeito: os pequenos canteiros
cobertos de flocos brancos, as árvores reluzentes de esta-
lactites brilhantes, a varanda com palmo e meio de gelo na
soleira.
— Não pode ser —, balbuciou.
Desceu as escadas e abriu a porta, louco para certi-
ficar-se, para tocar com o dedo, para destruir a miragem.
Uma lufada de vento frio cortou-lhe a respiração. Era neve
mesmo, límpida e fria, com seus mínimos cristais refletindo
a luz do sol que explodia no azul de um céu sem fronteiras.
Não podia haver dúvida. Até o muro, onde sua vista
esbarrava, era tudo uma brancura só, pontilhada do verde
lavado da grama e dos restos do que era um canteiro de
rosas.
Com o coração batendo forte, ele voltou para dentro
e telefonou ansioso para seu melhor amigo.
— Esta noite nevou aqui em casa. Está tudo gelado.
— Hum... Acho que você bebeu um pouco demais
ontem à noite...
— Não, não, está tudo coberto de neve. Tudo gelado.
— Hum...
— Você não acredita, não é? Então, por que não dá
um pulo aqui, agora, para ver com seus próprios olhos?
— Acho melhor você se deitar novamente. Vai ver
quando acordar terá passado a ressaca.
— Tá bem, tá bem. É melhor desligar, você não acre-
dita.

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Havia um grande silêncio em toda a casa. Lá fora, a
neve recomeçara a cair, suavemente, quietamente. Na varan-
da, o canário congelado em sua gaiola, os peixinhos imóveis
no tanque gelado.
O homem sentou-se no sofá e ficou olhando através
da vidraça os flocos alvíssimos caindo sem cessar, horas a
fio. Em breve, alcançaram o peitoril e continuaram caindo,
caindo. Até nada mais restar ante seus olhos além do branco
espaço vazio da vidraça sepultada.

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Uma alegria para sempre

É difícil dizer que a vida não é bela e digna de ser vivida.


Enfiando na boca a última garfada, sentiu com delícia
o gosto delicado do peixe suavemente perfumado com man-
teiga e alcaparras. Não, não podia haver nada mais delicio-
so; e, apesar do calor, sentiu-se bem ali, naquele restaurante
sobre o mar, o azul do dia perigosamente azul iluminando
tudo, tocando com a magia de sua luz as velhas ruínas en-
trevistas ao longe e o perfil recortado das ilhas emergindo
do mar na fosforescência da baía. Ah! Como era bom sentir
na garganta as borbulhas de gás da água bem gelada e an-
tever com delícia o gosto do pudim desmanchando-se na
boca! Porque assim tinha deliberado. Aquele teria que ser
um prazer completo até o fim. Até o momento de dobrar
delicadamente o guardanapo e pagar ao garçom, generosa-
mente, uma farta gorjeta. Reparou, então, numa árvore que
se debruçava sobre o abismo, despencando uma chuva de
flores amarelas contra o esmalte do céu. Tanta beleza meu
Deus! E o coração bateu forte.
O coração bateu, e ela suspeitou que aquele seria um
momento inesquecível. Como aquele dia em que voltava de
Mar Grande, de lancha, numa manhã cinzenta de chuva fina
e subitamente entreviu, através da bruma, a fileira dos bar-
cos como grandes aves pousadas lado a lado, ou aquela ou-
tra manhã quando, fazendo a mesma travessia, um bando de

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pássaros marinhos subitamente levantou voo, bem na proa
do barco, como espuma que se volatizasse.
Sentindo um gosto de sal na boca, de muito longe
pressentiu ou escavou de bem dentro de si mesma um des-
tino marinheiro. Alguma rosa dos ventos tatuada bem no
fundo da memória como um mágico mandala a indicar-lhe
o ponto exato, a exata passagem para um oceano maior e
mais profundo onde navegaria sem fronteiras.
Por um momento, apenas por um instante, átimo de
segundo, sentiu-se imponderável. Flutuava no ar sustentada
apenas pelo calor que subitamente se adensava em ondas e
subia como nuvem do asfalto fervente.
Equilibrou-se perigosamente entre a vontade de cho-
rar e o desejo de esquecer. De onde virá, pensou, a magia
desta cidade, desta ilha de sal e maresia, espetada de torres,
com sua densa oleosidade lambuzando as ruas, corrompen-
do as fachadas, o salitre minando as almas, destruindo as
casas, corrompendo as vontades. Beleza é o seu nome. E,
no coração, uma mágoa antiga novamente sangrou.
Ah! Esta cidade é um destino carregado demais de an-
siedades, queixumes, vagas impertinências, um desejo vio-
lento de fuga, de navios partindo em madrugadas cinzentas,
daquilo que vagamente sempre intitulou de liberdade! Esta
cidade que navega em suas veias como enguias selvagens
percorrendo sempre o mesmo roteiro, buscando eterna-
mente as mesmas nascentes e refluindo perigosamente a
cada nova batida do coração perpetuamente aflito.
Felicidade poderia ser aquele momento? Um desenhar
de flores amarelas num céu polido como metal azulado?

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Nada poderá ser tão perfeito como um instante de beleza.
“A thing of beauty is a joy forever”, sentenciou um poeta.
Lá embaixo, o mar cantava como um eco: “for ever,
for ever, for ever”. Uma alegria para sempre, a beleza. Uma
cruel, terrível, insuportável alegria.
Cuidadosamente, cruzou os talheres e bebeu o últi-
mo gole. Para trás, ficara o momento, perfeito e impalpável,
guardado entre os vidros da memória, preservado e palpi-
tante como um gênio em sua lâmpada.

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Ritos de passagem

A cordou esquisita. Um peso no coração, um gosto


amargo na boca. Um sentimento de perda iminente,
um desconforto. Não tinha nada de errado, nada fora dos
trilhos. Tentou raciocinar, lembrar com calma se havia al-
gum motivo, alguma coisa desagradável que acontecera e
agora lhe escapava. Mas nada, nada.
Mas, então, por que aquela sensação de peso lhe opri-
mindo o peito? Aquele mal-estar, aquele estranhamento?
Sentia o corpo opaco e alheio como se não lhe pertencesse.
Pernas e braços boiando numa estranha geleia, num caldo
espesso que se infiltrava por toda parte e sufocava.
Não estava infeliz, não, nem era propriamente tristeza.
Era somente alguma coisa doendo vagamente, como uma
areia no sapato, como uma pequena ferida já meio sarada, e
que a gente toca de leve com o dedo para ver se ainda está
viva, para sentir a gostosura da dor já meio domesticada.
Tomara que passe, meu Deus, tomara que já passe.
Mas passar o que, afinal? Que rio fundo, que túnel, que obs-
táculo? Todo ano a mesma coisa, todo final de ano. Mas que
bobagem, apenas convenção, apenas isso.
A passagem do ano. De noite, iria a uma festa chatís-
sima, de vestido branco, e beberia champanhe sem vontade.
E, à meia-noite em ponto, todos se abraçariam e fingiriam
estar contentes. E fingiriam esquecer que a vida é uma espi-
ral sem fim, uma voragem, um abismo.

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Era preciso sempre muito barulho. Apitos, fogos de
artifício, muita luz, músicas estridentes. E, se possível, beber
um pouco além da conta, ficar um pouco bêbada para não
sentir o empuxo, o rastro da passagem cortando o tempo
em duas bandas, como se corta o lado podre de uma fruta
e joga fora.
Quando era criança, sempre imaginava que alguma
coisa mágica iria acontecer. Uma virada, um estrondo ou
mesmo uma labareda, dividindo o céu em dois pedaços: o
final e a chegada de algo que não sabia bem o que era. Tinha
medo e curiosidade, como quando se sente a iminência do
mistério.
Tentara, muitas vezes, ficar acordada, olhos abertos
na penumbra do quarto, esperando, esperando o grande
momento, a terrível passagem. Mas, vencida pelo cansaço,
adormecia para acordar no dia seguinte, quando tudo já es-
tava serenado e um novo ano começava igualzinho ao an-
tigo.
Até que uma vez, quando já quase desistira, conseguiu
que a babá cumprisse a promessa feita e a acordasse bem na
hora, na horinha exata do espocar dos foguetes.
E ficaram as duas debruçadas na janela da grande casa
vazia, rescendendo ao perfume que se espalhava pelas salas,
ainda ecoando dos risos, do farfalhar dos vestidos que os
demais, os adultos, tinham deixado como um rastro de sua
alegre debandada a caminho das festas.
E elas ficaram, as duas na janela, vendo apenas no céu
o riscar dos foguetes, pingentes coloridos a desfazerem-se
em lágrimas. Nada mais aconteceu. Nenhuma página vira-

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da com estrondo no livro aberto do céu, nenhum carro de
fogo trazendo o Ano Novo como um bebê saudável e es-
perançoso e regressando com o decrépito Ano Velho para
o céu longínquo onde, na certa, iam parar todos os velhos.
Nem sequer um simples arco-íris dividindo o tempo
como o risco de cor do giz dividia, no pátio, as casas da
“amarelinha”. Nenhum salto, nenhuma ponte jogada sobre
o abismo. Apenas uma noite comum igual às outras, com
fogos de artifício pipocando ao longe e um leve sentimen-
to de abandono, ali, naquela janela à meia-noite, numa casa
vazia.

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A fênix

R enasço a cada passo. A cada manhã, renovo minhas pe-


nas. Ontem foram as brasas. Meu corpo frágil, meu ser
de indecisa textura, ardeu em chamas, devorou-se inteiro ao
calor de sua própria fogueira. No fim, restou um pouco de
pó, cinzas escuras. Mas, ao romper da manhã, os carvões se
agitaram. Débil ruflar de asas, um espichar de remígios e, no-
vamente pássaro, me ultrapasso. Para o alto, para o alto! Atrás
são cinzas mortas, pó desfeito, uma pequena coivara onde
crepitam ainda, rescaldantes, os restos do braseiro.
Aos poucos, lentamente, recupero os sentidos. Aos
poucos, lentamente, reaprendo os caminhos, me oriento de-
vagar pelas velhas pegadas. Aqui, sem dúvida, já estive. É
meu este traço, este espalmado rastro. Sinto que há ainda
em mim um vestígio de abismo. Um chamuscado leve, uma
fina cicatriz no encontro das asas. E uma lembrança quase
morta, uma recordação abafada da ferroada das chamas, do
dilacerante calor brotando das entranhas.
Mas renasci. Renasço todo o tempo. E meu tempo
é este constante oscilar, este pêndulo esticado entre o to-
que de morrer e a hora do resgate. Ainda há pouco, eu era
apenas um montículo de pó, resíduos calcinados. Mas uma
nova força revive de minhas brasas, asas soltas no espaço.
Agora, o céu é meu. E todo este dia glorioso com seu
hálito de jasmins, com seu sopro de plumas. Meu é este dia,

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o espaço deste dia. E a força de viver bate forte nas veias.
Respiro com prazer e me engolfo no vento. Mais uma vez,
retomo meus cantares. Mais um dia! mais um dia! Sei que,
breve, de novo morrerei. Sei que nova mortalha de pó e
cinza velará a minha face. Outro fogo me espera, outro mer-
gulho ao cerne da fornalha.
Mas agora me equilibro na força de minhas asas. Todo
o horizonte me pertence, tudo o que embaixo respira e se
renova. Ventos bruscos do céu, arco-íris, auroras. Um dia,
de novo, enfrentarei o holocausto. E novamente arderei até
a poeira final, o restolho, o borralho. Mas não importa. Sei
que tudo isto é apenas passagem. E renascerei de novo de
minhas cinzas. Íntegra e radiante para novas batalhas.

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Final de labirinto
Para Jorge Luis Borges, no 1º aniversário de sua morte.

H avia um pressentimento no amor. Eco da palavra, rosas


brancas e um nome: Maria. E havia o tédio da vida, o
inútil labirinto. Praça de touros sem touro. E o pó das ruí-
nas circulares onde um homem sonhava sua sombra. Aqui
as veredas se bifurcam. Voltam... jamais. Jamais a nuvem cor-
-de-rosa, o cristalino mar em volta das pupilas cegas. Agora,
rosas despetaladas sobre a terra leve e os passos de Maria, tão
despida de tudo e tão sozinha.
A outra morte acontecerá depois. Em Uqbar, revisita-
da pelos tigres, um poeta novamente decifrará o Destino na
polida face luminosa dos espelhos. Devo chamar de alegria
este riscar de unhas sobre os muros do cárcere? A escritura
de um deus sobre os portais de Babilônia?
Nas paredes de Babel, resplandece o Aleph, os curvos
cornos do touro como um sinal da passagem.
Afinal, foi em Genebra, onde sentiu pela primeira vez,
deslumbrado, a revelação de Tácito e Virgílio, que ele che-
gou, finalmente, ao fundo do labirinto.
No seu trono de ouro, o Minotauro, cercado de tigres
alados e de espelhos, decifrava a última e única metáfora.
Em letras de sangue, na parede, o Aleph. Tranquilos, eles
se olharam nos olhos; o devorador e o devorado. Os olhos
cegos do viajante subitamente iluminados pela luz radiosa

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das pupilas do touro. O homem estava cansado mas des-
perto. Atravessara intricados corredores, percorrera a pé
todos os caminhos do jardim, todas as entradas das ruínas
circulares. Os olhos, ele os cegara na biblioteca de Babel e,
agora, estava ali à espera do milagre: a passagem para Teön,
a decifração deste mistério construído por homens, a loteria
em Babilônia. O machado de dois gumes faiscava ao pé do
trono e, nos afrescos da parede, as donzelas sorriam coroa-
das de flores.
O touro soprou sobre o livro, e o selo rompeu-se re-
velando a escritura. A solidão pesando na garganta, o ho-
mem olhou pela última vez os olhos vítreos do touro e, ao
súbito estalar dos vidros, voltou-se lentamente cortando o
fio como os dentes. Com um farfalhar de cartas, o labirinto
ruiu.

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A última ceia

A lguma coisa lhe dizia que aquela seria uma noite especial.
Depois de tanto tempo, tantos desencontros, traições,
mentiras... a voz ao telefone prometia, insinua­va... um jan-
tar a dois depois de tudo o que passaram... Deu dois passos
para trás e admi­rou-se no grande espelho do guarda-roupa.
Ainda podia ser considerada uma bela mulher. A fisionomia
um pouco abatida pela recente perda de peso guardava tra­ços
da beleza de outrora. Vestira-se esmeradamente, caprichando
na maquila­gem. Duas gotas de perfume atrás da orelha, um
ajustar de meias nas pernas bem fei­tas, e estava pronta. Sorriu
confiante para a outra que a olhava do espelho: “Tchau, vou
em busca do destino, deseje-me boa sor­te”.
A pequena mesa de canto no restaurante tinha ramo
de flores de cheiro enjoativo. Sentaram-se frente a frente.
Ele estava mais que solícito, até parecia querer conquis­tá-
la, mas seus olhos procuravam o relógio a todo ins­tante, e,
quando os cálices se tocaram num brinde, sua mão tremeu
um pouco.
“Meu Deus”, ela disse, de repente aflita, “nós pedi­mos
vinho branco para acompanhar o peixe. E, de repente, me
servem vinho tin­to. Por que só a mim servi­ram este vinho
cor de san­gue?”
Naquele momento, com­ preendeu que estava tudo
perdido. Não quis sobreme­sa nem tomou café. Nem sur­

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preendeu-se ao vê-lo pagar a conta com notas novinhas.
Colocou o guardanapo so­bre a mesa e sentiu-se de repente
nauseada. “Como é enjoativo o cheiro destas flo­res. Parece
cheiro de veló­rio.”
Lá fora, a noite estava bo­nita, e ela respirou fundo
pa­ra esquecer o cheiro. Ele, com a elegante displicência de
sempre, recompensava o garagista regiamente.
“Será agora ou nunca”, ela pensou, enquanto o carro
arrancava.

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Os oráculos

H oje, quebrei a asa do meu último moinho. Inútil pros-


seguir nesta insana batalha. Melhor mesmo é descansar
no meu leito de rosas e mover-me como sombra na sombra
das acácias. Todos desertaram. Peões, alabardeiros, é tudo um
vasto campo de guerreiros mortos. Tudo memórias de ale-
gria, tudo invenção de um lírico caolho.
Agora, mansos carneiros brancos pastam, apazigua-
dos, o fígado dos senhores. Nada mais resta além dos ossos.
Recolhidos os ossos, nada mais, além de observar a chegada
dos monstros. Eles virão aos poucos, devagar, as enxúndias
balouçantes. Eles se sentarão no trono bichado de seus an-
tecessores.
Eles virão, os gordos donos da verdade. Suas carnes
flácidas, suas ordens tonitroantes. Seus oráculos. Todos os
campos estarão minados. Todas as saídas, bloqueadas. Cer-
cas brotarão por toda parte com seus fios eletrificados. E
meu velho rocim galopará sozinho até a morte. Nem mes-
mo um cão restará para lamber as feridas.
E saber que nada posso contra o alarme deste exér-
cito. Nem as amadas se salvarão. Nem as amadas, agitadas
ao vento como bandeiras. E nem mesmo o Príncipe: olhos
verdes de jade, prata nos cabelos. Agora, nada me resta além
de relembrar o tempo dos moinhos e adormecer na relva
como quem morre, como quem...

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Como quem quebra a pata dos insetos. Como quem
esmaga entre os dedos o verde da esperança. Paciência, ir-
mãos, os cães estão dormindo. Asas de anjos negros pal-
pitam no esconderijo, nos desvãos das paredes, nas ruínas,
velhas casas assombradas onde palpita ainda a infância.
Inútil prosseguir quando, mais tarde, saberei que sem-
pre é muito tarde, e a vida foi apenas o que ficou, destroços
no caminho. Sentada neste círculo, neste risco de giz arris-
co meu limite. Talvez ainda conserve o dom das profecias.
Velha sibila, neste tarô procuro minha sorte. Já consultei
mandalas, i-ching, as conchas sagradas. Omfale, a pedra,
guardou-me seu segredo. Amanhã, quando me acharem, eu
estarei doente de lembranças. Nenhum remorso, nenhum
possível resgate. Somente o silvo fino das serpentes. Hoje,
porém, estou sozinha e forjo um inventário. Talvez ainda
guarde um pouco de silêncio. E a ventura de transitar li-
vremente no Distante País do Sonho, além, muito além da
Terra dos Espelhos.

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Os ventos uivantes

D a primeira vez que dormiram naquela casa, os ventos


uivavam, e a noite estava solta e arquejante como besta
no cio. Não se lembrava de mais nada. Nem da excitação de
toda a chegada nem do cansaço da mudança. Só do vento
lá fora sacudindo as folhas e do quarto suspenso do escuro
como um barco vergastado por um mar invisível. E um gran-
de medo no coração, um desassossego que vinha de outras
noites, de muitas outras noites que adivinhava indormidas e
que se abismavam no fundo da memória tangidas pelo mes-
mo vento indomável que naquele instante soprava. Deitada
na caminha nova, sabia-se, então, uma criança assustada, tão
indefesa e assustada naquele universo de adultos cansados, de
vultos apressados que explicavam, consolavam, acalmavam,
verificando frestas, calçando ferrolhos, cobrindo, embalando
e indo embora; deixando apenas o medo e a solidão e o vento
uivante lá fora.
O vento como um cachorro vadio e aquela casa diluída
no tempo, aquela casa com sua claraboia escondendo os te-
souros de um sótão inalcançável, misterioso e secreto terri-
tório cheio de indagações e caixas de azulejos.
O vento, sempre. Um medo no coração, goteiras e
a aflição dos outros enxugando os ladrilhos e o açoite da
chuva nos vidros das janelas. E ela, pequena e sozinha ali
naquela casa enorme com seu degrau que estalava, e os ga-

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tos como almas vadias no escuro, como crianças esgoeladas
embolando-se nas ribanceiras cobertas de boninas e cachos
de mamona.
Tão indefesa e assustada com seu grande medo em-
brulhado em colchas de linho naquela cama grande como
um barco, e ela ali tão pequena e indefesa e assustada com
aquele quadro na parede, com aquela santa com olhos que
a seguiam a toda parte e aquele menino nos braços, aquele
menino com uma camisolinha e um cabelo esquisito, tão
indiferente e distante com seu rosto de boneca e seu sorriso
vazio.
Tão indefesa e assustada como agora, quando da casa
não resta pedra sobre pedra, só a lembrança das noites como
esteira de um barco que navega e se abisma nos longes da
memória, e o vento, o vento, o vento...

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Um homem de coragem

H á algum tempo, tinha tudo acertado. Desta vez, não iria


dar bobeira. Afinal de contas, tinha o direito de se di-
vertir; sem mulher, sem meninos, principalmente sem a sogra
que não lhe saía do pé, sempre a dar penadas, a se meter em
tudo — um encosto! –, desde que, ficando viúva, resolve-
ra morar com a filha, abrindo mão de tudo o que o finado
deixara. Tudo! Uma casinha velha em Itapagipe, dois ou três
móveis que ela, orgulhosamente, chamava de “antigos”, mas
que não passavam de cópias ordinárias, e um sítio na Estrada
Velha do Aeroporto, que nem sede tinha e onde, nos domin-
gos de poucas oportunidades, passavam a tarde a catar pitan-
gas e jogar pelada no campinho de capim ralo que a mulher
intitulava, pomposamente, de gramado.
Ah, que vida besta, meu Deus! Rotina de funcionário
público, salário achatado pelos planos econômicos do go-
verno em quem votava sempre e de quem falava mal impre-
terivelmente. Até à cervejinha do final de tarde tivera que
renunciar, desde que a mulher, alertada pela vigilante geni-
tora, deu para cismar de umas coleguinhas de repartição que
teimavam em aderir ao programa, numa suprema afirmação
da igualdade dos sexos. Agora, depois do expediente, toma-
va solitário o caminho de casa, amaldiçoando o dia em que,
por causa de uns olhos verdes e de um corpinho delgado,
depois de uns apertos no portão, decidira-se, enfim, a anun-

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ciar o noivado, caindo na arapuca que lhe armaram com
tantos cuidados e tantos cafezinhos e bolachinhas de goma.
Daí ao cativeiro foi apenas um passo e, hoje, lá está ele com
a corda no pescoço, como boi indo para o matadouro. Os
olhos verdes já não brilhavam tanto na sombra das pálpe-
bras avermelhadas, e a cinturinha de vespa arredondara-se
definitivamente depois da segunda prenhez.
No calor sufocante de fevereiro, no trânsito engarra-
fado do final de tarde, o chevette surrado resfolegando nas
ladeiras, lá se ia pedindo a Deus que o vizinho não chegasse
primeiro e ocupasse a vaga que disputava com ele no con-
domínio Vivendas da Praia. Apartamento de três quartos,
sem varanda e sem praia, comprado em sociedade com a
sogra, que se arvorava, por isso mesmo, ares de proprietá-
ria, fazendo questão de dizer a todos que, sem a herança do
finado, até hoje estariam no aluguel.
Este ano, porém, seria diferente. Com a grana curta,
decidiram passar o carnaval na cidade, desistindo da casa
emprestada por um parente, em Itaparica. Ficariam por ali
mesmo, saindo apenas para ir à praia e, talvez, fim de tarde,
ao Campo Grande, para apreciar a saída dos blocos.
O plano parecia perfeito. Às 8 horas de domingo, em
pleno carnaval, ligaram para sua casa para comunicar-lhe o
trágico desaparecimento de um colega muito querido. Não
podendo furtar-se ao dever de solidariedade a esse amigo
tão especial, desesperado, ele se despencaria para o velório
sem muitas explicações, só devendo voltar depois de reali-
zado o sepultamento.
O encontro seria na casa de Machadinho, no Alto da

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Federação, de onde partiriam todos, devidamente fantasia-
dos para unir-se ao resto da turma e desfilarem juntos na
famosa Mudança do Garcia, bloco eclético e irreverente que
juntava a euforia momesca e a sátira política e social numa
bagunça generalizada, que parecia reviver antigos ritos de
mitológicas bacanais.
Os dias que antecederam o tão esperado momento
foram de apreensão e ansiedade e pareciam arrastar-se na
maior lerdeza. O coração aos pulos a cada provocação da ja-
raraca, a cada muxoxo da cara-metade, a cada proposta dos
filhos. Ah, mas Deus é grande e não haveria de permitir que
o plano, tão cuidadosamente elaborado, fosse dar em nada!
Tudo certo, no dia aprazado, mal podia acreditar na
própria sorte. Com um saiote de mulher encobrindo as per-
nas cabeludas, um bustiê amarrado aos seios fartos e uma
máscara de nega maluca a disfarçar-lhe a identidade, lá se ia
ele todo contente rodando com garbo a bolsinha recheada
de dólares, recortados em papel higiênico. Antes, tomaram
várias na barraca de Nandão, no Alto do Garcia. Agora, po-
deroso, quase onipotente, lá ia ele embalado pela batucada,
no ritmo da Mudança. Já quase no Campo Grande, esquina
da Leovigildo Filgueiras com o Teatro Castro Alves, avistou
a sogra e mais a mulher e os meninos espremidos na arqui-
bancada apreciando o espetáculo.
Ele era realmente muito forte e poderoso. Um homem
de coragem, escudado nos caracóis ouriçados da nega ma-
luca, avançou com selvagem alegria para o grupo, decidido
a vingar-se:
— Jararaca, boitatá, maracujá de gaveta, vai pra casa,

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urubu, que teu lugar é no lixo — isto acompanhado de ges-
tos obscenos e muitas gargalhadas.
De repente, um silêncio gelado pareceu descer sobre
ele, apagando os acordes do trio elétrico, a infernal zoeira da
batucada, as palavras de ordem de um grupo de sindicalistas
que aproveitavam o desfile para protestar contra a carestia.
Foi quando a bruxa levantou-se — e como parecia enorme
do alto da arquibancada! — e atirou-se irada sobre ele, bran-
dindo a inseparável sombrinha;
— Cachorro, safado, tenha compostura, seu cretino,
respeite a família ou, pelo menos, imbecil, abaixe a máscara!
O mundo girou, desconcertado, num rodopio angus-
tiante de cores e ruídos e, antes de desabar pesadamente no
asfalto, em meio ao alarido, ainda ouviu a vozinha da filha
num soluço apavorado:
— Papai!!!...

