A Atenção À Saúde Mental Relacionada Ao Trabalho No SUS - Marcia Hespanhol e Andréia Garbin

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Ensaio

A atenção à saúde mental relacionada ao trabalho no


Marcia Hespanhol Bernardo¹ SUS: desafios e possibilidades
Andréia De Conto Garbin²
Work-related mental health care in the Brazilian national health
system: challenges and possibilities

¹ Programa de Pós-graduação Stricto Resumo


Sensu em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, Este ensaio contextualiza a estruturação das áreas de saúde mental e saúde
Campinas, Brasil.
do trabalhador no Sistema Único de Saúde (SUS) com o intuito de discutir as
² Secretaria de Saúde de São Bernardo possibilidades de atuação intrassetorial com relação à saúde mental relaciona-
do Campo, Brasil. da ao trabalho. Inicia mostrando a complexidade das áreas programáticas de
Saúde Mental e de Saúde do Trabalhador e indica que os maiores desafios a
Contato: serem superados no contexto atual são a integração entre elas e a superação de
Marcia Hespanhol Bernardo uma “cultura” ainda presente na sociedade, segundo a qual o trabalho, quase
PUC-Campinas sempre, tem uma conotação positiva e o sofrimento/adoecimento psíquico é
Avenida John Boyd Dunlop, s/n – Jardim visto como um sinal de fraqueza pessoal. A partir do relato de experiências,
Ipaussurama também aborda as possibilidades e os desafios na atenção à saúde mental re-
CEP 13.060-904 – Campinas – SP lacionada ao trabalho nos diferentes níveis de atenção do SUS. Focaliza, mais
especificamente, as ações possíveis na rede básica, o potencial da integração
E-mail:
entre serviços especializados de saúde mental e de saúde do trabalhador para
[email protected] o estabelecimento de nexo causal, a importância dos eventos sentinelas e a ne-
cessidade da notificação dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho.
Palavras-chave: saúde mental e trabalho; saúde mental; saúde do trabalhador;
SUS; agravos à saúde mental.

Abstract
This essay sets the context of mental health and worker’s health care in Brazilian
National Health System and discusses possible actions regarding work-related
mental health. It begins by presenting the complexity of both Mental Health and
Worker´s Health programmatic areas and points out two main challenges yet
to overcome in the current context: integrating both health care systems and
rejecting the current “culture”, in which work receives a positive connotation,
while psychic suffering/illness is seen as a personal weakness. Based on reports
of experience, the article also brings up the possibilities and challenges of work--
related mental health care in different levels of care offered by Brazilian National
Health System. It focuses more specifically on possible actions to be taken at
primary care level as well as at the potential integration between mental health
specialized services and worker’s health, aiming at establishing causal nexus.
It also demonstrates the importance of sentinel surveillance and the need of
compulsory notification of work-related mental health disorders.
Keywords: mental health and work; mental health; occupational health; health
system; mental health disorders.

Recebido: 17/02/2010
Revisado: 01/10/2010
Aprovado: 08/10/2010

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Introdução alguns aspectos históricos, discutimos as dificuldades
ainda enfrentadas por cada uma delas no contexto atual
e os possíveis obstáculos para sua integração. Essa con-
Este ensaio tem por objetivo discutir as possibilida-
textualização possibilita uma base para a discussão de
des de ações do Sistema Único de Saúde (SUS) nos seus
possíveis e necessárias ações do SUS para a atenção aos
diversos níveis com relação à atenção à saúde mental problemas de saúde mental relacionados ao trabalho,
relacionada ao trabalho. Entendemos que os maiores que apresentamos em seguida, tomando como referên-
desafios a serem superados no contexto atual sejam a cia a experiência das autoras.3
integração entre as áreas programáticas de Saúde Men-
tal e de Saúde do Trabalhador e a superação de uma
cultura ainda presente na sociedade, segundo a qual o A área de Saúde Mental no SUS
trabalho, quase sempre, tem uma conotação positiva e
Pode-se dizer que, até a década de 1980, a atenção
o sofrimento/adoecimento psíquico é visto como um si-
à saúde mental no âmbito da saúde pública no Brasil
nal de fraqueza pessoal.
acompanhava o modelo que, de acordo com Foucault
(1972), predominou durante mais de duzentos anos
em quase todo o mundo ocidental: o asilo. Tal modelo
Saúde Mental e Saúde do Trabalhador: consistia, quase que exclusivamente, na segregação de
uma integração possível? todos aqueles que apresentavam “diferenças, desvios e
divergências sociais e culturais” (AMARANTE, 1995, p.
Esses dois campos têm em comum a concepção 292), incluindo os chamados “loucos”, que eram inter-
de saúde como fenômeno social e de interesse pú- nados nos manicômios. No Brasil, a aplicação prática
blico. Pode-se também dizer que ambos ganharam desse modelo se dava por meio de convênios do po-
espaço relevante enquanto áreas programáticas do der público com manicômios, nos quais o “tratamen-
SUS devido à mobilização de movimentos populares to” consistia, basicamente, na aplicação massiva de
e de profissionais de saúde, tais como o Movimento medicamentos e utilização de outros métodos para tra-
de Reforma Sanitária (CAMPOS, 2007), o Movimen- zer o paciente à “normalidade”, como o eletrochoque.
to dos Trabalhadores da Saúde Mental (AMARANTE, Problemas de saúde mental que não se configurassem
1995; SCARCELLI; ALENCAR, 2009) e o Movimen- como uma forma desviante dos padrões sociais tinham
to Sindical (LACAZ, 1996). Scarcelli e Alencar (2009) pouca ou nenhuma possibilidade de serem objeto de
lembram-nos de que tais movimentos “começaram a atenção no âmbito da saúde pública.
se organizar ainda durante o período da ditadura mi- A maior parte dos manicômios se configurava como
litar e se intensificaram durante o período de ‘abertura verdadeiros depósitos, nos quais os pacientes não ti-
política’” (p. 3). E, de acordo com Campos (2007), foram nham condições mínimas de dignidade humana. Os
os integrantes do Movimento Sanitário que elaboraram maus-tratos eram comuns, como se observou em mui-
“a política, diretrizes e, até mesmo, o modelo operacio- tas incursões conjuntas do Conselho Federal de Psico-
nal do SUS” (p. 1868). logia e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados
No entanto, mesmo que os Movimentos de Saúde do Brasil em atividades de inspeção nesses locais, rea-
Mental e de Saúde do Trabalhador tenham tido parte lizadas na última década (CONSELHO FEDERAL DE
de suas origens relacionadas ao Movimento Sanitário PSICOLOGIA, 2001, 2004, 2006, 2008a).
e que as ações propostas desde então estejam funda- Considerando esse contexto, as preocupações
mentadas nos princípios básicos que regem o SUS,
do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental
não se pode dizer que o olhar para as questões envol-
(MTSM) foram além daquelas manifestadas pelo Movi-
vidas nessas áreas tenha sido incorporado de forma
mento Sanitário. Não se tratava apenas da reformulação
plena em todos os níveis de atenção desse sistema. E
dos sistemas de saúde como parte integrante do proces-
devemos lembrar que o SUS já completou vinte anos
so de redemocratização do país, com ações de atenção,
de existência.
assistência, prevenção, proteção e promoção de saúde.
Se é assim, não é difícil deduzir que existe uma Na Saúde Mental, o foco também estava no papel nor-
dificuldade ainda maior para o enfrentamento de malizador das instituições e na desinstitucionalização.
questões que se situam na fronteira entre esses dois Nesse sentido, Amarante (1995) afirma que,
campos e que, portanto, demandam a integração entre
[...] procurando entender a função social da psiquiatria
eles. Falamos aqui, especificamente, de saúde mental
e suas instituições para além do seu papel explicita-
relacionada ao trabalho.
mente médico-terapêutico, o MTSM constrói um pen-
Partindo desse pressuposto, no texto que segue, samento crítico no campo da saúde mental que permite
contextualizamos as áreas programáticas de Saúde visualizar uma possibilidade de inversão desse modelo
Mental e de Saúde do Trabalhador no SUS. Retomando a partir do conceito de desinstitucionalização (p. 492).

3
As autoras deste artigo têm, cada uma, mais de uma década de atuação no SUS com variadas inserções (serviços relacionados à Saúde Mental,
Saúde do Trabalhador e gestão em nível central e local) e em diferentes municípios (São Paulo, Campinas, Diadema e São Bernardo do Campo).

