Jinarajadasa - A Nova Humanidade Da Intuição

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C. JINARAJADASA
«Magister in Artibus» pela Universidade de Cambridge
Foi Presidente da Sociedade Teosófica

A Nova Humanidade da
Intuição

LISBOA-1938

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OBRAS DO MESMO AUTOR

A evolução oculta da humanidade


Os primeiros ensinamentos dos Mestres
Carta dos Mestres da Sabedoria
A reunião do Oriente com o Ocidente Cristo e Buda
O fator espiritual na vida das nações
Em seu nome
A arte como vontade e ideia
A arte e as emoções
A divina visão
Flores e jardins
A chama da mocidade
A mensagem do futuro
Deuses encadeados
O idealismo da teosofia
Teosofia e educação
Algumas crianças famosas da Índia
A cidade perfeita de Deus e do Homem
O reino da lei
A natureza do misticismo
A teosofia e o pensamento moderno
O Fausto de Goethe
Vida ! mais Vida !
Teosofia prática
A lei de Cristo
Etc.

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Notícia biográfica

As conferências editadas neste livro foram pronunciadas pelo Dr. C. Jinarajadasa, durante a
sua recente passagem por Portugal, em Fevereiro do ano de 1938. Julgam os editores que alguns
dados biográficos sobre a personalidade do eminente filósofo aumentarão, no leitor que o não
conheça, o interesse pelos assuntos versados e a confiança na autoridade do conferente. É esta a
única razão por que nos permitimos preceder d’algumas palavras nossas os ensinamentos
ministrados pelo Mestre insigne.
O Dr. Jinarajadasa, cujo nome significa «Servo do Rei Vitorioso», nasceu em Colombo, na ilha
de Ceilão, em I875. Seus pais, de religião budista, educaram-no em conformidade com os princípios
que professavam, até que aos l3 anos o enviaram para Inglaterra, onde tomou contato com a
educação ocidental. Obtido o acesso à Universidade de Cambridge, aí alcançou o título de
«Magister in Artibus», Tomou grau em Sânscrito e Filosofia, e também estudou Leis.
De regresso a Ceilão, foi nomeado Vice-Presidente do «Ananda College» onde exerceu o
professorado. Voltou à Europa, fixando-se na Itália, para frequentar durante dois anos a
Universidade de Pavia.
A partir de 1904, o Dr. Jinarajadasa consagrou-se exclusivamente ao serviço da
Sociedade Teosófica, organização de Fraternidade Universal, com sede em Adyar na Índia, e
filiação em 49 países. Desde então, animado por um poder de vontade inquebrantável, tem
percorrido o mundo inteiro, numa missão de paz e de altruísmo, de amor pelo próximo e de
incitamento às práticas do Bem, do Bom e do Belo, Constantemente estuda, e cativando os
discípulos pela sua requintada distinção, e a todos ensina o que sabe, na medida do que
possam ou queiram aprender.
Para condignamente exercer esta elevada missão, possui o Dr. Jinarajadasa todas as
faculdades requeridas - inteligência luminosa, profundo saber, preciosas virtudes, fulgurantes
aptidões de escultor da ideia e cinzelador da palavra. A sua prosa, ilustrada de imagens e de
conceitos que cintilam como gemas preciosas, consegue cristalizar em formas lapidares as
mais abstratas concepções do mundo mental.
Acrescentemos ainda que a prodigiosa facilidade com que assimila as línguas
estrangeiras o torta uma espécie de cidadão do Universo, que se encontra sempre em
terreno familiar e se dirige aos seus auditórios no idioma regional. A sua copiosa
preparação filológica permite-lhe apreender o sentido de cada vocábulo pela etimologia,
sendo rara a palavra cujo significado lhe escapa. Só assim se justifica o milagroso caso - de
que somos testemunha direta -- de ter ele aprendido a falar português ao fim de quatro
lições de simples pronúncia da versão das suas obras, E se não conquistou de assalto uma
pronúncia impecável, alcançou pelo menos uma posse tão plena dos elementos da língua,
que pôde, a breve trecho, improvisar em português as preleções que nos fazia.
Realizando, por tantos predicados, o arquétipo do Homem Integral - aquele «homem
perfeito" que atingiu o limite da evolução humana e vai transpondo a fronteira da
Evolução Divina - o Dr. Jinarajadasa reveste na sua personalidade o aspecto trînico do
Artista, do Filósofo e do Santo.
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Como Esteta, todo envolto num deslumbramento de Ideal, vai cantando através do
mundo o seu hino à Beleza ; vai soletrando em cada expressão da forma as estrofes do poema
do Belo: vai revelando, aos que têm ouvidos para ouvir, os acordes harmônicos da sinfonia da
Vida.
Como Sábio, ensina-nos a cosmogonia, a antropogênese, a evolução, a estrutura do
átomo, a física e a química nos seus aspectos ignorados, surpreendidos por clarividência, em
trabalhos de colaboração com Annie Besaut e Leadbeater.
Como Santo, predica-nos a mais alta moral e conduz-nos, pelo seu exemplo, à pratica
de todas as virtudes : a tolerância, a pureza, a fraternidade, a coragem, a compaixão, a
modéstia e finalmente a renúncia. Ensina-nos a discernir entre o ilusório e o Real, entre o
efêmero e o Eterno, Inicia-nos no mistério sagrado de descobrir as mais ínfimas parcelas da
Verdade, disseminadas nas aluviões do «erro», como as pepitas de ouro perdidas entre as
areias das antigas torrentes. Porque a luz da Verdade nem sempre refulge como um farol;
antes vagamente lampeja, afogada na sombra. Mas, ansiosa de liberação, Ela espreita os
momentos em que entre si se debatem os Quadrilheiros da Treva, que a afogam no poço, e
logo se mostra e um instante fulgura, como a faísca que ressalta do choque de duas
pederneiras, pondo no coração da noite uma fugidia palpitação de luz.
Dir-se-ia que o retrato psíquico de Jinarajadasa, o Artista, o Filósofo e o Santo, foi
expressamente traçado no maravilhoso poema IF de Rudyard Kipling; cuja versão livre
pedimos licença para oferecer ao Mestre querido. Ele encarna, numa radiosa e viva
realidade, aquele herói de sonho invocado no poema simbólico:

SE ...

Se podes conservar o teu bom senso e a calma,


Num mundo a delirar, p'ra quem o louco és tu;
Se podes crer em ti, com toda a forca d' alma,
Quando ninguém te crê , se vais, faminto e nu,
Trilhando sem revolta um rumo solitário;
Se a torva intolerância, a negra incompreensão
Tu podes responder, subindo o teu Calvário,
Com lágrimas d'amor e bênçãos de perdão;

Se podes dizer bem de quem te calunia;


Se dás ternura em troca aos que te dão rancor,
Mas sem a afetação dum santo que oficia,
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor;
Se podes esperar sem fatigar a esperança;
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho;
Fazer do Pensamento um Arco da Aliança,
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho;

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Se podes encarar, com indiferença igual,
O Triunfo e a Derrota - eternos impostores;
Se podes ver o Bem oculto em todo o mal
E resignar, sorrindo, o amor dos teus amores;
Se podes resistir a raiva ou a vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega, eivadas de peçonha,
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste;

Se és homem p'ra arriscar todos os teus haveres


Num lance corajoso, alheio ao resultado
E calando em ti mesmo a mágoa de perderes
Voltas a palmilhar todo o caminho andado;
Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por malsins, desorientando o povo,
E sem dizer palavra e sem um termo agreste
Voltares ao princípio, a construir de novo;

Se podes obrigar o coração e os músculos


A renovar o esforço, ha muito vacilante,
Quando já no teu corpo, afogado em crepúsculos,
Só existe a Vontade a comandar «Avante!»
Se, vivendo entre o povo, és virtuoso e nobre
Ou vivendo entre os reis, conservas a humildade;
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti, à luz da Eternidade,'

Se quem conta contigo encontra mais que a conta,


Se podes empregar os sessenta segundos
Dum minuto que passa, em obra de tal monta
Que o minuto se espraie em séculos fecundos;
Então, ó Ser Sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos e os espaços;
Mas, inda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo um infinito ao rumo dos teus passos,.

Pairando numa esfera acima deste plano,


Sem recear jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um HOMEM.
Félix Bermudes

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ÍNDICE

A Nova Humanidade da Intuição 08


Os Destinos da Humanidade 21
O Princípio da Beleza 31
A Ciência e o Mental Divino 42
As Crianças, Agentes de Deus 55
O Trabalho de Cristo no Mundo de hoje 68
Sociedade Teosófica 79

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A Nova Humanidade da Intuição

Encontramo-nos, atualmente, num mundo saturado de tragédia. Cada nação tem as


suas tragédias nacionais, já quando uma guerra causa a elevação do custo da vida, já
quando um terremoto provoca uma extensa destruição; mas, o que vulgarmente se limita a
um só país é agora a característica do mundo inteiro. Na verdade, quem lê os jornais fica
sabendo alguma coisa desta tragédia de um mundo inteiro em laboração: como se
encontra o desemprego em toda a parte; como a pobreza é um problema sempre presente;
como todas as nações estão perturbadas com a possibilidade da guerra; e especialmente
como todos os homens de Estado estão perplexos, sem atinarem com uma solução. É como
se o mundo tivesse sido abalado por um terremoto e todos estivessem desvairados, sem
saberem o que hão de fazer.
Atualmente esta trágica situação existe, apesar do progresso geral, particularmente no
campo da ciência. Durante as duas últimas décadas, tem havido um rápido e notável
progresso em muitos campos de inventos científicos e suas aplicações. Não sabemos nós
como o mundo tem sido transformado pelo rádio? Podemos agora ouvir todas as principais
estações emissoras do mundo. Viagens em terra e mar, que dantes levavam dias a realizar,
fazem-se agora em aeroplano na quarta parte do tempo. Por meio da ciência o mundo fez-
se «uno».
Devemos também à ciência a invenção de máquinas de tipos variados, que nos dão
comodidades de toda a espécie. Na verdade, há mesmo uma pletora de comodidades; e
tantas elas são, que a dificuldade está em não haver bastante gente com dinheiro, para as
poder pagar.
Acho conveniente fazer notar que esta obra da ciência, de ligar as nações entre si, tem
sido um trabalho de ligação material; a ciência não ligou as nações espiritualmente, num
sentimento de amizade. Bem pelo contrário, a ciência, com os seus inventos, tem criado
uma feroz concorrência. O desenvolvimento da indústria e da agricultura, em diferentes
países, dá-lhes uma produção maior do que a precisa para as suas necessidades internas,
tornando-lhes indispensáveis os mercados doutros países. Como consequência, uma furiosa
rivalidade se iniciou entre as nações Ocidentais, a que se juntou o Japão; cada qual procura
novos mercados. Qual será o resultado inevitável desta selvagem rivalidade na procura
desses mercados? A Guerra. Daqui por diante, todas as guerras serão o resultado do choque
de rivalidades da política comercial.
A Grande Guerra de 1914 teve por base fundamental a rivalidade de certas nações em
dividir e subdividir o mundo, para a exploração das suas indústrias. Hoje em dia, a
concorrência comercial é mais feroz que em 1914; o Japão, com a sua vasta organização
industrial, entrou também em cena. A Guerra, agora, é mais horrorosa do que quando a
Grande Guerra começou, visto que a ciência tem fornecido explosivos mais destruidores,
aeroplanos de bombardeamento mais velozes e gases mais venenosos que matam dum
modo horrível. Por um lado, a ciência, com as suas benéficas invenções, muito tem ajudado
o progresso da humanidade; podemos hoje, por exemplo, conseguir o dobro do trigo que
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dantes obtínhamos nas mesmas condições de terreno; as devastações produzidas por
muitas doenças são evitadas; mas, por outro lado, a ciência pôs em prática novos processos
de matar homens e mulheres indefesos, com novas espécies de tortura.
Eis o que é o mundo atualmente. E neste mundo de desemprego, de pobreza, de
medo da guerra, os homens de Estado estão sem saber o que hão de fazer; experimentam
este ou aquele remédio, mas os nossos sofrimentos não diminuem e todos nós
perguntamos: Qual é o caminho e quem é que nos há de levar à Terra da Promissão? Vou
dar-vos a resposta imediata:
Aqueles que nos levarão à Terra Prometida não são os homens do atual tipo da
humanidade. Deixem-me exemplificar: Um guia para esta prometida Terra, que muito
poderia fazer, era a Liga das Nações. Mas a Liga, tal como é hoje, com o sua atual
mentalidade e os seus atuais delegados, não nos pode dar o que o mundo precisa.
Certamente cada nação tem os seus chefes que apresentam várias soluções; mas estas
soluções são contraditórias. Republicanismo, fascismo, Estado totalitário, comunismo,
monarquia constitucional e vários métodos de fiscalização monetária, tudo isto é oferecido
como remédio. Mas não é o tipo atual de republicanismo ou o atual tipo do fascismo ou o
tipo atual do comunismo, mesmo nos seus aspectos mais ideais, que hão de curar as nossas
doenças e dar-nos aquele mundo de felicidade por que todos suspiramos. Tampouco os
remédios econômicos propostos alcançarão esse resultado. Do que nós precisamos, não é
de novos sistemas, mas de novos homens. Precisamos de homens que abordem os
diferentes problemas por novos caminhos. Esses homens representarão um novo tipo de
humanidade, a humanidade da intuição.
Para podermos conhecer quais as características do novo tipo de humanidade, é
necessário que examinemos quais são os tipos da humanidade hoje existentes. Permitam-
me por consequência, que gaste um pouco de tempo a apontar as características dos atuais
tipos de humanidade, que não é a humanidade da intuição.
Possuímos hoje muito material com que podemos construir a história do passado da
humanidade; quando examinamos esse material, vemos que o primeiro estado da
humanidade é representado pelo indivíduo em quem a paixão é o motivo dominante, na
solução de todos os problemas. No selvagem e nas pessoas que estão ainda neste primitivo
estágio, o critério do julgamento e da ação nas suas reações é sempre o das emoções que
os dominam.
«Eu gosto, eu detesto» são para eles motivos suficientes, como métodos de resolver
todos os seus problemas. O conjunto de indivíduos que se encontram neste primeiro
estágio, constitui a humanidade da paixão.
Ora, uma das mais nobres formas de paixão é o patriotismo. Mas, se um certo
patriotismo é feito só de paixões, rapidamente se transforma em ódio contra aqueles que
não querem aceitar o tipo de patriotismo, que determinado grupo deseja impor a todos os
outros. Neste estágio, os argumentos violentos e a solução de todas as disputas pelo
combate são encarados como o único caminho. Um exame calmo, intelectual e ponderado
da polemica é habitualmente rejeitado, por não oferecer solução alguma. A mentalidade
não é aceita como critério de julgamento.
O escritor inglês Barrie retratou bem este tipo de humanidade, a humanidade da
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paixão, quando descreveu, num dos seus livros, um rapazinho que estava sempre a brigar.
Este rapaz, diz Barrie, tinha bom fundo e servia-se dos seus punhos unicamente porque,
não tendo a mínima imaginação, o esforço de pensar fazia-o suar; e por consequência, o
único meio de resolver o seu caso era dizer: «Vamos jogar à pancada!».
Isto define a atitude dos povos do mundo. Os seus homens de Estado devem ter uma
certa abundância de ideias, mas, para as massas, pensar é um exercício difícil e
desagradável. A sua imaginação está dormente. Assim, quando uma crise aparece,
levantam-se em armas contra a dificuldade e a única solução é gritar, «Vamos jogar à
pancada!».
Neste estágio de paixão que caracteriza a vida da maior parte dos homens, aparecem,
aqui e além, um certo número de pessoas que apresentam uma nova possibilidade, porque
são os precursores da humanidade do espírito. Quando se levanta uma polemica, estes
começam por dizer:
«Espere um momento. Examinemos a questão. Vamos estudar quais são os elementos
do problema». Quando surgem excitações de todos os lados e as decisões são
determinadas pelas paixões, em obediência ao princípio ortodoxo das. simpatias e
antipatias, algumas vozes se erguem a reclamar que os problemas sejam examinados à luz
da razão. Mas bem poucas são essas vozes e tornam-se intensamente desafetas dos outros
concidadãos. São apodadas de «traidoras» por se oporem à decisão das maiorias, guiadas
unicamente pelas suas paixões. Então, o que acontece? Quando um homem deste novo
tipo diz: «Esperem, deixem-nos ver se compreendemos», é logo exaltadamente denunciado
pelos seus ouvintes. Na Índia, seria expulso da sua casta, votado ao desprezo de todos, por
ter abalado os alicerces da Sociedade, como anti-social. Sorte idêntica o esperaria no
Ocidente; poderiam diferir os métodos de ostracismo, mas a humanidade passional é por
toda a parte expedita em considerar como anti-social toda a ideia que se oponha aos
sentimentos da maioria e não se escravize a uma forma convencional de patriotismo.
Se é certo que a maioria do gênero humano toma as suas decisões sob o império da
paixão, já o mesmo não acontece aos verdadeiros guias da humanidade, porque estes já
ingressaram no estágio seguinte, o domínio da mente. Há já um número apreciável de
pessoas, espalhadas no mundo de hoje, que pertencem à humanidade do mental. São elas
que têm criado as nossas ciências e filosofias.
É pelos processos mentais que se tem conquistado o domínio sobre as energias da
natureza, o que nem sempre tem sido um caso para abençoar. Esse domínio veio criar um
sistema industrial cujo resultado foi concentrar nas mãos de alguns o poder de produção,
que até ali estivera distribuído por muitos produtores individuais. O sistema fabril, que
ampliou largamente o conforto, criou ao mesmo tempo novas necessidades; na produção
mecânica, milhões de operários caíram numa espécie de escravidão que, sob certos
aspectos, não difere muito da escravatura entre os selvagens. O espírito de feroz
concorrência apareceu no alvor das ciências, com as suas descobertas. O desenvolvimento
do mental acarretou-nos ao mesmo tempo o bem e o mal, predominando, no momento
presente, a parte pior.
Notemos que a característica da intelectualidade é dividir. O que se chama criticismo
consiste, para a maior parte das pessoas, em atentar primeiramente em tudo o que têm a
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objetar, reservando para o fim o que lhes merece aprovação.
Tanto os nossos homens de estado, como outros dos chamados chefes políticos, se
socorrem hoje da intelectualidade, seja de que campo forem; mas essa visão mental não
lhes traz unidade de vistas; só uma coisa os põe em concordância, por algum tempo -- é o
medo. Os chefes políticos só se unem, na perspectiva de verem o seu país ameaçado por
qualquer outro.
Isto não quere dizer que a intelectualidade não possa produzir união: mas, para isso,
tem que ser completamente impessoal. Os homens de ciência têm os mesmos pontos de
vista, quando tratam de compreender as leis da natureza: mas se obtêm grandes
resultados, é por não agirem como homens e mulheres que pensam à maneira normal; eles
atuam como máquinas intelectuais desapaixonadas, que não têm relação com o mundo das
emoções. Os homens da ciência unem-se porque não são movidos pela paixão, e a sua
unidade só subsiste enquanto não intervém o elemento passional, como por exemplo, o
sentimento da nacionalidade. Durante a Grande Guerra os homens de ciência, quer
franceses quer alemães, cooperaram na descoberta da verdade, enquanto trabalharam
unicamente como cientistas. Mas, no momento em que cada um deles se lembrou de que
era francês ou alemão, a unidade rompeu-se, porque a paixão sobrelevou a razão.
A maior parte do gênero humano é dirigida pelas paixões e apenas, uma minoria se
entrega à experiência da razão; mas, nesta última, em que a mentalidade mais divide que
une, aparece, uma vez ou outra, um novo tipo que não pertence à humanidade do mental.
Esses indivíduos são caracterizados por um novo atributo: vivem em conformidade com a
unidade do mundo.
Os mais notáveis representantes deste tipo são os fundadores das grandes religiões.
Sejam quais forem as feições com que se apresentem, todos eles visualizam a humanidade
como um todo. As divisões de raça, cor, nacionalidade, que são elementos essenciais em
todos os nossos problemas não existem para os grandes Instrutores; ele veem só uma
humanidade e não vários povos. Quando falam de Deus, é do Deus de todo o gênero
humano e não um Deus de tribo, que escolhe um povo para seu eleito, com desvantagem
para todos os outros.
Permitam-me uma interrupção. Embora as religiões de hoje fossem fundadas por
Grandes Instrutores, não se segue, por isso, que o espírito desses Fundadores esteja
representado nas religiões que existem sob o seu nome. Todos os Instrutores proclamaram
uma era de paz e fraternidade, para o mundo como um todo. E todavia, quantas religiões
não fomentam hoje as guerras? Os padres cristãos benzem os estandartes de batalha,
sacerdotes hindus lançam bênçãos pelo sucesso dos seus guerreiros e os monges Budistas,
que julgamos estar meditando no modo de atingir o Nirvana, empenham-se agora na
Guerra dos partidos políticos e do nacionalismo.
Há, todavia, uma forma de religião que nunca foi poluída e que ainda reflete o espírito
dos Grandes Instrutores. Não é a religião das hierarquias sacerdotais, mas o misticismo dos
santos.
Os Grandes Instrutores têm uma característica comum, qual é a de não apelarem para
o mental. Decerto que os seus ensinamentos podem ser percebidos pela inteligência; mas o
seu apelo, quer pela palavra quer pelo exemplo, é para uma faculdade muito outra - a
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misteriosa faculdade da intuição. Eles repetem velhas verdades, mas nelas transparece
qualquer coisa de novo. E porquê? Porque Eles revelam, nas suas vidas e doutrinas, não a
sua inteligência, mas a sua intuição. Por exemplo, no caso de Cristo; tem-se dito que ele não
apresentou nada de novo e que muitas das suas afirmações podem ser comparadas às dos
profetas judeus, de tempos anteriores ao seu. E todavia, Cristo fez, para quem o escutava,
aquilo que os seus predecessores não fizeram; eles apelaram para a inteligência dos seus
ouvintes, mas Cristo apelou para a sua intuição. O que caracterizou a sua ação, foi o
restaurar a intuição na Judeia. E foi ela que provou ser Ele o Messias.
Matthew Arnald tinha razão quando afirmou:
«O que atestou Cristo foi a sua restauração da intuição. Jesus Cristo encontrou toda a
Israel desnorteada com uma interminável discussão sobre Deus, a Lei, a reta conduta, o
reino de Deus, a vida eterna, sem se assentar na realidade de todas essas coisas".
O mesmo se dava, na Índia, quando Gautama Buda apareceu em Benares.
Comentavam-se os magníficos ensinamentos dos Upanishads; havia mestres de religião por
toda a parte, discutindo a natureza do Absoluto e o caminho para o Nirvana. Veio Gautama
Buda e repetiu as velhas verdades. Mas Ele apelou para a intuição, e homens e mulheres
tiveram uma nova visão da vida, como se nunca a tivessem conhecido.
Aqueles que o podiam compreender, foram os que puderam desenvencilhar-se da teia
do mental, criada pelas antigas tradições, e assim ficaram livres e aptos a serem
influenciados pela personalidade do Instrutor, pela Sua ternura e a Sua compaixão que
abraçava o mundo. Ele acendeu a chama da intuição nos seus ouvintes.
E o mesmo acontece, onde quer que apareça um novo Instrutor. Ele não vem resolver
problemas que o mental, por si só, possa abranger; a sua missão é ultrapassar o mental e
apelar para a misteriosa faculdade da intuição, Os grandes Instrutores são os representantes
da humanidade intuitiva; Eles veem a unidade e não a diversidade, e proclamam a alegria
de amar e servir a todos, sem distinção de raça ou de religião. São Eles, pois, que
representam esse novo tipo de humanidade que eu chamo da intuição.
Mas há mais quem pertença a este novo tipo de humanidade, embora num plano de
realização inferior ao dos Instrutores; são os artistas. Porque estes trabalham mais pela
intuição que pela inteligência. Os poetas, os músicos, os cantores, os dramaturgos, os
dançarinos, os pintores, os escultores, os trabalhadores de vários ofícios estão
experimentando uma nova reação à vida. A nossa reação usual é a da emoção e a do
intelecto. Mas o artista tenta reagir com a intuição. Assim como os homens de ciência
