O STF Como Agente Do Constitucionalismo Abusivo
O STF Como Agente Do Constitucionalismo Abusivo
O STF Como Agente Do Constitucionalismo Abusivo
R AFAEL ES TO RILIO
JULIANO ZAIDEN BENVINDO
RESUMO
ABSTRACT
■ The focus on the constitutional courts’ deliberative role has raised relevant dis-
cussions in comparative constitutional law. In Brazil, the Brazilian Supreme Court’s
1. INTRODUÇÃO
profunda divisão política a que o Brasil assistia. Naquele episódio, embora, natu-
ralmente, a interferência mais direta da corte constitucional pudesse ensejar ques-
tionamentos a respeito dos limites de sua atuação, o STF adotou uma postura
bastante contida, buscando se resguardar diante de um propósito de preservação
do princípio da separação dos poderes. Sua atuação estava, obviamente, bastante
entrelaçada ao momento em que a política parecia atropelar o direito, tanto em
razão de um procedimento de imputação da culpa que não se mostrava completo
(as contas – motivo central do impeachment – não chegaram a ser reprovadas
pelo Parlamento, mas apenas pelo Tribunal de Contas da União) e também em
razão de uma perda do sentido de preservação do regime presidencialista (na me-
dida em que a lei 1.079/50 condicionou a interpretação da Constituição e, não, o
contrário, como deveria ser). Ao se isentar desse debate, dizendo garantir apenas
a obediência às regras formais do jogo político, o STF causou o efeito colateral de
legitimação constitucional do próprio procedimento. O tribunal que outrora era
intenso partícipe e interventor da política ou da especulação econômica agora se
contém para não ferir a tão aclamada independência entre os poderes.
Desse modo, verifica-se que o denominador comum para tais casos é o modo
como a corte constitucional, ao atribuir elevados poderes a si própria e a se ar-
vorar detentora da “última palavra”, pode alavancar práticas abusivas do consti-
tucionalismo. Usa-se a constituição – ou a interpretação constitucional de uma
dada realidade levada a efeito pelo STF – contra a própria constituição. A intera-
ção deliberativa, tão aclamada pela literatura constitucional, torna-se então muito
mais uma barganha de posições do próprio jogo político, lançando a estratégia
política como condicionante da interpretação constitucional e a interpretação
constitucional, conforme essa estratégia política, como reforço de sua potência e
legitimação de sua prática.
3.1 Sincronicidade
7 Oculta, já que “Os fenômenos sincronísticos são a prova da presença simultânea de equivalên-
cias significativas em processos heterogêneos sem ligação causal; em outros termos, eles pro-
vam que um conteúdo percebido pelo observador pode ser representado, ao mesmo tempo,
por um acontecimento exterior, sem nenhuma conexão causal [...]Os fenômenos sincronísti-
cos são a prova da presença simultânea de equivalências significativas em processos heterogê-
neos sem ligação causal; em outros termos, eles provam que um conteúdo percebido pelo
observador pode ser representado, ao mesmo tempo, por um acontecimento exterior, sem
nenhuma conexão causal.” Os exemplos dados pelo autor são interessantes relações confusas
entre fatos e eventos. (JUNG, 2000, p. 985-986).
Ministro Gilmar Mendes). Segundo a decisão, não havia razões para justificar a
impossibilidade de o STF dar celeridade ao caso, era questionável a capacidade
ativa dos partidos políticos para interesses difusos e, por fim, não havia evidências
de que o ato perecia de nulidade.
