Os Limites Éticos Do Uso de Animais em Performances Na Arte Contemporânea

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 13

OS LIMITES ÉTICOS DO USO DE ANIMAIS EM PERFORMANCES

NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Isis Tinoco
Jean Carlos Barbosa de Sousa

Resumo: A importância do estudo da temática proposta neste trabalho reside na necessidade


de questionamento acerca dos limites da arte, especificamente, no que se refere àquelas
manifestações as quais fazem uso de animais, limitando-se a pesquisa, porém, a abordar a
performance dentro do contexto histórico contemporâneo, tratando-se portanto, de uma
temática ainda pouco explorada, no entanto, premente. Há aqueles que defendem
ferrenhamente a autonomia da Arte, afirmando ser possível excluir a avaliação moral dos
aspectos criativos, contudo, desta forma corremos o risco de cairmos num relativismo estético
e ético, onde tudo passa a ser válido em nome dessa autointitulada Arte Contemporânea. Não
se pode ficar alheio ao fato de que a experiência artística, enquanto experiência estética pode
oferecer representações de ideias morais, assim sendo, seria ético fazer uso de animais em
performances artísticas? Sendo ético ou não, quais as implicações filosóficas no uso de
animais dentro do contexto artístico? Haveria um padrão de conduta que os artistas poderiam
adotar em suas práticas artísticas, as quais sejam compatíveis com os direitos dos animais?
Em sentido amplo, portanto, a presente pesquisa tem por objetivo analisar os limites éticos do
uso de animais em performances na arte contemporânea. Neste trabalho serão pesquisados os
diversos conceitos da arte performática e a inserção do uso de animais nesta modalidade
artística, trazendo à tona a dificuldade de delimitação de uma definição do que vem a ser a
performance e exemplos deste tipo de manifestação que fizeram uso de animais ao longo da
história da arte contemporânea. Sob a ótica jurídica se verificará a legalidade no uso de
animais em tais manifestações artísticas a luz da legislação pátria; trazendo a tona o conflito
entre a liberdade do artista em expressar sua arte, a manutenção da cultura e a vedação de
práticas as quais submetam animais à crueldade. Por fim, serão discutidos os valores éticos
nas escolhas estéticas destas performances.
Palavras-chave: Ética. Animais. Performance.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem por objetivo geral analisar os limites éticos do uso de animais
em performances na arte contemporânea. Como objetivos específicos pretende-se pesquisar os
diversos conceitos da arte performática e a inserção do uso de animais nesta modalidade
artística; investigar a legalidade no uso de animais em manifestações artísticas a luz da
legislação pátria e discutir os valores éticos nas escolhas estéticas das performances que
utilizam-se de animais.

Quanto aos aspectos metodológicos, as hipóteses do trabalho foram investigadas por


intermédio de pesquisa bibliográfica através de livros, revistas, artigos e internet.
No primeiro capítulo serão pesquisados os diversos conceitos da arte performática e a
inserção do uso de animais nesta modalidade artística, trazendo à tona a dificuldade de
delimitação de uma definição do que vem a ser a performance e exemplos deste tipo de
manifestação que fizeram uso de animais ao longo da história da arte contemporânea. No
segundo capítulo se verificará a legalidade no uso de animais em tais manifestações artísticas
a luz da legislação pátria, trazendo dispositivos que versam sobre a proteção das
manifestações culturais em oposição àqueles que protegem o meio ambiente proibindo
quaisquer práticas que submetam os animais à crueldade. No último capítulo, por fim, serão
discutidos os valores éticos nas escolhas estéticas destas performances as quais fazem uso de
animais.

1 A PERFORMANCE E O USO DE ANIMAIS

Quando se estuda a performance na Arte Contemporânea, é possível perceber que ela


tem sido usada como uma forma de dirigir-se diretamente a um grande público, da mesma
forma como de chocar as plateias, conduzindo-as a uma reavaliação profunda de suas
concepções de arte e sua relação com a cultura. Podendo assumir a forma de espetáculo solo
ou em grupo, com iluminação, música ou elementos visuais criados pelo próprio artista
performer ou em cooperação com outros artistas, a performance é apresentada em lugares
como uma galeria de arte, um museu, um espaço alternativo, um teatro, um bar, um café ou
uma esquina.