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Sendo assim, é possível compreender porque as Além disso, as ações de prevenção e promoção de
políticas públicas decorrentes das proposições desse saúde também parecem longe de ser os aspectos mais
movimento tenham focalizado, primordialmente, a relevantes da agenda da saúde mental no SUS na atua-
atenção aos casos graves – especialmente as psicoses lidade. E, ainda, conforme afirma Passos (2009), a pró-
– a partir do estabelecimento de uma rede substitutiva pria área de saúde mental também se mostra “um tanto
ao modelo asilar. quanto apartada dos problemas mais gerais de saúde
coletiva e da rede de atenção básica”.
Vale dizer que, juntamente com a substituição dos
manicômios, também era essencial substituir a cultura Nesse sentido, Scarcelli e Alencar (2009) ponde-
manicomial predominante na sociedade (AMARAN- ram que:
TE, 2000). Desse modo, além da constituição de uma se, por um lado, foram muitos os avanços nos últi-
rede de serviços, era necessário conquistar os diversos mos anos no que se refere à reforma psiquiátrica bra-
setores sociais para a “causa” da reforma psiquiátrica, sileira, por outro lado, a questão da desconstrução
incluindo os profissionais de saúde cuja formação, em da cultura manicomial foi suplantada por aquelas
centradas, muitas vezes, nos aspectos fundamental-
grande parte, tinha (e, talvez, possa-se dizer que ainda
mente assistenciais (p. 6).
tenha)4 um cunho essencialmente manicomial.
E, assim:
As primeiras vitórias efetivas desse movimento no
âmbito nacional se deram no início dos anos 1990, parte das preocupações a ações propostas pelos mo-
quando, após a implantação de serviços de cunho an- vimentos que se organizam no final do regime mili-
tar e se ampliam no processo de redemocratização do
timanicomial em alguns municípios, como Santos e país ficaram latentes nos anos que se seguiram (p. 6).
São Paulo, o Ministério da Saúde publicou as portarias
(BRASIL, 1991, 1992) que possibilitaram o financia- A vivência das autoras deste artigo na área de saú-
mento de outros serviços de saúde mental que não ape- de em diferentes municípios indica a hipótese de uma
nas o leito psiquiátrico. No que diz respeito ao trabalho, dupla exclusão. Por um lado, parece que, de fato, as
vale lembrar que a Lei nº 9.867/99, que criou e definiu unidades de atenção especializada em Saúde Mental,
o funcionamento de cooperativas sociais, também foi como os CAPS, estão mais focadas na assistência e dis-
um marco para a reforma psiquiátrica brasileira na me- tantes das questões gerais de saúde coletiva. Mas, por
dida em que possibilitou o desenvolvimento de progra- outro, não parece haver ações efetivas de grande par-
mas de trabalho assistido “com a finalidade de inserir te dos gestores de saúde, seja no nível municipal ou
as pessoas em desvantagem no mercado econômico” local, para que a atenção à saúde mental seja ampla-
(BRASIL, 1999). mente assimilada por outros serviços e profissionais
que não sejam aqueles diretamente vinculados à área.
Mas foi sobretudo com a publicação, em 2001, da Desse modo, ainda que não se possa negar a existência
Lei Federal nº 10.216 (BRASIL, 2001a) que passou a ha- de experiências que obtiveram êxito nessa integração,
ver um investimento público massivo para a implan- não é possível afirmar que exista uma organicidade na
tação e implementação de dispositivos assistenciais atenção à saúde mental em serviços de saúde não es-
específicos – principalmente Centros de Atenção Psi- pecializados, sobretudo na atenção básica.
cossocial (CAPS) – visando à extinção progressiva dos
Avaliamos que existem dois fatores que, apesar
manicômios em todo o território nacional e privilegian- de estarem vinculados a concepções opostas de aten-
do a autonomia e a reinserção social daqueles que vi- ção à saúde, dificultam igualmente a superação desse
vem com sofrimento mental. distanciamento.
No entanto, se tais medidas possibilitaram a cria- De um lado está a atual Estratégia de Saúde da Famí-
ção de uma rede de saúde mental substitutiva aos ma- lia (ESF). Sem dúvida, trata-se de uma proposta muito
nicômios, houve relativamente pouco investimento em importante, que se fundamenta na atenção integral e na
estratégias para incluir, nessa rede, outros serviços do territorialização,5 as quais, devemos ressaltar, também
SUS não específicos dessa área. Assim, observa-se que, são conceitos-chave para a atenção psicossocial, que está
de um modo geral, os CAPS ainda centralizam a aten- na base da política de Saúde Mental. Mas sua estrutura-
ção a uma ampla gama de casos de sofrimento psíqui- ção com base em equipes formadas apenas por médicos
co e de transtorno mental que poderiam ser atendidos e profissionais de enfermagem “generalistas” parece difi-
nos diferentes níveis de atenção e de cuidado, inclusi- cultar o olhar para situações e problemas de saúde que,
ve com investimento em soluções regionais mediante historicamente, ficaram apartados da atenção básica.
compromissos e pactuações. Entre eles, incluem-se não apenas a Saúde Mental, mas

4
A esse respeito, é interessante ler o relato de Passos (2009), sobre o curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
5
Uma compreensão mais ampla da territorialização deveria ir além da área de abrangência do atendimento das equipes de Saúde da Família ou
da Unidade Básica de Saúde. De acordo com Ceccim (2005, p. 176), “processo de territorialização não se restringe à dimensão técnico-científica
do diagnóstico e da terapêutica ou do trabalho em saúde, mas se estende à orientação das práticas, à construção de um estar no campo de
saberes e de práticas da saúde que envolve desterritorializar saberes hegemônicos e práticas vigentes”.