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Escorpião

D ifícil é conviver com este veneno. Esta ansiedade, esta


fúria entre o equilíbrio e o caos. De um lado, o convite
à solidão, à nostalgia do claustro; do outro lado, o palco com
suas luzes, suas máscaras indecifráveis, seus coturnos, seus
ritos.
No escuro da noite, um borbulhante faiscar de estrelas
desenhando a cauda sinuosa, bífida como a língua dividida
das serpentes, sobre o leite derramado nos céus, o escorpião
define seus limites.
O penoso navegar em busca da perfeição, pela corren-
te misteriosa das águas, traz uma espécie de sabedoria, uma
consciência das origens que não se encontra na erudição ou
na ciência. Somente o coração que explode em sangue sabe
avaliar a força exata desta chama que se resolve em amor e
ódio e reverbera no muro opaco do inconsciente.
Ah, que longa, cuidadosa jornada! Que impensável
desafio o caminhar entre facas, o dominar de antigos ritos,
de angústias ancestrais que nos empurram para o abismo
das constelações perdidas no fundo das galáxias! O quasar,
as estrelas sombrias com suas bocas vorazes, gargantas es-
curas, redemoinhos sugadores bem no fundo do profundo
universo onde vivemos desterrados.
No inexorável deslizar dos signos, buscamos decifrar
o enigma. Inútil desatino. De que servem as cartas do tarô,

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as mágicas da sibila, os jogos sagrados de Ifá com seus bú-
zios simétricos, se nada nos consola, nada nos aponta as
linhas do destino?
Na palma das mãos, o horóscopo consagrado, o risco
no veludo, desenho que aumenta dia e noite o silencioso
estigma, a peçonha nas veias, o súbito latejar do pulso, o sal
da terra aflorando na boca. Um frio intenso na nuca, um re-
frigério nas faces e, no peito, um ardor que vai do diafragma
ao baixo ventre. Um sorvedouro, um torpor.
Tão dúplice, tão daninho, tão fiel. Tão dividido entre a
casa da paixão e o quadrado perfeito. Entre a fúria de Deus
e a paz dos demônios. Entre a delirante procissão dos em-
briagados e a delicada operação de descida aos infernos. O
resgate do amor por meio da poesia, quando o trânsito do
sol anuncia um novo ciclo.
E a crueldade mínima das coisas. Viver é tão difícil.
Para além do ciclone, sopra a calma. Só areia nos olhos, e
esta lágrima tortuosa a dividir no meio a face. E os rugosos
silêncios, e os exatos minutos. O pudor e o desejo, caminhar
de pantera nos limites da jaula.
Vem de Antares o sinal, a luz esverdeada. No lento
escoar da ampulheta, adivinha-se a divindade que preside
os destinos. Tudo passa. Somos apenas sombras na transpa-
rência do sol. As areias atropelando-se na fina garganta de
vidro parecem indicar que o fim está próximo. Do infinito
escuro dos céus, como um crescente rumor de onda, chega
o tropel dos centauros.

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O arquipelágo e os ventos

N o meio do oceano, as ilhas afloravam como picos emer-


gentes de uma cordilheira submersa. Vistos de cima,
eram apenas cinco ou seis pontos recortados na imensidão
azul, perdidos na superfície das águas, desgarrados vestígios
de um continente imaginário, encoberto pelas ondas.
Em terra firme, sentia-se a presença do sal, um si-
lêncio cortado por gritos de aves marinhas e uma música
constante e nostálgica falando de partidas, de saudades, de
amores dispersos, de longas esperas.
Os que ali nasceram sentem-se condenados, perpe-
tuamente, à diáspora. Ficar seria quase suicídio. A solidão é
o seu limite. Seu porto, o exílio. Desde muito cedo, aprende-
ram a viver da eterna diferença entre ficar e partir, o dilema
constante entre entregar-se à mornidão das tardes, em que
os crepúsculos doem como chagas, ou atirar-se às ondas na
esteira do primeiro navio que ali aportasse.
A essa divisão, cortante como facas, como espelhos
que subitamente estalassem, dividindo as imagens, contra-
põe-se a sólida estrutura de círculos concêntricos: a praia, os
arrecifes, o horizonte.
Em terra, muralhas a desdobrarem-se, como cercas de
pedra, margeando estradas que parecem levar a parte algu-
ma, mas que desembocam, subitamente, em praias desertas,
de areias cinzentas como o solo da lua, banhadas por ondas

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que se quebram, espumando, como um rebanho de carnei-
ros em fúria.
Para lá da arrebentação, no dorso pacificado das águas,
no anil brilhante das grandes vagas onduladas, a silhueta das
“gatas”, selvagens, furiosas, com sua tríplice fileira de dentes
e suas barbatanas estriadas, cortando a superfície do mar
como as velas de um barco.
Suave é o entardecer no porto, hoje deserto de navios.
Em alguma taberna abandonada, um marinheiro cego conta
estórias de um tempo em que as ilhas eram verdes e os navios
não partiam, como agora, inutilmente. Nas águas incrivel-
mente azuis, com reflexos violeta, passavam correntes mari-
nhas que vinham da África carregadas de febre, de sementes
de baobá, de lendas esquecidas e restos de naufrágios.
E, noite e dia, o vento.
Dias após dia, noite após noite, o vento sopra sobre as
ilhas seu hálito de sargaços, morno bafo de tigres agachados
do outro lado do mar, nas costas selvagens de um perdido
horizonte.
E sempre e sempre o vento, trazendo, junto com as
areias de um deserto distante, a limalha de esqueletos bran-
queando nas dunas, rastros de caravanas, o pó de velhas ruí-
nas de templos soterrados.
Vindo de tão longe, o vento, como cavalos doidos
sobre as ondas, simum de todas as Áfricas, corroendo, li-
mando, polindo, colando-se nas paredes, infiltrando-se nas
almas, sempre o vento, sempre o vento leste a soprar, de
um esquecido oriente, carregado de perfumes, de odor de
especiarias e bodum de camelos.

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O vento, perpetuamente a zunir, eternamente a soprar
sem tréguas, sem descanso, sem remorso. Como um zumbi-
do de abelhas invisíveis.
Não existe defesa contra o vento. Os habitantes das
ilhas acostumam-se ao incessante soprar, a boca e os olhos
ressecados do quente sabor de areias em rodopio. À noite,
sonham com prados verdes e regatos de águas cristalinas.
Ao despertar, olham pelas vidraças e contemplam o sol a
nascer entre as areias movediças.
Alguns enlouquecem.

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Reflexões de Elizabeth Taylor ante a
notícia da morte de Richard Burton,
seu quarto (ou quinto) marido

A í estão eles novamente, os repórteres, à minha porta.


Tentando me alcançar com suas pinças, seus estiletes,
sua curiosidade, seus venenos. Mas que culpa tenho eu des-
tes profundos olhos violetas e desta escandalosa beleza? A
infância destruída, a juventude destruída, a saúde destruída,
a vida inteira destruída, espezinhada, atolada em casamentos,
frustrações, diamantes como faróis, safiras gigantescas, esme-
raldas faiscantes, fogos-fátuos brilhando, crestando-me a pele
que o tempo vai lambendo/corroendo com a saliva envene-
nada.
Aí estão eles tentando, novamente, que eu fale. Mas
falar o quê, se ele está morto, e eu sei que foi a única coi-
sa verdadeira nesta vida de enganos? Um dia ele me disse.
Olho no olho ele disse. Bem no fundo azul anil de meus
olhos de estrela: “Elizabeth, és apenas uma mulher como
as outras. Gorda e peituda e com um gênio insuportável”.
Aí eu quebrei a garrafa de seu uísque predileto e lhe dei
dois murros na cara. Ah! mas, agora, que adianta pensar nas
noites sobre o Nilo? A lua da África era mais doce quando
descíamos o rio lentamente e comíamos tâmaras embala-
dos pelo sussurro cadenciado das pás de ouro dos remos.
Eu só amei a ele, não importa o que digam, mas, afinal, é

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preciso respeitar meu oitavo (sétimo, sexto?) marido. Eu o
amei com o melhor de meu ódio, com a fúria mais intensa;
ressacas estúpidas, maus modos, grosseria e o irritante so-
taque quando me falava de amor em sonetos ingleses. Os
absurdos sonetos como aquele que dizia que meus olhos
não tinham o brilho do sol, que meu cabelo era apenas um
arame preto e que não eram de coral meus lábios, nem de
rosas minha face. E que eu andava não como deusa mas
como qualquer pessoa. Aí foi demais. Pedi divórcio pela se-
gunda vez e baixei ao hospital.
Mas como posso esquecer a beleza cruel de sua boca?
Aquele ricto de ironia e o selvagem pulsar do sangue dis-
parado? Como posso apagar o seu hálito de bêbado, seus
acessos de paixão e o aceso fogo de suas cóleras infunda-
das, se ele me fez pagar por todos os pecados que cometi
em minha vida de tantos homens fracos? Nele conheci a
força, o talento, o fundo do poço e o avesso de tudo. Hoje
choro por ti, minha visão de inferno, hoje choro por ti, meu
distante paraíso. Mas há que arrumar os cabelos e refazer a
maquilagem. Afinal, haverá sempre um fotógrafo por perto.

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Crônicas da província

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A casa de Valdete

A casa de Valdete tem varandas. Um telhado de telhas cer-


tinhas, jardinzinho na frente, com direito a brisa fresca
e rede franjada, quintal com cachorro, gato, galinha e até, su-
premo requinte, um casal de marrecos.
Valdete é empregada doméstica há 30 anos e tem mui-
to orgulho de sua profissão. Bem-humorada, riso fácil, a
tudo socorre, em tudo dá jeito. Solidária e participante na
alegria e na tristeza.
Quando casou, há 12 anos, fez um pacto com a pa-
troa. Ficaria morando no trabalho com o marido, até que
construíssem sua própria casa. Que tinha de ser como ela
queria e sonhava, no maior capricho, com cozinha, banhei-
ro, sala grande onde ela pudesse receber os “filhos”, os que
ela criara, pois a natureza não lhe dera os próprios.
E em todos esses anos sua vida concentrou-se neste
sonho, numa história de perseverança e muita garra.
Começou com a compra do terreno. Uma das marcas
de Valdete é a teimosia. Um dia anunciou: “Hoje vou com-
prar um terreno”. De noite, voltou em triunfo, com a pape-
lada. Dera todo o dinheiro que tinha juntado com tanto sacri-
fício como entrada num “loteamento”. Agora, era só pagar as
mensalidades. E ela pagou até o último centavo. Só que o tal
loteamento era uma grossa marmelada. Uma dessas arapucas
armadas para tirar proveito da ingenuidade de pobres coitados.

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O lote onde seria construída a casa dos sonhos fora
vendido a mais três pessoas. Valdete desesperou-se. O pa-
trão, advogado, entrou com uma ação contra a imobiliária que
pertencia a um figurão da época hoje já falecido. A ação está
rolando há mais de 10 anos. O processo sumiu, o processo
reapareceu, até que, quando ninguém mais esperava, foi dada,
finalmente, a sentença. O juiz deu-lhe ganho de causa, a jus-
tiça seria feita. Valdete receberia de volta o terreno que nem
existe mais hoje, que não existiu nunca. Mas o advogado do
falecido, em nome do espólio, recorreu da sentença. Daí va-
mos dar mais uns 10 anos de bandeja. O que prova, mais uma
vez, que é um bom negócio ser desonesto neste país.
Mas, enquanto isso, Valdete se virava. Comprou outro
terreno. Desta vez tudo parecia em ordem, registro em car-
tório, o lote assinalado na planta foi entregue à proprietária,
que tratou de cercá-lo bem depressa e começar a construção.
Seu entusiasmo contagiava todo mundo. Mobilizan-
do amigos, parentes e aderentes, todo fim de semana, toda
folga que tinha, lá estava ela liderando a turma. Cavou o
chão, trabalhou de pedreiro, carregou pedra e tijolo. Duran-
te anos, não fez um passeio, não comprou uma roupa, não
gastou um tostão que não fosse na casa. Queriam lhe dar
um presente? Fosse um saco de cimento, um metro de ladri-
lhos, uma janela. Não podia haver regalo melhor. E todos se
sentiam felizes de vê-la tão contente.
A cada etapa vencida, ela mais se entusiasmava. A
inauguração foi uma beleza. Valdete, cozinheira de mão
cheia, caprichou nas comidas. Auta Rosa e Calasans Neto
que o digam, foram uns dos convidados.

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Final feliz esta história? Pois sim. Um dia, a bomba
estourou. O loteamento era uma fraude. Fora construído
em terreno invadido. O responsável, para variar, escafedeu-
se. Os pobres coitados ludibriados por ele que se lixassem.
A Justiça, como sempre, além de cega, surda e muda. Passa-
ram-se os anos. Quando parecia que as coisas iam ficar por
isso mesmo, um novo pesadelo veio assombrar as noites
de Valdete. A construção do Parque do Abaeté ameaçando
levar a sua casa foi o golpe final.
Desde então, Valdete não come, não dorme, perde
peso a olhos vistos. Pânico na família. Exames. Médicos. O
veredito final: segundo Dr. Hélio Araújo, autoridade no as-
sunto, Valdete tem um úlcera. Que pode ser curada, é claro,
desde que tome os remédios direitinho e siga a dieta: nada
de gorduras, café, cigarros, bebidas e, principalmente, evitar
aborrecimentos e preocupações.
Montado um verdadeiro esquema de pressão tipo “se
não fizer tudo o que o médico mandar não fica boa nun-
ca”, Valdete vem obedecendo às regras cuidadosamente:
não come mais gordura, renunciou ao seu querido “menor-
zinho”, deixou a duras penas o cigarro, bebidas nem pen-
sar, nem a cervejinha de domingo. Agora, preocupações e
aborrecimentos... ah, isso vai ser muito difícil! Só quando
souber, com certeza certíssima, que a sua querida casa não
vai ser demolida.
Ecologistas, ambientalistas, paisagistas, defensores
eméritos do Abaeté que me perdoem, mas um sonho como
o de Valdete vale bem uma duna.

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Águas do São Francisco

D a janela do hotel, a gente avista o rio. Águas mansas


rolando. Águas azuis carregadas de brilhos, límpidas e
constantes em seu eterno e ininterrupto fluir. Do outro lado,
a vizinha cidade de Petrolina, já estado de Pernambuco, com
o casario branco e a matriz que se avoluma espetando no céu
claro a agulha de suas torres.
Águas mansas na tarde. Por um momento, perplexa,
revejo meu destino. Aqui, neste momento de sol claro e bri-
sa macia, plantada neste solo agreste, vendo correr o rio.
Apenas isto: vendo correr o rio. Ao longo de suas margens,
adivinho, mais do que vejo, o debruar de verdes possíveis,
as areias brancas de praias imaginárias. Mais longe, o per-
fil das ilhas carregadas de cajus, enfeitadas de pássaros. E,
mais além das margens, a terra ressequida, o pó vermelho
que um vento crespo e quente levanta em lufadas arden-
tes. A mancha verde das algarobas não consegue disfarçar a
vegetação ressequida, os galhos retorcidos como cabeleiras
emaranhadas, a emboscada dos espinhos, nesta paisagem
devastada que ainda guarda o rastro dos penitentes, o brilho
dos espelhos de Maria Bonita, as pegadas das alpercatas do
capitão Virgulino.
Há uma espécie de violência no ar, como lâminas que
se cruzassem de repente na claridade maior deste céu de
cobalto. Mas há uma doçura também no riso das pessoas,

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águas doces do rio lavando-lhes as feridas, os possíveis can-
saços, as esperanças renovadas, apesar da eterna luta contra
o sol, contra o espinho, contra a areia escaldante e, pior do
que tudo, contra seu próprio irmão, quantas vezes lobo vo-
raz na espreita de seus horizontes.
Mas aqui, desta janela na tarde, revejo meus caminhos,
minhas origens marinhas. Eu, habitante de uma cidade que
se encrava como concha nas encostas salgadas da baía, será
que posso entender, realmente, a viagem deste rio com suas
águas mansas onde dormem confundidos brilhos de nava-
lha e cintilações de estrelas desgarradas? Será que alcança-
rei, com meus olhos de estrangeira ave marinha, com meus
olhos de gaivota afeita ao doce respingar das ondas, o espa-
ço inviolado desta região calcinada, desta paisagem resse-
quida que guarda no seu bojo de basalto cintilações de ouro,
esplendores de topázio?
Olhos secos no espaço, um rapineiro gavião talvez me
desse a chave, a resolução final desta adivinha que tento de-
cifrar. O enigma desta tarde que escorre como as águas que
se perdem na curva do horizonte enquanto, lentamente, o
crepúsculo avermelha o canto esquerdo do céu, tingindo de
escarlate a crista de suas ondas. E o rio, como uma enorme
serpente, mergulha devagar noutro rio mais fundo, e a noite
oleosa desce como um bálsamo e, ao longe, as luzes, pouco
a pouco, começam a cintilar.

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Assombrações e guardas noturnos

M enina de sono difícil, tive a infância pontilhada de noi-


tes de muitos medos. Os adultos tentavam exorcizar
estes fantasmas, vindos sabe-se lá de que profundos sótãos,
de porões perdidos na memória coletiva de uma ancestralida-
de mergulhada nas sombras, embalada em canções que fala-
vam de emboscadas, de bichos escondidos... “xô, xô, Papão,
sai de cima do telhado”... de estranhos bois da cara preta,
ameaçadores, carne de sombra quase a materializar-se nos
cantos mais escuros do quarto, dançando nas chamas das
velas, quando faltava luz, e o mundo subitamente se adensa-
va, pastoso e sufocante como uma maré oleosa espraiando-
se em ondas até os limites da cama. Menina sozinha, sem
irmãos com quem dividir o fardo daquelas noites insones,
entre a apolínea racionalidade dos pais com suas cartesianas
verdades e a dionisíaca imaginação das amas com seu vasto
mundo subterrâneo povoado de assombrações, de duendes,
mula sem cabeça, lobisomens. Muitas vezes, esses dois mun-
dos se misturavam à beira do sobrenatural, e, então, ainda era
maior o conflito. Exemplo: minha mãe não admitia sapatos
com a sola virada para cima. Davam azar. Mas, se na calada
da noite, um cão vadio apunhalava o escuro com um ganido
aterrador, não havia melhor remédio, segundo a minha babá,
que virar os sapatos. Era tiro e queda. Onde estivesse, o bicho
aquietava, mercê de que poderes, de que insondáveis misté-

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rios, isso ninguém explicava. Como ninguém explicava por
que os poderes mágicos do escuro transformavam inofensi-
vos sariguês em visitantes ameaçadores e tímidas borboletas
negras em “bruxas” catalisadoras de presságios funestos.
Nas assombradas noites da minha infância, a cidade
ainda não estava cercada de cimento armado, e, nas tem-
pestades, que a gente chamava temporal, o vento sul so-
prava livremente com seu exército de fúrias, zumbindo en-
tre as frestas de modo aterrador. “Vento sul traz doenças”,
sentenciava meu pai, e, na minha imaginação excitada pelo
medo, o vento sul transformava-se numa entidade terrível,
semeadora de pestes e naufrágios.
Mas nem tudo eram terrores. Das noites da minha in-
fância guardo, também, “memórias de alegria”. Minha avó,
anjo transgressor, subvertendo as regras, os horários, sentada
ao pé da cama, horas a fio, como uma Sheherazade familiar
desfiando as histórias, unindo os fios entre a realidade e o
mito. Xarope Silva Lima e pastilhas de tolu para acalmar a
tosse, a encantada descoberta das pedrinhas de açúcar-cande,
joia que se derretia na boca, diamantes que brilhavam e se
dissolviam em doçura. E, como um contraponto ao cortejo
de inquietações, o apito solto do guarda noturno, testemunha
de que não estávamos sós, perdidos nas selvas de uma noite
interminável. De que, do outro lado do muro, alguém muito
especial se preocupava conosco, percorrendo rua após rua,
afugentando os ladrões, os desocupados e, por que não, os
duendes, enviando-nos regularmente sua mensagem tranqui-
lizadora, que acalmava nossa febre e nos fazia dormir.
Guardião invisível de nossa segurança, o guarda no-

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turno fazia a sua ronda e, em nossos sonhos de criança,
muitas vezes se confundia com a figura do anjo da guarda, o
“zeloso guardador”, “a piedade divina”, e a quem cumpria
a tarefa de nos guardar e amparar neste vale de lágrimas,
livrando-nos de todo mal. Amém.

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Circuito na comunicação

— Mamãe, o que é queu digo?


— Ah, meu bem, não sei, diga o que quiser! Qualquer
coisa.
— Não, mamãe. Que é queu digo?
— Huumm... Eu não sei... Qualquer coisa...
— Mas não é isso, não. Eu estou perguntando o que
é queu digo?
— Ah, não amole! Não vê que estou ocupada? Diga lá
o que quiser e não chateie.
— Mas não é isso. É que eu só queria saber o que é
queu digo?
Assim também já está demais! Que menininha mais
chata, pois não vê que um adulto tem mais o que fazer que
ficar inventando coisas para ela dizer? Essa é muito boa. Eu
aqui, ocupada numa leitura tão séria, e ela com essa mania
boba de ficar interrompendo, de ficar perguntando boba-
gens. Sei lá o que é que ela quer dizer. E agora começando a
chorar, fazendo biquinho! Só pode ser para chamar atenção,
não pode me ver quieta, já vem se exibindo.
— E ainda mais esta, está ficando maluca? Chorando
só porque eu não sei o que é que você quer dizer? Ora bo-
las, diga o que quiser e não me chateie mais. Isso não tem o
menor cabimento.
Agora, a menininha em lágrimas, vermelha, confusa.
Uma revista na mão amassada. E logo, aos soluços:

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Eu só queria saber o que é queu digo, só isso!
— Mas não é mesmo possível, esta menina está louca,
doente. E engula este choro, senão vou lhe dar umas palma-
das, sua impertinente.
Confusão formada, bagunça estabelecida. A menina
aos berros, a revista aberta sacudida nas mãos agoniadas,
a mãe, já definitivamente histérica, apelando para ameaças
de chinelo. A paz da leitura irremediavelmente perturbada,
a tarde perturbada. Nisto, o irmão mais velho se aproxima
curioso diante de tal gritaria.
— Mas, o que é que ela tem?
— Sei lá, tá biruta! tem meia hora que enche o saco
querendo saber o que é que diz. Ela que diga o que quiser,
eu é que não aguento mais uma criança tão boba.
— Mas não é isso não, não é isso — a vozinha sumi-
da, sufocada num choro sentido. — E só queu digo. Eu só
queria saber o que é queu digo...
— Mas como? Deixa ver. Está aí na revista? Mas ora,
mamãe, ela só quer saber o que significa código. E não é
“codígo”, sua boba.

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Do porão à claraboia

C riança criada em apartamento, acostumada a tomar suco


em frente à televisão, não pode entender o significado
de certas palavras mágicas que funcionavam como autênticos
abre-te, sésamo escancarando as portas da fantasia aos mais
insólitos e inesperados tesouros.
Estou falando de coisas quase desaparecidas que fa-
ziam parte do cotidiano de sua época e que, graças às mu-
danças de hábito e às imposições do progresso, estão fada-
das ao esquecimento. Por exemplo, quem, com menos de
trinta anos, morando numa cidade de médio porte, lembra-se
de ter entrado num porão, explorado um sótão, brincado
num verdadeiro quintal, visto uma claraboia?
Na civilização do playground e dos jogos eletrônicos, do
playland e do shopping centers, não há lugar para essas velharias
que um dia fizeram a delícia das crianças que não precisa-
vam do ET, porque fabricavam seus próprios monstrinhos
a partir dos universos paralelos de sua imaginação sempre
povoada de seres estranhos, príncipes, princesas, sereias,
cowboys e bandidos, Robinson e Sexta-feira, personagens da
Terra do Nunca misturados aos habitantes do Sítio do Pica-Pau
Amarelo, uma gostosa combinação, um sincretismo maravi-
lhoso que, enfim, parece ser a essência de nossa raça.
Os porões variavam de tamanho e destinação e, às ve-
zes, a depender das dimensões, podiam servir até de morada

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ou local de trabalho. Quase sempre, porém, serviam mesmo
era de depósito, tornando-se, desse modo, o natural recep-
táculo de trastes armazenados por várias gerações.
Alguns, situados quase abaixo do nível da rua, meio
enterrados no solo, eram guarnecidos com grades de fer-
ro, por onde entrava o ar e alguma réstia de luz. Ali eram
guardados desde móveis até álbuns de retratos, documen-
tos, velhos adereços, chapéus e vestimentas que, através da
poeira, deixavam entrever a herança acumulada em anos de
existência. Não é preciso dizer que também eram verdadei-
ros criatórios de ratos, afugentando com a sua presença os
que se metiam a explorá-los.
Os sótãos, nas casas antigas, às vezes se transformavam
nas deliciosas águas-furtadas ou mansardas, onde —acredita-
va-se — deviam viver os poetas românticos. Nas construções
mais modernas, os sótãos eram apenas aquele vão que ficava
entre o forro, geralmente de laje, e o telhado, depósito de coi-
sas esquecidas que cismava-se em guardar, esperando-se nova
oportunidade de aproveitá-las: brinquedos velhos, restos de
azulejos e ladrilhos, baús de roupas usadas, etc.
Em casa de meus pais, havia uma claraboia no hall su-
perior, construída para iluminar o vão da escada. De noite,
uma lâmpada, constantemente acesa, nos dava uma sen-
sação de conforto e segurança. Atrás daqueles vidros, es-
condia-se o território proibido do sótão, com todos os seus
mistérios, despertando no meu coração de criança o desejo
de explorar aquele lugar que imaginávamos repleto de coi-
sas incríveis e preciosas. Era lá que minha mãe guardava,
todos os anos, os enfeites da árvore de natal, indício seguro
da existência de outras possíveis maravilhas.

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Penetrar num desses misteriosos territórios era ultra-
passar o limite entre o permitido e o imponderável. Algumas
vezes em que nos permitiam ingressar num desses templos
do ignoto, sentíamos uma certa decepção mesclada com boa
dose de alívio. Afinal, se ali não se encontrava o tesouro de
Ali Babá, não havia também fantasmas para assombrar-nos à
noite, quando todos dormiam e as madeiras teimavam em
estalar, deixando-nos com a desagradável sensação de que
havia alguém escondido na casa.
Era, porém, nos quintais que a infância encontrava seu
refúgio e seu encanto mais completo. Se fossem de bom
tamanho, teriam o imprescindível galinheiro, tanques para
patos, poços para armazenar água de molhar o jardim. No
quintal, ciscavam as galinhas, corriam as crianças, preguiça-
vam os cachorros. As árvores serviam de cenário para os
bem montados teatros, os jogos de faz de conta com que se
teciam os momentos disponíveis da meninada.
Verdadeiros livros da natureza com seus formigueiros,
seus besouros e outros infinitos pequenos habitantes, assim
eram os quintais de minha infância, feitos à medida do tem-
po que passava sem pressa, mundo mágico onde a imagina-
ção, correndo solta, traçava limites incomensuráveis.

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Feliz aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Fernando Pessoa

N asci no dia 9 de novembro, 15 minutos antes da meia-noite.