Por ser considerada um meio de expressão maleável e indeterminado, com infinitas


variáveis, a performance é praticada por artistas incomodados com as restrições das formas de
arte mais estabelecidas e determinados a pôr sua obra de arte em contato direto com o público.
Justamente em razão disso, sua base tem sido sempre anárquica.

Qualquer tentativa de uma definição fácil ou precisa para a experiência artística


conhecida como performance é combatida pelos artistas que a praticam, tendo em vista que,
por sua própria natureza, qualquer definição mais exata contestaria no mesmo instante a
própria possibilidade da performance, pois seus adeptos utilizam de forma livre quaisquer
disciplinas e quaisquer meios como material - literatura, poesia, teatro, música, dança,
arquitetura e pintura, assim como vídeo, cinema, slides e narrações, empregando-os nos mais
diversos arranjos. Não há, de fato, uma forma de expressão artística que possua um programa
tão ilimitado, uma vez que a própria definição de performance é criada por cada performer no
decorrer de seu processo e modo de execução.

Todavia, a partir da segunda metade do Século XX, tornou-se cada vez mais comum a
prática de perturbação e de libertação através do uso do obsceno, da nudez, do sangue, de
excrementos, de mutilações, da dor, do perigo e da possibilidade iminente da morte
envolvendo tanto humanos como não-humanos. Diante dessas questionáveis manifestações
artísticas, passou-se a rotular de performance ou mesmo de Arte Contemporânea várias
práticas que fazem uso extremo do corpo através do uso do grotesco, da obscenidade e da
auto-flagelação, que usam animais de várias espécies e de forma indiscriminada, maltratando-
os, violentando-os e até alterando-os geneticamente, assim como também o uso de tecnologia
protética e cirúrgica, ou o uso de máquinas criativas, entre muitos outros exemplos.

1.1 Exemplos do uso de animais em performances

Um exemplo muito conhecido e comentado de uso de animais em performance


artística contemporânea é o caso da polêmica associada ao artista costa-riquenho Guillermo
Vargas “Habacuc”, que montou a instalação Exposición nº 1 numa galeria da Nicarágua, em
2007. Em sua instalação, ele usou cinco elementos que remetiam à morte de um imigrante
nicaraguense: a gravação do hino sandinista (movimento político nicaraguense) tocado ao
contrário, um "incensário" onde se queimaram pedras de crack e alguns gramas de maconha,
um cachorro que ganhou o nome de Natividad na obra, comida para cachorro (com biscoitos
que formavam a frase "Você é o que você lê") e a representação dos vários tipos de mídia. A
polêmica em torno da instalação artística de Habacuc foi criada em razão dele supostamente
deixar um cão de rua morrer de fome, amarrado dentro da galeria à vista do público, o que
causou revolta e protestos entre ativistas da causa animal.

A jornalista Rosa Montero escreveu um artigo no prestigiado jornal espanhol "El


Pais" em que condenava o projeto do artista costa-riquenho, dizendo: "A repugnante
montagem de Habacuc reabre as questões dos limites da arte, ou, como sob a desculpa do
feito artístico, se podem cometer todo tipo de abuso que em realidade somente busca chamar
atenção (...)”1. Ana Mae Barbosa, professora aposentada da USP e uma das mais respeitadas
arte-educadoras do país, considera que "Exposición nº 1":

"(...) extrapola os limites da ética no sentido de que mantém um ser vivo


propositadamente preso, à beira da inanição. O objetivo é extremamente político.

1
MONTERO, R.. Respet. In: Jornal El Pais. Madri: 16 out. 2007.
Não tenho nada contra a relação da arte com a política nem contra usar a arte para
protestar politicamente, mas, na minha opinião, o artista incorreu em um erro" 2.