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também a Saúde do Trabalhador e as demais áreas que tal teve grandes avanços, com mudanças significa-
fazem parte da Vigilância em Saúde (saúde ambiental, tivas na direção de uma política antimanicomial no
sanitária, epidemiológica e controle das zoonoses). seu sentido pleno.
No outro extremo está a formação dos profissio-
nais de saúde mental – especialmente psiquiatras e A área de Saúde do Trabalhador no SUS
psicólogos – que ainda é fortemente influenciada por
Deve ser ressaltado que, desde a década de 1930 até
vertentes individualizantes. A formação médica em a estruturação do SUS, a assistência à saúde da popu-
psiquiatria, de um modo geral, preconiza terapêuticas lação trabalhadora não dizia respeito à saúde pública
medicamentosas como a solução para a maior parte e era atribuição das empresas e da Previdência Social
dos problemas de saúde mental. Já no campo da psico- (LACAZ, 1996). É somente a partir da aliança dos sindi-
logia, as teorias predominantes – entre as quais, a psi- catos com profissionais de saúde alinhados às propos-
canálise se destaca – enfatizam os aspectos individuais tas do movimento sanitário que a Saúde do Trabalhador
e familiares como as principais causas do adoecimen- passa a ser objeto de atenção. Conforme apontado em
to e do sofrimento psíquico, indicando a psicoterapia documento sobre esse tema elaborado pelo Centro de
como a forma primordial de tratamento. Em ambas as Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas
concepções, o foco está em ações assistenciais e não (CREPOP) do Conselho Federal de Psicologia:
na prevenção do adoecimento ou na promoção de saú- Longe de ser um termo apenas descritivo e sinôni-
de. Assim, a atenção em saúde mental se daria apenas mo da Saúde Ocupacional, Saúde do Trabalhador
por meio da atenção do “especialista” ao “indivíduo refere-se a um campo de saberes e práticas com
doente”, sendo deixados de lado aspectos sociais que claros compromissos teóricos, éticos e políticos, e
compõem a complexa trama de fatores que podem de- insere-se como uma política pública em saúde que
demanda articulações intersetoriais (Saúde, Previ-
sencadear o sofrimento e o adoecimento mental, entre
dência Social, Educação, Trabalho e Emprego, Meio
os quais está o trabalho. Ambiente, dentre outras). A amplitude do campo
Tais fatos parecem ter colaborado para que a aten- teórico e prático da Saúde do Trabalhador exige a
inter-relação de diversos saberes e a apreensão de
ção à saúde mental tenha ficado concentrada em uni-
múltiplos conceitos. (CONSELHO FEDERAL DE
dades especializadas, sobretudo nos CAPS, e mantido PSICOLOGIA, 2008b, p. 17)
uma tendência fortemente assistencial mesmo após
a reforma psiquiátrica, conforme afirmam Scarcelli e Trata-se de um modelo fundamentado nas propo-
Alencar (2009). sições da área Saúde Coletiva e da Medicina Social
Latino-americana (LACAZ, 1996; LAURELL, 1991;
Mais recentemente, foram criados os Núcleos de MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997) e influen-
Apoio à Saúde da Família (NASFs), que são estrutu- ciado também pelas proposições de organismos inter-
ras compostas por equipes multiprofissionais, que nacionais, como a Organização Internacional do Tra-
devem atuar como referência para um número deter- balho (OIT) e a Organização Panamericana de Saúde
minado de equipes de saúde da família no sentido (OPAS) (TAMBELLINI, 1984; LACAZ, 1996; SATO;
de realizar discussão de casos, atendimento compar- LACAZ; BERNARDO, 2006).
tilhado e, eventualmente, intervenções específicas
Nessa concepção, a saúde pública deveria partir do
com usuários e famílias encaminhados (BRASIL,
reconhecimento de que a relação capital-trabalho se es-
2008). A criação desse tipo de serviço é, sem dúvida,
tabelece de forma desigual e suas ações deveriam ter
um avanço no sentido de aproximar a área especiali-
por objetivo proteger o lado mais frágil desse binômio,
zada da atenção básica. Mas, para funcionar adequa-
o trabalhador. Ao incluir os aspectos sociais, também
damente, exige o exercício permanente da formação e
se buscava superar o olhar tradicional da Medicina do
da pactuação de novas regras para integração. É inte- Trabalho, que tende a focalizar a relação saúde-trabalho
ressante destacar que, em um documento produzido unicamente como uma relação de causa-efeito entre um
pelo Conselho Federal de Psicologia (2009), no qual agente do ambiente e um indivíduo trabalhador.
são relatadas as experiências de diversos psicólogos
que atuam em NASFs, são apresentadas diversas difi- A partir de meados dos anos 1980, surgiram, en-
culdades, entre as quais: tão, alguns Programas de Saúde do Trabalhador (PSTs)
cujas equipes foram, em grande parte, formadas por
a falta de preparo básico em discussões relacionadas
profissionais “militantes” do Movimento Sanitário
à subjetividade e uma grande sensação de desamparo
(LACAZ, 1996; COSTA; et al., 1989). A proposta inicial
frente às demandas extremamente complexas no coti-
diano do serviço. (p. 107) era a de que essas unidades funcionassem como polos
facilitadores para que a rede de saúde atentasse para as
Observa-se, assim, que, na atualidade, ainda exis- especificidades do trabalho no processo saúde/doença.
tem muitos obstáculos a serem superados no sentido Além da necessidade de um olhar crítico para a rela-
de incorporar, na prática de atenção à saúde mental ção entre saúde e trabalho, também era essencial que
no SUS, os ideais preconizados pelo movimento da os profissionais e os gestores de saúde aprendessem e
reforma psiquiátrica. Mas também devemos lembrar se dispusessem a manejar diversas situações, que, em
que existem municípios onde a atenção à saúde men- geral, são fontes de intensos conflitos.

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Tais experiências, apesar de isoladas, foram funda- Entretanto, é necessário ressaltar que, assim como
mentais para a inclusão dessa área programática no ca- ocorreu na Saúde Mental, essas medidas também não
pítulo de Saúde da Constituição Federal de 1988 e na garantiram a inclusão de ações de Saúde do Trabalha-
lei que regulamenta o SUS. Os dispositivos constitucio- dor na atenção básica e na vigilância. Essa integração
nais definem a Saúde do Trabalhador como um conjun- continua sendo um dos grandes desafios do SUS e, vale
to de ações de atenção, promoção, prevenção e proteção dizer, não somente nos níveis municipais ou locais, mas
à saúde que visa à recuperação e à reabilitação da saúde em todas as esferas de governo. Mesmo no Ministério
dos trabalhadores. Assim, a partir de então, o adulto da Saúde, o diálogo entre as áreas ainda parece difícil.
passou a ter o direito de ser visto pela saúde pública: As proposições da Renast não são refletidas nas porta-
em sua condição de trabalhador, o que implica co- rias ministeriais que normatizam a atuação das ESF, por
nhecer a situação de trabalho, ou seja, não apenas o exemplo. As diretrizes propostas para essa política para
processo de produção em si, mas também o processo a atenção básica não incluem nenhuma estratégia para
de produção e (re)-produção das relações sociais de o enfrentamento de problemas que envolvem a relação
produção. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, saúde-trabalho-doença. E, se é assim no nível federal, o
2008b, p. 16) que se pode esperar dos níveis municipal e local?
Todavia, apesar da garantia constitucional, fo- Outro aspecto a ser destacado diz respeito ao fato
ram raros os municípios ou estados que efetivamente de que, apesar da Renast, ainda hoje as concepções de
implantaram tal programa na sua rede de saúde até grande parte dos profissionais e gestores do SUS sobre
meados da última década. Conforme afirmam Maeno a saúde do trabalhador reproduzem a ideologia do-
e Carmo (2005), “mesmo com todo aparato legal de- minante na sociedade. Nos mais variados serviços de
finindo responsabilidades, os gestores federais, esta- saúde, observa-se a presença marcante de um discur-
duais e municipais ignoraram solenemente essa área so que naturaliza a ocorrência dos acidentes e doen-
durante anos” (p. 270). ças no trabalho. Não é raro ouvir-se, por exemplo, falas
Após a criação do SUS, os poucos PSTs existentes que atribuem aos trabalhadores com queixas de saúde
foram sendo gradativamente transformados em Cen- que podem estar relacionadas ao trabalho a pecha de
tros de Referência em Saúde do Trabalhador (atual- “aproveitadores” e “preguiçosos” e outras que atribuem
mente, chamados nacionalmente de Cerests). Mas foi a causa dos acidentes de trabalho aos atos inseguros6
somente a partir de 2002 que o Ministério da Saúde dos trabalhadores.
efetivou a institucionalização de uma Política Nacio- Infelizmente, essas concepções podem ser encon-
nal de Saúde do Trabalhador mediante portarias que tradas, inclusive, entre profissionais dos próprios Ce-
criam a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde rests. Enquanto as equipes dos primeiros PSTs eram
do Trabalhador (Renast) com o objetivo de “integrar integradas por “militantes”, que tendiam a ter um olhar
a rede de serviços do SUS, voltados à assistência e à crítico para o processo saúde-doença-trabalho (LACAZ,
vigilância, para o desenvolvimento das ações de saúde 1996), os novos serviços criados após a Renast contam
do trabalhador” (BRASIL, 2005a). Desse modo, foram com profissionais que não necessariamente tinham in-
definidas ações que deveriam ocorrer da atenção bási- teresse pela área e, não raro, sequer a conheciam ante-
ca à assistência de alta complexidade e também foram riormente. Vale ressaltar que esse problema é agravado
estabelecidas ações de promoção e educação em saúde pelo fato de grande parte dos municípios, influenciada
do trabalhador e de vigilância em saúde do trabalha- pela cultura hegemônica, exigir título de especialista
dor (BRASIL, 2005b). em medicina do trabalho nos editais de contratação de
O “eixo integrador” da Renast foi o estabelecimento médicos para os Cerests.7
de uma “rede regionalizada de Centros de Referência Desse modo, arriscamo-nos a dizer que, se a falta
em Saúde do Trabalhador – Cerest”, os quais teriam “a
da compreensão do processo saúde-doença como um
atribuição de dar suporte técnico e científico às inter-
fenômeno social tem repercussões na atenção à saúde
venções do SUS no campo da Saúde do Trabalhador”
mental, na saúde do trabalhador ela tem consequências
(BRASIL, 2006). Para criar essa rede, a principal estraté-
ainda mais sérias. Devemos lembrar que as ações nesta
gia adotada foi muito parecida com aquela utilizada na
área, sejam no plano assistencial ou da proteção, se dão
política de Saúde Mental: o incentivo financeiro para
diretamente no núcleo do sistema capitalista, ou seja,
os municípios e estados criarem ou aprimorarem uni-
na relação capital-trabalho.
dades especializadas. E se na Saúde Mental o incentivo
visava à ampliação do número de CAPS, na Política de Outra dificuldade que envolve a área de Saúde do
Saúde do Trabalhador, o foco esteve na implantação e Trabalhador no SUS refere-se às ações de vigilância
implementação de Cerests. em ambientes de trabalho. É bastante frequente que

6
O conceito de ato inseguro aplica-se para responsabilizar os próprios trabalhadores pelos acidentes de trabalho de que são vítimas (OLIVEIRA,
1997). Geralmente são atribuídas explicações para ocorrência dos acidentes que se sustentam em concepções que incluem erros humanos,
distração, fadiga e até ganhos secundários.
7
A formação nessa especialidade médica ainda é marcadamente voltada para a atuação em empresas e calcada na visão do “ato inseguro”.