Este detalhe é importante, não só para estabelecer as
linhas do meu mapa astral, mas porque, sendo o aniversário
de minha mãe no dia 10, houve uma grande torcida para que
as datas coincidissem. Farto material para sessões de análi-
se, se eu me dispusesse a isso. todas as vezes que contavam
essa história, eu me sentia meio culpada por não ter coopera-
do para fazer essa vontade à minha mãe. Afinal, não custava
nada ter atrasado só um pouquinho. Em compensação, tive
sempre meu aniversário comemorado em dose dupla.
A comemoração do dia 9 era uma espécie de avant-pre-
mière curtida em família antes da grande comemoração do
dia 10, reunindo parentes e amigos, crianças e adultos, numa
verdadeira festança cuidadosamente programada. Criou-se,
assim, uma espécie de hierarquia natalina. A comemoração
era no dia 10, mas, para que o dia 9 não passasse em bran-
co, repetia-se o ritual de maneira simplificada. Com isso,
eu ganhava tudo em dobro. Minha mãe acreditava que usar
roupas novas no aniversário dava sorte e, por conta disso,
fazia-me um verdadeiro enxoval, desde a roupa de cama,
banho, calcinhas, meias, sapatos, fitas para o cabelo e tudo
o mais com que se pudesse enfeitar uma criança. E tudo

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duplicado. O que usava no dia 9, mais simples: o vestidinho,
geralmente costurado por ela mesma, a roupa interna de
tricoline ou cambraia de algodão. Para o dia 10, lençóis de
linho com bordados, encomendados às freiras, sapatos de
verniz ou pelica branca, com meias de tafetá realçando o
vestido, verdadeiras obras-primas, feitas de preguinhas de
palito, perfilados, rendinhas e bordados, no ateliê de tia Lise,
famosa pela delicadeza e esmero de seus trabalhos. Ainda
hoje, guardo três desses vestidos, como relíquias do passa-
do. Para coroar tudo, abria-se um frasco novo de English
Lavander da Yardley, e eis a menina pronta para receber os
convidados.
Um capítulo à parte, era a mesa de doces. Olho-de-so-
gra, mãe-benta, bom-bocado, brigadeiro, casadinho, ouriço,
tudo feito em casa, sem falar do bolo de aniversário e dos
doces e salgados mais finos, encomendados às Geiger ou às
Olinto, doceiras afamadas que conferiam a marca de quali-
dade da festa.
Quinze dias antes da data, minha avó mudava-se lá
para casa com todo um arsenal de forminhas e caixas de pa-
pelão cheias de papel de seda e celofane, frisados com lápis,
e frascos de caramelos enrolados em papel impermeável de
várias cores. Esses caramelos, envoltos em papel de seda
picotado, eram distribuídos à saída da festa juntamente com
as “lembranças”, cuja confecção demorava meses e eram
um verdadeiro teste de imaginação. Aniversário sem “lem-
branças” não estava completo.
Mas bom mesmo era o dia seguinte. Acordar num
quarto cheio de presentes, papel rasgado por todos os lados,

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numa bagunça deliciosa. Depois, os mais íntimos chegavam
para o “enterro dos ossos”: os adultos entretidos com os
comentários da festa, e as crianças disputando o privilégio
de brincar com os brinquedos novos.
Hoje vejo aquele tempo como através de uma vidraça
estilhaçada. Como reconhecer em mim mesma aquela meni-
na de tranças e vestido bordado? Embaçada pelas lágrimas
e pelas névoas do passado, vejo a imagem da casa. Cada
parede demolida, cada vão de escada que não mais existe,
cada mistério imaginado em insondáveis claraboias. E as
begônias do jardim e os caládios, como enormes corações
sangrentos, as hortênsias que mudavam de cor conforme a
terra em que eram plantadas, numa mágica permanente.
Mítico território, esse longínquo país da minha infân-
cia, suspenso da memória como um postal na parede. Para
ele uma parte de mim regressa sempre de si mesma, e, como
um náufrago, diariamente recolhe seus pedaços.

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Fragmentos de um retrato de mulher
Para Bisa Junqueira Ayres, in memoriam.

É noite e estou cansada. Os fogos do verão se apagaram


tão cedo! É inverno e chove. Entre nós, duas xícaras va-
zias testemunham, no silêncio subitamente instalado, nesse
longínquo agosto, nessa tarde de chuva fina e frio, no Rio
de Janeiro, um momento especial em que a amizade perma-
nece cristalizada como o sabor incomparável de bolinhos
açucarados.
Em torno, a penumbra e a dor de existir, o coração
sangrando, e o corpo como antena captando o inefável, de-
sejando o impossível. A perfeição, o detalhe que faz a dife-
rença.
Talvez devesse falar do teu vestido branco. Do baile
de formatura e da sensualidade um tanto afoita com que
rodopiavas na sala. Tinhas o dom da graça que prescinde da
beleza. Glamour, eis a palavra. Mesmo muito tempo depois,
quando sobre nós já rolara boa parte das infinitas águas do
tempo, conservavas intacta a elegância dos gestos no alinhar
dos talheres, na fina sabedoria de repartir a mesa e transfor-
mar em comunhão qualquer presença, qualquer jantar de
amigos. E estes nunca faltaram. Tua casa era um porto a
qualquer nau perdida.
Talvez não fosse branco o vestido. Numa varanda so-
bre o mar, deslizavas entre espelhos e samambaias verdes

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que serviam de cenário. O vestido em fina renda preta e
tafetá cor-de-rosa. Talvez naquela festa já se desenhasse o
mapa de teu corajoso itinerário. Talvez fosse o começo.
Também vestida de rosa debruçaste sobre o berço onde
dormia o menino. O filho que mostrava nos traços o mesmo
rosto da mãe, a mesma marca de uma máscara que repetia o
avô e outros perdidos ancestrais na linhagem do passado.
De quantas peles se faz uma mulher? De quantos mi-
núsculos fragmentos, de quantos potes de creme, de quan-
tas unhas polidas, de quantos cortes de cabelo? De quantas
cascas que se arranca aos poucos, lentamente, para que sur-
ja, do fundo de si mesma, essa presença infinitamente cruel,
misteriosa e inocente?
De quantos bordados, camisolas do dia, sandálias pra-
teadas, receitas de bolo e esperas e esperas e esperas, saben-
do que sempre e sempre será sempre tão tarde!
Da igrejinha de Monte Serrat olhávamos a cidade. Ha-
bitar Salvador era, então, para nós uma aventura, um ritual
de descobertas. A manhã estava azul como um vaso da Chi-
na. Subitamente, um grande barco inchou as velas e correu
sobre o mar como um animal apressado. Gritando de pra-
zer, espreitávamos o infinito como pássaros na gaiola. Na
gaiola que um dia abriríamos finalmente, as asas despedaça-
das, os ombros lacerados, na agonia do voo.
Assim também em Mar Grande, nas praias da Penha,
então magnificamente desertas, ou contemplando as linhas
puras de Santo Antônio dos Velasquez. Na ilha, em longas
caminhadas, invocávamos a poesia, o amor, a liberdade e o
peso real de uma palavra justa.

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Tentar, tentar sempre, tentar o fim do mundo. Encon-
trar a alegria no trabalho bem feito, no jornal, no teatro ou,
simplesmente, no encanto da casa, dos filhos que amáva-
mos e que esperávamos crescer com a sofreguidão do artista
que contempla sua obra.
Navegar no oceano azul-turquesa das mortalhas que
invadiam a avenida, como um equilibrista na torre de um
navio, a contemplar as vagas onde o último afogado ainda
dormia envolto em algas, encharcado de vinho. E o carnaval
era apenas mais uma forma de buscar as respostas.
Havia fogos no dia em que te foste. Havia festa e ale-
gria, e o povo dançava. A voz de Pedrinho ao telefone me
trouxe a notícia, e um silêncio fundo calou minha mágoa.
Como uma girândola a apagar-se, vi tua imagem rodopiar
entre as fagulhas e o pranto.

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História de um poema

A o saber da morte do Che Guevara, às 4h30min da tar-


de, num bar na Baixa dos Sapateiros, o poeta Carlos
Anísio Melhor, tomado pela emoção da notícia, rabiscou um
poema numa folha de papel almaço. Este ato, aparentemente
tão simples, como a pedrinha atirada num lago, propagou-
se em ondas concêntricas, ampliou-se numa vaga, virou um
maremoto que sacudiu os alicerces da velha cidade da Bahia,
levando de roldão carreiras políticas e planos culturais impor-
tantes.
Corria o ano de 1968, e era governador do estado o
Dr. Luiz Viana Filho que, fiel à sua vocação de homem de
letras, tentava dinamizar a produção cultural por meio de
iniciativas como a criação do Departamento da Educação
Superior e da Cultura (DESC), embrião da futura Fundação
Cultural do Estado da Bahia, dirigido pelo historiador Luís
Henrique Dias Tavares e responsável por alguns projetos
que causaram uma certa ingênua euforia nos jovens inte-
lectuais da época, que imaginavam poder driblar a pesada
censura que impedia a livre manifestação do pensamento,
atrofiando as consciências e exercendo uma rigorosa fiscali-
zação nos meios de comunicação.
O poema de Anísio, na verdade uma peça lírica, toca-
da de elegíaca ternura pelo guerrilheiro assassinado, foi sau-
dado com entusiasmo pelos companheiros e acabou sendo

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publicado no segundo número da revista Porto de Todos os
Santos, que era editada pelo DESC, sob a supervisão edi-
torial do também poeta Humberto Fialho Guedes. Foi o
início da pororoca, engrossada por uma vibrante entrevista
do jornalista e escritor Ariovaldo Matos e, se não me falha
a memória, pelos acontecimentos que culminaram com o
fechamento da Bienal de Artes Plásticas da Bahia.
Cabeças rolaram, e teve início o festival de caça às
bruxas. O secretário da Educação e Cultura, Luiz Augusto
Fraga Navarro de Britto, foi forçado a exonerar-se e exilou-
se em Paris. O diretor do DESC, professor Luís Henrique
Dias Tavares, sofreu os maiores constrangimentos, chegan-
do mesmo a ser preso. O poeta Humberto Fialho Guedes
achou melhor passar algum tempo em Lisboa até que os
ânimos serenassem. Artistas e intelectuais, colocados sob
suspeição, foram detidos. A revista Porto de Todos os Santos
teve a edição apreendida em nome da segurança nacional,
juntamente com outras publicações do DESC consideradas
subversivas. O poeta Carlos Anísio Melhor, autor do poema
causador de tanta celeuma, foi detido, recolhido posterior-
mente a um sanatório, iniciando um longo calvário.
Ernesto Che Guevara desceu a cordilheira da história
e embrenhou-se no fantástico país dos mitos. Virou canção,
virou lenda, virou pôster na parede. Eternamente jovem,
eternamente belo, com a barba rebelde a emoldurar-lhe o
rosto sob a boina, onde brilha, solitária, uma estrela. E sem
perder a ternura. Jamais.

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América Nuestra*
Quien hubiera dicho
Guevara murió?
En aquella tarde de honesto plomo
Guevara murió?
Guevara murió?
Botellas de lágrimas
Lienas.
Guevara
Indagaban las muñecas de
Las niñas tristes.
Los ayres espantados
Guevara
Y las fuentes en si mismas se quedaban.
Guevara
Mi corazón de cenizas hecho
Ay Guevara:
Guevara quizas murió
Pero ya oigo la sangre
Delinea
Corazón de América
Nuestra.

* Poema de Carlos Anísio Melhor, segundo versão publicada na revista Porto


de Todos os Santos, Salvador, n. 2, 1968.

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Lembranças de um poeta

A dvertida a tempo pelo excelente caderno de cultura


deste jornal, tão bem editado pelo poeta Florisvaldo
Mattos, sobre os dez anos de morte de Carlos Anísio Melhor
e, ainda sob o impacto dos depoimentos de seus vários ami-
gos e admiradores, e pelo sempre renovado prazer de ler os
seus poemas, resolvi prestar também a minha homenagem
com o relato de meu encontro com o poeta.
Em 1980, quando trabalhava na Fundação Cultural do
Estado da Bahia, recebi de Zilah Azevedo, que chefiava, en-
tão, o setor de Difusão Cultural, a incumbência de organizar
e avaliar uma série de documentos que se amontoavam num
arquivo, sem nenhuma indicação de procedência. A Funda-
ção acabava de mudar-se do Solar do Unhão para a Bibliote-
ca dos Barris, e muitas coisas tinham ficado dispersas entre
os vários setores.
Eram papéis velhos, restos de projetos, alguns origi-
nais de concurso, nada que tivesse particular interesse. De
repente, encontrei uma pasta e, dentro dela, uma grande
quantidade de poemas, já meio desbotados, alguns quase
ilegíveis, datilografados em papel bastante danificado e que
mereceram minha atenção pela beleza e qualidade dos ver-
sos. À medida em que eu lia aqueles originais, vinha-me a
certeza de que já os conhecia de alguma parte. De repente,
meu coração bateu forte: aqueles eram os originais de Car-

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los Anísio! Eu simplesmente encontrara, em meio a velhos
papéis sem nenhuma importância, os originais de Carlos
Anísio Melhor que julgávamos perdidos para sempre.
Como tinham ido parar na Fundação Cultural? Zilah
não tinha a menor ideia. já deviam estar ali há muito tempo,
desde outras administrações. Anísio era uma legenda viva
para a minha geração. Encarnava bastante bem a figura ro-
manesca do poeta maldito, entre iluminado e revoltado, anjo
transgressor a afogar no álcool a grande mágoa de viver.
Naquela época, eu ainda não o conhecia pessoalmen-
te, nem sabia onde se encontrava desde que, ao publicar
um poema em homenagem a Che Guevara, na revista Porto
de Todos os Santos, editada pelo DESC, incorrera na ira dos
militares e fora trancafiado no Juliano Moreira, lá iniciando
sua via-crúcis.
Os poemas precisavam ser autenticados pelo poeta,
para que procedêssemos à publicação. E o poeta, onde es-
tava o poeta depois de tantos anos? Rui Espinheira Filho,
que me deu a pista e ofereceu-se para levar os poemas para
que ele os reconhecesse, aproveitando que estava numa boa
fase, relatou-me a emoção de Anísio ao reencontrar origi-
nais que julgava perdidos. Iniciamos, então, o processo de
preparar a edição do livro por tanto tempo esperado. Inicia-
mos, também, uma bela amizade, mas sobre isto falaremos
no próximo domingo.

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Lembranças de um poeta (II)

A notícia de que os poemas de Carlos Anísio Melhor


seriam publicados pela Fundação Cultural do Estado
causou grande alegria a seus amigos, alegria que se ampliava
ao saber que o poeta, recuperado e bem de saúde, estava
acompanhando, entusiasmado, as providências para a pró-
xima edição.
Enfim, depois de tantos anos, conheci pessoalmente
Carlos Anísio, ou Anysius, como gostava de ser chamado, num
encontro marcado pelo poeta Ruy Espinheira Filho na sala
de Zilah Azevedo, na Fundação Cultural. Não me lembro de
quem mais estava presente naquela ocasião, mas é quase certo
que os escritores que trabalhavam na casa, como Guido Guer-
ra, Edilene Matos e Claudius Portugal, tivessem ido receber o
tão esperado visitante. Os olhos de minha fantasia custaram a
reconhecer naquele senhor baixinho e um pouco corpulento,
de fartos bigodes e lentes grossas sobre os olhos míopes, o anjo
vingador da poesia, Anysius, o poeta vibrante das Jogralescas.
Se o sofrimento de tantos anos tinha quebrado as asas do anjo,
tinha apagado o archote revolucionário do jovem Prometeu,
em compensação, tinha lhe colocado na fronte o sinal dos ilu-
minados, dos santos, dos purificados pela dor. Ouso dizer que
o que tinha diante de mim era um homem santificado.
Cercava-o uma aura de humildade, de bondade, de re-
signação e, por incrível que possa parecer, de alegria; uma

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alegria superior, que vinha de dentro e se espalhava conta-
giando a todos.
A publicação de Canto agônico foi um empreendimento
que reuniu vários esforços, porque, mesmo com a aprovação
entusiástica de Geraldo Machado, então diretor da Fundação
Cultural, e do apoio de Zilah Azevedo, diretora de Difusão
Cultural, os caminhos da burocracia pareciam-nos às vezes in-
transponíveis. Havia uma grande torcida, com apoio, inclusive,
da imprensa, principalmente da coluna de Fred Souza Castro,
um dos maiores amigos de Anísio. e, enfim, o Canto agônico foi
publicado em 1982, pela Editora Civilização Brasileira, acom-
panhado de um erudito estudo crítico de João Carlos Teixeira
Gomes, intitulado “A poesia que busca a essência humana”.
A publicação desse livro representou para Anísio um
verdadeiro renascimento. Daí por diante, passou a frequen-
tar quase que diariamente a Fundação Cultural, até que, já
na gestão Olívia Barradas, foi reintegrado às suas funções
na Biblioteca Central, onde passou a trabalhar na seção de
Obras Raras e, posteriormente, na diretoria de Cordel, jun-
to ao Departamento de Literatura. Para o lançamento de
Canto agônico veio do Rio de Janeiro Maria Cesário Alvim,
musa, companheira, guardiã e mãe de sua filha, que também
esteve presente, para grande emoção do autor.
Desse modo, durante alguns anos convivi com Carlos
Anísio Melhor nos corredores, salas e jardins da Biblioteca
Central dos Barris, onde a Fundação se encontrava sediada.
Uma convivência enriquecedora, uma amizade de que só
guardo saudades.
Em 1986, deixei a Fundação Cultural para dirigir a Funda-
ção Casa de Jorge Amado, e nossos encontros foram rareando

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cada vez mais. Quando soube, por Edilene Matos, que Anísio,
muito doente, estava hospitalizado, já em fase terminal, não
tive coragem de visitá-lo. Vivendo, naquela ocasião, o drama
da enfermidade de uma pessoa da família, não tive forças para
enfrentar os olhos tristes de um homem que, depois de passar
por intensos sofrimentos nesta vida, partia para a longa via-
gem, pobre com Jó, mas com o coração cheio de poesia, de
ternura e compaixão pelo seu semelhante.
Em 1998, foi publicado Espelho das horas, livro póstumo
de Carlos Anísio, organizado por Maria Cesário Alvim, Sylvia
Maria Trusen e Paulo Nazareth, com prefácio de Edilene Ma-
tos, pela Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, da Secretaria
de Cultura e Turismo, Fundação Cultural do Estado da Bahia.
Os poemas aqui publicados pertencem a este livro.
Poema
As coisas são tão simples no quintal
papoulas dormem no coração da noite
A bala em silêncio
aguarda
a hora exata

Ifigênia
Como touros
pelo mar/cortando
não me recordo de qualquer
vida interior
Só vejo a nau
pousada
linear
no horizonte

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Lindoca

T inha eu uns três anos, quando ela foi trabalhar lá em casa.


Lembro perfeitamente o momento da chegada. O vulto
magro e um tanto curvado de uma senhora que falava com
minha mãe. Falavam sobre mim porque, de vez em quando,
olhavam para o meu lado. Eu já sabia que aquela seria a minha
nova babá e fiquei meio na defensiva. Não me recordo abso-
lutamente de outras babás anteriores. Sei que tive algumas,
uma das quais se chamava Joana e perpetuou-se em minha
vida em uma foto muito nítida que tiramos na praia. Era uma
mulher bonita, de pele negra e lisa, cabelos crespos presos à
nuca. Tinha traços regulares e um corpo forte e bem feito. De
sua passagem em minha vida, nada restou além desse retrato.
Mas, eu tinha, então, três anos e uma babá nova para
me cuidar. Trazia com ela as melhores referências e uma
grande mala de madeira amarela onde guardava seus per-
tences, tudo muito limpo e bem arrumado. No decorrer de
nossa convivência, muitas vezes condescendia em abrir a
mala e mostrar-me seus tesouros. Era como um prêmio.
Chamava-se Arlinda. Arlinda de Araújo Góes. Nasci-
da em Santo Amaro da Purificação, afirmava aparentar-se
com pessoas importantes. Dizia ter 40 anos e, apesar do
nome, era feíssima. O que não impedia que eu, na minha
inocência de criança, a tratasse de Lindoca.
Hoje, ao recordar-lhe a figura, reconheço que real-

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mente nada tinha de bonita. Grande e ossuda, as costas
arqueadas, pés grandes com joanetes salientes, mãos com
dedos de falanges muito grossas. De cor branca amarelada,
com cabelos fartos e quase duros nascendo de uma testa de-
masiadamente estreita, sobrancelhas rebeldes emoldurando
olhos miúdos, apertados pela miopia, nariz deformado em
consequência de uma espinha carnal que lhe achatara uma
das narinas, boca de lábios um tanto largos no rosto marca-
do por inúmeras rugas.
Era, sem dúvida, muito feia, mas não inspirava an-
tipatia ou repulsa. Pelo contrário, sua presença transmitia
uma sensação de dignidade e compostura. Extremamente
respeitadora, a ponto de tratar os superiores, cerimoniosa-
mente, por “vosmincê”, não era, no entanto, nem um pouco
subserviente. De forte personalidade, apossou-se da minha
pessoa com um carinho e dedicação verdadeiramente as-
sombrosos.
Tomou conta de mim, de minhas roupas, brinquedos,
horários. Exercendo um verdadeiro poder paralelo, inteli-
gentemente evitava o confronto com minha mãe e, muitas
vezes, vencia pelo cansaço e determinação.
Quando eu ficava doente, além da autoridade médica
de meu pai, ela montava um receituário alternativo com re-
sultados amplamente reconhecidos. Devo-lhe as pastilhas
de tolu, o xarope Silva Lima, o xarope caseiro de agrião para
bronquites renitentes, a pomada de Mandragore — que lhe
salvara a vida por ocasião da famosa espinha carnal — e a
Maravilha Curativa, panaceia para todos os males. Devo-lhe
também longas sessões de benzedura com folhas para tirar

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o olhado e os chás de erva-cidreira. Da cumplicidade com
minha avó paterna surgiu a banana-de-são-tomé, cozida em
calda de açúcar e mel de abelha, imbatível para limpar o pei-
to e acalmar a tosse.
Suas relações com meus familiares, amigos de meus
pais, etc., variavam com o grau de simpatia e a maneira
como se portassem comigo. Quanto mais me agradassem e
quanto mais mantivessem distância, melhor. Na verdade, a
grande ameaça ao seu território era minha avó materna. As
duas disputavam a minha pequena pessoa numa mal dissi-
mulada e interminável guerra fria.
Não era muito de contar histórias. Apenas algumas pro-
ezas de Pedro Malazartes e o caso da moça que se casou com
o Diabo porque tinha os dentes de ouro. Gostava muito dos
folhetos de Cuíca de Santo Amaro, que comprava na feira
e lia para mim escondido de meu pai. A maior parte da sua
fabulação era construída no real. Nos pequenos episódios
do cotidiano, da sua experiência vivida. Assim, ensinou-me a
observar as coisas à minha volta. Não sendo particularmen-
te religiosa, gostava de levar-me às igrejas para ver presépios
na época de Natal, para tomar as cinzas na Quarta-Feira da
Quaresma, buscar a palma benta no Domingo de Ramos.
Também fazíamos longos passeios pelas hortas da vizinhança
para comprar hortênsias e rosas-fausto-cardoso, as suas pre-
diletas. Sob o pretexto de procurar meu cachorro fujão, pe-
rambulávamos pelo Chame-Chame, Roça da Sabina e parte
do Jardim Brasil, lugares, àquele tempo, ainda não invadidos
pela desenfreada especulação imobiliária, percorrendo as
ruelas de barro com suas casinhas humildes. Desse modo,

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aprendi a conhecer um pouco a vida das pessoas pobres e
a respeitá-las.
Assim, durante nove anos, tive-a a meu lado, metade
dragão, metade anjo da guarda, e ai de quem ousasse me to-
car com a ponta do dedo. Mas, à medida que eu crescia e me
tornava independente, sua relação com minha mãe mais e
mais se azedava. Eu sabia que tudo aquilo tinha a ver comi-
go, mas, no dia do confronto final, me omiti covardemente.
Não recordo a despedida. Acredito que tenha sido
amigável, pois continuou sendo bem recebida em nossa
casa. Quando eu me casei, passou a tratar-me por “vosmin-
cê”, em atenção ao meu novo estado. Vinha me visitar quase
toda semana. Desejei que voltasse para cuidar de meu filho.
Sabiamente se escusou, com delicadeza e muita diplomacia.
Sua intuição lhe dizia que os caminhos da vida não têm vol-
ta e que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.

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Maneiras de gostar

O amigo me confessou, satisfeito, estar gostando muito


de minha nova atividade de cronista.
Sabe como é, poesia nem sempre a gente saca. É pre-
ciso estar por dentro, conhecer os macetes. Agora, a crônica
é outra coisa, é mais fácil. Principalmente, aquelas em que
você fala de coisas que a gente conhece bem.
Meio encabulada, fico sem entender direito. Meio di-
vidida. Devo receber como elogio ou... De repente, me dou
conta de que o amigo nunca perdeu lançamento meu. Es-
tava lá sempre, rente e quente, livrinho na mão, o primeiro
nos autógrafos. E não é que agora me vem com esta: “Coi-
sas que a gente conhece bem”. Batatas!
Olho o amigo de frente. Nada de errado com ele. Está
sendo apenas sincero. Acho até que fez a confissão e se sen-
tiu aliviado. Agora está gostando, e isto, de certo modo, nos
aproxima. Pisamos, desta vez, um território conhecido, es-
pécie de pasto comum, não as desoladas charnecas, não a
terrível passagem, o vasto e incomensurável país, Inferno e
Paraíso, onde, “tirante Laura e talvez Beatriz”, bem poucos
se aventuram.
Mas será que os admiradores da poesia formam um
grupo assim tão fechado? Será que o espaço onde ela me-
dra, flor nascida na pedra, é assim tão rarefeito? A expe-

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riência de mais de 20 anos de ofício me ensinou que, ou
se vive a poesia intensamente, apaixonadamente, ou, como
a imensa maioria, simplesmente se ignora, quando não se
detesta, esta que é talvez a mais pura e intensa forma de
comunicação entre os homens.
Mas não, não pode ser. É tudo uma questão de ponto
de vista, uma visão enviesada. É isso aí. Sinto muito, meu
caro amigo, mas estamos em desacordo. O que salva, na ver-
dade, estas mal traçadas linhas não são as coisas que a gente
conhece bem. Estas estão aí, ninguém precisa falar, são por
demais evidentes. O que salva, o que justifica é, talvez, ape-
nas o que não tenha sido dito, o que ficou nas entrelinhas;
foi a sombra de Orfeu chorando sua Eurídice, ou, talvez,
um teto onde as pombas habitam. Foi o que sobrou da ter-
rível visão do Anjo, a música indefinida que tocamos sem
cessar em nossa flauta de vértebras; uma faca só lâmina,
apenas uma pedra no meio do caminho ou a última pomba
despertada aos gritos da última flor do Lácio, inculta a bela.
Sinto muito, mesmo, querido amigo. Mas nem sempre
vou falar de coisas simples, coisas que a gente entende direi-
tinho e sem esforço. Também tenho direito — sabe? — de
administrar minha fantasia. De, de vez em quando, virar o
mundo pelo avesso. Só um pouquinho, pode crer, nada de
tão perigoso, mas não me peça, por favor, para domar a po-
esia, nem tente, nem por um momento, que eu esqueça os
insondáveis mistérios, as absurdas cavernas de onde surgem
as palavras cristalizadas em poemas que atravessem a carne,
cravos sangrentos nesta cruz de papel que nos redime ou
condena.