Diana Domingues, artista, pesquisadora e professora da Universidade de Caxias do Sul


(RS), especializada em arte contemporânea, concorda com Ana Mae Barbosa afirmando que:
"Em qualquer campo da atividade humana deve haver respeito à ética. A própria arte cobra
esse respeito"3

Durante a 29ª Bienal de São Paulo, ocorrida em 2010, a polêmica sobre o uso de
animais vivos em obras de arte foi muito explorada na imprensa em decorrência da instalação
intitulada “Bandeira Branca”, do artista plástico Nuno Ramos, que utilizou três urubus vivos,
presos numa espécie de gaiola que é demarcada por uma tela de proteção preta e
quadriculada, que contorna a sinuosidade dos recortes nos pisos desde o térreo ao terceiro
andar do prédio da Bienal, dentro da qual convivem esses urubus com três esculturas de taipa
de pilão em areia-preta e caixa de vidro sonoras que tocam fragmentos das canções Carcará,
Bandeira Branca e Acalanto.

Ao ser entrevistada dentro da própria Bienal sobre essa questão, a advogada Vânia
Rall disse que apesar dos urubus estarem sendo alimentados, estão confinados, sem opção de
escolha, tampouco, de expressão: “(...) encontra-se numa situação visível de estresse - devido
aos ruídos, às pessoas circulando e fotografando o tempo todo - e não podemos esquecer que
a Bienal dura 3 meses!”4. E ainda prosseguiu, citando Artur Matuk, professor de Arte na
USP, quando ela expôs também que:

“a arte está ficando muito a serviço da ciência mais do que da própria arte, de que
hoje se dá mais valor à técnica que à arte. O uso de animais é apoiado pelo
especismo, pois no fundo nos sentimos superiores aos animais. A arte deve ser ética,
o discurso da arte não pode legitimar qualquer coisa. A arte para atingir seus
objetivos não tem que provocar dor ou sofrimento, especialmente quem não se pode
defender!”5

Cildo Meireles, também artista plástico, em 1967, na sua instalação denominada “Desvio para
o Vermelho”, colocou um canarinho-belga dentro de uma gaiola. Essa mesma obra foi montada no
Instituto Inhotim, em Minas Gerais, no ano de 2010, mas em vez de um só canarinho, quatro aves que
se revezam entre si. Quando não estão em cena, elas são colocadas em um viveiro e alimentadas com

2
SUZUKI, S., O. Artista não revela se deixou cão morrer de fome em instalação. In: G1, [S.l.]: 23 mar. 2008.
Disponível em: <.http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL421044-7084,00-
ARTISTA+NAO+REVELA+SE+DEIXOU+CAO+MORRER+DE+FOME+EM+INSTALACAO.html>. Acesso
em: 05 ago. 2012.
3
Ibidem
4
MOLINARI, F. 29ª BSP – O uso de animais vivos em exposições por Vânia Rall. [S.l.]: 21 out., 2012.
Disponível em: <http://www.rodadamoda.com/post.php?id_post=388>. Acesso em: 31 jun. 2012
5
Ibidem
ração natural à base de betacaroteno para manterem a penugem na cor vermelha. Mas o nome de Cildo
Meireles é lembrado menos pelos canários que pela sua performance chamada “Tiradentes: Totem-
Monumento ao Preso Político”, de 1970, em que ele, em protesto contra a ditadura, realizou um ritual
de queima de dez galinhas vivas durante um evento de arte em Belo Horizonte.

Em novembro de 2008, o Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar (MAC)


viu-se envolvido com a polêmica sobre o direito dos animais e o uso destes em exposições
devido à obra “Galinhas de Gala e Galinheiro de Gala”, de Laura Lima. A mostra é composta
de galinhas vivas, enfeitadas com penas e plumas de carnaval aplicadas na extremidade das
penas naturais, num trabalho que exige a técnica megahair, a mesma usada no alongamento
de cabelos. “Minhas obras, no geral, têm como ‘material’ o ser vivo. ‘A coisa viva’
possibilita o inesperado, a ausência de controle, e isso é muito fascinante”6, avalia a artista,
que já realizou outras cinco exposições semelhantes.

