O Alquimista - A Trilha de Um Jo - Jorge Angel Livraga

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JORGE ANGEL LIVRAGA

O ALQUIMISTA
A trilha DE UM JOVEM NAS CIÊNCIAS OCULTAS

1ª edição

Belo Horizonte
Edições Nova Acrópole
2020
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por qualquer forma ou meio eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação, ou
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da Editora.

Título Original: El Alquimista

Coordenação geral: Beatriz Quaglia Pereira


Capa: Samuel Sebben
Projeto digital: Isabelle Lunardi e Lohaynne Edwiges Magalhães
Tradução e revisão: Equipe de texto
Colaboração: Márcio Martinho de Oliveira

(Primeira edição em novembro de 2020)

Selo Editorial: Tesouros do


Mundo Antigo
CONTATO
Edições Nova Acrópole Ltda. ME.
[email protected]
tel.(13) 99771-7794, 99666-1995
Sumário

O ALQUIMISTA
CAPÍTULO I - O DIÁLOGO DOS ESPECTROS
CAPÍTULO II - AS RUÍNAS
CAPÍTULO III - O DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL
CAPÍTULO IV - A COROA DE RAIOS
CAPÍTULO V - O ORIENTE
CAPÍTULO VI - GIORDANO BRUNO
CAPÍTULO VII - O TEMPLO DE ÍSIS
CAPÍTULO VIII - O REGRESSO
CAPÍTULO IX - A CIDADE BRANCA
CAPÍTULO X - A COROA DE ESPINHOS
CAPÍTULO XI - A LEMBRANÇA
Curriculum do Autor
CAPÍTULO I - O DIÁLOGO DOS ESPECTROS

Alguns lugares na Europa não sentiram o fragor das bombas e


das máquinas de guerra, mas as almas de seus habitantes, material
mais sensível, todas elas conhecem o medo. Nesse plano sutil dos
homens não existem lugares “não afetados”.
Qualquer povo que consideremos, de qualquer nação, pode
ser palco desta cena... Talvez, um lugar próximo à fronteira franco-
espanhola...
— Onde terei hoje as lições de latim, pai? Junto à curva do
caminho real?
— Se o caminho não me for muito cansativo, chegaremos a
uma antiga igreja abandonada há poucos anos. Desejas conhecê-
la?
— Creio que a conheço, ainda que nunca tenha podido me
aproximar para contemplá-la detidamente. Vamos lá!
— Se minhas pernas conseguirem acompanhar-te,
chegaremos lá em meia hora de caminhada.
Quem assim falava aparentava ter por volta de 65 anos, alto,
de porte muito nobre e vestido com a elegante simplicidade própria
dos temperamentos formados na mais refinada educação e cultura.
Na sua mão, uma bengala com empunhadura de chifre ia deixando
uma linha pontilhada junto às pegadas de seu amo.
Com o ancião caminhava um jovem um pouco mais baixo,
vestido com igual austeridade, levando alguns livros sob o braço.
Seus olhos negros percorriam a paisagem, captando ocultos
detalhes de beleza que entesourava em sua alma, serena e antiga
apesar dos 20 anos de seu corpo.
— Antonio! — a voz do ancião o tirou de suas observações. —
Filho, por que te apressas tanto? Se eu te seguir neste ritmo com
que moves os pés, não chegarei sequer à estrada... e quero que
estudes latim junto a essas ruínas que durante muitos séculos
ouviram miríades de vezes a divina língua de Virgílio.
— Me entusiasma a ideia de fazê-lo e, no entanto, há algo
indefinido que me faz temer esse lugar.
— O que é esse algo?
— Me permite que eu te diga mais tarde, quando anoitecer?
— Como desejares...
Nesse momento atravessaram a estrada, silenciosos, mas
alegres por estarem perto do lugar indicado.
Na verdade, Antonio não era filho do ancião, mas sim seu
protegido, adotado no início da Grande Guerra, após seus pais
terem sido mortos no norte da África. O jovem tinha então 5 anos e
foi encontrado ferido entre as ruínas de um hotel europeu por aquele
que depois o adotaria como filho. O ancião e bondoso senhor o
chamava de Antonio para apagar de sua personalidadea maior parte
possível daquelas terríveis lembranças. Custeara-lhe uma excelente
educação nos melhores colégios da Inglaterra, onde agora fazia
doutorado em Filosofia.
Antonio aproveitava as férias para passar alguns meses na
casa de campo de seu benfeitor, homem de sólida fortuna e de
ainda mais vasta cultura e virtude. A seu lado, ouvia as narrativas de
suas viagens pela África e Ásia, enchendo seu espírito com a
suavidade azul das montanhas e a atividade serena do campo.
Ao contornarem a curva, a muralha de rochas permitiu ver as
ruínas da igreja. Antonio estremeceu imperceptivelmente, mas
apressou o passo. O ancião observou-o em silêncio. Quando
chegaram ao fundo do vale onde se erguia a construção, disse-lhe:
— Este templo deve datar do século XIII ou XIV, embora
construções posteriores tenham alterado seus detalhes. Um
incêndio o destruiu há cinco anos e desde então está abandonado
às garras da erosão e do matagal. Apenas sua torre permanece de
pé, como um monge petrificado durante alguma oração sacrílega.
— Tens razão, pai. Aqui tudo respira um drama secreto que
não consigo definir... A nave central desmoronou e dela restamas
enormes vigas de madeira carbonizadas; em vez das nuvens de
incenso, estão envoltas por fungos. Esta grande torre rachada e
suas dependências, cheias de arbustos e lagartos, são decorações
lúgubres de não sei que diabólica representação...
— Os aldeões, mesmo os mais jovens, procuram evitar esta
parte do vale; eles garantem que, à noite, as feiticeiras do povoado
vêm recolher ervas venenosas e escutar nefastos conselhos de
bocas fantasmagóricas.
— Não é pouca a imaginação que haverá nessas
manifestações, mas de qualquer maneira são justificáveis.
— Toda superstição ou falatório tem, na sua origem, algo de
verdade...
Essas palavras do ancião ressoaram sob as abóbadas de
pedra das laterais e pareceram evocar mil sombras adormecidas.
Antonio percorreu aquelas ruínas e as de várias construções
vizinhas, das quais só restavam os alicerces.
— Algum dia isto foi um grande povoado? — perguntou ao
seu protetor.
— Assim como tu dizes. Aqui existiu uma minúscula cidade
universitária, e aquelas ruínas monumentais que vês na encosta do
monte são de um antigo castelo do século IX, do qual restam
unicamentepedaços dos muros e das fundações. Por fim, a
Natureza, imagem da Lei que nos rege, sempre triunfa. Os pesados
blocos e seus terrenos talhados na rocha passam lentamente a
integrar as ladeiras do monte, desfeitos, cobertos de
bosquezinhos... Agora pega teus livros e lê; eu te corrigirei.
Várias horas se passaram, e, quando o sol inflamava o
horizonte, abandonaram a leitura comentada dos clássicos.
Antonio ergueu o olhar e, um pouco pálido, apontou a cúpula
da torre.
— O que vês de estranho ali? — perguntou o ancião.
— Pai, talvez seja uma grande tolice de minha mente, mas os
reflexos do sol sobre esses muros a mim se assemelham a
manchas de sangue que vão escurecendo e seespalhando... Várias
vezes, do caminho que contorna o vale, observei o mesmo efeito, e
há algo em mim, algo oculto profundamente, que estremece...
O ancião, em virtude daquela resposta, olhou-o
meditativamente por um longo tempo, e depois perguntou:
— Não tens ideia, nem mesmo confusa, da causa de tão
estranha perturbação?
— Não, pai. Não é que o lugar me desagrade: me atrai e
minha alma se apraz na imaginação de épocas que contemplaram
estes muros; a hera que cobre com piedosa mortalha este grande
cadáver de pedra me emociona. Mas então, quando vejo essas
manchas, reflexos, ou o que quer que sejam, me assalta um
estranho medo, e meu coração se angustia como se estivesse
vivendo uma grande tragédia. Então quero fugir deste lugar e conto
alegremente os passos que me separam dele.
Uma vez mais o ancião guardou silêncio, mas não demonstrou
maior surpresa.
— Meu filho, há nas coisas muitas luzes e sombras
escondidas aos olhos dos mortais materializados.
— Deve ser assim, pai...
Antonio recolheu seus livros, e o ancião levantou um pouco
mais o cachecol cinza. As sombras saíram de seus esconderijos
habituais, dos rincões, e se estenderam pelo pequeno vale.
O ancião e o jovem, imersos em seus pensamentos, logo se
transformaram em dois pontos no caminho que levava ao povoado.
Quando o astro do dia se ocultou completamente, logo após a
pausa do crepúsculo, a vida renasceu entre as rochas, mas era uma
vida diferente que tomava alento nas trevas, e só conhecia a lua,
não o sol. Os pássaros noturnos e os morcegos iam de capitel em
capitel, de arco em arco, de ruína em ruína, como negros anjos
sinistros que levassem mensagens entre mundos malditos. Mil
murmúrios afloravam nos lábios de cada greta.
Lentamente, a rainha da noite ocupou seu lugar no céu, e, nas
sombras, surgiram concentrações, que se moviam percorrendo
pequenos círculos até se dissiparem de novo no ar frio e úmido.
De uma das brechas, por trás do destruído altar-mor, surgiu
uma sombra com aparência humana, e se dirigiu lentamente ao
encontro de outra, que a esperava entre os genuflexórios
carbonizados, manchados com o branco amarelado dos fungos.
— Já estava aqui... — murmurou a primeira sombra.
— Ouviste? — perguntou a outra.
— Sim! É ele, sem dúvida.
— Mas não se lembra...
— Afortunado! Quando nos libertarão desta maldição horrível
de recordar?
— Ainda desejas a felicidade?
— Só quero paz...
— Ele também a queria, para ele e para todo o mundo, e nós,
pelo menos a ele, a proporcionamos.
Uma risada parecida com o estalar de folhas secas terminou
com essas palavras.
— Recordamos por ele? — perguntou uma sombra.
A outra respondeu:
— O que mais nos resta? Recordar tudo e, por fim, recomeçar.
A recordação mata a vida, mas dá outra forma de vida da qual é
difícil se desapegar...
As duas sombras se perderam andando sob os restos de
galerias, mas seus fúnebres sussurros, enredados nas asas dos
morcegos, continuaram a ressoar por todos os rincões.
CAPÍTULO II - AS RUÍNAS

O borbulhar dos líquidos nas velhas retortas tinha para Pablo


Simón a misteriosa virtude do canto das sereias: arrancava-o de seu
insondável mar interior e o aferrava às rochas do concreto e do rude
continente material. Porém, rapidamente, como ventos marinhos, os
arautos invisíveis do horizonte lembravam-lhe sua natureza interior
de viajante.
Ergueu os olhos até ao postigo por onde se mostravam as
primeiras estrelas. A solução na qual trabalhava já estava quase
totalmente cristalizada. Logo, deveria fundi-la novamente em sua
cuba de ferro.
Como se este material fosse uma grande alma — pensava —,
manifesta de si milhares de cristalizações; logo se unem e
confundem na substância primeira, e assim até que dele todo reste
apenas um licor transparente, puro...
O entorpecedor canto das cubas perdeu importância, e se
afastou dos instrumentos, do forno e das retortas. Tirou o
pesadíssimo avental de couro e a camisa cor de chumbo.
O ar viciado do laboratório subterrâneo escapou de seus
pulmões assim que saiu ao frescor da noite, e ele se sentiu
repentinamente "lavado".
Começou a andar e seus passos lentos se uniram ao mais
rápido dos jovens estudantes que saíam à busca de aventuras e
bom vinho.
O jovem químico, que na época contava com 29 anos, jamais
se interessara por essas diversões, e, embora as tivesse provado
algumas vezes, só o fez arrastado pelos seus companheiros de
estudo, devendo simular um entusiasmo e uma alegria que não
podia sentir. Assim, depressa conseguiu se aprumar, e procurou
diversões ao seu gosto, embora parecessem aos olhos de seus
colegas torpezas de um jovem amargurado e estranho.
Lia muito. Durante as noites passava longas horas visitando
as maravilhosas grutas de sombra e perfume que se formavam por
baixo dos pinheiros. Muitas vezes, de rosto voltado para as estrelas,
olhava esses formidáveis olhos do céu, móveis, brilhantes, como se
perscrutassem as almas dos homens tentando descobrir os
segredos mais íntimos.
O sino da igreja bateu dez notas vibrantes quando Pablo
Simón chegou a um de seus refúgios favoritos. Ali, longe do mundo
dos homens, pôs-se a meditar a respeito de sua própria natureza e
a dos múltiplos filhos de Deus que o rodeavam.
Fazia já muitos anos que aquele castelo, construído sobre a
base de uma antiquíssima fortificação romana, fora abandonado e
destruído, a ponto de só restarem de pé seus espessos muros e
alguma torre fendida.
Ali, recostado sobre uma ruína, copiava a imobilidade da
paisagem, se identificava com ela, tentando partilhar o segredo
daquelas pedras veneráveis. Às vezes, do alto de uma arcada,
sobre as colunas romanas, como um novo anacoreta, contemplava
o dragão de suas dúvidas e temores, vencido por um instante pela
força inteligente de sua alma. Outras vezes, separava as lajes
derrubadas para passar sua mão sobre o polido mármore de alguma
estátua, tentando adivinhar quem tinha sido o último a tocá-la.
Talvez a própria dama que via plasmada na pedra, ou talvez um
nobre guerreiro que a tivesse admirado junto à glória do Antigo
Império...
Uma civilização após outra jazia a seus pés. Alguns muros
tinham visto o sol nos dias dos Césares, outros, há apenas cinco
séculos. Mas, nesse instante, a lua prateava todos, e não eram
nada mais que um heterogêneo conjunto de escombros.
Pablo Simón sentiu frio. À meia-noite, em pleno mês de
novembro, tinha um hálito forte e gelado, que interpretava nas
fendas das ruínas baladas tristíssimas e litanias augustas de
palavras estranhas. Em pé, no meio de um grande pátio
semidestruído pelo matagal, tinha a sensação de que nas galerias
laterais ainda ressoavam os passos dos guardas, e luzes fugazes se
aproximavam, curiosas, à beira das grandes janelas.
Pôs-se a andar sobre as pedras soltas que se lamentavam
dos passos que lhes perturbavam o calado retorno à Natureza,
profanando seu inegável direito de morrer em silêncio.
Seu pensamento se elevou sobre os murmúrios da terra. É a
alma absolutamente imortal? Se isso fosse certo, seria também
absolutamente infinita e igualmente livre... Mas — e aqui seu
pensamento descia ao concreto com a velocidade fatal de uma
pedra que rola ao abismo — como, então, existiam conhecimentos
proibidos, lutas entre religiões, homens que derramavam sangue em
nome de Deus? Todos os grupos proclamavam uma proteção divina
especial. Um mesmo Deus podia inspirar contrariedades? E se
alguns estivessem errados, tendo a Divindade em si mesmos, como
esta poderia negar-se e afirmar-se ao mesmo tempo? Ou seria,
acaso, o Criador de todas as coisas um louco formidável, uma
criança cósmica?
Todo esse problemático exercício acabava inexoravelmente
com a luta entre a razão e o princípio de autoridade. Mas que tristes
exemplos de autoridade espiritual tinha ao seu alcance...!
O jovem sentou sobre as ruínas do pórtico de uma capela e
imaginou a jornada que começaria a viver dentro de poucas horas.
Chegaria ao colégio paroquial, onde seus alunos de química e
matemáticas o esperavam. Inicialmente, teria de cumprimentar o
reitor. Depois, lecionaria para vinte rapazes boêmios ou brigões,
para os quais não havia ciência numérica que não fosse a dos
dados, nem química mais interessante que a provável obtenção de
um filtro amoroso. Esses eram os estudantes, os pensadores, os
futuros catedráticos, os guias da juventude, os artesãos do
pensamento filosófico e abstrato...
Pablo Simón se endireitou bruscamente. Várias noites,
acreditou ver reflexos de tochas entre os muros e as montanhas de
escombros e atribuiu isso a alguma alucinação ou fosforescência de
cadáveres enterrados. Mas desta vez o fenômeno fora demasiado
evidente e muito próximo para não lhe dar importância.
Por uma profunda greta que atravessava as lajes do
pavimento, surgira uma grande claridade em um espaço de cinco ou
dez segundos. O movimento do halo luminoso tinha lhe dado a
impressão de uma tocha levada a passo lento. Em três saltos estava
junto à greta. Estava escura e seu curso era demasiado irregular
para permitir ver qualquer coisa em seu interior. Mas um rumor de
vozes expandia-se no ar gelado da noite.
Pablo Simón não acreditava em fantasmas nem em bruxarias,
nem sequer nas terríveis lendas referentes a lojas de monstros,
diabos encarnados em cadáveres com aparência de vida, que
realizavam nefastas cerimônias das quais eram escravos todos os
homens, exceto os cristãos obedientes. Mas tudo isso não era
suficiente para afastar as frias mãos do medo que começava a
oprimir seu coração.
Vacilou vários minutos sobre se deveria afastar-se como se
não tivesse visto ou ouvido nada, ou investigar quem andava pelos
subterrâneos e catacumbas da antiga fortaleza.
A solidão e o local desolado não eram propícios a atos de
bravura, mas o espírito de investigação do jovem químico e um
oculto desejo que não podia compreender fizeram com que
decidisse não sair dali enquanto não desvendasse o mistério.
Entrou naquilo que fora antigamente a nave da capela e,
laboriosamente, aproximou-se do altar, quase intacto. No coração
do silêncio floresceu um rumor de vozes, como efêmera flor de
esperança. Pablo Simón desceu cuidadosamente a escada do altar
e viu no solo uma luminosidade vacilante que surgia por baixo de
uma laje. Examinou-a e descobriu com surpresa que era muito mais
leve do que seu aspecto imponente fazia crer. Não sem grande
trabalho conseguiu arrastá-la, e um tépido hálito bafejou suas mãos.
O buraco que cobria era uma espécie de túnel descendente, com
uma escada lavrada nas rochas. A poucos metros, uma grande
lâmpada de azeite pendia do teto iluminando os degraus, até onde
estes terminavam em outro túnel horizontal.
Começou a descer e conheceu a razão da leveza da laje que
fazia as funções de porta: estava escavada por baixo e se
assemelhava a um caixote invertido. Logo adiante, após andar pelo
corredor horizontal, teve que desce uma nova escadaria que levava
a um grande salão subterrâneo, semidestruído e cheio de
infiltrações de água. O recinto estava fracamente iluminado pela
última lâmpada ao pé da escada.
Dali não teria passado o valoroso impulso do jovem, não fosse
uma janelinha ao fundo da câmara, pela qual emergia certa
claridade. Assim, apelando a toda sua coragem e sondando, com o
olhar, os sombrios muros laterais, Pablo Simón foi ao encontro de
seu destino. O orifício, formado pela queda de um dos pesadíssimos
blocos, estava a mais de cinco metros de altura, e por essa razão
precisou elevar-se com apoio dos montes de escombros
acumulados por todos os lados. Ainda assim não conseguiu
alcançar o orifício, mas uma voz vibrante e serena como a de um
sino o imobilizou. A voz disse:
— “Abraxas é um galo e o galo canta antes do amanhecer” - e
uma espécie de coro respondeu com profundo acento.
O jovem, surpreso e emocionado, pensou que se
assemelhava a uma resposta da terra ante ao chamado do céu.
Sua atenção se voltou no sentido da frase que ouviu, mas, tão logo
o fizera, algo como um saco envolveu-o até os pés, e um fortíssimo
golpe na cabeça o arremessou para o fosso negro da inconsciência.
Ao despertar, a primeira sensação que percebeu foi uma dor
aguda na nuca e no pescoço. Logo se deu conta de que estava
deitado e abriu os olhos. Um homem totalmente vestido de branco
estava de pé a seu lado. Inicialmente, confundiu-o com um noviço e
acreditou estar em sua casa ou no colégio paroquial, mas logo se
percebeu que ele tinha a cabeça coberta por um capuz com orifícios
para os olhos e nariz.
— Onde estou? — perguntou enquanto tentava se levantar do
leito. Mas um violento puxão em seu punho esquerdo fez com que
caísse de costas. Só então se deu conta de que estava acorrentado.
— Por que estou preso? Quem és tu? — inquiriu indignado e
atemorizado.
— Tenha calma, irmão — pediu o encapuzado, colocando-lhe
a mão no peito. — Estás em uma cela subterrânea debaixo das
ruínas que tu visitavas à noite. Aqui não tenho nome humano, e não
poderia te dizer o que me identifica nestes recintos, nem valeria
nada sabê-lo. Aguarda em paz, pois alguém quer falar contigo.
Assim dizendo, fez soar um sininho de prata e entrou no
quarto outra pessoa de igual vestimenta. Ambos falaram em voz
muito baixa.
Entretanto, Pablo Simón tentava desesperadamente pôr em
ordem as suas ideias. Quem eram aqueles encapuzados? Embora o
tivessem agredido e amarrado, as suas palavras eram
extremamente bondosas e demonstravam uma serenidade interna
magnífica. Não pareciam diabos, bruxos nem bandidos, mas sim
sacerdotes ascetas cumprindo algum rito ou penitência.
Foi interrompido em tais especulações por seu branco
guardião, que o convidou com uma xícara de caldo e pedaços de
queijo e pão. Tão amável foi a oferta que o jovem aceitou-a de boa
vontade e, embora não muito comodamente, tomou a sua frugal
refeição.
— Quanto tempo permaneci inconsciente? — perguntou.
— Cerca de seis horas, irmão. Mas nós te examinamos e
asseguro que nada de importante te afetou.
— Seis horas! O padre Pedro estará furioso comigo. Nunca
falto ao meu trabalho de professor no colégio paroquial...
— Não te preocupes com ele, Pablo Simón. Descansa.
Voltarei logo.
Com essa recomendação, o encapuzado afastou-se,
abandonando o pequeno aposento.
No primeiro momento de solidão, o jovem conseguiu retomar o
fio de seus pensamentos anteriores, mas logo reagiu. O
encapuzado chamara-o pelo seu nome, embora na noite anterior, ao
ser surpreendido, não tivesse consigo qualquer elemento de
identificação.
Talvez alguém me conheça, ou terão me reconhecido durante
o sono, pensou.
Observou o aposento. Tinha apenas três metros de largura e
um pouco mais de altura. Não havia outro móvel além da sua cama
de madeira e duas cadeiras. Uma janelinha perto do teto acumulava
penosamente as funções de respiradouro e claraboia, mas, apesar
da semi-obscuridade, o jovem pôde observar atentamente o
encapuzado que cuidara dele. De alta estatura, delgado, vestia uma
humilde túnica de linho rematada por um capuz que cobria
inteiramente a sua fisionomia. Levava no meio do peito, abaixo e à
esquerda, uma cruz celeste, parecida à comum, mas que tinha algo
que intrigava Pablo Simón, que não conseguia definir o que era.
— Esta não é uma cruz comum, mas um cubo desenvolvido!
— exclamou em alta voz. Então uma certa luz se fez em sua mente.
Não seria uma Loja de Magos Brancos, talvez uma seita de cristãos
não corrompidos que, para evitarem a Inquisiçãopara evitar a
Inquisição, guardava precauções tão grandes?
Confortado por estas deduções, fechou os olhos e adormeceu
por alguns minutos, até que o pesado deslizar da porta o trouxe à
completa lucidez. Um encapuzado, que parecia ser o mesmo de
antes, observava-o. Finalmente perguntou-lhe:
— Podes manter uma conversa um pouco prolongada?
Sentes-te bem, irmão?
— Tão bem quanto um homem acorrentado pode sentir-se —
respondeu amargamente Pablo Simón.
Quem lhe fizera a pergunta deu lugar, então, a outro
personagem igualmente vestido, mas que portava um triângulo
luminoso dourado na fronte.
— A paz esteja contigo, irmão Pablo Simón Fosoletoe! Ouvi as
tuas últimas palavras.
O jovem observou-o sem poder esconder sua estranheza.
— Retribuo tua amável saudação, sejas tu quem fores. Mas,
como sabes meu nome e sobrenome? A tua voz não me é
totalmente desconhecida...
— Não te preocupes em saber com que nome atuo no mundo
exterior, ou dos "mortos", pois não ganharias nada com isso.
— Posso saber por que estou acorrentado?
— O homem é um ser estranho! Basta que lhe acorrentem os
pulsos ou o encerrem durante alguns dias para clamar,
desesperado, por liberdade, mas sente prazer em prazer em
autoacorrentar-se e em autoencarcerar-se nas suas paixões, vícios
e ignorância. Transformou o seu corpo em um cárcere e, apesar dos
sofrimentos, não deseja abandoná-lo...
— Pela forma como falas, pareces um doutor em Teologia,
talvez um cardeal ou um bispo. Porém a minha condição atual está
demasiadamente comprometida e humilhada para que possas
discutir metafísica. Segundo me parece, deve ser mais de meio-
dia...
— Acredite em mim, podes esquecer o colégio paroquial.
Responde às minhas perguntas com plena sinceridade e justeza,
pois disso depende a duração da tua vida. O Ideal que nos move é o
mesmo que lança o sol e os planetas pelas suas rotas celestes, e
devemos impedir os fracassos a qualquer preço. Tu és teu próprio
guardião. Dizendo-me a verdade e mantendo-te humildemente
sereno, nada te acontecerá, nem passarás por qualquer dificuldade.
As palavras do encapuzado estavam de tal forma cheias de
vontade e nobreza, que o jovem químico não duvidou de que não
vacilaria uma vírgula em cumpri-las.
— Cedo à razão da força. Eu te escuto e prometo ter calma
enquanto as circunstâncias não me obrigarem o contrário.
O estranho visitante tomou assento perto do leito e perguntou:
— Chamas-te Pablo Simón Fosoletoe, não é verdade?
— Assim me chamo.
— Terás outro nome. O teu nome terrestre sofrerá uma
transmutação no dia de seu matrimônio com Sofia. Ainda tens
oportunidade para isso.
O jovem fitou-o assombrado para logo perguntar:
— Como será essa transmutação? Não penses que suponho,
como a plebe ignorante, que Sofia é um súcubo de formas
tentadoras, com quem — no dizer do padre Pedro — jazem
incestuosamente todos os que não estudam nem rezam segundo os
mandamentos da Igreja. Conheço a etimologia dessa palavra grega
e seu significado: sabedoria ou conhecimento integral. Mas o que
pretendes fazer comigo?
— Alegra-me tua erudição e liberalismo. Que disse o padre
Pedro quando tu lhe contaste o que via e ouvia à noite nestas
ruínas?
— Nunca comentei isso com o padre Pedro! Como...?
— Cala-te! — interrompeu o encapuzado. Não comentou com
ninguém sobre este assunto?
— Não! Como poderia tê-lo feito? Nunca vi nem ouvi algo
substancial até que me aprisionou. Acreditei que era vítima de
alucinações ou de fenômenos de fosforescências.
— Sabes que, se mentires para mim, terás de pagar um preço
muito alto? — a voz tinha se tornado dura, e Pablo Simón sentiu-se
incomodado no leito. Finalmente respondeu:
— Sim... De qualquer maneira creio que perdi para sempre
minha liberdade e talvez minha vida... Mas não menti.
Pela janelinha viu-se correr sobre as nuvens o sangue do sol
poente, e as sombras da cela, vampiros ávidos, engrandeceram-se
perseguindo os últimos reflexos.
O encapuzado parecia meditar, e o jovem olhava tristemente
as pedras do teto. Por fim, o primeiro quebrou o silêncio com uma
pergunta definitiva:
— O que tu ouviste junto ao muro do antigo pátio
subterrâneo?
— Não entendi. Aparentemente não fazia sentido...
— Não interessa se entendeste! O que foi?
— Foi mais ou menos: “Abraxas é um galo e o galo canta ao
amanhecer”.
— Nada mais?
— Nada mais...
— Não viste nada?
Pablo Simón negou com a cabeça, mas o outro insistiu:
— Nenhuma cena? — ao fazer essa pergunta tirou do peito
um medalhão que, coberto, pendia de seu colo. Representava no
seu centro um homem com cabeça de galo. Um de seus braços
segurava um escudo oval e o outro, uma lança. À volta da figura,
havia sinais hebraicos e desenhos egípcios. O material parecia
ouro, incrustado com esmalte azul e brilhantes.
— Não vi nada, nem jamais algo como isso... O que
representa?
— Muitas coisas. É um símbolo de Deus e tem trezentas e
sessenta e cinco virtudes.
— Tantas como os dias do ano...
— És inteligente, Pablo Simón! Já tens material de sobra para
que nos carbonizem se recorreres a um inquisidor.
— Odeio a Inquisição tanto quanto tu podes odiá-la! Há três
dias queimaram em praça pública o pequeno filho de Nicolás, o
sapateiro, por ter ataques nervosos que se repetiram durante a
prática do exorcismo. Quando começou a gritar, na fogueira, sua
mãe abriu passagem entre os peitos dos cavalos da guarda e tentou
arrancá-lo das chamas. Um membro do tribunal mandou que a
atirassem ao fogo, pois o diabo também a tinha possuído. Enquanto
a pobre mulher era mantida no meio das chamas com as pontas das
lanças, esses lobos disfarçados de pastores elevavam as suas
cruzes e entoavam frases em latim.
— Eu também presenciei esse drama, Pablo Simón, mas é o
amor e não o ódio que há de nos unir. Estudarás as nossas
doutrinas e a tua fé em Jesus Cristo renascerá.
— E as minhas aulas no colégio, e as minhas investigações
químicas? Quando voltar a elas, dentro de um mês ou um ano, que
explicação darei? Porventura uma viagem? Não poderei alegar
nenhuma desculpa e esses fanáticos vão acreditar que me tornei
invisível... Me queimarão!
— Tu não podes queimar nem ser queimado. Teu corpo sim.
Mas não te preocupes, que não te acontecerás nada de mal —
respondeu a voz serena do encapuzado que, chamando aquele que
parecia ser seu discípulo ou ajudante, ordenou que retirasse as
correntes dos pulsos e dos tornozelos do jovem.
Poucos minutos mais tarde, abriram-se os pesados ferrolhos
da porta, e Pablo Simón permanecia sozinho, observando absorto a
negra dança das sombras que uma grande vela de sebo projetava
nas paredes.
Sem que o jovem suspeitasse, o anjo de seu destino o levaria
agora à mais fantástica aventura que um homem pode iniciar: uma
viagem através de si mesmo.
No meio da noite, acordou murmurando:
— Tenho de sair destas ruínas...
E uma espécie de eco longínquo repetiu-lhe a mesma frase,
mas seu sentido era diferente. Referia-se à emancipação da sua
alma da vida escravizada, cheia de limitações morais e intelectuais,
que levara até o presente. Talvez, nesta única noite, Pablo Simón
tenha aprendido a "ouvir"...
CAPÍTULO III - O DESENVOLVIMENTO ESPIRITUAL