O curioso é que, se adotados os princípios de direito processual, o primeiro
caso – referente ao ex-Presidente Lula – pode ser interpretado como gerador de
precedente. É bem verdade que o caso perdeu o objeto, uma vez que não houve a
apreciação de recurso mesmo após a saída de Presidente Dilma Rousseff. Porém,
pelo menos pela leitura do Código de Processo Civil vigente, trata-se de típico
caso de tutela satisfativa exaurida, tal como ocorre com a tutela de urgência em
caráter antecedente. Desse modo, ao menos o STF deveria explicitar as diferen-
ças entre ambos os casos para argumentar em prol de conclusão jurídica diversa
no novo caso com gritante semelhança. Havia, afinal, profunda identidade entre
eles, destacando-se inclusive maior gravidade do caso Moreira Franco, em que
uma pasta administrativa foi transformada em Ministério sem a mínima justifi-
cativa de interesse público para tanto, com base em medida provisória redigida
às pressas. E, novamente, a falta de análise pelo colegiado do recurso interposto
pelos partidos, novamente em função do poder de agenda, pode fazer com que o
Mandado de Segurança perca o objeto.
Não é de se estranhar que a reação do ex-Presidente Lula se expressaria logo
na sequência, até por uma expectativa de coerência e justiça. Após o indeferimen-
to da liminar no caso Moreira Franco, seus advogados protocolaram um novo
pedido para que o STF revise, em plenário, a decisão monocrática do Ministro
Gilmar Mendes. Certamente há, no pedido, o intuito de explicitar que os movi-
mentos entre os poderes, em ambos os casos, não foram resultado de uma profun-
da análise jurídica dos fatos envolvidos, mas uma solução aparentemente arqui-
tetada entre o STF e os atores externos conforme o arranjo político interessado
do momento.
É crucial perceber que a prática seletiva da subsunção é grave, especialmente
quando se está no meio de uma profunda crise política. Neste caso, não é, em si,
a sincronicidade que possibilita a visualização do que se poderia denominar abuso
constitucional. Enquanto na sincronicidade se tem visivelmente esse jogo entre os
poderes, como uma relação de causalidade implícita, na prática seletiva da sub-
sunção, o que se tem é o jogo trabalhado pelo mesmo poder tendo em vista um
efeito relacional com outro poder (no exemplo apresentado, o Executivo). Ambas
as situações, especialmente em um contexto de forte tensão entre os poderes,
apontam para movimentações que indicam o papel do STF como peça central da
8 Vide MENDES (2011). Em trabalho sobre ônus deliberativos de tribunais, Virgílio Afonso da
Silva propõe desenhos institucionais complexos que permitam otimizar decisões de tribunais
a fim de superar o problema das decisões com baixo nível deliberativo – prejudicando a legi-
timidade institucional do exercício de controle, fazendo menção direta às teses do “The Core
of the Case on Judicial Review” na interação entre poderes (SILVA, 2013, p. 569-575).
9 Vide BICKEL (1975, p. 25); (1962, p. 244).
mesmo, uma vez que as cortes constitucionais não podem ter pleno acesso ao
poder político – e muito menos à discricionariedade política -, ela é forçada a in-
vocar razões, mesmo que seu conteúdo não esteja adequado. Porém – e aqui está
a possibilidade da visualização do constitucionalismo abusivo -, em função da
necessidade de invocar razões em um contexto semântico de largas possibilidades
e de crescente inconsistência decisória, está-se a um passo de se estabelecer a bar-
ganha política como prática pelo Tribunal.
Visualiza-se, assim, os riscos para a função deliberativa. Na medida em que a
justificação perde em coerência e se volta para a afirmação de interesses implícitos,
embora maquiada de uma pretensa racionalidade técnica, não há, efetivamen-
te, deliberação, mas, sim, um modo de praticar o constitucionalismo abusivo.
Por isso, simplesmente afirmar a importância da deliberação sem atentar para
esses processos que a transformam em um argumento estratégico de barganhas
diz pouco da complexidade das interações intra e interinstitucionais em sistemas
complexos do constitucionalismo contemporâneo. Por isso, o papel deliberativo
precisa ser destacado também em sua função perigosa, viciosa e subversiva. Se
a deliberação facilita a intermediação e negociação entre poderes, também, por
outro lado, acentua a capacidade de a corte ocultar interesses e fortalecer justi-
ficações insustentáveis (aqui, por exemplo, a reprodução dos dois critérios deste
artigo: sincronicidade e uso seletivo da subsunção). Neste jogo, sobretudo em
democracias frágeis, tem-se um evidente déficit democrático: a corte, outrora a
última palavra, torna-se a primeira instituição a se desconfiar.