definem o processo cósmico como força e lei e os filósofos criam sistemas de pensamento,
para a sua explicação, também os artistas explicam a vida como ela é, quando se reflete na
intuição. Todo o poema ou drama, toda a sonata ou canção, todo o quadro ou estátua, toda
a dança seja de crianças ou mestres da coreografia, é fundamentalmente uma
interpretação do que é a vida. Quanto maior for o artista mais significativa é a sua
revelação do que é a vida. Os artistas pertencem à humanidade da intuição. Portanto, como
artistas, não têm nacionalidade; eles transcendem as linhas divisórias de raças e religiões,
quando reagem à vida com a sua intuição, tentando ver a vida do centro e não da
circunferência.
Mas é ocasião de perguntarmos: o que é a intuição? Se é uma faculdade diferente do
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mental, mas, apesar disso, um modo verdadeiro de ajuizar das coisas, o que é afinal essa
misteriosa faculdade? Esta palavra é empregada um vários sentidos, mas limitar-me-ei à
definição dada por Spinoza, filósofo judeu, porque a julgo mais próxima da revelação da sua
natureza.
Diz-nos Spinoza que há três estados no conhecimento: o primeiro é o empírico, tirado
da experiência dos sentidos. Sabemos que o sol nasce de manhã e se põe à tarde, porque
os olhos no-lo ensinam; mas não sabemos porquê, a não ser que tenhamos estudado
astronomia e saibamos que a terra gira em torno do seu eixo. Contudo o conhecimento dos
nossos sentidos diz-nos que o sol, que se põe à noite, há de tornar a nascer amanha.
Sabemos que o fogo arde, mas também não sabemos porquê. Ele arde por causa da
combinação química do carbono com o oxigênio. Este conhecimento empírico é suficiente
para a maior parte das coisas da vida diária.
Há um segundo e mais elevado grau do conhecimento, que começa quando o
raciocínio examina, analisa e julga. Quando os fatos são reunidos cuidadosamente, quando a
observação é impessoal e os fatos não são vistos isoladamente uns dos outros, mas
agrupados em categorias, então, o mental pode deduzir as leis que ligam os fatos e coloca-
os por uma certa ordem num processo cósmico. É este o método científico de se adquirir o
conhecimento.
Há, ainda, um terceiro grau. Depois do material ter sido todo reunido, e as suas partes
ligadas umas às outras por leis, a inteligência pode elevar-se, então, ao estágio seguinte. À
medida que o nosso mental vai contemplando os fatos que se colheram, numa estrutura
prévia da unidade, então nasce, acima da inteligência, a nova faculdade da intuição. A
consciência compreende a verdadeira e íntima natureza de tudo quanto se apresenta à
inteligência; porque há na vida um fim oculto que a inteligência não apreende, mas sim a
intuição.
A razão por que a intuição é superior à inteligência, na compreensão do processo da
vida, é nitidamente apresentada pelo filósofo francês Bergson, que frisa a necessidade da
intuição, como fator da compreensão integral. A nossa inteligência, diz Bergson, trata todos
os fatores que se lhe apresentam, como se fossem unidades separadas e como se cada uma
delas fosse divisível em fatores cada vez mais tênues. A inteligência é excelente, quando se
ocupa de sólidos inertes; mas, quando tenta explicar a vida e o pensamento, que não são
sólidos inertes ou partículas divisíveis, então a inteligência desorienta-se, porque tende a
tratar todas as coisas como se fossem matéria sem vida, vendo apenas em tudo um mero
mecanismo. A inteligência, pela sua verdadeira natureza, não pode compreender a vida. É
preciso, pois, que a intuição venha preencher as lacunas deixadas na compreensão pela
inteligência. É esta a proclamação de Bergson.
Mas, diz ele ainda, esta intuição é uma forma sublimada do instinto, que no animal é
um método muito mais eficaz do conhecimento do que o mental. Todos nós sabemos quanto
é maravilhoso o instinto dos animais. O pombo correio, levado para centenas de milhas do
seu pombal, sabe em que direção deve voar, para o regresso, As lampreias dos rios da
Escandinávia, Inglaterra e Mediterrâneo, quando, na idade adulta, chega a hora de se
acasalarem, sabem que devem procurar uma certa região do Oceano Atlântico, o mar dos
Sargaços, e emigram em massa para esta ,região. Há de haver dois anos, em Junho, um
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gato, chamado Bonzo, foi metido num cesto e levado de automóvel, duma certa cidade da
Inglaterra para uma outra, afastada cerca de setenta e três milhas, não tendo, ate então,
saído de casa dos seus donos. Três dias depois, voltou à sua antiga morada, bem disposto,
com as patinhas sãs, o pelo luzidio, quase gordo e muito feliz por ter regressado novamente
a sua casa. Teve que atravessar uma cidade populosa ou tomar um novo caminho para
evitar a cidade, atravessar uma charneca e contornar outra, Como pôde ele adivinhar isto
tudo? Pelo instinto.
Nós, entes humanos, perdemos essa faculdade, desenvolvendo a inteligência, mas
invejamos algumas vezes aos animais o seu instinto perspicaz. Em todo o caso, não há
dúvida de que o desenvolvimento da razão no homem, ao sair da animalidade, é um passo
para diante, embora parcial apenas, no caminho da evolução. É este o tema de Bergson - o
novo passo para a frente é o desenvolvimento da intuição.
Mas esta, segundo sustenta aquele filósofo, está aliada ao instinto; é como uma forma
subtil e ainda adormecida do instinto.
Não é esta a minha opinião, mas isso não interessa neste momento. Enquanto o
instinto estiver polarizado para a ação, como é o caso nos animais, diz Bergson, o instinto e
só instinto e nada mais. O homem com a sua inteligência, pode muitas vezes, exceder em
astúcia o instinto animal. Mas o instinto tem raízes na vida; não atua mecanicamente, como
se fosse uma máquina manejada por forças da matéria, porque o instinto tem vida. Se,
porém, o instinto residente no homem pode ser impelido como uma mola, em direção ao
conhecimento, e não exclusivamente para a ação, como no animal, então o instinto pode
transformar-se em intuição.
Quando esta transformação ,tem lugar, «a intuição leva-nos à verdadeira intimidade
com a vida, com o mesmo êxito absoluto com que a inteligência nos guia nos segredos da
matéria.»
Permitam-me mencionar agora o que os Teósofos pensam a respeito da intuição. A
Teosofia sustenta que o homem é um ser multo complexo, feito de sete partes
componentes, chamadas «Princípios». O primeiro deles é o corpo físico; o segundo, a mais
sutil contrapartida deste corpo, chamada o «duplo etérico»; o terceiro, o «Prana», o
princípio da vida ou vitalidade, que une entre si os dois outros. O quarto princípio chama-se
«Kâma Rupa» ou o corpo dos desejos, a sua natureza «astral»; segue-se o «Manas» ou
mental; o sexto é Buddhi, a sua intuição; e finalmente o sétimo é Âtmâ a divina natureza da
alma, que é inseparável da natureza de Deus.
Na enumeração destes princípios, a natureza de Buddhi ou intuição tem sido estudada
pelos Teósofos. Eles afirmam que a verdadeira intuição não é resultante de qualquer
processo do mental. A mente examina um objeto e toma dele conhecimento, estudando-o
por fora; a intuição toma dele conhecimento, tornando-se una com ele. O conhecimento que
a intuição obtém é por identificação e não por análise. Para dar um exemplo: se a
inteligência examina um indivíduo tem que reunir o material que lhe diz respeito, fatos
concernentes à sua natureza física, as suas reações emotivas, a natureza do seu mental e
tanto quanto lhe for possível, um registro do que ele tem feito. Seguidamente, o mental faz
o seu juízo sobre estes elementos. Mas, como nós todos sabemos muito bem, o juízo que os
outros podem fazer a nosso respeito pelo mental, falha lamentavelmente, no tocante à
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nossa verdadeira natureza. O juízo dos outros é muitas vezes severo e injusto. Eles não nos
conhecem realmente. É este o método mental.
Mas a intuição procede de modo diferente: por artes misteriosas, ela identifica-se com
o indivíduo que deseja compreender. Unifica-se com os seus pensamentos e sentimentos.
Sabe tudo o que o homem tem sido no passado; e ainda, pela identificação com as suas
esperanças e sonhos, ela descobre o homem oculto que se não revelou a qualquer exame
mental. A intuição, por conseguinte, realiza um juízo mais pleno e verdadeiro, respeitante ao
homem. Isto explica, até certo ponto, o mistério que leva as grandes almas que têm uma
profunda capacidade de compaixão, como os grandes Santos, a ser tão indulgentes nos
seus juízos. Eles não condenam o pecador, porque compreendem, não só aquilo que ele
fez, mas também o que ele esperava ser, Cristo não condenou Madalena, porque não só
conhecia a sua vida dissoluta, mas também a causa dos seus erros: «pecou por muito
amar».
Sempre que se trate de compreender a vida e não a matéria inerte, é a intuição e só ela
que dá a verdadeira compreensão. Quando, portanto, Bergson diz: «A intuição leva-nos à
verdadeira intimidade com a vida, com o mesmo êxito absoluto com que a inteligência nos
guia nos segredos da matéria», ele revela-nos uma grande verdade, a respeito da
consciência, quando dirigida pela intuição.
A intuição tem começado já a manifestar-se em muitos de nós. Temos lampejos dela,
principalmente em relação às pessoas que nos rodeiam. Gostamos delas ou não, à primeira
vista, e sem sabermos porquê. Refiro-me aos casos em que as nossas simpatias ou
antipatias não são provocadas por reações emotivas. Quando a nossa intuição «age, essas
simpatias ou antipatias são sempre perfeitamente calmas, serenas e desacompanhadas de
emoção. A nossa reação não é devida a impulsos, que são sempre manifestações da nossa
natureza astral ou seja «o corpo dos desejos». Todos temos exemplos de Intuição em nossas
vidas. Apercebemo-nos de certas coisas, sem podermos justificar ao mental o nosso
conhecimento, por ele não ter diante de si todos os fatores necessários ao seu exame. Mas
a consciência, por meios misteriosos, num instante se unificou com os fatores ocultos e
assim a nossa intuição entra em contacto com o âmago das coisas. Esta qualidade própria da
intuição foi bem descrita por Lawrence da Arábia, quando a define como «a incompreendida
presciência». Os árabes com quem ele trabalhava não formulavam os seus juízos como
resultantes da atividade mental. Lawrence dizia deles: «As suas convicções são instintivas e
as suas atividades intuicionais».
Os americanos dos Estados Unidos estão cientes desta nova faculdade da intuição;
dão-lhes o nome de «hunch», palpite. Se perguntarem a um homem de negócios por que é
que agiu de uma maneira particularmente inesperada, sem que qualquer coisa externa o
guiasse, responderá logo, «Tive um palpite».
Toda a gente sabe que as mulheres são mais intuitivas que os homens. A ausência
dessa rígida mentalidade que caracteriza os homens, favorece-lhes a intuição. Muitas vezes
os juízos das mulheres são meros preconceitos impulsivos, mas não me refiro a esses casos,
quando falo da sua intuição. O impulso acicata-nos constantemente, se não lhe
obedecermos logo. Mas a intuição tem duas características notáveis: parece ser-lhe
indiferente, se lhe obedecermos ou não e fala uma vez só. A sua voz é como a decisão dum
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tribunal supremo que dá a sua sentença uma e única vez, sem curar dos efeitos do
julgamento, sobre as partes envolvidas na demanda. É conveniente, portanto, prestar a
atenção devida à intuição quando ela fala. Há uma profunda sabedoria no antigo provérbio
espanhol:
"EI consejo de la mujer es poco ;
Y el que no lo toma es loco.”
o que, traduzido, dá, pouco mais ou menos:
“Conselho de mulher vale bem pouco;
Mas quem o não seguir é parvo ou louco.”
Infelizmente para nós, a intuição, esse juízo infalível, não nos fala a todo o momento
nem quando dele mais necessitamos. Fala-nos às vezes, quando se trata de uma ação trivial
que vamos praticar e fica muda quando nos achamos perplexos, diante duma ação de
importância vital. Não sei a razão disto.
Vou entrar agora na parte mais importante do meu discurso: Como é que se pode
despertar a intuição?
Vários métodos existem; entre eles, o de contemplar um Todo. Se, no estudo de um
assunto, colhermos todos os fatos que lhe dizem respeito, submetendo-os ao mental e
ponderando com frequência sobre esse tema, a intuição irrompe às vezes como um
relâmpago, revelando-nos uma grande verdade. Aconteceu isto a Robert Mayer a quem
devemos a ideia da conservação da energia.
«Esta lei não se destacou gradualmente, à força de revolver o mental das
concepções da energia, transmitidas do passado, mas pertence àquelas ideias
intuitivamente concebidas que, nascendo em outras esferas do mental, colhem, por
assim dizer, o pensamento de surpresa e obrigam o mental a transmutar as noções
herdadas, em conformidade com essas ideias.»
(Energetics de Heim).
Nâo importa qual seja a natureza do problema que se apresenta ao mental, contanto
que este tenha diante de si todas as ideias arranjadas como um bloco, formando um todo;
então, a intuição manifestar-se-á, mostrando como todas as ideias fazem um todo vivo e
dinâmico, por uma forma que a inteligência não suspeitava.
Um segundo e mais fácil método é desenvolver a ternura. Quanto mais as nossas
naturezas são afetuosas, compassivas e isentas de severidade, tanto mais provável é à
intuição manifestar-se. As nossas emoções apesar de pertencerem ao mundo astral, podem
contudo refletir a intuição, que funciona dois mundos acima. Para que assim aconteça,
devem as nossas emoções ser puras, afetuosas e serenas. Assim como um lago, se a água
estiver límpida e tranquila, pode refletir fielmente a lua que está milhares a quilômetros
acima dele, assim também uma natureza emocional, serena e cheia de bondade, se torna o
espelho das grandes intuições da alma, que vive num plano muito mais alto do que o das
emoções.
Um terceiro e belo método de desenvolver a intuição é comungar com a Natureza.
Chamamos Natureza, às colinas, às nuvens, ao mar, às montanhas, lagos, cascatas,
florestas, campinas, etc. Mas todos esses elementos não são apenas meros objetos feitos
de matéria; cada um contém em si uma vida que faz parte da Vida Universal. Cada um
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desses objetos é um aspecto do Todo. Se, portanto, podemos unificar-nos com um deles,
eles ligam-nos à significação da Totalidade. Para isso devemos responder à Natureza,
simpatizando com ela em todos os seus aspectos. Então, quando nos encontramos no alto
da montanha, à beira de um lago, ou na areia da praia, quando aspiramos o perfume e
contemplamos a graça duma flor, sentimos penetrar delicadamente na nossa alma um
inefável mistério, como se alguma voz nos falasse, numa nova linguagem, do Amor, da
Beleza, da Imortalidade e de Deus.
Quando pensamos na Natureza, não nos devemos limitar a estes seus aspectos que
são povoados de plantas e animais. Um deserto, sem um restolho de erva, também é
natureza. E num deserto, a sós, isolados de todas as coisas vivas, podemos comungar com a
Natureza, naquela unção que Byron nos descrevia:
“Sob o pálio do céu azul,
Tão limpo de nuvens, tão luminoso e puramente belo,
Que só Deus se devia ver no Céu.”
Um meio delicado de desenvolver a intuição é através da Arte. Toda a Arte é uma
segunda criação, uma nova remodelação das reações que a vida nos causou. Quando,
normalmente, as emoções ou a inteligência dirigem as nossas reações, a vida aparece-nos
como prazer ou dor, felicidade ou amargura, sucesso ou falência. A nossa vida é uma luta e
o seu drama tem lugar num palco, com o nascimento por primeiro ato e a morte em último.
O nosso trabalho, como artistas, deve ser reformar todas as nossas impressões emocionais
e mentais, até que surja alguma coisa de novo. O que assim criamos, fala-nos de bondade
no coração dos maus; de imortalidade no meio da morte; de Divindade revelada na
humanidade do homem, como relíquia no altar; e da beleza que tudo envolve, em todos os
tempos e em todos os lugares.
Toda esta transformação só pode ser realizada pela intuição. E nós aprendemos os
rudimentos da arte de criar de novo a vida, quando escrevemos um poema, cantamos uma
ária, representamos uma personagem ou compomos um trecho musical. Para fazermos
estas coisas artisticamente, devemos descobrir-nos a nós próprios, por um momento, num
novo papel, como espectadores da vida e não como seus atores, como uma alma
imorredoira e não como um corpo mortal. Devemos conhecer a vida como «ideia» e não
apenas como vontade. Quando reagimos à vida, poética, artística ou musicalmente, a nossa
intuição aumenta; e com a sua expansão, criamos obras de arte que descobrem significados
da Vida que, até então, não nos haviam sido revelados.
Desde que a arte nos revela o que é a vida, em termos de intuição, entre os grandes
artistas do mundo, estão os Instrutores Religiosos. Eles observam a vida, do centro e não da
circunferência, não com o seu mental, mas com as suas intuições. Por conseguinte, veem a
unidade primeiro e a diversidade em seguida. Cada Grande Instrutor, quando se dirige aos
seus auditores, não os encara como pessoas diferentes dele próprio, mas como seus
semelhantes. Ele ergue os que o escutam até ao seu plano de realização e faz com que um
pecador sinta que a bondade é uma coisa fácil de efetivar.
Perante a luz da Sua santa presença, todo o desejo expira, exceto o desejo de nos
tornarmos como Ele. Quando Cristo disse «Tornai o meu jugo e aprendei comigo, porque o
meu jugo é suave e o meu fardo é leve», Ele via o Cristo Infante que estava para nascer em
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cada um de nós e apelava para a nossa intuição, animando-a a dizer «Eu quero».
Portanto, para mim, a melhor definição da intuição é aquela que a apresenta como o
«princípio Crístico».
Todo aquele que sentir em si o nascimento deste princípio Crístico vê a vida, não pelo
prisma da ciência ou da filosofia, mas sob um novo ponto de vista; ele vê a Unidade de tudo
quanto vive, um Todo que está palpitando com a vida, que incessantemente cria e
incessantemente revela uma ternura nova e uma nova beleza. Em cada problema que se
apresente à mente, ele vê, num relâmpago de intuição, o fim antes do meio; no auge da
tempestade e da violência de qualquer situação, ele vê, num relâmpago, a sua justiça ou
sem - razão A todo o momento o princípio Crístico lhe mostra o caminho - o caminho em
todos os problemas da vida, seja no comércio, na política ou na ciência, seja nas suas
próprias reações à alegria ou à dor.
Devemos formar planos para criar a nova humanidade da intuição porque é ela quem
há de construir um mundo perfeitamente organizado, em que homens e mulheres terão,
não só o que precisarem em alimentos e habitação, mas também oportunidades para as
suas auto-expressões e para descobrir a vida em plena beleza e dignidade. Este mundo dos
nossos anseios não vem longe, se quisermos começar a dar uma educação reta à crianças.
Se as tornarmos intuitivas, à medida que forem crescendo, elas conseguirão aquilo em que
nós outros fracassamos.
Sem dúvida que isto implica uma reorganização completa da educação. O que Lavisse
dizia da educação do seu tempo, ainda hoje é uma realidade, até mesmo nos nossos mais
avançados esquemas educativos: «um fragmento de educação é apresentado a um
fragmento de criança.» A educação moderna da criança é toda mental; como Bergson a
descreveria, ensina-se unicamente a criança a lidar com «corpos inertes». O mestre não
ensina à criança o que a vida é como Vida, como um processo que não é inerte e não pode
ser medido por gramas, metros ou litros. O que se lhe diz da Vida, como sentimento, beleza
ou fealdade, heroísmo e auto-sacrifício? O professor não pode fazer mais do que mostrar à
criança estes fatos da vida como meros conceitos ou como rótulos intelectuais. Acontece,
portanto, quando acabamos a nossa educação nas escolas, termos de começar uma
educação nova - a compreensão do que os homens são, como seres viventes e de nós
próprios como uma conglomeração confusa de bem e de mal, de coragem e covardia - de
passado, de presente e de futuro.
Se pensamos em tornar as crianças intuitivas, os fatos reservados ao seu mental
devem ser poucos e cuidadosamente selecionados e emoldurados em beleza. O que a
criança precisa de aprender a dizer em primeiro lugar, é «Como é belo!» e não, «Como é
lógico» Que a criança sinta a beleza, antes de mais nada, nos problemas que se lhe
apresentam ao mental, e a intuição entrará em atividade. E então, a criança verá
rapidamente o fim, antes de ter sido alcançado o meio; e nem mesmo precisa de conhecer
este último.
Para que a intuição se desenvolva na criança, é mister rodeá-la de um ambiente de
beleza, sobretudo na escola. Deve-se-lhe ensinar a criar poemas, pintar quadros, moldar
estatuetas, inventar danças, escrever e representar peças. Se um professor entusiasta tiver
a visão desta nova criança intuitiva, descobrirá centenas de maneiras de refundir em novos
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moldes toda a ciência da educação. O mestre que compreende a sua missão criará os meios
necessários.
Quando as crianças assim treinadas para a intuição, forem mais tarde homens e
mulheres e se tornarem os guias da sua nação, saberão construir o reino da felicidade geral.
Não pensarão em classes nem em partidos; não só hão de saber encarar mentalmente a
nação como um todo, mas sentirão também essa unidade, com profunda emoção, e com
ela rejubilarão perpetuamente. Porque a intuição e a unidade são complementares uma da
outra. Tais indivíduos jamais se sentirão desamparados perante as dificuldades. Ao passo
que os estadistas de hoje declararam «nada podemos», as crianças de hoje, estadistas de
amanhã, dirão: «Queremos e podemos».
Mais ainda: visto cada nação, atualmente, depender das outras, para seu bem ou para
seu mal, o estadista da intuição, saberá que todos os problemas de uma nação só podem ser
resolvidos com justiça, quando encarados em conjunto com os problemas de todas as
outras. Então a Sociedade das Nações não será uma liga de povos rivais e suspeitosos, mas
uma Liga de fraternidade, onde cada membro se convencerá de que ganha mais força e
inspiração para si, trabalhando em comum com os outros.
Conquanto a ideia da «Nação», dentro de cada povo, se haja de manter como o centro
do círculo das suas atividades, esse mesmo povo há de aperceber-se de que a sua Nação é
um círculo dentro de outro maior, que é o Mundo. Os homens reconhecerão que cada
problema nacional faz parte do problema mundial; e o seu sentimento do justo e do
injusto, da honra ou da desonra, será moldado pelo da Consciência Mundial, das
Necessidades Mundiais e do Plano Mundial.
Mas, enquanto esperamos pelo dia em que as crianças de hoje hão de criar o mundo
de amanhã, muito poderemos fazer, por nós próprios, para compreendermos a vida como
ela deve ser, e realizarmos toda a felicidade e todo o progresso ao nosso alcance.
Para isso, temos de converter-nos naquelas criancinhas de quem Cristo disse: «Delas é
o reino dos Céus». O princípio Crístico da consciência, que jaz adormecido em nossos
corações, despertará, quando os abrirmos às influências da Natureza, quando criarmos
alguma forma de arte, e especialmente quando formos compassivos para tudo quanto vive,
seja homem ou ave ou qualquer animal.
Quando, pela primeira vez, nos tornarmos, intuitivos, compreenderemos o que são as
potencialidades do bem e da beleza que temos adentro de nós.
Não precisaremos mais de falar em Deus, porque o conheceremos; nem teremos
necessidade de ir procurá-lo nos templos ou nas igrejas, porque o encontraremos nos
nossos corações, nas nossas consciências, na face dos nossos semelhantes.
Há um poeta, Tennyson, que nos descreve o que vê o homem da intuição:
«Ele vê através da vida e da Morte, através do bem e do mal,
Ele vê, através da sua própria alma.
A maravilha da vontade eterna,
Como um pergaminho aberto,
Se ergue diante dele,»
Quando, perante os olhos da nossa intuição, a Vontade eterna se revelar como um
pergaminho aberto, então, tanto a força como a sabedoria dessa Vontade se erguerão de
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todos os lados, amparando-nos no nosso trabalho.
É este o futuro dos homens e mulheres de intuição, nos dias que hão de vir; mas
inspiração e iluminação podem ser nossas desde já, se avaliarmos os homens e os
acontecimentos à luz da intuição, se soubermos ver a beleza espalhada por toda a parte e
estendermos o nosso amor a todos os seres e a todas as coisas.