2 LIBERDADE ARTÍSTICA X CRUELDADE CONTRA ANIMAIS

A partir da leitura do capítulo anterior, foi possível verificar que os animais continuam
sendo utilizados em manifestações artísticas. Certamente quanto aos espetáculos circenses, já
se percebe uma tendência no Brasil no sentido de diminuir o número de circos que fazem uso
de animais, quer seja por uma mudança na mentalidade do público, quer seja pela ação das
associações e do ministério público em processos judiciais. Neste trabalho, porém, não nos
propomos a tratar do uso de animais em espetáculos circenses, tendo em vista já haver um
considerável número de artigos que tratam a respeito da temática, contudo, é importante
citarmos este tipo de manifestação artística, pois o fundamento jurídico levantado para
considerar legal ou ilegal o uso de animais em circos é idêntico às demais manifestações
artísticas. Assim sendo, ações judiciais cujas decisões proíbam o uso de animais em circos,
bem como iniciativas de projetos de lei com esta mesma finalidade, tornam-se importantes
precedentes para que o mesmo seja entendido às demais manifestações artísticas as quais se
utilizam de animais.

No tocante a legislação, no caso do uso de animais em performances temos um


conflito entre o art. 215 e o art. 225, § 1, VII, ambos da Constituição Federal. No que se refere
à manifestação cultural, o art. 215 possui a seguinte redação: “Art. 215. O Estado garantirá a

6
PIMENTEL, A. Galinhas da discórdia. In: Diário do Nordeste. Fortaleza: 08 mar.2008. Disponível em:
<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=595041>. Acesso em 05 ago.2012.
todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

Por outro lado, este mesmo diploma legal, no capítulo reservado ao Meio Ambiente, em seu
art. 225, § 1, VII, assim dispõe:

“Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1° – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
animais à crueldade.”

Dez anos após a Constituição Federal, temos a Lei de Crimes Ambientais (Lei federal
n° 9.605/1998), a qual tipifica como crime: “Art. 32 – Praticar ato de abuso, maus-tratos,
ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.”

Pode-se compreender, portanto, que a proteção de todos os animais está albergada na


legislação brasileira, constituindo-se como crime qualquer ato que prejudique o animal.
Porém, pode-se ainda levantar o argumento que os animais utilizados em apresentações
artísticas não são maltratados, especialmente por não haver qualquer tipo de prática que gere
dor ou sofrimento físico a estes animais. No entanto, conforme HALFUN e OLIVEIRA7
diversas experiências sobre comportamento animal“[...] demonstraram à exaustão,
cabalmente, a capacidade não apenas de sofrer dor física, mas de sentir sofrimento
psicológico, mental, com traumas e sequelas desta ordem.” (grifo nosso). Isto porque o bem
estar não se relaciona apenas ao bem estar físico, mas também ao bem estar mental, o qual é
comum a animais humanos e não humanos. Conforme HURNIK (2000) 8:

Conforto mental: é um estado, que sem dúvida está relacionado com a condição
física do animal, mas não apenas. É difícil saber o grau de satisfação do animal
(contentamento) com seu ambiente.Entretanto, a manifestação de certos
comportamentos se constitui em evidência do desconforto, inclusive mental.
Privação de estímulos ambientais (ambiente monótono, falta de substratos palha,
ramos, terra) leva à frustração que pode se refletir em comportamentos anômalos ou
estereótipos. Conforto físico implica o animal saudável e bom estado corporal.
Entretanto, os animais são "entidades" psicológicas. (Hurnik, 2000). O animal pode
estar em ótimas condições físicas e estar saudável e bem nutrido, mas sofrendo
mentalmente. (grifo nosso)

7
HALFUN, Mary; OLIVEIRA, Fabio Corrêa Souza de. Experimentação Animal: Por um tratamento Ético e
pelo Biodireito. In: Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Maringá: jul., 2009, p. 1240. Disponível
em: <http://www.conpedi.org.br/anais/36/12_1350.pdf >. Acesso em: 05 ago. 2012.
8
apud MACHADO FILHO, Luiz Carlos Pinheiro; HÖTZEL, Maria José. Bem estar dos suínos. In: 5ºSeminário
Internacional de Suinocultura. São Paulo: set. 2000, p. 72. Disponível em:
<http://docsagencia.cnptia.embrapa.br/suino/anais/anais0009_machado.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2012.
Talvez a dificuldade em se comprovar o sofrimento de ordem psicológica nos animais
configure-se como um dos grandes entraves para a tipificação do crime de maus-tratos, aliado
ao antropocentrismo arraigado nos operadores do Direito e demais autoridades representantes
do poder público, tornando letra morta a legislação pátria, contribuindo assim, para a
perpetuação dos crimes contra animais.