À medida em que os dias passavam, esfumavam-se, um a


um, todos os temores e as precauções materiais de Pablo Simón.
Por vezes, traziam-lhe estranhas dádivas: uma dúvida a menos,
momentos de profunda paz, ou a alegria pura de contemplar um
amanhecer sem pensar em horários nem em compromissos
mundanos.
Paulatinamente, sua prisão foi se tornando mais voluntária.
Além disso, permitiam-lhe total liberdade em certos setores dos
subterrâneos, embora no exterior das ruínas sua liberdade fosse
condicionada pelo olhar de seus guardiões. Por isso, suas
caminhadas finalizavam ao nascer do sol, pois devia se manter
escondido dos poucos moradores que transitavam nesses lugares
afastados.
No fundo de seu coração, começou a crescer uma esperança,
como o tenro e poderoso talo que brota da semente; em virtude da
mesma Lei Divina, seu anseio se elevava, cada vez mais robusto,
levando em sua cúspide o oculto esquema de múltiplas realizações.
Várias coisas o intrigavam; antes de mais nada, a identidade
do misterioso encapuzado que o interrogara na primeira noite, que
parecia ser um dos chefes. Sua voz lhe era conhecida, apesar de
não soar natural, e a dedicação que demonstrava para com ele
acentuava sua curiosidade. Além disso, aquela fraternidade de mais
de cinquenta indivíduos, apesar de não parecer contar com nenhum
meio de aquisição monetária, possuía o necessário: alimentos,
roupas, medicamentos, livros e instrumentos. Mais de uma vez
tinham lhe mostrado grandes cestos cheios de víveres e remédios
caros, que depois eram abandonados em algum lugar do povoado,
em benefício dos muitos necessitados. Este curioso donativo
adquiria uma importância extraordinária para ajudar os lares
destruídos pela Inquisição. Em tais casos, também se enviavam
roupas, livros e pequenas somas de dinheiro.
Pablo Simón pôde apreciar que essas contribuições
filantrópicas eram executadas sem observar diferenças políticas,
sociais, nem religiosas; bastava estar verdadeiramente necessitado
para merecer, automaticamente, a ajuda da Loja. O jovem recordava
os mal-intencionados comentários que corriam na paróquia sobre
essas doações, às quais se atribuía uma origem diabólica e fins
maléficos; então, meditava tristemente a respeito da mentira e da
miséria moral em que estivera mergulhado.
Assim como a ascensão a um pico montanhoso não dá
verdadeira sensação de altura se não se vê os cumes se dissiparem
sobre a cabeça, para além das nuvens, e, embaixo, os nebulosos
abismos escuros, do mesmo modo Pablo Simón necessitou
conhecer os cumes do saber e dos mundos insondáveis de suas
recordações.
Aristóteles lhe era bastante conhecido, pois seu Organon era
a base filosófica da época. A escolástica pendeu para a forma, com
a construção silogística do famoso discípulo de Platão, mas
colocando sempre em primeiro lugar o iniludível Magister dixit,
monumento à vaidade humana com rosto de infalibilidade.
Os misteriosos irmãos da Fraternidade o colocaram em
contato com Platão, conhecido como "o Divino" por aqueles que
conseguiam interpretá-lo. O jovem já havia lido os Diálogos, mas
fragmentados, assim como pequenas partes de A República; agora
podia desfrutar de livros mais completos, sem cansativos
acréscimos nem interpolações dos tradutores, onde se tentava, por
todos os meios que a apologética oferecia, colocar na boca do
amado discípulo de Sócrates o que jamais havia passado por sua
mente.
Ler com liberdade o levava, inconscientemente, a pensar de
igual modo. Fazia isso sem travas receosas disfarçadas de virtudes,
como aqueles que creem que o pecado, pelo fato de se vestir a
túnica virginal, transforma-se em nobreza e moralidade. Cansado de
tanta farsa, devorava volumes impressos e manuscritos durante
quinze horas diárias.
Um dia, seu guardião e protetor lhe trouxe uma Bíblia de
modelo corrente, mas o jovem a afastou dizendo que não tinha
nenhum valor ao lado dos tratados da Antiguidade Helênica. Depois
de o observar um instante, a voz serena e grave do encapuzado lhe
respondeu:
— Creio que não te ofenderás por isso, mas devo esclarecer
que esta atitude é tão torpe como a de um homem que repelisse
uma obra de arte em joalheria, por exemplo, pela única razão de
não ter podido retirar a lama que a envolve. Agora, te ensinam a
limpar essa joia, Pablo Simón, e eu te asseguro que, de certa forma,
esta obra vale tanto quanto as de Platão e Aristóteles.
— Como pode ser bela? Eu a li e reli mil vezes, a conheço
quase de memória, e agora que minha mente superou seus temores
e que posso pensar livremente, eu a vejo cheia de contradições,
contos fantásticos e inúteis. Alem disso, cada concílio lhe extrai ou
acrescenta um trecho...
— Eu não te disse: “toma esta joia limpa, perfeita e reluzente”.
Mas o aconselho: limpe isto que tem nas mãos tanto quanto puder.
Encontrarás no seu interior coisas muito valiosas e as mais perfeitas
que humanamente se podem construir.
— Humanamente, foi o que disseste? Isso me confunde.
Nunca vi a Bíblia como obra humana, mas sim de Deus. E quando
deixei de vê-la assim, não pude encontrar nela grandes méritos.
— A ti sucede o mesmo que a uma criança mantida enganada
na crença de que seu pai, sendo médico, tivesse o poder de curar
todas as doenças. Ao ver o erro, cairia no outro extremo e não
encontraria nada de bom em seu progenitor. Mas se a criança do
meu exemplo raciocinar um pouco e procurar a justiça e a verdade,
terá de reconhecer que, embora tivesse exagerado as virtudes de
seu pai, este podia curar alguns males e atenuar um pouco os
restantes.
Pablo Simón sorriu diante desse comentário e pediu que
voltassem a tratar do assunto mais amplamente.
— Assim o faremos — respondeu o guardião —, mas espero
que, ao fazê-lo, esqueças toda apologética e todo raciocínio frio e
formal. Procuremos, antes, o sentido comum, a simplicidade e o reto
pensamento em sua profundidade, embora não sigamos os estritos
cânones aristotélicos.
— Prefiro assim...
— Bem, ao pôr do sol, virão buscar-te para levar-te até mim.
Para o jovem, a passagem do astro pelo céu nunca pareceu
tão lenta. Perguntas que jaziam enterradas em seu coração, vagos
temores atávicos, raciocínios que mal começam a engatinhar em
sua ânsia de se elevarem sobre a dúvida, lhe enchiam a alma de
impaciência. No fundo de seu subconsciente, ele queria comprovar
as verdades aceitas pelos antigos cristãos, discípulos do Mestre, e
seu desprezo por essa literatura não era mais do que um grito de
desespero, apenas silenciado entre as mãos piedosas de Platão.
Uma ceia frugal, imagem da sobriedade não exagerada que
imperava naquela exótica comunidade, marcou com o seu término a
hora do encontro.
Ao ser conduzido à superfície da terra, encheu os pulmões
com os perfumes da primavera nascente. Já fazia noventa dias que
permanecia ali, e o mês de abril do ano de 1578 começava sua
corrida para a morte.
Aquele que o esperava estava a vinte passos de distância,
contemplando os flancos montanhosos nos quais brilhavam pontos
de luz: janelas de lares campesinos, abertas sobre uma mesa
humilde, mas com o inigualável asseio das coisas simples. Sua
túnica era escura, assim como as de uma dúzia de outros
encapuzados que descansavam no meio das ruínas. Assim
vestidos, era impossível reconhecê-los a mais de trinta passos e,
ainda que um estranho os visse, passariam sem dúvida por monges
de alguma seita pouco conhecida.
Pablo Simón se dirigiu com passos lentos até ao lugar que lhe
indicaram.
— A paz esteja contigo, Pablo Simón!
— O mesmo te desejo...
Silenciosos e imóveis, como figuras de um grande quadro
realizado em sépia, permaneceram junto aos altos muros cobertos
de líquens. A noite, muito escura, sem lua, ressaltava o misterioso
florescer das estrelas.
O encapuzado tomou o jovem suavemente pelo braço e
conduziu-o a um lugar afastado, onde as colunas derrubadas
recordavam sua antiga majestade.
— Assim caem as obras dos homens, uma vez que o tempo
ou o defeito tornam-as inúteis. Do mesmo modo, perecem as
religiões, depois de cumprirem seu objetivo. Mas recordes, Pablo
Simón: tal como se constroem, junto a colunas caídas, novos
edifícios que as substituem, também uma religião, quando morre, é
substituída por outra e outra. E todas elas são manifestações
limitadas pela época e pela situação geográfica, embora sejam fruto
de uma mesma necessidade e emanações da mesma fonte.
Portanto, todas elas são igualmente divinas, dependendo a sua
maior ou menor perfeição da qualidade do veículo utilizado — nós o
chamamos de Mestre — e da colaboração que encontre entre seus
discípulos.
Terminadas essas palavras, o encapuzado o convidou a se
sentar sobre algumas pedras. Assim, se assemelhavam mais ainda
à paisagem. Após um curto silêncio, o jovem perguntou:
— Se a religião cristã assentou suas raízes na hebraica, tal
como parece evidente, como é que ainda existem hebreus no
mundo? Se o cristianismo veio substituir essa antiga religião, como
então, em muitas questões medulares, estas doutrinas são
antagônicas?
— Dize-me, amado jovem, já viste um rio morrer no mar?
— Não, mas sei como é.
— Sabes, então, que a separação das águas em doces e
marinhas é muito difícil e imprecisa. Enquanto junto à foz se pode
diferenciar a segunda, em outros pontos, há vários quilômetros da
costa, a água é doce.
— Já li a esse respeito.
— Assim, há zonas de transição, semimarinhas. De igual
modo, uma religião, por exemplo a hebraica, deu origem à cristã,
mas parte dela continua com vida própria, cumprindo sua função
para certo número de indivíduos. Também do seio da religião cristã
nascerá, dentro de quinhentos ou mil anos, uma nova religião que
coexistirá muitos séculos com a que lhe deu origem, a qual se verá
pouco a pouco reduzida a congregações de baixo nível numérico.
Essa é a lei que nos rege, e seu cumprimento é só uma questão de
tempo.
— Vejo tudo isso como muito provável e até verdadeiro. Mas,
sem querer importunar-te em demasia, se essas duas religiões, e
ainda outras, são inspiradas pela mesma força divina, como se
opõem em certos fragmentos das suas doutrinas, e seus partidários
se odeiam mutuamente? Confesso-te que esta pergunta tem me
martirizado mais de uma noite... E há outra: é um único Espírito que
anima estas várias religiões que coexistem? Pode uma só alma
vivificar vários corpos ao mesmo tempo? Acreditas em mim,
misterioso amigo: não te interrogo pelo prazer de me opôr às tuas
argumentações, que são as mais sensatas que já ouvi, mas para
apagares, se é possível, as minhas dúvidas que, como fogo lento,
carbonizam com o tempo a torre das minhas ideias...
— Serei veraz, Pablo Simón. Tentemos transmutar o chumbo
dessas dúvidas no ouro do reto conhecimento. Vamos por partes. Tu
dizes que há religiões que se opõem e que seus partidários se
odeiam. À primeira vista, tenho de te dar razão, pois assim indicam
as aparências. Mas eu te pergunto: se opõem realmente em seus
fundamentos ou em diversidades secundárias, elementos
agregados ao corpo central? A circuncisão é, por exemplo, algo
muito importante para os hebreus, e, no entanto, os cristãos a
repudiam ao extremo de preferirem ver seus filhos mortos do que
entregues a esse rito. Muito bem, mas a circuncisão é algo
fundamental na religião de Moisés, ou somente uma prática
secundária, com fins mais fisiológicos que espirituais, e que ao cair
nas mãos de sacerdotes ignorantes e de povos fanatizados
transformou-se em algo primordial? Não figura nas Tábuas da Lei
que, segundo a tradição, Moisés recebeu no cume do Monte Sinai
ou "Montanha da Lua"... E por acaso nas partes em que os
evangelistas concordam, naquelas em que é mais provável que se
tenha respeitado a palavra de Jesus, há referências sobre se se
deve ou não, obrigatoriamente, realizar essa prática? Tu sabes que
não. É desnecessário fazer citações. Todos temos a Bíblia à mão
para consultá-la. O mundo está cansado de citações, sermões,
concílios e "guerras santas". A Humanidade quer fatos, realidades.
Se pregamos a mansidão, não instiguemos a guerra, não só contra
os homens, mas também contra as mulheres e as crianças, como
ocorreu nas cruzadas. Ao nos dizermos humildes e seguidores de
Jesus Cristo, não manifestemos ira pela menor ofensa, nem
levemos uma vida faustosa no meio de povos enfraquecidos pela
fome e pelo frio, pobres escravos que só servem para amassar o
pão dos tiranos... Se todos somos irmãos na fé de Cristo que, como
sabes, ele próprio foi circuncisado, não nos detenhamos em
detalhes externos, nem expulsemos dos postos importantes homens
legitimamente capazes para colocar, vantajosamente, nossos
parentes. Na atualidade, tal arbitrariedade se espalhou até mesmo
aos assassinos profissionais e às mulheres públicas, aos quais se
outorgam títulos honoríficos em troca de seus amores e de seu
dinheiro.
A voz habitualmente serena do encapuzado estava velada de
emoção. Em uma época de injustiças monstruosas e assassinatos
de enfermos e crianças epiléticas, era muito difícil ter visão
suficiente para permanecer completamente sereno.
Alguns minutos de silêncio caíram como piedoso sudário
sobre as fúnebres lembranças de ambos os homens... No fundo de
seus cérebros, o filho do sapateiro continuava clamando: "Mãe,
mãe, vão me queimar!". Com a imaginação, voltavam a ver a mulher
mantida nas chamas pelas lanças que penetravam sem piedade nas
suas carnes escurecidas e rasgadas pelo fogo.
— Nós nos afastamos um pouco do tema, Pablo Simón.
Tentemos retomá-lo com a máxi...
O encapuzado se calou bruscamente e se ergueu de um salto.
Pablo Simón seguiu seu olhar e viu um dos irmãos da Fraternidade
correndo desesperadamente até eles, ultrapassando os obstáculos
com grandes saltos. Ao mesmo tempo, os restantes, velozes e
silenciosos, desciam pelas portas-alçapão dissimuladas. Pareciam
espectros absorvidos pelas fendas das próprias sepulturas.
— Irmão, irmão! Onde está o Irmão Doze? Onde está o
Dezesseis?
— Junto à torre, creio... Mas o que é que se passa? Pareces
muito alarmado, amado jovem...
— Não sem razão, Irmão Onze. Grupos numerosos de
homens armados bloqueiam todos os acessos a esta zona, e pelo
antigo caminho do portão oeste avança o padre Pedro à frente de
uma comitiva de cinquenta homens armados até aos dentes,
soldados escolhidos da Inquisição... Estão chegando!
O encapuzado que trouxera tão nefasta notícia partiu como
um raio em direção à torre em ruínas.
Pablo Simón, que tinha escutado tudo, avistou apenas ao
longe uma coluna de homens em marcha. Seu rosto, de feições
firmes, havia se endurecido notavelmente, e os lábios finos estavam
esticados sobre os dentes apertados com força.
— Vê, Pablo Simón — disse-lhe o encapuzado com a
serenidade e doçura acostumada. — Eu posso sair bem desta, mas
se te virem, serás pasto da fogueira.
— Não importa! Não posso deixar-vos sozinhos entre esses
assassinos!
— Fala baixo! Corre já ou não terás tempo!
— Não vou, e ai do vilão que te tocar ou fizer alguma coisa!
— Eu te disse que desejava a nossa união pelo amor e não
pelo ódio...
— Meu ódio é amor à Humanidade! Eu não sou um santo!
Indignam-me as matanças!
— Basta! Já estão aqui. Esconde-te onde puderes. Não te
mexas nem fales, nem fiques demasiado surpreendido pelo que
verás... De qualquer maneira, lembra-te que, se fugires, os irmãos
da Loja terão de impedir que nos denuncie....
— Não fico por medo, mas por gosto... Não sei quem tu és,
mas te desejo boa sorte!
O jovem se afastou alguns passos e se meteu por uma fenda
entre as ruínas. Dois homens silenciosos que tinham se aproximado
do encapuzado se uniram a ele silenciosamente.
A cem passos de distância, se erguiam no ar várias tochas e,
à sua luz, um grupo de homens atravessou a muralha semidestruída
que circundava o antigo castelo. Pablo Simón, que espiava pela
fenda de um largo muro, viu como os três encapuzados escondiam
seus capuzes debaixo de pedras, cingiam cordas à cintura e se
transformavam em perfeitas imitações dos integrantes do clero
regular... Ou o eram realmente?
Entre os homens que se aproximavam, armas brilhavam à luz
de uma vintena de chamas. Imediatamente, distinguiu-se a figura do
padre Pedro, alto e corpulento, abrindo os braços para conservar
um duvidoso equilíbrio sobre os escombros que cobriam os antigos
pavimentos. O fogo das tochas fazia o rosto do clérigo obeso
parecer ainda mais vermelho. Suas feições eram delicadas: nariz
pequeno, queixo esfumado e olhos que reluziam astutamente no
fundo de duas grandes rugas. Não era um homem de altos ideais,
nem de inteligência poderosa, mas havia desenvolvido tal
vivacidade mental e engenho que, no momento oportuno, era um
inimigo difícil de vencer.
Nesse instante, os primeiros porta-tochas se aproximaram dos
três integrantes da Loja. Pablo Simón pôde apenas conter uma
exclamação de surpresa: o misterioso encapuzado com o qual tinha
conversado era, na vida pública, seu tão conhecido padre Mateos.
Com razão lhe reconhecia a voz! — disse para si mesmo Pablo
Simón. Os outros dois, só os conhecia de vista. Pertenciam à capela
nova, sobre as montanhas.
— Padre Pedro! O que é toda esta demonstração de força
bélica? — disse o padre Mateos olhando para dois homens que
apoiavam suas armas de fogo sobre uma coluna caída.
— Padre Mateos! Vejo que, ao menos, ainda estás com vida
— zombou o outro ironicamente.
— O que se passa? Será que a minha vida esteve em perigo?
— Não poderia assegurar, mas o fiscal inquisidor Longinos,
aqui presente, tem certas suspeitas.
O tal Longinos entrou na luz das tochas, todo manchado de
sombras. Altíssimo, magro, integralmente vestido de negro e com os
olhos escuros, cintilantes, era a real imagem de seu nome: "nascido
para ferir"...
— Padre Mateos, pela graça de Nosso Senhor, soube que
nesta zona uma fraternidade de ateus se reúne para impudicos
bacanais.
O ex-Irmão Onze teve de fazer um grande esforço para não
rir; voltou a prestar atenção quando o outro dizia:
— Temíamos por ti, senhor, pois hoje é sexta-feira e neste dia
costumam se reunir. Sabia que tu frequentas estas ruínas durante
suas meditações, e mobilizei meus homens a pedido do nosso
amado padre Pedro...
— Estamos muito agradecidos, Longinos, mas não vimos nem
ouvimos nada de anormal — retorquiu outro dos irmãos da Loja.
— De qualquer maneira, acredito, Longinos, que deves
revistar bem estes recantos. Quem sabe encontras algum infiel
escondido. Não te pareces uma boa ideia, padre Mateos?
— Não saberia o que dizer, padre Pedro, mas, se teu coração
manda, faças isso...
Os homens armados se espalharam em patrulhas de cinco ou
seis, e se perderam entre as ruínas. Uma dúzia deles ficou com o
grupo de eclesiásticos.
— Bem, padres, qual é o tema de vossas meditações? —
inquiriu brincalhão o padre Pedro.
— A consciência — respondeu o padre Mateos. O senhor não
acredita que essa voz interna, que tão bem nos aconselha, é, de
certa forma, o Cristo de Paulo que está no fundo de todos os
homens, e o qual temos de libertar?
— Ah, Padre Mateos! O senhor é sempre o mesmo filósofo;
mas, com menos filosofia e com mais fé, podemos dizer que, se a
consciência de um homem é grande, a de toda a Santa Igreja é
maior. Apenas nos resta obedecer aos seus cânones; ela é o reflexo
de Deus na Terra, e o homem não pode pretender competir com
Deus...
Mateos mordeu os lábios ante aquela exposição mais
interessada em sustentar um engenho político e uma ordem social,
que particularmente lhe convinham, do que na verdade.
Vários minutos transcorreram em silêncio, e os três
conjurados faziam proezas para aparentar calma, enquanto as
tropas dos inquisidores, recrutadas entre bandidos e assassinos
profissionais, passavam e voltavam a passar sobre as portas-
alçapão. Mateos tinha mais um motivo de angústia: Pablo Simón.
Assim, tanto para dizer alguma coisa como para dissimular melhor,
perguntou ao padre Pedro:
— Não lamenta tê-los molestado, abandonando o bom fogo da
paróquia?
O aludido se sentou sobre uma coluna, ainda ofegante, e,
batendo no ventre com a ponta de seus dedos gorduchos,
respondeu:
— Na verdade, preferiria um bom vinho de minha adega a
este ar frio e úmido.
— Faria bem recordar Isaías, que assinala que o vinho pode
até causar a perdição de um profeta... — a observação do mais
jovem dos irmãos se excedeu indubitavelmente, caindo na
imprudência.
— Há outras coisas a temer, mais próximas do que Isaías! —
explodiu em fúria. — Longinos! Vai pessoalmente com as patrulhas,
que removam as pedras dos pátios, desçam aos subterrâneos e
escalem as torres!
— Assim farei, padre Pedro!
A mente do encarregado paroquial trabalhava melhor por
reação, e aquela afronta tinha despertado seu fino instinto de cão de
caça.
Mateos se inquietou ainda mais, apesar de saber que os
subterrâneos comumente conhecidos tinham sido deixados intactos
propositadamente.
O ruído dos escombros removidos se elevava entre as
sombras como rumores de alguma batalha distante.
Finalmente, quando o sol já tinha se elevado dez graus sobre
o horizonte, Longinos regressou para junto do padre Pedro, com as
roupas rasgadas e as mãos cruzadas por fios de sangue seco.
— Aqui não há ninguém! Descemos aos subterrâneos e estes
estão desertos e arruinados. Não se encontra o menor rastro de
infiéis. Padre Pedro, meus homens estão cansados, raivosos e
sedentos; te aconselho a me mandar suspender tanto trabalho inútil.
Atrás dele, uma vintena de foragidos apoiava com feroz
atitude a petição de seu chefe.
O padre Pedro, ambicioso e impiedoso, amparava esses
homens, tratando-os com especial deferência e fartando-os de
presentes e prazeres. Por isso, não estranhou a proposta de
Longinos.
— Malditos cães! Eles nos viram chegar e fugiram. Retire teus
homens, Longinos, e nos escolte até à paróquia!
Um murmúrio de aprovação se elevou da turba, e com uivos
alegres comunicaram a notícia aos companheiros mais afastados.
Os três juramentados e seus acompanhantes partiram
rapidamente em direção ao povoado, deixando alguns homens para
que montassem guarda até que chegasse a rendição ou se
definisse a situação.
Pablo Simón permaneceu o dia inteiro quase imóvel,
emparedado vivo. A fenda onde se escondera se abria em um muro
romano de três metros de espessura, e, com muito trabalho, ele
havia fechado as bordas de ambos os lados, se cobrindo ao mesmo
tempo com escombros.
Em tão reduzido espaço, esperou que as sombras
dissipassem lentamente a paisagem e, procurando não fazer muito
barulho, saiu de sua prisão.
Uns poucos guardas do Santo Ofício tagarelavam junto ao
fogo líquido de um garrafão de licor.
Mal podia se mover, pois a longa permanência em tão
incômoda posição lhe afetara todos os músculos. Com grandes
precauções, pôde chegar a uma das entradas secretas, cuja porta
figurava uma pesadíssima lousa de pedra. O jovem, se assegurando
de que não era observado, deu uma pancada tal como vira os
conjurados fazerem. Esperou, mas não ouviu nenhum ruído
embaixo. Experimentou corrê-la, mas notou que seus pesados
ferrolhos estavam fechados, e nem mesmo cem homens
conseguiriam deslizá-la.
Os passos de um dos soldados o fizeram se lançar no vão de
um antigo portal. Dali pôde ver como as botas lustrosas amassavam
na terra a efêmera lembrança dos passos. Quando o ruído dos
mesmos se perdeu no vento, abandonou seu refúgio. Voltou à porta-
alçapão, bateu com uma pequena pedra, mas não obteve a menor
resposta. Uma vez mais experimentou movê-la, e notou com alegria
indescritível que, ante seu esforço, deslizava silenciosamente. Pablo
Simón se deteve e, afastando-se alguns passos, inspecionou bem
os arredores. Estava só; a duzentos metros, ardia a fogueira mais
próxima. Regressou à entrada secreta e, o mais rápido que pôde,
abriu o suficiente para deslizar seu corpo pela abertura; embaixo,
tudo estava em absoluta escuridão e silêncio. Desceu um par de
degraus e começou a fechar a abertura. Quando conseguiu,
percorreu os degraus restantes até à galeria de acesso.
Imediatamente se abriu uma porta lateral. A luz tênue permitiu-lhe
ver que estava rodeado por uma dúzia de encapuzados; outras
tantas espadas se aproximaram lentamente do seu corpo.
— Estás só? — perguntou uma voz.
— Sim. Abaixem estas espadas, irmãos! Consegui enganar os