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A Teosofia e o Destino da Humanidade

As vidas da maior parte dentre nós estão tão cumuladas de ânsias e de dificuldades
que mal sentimos o desejo de perguntar: «O que vai por esse mundo ?» Cada um de nós vive
num círculo muito seu, com as suas obrigações, esperanças e sonhos, círculo que contém
aqueles que lhe estão mais próximos e os que lhe são mais caros; mas é, no fim de contas,
um círculo bem restrito. De vez em quando temos que sair dele, quando algum dever nos
força a abandonar o pequeno âmbito dos amigos e do lar, e a entrar num círculo maior - o
da cidade; e em raras ocasiões temos que intervir num círculo, ainda maior - o da Nação,
sempre que esta careça do nosso concurso patriótico, nalguma obra nacional. Mas, outras
nações, o mundo como um todo, são para nós, realidades distantes, de mal definidos
contornos. É certo que recebemos pelos Jornais notícias de todas as partes do mundo; le-
mo-las com uma vaga curiosidade, mas os países onde se produzem os acontecimentos
estão tão longe, que esses acontecimentos parece não terem relação íntima com os nossos
negócios.
A religião concorre para tornar mais estreitos os nossos pontos de vista. Cada religião
é, em princípio, um evangelho a anunciar-nos o advento de um mundo celeste; se somos
instruídos em certos deveres para com o nosso próximo e a comunidade, é na mira de que
as virtudes adquiridas por essas obrigações nos qualifiquem para entrar no Céu. Mas cada
religião nega fundamentalmente que este mundo e as suas atividades possam dar-nos
qualquer inspiração. Talvez os gregos fossem o único povo que acreditou que este mundo e
os seus acontecimentos estivessem na íntima relação com o mundo espiritual. Procuraram
o melhor que havia neste mundo, porque este melhor era uma ligeira indicação do Eterno
Melhor, no mundo espiritual. Por isso, viam no atletismo e nos jogos uma finalidade
espiritual, ligada à finalidade material de saúde e divertimento; eram intensamente
perspicazes, quanto ao desenvolvimento da vida política, porque esta era para eles o meio
de produzir um tipo de cidadão, não só saudável, mas culto, alegre e de índole espiritual.
Por muito mergulhados que estejamos nos nossos negócios, não deixam eles, na
realidade, de estar ligados aos interesses do mundo, como um todo. A nossa saúde, por
exemplo, depende em primeiro lugar da saúde geral da nossa comunidade, mas depende
igualmente, logo a seguir, da saúde do mundo. Suponhamos que a peste bubônica se
declara num país donde recebemos certos gêneros, como trigo e arroz; a nossa repartição
de saúde não permite o desembarque nos nossos portos dessas mercadorias, sem que
sejam previamente desinfetadas pelo gás cianídrico. E o custo de tudo isto, bem como a
demora, agrava os preços por que as pagamos.
Quando, em 1918, a epidemia da influenza foi passando de uns países para outros,.
ficamos sabendo que nenhuma nação pode viver isolada das restantes.
É curioso que, se bem que nos tivessem ensinado na escola que o mundo forma um
todo, a impressão recebida foi puramente mental. Nas nossas lições de geografia
aprendemos a conhecer as capitais dos vários países, os seus rios e cordilheiras; mas esse
conhecimento nunca prendeu a nossa imaginação.
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Em certo número de pessoas desperta já a ideia do mundo com um todo, quer quando
as suas simpatias são profundamente abaladas, pela tragédia de povos desamparados, quer
quando a sua sensibilidade artística aumenta e se interessa pela literatura, poesia, pintura,
escultura e demais artes, tanto das outras nações como da sua própria. Quando nasce em
nós a concepção do gênero humano como um todo, do gênero humano representado por
uma escada ascendente de realizações culturais, então já procuramos a resposta à
pergunta, «que vai por esse mundo»?
Há duas fontes únicas onde habitualmente procuramos essa resposta. Uma é a
religião, a outra, a ciência. A primeira conforme já indicamos, não nos dá resposta alguma.
Ela não nos explica por que é que Deus dispôs que as raças do gênero humano se sucedam
umas após outras e desapareçam, e que as civilizações realizem, apenas, uns certos
aspectos de cultura e outros não. A este mundo, como um todo, com os seus multiplicados
progressos em milhares de atividades, como negócios, política, artes, não interessa a
religião. Não que ela tenha qualquer coisa contra essas atividades, mas estão fora do seu
âmbito, circunscrito às rezas, cerimônias e contemplações.
A Ciência, essa sim, responde àquela pergunta «que vai por esse mundo»? Vede o
mundo do passado, diz a ciência; os museus cheios de antiguidades patenteiam-se à vossa
contemplação, revelando-vos a história do homem e da natureza. Olhai o mundo do
presente, diz a ciência, e vereis desfilar perante vós, como numa procissão, todas as
realizações na indústria, na locomoção, na medicina e em mil e uma comodidades para
conforto do lar e da cidade. Vede o mundo do futuro, diz a ciência, e descortinareis um
quadro sem esperança. Porque um dia, ainda que seja daqui a muitos milhões de anos, o
gênero humano deixará de existir, porque o sol perderá o seu calor e a terra tornar-se-á
num planeta gerado. Igualmente sabemos o que a ciência tem a dizer a nosso respeito
como homem e como mulheres. Temos vindo trepando desde o reino animal; e este é o
nosso passado. Vivemos num mundo de luta, onde a sobrevivência do mais apto é a lei e
onde o forte calca aos pés o fraco, na sua marcha para super-homem. Isto é o nosso
presente. Quanto ao nosso futuro, é simplesmente deixar-nos apagar, como se apaga uma
candeia, quando o coração parar de bater.
Haverá em qualquer parte outra resposta mais atraente do que a que nos é dada pela
ciência? Sim, essa resposta dá-a a Teosofia. Eu não vo-la apresento, meramente, como
especulação duma escola de filosofia; ela proclama-se representante dos ensinamentos de
uma dinastia ininterrupta de sábios.
Naturalmente, não encontrareis razões para escutá-la, só pelos atributos que se
arroga. Mas peço-vos que examineis o que ela proclama e ajuizeis se as suas afirmações
serão razoáveis no conjunto e se poderão oferecer-vos uma hipótese viável. Isto é, afinal, o
método usado pela Ciência. O cientista, quando depara fatos inexplicáveis, arranja para eles
uma hipótese plausível. Procura, em seguida, verificar essa hipótese, aplicando-a aos fatos.
O seu objetivo é descobrir, em primeiro lugar, se ela explica esses fatos e em seguida, se
conduz à descoberta de fatos novos. Nem todas as hipóteses são necessariamente
verdadeiras; neste caso novas hipóteses são formuladas. Se nenhuma delas resolve o
problema, o cientista fica esperando. É isto precisamente o que desejo que façais: examinar
a hipótese Teosófica pondo-a de parte, conscientemente, se ela vos não satisfizer. Qual é a
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resposta Teosófica, à cerca do mundo? É que todos os acontecimentos que nele decorrem
obedecem a uma plano. Por outras palavras, que os acontecimentos da história não são
devidos a meros acasos, mas que por detrás de todos eles existe um plano que o homem
pode compreender. Consideremos os acontecimentos do mundo. O mais remoto que se
conhece é-nos relatado por Platão, que se refere a uma tradição do Egito com respeito a
uma grande civilização que floresceu num continente chamado a Atlântida, no local onde
hoje se encontra o Oceano Atlântico. A civilização Atlante, segundo a lenda, dominou no
Mediterrâneo.
Esse continente afundou-se, há cerca de 10.000 anos, numa erupção vulcânica. Depois
dos Atlântes, novos povos surgiram; cada nação tem o seu começo, o seu apogeu e o seu
lento declínio. Caldeia, e Babilônia, Egito, Grécia, Roma, desapareceram. A China e Índia
mantêm-se. No simples decurso de um século o Japão tornou-se um povo poderoso.
Sabemos como Colombo descobriu o Novo Mundo. Lentamente, a seguir, os povos da
Europa, emigraram do Ocidente para as Américas do Norte e do Sul, até que, três séculos
depois, tendo morrido os aborígenes ou poucos existindo atualmente, novos povos
habitam os dois continentes. As correntes de emigração ainda não cessaram. Outras
correntes se dirigiram da Europa para o Oriente e zonas meridionais, para a Austrália e
África do Sul.
A Teosofia declara que todos estes acontecimentos fazem parte de um plano. A
descoberta do Novo Mundo, a aparição de novos povos e o desaparecimento dos velhos,
são partes de um plano, como o são também os embates de vários povos que dão origem
às rivalidades nacionais que tantas e tantas vezes trazem consigo a guerra. Na mesma
ordem de ideias, tudo quanto chamamos civilização as ciências, as artes, os sistemas
econômicos, culturais, surgem como partes desse plano.
O plano de quem? perguntareis. Quem tem controlado os acontecimentos mundiais,
de modo que, o que aparece como obra do acaso, é na realidade a execução de um plano?
Deus, ia eu imediatamente responder; mas hesitei, por uma razão: A palavra Deus arrasta
vulgarmente consigo a ideia de uma pessoa; no Cristianismo, a imagem de uma pessoa
idosa, um Pai, ou a tríplice imagem de um Pai, um Filho e um Espírito Santo; na Índia a
imagem de um Deus muitos braços e mesmo, algumas vezes, de muitas cabeças.
Todas essas concepções de Deus como forma humana são incompatíveis com a
vastidão do Universo. Quando falamos em Deus, queremos com isto dignificar uma
inteligência que funciona em toda a sua plenitude, na orla do Universo como aqui entre
nós, desde a origem dos tempos até ao momento atual.
Mas a verdadeira essência da explicação Teosófica é esta: Há uma inteligência em ação
por toda a parte, operando em harmonia com um plano. Entretanto quando dizemos
inteligência e que ela age e idealiza, temos que atribuir alguma ideia de personalidade a
essa inteligência. Por outro lado, temos que pôr de parte a forma humana a essa
personalidade, porque, como podia uma forma humana possuir uma mente atuando
simultaneamente no extremo do Universo, e aqui entre nós?
A palavra que me parece mais apropriada é a dos Estoicos Gregos - o Logos.
Esta palavras tanto pode significar o nome ou o rótulo com que designamos um
objeto, como o pensamento Íntimo que ele representa. Logos, quere dizer Razão. Para os
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Estoicos, o Universo inteiro era o Logos, isto é, uma expressão da mais alta razão. Há alguns
séculos atrás, em Alexandria, Filon, filósofo judeu, desenvolveu a ideia do Logos, dando-lhe
o sentido de Deus, mas não, em forma humana. Veio mais tarde S. João, e proclamou que o
Logos, a Razão Divina que mantém o Universo, a mais alta concepção que se possa fazer de
Deus, se manifestou na Terra em Jesus-Cristo.
Na frase latina da missa Romana - Et Verbum caro factum est «e o Verbo fez-se carne»
que nos indica o momento de ajoelhar, a palavra grega Logos é traduzida como Verbum, o
Verbo.
Por muitas razões, portanto, a palavra Logos é a mais conveniente, não só porque
afasta a ideia duma personalidade humana, mas ainda porque traduz plenamente os
pensamentos mais elevados que associamos à ideia de Deus.
O universo tem uma estrutura fundamental que é o Plano do Logos. É a vontade do
Logos que cria a nebulosa da qual se geram as estrelas; é a mesma vontade que criou a
primeira célula da matéria viva. Este pensamento já existia entre os judeus, porque no
Velho Testamento aparecem estas palavras - «O Senhor pela sua Sabedoria fez a terra, pela
compreensão, fundou dos Céus», (Provérbios 3.19). Em harmonia com o plano do Logos,
tudo foi concebido desde a origem do tempo: Nem um só instante a Sua vontade deixa de
dirigir cada acontecimento. É o que Cristo quer e significar quando afirma que «nem uma
ave pode cair do ramo, sem a vontade do Pai».
A nossa Terra, tão vasta para nós, é uma ínfima parcela de matéria, comparada com a
vastidão do Universo e assim como a Sua Vontade interpenetra o Universo, assim
interpenetra a Terra. Qualquer acontecimento, desde os movimentos dos prótons e
elétrons às migrações dos povos de continente para continente, é a manifestação da
vontade e do plano de Logos. Tudo o que foi, é e há de ser, são expressões e incorporações
do Logos.
Eu bem sei que tudo isto deve parecer uma mera suposição, uma teoria que parece
incapaz de ser provada. Mas vejamos o que a teoria desenvolve quando aplicada, como o
fazem os Teósofos. Quando o Teósofo observa o Universo, proclama os seguintes
postulados:
1) Antes de o Universo vir à manifestação, como um sistema de força, matéria, ação e
lei, já existia como um pensamento, no Mental do Logos. Este pensamento revestiu-se de
matéria. Todo o Universo, portanto, desde cada elétron a todas as miríades de estrelas, está
impregnado do pensamento do Logos.
2) O pensamento do Logos, quando assim vestido de matéria, e tornado universo, está
destinado a evoluir, isto é: a mudar sucessivamente de um para outro estado. Em todas
essas mudanças opera a Vontade do Logos. A evolução não é, pois, como a ciência afirma,
um processo mecânico de modificações por experiências e falências, mas um processo
dirigido por uma inteligência, para determinado fim.
3) Tudo quanto existe, da mais pesada partícula da matéria ao ser mais espiritual que
possamos imaginar, todos os milhões de tipos de organismos que a evolução produz, desde
a ameba ao anjo, não são meras criações do Logos: São Ele próprio. Geralmente, quando se
pensa em Deus criando o Universo, julga-se que Ele procede à maneira de um oleiro,
manipulando uma vasilha; feita esta, o oleiro e a vasilha são coisas à parte. Não é esta a
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concepção Teosófica, de Logos. Este é duplo na Sua natureza. Ele é, ao mesmo tempo,
transcendente e Imanente. Socorrendo-me, ainda da imagem do oleiro e da vasilha, o
oleiro na sua natureza transcendente, fica aparte do vaso, como artista que operou na
argila, para fazer dela um artefato. Mas se nós imaginarmos que a argila empregada faz
parte do corpo do oleiro e que este utilizou parte do seu corpo na execução da Sua Obra,
então há uma unidade entre o Oleiro e o vaso. Podemos, neste caso, dizer que o oleiro está
imamente no vaso.
De modo análogo, tudo o que existe, toda a substância, seja de que natureza for, da
mais leve à mais pesada; todos os aspectos de força, eletricidade, luz e calor; todas as
formas da vida, como as plantas, os animais e os homens; todas estas coisas são o Logos, a
Sua verdadeira Substância, no seu aspecto de Divindade Imamente. Todavia e ao mesmo
tempo, o Logos, como Transcendente Divindade, existe fora de tudo quanto d'Ele emanou.
4) Desde que tudo quanto existe é o próprio Logos, desde que tudo quanto age, move
e acontece são incorporações do Logos, todo o Universo é a sua auto-revelação. Sabemos
que o Universo muda constantemente, mas as suas mudanças não são como as torrentes
que, nascendo das montanhas, correm para o mar, achando os seus caminhos ao capricho
do acaso; mas como os botões de rosa, cujas mudanças fazem desabrochar a flor
maravilhosa. Cada pétala encontra-se em miniatura, dobrada dentro do botão; a admirável
e artística estrutura, o delicado perfume, a brilhante revelação de uma «alegria que ficou
eterna», tudo isto está oculto no botão. O botão cresce para nos revelar uma beleza oculta.
Do mesmo modo, o universo transforma-se, para revelar a natureza do Logos como uma
Beleza Absoluta.
5) O Logos não é só uma Beleza absoluta, é também a fonte de toda a espécie de amor
que nos seja dado conceber. O amor da Mãe pelo filho, do amante pela preferida, do Santo
pelo seu Deus, todos estes amores são meros símbolos, quando comparados com a
realidade do Logos como Amor. Assim como todo o Universo está embebido em
inteligência, dentro do Mental do Logos, assim também todo o Universo está impregnado
do seu Amor. A despeito de tudo o que parece terrível na evolução, a luta pela vida e a sua
crueldade; a despeito da aparente surdez de Deus aos clamores da humanidade sofredora,
o Amor é a raiz de todas as coisas. Se o elétron e o próton estão ligados numa unidade de
positivo e negativo, não é apenas porque o Mental do Logos os mantém assim em
equilíbrio, é também porque o Seu Amor os envolve. Todos os cantos dos poetas, todos os
hinos devocionais dos santos são longínquos clarões irradiados da natureza do Logos, como
amor.
6) O Logos, que é a Beleza Perfeita, que é Amor Ideal, não é uma Deidade estática, isto
é, uma personalidade que não age e se limita a contemplar. O Logos é um construtor. Ele
manipulou de si próprio um universo e opera nele, de modo que o que é bom engendra
uma coisa melhor e o melhor engendra o ótimo. O Logos age sobre o seu Universo como
um artista. O escultor diante do mármore tem na sua mente a imagem que vai nascer; e
então começa a desbastar do mármore todas as parcelas inúteis à sua estátua; «Quanto
mais mármore é suprimido, mais vulto cria a estátua».
7) Nesta ação do Logos para criar um Universo Perfeito, o homem é necessário. O
papel que lhe é reservado consiste em ser o Agente, o Instrumento, o Cooperador do
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Logos. Tal é a natureza do Logos, em Amor e Beleza, que Ele deseja que existam miradas de
seres, que se deleitem em Amor e beleza, e descubram pouco a pouco a alegria do auto-
sacrifício e serviço do próximo foi para este fim que o Logos nos criou, a milhões de almas
que compõem a humanidade. Eu disse «nos criou», mas não quero afirmar com isso que o
Logos nos criasse de alguma substância que existisse fora d'Ele. A verdadeira essência da
concepção Teosófica está em que o homem foi emanado ou criado pelo Logos, da Sua
própria Natureza. Nós somos fragmentos do Logos semelhantes a Ele em todos os sentidos.
Somos unidades, ao passo que Ele é o todo. Assim como, quando arde uma pilha de lenha e
se erguem as chamas, tênues fagulhas saltam da madeira, cada uma delas existindo na
chama rugidora e fazendo parte dela; assim é a nossa alma com as suas raízes no Logos. O
Logos e a alma do homem são, para sempre, uma unidade. Todavia, o Logos deseja, ao
mesmo tempo, que o homem sinta a sua separatividade, porque graças a esse sentimento
de separatividade o homem adquire a consciência como ser individual.
8) As almas dos homens foram destinadas a ser os colaboradores do Logos, os seus
companheiros de trabalho, quando Ele concebeu o plano dum Universo Perfeito. Mas,
antes que a alma possa cooperar em qualquer finalidade útil, ela tem de compreender o
Plano do Logos e possuir faculdades criadoras capazes de contribuir para a execução. E
disto ressalta a necessidade para a alma, que é divina em essência, de entrar num Círculo
de nascimentos e mortes, para tomar parte no processo chamado Evolução. A alma tem
que aprender como uma criança na escola, de classe para classe, ou como um aprendiz
numa oficina aprende a criar uma coisa tão perfeita como o mestre. Tem a alma de
conhecer como há de agir dum modo reto, isto é, em conformidade com o plano; como há
de criar beleza, isto é, refletir o Mental do Logos, supremo guia para os vários
desenvolvimentos, através das idades, a que chamamos civilização.
Assim, o que a Teosofia proclama é que todos os acontecimentos mundiais têm uma
finalidade, que é treinar as almas até se tornarem em verdadeiros agentes do Logos.
Passemos a examinar os métodos da ação do Logos.
Para que as almas que Ele de Si emana possam começar a própria educação, é
necessário que elas vivam e atuem no mundo físico. Elas devem, por conseguinte, viver em
corpos físicos. O Logos planeia e trabalha durante milhões de anos, para produzir o
primeiro corpo humano. A ciência vai-nos dizer como o Logos prepara tudo isto. Uma parte
da nebulosa que começou com o nosso Sol quebrou-se e arrefeceu lentamente, até tornar-
se a terra; os elementos químicos, oxigênio, hidrogênio, carvão, ferro, enxofre e outros
combinaram-se e fizeram a primeira forma de matéria organizada - o protoplasma. Este é
separado em tênues unidades, resguardada cada uma no seu invólucro, dentro do qual se
opera uma nova disposição de elementos, dando lugar à primeira célula. O trabalho
procede então por etapas: os organismos unicelulares dão nascimento a organismos multi
celulares e lentamente aparece o que a Ciência chama a escada da evolução. Bactérias,
fungos, plantas de esporos, plantas de sementes insetos, peixes, répteis, aves, mamíferos,
tudo aparece em conformidade com o plano de Logos. Então, entre os mamíferos, entram
em cena os antropoides. Toda esta obra de evolução é apenas uma preparação, um
prelúdio, para uma obra real a ultimar pela evolução.
Quando os melhores corpos, ainda simiescos foram produzidos - já bastante fortes
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para resistirem aos acidentes que acompanham a vida nas condições selvagens, e com
cérebros já capazes de pensar e de conceber planos - então, as almas dos homens geradas
no Logos, que se achavam esperando «no seio do Pai», fizeram a sua entrada na cena do
mundo. Serviram-se de corpos semelhantes aos dos macacos e neles viveram como
homens primitivos.
O homem primitivo participa do anjo e do demônio. E anjo pela sua alma imortal,
sempre viva no seio do Pai; e demônio pelo corpo em que tem de viver, carregado dos
instintos de uma longa hereditariedade animal. Os instintos, no homem primitivo, como a
crueldade a raiva cega, o egoísmo feroz, não fazem parte da natureza da alma. O anjo acha-
se cavalgado pelo demônio e por ser fraco ou sonolento é o demônio quem comanda. O
selvagem vive em plena animalidade seguindo a lei do mais apto, numa guerra que aceita
como natural. Mas o anjo tem que dominar se a alma quiser realizar a sua obra. É a
alvorada da civilização. O seu início faz-se por intermédio de instrutores religiosos e
legisladores. Os instrutores religiosos fazem ver ao selvagem que o amor deve tornar-se a
lei da vida e que o auto-sacrifício e a não-competição é a lei do homem; eles procuram
despertar a intuição adormecida do selvagem, para que ele possa compreender. Porque
esse selvagem é uma alma imortal e o conhecimento da verdade reside nele, embora
profundamente sepultada. Sob o mágico influxo do amor e da compaixão do mestre, o
selvagem desperta para a vida, por um certo tempo, como uma alma, e compreende. Mas a
luta pela existência é áspera, é cercada de ódios por todos os lados e ele acaba por
esquecer a divina lição e regressa à vida de ódio e crueldade.
Mas nem tudo se obliterou na sua memória; a alma dentro dele manifesta o seu poder
no amor aos filhos, ao seu camarada ou amigo ou num súbito impulso em sacrificar a sua
vida pela família ou pela tribo.
O selvagem entra, finalmente no caminho da civilização.
Por sua vez, os legisladores ensinaram-no a lavrar a terra, originando entre esses
homens primitivos hábitos e cerimônias que os levam a constituir-se em tribos. Regulam o
direito de propriedade, as penalidades por injúrias feitas ou recebidas e os meios de curar
as doenças.
Como resultado da obra conjunta dos legisladores e dos instrutores religiosos, produz-
se um intercâmbio de serviços entre os selvagens, com alguns intervalos de paz, a espaçar
as disputas e os combates. Aqui e além uma alma começa a cantar, de si e dos outros, a
respeito dos seus labores, alegrias e prazeres; outra molda o barro, ou grava na madeira ou
no osso; outra ainda, exprime os seus sentimentos na dança. Passo a passo, o anjo começa
a pôr um freio ao diabo associado à matéria de que o corpo é feito.
Assim a civilização começa e continua. Confrontemos agora o quadro da civilização
atual com o do passado. Quem sabe quantas raças do gênero humano têm surgido no
mundo? Só conhecemos aquelas que ainda hoje existem; das do passado, só se encontram
aqui e além pedaços de esqueletos sepultados no seio da terra. A Ciência diz-nos que o
globo arrefeceu há 2.000 milhões de anos, para se converter na terra viável à humanidade,
de modo que pode afirmar-se que o homem existe para além de um milhão de anos, pelo
menos.
Os ensinamentos Teosóficos dizem-nos, porém, que a história do homem na terra,
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começou há vários milhões de anos. Se considerarmos todos os fatos acumulados no
passado, como é que esses fatos se nos apresentam? Uma das analogias com que os
podemos identificar é a ideia das classes numa escola. Um tipo primitivo de civilização é
comparável à aula infantil; outro representa já uma classe mais elevada. Podemos agrupar
as culturas de vários povos, por classes em ordem ascendente.
Se depois disto, aceitarmos a hipótese teosófica de que a lei de progresso para as almas
é o processo da reencarnação, veremos algumas as das razões por que existe a civilização e
porque tem ela vários graus de desenvolvimento, desde o selvagem ao homem civilizado. A
civilização é a escola da alma, onde ela vai aprender as lições que o Logos lhe prepara.
Ao passo que a alma entra no processo da reencarnação, uma outra lei intervém --: a
Lei do Karma. É a lei de causa e efeito. é fácil de compreender como ela opera na esfera
moral: «Semeia um ato e colherás um hábito; semeia um hábito e colherás um caráter;
semeia um caráter e colherás um destino». Tudo o que o homem produz em ação,
pensamento ou sentimento, é sempre seguido da correspondente realização. É o Karma
quem decreta que, se uma pessoa injuria outra, tem de lhe pagar em benefícios a dívida
contraída.
Ofensor e ofendido ficam ligados pelo Karma e terão de se encontrar novamente,
ainda que muitas vidas e mortes se interponham entre a dívida e o seu pagamento.
Identicamente, todo o amor constitui um laço: aquele que ama e o que é amado têm de
juntar-se de novo, auxiliando-se mutuamente para uma vida mais nobre. O indivíduo contrai
laços Kármicos com a esposa, filhos e parentes; com amigos e inimigos e com a sua tribo
como um todo. Há Karma individual, atuando entre indivíduos; mas há também um Karma
coletivo, de tribo ou nação como um todo, consoante o bem ou o mal que como um todo
praticam.
O indivíduo renasce, vida após vida; ele semeia, colhe e torna a semear, tanto bons
como maus pensamentos, emoções boas e más, boas ou más ações. Porém, os indivíduos
que formam uma coletividade renascem igualmente como coletividade. Uma nação que
deixa de existir, não se dissipa como o nevoeiro; séculos mais tarde essa nação renasce
como outro povo ou raça, mas composta das mesmas almas que criaram laços Kármicos
entre si e com a nação. Porque os indivíduos não viajam sós mas em Grupos. Felizes
seremos, se pudermos ter sempre conosco as pessoas que amamos e bem longe de nós
aqueles que nos odeiem, embora tanto amigos como inimigos marchem avante na
realização da sua Divindade.
Comecei por perguntar: Que vai por esse mundo? ...mas o que é o mundo de hoje?...
Um bem triste mundo, na verdade!
Enquanto escrevia estas palavras, no mês de Novembro, ia lendo o que se passava na
China. Em Junho último, estava no Japão e em Julho na China e nas cidades como Shangai,
Cantão, Hangchow, Soochow, onde centenas de pessoas indefesas foram mortas por
bombas. Tenho, pois, razões para saber, por uma realidade vivida, o que é o mundo de
hoje.
Mas as verdades Teosóficas dão-me conforto e iluminação. Em primeiro lugar, cada
homem mulher ou criança massacrada, cada soldado de qualquer dos partidos, que
sacrificou a vida pela grandeza da sua nação, tem que voltar a vida, não uma mas muitas
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vezes. Cada oportunidade de ventura que perderem deve ir de novo ao seu encontro. E
então, quando contemplo os ciúmes das nações, o seu completo desprezo pela
humanidade, quando sob a pressão do medo ou do imperialismo elas executam
inacreditáveis brutalidades, eu sei que há uma Lei do Karma que não sofre contradições.
Quem semeia ventos colhe tempestades. A Justiça existe sempre, ainda que leve séculos a
produzir os seus efeitos Kármicos.
Um provérbio espanhol diz «Cada cual es hijo de sus obras». Cada qual é filho das suas
obras; isto é verdade, tanto para cada um de nós como para as próprias nações. A Teosofia
ensina-nos a maneira como, na próxima vez em que tivermos de ser filhos das nossas obras,
podemos, pelo menos, ser umas lindas crianças, em vez de disformes bebes.
Assim como, para cada um de nós, a Vontade do Logos atua segundo um plano para a
nossa perfeição, assim para cada povo ou nação, existe m plano semelhante. Disse Mazzini
que Deus tinha gravada na fronte de cada nação uma palavra. Muitas idades terão de
decorrer antes que uma nação, nas suas múltiplas encarnações, descubra finalmente qual a
palavra de amor e de beleza que terá de pronunciar, como contribuição ao divino esquema.
Mas Deus é paciente e espera através das idades, que compreendamos o Seu Plano e
rejubilemos com Ele em dar-lhe plena realização.
Desde o primeiro dia - já lá vão milhões de anos - em que as almas dos homens
apareceram em humanas formas, o Logos tem trabalhado em construir a civilização,
encaminhando-a passo a passo para a completa perfeição. Ele envia-nos fundadores de
religiões, legisladores, dirigentes, poetas e cantores. Foi a Sua Vontade que organizou entre
os homens as suas várias ocupações. Uma ideia radical domina cada ato do Logos:
despertar no homem a vontade de realizar a sua verdadeira natureza, como fragmento do
Divino. Todas as formas de cultura, todas as atividades que o gênero humano tenha criado
em religião, ciência, artes, comércio ou administração têm sido guiadas. O Logos é
Omnipotente, mas não exerce a sua Omnipotência sobre nós. Ele podia forçar-nos a aceitar
o Seu Plano, como cegos instrumentos da Sua Vontade. Mas não o faz; deixa-nos a
liberdade de seguir as nossas inclinações.
Mas constantemente apela para as nossas intuições, afim de trabalharmos com Ele,
por intermédio dos instrutores que nos envia. Mas no estado presente da nossa evolução
compreendemos mal a Sua Vontade e menos ainda cuidamos de obedecer-lhe.
É por isso que o homem, através das idades, tem contrafeito nas suas obras a Vontade
Divina. Mas, pouco a pouco, à medida que mais almas se tornem cultas e espirituais,
aumentará o número daqueles que cooperam com Deus. Faz parte do Seu Plano que todos
nós, um dia colaboremos com Ele; então, a Sua Vontade será feita na terra, em qualquer
instituição humana, como hoje é feita no Céu.
A humanidade está agora num estágio em que grandes benefícios lhe podem advir, se
as melhores, entre as nações, quiserem compreender-se e cooperar. Depois de muitos
séculos de projetos, o Plano de Logos tem em vista formar uma organização mundial,
agrupando todas as nações numa administração única, tal como está delineada na
Sociedade das Nações. O plano do Logos ligou todas as nações pela ciência: o telégrafo, o
telefone, a telefonia sem fios, as máquinas de imprimir e milhares de outros
desenvolvimentos da civilização têm aparecido porque assim estava planejado.
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O mundo inteiro está hoje ligado de maneira a tornar-se, queiram ou não queiram as
nações, uma entidade econômica, cuja saúde faz a saúde das nações, mas cuja desgraça é a
desgraça de todas. A única maneira, atualmente, de uma nação encontrar felicidade e
prosperidade, consiste em partilhar a felicidade e a prosperidade com o mundo inteiro. A
aspiração atual de muitos idealistas que sonham com uma Federação mundial é apenas a
sombra, no espírito dos sonhadores, da realidade que é o Plano do Logos.
E porque o Plano do Logos atua hoje de uma maneira especialmente imperativa, que a
felicidade de cada um de nós depende da nossa unificação com a Divina vontade. É esta a
nossa tarefa suprema nesta Vida. Quem serve a Divina Vontade eleva-se a altitudes de
felicidade e crescimento, inacessíveis àqueles que ficam surdos ao seus apelos. As nossas
vidas, hoje, são sucessos ou insucessos, conforme procedemos ou não como agentes do
Plano do Logos.
A todos está aberto este glorioso destino. Para aqueles que se encontram em lugares
de destaque, como os dirigentes e chefes de nações, muitas são as oportunidades de servir
o Grande Plano.
Um desses chefes soube aproveitar uma oportunidade esplêndida: foi Woodrow
Wilson, Presidente dos Estados Unidos, cujo espírito criou a Liga das Nações. Cinquenta e
seis Estados aceitaram este sonho; só com o seu próprio povo foi mal sucedido. A sua vida
foi um documentário do dito dum outro americano. «Um homem de acordo com Deus, vale
por uma maioria». Wilson, na sua nação, tornou-se o agente da Vontade do Logos, embora
muitos milhões dos seus concidadãos recusem uma grande oportunidade.
Quem procedeu de acordo com Deus, ele ou todos os outros?
Nem todos nós estamos em lugares de destaque; contudo, a Vontade do Logos chama-
nos a cooperar nos limites da nossa esfera de utilidade. No lar, na comunidade, no exercício
da nossa profissão, podemos ser os agentes da Vontade de Deus.
Podemos sempre trabalhar pela unidade, recusando-nos a auxiliar qualquer atividade
que separe uns dos outros os homens ou as nações. Algumas vezes, com uma única palavra
no momento preciso, podemos fazer muito para sustentar o Plano de Deus.
Há três versos de Dante que perfeitamente descrevem o que o mundo é hoje e o que,
um dia, pode vir a ser:
Ch'io ho veduto tutto 'I verno prima
Il prun mostrarsi rigido e feroce,
Poscia portar la rosa in su la cima.
«Porque vi, durante todo o inverno,
A silva mostrar- se arisca e feroz,
Mas hastear depois a rosa lá no cimo.»
Quando contemplamos o mundo, parece-nos que não há senão espinhos na árvore da
vida: mas falando como Teósofo, devo afirmar-vos que as rosas também fazem parte do
Plano de Deus. A rapidez do seu desabrochar depende de mim, de vós, de todo o mundo.
Eu gostaria de que tivésseis essa visão do Mental de Deus - esse mundo de rosas. Gostaria
de que conservásseis, como o verdadeiro sentido desta conferência as seis últimas palavras
dos versos de Dante, la rosa in su la cima, a rosa hasteada lá no cimo. Esta é a visão
teosófica do Destino da Humanidade: «A rosa lá no cimo» La Rosa in su la cima.
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O Princípio da Beleza