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O amigo que me perdoe, mas tem dias em que a cuca
dispara, e até o bife com batatas fritas parece ninho de ser-
pentes numa gravura de Bosch. E, então, não tem jeito. É ir
fundo e escrever um poema. Se o amigo entender e gostar,
aí é outra conversa.

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Meu cavalo por um reino

N esta semana que passou tive o prazer de entrevistar o


poeta Ruy Espinheira Filho que está de livro novo na
praça com o título, muito bonito por sinal, de A morte secreta
e poesia anterior. São 18 anos de boa poesia, de coerência ideo-
lógica e assídua persistência no caminho escolhido. Ainda me
lembro do primeiro livrinho de Ruy, tão fininho, quase um
cordel, onde já se delineava a vigorosa estrutura de sua poesia.
Na entrevista, o poeta falou das dificuldades para pagar tão
modesta edição. E, de repente, me veio uma lembrança quase
lírica de meus distantes começos e recordei, entre divertida e
emocionada, a história de meu primeiro livro que, na verda-
de, também não era livro mas uma “plaqueta” como, então,
pernosticamente o chamávamos. Ora, se deu que eu tinha
chegado, por vias e artes de Sônia Coutinho, aos remanescen-
tes do grupo Mapa e daí, timidamente, começava a aparecer
nos suplementos literários e nas revistas da época. Foi então
que Calasans Neto me convidou para publicar um livro pelas
Edições Macunaíma que ele dirigia juntamente com Glauber
Rocha, Fernando da Rocha Peres e Paulo Gil Soares. Fiquei
deslumbrada. No momento, era mais importante para mim
que publicar, hoje, pela Gallimard. Não conversei; reuni os
poemas, Calá ilustrou e mandamos brasa. Iniciada a composi-
ção nas Artes Gráficas, de Hélio Santana, ainda na rua Carlos
Gomes, nos demos conta, de repente, de um doloroso im-

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passe. O livro custaria 75 mil cruzeiros (antigos). Eu só tinha
25, e os editores ainda eram mais duros. Pedir à família nem
pensar. Eu era do tipo orgulhoso, e o pessoal não acreditava
muito na minha nova e promissora carreira. Afinal, já tinha
sido pintora, fotógrafa, tentara bordados, tapeçaria, ikebana e
nada dera certo. Só a tralha acumulada, a última das quais um
violão encostado no canto. Mas tinha que haver um jeito. Os
25 eu dera de entrada, e o resto seria contra entrega. Quando
Calasans, todo contente, me disse que o livro estava quase
pronto, fiquei gelada, mas não perdi a classe. Fiz assim um ar
meio indiferente, como se fosse a coisa mais natural do mun-
do, e fui embora de cabeça quente. Já estava quase resolvida a
deixar o orgulho de lado e botar a boca no mundo, pedindo
socorro em casa, quando me veio a luminosa ideia. Eu era
muito nova, mas já estava casada, e meu sogro acabara de
comprar uma fazenda, sonho acalentado a vida inteira. Como
eu gostava muito de montar, e ele tinha uma especial predile-
ção por mim (política à parte pois o velho era UDN e eu era
do contra), me dera um cavalo lindo, lindo. O bicho parecia
uma pintura; pampa, branco e castanho, que nem cavalo de
índio de filme americano, com uma crina sedosa, mais fina e
tratada que o cabelo da dona. Eu sabia que um irmão de meu
pai tinha o olho no cavalo, e daí não conversei; falei com o tio
e vendi o cavalo. Meu livro estava salvo.
Anos depois, numa peça famosa, A tragédia do Rei Ricardo
III, de Willian Shakespeare, deparei com a seguinte frase: “Um
cavalo, um cavalo, dou meu reino por um cavalo” e senti a rela-
tividade de todas as coisas. Ele precisava de um cavalo para sal-
var a vida e por ele daria o reino. Eu fizera um percurso inverso
e, pelo preço de um cavalo, comprara um reino sem limites.

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Natal

P assou um vulto pela minha janela ainda há pouco. Você


pode até não acreditar, mas eu juro que vi. Foi uma visão
muito rápida e fugidia, alguma coisa assim como um camun-
dongo correndo de repente entre um móvel e outro, eclipsan-
do-se embaixo do sofá, sem deixar rastros. Uma coisa assim,
meio irreal, como um camundongo numa casa tão nova e
limpa: ele está lá, a gente sabe que está, no entanto, é tão im-
possível quanto um dinossauro pastando no jardim.
Foi assim que ele passou, meio furtivo. Só deu para ver
mesmo o clarão vermelho de sua roupa brilhando sob a luz
do poste do outro lado da rua. Sei que era ele, pois a figura
é bem familiar. Quem, neste tempo quente, usaria aquelas
roupas incríveis e sairia por aí arrastando aquelas botas?
Sempre imaginei que aparecesse um dia, triunfal, em seu tre-
nó dourado, ao galope simétrico de suas renas amestradas,
esparzindo neve e perfume ao som de sinetinhas de prata.
Mas, não, desta vez me pareceu apenas um velhinho cansa-
do, desiludido de tantas histórias tristes, de tantas cobranças
sobre crianças pobres, sobre sapatinhos vazios. Tive pena
dele. Imagino como não deve se sentir desajustado entre
coisas que não conhece, no meio desta população apressada
e suarenta a acotovelar-se nas lojas, alto-falantes aos berros
com as músicas mais idiotas, e aquela floresta insossa de
pinheiros plásticos.

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Pensando bem, não tinham nada que trazê-lo pra cá,
tão longe de sua terra, de seus vastos campos nevados, onde
deslizam os trenós nas noites frias, entre risos e música suave
de violinos. Lá não pesaria tanto o feltro de suas roupas en-
feitadas de arminho, e as longas barbas brancas aqueceriam
seu velho corpo enrijecido pelas lufadas fortes dos ventos
de inverno. Lá encontraria chaminés decentes para esgueirar
o corpo à noite, depois que todos dormissem, e ele chegasse
de manso deixando nas velhas meias, penduradas nos galhos
do pinheiro recém-colhido, ainda recendendo a seiva, um pre-
sente feito mais de amor do que de compras mal-humoradas,
em balcões de lojas entupidas de pessoas aflitas, pessoas can-
sadas do difícil equilíbrio das finanças, nesse compra-compra
desesperado em que transformaram o Natal, festa outrora tão
pacífica, tão carregada de significados.
A ceia de Natal, com seu séquito de doces possíveis,
de vinhos degustados com calma, de amigos se encontrando
sem transtorno, com o tempo todo pela frente para recordar
velhos natais tranquilos, tão tranquilos como aquele em que
degustavam tâmaras e rabanadas, numa festa fabricada de
infância e frutas secas.
Natal da mesa do rico, fartíssima, da mesa do pobre,
composta. Um espírito suave no ar, na presença da lapinha,
a armação do presépio onde dormia o Menino que veio para
salvar o mundo e, com fé em Deus, ainda acabaria salvando.
Onde está aquele mundo feito da espera excitante da
missa do galo e do gosto adocicado das castanhas portu-
guesas? Que fizeram do Natal em que tudo era possível e
bonito; em que havia uma criança esperando confiante e

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bolinhas de aljôfar e velas coloridas, numa mágica visão de
um futuro paraíso? Que fizeram do Natal e da criança?
Passou um vulto vermelho na janela. Eu juro que vi.
Talvez ninguém acredite, mas, no fundo de minha perplexi-
dade, sinto que agora já não tem mais importância.

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O caso das baleias

D e vez em quando, aparece uma baleia nas águas azuis


desta nossa baía. A de agora caminha em círculos e
carrega um filhote. Carregar não é bem o termo, pois baleia
não tem braços. Melhor seria dizer arrastar, mas, ainda assim,
precisaria de um vínculo mais concreto. Não, o mais certo
seria dizer: a baleia segue e o filhote acompanha a mamãe no
rastro de espuma, guiado pelo instinto, pois sabe que o amor
de mãe pode ser feroz e, na vastidão do mar, na disputa cruel
de devorando e devorado, um filhote tem de ter proteção e
isto ele terá, sem dúvida, venha o que vier, custe o que custar.
Também não fui muito precisa quando disse que a ba-
leia caminha. Ora, onde já se viu? Baleia não caminha, pois
também não tem pernas. Ou será que pode-se dizer que ba-
leia caminha usando-se da tal licença poética? Não se diz os
caminhos da alma? Alma não tem pernas, ao que eu saiba.
Mas deixa pra lá. Se escrevi esses argumentos mal ali-
nhavados só para mostrar como, às vezes, é difícil botar em
letra de forma o pensamento muitas vezes livre e indiscipli-
nado como um pássaro selvagem. Tem de estar tudo certi-
nho, senão o leitor não aceita, não entende, e aí vem um de
lá e diz que a gente é um escritor hermético, e isto dito de
certa maneira é como um atestado de incompetência.
Vejam, eu comecei de forma tão poética! Uma baleia
desgarrada caminha (ou nada?) em círculos pelos mares

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azuis dessa nossa baía. Mas é mesmo na baía? Onde é que se
encontra realmente a senhora baleia? Meu Deus, que coisa
terrível essa tal de precisão de linguagem. Nesta altura, não
sei onde está a baleia e já estou tão chateada que a vontade
é deixar pra lá e tratar de outra coisa. Assim, aqui estou eu
divagando sobre uma possível baleia que, de repente, pode
se transformar em gaivota ou mesmo em cardume de pei-
xes voadores ou golfinhos deslizando à flor das águas. Na
imaginação, tudo é possível. Mas, na verdade, eu tenho de
cumprir minha obrigação de traduzir em palavras o que era
apenas um pensamento, um fiapo de nuvem, uma pluma es-
garçada no ar. E tem de ser preciso, porque senão ninguém
entende. Há que se domar o pássaro/pensamento, para que
ele, como um falcão amestrado, cumpra seu destino de ca-
çador de palavras.
Mas eu não queria escrever nada disso. Queria apenas
fazer uma pequena crônica poética sobre uma baleia e seu
filhote. Muito bem: eu não sei onde está a baleia, se está fora
ou dentro da baía. Não sei a cor da baleia. Na verdade, não
sei nada sobre a baleia, nem mesmo se ela existe.
Assim, devagarinho, fecho os olhos e sinto o maior
deslumbramento: minha baleia existe! Aí está ela nadando
majestosa nas águas azuis da minha baía. Ela nada em círcu-
los, cada vez maiores, cada vez mais perfeitos e, de quando
em quando, lança um esguicho de água com perfume de sar-
gaço e maresia. O filhote é lindo e vai um pouco mais atrás.
É rosado, com listras cinzentas, prateadas e, às vezes, sai da
rota perseguindo peixinhos e algas. Simples brincadeiras de
filhote desocupado. A baleia é branca. Como aquela grande

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baleia assassina que assombrava os mares e se chama Moby
Dick. Mas a minha, não. A minha é tão mansa que pode
até comer na mão como um golfinho amestrado. A minha
baleia é mansa e solta suspiro suave como uma música de
órgão.
E aí lança água que nem fonte luminosa. E a brancura
de barbatana corta o cobalto do mar deixando um rastro
fino debruado de espumas, e ela vai nadando, cada vez mais
rápida, em círculos cada vez mais amplos, e já quase toca as
praias da baía, e, então, se forma um redemoinho enorme,
e as praias começam a girar, e os coqueiros dançam enlou-
quecidos, e me dá uma tontura, um vácuo no coração, um
súbito desmaio e, de repente, eu me sinto no ar rodando na
torrente salgada e, num ápice, bem no fundo do abismo, no
centro espiralado do redemoinho, mas não sinto nenhum
medo, pois minha baleia vai comigo, e sei que ela me prote-
gerá como protege seu filhote.

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Uma rua chamada saudade

N os anos cinquenta, marco de minha adolescência, a Rua


Chile era realmente a grande via do glamour na Bahia.
Por ela desfilavam mulheres bonitas, mocinhas casadoiras,
políticos, intelectuais, médicos famosos, advogados de pro-
jeção. Era uma espécie de vitrine do que havia de mais repre-
sentativo na então chamada Boa Terra, que, aliás, parece que
não era tão boa assim, porque as pessoas viviam suspirando
pelo Rio de Janeiro, então capital federal e meca dos mais
ambiciosos, que queriam fazer carreira principalmente na po-
lítica e nas letras. Estes, quando vinham de férias ou a passeio,
torciam o nariz para os atrasos da província, mas não deixa-
vam de desfilar gloriosamente pela Rua Chile.
Limitada ao norte pela Praça Municipal, quadrilátero
famoso, com seus palácios antigos convivendo harmonio-
samente com a modernidade do Elevador Lacerda, e ao sul
pela Praça Castro Alves, com a estátua do poeta eternamen-
te a bradar pela liberdade, a antiga Rua Direita do Palácio
era realmente o ponto de encontro por excelência da socie-
dade baiana antes que o crescimento vertiginoso da cidade,
em sua desvairada corrida para o mar aberto, esvaziasse o
antigo Centro, rompendo com a sua tradição de urbe portuá-
ria, debruçada e protegida pelas águas da baía.
Hoje, quando se festeja o centenário da Rua Chile e se
promovem festas e esforços para que venha a desfrutar do

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antigo prestígio, eu me pergunto, melancólica, se isto será
mesmo possível. Porque, se as construções estão lá razoa-
velmente preservadas, se o espaço é o mesmo, se ainda per-
siste o antigo caminho da Vila Velha, perdeu-se o encanto,
a atmosfera, a alma.
Como imaginar, por exemplo, a Rua Chile sem a Con-
feitaria A Bahiana com seu chá delicioso, suas torradas dou-
radas, seus waffles quentinhos? Sem a Livraria Civilização Bra-
sileira capitaneada pelo saudoso Dmeval da Costa Chaves,
onde Toninho e Expedito atendiam os fregueses com cor-
tesia e conhecimento? Sem o Café de Bernadette, com seus
pãezinhos macios e sua clientela de artistas e intelectuais. E a
casa Slopper? Pode-se imaginar a Rua Chile sem o requinte
da Slopper com suas vendedoras escolhidas a dedo, cada qual
mais bonita e elegante, cuidadosamente maquiladas e — di-
zia-se — de comportamento e moral vigiados pela gerência?
Naquele tempo, as meninas da Slopper só competiam em
charme e competência com as aeromoças de Panair.
A Slopper não era uma loja, era um magazine onde
se encontrava de tudo, desde os chamados artigos de cama
e mesa, presentes, bijuterias e moda feminina, até brinque-
dos e prataria. Para nós, adolescentes, comprar um vesti-
do na Slopper era a glória. Ali eram lançadas as modas do
sul maravilha, as novidades usadas pelas estrelas de cinema:
os vestidos de lastex, os casacos de banlon, os sapatos tipo
Gilda, os maiôs de cetim, as combinações de nylon, a bolsa
tiracolo, as saias plissadas de tergal, as sandálias anabela com
saltos de cortiça, com que desfilávamos garbosamente, aos
domingos, no Farol da Barra.

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E o armarinho do Seu Fiúza, onde o dono atendia
pessoalmente os fregueses, com a mesma gentileza e fidal-
guia com que frequentava as festas do Bahiano de Tênis? A
casa Milano que, no tempo da guerra, trocou o nome para
Casa da Música, a Ótica Universal de seu Marquesinho, a
confeitaria Chile, onde não caía bem mulher entrar desa-
companhada. A loja Adamastor do pai de Glauber Rocha,
o Palace Hotel já um tanto desbancado pelo Hotel da Bahia,
mas ainda guardando as lembranças do cassino, eternizado
por Jorge Amado, por meio das presenças de Vadinho e
dona Flor. A sapataria Rialto, da família Mattos, a sapataria
Clark, a farmácia Chile, a casa Africana, a loja Nova Amé-
rica, da família Najar, com suas sedas especiais.
E, por último, como imaginar a Rua Chile sem a fa-
mosa casa de chá das Duas Américas, reduto predileto da
juventude dourada, templo da paquera e da boa convivên-
cia? Quantos namoros e casamentos ali tiveram início? As
histórias são inúmeras como inúmeros os artistas que lá se
apresentavam para os shows de final de tarde.
Grande rival da casa Slopper, a loja Duas Américas,
que foi a primeira a instalar escadas rolantes para maior con-
forto da freguesia, tinha no andar térreo o ponto alto de
suas instalações. Ali se encontravam as seções de perfumaria
e tecidos finos, onde as senhoras e senhoritas se abasteciam
de cortes de seda e linho puro que seriam levados aos ateliês
das mais famosas costureiras de então, Maricas e Niva, para
a confecção de inspirados modelitos copiados das revistas
Vogue e L’Officiel.
As clientes de maior prestígio eram atendidas pelos ir-

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mãos Osmar e Magalhães, de tradicional família muritibana.
Ambos, gentilíssimos, educadíssimos, tinham suas clientes
cativas. Magalhães era o mais bonito dos dois, de uma ele-
gância britânica. Diziam até que alguns maridos ciumentos,
por precaução, preferiam que as esposas fossem atendidas
por Osmar, temerosos do encanto de galã de cinema do
irmão.
Mas, como a vida é um eterno retorno, o melhor é
pensar e acreditar que aquele momento foi apenas mais um
ciclo. Que outros o antecederam e que muitos ainda virão.
e que a Rua Chile, com novos protagonistas e um encanto
renovado, um belo dia vai renascer das cinzas, voltando a
brilhar com a mesma intensidade.

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A Casa do Rio Vermelho

E m fins dos anos 1950, impulsionados pelo desejo de


mais tranquilidade em seu dia a dia e maior segurança
para os filhos, então adolescentes, eles aportaram definitiva-
mente a esta cidade do Salvador e, depois de alguma hesitação
e muita pesquisa, acabaram lançando âncoras numa ruazinha
sombreada nos altos do Rio Vermelho, num loteamento co-
nhecido pelo nome de Parque Cruz Aguiar.
O Rio Vermelho daquele tempo ainda não era o bairro
trepidante de hoje, cheio de hoteis, de restaurantes, de bares,
com animada vida noturna e tráfego intenso, cercado por lon-
gas avenidas construídas para facilitar o acesso à parte norte
da cidade, que então se espandia, buscando novos horizontes.
Lugar meio parado, à margem do progresso que aos
poucos tomava conta da cidade, então com menos de 500
mil habitantes, situado a meio caminho entre o bairro da
Barra, aprazível reduto da burguesia, e a Pituba, que inicia-
va, então, a escalada imobiliária que transformaria o antigo
local de veraneio em grande centro residencial, era muito
procurado por aposentados e artistas que ali buscavam refú-
gio, em nome do bom gosto e da vida mansa que ainda po-
dia-se desfrutar naquele local tão bem dotado pela natureza.
Ali já moravam Lúcia e Mário Cravo, numa casa/ateliê
extremamente acolhedora, sempre de portas abertas a ami-
gos e visitantes como o pintor Aldo Bonadei, o gravador

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Marcelo Grassmann, o cineasta Clouzot e sua mulher Vera,
de tradicional família baiana, e muitas outras personalidades.
Lá estava Lênio Braga, numa bucólica casinha escondida
num desvão da penedia, quase sobre a praia, onde os arreci-
fes cantavam tocados pelas águas. E ainda Jenner Augusto,
Carybé, José de Dome, Raymundo Oliveira, Willys e Licídio
Lopes que, além de pintor, era também pescador e escreveu
um delicioso livro de memórias editado, na década de 1980,
pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, no projeto His-
tória Oral dos Bairros, coordenado pela professora Tânia
Penido.
E, então, eles chegaram, Zélia e Jorge Amado, à casa
do Rio Vermelho, na rua Alagoinhas, 33, endereço que se
tornaria universal referência de nossa cidade e que se trans-
formou em ponto de encontro de amigos, local de intensa
fermentação de ideias e projetos que, pelo prestígio e força
de atuação do casal, logo se tornariam realidade, trazendo
grandes benefícios para nossa vida cultural.
Hoje, tantos anos passados, Zélia Gattai entrega ao
público mais um atestado de carinho pela nossa terra, abrin-
do ao povo da Bahia — e certamente aos leitores do mun-
do inteiro — as portas de sua casa através das páginas de
novo livro de memórias, justamente intitulado A Casa do
Rio Vermelho, onde, com a graça e a espontaneidade que lhe
são habituais, faz um apanhado de fatos e gentes que, du-
rante esses longos anos, passaram pelo portal abençoado
por Oxóssi, orixá protetor do dono da casa, com seu arco
magnífico, cinzelado por Mario Cravo, apontando para o
alto sua flecha pontiaguda.

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Como uma artesã aplicada, ela foi recolhendo retalhos
do cotidiano, misturando cores diversas e variados tecidos,
desde a chita mais modesta até o mais precioso brocado,
unindo com paciência e sabedoria os diversos pedaços,
para, aos poucos, como numa colcha de tacos, compor um
mosaico que refletisse em sua multiplicidade, o espírito da
casa e de seus habitantes.
E, assim, a casa de largas varandas, de azulejos delica-
dos, de esculturas de mestres, ornada de quadros de pinto-
res afamados, grandiosa em sua simplicidade, com a vasta
coleção de objetos de cerâmica trazidos de várias partes do
mundo, batida pelos ventos do mar alto — desse mar bra-
vio onde naufragaram tantas antigas caravelas, inclusive a do
patriarca Diogo Álvares, o Caramuru —, cercada pela som-
bra das árvores que se entrelaçam sobre os caminhos tantas
vezes percorridos, parece criar vida própria, eternamente
suspensa pelas palavras de sua dona, permanente como uma
obra de arte, feita de vida intensamente vivida, moldada no
generoso barro da fraternidade e do amor compartilhados.

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Minha amiga Auta Rosa

A notícia de que Calasans Neto ia casar caiu como uma


bomba no grupo que costumava frequentar o IENA,
em frente à Reitoria da UFBA, lugar aprazível, cheio de livros
de arte e discos do melhor jazz dos E.E.U.U., onde, no final
dos anos dourados, nos reuníamos toda tarde, jovens intelec-
tuais dispostos a consertar o mundo. Ali, sob a égide do tio
Sam — o primeiro a ser consertado —, discutia-se de parto
de macaco a atracação de navio, tudo dentro do figurino po-
liticamente correto da época, é claro.
Com certa apreensão e muita curiosidade, nos pergun-
távamos: quem seria a feliz proprietária do indomado cora-
ção do agitado artista, uma das atrações maiores das nossas
tertúlias culturais? Todo mundo sabia que o mimado reben-
to de D. Frida sempre fora dado a namoros e aventuras, não
podia ver um rabo de saia, mas sempre tivera o cuidado de
preservar sua tão estimada liberdade. Casar... era demais!
A musa foi, enfim, apresentada. Chamava-se Auta Rosa.
E aqui, à moda de poeta antigo, invocarei as graciosas
ninfas do Abaeté para que me concedam engenho e arte
para traçar, embora de forma canhestra, o perfil de tão esti-
mada e invulgar personalidade.
Em mais de trinta anos de convivência permanente
com o casal, aprendi a admirar Auta Rosa pelas suas quali-
dades pessoais e não apenas por ser a dona do coração (e da

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vontade, é mister que se reconheça) de meu querido amigo
Calá. Qualidades que, diga-se de passagem, por estarem um
tanto fora de moda, causam às vezes um certo mal-estar,
principalmente no mundo nebuloso das relações sociais,
políticas e, por que não dizer, culturais.
É que minha amiga Auta Rosa tem o hábito de de-
clarar sempre o que pensa e a franqueza e sinceridade com
que defende suas opiniões se tornam, às vezes, embaraço-
sas. Nesses momentos, o dedicado cônjuge escafede-se pela
primeira saída e só retorna com a poeira assentada.
Auta cultiva, com a mesma paixão, afetos e desafetos.
Desconfio que o seu lema pessoal seja: aos amigos tudo, aos
inimigos a lei, de preferência as mais antigas, aquelas que
mandavam esfolar vivo, ferver em azeite, etc...
Essa fidelidade, porém, tem as suas exigências e uma
delas é a reciprocidade. Amiga incondicional, ela exige tam-
bém uma total anuência a este princípio. Por não levar esta
norma ao pé da letra, me encontrei, certa ocasião, na apa-
vorante perspectiva de perder para sempre amizade tão pre-
ciosa. Foi a primeira e única vez, mas até hoje estremeço à
simples recordação de tão dramático episódio.
É que, inadvertidamente, dei guarida em minha coluna,
no jornal A Tarde, a um arqui-inimigo de Auta Rosa que iria
lançar um livro. Confesso que, não tendo a mesma inteireza
de caráter, sabia que ela não gostava do sujeito, mas não me
dei ao trabalho de verificar a extensão e profundidade de seus
sentimentos. Imaginei que fosse uma simples antipatia, resquí-
cios de ressentimentos antigos, coisa de pouca monta. E caí na
asneira de publicar uma nota sobre o indigitado. O que eu não

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previa é que, com isso, iria atear um incêndio que só foi apaga-
do com muita diplomacia, desculpas e explicações. Alertada a
tempo por Jorge Amado, entrei em campo rapidamente com
todo um arsenal de sedução que só surtiu efeito porque, hoje
tenho certeza, sua mágoa era proporcional à sua estima por
mim.
Os que costumam frequentar a rua das Amoreiras sa-
bem que simpatia e cordialidade fazem parte do cardápio
diário do casal. Os amigos sempre serão bem-vindos mes-
mo se chegarem de repente, na hora do almoço, quando
poderão desfrutar tranquilamente dos quitutes de Aíla, co-
zinheira afamada. Lá, a qualquer hora, encontrarão cerveja
geladinha, sorvete de graviola, suco de maracujá, à sombra
do sorriso esfuziante do mestre da gravura, no ateliê sempre
renovado com seus belos trabalhos.
Mas, para bem conservar estes privilégios, convém co-
nhecer e, sobretudo, não infringir certas normas da casa.
Uma delas, a mais polêmica, sem dúvida, e a que mais tem
posto à prova a firmeza de Auta Rosa, é a interdição a me-
nores de doze anos. Quem estiver tentado a fazer uma vi-
sita aos queridos amigos, levando de quebra as adoráveis
crianças, corre o risco de ser barrado na porta. Partidária
convicta da famosa teoria de Herodes de que “em princípio
toda criança é chata”, a dona da casa tem como preceito
impedir a entrada dos baixinhos em seu território particular,
principalmente em dias de festa.
São tantas as estórias de Auta Rosa, que dariam para
fazer um livro e não apenas uma despretensiosa crônica
como esta. Antes de terminar, porém, preciso fazer um re-

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lato de como é perigoso pôr à prova a paciência de minha
amiga.
Vinicius de Moraes que ela, aliás, adorava, compare-
ceu um dia a um de seus famosos almoços — lauto almoço
servido no ateliê, à beira da piscina — levando a tiracolo
um amigo, hábito que não é muito do agrado da dona da
casa. Como era Vinicius, ela engoliu e tratou o penetra com
todo carinho e respeito. Mas este era do tipo que toma logo
intimidades, se considera amigo de infância, e lá pras tantas
escorregou nesta declaração perigosíssima:
— Auta Rosa, da próxima vez em que eu vier aqui,
providencie mais cadeiras; detesto comer mal-acomodado.
Isso, às gargalhadas, na maior gaiatice.
Ela não se alterou, mas vi, claramente visto, um brilho
maligno perpassar em seus olhos cinzentos, subitamente
frios e cortantes como a lâmina de uma faca. E com voz
pausada ela decretou:
— Meu filho, eu lhe juro que você jamais terá des-
prazer semelhante, pois jamais voltará a comer em minha
casa (pausa) e, aliás, só está hoje aqui porque foi trazido por
Vinicius (pano rápido).
Os que não conhecem Auta Rosa, os que não têm o
privilégio de privar de sua amizade hão de estar pensando
como conviver com tão temível criatura. Mas eu garanto
que ela é um doce, simplesmente encantadora. E, o mais
importante, além de sincera até à morte, é uma das mais
sensíveis leitoras de poesia que eu conheço.