homens de Longinos... Depois de os conhecer, não sinto a menor
atração pelo mundo comum.
As espadas não se moveram, e a mesma voz insistiu:
— Diga-nos a verdade! Se algum guarda estava por perto, é
certo que te viu e te seguiu. É melhor saberes; assim taparemos
esta galeria com entulho e poderemos despistá-los. Se fugiste
deles, deve nos dizer!
— Eu te repito que ninguém me persegue. Permaneci de pé
vinte horas para que não dessem com nenhuma entrada... De quem
não tenho notícias é do padre Mateos. Irmãos, deixem-me
descansar, por piedade!
A estas palavras do pobre jovem, baixaram automaticamente
as pontas das espadas, e um dos conjurados, que parecia um
chefe, o acompanhou até uma câmara próxima, dizendo:
— Deves perdoar, querido jovem, o tratamento recebido; mas
Jesus também ensinou que devemos defender o nobre contra as
encarnações do mal. Para nós, esta Fraternidade é algo muito nobre
e muito mais cristã do que outras associações de vãs idolatrias e
fanatismos sanguinários. É um refúgio para os poucos cristãos
verdadeiros que, embora perseguidos e exterminados, conservam o
privilégio impagável de serem bons, verdadeiros e isentos de ódio
para com aqueles que, em vez de sentirem Deus por meio do nosso
doce Mestre, o fazem por intermédio de Moisés, Plotino, Maomé ou
qualquer outro. Todos eles recomendaram o Bem e a Virtude...
Agora descanse; alimente-se e depois será acompanhado ao seu
quarto a fim de que durmas o quanto quiseres. Talvez amanhã o
Irmão Onze esteja conosco...
Pablo Simón, acomodado em um banco de madeira, comeu
um grande prato de sopa, pão e bebeu várias taças de água.
Poucos instantes depois, deitava-se vestido no seu rústico leito,
adormecendo de imediato.
— Bom dia, Pablo Simón.
Ali, sem o capuz, o rosto do padre Mateos se iluminava com o
melhor dos sorrisos. De cabelo castanho claro, quase loiro, olhos
cinzentos e tez tão branca como uma hóstia, o padre Mateos
parecia um nórdico, apesar de nascido perto da costa do
Mediterrâneo. Era um desses homens extraordinários que parecem
estar tão bem oficiando uma missa como tripulando um navio ou
dirigindo um exército. Próximo dos cinquenta anos, aparentava
poucos mais que Pablo Simón, e do alto de sua estatura se
derramavam tesouros de vital otimismo.
— Padre Mateos! Eu te desejo um muito bom dia! Como
pôdess deixar o padre Pedro? E Longinos? Os outros irmãos
voltaram?
— Quantas perguntas! Bem... eu também perguntava muito a
princípio... Tudo corre bem. O padre Pedro acredita que estou em
viagem pelas montanhas, e Longinos, embora talvez me odeie mais
do que o sacerdote, carece, como ele, de provas e se conforma em
esperar minha queda. Ninguém te viu?
— Não; permaneci escondido até à noite. Mas o padre Pedro
suspeita do senhor e do lugar... Parece-me que corremos todos um
grande perigo...
— Não penses que seja assim tão grande. Tenho relações na
Cúria que travam os nossos inimigos, desconcertando-os e fazendo-
os lutar uns contra outros; eles têm a desvantagem de serem
amantes do ouro, da boa mesa e das mulheres. Tudo isso, você
sabe, Pablo Simón, traz torpeza e debilidade.
— Há cardeais e bispos nas fraternidades herméticas?
— Há, e muito mais do que possas supor.
— Como, então, continua a Inquisição e o vampirismo
econômico sobre os povos escravizados pelo terror e pela
superstição? Por que não reimplantar no Ocidente o verdadeiro
cristianismo, inteligente e bondoso?
— Pela simples razão de que, no plano divino, essas
perfeições estão reservadas para o futuro. Numericamente, eles são
cem vezes mais poderosos do que nós e seus meios político-
econômicos apresentam vantagens em proporção semelhante.
O semblante do Irmão Onze se tornara sombrio e, embora
finas, as numerosas rugas de sua fronte traçaram sinais de
preocupação e dor.
Já vestido, Pablo Simón o acompanhou pelas galerias até
uma das celas-biblioteca. Ao fim de dez longos minutos, o silêncio
foi quebrado sob o peso destas tristes palavras:
— Muito doloroso é confessar-te, meu querido jovem, mas a
maior parte do povo também está contra nós... Os camponeses e
operários, no fundo gente boa, mas ignorante e embrutecida pelo
fanatismo religioso e pelo terror político, preferem um credo que lhes
diz: “Entra nas hostes do Santo Ofício e poderás matar, roubar e
fornicar livremente às expensas dos infiéis; tudo te será perdoado,
pois o farás servindo a Deus”. Ah! Quanto se tem escravizado em
nome da liberdade, quanto sangue derramado enquanto se
proclama a bondade e a mansidão! Chegaria até às nuvens a pira
funerária formada com os cadáveres dos sábios imolados em nome
da sabedoria!
O sacerdote ficou em silêncio de novo, e pouco a pouco a
doçura habitual que caracterizava suas feições retornou. Depois,
convidou Pablo Simón para almoçar em sua cela.
O dormitório do padre Mateos não era melhor que o do jovem,
quase tão pequeno quanto aquele, do mesmo feitio; estava
mobiliado com um leito, um par de cadeiras rústicas e uma mesa
como as usadas nos lares campesinos. Inúmeras inscrições e
símbolos sagrados, traçados sobre pergaminhos ou gravados em
madeira, cobriam quase a totalidade das paredes.
O quarto tinha a sóbria simplicidade e a extrema humildade de
um mosteiro rigoroso, mas não sua sensação de tristeza nem de
abstinência forçada pelas circunstâncias. Muitas das gravações e
dos desenhos foram executados com arte excepcional, e sobre a
cama com colchão de palha havia um cubo desenvolvido em forma
de cruz septenária, construído em ouro maciço.
Um dos irmãos da Loja serviu-lhes um substancial almoço que
ambos aproveitaram com bom apetite.
— Dentro de três horas devo voltar à paróquia. — murmurou o
Irmão Onze.
— Bem enfurecido estará o padre Pedro!... Padre Mateos, o
senhor ia falar hoje sobre a idolatria...
— Perdoe-me interrompê-lo, mas peço que não me chames
de padre, pois todos temos um só, e é Deus. Eu sou teu irmão... Se
eu me tornar teu mestre, poderás me chamar de "padre", mas de
maneira mais espiritual.
— Tens razão, mas a força do hábito é, por vezes, mais
poderosa do que a das avalanches e torrentes.
— Os hábitos e costumes são torrentes morais diante das
quais é preciso construir diques de inteligência, para que essa força
se canalize pelos canais da reta ação e do discernimento.
— Assim deve ser. Eu te interrogava, irmão, sobre a idolatria.
Em seus sermões, o padre Pedro e outros têm atacado o culto às
imagens como obra de infiéis, mas não é de certa forma idolatria o
culto que nossos fiéis rendem às estátuas de virgens e santos?
— Não só de certa forma, mas de toda; o crime é tão ruim
aqui como na China, e tanto faz cometê-lo vestido de preto, branco
ou vermelho. Se criticamos outros, é servil e canalhice imitá-los.
Dentro do cristianismo é comum, em qualquer uma de suas seitas,
ver sinais evidentes de idolatria. Em Apologética somos ensinados
que os fiéis adoram o Deus Único por meio das estátuas dos santos
ou das relíquias consagradas; se fosse assim, pouco importaria ao
cristão adorar Deus por meio de Santo Inácio ou da Virgem das
Dores. A realidade é outra: cada qual é devoto de um ou de vários
desses personagens, e lhes é muito desagradável render o mesmo
culto a outro que, talvez, mereça as preferências de seu pai ou
irmão. Verificamos assim que o povo, em sua integridade, tem
divindades subalternas, as quais, em sua crença, podem ajudar a
que se aproximem do Deus Único; e ainda escolhe algumas dessas
divindades como semideuses familiares ou pessoais.
— Isso já é idolatria.
— Sim, Pablo Simón, mas se parasse aí não seria
completamente e talvez se aproximasse mais de um panteísmo
emocional.
— Também é verdade...
— O problema é pior; costuma-se adorar um mesmo santo em
mil imagens diferentes; mas tenta levar a imagem de um povo a
outro, traz a este a do outro... Verás que os fiéis repudiam as
imagens estranhas, reclamando as próprias, às quais atribuem
poderes milagrosos, em especial curativos. Muitas vezes na cúria
tropeçamos com o inconveniente de imagens que, por estarem
deterioradas, caem aos pedaços; mas é impossível substituí-las,
pois a maioria dos crentes se levantaria em armas. Este estado de
coisas não pode ser atribuído ao fanatismo da massa popular, mas
àqueles que o inculcaram, a fim de respeitar o antigo aforismo que
diz: “É mais difícil manejar um sábio do que mil ignorantes”. As
autoridades, acostumadas a pregar uma coisa ao mesmo tempo que
realizam outra, se desmancharam em insultos contra a idolatria,
mas a instituíram em sua forma mais grosseira... Conheces as
chamadas "virgens negras"?
— Sim. Acredita-se que são muito milagrosas e, algumas, de
origem divina...
O sacerdote não pôde dissimular um sorriso e exclamou com
picardia:
— Que magnífico sentido de humor tem o Destino dos
homens! Escuta, Pablo Simón, estas estatuetas de madeira ou de
pedra negra pertencem à época pagã. A maioria são “Astarté”
manufaturadas no Império Romano, e outras, em especial, cujo
nome considero prudente reservar, têm uma antiguidade de mais
dez mil anos. Pertenceram a um culto desaparecido, na ilha de
Poseidonis ou suas adjacências, último resto do continente atlante.
Possuem, na verdade, uma grande carga energética fixada por
procedimentos mágicos, baseados em conhecimentos sobre a
Natureza e a Psicologia, hoje perdidos, salvo para uns poucos. Uma
delas foi encontrada na areia de uma praia, banhada pelas ondas, e
aproveitada em absoluta ignorância de sua procedência. Tu vês
que, às vezes, até a Divindade se permite certas brincadeiras... Hoje
lhe rendem culto fervoroso como a uma relíquia cristianíssima... O
que se adora, sem dúvida alguma, é a própria segurança, disfarçada
de um santo ou outro; pede-se proteção, a vida de um amigo e a
morte dos inimigos. Pede-se outra coisa quando se bendizem as
armas antes de um combate? Diz-se que não há nada mais tétrico
nem hediondo do que o cadáver de um homem, mas eu te asseguro
— ó aspirante à Verdade! — que pior e mais repugnante ainda é o
cadáver de uma religião. Entre suas macerações germinam os
vermes espirituais, e não demora para que o que foi frente ampla,
lugar luminoso da inteligência, transforme-se em descarnada
concha de um amorfo e venenoso molusco. Para nossa desgraça,
há religiões que nascem quase mortas, pois, tão logo nascem,
vandalismos são cometidos em seu nome... Já é hora de ir-me
embora... De tanto te aborrecer com minha conversa, te mostrarei a
não me fazer "soltar a língua". — acrescentou sorrindo.
Em poucos minutos, despojou-se da sua túnica e vestiu os
hábitos do clero regular; voltava a ser, em aparência, o padre
Mateos.
Com os passos de seu bondoso instrutor, as sensações
externas se afastaram de Pablo Simón. Em seu fechado recinto
interior, crescia uma ânsia de realização espiritual incontida. Queria
iniciar-se nos Mistérios! Sim, ele, para quem poucos meses atrás a
vida não oferecia uma única esperança digna de ser acariciada,
abrigava agora a maior a que um homem pode aspirar, a promessa
de todos os Mestres, de todas as religiões: a perfeição espiritual.
Os dias foram passando serenamente para o jovem; tudo que
o rodeava era nobre e puro. Em seu laboratório de química havia
aprendido a metodizar o trabalho, mas de uma forma instintiva,
rotineira. Nas criptas das “Ruínas”, seu método foi mais espiritual:
igualdade no esforço, mas diversidade maravilhosa na canalização
do mesmo. Todas as jornadas lhe pareciam distintas; cada uma lhe
ensinava algo, e sua alma, alimentada com os místicos manjares da
paz, da sabedoria e da beleza, crescia sã, alegre, decididamente
forte.
As pálpebras adormecidas dos rebentos abriram-se no alto
das árvores, e a vista do sol encheu seus troncos e ramos de seiva
nova. Pablo Simón contemplava o mundo das coisas que o
rodeavam como se fosse a primeira vez; tudo o fascinava como a
uma criança pequena. Passava as horas observando o rápido
crescer dos fungos, o retorno das andorinhas, e ouvindo as vozes
estranhas que se refugiavam nas copas dos pinheiros durante as
noites de tormenta.
Mas o jovem enamorado pela Verdade sofria ao mesmo tempo
que se regozijava, destino fatal e inevitável de todo aquele que
ama... Não encontrava pleno sentido nesse acúmulo de potências e
perfeições que é a Natureza. O pior para o homem é não encontrar
fim e sentido na bondade e na beleza. Por esse caminho se chega,
insensivelmente, ao conceito selvagem e realmente ateu de um
Deus pessoal que se alegra ou se entristece; que, caprichosamente,
se deixa arrastar pela ira e tem povos eleitos e povos odiados,
superando assim em torpeza e maldade o comum dos mortais
quando são pais e distribuem seus amores entre todos os filhos.
Pablo Simón havia se libertado das travas mentais e
psicológicas que lhe inculcaram durante tantos anos, mas, destruída
sua velha choça espiritual, estava agora sujeito à intempérie, com
seu magnífico palácio ainda por fazer. Alma evoluída demais para
deslizar pelo materialismo ou para o culto estéril da angústia,
esperava... Um misterioso "algo" o levaria ante um mais misterioso
"Aquilo".
As árvores, despertadas para um novo ciclo de consciência
física, advertidas de sua nudez, cobriam-se apressadamente com
vestes de folhas. O sol cada vez se elevava mais ao zênite, e
milhões de florzinhas silvestres realizavam o esforço igualmente
prodigioso de se erguer em direção à luz.
Um dia, que lhe pareceu mais radiante que os outros, Pablo
Simón tomou coragem e se apresentou ao Irmão Onze, solicitando-
lhe formalmente ingressar na Loja como discípulo. Só a ideia de que
poderia ser recusado lhe travava a fala e punha um fugaz tremor em
seus dedos.
O Irmão Onze, com sua dulcíssima bondade e prudência,
depois de felicitá-lo por tão sagrada iniciativa, advertiu-o:
— O caminho que eleges é o dos espinhos; não escaparás
deles; nem mesmo nosso Mestre Jesus Cristo conseguiu evitá-los.
Como grande instrutor nos Mistérios, teve que estudar, lutar e sofrer
proporcionalmente. Ouve, Pablo Simón, se te é imprescindível
satisfazer teus desejos cada vez que eles se manifestam, não sendo
teus escravos, mas teus reis; se amas mais os filhos da carne que
os do espírito; se queres morrer docemente recostado em um leito,
foges da trilha estreita, pois ela glorifica os fortes, mas torna loucos
e precipita os débeis.
O sol caía enfraquecido sobre os picos das montanhas.
Ambos ficaram silenciosos, ocultos em um beco das ruínas. O Irmão
Onze, absorto em seu interior; Pablo Simón, impressionado pelo
tom e expressão com que lhe falara. Depois, para suavizar um
pouco suas advertências, o encapuzado acrescentou:
— Mas alguns de nós, que escolhemos este caminho há
muitos anos, o percorremos sem muita dificuldade... e somos muito
felizes...
Pablo Simón elevou seus olhos até aos do instrutor, e os viu
conterem tanta paz que não pôde evitar um estremecimento de
temor ante o desconhecido. Que inimigos estariam à tua espera na
"Trilha Difícil"? Teria valor suficiente? Não seria muito tarde para
começar?
As respostas correram impetuosas da boca do Irmão Onze:
— Lembra-te: o homem mais débil, aliando-se à Divindade,
torna-se o mais forte, e ele sozinho é maioria frente a todos os
demais. Tua idade física o favorecerá. O homem erra por ser
extremista: não creia que tua Iniciação seja algo fácil, mas
tampouco extremamente difícil.
O jovem não pôde evitar transparecer seu assombro ante a
facilidade com que lera seus pensamentos.
— Não é nada de extraordinário; todo instrutor,
aparentemente, lê na alma de seu discípulo, mais em virtude de sua
experiência como ex-discípulo do que por poderes parapsíquicos...
Não temas o Mistério, seja teu filho predileto: sabe que o maior
mistério, a raiz mesma do enigma, é o motor imóvel do universo, e a
ele só se pode chegar por meio da sabedoria. A ação e a inação; a
bondade e a maldade; todos os diferentes reinos da Natureza,
visíveis e invisíveis, não são mais do que campos de prática,
caminhos longos ou curtos que levam inexoravelmente à sabedoria.
— Mas o senhor predica e, o que é mais importante, realiza o
bem. Pode o mal chegar a Deus?
— Não, se por Deus se entende o sumo Bem; mas tu deves
sem escapatória possível, transmutar-te mais cedo ou mais tarde. A
bondade é a maldade transmutada pela força da evolução, e o mal é
o bem caído na involução.
— São, então, o Bem e o Mal, em essência, a mesma coisa?
— Acaso poderá haver duas essências absolutas? Podem
coexistir duas forças absolutas? Você sabe que não. O essencial
deve, forçosamente, ser uno.
— Então, venerável irmão, o bem e o mal são a mesma coisa,
os dois a mesma essência?
— A essência é una, mas ela está para além do bem e do mal,
tal como os apreciamos com nosso presente estado mental. Ela
está "por detrás", permita-me o termo, de toda manifestação. Isso é
uma verdade evidente na Natureza, e a ascese mística o confirma,
em que pesem os mentalistas que desejam reduzir tudo ao
inteligível e ao inteligente. O cachorro é manso e amigo do homem:
nós dizemos que é bom; o leão, pelo contrário, parece uma
encarnação do indomável e, se puder, despedaça e devora quantos
seres humanos se coloquem ao seu alcance: o chamamos de
animal daninho, mau. Mas são, na realidade, seres bons e maus?
Não será, porventura, a nossa apreciação emotiva e mental que
julga pelos fatos externos, completamente a priori? O cão é bom
para suas vítimas ou para os animais que despedaçamos a fim de
alimentá-lo, para as peças de caça que entrega à morte nas mãos
do homem? Por outro lado, o leão é mau para as árvores, rochas e
borboletas?
— Irmão... podemos comparar uma rocha a um homem? Não
é este infinitamente mais valioso?
— Talvez à tua vista, mas não à da Divindade que nos rege.
— Perdoe a minha insistência...
— Só me preocupa o que a provoca: a ânsia de saber.
— Queria dizer que o senhor mesmo afirmou que nós só
podemos apreciar o manifestado, o formal. Como, então, conhecer a
opinião de Deus ou da Divindade, como a chama?
— O Deus que tu provavelmente concebes, guiado pelos
conceitos comuns, não é exatamente o mesmo que a Divindade a
que eu me refiro, mas, para o caso, tanto faz. Vejamos, como
conheces as opiniões políticas de um compatriota?
— Pelo que diz, escreve ou faz.
— E o gosto culinário de outro, por acaso não o notarás pelas
iguarias que escolhe para sua mesa?
— Creio perceber onde quer chegar...
— À Verdade, Pablo Simón! Assim como nesses exemplos,
podes conhecer os pensamentos da Divindade por meio de suas
obras. O sol aquece todos os seres, e todo o imenso manancial de
recursos naturais complementa-se e equilibra-se entre si de tal
forma que a ninguém falte o necessário para seu desenvolvimento.
Tão abundantes são as reses para as feras quanto as sementes
para os pássaros, os elementos químicos, o calor e a pressão para
as rochas. Não vemos nisso preferência. O alimento de um chacal
seria para nós repugnante, tal como para ele as nossas comidas
finamente aromatizadas.
— De acordo, mas a inteligência é uma vantagem?
— É um dom e uma vantagem para o homem, pois tem seus
veículos físico, emocional e mental adequados para isso; mas seria
da mesma maneira em outro ser da Natureza sem essa
preparação? Acaso um revólver não é uma arma de defesa nas
mãos de um homem e um perigo nas de uma criança ou de um
louco?
Pablo Simón notou que uma estranha serenidade, que sempre
sentira cantar entre as brilhantes folhas cósmicas da árvore da
noite, descia sobre ele. Esse "algo" tantas vezes pressentido
aproximava-se dele, crescendo a cada passo em sua perspectiva de
espera e esperança. Por fim, atreveu-se a outra pergunta:
— Ó sábio irmão, é a perfeição desses veículos que atrai a
chispa divina da inteligência, ou é esta que aprimora os primeiros?
Em outras palavras: a inteligência está potencialmente em todos os
seres, mesmo nos animais, ou desce dos Céus como um prêmio?
— Querido jovem, é o rio que lavra seu leito, ou são as zonas
de depressões naturais que reúnem água suficiente para fazer um
rio?
— Curiosa pergunta! Creio que os dois fatores se
complementam.
— Crê bem; mas acaso a água, que ao final será rio, não
desceu anteriormente do céu? E não desceu movida por uma lei
que responde ao chamado da necessidade e vontade natural das
coisas? Aí está a resposta à tua pergunta: a água nas nuvens é a
Inteligência, ou melhor, a mente cósmica; o rio é a mente humana; e
o leito, os veículos inferiores do homem sobre os quais se assenta e
corre.
— Compreendi, irmão, mas de uma forma diferente da que
estou acostumado a compreender. Não foi só minha mente, mas
também uma espécie de poder intuitivo que responde sob sua voz.
— O termo "compreender" tem um significado muito mais
vasto e poderoso do que comumente se lhe atribui. Saiba por ora,
Pablo Simón, que todas as religiões, nas suas mais puras origens,
assim como a Filosofia, em todos os tempos, consideraram o nosso
sistema solar como um grande corpo orgânico, cujo centro e
coração é o Sol, sendo os planetas restantes órgãos do mesmo.
Entre todos eles se intercambia a energia primordial que, uma vez
impulsionada pelo astro-rei, percorre sistemas arteriais e venosos
energéticos até o limite de seu reinado ou corpo. O espírito que tem
como corpo físico tudo isso, e cujo "ponto de consciência" radica no
Sol, é o nosso Deus, o único que as nossas limitadas faculdades
podem conceber. Ele, por sua vez, é discípulo, e está compreendido
em outro organismo estelar maior, e o espírito desse outro é seu
Deus. Aconselho que, antes de julgares o que te exponho, faz um
esforço para te libertares de todo preconceito e sentido vulgar do
possível e do impossível. Recorda as palavras do doce Mestre:
“Assim é em cima como é embaixo”; esse mesmo conceito foi
ensinado por todos os Mestres anteriores, e continuará se repetindo.
Lembra-te de teu filósofo preferido, Platão; seu “Conhece-te a ti
mesmo” te dará a chave. Se estudares de que maneira teus
princípios sutis se relacionam com seu corpo e suas funções, não
será difícil ver o que te assinalei anteriormente em escala
infinitamente maior. Em teu corpo vivem muitos seres... Tenta
desvendar este mistério... Não pede mais luz; ao contrário, desfaça-
te da tua cegueira!
— Tudo isso é muito estranho...
— Sim, porque tu foste educado com outras ideias já
deturpadas pelas interpolações e mutilações, e nelas não reconhece
a estrutura geral que te expus. Mas rompe as tuas barreiras
mentais! Voa, ó filho dos Céus! Analisa e sintetiza tudo muito
serenamente, e, se depois preferires o que te ensinaram antes,
podes continuar acreditando nisso sem mais pressão de minha
parte. Eu não sou predicador de nenhuma escola nem religião, pois
estudo todas, e só me interessa a essência comum de todas. Não te
imponho nenhum dogma: indico-te um caminho; não te crio
obrigações de submissão mental: pelo contrário, chamo à tua razão
e te quero livre; finalmente, não falo de nada que não creiaa
verdadeiro nem te peço mais do que normalmente faço. Medita
sobre tudo isso, Pablo Simón, e se na próxima primavera estiveres
seguro de querer iniciar-te na Ciência Sagrada, nos recônditos
Mistérios, te farei entrar na Loja e te abraçarei como meu filho.
Os olhos do Irmão Onze refulgiram na noite com o brilho das
estrelas azuladas. Apoiou suas mãos nos ombros do jovem e disse-
lhe em voz muito baixa, mas que chegou até à raiz de sua alma:
— Jamais deves te esquecer do que te digo agora. Tu tens um
ano de prazo; se em teu transcurso mudares de opinião a respeito
do pedido que hoje me formulou, para nenhum de nós haverá
motivo de ressentimento. Amarei a ti do mesmo modo e, muito
provavelmente, se prometeres não revelar o que viste e ouviste,
voltarás para tua antiga vida, deixando aqui muitos e fiéis amigos.
Mas, se depois de cumprido o prazo e iniciado, pretenderes ter uma
vida comum ou desonrar a Fraternidade, aviso-te que não terás
alento para realizá-lo. Ainda assim, poderás ir embora quando
quiseres, mas teus votos não se quebrarão, nem sequer com a
morte. Pensa bem, Pablo Simón!
As mãos baixaram de seus ombros, e o instrutor, sorrindo
bondosamente, mostrou-lhe a entrada dos subterrâneos.
A pressão do mundo oculto tornou-se cada vez mais evidente
para o jovem aspirante, e a Divina Unidade da Natureza