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as empresas, especialmente de grande porte, ques- As dificuldades de integração entre as áreas de Saúde
tionem de forma sistemática as medidas punitivas Mental e de Saúde do Trabalhador
que lhes são aplicadas pelo SUS quando situações de
risco à saúde dos trabalhadores são identificadas no Os aspectos discutidos até aqui indicam que ainda
seu ambiente e/ou processo de trabalho. Tal fato cria existem muitos obstáculos que devem e podem ser su-
situações de muito desgaste para as equipes de saúde perados para a atenção adequada à saúde mental rela-
e indica a necessidade do preparo dos aparatos jurí- cionada ao trabalho no âmbito do SUS. Mas, se há di-
dicos e administrativos do SUS para a sustentação ficuldades específicas de cada uma das duas áreas, os
das sanções impostas. problemas que envolvem ambas estão ainda mais longe
de uma atenção, se não plena, pelo menos aceitável. Nes-
Tendo em vista esse pressuposto, é compreensível se sentido, arriscamo-nos, aqui, a levantar alguns pontos
que as ações de vigilância em saúde do trabalhador se que entendemos serem importantes para a análise dessa
concentrem em problemas que podem ser mais facil- conjuntura. Antes, é importante esclarecer que este en-
mente provados, como é o caso dos riscos encontrados saio focaliza a interface saúde mental e saúde do traba-
no ambiente de trabalho, especialmente aqueles que lhador, sem, contudo, pretender abarcar a amplitude de
podem levar a acidentes. Além da visibilidade do ris- questões que afetam as duas áreas. Trata-se de pontuar
co, há outras razões objetivas para essa priorização, as dificuldades que se apresentam no momento em que se
quais arrolamos aqui: as ações de vigilância permitem objetiva superar modelos que foram hegemônicos duran-
a utilização de uma metodologia mais focada (BINDER; te séculos e implementar políticas públicas intrasseto-
ALMEIDA, 1997; ALMEIDA, 2006) e têm grande impacto so- rias considerando as características de cada território.
bre a mortalidade de trabalhadores; a ocorrência de um
acidente de trabalho sensibiliza mais a população leiga do Nesse sentido, o primeiro aspecto a ser destacado diz
que as doenças crônicas (especialmente aquelas menos respeito ao gerenciamento dos serviços e das áreas pro-
visíveis, como as LER/DORT e o adoecimento mental); a gramáticas. Deve-se lembrar de que, desde sua incorpo-
repercussão dos acidentes de trabalho gera mais fortemen- ração no sistema de saúde, tanto a Saúde Mental como
te uma publicidade negativa para as empresas (SILVA; a Saúde do Trabalhador tiveram coordenações distintas
FISCHER, 2008), que, por isso, resistem menos às medi- em todos os níveis do SUS (Ministério da Saúde e Secre-
das impostas ou sugeridas pelos profissionais do SUS. tarias Estaduais e Municipais de Saúde, especialmente
de municípios de grande porte), estando ambas aparta-
Já a “organização do trabalho” – que, vale dizer, é das da gestão da atenção básica. Desse modo, as ações de
a responsável por muitos problemas de saúde mental cada uma dessas áreas se pautaram mais fortemente nas
relacionados ao trabalho – envolve aspectos subjetivos suas próprias necessidades e especificidades. Conforme
e, consequentemente, mais difíceis de serem demons- apontado anteriormente, a Saúde Mental concentrou-se
trados. Talvez por esse motivo observem-se bem menos na consolidação da reforma psiquiátrica, priorizando a
relatos de ações de vigilância concernentes a esse as- implantação dos CAPS, e a Saúde do Trabalhador ainda
pecto. As respostas a algumas questões, como “qual é busca conquistar o reconhecimento da relação entre o
o ritmo aceitável para uma esteira de produção de fo- trabalho e o processo saúde-doença.
gões?”, “qual é o número de trabalhadores adequado
para produzir “X” automóveis?”, “qual é o limite para Assim, a integração entre os serviços também se
que um chefe aplique sanções aos seus subordinados?”, configura como outra importante dificuldade. A centra-
lização da Saúde Mental nos CAPS, e da Saúde do Tra-
dependem de uma ampla análise de cada processo de
balhador nos Cerests parece aumentar a distância entre
trabalho e são sempre referentes ao caso específico, di-
as duas áreas programáticas e dificultar o estabeleci-
ficilmente podendo ser generalizadas. Nesses casos, a
mento de ações conjuntas com relação ao adoecimento/
objetivação se dá pelas consequências (número de tra-
sofrimento psíquico relacionado ao trabalho.
balhadores adoecidos, por exemplo) e não pela extrapo-
lação de um “limite de tolerância” estabelecido por lei, Ainda que, nas leis e portarias, esteja explicitado
o que torna a tarefa de vigilância bastante complexa. que o SUS deve se pautar, entre outros princípios, na
integração entre os diversos níveis, na intersetoridade
Essa complexidade da área e os conflitos que per-
e na integralidade, na prática, isso tem ocorrido apenas
meiam suas ações parecem ser fatores que ajudam a ex-
em experiências pontuais. No caso da Saúde do Tra-
plicar porque as preocupações e as ações de Saúde do
balhador, muitas vezes, parece haver mais abertura de
Trabalhador ainda estão concentradas nos Cerests. No
outros órgãos públicos que estão fora do SUS para a
entanto, conforme é discutido em outros artigos desta
interlocução com os Cerests – como Ministério do Tra-
coletânea, o contexto atual do mundo do trabalho tem
balho, Ministério Público do Trabalho etc. – do que da
sido responsável por uma grande elevação do número
própria rede de saúde.
de doenças do trabalho, especialmente o adoecimento
e o sofrimento psíquico. Desse modo, mais do que em Também é importante lembrar que tanto a área de
qualquer outra época, esse se configura como um pro- saúde mental, como a de saúde do trabalhador são bas-
blema de saúde pública que exige ações integradas que tante complexas e têm, ambas, um forte componente
envolvam uma articulação de toda a rede de serviços social. Por isso, pode-se dizer que existe um consenso
que compõem o SUS. entre teóricos do campo das políticas públicas de que,