5. CONCLUSÃO
■ Neste trabalho, buscou-se mostrar que se faz necessário lançar o STF ao olhar
vigilante e à crítica permanente. Afinal, especialmente no contexto de sua forte
presença na definição de pautas nacionais fundamentais, exigir-lhe transparência
argumentativa e coerência decisória é o mínimo que se espera de uma corte cons-
titucional. Porém, como demonstrado neste artigo, o STF, exatamente nesse am-
biente de maior poder e de capacidade de barganha política expandida, tem utili-
zado de estratégias – aqui destacadas a sincronicidade e a o uso seletivo da subsunção
– para fins que não condizem com o discurso que busca lhe conferir legitimidade.
Neste contexto, em que o STF delibera sem, efetivamente, deliberar – ou delibera
estrategicamente para um fim abusivo – tem-se, visivelmente, o seu deslocamento
de “guardião da Constituição” para um player efetivo no jogo político, amplian-
do-se, por conseguinte, sua potencialidade para barganhas políticas por meio do
uso da decisão judicial como instrumento de legitimação de tais práticas.
Como player da barganha política, o direito e o perfil deliberativo tornam-se
secundários, embora sejam instrumentalizados para a justificação da prática po-
lítica. Por isso, tem-se o abuso constitucional: usa-se o direito constitucional – e
os próprios procedimentos que buscam efetivá-lo na prática – contra o próprio
constitucionalismo. Ao diagnosticar essas formas de abuso, torna-se mais simples
demonstrar como a corte se familiariza com os bastidores de outros poderes e
reserva para si um privilégio político maior – ou, ainda, a corte sofre e negocia a
violência do poder de barganha das outras casas.
É preciso, por isso, pensar um desenho institucional que restrinja, ao má-
ximo, esta malícia institucional da corte na sua função deliberativa. Embora
desenhos institucionais, por si só, não sejam condição para a mudança, eles, ao
menos, impõem uma diretiva e dificultam essas práticas. Infelizmente, o dese-
nho institucional hoje adotado no âmbito do STF tem se mostrado altamente
ineficiente para, ao menos, dificultar este movimento. Um recurso constitucio-
nal processual específico para quando se vislumbrem tais casos de sincronicidade
e uso deslocado da subsunção, direcionado ao Plenário, pode não ser a opção
ideal, mas poderia ser um começo, por exemplo. É necessário também insistir no
argumento de que devemos exigir transparência decisória de uma corte constitu-
cional. Um mínimo de compatibilidade empírica, um mínimo de coerência dos
argumentos e, sobretudo, uma efetiva deliberação devem ser os requisitos mais
básicos a se exigir dos Ministros do STF, individualmente, e da Corte, como
instituição.
Por fim, é preciso também repensar a deliberação. Este trabalho buscou,
em alguma medida, mostrar que a teoria deliberativa precisa expandir seus ho-
rizontes e focar também no uso abusivo da própria deliberação (se assim pode
ser denominada). Deliberar, afinal, pode ser também uma estratégia abusiva ao
constitucionalismo. Embora este trabalho não tenha explorado mecanismos e
desenhos que possam, em alguma medida, dificultar o constitucionalismo abu-
sivo pelas cortes, sua mínima pretensão foi alertar que é preciso reconhecer e ex-
plorar, com a cautela e o rigor exigidos, os comportamentos dos Ministros, como
indivíduos dotados de enorme poder, e a Corte, como instituição que ganhou
espaço na definição de pautas nacionais de ampla repercussão política e desacor-
do moral – e, por conseguinte, como player político. Reconhecer a relevância
desses comportamentos para a pesquisa constitucional e estabelecer, a partir de
sua leitura, a crítica é uma atividade que a doutrina constitucional brasileira pre-
cisa urgentemente avançar.
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