apresentava-se a ele por toda parte. À medida que os meses
desciam ao mundo cristalizado das coisas passadas, Pablo Simón
sentia-se mais e mais compenetrado com a Fraternidade, sendo seu
principal motivo de vida a possibilidade de ingresso nos Mistérios.
Como um pedregulho lançado ao fundo de uma torrente, ia se
limpando das impurezas aderidas há muito tempo, e o contínuo
atrito com aquele meio transparente e ágil polia as asperezas de
sua alma, tornando-a lentamente esférica, brilhante.
Com a chegada do outono, ganhou serenidade, e algo que iria
influir profundamente em sua vida aproximou-se de seu caminho.
Conhecera-o na paróquia sob o nome de padre Justino. Tão jovem
como ele, possuía uma constituição física frágil. De estatura
mediana, olhos grandes e infinitamente bons, rosto de feições
perfeitas, infantis, aparentava dez a menos dos anos vividos. A
Pablo Simón, ele nunca lhe pareceu simpático nos vários anos que
o conhecera. Ele, cientista pensador, destemido e sóbrio em suas
expressões, não podia ter a mesma inclinação daquele místico
extremamente devoto, tímido, aparentemente incapaz de todo
pensamento abstrato, de qualquer luta, por melhor que fosse a
causa que a impulsionasse. Havia classificado ele entre aquele
grupo de homens que, demasiado tímidos ou pessimistas para se
enamorarem de uma mulher, entregam-se a Deus com um amor
cego, estúpido, fundamentado no medo, na sensação de debilidade
e no mórbido prazer de se auto-martirizar.
Porém, o padre Justino que pudera conhecer nas "Ruínas"
demonstrava-lhe diariamente que seus juízos haviam sido
apressados e injustos. Debaixo de sua aparência frágil, feminina,
escondia-se um coração imenso, capaz de lançá-lo a qualquer
sacrifício por um semelhante. Sua vontade de ferro dissimulava-se
por trás de um caráter submisso e doce. Longe do misticismo dos
sentidos e dos choramingos, amava um Deus inominado, sem forma
nem atributos humanos, por meio da Natureza. Todo ele era, enfim,
a imagem do tipo mais evoluído dentro do caminho devocional, ao
qual pertenceu, sem dúvida, o próprio Mestre Jesus.
Embora não fosse permitido que ninguém na Loja, exceto o
Irmão Onze, conversasse com Pablo Símon, houve uma exceção
neste caso, e quase todas as noites os dois jovens dialogavam por
mais de meia hora sobre temas filosóficos e religiosos; às vezes o
Irmão Onze também assistia. Esses diálogos faziam um bem
inestimável ao futuro discípulo. Abriam-lhe a possibilidade outorgada
pelo viver próximo de alguém com idêntico sonho – coisa que
necessitamos e para a qual, ao mesmo tempo, somos necessários.
Compreendeu que se pode ser amigo de um jovem para outras
razões muito mais elevadas do que beber ou se divertir
estupidamente. Pablo Simón jamais tivera um amigo, e este lhe
alegrava ao extremo.
De repente, o padre Justino, ou o Irmão Oitenta e Dois, como
ali se chamava, deixou de assistir às reuniões noturnas.
Evasivamente, o Irmão Onze informou Pablo Simón, dizendo-lhe
que por razões alheias à sua vontade o mantinham afastado na
paróquia; mas o jovem notava uma alteração e um nervosismo em
todos os irmãos; vários deles, os mais jovens, mantinham
discussões acaloradas.
Por fim, soube: seu amado companheiro fora preso pela
Inquisição no cárcere do povoado. Havia sido julgado e, ante as
acusações de Longinos, declarado culpado. Tudo isso significava
uma só coisa: a fogueira! O próprio corregedor, talvez prevendo
revoltas populares, esforçou-se por executá-lo o mais breve
possível.
Pablo Simón correu ao encontro do Irmão Onze, quando este
chegou ao pôr do sol.
— Senhor, por que me ocultou o fato? Vai morrer! Vai morrer
na fogueira!
— Cala-te, pobre jovem! Agora, que ganhas em sabê-lo?
Dizes que morrerá: isso é ignorância; a morte não existe para os
que não querem vê-la. A Vida segue indestrutivelmente, ora
vivificando um corpo de carne, ora de energia... São novos
objetivos... Logo aprenderás acerca de tudo isto.
— Eu sei, irmão, eu sei! O espírito não pode morrer, mas não
"sinto" isso em meu coração! Vão queimá-lo! Que fará a Loja?
— Todo o possível dentro do que é sábio.
— Assaltemos a prisão inquisitorial!
— Por favor, Pablo Simón, não te alteres! Tens de lutar pelos
ideais, não pelos homens! Não queres saber o que pensa o Irmão
Oitenta e Dois?
— Sim, mas apesar de qualquer coisa que diga, sei que no
fundo ele terá medo...
— Enganas-te! Esse jovem tem uma grande presença
espiritual e conseguiu em poucos anos um alto grau na
Fraternidade, acompanhado da correspondente realização interna.
Para ele, abandonar o corpo não é nada grave; está tranquilo e
espera sua morte com excelente humor.
— Irmão Onze...!
— Cala-te já, Pablo Simón! Não fales por falar, protestando
inutilmente. Medita a respeito do que eu te disse e aproveites,
extraindo ensinamentos. Assim deseja o jovem encarcerado que
não te esquece.
— Gostaria de vê-lo!
— Talvez seja possível, embora duvide. Agora te retire para
tua cela. Necessito pensar. — acrescentou com cansaço apenas
dissimulado.
Pablo Simón despediu-se tristemente e afastou-se até entrar
pela porta-alçapão.
Essa noite dormiu ao amanhecer. Havia tido o primeiro choque
com a Loja. Ele não estava de acordo com essa imperturbável
serenidade nem com a atitude de pacífica aceitação por parte de
seu amigo. Além do mais, não via a morte como todos eles; ainda a
temia, embora soubesse que cometia um erro. Mil vezes disse a si
mesmo que o Irmão Onze tinha razão; mas sua ira logo rompia
esses pacíficos raciocínios e, com seus pedaços, construía
apressadamente planos absurdos.
Com o desenrolar dos dias, seu ânimo foi se acalmando. Por
outro lado, era zelosamente vigiado a toda hora...
Um dia, o Irmão Onze entrou inesperadamente em sua cela e
disse:
— Amanhã ao amanhecer ele será queimado na praça do
povoado. Lá terá a única oportunidade de vê-lo que posso te
oferecer.
— Ah, irmão! Durante esses dois meses já havia me
convencido da ideia e, entretanto, o meu coração se exalta de novo.
Perdoa-me... Há coisas que não entendo e que me angustiam
terrivelmente!
— Não te culpo. Apenas peço que também procures não nos
culpar. Isso deixaria muito triste o Irmão Oitenta e Dois.
— Não leves a sério meus disparates, suplico. Mas sofro
muito! Não poderei vê-lo morrer. Dize-me, irmão, de que o acusam
esses abutres?
— Antes de te responder, quero lembrar-te que esses indignos
membros do Santo Ofício ainda são teus irmãos, e que deve odiar o
mal que mora neles, mas não sua pessoa, simples instrumento de
suas paixões, temores e crenças.
— Acaso não são culpados?
— Sim, mas tens tu o direito de ser juiz? Não existe para isso
a Lei Divina?
— Essa lei também não está em mim?
—Sim; mas tu és seu servidor inconsciente, e se tentas ativar
teu papel executivo, podes exceder-te e provocar enormes reações
dessa lei sobre ti e sobre o que tu proteges. Quanto à tua pergunta,
te direi que nosso irmão, o padre Justino para "os de fora", possui
certas faculdades psíquicas que, reforçadas pelo conhecimento aqui
adquirido, lhe permitem curar especialmente doentes nervosos. Tu
sabias disso?
— No seminário, ouvi certas referências, mas não acreditei
nelas até que conheci aqui o Irmão Oitenta e Dois.
— Tem uma mente muito flexível e tão extremada pureza, que
dispõe de grande força vital harmonizadora. Acredita em mim, Pablo
Simón, é um jovem boníssimo, excepcional.
— Eu sei e o reafirmo, querido irmão!
— Pois bem: nosso amigo comum, movido pelo seu bom
coração, realizou curas cada vez mais importantes, sem distinguir
entre pobres ou ricos, cristãos ou judeus. A princípio, o clero não se
preocupou, atribuindo-as à oração e aos hábitos. Logo se falou que
só isso não bastava para dominar assim a Natureza, a não ser que
estivesse filiado a algum "centro oculto" e, enfim, que era um
endemoninhado. Há quase três meses, ele curou de uma paralisia o
filho de um justiçado pela Inquisição, e essa foi a chispa que fez
estalar a pólvora. Sua bondade e mansidão colocaram em apuros o
padre Pedro, Longinos e o Tribunal, pois tem a aparência perfeita de
um mártir, e o povo o ama e teme ao mesmo tempo; estão
convencidos de seus poderes mágicos. E por isso vão queimá-lo!
Como se Jesus Cristo também não os tivesse!
— Mataram-no a Ele também...
— É verdade... Virás?
— Sim... Tentarei...
— Disfarçaremos a ti; ninguém te reconhecerá se nos
obedecer em tudo. Espero que não faças loucuras e afundes
contigo a nossa Loja. Eu respondo por ti perante o Grande Mestre
da mesma.
— Não te preocupes. Prometo-te prudência.
Três horas antes de as sombras emigrarem para oeste, Pablo
Simón estava vestido com os hábitos de uma pequena ordem de
monges montanheses. Ao sair, uma dúzia de irmãos da
Fraternidade igualmente disfarçados, com a manta e o capuz a lhes
cobrir quase totalmente o rosto, o acompanhavam.
Caminhavam em silêncio, levando grandes bíblias, com a
cabeça curvada. O jovem aspirante caminhava repetindo para si
mesmo que devia guardar serenidade, transcender a ilusão das
formas; mas se seu andar era lento e sossegado, seu coração corria
loucamente para se enfrentar com o destino.
No povoado, tão grande como uma pequena cidade, notava-
se uma atividade anormal. Grupos de camponeses e representantes
das mais longínquas ordens eclesiásticas convergiam para a grande
praça central. Os irmãos da Loja andavam agora mais juntos e
trocavam frases curtas em voz baixa. Um deles, aparentemente o
chefe, acendeu uma grande tocha, iluminando a passagem dos
outros e imitando assim os demais núcleos clericais.
Quando Pablo Simón e seus companheiros entraram na
praça, os pequenos mensageiros do astro-rei haviam começado a
tingir as nuvens altas. A igreja paroquial elevava sua grande torre
quadrada, como monstruoso bastão de mando em uma corte de
pesadelo.
Pouco a pouco, todas as coisas foram tomando um matiz
avermelhado a fim de se porem de acordo com o sanguinário
espetáculo. Ali, no meio da praça, erguia-se o símbolo funesto de
toda uma idade da Humanidade, de uma época de ignorância. A
roda cíclica, em sua eterna rotação, precipitava uma vez mais o
Ocidente na anarquia e no fanatismo do culto aos totens. Os
Sagrados Mistérios da Religião sem nome da Sabedoria haviam
sido reduzidos a umas poucas cidades do Egito, a centros isolados
na Grécia e, finalmente, na Idade Média, os restos disseminados da
antiga Fraternidade da qual tão entusiasticamente falaram Píndaro,
Platão, Protágoras, Juliano e Ésquilo, sobreviviam raquíticos, mas
heroicos, nas catacumbas romanas e nos sótãos de toda a Europa.
Sim, ali se elevava a pira da Inquisição, a ameaça dos livres-
pensadores, poetas, físicos, astrônomos ou químicos. Jamais um
fogo provocara tantas trevas como as das piras inquisitoriais. Sobre
a praça, pareciam ressoar as palavras do anjo apocalíptico: “Ai dos
homens!”.
Pablo Simón estava a ponto de chorar de raiva e desespero
quando um membro do clero regular se aproximou murmurando:
— Se tu és Pablo Simón, saberás que arde o Oitenta e Dois...
— Sim. Quem és tu, irmão?
— Pouco interessa agora. O Irmão Onze ordenou-me que te
pedisse para me acompanhares.
Os companheiros do jovem aprovaram silenciosamente com
suas cabeças.
Caminharam uns cem metros até à rua lateral do seminário;
uma carroça estava cercada por mais de cem guardas comuns e
outros tantos do Santo Ofício montados em cavalos brancos. Um
guarda saiu ao encontro deles, e o falso monge mostrou-lhe uma
tabuleta de cera com um selo; imediatamente, o oficial deu uma
ordem e o cerco se abriu, dando passagem aos dois visitantes. Na
negra carroça, o padre Justino, consumido, coberto de feridas
gangrenadas, sujo e vestido de farrapos, aguardava-os com o mais
bondoso de seus sorrisos. Ao ver Pablo Simón vacilar, fez-lhe um
sinal para que se aproximasse.
Já junto dele, o jovem não podia compreender como dentro de
um corpo tão dilacerado podia habitar uma alma tão alegre e doce,
como durante as pacíficas conversas nas "Ruínas". Ali havia outro
aspecto que o sacudia rudemente ante as portas da Loja: essa
gente conseguia interromper, mediante sua vontade, a comum
interdependência entre a alma e o corpo.
Os guardas afastaram-se uns vinte metros, e assim puderam
falar tranquilos.
— Pablo Simón! Meu pobrezinho! Por que te trouxeram a um
espectáculo que tanto pode afetar-te?
— Eu pedi, amigo!
— Já o supunha... Talvez te sirva de algo... Depois... Sim, te
servirá...
— Não sei de que falas, mas quero ajudar-te. Pedi ao Irmão
Onze que te libertássemos pela força, para salvar-te do espantoso
tormento da fogueira.
—Pediu-lhe isso! Como terá rido esse sábio!
Seus pálidos lábios esticaram-se em um franco sorriso que
nada tinha de triste nem de zombeteiro.
— Como podes ter esse ânimo?
— Porque tenho conhecimento e amor à Divindade. O que
pode acontecer "a mim"? O fogo consumirá esta vestimenta de
carne, mas não me tocará; eu não me identifico com meu corpo,
mas com meu espírito imortal e inacessível a todo dano. Platão
ensina isso claramente: tudo é uma questão de fixar a consciência,
meu querido.
— Mas como, em nome de Deus, podes falar tão
serenamente? Acaso podes evitar a dor?
— Poderia, mas que virtude há nisso? Devo reservar minhas
energias para me elevar aos mundos sutis, de onde possa ajudar a
Humanidade e estar mais perto de Nosso Senhor. Sofrer é pagar
dívidas. O sofrimento liberta e renova as potências internas. Acaso
existe parto sem dor? O nascimento para a vida espiritual requer
sangue e lágrimas. A crucificação deu-nos a ressurreição.
— Tens medo?
— O importante não é isso, mas evitar que o medo nos tenha.
O homem deve ser senhor até de suas debilidades... Vai já embora,
Pablo Simón! Os membros do Santo Ofício estão impacientes... Sêe
sempre bom, estuda e lembra-te de mim! Eu me lembrarei de ti!
— Padre Justino! Irmão! – Pablo Simón mal podia pronunciar
qualquer palavra, afogado pela dor e pela indignação, mas uma mão
de ferro cravou-se em seu braço, arrastando-o rapidamente até à
praça.
Esta transbordava de gente. À luz do sol nascente, podia se
ver o palco especial para os clérigos, o do tribunal do Santo Ofício e
a companhia dos arcabuzeiros reais, que havia tomado lugar em
frente deles. As autoridades políticas do povoado também tinham
lugares privilegiados, junto aos eclesiásticos. Sob os toldos, as
damas mais notáveis se regozijavam perguntando sobre as
emoções da jornada e interrompendo seus sussurros unicamente
para trocarem significativos olhares com seus confessores.
Grandes núcleos de religiosos rezavam em coro pela salvação
da alma condenada.
Pablo Simón e seu acompanhante misturaram-se de novo
com os integrantes da Loja, não sendo pequeno seu espanto ao
avistar o padre Mateos, pálido, mas sereno, conversando no palco
com o padre Pedro, que nesses dias seria nomeado cardeal. Seu
ventre volumoso e seu rosto inflamado revolviam-se inquietos ao ver
a multidão de camponeses que rodeava a praça.
Essa gente boa e simples estava cansada da sangria
econômica de seus amos e da inoperância de seus sacerdotes. O
padre Justino havia curado muitos deles, demonstrando ter
verdadeiro poder espiritual e um singular conhecimento das virtudes
dos vegetais. Agora iam queimá-lo, enredado em uma trama de
invejas, ódios e falsidades.
Alguns golpes lentíssimos em uma bateria de tambores
anunciaram a entrada da carroça na praça, rodeada pelo esquadrão
montado do Santo Ofício; em frente, caminhavam os exorcizadores,
sacerdotes que — alguns acreditavam e os demais fingiam acreditar
— tinham o poder de espantar as hostes diabólicas.
Então, a heterogênea multidão se levantou em terrível alarido.
Ali, elevavam-se os ganchos de ferro das armadilhas de caça; acolá,
os bêbados costumeiros gesticulavam no ar sem ter a noção de
distância; além, os chefes das ordens civis, carregados de armas e
joias, repetiam o nome do mais humilde, do mais manso dos
Mestres. Enfim, todos os substratos da sociedade humana
exacerbavam os ânimos de um pobre povo embrutecido pela dor,
pela peste, pelas misérias e pelas superstições.
O padre Justino, coberto integralmente por uma túnica e um
capuz vermelhos, com diabos negros pintados, era sustentado de
pé por dois membros do Santo Ofício que o acompanhavam. A
caravana se deteve diante dos palcos nos quais ondulavam as
bandeiras. Cessaram os golpes dos tambores, e, depois de um
curto rufar, Longinos, sem descer de seu branquíssimo cavalo,
atirou para trás o capuz que cobria o rosto do acusado. O aspecto
destroçado do padre Justino arrancou uma surda exclamação entre
seus companheiros do clero regular e seus beneficiados. Ele
abarcou a todos com um sorriso, que se fez mais amplo ao se
enfrentar com Longinos; este caracaleou seu corcel, dando-lhe as
costas.
O pregão inquisitorial informou acerca das acusações que
pesavam sobre o jovem. Ele era acusado de praticar feitiçaria, de ter
um diabo dentro do corpo radicado no fígado, de antropofagia com
cadáveres de crianças degoladas e, finalmente, de pertencer a uma
fraternidade ateia e assassina.
Longinos foi até o palco principal e entregou o édito ao padre
Pedro. Este se pôs de pé com dificuldade e, olhando para o padre
Justino, perguntou-lhe:
— Que contestas, endemoninhado? O tribunal do Santo Ofício
ditou tua sentença; tu te rebelaste na presença dos exorcizadores e
recusaste voltar ao seio da santa religião. Mas, em memória de
quando eras um bom cristão, demonstraremos a nossa piedade,
perdoando-te a vida, se reconheceres tuas culpas e nos ajudar a
exterminar os inimigos de Cristo e de seu embaixador na Terra.
Fala, endemoninhado! Em nome de Cristo, volta ao bem!
O acusado, apoiando-se nas grades da carroça, foi deixado
sozinho pelos seus dois acompanhantes. Mirou os olhos do padre
Pedro e disse-lhe com voz vibrante:
— Acaba já com esta farsa, Pedro! Tu sabes melhor do que
ninguém que, desde que tomei os hábitos, sou suficientemente puro
e bondoso para que nenhum de vós vos escandalize. Não turveis
estes meus últimos instantes em um corpo carnal, que deveriam ser
dedicados à oração. Irmãos que escutam, Jesus Cristo disse: “Pelos
frutos, eu os conhecerei”; As minhas obras estão nuas perante vós.
Meus bem-amados, orai por estes homens! Eles morrem, não eu!
Eles são assassinos de suas próprias almas! A única verdade que
disseram é que pertenço a uma Fraternidade muito mais cristã que
algumas igrejas. Sabeis por que ingressei? Porque, no culto comum,
os sacerdotes não estudavam nem meditavam; envolvidos na
política e em dogmatismos interesseiros, esqueceram as palavras
do Justo. Procurais uma Bíblia de cinco séculos de atrás: vereis que
não é igual à de hoje!
Nesse instante, Longinos, precipitando seu cavalo, cruzou o
rosto do prisioneiro com um feroz golpe, exclamando:
— Calemos este demônio; vai corromper o povo!
O padre Pedro fez um gesto para impedi-lo, mas o fiscal
inquisidor estava demasiado enfurecido para vê-lo.
Automaticamente, um alarido de besta ferida surgiu de
diferentes pontos da praça. Um núcleo de camponeses, unido a
outro de estudantes, avançou violentamente até à carroça em uma
heroica intenção de libertar o padre Justino. O padre Mateos pôs-se
de pé, e toda a Loja, confundida entre o público, aguardava um sinal
para entrar em ação.
Aqueles que avançavam foram atravessados por uma
procissão composta por membros das associações religiosas e dos
núcleos de padres, todos desfraldando grossas estacas de carvalho.
O impacto foi terrível, e os partidários do jovem condenado viram-se
obrigados a retroceder, mas alguns se armaram de foices e
machados, pondo em fuga uma boa parte de seus inimigos.
Longinos, à frente de uma centena de guardas montados,
precipitou-se sobre o lugar da luta, dispersando-os, enquanto
grupos isolados de adolescentes pisavam os crâneos e as costas
daqueles que haviam caído.
Por fim, veio a calma, e o padre Pedro solicitou ao preso que
continuasse, mas que fosse breve.
— Eu não queria isso! Houve mortos e feridos por minha
culpa... Acaba de uma vez com esta farsa! Deixa o povo retornar
pacificamente aos seus lares! Que Deus tenha piedade de todos... e
me dê forças...
O padre Justino, doente e coberto de feridas, não pôde resistir
a tão violentas emoções e caiu semidesfalecido no fundo da
carroça. Os dois guardas aproximaram-se dele e o ajudaram a se
restabelecer.
Pablo Simón estava praticamente imobilizado pelos
integrantes da Loja, que temiam alguma imprudência por parte dele.
O padre Pedro fez um sinal para que aproximassem a carroça
da grande pira, de cuja cúspide, a quase cinco metros de altura,
emergia uma grossa trave de madeira da qual pendiam correntes e
ferrolhos.
A guarda montada fez retroceder o povo, que gritava excitado
sem saber por quê.
Colocaram a escada, e o padre Justino foi levado até o cimo
da pira e amarrado solidamente com as correntes. Seu aspecto era
estranho, pois parecia alheio a tudo que o rodeava, obedecendo
como um autômato; mas, ao se separar dos carrascos, retomou sua
fisionomia habitual e, embora muito pálido, estendeu seu sorriso
sobre todos os congregados à sua volta.
Um sacerdote, hasteando uma cruz de longuíssimo cabo,
colocou-a à altura de seus lábios, dizendo-lhe:
— Ouve, Justino! Se conseguires expulsar o demônio que te
inspira e beijares esta cruz santíssima, onde Deus está cravado,
ainda terás uma oportunidade de salvação, pois a piedade da Santa
Mãe é infinita...
O prisioneiro sorriu tristemente antes de lhe responder:
— Sinto pena de ti, porque és bom, e vejo-o transformado em
mau por um fanatismo para mim incompreensível. Além disso, e
este é meu último conselho, estuda mais as línguas mortas, pois o
termo "demônio" significa espírito, que é, definitivamente, o que fará
libertar de meu corpo. Rogo-te, acenda a pira de uma vez por todas,
pois estou muito fraco e adoentado por causa de tuas torturas e não
quero que o povo interprete o meu mal físico como falta de fé ou de
conhecimento.
— Que o diabo te carregue! — resmungou o outro
surdamente.
A multidão começou a apedrejar a pira e a protestar pelo início
do que era sua diversão, com voz tão viva quanto a que, minutos
antes, repudiara o ato.
O presidente do tribunal deu a ordem, e teve início um fúnebre
rufar, enquanto um algoz voltava a cobrir a cabeça do mártir com o
capuz vermelho com diabos pintados, amarrando-o com um arame.
Vários sacerdotes exorcizadores derramavam água benta
sobre o povo, que aclamava o nome de Cristo ao mesmo tempo que
brandia centenas de tochas e atirava pedras contra Justino. Este,
em atitude desfalecida, deixou-se pender das correntes.
Alguns toques especiais de tambor fizeram com que um
carrasco lançasse uma braçada de ramos secos acesos para a base
da pira. À sua ação, se somaram então todos que portavam fogos;
procissões inteiras enviavam monges e dirigentes dos movimentos
paralelos para arrojar a tocha que os simbolizasse.
Pouco a pouco, a enorme quantidade de lenha foi se
incendiando no meio de grandes labaredas e nuvens de fumaça
ainda maiores. Como o justiçado não dava sinais de vida nem
levantava a cabeça, muitos dos violentos rapazes atiraram tochas
em seu rosto, a fim de despertá-lo e rirem de suas contorções.
O padre Justino levantou lentamente a cabeça, e seu olhar,
que agora se adivinhava atrás do capuz, derramou-se sobre seus
implacáveis torturadores.
O padre Pedro não o encarava; receoso, vigiava os acessos à
praça temendo algum atentado à sua pessoa. A seu lado, o padre
Mateos parecia uma estátua, os músculos em tensão, o olhar
hipnotizado sobre a fogueira e o rosto coberto de uma palidez
mortal.
O vento levou uma labareda que incendiou o capuz do mártir,
de tal maneira que seu rosto enegrecido, consumido o cabelo e as
sobrancelhas, surgiu ante a multidão. Quando todos esperavam um
espantoso grito ou o mais terrível esgar, aquele homem que havia
desprezado a felicidade do mundo venceu também sua dor; um
sorriso aberto cerrou seus lábios semidestruídos e seus olhos
pousaram no céu.
Imediatamente, a fumaça, esta humilde irmã do fogo, correu a
ocultar um estertor do corpo que, sentindo a alma afastar-se,
ensaiou seu último protesto.
Para Pablo Simón, não existiu nada mais do que aquele
sorriso, gravado sobre o fogo com outro fogo mais sutil, o do Amor.
CAPÍTULO IV - A COROA DE RAIOS