Outro importante ponto que deve ser levantado na questão do uso de animais em
manifestações artísticas é: qual está sendo o papel da arte? Que tipo de mensagem está sendo
transmitida ao se utilizar animais em apresentações artísticas? Para o poeta britânico e crítico
literário Herbert Read9, a arte deveria ser a base de toda educação, pois está profundamente
envolvida no processo real de percepção, pensamento e ação corporal. Segundo ele, sem este
mecanismo, a civilização perde o seu equilíbrio e cai no caos espiritual e social. Segundo
GOLDBERG10 a arte e as humanidades como a sociologia, a filosofia e a história são
instâncias do conhecimento essenciais ao desenvolvimento de seres sensíveis, críticos,
questionadores e revolucionários. FRITJOF CAPRA também salienta a importância das artes para
a educação e compreensão diferenciada da realidade.

Não há praticamente nada mais eficaz que as artes (as artes visuais, a música, as
artes cênicas) para desenvolver e refinar a capacidade natural de uma criança de
reconhecer e expressar padrões. Assim, as artes podem ser um instrumento poderoso
para ensinar o pensamento sistêmico, além de reforçarem a dimensão emocional que
tem sido cada vez mais reconhecida como um componente essencial do processo de
aprendizagem.11

Desta forma, uma arte que “coisifique” a vida de um ser sensível, que lhe inflija
sofrimento, seja ele físico ou mental, certamente não estará colaborando em nada para a
evolução moral da sociedade humana. Felizmente, conforme MARTINS, aos poucos se
percebe uma mudança neste paradigma, pois a “[...] sociedade moderna há tempos vem
evoluindo, de modo que não mais aceitam o tratamento de animais não-humanos como se
meros objetos fossem.”12

9
READ, Herbert. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 1958.
10
GOLBERG, Luciane Germano. Arte-Educação-Ambiental: o despertar da consciência estética e a formação
de um imaginário ambiental na perspectiva de uma ONG. 2004. 185 f. Tese (Mestrado em Educação
Ambiental) - Fundação Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2004. Disponível em:
<http://www.nema-rs.org.br/teses/arte_educacao.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2012.
11
CAPRA, Fritjof. Alfabetização Ecológica: O Desafio para a Educação do Século 21. TRIGUEIRO, André
(Coord.). In: Meio Ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de
conhecimento. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. p. 19-33.
12
MARTINS, Renata de Freitas. O respeitável público não quer mais animais em circos! In: Revista Brasileira
de Direito Dos Animais, Salvador: Instituto de Abolicionismo Animal,v.3, n.4, jan.;dez. 2008, p. 132.
Portanto, utilização de animais em espetáculos artísticos pode ser entendida como uma
prática ilegal além de antipedagógica, realizada sob o falso véu de manifestações artístico
culturais, devendo ser coibida com rigor pelo Poder Público e pela coletividade.

3 UMA ESCOLHA ÉTICA PRESSUPÕE UMA ESCOLHA ESTÉTICA

Percebe-se que na chamada Arte Contemporânea tornou-se cada vez mais comum a
prática de perturbação e de libertação através do uso do obsceno, da nudez, de excrementos,
de mutilações, da dor, do perigo e da possibilidade iminente da morte em experimentações
artísticas que envolvem tanto humanos como não-humanos, e desafiam os limites morais e
éticos.

Nota-se que, enquanto alguns artistas assumem que o seu discurso artístico objetiva
instituir uma nova crise na produção contemporânea e nos seus mercados, de forma a resgatar
o projeto estético na sua totalidade, outros aproveitam este mediatismo de choque tão somente
para serem reconhecidos no meio artístico. Assim sendo, somos colocados ao cuidado de uma
tênue ética dos artistas que resiste em não surgir, talvez em decorrência de considerarem que a
ética resulta normalmente numa proibição. Mas Carlos Vidal13 declara que a arte é política e
até pode ter limites, mas esses limites “morais” ou éticos, ou responsáveis devem ser
decididos a um nível individual e não num nível de aplicação universal porque resultaria na
castração do ato criativo e colocaria regras demasiadamente restritivas à produção artística