Há uns dizeres de Budha que nos podem servir de guia para a descoberta da nossa
própria natureza. Aparecem-nos como o primeiro preceito do Dhammapada, Os
Mandamentos da Lei: «O Pensamento, na mente, foi quem nos fez. Tudo o que somos foi
pelo pensamento executado e construído - Se o mental do homem tem maus pensamentos,
a dor segue-o como as rodas do carro seguem o boi - Tudo quanto nós somos é o que
pensamos e quisemos - Os nossos pensamentos dão-nos forma e estrutura. - Se tudo
suportarmos com pureza de pensamento, a alegria seguir-nos-á, seguramente, como a
nossa própria sombra».
A mesma relação entre o mental e o caráter se encontra no velho adágio: «Tal como o
homem pensou, no seu coração, assim ele será». Muitos instrutores nos dizem a mesma
verdade de que o que fazemos na vida e aquilo em que nos tornamos depende do que
pensamos.
Este fato incontestável encontra-se na base de todas as religiões, filosofias e ciências.
O que e cada uma delas senão uma exposição, feita ao nosso espírito, da natureza do
Universo? Cada uma reforça o corolário de que é condição nossa moldar as nossas vidas
por aquilo que nos dizem as religiões as filosofias ou as ciências.
O intuito da vida é Dharma ou dever, diz uma religião; é realizar a vontade de Deus, diz
outra. O intuito da vida é observar as leis da natureza e aproveitar os seus poderes, o diz a
ciência. E a filosofia, em todas as suas variantes, diz-vos que o intuito da vida é obrigar o
nosso espírito a revelar a verdadeira natureza de cada coisa.
Cada um destes ensinamentos, quando bem compreendido, é considerado como a
base da nossa conduta; é talvez mais ainda, o principal guia das nossas reações na vida, de
maneira que possamos transformar as nossas existências individual e coletiva, para revelar
os mais altos aspectos da civilização.
Os ensinamentos que nos são dados podem resumir-se·no seguinte «Deus é
omnipotente e deve ser obedecido»; ou então: «a Natureza é lei e devemos obedecer-lhe».
A humanidade no passado, seguindo a religião e a filosofia, construiu tipos de
civilização cujas notas técnicas foram o culto e o dever. A humanidade, hoje em dia, está
produzindo um novo tipo de civilização cujas notas fundamentais são a auto-expressão e o
domínio da natureza.
Uma maneira completamente diferente de encarar a natureza da vida começou com
Platão. Para ele, a verdadeira finalidade da vida era a Beleza Absoluta. O Belo era Deus e
Deus está sempre esforçando-se por se revelar a si mesmo, através do Universo que Ele
próprio criou. Tal como para o homem religioso o fim principal de cada acontecimento é a
«Santidade do Senhor» e para o homem da ciência é o «matemático puro», cujo mental
matemático opera em todas as coisas, assim, para quem aceita as doutrinas de Platão todos
os acontecimentos da vida levam à descoberta da natureza do Belo.
Se aceitarmos o postulado de Platão de que Deus é Beleza, e lhe juntarmos o antigo
postulado de que tudo quanto existe é Deus, então a essência do Belo está em toda a
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parte. Além disso, visto que não podemos admitir que exista seja o que for fora de Deus,
cada coisa existente deve, por consequência, revelar constantemente Beleza.
Mas pode este princípio manter-se de pé? Não está a Natureza «com os dentes tintos
de sangue e a presa entre as garras?» Não a vemos nós dirigindo uma guerra cruel de
indivíduos contra indivíduos de espécie contra espécie? Por toda a parte a natureza é
destruidora, com o consequente sofrimento para a criatura aniquilada. Aqui e ali, nas flores
como nas aves, podemos ver como a natureza trabalhou para produzir o solo. Mas por cada
objeto atraente e belo, podemos observar dez feios e repelentes. Serão, pois, verdadeiros
os ensinamentos de Platão?
Este é o problema que se nos apresenta.
Mas o mesmo acontece com a religião. Quando declara que Deus é amor, quantos
exemplos poderíamos apresentar para presumir que Ele é cruel? Mas os nossos exemplos
não provam que Ele seja cruel, mas somente que, se Ele é amor, não estamos ainda
habilitados a compreender certas manifestações do Seu amor. Do mesmo modo
encontraremos beleza por toda a parte, mesmo no que nos pareça feio, se tão somente
soubermos observar como deve ser.
A descoberta do Belo requer da parte do homem dois atributos. Em primeiro lugar,
compreender o Belo; em seguida, saber a maneira de o criar. A primeira parte, o
conhecimento do Belo, depende do treino do seu mental e das suas emoções. Quando
estes elementos estão devidamente desenvolvidos, então os olhos veem beleza onde
dantes viam negrura e fealdade.
O homem primitivo reage às manifestações da natureza, primeiramente com espanto
e assombro e mais tarde com um sentimento de maravilhada admiração.
A natureza revela-se ao selvagem como um manancial de terror. Olhar para uma
queda de água dá-lhe o sentimento de força diante da qual ele sente o que um pequeno
inseto sentiria diante de qualquer enorme bicho que o quisesse devorar. A floresta está
cheia de pavor para o selvagem: o trovão, o relâmpago, as tempestades as inundações e
dilúvios causam-lhe susto. Mas isto é o primeiro estado. O segundo começa quando o
sentimento da admiração aparece: eis então um ligeiro movimento estético de prazer. Mas
há uma qualidade de prazer diferente dos seus prazeres normais. Os prazeres habituais do
selvagem são intensamente pessoais: ele mesmo deliberou criá-los, e quando finalmente os
alcançou, o círculo desses prazeres rodeia-o sendo ele o seu próprio centro, e ele diz
consigo estou contente, sou feliz. Mas o sentimento do Belo começa quando o sentimento
do prazer se torna impessoal. O sentimento de admiração, diante de uma catarata é então
devido ao fato de que, por um instante esqueceu a sua própria pessoa. Este sentimento de
admiração precisa de desenvolver-se a pouco e pouco. As emoções concorrem para este
efeito com o seu auxílio. No selvagem a maior parte delas centram-se nele próprio;
momentos há, porém, em que ele experimenta uma emoção, por muito ligeira que seja,
despida desse egoísmo. Quando a isto se junta uma certa serenidade uma espécie de
vibração rítmica e impregnada de paz, mesmo que seja momentaneamente, então .a
natureza emocional torna-se capaz de um sentimento de admiração. Com a expansão da
natureza emocional, quando a sua braveza é dominada por um espírito algo evoluído, a
mais alta sensação estética aumenta rapidamente.
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O sentido do Belo torna-se também mais agudo e instintivo. Muito antes de o espírito
poder explicar por que um objeto é belo, o sentido estético reconhece a presença da Beleza
nos objetos. Quando o indivíduo manifesta a tendência para desenvolver em si o sentido do
Belo, está apto a iniciar a segunda parte da sua tarefa, que é criar a Beleza.
Quando uma emoção alheia a todo o sentimento egoísta é suficientemente forte, isto
é, quando tem uma qualidade dinâmica, como uma mola enrolada, então, a emoção vasa
em qualquer molde artístico. O desenrolar da mola resulta em um ato que, por débil que
seja, dá corpo a qualquer coisa de belo. Pode ser, por exemplo, uma sequência de sons que
surpreendem o selvagem, como um princípio de melodia; pode ser também um movimento
de dança, ou algumas frases ou sentenças que contenham em si um embrião de poesia.
Por meio de uma lenta e constante ação recíproca, entre a percepção de belo e a sua
criação, o homem acha na vida um novo princípio em atividade, diferente do princípio do
amor ou da bondade ou da santidade. É o princípio da Beleza. Quando os olhos espirituais
do homem se abrem para Deus, como Beleza, vislumbram um novo evangelho, para viver
por ele. Já o Divino, como Amor, como Deus, como Lei, como Santidade, nos conduziu à
verdade e ao contentamento. Mas quando o Divino, como Beleza, entra em nossas vidas,
uma nova dimensão se ajunta à nossa compreensão do que é a vida, e do que nós próprios
podemos vir a ser.
O supremo mistério da existência é que toda a vida é «o abismo chamando o abismo».
Que o homem, a unidade, e Deus, o Todo, não são dois, mas um, é a proclamação que o
Misticismo sempre lançou, através das idades. O Hinduísmo ensina isto na velha máxima,
Tad Brahma tad asmi. «Esse Brahman, esse sou eu». É o mesmo mistério que nos é
revelado, quando S. Paulo nos diz que em cada homem habita «O Cristo em vós, a
esperança de Glória».
Pelo fato de que a vida é o abismo chamando abismo, existe na religião a constante
tentativa de lembrar essa verdade ao homem, pelas preces e cerimônias. Quando a religião
estabelece o problema da vida como a Vontade de Deus, o homem é levado a exercer a sua
própria vontade com referência a Deus. Ele deve rezar muitas vezes ao dia; deve realizar
tais e tais cerimônias, para exaltar a Graça de Deus; constantemente a vontade do homem
é afeiçoada para se tornar o espelho da Vontade de Deus. «Islam!» diz o Muçulmano, em
seu coração e em seu espírito, cinco vezes ao dia; isto significa «a Tua Vontade é a minha
vontade!»
Quando a Vontade de Deus esmaga uma alma com tais dores e tais privações que ela
suplica o aniquilamento, de preferência a continuar a sofrer, o ato de vontade do homem
que diz «Seja feita a vossa vontade» não é dissemelhante da vontade de Deus, na qualidade
do seu poder. É o mesmo mistério do abismo chamando o abismo que o poeta revela
quando grita, no seu leito de dor, as conhecidas frases:
"Eu sou o senhor do meu destino,
Eu sou o comandante da minha alma»,
Onde quer que o mistério da vida esteja fixado com uma forte convicção, aí surge a
tentativa de fazer, noite e dia, da vida integral do homem, um espelho desta convicção, até
nas mínimas ações. É somente quando um homem molda conscientemente, a sua vida, de
maneira a fazer dela o espelho de uma vida mais ampla, que ele atrai a si a sabedoria e a
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força dessa vida mais ampla.
E assim deve ser com aquele que procura conhecer Deus, no aspecto Beleza. Ele deve
treinar as suas emoções e os seus pensamentos até refletirem, como um espelho, as
emoções e os pensamentos da própria Divindade. Ele, o abismo menor, deve
constantemente chamar pelo abismo maior, o Divino. Daí resulta a necessidade de estudar
a ciência de belo e de aprender a criar pela sua técnica. Assim como o homem religioso
vive, em cada hora, por um evangelho de consagração à Vontade de Deus, assim deve o
amante do Belo treinar-se, a cada instante, a saudar em todas as coisas a beleza oculta de
Deus.
Cumpre-lhe galgar, degrau a degrau, a escada da Beleza. O primeiro degrau é distinguir
o Belo nas mais singelas coisas da natureza. A flor que desabrocha à beira do caminho,
mesmo que seja duma erva brava, não será um espelho de beleza?
Quando um homem se empenha em procurar a Beleza, a mãe natura revela-lha a cada
hora. A beleza matemática das conchas do mar, a beleza simétrica das árvores, a sinfonia
de cor, de linha e de forma que resplende nas flores, nas folhas do outono, toda essa beleza
nos fornece a jorros a natureza-mãe. Logo outros degraus se sucedem - a beleza do nascer
e do pôr do sol, a beleza das quedas de água, a beleza que as palavras não podem
descrever, de uma majestosa cadeia de montanhas; elas transmitem às nossas emoções
uma mensagem animada de um tal poder de penetração, que passa além dos limites da
inteligência e atinge a intuição espiritual. Depois, ainda, como novos degraus, vem a beleza
das palavras, a beleza da melodia, a beleza do ritmo na dança. Diante de nós e acima de
nós, vai-se erguendo a visão da alma revelando-nos a beleza das crianças, do homem, da
donzela. Desde que a sensibilidade à beleza esteja desenvolvida nos sentidos, a apreciação
da beleza passa para além deles. O espírito começa a sentir a beleza numa outra esfera,
aprende a encontrá-la nas ideias, no caráter, na maneira de conceber e executar os planos.
É nesta altura que o amante do belo insiste em se rodear de coisas belas. Porque,
quando o homem sentir o abismo dentro de si próprio, cumpre-lhe, se tem de viver, no
verdadeiro sentido de palavra «vida», saudar o abismo fora dele, em cada momento que
passa. Não importa qual seja a natureza do abismo que o homem descobre dentro de si;
pode ser, como no homem religioso, o sentido da santidade, do Dharma, do sacrifício.
Então, assim como a sua sombra o segue quando se expõe ao sol, assim a visão do abismo
maior que está fora dele deve estar sempre presente diante dos seus sentidos, do seu
espírito, da sua intuição. Deve, portanto rezar; mas não há necessidade de um sacerdote
que lhe componha as orações para seu uso. Se há falta de orações na sua religião, ele
formulará orações próprias, segundo as necessidade do seu coração. A insistência desse
coração devocional dará uma forma poética às suas orações, dramatizará para si próprio os
movimentos do mundo invisível de Deus, até construir para eles um drama que será
representado na terra sob a forma de algum ritual esplendoroso.
Com uma persistência semelhante, o amante da beleza clama «Vida! Mais Vida!» e
procura cercar-se de espelhos que reflitam a beleza que está nos altos planos. De tudo
quanto o homem cria e que serve às suas necessidades, desde os móveis caseiros, desde os
utensílios de cozinha, desde os objetos grandes e pequenos que as suas mãos tocam, que
os seus olhos veem, no lar, na repartição, na oficina, ele exige beleza de linhas, de forma e
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de cor. Por toda a parte, à sua roda, em casa, na cidade, nos caminhos, nos parques, nos
seus aposentos, onde quer que não encontre resposta, ele vagueia como um fantasma
esfaimado à procura daquele suave refrigério, que lhe há de dar o mínimo de força de que
precisa para outras tarefas diárias.
Mas o reconhecimento da beleza depende da habilidade de a criar. Até mesmo os
sentidos do selvagem podem tornar-se atentos a um pouco de beleza; mas a beleza cobre-
se de vários véus e é apenas o primeiro deles que os sentidos conseguem observar.
Precisam de um certo treino para poderem penetrar além do primeiro véu e ver os outros.
É aqui que a faculdade de criar se torna indispensável. Com cada ato de criar ai alguma
cousa de belo, a apreciação da beleza vai aumentando.
O poder de criar o belo é um dom que reside em todos nós. Porque a beleza é um
atributo da alma que só espera, para descer até ao nosso eu inferior, que desbravemos o
caminho para a mensagem do nosso Eu superior.
É bem verdade que os grandes mestres criadores do Belo formam um grupo de almas
à parte das hostes das almas vulgares; à medida que vão surgindo da Natureza Divina, o
Demiurgo, que a todos nos criou, imprimiu sobre elas um atributo raro de que serão
condutores especiais os mestres artistas, que não somente serão os guias, pelas suas
qualidades geniais, mas serão ainda os instrutores dos outros, nos mistérios do Belo.
Beethoven e Shakespeare, Homero e Dante, Phídeas e Giotto são almas que saíram do
infinito, no princípio dos tempos, com o Germen do gênio para a sua arte especial, que não
era outorgada a toda a gente. A grande massa do gênero humano, por muito que possa
desenvolver-se na arte de criar beleza, nunca alcançará as supremas alturas daqueles
grandes reveladores de Deus, Senhor-do-Belo. Entretanto, visto que somos almas e todos
perpetuamente residimos «no seio do Pai», podemos também, até certo ponto, revelar a
Sua Beleza.
Quando somos sensitivos - quando os nossos olhos verdadeiramente veem e os nossos
ouvidos verdadeiramente ouvem - então, a natureza segreda-nos quais as pequenas vias
por que podemos iniciar a nossa modesta ação criadora. O ritmo do corpo, enquanto
marchamos, pode sugerir-nos a maneira de juntar palavras obedecendo a um ritmo; os
gorjeios das aves podem despertar em nós a primeira frase duma melodia. Em remotas
eras, o selvagem espreitava um cervídeo, e logo que a inspiração o impelia, esculpia num
osso a imagem que os seus olhos tinham visto, ou pintava as suas impressões numa parede
da caverna, com terras de diferentes cores. Quando a imaginação desperta, animada por
uma justa visão, e justos sentimentos, germina então em nós o impulso de criar a ação
dramática ou declamar um poema ou narrar um incidente tanto ao vivo, que nos revela o
próprio narrador unificado, por um instante, com o incidente que o agitou.
Um dia virá, quando os homens despertarem para a compreensão do verdadeiro
significado da Vida, um dia virá em que os mestres-criadores, na poesia ou na pintura, na
escultura ou no drama, no canto ou na dança, esses gênios que são as estrelas do nosso
firmamento, compreenderão finalmente o duplo papel que Deus, Senhor-do-Belo, lhes
distribuiu. O primeiro é criar; o segundo ensinar aos outros a arte de criar. Quando,
chegado esse momento, frequentarmos as escolas como colegiais, as nossas lições não
consistirão apenas em fazer de nós licenciados e bacharéis em literatura, matemáticas,
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geografia, história e outras matérias; mas o poeta laureado da terra, dirigirá o seu curso de
poetas, para nos ensinar a arte de escrever poemas; o mestre-criador de sinfonias, dirigirá
o seu curso de músicos, para nos ensinar a arte música, habilitando-nos, do mesmo passo, a
apreciá-la e a criá-la. As nossas mãos infantis, aprenderão a sentir o deleite de desenhar e
compreender como uma simples linha pode revelar uma qualidade da vida e tornar-se,
deste modo, o espelho duma vida mais ampla da natureza. Bem poucos, talvez, dentre nós,
terão a noção do pouco que aprendemos em crianças; de como, por carência de
conhecimentos, nos tornamos confusos nas nossas reações, sempre que a vida,
caminhando mais rapidamente para nós de dia para dia, exige uma resposta.
Bem poucos há, entre os criadores de beleza, que nos saibam explicar o mistério que
nela reside.
Raras vezes o artistas é simultaneamente um instrutor, e muito menos um filósofo. A
sua mais alta função é criar e não ensinar. Ele nunca pode, em boa verdade, explicar
cabalmente o significado da sua criação; tem que deixar essa missão a outros.
Quando Goethe, que criou o fausto, era já velho, pediram-lhe que explicasse o
significado oculto da grande drama; e o resposta foi: «Quem me dera sabê-lo I»
Quando perguntaram a Haendel o que sentiu quando escreveu o «Messias», só pôde
responder: «Imaginava ver o céu todo diante de mim e até o próprio Deus».
Entre aqueles que têm tentado descrever o. sentido oculto da Beleza, foi talvez Jâmî, o
poeta Sûfî da Pérsia, que melhor o conseguiu. É ainda um problema para os escolásticos
saber qual a influência que o Sufismo recebeu das doutrinas Platônicas; mas é ponto bem
assente que, embora os Mestres Sutis fossem Mahometanos, ensinavam a doutrina não-
islâmica da união mística de Deus com a alma humana. São ambos, Deus e a alma, como o
ser Bem-Amado e o seu adorador; o adorador, a alma, dilui-se em adoração no objeto do
seu amor, que é Deus. O êxtase místico da união dos dois é simbolizado pelo «vinho»: no
ato de o beber, a alma tem a revelação dos meios de alcançar o Bem-Amado.
No poema de Jâmî, que descreve o amor de Yûsûf por Zuleykhâ, é assim o canto, que
foi delicadamente traduzido pelo grande escolástico Persa, o falecido Professor E. O.
Browne, de Cambridge:
A Beleza não pode suportar
O segredo ou o véu nem se resigna a estagnar,
Sem ser vista e admirada: Ela quebrará todas as algemas
E mesmo da fresta da sua prisão, revelar-se-à ao mundo.
Vede como a tulipa cresce nos prados das terras altas
E como ela se atavia, para receber um beijo embalsamado
Da primavera; e como, d'entre os espinhos,
A rosa silvestre ostenta as suas galas
E revela a sua alma amorosa. Também Tu,
Quando algum sublime pensamento ou imagem formosa
Ou profundo mistério lampeja na Tua alma,
Não podes resignar-te a deixá-lo passar
E apoderas-te dele, até à hora em que,
Pela palavra ou escrita possas soltar-lhe o voo,
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Para encanto do mundo.
Onde quer que a beleza more,
É esta a sua natureza e a herança que lhe coube
Da Beleza Eterna, que emergiu
Dos reinos da pureza, para iluminar os mundos
E todas as almas que nos mundos palpitam.
Quando um lampejo seu brilhou sobre o universo
E sobre os anjos, esse simples relâmpago
Deslumbrou-os, e os seus sentidos turbilhonaram,
Como um céu revolto, Nas mais diversas formas,
Cada espelho a refletiu e por toda a parte
Seu louvor foi cantado em novas harmonias.
.............................................
De cada partícula de matéria fez Ele um espelho
Forçando-o a refletir a beleza da Sua face.
Essa beleza evola-se da rosa; e o rouxinol
Queda-se enamorado ao contemplá-la.
A essa luz foi buscar a candeia
A fascinação que atrai a borboleta
A imolar-se nela. No resplendor do sol
Essa beleza fulgurou e logo a flor do lótus
Ergueu altiva a fronte sobre as águas.
Cada lustrosa madeixa do cabelo de Leylâ
Atraiu o coração de Majnûn
Porque um raio divino em seu rosto brilhou.
Foi Ele quem emprestou aos lábios de Shirin
Aquela suavidade que teve o condão de roubar
O coração de Parvîz e a vida de Ferhâd.
Em toda a parte a Sua Beleza se mostra
E brilha através das formas das terrenas belezas,
Obscurecida como através dum véu. Assim se revelou
Na face de José, destruindo a paz de Zuleykhâ.
Onde quer que tu vejas um véu, por detrás desse véu
Ele se oculta. Onde haja um coração
Inclinado ao amor, é por ele encantado.
No seu amor os corações têm vida.
Suspirando por Ele a nossa alma triunfa.
Todo o coração que parece adorar
As mais lindas beldades deste mundo,
Na realidade, só a Ele adora.
É uma dura experiência humana que numerosos erros são possíveis àquele que trilha o
caminho para a mais alta meta da sua consagração. Nada há mais puro do que o seu desejo,
mas não deixa por isso de cair no erro, por ver a verdade na ilusão e confundir o transitório
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com o eterno. A pureza das intenções não nos preserva de cair em erros calamitosos; a
sabedoria e o discernimento são também necessários, se quisermos atingir a nossa meta
com o mínimo de sofrimento. Nenhum caminho dá lugar a tantos erros como o da Beleza,
porque o que o homem aceita e venera como beleza não é, necessariamente, a Beleza
Eterna a que a sua mais alta imaginação aspira. A falsa aparência da beleza foi graficamente
descrita na frase francesa beauté du diable, beleza do diabo. É essa beleza transitória da
juventude e da frescura que hipnotiza os nossos sentidos, faz fugir o terreno debaixo dos
nossos pés e nos arrasta a terríveis consequências.
Nem todos os aspectos da natureza são obrigatoriamente belos. Ela produz, algumas
vezes, monstruosidades, quando a sua ação normal foi deformada por forças estranhas ao
seu plano original. A forma humana é bela quando se desenvolve em harmonia com as leis
naturais da saúde e judiciosa construção; mas uma alteração qualquer, na glândula pituitária
do cérebro dum homem, é o bastante para que os ossos das faces, mãos e pés aumentem
de tamanho. Sabemos que o homem em questão sofre de acromegalia, uma doença para a
qual ainda se não descobriu a cura. Mas porque a natureza produziu um corpo
acromegálico, não é motivo para dar os agradecimentos a um escultor que talhasse na
pedra uma tal deformidade.
Nenhum artista tem direito a esse nome, quando se limite a reproduzir, com o seu
poder criador, a natureza «como ela é». Para isso, basta uma máquina fotográfica. Só é
artista aquele que faz passar toda a natureza pelo cadinho da sua imaginação e a destila até
que o ouro fique separado das escórias. A beleza do diabo aparece-nos sob múltiplos
disfarces e precisamos de treinar os nossos sentidos até que eles nos digam a verdade, a
verdade eterna, e não o erro atraente mas passageiro. O artista, principalmente o
principiante, deve procurar que a sua imaginação se não torne mórbida, por qualquer vírus
sutil que lhe empeçonhe os desejos. Nem tudo o que a nossa imaginação cria é
forçosamente arte. É porque os sentidos e a imaginação não chegam para nos guiar à
Eterna Beleza, que a Sua investigação é inseparável de uma vida de pureza, domínio-
próprio e caridade. Estas virtudes refinam as nossas reações aos sentidos; quando a
natureza nos apresenta as suas transformações, podemos então distinguir a verdadeira
beleza da beleza do diabo. Onde há verdadeira aspiração, onde o artista anseia por
sacrificar seja o que for, até a própria vida, para poder criar a suprema perfeição; quando a
sua alma for como uma chama, elevando-se para a Eterna Beleza, então, mesmo que se
deixe empolgar por uma beleza impudica - a beleza do diabo - os resultados dos seus erros
não serão duradoiros. Ainda que se tenha desviado do verdadeiro caminho, ele voltará
atrás a retomá-lo.
A vida dos que aspiram à Verdade, a Deus, a Santidade e à Beleza, não seria tão árdua
se não fôssemos tantas vezes encandeados pela Maya das coisas, se não confundíssemos o
ilusório com o real. Entretanto, tudo irá pelo melhor, se a nossa afirmação estiver liberta da
pecha do personalismo. Nenhuma alma pode ficar transviada por muito tempo, se os seus
desejos não são maculados de egoísmo. Dois grandes artistas nos expõem esta verdade. No
fausto de Goethe, Deus explica a Mefistófeles como o homem de bem, mesmo quando
perde o rumo, acaba sempre por regressar ao bom caminho.
Posto que seja ainda confuso o serviço que me presta,
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Breve o conduzirei a uma manhã mais clara.
Não antevê o jardineiro, enquanto enxerta a árvore,
As flores e os frutos das primaveras futuras?
«Confuso o serviço que me presta». Porque andaremos sempre confundidos, tomando
a beleza adulterada pela verdadeira? Dante fornece-nos a explicação. No Paraíso, Beatriz,
que é a Sabedoria" explica-lhe que, quando uma alma se transvia, ha sempre uma fração de
verdade naquilo que a conduziu ao erro.
Yo veggio ben si come già risplende
Nello intelIetto tuo I'eterna luce
Che vista sola sempre amore acende:
E s'altra cosa vostro amor seduce,
Non é se non di quella alcun vestigio
Mal conosciuto que quivi traluce.
Eu vejo claramente como já resplandece
Na tua inteligência aquela Eterna Luz
Que, uma vez vislumbrada, para sempre acende o amor.
E se alguma outra coisa o vosso amor atrai,
Não pode ser senão algum vestígio d'Ela
Mal conhecido, que através transluz.

O último pensamento, no panegírico da Beleza de Jâmî, leva-nos ainda mais longe, a


novas regiões. «Todo o coração que parece adorar as mais lindas beldades deste mundo, na
realidade só a Ele adora». E esta igualmente a mensagem de Platão de que o nosso amor
humano, sobre a terra, pode tornar-se uma escada para Deus. Desde o dia em que Platão
proclamou este novo caminho para Deus, todos os que são capazes dum amor Ideal,
procuram compreender o que é o «Amor Platônico». A própria palavra Platão é sinônimo de
amor ideal «a paixão que se desprende da Terra para se perder no Céu». E é significativo,
que esta nova escada para Deus não tenha sido descoberta por um homem. Não foi
Sócrates, o maior sábio da Grécia, quem descobriu esse novo caminho, através das suas
profundas lucubrações, foi uma mulher, a profetiza Diotima, que o revelou a Sócrates. É
famosa a passagem onde se relata esta revelação; na verdade, o diálogo Socrático
«Symposium» ou «o Banquete» é o mais conhecido, por esta descrição do Amor ideal. O
caminho que tem de ser trilhado por quem é sensitivo à beleza, por quem sente dentro de
si que toda a beleza, seja onde for, deve conduzir a uma Beleza Suprema, é assim descrito
por Diotima:
«Aquele que trilhar caminho reto para este fim, deve começar na juventude a procurar
formas belas, e deve aprender, primeiramente, a amar uma só forma bela e a engendrar
com isso nobres pensamentos. E então perceberá que a beleza de uma linda forma está
aparentada com a de qualquer outra; e que, se é a própria Beleza que ele procura, seria
loucura não reconhecer a beleza de todas as formas como uma e mesma coisa: e assim
considerando, ele será o adorador de todas as formas amoráveis, acalmará a sua paixão
exclusiva por uma forma isolada, considerando-a, com menor apreço, uma coisa
insignificante.
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E isto levá-lo-á a ver que a beleza da alma é muito mais preciosa do que toda a beleza
da forma exterior; de modo que, se deparar uma alma bela, mas cujo corpo tenha poucos
encantos, deve manter-se-lhe fiel e dar a vida a pensamentos tais que deles resulte
conhecimento e força, até conseguir levar essa alma a reconhecer o valor da beleza interna
das ações e das leis e a inanidade da beleza externa da forma transitória; e das ações
conduzi-la-á às ciências, para que possa ver o seu maravilhoso encanto; e reconhecendo a
abundância da beleza, não mais poderá ficar escravizado a uma só beleza ou a uma só lei ;
mas, desfraldando as velas no oceano da beleza, criando e contemplando uma torrente de
pensamentos e de imagens belos e gloriosos numa filosofia sem limitações nem entraves,
possa, finalmente, fortalecer-se e progredir, e reconhecer que uma única ciência existe - a
ciência da infinita beleza. Porque, aquele que assim tiver plena inteligência do amor e
houver contemplado, com são critério, todas as coisas belas, então, aproximando-se do fim
de todas as coisas amoráveis, poderá contemplar um SER maravilhosamente belo, por cuja
intenção todos os esforços prévios têm sido empreendidos. Alguém que existe desde todos
os tempos, que não teve princípio nem há de ter fim, que não pode aumentar nem diminuir
ou sofrer alterações, para mais feio ou mais bonito; beleza que não pode ser imaginada
pela das faces, mãos ou membros e partes corpóreas nem por qualquer forma de palavras
ou conhecimentos nem como residindo noutra parte que não seja ela mesma; nem nos
animais nem no homem nem na terra nem no Céu nem em qualquer outra criatura; mas
Beleza unicamente e só e separada e eterna que, apesar de ser partilhada por todas as
coisas que crescem e morrem, Ela só, sem alteração, aumento ou diminuição, perdura por
todo o sempre».
Inseparável deste ensinamento de Platão, respeitante à finalidade da Bem aventurança
humana, é a sua doutrina das «Ideias» ou «arquétipos». Por detrás de todas as coisas
existentes, reside a «ideia», o conceito geral, fixado num reino que lhe é próprio, Assim, o
exame de todas as espécies possíveis de triângulos conduz à ideia abstrata de
triangularidade. Mas, segundo Platão, a triangularidade é a realidade permanente e eterna,
a «ideia» no Mental Divino; e as formas triangulares, na terra, só são possíveis, devido a
essa «ideia» pré-existente de triangularidade. O mesmo podemos dizer a respeito de todas
as coisas existem sobre a terra unicamente graças à «ideia», que e a centextura de cada
uma delas já previamente formada, no Mental Divino. A estas «ideias» de Platão,
chamaram mais tarde «arquétipos».
Visto que todos os arquétipos são corporizações da Divina Natureza, que é Absoluta
Beleza há, por conseguinte, beleza em tudo, cada coisa retendo algum atributo da ideia ou
arquétipo. A existência da beleza que reconhecemos num objeto é, pois, um longínquo
vislumbre do seu arquétipo.
Daqui derivou a famosa doutrina da «reminiscência», também de Platão. Todos nós,
como almas, vimos do reino da beleza, onde permanentemente contemplamos os
«arquétipos». «O nosso nascimento é apenas um sono ou um esquecimento», como diz
Wordsworth, mas quando saudamos a beleza, é porque ela nos «lembra» a nossa
verdadeira moradia na eternidade. Ver a beleza é sentir o mal estar das regiões terrenas e
viver na perpétua impaciência do coração e do espírito, por voltar à verdadeira morada».
A alta visão que Diotima nos revela como a nossa meta, aquela visão de um ser eterno,
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Ele ou Ela, porque Deus não pode ser mais masculino do que feminino, é também revelada
pelos sábios da Índia:
«Ele só, dentro do Universo, vai e vem; Ele é o próprio fogo; Ele penetra as águas; e
quando o homem nada mais vê senão Ele, já passou para além da morte. Não há outro
caminho.»
A sua forma não cabe dentro do campo da nossa visão e homem algum pode
contemplá-lo com os olhos. Ele manifesta-se no coração, pelo coração e pela mente,
aqueles que alcançam o seu conhecimento, tornam-se imortais. Sem Ele, nem o sol nem as
estrelas nem a lua nem os relâmpagos nem mesmo o fogo brilha, pois só quando o seu fogo
se manifesta é que tudo a seguir pode brilhar; Pelo fulgor de Brahman, tudo refulge cá em
baixo.
Mas, após Platão e os Upanishads, outra visão surge do Supremo. Ela aparece quando
esse Ser de quem Diotima fala e o Upanishad diz que ao fulgor de Brahman tudo refulge cá
em baixo, esse Supremo que habita as esferas superiores onde a nossa imaginação cai
deslumbrada, manifesta o Seu esplendor aqui, na terra, através dum ser humano, que nós
adoramos como o nosso Bem-amado. Como pode ser que Aquele que é o Todo, que é
Beleza, Poder, Esplendor, que é a soma integral da vida em todas as manifestações do
Cosmos, desça para ficar confinado, prisioneiro, enclausurado numa coisa tão mesquinha
como é o homem? É isto, todavia, o supremo milagre. Muitos o presenciaram, na Palestina,
quando Cristo apareceu entre os homens, falando como eles, em tudo igual aos outros no
aspecto exterior. Contudo, os outros homens caíram a Seus pés, gritando em êxtase «Meu
Senhor e meu Deus!».
Se o Todo assim desceu em Cristo, também pode descer em todos nós. Mas vou mais
longe: já desceu mesmo. Nós é que não tivemos olhos para ver o prodigioso
acontecimento, nem imaginação para compreender até onde ele nos leva. Mas o amor,
quando se transforma nesse sentimento que «se desprende da terra para ir perder-se no
céu», empresta-nos uns olhos novos. Então, através do objeto amado, seja homem ou
mulher na sua terrena forma, Brahman brilha com todo esplendor da sua fulguração.
Poucos são ainda os que alcançaram essa visão, em que o objeto adorado - donzela,
homem, criança ou Instrutor - se transforma no pórtico através do qual a fascinante Beleza
do Todo desce até nós e nos obriga a cair em adoração, diante do Bem-amado, clamando
fervorosamente «Meu Senhor e meu Deus!». Mas este Sétimo Céu, onde bem poucos têm
entrado, será um dia o céu de todos nós.