A jovem virgem da primavera transfromava-se pouco a pouco


na Grande Mãe da Natureza; os homens chamam-na de verão...
Pablo Simón vestia a túnica branca dos recém-Iniciados; em
seu braço esquerdo, portava o símbolo horizontal da receptividade,
do fundamento e da obediência.
O Irmão Onze solicitou sua presença para colocá-lo a par de
importantes novidades. A noite de lua cheia estava inundada por
torrentes de brisas perfumadas que desciam das montanhas.
— Saúdo-te, Pablo Simón, ou melhor dizendo, Irmão Cento e
Sessenta e Três!
— Saúde, venerável Irmão! Sente esta brisa...! Para quem a
Natureza se enfeita dessa forma? Sua beleza torna-se dulcíssima,
madura...
— Aguarda seu Esposo... para apresentá-lo ao seu Filho. Não
reparaste que, quando surge a época das flores, os rebentos dos
ramos e os ninhos incompletos esperam algo?
— Sim... mas quem?
— Também aguardam o Esposo. Ele as beija, vai à caça e
retorna para conhecer o fruto de seu amor. Então termina o reinado
da Esposa, e a coroa, que estava invertida à maneira de ânfora,
vira-se e aponta para o céu.
— Essa linguagem é muito obscura, mas embora não entenda
seu mecanismo, "sinto" o sentido geral que encerra. Às vezes, o
irmão Justino falava assim... Estará contente com a minha
Iniciação?
— Muito! Se, como creio, foi realizada com o coração.
— Não tenhas a menor dúvida; só vivo para servir a
Humanidade por meio da Sabedoria Universal, na religião sem
nome da inominada Divindade.
— Palavras como essas são o néctar com o qual os anjos
elaboram o mel dos justos. Eles o coletam das almas que
florescem... Talvez um dia tu te assegures de que o que acabo de
dizer é mais do que uma metáfora. A Natureza é única; nós a
fragmentamos e, quando, despedaçada, ela descansa em nossas
mãos, choramos porque não a vemos viver, e maldizemos o Deus
que a fez vazia e morta. Mas lembra-te, irmão, nós mesmos somos
os assassinos da Natureza. Somente nós podemos ressuscitá-la; a
Ciência e a Religião, aliadas, o alcançarão, um dia. Para isso, a
primeira deve libertar-se do tolo "ver para crer", e da vaidade de
pensar que os pesquisadores modernos são superiores aos dos
tempos passados. Outrora, nos momentos de pico da evolução das
nações, existiram aqueles que conheciam a esfericidade da Terra, o
sistema heliocêntrico, a existência de pequenos seres invisíveis e de
seres etéreos que evoluem nesse meio como os peixes o fazem na
água. Algumas destas coisas serão públicas daqui a alguns séculos,
e outras esperarão um pouco mais; então, os cientistas rirão dos
nossos sábios atuais tanto quanto estes o fazem hoje daqueles de
duzentos anos atrás.
— “Com a vara que medes serás medido”.
— Assim é. Quanto à Religião, está despedaçada em várias
sub-religiões e milhares de seitas dentro delas. Os homens, em vez
de adorarem Àquele que indicam os diferentes Mestres — seja
Jesus, Maomé ou Moisés — o fazem com os “indicadores”, como se
fossem deuses diferentes em luta mortal, e não todos eles
encarnações ou Filhos de um Pai único. Em teus estudos religiosos,
verás que todos os Instrutores, de qualquer época, ensinaram o
mesmo, com diferenças de adaptação histórica e geográfica; que
nenhum deles disse que era Deus, e no que diferem é nas
interpolações que em questões ritualistas se introduzem com
propósitos indisíveis. Temos exemplos próximos a nós como, por
exemplo, a religião muçulmana, que está alterada por elementos
militares e políticos alheios às suas funções específicas. O
sacerdote, que deveria ser puro, bondoso e doce, costuma ser a
antítese dessas virtudes. Tão venal quanto o homem comum,
manda destruir e matar; envolve-se em politicagem, utilizando o
púlpito sagrado para lançar impropérios, ou simplesmente acomete
empresas mundanas alheias à sua finalidade servindo-se de tão
respeitável lugar. Durante os autos-de-fé, nas grandes cidades,
alternam-se a matança de touros com a de supostos infiéis. Ai dos
desventurados Mestres que, desde o alto, contemplam suas Ideias
tão distorcidas e seus Nomes, nascidos para simbolizar a Paz
Universal, servirem de adorno em escudos e lanças de guerra,
inclinarem-se sobre as fogueiras fratricidas e serem bandeiras de
exércitos assassinos de crianças, mulheres e anciãos!
Embora o Irmão Onze não pronunciasse mais nenhuma
palavra, Pablo Simón soube qual era a lembrança que o imobilizara;
um leve sorriso iluminou seu rosto e moveu lentamente o braço
direito em sinal de despedida.
O jovem tentou entrever algo diante do sacerdote, mas só a
brancura dos mármores e a escuridão de suas fendas se
entrelaçavam por todos os lados. A luz da lua caía quase vertical,
dando à já estranha paisagem, uma aparencia extremamente
impressionante.
Passados alguns minutos, que pareceram intermináveis ao
discípulo, o filósofo disse:
— Queria te comunicar que, a partir de amanhã, se tu não te
opões, podes voltar ao teu trabalho na paróquia e no laboratório.
Tudo está preparado para simular tua chegada de um longínquo
seminário. Permanecerás em íntimo contato com a Loja e comigo,
sendo tu um novo foco de luz entre as sombras que envolvem esses
milhares de corações. Tu queres?
— Não refleti a esse respeito, mas creio que sim. Preocupam-
me muito esses jovens que crescem oprimidos, fanatizados. Não
poderia permanecer nos braços da sabedoria enquanto talvez um
irmão fraqueja a um passo de chegar... Sim, irmão! Desejo com toda
a alma voltar para esses pobres homens e ajudá-los no que eu
puder! Ensinar-lhes que não se deve matar sequer um inseto, e
muito menos um ser humano...
— Estás muito bem encaminhado. Uma das barreiras mais
difíceis que se apresentam ao principiante é a crença ilusória de que
a sorte de seus semelhantes já não o deve afetar, e que ele pode
estudar e atualizar seus poderes espirituais evitando todo contato
com seus irmãos. Eu te digo que, antes de a última alma em
evolução chegar ao Reino dos Céus, ninguém terá verdadeira
felicidade. Quanto mais apressares a marcha dos fracos, menos
terás de esperá-los depois... Bem, amanhã tomarás a carruagem
que vem do seminário que te mencionei. Os demais passageiros
são da Loja, assim como os serventes. Tudo correrá bem.
As mãos delgadas e firmes do Irmão Onze apertaram
afetuosamente os ombros do jovem e indicaram-lhe a porta dos
subterrâneos.
Apesar das suspeitas do padre Pedro e os inesperados
interrogatórios de Longinos, Pablo Simón, convenientemente
instruído e apoiado pelas poderosas influências dos membros
atuantes no alto clero, saiu triunfante e continuou seus antigos
trabalhos.
Muito labor lhe custou ampliar seu laboratório particular, mas
conseguiu fazê-lo, e com ele trabalharam outros dois irmãos na
qualidade de ajudantes-aprendizes.
Lentamente, do conceito materialista de que os metais eram
substâncias sem vida, inertes, ou milagres dados por Deus, Pablo
Simón passou ao conhecimento oculto dos mesmos. A Alquimia,
que seria a Química do futuro, e não a charlatanice dos
supersticiosos com a qual a posteridade haveria de confundi-la,
ocupava a maior parte de seus dias.
Soube que os metais correspondiam a um grupo de almas
"esboçadas" em evolução, e que também entre aqueles havia seres
avançadíssimos e outros mais torpes. Percebeu que toda a
Natureza estava atravessada por fios, como aqueles que sustentam
várias marionetes em painéis sobrepostos. Estas "leis
transcendentes" colocavam em comunicação determinadas partes
dos diferentes reinos, unindo simpaticamente minerais, vegetais,
animais e astros ou, melhor dizendo, os Espíritos Guardiões dos
Corpos Celestes. Assim, os astros eram os veículos materiais de
seres tão evoluídos e completos, tão difíceis de conceber como
seria a um parasita intestinal captar a identidade do homem que o
leva.
Aprendeu que os minerais também nascem, crescem, se
reproduzem, suportam doenças e morrem. Estudou a vida dos
metais. Não lhe pareceram mais "mortos" do que os animais, pois
estes manifestam sua vida por meio de movimentos e translações,
enquanto que aqueles o fazem resistindo às pressões externas e
aos esforços aos serem arrancados. Reconheceu os sinais de
cansaço no mineral, que faz com que um metal, submetido a um
trabalho superior às suas forças, cesse de cumpri-lo quase
totalmente, sendo necessário deixá-lo repousar para que
restabeleça suas virtudes primárias.
Muitos desses conhecimentos sobreviviam deformados e
parciais entre os povos camponeses, últimas recordações das mais
esplêndidas épocas.
Novos invernos mostraram-lhe a precaridade das coisas
terrenas, e outras primaveras revelaram-lhe o eterno renascer da
vida em novas formas.
Nas primeiras lições de sua condição de discípulo na Loja,
haviam lhe confiado algo que guardava como a mais preciosa joia
de conhecimento. Era a "chave mestra" que lhe abria numerosos,
senão todos os arcanos da Natureza.
Nessa ocasião, uma jovem ficou famosa no povoado pelas
suas curas mágicas e maravilhosas. Teve uma grande surpresa
quando, uma noite em que chegava às "Ruínas", ela lhe foi
apresentada pelo Irmão Onze como membro da Loja.
— Irmão, esta é tua irmã Hipátia.
— Hipátia? Tu tomaste o nome da mártir esquartejada por
ordem de Cirilo?
— Os irmãos mais velhos é que me deram...
A voz da jovem, como toda ela, era suave, extremamente
delicada. A túnica branca e o cabelo escuro emprestavam ao seu
rosto delgado o pálido matiz dos vales nas noites de luar. Imagem
de uma pureza mais angélica que humana, refletia a comunhão que
sentia com Deus.
Sua saudação foi simples, quase infantil. O Irmão Onze, ao
mesmo tempo que se afastava, recomendou-lhe docemente:
— Cuida-te, Hipátia! Teu corpo é um vaso muito fraco e deve
conter fogo...
— Eu terei cuidado, irmão...! Como ele é bom! — acrescentou
para si própria.
— Sim, e muito sábio... A que te dedicas, irmã? Quero dizer, a
que trabalho dentro da Ciência Sagrada? — perguntou Pablo
Simón.
— Parece mentira, irmão, mas as perguntas feitas com mais
facilidade são as mais difíceis de responder... Eu vejo as coisas que
aconteceram e as que vão acontecer como se fossem as raízes e a
folhagem de uma grande árvore, cujo tronco é o presente... Sei que
é curioso. Eu não sinto curiosidade, mas sim angústia...
— Se tu vês a vida atual como uma resultante do caminho
percorrido e do que falta percorrer, como uma pegada a mais no
único caminho; se tens certeza de que é eterna, habitante
incorruptível do efêmero, espiritualmente contentor de todo o
contido, o que é que te pode angustiar?
— Oh, tudo que não sei, que não realizo, a grande quantidade
de seres ignorantes do porquê das suas penas, àqueles que não
posso auxiliar!
— O Irmão Onze me disse que no conhecimento da Lei está a
ferramenta que consumirá os sustentáculos do sofrimento...
— A minha angústia não é precisamente o que se entende por
sofrimento. Repito a ti que não me pesa a dor em si. Preocupa-me a
ignorância geral de suas causas. Nessa ignorância, os homens, ao
mesmo tempo que pagam, contraem novas dívidas. Eu anseio levar
a libertação aos homens; fazer penetrar em mim esse "algo" que me
chama... Por uma ou duas vezes, cheguei a roçá-lo, mas logo voltei
a cair.
Os olhos da menina, que tinha apenas quinze ou dezesseis
anos de idade, tornaram-se úmidos, cheios de estranhos fogos
azuis. Pouco depois, despediu-se de Pablo Simón, penetrando nos
subterrâneos, mas ele ficou de pé junto a um portal destruído,
mergulhado no mar indômito do mistério.
Aquela jovem mulher estava marcada com uma sina que ele
não conseguia definir. Ao mesmo tempo que demonstrava estar
muito além de toda emoção, até transformar-se em um ser para-
humano, vivia uma devoção emocional contrária a todo espírito de
investigação e especulação abstrata. Pablo Simón sentia-se atraído
e ao mesmo tempo repelido por essa rara personalidade.
Afastou distraidamente a poeira das fendas com seus dedos e
se voltou disposto a se retirar para o povoado, mas viu o Irmão
Onze que, dirigindo-se ao seu encontro, perguntou:
— Que pensas de Hipátia?
— Que é muito rara... muito diferente de qualquer um de nós.
Não compreendo; sua alma é ao mesmo tempo fraca e forte,
implora e manda... Não sei!
— Imaginava a tua confusão, pois isso acontece com todos
que a conhecem. Seu nome entre os homens é Voluspa, e ficou órfã
de uma família proveniente dos mares próximos do Pólo. Dizem que
sua mãe era grega, mas como ela era muito pequena, apenas
recorda seu nome. Nós a recolhemos na casa do Irmão Oitenta e
Oito, que tu conheces sob o nome de Gabriel, o fabricante de eixos
para carruagem. Tem sua ferraria na colina grande.
— Eu o conheço! Nunca acreditaria que ele fosse membro da
Loja.
— Ele também tem sua missão nela. Voltando à nossa irmã,
deves saber, querido jovem, que há homens que recebem mais
Iniciação dos anjos do que dos sábios humanos ou dos Mestres.
Não têm necessariamente que estar mais avançados no caminho
espiritual, nem mais atrás do que nós. Podem estar à mesma altura
e, não obstante, nos serem estranhos e até repelentes em alguns
detalhes. Pense um pouco neste exemplo: duas barras metálicas
paralelas não são necessariamente de ouro nem de ferro. Sua
direção relativa nada tem a ver com a substância que as compõe.
Assim, o conhecimento e a realidade podem inclinar-se para um
mesmo fim, embora tenham modalidades diferentes e atuem por
meio de distintos instrumentos. Na Iniciação humana, o ouro da
virtude é obtido pela elaboração de todos os metais ignóbeis, ou
seja, pela transformação de defeitos em virtudes. A Iniciação
angélica outorga o ouro, e a luta não está em elaborá-lo, mas em
impedir que se corrompa. Tudo isso acontece dentro de um
determinado lapso de tempo, pois, superada essa etapa evolutiva,
vão se suceder outras, compensando as deficiências da atual. E tal
como dentro da instrução que conheces há diferentes modalidades,
também as há na angélica, só que nessas últimas notarás certa
dificuldade na utilização do veículo mental, uma vez que, no geral,
têm menos raciocínio, especialmente no campo abstrato.
— Falas, então, que os anjos nada têm a ver com a mente?
— Até certo ponto. Mas lembra que me refiro ao que, para
nós, é idade presente, pois, no começo deste Universo, a mente
nasceu do coração de um anjo. Dos conceitos anteriores, poderás
extrair um ou dois indícios úteis para a interpretação de algumas
passagens de São Paulo.
— Se me permites, irmão...
— Pergunta! Isso me alegra!
—Várias vezes, foram feitas referências a esta e a outras
Idades que, segundo entendo, abarcam milhões de anos. Como e
por que se renovam as Idades? Como têm leis diferentes?
Temendo que na abstração da conversa fossem
surpreendidos por algum estranho, Mateos sugeriu ao jovem que
passassem a uma das criptas. Assim o fizeram e ali, depois de
beberem um reconfortante chá de ervas, prosseguiram o tema.
— Escuta, ó aspirante à luz! A alma de um Universo está
formada pela "soma" — não é este o termo adequado, mas não
encontro outro — das almas de todos os seus integrantes,
semelhante ao que ocorre em dimensão menor com tua alma. Peço-
te que faças um esforço de atenção a fim de não te confundires: tua
alma é individual porque assim a vês por meio de tua consciência, e
como tal é usada pela chispa espiritual que a motiva. Os homens
fizeram uma tremenda confusão entre "alma" e "espírito", de tal
modo que os consideram idênticos. Assim, quando traduzem a
Bíblia, a enchem de torpezas, mas tu deves aprender a distingui-las.
Expus a ti tudo isso a fim de que, com reto discernimento, sirva-te
da lei de analogia. Sabes, pelo que tens lido em Platão e Homero,
que o homem utiliza seu corpo do mesmo modo que durante a vida
terrestre se serve de uma roupa. Uma vez gasta, a descarta e
adquire outra.
Assim se purifica para ser “perfeito como o nosso Pai que está
nos Céus”. Pouco a pouco, ganha essa perfeição, e os desejos não
cumpridos de uma vida são as causas motoras das oportunidades e
das capacidades nas seguintes, dentro do permitido pelo bom ou
mau destino que foi lavrando com suas ações ao longo de centenas
de vidas.
— Perdõe a interrupção, irmão, mas o historiador Diógenes
ensina que, na opinião dos pitagóricos, o homem, em virtude de
suas más ações, podia reencarnar em um animal. Isso é verdade?
— Esse Diógenes não era filósofo, mas cronista e, como tal,
ignorava tudo ou quase tudo que se referia à doutrina secreta que
Jesus Cristo havia comunicado a muito poucos, perseguidos depois
pelas turbas de mendigos, leprosos e aventureiros que se
apoderaram do movimento. Nenhum pitagórico iniciado nos
Mistérios jamais pôde sustentar tal coisa, que, ao olhar da Filosofia,
é um verdadeiro disparate. Só em casos muito excepcionais, um
entre cem bilhões, pode o homem demasiado perverso perder
momentaneamente o legado de Prometeu, a inteligência e a forma
humana. É triste que os inimigos da Filosofia, em vez de refutarem
com a razão as opiniões contrárias, utilizem o escárnio, a mentira e
a fogueira. Mas nós nos afastamos do motivo central de nossa
conversa.
— Essas explicações me foram muito úteis, Irmão Onze.
— Bem, então verás claramente, segundo a lei de analogia
que invocamos em nosso auxílio, que se o universo material que
nos rodeia é similar ao nosso corpo físico, e tal como este é a
"casca" de um ser espiritual, essa casca cósmica morre
periodicamente, seus mundos se dissolvem no espaço e o Espírito
voa liberto até que, prosseguindo sua rota de aperfeiçoamento,
necessita de outro corpo e o habita quando está em condições.
Bem, agora supõe por um instante que tua anterior
encarnação tivesse ocorrido no Egito dos Ptolomeus, dois ou três
séculos antes de Cristo. Não viverias naquele tempo sob outros
costumes, não utilizarias outros alimentos, não adorarias a Deus de
maneira diferente?
— Assim teria de ser.
— Transporta esse panorama para o cósmico. Este Ser, cujo
veículo é o universo material, ao voltar a se manifestar em outro
semelhante, não variaria em certos aspectos suas características,
adaptando-se ao seu momento evolutivo? Se assim o
reconhecermos, só poderemos falar das leis que regem a "nossa
idade", e ainda dentro dessas grandes leis, as pequenas que nos
regem pessoalmente.
— Mas a Lei é uma...
— Exato, querido jovem. Assim como a água é uma e, não
obstante, se adapta às múltiplas formas dos vasilhames, a Lei Única
respeita os recipientes que são motivados pela necessidade.
Essa noite, nem Mestre nem discípulo descansaram. O
Mistério, essa ninfa adormecida que todos temos na alma, é
terrivelmente sedutor. Quando desperta, toca com sua varinha
mágica tudo que nos rodeia, tornando tudo cristalino, fazendo-nos
amigos das coisas e do mundo. Mas não tolera ser preterida em
favor dos interesses mundanos e da fadiga. Ela é escrava e dona do
verdadeiro filósofo, daquele que se amamenta diretamente dos
seios da Esfinge, símbolo maravilhoso da vida.
Pablo Simón, possuindo lentamente o Ankh ou chave da
realização e da sabedoria, ia abrindo uma a uma as portas da
Natureza. Com vontade firme e reto conhecimento, foi despertando
sua visão interior, enquanto seus olhos externos adquiriam a
propriedade de ver nos planos sutis, onde habitam os gnomos, as
ondinas, as fadas, os elfos e todos esses seres dos quais hoje
apenas os antigos livros sagrados guardam recordações, tão
mutiladas que já não servem para outra coisa que não entreter as
crianças.
Além desses seres, o jovem Iniciado aprendeu a observar os
corpos sutis dos homens mortos recentemente, assim como a
película e a irradiação luminosa que recobre todos os seres e
coisas.
Todos esses avanços requeriam dele um domínio absoluto
sobre suas expressões, a fim de que nenhum dos inimigos que o
rodeavam pudesse comprovar o que alguns já suspeitavam, e
terminasse seus dias na fogueira.
Numa noite de garoa com que o outono avançava suas hostes
de silêncio e melancolia, Pablo Simón deteve-se em uma das criptas
de seu laboratório. Um discípulo deu passagem a um personagem
com a veste amarrotada e pingando água.
— Quem é, José?
O jovem aprendiz de alquimista apontou silenciosamente para
o rosto do recém-chegado. Só então Pablo Simón reconheceu sua
identidade.
— Hipátia! Que fazes aqui a essas horas? José, tira-lhe o
abrigo e dá-lhe um licor!
Porém, ela se negou a essas atenções com um enérgico
aceno, dizendo com um fio de voz:
— Irmão Pablo Simón, perdoe esta intromissão e a minha
resistência, mas devo partir imediatamente. Diz aos irmãos que
muito em breve Hipátia poderá ajudá-los desde o céu...
Pablo Simón mandou seus assistentes se retirarem e
contemplou a jovem, que deixou-se cair numa cadeira. Prestando
mais atenção, notou que debaixo do amplo capote vestia apenas
roupas de dormir. Tremia, e parecia a ponto de desmaiar, e então o
jovem ignorando seus fracos protestos, tirou-lhe o capote e cobriu-a
com uma manta, junto ao fogo. Fez com que ela bebesse um licor e
depois lhe disse:
— Algo grave te trouxe aqui neste estado e a tão altas horas
da noite. Vieste só? Não sentiste medo?
— Que importa, irmão! Pode deter-se a mão que atira a
flecha, mas, uma vez lançada, esta voa fatalmente até o seu alvo.
Amanhã ao amanhecer cairei nas mãos dos soldados do Santo
Ofício...
— Como sabes disso?
— "Vi" e "sei" que morrerei da maneira mais horrível e cruel...
— Andas muito fraca ultimamente, Hipátia. Talvez tudo não
tenha passado de uma alucinação...
— Não... Eu nunca tenho esse tipo de alucinações...
— Foge, então! Espera aqui! Eu vou às "Ruínas" e consultarei
o Irmão Onze!
— Não faças isso! Por Deus, irmão! Ainda que todos vós
morrêsseis comigo, isso não mudaria meu destino. Eu não temo a
morte. Só me inquieta pensar nos martírios, pois meu corpo doente
me trairá...
— Não fales mais disso! Espere por mim!
Com essas palavras, Pablo Simón saiu apressadamente da
cripta, deixando-a na companhia de José e dos poucos serventes.
Ao regressar, a chuva tinha aumentado seu caudal, e o
amanhecer nem sequer se insinuava atrás das nuvens. José foi
recebê-lo ligeiramente pálido.
— A irmã Hipátia fugiu! Fingiu dormir, ou deveras adormeceu,
e quando a deixei sozinha para ir buscar cobertores, já não estava...
— Infeliz! Mais outra vítima! Ah, José! O dia em que a
Humanidade encontrar-se com o destino que elaborou nesses
últimos séculos, quando sobre os olhos de seus futuros dirigentes
chover todo esse sangue, a sorte das religiões antigas, em cujos
templos pasta hoje o gado, lhe parecerá uma sorte invejável e
gloriosa como o halo do Sol...
Pablo Simón arrancou suas roupas de lona encerada,
lançando-as para um canto. Seu estrito senso de justiça e a energia
que o fazia saltar todo obstáculo, unidos a um ainda imperfeito
controle sobre sua mente e suas emoções, o transportavam em
momentos como este a francos acessos de ira, a "santa ira" da qual
não se podem libertar nem sequer os deuses dos homens.
Fazendo um tremendo esforço, e após ingerir alguns
medicamentos por ele inventados que lhe permitiam vencer
facilmente o cansaço e o nervosismo que o assaltavam, vestiu-se
novamente e saiu em direção ao colégio paroquial. Mal chegou, foi
chamado urgentemente pelo padre Pedro, o qual já há vários meses
havia ingressado no santo colégio. Suas novas roupas, mais
luxuosas, faziam sobressair a sua figura. Não dissimulava o
desgosto que lhe causavam aqueles que o rodeavam, pois vivia
agora em uma cidade muito maior, e só ocasionalmente se
deslocava a essa vila universitária e rural.
— Pablo Simón, em nome de Cristo: faz esta bruxa voltar a si!
Nenhum dos médicos pode... Talvez algumas de tuas misteriosas
poções...
— As minhas poções não são misteriosas, monsenhor. O
senhor as viu, e muitos outros também...
— Tão ignorantes em alquimia como eu! A eles pode enganar,
mas não a mim. Tu sabes mais do que aparenta. Faz voltar a si esta
pecadora! Se não o fizeres, ou a matares, o tribunal fará fritar a
gordura das tuas carnes...
Pablo Simón, com grande esforço, conseguiu conter-se e
examinou a jovem. Não parecia ter bebido nenhum narcótico, mas,
devido à sua vontade e poderes, tinha se retirado do corpo a fim de
descansar e evitar interrogatórios.
O jovem pediu que fossem à sua casa solicitar um licor ao seu
ajudante. Quando o recebeu, introduziu algumas gotas entre os
dentes de Hipátia e iluminou seus olhos com um espelho, abrindo
lentamente suas pálpebras. Imediatamente a jovem recuperou a
consciência e passeou ao redor um olhar receoso.
— Está muito fraca. Cuida dela se quiseres mantê-la com
vida. — murmurou Pablo Simón ao ouvido de Pedro, a fim de que
não mandasse torturá-la.
— Conheces-a? — perguntou o prelado.
— De vista. Chama-se Voluspa.
— Ou Hipátia?
A voz seca de Longinos ressoou às suas costas. Pedro
tamborilava os dedos sobre o ventre, sinal infalível de ansiedade e
nervosismo. O jovem Iniciado voltou-se e perguntou ao fiscal com
fria serenidade:
— Poderia eu saber outro nome que aquele que todos lhe
dão?
— Sim, se fores membro da Loja... — Longinos estava tenso
como um cão de caça.
— O temor te faz ter visões! — exclamou Pablo Simón.
— Perdoe Longinos. Mas, assim como seu trabalho é
investigar nos metais e nos elementos, o dele é fazê-lo com os
homens... Como sabes isso, Longinos? — perguntou o inquisidor.
— A madrasta dessa bruxa, monsenhor, revelou-me
"involuntariamente" que assim se chamava a si mesma nas suas
orações ao Diabo. Pensarás que exagero, mas, neste povoado, há
centenas de conjurados: professores, eclesiásticos e militares são
membros da Loja.
Os olhos negros do cardeal moveram-se temerosos,
dispensando Pablo Simón com um grito histérico. Este fez uma
profunda reverência e retirou-se.
Um mês mais tarde, enquanto contemplava absorto a
silenciosa morte dos flocos de neve sobre o peitoril de uma janela
no colégio paroquial, Pablo Simón foi chamado novamente ao
escritório do diretor, que agora era o padre Antonio, de coração
bondoso, mas fanático servente da Inquisição.
No salão estavam sentados, junto às paredes, os principais
personagens do povoado e eclesiásticos chegados especialmente
das cidades próximas. Pedro estava sentado à cabeceira de uma
mesa ocupada por Mateos, Antonio, Longinos e outros três
membros do tribunal do Santo Ofício.
Ao entrar, um ancião que oficiava como chefe de cerimônias,
indicou-lhe um lugar, anunciando-o à mesa.
Pablo Simón dedicou-se a estudar a concorrência. Havia ali
não menos de cinquenta pessoas, e entre elas vários membros da
Loja, talvez dez ou doze. Com a chegada de um oficial de cavalaria
do Santo Ofício, iniciou-se a sessão.
O novo cardeal, depois das saudações de praxe, informou:
— O tribunal do Santo Ofício declarou culpada a feiticeira
Voluspa ou Hipátia, como sua maldade a inclinava a chamar-se.
Este tribunal, com a anuência da santa confraria, pôs nas nossas
mãos o tipo de morte que merece e demais detalhes. Desta vez,
não se recomendou diretamente a fogueira, como é costume na
execução dessas almas perdidas, porque parece ineficaz, já que
quanto mais hereges se queimam maior é o número de discípulos
que conseguem, e uma massa não pequena do povo os admira e
protege. Qual é a causa deste desastre? Talvez a nossa excessiva
brandura para com as centenas de astrônomos, químicos e mesmo
eclesiásticos que, de uma ou de outra maneira, defendem opiniões
contrárias à santa Bíblia ou à interpretação que dela faz a santa
irmandade? Falai, filhos!
Às palavras de Pedro, seguiu-se um profundo silêncio, pois os
não muito influentes temiam falar, e os outros meditavam muito
antes de fazê-lo. Poucos minutos depois, Mateos pediu a palavra.
— Irmãos! Estamos reunidos para matar mais pessoas ou
para encontrar uma fórmula que fortifique a Igreja e faça retornarem
ao seu seio os dissidentes? Vemos que cada condenado nos traz
cem inimigos mais e mil amigos a menos. Devemos prosseguir tão
insensata política? No norte da Europa, Ásia Menor e África,
milhões de crentes tornaram-se dissidentes nos últimos cem anos.
Mesmo nesses países, uma boa parte da nobreza, noventa por
cento dos intelectuais e a metade dos artistas viram-nos as costas.
Falo a vós como membro da Igreja: se continuarmos por este
caminho fatal, em cinco ou dez séculos restarão muito poucos
católicos e, o mais triste, não só cairá em descrédito a Igreja, como
também Jesus Cristo, e ainda toda forma religiosa. Irmãos,
repensemos! Deixemos de queimar loucos, doentes e homens que
não pensam como nós! Suspendei as execuções, cuidai mais da
manutenção do clero nas aldeias distantes ainda que na cidade nos
restem menos comodidades! Utilizai os soldados do Santo Ofício
para perseguir os salteadores de estradas e piratas. Vereis que logo
ressurgirá a Igreja!
— Por Deus, padre! Se seguirmos esses conselhos, os
hereges nos queimarão, e os meus homens se tornarão simples
forças armadas a serviço dos interesses econômicos, e não de
Deus. — protestou Longinos, lívido de ira contida. A hierarquia e
fama de Mateos impedia-lhe todo ataque ostensivo.
— Tu, Longinos, que pelo teu ofício conheces os crimes e os
atentados que se cometem, diz-me se os peregrinos e os padres
solitários das aldeias são assassinados pelos juramentados?
— Não, porque são poucos!
— Sabes que não, Longinos. Não são tão poucos, são mais
que suficientes para dar morte ou despojar um ancião. É que a
Igreja tornou-se sua inimiga, mas eles não são inimigos da Igreja.
Um amplo murmúrio foi ganhando rapidamente todos os
cantos do salão, e muitos se perguntavam como é que Mateos se
atrevia a tanto. Pablo Simón, pregado na sua cadeira, escutava com
os dentes cerrados e os olhos fixos naquele homem excepcional.
Antonio, na sua qualidade de diretor daquela casa de estudos,
não pôde permanecer por mais tempo calado, e sua voz firme e
apaixonada abriu um caminho de silêncio no emaranhado de
murmúrios.
— Eu peço consideração e benevolência das críticas para
com o padre Mateos, pois apesar de conhecê-lo há poucos meses,
sei que é um exemplo de virtudes cristãs que todos deveriam
aproveitar melhor. É puro, sábio, bondoso, mas, triste é confessá-lo,
tem extrema indulgência e simpatia para com as forças organizadas
do inimigo de Deus. Eu compreendo sua santa ira, irmãos
inquisidores, mas não entendo como é que um padre tão bom e
valente como Mateos possa recomendar tibiezas quando o
necessário é extremar o rigor e castigar esses depravados de uma
vez por todas. Agradar-me-ía conhecer os dirigentes dessa famosa
e temida Loja para ver se podem dar o mínimo sinal de virtude e se
merecem algum perdão. Se mesmo queimando ainda crescem em
número, o que não aconteceria se os deixássemos em liberdade!
Vejam essa pobre menina Voluspa, transformada em Hipátia,
sacerdotisa de quem sabe que diabólico e sangrento culto, a julgar
pelo nome maldito que tomou: Hipátia, símbolo do paganismo e da
idolatria!
Antonio voltou a sentar-se e Mateos preferiu engolir as
palavras que lhe vinham à boca. Depois de longas horas de
conciliábulos, nos quais só se podia optar por uma opinião,
resolveu-se submeter a jovem à prova da água, pois, segundo
inúmeras declarações, não havia testemunhos suficientes de que
ela se dedicasse à feitiçaria. O tormento, provavelmente o mais
torpe e cruel dos muitos usados pela Inquisição, consistia em
introduzir o acusado, amarrado, dentro de um saco, tapar-lhe a boca
e lançá-lo a um rio ou lago bem profundo. Se o infeliz conseguisse
flutuar alguns instantes, atribuía-se o fato aos seus poderes
mágicos, pelo que era retirado e conduzido à fogueira. Pelo
contrário, se afundasse imediatamente, pronunciavam-se orações
no local, cantava-se e erguiam-se símbolos religiosos e, uma vez
recuperado o cadáver do afogado, procedia-se ao enterro,
felicitando-se os parentes pelo êxito da operação.
Pablo Simón saiu enojado daquela farsa, envenenado pela ira
impotente e a fingida piedade daqueles verdadeiros Judas.
Nessa noite, ao retirar-se das sessões que oficiava na Loja,
Mateos alcançou-o, convidando-o a ir à sua cela. Uma vez ali, disse-
lhe:
— Antonio, o diretor do colégio paroquial, viaja amanhã para
uma cidade próxima. Organizei um assalto à sua carruagem a fim
de poder conversar com ele. É um bom homem, mas está coberto
pela lama dos dogmas e das "autoridades". Depois tu farás uma
viagem ao estrangeiro. Longinos suspeita de tuas experiências e, à
menor prova, te mandará para a fogueira. Os meus contatos já não
podem proteger-te.
— Irmão Onze, não quero sair de teu lado! O senhor também
corre perigo!
— Porém, eu sou imprescindível aqui e meus cargos oficiais
fariam vacilar muito os fiscais do Santo Ofício antes de decidirem
me acusar. Além do mais, eu já havia programado uma viagem para
ti. Todo discípulo, mais cedo ou mais tarde, deve realizá-la...
— Para onde me enviarás?
— Para a Ásia Menor, Índia, talvez China. Veremos isso
depois. Deseja assistir à entrevista com Antonio?
— Sim, irmão!
— Então fica tranquilo e aguarda notícias minhas.
Ao pôr do sol do dia seguinte, disfarçados de bandidos e muito