Diante dos argumentos que defendem veementemente a autonomia da Arte, ao ponto


de afirmarem como possível excluir a avaliação moral dos aspectos criativos, corremos o
risco de cairmos num relativismo estético e ético, onde tudo passa a ser válido em nome dessa
autointitulada Arte Contemporânea. Todavia, não se pode ficar alheio ao fato de que a
experiência artística, enquanto experiência estética, pode oferecer representações de ideias
morais, pois, nas palavras do filósofo Kant, “a beleza é símbolo da boa moralidade”14 Já o
filósofo Habermas afirma que:

A experiência estética não renova apenas as interpretações das necessidades, à luz


das quais percebemos o mundo; interfere, ao mesmo tempo, também nas explicações
cognitivas e expectativas normativas, modificando a maneira como todos esses
15
momentos remetem uns aos outros

13
VIDAL, Carlos, Definição da Arte Política. Lisboa: Fenda, 1997.
14
KANT, I. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt: Suhrkamp, 1995, p. 297.
15
HABERMAS, J. Modernidade – um projeto inacabado.São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 119.
Dessa forma, encontra-se em Habermas a sustentação da ideia de que a experiência
estética (arte) não está dissociada das expectativas normativas (ética) e das interpretações
cognitivas (ciência), que tais campos se interpenetram e têm pretensões de validade próprias.

Neste início do séc. XXI, os valores que repousavam no senso comum e na estética
estão especialmente subvertidos, de forma que nos encontramos perante uma crise da
civilização humana – a crise da cultura onde “o ‘efeito de choque’ ganha sempre sobre as
considerações do conteúdo informacional.”16

A evolução da sociedade criou em diversas práticas, inclusive entre as quais a


produção artística, a necessidade de adquirir autonomia em seus procedimentos,
independentes de outros campos. Logo, o juízo ético foi constituído como um dos excluídos
deste campo. Desse momento em diante, a prática artística passa a possuir um campo
exclusivo de saber, um método próprio, uma certa abstração do real e o poder de legitimar os
seus próprios saberes. Com isso, a ideia de uma responsabilidade ética implícita às práticas
artísticas supõe um ultraje, uma intrusão externa, pois os pressupostos artísticos subentendem
que é impossível uma evolução criativa sem a respectiva liberdade de ação e de expressão.
Quando a arte atua hermeticamente na sua própria esfera torna-se surda a qualquer instância
de verdade, ou responsabilidade política, social e cultural.

Um experimento artístico tem a força e a energia vital para afetar não apenas o âmbito
estético, determinado e restringido pela existência humana, mas a totalidade do mundo
humano; de forma que quando se fala da esfera da arte, não se deve defini-la apenas como um
ponto de vista, uma abstração, ou uma formalidade parcial. Idealizar ou criar uma forma de
expressão artística significa provar as suas potencialidades de compreensão e de conduta, que
são também, a substância vital do lado ético. Quando se envia uma mensagem,

“uma mensagem portadora de um intento. O estilo e as figurações explícitas da


mensagem podem ser perversos, podem visar subjugar ou arruinar o receptor.
Podem proclamar diretamente, como acontece em Sade, na pintura negra de Goya,
na dança mortal de Artaud, a licença sombria do suicídio. Mas a sua pertinência para
as questões e conseqüências de ordem ética só se torna com isso mais sensível. Só o
lixo, o kitsch e os artefatos, os textos e a música produzidos exclusivamente com
fins monetários ou de propaganda transcendem (transgridem) de fato a esfera da
17
moral. São a pornografia da insignificância”

Seja de forma intencional ou não, todo ato artístico está condenado a possuir uma
finalidade e um propósito conceitual. Verifica-se que, após a superação da era das

16
VIRILO, P., The Information Bomb (Trad. Chris Turner). London: Verso, 2000, p. 143.
17
STEINER, G.. Presenças Reais (Trad. Miguel Serres Pereira). Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 134.
vanguardas, onde o collage ou o Ready-made foram dois dos mais importantes e controversos
procedimentos, vive-se num tempo de novas representações onde se oferecem fragmentos da
realidade diária, atos comuns ou privados, desejos e receios no espaço cabido à arte. Com
isso, a atenção dos artistas é colocada em terrenos desconhecidos até então: desde os campos
dos saberes filosóficos, onde se indaga a própria condição do conceito de arte (a sua
definição, a sua autonomia, etc.), até a procura de novos formatos técnicos de produção (a
instalação, a performance e a vídeo-arte, entre outros) ou, até mesmo, a indagação da
finalidade da arte, a condição humana, o pós-humano, a sociedade de informação, etc.