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Totoca

H oje vamos a Brotas, disse meu pai.


Do distante país da minha infância, a frase chega de
repente como uma lufada de ar fresco, acendendo a ex-
pectativa de momentos felizes, vento nos cabelos, cheiro
de mato entrando pelas janelas. Um sentimento de prazer,
amortecido pelo tempo, me diz que eu estava feliz naquele
dia, embora desse passeio, perdido nas lonjuras, não recorde
mais nada — só fiapos de lembranças, sensações, intuições,
pequenos fragmentos que se desprendem do limbo das re-
miniscências, como cenas de um filme muito antigo.
Envolvida pela magia da palavra “brotas”, crocante e
perfumada como biscoitos leves, como, talvez, a fina crosta
das tabocas, eu cochilava no banco de trás do carro. Meus
pais pareciam contentes, e isto me dava a impressão de se-
gurança tão gostosa e perfeita, que fui resvalando, desarma-
da, para o colo de minha babá nova, onde provavelmente
dormi até chegarmos ao nosso destino.
Como seria a casa? Onde encontrá-la agora envolta em
cinzas nas brumas da memória? Sombras verdes, varandas,
uma tarde comprida, os adultos reunidos em conversas inter-
mináveis, e minha prima Isabel, magrinha e compenetrada,
o rosto moreno de traços miúdos, levando-me a conhecer o
limiar do paraíso nos fundos da garagem, onde, deitada em
velhos panos, a cadela Florete amamentava seus filhotes.

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Florete era uma bela cadela bassê de fina raça, mas,
como acontece nas melhores famílias, burlando a atenta vi-
gilância de seus donos, andara às voltas com um joão-nin-
guém das vizinhanças, vindo a parir uma ninhada de bastar-
dos.
Mas isso não parecia ter a menor importância. Os ca-
chorrinhos eram lindos. Lustrosos e negros, embolavam-se
na disputa das tetas, soltando pequenos ganidos que mais
pereciam miados.
Desejei intensamente um cachorrinho daqueles e, não
sei se pela força do pensamento ou qualquer outro motivo,
o fato é que, na saída, recebi o prêmio tão esperado. A dona
da casa nos deu um cachorrinho de presente, depois de tecer
comentários sobre sua origem e condição de nascimento.
Não digo que meu pai fosse totalmente despido de
preconceitos, mas, como era um romântico, simpatizara
com a transgressora e, com um afago afetuoso e um sorriso
cúmplice, adotou-lhe o filhote sem ligar para o pedigree.
O retorno foi triunfal. Embalada pelos sacolejos do
bravo carrinho verde, um ford meio velhusco carinhosa-
mente chamado de Calango, com o cachorrinho no colo, eu
era a mais feliz das criaturas.
Ao chegarmos em casa, com o novo membro da famí-
lia já devidamente alimentado e acomodado numa caminha
improvisada, começamos a discutir, em assembleia familiar,
a difícil escolha de um nome para o recém-chegado.
Difícil? Ora, direis —, à moda do bardo famoso —
um nome, o que é um nome?
Um nome é tudo. Nomear é reconhecer a existência.

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É rotular. Um nome, uma vez aprovado, cola-se a seu dono
como uma segunda pele. É referência e destino. Se Julieta
não tivesse o nome de Capuleto, seria outra a sua estória
Daí a responsabilidade da escolha.
Fui para a assembleia pisando firme, de cabeça feita e
nome no bolso do colete. A babá nova, hábil articuladora de
bastidores, tinha-me soprado um nome perfeito, sugestão
que logo adotei com o maior entusiasmo. O cachorrinho
iria chamar-se Joli.
Joli? Mas isto é nome de cachorro fresco, cachorro de
madame.
Bati o pé, irredutível. Tão pequena e já disposta a de-
fender meus pontos de vista, por mais equivocados que eles
depois se revelassem.
Pensando na origem do bastardo, meu pai sugeriu um
nome que me pareceu depreciativo:
— Totoca, ele tem cara de Totoca.
Ofendida, não aceitei a provocação e fiz valer meus
direitos de proprietária. O nome seria Joli e acabou-se:
— Mas — acrescentei, num rasgo de condescendên-
cia conciliadora — o apelido pode ser Totoca.

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Um cão do Tibet

A menina meteu na cabeça que queria ter um cachorro.


E falava nisso todo dia. A mãe disse que não: cachorro
dava um trabalho danado, estragava as plantas, sujava tudo,
um horror. O pai disse que não: cachorro custa muito, come
como o diabo, tem de tomar vacina toda hora, late de noite,
incomoda os vizinhos.
Nenhum argumento convencia a menina.
— Todo mundo tem um cachorro. Como é que uma
criança pode viver sem um cachorrinho! — Os irmãos
apoiavam a ideia. — Afinal o que custa ter um cachorro?
Tem espaço bastante, e ele não precisa entrar dentro de casa.
— Como não entrar em casa — bradou a menina. —
Meu cachorro vai dormir no meu quarto.
Aí mesmo é que o pai protestou:
— Cachorro no quarto é falta de higiene. Bicho não
dorme com gente. Era só o que faltava.
— Minha colega, Carolina, ganhou um cachorrinho
de presente de aniversário. Por que só eu não posso ter um
cachorro?
E a cantilena continuava dia após dia, já quase uma
obsessão, até que a mãe teve um momento de fraqueza e
pronunciou um imprudente “Vamos ver”...
Frase fatídica! Imediatamente, formou-se uma verda-
deira rede de informações, todo mundo interessado na des-
coberta de um possível cão a ser adotado.

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O pintor e gravador Calasans Neto, amigo da família
e guru para inúmeros assuntos, prometeu usar sua influên-
cia junto ao também pintor Carlos Bastos, notório criador de
cães de raça, para descolar um filhote da próxima ninhada de
sua cadela dálmata. Foi um delírio. Baixou um complexo de
nobreza, e todos já se imaginavam desfilando com uma legí-
tima representante da aristocracia canina a quem de antemão
batizaram com o pomposo nome de Fedra Eliodora da Pedra
do Sal. E cada um projetava suas fantasias, ao tempo em que
esperava ansiosamente a chegada do prometido filhote.
Calasans, diariamente pressionado, desdobrava-se em
explicações, até que um dia veio a infausta notícia: a ninhada
não correspondera à expectativa.
Os cachorrinhos nasceram defeituosos, o que era co-
mum na raça. Eram todos surdos. Foi a maior decepção.
A menina, em prantos, não se conformava:
— Quero assim mesmo, não me importa que seja sur-
do, não tem nada demais.
A mamãe, que conhecia de sobra as manhas do mestre
Calá, desconfiou daquela surdez coletiva. Vai ver que ele
prometeu o que não existia e, pressionado, tirou o time de
campo, pensou consigo mesma. Mas não disse nada, e o
assunto jamais foi devidamente apurado.
Diante do impasse e do desespero da menina, a mãe,
resignada, pôs-se em campo para descobrir um cachorro
que atendesse às exigências, sem comprometer as finanças.
Foi quando alguém informou sobre uma loja de cães, perto
do Porto da Barra. Mobilização geral! Mamãe, a menina e
o caçula puseram-se, imediatamente, em campo, dispostos

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a resolver de uma vez a questão. Embora se chamasse Ao
Cão Elegante, a loja, modestíssima, não oferecia muitas op-
ções. Apenas três ou quatro filhotes bastante desenxabidos.
E agora?
A menina não se dava por vencida:
— Levo um cachorro. Quero qualquer cachorro.
Foi quando o caçula descobriu uma graciosa cadeli-
nha que corria e dava cambalhotas com a natural alegria da
idade:
— Veja, mamãe, que gracinha, tão sabida, tão redon-
dinha, parece uma bolinha!
Espertíssimo, o vendedor logo deu jeito de amarrar na
exibida um laço de fita encarnada que a tornava ainda mais
charmosa e atraente.
— Quero essa, quero essa. É linda, tão redondinha,
vai se chamar Bolinha.
E, assim, por um preço mais do que razoável, foi re-
solvido o problema, e voltaram para casa muito felizes com
o resultado da compra.
É verdade que não tinha pedigree, mas o vendedor afir-
mara que era uma cadelinha de raça, o pai fora premiado
em várias competições e tudo mais. Era um legítimo cão do
Tibet, raça excelente no trato com crianças.
Os compradores não acreditaram muito na conversa.
A cadelinha parecia mais um pequinês disfarçado, e nin-
guém jamais ouvira falara desse tal de cão do Tibet.
A chegada à casa foi triunfal. A menina, orgulhosa,
carregando a prenda numa cestinha, e o caçula disputando
espaço para usufruir da companhia.

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Mas, como acontece em alguns momentos felizes, um
travo de amargura quase transformou aquele momento de
euforia numa desagradável e ácida discussão, pois os irmãos
mais velhos, que haviam corrido para ver a novidade, mos-
traram-se decepcionados, tratando a recém-chegada de for-
ma grosseira e preconceituosa:
— Que diabo de cachorro é esse? Cão do Tibet, coisa
nenhuma. Isto é um pequinês mestiço de vira-lata.
Revoltado, o irmão mais velho ameaçava:
— Se este animal ignóbil atravessar o meu caminho,
vou esmagá-lo como a uma barata.
Mas, passados os primeiros instantes de estranhamen-
to, nobre ou plebeia, a cadelinha tornou-se a alegria da casa.
Era dócil, inteligente e engraçada.
— Não é um cachorro — dizia a dona, toda encanta-
da, — é uma pessoinha.
E, assim, muitos anos se passaram na mais completa
felicidade. Bolinha era parte integrante da família. Tão ama-
da que nunca mais se falou de sua origem bastarda. Ela era
meio esquisita, pois lembrava um pequinês com suas pati-
nhas curtas, onde uma mancha branca denunciava a possível
mestiçagem, o pelo sedoso, que disfarçava a carinha acha-
tada, o focinho redondo e as orelhas caídas que voavam ao
vento quando ela se debruçava na janela do carro em um de
seus passeios prediletos. Volta e meia lembravam o episódio
da compra e davam risada:
— Que grandessíssimo vigarista! Cão do Tibet, vê se
pode!
E assim viveu Bolinha, cercada de carinho, até que,

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cumprindo seu destino aqui na Terra, fechou os olhinhos
redondos e finou-se, deixando um rastro de saudades e boas
lembranças.
Anos depois, muitos anos passados, a menina, já moça
casada e com filhos, folheava distraída uma revista de va-
riedades, quando desatou num berreiro, para surpresa dos
circunstantes:
— Coitadinha, coitadinha!...
Seu semblante refletia indignação, mágoa e uma ponta
de triunfo ao apontar, na página aberta da revista, uma re-
portagem sobre cachorros:
— Vocês estão vendo? Está aqui, um cão do Tibet, e é
a cara de Bolinha. Ninguém acreditava, mas ela era mesmo
um cão do Tibet, um legítimo cão do Tibet, e passou a vida
toda considerada uma reles mestiça de pequinês de quinta
categoria.
Como já aconteceu tantas vezes na história da huma-
nidade, só nos resta reabilitar a memória de uma pequena
fidalga que passou a vida como plebeia legítima.

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Um gato, de manhã

N a curva do caminho, destampou com a figura.


O coração bateu forte. Tão pequeno! uma isca de
pessoa. Quase uma bolinha de pelos! Sarapintado de amare-
lo, ainda úmido do orvalho da noite; fiapos de lama e folhas
secas nos pelos miúdos.
Mas os olhos... Ah, os olhos! Duas amêndoas de luz.
Doces, tão infinitamente doces como só podem ser os olhos
de um gato.
Quase não se mexia ali perdido, na beira do asfalto,
àquela hora matinal. Apenas a cauda movia-se suavemente,
desenhando, na luz dourada do sol, a curva de uma interro-
gação, o enigma de seu destino.
O pé tateou instintivamente o freio. Recolheria o gati-
nho, sim, por que não? No escritório, sempre haveria um lugar
para ele no depósito, atrás dos caixotes. Arranjariam alguma
coisa para lhe matar a fome, e talvez até as moças da recepção
cuidassem dele, o limpassem, devolvendo-lhe com o trato o
ar aristocrático e misteriosos dos gatos, porque no momento
era somente um bichinho encolhido e emporcalhado.
No escritório, o gato fez sucesso. As moças, como es-
perava, deram gritinhos encantados. E passaram o resto do
dia a escovar-lhe o pelo, à carregá-lo no colo, num exagero
de carinhos, bagunçando o expediente e quase atrapalhando
o serviço.

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No final do dia, cansado mas feliz, levando com ele o
novo companheiro, tomou pressuroso o caminho de casa.
Pensando bem, depois do trabalho exaustivo, podiam se dar
ao luxo de um descanso merecido. O regaço do lar, a sopa
quente e um pires de leite no canto da cozinha.
Quando chegaram, a mulher estava sentada na sala as-
sistindo à novela. Televisão a postos. Novela das sete. Le-
vantou meio de má vontade para recebê-lo e já ia oferecen-
do um rosto resignado para o beijo distraído, quando notou
o bicho em sua mão.
— Mas o que é isto? O que é que você vai fazer com
isto, homem de Deus?
Não houve jeito ou modo de convencimento. Todas
as ternuras prometidas eram rebatidas, na hora, com argu-
mentos de uma lógica inarredável. E nem adiantou lembrar
a proverbial e comprovada higiene dos gatos, sua elegante
postura de hóspede cerimoniosos e asseado. Nem causou
efeito a quase chantagem, a apelação para os mais nobres
sentimentos de fraternidade:
— Um pobre coitadinho abandonado no mundo, com
frio, fome, sede, ao desamparo, sozinho.
A mulher irredutível:
— Muito pior são as crianças por aí ao relento. Mas
isso você não vê, porque não lhe interessa. Nem quis com-
prar aquele cartão do bingo para ajudar aos nordestinos fla-
gelados. E agora vem pra mim com esta história de gato.
Não, não e não. Não quero ver minha casa cheia de pelos,
pegadas, estofados sujos, jarras quebradas. Mais um pra co-
mer e dar trabalho.

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No outro dia, o gatinho foi dado à lavadeira. Mais uma
vez vencera o dogma, o bom senso, o duro realismo. Ago-
ra a casa parecia maior, fria e deserta. Num canto da cozi-
nha, o pires sujo. E alguma coisa doendo bem no fundo do
peito. Como encontrar forças, argumentos, para convencer
aquela mulher, emparedada em suas verdades, que a vida é
isto mesmo? Requer uma boa dose de paciência, renúncia,
desprendimento. E o amor, então? O amor não é feito só
de alegria, olhos nos olhos, beijinhos. O amor é quentura, é
regaço, mas é também um rastro de terra, um rasgão, uma
mancha, alguns cacos quebrados.
O amor custa caro. E é um privilégio dos santos, dos
loucos, dos poetas. Dos que sabem recolher os gatinhos na
estrada.
A mulher deu muxoxo e foi lavar os pratos.

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Malhado

A quela seria uma manhã especial para o menino. Metido


numa roupa de caubói, as botas quase engolindo as per-
nas curtas e um imenso chapéu vermelho à Roy Rogers equili-
brado nas orelhas que se destacavam no rostinho ansioso, não
tirava os olhos da estrada por onde deveria chegar o cavalo.
No pasto ao lado, indiferente ao desenrolar dos acon-
tecimentos, Cabrito, aquele sonso, pastava com o ar mais
inocente do mundo. Ingrato! tanta espiga de milho, tanta
escova no pelo, tantos agrados e aquela paga: um belo par
de coices no traseiro!
Escândalo! O menino a berrar, coberto de carrapi-
chos, a mãe a exigir, dramática, o sacrifício do criminoso:
— Só matando este jegue infeliz!
O pai, pacificador, sentenciando:
— Jegue é assim mesmo, não merece confiança, é trai-
çoeiro, não serve para montaria de criança, eu cansei de avisar.
E o menino chorava. Mais que a dureza dos cascos,
doía-lhe a ingratidão inesperada:
— Ele era meu amigo — soluçava, numa cantilena
sem fim. — Eu não fiz nada com ele, só queria brincar...
— O jumento tá vadio... o tempo todo no pasto, só
comendo, sem fazer força... — atalhou o vaqueiro, que nun-
ca compreendera aquele luxo de jegue criado como cavalo
de raça. — Eu falei pra vosmincês...

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Serenada a tempestade, decidiu-se pela compra de um
cavalo para substituir Cabrito, já, então, definitivamente em
desgraça para servir de montaria ao menino.
Logo chegou a notícia de que havia um cavalinho à
venda, mansinho, bom de passo, dócil no comando, bem na
medida desejada.
Sentado na varanda, olhos presos na porteira, chico-
tinho na mão, o menino aguardava o presente prometido
com incontida ansiedade. Afinal, depois do que lhe pareceu
um tempo infindável, chegou o vendedor puxando pelo ca-
bresto o tão sonhado cavalo. Era um pampa, branco e mar-
rom. O menino extasiou-se:
— Parece cavalo de índio!!!
O vendedor, animado com a perspectiva de um bom
negócio, apostou alto no preço, confiado em que a insis-
tência do filho ajudaria a convencer o pai da excelência do
cavalo. Mas, na ânsia do ganho, exagerou na proposta, de-
sanimando o comprador, que não estava disposto a ser en-
rolado. Como não chegassem a bom termo na transação,
deram o dito por não dito, e lá se foi o pangaré, porteira
afora, pela mesma estrada por onde viera.
O menino, que já se sentia dono do rocinante, não po-
dendo compreender aquele desfecho inesperado, ensaiava
novo berreiro.
— Meu filho, o cavalo não presta, é muito feio, esta-
va até meio roído de um lado. Depois a gente compra um
melhor, mais bonito. Esse aí não vale a pena — consolava o
avô —, por isso que seu pai não quis comprar.
Já estava quase convencido, quando o dono do cavalo,

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arrependido de ter, com sua gananciosa intransigência, dei-
xado de fazer um bom negócio, deu meia-volta:
— Doutor, o menino quer o cavalinho. Vá lá, deixo
pelo preço que o senhor ofereceu. É uma pechincha, mas...
faça-se a vontade do garoto. Fico no prejuízo. Negócio fe-
chado.
Aliviado, o pai encheu o cheque na hora, antes que o
outro mudasse de ideia e, vitorioso e sorridente, entregou o
cabresto ao menino:
— Pronto, aqui está o seu cavalo.
O moleque aprumou-se nas botas, o rosto suado, ain-
da vermelho do choro, e declarou entre amuado e desde-
nhoso:
— Esse aí? Eu não quero. Vocês não disseram que era
feio, sujo, um pangaré velho e roído? Agora não quero.
— A gente lava bem ele, filho. Corta o cabelo, penteia
o rabo, fica novo, novinho em folha.
— Não quero, é feio.
— Não é, não. É lindo, parece cavalo de índio coman-
che, daqueles de filme, todo malhado.
Deu um pouco de trabalho, mas, afinal, pareceu con-
vencer-se e, ainda um pouco desconfiado, aceitou o cavalo.
Não se arrependeu. Em pouco tempo, bem tratado e bem
fornido, Malhado tornou-se a atração da fazenda.
Com uma vistosa manta vermelha sob o selim lustro-
so, cabresto de seda torcida, caçambinhas de alpaca nos es-
tribos, lá ia o menino todo prosa em seu cavalinho pampa,
fazendo figa ao renegado Cabrito, que, destituído da honro-
sa posição de montaria do primogênito, passara a ostentar

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um bom par de cangalhas, o dia inteiro a carregar mandioca
para a casa de farinha. Belo castigo para a imperdoável in-
gratidão!
Enquanto isso, Malhado, nédio, mimado, protegido de
todas as possíveis canseiras, tornou-se o xodó das crianças
da casa, que faziam dele gato e sapato, até morrer de velho
e ser enterrado sob uma frondosa jaqueira, ali mesmo na
fazenda onde chegara um dia, quando o menino era ainda
tão pequeno que precisava de um banquinho para subir-lhe
nas costas.

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As lanchas de Mar Grande

L embro com saudade os antigos verões, recordação que


me leva diretamente aos caminhos do encantamento
quando fazíamos a travessia da Baia de Todos-os-Santos,
rumo a Mar Grande e sua extensa faixa de praias paradisíacas.
Nos tempos de minha adolescência, a travessia era
realizada pelas lanchas da carreira que até hoje continuam
servindo regularmente à população, com segurança e regu-
laridade, com direito a usufruir a visão de um dos mais belos
cartões-postais da cidade do Salvador.
As lanchas de Mar Grande são parte da minha memó-
ria, companheiras de um percurso repetido muitas vezes,
desde que me entendo por gente. A princípio, eram ape-
nas duas e costumavam marcar as horas da então pequena
comunidade de moradores e veranistas da Ilha com o api-
to que anunciava aos retardatários o momento da partida,
quando deixavam as pontes de atracação, na verdade dois
pequenos atracadouros — um no Duro e outro na Ilhota,
este bem em frente à nossa casa. Eram, então, o único meio
de transporte, além dos saveiros, estes mais lentos e menos
confortáveis.
Durante muitos anos, reinaram sozinhas e, aos pou-
cos, foram sendo substituídas por embarcações maiores e
mais resistentes, aprimoraram os serviços, tornaram-se mais
rápidas, mais eficientes. Tinham perfil e nome próprios: às

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pioneiras Gaivota e Águia, seguiram-se a Maria José, a Séfo-
ra, a Maria Quitéria, a Cavalo Marinho, a Ana Nery, a Joana
Angélica...
Já navegavam há muito tempo, quando foi construída
a ponte do Funil, ligando a Ilha ao continente pelo lado da
contracosta, pela estrada que iria integrar o sistema ferryboat,
que surgia, então, como uma possível opção ao transporte
de veículos e passageiros.
E assim continuaram seu percurso, indiferentes aos
rumores dos primeiros projetos de construção da famosa
ponte sobre a Baía de Todos-os-Santos, formidável obra de
engenharia que volta e meia vem à baila e um dia, quem
sabe, para o bem ou para o mal, será mesmo construída.
Enquanto tentava-se implantar experiências importa-
das de outras realidades, como o overmarine, de curta exis-
tência, e os catamarãs, que também não deram certo, as
lanchinhas de Mar Grande, as famosas “lanchas da carrei-
ra”, que já serviram a tantas gerações, seguiam procurando
manter sempre o mesmo padrão de eficiência, oferecendo
um serviço digno e seguro, atendendo moradores e visitan-
tes, cumprindo horários — nesta terra onde o atraso é uma
constante —, servindo não só ao usuário da Ilha, o que já
não é pouco, mas também aos habitantes de outras localida-
des do Recôncavo.
Integrando-se à paisagem, em seu vai e vem constante,
contribuíam igualmente para uma democrática aproximação
entre os passageiros veranistas e moradores, que disputa-
vam seus espaços em igualdade de condições.
Com o correr do tempo e o aumento da população,

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com muita gente optando por morar na Ilha e trabalhar em
Salvador, as duas modestas lanchinhas que iniciaram esse
percurso multiplicaram-se com os anos e, atualmente, temos
treze embarcações trafegando sem parar, realizando a tra-
vessia de maneira segura e confortável. Segurança que pode
ser atestada com a comprovação de que nenhum acidente
foi registrado até hoje, ao contrário dos que já ocorreram
em outros transportes. De pequeno negócio, transforma-
ram-se, com a demanda crescente, em promissora atividade,
gerando cobiça aos concorrentes.
Além de oferecer transporte rápido e seguro, as lan-
chas de Mar Grande, em seu vai e vem constante, se incor-
poraram de tal modo aos hábitos, costumes e paisagens da
Ilha, que já se tornaram um patrimônio cultural a ser prote-
gido e respeitado.

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Lembranças

U ma das coisas ruins de se ir envelhecendo, me diz Jorge


Amado, é que, a cada dia que passa, a gente perde um
amigo. Verdade verdadeiríssima. De repente, me dou conta
de que também já começo a ampliar o meu cantinho de lem-
branças. Tantos queridos amigos que se foram, deixando uma
recordação, fiapos de conversas, flashes da memória que nunca
se apagam — um sorriso, uma palavra, um gesto de carinho,
uma confidência, alegrias e tristezas partilhadas. Viajantes do
obscuro, alguns partiram sem um aceno, outros nos legaram o
último olhar de despedida, todos, acredito piamente, estão por
aí como estrelas brilhantes guiando nossos passos, consolando,
acalmando, quando as dores do mundo se tornam mais atrozes.
A morte de Mirabeau Sampaio abriu no meu coração
uma ferida muito doce. Lembrança de um tempo já antigo
de peregrinação a antiquários à procura de tesouros disfar-
çados, quando os antiquários, mais do que casas de comér-
cio, eram pontos de encontro, de trocas, quando a desco-
berta de um objeto de valor artístico assinalável era saudada
com o maior entusiasmo por uma espécie de confraria que
estava sempre a reunir-se garimpando preciosidades, muitas
vezes a preço de banana, nos seus pontos prediletos: Cario-
ca, Jorge Tarap, David Musse eram alguns dos antiquários
mais frequentados. Todos bons de prosa, conhecedores do
assunto. Um dia ainda vou tentar escrever sobre este tempo.