bem armados, esconderam-se junto ao Caminho Real uns vinte e
cinco juramentados. O céu estava cheio de nuvens cinzentas, e os
pequenos bosques que matizavam a ampla planície ao pé das
montanhas pareciam grandes confundidos com suas sombras. As
promessas celestes das primeiras estrelas mostraram-se por meio
de uma fenda nas nuvens, e ao longe brilhavam outras duas luzes
que não eram do céu.
Pouco depois, a carruagem do padre Antonio ficou retida junto
a uma árvore que cruzava o caminho, e os oito homens do Santo
Ofício que formavam sua escolta foram presos sem grande
resistência. Estes, juntamente com o secretário pessoal
acompanhante e um licenciado que levava como passageiro, foram
amarrados, amordaçados e levados até à velha estrutura de um
moinho abandonado.
Ali, no salão que outrora servira de depósito de grão, ficaram
apenas Antonio, Mateos, outro irmão da Loja e Pablo Simón. O
eclesiástico foi desatado e convidado a sentar-se. Os três
esoteristas levavam grandes capuzes escuros, fato que o diretor os
censurou:
— Bandidos, ímpios! Por que não nos roubais e me deixais
continuar a minha viagem em paz? Já não respeitais os soldados de
Cristo?
— Soldados? Não sabíamos que Cristo vos pagava para que
o servísseis... E quanto a ímpios, vossa vida vos desmente! —
exclamou o Irmão Onze, fazendo esforços para não rir ante a cara
de assombro que mostrava seu interlocutor.
— Quem és tu? Não falas como um soldado...
— Dizem "os que sabem" que "um rei não fala com a língua
de um escravo, nem este com a de um rei"... Padre Antonio,
prometes não revelar nossas identidades se nos mostrarmos?
— Sim, se com isso não causar dano à Igreja.
— Não empregues sofismas: sim ou não. Eu não sou o chefe
da Loja, mas tenho suficiente grau para representá-lo... Prometes?
— Sim, juro não revelar jamais vossas identidades.
— Bem... Descobre-te, Pablo Simón!
— O jovem químico! Longinos tinha razão! Ah, extraviado!
Continuaria a censurar durante mais meia hora, se ao ver o
rosto de Mateos não tivesse ficado ao mesmo tempo mudo de
espanto, assombro e ira.
Mas antes que recuperasse a fala teve de reconhecer no
terceiro encapuzado o professor de grego do próprio Seminário.
— É pouco o tempo que possuímos, padre Antonio. Escuta-
me bem e, sobretudo, medita a respeito do que ouvirás. Não me
agradaria ter arriscado a vida de mais de vinte homens inutilmente.
— Fala!
— Obrigado... Quero que fiques sabendo, antes de mais, que
o que comentam sobre as lojas herméticas é puro falatório. Haverá
fraternidades ocultas nas quais se pratica magia negra e se
degolam crianças, não o nego, mas nós nada temos a ver com elas,
do mesmo modo que tu não és responsável pelos crimes que possa
cometer um cristão só porque és cristão...
— Isso é uma calúnia!
— Assim exclamarão os eclesiásticos dentro de cinco séculos
quando forem acusados de pertencer à mesma Igreja que hoje
queima tantos inocentes.
— Queimam-se os endemoninhados!
— Jesus Cristo curava os endemoninhados, não os matava!
Além do mais, se acreditas que a dulcíssima, a mística criatura, tão
pura e digna de ser santa como a que dentro de uns dias morrerá
nas tuas mãos, está endemoninhada, então o demônio seria muito
mais piedoso do que Deus... Podem vários eclesiásticos ostentar
virtudes semelhantes? A questão não é levar o crucifixo sobre o
coração, mas colocar o coração no meio da cruz, a cruz da vida... O
Cristo Jesus, que tão imperfeitamente conhecemos, não é, em
essência, diferente dos Mestres que vieram antes dele, nem dos
que virão no futuro. Longe de todo personalismo, o verdadeiro
cristão deve amar a Verdade por meio de Cristo, o muçulmano por
intermédio de Maomé, e assim os demais. Por que lutar se todos
temos o mesmo Deus e defendemos as mesmas verdades? Não
disse Jesus: “as minhas ovelhas pertencem a muitos rebanhos”?
Não era a única verdade que falava pela sua boca a mesma que,
nos livros que vós criticais sem conhecerdes nenhuma das religiões
orientais, expressa: “Quaisquer que sejam os caminhos pelos quais
os homens cheguem a Mim, eu os recebo com os braços abertos”?
Antonio remexia-se inquieto em seu banco. Parecia estar a
travar uma tremenda batalha interior. Por fim, exclamou:
— Tudo isso é muito bonito! Porém, Nosso Senhor soube
enxotar a chicotadas os mercadores do Templo, e isso é o que
fazemos com os infiéis que profanam a sociedade cristã. Se não
gostais dos nossos países, por que não ides para outros,
maometanos ou protestantes?
— Sempre que o fizeram, vós os exterminastes juntamente
com seus protetores. Os religiosos e os políticos têm estado
monstruosamente amancebados ao longo de toda a história. A
política está a serviço da religião, e esta, infelizmente, a serviço da
política.
— Graças a isso, a Igreja fundou uma sociedade de nações,
unindo povos que há mil anos estavam em guerras contínuas.
— Sim, une-os para lutar contra outros. Além do mais, antes
de a Igreja ser o que é hoje, em todo o mundo — e não na sua
quarta parte —, imperava a Religião dos Mistérios. Com seus
restos, construiu covas e ainda se vangloria. Essas serpentes
misteriosas vistas no México, na Índia, no Egito ou na Trácia foram,
em uma determinada época, símbolos muito mais universais do que
qualquer um dos agora conhecidos. A história que estudaste está
peneirada pela Escolástica. Mas, se queres ser justo, “escuta os
dois sinos”. Serias capaz de ler pura e exclusivamente historiadores
contrários à tua religião? Por que não hão de ser lidos tratados de
toda índole, a fim de se conhecer a verdade?
— O que tu chamas "tratados de toda índole" são
precisamente os que sustentam opiniões contrárias à Igreja.
— A culpa é da própria Igreja, que se fez inimiga da liberdade.
— A fé exclui a liberdade.
— Mas a liberdade não exclui a fé. Esta deve surgir da
confirmação dos fatos, como mensageira e áugure de outros mais
elevados resultantes dos primeiros, e não como uma força oposta a
tudo que é razoável, contrária a qualquer progresso, inimiga dos que
sentem, dos que pensam e dos que amam. Se a doutrina cristã é
forte, por que, em lugar de matar e perseguir todo aquele que não a
professe, não o rebate e humilha com o peso da verdade, por
intermédio da razão, da pureza e do amor de seus ministros?
Arranca já todos esses dogmas de afirmações ridículas que Nosso
Senhor jamais ensinou, e colabora com a Filosofia ou como lhe
queiras chamar, na busca da realização, para além das formas em
dissonância! Meu irmão, o mundo está enojado do “faz isto e não
olhes para o que eu faço”. Menos conselhos e mais exemplos! É um
engano cruel pensar que uma mulher pecadora, assediada e
encurralada pelo desejo e pela necessidade se corrijará depois de
ter praticado uma série de ritos e orações. O desespero e o
ceticismo que a dominarão após ter terminado com essas práticas,
ao ver que continua na mesma, a precipitarão ainda mais. A mulher
do meu exemplo "sente" que são mentiras e formalismos, pois o
próprio sacerdote que a absolve a criticou, e continuará a fazê-lo
juntamente com as nobres senhoras das associações religiosas. Ela
não encontrará compaixão, e sim escárnio. Ah, irmão Antonio!
Talvez não haja na Terra mulheres mais desumanas para com seus
semelhantes do que as nossas piedosíssimas e refinadas
senhoras... Quanto se esconde sob as brancas toucas e recatadas
mantilhas! Quantos pecados frustrados, não por virtude, mas por
falta de oportunidade, se vestem agora de angélicos sentimentos!
— É certo o que dizes, mas o sacerdote se vê obrigado a
criticar os pecadores para que o mal não impere. Padre Mateos,
nosso silêncio não seria um pouco cúmplice diante de toda
amoralidade?
— Eu te agradeceria se não me chamasses padre... Não sou
teu Mestre, e menos ainda o Pai que mora nos céus...
— Eu também te agradeceria se não me chamasses irmão...
Mateos sorriu tristemente, mas não cedeu em seus esforços.
Sabia que o coração daquele clérigo era excepcionalmente bom e
puro. De costumes ascéticos, pleno de caridade, só estava envolto
em dogmas como a borboleta no casulo a ponto de romper-se.
— Seja! Tu és meu irmão e não meu pai, nem eu o teu. É essa
a realidade. Todo o resto não tem importância. O nosso único Pai é
Deus, e a nossa única Pátria o Universo.
— E qual é a "tua Igreja"?
— Se com esse termo tu te referes à organização religiosa
encarregada de doutrinar os homens, direi que é composta por
todos os seres mais evoluídos de cada grupo, os mais sábios e
bons, a alma de todas as religiões, mas sem bandeiras político-
religioso-sociais, nem mantos de cor que os distingam como "super-
homens" nem "presenteadores da salvação". Pelo contrário, seus
integrantes devem ser humildes e insignificantes em aparência, pois
assim suas obras aparecerão maiores e mais importantes. Serão,
acima de tudo, servidores de Deus e não de causas econômicas e
sociais que mudam com o vento. Se tua pergunta se referia ao local
material onde se oficia, respondo-te, querido Antonio, que é toda a
Natureza, porque se os homens ergueram as igrejas para chegar
até Deus, a Divindade construiu os maravilhosos templos naturais
em sua ânsia de se aproximar dos homens.
— Tudo isso é maravilhoso, mas impraticável e não
aconselhável, querido Mateos. Não renunciemos ao auxílio de Jesus
Cristo. Se não fôssemos como somos, seríamos piores... O sol se
põe... É melhor que me deixes livre e te ocultes em algum lugar
afastado.
— Que a minha segurança e a dos meus companheiros não
perturbe teu coração! Todos nós oferecemos a nossa existência
terrena ao bem da Humanidade, e pouco nos importa que acabe
dentro de dois meses ou vinte anos.
— Mas o que ganhas ou o que ganham os homens com a
nossa atual conversa?
— Muito! Tu és agora o amo, de certa forma, deste povoado.
Em tuas mãos estão a vida de Hipátia e a de centenas como ela.
Não ceda às intrigas de Longinos, e menos ainda à pressão de
terror em que nos mantém monsenhor Pedro! Raciocine um pouco:
se amas o que resta em forma original da mensagem de Jesus
Cristo, luta para deter, ainda que seja só nesta vila universitária, a
corrupção e o assassinato.
— O que é isso?
— Cala-te!
Dois irmãos da Loja tinham se precipitado para o interior do
quarto.
— Apague as tochas e não faça ruído! Um batalhão do Santo
Ofício deteve-se frente ao moinho...
— Solte-me! Eu os despistarei!
— Silêncio, Antonio! Ainda não terminamos nossa conversa...
Se teus companheiros de viagem tentarem chamar a atenção, serão
silenciados à força. Confio em ti e, antes de te ameaçar, peço que
colabores para que isto acabe pacífica e proveitosamente.
Um juramentado que se adiantara com cordas e uma mordaça
parou ao ouvir estas palavras.
Pablo Simón voltou de uma das janelinhas, anunciando:
— Desmontaram! Estão vindo para cá!
— Quantos são?
— Está muito escuro..., mas não são mais de trinta. Que
faremos, irmão Mateos? Saímos ao encontro deles?
— Cala-te, Pablo Simón! Não é derramando sangue que se
solucionam as situações... Lá em cima há um sótão bastante
grande. Ali esconderemos os prisioneiros sob umas bolsas em
desuso, e nós faremos o mesmo.
O ruído da porta do moinho ao ser arrebentada à coronhada
fez com que se apressassem e tomassem extremas precauções.
Cinco minutos mais tarde, todos os passageiros da diligência,
exceto o pároco, jaziam debaixo de montes de panos empoeirados,
atados e amordaçados, com grandes punhais ameaçando suas
gargantas.
— Estes métodos me repugnam, mas, se não os utilizo,
mando para a morte todos os meus homens, e talvez muitos dos
seus. — murmurou Mateos ao ouvido do padre Antonio.
Este se moveu intranquilo, acomodando-se debaixo dos
sacos.
Nesse momento, a velha, embora sólida, porta do moinho caiu
pesadamente, ressoando seu grito de agonia em todos os cantos da
antiga construção. As botas cravejadas e o rumor das armas
uniram-se em uma só onda sonora que se espalhou rapidamente.
De imediato, um dos presos, guarda do Santo Ofício, deu um
pontapé em um tonel e tentou gritar. A pesada empunhadura de
uma adaga bateu-lhe rudemente no crânio, e caiu desmaiado.
Quase instantaneamente foi levantada a porta-alçapão,
aparecendo por ela, como um monstro abismal, vestido com as
cores vermelhas resplandescentes do fogo, o implacável e
sanguinário Longinos. Atrás dele, surgiram vários guardas armados
de espadas. O fiscal inquisidor remexeu com a sua espada os
montes de escombros do chão e rodou vários tonéis que estavam
por perto, exclamando em seguida...
— Isto é perder tempo! Os camponeses já nos avisaram da
partida desses infiéis criminosos.
— Senhor, lá embaixo há vinho — gritou um magarefe que
permanecia na escada.
— Pois beba! Mas, ao primeiro que se embriagar, mandarei
esfolar-lhe as costas a chicotadas e o colocarei em um barril de sal.
Daqui a dez minutos, partiremos atrás desses endemoninhados!
Uma vez pronunciadas estas palavras, a figura negra penetrou
no vão do qual surgiam blasfêmias, exalações alcoólicas e luzes
vacilantes.
Quando a horda inquisitorial se retirou, e o silêncio e a
escuridão preencheram aquele vazio, os membros da Loja
desceram levando consigo os prisioneiros. Todos eles, exceto o
pároco, ignoravam a identidade de seus raptores. Os guardas foram
abandonados no depósito do moinho, solidamente amarrados e
amordaçados.
— Estes lugares tornaram-se perigosos, Antonio. Levarei-te
ao nosso "Mosteiro secreto".
— Como confias?
— Não nos prometeste não revelar nada? Além disso,
vendaremos teus olhos de tal maneira que não saberás aonde nos
dirigimos e te deixaremos desorientado quanto à distância e
direções.
Aproveitando as sombras da noite, pequenos grupos de
homens, cuidadosamente encobertos com capas escuras, foram
chegando às "Ruínas".
Já na cela de Mateos, desvendaram os olhos do pároco e
ficaram a sós com Pablo Simón.
— Não creio que estejamos longe da paróquia. — aventurou
Antonio.
— O que importa? Vês esta lâmpada?
— Sim... a sua luz é estranha, absolutamente branca, e o
pavio surge de um licor dourado...
— Sabes o que é?
— Não... — os olhos do frade elevaram-se lentamente até os
de seu interlocutor. Havia um vago terror neles quando perguntou:
— É porventura uma dessas luminárias diabólicas que ardem
séculos inteiros sem que se lhes renove o combustível?
Mateos não se pôde conter e sorriu ao ver que Antonio
observava a lâmpada com os olhos dilatados de assombro, e tão
pálido como a luz que o iluminava.
— Sim, esta é uma daquelas às quais a ignorância da gente
comum atribui uma origem extraterrestre. — esclareceu o instrutor.
— Mas não temas, Antonio. Foi construída por mim mesmo há uns
doze anos, e seu licor, à base de ouro, foi destilado pelo chefe desta
Loja. Nela não há milagre nem unhas do Diabo, mas indústria,
paciência e a melhor boa vontade de servir a Humanidade.
Ultimamente, o cavalheiro cipriota Podocataro escreveu sobre elas
em "Coisas de Chipre", em 1566. E muito mais antigos são os
dados de Clemente de Alexandria, Hermolao, Plínio, Buratino,
Citecio, Liceto e tantos outros que, estando mais ou menos iniciados
nos Mistérios, as conheciam e fabricavam. Não te é sugestiva esta
passagem do Êxodo 27:20: “Manda que os filhos de Israel te tragam
o azeite mais puro das oliveiras, tirado com almofariz, para que arda
sempre a lâmpada”? Aqui, sobre os véus do original, foram
acrescentadas algumas palavras que desorientam o estudioso, mas,
sem entrar em polêmicas a respeito desse terreno tão delicado, vê-
se claramente que o grande Iniciado hebreu conhecia as "lâmpadas
eternas" e sua utilização em magia cerimonial.
— Pelo que entendo, Mateos, os filósofos afirmam sempre
que as sagradas escrituras estão adulteradas naquelas partes que
não coincidem com seus sistemas.
— Disso se podem inferir duas proposições, a saber: que os
filósofos mentem a fim de desprestigiar os eruditos da moda, ou que
tudo aquilo que concorda com a Filosofia foi adulterado
propositadamente. Tanto a minha opinião como a tua são
interessadas. Recorre às bíblias de duzentos anos atrás e compara-
as com as de agora. E deduzirás, ao veres tais variantes, o tamanho
das efetuadas em um milênio e meio de contínuas traduções e
recompilações, sem contar com as afirmações ex cathedra e do
fruto dos concílios.
— Na atualidade, tenta-se voltar à versão estritamente original
do Antigo Testamento. Os doutores da Igreja passam anos e anos
investigando... Dominam o hebreu...
— Não, querido Antonio! Utiliza teu discernimento, atreve-te a
pensar!
— Padre Mateos! Eu não sou peão nem ferreiro!
— Porém, os preconceitos e as superstições te impedem de
usufruir de alguma vantagem. O que se pretende é apresentar os
textos de maneira que Jesus Cristo seja considerado o único Mestre
divino e que outros Mestres anteriores, que deram os mesmos
ensinamentos, sejam vistos como malignos e diabólicos. Como
pode uma verdade ser boa há mil e quinhentos anos, e má três mil
anos antes, só pelo fato de ter sido então proclamada por um
Hermes Trismegisto ou um Orfeu? Como pretender, dentro dos
limites da lógica e da justiça, que o menino Apolo nos braços de sua
mãe seja uma "réplica antecipada pelo demônio" da Virgem Maria
levando o Menino? Em que se fundamenta a crença de que algo
anterior é plágio do posterior se, em todo caso, o evidente é o
contrário? Poderás opor asseverações prepotentes às minhas
palavras, mas o céu continuaria a ser azul ainda que cem mil loucos
afirmassem enfaticamente que é verde... A Verdade não é obra dos
homens. Estes apenas podem descobri-la...
— Ai, para com essas blasfêmias! Rogo-te, não confundas
meu espírito...
— Se teu espírito se confunde diante da verdade, arranca-o,
pois não passa de um ladrão disfarçado de rei. Expulsa o usurpador,
limpa o palácio e verás como seu legítimo dono desperta e corre a
habitá-lo.
— Em nome de Deus, escuta-me! Que semelhança achas
entre o perfeitíssimo Pai Universal, suprema fonte de bondade e
justiça de que nos fala Jesus Cristo, com o Júpiter pagão, rodeado
de raios mortíferos e cometendo incestos com suas filhas?
— A mesma que existe entre Júpiter, Pai Espiritual
Onipresente, causa das causas, raiz de toda deidade, unido com
Juno, o Espaço Primordial, sua contraparte feminina, e o Jeová que
pintam as lendas da Bíblia tomadas literalmente. Porventura não é
esse um deus insaciável, injusto, pois cria seus filhos disformes e
depois os pune por defeitos de que não têm culpa? Não se une a
eles, fazendo-os pecar, e é ao mesmo tempo um pai incestuoso e
provocador de todo tipo de adultérios? Não se compra e se vende
por algumas dádivas, pisando a moral e a justiça? Seu próprio
nome, enfim, não significa, escrito em hebraico, "macho-fêmea",
imagem saturnal das potências sexuais e perversas do Abismo?
— Não foi assim que Nosso Senhor o descreveu!
— Não o descreveu de nenhuma maneira. Mas é assim que
aparece no Antigo Testamento, e vós reconhecestes e afirmastes
que Jesus Cristo é seu único Filho... Assim destruístes sua Obra.
Ele veio para elevar uma religião decadente, para "fazer cumprir a
Lei", que jazia esmagada sob o formalismo mais absurdo, e vós
reduzistes sua nova Lei ao mesmo estado de ignorância. Ensinam-
nos que o Mestre foi perseguido por curar enfermos ao sábado. E
hoje não se persegue igualmente aquele que trabalha aos
domingos, ou aquele que dá de comer a um perseguido hebreu,
protestante ou simples pensador?
— Cala-te, cala-te, eu te peço! Causas-me dano, o meu
coração sangra!
— Deixa-o sangrar, que é uma prova de que ainda vive! A dor
forja o autorreconhecimento espiritual e só ele nos permite melhorar
e encontrar o caminho de Deus... Podes ouvir-me em paz?
— Não poderia ter paz nestes momentos, nem tampouco
deixar de ouvir-te...
— Bem... Antes de tudo, eu não te digo que a Bíblia seja um
grande acúmulo de lendas e disparates. Isso diria um materialista
dos que surgem como natural reação face à imposição dos credos
em contradição com a razão e a lógica. A verdade habita nas
páginas deste livro, sim, mas oculta sob véus e alegorias. Jesus
reconheceu que ao povo não iniciado só podia falar por meio de
parábolas e que reservava os Mistérios do Reino dos Céus para
seus discípulos diretos. Infelizmente, as chaves internas foram hoje
menosprezadas e reduziu-se este livro sagrado a um cadáver sem
alma, coletânea de contos infantis, absurdos e irrisórios se tomados
ao pé da letra... Por exemplo, quando Caim mata Abel e vai procurar
mulher na terra de Enoch, que mulher ia encontrar se a única que
existia era sua mãe Eva?
— Esses são os mistérios da Bíblia... Mais vale calar diante do
que não se sabe.
— É precisamente disso que se trata, de guardar silêncio e de
não ensinar coisas que, ignoradas, podem ser danosamente
interpretadas. É preciso deixar cada um interpretar estas passagens
segundo seu grau e modalidade pessoal, ou então suprimi-las das
edições públicas.
— A Reforma também vos atingiu!
— Ai, Antonio! A Reforma e todas as suas divergências são
apenas o começo da desintegração de toda uma máquina colossal,
muito bem montada, mas com areia em suas fundações. Só o
conhecimento da Verdade torna os homens livres, e as diferentes
seitas parecem rivalizar em ignorância. É inútil mudar de senhor: o
essencial é deixar de ser escravo! Escuta minhas palavras, Antonio,
porque elas são os arautos da fatal realidade dos fatos. Os séculos
vindouros rirão dos "contos" bíblicos, da sua aparente cronologia
segundo a qual os homens diminuem oitocentos anos de
longevidade em apenas meia dúzia de gerações e do desajeitado
"povo eleito". Estudos arqueológicos, fisiológicos e etimológicos
pulverizarão a letra morta, e só os não instruídos acreditarão nisso,
enquanto que os inteligentes começarão por ridicularizar a Bíblia
para terminar negando a Deus. Quando o mundo descobrir que por
detrás dessa letra morta existe um poderoso Espírito de Verdade,
que são anais extraídos e recompilados de outros, dezenas de
vezes milenares, que ali tudo é simbólico e que o mal nunca esteve
neles, mas nas mentes daqueles que reduziram a liberdade de
pensar, talvez seja demasiado tarde. Então, a Voz da Divindade
voltará de novo à Terra, e este nosso mundo mergulhará no
esquecimento, juntamente com tantas e tantas religiões que,
desempenhando um papel fugaz na história, deram lugar às formas
que todos nós conhecemos. Platão nos ensina que as coisas duram
tanto quanto aquilo com que se identificam: se a fé tivesse se
identificado com a Verdade, esta seria eterna, mas suas uniões
ilegítimas com a violência, a prepotência intelectual e a impureza só
podem conceber filhos bastardos que, em breve tempo, talvez cinco
ou seis séculos, mutilarão sua mãe até matá-la, abrindo espaço a
um espantoso ateísmo, túmulo de tudo o que é verdadeiro e bom.
— Perdão, Mateos, mas já não consigo pensar! Necessito
dormir, estar só!
A voz do pároco elevou-se violenta e torturada, rouca de
angústia, talvez de remorsos...
Dois dias mais tarde, Antonio dispunha-se a partir das
catacumbas. Seu rosto parecia envelhecido. Sem dúvida havia
sofrido muito em seus monólogos mentais, mas em sua fronte
entrevia-se uma expressão pensativa. Com grande dificuldade,
havia superado sua cegueira, substituindo-a pelo conhecimento
divino, lógico diante da razão e harmonioso diante da Natureza.
Para ele, os homens tinham deixado de ser criaturas malditas,
joguetes de um Pai que, não sabendo o que fazer com o próprio
poder, criava seres para lhe servirem e lhe cantarem louvores. Não:
o horror de crer na injustiça de Deus, de aceitar que Ele pudesse
enfurecer-se e que, mais que a virtude das obras, pesavam as
etiquetas que garantiam em nome de qual religião haviam sido
feitas, terminara como um pesadelo. Agora amanhecia lentamente
em seu horizonte espiritual.
Conhecia, pelo menos, os esboços da Lei Única e Universal
que, adaptando-se às necessidades de cada ser, se transformava
em uma infinidade de leis harmônicas, cíclicas, eternas, dentro de
um período de manifestação objetiva. Agora, concebia a Divindade
como o compêndio maravilhoso de todas as almas do Universo,
coroadas pelo Inescrutável Silencioso. Sabia que a maior ou menor
perfeição dos seres dependia deles próprios, que eram todos
herdeiros das próprias obras, que o "Rei" era o mais puro e o mais
sábio, não importando o nome que se desse à Divindade, nem a
época em que houvesse atuado em um corpo carnal. Anaxágoras,
Platão e Aristóteles não tinham que ser forçosamente condenados
só pelo fato de terem nascido antes de Cristo, mas suas virtudes
pesavam tanto quanto dez ou vinte séculos depois. Enfim, o que
contava para a reintegração das almas individuais ao Lar Único não
era pertencerem a uma ou outra religião, mas as próprias virtudes e
realizações, pois o ser imortal polia-se pouco a pouco por meio de
diferentes experiências, até ser “perfeito como seu Pai no Céu”, e
que antes de ser homem teve de passar por outros mundos, nos
reinos mineral, vegetal e animal.
Antonio temia que os clérigos se apercebessem de sua
aventura. Sentia-se diferente. Ele próprio confessou aos irmãos que
o acompanhavam na despedida:
— Levo "algo" muito grande no meu interior. Temo que
transborde pelos olhos e...
— Temes morrer, Antonio? — perguntou-lhe,
zombeteiramente, Mateos.
— Tu não sabes como está minha alma. Antes acreditava que
os justiçados pela Inquisição eram bestas demoníacas, incapazes
de sentir dor alguma. Agora sei que são seres humanos, com
famílias carnais e famílias de sonhos, com projetos e esperanças.
Eu ajudei a matá-los! Quantas crianças deixei tristes; quantas
esposas estão desamparadas e empurradas para o vício; quantos
criminosos satisfeitos com os despojos! Ah, Mateos, não quero
voltar para lá. Deixe-me tirar todo este lodo da alma!
Sua voz afogou-se subitamente em um soluço e pôs-se de
joelhos, abraçado às pernas de seu instrutor. Este o ergueu
prontamente e com palavras firmes e bondosas o acompanhou à
sua cela. Pablo Simón ficou ajudando, junto aos outros irmãos,
silencioso e profundamente emocionado.
Mateos e Antonio retornaram poucos minutos depois. O último
estava extremamente pálido, mas mais sereno. Um dos conjurados
aproximou-se com uma venda.
— Já não tens necessidade de cobrir-me os olhos. Esta é
minha casa e seu ideal é também meu!
— Sinto muito, Antonio — respondeu-lhe Mateos —, embora
nos seja permitido arriscar nossa pessoa, o mesmo não sucede em
relação à Loja.
Antonio concordou e cerrou apertadamente os olhos, como
um avaro que fechasse as tampas de suas arcas com o fim de
guardar sua fortuna.
O tempo prosseguiu sua marcha, deixando os vestígios dos
dias passados sobre o mundo. Novamente a neve envolveu os
galhos despidos das árvores, mas eles não estavam mortos, apenas
adormecidos.
Enquanto isso, Hipátia jazia em um calabouço subterrâneo,
quase agonizante, em meio a crises nervosas e longas jornadas de
aparente torpor. O pároco, influenciado pela sua consciência e pela
Loja, fazia o possível para moderar o ódio dos inquisidores.
Pablo Simón tornava-se cada vez mais silencioso, e seus
passeios campestres prolongavam-se. Várias vezes, tentou visitar a
pitonisa, porém sem êxito. Ela, por sua vez, negava-se
obstinadamente a todo esforço para salvá-la. Só desejava morrer,
mas as torturas físicas, psicológicas e mentais a que a submetiam
transformavam esse desejo em uma farsa. Suas carnes eram
atormentadas e sua moral relaxava-se com atitudes e conversas
obscenas. O fruto de tais atrocidades era um medo asqueroso que
aderia à alma da jovem, deformando-a lentamente e separando à
força seus princípios morais para longe do corpo.
Era meio-dia quando Pablo Simón passou junto ao pátio
interno do cárcere inquisitorial, anexo à casa paroquial, e viu por
meio do postigo um ser que emitia os gritos mais espantosos que
jamais ouvira. Tratava-se de uma anciã maltrapilha, de cabelos
cinzentos e apodrecidos, que tentava desesperadamente fugir do
sol, sendo obrigada, por alguns guardas armados de chicotes
curtos, a permanecer sob seus raios. Pablo Simón estremeceu e
afastou a vista, horrorizado. Quis voltar a olhar, mas um guarda
entrou nesse momento dando-lhe ordem para se afastar.
— Quem é essa anciã? — perguntou com a garganta seca e
áspera.
— Essa? É uma bruxa. Diz chamar-se Hipátia. Teve outro de
seus ataques.
A pesada porta fechando-se atrás do soldado salvou-o de
duas mãos de ferro que, crispadas, tinham saltado em direção à sua
garganta.
Só um esforço grandioso, utilizando ao máximo as vantagens
alcançadas pela disciplina integral a que havia se adaptado desde
que pertencia à Loja, permitiu-lhe retirar-se sem ruído. Com os
dentes apertados até fazer brotar sangue dos seus alvéolos e as
unhas cortando a pele de suas palmas, começou a caminhar como
uma máquina, sem rumo nem sensação de cansaço.
Os homens desesperados devem infundir medo e horror aos
seres simples da Natureza, pois seus antigos amigos, os pássaros,
fugiam espavoridos ante seus passos, e as árvores pareciam calar
os mil lábios verdes de suas folhas ao se aproximar o jovem
Iniciado.
Por fim, as pernas cederam e caiu exausto, de rosto contra a
relva. Não teve noção exata de quanto tempo permaneceu assim,
mas, ao recuperar a consciência, viu-se no meio do maravilhoso
bosque de cedros que conduzia a um profundo vale, a uns dez
quilômetros das "Ruínas". A escuridão era quase noturna e o céu
aparecia sombrio e ameaçador.
Pablo Simón consultou seu relógio de bolso e verificou que
não haviam se passado mais de cinco horas desde sua terrível
descoberta. A brutal lembrança o comoveu como um hálito gelado.
O silêncio era acentuado pela oposição de trovões formidáveis
que ressoavam nas encostas das montanhas vizinhas. Os
passarinhos apressavam-se a procurar e remexer entre o manto de
folhas caídas e de musgo, a fim de resistirem, bem alimentados, à
chuva e ao frio. Toda a Natureza estava na expectativa, em
silenciosa tensão. Pablo Simón, apanhado pelo encanto primitivo do
cenário, foi um ser a mais à espera da tormenta. De quando em
quando, rajadas curtas e violentíssimas quebravam os galhos altos,
mas estes não chegavam ao solo, pois suas irmãs mais humildes,
gratas pelo sacrifício daquelas que assinalavam o céu, as
sustentavam sem deixá-las cair.
Que bom exemplo para os homens! — pensou o jovem. Entre
estes, quando cai um dos que formam as mais altas camadas
sociais, os de baixo o ajudam... a precipitar-se mais rapidamente!
Ao contrário, aqui no bosque, as árvores quebradas morrem nos
braços de madeira de suas irmãs.
O clarão vívido de um raio arrancou-o de sua contemplação, e
viu enormes gotas começarem a martelar as folhas, os troncos e o
solo. Pablo Simón andou alguns passos e refugiou-se debaixo de
uma árvore de excepcional folhagem. Uma música monótona e
mágica começou um “crescendo” à sua volta. Porém, era uma
música muito particular, pois por música os homens entendem um
conjunto de sons harmônicos em um todo oposto ao silêncio. Esta
se assemelhava à dança da alma do silêncio, que festejava sua
solidão e o reencontro consigo mesma: era uma dança feita nas
pontas dos pés...
Os anjos do perfume iam surgindo do seio dos vegetais
úmidos, ao apelo insistente das gotas. O encantamento tornou-se
profundo e poderoso. A água cristalina, deslizando pelos ramos da
árvore, descia pelo seu enorme tronco em murmurante cascata.
Uma grande mancha de espuma foi se estendendo entre as raízes,
espalhando aromas tão agradáveis e raros que Pablo Simón,
hipnotizado, caiu em um estado de doce abandono, propício à
introspecção.
De repente, desenhada na cortina de chuva, foi aparecendo
uma forma esbranquiçada, rodeada de um halo rosado.
Impossibilitado de se mover e de pensar claramente, só pôde ver e
ouvir. Parecia fazer ambas as coisas ao mesmo tempo, pois captava
as vibrações compenetradas. A visão tornou-se subitamente clara e
precisa, ganhando em profundidade. Era Hipátia, sim, Hipátia, que
estava parada diante dele, com um aspecto muito sofrido e fatigado,
mas sorridente. Aproximou-se mais ainda e o tomou pela mão.
Instantaneamente, e sem notar a sensação de translado, viu uma
paisagem semelhante, embora diferente da que antes o rodeava.
Viu-se a ele próprio, mas vestido de outro modo, debaixo de uma
grande árvore, junto a um homem alto e delgado. Usava vestes
parecidas às dos peregrinos montanheses...
Quando o jovem voltou à consciência normal, viu-se tal e qual
como há minutos atrás, ao pé da grande árvore, mas possuía algo
novo. Realizaria a viagem. Devia buscar aquele lugar e aquele
homem.
À meia-noite, Pablo Simón chegou às "Ruínas". Ali o esperava
Mateos, que o informou:
— A nossa irmã Hipátia perdeu a razão ao entardecer...
— Não foi ela, Mateos, mas seu corpo carnal que se separou
de sua alma. Ela vai comigo ao Oriente.
Mateos, pela primeira vez, contemplou com franca admiração
seu discípulo, que, para sua fortuna, deixava paulatinamente de o
ser...
CAPÍTULO V - O ORIENTE