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para o enfrentamento adequado dos problemas des- para a emancipação do indivíduo, com a recuperação
sas áreas, são necessárias equipes multiprofissionais da sua cidadania, e para a reconstrução de laços e redes
(AMARANTE, 1995; LACAZ, 1996; SCARCELLI, 1998), sociais, podendo se dar de diversas formas. A consti-
o que, evidentemente, fica ainda mais imperativo no tuição de cooperativas sociais, por exemplo, pode ter
caso de um tema que diz respeito a ambas. a dupla função de colaborar na recuperação da saúde
mental e possibilitar um contexto em que o trabalhador
Tal premissa parece dificultar a atenção a essa
seja dono de sua força de trabalho.
questão, especialmente na rede básica, com a atual
conformação das equipes da ESF. Conforme afirmamos No entanto, no modelo capitalista em que vivemos,
anteriormente, acreditamos que esse fato – somado à a principal representação do trabalho é, ainda, o vín-
carência crônica de profissionais na área da saúde pú- culo de emprego. E se retomamos o que foi dito ante-
blica, à enorme gama de problemas a serem enfrentados riormente a respeito da falta de um olhar crítico para
no cotidiano dessas equipes e à formação dos profissio- a relação capital-trabalho por parte de muitos profis-
nais de saúde mais voltada para as “tecnologias duras” sionais de saúde, não é difícil deduzir que a inserção
do que para as “tecnologias leves” (MERHY, 1997)8 – dos usuários dos serviços de saúde mental em um posto
não favorece a atenção aos problemas de saúde mental de trabalho com carteira assinada acabe sendo um im-
e de saúde do trabalhador pela rede básica. E, a partir portante objetivo da reabilitação que, quando atingido,
dessa constatação, não é difícil deduzir que problemas torne-se um símbolo do tratamento bem-sucedido.
de saúde que se situam na intersecção entre duas áreas
sejam ainda menos priorizados. Desse modo, apesar de ser coerente a proposta de
que o trabalho seja um dos instrumentos de reabilita-
Deve-se lembrar, ainda, de que a população leiga, de ção psicossocial na área de saúde mental, tal inserção
uma forma geral, também não identifica a saúde men- deve ser pensada de forma crítica. Projetos que tratem
tal relacionada ao trabalho como um problema a ser a inclusão no trabalho sem considerar o contexto social
enfrentado pela saúde pública. Ao contrário de outras que produz adoecimento e sofrimento psíquico podem
questões tradicionalmente vinculadas às unidades bá- incorrer no erro de ver a inserção no mercado de tra-
sicas de saúde (como a saúde da criança ou da mulher, balho, seja de que tipo for, sempre como um fator po-
por exemplo), essa, raramente, aparece como uma de- sitivo para o sujeito. Assim, os pacientes podem, por
manda da população de um determinado território para exemplo, ser incentivados a se empregarem em ocupa-
a equipe de saúde. ções que em nada colaborarão para sua recuperação ou,
Mas, além das dificuldades da rede básica, parece- o que é pior, a desenvolverem atividades potencialmente
-nos que a própria política de saúde mental não propi- lesivas à sua saúde.
cia condições para a atenção aos problemas de saúde Ao desconsiderar a vida laboral anterior de seus pa-
mental relacionada ao trabalho. Vale lembrar que essa
cientes, as equipes de saúde mental também podem tra-
política prioriza o atendimento de casos graves e/ou
tar problemas relacionados ao trabalho como se esses
agudos – que deve ocorrer nos CAPS e nos hospitais
fossem exclusivamente de ordem intrapsíquica. Nesse
– e a atenção aos casos “leves” – que deve se dar nas
sentido, teriam um papel iatrogênico na medida em que
equipes de saúde da família, com suporte dos NASFs.
colocam exclusivamente no indivíduo a razão do ado-
Entretanto, os casos que poderíamos chamar de “inter-
ecimento e, consequentemente, o foco do “tratamento”
mediários” – que incluem a maioria daqueles de saúde
no plano pessoal. Além disso, ao olhar apenas para o
mental relacionada ao trabalho – não contam, em geral,
indivíduo e não para a coletividade, deixam de lado um
com um sistema estruturado para seu atendimento.
dos eixos do SUS, que é a prevenção, colaborando com
Um segundo aspecto da política de Saúde Mental a manutenção de uma situação que pode afetar a saúde
que também deve ser levantado aqui diz respeito à rea- mental de outros trabalhadores.
bilitação psicossocial, que é um dos objetivos busca-
Por outro lado, também devemos considerar que a já
dos. Amarante (1995) lembra que, no contexto da refor-
ma psiquiátrica: citada dificuldade para avaliar e demonstrar situações de
risco relacionadas à organização dos processos de traba-
o tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de lho tem consequências diretas para a adequada atenção a
violência e mortificação para tornar-se criação de questões de saúde mental relacionadas ao trabalho. E se
possibilidades concretas de sociabilidade. (p. 494)
isso é observado no âmbito da vigilância, também ocorre
Nesse sentido, a proposta antimanicomial prevê que no nível da atenção à saúde. O estabelecimento do nexo
aquele que antes era o “doente” excluído, agora passe causal entre o trabalho e o adoecimento, que nem sem-
a ser sujeito da sua própria existência (AMARANTE, pre é simples, torna-se ainda mais complexo nos casos
1995). Para atingir esse objetivo, o trabalho, enquanto de saúde mental, que envolve diagnósticos encontrados
atividade social, torna-se um importante instrumento com grande frequência na população em geral e não pro-

8
Merhy tem focalizado esse tema em muitas de suas publicações. Segundo ele, a “tecnologia dura” envolve ações pautadas em equipa-
mentos e exames, enquanto as “tecnologias leves” dizem respeito a um olhar mais para o social e às relações que se estabelecem entre os
profissionais de saúde e a população.

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blemas reconhecidos como doenças profissionais. Como Atenção Básica: porta de entrada do SUS
afirmar, por exemplo, que um caso de depressão ou de
síndrome do pânico está relacionado ao trabalho? Certa- De acordo com a organização do SUS, no nível da
mente, a resposta nos remete aos desafios da integração atenção básica, as estratégias de cuidado e proteção à
dos serviços em rede, da responsabilização das equipes saúde se voltam às necessidades da população no terri-
e da implementação dos projetos terapêuticos em equi- tório com vistas a garantir universalidade, acessibilida-
pes multidisciplinares, de forma a contribuir para uma de, vínculo, integralidade e responsabilização. Parte-se
atenção integral pautada na análise clínica, e da situação do princípio de que o reconhecimento do território e
de trabalho dos envolvidos, bem como de outros deter- dos condicionantes do processo saúde-doença, isto é,
minantes e condicionantes sociais da saúde. rede de saneamento, água tratada ou fontes alternativas,
meio ambiente, incluindo o de trabalho, faixa etária,
Muitos dos pontos levantados aqui são passíveis de nível de escolaridade, ocupações, doenças etc., retrata
contestação, mas dificilmente seria questionada a afir- as reais condições de vida e saúde da população. Esta
mação de que a integração dessas duas áreas progra- perspectiva de gestão da saúde implica a construção de
máticas, seja entre si ou com as áreas tradicionais do respostas no território, o compartilhamento das respon-
SUS, ainda é muito tênue, dificultando sobremaneira a sabilidades e a articulação de recursos comunitários.
atuação sobre problemas de saúde que se encontram na Dessa forma, se a territorialização é um importante
fronteira entre ambas, como é o caso da saúde mental pressuposto do trabalho das equipes de atenção básica
relacionada ao trabalho. (BRASIL, 2009), também é essencial no caso da saúde
Para essa integração parece ser necessário “des- mental relacionada ao trabalho, como se pode exempli-
construir” tanto a cultura manicomial como a cultura ficar a partir de uma situação hipotética apresentada a
da positividade do trabalho no contexto capitalista e a seguir, que, infelizmente, ainda não é comum.
naturalização dos acidentes e doenças decorrentes do Pensemos em algumas Unidades Básicas de Saúde
trabalho (entre os profissionais e gestores de saúde ou ou equipes da ESF que recebem diversos usuários com
na população em geral). Também é necessário superar queixas de tonturas, mal-estar, dores de cabeça, irrita-
a concepção individualizante e medicalizante que per- bilidade e agressividade imotivadas, entre outros sinto-
meia a compreensão desses fenômenos (SATO, 1993; mas. Inicialmente, os profissionais não relacionam as
ALMEIDA, 2001; BRANT; MINAYO-GOMEZ, 2007). queixas à ocupação e atribuem os sintomas às carac-
terísticas pessoais e familiares das pessoas atendidas,
Desse modo, entendemos que, para que se pos-
buscando discutir os casos com os profissionais de re-
sa avançar na construção do SUS, radicalizando seus
ferência em saúde mental do NASF.
princípios, é fundamental que o sofrimento/adoeci-
mento psíquico relacionado ao trabalho não seja apenas Aqueles que participam das discussões observam
um problema de uma área ou, ainda pior, de um tipo de que os relatos são muito similares em todos os casos
unidade de saúde e, sim, de todos os níveis do Sistema e remetem à mesma situação de trabalho, a qual se ca-
de Saúde. racteriza pela exposição a produtos neurotóxicos em
uma empresa química estabelecida no território de uma
Conforme afirmam Scarcelli e Alencar (2009):
das unidades. Ao pesquisar os efeitos dos produtos re-
[...] não temos dúvidas de que os problemas estrutu- feridos pelos usuários, a equipe verifica que eles são
rais só poderão ser resolvidos a partir da superação compatíveis com os sintomas apresentados e, ainda,
das contradições do próprio sistema de produção ca- relacionam-se com os relatos e as observações de que a
pitalista. Mas isto não nos retira a responsabilidade
empresa descarta substâncias químicas no solo.
de continuar buscando soluções, mesmo pontuais, e
principalmente de desvendar as complexidades de A partir dessa constatação, a atenção à saúde desses
nossa realidade social. (p. 8) usuários muda. Além do estabelecimento de um proje-
to terapêutico individual que leve em conta a possível
contaminação de cada um e sua relação com os sintomas
Atenção à saúde mental e trabalho nos neuropsíquicos, também é buscada uma articulação com
diferentes níveis de atenção do SUS: pos- o serviço de Vigilância em Saúde e o Cerest de referência
para a realização de ações de vigilância naquele ambien-
sibilidades e desafios te de modo a eliminar a “fonte” do risco à saúde da po-
pulação trabalhadora e moradora do local. Dessa forma,
Apesar das dificuldades apontadas até aqui, existem a ação da equipe não se restringe à atenção individual
experiências que demonstram que a atenção à saúde mais adequada às características daquele processo de
mental relacionada ao trabalho pode ocorrer no SUS adoecimento. Ela também se expande para a prevenção
de formas criativas e integradas. Assim, neste item, va- com um olhar para o território, dando sentido aos princí-
mos apresentar alguns exemplos de ações que mostram pios buscados com a ideia da ESF. Esta situação retrata o
como a integração entre as áreas e/ou níveis do SUS desenvolvimento de uma ação integrada e intrassetorial
possibilita uma atenção mais adequada a esse problema que contempla as necessidades e as realidades de saúde
de saúde. Também vamos apontar alguns desafios que local objetivando controlar determinantes, risco e danos
ainda necessitam ser superados. à saúde daquela população.