Tem-se, então, que o artista, ao defender o exercício da liberdade de expressão, deve


estar ciente que tal ação supõe respeito pelo sujeito, pela sua dignidade, o que corresponde a
dizer que uma intencionalidade ética sempre fará parte na raiz do desígnio dos agentes
artísticos.

Aquilo que costumeiramente é denominado como uma hipotética superação de tabus,


uma fuga ao tédio, uma busca pela inovação e, mormente, uma tentativa de extinguir qualquer
entrave nos agentes criativos, aparenta estar empurrando parte da produção artística
contemporânea para um despenhadeiro monótono e indescritível de estímulos mecânicos e de
contorções fantasiosas unilaterais. Espera-se que a linguagem permaneça como o recipiente e
o veículo da dignidade e da capacidade de criação humana, mensageiro da inteligibilidade e
da cultura. De fato, a arte pode simbolizar um diálogo vivo entre autor e o espectador, mas
apenas se o artista exibir o devido respeito e senso comum que Steiner explica com a
afirmação de que “uma análise de enunciação e de significação – o sinal endereçado ao outro
– implica uma ética”18

CONCLUSÕES

Não se pode definir precisamente o conceito de performance, pois este é reinventado a


todo instante, tendo em vista que os artistas que a praticam utilizam de forma livre quaisquer
disciplinas e assim como quaisquer meios como material - literatura, poesia, teatro, música,
dança, arquitetura e pintura, e ainda vídeo, cinema, slides e narrações, empregando-os nos
mais diversos arranjos. No entanto, o uso de animais em performances artísticas, diferente do
que tem ocorrido com os espetáculos circenses, tem aumentado significativamente, gerando
questionamentos acerca dos limites deste uso e até mesmo a legitimidade deste. Muitos

18
STEINER, G.. Presenças Reais (Trad. Miguel Serres Pereira). Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 131.
artistas entendem que questionamentos de ordem ética funcionariam como limitadores à sua
liberdade de expressão/criação, contudo, esta liberdade de expressão implica em respeito pelo
sujeito, seja ele um animal humano ou não-humano, pela sua dignidade, o que implica,
portanto, que uma intenção ética sempre estará presente no cerne da criação e expressão
artística. A apreensão da relação entre estética (arte) e ética (moral) abre espaço para o
reconhecimento de que a natureza humana é muito mais complexa do que se supunha
idealizadores das teorias estéticas e éticas. Dessa forma, o sujeito ético, ambição do projeto
filósófico moderno, se estabelece numa multiplicidade de experiências e numa receptividade
ao mundo e a todos os seres que nele habitam.

No âmbito da discussão jurídica acerca da legalidade no uso de animais em


manifestações artísticas, na legislação pátria, os animais são protegidos constitucionalmente,
sendo vedada quaisquer práticas que os submetam à crueldade, havendo ainda diversas leis
infraconstitucionais que versam acerca da tutela jurídica destes. É certo que a liberdade de
expressão e as manifestações artísticas devem ser asseguradas, preservadas e incentivadas,
porém, em nome desta cultura, não se pode permitir o sofrimento de animais. Deve-se ainda
salientar que, embora de difícil mensuração (bem como comprovação para fins de processos
judiciais), é certo que os animais além de sofrimento físico, padecem também de sofrimento
mental, e expô-los a condições que lhe causem mal-estar em exibições artísticas, pode ser
configurado maus-tratos ainda que não haja danos físicos ao animal. Aos poucos se percebe
uma mudança na mentalidade da sociedade, que cada dia mais repudia práticas abusivas
contra animais, contudo, sabe-se que na prática, os animais continuam sendo vítimas dos
abusos e ambições humanas, inclusive em manifestações artísticas.