À medida que as águas do lago se aquietavam, desenhava-se


a mancha ovalada de um rosto. Finalmente, as linhas tornaram-se
precisas: cabeça e rosto raspados, olhos ligeiramente fundos e
faces magras, mas firmes. Sim, nem ele próprio podia reconhecer,
naquela aparência, Pablo Simón Fosoletoe, aquele professor de
química do colégio paroquial, ou o discípulo vacilante e um pouco
atormentado do Irmão Onze.
Há dez anos abandonara as "Ruínas" e há mais de seis
estava unido ao filósofo mendigo, ao Guru[1] que percorria a Índia e
a China deixando um rastro de paz nas almas e saúde nos corpos
enfermos.
— Lanu![2] Onde estás, “meu filho”?[3]
— Aqui, mestre, contemplando-me nas águas...
— Cuidado para não acreditar que o reflexo é tu...
Aquele que assim falava tinha idade extremamente indefinida,
pequeno, de corpo magro e da cor do ouro, com a cabeça e o rosto
raspados. Podia contar cinquenta anos, como cem ou mais. Uma
túnica branquíssima de linho e uma espécie de capa de lã
toscamente tecida eram toda a sua roupagem. Um par de anéis e
um colar de estranhos metais e pedras preciosas completavam
misteriosamente seu arranjo. Talvez, o mais extraordinário dessa
personalidade fossem seus olhos, de tal profundidade e poder que
atraíam como o fascínio das estrelas nas noites serenas.
— Então estavas te contemplando nas águas? — perguntou o
asceta sorrindo bondosamente. — Mas me parece que não te vias.
Pablo Simón, ou Sani, como se chamava no Oriente, por sua
vez sorriu, captando o duplo sentido da frase.
— Falei impensadamente, seduzido por Maya[4]...
— Esse é um dos maiores erros dos homens. Sabem como
fazer as coisas, mas, chegado o momento, as fazem como se não
soubessem. Como vês, o problema não está em saber mais, mas
em viver o que se sabe. A tua confusão trouxe-me à memória uma
parábola desse grande instrutor religioso que foi Siddharta
Gautama, o Buda, mas tu já a conheces tanto quanto eu...
— Mas me encantaria ouvi-la de novo dos teus lábios. Será
sempre a mesma, mas ao mesmo tempo diferente, como as flores
que observamos todos os dias com renovada satisfação.
— Diz-se que há mais de dois mil anos abundavam manadas
de elefantes nos grandes bosques, e um deles, macho de singular
corpulência, intimidara à sua passagem um monge peregrino, que
se escondeu a fim de se proteger e de observá-lo a seu gosto. O
animal, que parecia a encarnação da potência física, aproximou-se
de um lago e esticou a tromba para beber, mas, logo que viu sua
imagem refletida na água, recuou espantado, fazendo um ruído tal
que ecoou a grande distância.
O peregrino soltou uma grande risada e zombou do
paquiderme. O Iluminado, que passava por ali, encontrou-o e
repreendeu-o por troçar do elefante, acrescentando que ele era tão
digno de troça quanto o animal. “Por que, irmão?”, perguntou o
monge. E Gautama respondeu-lhe: “Porque também te enganas. Tu
riste do elefante porque ele acreditou ver outro elefante a ameaçá-lo
e, no entanto, afirmas que o elefante via-se a si próprio... Grande
erro! Somente olhava a imagem de um de seus veículos, o mais
denso. Não se via a ‘ele’. Assim, os homens observam seus corpos
e dizem ‘este sou eu’, mas o ‘Eu’ não deve se identificar com
nenhum de seus servos. Desse modo, uma vez libertado, alcançará
o Nirvana, ou seja, a atividade pura no seio do amor e da mente de
Deus, longe de todo movimento grosseiro, paixões, psiquismos e
angústias, todos eles causa dos sucessivos renascimentos.
Enquanto quiser viver no mundo, aqui viverá, pois os desejos do
homem traçam sua rota futura”. Assim falou o Buda, ó Lanu, e suas
palavras, junto às dos outros Mestres da Humanidade, são as
nossas amorosas lâmpadas noturnas...
— Mas é plena verdade que a vontade do homem forja os
limites de sua liberdade futura? — perguntou o discípulo.
— Tu sabes o que é o karma...
— Sim, é a lei de causa e efeito que rege os mundos
manifestados. O senhor me explicou, ó sábio, que ela é semelhante
à corrente de um rio!
— Assim é. Se um homem submerso no rio se deixa arrastar
inerte pela corrente, a água bate-lhe suavemente só para
impulsioná-lo, e ele faz o menor esforço possível. Se, pelo contrário,
se afastar insensatamente para as margens cheias de rochas, ou se
for contra o impulso do rio, nadando contra a corrente, receberá o
choque violento das ondas, tão grandes como seus esforços. Mais
cedo ou mais tarde, o nadador retorna ao centro do rio sem mais
lutas, pois o impulso da água não conhece o cansaço, nem diminui,
nem aumenta. O nadador volta ao seio da Lei em virtude do
cansaço e da dor produzidos por ele próprio. Assim, Lanu, vê que a
dor é o mais piedoso dos deuses, pois anuncia as irregularidades e
trabalha sempre a nosso favor. Ela é a prova palpável do nosso
relativo livre-arbítrio, pois, não o tendo, não poderíamos — não
quereríamos — nos opôr em nada à Lei, e a dor seria desconhecida.
Não agindo, não provocaríamos reação.
— Irmão, e aqueles que, mediante esforços, se antecipam aos
demais e os trabalhos que realizam para o bem da Humanidade
lhes proporcionam inúmeras dores?
— Esses tampouco vão nos braços da Lei normal, do rio que
leva todos os outros homens. Esses, amado jovem, por seguirem
outro rio, mais celeste, superior aos formados de água, adiantam-se
à corrente e têm de combater com sua relativa inércia. Quanto maior
esforço no físico, tanto mais dor recolhem, pois o Anjo que cuida de
sua evolução individual carece da visão que os homens têm quando
penetram nos Mistérios Internos do Templo do Serviço. Ao fim de
uma época, chegam ao lago em que o rio desemboca, e os muito
piedosos costumam lançar-se novamente na corrente a fim de
ajudarem seus irmãos. A esses, no Oriente, chamamos
Nirmânakâyas, os que renunciam por amor ao Nirvana ou moksha,
o lago tranquilo e sereno, o Céu ou o Paraíso dos ocidentais
cristãos.
— Sim, Guru. Mas a esse rio, à grande Lei a que chamamos
Dharma, quem lhe deu impulso? Por que corre o rio, levando em
seu seio os homens e todos os seres da presente emanação?
— Quem motivou as alternativas de tua atual existência física?
— Eu mesmo. Disseram-me que sou o herdeiro de minhas
obras, e assim o confirma a vida que me rodeia.
— E não te disseram que “como é em cima é também
embaixo”? O discernimento e a intuição são auxiliados eficazmente
pela lei de analogia. Tu mesmo deste o primeiro impulso, e tu
extinguirás o último. Quando algum viajante visita estas regiões,
escarnece do brâmane que diz em suas litanias: “Eu sou Brahma”,
ou seja, “Eu sou Deus”. Mas esse está mais perto da Verdade e da
Natureza do que todos os filósofos especulativos e os teólogos
dogmáticos das religiões populares. Na verdade, ele, tu e eu somos
Deus, pois se não fôssemos, a Divindade estaria limitada por nós, e
isso não é possível.
— Assim deve ser.
— Toda especulação acerca da Divindade é muito bonita, pois
nos ensina a olhar para o alto, mas é tão inútil como fazer buracos
na água. A nossa mente é finita e, como tal, trabalha com elementos
finitos, mesmo nas abstrações. Assim, lhe é impossível
compreender ou abarcar o Infinito. Tu vens do Ocidente. Lá é
costume falar e discutir a respeito de Deus: limitam, personificam,
reduzem-no a um ser comum, o maior, mas não diferente - em sua
bondade e em sua ira - do resto dos manifestados, dos limitados.
O conceito oriental, mesmo o das religiões em sua faceta
externa, é distinto e idêntico ao que tinham os filósofos ocidentais
em épocas anteriores ao apogeu e queda do grande Império
Romano. O oriental afirma que o homem só pode conhecer o “seu
Deus”, ou seja, o espírito regente deste sistema solar, mas nunca o
Absoluto. Antes de se projetar nas alturas, convém a todo aspirante
à sabedoria conhecer o mundo em que vive, pois nele estão os
arcanos, as chaves dos outros superiores. Busque sua alma e
encontrará a alma de Deus. Estude a gênese dos corpos e deduzirá
outras criações mais sutis; investigue sobre os gnomos, as fadas, os
silfos e os outros "elementais" e então estará em condições de se
debruçar sobre os anjos ou os demônios, como aqui os chamamos.
— Algum dia o Ocidente ressurgirá do poço em que está
sepultado e se lançará ao encontro de seu destino, que, segundo
entendo, não é o de servir de matadouro de homens nem de
cemitério de ideais espirituais!
— Se tu dizes isso por simples amor aos homens, eu me
congratulo contigo, mas se tão somente um nacionalismo ou
sectarismo atávico move tuas palavras, digo-te que o importante é
que a Humanidade se eleve sobre os miasmas da ignorância, da
crueldade e do egoísmo. Não importa o povo que a encabece, mas
que nenhum fique para trás. E, além desse trabalho, fica ainda por
estabelecer uma síntese filosófica que nos permita ver totalmente o
“tabuleiro de xadrez”, os que jogam e por que o fazem. Com a
análise, se pode matar, mas, com a síntese, com a integração,
somente se vivifica.
O instrutor se calou e ficou contemplando algumas crianças
escuras, imundas e quase despidas, que passavam correndo ao
longe, por uma trilha. Estavam acostumadas a correr agachadas
como os animais débeis da selva. Sani se voltou para ele e
perguntou:
— Não se pode fazer nada por estes infelizes “párias”?
— Eles têm um karma muito ruim, pois todos os egos de
evolução inferior encarnam nos corpos de sua raça. Porém, são um
exemplo vivo da corrupção bramânica, no que se refere ao aspecto
popular. Na Antiguidade, os brâmanes mais inteligentes e elevados
eram os protetores carinhosos das classes inferiores, e alocavam
seus integrantes em trabalhos adequados, simples, mas não
humilhantes, simples, mas não desumanos. Mas, pouco a pouco,
“embriagaram-se” com sua força, e os que antes eram irmãos
menores se converteram em desprezíveis semi-homens, os
"intocáveis". O Buda veio para restituir a primitiva grandeza desse
culto, assim como Jesus procurou regenerar o hebraísmo primitivo,
tão corrompido na época de seu advento. Ambos os instrutores
fracassaram parcialmente, pois os que verdadeiramente seguem
seus exemplos e ensinamentos são relativamente poucos. Os
demais permaneceram na sua degradada situação moral ou
invocaram aqueles nomes santos para se arrogarem o direito de
matar, roubar e destruir para proveito próprio. Todas estas religiões
são, ó Lanu, fracassos que acumulam, nos homens e nos seus
reitores imediatos, experiência suficiente para chegar, ao final desta
época, à Grande Religião Universal, sem seitas, dirigida unicamente
ao "sem-nome" Deus do Amor, e todos os homens puros, bons e
sábios serão seus representantes na Terra.
Novamente o instrutor calou e caminhou lentamente até à
cabana de ramos e pedras que lhes servia de dormitório. Essas
terras, nevadas e frígidas no inverno, gozavam agora de exuberante
vegetação de arbustos ao amparo de uma cálida temperatura.
O sábio peregrino se entregou, sem mais trâmites, à sua
meditação do entardecer. À sua frente, ardia uma lamparina
alimentada com azeite de secreta e complicadíssima obtenção.
Sani o imitou silenciosamente e fixou seus olhos firmemente
no avermelhado disco do sol poente. O verdadeiro Yoga não se
limita aos diversos exercícios de purificação ou Hatha Yoga que
haviam chegado ao Ocidente, mas consiste na real união com o Eu
superior mediante a meditação. O estudo da Natureza e da reta
ação o tornaram doce e caridoso para com os outros, mas férreo,
estrito e exigente para consigo próprio. A bondade, a pureza e o
trabalho o tornaram poderoso. Via indistintamente os seres que se
revestiam de corpos físicos. Conhecia muitas virtudes secretas das
plantas e das pedras preciosas. Os animais da montanha vinham
comer em suas mãos, e mantinha frequentes entrevistas com
misteriosos seres que habitavam nos cumes das montanhas e no
coração do grande deserto.
— Sani! Escuta-me... — a voz do ancião chamou sua atenção,
e prontamente o jovem acorreu. Seu acento parecia emergir das
próprias mansões do Mistério: tinha solenidade.
— Esta noite consultarei os Anjos do Fogo a respeito do
roteiro de tua viagem. Acabaram de me avisar que deves continuar
sem minha presença física...
— Ó amado instrutor! Acreditei que a teu lado alcançaria a
libertação... Na verdade, não desejo me separar do senhor nem
mesmo fisicamente. Em tua companhia, aprendi a compreender o
mistério do murmúrio das folhas, o dos rubis no centro das rochas e
a voz misteriosa do mar, que sempre repete a mesma nota musical
e testemunha a mesma palavra: AUM... O senhor me iniciou em
línguas sagradas que são mais antigas que a forma dos pássaros...
— E tudo isso te deu libertação, paz, bondade, sabedoria
interior?
— Se não tudo isso, pelo menos me proporcionou parte
desses atributos divinos.
— Bem, agora o abandono para que encontres o resto. As
virtudes da alma, querido jovem, são também seres vivos. Se as
dividirmos sem habilidade e não unirmos a tempo suas partes, todas
elas morrem e o trabalho se perde. O grande mal é o homem não
discernir com clareza. Muitas vezes, tenta extrair mais polpa de um
fruto do qual só restam sementes e cascas. Não! Quando uma fonte
nos deu tudo, devemos procurar outra que nos dê mais, pois não
nos enamoramos das fontes, mas da água que mana de todas elas.
Há um período na evolução do indivíduo em que ele necessita amar
o Mestre em si para progredir. Mas depois, superada essa etapa
infantil, ama a sabedoria única em todos os Mestres. Não devemos
amar as pessoas pela sua divindade, mas a esta por meio das
pessoas.
— Compreendo, ó Sem Idade! Não me peças que não te
aprecie, mas sim que o faça extensivo a todo o Universo, pois o que
amo no senhor é o próprio Deus. Dentro de quinhentos ou mil anos,
eu te encontrarei novamente e terás outro rosto. Sem dúvida, eu te
amarei, pois não mudas de expressão. Transcendes as formas. Eu
sei, pois também as transcendo...
— O espírito não nasce nem morre, somente suas misteriosas
projeções e imagens. Tudo é ilusão, efêmero jogo das linhas,
assassinas do corpo do real.
— E para que, Guru, ó Santo Iluminado, todo este jogo
diabólico de imagens, de formas perecíveis, de chispas loucas que
supõem um fogo diferente?
— Ah, tua mente ocidental! Não sabe por que a seiva sobe
pelos troncos das árvores nem que civilizações aduziam suas ideias
e obras há cem séculos, e quer conhecer a razão da existência do
Universo e ainda da Divindade...
O misterioso velhinho sorriu um pouco zombeteiramente para
depois acrescentar:
— Tomemos algum alimento e, à meia-noite, interrogaremos o
Grande Devorador.
Sani lavou sua tigela de madeira no arroio e caminhou sob a
tênue chuva da lua. O silêncio era cortado de quando em quando
pelos uivos das feras distantes ou pelos estranhos murmúrios que
sempre povoam os grandes bosques e extensões agrestes. As
poucas árvores, de copas largas e altas, formavam alguns grupos
que emergiam como ilhas no meio daquele mar de arbustos
espinhosos e altos e de ásperas pastagens.
Por fim, o jovem se deteve frente a uma pequena gruta aberta
na encosta das montanhas que, quase imperceptivelmente, se
elevavam sobre os terrenos mais baixos. Um estranho cansaço
passou suas adormecedoras carícias por todos os seus membros, e
se deitou na cavidade com intenção de dormir. Seus olhos
entreabertos divisavam sombras esbranquiçadas e pequeninas
dançando nas clareiras sem árvores e sem as espessas sombras
inimigas desses adoradores da Lua. Ao longe, a cobertura de um
templo assinalava silenciosamente a ideal morada dos homens: o
céu.
Uma visão bem conhecida do aspirante aos Mistérios se
aproximou lentamente de seu refúgio.
— És tu, Hipátia? — perguntou-lhe com voz baixíssima e
emocionada. O estado hipnótico que o envolvia fazia com que não
visse outra coisa diante de si, e isso o impossibilitava de fazer o
menor movimento.
A visão afirmou com a cabeça. Seus diversos movimentos
demonstravam alegria, enquanto que a aura que a rodeava se tingia
com matizes não conhecidos na Terra, parecidos aos que as pedras
preciosas guardam em seu coração.
— Diga-me, Hipátia, por que, à medida que o tempo passa, eu
te vejo mais deslumbrante e nítida, exceto teu rosto, que se torna
paulatinamente mais indefinido?
Como resposta, um braço espectral assinalou o deserto
próximo e toda ela se desintegrou nas mãos da brisa.
Sani permaneceu dormindo profundamente, e em seu sonho
se repetiu a primeira visão de uma grande árvore e, debaixo, um
peregrino desconhecido, de olhar mágico e penetrante.
A luz de uma tocha bateu suavemente às portas dos seus
olhos. Diante dele, seu mestre, imagem de bondade e sabedoria, o
observava sorridente.
— Já é quase meia-noite, Lanu. Devemos consultar os
Espíritos do Fogo...
— Eu a vi outra vez, ó sábio!
— O que te indicou?
— O grande deserto... Seu rosto, amado Guru, eu o vejo cada
vez mais apagado... Que significa isso?
O ancião sorriu enigmaticamente e empreendeu o regresso
em silêncio.
Um vento forte e frio enchia as copas das árvores de ruidosos
pássaros ilusórios, e a lua se velava de quando em quando com
antefaces de nuvens transparentes.
Ambos os homens caminhavam com passo vivo e seguro até
à residência temporária do filósofo mendigo. Uma vez ali, o ancião
recolheu uns feixes de ervas secas e extraiu de sua túnica algumas
tiras de seda vivamente coloridas. Com um gesto, indicou a Sani
que levasse o primitivo instrumento com o qual se acendia o fogo.
A lua, ao incidir sobre as joias do ancião, despertava nelas
estranhos reflexos, talvez adormecidos há dezenas de séculos. Ao
cabo de meia hora de caminhada, se detiveram ao sopé de um
planalto cujas bases assentavam no deserto de grandes pedras e
finíssima areia.
Sem dizer uma palavra, o Sábio fez seu discípulo sentar na
posição correspondente e traçou no solo arenoso algumas figuras,
que, embora se assemelhassem a círculos entrelaçados, não o
eram. Em seguida, pegou em um bastão e começou a girá-lo no
Yoni, matriz de madeira de onde o elemento masculino fazia a
chispa saltar. A difícil operação ficou concluída ao se acender o
primeiro feixe de ervas, que o iniciado colocou sobre os símbolos,
junto com outras oferendas. Tomando a posição necessária,
pareceu se evadir do mundo por uns instantes e, quando reabriu os
olhos, seu rosto se transformou em uma gloriosa máscara de poder.
Sani nunca tinha colaborado nessa cerimônia e se esforçava por
fazê-lo à altura do Mestre.
O fogo que ardia vivamente, reforçado pelas saliências do
terreno, tornava-se cada vez mais escuro. Por fim, adquiriu uma
tonalidade lilás no centro, tendo os extremos das línguas um azul
escuro. O discípulo não pôde reprimir um ligeiro estremecimento.
Diante dele, estava o "Fogo Negro", um dos engenhos mágicos
mais terrivelmente perigosos. Só um profundo conhecedor da
Natureza e de suas mais recônditas leis podia convocar tão grande
poder e utilizá-lo.
A fogueira irradiara primeiro enorme calor, mas, pouco a
pouco, diminuiu, e embora Sani não pudesse comprová-lo, deu-lhe
a sensação de que se tornara frio. Sim, era um fogo escuro e
gelado...
Lentamente, um estranho ser foi objetivando seu corpo no
meio da fumaça. Parecia com os anjos das figuras, mas tinha uma
aparência menos humana. Suas asas, se assim pudessem ser
denominadas, estavam unidas ao longo de todo o corpo, como
sucede com algumas borboletas, e constituíam a parte menos
densa, a de mais alta frequência vibratória. Sani tinha de recorrer à
sua visão interior para apreciá-las em algum detalhe. A cabeça
estava rematada por um cone agudíssimo, parecido com o chapéu
de alguns magos ocidentais, e suas pernas apareciam unidas a algo
semelhante a um talo, delgado e flexível.
O ancião estendeu suas mãos através do fogo em direção à
visão, e violentíssimas rajadas de vento sacudiram o lugar sem
afetar os arbustos mais distantes, ao mesmo tempo que todos os
animais dos arredores gritavam espavoridos. A Natureza parecia
querer expressar algo. Talvez adoração, talvez medo ou horror.
A voz do sábio soou baixa e impessoal. Pronunciava as
palavras muito lentamente.
— Este é um Deva (Anjo) da Natureza, um Deus do Ar. Ele te
servirá até que abandones o deserto. Ame-o. Em breve o deixarei
em liberdade, pois sofre muito ao permanecer imóvel; é contrariar a
sua tônica vital... Agora o fogo assinalará a ti a direção. Caminha em
direção a esse ponto e não te voltes para despedir-te, pois na
verdade não nos separamos. Não caia na rede de Maya.
O Deva havia desaparecido, e, poucos minutos depois, ante
um novo montículo de ervas lançadas em se interior, o fogo saltou
formando uma grande chama de cor mais clara. Esta vacilou
perante novas rajadas de vento, mas, por fim, se inclinou em
direção ao norte, e se separou vários palmos da raiz do fogo, se
reintegrando quase instantaneamente.
Pouco tardou para o fogo se apagar, e o médico-mago ficou
outra vez imóvel para voltar às suas feições habituais, de extrema e
infantil doçura. Sani meditava em silêncio. Devia tanto a esse
homenzinho, que não queria deixá-lo. Tinha-o visto fazer tanto bem
e ser tão austero, que lhe parecia uma monstruosidade abandoná-lo
naquela inclemente região infestada de perigos de toda índole. Valia
mais sua paz interior do que o amor simples e puro que devotava ao
ancião? Sua voz o tirou do labirinto mental em que deambulava.
— Manu nos diz em seu livro de Leis que “é assim que, por
um despertar e um repouso alternados, o ser imutável faz reviver ou
morrer eternamente todo este conjunto de criaturas móveis e
imóveis”. Portanto, sendo estas palavras corretos reflexos da
verdade que tu já pressentes, não te escravizes à forma, porque ela
não passa de efêmera ilusão. Vai para o deserto, procura e medita.
De mim não te separas. É meu corpo que se afasta um pouco do
teu.
Assim dizendo, tirou um medalhão que pendia de seu pescoço
e colocou-o no discípulo. Tratava-se de uma pedra preciosa
parecida com o jade, confeccionada com uma arte quase sobre-
humana, tendo a forma de uma flor delicadíssima. Talvez fosse uma
flor verdadeira convertida em pedra por um processo alquímico que
reduzisse a horas o enorme tempo que a natureza leva na
petrificação dos vegetais, pensou Sani. Com doloroso esforço,
saudou respeitosamente o sábio e começou a descer em direção ao
grande deserto de Gobi, sem virar a cabeça.
Seus suprassentidos, ativados mediante a prática, dirigiam-no
corretamente em direção ao norte, impedindo-o de se desviar de
sua rota, pois a tendência física é de andar em círculos quando se
carece de pontos de referência. O deserto, com suas extensas
planícies arenosas e essas estranhas formações de rochas soltas
que o caracterizam, foi tragando-o lentamente. Agora tentaria digeri-
lo, transtornando sua psique e dissecando seu corpo. Ao meio-dia, o
calor era enlouquecedor, e tal como calculara, chegou às ruínas de
um pagode budista do século II a.C., junto ao qual corria um arroio
que morria entre as areias, a poucos metros de distância. O lugar
era um refúgio apropriado para os peregrinos que sofriam as provas
do deserto.
Sani se deparou com um asceta da escola Karma Yoga que
estava entregue ao êxtase meditativo. Pareceu não ter reparado
nele, e assemelhava-se mais a uma estátua coberta de pó do que a
um homem vivo.
Aplacou a sede e encheu o cântaro. Qual não foi sua surpresa
quando encontrou no meio de suas roupas uma pequena torta de
arroz preparada ao estilo tibetano. Não se recordava de tê-la
guardado, porém seu instrutor realizara outros prodígios parecidos
em sua presença.
Descansou até ao pôr do sol e, após realizar os sacrifícios
habituais, retomou a rota do norte. O asceta, imóvel e com os olhos
fechados, não deu o menor sinal de atividade biológica em mais de
seis horas.
A maré das sombras foi mergulhando no escuro das
ribanceiras e, pouco a pouco, alcançou o cume das rochas mais
altas. O "buscador da verdade" avançava agora guiado pelas
estrelas, mas o fazia com dificuldade, pois o frio compartilhava o
império das sombras, e as pedras, até poucas horas antes
abrasadas pelo sol, estalavam violentamente ao perderem calor.
Sani estava muito acostumado às terríveis peregrinações através de
desertos e selvas, onde se arriscava a vida física a cada passo, ou
quando se dormia, ou se comia. De outro modo, teria sentido terror
ao se ver no meio daquela infinita solidão.
Nem pássaros, nem insetos, talvez nem serpentes vivessem
no enorme deserto da Ásia Central. O rio Amarelo corria à direita, a
não mais de cinco dias de caminhada, mas, por nenhum motivo, ele
podia se desviar de seu caminho. Lentos, porém inexoráveis, seus
passos o aproximavam do lugar do estranho encontro. Pouco
importava se seria um doce mestre, ou a tortura e a morte. Por
detrás de tudo isso estaria a Verdade.
Sani sabia que não podia adormecer de noite nessa região,
pois o frio dava cabo do imprudente. Então, apressou a marcha e
fez exercícios de respiração a fim de carregar seu corpo de
energias. Andou toda a noite e recebeu o Sol como uma benção da
Divindade. Porém, um novo incômodo tentou interromper sua
viagem: um forte vento que levantava as areias e abrasava o nariz,
a boca e os olhos. Instintivamente, ante uma rajada que por pouco
não o derrubou, apertou com a mão direita a medalha, presente de
seu Guru, e pôde apreciar como, à sua volta, os ventos se
entrechocavam, não chegando até ele a menor rajada. Confortado
pela maravilhosa experiência, continuou seu caminho, agradecendo
mentalmente aos Brancos Mestres de Compaixão a instrução e a
proteção oferecidas.
O disco solar ainda não tinha se elevado muito sobre o
horizonte quando, após um redemoinho de areias ter se aplacado,
viu surgir das mesmas, a mil metros de distância, uma estrutura
colossal, parecida com um grande templo quadrado, de pedra
vermelha e com altura superior a sessenta metros. A soberana
imponência e sobriedade do edifício o fizeram parar novamente a
poucos passos da porta. Recordou-se de uma versão primitiva e
ciclópica dos grandes templos egípcios. Sem seus relevos,
colunatas e detalhes delicados, os superava em tamanho e força.
Uma linha de grossas colunas quase dolmênicas sustentava sua
fachada despida de imagens e adornos de qualquer espécie. As
pedras estavam em parte carcomidas pelas areias, e em inúmeros
lugares faltavam grandes pedaços onde se formavam pequenas
cavernas.
Sani subiu com grande dificuldade pela escadaria
semidestruída, pois os degraus tinham quase setenta centímetros
de altura. Atrás do templo, uma pequena montanha erigia seu pico,
que a dobrava em altura. O vão de entrada, com uns dez metros de
altura, não tinha portas, pelo que Sani se aventurou no que lhe
pareceu a mais negra escuridão. Havia dado dois passos, quando
uma voz rouca e metálica ecoou várias vezes na grande sala.
Surpreendido e atemorizado, levou as mãos ao medalhão, mas
nada aconteceu, e a voz, que a princípio emitira confusamente
várias notas musicais, começou a articular palavras:
— Nada tema, exceto a ti mesmo. Escuta, estrangeiro. Este
deserto foi um mar, e nesse mar se erguiam ilhas e costas, onde
cresciam as flores vegetais e humanas. A revolução dos tempos
levou cidades aos desertos e transformou em desertos as nações
poderosas. Ninguém escapa ao karma! A Humanidade aviltada
degenerou e degenerou. Agora, tenta levantar-se em meio ao pó. E
o conseguirá. Estas ruínas aguardam para se mostrarem ao mundo
no dia em que este, demasiado orgulhoso de suas obras, acreditar
ter chegado ao máximo. Aqui se conservam tesouros artísticos e
científicos tais que os homens baixarão a cabeça, pois verão que,
mesmo os povos mais avançados, os que vencem as doenças,
descem ao fundo do mar e roçam os astros, caem e se transformam
em selvagens se não são morais, bondosos e espirituais. Oh,
homens! Temam as potências da Alma do Mundo! Digam à sua arte
sensual, à ciência escrava do ódio e da injustiça e às atuais e
infantis formas religiosas, que o homem é muito maior do que
creem, e que ciclicamente cai de joelhos porque não se atreve a ser
um Deus e a voar aos céus.
Sani ficou confuso e atordoado. Ao levantar os olhos,
acreditou ver formidáveis anjos que o observavam das abóbadas
superiores e de complicadíssimas figuras geométricas. Acometido
por uma tal sensação de pequenez e impotência, fugiu correndo
para o deserto. Desceu a saltos os poucos e altos degraus
desenterrados, e começou a subir os inseguros declives das dunas.
Um vento terrível tirou o apoio de seus pés e, semi-inconsciente,
quase sepultado, ficou vários minutos de bruços. Ao se levantar
novamente, viu que o templo estava quase totalmente coberto por
centenas de toneladas de areia que desmoronavam sobre ele.
Por muito tempo, permaneceu pensando se tudo aquilo não
fora senão uma enganadora ilusão de seus sentidos, vítimas
propícias do deserto.
Recomeçou a marcha cabisbaixo, enquanto as dunas, à sua
volta, mudavam constantemente de forma e lugar. Um montículo, ao
desintegrar-se, mostrou-lhe várias ânforas de beleza indescritível.
Correu até elas, mas, ao tocá-las, se pulverizaram entre suas mãos.
Essa prova, ainda que efêmera, bastou para convencê-lo da
realidade de tudo o que tinha observado.
Enquanto andava, recordou algo que lhe fora ensinado há dois
anos pelo seu último instrutor. Referia-se à antiquíssima civilização
desenvolvida há centenas de milhares de anos naquelas hoje
terríveis e desoladas regiões. Recordou também a advertência de
que ninguém poderia penetrar nesses templos nem resgatar seus
objetos, pois ainda não havia chegado a época de sua revelação.
Esses tesouros eram guardados pelos Battis, raça de elementais
poderosíssimos que sobreviveriam até o momento adequado.
Ninguém que tenha tentado roubar algo dessas sentinelas
conseguiu sair vivo do deserto. Uns poucos que tentaram
sobreviveram alguns meses em estado de absoluta e desesperada
loucura.
Deitado à sombra de uma caverna, dormiu algumas horas.
Porém, estava demasiado ansioso para chegar à sua meta e,
forçando seus músculos doloridos, obrigou-os a funcionarem,
mantendo um passo rápido e seguro.
As rochas eram cada vez mais escassas e de menor tamanho;
amplas planícies de areia muito grossa e solta as substituíam. A
pouca água que levava havia se acabado há mais de doze horas, e
o sol abrasador o castigou, penetrando-lhe até aos ossos.
Após a meditação que costumava efetuar ao pôr do sol, notou,
ao retomar a caminhada, que o frio o afetava mais e que um
estranho sono o assaltava, traindo-o. Sani sabia o que significava
dormir de noite no deserto, e ele queria chegar. Onde? Não sabia,
porém, fosse onde fosse, o aguardava a Verdade, o Amor, o rosto
fecundo e maravilhoso do Mistério.
Ao amanhecer, comprovou que, desprezando o sofrimento
físico, anulava-o paulatinamente. Quase já não padecia do terrível
cansaço que, por pouco, o tinha abatido horas antes, e a sua
garganta, seca e áspera como a pedra-pomes, parecia se adaptar e
se tornar mais suave. Quando o sol já estava alto, deitou-se por
baixo da saliência de uma rocha. Permaneceu mais de dez horas
afastado do mundo. Quando despertou, sua pele escura estava
quebrada e ardente pelos raios. Um formigamento terrível
percorreu-lhe os membros, ao mesmo tempo que as têmporas
latejavam.
Com muita dificuldade, conseguiu se erguer sobre suas
vacilantes pernas, mas só pôde chegar até uma fenda em um
conjunto rochoso das imediações. Ali, graças à sua Iniciação nos
Mistérios da Natureza, foi retomando o controle de todas as partes
do corpo e harmonizando sua corrente energética.
Praticando exercícios respiratórios durante algum tempo,
sentiu-se ágil, forte e otimista, desejoso de obter o maior proveito da
jornada.
Ao realizar os sacrifícios do pôr do sol, percebeu que o
incenso havia acabado, e como se este detalhe fosse a última gota
que transborda o copo, sentiu que uma angústia terrível se
apoderava dele e se reconheceu só, só em toda a extensão da
palavra. Esqueceu mestres, anjos guardiões e destrezas psíquicas e
mentais. Unicamente sabia que estava só. Nem sequer sentia
medo. Mesmo o medo é uma companhia, pois é uma forma de
esperança, de algo que se aproxima. A dor também o teria aliviado,
pois a dor não deixa pensar. Porém, Sani não sofria. Seu corpo,
reconstituído praticamente pelo poder de sua vontade, permanecia
silencioso e não temia, pois não esperava nada.
A paisagem, sombria e estática, para ele se assemelhava à
imagem de uma recordação, definitivamente imóvel, sem
possibilidades de mudança.
Reconheceu a existência da Divindade e a infinidade de seres
que constituem o Universo, mas os sentia distantes. As areias
diminutas que pisava lhe pareciam tão inacessíveis como aquelas
outras cósmicas que tocava com seu olhar. Ele estava no meio,
suspenso. Só, só, só!
Olhou uma vez mais o delimitado horizonte e, com um grito
agonizante, caiu de bruços na areia. Entorpecido pela angústia,
permaneceu longo tempo deitado, como morto.
De súbito, sentiu frio. As pedras iam ficando geladas e um
vento gélido dava uivos de lobo no alto das raras formações
rochosas. Era seu grito de guerra. Sani notou o impacto e se
agasalhou em suas vestes sujas, gastas. Pôs-se a andar,
inconsciente do que fazia, mas logo se deteve. Um grande sorriso
surgiu de sua boca e agradeceu com um profundo olhar a todas as
estrelas. O feitiço maligno se dissipava. Agora tinha algo em comum
com muitos outros seres: tinha frio, tinha angústia.
Em um primeiro momento, esse fato o alegrou e,
mentalmente, procurou comunicar sua resistência a todos, homens
e animais que estivessem nas mesmas condições que ele. A dor o
irmanara a outros homens sofridos. Mas, pouco a pouco, as dores
de seu corpo cederam, e as forças superiores de sua alma o fizeram
experimentar uma profunda vergonha face às suas debilidades e
egoísmos.
Para o comum dos homens é normal que o fogo da lareira
pareça mais quente quando se sabe que fora de casa reina o frio e
que muito poucos estarão tão cômodos. Do mesmo modo, a dor "dói
menos" quando se sabe que há mais alguém a partilhá-la. Não há
nada melhor para um caolho do que ver passar um cego. Mas tais
sensações não devem enganar o filósofo. Ao contrário, sofrerá se
houver alguém com frio enquanto ele está bem aquecido; ou se um
ser qualquer sofre, não importando se ele também sofre ou não.
Sani sabia tudo isto, e tê-lo esquecido o enchia de íntima
humilhação. Havia estudado, viajado e feito tantos esforços para, ao
fim se tornar um homem tão fraco e mesquinho como qualquer outro
que se enamora de seu abrigo, de sua comida quente, de sua paz
fisiológica? Será que o exemplo sobre-humano de tantos sábios e
as secretas lições do Guru não haviam servido de nada? Enganara
seus mestres?
— Triste seria o mundo e inútil o sacrifício da Divindade ao se
manifestar por meio de seres tais como Buda, Lao Tsé ou Jesus, se
todos os seus habitantes fossem tão miseráveis como eu! —
exclamou em alta voz, pondo-se a caminhar quase correndo.
Insensível ao cansaço e ao frio, mas não ao remorso, foi
mergulhando na distância, ansioso para se lavar no choque com as
ondas do vento...
CAPÍTULO VI - GIORDANO BRUNO