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Outro exemplo hipotético, que, não obstante, é é fundamental a integração dos serviços especializados
comum nos dias atuais, pode ser o de uma empresa de Saúde Mental e de Saúde do Trabalhador.
que encerra suas atividades em um determinado local
Um exemplo desse tipo de relação é o de uma situa-
ou muda suas instalações para outra cidade. Com o
ção real ocorrida em um município do interior pau-
desemprego gerado por esse fato, imediatamente au- lista. Em 2008, uma terapeuta ocupacional do Cerest
menta a demanda de usuários no serviço de saúde Regional com experiência na área de reabilitação pro-
próximo com queixas de sofrimento mental, perda da fissional foi convidada a ajudar na condução de um
perspectiva de vida, desânimo, tristeza, sentimento grupo de pacientes de um CAPS com o objetivo de
de inutilidade, ansiedade. Nesse caso, uma intervenção discutir o retorno ao trabalho. Na perspectiva dos pro-
que desconsidere a causa do sofrimento poderá impli- fissionais do CAPS, tratava-se apenas de “pacientes de
car uma abordagem puramente medicamentosa, sem a saúde mental” cujo adoecimento não era associado à
possibilidade de ressignificação da experiência vivida sua atividade anterior e que se encontravam em uma
e o olhar sobre a subjetividade das pessoas (TERRA, fase de recuperação que lhes permitia pensar no re-
et al., 2006; FARINA; NEVES, 2007). Todavia, ao olhar torno ao trabalho. No entanto, ao iniciar o grupo, a
para o território tendo como pano de fundo a concep- terapeuta ocupacional observou que os problemas
ção de que a saúde integra fatores sociais, os profis- apresentados por alguns daqueles pacientes pareciam
sionais poderão compreender o processo em que se ter relação com sua atividade laboral. Propôs, então, a
originou esse sofrimento e pensar em outros tipos de realização de uma discussão desses casos pela equipe
ações junto à comunidade. do CAPS juntamente com ela e a psicóloga do Cerest.
Foram estabelecidas algumas atividades prévias às
O estabelecimento do nexo causal: um desafio que discussões. A profissional da saúde do trabalhador,
exige integração intrassetorial no SUS com base no roteiro de acolhimento utilizado naquele
serviço, fez uma primeira entrevista com os usuários
Conforme vimos, uma difícil demanda que se apre- cujo diagnóstico poderia ser relacionado ao trabalho.
senta ao SUS, por parte dos trabalhadores, especialmen- O objetivo era levantar aspectos de sua história laboral
te aos Cerests no contexto atual, consiste na necessidade que pudessem estar relacionados ao adoecimento. Já à
de estabelecimento do nexo causal entre o sofrimento equipe do CAPS coube fazer um levantamento dos da-
mental e o trabalho. Frequentemente, essa demanda re- dos anotados no prontuário do paciente.
trata um percurso em que os trabalhadores já foram aten-
didos por diversos profissionais de saúde das empresas e Depois de realizadas essas tarefas, as duas “leituras”
da rede pública e apresentam o relato de aspectos da or- dos casos foram confrontadas em reunião. Nessas dis-
ganização e das condições de trabalho que desencadea- cussões, observou-se a enorme distância entre o olhar
ram ou agravaram o processo de adoecimento. das duas equipes. Um dos usuários, por exemplo, era
um vigilante que havia tido o primeiro surto psicóti-
Frequentemente, a procura do primeiro atendi- co alguns meses após a empresa onde trabalhava sofrer
mento relaciona-se à queixa física, com destaque para um assalto durante seu turno de trabalho, no qual fe-
as dores musculoesqueléticas (casos de LER/DORT), riu gravemente um dos ladrões e ele mesmo quase fora
em que a condição de trabalho exige movimento re- atingido. Depois desse surto, ele teve uma internação
petitivo, sem pausas ou com pausas controladas, pos- de curta duração em um hospital psiquiátrico e, em se-
turas inadequadas em função do mobiliário, longos guida, foi encaminhado ao CAPS. Apesar de a hipótese
períodos em pé ou sentado, pressão para cumprimen- do nexo com o trabalho ser bastante evidente para as
to de metas, exigência de produtividade e, por vezes, profissionais da Saúde do Trabalhador, essa associação
clima de ameaças. Porém, é bastante comum que, ao nunca havia sido pensada pela equipe do CAPS. Aliás,
descreverem seus sintomas, esses trabalhadores tam- sequer constava algum dado sobre o histórico de traba-
bém relatem características que indicam sofrimento/ lho no prontuário do paciente. Ali, a história iniciava-
adoecimento mental, tais como sintomas depressivos, -se com sua internação acrescida de poucos dados de
apatia, irritabilidade, isolamento do círculo social e sua vida familiar anterior.
familiar, baixa autoestima, dificuldade de concentra-
ção, desesperança, os quais, muitas vezes, são tão ou Também ficaram evidentes as diferenças de concep-
mais graves do que a queixa física apresentada ini- ções. Enquanto alguns profissionais do CAPS focavam
cialmente, mas não têm o mesmo reconhecimento os problemas de saúde mental no intrapsíquico e discu-
social (SATO; BERNARDO, 2005). tiam a atividade de trabalho como uma escolha pessoal,
as profissionais da saúde do trabalhador apontavam os
Quando esses trabalhadores chegam aos Cerests ou aspectos sociais, indicando o trabalho como um fator
à rede básica, não raro são atendidos unicamente com fundamental no diagnóstico e no encaminhamento.
relação aos seus sintomas físicos, desconsiderando a Tal observação é corroborada pela afirmação de Lima
importância do trabalho no desenvolvimento dos sinto- (2005) de que a polêmica em torno do nexo causal é
mas psíquicos. Mas, conforme já foi discutido na seção fruto das distintas concepções teóricas sobre a gênese
anterior, o contrário também ocorre. Existem trabalha- da doença mental, que, para alguns, advém de fatores
dores com problemas de saúde mental relacionada ao essencialmente orgânicos (aqueles que defendem a tese
trabalho que são atendidos em serviços de saúde men- da psicogênese), enquanto, para outros, é multidetermi-
tal sem que essa relação seja estabelecida. Nesses casos, nada, integrando fatores biopsicossociais.

Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 36 (123): 103-117, 2011 111
É interessante relatar que, após um amplo debate, bre a percepção do trabalhador a respeito dos riscos e,
nas reuniões da equipe do CAPS com as profissionais sempre que possível, observar o posto de trabalho, as
do Cerest, com relação ao nexo da doença apresentada condições ambientais e o processo de trabalho.
pelo paciente com a sua vivência no trabalho, foi pos-
Também é importante registrar que, em 2001, o Mi-
sível chegar a um consenso de que esse nexo, de fato,
nistério da Saúde publicou um manual no qual apresenta
existia. Assim, foi designado um grupo menor compos-
diretrizes para o estabelecimento do nexo entre trabalho
to por profissionais de ambas as unidades para o preen-
e adoecimento e que inclui um capítulo dedicado à saú-
chimento da notificação do sistema de saúde (Sinan)9 e
de mental (BRASIL, 2001b). Tomando como base uma
da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e para
adaptação da classificação proposta por Schilling (1984),
os encaminhamentos junto ao Instituto Nacional do Se-
o manual divide a relação do trabalho com o adoecimento
guro Social (INSS).
em três categorias: trabalho como causa necessária (Tipo
Outro aspecto a ser destacado é que a questão da cul- I), como fator de risco contributivo de doença de etiolo-
tura da positividade do trabalho também ficou bastante gia multicausal (Tipo II) ou como fator desencadeante ou
evidente entre muitos dos integrantes da equipe do CAPS, agravante de doença preexistente (Tipo III). Ainda que
que viam a inserção no trabalho, qualquer que fosse ele, consideremos as limitações dessa classificação e as difi-
como um sinal da recuperação do paciente. No caso dis- culdades de enquadrar os casos da saúde mental relacio-
cutido aqui, o usuário era um vigilante com baixo nível nados ao trabalho em uma ou outra categoria, avaliamos
de instrução formal. Para os profissionais que o acompa- que ela é útil no sentido de esclarecer que o nexo entre o
nhavam do CAPS, a principal questão era que ele já tinha trabalho e qualquer tipo de adoecimento pode se dar em
condições de voltar a trabalhar, mas em uma atividade diferentes níveis e que todos devem ser notificados.
que não envolvesse armas. Assim, haviam sugerido a ele,
No caso da saúde mental, o trabalho como cau-
com bastante naturalidade, que procurasse um emprego
sa necessária para o adoecimento mental poderá ser
de ajudante de pedreiro – por ser uma atividade com-
identificado, sobretudo, nos casos de transtornos or-
patível com seu nível de instrução – sem considerar a
gânicos de personalidade, transtornos cognitivos e ou-
complexidade do contexto que envolvia a relação entre o
tros sintomas decorrentes da exposição ocupacional a
adoecimento do trabalhador, sua atividade e o sentido do
substâncias químicas tóxicas e a agentes físicos, como,
trabalho para ele. A resistência em aceitar essa mudança
por exemplo, chumbo, manganês e mercúrio. Podemos
de trabalho era interpretada unicamente com base nas ca-
também incluir aqui os quadros de estresse pós-trau-
racterísticas intrapsíquicas do paciente. Foi somente após
mático decorrentes da exposição a um evento ou situa-
a discussão com as profissionais da saúde do trabalhador
ção estressante de natureza excepcionalmente ameaça-
que essa questão foi reavaliada pela equipe do CAPS e fo-
dora, como assaltos ocorridos no local de trabalho, e,
ram pensadas outras possibilidades de encaminhamento.
ainda, de transtornos do ciclo vigília-sono, decorrentes
Além do caso descrito, alguns outros vêm sendo de regime de revezamento de turnos.
discutidos e tal atividade comprova a importância da
Entre os casos em que o nexo se dá porque o tra-
aproximação entre esses dois tipos serviços para a ação
balho é um fator contributivo para doença de etiologia
efetiva do SUS sobre os problemas de saúde mental re-
multicausal, estão, por exemplo, a síndrome de burnout
lacionados ao trabalho. Deve-se lembrar que o paciente
e outros problemas de saúde mental relacionados à vi-
citado acima havia chegado ao CAPS e não ao Cerest e,
vência prolongada em contextos de trabalho com altos
se essa integração não tivesse ocorrido, provavelmente
níveis de exigência, ou em ambientes que passam por
ainda constaria das estatísticas e da rotina do SUS ape-
transformações organizacionais constantes ou, ainda, à
nas como um caso “comum” de saúde mental, sem que
submissão a ritmos de trabalho muito intensos.
a questão da relação do adoecimento com o trabalho
sequer fosse levantada como hipótese. E vale dizer que Finalmente, o trabalho pode ser considerado provo-
esse deve ainda ser o caso de muitos outros trabalhado- cador de uma doença já estabelecida no caso de tra-
res adoecidos nesse e em outros municípios. balhadores alcoolistas ou com transtornos neuróticos
especificados, que estavam controlados e tiveram reci-
Essas experiências encontram ressonância na afir-
diva devido ao trabalho.
mação de Jardim e Glina (2000) de que a complexidade
da investigação diagnóstica em saúde mental e trabalho Os estudos de Lima (2005, 2007) e Vieira (2009) re-
deve combinar diferentes técnicas e saberes. As autoras gistram a relevância e a complexidade de se estabelecer
afirmam que, nesse processo, torna-se imprescindível a relação causal entre o trabalho e os transtornos men-
perguntar sobre o trabalho, realizar uma anamnese ocu- tais e apontam que superar este desafio é fundamental
pacional, levantar aspectos da organização do trabalho, e decisivo para a proteção da saúde dos trabalhadores,
identificar as exigências físicas e mentais, inquirir so- que, vale lembrar, faz parte das diretrizes do SUS.

9
Esse sistema de notificação foi estabelecido pela Portaria GM/MS nº 777 e dispõe sobre os procedimentos técnicos para a notificação compul-
sória pelo SUS de determinados agravos à saúde, incluindo a saúde mental relacionada ao trabalho. Importante registrar que esse sistema de
notificação abrange todos os tipos de trabalhadores, quer estejam inseridos no mercado de trabalho formal ou no informal.

112 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 36 (123): 103-117, 2011
Evento sentinela10: investigação e prevenção nível de sofrimento mental, sem história pregressa, que
associavam às características da organização do traba-
A ocorrência de um evento em determinado local de lho. Foram realizadas devolutivas dos dados obtidos
trabalho sinaliza aos serviços de saúde a necessidade aos trabalhadores e indicadas condutas individuais,
de uma intervenção. Um evento sentinela pode ser, en- como, por exemplo, abertura de comunicação de aci-
tre outros, um acidente de trabalho ou a constatação dente de trabalho (CAT), encaminhamento para aten-
de um número elevado de trabalhadores de um mesmo dimento psicológico e acompanhamento no retorno ao
local com determinado diagnóstico. trabalho. Simultaneamente, foram planejadas ações de
vigilância à empresa que contemplaram a verificação
Um exemplo interessante de como um evento des-
do cumprimento das normas de saúde e segurança no
se tipo pode ajudar na atuação do SUS sobre a saúde trabalho, bem como a aplicação de um questionário aos
mental relacionada ao trabalho refere-se a um caso trabalhadores e supervisores para a caracterização dos
ocorrido na região metropolitana de São Paulo. Ele se aspectos relacionados à organização do trabalho.
iniciou com a constatação da psiquiatra do convênio de
uma empresa pertencente a uma grande rede varejista Esse caso possibilita observar como a suspeita de
de que os trabalhadores dessa empresa apresentavam uma profissional de que problemas de saúde mental
queixas de saúde mental similares. poderiam estar relacionados ao trabalho configurou-se
como um evento sentinela que resultou, por um lado,
Esses trabalhadores referiam-se a desânimo, falta de
em atividades de vigilância na empresa com a partici-
interesse geral, insônia, excesso de somatizações, pensa-
pação do movimento sindical e de diferentes serviços
mentos suicidas, cansaço físico e mental, fadiga, nervo-
do SUS e, por outro, na organização dos serviços para a
sismo, irritação exacerbada, tristeza e todos faziam uso
atenção à saúde dos trabalhadores. E vale dizer que, se
de medicação. Descreviam também a ocorrência de as-
essa demanda foi identificada pela psiquiatra do con-
saltos no trabalho, a pressão psicológica para atingir as
vênio de uma empresa, poderia tê-lo sido por um pro-
metas, medo de demissão e as mudanças gerenciais im-
fissional do SUS.
plementadas por uma nova administração. Além disso,
a médica observou que o tempo de recuperação e afas- Esse exemplo também levanta uma questão comum
tamento do trabalho devido ao adoecimento nesse grupo na área de saúde do trabalhador: como e o que “olhar”
era superior a outros casos com o mesmo diagnóstico. nos aspectos relativos à organização do trabalho em um
processo de vigilância em saúde do trabalhador e, prin-
Sem familiaridade com o mundo do trabalho, a pro-
cipalmente, em um caso como o relatado aqui, no qual
fissional buscou amparo teórico-técnico para sua con-
a saúde mental está em foco? A experiência demonstra
duta junto ao Cerest estadual, que propôs ao serviço
como os profissionais encontram dificuldades no levan-
de referência em saúde do trabalhador do município
tamento das condições subjetivas em que ocorre o traba-
um trabalho conjunto. As equipes de ambos os servi-
lho e o modo como este se organiza, porque, em geral, há
ços constataram tratar-se de um problema regional,
pouca participação dos trabalhadores para o reconheci-
uma vez que a empresa possuía lojas em diversos mu-
mento dos fatores de risco relativos a essa questão.
nicípios. Desse modo foram convidados os Cerests, os
serviços de vigilância à saúde dos demais municípios Consideramos que uma metodologia essencial rela-
e o sindicato da categoria profissional para uma ação tiva à temática foi utilizada na Reforma Sanitária Ita-
regional articulada. liana, denominada Modelo Operário Italiano (ODDONE
et al., 1986; SATO; VALENTE; FREITAS, 1993). Este
Foi estabelecido um plano de intervenção conjunto,
modelo tinha como premissas a formação de grupos
que incluía a realização de entrevistas com os trabalha-
homogêneos, a experiência ou subjetividade operária, a
dores pelos profissionais do Cerest; grupos de orienta-
validação consensual e a não delegação, priorizando
ção com o intuito de que os trabalhadores refletissem
a participação dos trabalhadores nas ações de controle
sobre o processo de adoecimento e suas peculiaridades;
da saúde nos locais de trabalho, valorizando o conheci-
e levantamento de dados sobre a empresa junto a outros
mento e a experiência do trabalhador.
Cerests e ao INSS.
A compreensão do universo de trabalho a partir
Importante registrar que, além do caráter regional,
da identificação, pelos trabalhadores, dos aspectos
o trabalho foi concebido por um grupo interdiscipli-
positivos e negativos que o conformam possibilita en-
nar: psicólogos, médicos, assistentes sociais, técnicos
tender os impactos dos processos de trabalho na sua
de segurança do trabalho, engenheiros, fonoaudiólo-
subjetividade. Importante ressaltar que a participação
gos. Portanto, os desafios se apresentavam tanto em
dos trabalhadores a que nos referirmos em nada tem a
relação à demanda, quanto à organização do grupo e à
ver com as estratégias da gestão empresarial, que uti-
metodologia de trabalho.
liza a cooperação e a participação dos trabalhadores
Os dados foram analisados pela equipe ampliada, como instrumentos de padronização das subjetividades
constatando-se que os trabalhadores apresentavam alto (BERNARDO, 2009).