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A Ciência e o Mental Divino

As teorias da evolução, quando foram primitivamente apresentadas, causaram um


choque profundo na consciência religiosa do Ocidente - e digo do Ocidente, porque na
filosofia Oriental o pensamento da evolução é aceito como processo cosmológico, posto
que não houvesse nenhuma investigação sistemática, como na ciência de hoje.
O choque no pensamento Cristão foi devido a duas conclusões extraídas dos fatos da
evolução. Primeiro, que a ideia da criação por espécies, como é dada no Gênesis, é
insustentável; e segundo que a alma do homem é uma ilusão. O pensamento Cristão, que
aceitou a Bíblia como a sua fonte de verdade, assentou em que Deus criou as várias
espécies numa certa ordem.
«E criou Deus os grandes peixes e todos os animais que têm vida e movimento os
quais foram abundantemente produzidos pelas águas, segundo as suas espécies; e todas as
aves, segundo o seu gênero. E viu Deus que isto era bom.
E disse Deus: Produza a terra animais viventes, segundo o seu gênero: animais
domésticos répteis, e bestas da terra, segundo as suas espécies. E assim se fez.
E Deus criou as bestas da terra, segundo as suas espécies: os animais domésticos e
todos os répteis da terra, cada um segundo seu gênero. E viu Deus que isto era bom.»
(Gênesis, I: 21.2425).
Mas «as origens das espécies» de Darwin obra escrita em 1859, fazendo época,
mostravam como a evolução operava mecanicamente, criando uma espécie após outra,
como resultado de uma seleção natural de variações produzidas na natureza. Estas
variações continuam depois a existir ou a desaparecer, consoante são úteis ou não numa
ambiência cumulada de lutas e de competições. Darwin propôs um esquema lógico,
substanciado pela prova de que as espécies de animais não foram criadas separadamente.
Darwin nunca negou a existência de Deus, mas a sua negação de criação das espécies como
vem na Bíblia, foi prontamente considerada como eliminando Deus da obra do Cosmos.
Hoje, sem dúvida, que nenhum teólogo Cristão pretende tomar ao pé da letra as palavras
da Gênesis.
Não só a obra de Darwin, mas também as dos geólogos e paleontologistas propunham
uma origem mecânica do Universo. A Gênesis afirma: «Fez Deus, pois, dois grandes luzeiros
um maior, que presidisse ao dia; outro menor, que presidisse à noite; e criou também as
estrelas». (16).
Mas os astrônomos e os geólogos mostraram que primeiramente apareceu a nebulosa
e depois as estrelas, das quais o nosso sol é uma de quarta ordem, em magnitude. A lua é
simplesmente uma parte da matéria original da nebulosa, dentro da qual o sol se
condensou como estrela. A ciência representou um método em que a origem do universo
era puramente mecânica, como resultado da ação das leis da natureza, calor, luz, gravidade,
eletricidade etc. Quando Laplace, o astrônomo francês, apresentou a sua teoria das
nebulosas, Napoleão notou que nunca Laplace nela mencionava Deus. Laplace replicou-lhe:
«Não há necessidade d'Ele para esta hipótese». Representa isto a atitude da maior parte
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dos homens da ciência, para os quais o universo poderia ser explicado como a resultante de
«um concurso fortuito de átomos».
A declaração religiosa, com respeito à alma, era que a alma do homem é uma entidade
espiritual que sobrevive à morte do corpo. Mas a obra da ciência recusou a natureza não
corpórea da alma. A biologia, mostra que cada função do homem tem a sua origem num
centro determinado do cérebro; as faculdades da palavra, de memória, da vista, os
movimentos deste ou daquele membro, tudo é devido às células cerebrais. Sabe-se que, se
o centro cerebral correspondente ao dom da palavra sofrer uma lesão, o paciente não pode
ouvir e compreender, porque os centros respectivos não foram afetados. A dedução lógica
destes fatos é proclamar que o homem nada mais é que o resultado das ações químicas e
elétricas nas células cerebrais e que, por conseguinte, quando o cérebro deixa de viver, o
indivíduo deixa ipso facto de existir. É ainda em consequência desta tese que Vogt afirmava
«que o pensamento está na mesma relação para o cérebro que a bílis para o fígado ou a
urina para os rins». Por outras palavras, que o pensamento é função do cérebro e morre
com ele.
Disto concluiu Moleschott que, visto que o fósforo é essencial ao cérebro, «sem
fósforo não há pensamento». Desta afirmação provém a superstição de que o homem deve
comer bastante peixe, para melhorar o cérebro, visto o peixe conter fósforo.
Todas estas investigações da Ciência tendem para a conclusão geral que se chama
Materialismo, em contraposição ao Espiritualismo,* o ponto de vista que reconheceu um
Criador que fez o Cosmos e uma alma com existência incorpórea.
* Emprego a palavra Espiritualismo, no seu sentido originário e continental e não me refiro
ao Espiritismo.
O Materialismo foi, a breve trecho, sintetizado por TyndaIl, quando foi Presidente da
Associação Britânica de Belfast, em 1874:
«Por uma necessidade intelectual, eu transponho a fronteira da evidência
experimental, e descubro nessa matéria, que na nossa ignorância dos seus poderes latentes
e não obstante a nossa professa reverência pelo seu Criador, nós temos até aqui coberto de
opróbrio - a potência e a promessa de toda a vida terrestre».
Mas, já no tempo de Tyndall se começava a desenhar uma certa transformação no
ponto de vista geral da ciência, e é interessante segui-Ia no seu firme desenvolvimento.
Essa mudança apresenta dois aspectos, um relacionado com o pensamento o outro com a
matéria. O conceito de ser o pensamento o efeito das forças materiais foi perdendo pouco
a pouco a sua consistência, devido às descobertas respeitantes à natureza da mente. As
investigações sobre o inconsciente começaram, entre outros, com Janet na França e
Marton Prince nos Estados Unidos e trouxeram lentamente à luz um grande número de
fatos a respeito da consciência, que se não podiam explicar pela teoria que afirmava ser o
pensamento uma secreção do cérebro, como a bílis e uma secreção do fígado. Essas
pesquisas vieram provar que o que consideramos a consciência é, em última análise, uma
confluência de correntes diversas de consciência, tal como um entroncamento de várias
vias férreas. Hoje a mente do homem é assim descrita: primeiro, a consciência normal, em
evidência nas atividades vulgares, tendo ainda como elementos subconscientes: segundo, a
pré-consciência; terceiro, o inconsciente; quarto, o censório: quinto o espírito de raça.
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Empregou-se uma analogia para explicar esta complexidade. Foi a de um iceberg. Tem
este vários ângulos e arestas, mas, quando flutua, só 1/8 da sua massa emerge das águas.
Se fotografarmos um desses blocos de gelo, num determinado dia, poderá muito bem
apresentar um aspecto completamente diferente de uma outra fotografia, bastando-lhe,
para isso, deslizar em águas mais quentes que o derretam em parte, deslocando-lhe o
centro de gravidade e obrigando-o a trazer à superfície outros ângulos e outras arestas. De
um modo semelhante, várias personalidades, dentro duma só, parecem manifestar-se,
consoante as circunstâncias, em determinadas pessoas.
Os efeitos de todos estes novos fatos vêm muito bem descritos por um leitor do livro
Psicologia de William James:
«O mais profundo abalo mental que sofri na minha vida, deu-se ao ler pela primeira
vez a Psicologia de William James. Sentia-me felizmente compenetrado da solidez da minha
existência e, de repente, pareceu-me ficar reduzido a pedaços, para tombar numa corrente
de consciência, um composto mal definido ou antes, uma tendência que em parte era eu
próprio e em parte alguém estranho.»
Uma outra descrição gráfica se deve ao poeta G. R. Hamilton que, como é vulgar nos
poetas, resume em poucas linhas uma verdade que levaria um discurso de uma hora a
qualquer conferente.
«Quando eu atento na minha secreta alma,
Julgando vê-la límpida e completa,
Surgem perante mim, de antros e cavernas,
Tantos fantasmas semi-humanos,
Que eu, para que esses tênues companheiros
Não venham importunar o meu risonho trabalho,
Arremesso-me de novo para o mundo,
Em busca duma multiplicidade menos louca.»
A concepção apresentada por Jung de que a consciência de cada um está ligada a um
«subconsciente mundial» como os píncaros de uma montanha fazem todos parte de uma
cordilheira, veio desfazer o velho conceito de ser a consciência uma função do cérebro.
Ainda numa outra direção, esse velho ponto de vista sofreu alterações. As
investigações dos psicólogos acerca da natureza da matéria, aboliu a dualidade entre ela e
o espírito, não no sentido de que o espírito provém da matéria, mas de que a matéria será,
talvez, uma forma do espírito. As palavras de Jeans, o físico inglês a este respeito, são
significativas:
«O espírito e a matéria, se não está provado serem de natureza semelhantes, deverão,
pelo menos, ser componentes de um sistema uno. Já não há lugar para o dualismo que,
desde Descartes, tem obsecado a filosofia.»
Propôs Jeans a existência de uma «inteligência matemática» como base do universo.
Devemos, pois, conceber o espírito e a matéria, como os dois lados de uma medalha,
inseparáveis um do outro; assim, o espírito não pode ser função da matéria.
Eddington vai mais longe ainda, porque diz:
«Em física, a essência da situação presente não é que qualquer coisa espiritual se
tenha introduzido no quadro da natureza, mas que nada, fora dos domínios do espírito
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sobreviveu no antigo quadro. Se observarmos a metamorfose do antigo quadro para o
novo, verificamos muito menos a junção do elemento espiritual com a matéria do que a
completa desaparição desta última; pelo menos daquela matéria com que a física antiga
tinha edificado o seu universo objetivo.» (Sir A. Eddington - The new background of Science,
1933, p. 283 e 284.)
É nas pesquisas sobre a natureza da matéria que se têm descoberto fatos
impressionantes. A primeira teoria da ciência moderna assentava em que o átomo era uma
tênue partícula da matéria, alguma coisa definida que poderíamos imaginar como sólida, e
tão pequena que seria impossível dividi-la. Este conceito foi substituído pela teoria de que a
matéria consiste em cargas de eletricidade que formam uma espécie de sistema solar, para
a organização do átomo. Cada átomo é composto por um núcleo - o próton e o nêutron, em
volta dos quais giram em suas órbitas vários elétrons. A última concepção é que, embora a
matéria se comporte como uma partícula de eletricidade pode, contudo, debaixo de certas
condições, desvanecer-se como uma onda. Ela é, ao mesmo tempo, uma partícula e uma
onda; por isso um escritor lhe chamou, «ondavícula». O problema atualmente em discussão
está em resolver se as ondas se poderão converter em matéria.
As leis de hoje sobre este assunto só podem ser compreendidas por pessoas iniciadas
nas altas matemáticas. Não obstante, os físicos estão plenamente seguros dos seus
processos de medição, com respeito, por exemplo, às dimensões do elétron. Seja como for
temos de concordar com o professor E. T. Wittaker, quando afirma que todas as teorias dos
homens de ciência vão rematar nisto: «Uma coisa desconhecida está fazendo não se sabe o
quê».
Outro capítulo fascinador, relacionado com a matéria, é a Lei Periódica que foi
formulada na sua forma definitiva por Mendeléeff. A ciência de hoje postula que existem
92 elementos químicos, todos de pesos diferentes, não havendo dois iguais, sendo o mais
leve o hidrogênio, e o mais pesado o urânio. Todos os 92 elementos podem ser dispostos
numa coluna, uns por baixo dos outros, mas podem ser também colocados
horizontalmente em séries de nove, por baixo umas das outras. Vê-se, então, como os 92
elementos são abrangidos nas 9 séries horizontais ou famílias. Todos os elementos
pertencentes à mesma família têm a mesma valência. Quando Mendeléeff organizou esta
Tabela, encontrou várias lacunas, mas conseguiu sempre predizer a natureza dos elementos
que faltavam. Mas como pôde a Natureza manifestar-se neste ritmo, na produção dos
elementos químicos? Mandeléeff declarou, quando formulou esta lei: «Eu nunca duvidei da
universalidade desta lei, porque ela não podia ser resultado do acaso».
A ciência tomou uma nova direção, graças à obra de Darwin e dos seus colegas. Antes
deles, não havia nenhuma fórmula clara da maneira como o processo de evolução operava,
para dar o ser a tantas espécies de organismos.
Os crentes da Cristandade acreditavam na criação das espécies como a refere a
Gênesis. Mas os fatos que Darwin ajuntou mostraram haver espécies que derivavam
doutras anteriores, por um processo perfeitamente normal, a que se deu o nome de
«seleção natural», Demonstrou ele ainda que existe um processo na natureza que tem como
regra a variedade.
Sabemos que se não encontram duas folhas de árvore que sejam iguais nem dois
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recém nascidos da mesma ninhada inteiramente semelhantes, sob todos os aspectos.
É tendência da natureza variar constantemente.
Darwin mostrou que, dentre as variedades que surgiam, muitas delas tinham
tendência a facilitar a sobrevivência do organismo, num ambiente de luta e de competição.
A natureza, por este processo, selecionou variedades úteis. Daqui nasceu a ideia de que, a
variação que ajudava o indivíduo, ia passando para os seus descendentes, de modo que, ao
fim e ao cabo, através de várias transmissões, uma espécie nova se fixava. Esta concepção,
chamada mais tarde «a sobrevivência do mais apto» trouxe os esclarecimentos necessários
para abranger num esquema coerente as miríades de exemplos de evolução, que tinham
sidos notadas por Darwin e seus predecessores.
Mas a teoria de Darwin sofreu ultimamente impugnações, não no seu princípio da
«sobrevivência do mais apto», mas na asserção de que as características adquiridas se
transmitissem aos descendentes. A sua teoria sugeria um processo de modificação que
podia ser ilustrado, embora um tanto precipitadamente, tomando como exemplo a girafa.
Houve, uma vez, um tipo de animais herbívoros que pertenciam à ordem dos Condylathra.
Alguns deles encontraram-se num ambiente em que as folhas das árvores de que se
alimentavam, ficavam um pouco acima das suas cabeças; tinham portanto, de estender os
pescoços, para as comerem. Aqueles que os estendiam mais, mais comiam; a pouco e
pouco, por este exercício diário, os pescoços foram aumentando de comprimento. Quando
dois destes privilegiados se acasalavam, algumas das suas crias apareciam com pescoços
mais compridos do que os outros; o processo repetiu-se com estes, aumentando os seus
esforços para obterem mais alimento, ao passo que as árvores se defendiam, colocando as
suas folhas cada vez mais alto; e assim, de geração em geração, chegou-se ao tipo atual da
Girafa, com o seu interminável pescoço.
Disto se conclui que as sucessivas variações produzidas por esta luta pela existência se
transmitiam aos descendentes. Restava provar-se. Procedeu-se à experiência com
cachorros, cortando-lhes a cauda e acasalando-os. A prole vinha com a cauda habitual, de
forma alguma diminuída. De fato, por mais experiências que se façam não aparece um só
exemplo, para sustentar a concepção Darwiniana da transmissão das características
adquiridas. Ainda, mais, a teoria foi completamente refutada por Weisemann, com a sua
divisão das células em germinativas e somáticas. Não se torna preciso examinar
detalhadamente a teoria daquele sábio, porque a discriminação das células que ele propõe
já é hoje aceita pela biologia.
Mas o passo mais avançado na biologia deve-se à descoberta do padre Católico
Romano, Gregor Mendel. Cultivava ele um jardim, quando notou que as suas ervilhas
ofereciam duas variedades - uma curtas, outras compridas. Cruzando-as, contou as
sementes produzidas, semeou-as e notou que as plantas associadas eram ou altas ou
curtas, mas nenhuma de tamanho intermédio. Cruzou estas ainda, tomando nota do
número de sementes e depois de muitas experiências escreveu uma notável tese, que
apresentou em 1865 à Academia Bávara de Ciência. Esta autorizada corporação recebeu e
publicou o relatório e nada mais se passou. Depois, morreu Mendel.
Neste meio tempo, muito se havia feito em biologia e bastantes esforços se
empreenderam para compreender o problema da hereditariedade.
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Então e de um modo espetacular, dezoito anos depois da sua morte, três biologos - de
Vries, holandês, Correns, americano e Tschermak, alemão - todos no mesmo ano de 1900,
descobriram o relatório de Mendel. Verificaram que este padre obscuro tinha estabelecido
uma lei estatística da hereditariedade. Desde então e em honra de Mendel, a ciência da
hereditariedade passou a chamar-se «Mendelismo».
Pela sua lei ficava-se sabendo que a célula viva continha dentro dela um núcleo e
dentro deste uma esfera mais pequena, o nucléolo. O microscópio revelou ainda a
existência, neste nucléolo, de uma substância em formação filiforme. Chama-se a esta
substância cromossoma, isto é, «corpo corado», porque absorve o estanho quando é
preparado para o microscópio e torna-se assim fácil de observar. Está hoje assente que o
cromossoma exerce um certo papel no problema da hereditariedade.
Quando se desenvolveram as teorias de MendeI, reconheceu-se que o cromossoma
consistia em pequeninas unidades chamadas «fatores», descobrindo-se mais tarde outras
ainda menores a que se deu o nome de «Genes». Certas características hereditárias, como
as dimensões das ervilhas, longas ou curtas, foram consideradas como «dominantes», ou
«recessivas», Pouco a pouco foram aparecendo várias espécies de «genes». Há no homem,
para a cor dos olhos e da pele, para as diferenças de altura, para a forma do nariz, orelhas
etc. cada um deles sendo dominante ou recessivo em relação a outro gene específico. A
hereditariedade é hoje, em concordância com o Mendelismo, a maneira como certos genes
se combinam ou se conservam desalinhados.
Muitas experiências se fizeram nesta parte da biologia para criar novas variedades.
Aqui há anos conhecia-se uma qualidade muito prolífica de trigo, mas excessivamente
sujeita a uma doença chamada «ferrugem». Por outro lado, havia na Rússia uma outra
variedade, menos prolífica, mas que resistia àquela doença. Cruzando estas duas
variedades, para reforço das suas qualidades respectivas, obteve-se uma nova espécie de
trigo. Muito se tem feito atualmente em Genética, para esclarecer o complicado problema
da hereditariedade.
Atualmente estas teorias Mendelianas, tão úteis na sua aplicação prática, tiveram tão
largo alcance que Bateson, de Inglaterra, um dos mais brilhantes Mendelianos, chegou a
conclusões surpreendentes em 1914.
Admite-se que todo o organismo vivo descende duma célula original que se forma do
protoplasma. Ao desdobrar-se em duas, estas em quatro e assim sucessivamente, todas
elas contêm a mesma substância da Célula-Mãe; todos os organismos, desde a bactéria ao
mais alto gênio, são descendentes em linha direta dessa primitiva célula. Desde que nada
do exterior se lhe vem juntar, é evidente que todas as qualidades geniais de Shakespeare,
Beethoven e outros luminares devem ter pré-existido na célula original, nalgum dos
«genes» ou «fatores». Bateson tomou para ilustração desta ideia a maçã.
Todas as suas variedades, que montam hoje a 2.000 ou mais, provêm, desde séculos,
de uma variedade silvestre, a macieira brava. Na célula gérmen do fruto primitivo devia
haver, de um modo misterioso todos os genes que, uma vez combinados, produziram as
variedades hoje conhecidas. Por outras palavras, a macieira brava é não se sabe porquê,
uma exposição hortícola de todas as macieiras passadas e futuras. Nada se acrescentou a
essa macieira Mãe; tudo o que sobreveio não é mais que uma combinação dos genes ou
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fatores primários. Se, por qualquer incidente, viessem a desaparecer todas as variedades de
maçãs, ficando apenas a brava, é possível que de novo, pelo cruzam ente e seleção, se
produzissem outra vez as duas mil e tantas variedades conhecidas. A evolução por
conseguinte nada acrescentou, mas apenas escolheu determinadamente de todo o
armazém original de potencialidades uma certa parte do que já residia na primitiva célula,
quando esta veio à existência.
Bateson, então, aventurou-se a dizer que, visto que tudo existe no protoplasma,
«Shakespeare já existia numa partícula ínfima de protoplasma, do tamanho duma cabeça
de alfinete». A hereditariedade não veio, pois, acrescentar deliberadamente, no caso de
Shakespeare, a mínima parcela de vocação literária ou poética, de geração em geração,
como gotas de água caindo num jarro até o fazer trasbordar.
Por outro lado, as qualidades eminentes de Shakespeare já existiam na célula original.
O que a hereditariedade fez, quando Shakespeare nasceu, foi combinar os genes
necessários para que ele manifestasse a sua constituição sensitiva, a sua imaginação e
outros atributos característicos do gênio.
Bateson, ainda foi mais além; descreveu a diferença entre Shakespeare e outros
espécimes normais que não são gênios. Comparava o homem a um órgão de muitos
«Tubos» para produzir várias Tonalidades. Todos nós somos órgãos e dispomos de vários
«tubos», uns para nos darem os atributos vulgares e outros os de gênio.
Assim, a riqueza de tonalidade dum órgão depende do número de tubos que entrem
em ação. No caso de Shakespeare, todos os tubos foram chamados à atividade; por isso ele
é um gênio.
Quanto a nós nem todos os tubos foram postos em jogo, por isso não somos gênios.
Mas se a natureza fosse induzida a fazer funcionar todos os tubos, então cada um de nós
seria um Shakespeare. O que segue são palavras de Bateson:
«Creio firmemente que os merecimentos artísticos da humanidade não provêm de
qualquer coisa que se adicione ao homem vulgar, mas de fatores que, pela sua ausência,
impediram nas pessoas normais o desenvolvimento desses méritos. Eles devem ser, quase
com certeza, postos em atividade, graças à libertação de poderes, normalmente obturados.
O instrumento existe, mas está «parado».
Uma outra descoberta em biologia é mais importante, como revelação do esforço
oculto nos processos da natureza.
É o princípio formulado por Haeckel de que a ontogênese é uma recapitulação da
filogênese. Por outras palavras, a história do feto é a recapitulação da história da raça. É de
todos conhecido que se pusermos a par três embriões, um dum ser humano, outro dum
cão e outro dum peixe, todos eles são semelhantes. Isto quere dizer que o corpo humano,
para chegar à sua forma própria, teve que passar pelo estágio do peixe.
Sabe-se igualmente que possuímos certos vestígios estruturais que revelam a nossa
descendência animal. O apêndice vermiforme, não é mais que um resquício do segundo
estômago dos ruminantes.
Cada organismo é, portanto,
«numa grande extensão do seu desenvolvimento, um epítome das sucessivas
transformações que se deram nos antepassados das espécies por que passaram, no
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decurso da sua evolução histórica».
Mas, que misterioso processo é este, pelo qual a célula humana, composta de tênues
grânulos de protoplasma, rememora as vias de construção do seu protoplásmico
antepassado, quando era peixe? O mistério ainda não foi explicado; mas é evidente que
todas as teorias de reprodução mecânica, como se um relógio se desdobrasse
mecanicamente noutro relógio, devem ser postos à margem.
A posição atual da ciência é ainda, em larga escala, a seguinte: «não se pode ver o
bosque por causa das árvores». É em tudo análogo à humorística descrição feita por um
escritor americano, quando caricaturava a velha administração germânica:
«Eles constituíram uma comissão de trinta e seis Senhores Professores, para estudar
os ovos, os quais se entregaram a um estudo complicado; depois, formaram outra comissão
de Senhores Doutores, para se ocuparem das galinhas com toda a espécie de estatísticas:
mas, no fim disto tudo, esqueceram-se de reparar na relação que existe entre as galinhas e
os ovos».
Os múltiplos aspectos do progresso científico vão lentamente convergindo. Os
Teósofos já de há muito descobriram essa convergência, mas só agora é que alguns homens
de ciência, aqui e além, estão notando o fato. Todos os homens de ciência se veem hoje a
braços com a vastidão do campo científico. Cada investigador, se tem a peito obter algum
resultado positivo no domínio das descobertas, tem de confinar-se cada vez mais num
cantinho do grande campo da ciência.
Isto levou alguém a dizer espirituosamente que «o especialista é aquele que sabe cada
vez mais e mais do menos e menos». É precisamente o que se dá hoje com os
investigadores da ciência. Cada seção do conhecimento científico tem de ser tão dividida e
subdividida que, para um aspirante a sábio se celebrizar, tem de reconhecer a verdade
daquele espirituoso dito. Conforme o comentário dum outro escritor, «o jovem aspirante
está em risco de se desenvolver como um ovo cozido só dum lado». Mesmo os grandes
cientistas mal têm tempo de observar o campo da ciência como um todo, e ver a resultante
diagonal de todos os seus inúmeros movimentos.
De vez em quando, apesar disso, aparece um espírito brilhante que o consegue. Assim
aconteceu a Crookes, quando era Presidente da Associação Britânica de Bristol, em 1898.
Referindo-se às afirmações feitas em 1874 por Tyndall, seu predecessor na cadeira, Crookes
disse no seu discurso:
«Um meu eminente predecessor nesta cátedra, declarou que «por uma necessidade
intelectual, eu transponho a fronteira da evidência experimental e descubro nessa mesma
matéria - que, na nossa ignorância dos seus poderes latentes, e não obstante a nossa
professa reverência pelo seu Criador, nós temos até aqui coberto de opróbrio, - a potência
e a promessa de toda a vida terrestre». «Eu prefiro inverter o apotegma e dizer que vejo na
Vida a potencialidade e a promessa de todas as formas da matéria».
Outros dois distintos homens de ciência, Jeans e Eddington, emitem análogas opiniões.
Jeans com a clareza da sua exposição, ensinou ao público para onde a ciência caminha,
como vamos ver nas citações do seu livro O Universo Misterioso.*
* As citações encontram-se em pontos separados e não seguidamente como eu as
coloquei.
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O seu ponto de vista é estritamente o dos físicos, e ele não o liga àquela conclusão a
que se chegaria se a biologia se prestasse a ser mensurada, como uma vasta extensão de
terreno. Diz Jeans :
«Hoje reconhece-se, quase por unanimidade, mormente no campo da física, que o
pensamento cientifico tende para a concepção de uma realidade não mecânica; o universo
começa a ser encarado, mais como um grande pensamento, do que como uma grande
máquina.
Se isto assim é, o universo pode melhor ser retratado, embora muito imperfeita e
impropriamente, como pensamento puro; pensamento que, à falta de melhor termo, pode
ser traduzido como de um pensador matemático.
Da mesma maneira, um estudo científico da ação do universo sugeriu a conclusão que
se pode resumir, ainda que dum modo imperfeito e inadequado - visto não termos outra
linguagem ao nosso alcance senão a que deriva das experiências e conceitos terrestres - de
que o universo parece ter sido concebido por um matemático puro.
Quanto a mim, as leis a que a natureza obedece, sugerem menos a ideia daquelas a
que obedece uma máquina no seu movimento, do que aquelas a que obedece um músico,
compondo uma fuga ou um poeta, escrevendo um soneto.
Os movimentos dos elétrons e átomos não se assemelham aos das diferentes partes
duma locomotiva, mas antes aos dos dançarinos num cotillon.
... Da evidência intrínseca da sua criação, o Supremo Arquiteto do Universo já começa
a aparecer como um puro matemático».
Quando Jeans sugeriu estas ideias de pensador matemático, muitos se lembraram do
velho dito «Deus geometriza», que era o tema dos Platônicos e Estóicos.
O ponto de vista materialista que era inevitável na ciência, não queria de modo algum
significar que todo o cientista fosse materialista, e não acreditasse na base espiritual do
Universo. Nenhum nome houve maior em física do que Clerk Maxwell. Como homem de
ciência não podia permitir que as crenças religiosas se sobrepusessem às suas observações
e juízos. Mas pessoalmente, como indivíduo, tudo quanto observou do Universo é dado,
por uma forma cheia de beleza, no hino que escreveu em 1833, do qual destacamos os
seguintes versos finais:
«Através das criaturas que Tu fizeste,
O brilho da Tua glória se revela;
Seja a eterna verdade ostentada
Na Sua substância transitória,
Até que a verde terra e o oceano grisalho,
O maciço penedo e as tenras ervinhas
Venham também contar a mesma história sem fim,
«Nós somos a Verdade enroupada na forma».
Ensina-me a ler as Tuas obras,
Para que a minha fé, acumulando novas forças,
Possa caminhar de mundo em mundo,
Prosseguindo na frutuosa busca da Sabedoria;
Até que, o Teu sopro impregnando o meu espírito,
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Eu possa proclamar o eterno credo,
Mil vezes renovando o glorioso tema,
- Deus, nosso Senhor, é na verdade Deus!»
Acontece algumas vezes, que um assunto obscuro para uma inteligência brilhante,
apareça luminosamente claro a uma criança, cujo mental ardente se mostra ainda sensitivo
à visão direta da intuição. Isto é ilustrado por um incidente que sobreveio com o professor
W. B. Bottomby:
«Estava ele ensinando botânica ao auditório duma escola elementar; explicou-lhes que
os homens de ciência sabiam tudo a respeito do protoplasma e que o professor Huxley lhe
chamava «a base física da vida»; mas, acrescentou ele, não sabemos o que dá ao
protoplasma a sua energia vital, o seu poder de vida e crescimento. Dele procedem todas
as coisas e nada mais sabemos. A porta fechou-se para nós. Por detrás dessa porta, de onde
vem todo o impulso, não há senão mistério - um mistério insondável. Então ouviu-se
distintamente uma voz de criança perguntar: «Olhe lá, não estará Deus atrás da porta?»
Para resumir tudo quanto está acontecendo na investigação científica moderna,
podemos dizer que o Materialismo já não constitui um Evangelho, que possa ser aceito por
um mental plenamente desperto para os fatos da ciência. Não quero com isto dizer que os
ensinamentos da religião relativos à existência de Deus tenham sido provados. O que hoje
existe é uma prova lógica de que o Universo, na sua origem e no seu funcionamento, não
pode ser mecânico, «um mero e fortuito concurso de átomos». Se, portanto, qualquer
pessoa se sentir inclinada a acreditar na existência de Deus, nada há na ciência para rebater
essa crença, como se imaginou quando Darwin escreveu a sua grande obra, em 1859.
Entretanto, a proclamação de que «Deus geometriza» não basta para dar uma base
adequada a uma filosofia de crença e conduta. É necessário ir mais além.
A ciência, quando anunciou o homem como o mais alto produto da natureza, disse
também que a lei para o progresso do homem era a mesma que a do progresso dos brutos,
isto é, a luta pela existência, onde o mais fraco é espezinhado e levado à parede pelo mais
forte.
Nem todos os sábios acreditaram completamente na concepção da sobrevivência dos
mais aptos, porque se a lei da natureza é a mesma para o homem e o bruto, então, como
afirmou um escritor, «A Natureza é o Deus dos patifes». É impossível acreditar que essa
Natureza que gerou o homem do protoplasma, se propõe criar o super-homem
selecionando os indivíduos egoístas e cruéis, que embora gigantes intelectuais e na força do
caráter, oprimem os mais fracos e exploram o gênero humano em seu benefício. Se é lei da
Natureza ir avançando do bom para o ótimo e do ótimo para o melhor, as gerações dos
homens que hão de produzir os super-homens, devem ter uma lei diferente da dos brutos,
como lei da sua existência.
Essa lei tem de ser inevitavelmente a lei do auto sacrifício, em que o mais forte serve o
mais fraco e não o explora. Será somente quando o homem mais evoluído e portanto o
mais apto para sobreviver na espécie humana, sentiu a sua humanidade para com aqueles
que parecem inaptos para sobreviver, que o homem pode vestir a túnica do Super-homem.
Mas esta concepção de um Super-homem, o verdadeiro herói, cheio de compaixão e
amor do próximo, forte de todos os poderes, não tem probabilidade de surgir como
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resultado dos presentes métodos de investigação científica. Estes métodos estão hoje
estritamente limitados aos processos mentais. Mas o mental tem sérias limitações, muito
maiores do que a média dos obreiros da ciência pode supor.
Jeans reconhece quais são essas limitações e diz:
«O nosso mental só pode tomar conhecimento das coisas dentro dele e nunca das
coisas fora dele.
Assim, nunca poderemos conhecer a natureza essencial seja do que for, como por
exemplo, um centímetro ou um comprimento de onda, coisas que existem nesse mundo
misterioso fora de nós, e que o nosso mental não pode penetrar; mas, podemos conhecer a
razão numérica de duas quantidades de natureza semelhante, por mais incompreensíveis
que elas possam ser individualmente».
E todavia, sem se saber a «natureza essencial» duma coisa, não há grandes
probabilidades de se chegar ao seu verdadeiro conhecimento. Mas se o mental não tem
essa faculdade, tem-na a intuição. É só quando esta nova faculdade desponta na
consciência que o aspecto vida da Natureza fica compreendido.
Já Bergson recusara a supremacia da inteligência como eficaz reveladora da verdade.
Só na hora em que a intuição começa a manifestar-se no indivíduo ele consegue ver toda a
natureza a uma nova dimensão.
É para esta nova dimensão que os Teósofos se encaminham.
A Teosofia sustenta que a palavra ciência não deve cobrir apenas o que podemos
observar com os nossos cinco sentidos, mas tudo quanto possa ser apreendido por
qualquer outra faculdade do homem. Todo o aspecto do Universo, visível ou não, deve ser
analisado e observado; nenhuma atividade, seja qual for, do processo da vida deve ficar
ignorado. A palavra evolução deve abranger, não só as atividades da matéria, mas também
as da vida e da consciência. É só depois de se analisar, não só o que hoje é reconhecido
como ciência, mas também o que respeita à religião, filosofia, arte e economia, numa
palavra, todas as atividades do homem, que se pode obter o verdadeiro conhecimento.
O Teósofo, portanto, tenta primeiro que tudo examinar toda a verdade no seu amplo
campo de ação. Quando assim proceder, não só com o mental, mas com a intuição, pondo
igualmente em jogo o senso estético, que revela a proporção e a beleza, a sua mente
concebe aquele plano que «poderosa e suavemente rege todas as coisas». A melhor
maneira de descrever o que então vê é pela palavra dos Estoicos, o Logos.
Desde que, finalmente, ele descobre esse plano, novo passo a dar é compreender o
seu significado. Para isso tem que transcender o mental que lida com os processos da
matéria mecânica, e entrar nos domínios da intuição, para compreender o processo da vida.
Como há de o homem desenvolver a sua intuição, esta faculdade a que os Hindus chamarem
«a percepção dos santos sábios», isto é, a forma de conhecimento que caracteriza os
santos que estão perto da perfeição ou já a realizaram?
Este assunto abrange um vasto campo, e por isso, a técnica do desenvolvimento
intuitivo só pode ser aqui apenas sugerida. Há dois caminhos fundamentais, possíveis a
todos os homens. O primeiro é compreender a unidade de todo o gênero humano, e viver
dentro dessa unidade, com todas a as suas emoções purificadas. A teoria materialista da
ciência tende a fazer do homem o centro do esquema, e a acentuar a sua individualidade à
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custa dos outros. O ponto de vista espiritual duma ciência mais elevada faz do grande todo,
que é o gênero humano, o verdadeiro centro. A técnica de vida e ação que o Teósofo tenta
desenvolver é ministrada, em termos sublimes, no manual Teosófico da vida espiritual A
Voz do Silêncio.
«Deixa a tua alma prestar ouvidos a todo o grito de dor, como o lótus descobre o seu
coração, para beber o sol da manhã.
Não deixes o sol ardente secar uma lágrima de dor, sem que tu primeiro a tenhas
enxugado, nos olhos daquele que sofre.
Mas deixa que cada lágrima candente do homem caia no teu coração e nele
permaneça; nem dali a sacudas, sem que a dor que a causou se tenha desvanecido.
Estas lágrimas, ó Tu, cujo coração é cheio de misericórdia, são os rios que irrigam os
campos da caridade imortal».
Porque, embora o homem não seja inteiramente como alguns gregos afirmavam, «a
medida das coisas», há todavia um laço subtil e direto, entre ele e a verdade. Por qualquer
modo misterioso, o homem é uma das chaves do tesouro da verdade. Há muito já, foi dito
que compreender o homem é conhecer Deus. O poeta Donne revela este mesmo fato nos
seus versos,
«O homem pertence ao mundo, mas o seu coração É um epítome do grande livro
divino
Das criaturas, e o homem não tem necessidade de olhar para mais longe.»
É quando o homem se volta para o seu coração, que ele aprende melhor a
compreender os segredos da Natureza. E quando aprende a amar a natureza está mais
prestes a atingir a compreensão, tanto da mais alta humanidade, como de Deus.
Um segundo método de nos identificarmos com a unidade da Vida é estabelecer uma
ponte entre nós e a Natureza. Cada aspecto que ela nos apresenta, as cordilheiras de
montanhas e os mares, as nuvens e as quedas de águas, as modestas florinhas que bordam
os caminhos, tudo reflete a unidade do Universo; cada uma destas coisas é uma porta
aberta para a compreensão. Tanto as flores do caminho, como os mais humildes dos seres
vivos, todos palpitam com a mensagem da unidade do Cosmos. O microscópio revela-nos a
maravilhosa beleza da estrutura dos seres delicados; o que seria se pudéssemos
compreender a essência da vida, dentro das criaturas que construíram tais perfeições?
É também à medida que o individuo se exercita na apreciação da beleza criada pela
arte, que ele desenvolve a intuição, pela resposta estética da sua sensibilidade. Sabendo
apreciar a arte, basta um passo em frente para poder criá-la. E criar é começar a
compreender. A verdadeira compreensão não é nunca o resultado de um mero processo de
observação e contemplação. É igualmente indispensável a ação a quem aspirar a
compreender com justeza. É só quando um homem se esforça por mudar o seu ambiente,
que começa a reconhecer o significado do processo da Natureza que o produziu. É na ação
que dele irradia que a sua sabedoria oculta começa a refletir-se. É quando se lança em
plena ação que o homem consegue ver, com os olhos da intuição, o prodigioso plano do
Logos. Então, necessàriamente, há de tentar tornar a sua ação paralela à Grande Ação.
Quando realizar essa tentativa, a intuição irradiará resplandecente de dentro dele,
revelando uma unidade tal com a Verdade que a razão por si só nunca poderia atingir.
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Francisco Bacon previu esse grande período, em que se abrange todo o panorama da
Natureza. Ele observou que na primeira parte dessa descoberta o resultado seria uma
forma qualquer de ateísmo; mas igualmente previu o estágio a seguir quando disse, «uma
filosofia superficial leva os homens a esquecer Deus, dando demasiada importância às
coisas secundárias; mas uma filosofia profunda torna a reconduzir o homem para Deus».
Não se pode descrever com palavras o que o homem descobre do labor do Mental
Divino que é a verdadeira ciência de todo o ser. Não se aventurando a essa impossibilidade,
os sábios da Índia disseram: «Se fôsseis dizer isso a uma haste seca, ela vestir-se-ia logo de
folhas e de flores».
Disseram igualmente, referindo-se a alguém que já tinha alcançado a visão da eterna
Verdade: «A tua face brilha como se tivesses conhecido Brahman. Quem foi que te
ensinou?»
Há uma descoberta possível da vida, não só através da ciência como ela é hoje, mas
também através doutra ciência maior, chamada Teosofia, que mostra como a Vida, a
despeito de todas as suas tragédias, é um botão que se vai abrindo lentamente, até se
tornar numa flor de maravilhosa beleza. Os cientistas modernos são os pioneiros desta
grande era que há de vir. Mas na sua vanguarda destaca-se o pequeno grupo de Teósofos
que tentam demonstrar que toda a Natureza é o «Plano de Deus, que é Evolução».