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Mirabeau frequentava a nossa casa diariamente. Ele
e meu pai formavam uma dupla incansável na procura de
santos. Um e outro esnobando-se mutuamente ao sabor das
descobertas. Lembro ainda o dia glorioso em que Mirabeau,
ao tentar livrar um santo que comprara recentemente de
uma grossa camada de tinta, encontrou a assinatura de nada
menos que frei Agostinho da Piedade, santeiro ilustre, de
obra disputadíssima, entrada garantida nos melhores mu-
seus. Foi um acontecimento. Mirabeau, fala mansa, gestos
medidos, conversando horas com meu filho de quatro anos,
tratando-se ambos simplesmente por amigo, nas visitas ao
grande barracão da Casa Stela, de repente transformado em
depósito de móveis antigos, de onde vinham os dois sempre
muito contentes, o menino trazendo de cada vez um mode-
lo de bota ou tênis, presente de amigo.
Pintor de traço suavíssimo, de madonas e santos de-
bruados a ouro, Mirabeau, pintor e personagem, disputado
pelos anjos, continua no céu seu trabalho predileto, com
modelos ao vivo e tintas luminosas.

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Santo Antônio, rogai por nós

N o próximo dia 13 deste mês de junho, festeja-se um dos


santos mais populares do calendário católico. Nascido
Fernando de Bulhões, a 15 de agosto de 1195, em Lisboa,
falecido em Arcela, perto de Pádua, na Itália, a 13 de junho
de 1231, Santo Antônio de Lisboa, também chamado Santo
Antônio de Pádua, teve sua devoção espalhada no mundo
pelos portugueses, consolidando-se no Brasil em centenas de
freguesias, multiplicando-se em capelas sem conta, em alta-
res e oratórios de quase todas as casas. Seus milagres ficaram
conhecidos ainda em vida, e seu prestígio cresceu através dos
tempos, sendo rara a cidade que não tenha um logradouro
batizado com o seu nome.
Mais que um membro da corte celestial, Santo Antô-
nio firmou-se na tradição como um competente e atento
auxiliar, tanto nos momentos de comoção nacional, como
guerras, pestes e catástrofes, quanto nas mais simplórias ati-
vidades do dia a dia. Grande orador sacro, tinha o dom de
ser entendido mesmo quando pregava para povos de língua
diferente, e seu poder oratório era tão maravilhoso que, cer-
ta vez, em Rimini, na Itália, quando os homens não quiseram
ouvi-lo, dirigiu-se aos peixes que, embevecidos, punham as
cabeças fora da água, para escutar suas palavras.
Do poder das palavras passou a padroeiro das armas,
sendo transformado em arma eficaz contra os exércitos

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inimigos. Aqui mesmo na Bahia, em 1705, foi capitão na
Fortaleza da Barra, hoje Farol de Santo Antônio da Barra,
alferes no bairro da Mouraria, em 1800, sargento-mor, em
1810 e tenente-coronel em 1814, com soldo e tudo. Tam-
bém em outras partes do Brasil, foi chamado a tomar armas
contra os inimigos, sendo que, nos dias de festa, a imagem
existente no Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro,
usava chapéu orlado de arminho, espada, banda e dragonas
de oficial superior.
Outra das atribuições de Santo Antônio, segundo a
crença popular, além de dar conta de achados e perdidos, é
a de casamenteiro infalível. E, nesse caso, vale tudo, desde
orações, trezenas e responsos até intimidação e chantagem.
Para alcançar a graça de um bom casamento, o retorno de
um amante, a amarração de um marido, submete-se o pobre
do santo a todas os possíveis sacrifícios, desde roubar-lhe o
Menino Jesus até colocá-lo de cabeça para baixo, ou mergu-
lhá-lo num poço.
Por tudo isso e muito mais é que Antônio tornou-se o
santo predileto de todas as classes sociais no Brasil, livrando
seu povo da peste da guerra e dos invasores, trazendo ale-
gria aos tristes e aos desesperados de amor. Assim sendo,
talvez fosse de bom alvitre, neste momento de aflição por
que estamos passando, com tantas nuvens negras no hori-
zonte, com ameaças de apagões e outras desgraças, que se
redobrem as súplicas ao santo para que encontre uma saída
para este país, que ilumine não somente nossas ruas e casas
mas também a mente de nossos governantes, para que pos-
samos viver momentos melhores. Amém. Assim seja.

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Esparsas

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As adolescentes voadoras

U m corpo risca o ar como uma flecha. Gaivota no espaço


de um mergulho perfeito. Poucos segundos apenas e
um desenhar de asas. Quase um ruflar, diríamos, nesta ilusão
de pássaro. Cada movimento sustentado por um músculo que
vai além do seu limite num permanente desafio.
Poucas coisas serão mais belas do que um corpo em
movimento. Assim, no recorte final desta última Olimpía-
da, as ginastas aparecem como um momento inesquecível.
O instante em que forma e movimento se combinam para
criar um objeto de beleza. Um minuto fugaz de harmonia e
de encanto. Linhas que se atraem e se repelem, volumes que
se contraem e se dilatam, criando uma tensão, um ritmo que
arrebata o coração e alegra a vista.
O que encanta profundamente nas ginastas é que aí
não há nenhuma meta a atingir, nenhum recorde a quebrar.
A perfeição é a sua meta. Cada uma cria seu próprio desafio.
O resultado não é o fim mas o instante. São premiadas pelo
que fazem e não pelo que alcançam. O meio é mais impor-
tante que os fins. E, assim, se tornam eternas num segundo.
Tão eternas em sua beleza e juventude palpitantes, que
vê-las é contemplar por instantes o mistério da poesia. E eis
que, recuando no tempo, recrio um outro espaço e desenho na
mente altos muros de um palácio onde habitam etéreas outras
jovens ginastas, perpetuadas na pedra por uma mão inspirada.

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No palácio de Cnossos, na ilha de Creta, habitação
presumível do legendário Minotauro, foram encontrados
afrescos representando cenas em que jovens, de túnicas es-
voaçantes e guirlandas de floras, compõem um balé de salto
ante a plateia extasiada. Só que este não era apenas um es-
petáculo mas também um ritual, uma função religiosa. Os
saltos, as piruetas, os voos rasantes eram executados num
espaço sagrado entre touros selvagens. E a perfeição, no
caso, era um estado de risco.
Os meios mudaram, mas a mensagem é igual. Trans-
mitida via satélite, impressa em fotografias ou desenhada
nas pedras de ruínas seculares; retratando modernas atletas
disputando medalhas ou jovens cretenses equilibrando-se
em touros coroados de rosas, revela sempre a fugacidade de
um momento fixo eternamente num instantâneo de beleza.

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Crônica nostálgica à Cidade da Bahia

A s pessoas da minha geração, os adolescentes dilacerados


entre os Anos Dourados e os Anos Rebeldes, trazem,
marcada na alma a ferro, fogo e saudade, a nostálgica lem-
brança de uma cidade onde se podia viver e transitar com
conforto e segurança, desfrutando a relativa paz dos homens,
já que a paz absoluta é privilégio dos deuses.
Uma cidade sombreada de oitis, mangueiras, tamarin-
deiros, onde se podia curtir com tranquilidade os fins de
tarde no Farol da Barra, no Alto de Ondina ou na igrejinha
de Mont Serrat, descansando os olhos na curva do casario
ou na ilha defronte, aconchegada no mar como um enorme
crocodilo alimentado pelo vento.
Hoje olho para os lados e não me reconheço. Mudou
a cidade, mudei eu. O tempo disparou nos relógios em pâ-
nico. Transformados em personagens da fábula de Alice,
vivemos sob a ditadura dos horários, repetindo sem parar,
como coelhinhos apressados: “é tarde, é muito tarde”.
Todavia, não era assim quando a cidade preguiçosa es-
corria das ladeiras pelo trilho dos bondes. Uma ida a Itapa-
gipe era um passeio e uma viagem. Caminho de Areia, Porto
dos Tainheiros, sem poluição e sem a dolorosa paisagem de
Alagados. O sorvete na Ribeira, degustado sem pressa, de-
pois, a passagem pela Penha, a obrigatória oração na Igreja
do Bonfim com suas fitinhas coloridas e seus “milagres”,

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ex-votos que testemunhavam, e ainda testemunham, a força
da fé que remove montanhas. A volta por Monte Serrat, com
a igrejinha e o forte, com seus canhões e suas lendas. Quem
não tinha carro, podia perfeitamente fazer seus longos pas-
seios no conforto dos bondes sem aperto e sem exploração,
que as passagem eram baratas e, salvo nos horários de volta
do trabalho, os lugares sobravam.
Na década de 1950, Itapuã era arrabalde, veraneava-se
na Pituba, e a Barra era um bairro tranquilo onde as crianças
podiam andar de bicicleta e, aos domingos, muitas famílias
ainda botavam cadeiras na porta. O Cinema Oceania era o
point da juventude dourada em suas sessões de domingo,
que começavam, às 3 da tarde, após o banho de mar pela
manhã e o milk-shake, depois, na sorveteria Oceânica.
A intelectualidade disputando os caminhos da Uni-
versidade, que, de repente, abria os horizontes da província
com a criação das escolas de Teatro e de Música, os famo-
sos Seminários Livres de Música que tanta importância tive-
ram nas transformações de nosso meio cultural, antes que
o gigantesco Castro Alves, renascendo das cinzas, mono-
polizasse os grandes eventos internacionais, já àquela época
bastante prejudicados pela subida vertiginosa do dólar.
Hoje a cidade explode com seus milhões de habitan-
tes, carências, violências, assaltos, ruas bloqueadas como
fortalezas. Ninguém mais para numa praia deserta para ver
o pôr-do-sol. serenatas? nem pensar. Passeios, nos pou-
quíssimos parques que nos restam, só em horas determi-
nadas e com guardas por perto. Por todo canto, a descon-
fiança, o medo, a insegurança. A cidade inchada como um

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tumor expõe suas mazelas. A miséria, sem pudor, avança a
passos largos com seu cortejo de sombras que nos fazem
meditar sobre o destino que nos aguarda; sobreviventes da
classe média, encastelados em nossos derradeiros bastiões,
empastelados entre a pobreza absoluta e a usura desmedida.
A sonhar com areias douradas do Porto da Barra depois de
um mergulho restaurador na fria água tranquila, sob as asas
protetoras da vela dos saveiros, que, como grandes aves ma-
rinhas, velavam a nossa paz.

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Devoções

C omo todo brasileiro que se preza, embora não fosse par-


ticularmente religiosa, minha mãe tinha suas devoções.
Católica praticante à sua moda, nunca foi de frequentar sa-
cristias, não tinha confessor, não tomava conhecimento das
tendências do Vaticano e só ia a conventos para comprar se-
quilhos e encomendar doces. Mas não perdia missa aos do-
mingos e jejuava e abstinha-se de carne nos dias de guarda,
conforme mandava a Santa Madre Igreja. Assim, em nossa
casa, durante a quaresma, o cardápio, às sextas-feiras, era
sempre na base de peixe, preferivelmente bacalhau e feijão de
leite, um dos pratos prediletos de meu pai. Acredito que não
era por sacrifício que faziam esta dieta santificada, porque,
mesmo passado o tempo pascal, continuávamos a degustar
pratos da cozinha baiana, invariavelmente, às sextas-feiras.
Sem pecado e sem culpa, que naquele tempo ainda não ti-
nham inventado o colesterol.
Minha mãe tinha uma relação especialíssima com o
divino, relação mais de camaradagem que de adoração ou
subserviência. Alguns dos santos de sua predileção fica-
vam distribuídos em prateleiras especiais em seu quarto e
tinham orações particulares impressas em postais coloridos,
os “santinhos”, espalhados em bolsas e, principalmente, em
malas, quando de viagem. Santo Antônio era, sem dúvida,
o predileto, com direito a novenas (ou seriam trezenas?) e

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visitas, às terças-feiras, de preferência nas mesmas igrejas:
de Santo Antônio da Barra, de São Francisco ou da Piedade.
Ao Bonfim, por ser mais longe, íamos pagar promessas, em
datas indeterminadas: até hoje não consegui decifrar o cri-
tério dessas visitas. São Judas Tadeu era outro santo muito
invocado, e o Coração de Jesus, reinando solitário e soberbo
com seu coração resplandecente sob uma redoma de vidro.
Um detalhe interessante é que meu pai colecionava
imagens sacras, mas estas não eram levadas em considera-
ção na hora das promessas e das rezas: eram santos de en-
feite, não mereciam confiança.
A literatura religiosa de minha mãe era restrita ao Ado-
remos e algumas novenas. Não gostava do missal, que consi-
derava complicado e, das missas, não apreciava os sermões,
acho mesmo que sempre dava um jeito de chegar um pouco
atrasada para “pular” o sermão e entrar logo no “santos”, o
que validava a cerimônia. Mas, se por acaso atrasasse demais
e passasse do tempo considerado válido, achava por obriga-
ção repetir a missa seguinte.
Na sexta-feira santa, minha mãe jejuava. De manhã,
só um café preto sem açúcar até a hora do almoço, onde
nos esperava um banquete, a mesa repleta de iguarias do
mais puro gosto baiano, com azeite e moquecas devidamen-
te acompanhadas de um bom vinho tinto. Aí, segundo ela,
podia-se comer a fartar, desde que, à noite, se contentasse
com uma modesta ceia, se é que alguém ainda conseguia
comer alguma coisa.
Dos idos de minha infância, cada dia mais longínqua e
mais desfocada, guardo a lembrança de dois momentos em

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que a devoção de minha mãe se tornava motivo de alegria
para mim: o romper da Aleluia, no fim da quaresma, e o
mês de Maria. O sábado de Aleluia naquele tempo, antes da
reforma que decidiu que a ressurreição do Senhor se dera à
noite, era festejado às dez horas da manhã e tinha um cará-
ter festivo e alvissareiro.
Depois da tristeza da Sexta-feira Santa, quando re-
almente se reverenciava o Crucificado, com a proibição de
festas, músicas e até roupas berrantes, quando, nas igrejas,
as imagens cobertas de roxo lembravam o sacrifício do Cris-
to, o romper da Aleluia era realmente um momento mágico:
os sinos das igrejas repicavam alegremente; as buzinas toca-
vam; no porto, os navios apitavam; soltavam-se foguetes; e
iniciava-se um “panelaço”, com as crianças batendo as tam-
pas das panelas, e os adultos dando vivas à ressurreição do
Cristo.
Depois do alvoroço, minha mãe me chamava para re-
zarmos juntas a ladainha. Para mim, era um ritual de impor-
tância acender a vela e fazer coro aos Kyrie Eleison, diante
do coração flamejante do Cristo ressuscitado. Mas era no
mês de Maria que realmente se afirmava a devoção de minha
mãe. Uma grata lembrança, reconfortante, a leitura diária do
livrinho, com as histórias exemplares de milagres e conver-
sões de ímpios e pecadores, lidas à luz de vela, ao cair da
tarde, sempre acompanhadas da doce invocação a Maria,
numa das mais belas orações conhecidas, o “Lembrai-vos”,
e novamente a ladainha, com ênfase especial nas invoca-
ções à Virgem Maria; Torre Ebúrnea, Rosa Mística, Harpa
de David, palavras difíceis, cujo sentido, muitas vezes, me

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escapava, invocações em latim inteiramente desconhecidas
ao meu fraco vocabulário infantil, mas que transmitiam um
sentimento de comunhão com algo muito profundo, miste-
rioso e incompreensível e, no entanto, confortante e sereno
como aquele Jesus que perdoava os pecadores mais terríveis
e os trazia de volta ao rebanho pela graça dos convertidos.
Como um murmúrio muito suave ainda ressoam nos
meus ouvidos as palavras sagradas “Cordeiro de Deus que
tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz”. Assim seja.

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Elegia para um morto em sua cadeira

J á nada mais te atinge. Nem o sangue do Cordeiro nem o


ruflar de asas, sombra de anjos na parede. Não te moves
sequer. Nem a lembrança dos dias vividos te estremece. Não
sei quem sou/quem és, que avis rara te premiou com penas, te
espedaçou o fígado. Coração, coração... teu é o espaço perfei-
to para o grito que não houve. Teu canto das sereias absurdas
do mal. E o descanso dos obscuros laços que te atavam, lobo
noturno e enigmático, aos cofres do imponderável.
Não sei de corpo mais cansado, matéria vil de enganos.
Putrefacta flor de pétalas sem retorno. A teus pés, dormem
dragões alados, anjos domesticados que choram a tua perda
como um cão chora seu dono. Foi esta a tua moira, a mais
pesada insídia. Estás na morte sentado como um rei em seu
trono. A corte está vazia. Somente o bobo vomita sobre o
tédio todos os risos de angústia. Dorme em tuas mãos um
pássaro empalhado. Um filete de sangue escorre de tua boca
e escreve, sobre os muros da memória, a inquietante estória
de teus dias.
Um relógio bate sozinho no descompasso da espera.

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Fundo de gaveta

U m colar de contas de cristal com fecho quebrado, uma


enfiada de chaves que já não servem para nada, um len-
cinho de cambraia com uma data bordada e um nome, uma
caixa de veludo azul para guardar velhas cartas de amor que
nunca foram escritas, um relógio quebrado, uma agenda de
números apagados, uma radiografia da face indicando um
ligeiro velamento, incipiente sinusite que nunca foi além de
uma breve ardência, uma sensação de peso ao inclinar da ca-
beça, um porta-tinteiro de prata sem tinteiros, uma caneta
Parker de bocal de ouro e iniciais gravadas, um isqueiro Car-
tier, um chaveiro de esmalte com uma gôndola e um nome,
Venetia, um mapa de Paris, um velho álbum de fotografias
onde a vida se revela e se desdobra em poses, em sorrisos, em
paisagens, em mistérios escondidos nos gestos que, perpe-
tuados no tempo, levaram para o silêncio das tumbas segre-
dos nunca revelados, amores impossíveis, soluços engolidos
às pressas, dores, desejos recalcados; um passaporte vencido,
o manuscrito de um poema jamais publicado, um santinho de
primeira comunhão, a oração do Divino, uma receita de bis-
coitos de nata, o risco de um bordado, uma frase latina para
um possível ex-libris, um calidoscópio, um frasco de botões a
serem aproveitados, uma flor seca, as penas de um pavão, um
leque de sândalo, uma fivela de metal ornada com golfinhos,
um baralho miniatura para jogar paciência, um número de te-

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lefone sem data e sem nome, uma semente de baobá, o olho
azul do profeta, um frasquinho de água benta do santuário de
Fátima, três parafusos e uma porca, uma lanterna sem pilha,
restos de uma coleção de caixa de fósforos, cadernetas de
hotel com impressões de viagem, um pedaço de pedra do pa-
lácio de Cnossos, um chocalho de cascavel, uma escovinha de
unhas, um recorte de jornal com uma foto e um necrológio,
a carapaça de um besouro, sombras verdes, violetas e naca-
radas de um estojo de maquiagem, um porta-perfumes, um
porta-lápis, um marcador de livros, uma espátula, um sonho
irrealizado, uns restos de esperança, um ramo de saudades
esquecido num canto...

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Janelas

J anelas são espaços de fuga. Maneiras de viajar num doce


abismo. De espreitar desvãos, inventar caminhos; insus-
peitadas paisagens, desconhecidos horizontes.
Janelas são olhos arregalados para o mundo, mas, as
vezes, são apenas espelhos, águas paradas refletindo o rosto
ambíguo de nosso próprio desespero. Olhos perdidos num
mundo que nos foge como um peixe irreal na superfície de
um lago.
Janelas são veredas abertas para o sonho. São passa-
gens para a distância infinita que nos chama com seu po-
der de encantamento, com a magia do ignoto. Debruçar-se
numa janela é respirar o mundo. É aspirar o ar salitroso das
manhãs cheirando a fruta e maresia. É ser tocado por um
vento quente num dia de verão, quando o sol racha os cam-
pos, e o aroma do capim se mistura na memória com o chei-
ro bom dos currais; a espuma macia do leite transbordando
das canecas lustrosas.
Momentos impressos na retina: um homem no bar-
ro vermelho, um homem caminhando carrega meu destino.
Vejo da janela um homem que caminha e, quando ele tiver
passado aí, eu retomarei o espaço do cotidiano, aí eu no-
vamente estarei pronta, a postos para o que devo cumprir,
para enfrentar novamente a fortuna. É só um jogo.
Somente a tentativa de brincar um pouco na janela, de

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dar um corte no tempo, de ter a consciência nítida daque-
le homem caminhando como o ponteiro inexorável de um
relógio invisível. Vai parar, talvez, vai parar. Mas ele passa
alheio àquela sombra na janela. Ele nem sabe que eu existo,
mas é meu tempo que ele conta, meu curto tempo que es-
corre, entre sombras, numa tarde que finda.
Janelas são pórticos de oração, pouso para reflexão.
São limites, campos de decolagem, cais de navios que par-
tem inutilmente, ondas azuis batendo nos caixilhos, rede-
moinhos que passam com suas algas de luz dispersas nas
volutas que se fecham aos últimos raios de sol colorindo as
vidraças.
Rastros de lua no céu, estrelas distantes e um senti-
mento de perda irreparável que nos faz mergulhar de cabeça
no frio azul distante, lá bem longe onde habitam fantasmas
perdidos na infância, quando inventávamos na janela estó-
rias infindáveis, olhando a copa das árvores e casinhas mi-
núsculas, ou as nuvens vagarosas criando sem cessar perfis
de bichos e velhas e castelos que se desfaziam ao mais leve
sopro, aos caprichos do vento, escultor incansável.
O homem caminhando, cada vez mais longe, até que,
por fim, se perde numa curva da estrada. Um vento frio
soprou. Fecho a janela.

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Jorge Amado, para sempre

U m escritor, como as aranhas, vive do que tece. Sua ma-


téria-prima é a emoção, com ela fabrica suas teias, seus
enredos, seus poemas. Mas, às vezes, quando muito forte, a
emoção torna-se um obstáculo, e a teia, que se deseja simétri-
ca e coerente, torna-se um embaralhado fio, a repetir-se sem
nexo.
Compartilhando este espaço, aos domingos, neste jor-
nal que serve como canal de interação entre mim e os meus
possíveis leitores, era natural que quisesse, e precisasse mes-
mo, compartilhar minha dor com outros tantos que, como
eu, acompanharam os últimos momentos do escritor Jorge
Amado.
Várias vezes, tentei começar a escrever esta crônica,
mas sempre ficava paralisada, a cabeça inteiramente vazia,
os dedos, que pareciam engessados, negando-se a obedecer
a um comando inexistente. No entanto, nestes últimos dias,
não tenho feito outra coisa senão falar, comentar, dar depoi-
mentos, explicações. Mas as coisas se complicam quando se
trata da palavra escrita com seu peso de fetiche como um
avatar, este recorte silencioso na página a repercutir como
um sino de bronze no íntimo de nossas almas. Porque a
palavra escrita tem um poder de sedução e um peso de sen-
tença que, às vezes, assusta. É um registro permanente, uma
marca indelével.

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Do alto do casarão azul do Pelourinho, sede da Fun-
dação Casa de Jorge Amado, procurando um caminho, um
fio que me conduzisse através do labirinto de recordações
que me afogavam, como ondas de um mar invisível, sen-
tia-me como uma pessoa que, no meio de uma ventania,
procurasse agarrar algumas folhas rodopiantes para colá-las
num álbum. As palavras se dispersavam, a memória frag-
mentava-se. Meu coração está dividido. De um lado, cumpre
exaltar o grande escritor, a figura internacional de um ho-
mem que soube conquistar o mundo com seus personagens
construídos e amalgamados com o barro e o sal da grandeza
e das misérias humanas. Ele mesmo, personagem maior do
universo literário, a construir uma obra que, só no futuro,
quando conveniente e extensamente estudada, poderá vir a
tornar-se um parâmetro de aferição da sua importância. Por
outro lado, o que me conforta recordar, o que me serve de
consolo, nesta hora de despedidas, são os momentos em que
pude desfrutar de uma amizade sem preço, da convivência de
um ser humano verdadeiramente excepcional.
Na casa do Pelourinho, onde estão preservados seus
acervos, ou na casa do Rio Vermelho, onde, sob a velha
mangueira, repousam suas cinzas, no apartamento do Ma-
rais, debruçado sobre o Sena, seu espírito sempre pronto a
generosamente dividir, ensinar, orientar, estará permanente-
mente conosco. Por essas ladeiras centenárias, tantas vezes
palmilhadas, pelos caminhos dessas ruas que descem para
o mar como corredeiras cinzentas, julgo poder vislumbrar,
por um segundo, seu vulto ágil, de mãos dadas com Zélia,
no meio da multidão dos personagens que percorrem sem

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cessar esse território encantado onde vivem dona Flor, Va-
dinho, Quincas Berro Dágua, Jesuíno Galo Doido, Pedro
Arcanjo e tantas outras figuras eternizados na obra deste
grande escritor do povo baiano que se chama Jorge Amado.

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Lisboa revisitada
Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
[...]
Mas, ai, a mim não me revejo!
Fernando Pessoa

P ara um brasileiro, ir a Lisboa é o mesmo que voltar à casa


paterna. Uma casa de onde, talvez, nunca tenha real-
mente saído. Pode parecer um lugar comum, um enunciado
de frases feitas, mas, para um brasileiro, principalmente se
nascido na cidade do Salvador da Bahia de Todos-os-San-
tos — berço e relicário desta civilização amalgamada nos
trópicos pelo gênio português —, ir a Lisboa significa refa-
zer um caminho de encantamento e fantasia, bafejado pelos
mesmos ventos salitrosos que impeliram as velas marcadas
pelo signo da cruz na rota fantástica dos descobrimentos.
Portugal! Que imenso país em tão restrito território!
Sua grandeza não se pode medir em quilômetros, mas numa
escala que transcende o limite dos mapas, invadindo novos
horizontes, criando desconhecidos mundos fantásticos, a
emergirem do mar como paraísos reinventados.
Pela primeira vez em Lisboa, em 1986, diante da Torre
de Belém, assaltou-me um pressentimento de que toda a mi-
nha existência tinha sido construída apenas como pretexto
para aquele exato momento. Diante do majestoso escoar do
Tejo, contei os dias vividos e fui além, fui mais além, argo-
nauta de um tempo às avessas, regressando sobre o sulco
azul das caravelas no oceano do tempo sem limites.

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Na abençoada terra de meus antepassados, dos ances-
trais que forjaram a incrível aventura de criar uma civiliza-
ção em que se encontram e convergem todos os possíveis
caminhos — num difícil aprendizado de tolerância, num de-
licado equilíbrio de raças, de línguas, de crenças e costumes
—, foi que consegui finalmente entender, integralmente, a
grande herança que nos foi legada por este povo admirável,
fruto da pedagogia ditada pelo jeito português de entender
o Outro como a si mesmo e, dentro da diferença, encontrar
o equilíbrio.
Começava, naquele instante, um interminável jogo de
amor, uma paixão que não se fundamenta propriamente em
conhecimento, mas que se alicerça na emoção, no deslum-
bramento de percorrer caminhos que vêm de muito longe e
que, de súbito, se cristalizam transformando o que antes era
apenas fantasia em realidade concreta e integralmente vivida.
Porque conhecer uma cidade é como explorar um cor-
po amado. Tatear, buscar, cheirar, perder-se nos mil possí-
veis labirintos, dissolver-se nos ventos que a envolvem, no
crepitar das folhas secas nas calçadas, nos reflexos do sol
nos olhos fixos das vidraças.
Lisboa é um cheiro de castanhas, um odor de sardi-
nhas sobre as brasas, um voltear de pombos nas sacadas.
Como um pássaro grimpado nos penedos, pássaro Roca de
asas prontas para o salto, o castelo de São Jorge espreita
a cidade moura a escorrer pelas ruas estreitas da Alfama,
debruçado sobre o grande vale onde se agita o coração da
antiga urbe com suas praças magníficas, seus palácios, seus
monumentos sombreados pela pátina de tantos séculos.