10
“Evento sentinela” é um termo aplicado a casos que servem de alerta para a possibilidade de ocorrência de agravos à saúde a uma coletivida-
de. A constatação desse tipo de evento tem por finalidade acionar ações de prevenção.

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Para concluir este item, vale dizer que, nesse tipo básica, serviços especializados, urgência e emergência,
de intervenção, que envolve uma escuta para os proble- rede hospitalar (SÃO PAULO, 2009).
mas vivenciados pelos trabalhadores, os profissionais
de saúde mental podem ter muito a colaborar na equipe Entretanto, a experiência de atuação nos Cerest nos
multiprofissional. possibilita registrar que, de todos os agravos à saúde dos
trabalhadores de notificação compulsória, os acidentes
graves e fatais foram aqueles mais facilmente absorvidos
Notificação compulsória de agravos à saúde do
na rotina dos serviços e, consequentemente, geraram da-
trabalhador
dos para análise e sistematização. Já para os casos dos
Por muito tempo, os dados de adoecimento no transtornos mentais, a realidade ainda é bem diferente.
trabalho basearam-se nas comunicações de acidente As dificuldades de articulação com a área programáti-
do trabalho (CAT), de preenchimento obrigatório nos ca de saúde mental, os obstáculos teórico-práticos dos
casos de trabalhadores regidos pela Consolidação das profissionais em exercitar e confrontar o diagnóstico do
Leis do Trabalho (CLT). Desta forma, os dados no INSS transtorno mental e os embates com as empresas são en-
eram a fonte primordial para o conhecimento do perfil traves para que os registros de agravos à saúde mental
de adoecimento dos trabalhadores. Porém, esses dados relacionados ao trabalho sejam representativos daquilo
apresentam diversas dificuldades para se alcançar esse que é vivenciado pelos trabalhadores.
fim. Inicialmente, deve-se lembrar de que se referem
somente a pessoas inseridas no mercado formal e que Mas não temos dúvida sobre a importância de se
são seguradas do INSS. Mas, além disso, não costumam buscar a implementação das notificações dos agravos à
retratar a realidade das doenças de saúde relacionadas saúde mental relacionados ao trabalho para poder dar
ao trabalho, especialmente os transtornos mentais. Es- visibilidade a essa questão que se configura como um
tes aparecem nas estatísticas do INSS como uma das grave problema de saúde pública.
principais causas de afastamento do trabalho, mas a
maioria sem nexo com o trabalho, o que faz pensar em
uma subnotificação.11 Considerações finais
Diante desta realidade, muitos municípios instituí-
ram, na rede municipal de saúde, fichas de notificação Ao elegermos a categoria trabalho como central
dos acidentes/doenças de trabalho de modo a incluir na dinâmica de vida das pessoas, esta se apresenta
trabalhadores estatutários, autônomos, informais etc. como uma possibilidade terapêutica, portanto com
nas estatísticas municipais de agravos relacionados à sua potencialidade integradora, criativa e de reco-
saúde dos trabalhadores. Dentre outras experiências, os nhecimento, perspectiva comumente utilizada na
Cerests de alguns municípios criaram e aprimoram as atenção em saúde mental, isto é, a possibilidade de
fichas denominadas Relatório de Atendimento de Aci- reinserção social.
dente de Trabalho (RAAT), como, por exemplo, Diade- Neste sentido, Antunes (1995, p. 121) sustenta a di-
ma (GARBIN; KANASAWA; URTADO; 2007), Piracica-
mensão essencial do trabalho:
ba (CORDEIRO et al., 2005), São Paulo e Rio Claro.
Este por sua vez desenvolve-se pelos laços de coo-
Mais recentemente, no entanto, essa questão também peração social existentes no processo de produção
passa a fazer parte do cenário nacional. Assim, a notifi- material, em outras palavras, o ato de produção e
cação compulsória dos transtornos mentais relacionados reprodução da vida humana realiza-se pelo trabalho.
ao trabalho é impulsionada por uma portaria do Minis- É a partir do trabalho em sua cotidianidade que o
tério da Saúde (BRASIL, 2004), que institui um Sistema homem torna-se ser social, distinguindo-se de todas
de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) de do- as formas não humanas.
enças relacionadas ao trabalho, que pressupõe a articula- Por outro lado, salientamos que é intrínseco ao
ção das ações dos Cerests com a rede de saúde. modo capitalista de organização do trabalho um po-
Essa Portaria, juntamente com a regulamentação do tencial adoecedor, que repercute na saúde das pes-
fluxo das informações no Estado de São Paulo, por meio soas, em especial na subjetividade do ser humano
da Resolução nº 63/09, da Secretaria de Estado da Saú- (BERNARDO, 2009; GARBIN, 2009) e esse é um as-
de, traduz-se em uma estratégia de discussão sobre os pecto ainda pouco assumido pelo SUS devido às difi-
agravos relacionados à saúde do trabalhador com a rede culdades apontadas ao longo deste ensaio.

11
É importante dizer que, a partir da entrada em vigor da Lei nº 11.430, de 26 de dezembro de 2006, do decreto nº 6.042, de 12 de fevereiro
de 2007, o INSS passou a reconhecer doenças relacionadas ao trabalho mediante o estabelecimento de “nexo técnico epidemiológico” rela-
cionado à atividade profissional exercida. Assim, “quando um trabalhador for afastado do trabalho por uma determinada doença que tenha
significância estatística no ramo econômico a que pertence seu empregador, seu benefício será definido automaticamente pelo INSS como
acidente de trabalho” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2008b). Com isso, o número de registros de doenças mentais relacionadas ao
trabalho no INSS aumentou mais de 1000% de 2006 para 2007.

114 Rev. bras. Saúde ocup., São Paulo, 36 (123): 103-117, 2011
Assim, entendemos que a integração entre os “olha- senvolvimento de ações sobre problemas de saúde
res, saberes e experiências” das áreas de Saúde Mental mental relacionados ao trabalho é enorme. Para que
e de Saúde do Trabalhador no SUS é urgente e funda- isso ocorra, no entanto, ainda é necessário que essa
mental para a superação da leitura individualizante e questão seja, de fato, vista pelos gestores e profissio-
culpabilizante sobre o sofrimento mental relacionado nais do SUS em toda a sua dimensão e complexida-
ao trabalho que ainda predomina na sociedade e nos de, envolvendo a militância dos profissionais e do
próprios serviços de saúde pública.
movimento social que, historicamente, defenderam a
Buscamos também demonstrar que o potencial proteção e o cuidado na área da saúde mental e da
dos diversos níveis de atenção do SUS para o de- saúde do trabalhador.

Contribuições de autoria

Bernardo, M. H. e Garbin, A. de C. participaram igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo.

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