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As crianças - Agentes de Deus

O período do mundo em que vivemos torna-se notável por um grande número de


movimentos, que têm por objetivo a regeneração da humanidade. Há hoje mais idealistas e
reformadores do que houve, provavelmente, em qualquer época anterior. Em todos os
países, o escol da sociedade sente o dever de transpor as suas atividades egocentristas, a
fim de se abolir a pobreza, a ignorância e a doença, no campo social, e trabalhar, no campo
político, pela liberdade e pela democracia. Por toda a parte o mundo está sendo
reconstruído.
Entre os muitos esquemas de reconstrução, é particularmente conhecida a Sociedade
das Nações e o seu propósito de abolir definitivamente a guerra, criando no mundo o reino
da paz. Quer se acredite quer não que ela consiga este desideratum, o seu trabalho não
deve ficar ignorado. Mas, por muito grande que seja a obra da Sociedade das Nações, existe
ainda outra mais importante, da qual a maior parte da gente nada sabe, já porque a
imprensa poucas informações dá sobre ela, já porque os seus autores não são inclinados a
falar de si próprios.
É a obra «em prol da Criança». Há esquemas já esboçados, em quase todos os países,
para o bem estar da criança, e poderiam revolucionar completamente a civilização, se fosse
possível encontrar os fundos necessários para o seu pleno desenvolvimento. Há dinheiro
para exércitos e armadas, mas nenhum se pode obter para proveito da criança. E ninguém
ignora que, conforme for a criança, assim será mais tarde ou mais cedo o Estado. Se as
crianças forem ignorantes ou descuidadas, quem poderá duvidar de que a seu tempo a
política do Estado se tornará mesquinha, falta de simpatia e dura? Porque as crianças
ignorantes e descuidadas de hoje hão de ser os estadistas do futuro.
Os estadistas e políticos estão tão sobrecarregados com as necessidades dos adultos,
que não podem trazer as crianças ao campo da sua visão. O Ministério da Educação, seja de
que país for, é, por via de regra, a «Gata Borralheira» entre os Ministérios que formam um
Gabinete. Se algum Estado prestar a devida atenção ao problema educativo, constituirá
uma exceção.
Para provar quão pouca previsão têm os grandes chefes nacionais sobre esta questão
da criança, basta citar um incidente passado com Pestalozzi que nasceu na Suíça em 1746 e
viveu oitenta e um anos. Pestalozzi pode bem chamar-se o Pai de todos os esquemas para a
educação racional da criança. Ele não só tinha uma grande visão do que seria uma criança
feliz e sadia, mas despendeu os seus meios de fortuna e sacrificou as suas forcas e a sua
vida para introduzir a nova era a favor da criança. O seu entusiasmo foi tão contagioso que
acorreram de todos os pontos da Europa pessoas para estudarem os seus métodos.
Em 1802 achava-se em Paris, quando Napoleão era o ditador da França. Napoleão não
era só um conquistador e chefe militar; era também um homem com largos sonhos de
civilização. Estabeleceu o Código Napoleônico, que serviu de base às leis de muitos países
contemporâneos; foi também ele quem primeiro falou dos Estados Unidos da Europa.
Pestalozzi encontrou-se com o imperador e procurou interessá-lo num esquema de
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educação nacional para a França. Qual foi a resposta de Napoleão? Apenas estas palavras:
«Não tenho tempo para me ocupar do alfabeto!» Porque, tudo o que Napoleão viu em
Pestalozzi foi apenas um mestre escola, obcecado pelas crianças e sugerindo ideias que não
pareciam ir além de modificações triviais no, esquema da educação então existente.
Mas imaginemos, por um momento, que Napoleão tivesse compreendido; que tivesse
feito de Pestalozzi, Ministro da Educação, e pusesse ao seu serviço um grupo de homens e
mulheres para construir a nova nação francesa, sob o novo tipo de criança que Pestalozzi
teria criado; o que não seria hoje a nova Nação Francesa! Mas Napoleão não soube ver
essas grandes oportunidades como a maioria dos estadistas de hoje estão cegos quando se
trata de esquemas educativos. Mas, no entanto, as mudanças que já começaram a dar-se,
no que diz respeito à educação da criança, pressagiam uma revolução mais vasta e radical
de toda a civilização do que o fascismo, o comunismo, o socialismo, o radicalismo e tantos
outros ismos juntos.
Nesta revolução que começou já, e que um dia inundará toda a Terra e a dominará, há
três nomes que marcarão como os três grandes chefes que foram os dirigentes dessa vasta
revolução. São eles Pestalozzi, Froebel e Montessori. Estes mestres profundaram a natureza
mental, emocional e psíquica da criança.
Mas antes de falar deles, tenho que me referir à esplendida obra feita em prol da
natureza física da criança, em vários países. Os cuidados pré-natais e post-natais da mãe, as
maternidades, as clínicas e hospitais para crianças, casas para férias tribunais de infância o
outros esquemas para o bem-estar da mãe e da criança, merecem todo o louvor e apoio. E
se me limito à consideração da criança como elemento psíquico não é porque desconheça a
magnífica obra já realizada, no campo a que me referi. Que as municipalidades e Estados
façam alguma coisa, ainda que muito pouco, pelo bem-estar da mãe e do filho é sinal de
que a consciência da comunidade já despertou.
A construção de um edifício não pode ir por diante sem um plano. Mais importante
que os tijolos e a argamassa é o pensamento do arquiteto. De um modo semelhante, a
concepção da criança como entidade psíquica é muito mais importante que a atenção
prestada à sua natureza física. De certo, ambas estão em mútuas relações, mas se alguém
tiver uma concepção justa da criança, todos os programas de bem-estar físico se
desenvolverão em direção a um fim sábio e predeterminado.
Os três revolucionários, Pestalozzi, Froebel e Montessori, são grandes porque focaram
a sua atenção na criança como uma alma, como um ser espiritual. Foi por causa do seu
ponto de vista místico, que é o reverso do materialista, que os seus métodos produziram
tamanhas transformações na educação.
Mas Pestalozzi ficará sempre sendo o primeiro, porque ele amava as criança. Elas não
eram para ele um problema educativo; eram a manifestação de Deus. O próprio filho era
por ele assim considerado, quando rezava: «O meu filho será um dia o meu juiz; meu Deus,
auxilia-me, não deixes que eu lance uma nódoa em tão pura alma». Ele sentia o mistério
espiritual da criança quando disse: «Os olhos desses anjos são a maior alegria da minha
vida». Amava de tal modo os órfãos e outras crianças que juntava em volta de si que estas
lhe retribuíam com usura, ainda mesmo quando tinha de as castigar, para seu próprio bem:
e viviam assim em tal uníssono de simpatia que as crianças aceitavam. voluntariamente o
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castigo quando tinham procedido mal. Entre os muitos princípios anunciados por Pestalozzi
há o seguinte, que deveria estar escrito na porta de entrada de todas as Escolas Normais
para treino de professores:
«Nenhuma matéria ensinada vale um cêntimo, se destruir a coragem e a alegria».
Foi por ter um profundo e irradiante amor pelas crianças que ele enunciou um segundo
princípio educativo:
«Ensinar não é o princípio essencial na educação, esse princípio é o amor. Porque o
amor é a eterna emanação da Divindade em nós; é o ponto central de toda a educação».
As mudanças, produzidas na criança por um judicioso sistema de educação, não são
devidas a esse sistema; são devidas ao mestre. Pestalozzi começou a sua obra pelas
crianças mais pobres e na maioria órfãos, a quem nada se fizera para lhes despertar as
faculdades; ele dizia a respeito do seu método de as educar:
«Não conheci nada em qualquer esquema, método ou arte que não começasse da
maneira mais simples: pelo meu amor pela criança. Estava convencido de que o meu
coração transformaria a criança tão subitamente como, na primavera, o sol desperta a vida
na terra, entorpecida pelo inverno; e não fui iludido; assim, antes da neve desaparecer das
nossas montanhas, as minhas crianças ficaram irreconhecíveis.
Froebel começou como ajudante de Pestalozzi, mas mais tarde acrescentou ideias suas
ao problema educativo da criança. Pestalozzi começou pela concepção de que as
faculdades da criança são desenvolvidas pelo exercício. Ele arranjava métodos de treino
para as crianças, de modo a excitar-lhes continuamente o interesse. Froebel acrescentou a
isto a ideia de que o fito estava em provocar na criança uma atividade voluntária. Foi
Froebel que teve a ideia dos jardins da infância Kindergarten em que os professores são os
jardineiros. Esses jardins tornam as crianças espontâneas, alegres e felizes, como elas
naturalmente devem ser, o que não se obtém sentando-as num banco ao lado umas das
outras, «como filas de borboletas pregadas com alfinetes» - conforme a Dr.ª Maria
Montessori as descreveu - dirigidas em cada gesto pelo professor e educadas na convicção
de que o medo e inseparável do ensino e da boa conduta.
A maioria dos pais que mandam os filhos para os jardins da infância e talvez mesmo
muitos dos próprios professores, mal se apercebem da profunda filosofia da vida concebida
por Froebel, mesmo para as crianças. Ele estudou tudo quanto podia extrair de cada
aspecto da vida e da natureza - ciência, filosofia, arte - de forma a apreender a «unidade da
naturezas». A educação para ele consiste em sentir a unidade da criança e ter
conhecimento do seu Criador, que é Deus:
«Deus revelou-nos na criança, na natureza, na ordem do mundo material e no
progresso do gênero humano, o verdadeiro tipo da educação».
Para Froebel, o único homem feliz, o único cidadão justo é aquele que permanece no
centro, por assim dizer, de todas as coisas da terra e do céu. Para fazer feliz o homem e o
cidadão é mister começar pela criança. O propósito de Froebel, quanto aos jardins da
infância, não era simplesmente proporcionar às crianças lugares onde aprendessem, numa
atividade alegre, mas onde começassem a aprender, com os seus sentidos sutis, a unidade
do homem, da natureza e de Deus.
Dos três revolucionários que mencionei Pestalozzi, Froebel e Montessori, foi este
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último o maior. A Dr.a Maria Montessori pôde fazer uma obra do mais vasto alcance,
porque, nos tempos os dois predecessores, não havia tantos conhecimentos como nos de
Montessori, sobretudo no tocante ao homem e à natureza.
Montessori parte de um axioma que revolucionou, a nossa concepção sobre a criança.
A concepção ,vulgar é que a criança não é mais do que uma frágil criaturinha, sem caráter
nem conhecimento próprio para iniciar a vida e que, portanto, a tarefa dos mais velhos,
pais e professores, é imprimir-lhes lentamente um caráter. Mas o primeiro axioma de
Montessori é que cada bebe tem um caráter e uma consciência prontos a funcionar, se para
isso receberem o estímulo conveniente. A criança não é um pedaço de argila que
moldamos com as nossas mãos numa fôrma concebida pela nossa amorosa imaginação. A
criança tem forma própria, uma individualidade e energias potenciais muito suas. A
educação consiste por conseguinte, não tanto em qualquer coisa que tenhamos a fazer
para a criança, mas muito mais em coisas que devemos evitar fazer, para não interferirmos
no seu desenvolvimento. Para isso, é essencial que compreendamos o que é a criança. Ela é
um mistério, um segredo que nos cumpre descobrir. Montessori diz, portanto:
«O propósito da educação deve ser, primeiro que tudo, descobrir a alma da criança e
efetuar a sua liberação».
«A liberação da alma da criança» torna-se tema educativo, o que significa, não tanto
ensinar-lhe o que ela não sabe nem deseja saber, mas levá-la a expressar aquilo que ela já
sabe. Não quere isto dizer que os pais não amem as crianças nem que os professores,
treinados nas Escolas Normais não sintam interesse em as guiar. O mal consiste em ter,
como ponto de partida, uma concepção errada da criança, como se fosse uma coisa inerte,
que tem de ser despertada à compreensão e à vida.
Mas os ensinamentos de Montessori dizem que a criança, mesmo um bebezinho, está
impaciente por acordar e compreender e, mais ainda, que se esforça por compreender e
agir. A tentativa da criança fica incompreendida, e tanto os pais como os professores
travam-lhe esses impulsos; nos seus esforços por ajudá-la reprimem-na, e tudo isto é feito
na mais amorosa intenção de ajudar a criança. A mãe Natureza, através da mãe da criança,
preparou no seu seio o ambiente apropriado ao embrião físico. Mas há também o embrião
psíquico e é o dever dos adultos proporcionar o ambiente mais favorável para essa parte
psíquica da criança.
É esta a tônica dominante de Montessori - a vida psíquica da criança; e assim, diz:
«O progresso realizado nos cuidados a dar à criança foi tomar-se na devida conta não
só a vida física como a psíquica, por isso se diz muitas vezes que a educação deve começar
desde o nascimento. »
Montessori mostra que os adultos impedem geralmente o desenvolvimento psíquico
da criança. Eles impõem-lhe o seu próprio padrão e tentam forçá-la a moldar-se a ele. Não
tendes visto uma mãe ou uma criada, segurando uma criança pela mão, andando no seu
passo habitual de adulto e obrigando a criança a precipitar os seus passinhos para as
acompanhar? É o que acontece sempre. Os mais velhos têm um ritmo seu, para tudo -
movimento, pensamento ou reações: absorvidos nesse ritmo não compreendem que o
ritmo da criança seja completamente diferente.