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Do outro lado, no ondear suave das colinas, o Bairro
Alto e suas lojas de antiquários guardando o sabor de velhas
coisas impregnadas de histórias; madeiras polidas pelo ver-
niz suavíssimo dos dedos, espelhos onde se contemplaram
tantas faces, tapetes que ainda guardam o peso de tantos
passos, no silêncio apenas tocado por um leve roçagar de
sedas, a esvair-se como um rastro de perfume no incenso
das naves.
Talvez deva falar das praças... As praças de Lisboa! A
dos Restauradores com seu obelisco, o Rossio com suas fon-
tes, a praça do Comércio, também conhecida como Terreiro
do Paço, com sua arrogância simétrica, ao escoar das ruas
que aí vão desaguar como afluentes caprichosos, dominada
pela notável estátua equestre do rei D. José I, franqueando a
cidade aos que chegam, através da magnificência de seu arco
triunfal, ali defronte ao Tejo, de onde partiram as caravelas
à descoberta de novos mundos.
Os pátios, os conventos, as capelas... uma nostalgia de
fados, um balbuciar de poemas, um leve encanto de mouros
remanescente nas fachadas, herança de templários, de ca-
valeiros andantes que se fizeram marinheiros pela glória de
Deus e pelo orgulho dos homens.
Sozinho em sua praça, o marquês de Pombal equili-
bra-se no tacão de seus sapatos, acariciando os leões que
se agacham a seus pés, pacificados como gatos. Diante de
seus olhos de mármore, desdobra-se a avenida da Liberda-
de com suas árvores exatas.
Sopra do rio um vento frio, e o azul da tarde se crista-
liza em azulejos no mirante das casas, enquanto, nas sacadas

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rendilhadas de grades, sombras esquivas debruçam-se sobre
os umbrais carcomidos pelo tempo.
Lisboa se dissolve na bruma dourada do crepúsculo a
iluminar a fachada dos Jerônimos, retorcida de cordoalhas,
bússolas, esferas, astrolábios, enquanto “o macio Tejo, an-
cestral e mudo” continua a fluir suas águas de encanto.

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Maratona

T odos viram quando, na disputa da maratona, a represen-


tante da Suíça chegou se arrastando e caiu quase morta
de cansaço nos braços solícitos do pessoal da equipe médica.
Um espetáculo grotesco aquela mulher titubeante zigueza-
gueando, aos tropeços, até cruzar a linha de chegada.
À primeira vista, pode parecer uma teimosia absurda
levar uma competição até aquele ponto. Em certos momen-
tos, o patético chega a tocar a beira do ridículo, e acredito
que algumas pessoas tenham sentido um certo mal-estar
diante da chegada, trôpega, da moça.
Mas os que assim fizeram desconhecem, provavel-
mente, o espírito da maratona e a história desta competição
instituída pelos gregos 460 a.c. para comemorar a vitória dos
atenienses sobre os persas na batalha de Maratona. Durante
a primeira guerra médica, tendo os persas exigido de Ate-
nas e Esparta, cidades gregas, terra e água em sinal de sub-
missão, seus embaixadores foram jogados num poço, onde,
segundo os gregos, teriam água e terra em abundância. Pra
vingar a afronta, Dario, com uma frota de 600 navios, de-
sembarcou uma poderosa tropa na planície de Maratona, a
cerca de 40km de Atenas. Os atenienses aterrorizados pe-
diram socorro a Esparta que, entretanto, negou-se a aju-
dá-los, alegando motivos religiosos. A destruição da cidade
parecia iminente; no entanto, os atenienses, com um exérci-

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to de apenas dez mil homens, conseguiram bater os persas
e forçá-los a reembarcar. Segundo a tradição, Diomedon,
mensageiro ateniense, após a vitória, correu de Maratona a
Atenas e caiu, morto de fadiga, depois de dizer uma única
palavra: “Vencemos!”.
Para comemorar tal façanha, foi criada a prova olímpi-
ca da maratona, corrida a pé num percurso de 43,5 metros.
Dentro do espírito em que foi criada, o ideal da prova é che-
gar, de qualquer jeito. E, talvez, no fundo do seu coração, a
moça cambaleante tenha repetido a mesma frase do herói
morto: “Vencemos!”.

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Nostradamus não está com nada
(ou o amargo sabor das profecias)

O irado profeta despejou sua fúria no palco iluminado. A


rainha das serpentes encrespou um sorriso nos lábios
vermelhos. Ai, flor de cactos, mandacaru, passiflora, que sabe
o profeta dessas coisas estelares? O bom das profecias é que
nunca se realizam. Ficam suspensas no tempo como adagas,
como foices brandidas, suaves, no bailado da morte, esquele-
tos salpicados de carmim e lantejoulas; a morte, um rubi na
testa e os requebros do ídolo. A multidão ululante persegue
o sonido, o dó das guitarras, e o diabo louro se assenta bem
do lado direito. Um prato balança, como um disco dourado
suspenso no abismo da última galáxia. Pai, perdoai-lhes. Eles
não sabem que existem os com fome de pão, os sedentos de
justiça. O último fígado foi estraçalhado ali mesmo no palco.
Melhor é que ninguém se intrometa. O diabo é vivo e arma
seus conchavos atrás dos bastidores, no camarim da estrela,
atapetado de confetes. Piedade, Senhor, para a rainha louca.
Do fundo do sertão, o profeta maldisse e rasgou a carne e a tú-
nica nos espinhos selvagens dos mandacarus ardilosos. Eles são
jovens, Senhor, e a alegria? É um crime? No grande circo obs-
curo, a bailarina cega desliza no trapézio. Um salto sem redes
é preciso. O diabo sorri enviesado. A loura pinta os dedos de
sangue e ensaia uma ópera. Um fio de saliva escorre da Etiópia
e inunda o Nordeste. Pai, afasta de mim este cálice. O que será

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de nós nesta hora de juízo final? Ozzy Osbourne não me negará
esta última dádiva. Seu corpo de sáurio, membros retorcidos
de demônio no escuro. que manequim talhou as roupas que
se grudam como cascas em sua pele? Ó anfíbio, batráquio
odioso! Que fiz para merecer odiar-te assim? A desvairada
guitarra como um cavalo no peito. Seu relincho selvagem, ó
mula sem cabeça, vitrine de enforcados. Devorador de mor-
cegos, pendura os corpos decapitados de teus gatos na última
fresta do inferno povoado de gritos, de tambores selvagens.
Eu varrerei o palco depois do apocalipse, quando as quatro
bestas apaziguadas resistirem a abandonar sua ração de alfafa.
A Besta, então, já terá assumido o seu lugar de presidente da
companhia, com uma gravata de bolinhas e óculos reluzen-
tes. A Besta não está com nada e vai dormir com a secretária,
mas Ozzy Osbourne, no centro do espetáculo, toca a sétima
trombeta e começa a devorar um vampiro de plástico sob
os aplausos delirantes dos fãs envenenados. Nostradamus, no
infinito, cruza os braços e cala.

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O calor da fogueira

E le viveu e pregou no deserto. Comia gafanhotos vestido


apenas por um velo curtido e malcheiroso. Era primo de
um Deus e partilhava Seu destino; na anunciação e no sacri-
fício.
Nunca plantou, nunca colheu. Sua messe era a palavra.
Sua colheita, as águas do batismo.
Sua morte foi a última provação. O derradeiro sacrifí-
cio. Por não ceder aos encantos da filha de Herodíades, foi
degolado. E sua cabeça, presente macabro, foi dado a Salo-
mé numa bandeja de prata. Trágico arremate para uma vida
inteira dedicada a orações e jejuns.
Mas, neste mundo, a história e as lendas dão voltas
e voltas. E foi assim que, aos poucos, o sombrio eremita
transformou-se em padroeiro da mais doce, alegre e popu-
lar das festas da cristandade.
É difícil dizer quando e como o ascético pregador tor-
nou-se o santo amável, o herdeiro dos ritos e cultos do deus
pagão das colheitas. Não tão difícil, porém, é adivinhar-se o
rastro desta mutação que, passando através dos gnósticos,
mais precisamente pela seita designada Cristãos de São João,
trilha caminhos de Dioniso e páginas do Corão.
Desse modo, no subterrâneo entrecuzar-se de lendas
e costumes (religiosos ou profanos) que permearam a Idade
Média com sua herança de múltiplas culturas, o terrível pre-

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gador, que bradava nos desertos “Preparai os caminhos do
Senhor”, transformou-se no patrono de um culto à vida e à
ressurreição, no padroeiro das graças alcançadas mercê de
adivinhas, superstições e crendices, no doce São João, com
seu carneirinho. São João, na tradição brasileira o mais povo
dos santos, o mais chão, o mais humilde e, por isso mesmo,
o mais festejado, o mais profundamente ligado aos costu-
mes de nossa gente, porque teluricamente associado a ritos
que se enraízam no tempo, que se alongam mais fundo que
a própria história da cristandade.
Há, no espírito da festa de São João, alguma coisa par-
ticular e delicada. O retorno à ancestralidade esquecida, aos
cultos domésticos, aos costumes passados. Mito de ressur-
reição e festa da colheita.
Na mesa do pobre ou do rico, as mesmas oferendas:
as espigas e o vinho. Muito mais que de animais sacrificados
a festa se faz dos frutos da terra: o milho, o amendoim, a
batata doce, o aipim, a mandioca. Ao natural ou transfor-
mados em bolos, em pamonha, em canjica, a depender das
posses e das habilidades. E os vinhos, os licores: de jenipa-
po, passas, maracujá, tangerina...
O calor das fogueiras revivendo a crença dos antigos
braseiros. Com o fogo se festeja, porque pelo fogo se vive.
Assim, homens e natureza comungam do mesmo ardor re-
ligioso.

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Pássaros

V ejo no calendário que hoje é dia dos pássaros. Quem


assim determinou eu não sei, mas, por causa disso, me
ponho a pensar nesta criatura tão infinitamente intrigante que
é um pássaro. Da mais desajeitada à mais graciosa, as aves
sempre incendiaram a imaginação dos homens que nelas pro-
curavam explicações que, se não explicavam nada, liberavam,
em compensação, as fantasias mais desatadas. Na religião e
nas artes, as aves estiveram sempre presentes, e acredito que
não tenha existido mitologia sem seus pássaros, ou poeta que
neles não buscasse inspiração para um poema. Os egípcios
acreditavam num grande ovo cósmico feito pelo deus Khnum
com a lama do Nilo. De fato, do abismo primitivo, surgiram
os deuses de vários nomes, Khnum, Thot ou Ptah, o grande
deus modelador, “o que pensava como coração e ordenava
como língua” e, na sua roda de oleiro, modelou um ovo no
qual foi incubada a Terra. Pássaros, pássaros: uma águia para
Zeus, uma pomba para Noé, Leda fecundada por um cisne
que, em sua plumagem, escondia um deus. Entre os persas,
Simurgh e, entre os hindus, Garuda, o vento como um pás-
saro de açoite. Entre os cristãos, o Espírito Santo encarnado
numa pomba. E no cotidiano? Os colibris dão sorte, as coru-
jas, azar. Gaivotas como almas penadas de marujos afogados,
e andorinhas trazendo o verão como as cegonhas traziam
crianças. Na ânsia de serem pássaros, símbolo de transcen-

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dência e liberdade, os homens criaram os anjos e dançaram
enfeitados de penas como fazem os pássaros na época de se
acasalarem. Nas vísceras dos pássaros, estava escrito o desti-
no, e uma das mais piedosas lendas mostra o pelicano como
aquele que estraçalha a própria carne para alimentar os filho-
tes.
Pássaros, pássaros... Uma noite, um corvo entrou pela
janela, pousou no ombro de Palas e, ao poeta que cisma-
va, embalado pelas lembranças, respondeu apenas: “Nunca
mais”.
Pássaros, pássaros: aves canoras, aves de rapina. Men-
sageiras da vida, arautos de desgraças ou apenas belos e inú-
teis arabescos; como flores aladas, como poemas, como o
rastro da passagem suavíssima de um sonho.

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Réquiem para um poeta assassinado

N egro é o fundo do poço. E negro o instante do acerto


final. Lâmina entre dentes, o canto prenuncia punhais.
Teu canto, negro como a pele refletida em mofados espelhos.
Gritas. Não te ouvem. Nunca ouvem. No vazio absoluto, só
o baque surdo do corpo e olho vidrado da mãe. Agora, todas
as mães do mundo choram filhos mortos: o peso no regaço.
Negro é o fundo do poço, o alçapão que se abre. Cantas a
última canção, e te levam para a morte. Estás sozinho no es-
curo, o escuro é o teu país. Mas o canto... o canto soa claro e
é luz na sombra. Que pode, afinal, um poeta de mãos negras,
de negro coração sequioso de vingança? A fúria dos cães está
completa. A fome dos punhais.
Canto agora teu canto. O que cantaste, caminhando
devagar em direção aos loucos patamares, aos degraus do
suplício. Houve um minuto de assombro, bolha de silêncio.
Depois, o choro amargo da mãe e um ódio longo como um
rastilho de pólvora.
Poetas rebelados de todos os quadrantes, uni-vos!
Este é um tempo de lama, náusea e grito. O sangue coagu-
lado clama por nós em Pretória.

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Hermafrodito

S ubitamente, instalou-se o milagre. Correram todos para


ver o impossível. Um cachorro com chifres? Um bezer-
ro de ouro? Um touro com cabeça de gente? Não, apenas
uma mulher belíssima, com jeito adocicado, um brilho entre
perverso e inocente nos olhos um tanto juntos e os caninos
perfeitos, ligeiramente salientes na ambiguidade do sorriso.
Um ser de longos cabelos pretos, misterioso e inquietante em
sua dupla natureza, um andrógino; a força alquímica dos con-
trários.
E o prodígio falou. Com sua voz aflautada, sacudiu os
cabelos e disse:
— Eu sou o outro, eu sou o que ficou atrás do aço dos
espelhos. Alguém que mora em mim, intruso e forasteiro.
A minha mãe é Afrodite, a Beleza, e meu pai o incansável
mensageiro, Hermes, o senhor dos caminhos. Não sei mes-
mo como começou esta incrível aventura. Uma manhã no
banho, mirei-me nas águas e vi uma jovem ninfa que me
olhava. Imediatamente, apaixonei-me. Ali estava o Outro,
o Duplo, a Metade. Hermafrodito, ela disse, e abraçou-se a
mim com tal apaixonado anelo, e de tal modo me envolveu
e envolveu-se, que sua pele rósea grudou-se à minha carne,
seus membros delicados uniram-se ao meu corpo de efe-
bo. Sobre minha cara, desenhou-se o suave contorno de sua
face. Seus olhos mergulharam nos meus olhos, e fomos dois

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num só. Apenas múltiplos de uma estória comum. Depois o
sexo se alteou de leve como um junco no lago, e os seios de-
sabrocharam como pomos no jardim das Hespérides. Isto
foi longe e há muito tempo, mas ainda guardo no corpo os
sinais da tormenta.

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Tristeza
Ó solidão do boi no campo,
ó solidão do homem na rua!
Carlos Drummond de Andrade

O mal se chama “tristeza” e está matando o boi do campo.


O bicho morre devagar, definhando aos poucos, enlan-
guescendo, perdendo as forças até findar-se numa cardiopa-
tia assassina. Daqui de meu canto de cidade, fico a imaginar
como será um boi atacado de tristeza. Homens, já vi mui-
tos. Padecentes de males muitas vezes não diagnosticados. A
princípio, apenas uma leve angústia, um peso indefinido, uma
nostalgia, um desespero manso. Às vezes, a tristeza nos ho-
mens também mata. Assim morriam os escravos atacando de
banzo, distantes de sua terra. Assim morrem os que perderam
a esperança e a força de viver. Os que perdidos de amor dei-
xam a vida, deixando com ela a razão do sofrimento.
Volto à imagem do boi. Num campo verde, vejo o boi
doente de tristeza. Pode haver coisa mais triste do que um
boi triste? Manso, quieto, ruminando seus males. Toda a for-
ça guardada, recolhida no peso desta doença sem cura. Toda
a fúria, todo o ímpeto do ataque, toda a possível estocada
dos chifres ali desmanchada nesta melancolia concentrada
em si mesma, em seu sofrimento que nem as árvores nem
a terra em volta pressentiam. Um bicho triste, o boi, já de
nascença. Uns olhos úmidos, pedinchões, um ar cansado, o

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passo lento como se carregasse no lombo toda a carga do
mundo, como se levantasse para sempre e sem descanso
toda a dor de uma invisível ferroada.
Solidão, solidão. Um homem passa na rua, e sua tris-
teza faz dele apenas mais um desgovernado barco à deriva
de sonhos. Um homem e sua dor, um homem triste e seu
fardo, sua bruaca angústia. Centrado e concentrado em seu
ruminar de grandes/pequenas angústias, um homem com
sua paixão, sua dor de corno, sua fome, suas dívidas, sua
angústia metafísica, sua luta inglória, sua batalha cotidiana.
Tristeza é uma palavra doce e amarga: sabor de mel
ou quássia. Cicatriz que se resolve com o dedo, a dor antiga
revivendo por instantes como brasa soprada. Na solidão de
um campo verde ou de uma rua movimentada, homem/
boi curvados sob o peso de uma coisa maior e mais forte
que os irmana. A mesma mágoa, o mesmo desconforto que,
subitamente, inexoravelmente, atinge a todos. Miséria e fra-
gilidade da humana/bovina condição.

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Metamorfose

— Quem foi que disse aí que não acredita em Lobiso-


mem? Eu mesma já vi vários...
— A senhora está brincando! Lobisomem nem existe...
— Como não existe, pois eu estou dizendo que já vi?
E não foi eu só, não, aqui por estas bandas quase todo mun-
do já se deparou com um. É um bicho feio danado, assim
na feição de um cachorro. Só que não é tão peludo. É mais
tipo um homem mesmo, só que sempre está nu e anda de
quatro, rosnando. A cara é que fica horrorosa quando ele se
transforma, toda torcida, cheia de pelos, aquelas orelhonas...
— A primeira vez que eu vi era mocinha. Eu tinha
ido fazer farinha com a minha finada mãe, e ficamos por lá
distraídas, e o tempo foi passando, e todo mundo já tinha
ido embora. E a gente lá, às voltas com o masseiro. Já perto
de meia-noite, o serviço acabado, lá vem nós pela estrada,
o panacum nas costas. Não tinha lua nenhuma, mas até que
a noite estava bonita. Nisso, a gente viu um vulto passando
por detrás de umas moitas, bem ali perto da casa do finado
Honório. Deu logo aquele susto, aquele desassossego. Aí o
bicho uivou... Não foi nada não, meu sinhô... Pernas pra que
te quero? Ganhei o mundo numa carreira que nem me lem-
brei da velha. Foi um carreirão só. Minha mãe atrás, largou
a tralha toda e afundou no meu rastro.
— De outra vez foi pior. Pois não é que o desgraça-

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do foi atentar dentro de casa? A gente já dormindo, noi-
te fechada, quando, de repente, ói o cachorro dando sinal.
Naquele tempo, meu marido criava galinhas. Umas frangas
bonitas, de pescoço pelado, uma novidade. O galinheiro fi-
cava, assim, rentinho à casa. Acordamos com a cachorrada
latindo. Meu velho aprontou a carabina e já ia virando a
taramela, quando ouvimos aquilo na porta. Era um baru-
lho esquisito: slept, slept, slept, como uma orelha enorme
batendo, batendo. Aí foi um alvoroço. Menino chorando,
mulher desmaiando. Uma gritaria de acordar um morto. O
bicho, quando ouviu aquilo, zasp! afundou no escuro que
ninguém viu nem o cheiro. No outro dia, a gente foi ver no
terreiro, tava lá as pegadas. Cada pezão destamanho... E o
pior, um tufo de cabelo vermelho grudado na cerca, bem
no lugar em que o arame foi forçado. Este até eu desconfio
quem seja. Tenho cá minhas desconfianças... Que é gente da
zona ninguém me tira do juízo, é gente daqui mesmo...
— Agora, caso bonito de virar, mesmo, é o de César.
Um camarada que mora pras bandas do Cipoal, perto da
casa de Zé, quase frente à venda de Totonho. De vez em
vez, tá lá ele, virando casa de cupim.
??????!!!!
Casa de cupim, sim, senhor, Outro dia mesmo, uma
mulher foi buscar uns sacos de farinha e, quando foi chegan-
do, ele estava na janela. Ela salvou, e ele desapareceu. Quando
ela chegou mais perto, bem na soleira da porta, olha lá a baita
casa de cupim. E dele, nem sinal, tinha sumido.
Mas... melhor mesmo é aquela que meu pai sempre
contava...

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Papai Noel não existe

P ouco antes do Natal, a menina fez a grande descoberta:


Papai Noel não existe!
— É o pai da gente, boba, — disse, com ar de conspi-
radora, a amiguinha um pouco mais velha e já se iniciando
nos mistérios da vida. — Meu primo João, o ano passado,
fingiu que estava dormindo e viu quando o pai entrou de
mansinho e botou os presentes no pé da cama.
Filha única, a menina não tinha com quem comparti-
lhar tão importante revelação. Não tinha coragem de per-
guntar à mãe, pois ela poderia se zangar e não fazer mais
nada das coisas boas que aconteciam em casa a cada Natal.
De repente, talvez mamãe ficasse zangada ao ver o seu
grande segredo descoberto e desistisse de enfeitar a árvore,
com suas bolas coloridas, os festões prateados, as luzinhas
tremelicando no canto da sala, transformada, pela magia do
mito, em território de todos os encantamentos.
Perguntaria à babá. Lindoca jamais poderia lhe negar o
direito de saber a verdade. Queria a história toda, nua e crua.
Naquele momento, a menina ainda não sabia, mas um poeta
já afirmara que é melhor morrer ciente do que viver engana-
do. Não, positivamente não era um caso de morte, mas, na
sua inocência, a menina tinha um vago pressentimento de
que alguma coisa grave poderia acontecer.
— Lindoca, me diga uma coisa, Papai Noel existe

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mesmo, ou é nosso pai que bota os presentes? Não minta
pra mim. Jure, jure que você vai me dizer a verdade.
Pegada de surpresa, a babá deu uma risada, disfarçou
o embaraço e respondeu:
— Oxente, e onde se viu tanta bobagem. Então, Pa-
pai Noel não existe? Que ideia maluca. E quem foi que lhe
deu aqueles presentes todos no último Natal? E, então, pra
que fazer carta pra ele? Mas claro que existe. Jurar não juro,
que jurar é pecado. Mas lhe afianço que existe, vem do Polo
Norte, naquele carro dourado puxado por aqueles bichos
grandes, feição de veados, com cada chifrão enorme, lindos,
têm nomes de renas. Espera todo mundo dormir e, então,
entra nas casas e deixa os presentes...
— Entra nas casas como, se tudo está trancado? Ele
é fumaça? É encantado, para entrar pelo buraco da fecha-
dura? Você não quer jurar porque não tem certeza. Não é
nada de pecado, porque toda hora você diz “pela bênção de
minha mãe” pelas menores bobagens.
— E a carta? Todo ano você não escreve a carta e põe
no correio, direitinho, e ganha os presentes que pediu, tudo
certinho? Se ele não existisse, pra que a carta? Pedia direto
ao papai e pronto.
A menina ficou pensativa. É verdade, tinha a carta...
mas não era uma prova segura. Todo mundo participava da
feitura da carta, dava palpites, sugestões. De súbito, ocor-
reu-lhe um detalhe suspeito. Havia uma espécie de censu-
ra prévia aos pedidos; coisas muito caras, muito grandes,
difíceis de conseguir eram vetadas, sempre, sempre, sob a
alegação de que Papai Noel não ia achar, não podia trazer

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no saco, isso e aquilo. Mas, para quem vinha do Polo Norte
— aliás, onde ficava mesmo o Polo Norte? ­— num carro
dourado, a galope, pelos ares, não haveria problemas. Papai
Noel deveria ter tudo.
Mas... e se Papai Noel não existisse mesmo?
E, a cada dia que passava, aquela dúvida, aquela sus-
peita. No quartinho cor-de-rosa, na cama de sucupira, toda
enfeitada de babados de fina cassa florida, a menina treinava
todas as noites para ficar acordada. Seria a única maneira
de saber a verdade, pois os adultos não lhe contariam nada.
Perdiam-se em risadinhas cúmplices, que a humilhavam um
pouco, e pareciam não dar importância à sua dúvida cruel.
Os primos mais velhos, nem se davam ao trabalho de ou-
vi-la, menina boboca, e os menores viviam embalados nas
músicas natalinas, embevecidos com os presentes, os burri-
nhos, o Menino Jesus, os carneirinhos, esperando com fer-
vor os presentes de Papai Noel.
— Mas se ele não existe?
Enfim, chegou o grande dia. O dia do confronto final:
Verdade ou Mentira? O Natal naquela família era cansativo.
Visita aos avós, a vários tios, festas e comilanças sem fim.
Depois de cumpridos todos os roteiros, enfim, de novo, em
casa. A árvore rebrilhando, o som das músicas, a distribui-
ção dos presentes aos empregados e...
— Vamos pra caminha, que Papai Noel também está
cansado.
Como por milagre, pela primeira vez, ela obedeceu
sem pestanejar, deixando de lado os presentes recebidos
dos avós, dos tios, dos amigos.

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— Está morta de cansada —, disse a mãe, com um
riso maroto.
Subiu para o quarto com a babá, deixando os adultos
na sala. Já no quarto, olhou o rostinho franzido de expec-
tativa no espelho oval da penteadeira, e declarou num rom-
pante:
— Só durmo quando ele vier...
— Boba, assim ele não vem. Papai Noel só vem se
você dormir. E vamos pra cama, e feche os olhos pra dor-
mir bem depressa.
A luz do corredor dormia acesa. A claridade filtrada
pela claraboia de vidro espalhava no quarto uma penumbra
gostosa. Encolhida na cama, de olhos bem fechados, a me-
nina esperava, quase vencida de cansaço, rezando baixinho:
Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, fazei que eu
aguente acordada, fazei com que veja...
Não sabia bem o que desejava ver. A figura de um ve-
lho de longas barbas brancas, roupas vermelhas, botas enor-
mes, saído do nada, parecia sufocá-la. Ah, como a verdade
é terrível!
Já quase vencida pelo sono, cochilava de cansaço
quando, entreabrindo os olhos, viu no chão uma sombra
que se aproximava pela porta... uma sombra enorme, sem
rosto.... E o medo foi tomando conta do corpinho suado.
— Psiu, não vá acordá-la, cuidado. — A voz da ma-
mãe tranquilizadora sussurrava no escuro, dissipando os te-
mores. Os dois, pai e mãe, unidos na tarefa de espalhar os
presentes sobre os sapatinhos cuidadosamente arrumados
embaixo da cama.