Outro ponto a ser observado é que a arte é um poderoso instrumento educativo, capaz de
transmitir o pensamento sistêmico e reforçar a dimensão emocional, por ser um importante
veículo sensibilizador. Assim sendo, utilizar animais em manifestações artísticas torna-se
antipedagógico, podendo colaborar com a ideia de “coisificação” da vida, com a
insensibilidade perante o sofrimento do outro, perpetuando, portanto, o paradigma
antropocêntrico.

Na filosofia restam os argumentos que legitimam os animais como seres dignos de


consideração moral. Cabe ao Direito, cuja finalidade deve ser sempre buscar a Justiça,
orientar a conduta do homem para com os demais seres vivos, em conformidade com a ética e
com o valor inerente a cada ser. Pode o artista expressar livremente sua arte, direito o qual
deve ser garantido pelo Estado, havendo, porém, limites legais e ainda, limites éticos, os quais
devem ser observados, não devendo estar, portanto, a arte acima da ética, mas sim em
conformidade com esta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado, 1988.

___________. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e


administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências.

CAPRA, Fritjof. Alfabetização Ecológica: O Desafio para a Educação do Século 21.


TRIGUEIRO, André (Coord.). In: Meio Ambiente no século 21: 21 especialistas falam da
questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

GOLBERG, Luciane Germano. Arte-Educação-Ambiental: o despertar da consciência


estética e a formação de um imaginário ambiental na perspectiva de uma ONG. 2004. 185 f.
Tese (Mestrado em Educação Ambiental) - Fundação Universidade Federal do Rio Grande,
Rio Grande, 2004. Disponível em: <http://www.nema-rs.org.br/teses/arte_educacao.pdf>.
Acesso em: 05 ago. 2012.

HABERMAS, J. Modernidade – um projeto inacabado.São Paulo: Brasiliense, 1992.

HALFUN, Mary; OLIVEIRA, Fabio Corrêa Souza de. Experimentação Animal: Por um
tratamento Ético e pelo Biodireito. In: Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI.
Maringá: jul., 2009. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/anais/36/12_1350.pdf >.
Acesso em: 05 ago. 2012.

KANT, I. Kritik der Urteilskraft. Frankfurt: Suhrkamp, 1995.

MACHADO FILHO, Luiz Carlos Pinheiro; HÖTZEL, Maria José. Bem estar dos suínos. In:
5º Seminário Internacional de Suinocultura. São Paulo: set. 2000. Disponível em:
<http://docsagencia.cnptia.embrapa.br/suino/anais/anais0009_machado.pdf>. Acesso em: 05
ago. 2012.

MARTINS, Renata de Freitas. O respeitável público não quer mais animais em circos! In:
Revista Brasileira de Direito Dos Animais, Salvador: Instituto de Abolicionismo Animal, v.3,
n.4, jan./dez. 2008.

MOLINARI, F. 29ª BSP – O uso de animais vivos em exposições por Vânia Rall. [S.l.]: 21
out., 2012. Disponível em: <http://www.rodadamoda.com/post.php?id_post=388>. Acesso
em: 31 jun. 2012

MONTERO, R.. Respet. In: Jornal El Pais. Madri: 16 out. 2007.


PIMENTEL, A. Galinhas da discórdia. In: Diário do Nordeste. Fortaleza: 08.mar.2008.
Disponível em: < http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=595041>. Acesso
em 05 ago.2012.

READ, Herbert. A educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 1958.

STEINER, G.. Presenças Reais (Trad. Miguel Serres Pereira). Lisboa: Editorial Presença,
1993.

SUZUKI, S., O. Artista não revela se deixou cão morrer de fome em instalação. In: G1, [S.l.]:
23 mar. 2008. Disponível em: <.http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL421044-
7084,00-
ARTISTA+NAO+REVELA+SE+DEIXOU+CAO+MORRER+DE+FOME+EM+INSTALA
CAO.html>. Acesso em: 05 ago. 2012.

VIDAL, Carlos, Definição da Arte Política. Lisboa: Fenda, 1997.

VIRILO, P., The Information Bomb (Trad. Chris Turner). London: Verso, 2000.

Você também pode gostar