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Uma característica notável do método de Montessorí é que os mestres pouco têm a
fazer na maneira de ensinar, no significado vulgar da palavra. O ritmo da criança, a sua
psicologia, os modos de expansão da sua consciência tem sido estudados; é esta ciência
que os professores devem aprender. Mas a função do professor é preparar o material de
que a criança carece para o seu estudo, que ela por si mesma organizará. Ela estudará por si
e pela forma que lhe for mais agradável e propícia. O professor não diz: «Agora, meninos,
vamos fazer isto». Primeiro, porque se não pode exigir de todas as crianças a mesma coisa;
e segundo, porque elas não precisam que lho digam. Porque as crianças estão ansiosas por
executar não o que o professor planeja, mas o que elas próprias planejam. A mais frisante
ilustração do seu método é o que as crianças de Montessori declaram nesta frase:
«Ensina-me a fazer isto sozinho».
Queixamo-nos, muitas vezes, de que as crianças não prestam atenção e são
turbulentas e impertinentes. Mas é porque não as ajudamos a achar aquilo que as
interessa. Montessori, diz ainda:
«Logo que as crianças encontram o que as interessa, deixam imediatamente de estar
turbulentas e a sua distração desaparece como por encanto.»
No método de Montessori, exige-se que os pais e professores tenham o que ela chama
«a humildade espiritual que os prepare para poderem compreender as crianças». Quando o
mestre possui essa atitude mental negativa para com a criança, livre de preconceitos
relativamente à natureza da criança, o espírito do professor atinge uma condição que
Montessori descreve como «predispondo àquele estado do entendimento aberto à
iluminação divina». Assim como São Francisco de Assis, na sua humildade e negatividade
mental, olhava para as aves e lhes fazia prédicas (e diz a história que elas acenavam
afirmativamente com as cabeças aos seus sermões), assim o professor Montessorista, com
a sua atitude mental negativa, se torna um pouquinho santo, com as santas características
de iluminação.
Gostaria de falar mais extensamente sobre o método de Montessori, mas não me é
possível fazê-lo aqui. Preciso, porém, de chamar a vossa atenção para um notável
desenvolvimento desse método. Durante os últimos anos, Maria Montessori não só veio a
ser quase santa, mas começou a ver as crianças com os olhos místicos dos santos, quer do
cristianismo, quer do hinduísmo. Porque em ambas estas religiões, Deus apareceu como
uma Criança Divina, Jesus para os Cristãos e Krishna para os Hindus.
Há também um fato bastante estranho, mas que a minha experiência considera
verdadeiro; é que, se amarmos as crianças, começaremos a compreender Deus de um
modo novo; e inversamente, há uma maneira de amar Deus de tal forma, que todas as
crianças passam a ser-nos queridas.
Não admira, pois, o que disse Montessori: «O que o professor deve procurar é ver a
criança como a viu Jesus». Como a viu Jesus? Todos conhecem o episódio:
«Trouxeram-lhe criancinhas para que Ele as tocasse e os discípulos repeliram as
pessoas que as conduziam.
Mas quando Jesus viu isso, mostrou-se contrariado e disse-lhes:
Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais de o fazer, porque deles é reino de
Deus.
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E, na verdade vos digo, que quem não receber o reino de Deus como uma criancinha,
nele não entrará.
E tomando-as nos braços, pôs sobre elas as mãos, abençoando-as.»
Eu evoco sem cessar a bela frase que Madame Montessori proferiu uma vez, falando
comigo. Chamou ela à criança un piccolo Messia - um pequeno Messias - É esta maravilhosa
concepção da criança, como reveladora dos mistérios de Deus, que ela procura explicar,
repetidas vezes, no seu último livro, A criança. Quero terminar esta parte da minha
conferência com três citações daquela obra. Eis as palavras da autora:
1) «Há alguma coisa de místico na ideia de que o mais frágil bebe tem a sua vida
mental. Ela pode conduzir-nos a contemplar um recém-nascido no mesmo espírito em que
na religião, contemplamos o Menino Jesus: como a encadernação de um Deus
verdadeiramente presente num frágil tabernáculo. Assim, podemos imaginar uma alma
humana, oculta no tenro e impotente corpo de um bebe, uma alma já desenvolvida e
sensível, apesar de muda».
2) «Nunca ninguém poderia prever que a criança encerrasse em si um segredo da vida,
apto a levantar o véu dos mistérios da alma humana; e que represente uma quantidade
desconhecida, cuja descoberta habilita o homem a resolver os seus problemas individuais e
sociais».
3) «Na vívida descrição do Evangelho, transparece a nossa obrigação de ajudar o Cristo
oculto em todos os pobres, em cada prisioneiro, em cada desventurado. Mas se
parafrasearmos a maravilhosa cena e a aplicarmos à criança, acharemos que Cristo vai
auxiliar todos os homens na forma da criança».
«Eu amava-vos e vim despertar-vos de manhã e vós repelistes-me.*
Senhor, quando viestes à nossa casa de manhã, para nos acordar?
E quando foi que vos expulsamos?
A criança que nasceu de vós e que veio para vos chamar, era Eu. A criança que pedia
que a não abandonásseis, era Eu.
Loucos que nós somos! Era o Messias! Era o Messias que vinha acordar-nos e ensinar-
nos a amar. E nós vimos nele apenas a maldade de uma criança e deixamos perder os
nossos corações.»
* Referência a uma cena narrada no livro, em que uma criança acorda, de manhã cedo,
vai para beijar seus pais e é repreendida. «Não te tínhamos dito que não nos acordares
de manhã?» A criança replicou, «Eu não vos acordei, apenas vos toquei porque queria
dar-vos um beijo».
Haverá ainda a descobrir uma compreensão mais plena da criança, depois de
Montessori? A minha resposta é Sim; e não só vai a caminho de ser descoberta, mas até já
o foi, de fato, há quarenta anos, por um dos nossos chefes teosóficos. Refiro-me a
Leadbeater, que faleceu em 1934 com 87 anos de idade. Há quarenta e quatro anos fez
uma conferência intitulada As nossas relações com as crianças; essa conferência tem sido
reeditada várias vezes e é bem conhecida de todos os Teósofos que têm trabalhado em
proveito das crianças.
Este Teósofo, Charles W. Leadbeater, tinha uma grande faculdade - a de saber
trabalhar com as crianças, Foi durante algum tempo pastor numa paróquia da Igreja
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Anglicana, ensinava as crianças a cantar em coro e dirigia o trabalho nas Escolas Dominicais;
mais tarde, foi diretor de uma escola de rapazes em Ceilão. Ele é bem conhecido por um
grande número de obras sobre clarividência e descreveu, há 41 anos, o que tinha
observado nas crianças, por aquela sua faculdade. Era, exatamente o que Montessori
conseguiu descobrir, pelo seu longo estudo sobre os pequeninos. Vou agora expor-vos o
que os Teósofos têm a dizer a respeito do bem-estar da criança e da educação, em geral.
Não calculais, provavelmente, quanto os Teósofos têm produzido neste ramo de
educação. Há hoje um grande movimento chamado New Education Fellowship (A Liga da
Nova Educação).
Tem-se espalhado por quase todos os países da Europa e do Norte da América e quase
todos os dirigentes notáveis da educação se encontram entre os seus principais
funcionários ou dentro das suas comissões. Publica uma revista em três línguas. Tem
realizado congressos nas principais capitais da Europa, os últimos dos quais tiveram lugar
na Austrália e na África do Sul. Mas este poderoso movimento da Nova Educação começou
na Inglaterra, por um grupo de Teósofos que fundaram a Theosophical Fraternity in
Education (A Fraternidade Teosófica na Educação). Alguns. Teósofos ricos gastaram
milhares de libras em escolas experimentais, em ligação com esta obra de fraternidade. A
Índia, já tem hoje escolas dessa orientação em vários locais; há uma escola na Austrália,
outra na Nova Zelândia. De fato, um dos primeiros resultados dos nossos estudos.
teosóficos é compreender a criança sob um novo ponto de vista.
O A. B. C. deste ponto de vista teosófico é considerar a criança como uma alma. Mas
não é uma alma de bebe, que começa pela primeira vez a sua vida. Cada bebe é uma alma
que já traz, na sua bagagem, um longo passado de experiências. progressivas. Apesar de se
considerar um recém-nascido como um desamparado, o corpo do bebe é o representante
na terra de uma alma imortal que viveu e agiu noutros corpos, em épocas passadas, e
encarnações anteriores.
Por conseguinte o cérebro do bebe tem armazenado, dentro de si, caráter e cultura.
Naturalmente, enquanto o cérebro não estiver organizado e desenvolvido, nem o caráter
nem a memória da alma se podem manifestar. Quando Montessori diz: «Há uma parte da
alma da criança que ficou sempre desconhecida, mas que deve ser compreendida» a
explicação é que, na criança estamos tratando com uma alma que já está cheia de
experiências e faculdades. Vou agora citar o que C. W. Leadbeater escreveu há 41 anos:*
«Agora, se quisermos compreender as nossas obrigações para com a criança, devemos
primeiramente considerar como ela chegou a ser o que é, quere dizer - devemos fazê-la
regressar em pensamento às suas anteriores encarnações. Talvez fosse, há quinhentos
anos, um cidadão romano, um filósofo de Alexandria, talvez um primitivo ibero; mas
quaisquer que tenham sido as suas circunstâncias exteriores, ela tem uma disposição que
lhe é própria - um caráter com qualidades várias, mais ou menos desenvolvidas, umas boas,
outras más».
* Our Relation to Children, por C. W. Leadbeater, brochura publicada pela Theosophical
Publishing House, Adyar, Madras, Índia.
A alma da criança acabou a sua última encarnação, da mesma maneira como toda a
gente finda a sua vida terrestre, com qualidades boas e más. Mas quando ela volta à terra,
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«Observamos que as suas qualidades não são, como dantes, qualidades em ação;
existem apenas em germes e, por enquanto, exercem unicamente a sua influência em
assegurar-se um possível campo de manifestações, fornecendo a matéria mais conveniente
para a sua expansão nos vários veículos da criança. A possibilidade de desenvolver mais
uma vez, nesta vida, as mesmas tendências definidas, como na vida anterior, depende em
larga escala do estímulo ou da resistência oferecidos pelo ambiente, durante os seus
primeiros anos. Quaisquer dessas tendências, boas ou más, podem ser prontamente
incitadas à atividade ou deixadas como que esmorecer, à falta desse estímulo. Se forem
estimuladas, elas tornam-se na vida do homem um fator mais poderoso do que foram na
sua anterior existência; se forem contrariadas, ficam durante toda a vida como um germes
que não frutificou e não podem fazer a sua aparição, de forma alguma, na sua nova
encarnação.
É esta a condição da criança, quando pela primeira vez é confiada aos cuidados de
seus pais. Não se pode dizer que ela possua já um corpo mental ou astral definido, mas tem
em volta e dentro de si a matéria com que eles hão de ser construídos.
Ela possui tendências de toda a espécie, algumas boas, outras más, e é em
conformidade com essas tendências que essa construção deve ser regulada. Este
desenvolvimento, por sua vez, depende quase inteiramente das influências que, de fora,
vêm gravar-se nela durante os seus primeiros anos.
Não podemos fazer ideia da plasticidade desses veículos ainda por formar. Sabemos
que o corpo físico da criança, se o seu treino tiver sido começado suficientemente cedo,
pode ser consideravelmente modificado. Um acrobata, por exemplo, pega numa criança de
cinco ou seis anos, cujos ossos e músculos não estão ainda consolidados como os nossos, e
habitua-lhe gradualmente os membros e o corpo a tomarem toda a espécie de posições,
que seriam absolutamente impossíveis para a maior parte dos adultos, mesmo com um
grande treino. Todavia, os nossos corpos, naquela idade, não diferiam de modo especial do
dessa criança, e se tivessem sido submetidos aos mesmos exercícios, tornar-se-iam tão
flexíveis e elásticos como o seu, o que não poderia acontecer agora que os nossos corpos
estão completamente organizados; e, ainda mesmo que os exercícios se prolongassem, não
lhes poderiam imprimir essa flexibilidade.
Ora se o corpo físico da criança é assim plástico e prontamente amoldável, ainda mais
o são os seus corpos astral e mental. Eles estremecem responsivamente às vibrações que
encontram e são intensamente receptivos a todas as influências boas ou más que imanam
do ambiente em que se encontram. Assemelham-se também ao corpo físico por esta outra
característica - que, embora na adolescência sejam tão susceptíveis e facilmente moldáveis,
bem depressa endurecem e consolidam, e adquirem hábitos definidos que, uma vez
firmemente estabelecidos, não podem ser alterados senão com grandes dificuldades.
Quando compreendermos isto, veremos imediatamente a importância capital do
ambiente em que a criança passa os seus primeiros anos e a pesada responsabilidade que
recai nos pais, devendo estes cuidar que as condições do desenvolvimento da criança sejam
tão boas quanto estiver ao seu alcance. A pequenina criatura é, nas nossas mãos, uma
argila que moldamos quase a nosso talante; a cada momento os germens das boas e más
qualidades, trazidas da última vida estão despertando a atividade; a cada momento, vão
62
sendo construídos esses veículos que hão de condicionar o todo da sua vida futura;
compete-nos despertar os germes do bem e deixar morrer os germes do mal. Numa
latitude cuja extensão nunca foi compreendida, mesmo pelos pais mais extremosos, o
futuro da criança fica dependente da sua vigilância.
Pensai em todos os amigos que tão bem conheceis e tentai imaginar que esplendidos
espécimes da humanidade eles seriam, se todas as suas boas qualidades fossem
enormemente intensificadas, e as menos estimáveis fossem absolutamente expurgadas do
seu caráter.
É este o resultado que podereis produzir no vosso filho, se cumprirdes plenamente os
deveres que tendes para com ele; podeis fazer dele um padrão da humanidade se
quiserdes dar-vos a esse incomodo.
Mas como? direis vós; por meio de preceitos? pela educação? Sim, na verdade muito
se pode fazer por este meios, na ocasião oportuna; mas tendes nas vossas mãos um outro
poder muito maior - um poder que podeis começar a exercer desde o nascimento da
criança ou mesmo antes - o poder da influência da vossa própria vida. Isto é um fado até
certo ponto reconhecido, pois a maioria das pessoas bem educadas têm cuidado com os
seus atos e palavras, diante das crianças, e seriam depravados os pais que usassem de uma
linguagem grosseira ou se deixassem levar por ataques de cólera na presença dos filhos;
mas o que um homem nem sempre concebe é que, se deseja evitar o prejuízo mais grave às
criancinhas, deve aprender a policiar, não só as suas palavras e atos, mas também os seus
pensamentos. É certo que se não pode ver desde logo o efeito pernicioso de um mau
pensamento ou emoção inferior no espírito da criança, mas nem por isso deixa de ser mais
real, mais terrível, mais insidioso, e o seu alcance é maior do que o mal que ressalta à vista.
Se um pai se permite nutrir sentimentos de cólera ou de ciúme, inveja ou avareza,
egoísmo ou orgulho, ainda mesmo que os não exteriorize, as vibrações causadas por eles
no seu próprio corpo astral, bastam para atuar eficazmente sobre o corpo astral da criança,
extremamente plástico, afinando as suas vibrações pelo mesmo diapasão, despertando à
atividade germes desses pecados que possam ter sido trazidos da vida passada. Desde que
esses maus hábitos assentem arraiais, tornam-se excessivamente difíceis de corrigir; e é
isto o que precisamente se dá na maior parte das crianças que vemos em volta de nós.
A aura da criança, vista por um clarividente, tem muitas vezes um belo aspecto - é
pura e de cor brilhante, livre ainda das manchas de sensualidade e avareza e das densas
nuvens de má vontade e egoísmo que tão frequentemente obscurecem toda a vida do
adulto. Nela se podem ver, ainda latentes, todos os germes e tendências de que já falamos
- umas boas, outras más; e assim, as possibilidades da vida futura da criança ficam patentes
aos olhos do observador.
Mas quão triste é ver as mudanças que quase invariavelmente se produzem na aura
dessa amorável criança, no decorrer dos anos, e verificar como persistentemente as
tendências maléficas são alimentadas e favorecidas pelo ambiente, e como as boas são
inteiramente desprezadas! E assim se vão desperdiçando, encarnação após encarnação; e
uma vida que, com um pouco mais de cuidado e de abstenções por parte dos pais e
professores, poderia produzir ricos frutos de desenvolvimento espiritual, fica reduzida
praticamente a zero e, ao terminar, magra colheita deixa para armazenar no ego, do qual
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tem sido uma expressão tão limitada.
Quando observamos o desleixo criminoso com que os responsáveis pela educação das
crianças as deixam constantemente cercadas por toda a espécie de maus e mundanos
pensamentos, deixamos de nos admirar da extraordinária lentidão da evolução humana, e
do progresso quase imperceptível que o ego realiza, vidas após vidas, gastas na luta e no
torvelinho deste mundo inferior. E todavia, quanto progresso se poderia ter obtido com um
pouco mais de atenção!»
Em diferentes passagens, Montessori frisa o fato de serem os pais os únicos
responsáveis da conduta anti social que as crianças manifestam. Ela descreve, com
abundância de exemplos, o orgulho sutil e o ressentimento dos pais que procuram dominar
e esmagar os filhos, como esses pais são inconscientemente egocêntricos, e tudo em nome
da afeição que consagram aos filhos. É a influência dos pais - e também dos mestres e das
amas - que o nosso escritor teósofo descreveu há 41 anos. Eis as suas palavras:
«Devemos, pois, ter a maior cautela no ambiente reservado às crianças; e as pessoas
que persistirem em pensamentos grosseiros e desamoráveis devem finalmente reconhecer
que, enquanto assim procedem, são incompetentes para se aproximarem dos novos, sem
perigo de os infectar com um contágio mais virulento que a febre. Muita cautela se deve
ter, por exemplo, na seleção das amas a quem tantas vezes as crianças têm de ser
entregues, pois é óbvio que, quanto menos as confiarmos nas mãos de criadas, tanto
melhor. As criadas têm, muitas vezes, uma grande afeição pelas crianças a seu cargo e
tratam-nas como se fossem do seu próprio sangue; mas não é este invariavelmente o caso
e, mesmo que assim seja, devemos lembrar-nos que as criadas são quase inevitavelmente
menos educadas do que as patroas e portanto, a criança que foi excessivamente
abandonada à sua companhia está constantemente sujeita a impates de pensamentos de
ordem inferior ao do nível dos pais. Assim, as mais que desejam que o seu filho venha a ser
um homem educado e de inteligência delicada devem confiá-lo o menos possível a
estranhos e sobretudo, tomar cuidado com os seus próprios pensamentos, enquanto olham
por ele.
A grande e capital regra deve ser para a mãe não permitir que em si própria se
alberguem pensamentos ou desejos que não queira ver reproduzidos no seu filho. Mas não
basta esta mera conquista negativa sobre si mesma, porque felizmente tudo quanto se tem
dito sobre a influência e poder do pensamento, aplica-se tanto aos bons como aos maus e,
por isso, os deveres dos pais têm tantos aspectos positivos como negativos. Não só eles se
devem abster com o maior cuidado de reforçar com os seus pensamentos indignos ou
egoístas as tendências que possam existir nos filhos, mas é também seu dever cultivar em si
próprios fortes e generosos afetos, pensamentos puros, nobres e elevadas aspirações, com
o fim de que estes impulsos venham a reagir sobre os entes que lhes foram confiados,
acelerar o que de bom haja latente neles, e criar uma tendência para qualquer boa
qualidade que ainda não esteja representada no seu caráter.
Nem devem ter receio de que esses esforços não colham o seu efeito, por se sentirem
incapazes de seguir a sua ação por falta de visão astral. Para a vista experimentada de um
clarividente todo o processo da transmissão se torna perceptível; ele distinguiria as
vibrações fixadas no mental dos pais pelo iniciar do pensamento; vê-lo-ia irradiar e notaria
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a vibração simpática criada pelo seu contato com o corpo mental do filho; e se renovar as
suas observações por intervalos, durante um período considerável, discernirá a gradual mas
permanente mudança operada no corpo mental, pela repetição do mesmo estímulo ao
progresso. Se os pais possuírem a visão astral, será sem dúvida um grande auxílio para eles
verem exatamente quais as capacidades dos seus filhos e em que direção elas
necessitariam desenvolver-se; mas, se não tiverem ainda obtido essa vantagem, não devem
por isso ter a menor dúvida sobre o resultado, porque este deve seguir matematicamente o
esforço, quer o processo da sua ação possa ou não ser apercebido por eles.
E não só devem os pais vigiar os seus pensamentos, mas também o seu humor. A
criança é pronta em observar e ressentir a injustiça; e, se ela for repreendida por um ato
que noutra ocasião só provocou riso, não é de admirar que o seu sentimento da
invariabilidade das leis da natureza se ache ofendido. Ainda mais: quando a tristeza e as
contrariedades, enevoarem a alma dos pais, como acontece tantas vezes neste mundo, é
obrigação deles tentar evitar quanto possível que o peso das suas mortificações venha
recair sobre a criança; pelo menos, na presença desta, devem fazer um esforço especial
para serem alegres e resignados, para que a triste e plúmbea cor da depressão da sua aura
não se estenda à aura dos filhos.
Mais ainda: muitos pais, cheios das melhores intenções, tem uma natureza inquieta e
melancólica - atormentando-se por ninharias e aborrecendo-se a si mesmos e aos filhos por
coisas que não têm a mínima importância. Se eles pudessem observar por clarividência o
desassossego e inquietação que sofreram as suas auras e pudessem ver como estas
vibrações vão introduzir uma desnecessária agitação nas auras sensíveis dos filhos, não se
surpreenderiam das suas crises de mau gênio e de excitação nervosa, antes se
convenceriam de que são mais dignos de censura do que as crianças. O que os pais devem
ter em vista, como principal objetivo, é conservar um espírito tranquilo e sereno - essa paz
que transcende toda a compreensão - a perfeita calma que provém da confiança em que
tudo acabará bem.
É evidente ainda que o treino do caráter dos pais exigido por estas considerações é, a
todos os respeitos, esplêndido, e que, auxiliando deste modo a evolução de seus filhos, eles
beneficiam num grau incalculável, porque os pensamentos que a princípio se empenharam
em manter com um esforço consciente, por amor de seus filhos, tornar-se-ão em breve
habituais e acabarão por formar o plano de fundo da vida interior dos pais.
Não se suponha que estas precauções se possam desprezar quando os filhos tiverem
mais idade, porque, posto que a sua extraordinária sensibilidade à influência do ambiente
comece logo que o ego toma posse do embrião, algumas vezes muito antes do nascimento,
ela continua, em muitos casos, até ao período de maturidade. Se tais influências, como as
que acima foram sugeridas, se vincaram na criança durante a meninice, o rapaz de doze ou
catorze anos encontrar-se-á muito melhor equipado para os esforços que se lhe depararem
na vida do que outros companheiros, menos afortunados com que se não tomaram
especiais precauções. Mas devemos lembrar que o adolescente se conserva ainda mais
impressionável que um adulto e que o mesmo forte auxílio e guia do plano mental deve
continuar para que os bons hábitos, quer de pensamentos, quer de seções, não venham a
ceder a novas tentações que possivelmente virão a assaltá-los. Posto que nos primeiros
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anos fosse natural, principalmente para os pais, prestarem essa assistência, tudo quanto se
disse acerca das suas obrigações aplica-se igualmente a quem quer que venha a ter contato
com as crianças, seja qual for o seu papel, mormente aos que tomam sobre si as tremendas
responsabilidades do ensino. A influência para bem ou para mal de um mestre sobre os
seus discípulos, não pode ser prontamente medida e, como atrás disse, ela depende não só
de que ele diz ou faz, mas ainda mais do que ele pensa. Muitos professores reprovam
repetidas vezes nos rapazes a exibição de tendências, por cuja criação eles são diretamente
responsáveis; se os seus pensamentos são impuros ou egoístas, eles verão o egoísmo e a
impureza refletidos em volta de si e o mal causado por tais pensamentos não termina com
aqueles que lhes deram origem. »
Vou dar apenas mais uma citação do nosso escritor teósofo, que diz respeito a uma
relação fundamental entre pais e filhos.
«Não podemos deixar de insistir repetidamente e com energia que a família é uma
responsabilidade muitíssimo pesada, de natureza religiosa, por mais ligeira e
impensadamente que ela possa ser tomada. Aqueles que introduzem no mundo uma
criança, tornam-se diretamente responsáveis perante as leis do karma, pelas oportunidades
da evolução que têm de dar a esse ego, e pesadas serão as sanções que cairão sobre eles, se
pelo seu desleixo ou egoísmo, puserem obstáculos no seu caminho ou deixarem de lhe
prestar todo o amparo e guia que esse ego tenha de esperar deles. E todavia, quantas vezes
os pais modernos ignoram completamente essa evidente responsabilidade; quantas vezes a
criança é para eles apenas um motivo de fátua vaidade ou um objeto de impensada
negligência!»
Nos último livro de Montessori, intitulado A Criança indica-nos ela um fato digno de
nota:
«O homem que, até hoje, só construiu um mundo para o adulto, deve meter mãos à
obra e edificar um mundo para a criança».
Mas porque há de ser a criança assim distinguida? E, então os pobres, os doentes, os
cegos e os aleijados? Por que razão a criança em especial? Por um motivo que vou explicar:
O mundo em que vivemos é imperfeito. A maior parte da gente toma-o como ele é.
Não faz esforço algum para o tornar melhor. Mas alguns dentre nós sentem que não
podemos ser felizes enquanto houver tanta miséria e tanta degradação que se podia evitar.
Queremos ardentemente trabalhar em alguma reforma. Para isso precisamos duma visão
clara e de força. Quanto à visão clara, há um grande número de evangelhos reformadores,
mas são um tanto confusos e gostaríamos de saber que esquema de reforma produziria o
maior e mais rápido benefício. E quanto à força, o problema da reforma é tão vasto e
esmagador que ficamos muitas vezes completamente desanimados, e sentimos que é
perder tempo tentar seja o que for.
A visão e a força que necessitamos hão de vir da criança. É por esta razão que intitulei
esta palestra «As crianças, agentes de Deus». Porque, de um modo místico, as crianças
podem abrir-nos um livro de sabedoria e das suas faces alegres podem irradiar raios de
força, para nos encher de coragem.
Como vivemos num mundo de ação, homens e mulheres, lidando nos seus deveres e
ocupações diárias, temos tendência a esquecer que o nosso mundo de ação está enraizado
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no mundo espiritual.
Tudo o que nos inspira para fazermos o melhor e tornarmo-nos melhores deriva, não
deste mundo visível e material, mas doutro que é invisível e espiritual. Os homens chamam
muitas vezes a esse outro mundo Deus e dão o nome de religião, à ponte entre o nosso
mundo e Ele. Há muitas formas de religião. Antigamente, na Índia, o instrutor era o
tabernáculo íntimo da santidade; e aquele que encontrava o seu Mestre, o seu Guru,
encontrava Deus. Esta ponte existe ainda hoje na Índia.
Na Grécia antiga, era a Mocidade a ponte entre o homem e Deus. No Cristianismo da
Idade Média a ponte era a mulher. Para muitos, ainda hoje assim é. Exatamente do mesmo
modo, é a Criança a mais nova das pontes entre Deus e o homem. É este um dos segredos
do mundo de hoje. Foi para nos revelar este segredo que Cristo na Palestina e Krishna na
Índia viveram como crianças.
Se Deus, a indescritível Majestade do universo, a fonte de toda a Verdade e Beleza,
«se fez carne» e viveu num berço e brincou como uma criança, na Palestina e da Índia, foi
por mostrar que todas as crianças têm em si a natureza de Cristo e de Krishna. Se
lançarmos a vista numa nova direção e descobrirmos «o segredo da infância», saberemos
que as crianças são alguma coisa mais do que crianças. Elas são mensageiras de um reino
de beleza, sabedoria e força; elas podem conduzir-nos pela mão ao cume da montanha de
Pisgah e mostrar-nos a terra dos nossos sonhos e esperanças.
Se, tão somente, souberdes amar as crianças ou não as podendo amar, aprenderdes
ao menos a olhar para elas com admiração e intenso desejo de compreender, então é
porque Deus se encontra bem perto. Não é preciso dirigir-vos a uma igreja ou templo para
O achardes nem tão pouco abandonar as cidades populosas e ir procurá-Lo aos campos e às
florestas. Qualquer criancinha vos dirá onde está Deus. Quanto a mim, sei bem onde Ele
está; as crianças indicam-me sempre o caminho.
O mesmo pode dar-se convosco. Se a religião nada vos diz, voltai-vos para as crianças.
Encontrareis nelas uma nova e bela religião que vos revelará o mundo na juventude e na
beleza.
Se pudéssemos construir para todos o mundo perfeito! Ele virá, certamente, um dia.
As crianças de hoje, agentes de Deus, realização essa obra, se lhes dermos tão somente o
auxílio que elas reclamam de nós, quando são pequeninas. Porque em elas atingindo o seu
pleno desenvolvimento, como homens e como mulheres, elas saberão conseguir aquilo
mesmo em que nós outros fracassamos.
Assim eu vos revelo o grande mistério da vida de hoje, As Crianças - agentes de Deus.

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O Trabalho do Cristo no Mundo de Hoje