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De olhos semicerrados, a menina espreitava, enquanto
um tumulto de sensações desencontradas sacudia-lhe o pei-
to: alívio, decepção, culpa. Sentia-se envergonhada de estar
ali a espreitá-los, como se fosse uma traição ter descober-
to o segredo. Sentia-se também de certo modo enganada
e frustrada, porque o melhor presente estava perdido para
sempre: o milagre, o sobrenatural.
— Papai Noel não existe! — A frase doeu no fundo
da alma e era como se, de repente, o Natal também deixasse
de existir.
Saíram do quarto de mansinho, pé ante pé, e ela ficou
sozinha encolhida entre os lençóis sem coragem de conferir
os embrulhos que se amontoavam ao pé da cama. No dia
seguinte, abriu os presentes sem entusiasmo.

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A difícil travessia

U m dia, ainda escreverei sobre este assun­to. Um dia, quan-


do tudo tiver finalmente passado e a dor for só uma leve
comichão na pele, um aperto no coração, quase imperceptível
mordedura. Um dia, talvez, quando o tempo já tiver lançado
a sua misericordiosa mão sobre o nosso sofrimento, eu talvez
fale. Mas hoje, não. Não me peçam isto, por favor, agora, não.
Hoje eu só quero esquecer. Quero fingir que tudo vai
dar certo. Que tudo seguirá adiante, e a vida é assim mes-
mo, temos de continuar. Continuamos. Difícil é esquecer
aquele homem sozinho, lutando desesperado contra um ini-
migo insidioso, um adversário cruel que não fará acordos,
para quem de nada adiantará sua conhecida diplomacia, sua
comprovada experiência em conciliar os contrários. Eu dis-
se sozinho, e isto talvez cause espanto, pois nunca se viu
tamanha cor­rente de solidariedade no país, tantos médi­cos,
tantos familiares, tantos amigos apreen­sivos, o povo todo
unido na mesma prece angustiada, o coração batendo forte
a cada notícia, a cada boato, a cada leitura de um boletim
médico que não traz mais esperança, mas que ainda insinua
um milagre. Eu disse sozinho. E é isto mesmo. Ele está so-
zinho, porque é assim sempre nos mo­mentos mais graves.
Um homem sempre está só, quando enfrenta o destino. Um
muro de silêncio e solidão o separa do mundo, e o sofrimen-
to é pouco diante de tamanho desamparo.

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Eu não quero lembrar, mas não posso es­quecer. Há
sempre uma imagem na lem­brança, uma foto encontrada, um
cartaz, fiapos de conversa. Há, sobretudo, doendo no fundo,
a frustração do sonho espedaçado, a esperança aniquilada, o
direito de esperar o que talvez não viesse nunca, mas que era
direito nosso esperar, porque a esperança foi tudo o que res-
tou para nós, último dom da caixa de Pandora.
Eu não queria falar e, no entanto, estou aqui remoen-
do palavras arrancadas do cora­ção com o maior sacrifício.
Não pode haver consolo, explicação ou amparo. É tudo um
pesadelo impossível, um terrível equívoco, uma louca fanta-
sia. Mas a gente sabe que ele está lá, morrendo a cada dia e
a cada dia matando um pouco de nós mesmos.

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Caminho sem volta

N ós não merecíamos isto. Depois de tanta inquietação,


de tanta luta, de tanta praça ocupada, de tantas bandei-
ras, tantas esperanças nesta difícil travessia, não merecíamos,
afinal, como prêmio, a quarentena. Este chegar e não chegar.
Esta visão do porto sem porto. O rodar em círculo sobre um
aeroporto sem teto. Como se, depois de sete anos e mais sete
anos mais sete, em vez da noiva prometida, Jacó recebesse
um frio pedaço de papel; em lugar do corpo da amada, uma
procuração para que se consumassem as bodas. A festa se
realizou, os convidados estavam ali, houve até quem sorrisse,
sorrisse, mas havia em todos os corações um grande peso,
como um grito doendo na garganta, como um choro contido
que a gente tenta disfarçar com os dentes apertados.
Agora, ao apagar das luzes da celebração que não hou-
ve, os brasileiros ainda esperam, confiantes e temerosos, a
atenção voltada para o centro do país, à procura de respos-
tas às suas inquietações: o último boletim dos médicos, a
última da família, a última providência dos ministros. E o
país inteiro pulsa e se aflige como um grande coração baten-
do de ansiedade e sofrimento, como um coração aflito que
só aceita esperar o melhor, porque sabe que o sonho não
pode acabar assim, que isto já vai passar, foi só um susto,
um aviso.
Não, decididamente a gente não merecia isto. A ale-

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gria devia ter sido o toque final, o último acorde desta can-
ção que aprendemos a cantar juntos no entusiasmo do ver-
de-amarelo enfim resgatado, expressão e símbolo de nossas
esperanças.
Mas tudo bem, tudo bem. Se isto pode ser­vir de con-
solo, estamos traumatizados, mas estamos tranquilos. Afi-
nal, aprendemos muita coisa nesta difícil caminhada. Agora,
mais do que acreditar num homem, e na força e caris­ma
deste homem devemos crer em nossa força de povo. Pre-
cisamos do senhor, Presidente Tancredo, e muito. Como se
precisa de um pai, de um guia, de um amigo. Mas precisa-
mos também ter a medida exata de nossa própria grandeza.
A sua força é a nossa força. A força de uma nação que se
afirmou, firme e pacifi­camente, nas praças e sabe que, haja
o que houver, o caminho foi aberto. E não haverá retorno.

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Cave ne cadas

D e uma velha senhora, gente simples do povo, aprendi,


há algum tempo, uma lição preciosa. É que eu costu-
mava fazer planos, programar o futuro, como se as coisas fos-
sem acontecer sempre na medida dos meus próprios desejos.
Todas as vezes em que eu afirmava convicta: “Vou fazer isto
ou aquilo, sábado irei a tal lugar, próximo ano, etc.”, ela ouvia
em silêncio e, com um ar muito sério, respondia solene como
uma sibila cabocla: “Se Deus quiser”. Da primeira vez, a fra-
se me soou como uma advertência. Fiquei meio parada no
entusiasmo dos projetos, sentindo um certo mal-estar, pres­
sentindo, naquelas palavras tão simples e tão usadas por todo
mundo, um toque de sabedoria milenar, aquela sabedoria que
vem dos fundos do tempo, aprendida às custas de muito so-
frimento, de imemoráveis experiências, de um saber atávico
que não se encontra nos livros nem se aprende na escola,
mas se bebe com o primeiro leite, com o primeiro sorvo de
ar aspirado com ânsia por um delicado pulmão que, enfim, se
des­cola.
Que sabemos nós, afinal, deste impreciso roteiro?
Deste caminho sem voltas, onde nem sempre as marcas da
margem são visíveis aos que caminham? O dia seguinte, o
minuto seguinte, a próxima encruzilhada? Que de­mônios
ou anjos estarão de atalaia? Que pre­cipício, que emboscadas
espreitam na passagem? Ah, destino, destino! quanta cruel-

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dade às vezes semeias, quanta coisa que parecia tão certa e,
afinal, se desmancha como cartas empilhadas. Ah, destino,
destino! Que lobo voraz vigia nossos passos: salteadores tal-
vez, ou talvez apenas o que não esperáva­mos encontrar e
que nos pega de surpresa bem na curva da estrada?
Vamos com calma, humildes e pruden­tes. Vamos bem
devagar, contentes do que conseguimos vencer, deste dia
que, afinal, nem sempre merecemos; o presente alcança­
do, o outro lado do muro. Com vagar, che­garemos. Isto é,
se Deus quiser, se os fados permitirem, se for esta a nossa
moira. Porque certeza mesmo neste mundo ninguém pode
ter, de coisa alguma. A gente faz por mere­cer: luta, trabalha,
se esforça, sonha, projeta. Mas, de repente, o destino nos
prega uma surpresa e, em meio à nossa vaidade, aos acor­
des voluptuosos de nosso próprio triunfo, como no cortejo
dos Césares, a voz soturna e monótona marca os limites de
nossa insigni­ficância a lembrar que somos apenas mor­tais,
e o nosso quinhão é sempre o imprevisí­vel. A voz noturna
e distante como um agou­ro ou um aviso: “Cuidado, não
caias”.

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Um retrato no jornal

V i seu retrato no jornal. Primeira página. Um jovem como


tantos outros. De calça Lee, tênis, blusão. O detalhe do
tênis é importan­tíssimo. No claro-escuro da foto, aqueles sa-
patos brancos, luminosos. Exatamente iguais aos que meu
filho usava ontem à noite ao sair para o clube. Iguais aos mi-
lhares de outros que milhares de jovens usam, dia­riamente,
no mundo todo: no colégio, no trabalho, nos passeios, no ci-
nema, nos jogos. Marca universal do conforto, da descontra­
ção, da juventude.
Observo melhor a fotografia. Apenas mais um instan-
tâneo, de mais uma guerra. O jo­vem tem o rosto contraído,
mas parece boni­to. A face bem equilibrada, dividida ao meio
por um nariz reto. Cabelos curtos, encaracolados. Alguma
coisa familiar naquele rosto. Uma linha ancestral, um sinal,
uma marca.
O rapaz estava fugindo e carregava com ele uma crian-
ça pequena. Um irmão? um filho? Ou apenas um estranho,
apanhado na rua? Mais um sobrevivente da matança geral?
A criança era muito pequena mesmo. Uma criança de
colo.
Na fotografia, os dois estavam sós. Limi­tados pelo es-
paço da lente, prisioneiros de um minuto, capturados pelo
click da má­quina, salvos pelo instante e trazidos até mim pela

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magia do telex, invadindo meu sossego nesta sala silenciosa.
Os dois estavam sós e estavam fugindo. Senti no co-
ração um grande peso. Como se, de repente, eu fosse res-
ponsável pelos dois. Como se a culpa de tudo fosse minha.
A gente sabe que as pessoas estão mor­rendo. A gen-
te sabe que as pessoas estão se matando como animais
doentes. Mas um número é um número. Uma fria abstração.
Aquele jovem na foto era dolorosamente real. Não como
nas imagens dos noticiários da TV, trágicas mas passageiras.
Eficientes e rápidas como um golpe de faca. Um retrato
pesando em minhas mãos como um pecado de séculos. Im-
presso indevidamente, quei­mando-me a retina, incomodan-
do como um prego no sapato.
Na sala vazia, eu respiro fundo, enquanto no meu co-
ração um pensamento egoísta começa, insidio­samente, a
infiltrar-se. Aqui estamos salvos, aqui ainda estamos salvos.
Eu não conheço este jovem. Como o Mandarim do célebre
romance, ele está do outro lado. Não posso ser culpada. Ele
é apenas alguém que eu não conheço. Em minha sala silen-
ciosa, eu fecho os olhos um instante para não ver a inocên-
cia daqueles sapatos fugindo. E tento não pensar no clarão
suicida, no cogumelo crescendo como uma flor malsinada
ao ritmo alucinado do galope das bestas.

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Nós somos o mundo

É isso aí, irmão, vamos cantar juntos. Vamos dar as mãos


numa grande ciranda e tentar exorcizar os fantasmas da
fome, os duendes da guerra, as bruxas da discórdia. Vamos
fazer nossas preces dos desvalidos, a fome dos abandonados,
a fraqueza dos tíbios, o cansaço dos exploradores. Vamos dar
água a quem tem sede de justiça, pão aos famintos de liber-
dade. Vamos cantar. Cada compasso marcando o ritmo de
nosso próprio coração angustiado, cada sílaba balbuciando a
mesma oração esquecida, a mesma invocação.
Nós somos o mundo. Nosso é este abismo que se
alarga a cada dia. Nossa é a responsabilidade pelo exercício
cotidiano da solidariedade. Ninguém está sozinho. Pois não
disse o poeta que homem algum é uma ilha? São nossas as
dores do mundo, são nossas as alegrias, juntos giramos sem
parar nesta bola per­dida num universo misterioso de segre-
dos infinitos, de infinitas distâncias. São nossos os gritos e
os gemidos nos campos de batalha, os ossos furando a pele
das crianças da Antiópia. É nosso o remorso de Hiroshima,
a pele calcinada das vítimas de Nagasaki. Nosso é o dedo
em riste do carrasco, os fornos de Buchenwald, os frios ca-
labouços da Sibéria. É nosso irmão o guerrilheiro barbudo e
aquela criança de olhos profundos e cabelos escuros, aque-
la menina explodindo com sua fúria para vingar um crime
sem explicação e sem clemência. Nós somos os tiranos e a

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força que nos sustenta, nossa é a culpa porque somos tíbios,
porque somos omissos e não quere­mos doar além do que
é preciso, como a esmola jogada de longe para alcançar um
remorso, para esconder uma culpa.
Nós somos o mundo. Somos o sentimento que faz
bater, num mesmo ritmo, corações tão distantes no mesmo
entusiasmo febril na busca de um caminho, de uma estrada
que nos leve a um lugar mais seguro, a um futuro em que
não haja sempre sobre as nossas cabe­ças uma espada de
cobalto. Um futuro em que estar vestido e alimentado não
configure um pecado diante da multidão de famintos, da
legião de desesperados a quem falta pão, esperança, ampa-
ro e morada. Um futuro sem humilhados e ofendidos, sem
carrascos e opressores, no qual o vinho que se bebe não seja
a anunciação de sedes mais severas, e a comunhão seja pos-
sível mesmo entre contrários, mesmo entre distantes pela
razão e pelo espírito.
Nós somos o mundo. Pela boca e pela voz de nossos
cantores proclamamos esta verdade. Somos o mundo, so-
mos o futuro. A sobrevivência ou a catástrofe, a redenção
ou o crime. Nós somos.

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História Natural

C ientistas descobriram uma coisa notável. O homem


pré-histórico não comia carne ou cereais; nem bebia lei-
te além do tempo necessário. Eram maiores e mais fortes do
que nós, seus civilizados descendentes. Frutas silvestres, raí-
zes, talvez inse­tos, quem sabe pequenos lagartos ou caramu-
jos, seriam parte da balanceada dieta que provavelmen­te os
deixaria leves e desintoxicados o bastante para se pendurarem
graciosamente na copa das ár­vores, como fazem ainda hoje
os macacos assanhados.
Seus dentes eram perfeitos, sua digestão era breve.
Deviam ser pacíficos estes habitantes da altu­ra. E, prova-
velmente, felizes. Viviam ao sabor das estações, à revelia do
acaso. Nada os prendia, nada os subjugava; nem casa, nem
família, nem deveres, nem horários. Bastava estender a mão
ao fruto mais próximo, escavoucar a terra à procura de raí-
zes ou, simplesmente, coçar-se uns aos outros à procura de
lêndeas.
Ninguém sabe ao certo o momento do mergulho, do
despencar-se do lastro seguro das alturas até o solo, terra de
ninguém onde caninos aflitos dilaceravam a presa ao míni-
mo descuido, à mais leve inocência.
Foi uma longa aprendizagem. Da abundância à escas-
sez foi um duro percurso. Um labirinto de florestas devasta-
das, de colheitas dizimadas. Os frutos rareavam e as semen-

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tes tornaram-se objeto de admiração e de culto: talismãs e
erário. Quem poderá saber do gosto do primeiro sangue?
Da fome impulsionando as pernas na corrida, o gosto da
caça crescendo entre os dentes, e a mão multi­plicada em
garras-facas-chuços-achas?
Depois, talvez tenha sido o altar dos sacrifícios. Os
deuses sedentos em fúrias sangrentas. Depois, foi o ter e
o haver, cercas crescendo em volta, aprisionando as bestas
livres, prendendo os homens libertos. Um dia, um homem
plantou seu chuço no chão e arreganhou os dentes para
o vizinho mais próximo. Lutaram até a morte. As proles
aflitas agruparam-se em bando, e teve lugar, então, um de­
morado conflito. Muito mais tarde, os remanescen­tes do
grupo sentaram ao pé do fogo e relataram suas lutas; de
como venceram os inimigos com bra­vura e de como me-
receram a terra que adubaram com o sangue dos heróis e a
carcaça dos vencidos.
Este foi apenas o princípio de um longo cami­nho. De
um itinerário tortuoso entre píncaros e abismos. Séculos e
séculos carregando um agui­lhão como um espinho na carne.
A lembrança do momento da perdida inocência, quando o
bem e o mal se tornaram diferença. Frutas silvestres, raízes,
hortaliças, gramíneas, que gosto podiam ter com­paradas ao
acre sabor venenoso devorado com a carne e o sangue do
animal abatido?

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Menudos

O velho William certamente não foi muito feliz ao decla-


rar naquele dia: “Um nome! O que é um nome?”. Às
vezes, um nome pode ser tudo. Um nome é muito mais que
um nome se por acaso carrega, além do significado, aquela
carga sútil de ocultas insinuações que fabricam a fantasia. Se
eles se chamassem Miúdos, ou Pequenos, ou Pirralhos, não
tinha marketing que aguentasse. Mas Menudos rola na língua e
se dissolve como um bombom de coco. Com a mesma ado-
cicada chatice de seus requebros vendidos a peso de ouro
por uma propaganda que já fabricou antes tantos mitos va-
zios, tantos heróis de coisa nenhuma e sempre devidamente
acompanhado pelo cortejo de fanzocas dilacerando-se aos
empurrões em troca de um sorriso, de um aceno, ou (supre-
mo galar­dão) de um naco de camisa. Este delírio é antigo e
tem um nome muito bem posto. Mas, quando ataca menini-
nhas, deixa na gente uma impressão nauseante. A exploração
também tem um limite. Pagar 200.000 cruzeiros pra tomar
chá, lanche, ou seja lá o que for, com menudo é dose! Lemos
no jornal declarações de mães insatisfeitas, queixando-se da
desordem da pro­moção pela qual pagaram quase um milhão
de cru­zeiros só para levarem as filhinhas. Ora, vá pentear
macacos! Não tenho nada contra miúdos ou graúdos, pois
cada um tem o ídolo que merece, mas explorar a fantasia das
crianças atrás de um lucro fácil, enro­lando os pais desavisados

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(e até os avisados que não têm como resistir às pressões) é,
no mínimo, golpe baixo. E não venham falar em fenômeno,
lembrar os Beatles, os ídolos de sempre, etc., etc. Os que têm
valor estão aí, os Beatles mudaram uma época, influ­enciaram
um comportamento, outros não deixaram nada além do apa-
gado rastro dos ataques histéricos. Tudo bem, tudo bem, mas
poupem as crianças do ridículo, da imposição de falsos ídolos,
bezerrinhos de ouro da propaganda mal dirigida. Tem coisa
melhor por aí e bem mais barata por sinal. É só dar uma vol­
tinha no Jardim Zoológico.
Bem, como nem tudo neste mundo é sim, sim, não,
não, devo declarar que vejo no grupo uma face bem simpá-
tica. É que os seus promotores bolaram uma coisa genial.
Conseguiram, finalmente, descobrir a fór­mula da eterna ju-
ventude: o herói perpetuamente adolescente. E o consegui-
ram de uma maneira muito prática: eliminando do grupo
os membros que ultra­passassem os limites da idade além
da qual a vozinha aflautada destoasse das demais. Os italia-
nos antiga­mente resolviam o caso de modo mais drástico,
mas, agora, não ficaria nada bem. Os tempos são outros.
Isto tem uma grande vantagem, pois com o individualismo
dissolvendo-se nos limites do grupo eternamente reno­vado,
estaremos dispensados, daqui a alguns anos, de deprimen-
te espetáculo do ídolo desesperado agarran­do-se frenetica-
mente a uma imagem perdida, atrás de perucas, cintas, com
roupinhas modernosas que assentam mal em sua silhueta de
aspirante “coroa”. E tome plástica! Com os Menudos, não.
Como ídolos descartáveis serão perpetuados, até que os
con­sumidores encham o saco e partam ansiosos em busca

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de outra imagem qualquer, ou que os promotores, sentindo
no ar o cansaço da plateia, descubram, no cesto sem fundo
das celebridades fabricadas, uma nova galinha dos ovos de
ouro.

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Sic transit...

P assaram. Deu um pouco de trabalho, mas, afinal, se fo-


ram. Deixaram ainda, é claro, uns restos de entulhos.
Coisas velhas no porão, alguns acólitos que, coitados, teimam
sempre em permanecer no rastro dos que se afastam na doce
ilusão de pegar das sobras do futuro. Quem sabe, os que vi-
rão deixarão cair um pouco dos bene­fícios, não repararão em
seus rostos ansiosos, em seus olhos aflitos de cães de guarda
dos palácios? Talvez se esqueçam de que já lamberam ou-
tras mãos, de que já raste­jaram em outros passos. Não cus-
ta nada tentar. Afinal, são profissionais competentes, peritos
bajuladores, puxa-sacos autênticos. Sua grande experiência
sabe que os podero­sos são vulneráveis. quem pode resistir
ao elogio apropriado, à lisonja bem feita, à renovação diária
das próprias proclamadas virtudes?
Mas, enfim, já passaram. Antes, tiveram o cuidado de
limpar as gavetas. Os sucessores devem achar a casa limpa.
Os tapetes varridos, os vidros brilhantes. Ao lixo a papelada,
os planos não cumpridos, as promessas furadas. O futuro,
às baratas.
Passaram como passa o verão, como pas­sam os anos,
como passa o que passa, as areias douradas na eterna am-
pulheta. Ah, poeta, como são frágeis os “podres pode­res”!
Como se esfacelam de repente na sinuosa curva do tempo!
E, no entanto, como se agarram a seus tronos bichados, a

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seus mantos puídos, a seus cetros remen­dados, sem com-
preenderem que nada vale nada, tudo são favas contadas do
destino inexorável, e que a boca que hoje baba a sua mão
amanhã não sorrirá, sequer, à sua passagem.
Passaram como a vida passou, como passaram os so-
nhos. Como passaram os ven­tos destes anos todos, escul-
pindo em nossa pele seus sulcos implacáveis. Depois do pó
assentado, do terreiro varrido, da casa arrumada, tentaremos
escrever novamente a palavra esperança. Sabendo, porém,
que em nós alguma coisa ficou perdida, inexo­ravelmente.
Uma certa inocência feliz que nos fazia acreditar que tudo
era possível, que ainda haveria um jeito, que dos sonhos
mortos nasceram cravos e que a vitória, afinal, teria um
doce sabor de veneno.

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Gralhas & gralhas

N ão, positivamente não dá. Desta vez, foi demais. Já, já


sei de tudo que vão me dizer: revisão é isto mesmo, sa-
cis vermelhos em cada página, até Lobato falou que é impos-
sível vencer as “gralhas”. Aceito. Tudo bem. Tenho engolido
várias. Mas, desta vez, a coisa assumiu uma conotação (por
favor, é assim mesmo) mais sombria. Fiquei mesmo deveras
traumatizada (um dicionário, por obséquio).
E olhe que eu sou daquelas pessoas, como se costuma
di­zer, “de bom acomodar”. Não sou de criar casos e, além
de al­gumas eventuais explosões tão flamejantes quanto pas-
sageiras — afinal, um escorpião tem de honrar o seu signo
—, sou de convivência tranquila. Mas, se há uma coisa na
qual sou rigoro­samente implacável, é na defesa da absoluta
fidelidade ao que escrevo. E não adianta dizer que em jornal
é diferente, não precisa tanto rigor, tudo é muito transitório.
Para mim não é, não, e nisso sou neurótica confessa e decla-
rada. Por isso, en­contrar uma palavra trocada no meu texto
é como um susto na esquina, um tiro de emboscada.
Uma letrinha ainda vá lá. Se der pra perceber o sentido,
tu­do bem. Erro de ortografia não me aborrece. Pode escre-
ver jeito com g, atrás ou atraz não tem tanta importância se a
essência do pensamento continua íntegra (ai, meu Deus, olha
o acen­to). Mas não suporto, não posso suportar a distorção
da lingua­gem, a traição do sentido, a quebra do significado.

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Assim foi na minha última crônica, no domingo pas-
sado, aqui mesmo neste espaço. Havia um parágrafo, a certa
altura do texto, que dizia o seguinte: “Sentiu o sal na boca de
muito longe pressentiu, ou antes escavou de bem dentro de
si mes­ma, um destino marinheiro. Alguma rosa-dos-ven-
tos, tatuada bem no fundo, como um mágico mandala a
indicar-lhe o ponto exato, a exata passagem para um oceano
maior e mais profun­do onde navegaria sem fronteiras”.
Ora, aconteceu que em lugar de destino marinheiro
tasca­ram, sei lá por que, um distinto marinheiro. Agora,
convenhamos que escavar no fundo de si mesmo um des-
tino marinheiro é até, modéstia à parte, uma imagem apro-
veitável. Faz evocar (ou pretende fazer) toda uma ances-
tralidade de navegadores, toda uma história visceralmente
impregnada de lendas mari­nhas, avós portugueses desbra-
vando oceanos, colônias fenícias ou simplesmente navios
partindo, mil possíveis imagens guar­dadas no inconsciente
e que num átimo (é átimo mesmo, óti­mo uma ova!) afloram.
Mas daí passar para um distinto marinheiro é transformar
tudo em paródia, num ridículo atroz que corta no ato a ten-
são da leitura. Tudo destruído pela súbita e insólita aparição
de um distinto marinheiro de roupinha engomada e tudo.
E o pior é que, não contentes com isto, ainda me
transforma­ram um mandala, isto é, um círculo mágico uti-
lizado no Orien­te como instrumento de meditação e aper-
feiçoamento interior, num prosaico tempo do verbo man-
dar e deste modo um mágico mandala virou um mágico
mandá-la que não mandou coisa nenhuma e, se pudesse,
mandava.... bem, deixa pra lá.

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Meu caro Revisor: tudo bem, tudo bem. Como já
disse, sou de bom acomodar e bem viver, mas não posso
resistir à tenta­ção de lhe rogar uma praga. Que o distin-
to marinheiro assom­bre seu sono. Você vai sonhar com ele
todo dia. Mil e uma noites. E ele vai obrigá-lo a comer três
latas de espinafre e ain­da ouvir a voz de Olívia Palito. E eu,
bem, eu vou buscar o Cen­tro, a Passagem, o Nirvana, na
insondável contemplação de meu mágico mandala.

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