Afirmam certas pessoas que o Cristianismo faliu porque, segundo esses críticos, a base
da vida civilizada, nas nações Cristãs, é realmente bárbara e nada tem de cristã. A verdade é
que o Cristianismo ainda não foi experimentado. Tomo a liberdade de dizer que há
demasiado Cristianismo e muita falta de Cristo. Porque é que um movimento espiritual
iniciado há dois mil anos, com um evangelho de regeneração de toda a humanidade
conseguiu tão fraco resultado? É porque pouco a pouco, os ensinamentos do Cristo
deixaram de ser compreendidos.
Permiti-me, antes de mais nada, observar convosco, num rápido golpe de vista, o que
se passou com a concepção do Cristo, desde os dias em que Ele surgiu na Palestina.
Verificamos que, quando Ele caminhava entre os Seus discípulos, era, para a maioria deles,
uma espécie de irmão mais velho; muito poucos, dentre eles, percebiam, dum modo
efetivo, alguma coisa da Sua natureza divina. Como sabeis, quando Ele morreu e voltou de
novo, a princípio não o reconheceram. No entanto, era por eles tão amado que n'Ele
pressentiam, em realidade, o florescimento do seu idealismo.
Depois, seguindo esta linha de desenvolvimento, encontramos São Paulo que - embora
jamais o houvesse visto com os seus olhos físicos, - pregava com intenso fervor a doutrina
da «salvação pelo Cristo». Acrescentava, porém, o conceito de que Cristo é, por assim dizer,
o tipo daquilo que todos os homens podem vir a ser, pois São Paulo fala da Idea mística do
«Cristo em vós, esperança de glória». Ele proclama que todos devemos, um dia, chegar à
estatura de Cristo; e que Este é, em Sua grandeza, como as «primícias dos que dormiam».
São Paulo introduz o conceito da existência de uma relação mística entre todos os homens
e Cristo.
Segue-se a isto um desenvolvimento ulterior - digo ulterior porque certos
pesquisadores afirmam que o Evangelho de São João é, evidentemente, posterior aos
escritos de São Paulo - no qual São João nos revela o Cristo sob um aspecto cósmico. Cristo
torna-se o «Verbo», a Razão Divina, o Logos dos Estoicos e de Filon, o Judeu, «feito carne»:
O Logos dos Estoicos, a ordem divina no Universo, o Deus «que geometriza» e assim cria
este universo, viu-o São João espelhado na maravilhosa personalidade d'Aquele que andava
pela Palestina. Essa concepção, a de que a totalidade do universo, em seu esplendor e
sabedoria, se pode refletir em um ser humano, não fazia parte da doutrina dos Estoicos;
São João trouxe para o Cristianismo esse conceito do Cristo cósmico.
Na fase seguinte de desenvolvimento, a religião passa além de Cristo, Pessoa, exceto
em uma manifestação mística d'Ele, na Santa Eucaristia. A Igreja aparece em seguida e
começa a falar em Seu nome. Os Sacramentos tomam o lugar de Cristo; proclama-se que,
no Sacramento da Eucaristia, Cristo, em pessoa, está presente, Cristo, a Divindade. Em dado
local, por esse tempo, acrescenta-se a isto o conceito da Virgem Maria, como mediadora
entre a humanidade e Cristo.
Segue-se, em breve, a essa Idea, o conceito do sacerdote humano como intercessor
entre o homem e a Virgem Maria e Cristo. É claramente reconhecido nos ensinamentos da
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Igreja Católica Romana, que o sacerdote, ao celebrar a cerimônia da Missa, reveste,
durante a celebração, algo a natureza de Cristo. Assim como Cristo foi, ao mesmo tempo,
Deus e homem, assim o sacerdote é conjuntamente Cristo.
Vêm, depois, todos os movimentos da Reforma, que são principalmente uma tentativa
para regressar à personalidade de Cristo, afastando-se dos Sacramentos, assim como das
Igrejas, da Virgem Maria e do sacerdote. A partir da época da Reforma, volta de novo ao
Cristianismo algo da compreensão do Cristo Pessoal. Este ensinamento não tolera o
aparecimento de um mediador entre a alma humana e Cristo.
Porém, sob o meu ponto de vista, o maior dos erros foi cometido, no tempo da
Reforma, pelo fato de os reformadores não compreenderem que pudesse haver muitos e
muitos modos de aproximar-se d'Ele. Não compreenderam que todos os Sacramentos e
mesmo a grande instituição da Igreja podiam ter sido planejados por Ele, como canais de
aproximação; repeliram tudo isto por suporem que tais desenvolvimentos se interpusessem
no caminho do homem para Cristo. Não havia nos reformadores compreensão de que, à
medida que uma religião se vai desenvolvendo, o seu Fundador permanece por detrás dela
para guiá-la; de que uma religião não é uma doutrina exposta de uma só vez, e
exclusivamente em determinada época; de que uma religião não é como uma cisterna de
onde flui a água, uma vez coletada; e de que mais se assemelha à fonte que, pela pressão
da água no sub solo, borbulha sempre; de modo que surgem, em cada religião, novos
ensinamentos e modalidades, novas revelações, inspiradas pelo respectivo Fundador. Os
chefes ulteriores da Reforma não compreenderam a possibilidade de existir uma verdade
por detrás do conceito da Virgem Maria, como mediadora. Todos esses aspectos do
Cristianismo foram por eles postos de lado por causa do seu desejo de realizar o Cristo
Pessoal.
Depois veio a grande mutação, que ainda está na memória dos mais idosos dentre vós,
que consistiu em ser posta em dúvida toda a concepção do Cristo, e que é chamada pelos
eruditos «a mais alta crítica». Resumindo rapidamente, o resultado desta crítica foi a dúvida
sobre a divindade de Cristo, pois destruiu a ideia da inspiração divina da Bíblia. Com o
abandono dessa Idea da inspiração divina, houve a tendência a fazer desaparecer do ensino
dos colégios teológicos protestantes, a concepção aceita relativamente a Cristo, ou seja a
da sua Divindade.
Muitas pessoas houve que tinham amado Cristo, menos pela Sua divindade do que
pela Sua magnífica humanidade, e que não puderam convencer-se da existência de provas
históricas suficientes, mostrando que os milagres atribuídos a Cristo se realizaram, e que os
vários atributos que se costuma associar à Idea de divindade existiram realmente na Pessoa
de Cristo. Mas, embora possam ter perdido a compreensão da Sua Divindade aqueles,
contudo, que o tinham realmente amado chegaram a uma concepção ainda mais ampla: a
da necessidade, sempre maior para o mundo, de um Cristo, não tanto já como Divino, mas
como esplêndido Modelo, que concentrava em sua natureza todo o idealismo do mundo. É
este aspecto humano do Cristo, como homem entre os homens, que fascinou também a
mente oriental; alguns de nós, no Oriente, que lemos os Evangelhos, nos sentimos
absolutamente em casa. Compreendemos o que foi que Ele se esforçou por transmitir
como mensagem Sua.
69
Mas, embora o conceito de Cristo como um grande exemplo de uma humanidade
glorificada seja atraente, há no entanto, nos corações de muitos que O amam como o maior
dos homens, um secreto desejo de senti-Lo também como sendo, de certo modo, um
reflexo do Divino. Porque é digno de nota que toda a compreensão que temos tido
relativamente à Divindade nos veio por intermédio de um ser humano. É somente através
da grandeza de um ser humano que nos elevamos até a percepção da natureza da
Divindade.
Permiti que considere agora a doutrina aceita pela maioria dos cristãos ponderados, e
sobre a qual estes se esforçam por fundar uma filosofia da vida - a de que Cristo é o Grande
Modelo, alguém que nos inspira a todos, em nossas vidas diárias, em virtude da vida que
Ele viveu. Desta crença emana uma pergunta que surge na própria raiz de muitos
movimentos cristãos de hoje em dia. É a seguinte: «Está Cristo agora ao nosso alcance?
Pode Ele guiar-nos, hoje, como guiou os Seus discípulos há 2.000 anos?»
Naturalmente, a resposta da Igreja é e sempre foi Sim. Porém, Ele está no céu, desde a
Sua Ascensão e não sobre a terra. Contudo, quando o cristão de espírito filantrópico encara
os problemas deste mundo e busca o seu melhoramento, já não é de um Cristo «que está
no Céu» que se trata, mas sim da necessidade d'Ele aqui na terra, para nos dar conselhos
relativos aos nossos atuais problemas humanos. «Pode Ele ensinar-nos o que devemos
fazer? Pode Ele dar organização ao nosso idealismo, no mundo moderno, de modo a
podermos executar a Sua vontade, tornando esta terra um Céu?» Porque, se Cristo por tal
modo amou o mundo que a Si próprio se ofereceu para salvá-lo, Ele por certo não havia de
limitar-se a fazê-lo somente uma vez. Não deveria Ele - se o Seu amor fosse tão perfeito
agora, como dantes - vir à terra, de novo, repetidas vezes, para salvá-la? Podereis imaginar
alguém da natureza do Cristo, com o coração tão cheio de amor pela humanidade,
permanecendo em qualquer espécie de Céu e deixando o mundo ser o que é? De certo, um
Ser tão compassivo ansiaria sempre por estar com os seus filhos e irmãos, para lhes aliviar o
fardo neste mundo.
Para mim, a pergunta a que vários movimentos cristãos procuraram responder é esta:
«Podemos entrar em contacto com o Cristo hoje em dia, nesta cidade de Lisboa, neste ano
da graça de 1938?»
Vim perante vós, para responder a esta pergunta embora eu não tenha sido sequer
batizado. Bem podereis dizer, portanto: «Como podeis ter a presunção de responder a esta
pergunta?» Ouso responder porque conheço o Cristo desde a minha infância; e no entanto
não sou cristão, mas sim budista, e ainda parcialmente; parcialmente porque sou, primeiro
e acima de tudo, um teósofo. Foi por causa de minha Teosofia, desde a meninice, que,
seguindo uma outra tradição, eu encontrei Cristo e tenho estado a servi-Lo durante longos
anos. Ora, vou fazer-vos agora, várias afirmações sobre Cristo e o Seu trabalho no mundo, e
cada uma delas poderá, facilmente, ser posta em dúvida. Mas eu, vo-lo peço, não vos
sintais, de modo algum, compelidos a aceitar seja o que for que eu diga. Examinai a minha
tese, como se ela fosse um quadro que alguém houvesse pintado: se algo nele vos parecer
repulsivo, deixai o quadro de lado. Porém, pode bem ser que eu abra, em alguns de vós,
uma nova espécie de compreensão, relativamente a este grande problema do Cristo no
mundo de hoje.
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Disse que através de toda a história do Cristianismo houve uma corrente de ideias
entre as duas concepções do Cristo, como Deus e como homem, algo semelhante a um
pêndulo oscilando entre dois extremos. A Igreja, muito sabiamente, reuniu-os ambos e
declarou que Ele é, a um tempo, Deus e homem. É, porém, causa difícil, para muitos
cristãos que possuem espírito crítico, compreender como podem ambas essas causas ser
verdadeiras, principalmente quando verificam que as narrativas do Evangelho não
encontram base Suficiente nas provas históricas.
Há um anunciado vital que encontrareis em toda a parte nos ensinamentos místicos;
dentro do Cristianismo verifica-se, até certo ponto, nos de São Paulo: é que a natureza do
Divino existe também em nós, seres humanos. Quantos de vós se recordam da crítica que
os judeus ortodoxos fizeram a Cristo, quando Ele proclamou que era Deus. A sua resposta
reconduziu os seus críticos às seguintes palavras dos salmos que todos eles veneravam: «Eu
disse que sois Deuses e todos filhos do Altíssimo». Foi esse ensinamento, de que reside em
nós algo da natureza do Cristo que nos deu São Paulo ao falar do «Cristo em vós» e este
ensinamento é bem conhecido na Índia, onde se proclama que a natureza de Brahman, a
Divindade Absoluta, está em todos os homens.
Esta concepção é fundamental em tudo o que vos vou dizer, relativamente àquilo que o
Cristo está tentado fazer no mundo de hoje. Permiti, portanto, que vos esclareça a minha
convicção de que em todos nós, desde o selvagem até ao mais magnificente produto da
mais requintada civilização, existe a natureza do Divino, exatamente como o carvalho já
preexiste na bolota. No selvagem primitivo, porém, a Divindade é como um Deus
acorrentado; num grande Salvador da humanidade, é como um Deus que rompeu as suas
cadeias. Deste ponto de vista que vos estou explanando - de que o divino existe em todos.
nós - a vida, com suas alegrias e pesares, com suas vitórias e desastres, torna-se o
laboratório, a oficina, onde libertamos a nossa Divindade prisioneira.
Se aceitardes esta concepção do crescimento da alma, verificareis muito rapidamente
que, se o Divino no homem tem que ser libertado, até chegar à medida completa do Cristo,
como disse São Paulo, isto não pode ser levado a efeito numa vida somente. Tendes que
admitir que essa tarefa ou é continuada além do túmulo, na eternidade, ou por um
processo de retorno a esta terra, onde já existem as experiências necessárias para o
crescimento.
Somos, pois, Deuses, em nossa natureza essencial e, enquanto vivemos, estamos
empenhados no trabalho de libertar das Suas cadeias a Divindade que está dentro de nós.
No entanto, apesar de sermos todos, grandes e pequenos, essencialmente divinos, há uma
diferença entre nós e o Cristo. A diferença reside nisto: dentre os eleitos que conseguem
libertar a Divindade que está dentro deles, alguns há que voluntariamente escolhem por
missão cumprir um ato especial de sacrifício. Esse ato de sacrifício é de natureza tão
estupenda que a mente do homem recua ao contemplá-lo. Por isso é tão difícil
compreender a natureza de Cristo, como homem e Deus.
Mas, abreviando, significa isto que a alma - alma semelhante à nossa - que realizou a
sua Divindade e chegou à perfeição, como todos nós chegaremos um dia, continua o
desenvolvimento da sua Divindade, e faz uma grande oferenda de sacrifício, de amor, de
sofrimento e de devoção, com o objetivo de manter-se entre a humanidade, como
71
Mediador. Ser um Mediador significa baixar até nós, na própria natureza individual, as
indescritíveis glórias da Divindade, e depois de as envolver no véu da condição humana,
revelá-las à humanidade. É um trabalho que não deixa de ter analogia com o que faz a mãe
pelo filho que traz no seio; ela absorve no seu ser os produtos da terra, transmuta-os em
sangue, e depois envia-os à criança para dar-lhe o que é necessário ao crescimento. Em
virtude dessa atuação, a criança pode viver até tornar-se um indivíduo separado. De modo
análogo, Aquele que chamamos o Cristo ajuda cada alma, pois há muito que Ele se
determinou a fazer-nos esta magnífica oferenda de manter-se entre a humanidade, como
Mediador. É essa uma relação indescritivelmente estupenda, pois cada qual, entre os
bilhões de homens, vive n'Ele e de todos Ele é consciente.
Existem no mundo, em nossos dias, talvez um bilhão e oitocentos milhões de pessoas
vivas. Que é feito dos mortos que já existiram? Em nossos estudos teosóficos calculamos
que o número de almas que formam a nossa humanidade é de cerca de sessenta bilhões.
Pode, algum de nós imaginar a natureza da mente de um ser, em cuja consciência vivam
todos estes sessenta bilhões de almas, de modo que, onde quer que estejam - seja no
mundo dos vivos ou no outro mundo - ele conheça os seus pensamentos, a tal ponto que,
quando qualquer deles o chame ou para Ele se volte, Ele logo responda? O fato parece
inconcebível. Seria indiscutivelmente a própria Divindade. No entanto, foi para isso que
Cristo trabalhou, até alcançar o seu maravilhoso objetivo. Assim, Ele vive hoje no mundo, e
não distante dele. Vive aqui sobre a terra, em um corpo de carne; no entanto, é tal a
natureza da Sua consciência, que as glórias do Céu estão também com Ele, rodeando-O.
Cada vez que se faz a afirmação de que o Cristo se encontra na terra e que sempre
aqui esteve, logo perguntam: «Onde está Ele? Podemos meter-nos a caminho para o
encontrar?» Tão imersos se acham em uma concepção material da alma e das suas funções,
que pensam não poder «vê-lo» permanente e que nem o Cristo os pode ver a eles, a não ser
que se defrontem face a face. Mas, se O víssemos face a face, quantos de nós seriam
ajudados por essa experiência? Quantos dentre os Judeus e os Romanos O viram na
Palestina, e no entanto não O «viram»? E a não ser os Doze Discípulos, quantos dentre os
santos do Cristianismo O viram com os seus olhos? Nenhum. No entanto, apesar de O não
terem visto, os santos O «viram» por modo tão maravilhoso que se tornaram Seus
mensageiros. Não, não necessitamos de viajar corporalmente para «vê-Lo»; temos que
viajar com o nosso espírito. E como Ele nos conhece a cada um, quer se voltem ou não para
Ele os nossos pensamentos, o encontrar o Cristo não é questão de defrontar face a face o
corpo que Ele atualmente usa.
Neste ponto é para mim estranho, como oriental que sou, ouvir dizer que alguns
cristãos imaginam que a grandeza de Cristo - Seu amor que tudo abrange, Sua presença
instantânea, onde quer que uma alma Se lhe abra - sofreria uma limitação pelo fato de
viver em um corpo da atualidade, tal como aconteceu na Palestina. Sustentam, como o fez
o Bispo Inglês Wilberforce, que, exatamente pelo fato d'Ele não mais se achar na terra, e
ser invisível para nós no Céu desde a Sua Ascensão, é que Ele está mais próximo da
humanidade. Pensam que o fato de ter o Cristo um corpo terreno o torna menos divino,
menos responsivo às necessidades dos bilhões de Cristãos.
Todos estes temores são devidos a uma falta de compreensão, no Ocidente, daquilo
72
que são os Grandes Seres. Na Índia possuímos ainda tradições a respeito d'Eles e sabemos
que Seus maravilhosos atributos não se encontram diminuídos pelo fato de velarem a sua
glória, por amor de nós, e viverem em formas humanas para nos ajudarem, Assim, nas
lendas budistas, o Buda vinha sempre rodeado de Devas ou Anjos que aguardavam as Suas
ordens. Todas as manhãs, ao romper da aurora, Ele observava o mundo, por meio dos Seus
poderes místicos, a fim de verificar que alma, especialmente, entre os bilhões de homens,
mais necessitava do Seu auxílio nesse dia. Hoje, que ouvimos por meio dos nossos
aparelhos de rádio, podemos facilmente compreender. Com quantos comprimentos de
ondas de várias estações de rádio podem os melhores aparelhos «sintonizar-se»? Se um
mero mecanismo pode pôr-nos em contato com tantas estações que nos enviam o seu
apelo, não será lícito imaginar que possa haver processos de consciência desconhecidos
para a mente vulgar, mas utilizados pelos Grandes Seres, que Lhes permitam ouvir
instantaneamente todo o apelo que se Lhes dirija?
Tal é o Cristo. O fato de, para os fins do Seu trabalho em prol dos homens, viver em
um corpo de carne, não o impede de se encontrar rodeado de Anjos, prontos a executar-
Lhe as ordens, nem de revelar diariamente a Sua natureza em milhares de altares, ao serem
proferidas as palavras de consagração na Santa Eucaristia; nem tampouco que cada clamor
que a Ele sobe seja por Ele ouvido, seja qual for o ponto do mundo de onde emane o apelo.
Pelo fato de ser Ele o Cristo, o Mediador entre Deus e o homem, toda a humanidade é
Sua, e não somente aqueles que foram batizados no credo particular que Ele fundou na
Palestina. E porque Ele assim é, todos os homens têm um laço com Ele e Ele se derrama a Si
próprio sobre toda a humanidade, através dos canais que já foram estabelecidos no
passado e que serão estabelecidos no futuro. Toda a religião é d'Ele: o Hinduísmo, o
Budismo, o Jainismo, o Zoroastrismo, o Judaísmo, o Mahometismo, o Cristianismo. Ele
espalha a Sua ternura viva e a Sua inspiração sobre todos, seja qual for o seu credo, pois o
mundo é Seu e toda a humanidade é Sua, para que Ele a ajude a atingir uma vida mais
ampla. Tal como a mãe envolve os Seus filhos num único abraço, assim Ele encerra dentro
de Si todas as fés, por grandes ou pequenas que sejam. Que Lhe importam a Ele as divisões
em religiões e seitas, se Ele traz as forcas divinas do alto para todas elas? Assim como
certos aparelhos elétricos «transformam» correntes de dezenas de milhar de voltes para
voltagens menores, que podemos utilizar sem perigo, assim Ele «transforma» as forças de
Deus, de modo a podermos assimilá-las. É este o Seu sacrifício.
E estas forças que Ele «faz descer» para nosso uso não pertencem somente à religião.
As ciências e as artes, as filosofias e o misticismo são também o resultado da Sua ação para
elevar os homens até Deus e para trazer Deus até aos homens.
Cristo está sempre a trabalhar. E que trabalho é o d'Ele? É libertar o Cristo que está em
todos os homens. Como Ele é o Cristo e se encontra a meio caminho entre o homem e
Deus; como Ele é o Revelador do Divino no homem, por maneira que nem vós nem eu
ainda o podemos ser; esforça-se por tornar igualmente cada ser humano num mediador à
Sua semelhança. Não foi por um mero arrebatamento místico que São Paulo nos falou de
«Cristo em vós, esperança de Glória. » Ao olhar para nós, o Cristo vê-se a Si próprio em nós
e é por isso que todo o mundo é d'Ele.
O Seu trabalho é organizar o mundo de tal forma que, estágio a estágio, ciclo a ciclo, o
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Cristo que dorme em cada um de nós possa despertar, até que todos os homens, por toda a
parte, no meio de todas as crenças, seja qual for o nome que a si próprios deem, possam
viver conscientes da grandeza da Divindade que neles reside. Organizar o mundo - eis o Seu
trabalho que desejo fazer-vos compreender. O Cristo que eu conheço não é Aquele que
está sentado no Céu rodeado de Anjos; mas um outro que perpetuamente se esforça por
organizar o mundo, utilizando para isso os poderes da Divindade que alcançou pelo Seu
sacrifício.
Neste trabalho de organização, há uma parte especial que desejo focar - é o trabalho
que realizou no século passado. Nesse período, verificareis que teve lugar uma unificação
misteriosa de todo o mundo, por meio da ciência e das invenções. Foram desenvolvidas
relações, unindo nação a nação, pelo telégrafo e pela rádio, pelos caminhos de ferro e por
vapores, pelos livros e jornais, por conferências e viagens. Essas relações tanto se
entrelaçaram, inextricavelmente, que hoje a catástrofe econômica de um país afeta o
mundo todo. Por outras palavras, estabeleceu-se uma unificação como jamais existiu e isto
não se deu por acaso. É a resultante de uma grande tentativa, por parte de Cristo e por
parte d' Aqueles que trabalham sob as suas ordens, no sentido de produzir um novo tipo de
civilização, destinada ao mundo inteiro e na qual os homens se elevarão acima das linhas
divisórias de raças e credos, e se reconhecerão como irmãos, trabalhando com um
propósito comum.
Há muito que Ele vem organizando esta nova era que ainda não chegou. Os idealistas
de todos os países têm sonhado com esse futuro que podemos ter como certo, visto que
Ele está trabalhando para isso. Embora a plena realização do seu plano possa retardar-se
por uma geração ou duas, ela tem de consumar-se, pois Cristo meteu ombros à empresa,
pelo amor que dedica a todos os homens.
E com Ele colaboram outros, os Mestres de Sabedoria, e esses trabalhadores invisíveis
no nosso mundo, a quem chamamos Anjos. Um poderoso trabalho está a fazer-se para toda
a humanidade, e é Cristo que está por detrás dele, guiando e dirigindo. Ele não se encontra
sentado à mão direita de Deus Padre, a receber meramente a adoração; está mais ocupado,
mais ativo e mais cheio de trabalho do que o maior monarca ou administrador, pois tem de
dirigir a organização do mundo inteiro e de todos os seus setores, esforçando-se por reunir
homens de vários temperamentos, credos e raças.
Como parte deste Seu trabalho de lançar a grande civilização mundial que esta para
vir, foi fundada em 1875 a Sociedade Teosófica. Porque o trabalho de unificação não pode
ser realizado enquanto as ideais do mundo não forem modificadas; por isto é que a
Sociedade Teosófica veio à existência, a fim de orientar as nossas ideais em direção à
Fraternidade Universal. Mostrando as verdades comuns a todas as religiões, a Sociedade
rompeu muitas barreiras que se antepunham aos homens, e os impediam de trabalhar com
um propósito comum. Iniciadas por dois Mestres da Sabedoria, que são discípulos de Cristo
e a têm dirigido no seu desenvolvimento, a Sociedade Teosófica é a precursora das grandes
realizações do futuro.
Mas a Sociedade Teosófica não está isolada neste trabalho que visa a unidade; há
ainda outros movimentos, o mais importante dos quais é hoje a Sociedade das Nações.
Nascida no meio, de grandes dificuldades, vivendo apenas, em certas ocasiões pelo menos,
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na imaginação de alguns, a Sociedade é ainda, por todos os respeitos, a única esperança de
futuro, pois é uma tentativa de trazer ao pensamento da humanidade a concepção de uma
organização mundial, duma consciência mundial, dum plano mundial, a soerguer os
homens do estreito campo das nacionalidades, para os levar a uma ideia mais ampla do
mundo como um todo. Outro movimento unificador, atrás do qual está o Cristo, é a
atividade mundial dos Escoteiros.
Assim, pois, digo-vos que é Cristo que atua em todos os movimentos, que observa a
política, a ciência, a arte, que possui Seus canais em todos os países e religiões, que se
encontra acima de todas as linhas divisórias, com as quais limitamos as coisas deste mundo.
Como qualquer pessoa pode ver, todos os movimentos idealistas encontram hoje em
dia oposição. Onde quer que se observe esta Sua tentativa, visando uma federação
mundial, uma consciência mundial, uma organização mundial, a paz mundial, sempre linhas
divisórias locais e mesquinhas surgem, a diminuir e a dificultar-lhe a ação. Até mesmo os
cristãos mais devotados não compreendem que, por detrás deste grande sonho de um
mundo unido, está alguém para quem o mundo inteiro é igual e em cujo Coração habitam
os milhões de cidadãos de cada nação.
O seu trabalho encontra uma oposição que todos devemos esforçar-nos por eliminar;
é esse, praticamente, o objetivo desta minha conferência. Se para vós ela tiver algum
significado, deverá ser este: que Aquele a quem chamais Cristo, e a quem eu chamo por
esse e outros nomes mais, necessita de cada um de nós para alguma fração de Seu trabalho.
O político, o homem de Estado, o artista, o instrutor religioso, o educador, o potentado dos
negócios, o homem e a mulher de afazeres diários, todos são necessários. Não existe um
único ser humano que não possa ajudá-Lo no grande trabalho que Ele planejou para o Dia
que há de vir, quando tivermos varrido para o passado todas as linhas divisórias de
nacionalidade e de credo.
Nada pode haver, certamente, de mais inspirador para vós, cristãos - para vós que vos
julgais mais perto d'Ele - do que poderdes convencer-vos de que Ele vive aqui, na terra, de
que Ele sabe que vos esforçais em prol do idealismo, que Ele está por detrás de todos os
planos desinteressados, e que estes têm a Sua promessa de êxito, Podeis reconhecer, pelo
testemunho de alguns dos nossos contemporâneos, como esses que fazem parte do
chamado «movimento de Oxford», em cuja consciência uma minúscula parte da Sua
consciência transitou, que Ele está perto. Os homens e mulheres daquele movimento
compreenderam que, para eles, toda a vida mudara. A vossa vida mudará também, se
diretamente por vós mesmos, chegardes à certeza destas coisas.
Há milhões de pessoas no Ocidente para quem Cristo é o símbolo de tudo que de mais
elevado elas podem sonhar. Às vezes, porém, este símbolo permanece um mero símbolo e
não desce para mais perto dos níveis terrenos. Se, no entanto, puderdes compreender que
Ele é o vosso irmão mais Velho, o vosso Mestre, a Divindade em vós, como ansiais que Ele
seja, não mudará toda a vossa vida? Como podereis alcançar a certeza acerca destas
coisas? Eu posso, apenas, sugerir alguns meios para isso.
Um deles é ingressar neste grande sonho de um trabalho para todos os homens, de
um mundo e de um plano para toda a família humana, isto é, não permitir que nenhum
pensamento de nacionalidade ou de religião ou as vossas próprias convicções internas
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fechem a porta ao íntimo instinto que vos leva a identificar-vos com o que há de mais nobre
no mundo inteiro, em todos os povos. Isto não é empresa fácil: é belo para contemplar
como ideal; mas, quando ledes num periódico a notícia de alguma coisa que foi feita para o
vosso país, o subconsciente da nacionalidade provoca desde logo, um desvio do critério
justo. Se lealmente desejais manter pela vossa esperança o sonho de um só mundo e uma
só humanidade, sacrificando-lhe tudo o que for mister, vereis que vários fatos
impressionantes ocorrerão na vossa vida, até que, pelos vossos próprios meios, reconheçais
que o Cristo existe e, por detrás do vosso idealismo, triunfalmente mora.
É esta uma grandiosa experiência. Não será decerto, uma empresa fácil; o reino de
Deus não se abrirá para vós mecanicamente; forçoso vos será tomá-lo de assalto. Este
trabalho de encontrar o Cristo é o mais difícil e, também, o mais belo trabalho do mundo, o
único a que o vosso coração se dedicará quando souberdes o que é o vosso coração.
O segundo processo é identificar-vos, pela mais profunda simpatia, com o sofrimento,
onde quer que ele exista. Se alguém estiver sofrendo entre os vossos semelhantes, podeis
seguramente auxiliá-lo, ainda que só tenhais simpatia que lhe dar. Não disse Ele: «Na
verdade vos digo que quanto fizestes a um dos Meus irmãos mais pequeninos, foi a mim
que o fizestes»? Tentai a experiência: fazei a menor das coisas pelos vossos irmãos, mas
fazei-a em Seu nome, com um novo sentido de consagração e vede o resultado.
Outro processo existe, a que constantemente me reporto, por ser, para mim, muito
real. Lembrai-vos de como na Palestina Ele amava as crianças. Talvez, de certo modo
misterioso, ao olhar os seus semblantes, Ele se esquecesse das perturbações que O
rodeavam. E assim o mesmo acontece hoje, pois onde quer que a criança seja olhada como
um dos mais preciosos mistérios que este mundo possui, verificareis às vezes que uma
Outra Pessoa olha através dos vossos olhos para a criança, e estremecendo admirados,
perguntar-vos-eis. «Que quere dizer isto? Vejo na criança algo que nunca havia visto
antes!» Isto acontece porque Cristo vos mostra o que Ele vê na criança.
Existem também, naturalmente, processos místicos que se encontram nas igrejas; em
seus grandes cerimoniais residem certos mistérios relativos aos Sacramentos. Podeis
encontrá-lo por meio deles, se essas modalidades falarem ao vosso temperamento. Esses
meios, porém, não são os únicos; nem o são tampouco estes que descrevi, pois todo o
Cristão pode descobrir qualquer processo novo e ensinar aos seus semelhantes mais um
caminho que este grande Amoroso de toda a humanidade tenha preparado para poder
baixar a viver entre os homens.
A compreensão dos modos pelos quais o Cristo trabalha para o mundo exige um
mental e um coração amplamente abertos. Os melhores guias serão os vossos mais íntimos
instintos e intuições, se andardes em busca de Cristo.
É perfeitamente verdadeiro que para vos adiantardes no caminho que conduz a Ele,
não necessitais de igrejas ou cerimônias; Ele vos falará através do Cristo que está em vós, e
vos guiará pelo vosso caminho. Mas, seja qual for, jamais esse caminho será fácil.
Significará sacrifício após sacrifício, pois tendes que tornar-vos como Ele é. Tendes que
compreender o seu Plano para o mundo inteiro; tendes que vos elevar como Ele, acima de
toda a espécie de preconceitos; tendes, quase, de revestir o manto da própria Divindade, se
vos quiserdes manter ao Seu lado como Seu agente e mediador para o mundo. É um
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destino magnífico, mas que exige sacrifício. Esse sacrifício, porém, será cheio de alegria,
pois sabeis que graças a Ele vos aproximareis um passo mais, d'Aquele que é o vosso
Mestre.
Se trilhardes esse caminho, Ele vos dará as Suas guias de marcha. Não serão
necessariamente as mesmas que a do vosso vizinho, que também está procurando a
verdade. Cristo possui igualmente o Seu trabalho para aqueles que nasceram em outros
credos e outras tradições. Não disse Ele? - «Tenho outras ovelhas que não pertencem a este
aprisco, também devo ampara-Ias». Ele tem o Seu trabalho para vós e para todo o homem
que ame os seus semelhantes, pois Ele está por detrás de todos, em todos Se esforçando
por libertar o Cristo cativo. Como e quando, porém, Ele vos dará as Suas guias de marcha, é
assunto entre Ele e vós.
Eu somente vos posso dar o testemunho de que isso acontecerá. Se vos sentirdes
ardentes e desejosos de fazer os sacrifícios necessários, vós O encontrareis e então a vossa
vida se transformará. É um caminho cheio de dificuldades, sob certos aspectos; mas é
também cheio de alegria e de compreensão, pois que lutareis pela execução do Seu plano
para o Seu mundo, e, sabendo isto, quando parecer que estais fracassando no conceito dos
homens, tereis pelo contrário obtido um pleno êxito, porque Ele estará por detrás do vosso
esforço e do vosso idealismo.
É uma vida difícil, pois tereis de ser Sua testemunha. A palavra grega mártir quere
dizer testemunho. Tendes que ser o Seu mártir, para um mundo uno, uma humanidade una,
um Deus único; Seu mártir, onde quer que dirijais os vossos passos, esforçando-vos sempre
por trazer, para dentro do vosso coração, o mundo inteiro com todos os seus milhões de
seres. É uma vida dura e contudo não o é. Como disse um dos antigos poetas ingleses,
«Os seus mandamentos não são penosos
Senão na medida em que os homens assim o julgam;
Não curo de saber onde ele me envia,
Desde que me dê forças para chegar até lá.
«Quando» e «para onde» é tudo o mesmo;
Em Suas obras, que não nas minhas,
Jamais estarei sozinho.»
«Em suas obras, que não nas vossas.» Isto significa que deveis fazer da vossa vida
diária a sua obra - no escritório, no mercado, mesmo nas vossas dificuldades e em tudo que
as acompanha. Só depois de realizada esta espécie de união da vossa vida com a d’Ele, é
que deixareis para sempre de andar sós.
Assim, irmãos, quero dar-vos esta mensagem de que também eu O conheço de que
também eu sei alguma coisa de todos os esplendores que a vossa religião refere a Seu
respeito. Há, porém outros esplendores ainda, e o maior de todos é que Ele encerra, em
Seu seio, toda a humanidade, sem distinção de credo, de sexo, de casta ou de cor, Em
todos, Ele se esforça per libertar o Cristo oculto. Ele deseja que todos vós trabalheis pelo
Seu plano de um Mundo Uno - o Seu mundo, que será também o vosso.
Se o desejo, no fundo do vosso coração, não é salvar a vossa alma, mas abolir o mal, a
miséria e a injustiça que tornam a vida dos vossos irmãos tão cheia de dores; se o Cristo de
que necessiteis não é um Senhor e Mestre sentado no Céu, mas Aquele que está aqui na
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terra, e ao serviço de quem, jubilosamente, podeis consagrar-vos, como o fizeram os
Cavaleiros do Cristianismo que foram, mundo além, em Seu Santo Nome; se não souberdes
ou não puderdes procurar esse Cristo no seio da Igreja - trilhai então este caminho que eu
trilhei. Eu vos posso testemunhar que, por um passo que derdes para Cristo, Ele dará dez
para vós. Pois, mais sincera e ansiosamente do que O procuras, Ele vos procura.

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SOCIEDADE TEOSÓFICA

A Sociedade Teosófica é uma organização mundial, fundada em Nova York a 17 de


Novembro de 1875 e estabelecida mais tarde na Índia, com sede em Adyar, Madrasta.

Objetivos

São três os objetivos desta organização:


Primeiro - Formar um núcleo de Fraternidade Universal, sem distinção de raça,
crença, sexo, casta ou cor;
Segundo - Incentivarar o estudo das Religiões comparadas, da Filosofia e da Ciência;
Terceiro - Investigar as leis ainda inexplicadas da natureza e os poderes latentes do
homem.

Expansão do movimento Teosófico

Ao redor da sede central da Índia, que se fixou como base do movimento, toram-se
agrupando os estudiosos que procuram alcançar um pouco de Luz sobre o seu Caminho. Em
49 países se organizaram seções nacionais da S. T., atraídas pelos maravilhosos
ensinamentos que a Teosofia vinha trazendo ao mundo.
Vamos enumerar essas seções pela ordem cronológica da sua fundação:
América, Inglaterra, Índia, Austrália, Suécia, Nova Zelândia, Holanda, França, Itália,
Alemanha, Cuba, Hungria, Finlândia, Rússia, Checoslováquia, Africa do Sul, Escócia, Suíça,
Bélgica, Índias Neerlardesas, Birmânia, Austria, Noruega, Egito, Dinamarca, Irlanda, México,
Canadá, Argentina, Chile, Brasil, Bulgária, Islândia, Espanha, Portugal, País de Gales,
Polônia, Uruguai, Porto Rico, România. Iuguslavia, Ceilão, Grécia, América Central, África
Central do Sul, Paraguai, Peru, Ilhas Filipinas e China.

Pontos de vista da S. T.

Todos os membros da S. T. estão unidos pelo mesmo desejo de acabar com os ódios
que dividem e infelicitam a famllia humana, por rivalidade de religião, de política, de
nacionalidade ou de classe. Nêste propósito se conjugam os homens de boa vontade, sejam
quais forem as suas opiniões, para estudar as verdades ocultas na obscuridade dos dogmas
e comunicar o fruto das suas investigações a todos aquêles que por tais assuntos se
interessem. A sua solidariedade não provém duma fé cega, mas duma aspiração comum
para a Verdade, que consideram como a recompensa de um esfôrço digno e de uma vida
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pura, devotada ao serviço dos altos ideais. Pensam que a Fé deve nascer do estudo e da
intuição, e apoiar-se no Conhecimento, em vez de aceitar, sem os compreender, os dogmas
ou as afiro mações de quem quer que seja.
Os teósofos estendem a sua tolerância a todos, mesmo aos intolerantes; não querem
punir a ignrãncia mas destrui-Ia. Consideram as diversas religiões como expressões parciais
da Sabedoria Divina, e em vez de condenarem as religiões alheias, estudam-nas com
interêsse e respeito.
A Teosofia apresenta uma filosofia que torna a vida compreensível nos seus mais
desconsertantes e contraditórios aspectos. Ela demonstra a natureza inviolável das leis que
governam a evolução do mundo e prova que essas leis são a justiça e o amor. Reduz a
morte ao seu verdadeiro papel de «incidente periódico numa vida sem fim», e abre-nos as
portas duma existência mais plena, mais radiosa, mais em harmonia com a dignidade
humana e a magnanimidade divina. Restitue ao mundo a Ciência da alma, ensinando ao
homem a reconhecer a sua «almas como sendo ele próprio, enquanto a mente e o corpo
físico não passam de instrumentos ao seu serviço. Esclarece as Escrituras e doutrinas de
cada religião, pondo-as de acordo, desvendando as suas significações ocultas e justificando-
as assim perante o tribunal da inteligência, como na sua pureza original, são sempre
justificadas aos olhos da intuição,
A S. T. não pretende monopolizar a teosofia, porque a Sabedoria Dívina não pode ser
limitada; mas os seus mernbros estudam estas verdades e esforçam-se por «vivê-las»,
Todos aqueles que simpatizarem com os fins da S. T. e desejarem adquirir o Conhecimento,
praticar a tolerância e devotar-se aos altos ideais, serão acolhidos com alegria no seio da
fraternidade.

SECÇÃO PORTUGUESA

A Sociedade Teosófica de Portugal tem a sua sede em Lisboa - Rua Passos Manoel,
20, cave.

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