O inverno caíra sobre o deserto de Gobi. As grandes pedras


se assemelhavam a cabeças grisalhas de gigantes imersos na
meditação, enterrados pelo acúmulo de centenas de séculos.
Sani, após longa caminhada, conseguiu chegar, pele e ossos,
a um antiquíssimo mosteiro budista que, ainda antes do advento de
Siddharta Gautama, já servira o "Budismo Primeiro", a Religião dos
Iluminados. Seus misteriosos moradores, quase sem se deixarem
ver, colocaram à sua disposição uma cela no mais novo dos
pavilhões.
A construção, edificada junto a uma grande nascente, rodeada
de terras férteis, estava envolvida por uma grande muralha que a
protegia e, ao mesmo tempo, escondia seus jardins dos olhares
profanos. Eram de uma beleza extraordinária, pois os monges
possuíam, desde a Pré-História, os mais íntimos segredos no que
se refere à vida vegetal.
Impossível seria comentar as maravilhas que os adeptos
realizavam nesses templos, e a inconcebível aura de paz e saúde
mental que irradiavam para o mundo.
Aqueles que não tinham o devido conhecimento para viver
com eles os ignoravam, e aqueles que o fizeram deviam guardar o
mais estrito silêncio, sob pena de esquecerem o que sabiam e dar
informações falsas.
Por isso, Sani era somente um refugiado que esperava algo,
sem saber ao certo que ciência era e se estava ali. Convivia com
esses sábios, mas continuava só, pois eles tinham seus trabalhos.
Forneceram a ele um antigo tratado sobre a evolução dos
planetas, em língua sânscrita, e o discípulo passava longas e
maravilhosas horas a estudá-lo. O grande e o pequeno
desapareciam perante o sol da realidade. Sobre as milenares
páginas, confeccionadas com fibras minerais, percebeu o íntimo
parentesco entre mundos e átomos e seus deuses comuns. Quão
distante estava o vulgo dessas ciências, e em especial o povo que o
viu nascer! Quanto, ó, quanto — pensava Sani — tardariam os
homens em conhecer os Mistérios básicos da Natureza! Não
obstante, lentamente, e acreditando a cada passo que já tinha
descoberto tudo, a Humanidade avançaria por meio da escola da
dor até o lugar celeste que lhe corresponderia quando soasse sua
hora. Sem guerras, perseguições e brutalidades de toda índole, já
teria avançado mais no caminho, e teria caminhado em paz...
Estas e muitas outras ideias ocupavam a mente do jovem.
Sua vida, nesse coração vivo do deserto, era pacífica e sedentária,
harmoniosa. Comia e dormia com moderação, sem cair nos
extremos dos "homens-crianças" que brincam com a Filosofia. No
meio daquela Natureza imponente, era mais uma parte...
Um dos adeptos, que havia se apresentado a ele em uma
visão cinco anos atrás, dedicou-lhe muitas tardes e contou-lhe
grande parte da história da raça dos homens. Soube que, embora
só guardassem anais de uns poucos milhares de anos, a Grande
Loja Branca conservava memórias das primeiras raças de gigantes,
instruídos diretamente pelos deuses. Conheceu o processo por meio
do qual toda a criação foi se "refinando": as formas se tornaram
mais perfeitas e o tamanho dos corpos foi se reduzindo. Isso
aconteceu tanto com os vegetais, como com os animais e os
homens. Dois continentes afundaram com suas respectivas
civilizações, e o mesmo sucederia um dia com a atual. Só as terras
virgens sobreviveram, pois não tinham ainda causas acumuladas
sobre suas costas.
Segundo lhe referiu o Adepto, o homem foi adquirindo corpo
físico paulatinamente. A princípio, era andrógino. Mais tarde, os
sexos se separaram, e isso ocorreu há uns dezoito milhões de anos.
Desde então, duas grandes raças ou conjuntos de civilizações
desapareceram: a "lemur", pelo fogo, e a "atlante", pela água. A
raça atual vai também desaparecer pelo fogo.
Sani sabia tudo isto, pois seus estudos sobre O Banquete, de
Platão, a Cabala, a Bíblia e os livros sagrados hindus lhe deram
dados abundantes sobre o tema. Mas que pálidos pareciam esses
esboços ao lado do ensinamento detalhado daquele Adepto!
Ouvindo-o, via correr diante de sua imaginação centenas de
impérios tão grandes como o romano e o muçulmano! O homem era
tão velho e tinha tantas possibilidades de progresso!
O jovem filósofo estava entusiasmado e só vivia à espera das
visitas do homem enigmático, sem idade, de traços distintos e voz
tão suave como a esperança. Seria esse o Mestre tão esperado?
Ele daria as últimas instruções para a Iniciação que estava ao seu
alcance? Ele se aproximaria assim da libertação? Via todo seu
futuro em névoa, sob o signo misterioso da incógnita.
Ao quinto mês de permanência no refúgio do deserto, a
primavera chegou. Nessa época, realizavam-se grandes festejos
entre os Iniciados, e as colunas de discípulos menores percorriam
os jardins espalhando perfumes e cantando composições sagradas.
Sani recordou Platão e Píndaro em suas narrações dos
Mistérios, quando os Mistae entoavam canções mágicas ao amor e
à beleza.
Estava em tal êxtase quando seu amigo, o Adepto, se
aproximou e perguntou:
— Irmão, desejas assistir à cerimônia religiosa que se efetuará
no templo exterior? Quando o corpo de Nosso Senhor parecer tocar
o horizonte, começará o ofício.
Sem acrescentar palavra nem esperar resposta, se afastou
sorrindo bondosamente. Seus olhos negros, ligeiramente oblíquos,
pareciam esta tarde maiores e extremamente luminosos. A túnica
cor de ouro tinha a incomparável dignidade do simples.
O discípulo sentiu que seu coração se inflamava com a
notícia. Somente nesse dia excepcional, aquela Escola Esotérica
tão estrita podia permitir que um pequeno Iniciado, não pertencente
à mesma, contemplasse o menor Mistério.
Um pouco antes do tempo fixado, Sani se encaminhou para o
grande Templo. Porém, ao passar perto de um pequeno bosque,
encontrou o Adepto, que parecia aguardá-lo. Olhou-o fixamente e,
lendo seus pensamentos, disse-lhe:
— Tu sabes que a Religião dos Mistérios, alma e origem das
religiões populares, é a mesma em todo o mundo, não importando
onde é professada. Portanto, não estranhes meu convite, pois és
nosso irmão, como todos o são na Natureza, e também és nosso
irmão nas ciências ocultas. Lembra-te: não verás mais do que deves
ver. Ainda que te mostrassem, não o verias. Assim, não temas ver.
— Então, ó sábio, por que tanta reserva, por que o oculto?
— Porque o que não se compreende, geralmente, interpreta-
se mal, distorcidamente, e aquilo que se vê sem pureza interior,
deixa em seu lugar um vazio terrível para a alma. De que serviria a
um profano contemplar os Mistérios? Só geraria confusão, caminho
seguro para a loucura e o descrédito. Mais vale lhe mostrar coisas
ao seu alcance, pois não sentirá o “vazio" nem abraçará o erro, mas
aproveitará ao máximo suas potencialidades espirituais. Daí a
utilidade das religiões exotéricas. O gigante não pode calçar a
sandália do anão, nem a este serve a daquele.
— É verdade. Por isso os Mestres tais como Buda e Jesus
tiveram um círculo de discípulos diretos e outro círculo muito maior
de discípulos externos aos quais só falavam por meio de parábolas
simples e de fácil compreensão, isentas de todo aspecto científico e
filosófico.
— Certo, mas é hora de irmos ao Templo. Suas portas serão
fechadas novamente daqui a poucos instantes.
Mal transpuseram o grande umbral, as portas de pedra
começaram a se mover lenta e inexoravelmente.
Foi difícil para Sani habituar a vista à penumbra. Estava em
uma espécie de antecâmara com paredes cobertas de signos e
algumas poucas figuras de divindades. O ambiente saturado de
incenso lhe produziu a princípio uma certa sonolência, mas se
acostumou e pôde permanecer atento. Após algum tempo, o Adepto
fez um sinal silencioso e uma pequena porta dissimulada na parede
deu acesso ao interior. Então, advertiu Sani que dez ou doze
monges surgiam dos cantos escuros e ocos da estância, na qual,
graças à escassíssima luz da lamparina que pendia do alto, haviam
passado por estátuas de ascetas meditando.
A Grande Câmara do Templo externo tinha a forma de um
cubo de quinze metros de lado, e ali também a luz era muito
escassa.
O ofício teve a simples grandeza da Divindade. Uma grande
estátua de Buda foi testemunha muda dos sacrifícios dos irmãos
recentemente iniciados, os quais, na comunidade, faziam os
trabalhos mais rudes e materiais. Nunca, até então, notara a
imutável impessoalidade da imagem de Buda. Esta característica
atraía poderosamente o ocidental, pois em tais estátuas não se
representava Siddharta Gautama, chamado “Buda”, mas todos os
“Budas” — Iluminados — em geral. Por isso é que, milhares de anos
antes do nascimento do Mestre da Serenidade, já existia religião e
templos budistas, movimento espiritual que foi perdendo força pouco
a pouco, até chegar ao extremo de que, quando nasceu Siddharta
Gautama, não havia senão poucas centenas de fiéis escondidos nos
templos proto-históricos do deserto de Gobi e dos Himalaias.
Absorto na contemplação da cerimônia, Sani, avançado
estudante de Magia, não experimentou grande surpresa ao ver que
um bonzo se elevava no ar e acendia uma das lâmpadas laterais, a
oito metros do solo. Conhecia a arte oculta de fazer com que a
potência atrativa da Terra repelisse um corpo e o afastasse à
vontade dela. Mas o que viu em seguida o encheu de admirável
assombro.
Um após outro, todos os discípulos, alguns deles
adolescentes, se elevaram à mesma altura e acenderam as
lâmpadas. Ele mesmo sabia levitar, mas isso lhe exigia grande
esforço e não conseguia se elevar muito, e ainda assim nem sempre
conseguia quando tentava. Na maioria das vezes, só podia se
separar do solo alguns centímetros. Os participantes na cerimônia
levitavam com aparente facilidade e ninguém sofria o menor atraso
ou inconveniente. Quando chegou sua vez, voltou-se angustiado
para o Adepto, esperando que ele o dispensasse do voo, porém
este sorriu, lhe entregando a tocha e assinalando a próxima
lâmpada. Sani quis falar, mas um gesto do Adepto o fez mudar de
ideia e tentar a experiência.
Em um minuto, conseguiu se desprender do solo e realizou o
mesmo, tão perfeitamente como todos os outros.
Sani passou essa noite acordado, meditando com a alma
plena de otimismo e mantendo sua consciência em contato com os
mundos da intuição pura.
Pouco antes do amanhecer, depois de alguns minutos de
descanso, se lhe apresentou a visão que sempre lhe anunciava os
grandes acontecimentos: a imagem de Hipátia. Desta vez, ainda
mais do que era costume, seu rosto apareceu enevoado. Poderia se
dizer que não tinha rosto. Uma grande aura branca a rodeava, mas
suas formas eram muito indefinidas.
Sani a interrogou mentalmente. Como resposta, a imagem
elevou o braço em sinal de despedida. Ele não pôde compreender o
significado dessa aparição, mas intuiu que era a última.
Algo muito indefinido se albergava em sua alma, alegria e ao
mesmo tempo tristeza. Era uma sensação parecida àquela de
quando se abandona a casa, cidade ou país que nos viu nascer, em
busca de outros horizontes que se apresentam melhores e mais
propícios. Angústia mundana, mas que aos seres escravos do
material, da cadeia da reintegração periódica, lhes parece real e
terrível. Seria essa estranha sensação a premonição de seu
definitivo passo adiante, de sua libertação do mundo das paixões,
de seu reencontro com o Eu?
Os dias seguintes pareceram ao aspirante um sonho. Vivia na
incerteza, aguardando esse "algo". Seu sábio amigo, o Adepto,
deixara de visitá-lo, entretido quem sabe em que misteriosos
trabalhos. O livro de folhas de asbesto que tanto o absorvera jazia
esquecido em uma estante de sua cela. Sani não só aguardava com
todas as células de seu corpo, mas também sua emoção, mente e
alma participavam do doloroso prazer da espera.
Os arbustos, agora cobertos de flores vermelhas, guardavam
silêncio diante de sua pergunta. As águas do lago continuavam
absortas em seu murmúrio. Os muros do Templo estavam
demasiado sobrecarregados de imagens passadas, e em seus anais
não se achava uma nesga de futuro. Às vezes, elevava a vista em
direção às poucas nuvens brancas e se fundia nelas na tentativa de
observar dessas alturas uma maior extensão do deserto. Será que
chegaria o misterioso personagem que devia completar sua
iniciação?
Somente as estrelas, com seu brilho imutável, lhe diziam:
“Espera. Tenhas perseverança. A paciência é um ensaio de
Eternidade”. Sani permanecia longas horas fitando-as, em êxtase de
arrebatadora paz. Mas depois recomeçava a angústia. Para ele, a
vida toda estava resumida a uma palavra: “espera”!
A inexorável passagem dos dias e o deslizar das noites foram
moderando suas ânsias e enchendo seu coração de ativa
serenidade. Voltou aos estudos cosmogônicos e astronômicos, aos
sacrifícios e meditações regulares, ao tratak[5].
Os dedos invisíveis da primavera espevitaram e abriram cada
casulo, cobrindo de folhagem todas as árvores e dando ninhos aos
pássaros.
Uma tarde em que o sol começava a declinar sobre o
horizonte, uma sombra se projetou no lago onde Sani tinha fixado o
olhar. Ao se voltar, viu diante de si o Adepto. Sua alma, mergulhada
em um ciclo de grande serenidade, não se admirou diante de visita
tão incomum. O sábio, depois de se inclinar levemente à maneira de
saudação, anunciou:
— Irmão, esperam-te no extremo norte do pequeno bosque.
Sani recebeu a notícia com indiferença, talvez porque não
compreendeu seu tremendo significado. Porém, ao esbarrar com o
olhar do Adepto, seus olhos abriram-se espantados e um pouco
temerosos. Aquele rosto de estátua vivente, mesmo dentro de sua
impassividade, expressava uma alegria pouco comum e mesmo
uma certa ironia ao perceber a surpresa do jovem ocidental.
Um gesto silencioso do Adepto o fez caminhar imediatamente
até o lugar indicado.
O verão que se aproximava punha fogo nos raios do sol e
sombras úmidas sob as copas das velhas árvores. O extremo norte
era o mais afastado dos edifícios, e os ramos dos altos vegetais
surgiam por cima do muro de circunvalação.
A trilha o levou em direção a uma clareira junto à muralha.
Sob um grande pinheiro, um homem alto, vestido com uma espécie
de túnica e capuz marrom, estava virado de costas. Os pés de Sani,
talvez um pouco indecisos, arrastavam-se levemente sobre as
grandes pedras do caminho, e o desconhecido se voltou
lentamente. Então, sofreu um impacto psíquico tão violento que por
pouco seus joelhos não se dobraram. Era esse o homem que havia
conhecido na primeira visão que Hipátia lhe mostrara! E essa era a
paisagem! Por fim, o encontrara!
Sua alma, subjugada, somente atinou em inclinar o corpo em
uma profunda reverência.
— A suprema felicidade esteja contigo! Eu te esperava...!
Aquele que assim falava possuía uma aparência inesquecível.
Alto, de tez bronzeada pela intempérie e enormes olhos negros,
parecia a encarnação de um deus da vontade e da força moral. A
estatura forte, nariz levemente aquilino e a boca grande, lábios finos
que se abriam sobre um queixo firme, quadrado, reafirmavam a
primeira impressão.
Uma grande bondade e harmonia emanavam de seu porte, e
um quase imperceptível sorriso suavizava tão imponente potência
volitiva. Sua humilde vestimenta estava adornada por um cinto
grosso, uma bolsa de couro e um medalhão triangular de ouro e
esmeraldas que pendia de seu pescoço. Sandálias grandes e
gastas protegiam seus pés cobertos de cicatrizes.
Após alguns instantes de silêncio, Sani conseguiu articular
algumas palavras e perguntou:
— És aquele que espero, não é verdade?
— Sim e não... Tu esperas a libertação, o reencontro com
Deus. Esse é o retorno a ti mesmo, ao Deus que mora em ti,
embora não tenhas consciência disso. Assim, sou aquele que tu
esperas, pois a Divindade está também em mim. E não sou aquele
que esperas, pois o único Mestre real que tens te espera em teu
próprio espírito.
— Sim, porém sinto que me ensinarás o caminho. Qual é teu
nome, ó sábio?
— Chamam-me por muitos nomes, mas o Ocidente me
conhece sob o nome de Giordano Bruno.
— Ocidente! — repetiu Sani como em um sonho. — Quanto
tempo faz que meu corpo não habita nesses países! Hoje sua
lembrança me chega velada e manchada de sangue. Aqui, na paz
sacrossanta deste mosteiro, parece mentira que em alguma parte
da Terra possam existir as crueldades que recordo...
— Parece que sofreste muito lá...
— Muito! Meus entes mais queridos foram assassinados ou
torturados até enlouquecerem. Queimei o incenso de toda minha
juventude no altar da pureza e do conhecimento. E em troca me
prejudicaram e perseguiram com tal crueldade que seria excessiva
se aplicada ao mais venenoso dos insetos.
— Ah!... Mas já não podes queixar-te deles, pois não te ferem
mais. Nem eles se queixarão de ti uma vez que lhes cedeste o
campo...
Um sorriso triste surgiu nos lábios de Giordano Bruno, e seus
olhos perfuraram os de seu interlocutor. Este se surpreendeu
enormemente diante destas palavras, e uma sensação muito
dolorosa, mistura de horror e humilhação, subiu lentamente à
superfície da sua alma. Tentou um protesto, mas sua vista caiu
vencida e se refugiou entre a relva que crescia a seus pés. Um mar
de ideias contrárias e confusas o impediu de fazer uso da palavra.
Giordano, depois de tocar afetuosamente seu braço, disse-lhe
quase ao ouvido:
— Pensa muito nisso. Não poderás mudar o passado, mas o
futuro é ainda criança e passível de transformações. Verei-te dentro
de três dias.
Quando o discípulo voltou sua atenção para aquilo que o
rodeava, o sábio já havia ido embora. Sobre sua cabeça se
insinuavam as primeiras estrelas. O sino de madeira e metais
alquímicos espantava os maus espíritos da torre do grande Templo.
Sani regressou à sua cela, e nesses três dias não viu a luz do
sol nem provou qualquer alimento. Em tão breve lapso de tempo
compreendeu algo que não pôde interpretar em longos e numerosos
anos.
Todo discípulo crê, durante seus primeiros passos, que os
perigos se chamam luxúria, gula, preguiça, violência ou
dogmatismo; que, tão logo se afaste desses vícios, será um
iluminado, terá grandes poderes para ajudar a Humanidade e
escapará dos renascimentos forçosos. Também ele assim acreditou.
Agora, olhava o rosto espantoso de seu erro. Sabia que, mesmo
quando se superam essas formas grosseiras da ignorância, ficam
outras mais sutis e, portanto, mais perigosas.
Inimigos invisíveis, dissimulados, se escondem no seio de
cada ação e de cada inação. Difícil é o "caminho estreito"! A
capacidade de discernir é o fundamental em um aspirante aos
Mistérios. O mal, ou seja, o "bem menor", se torna inteligente à
medida que perde brutalidade. O que é bom para um estudante
pode não sê-lo para outro. Chegado a tal ponto da trilha, cada um
deve se consultar consigo mesmo e depender cada vez menos das
ajudas externas, chamem-se estas Mestres, Anjos ou Deuses.
A harmonia não provém do jogo dos iguais, mas dos opostos.
De tal forma que ninguém sabe melhor o que dói em um aspirante
do que ele próprio. É nele que está o mal, e é também nele que está
o remédio. Quanto lera e ouvira sobre o tema! Não obstante, só
agora começava a vivê-lo.
Em um livro hindu muito antigo, encontrara uma certa frase
enigmática que, depois de seu diálogo com Giordano, parecia
transparente e luminosa: “Muitos podem entrar no Nirvana, mas
ninguém o desfrutará até que o último dos prometidos tenha entrado
nele”.
Que significado profundo e magnífico adquiria aos seus olhos
o ensinamento de Jesus Cristo sobre a caridade! Já não era uma
frase destinada a cumprir um fim mais emotivo do que prático, mas
uma realidade evidente e necessária.
Como resplandecia também a "não violência" e o "respeito por
todas as vidas", que Buda aconselhava! Assim como uma pequena
chave pode abrir grandes portas, as palavras do Filósofo de Olhos
de Fogo eram chaves que tinham levantado as sombrias cortinas de
sua ignorância.
Em honra à Verdade, o discípulo Pablo Simón tinha se
transformado em “Sani” apenas para se desenvolver espiritualmente
e regressar para junto de seus Irmãos mais oprimidos da Europa a
fim de iluminá-los e ajudá-los a ultrapassar com sucesso o vale de
lágrimas em que haviam caído. Porém, seduzido pelo feitiço da
autossuperação, esquecera-se da finalidade primordial dessa
viagem que, não fosse a presença do sábio Giordano Bruno, teria
resultado sem retorno.
Sim, ele devia voltar ao Ocidente! Que importava sua
libertação se a outros milhões de Irmãos estava vedado pensar, crer
e amar?
Como muitos filósofos emigraram à procura da serenidade
pessoal, o Ocidente decaíra desde o século de Péricles até ao das
fogueiras. Onde estava a medicina moral e psicossomática de
Hipócrates? E a Ciência de Pitágoras e de Euclides? Em que lugar
floresciam inteligências como as de Sócrates, Platão ou Aristóteles?
Estavam perdidos os conceitos das Leis Cíclicas, da esfericidade da
Terra, das altas matemáticas e da medida áurea em arquitetura e,
igualmente, estavam suplantados os antigos templos, onde a
Divindade descia suavemente aos corações de homens e mulheres
livres e puros... Tal era o quadro que se apresentava diante do novo
Pablo Simón, porém ele já escolhera: voltaria ao Ocidente, com
Giordano ou por si só, e antes de uma semana deveria partir.
Ao amanhecer do quarto dia, apenas finalizados os sacrifícios
ao espírito do Sol, se apresentaram em seu quarto o Adepto e
Giordano Bruno. Ambos, de figuras tão distintas, sorriam de maneira
idêntica.
— Sei que nos deixarás, e eu te felicito. Meu irmão te guiará
eficazmente naquilo que ainda necessita. Que os Deuses te sejam
propícios...
Sem outras palavras, o Adepto oriental inclinou-se levemente
e abandonou o quarto.
— Vejo que podes ler facilmente meus pensamentos. Isso
demonstra que, apesar da minha pequenez, tenho afinidade com os
senhores, ó sábios!
— Assim é. Se não vires nenhum inconveniente, partiremos
amanhã ao amanhecer.
— Tardaremos muito em chegar à Europa?
— Um ano, talvez menos.
Essas vinte e quatro horas pareceram ao aspirante curtas e ao
mesmo tempo longas. Sentia impaciência em partir, mas, ao mesmo
tempo, não podia evitar certa tristeza por abandonar tão
maravilhoso lugar de paz e sabedoria. O Oriente lhe dera tanto! E o
seu Guru? Talvez já soubesse de sua partida. Aquele sábio e
humilde ancião havia colaborado muito em seu aperfeiçoamento
espiritual e o impulsionara a retomar a trilha do serviço, da reta
ação.
O sol se elevava poucos graus acima do horizonte quando,
acompanhado pela presença silenciosa de Giordano, deixou para
trás a porta da muralha.
O vento do deserto foi apagando rapidamente os passos na
areia pedregosa, assim como os vendavais do tempo apagam o
efêmero passo dos mundos, identificando-os no seio da imutável
realidade.
CAPÍTULO VII - O TEMPLO DE ÍSIS

Assim como os distintos seres da Natureza se adaptam


progressivamente a um novo meio de vida à medida que penetram
nele e se veem forçados a reagir, os dois filósofos peregrinos
submergiam na convulsionada zona de influência europeia.
Giordano, com a força incontestável de quem se conhece; Pablo
Simón, levado pela mão pela ronda de seus projetos, de suas
ânsias de libertação e de serviço.
Passaram-se sete meses desde que as cúpulas da Cidade
Sagrada em Gobi se achataram atrás dele, sob o peso crescente da
distância... Pablo Simón recordava a longa viagem, enquanto a
barca que ocupavam era empurrada pela corrente do Nilo, próximo
a desaguar no mar. O motivo da visita ao Egito era uma incógnita
para o discípulo. Tinham embarcado sigilosamente cem quilômetros
mais acima, e a única coisa que sabia era que em certo lugar do
delta um antigo colaborador de Giordano os esperava.
A barca, velho conjunto de grossos troncos, flutuava
pesadamente, quase à deriva. Meia dúzia de indígenas a guiavam
com suas longas varas que, ao mesmo tempo, afastavam os
maciços de camalotes. As águas, sempre crescentes, haviam se
tornado vermelhas nos últimos dias, sendo portadoras daquele limo
característico do Nilo, que transforma países desérticos em uma das
zonas mais férteis do mundo.
Paulatinamente, as espumosas ondas que se sucediam de
quando em quando alargavam o leito e cobriam as ruínas que
assinalavam a passagem de raças de homens já esquecidos, de
nações que deixaram a outras o mutável cenário da História. Os
marinheiros entoavam uma estranha canção; segundo eles, haviam-
na aprendido do vento ao passar entre as gretas da Esfinge.
Pablo Simón sentia-se impaciente; intuía que aquela
entrevista, a primeira desde sua chegada ao Ocidente, com aquele
membro das fraternidades secretas, tinha uma importância enorme
e de projeções imprevisíveis. Para aquietar suas ideias, começou a
andar pelo convés. Giordano, imóvel, mergulhado em seus abismos
interiores, estava sentado na proa, inclinado sobre as águas. Um
sírio de rosto delgado e queimado pelo sol oficiava o navio e dirigia
aquele estranho coro em suas litanias. Da larga faixa que cingia sua
túnica sobressaía a capa de um livro.
O detalhe intrigou extraordinariamente Pablo Simón, pois
aquele homem dificilmente saberia ler, e menos ainda em línguas
europeias. Deve tê-lo roubado. Talvez seja algo interessante,
pensou, ao mesmo tempo que interrogava o mestre do navio na
difícil língua do país.
— Um feiticeiro de túnica negra levava consigo este livro, um
infiel que acompanhou o exército que arrasou nosso porto, matou as
crianças e levou nossas mulheres como brinquedos que depois
lançaram ao mar... O feiticeiro queimou nossos magos e astrólogos.
Depois utilizou minha barca, que então era um bonito veleiro, para
regressar à Sicília. Na viagem todos se embriagaram e mataram uns
aos outros...
— Quem matou o feiticeiro? A verdade!
— Meus homens o atiraram pela borda...
— És muçulmano, certo?
— Sim.
— E por acaso o fundador de tua religião não ensinou que
deviam amar todos os homens, mesmo que não fossem
muçulmanos?
— Sim..., mas também não é certo que o Profeta dos cristãos
lhes ensinou a mansidão e o erro de matar? Como então seus fiéis
ocupam nossas terras, bloqueiam nosso comércio e queimam
quantos lhes apraz? Por que tentam resolver tudo pelas armas?
Pablo Simón ficou olhando, silencioso, aquele homem de
relativa cultura e boa posição econômica, a quem impeliram a ser
um obscuro mestre de barca, rodeado de selvagens, a mil
quilômetros de sua pátria. O que podia lhe responder face a esse
testemunho vivente da atuação da chamada civilização europeia?
Nas suas costas, Giordano respondeu por ele:
— Ouvi o que tu disseste, bom Abdul. Ouve-me agora. Se um
ou dois de teus homens enlouquecessem e tentassem estilhaçar a
barca contra a margem ocidental, tu enlouquecerias também e
tentarias afundá-la na oriental ou, mantendo-se são, aprisionarias
esses marinheiros e manterias a embarcação no meio do leito?
— Faria o último..., mas isto...
— Escuta-me! A Humanidade também é uma barca no rio da
vida. Se os membros de uma religião se alteram e pretendem
destruí-la e matar a maioria dos passageiros, por que razão as
outras religiões vão imitá-los? Não é essa uma forma de servilismo,
de obediência? Se vos invadem, defendei-vos, porém sem ódio... As
sementes do ódio, Abdul, florescem em desastres. A ação sempre
gera reação. Não sejais violentos e cedo ou tarde cessarão de
violentá-los... Não esqueças o que te disse nem passes por alto;
talvez tua vida e a de tua raça dependam de que se cumpram ou
não estas normas.
— Tuas palavras, ó sábio, tornam-se vaticínios tão negros
como as nuvens da tormenta, mas talvez se apliquem melhor aos
cristãos.
— Eles também terão o que merecem e colherão tanta dor
como a que semearam. A lei de Deus é justa e não tem “povos
eleitos”. Mesmo o Sol é injusto ao seu lado...
O mestre do navio voltou hesitante a dirigir os cânticos, que
haviam cessado, e Giordano, apoiado na borda da proa, continuou a
observar as águas.
— Aonde vamos, Giordano? Todos fogem da grande enchente
e as ilhotas se tornam armadilhas submersas... Olha como os
crocodilos buscam suas presas entre os infelizes animais cercados
pela água!
— Em mais duas horas chegaremos...
— O delta está à vista... Onde é que nos esperam? O
interrogado, dirigindo-se a Abdul, disse-lhe:
— Poderemos chegar ao pequeno Templo de Ísis antes que a
grande onda o submerja?
— Sim, estou certo... Vamos até lá?
— Esta bolsa de ouro é tua se eu vir seus muros antes que as
estrelas brilhem.
Abdul não pôde conter um olhar ganancioso pelo dinheiro, que
triplicava o preço combinado para a viagem.
Pablo Simón observava com grande interesse os templos e as
pirâmides de ambas as margens, e as misteriosas montanhas
orientais. O sol descia rapidamente, acentuando o sangrento tom
das águas. Agora os marinheiros trabalhavam arduamente e
ofegavam enquanto conduziam a barca através dos lamacentos
canais semibloqueados de ervas aquáticas, troncos e carcaças de
gado arrastados pela inundação. Grandes bandos de íbis, outrora
um pássaro sagrado, passavam roçando o único mastro da barca.
Cada ruína que se avistava comovia Pablo Simón, que
interrogava seu mestre com o olhar, para saber se era o Templo de
Ísis.
O sol estava muito baixo quando desembocaram em um canal
largo e de águas turbulentas. Suas margens, cobertas de vegetação
exuberante, diluíam-se na corrente. Imediatamente os marinheiros
voltaram-se coléricos para o patrão, envolvendo-o em gritos e
atitudes ameaçadoras.
Abdul disse-lhes breves palavras e, depois de distribuir
algumas pancadas entre os mais excitados, obrigou-os a
prosseguirem suas tarefas.
— O que se passa? — perguntou Pablo Simón.
— Os egípcios desta região acreditam que no pequeno
Templo de Ísis habitam os fantasmas dos antigos sacerdotes e
temem suas maldições diante da nossa proximidade... Essa é a
terceira vez que Abdul me traz aqui e sempre acontece o mesmo...
— Existe uma Loja no Templo?
— Sim e não. Já saberás mais a esse respeito.
— Posso te perguntar quem nos espera?
— O cavaleiro de Venti, sábio muito destacado na ciência
sagrada.
— Pertence às Lojas de Milão?
— Sim, e ainda atua nos Estados Pontifícios e em todos os
ducados da península.
À proa uma construção cúbica surgiu no meio do canal,
assentada sobre um ilhéu submerso, sem baixos-relevos, mas
coroado por espécies de ameias que representavam botões de
lótus. A porta de acesso era constituída por uma só folha de pedra
hermeticamente fechada, e as ondas já alcançavam seu marco
inferior. O sol, quase coberto, tingia fantasticamente a paisagem, e o
pequeno templo destacava-se branquíssimo no meio de um rio de
lacre fundido.
A manobra de atracação foi difícil, pois as águas ficaram cada
vez mais rápidas e as grandes ondas se tornaram ondas de
formidável poder e perigo. Por fim, com a ajuda de um cabo, os dois
filósofos saltaram para a escada submersa que conduzia à única
porta existente. Giordano, com um aceno, despediu o barqueiro que
apertava contra o peito a volumosa bolsa de ouro. A embarcação se
afastou rapidamente, empurrada pela corrente, e até que não
desaparecesse por um dos canais laterais, o instrutor permaneceu
imóvel, insensível ao perigo das ondas, que, ao investirem sobre a
escada, os encharcava completamente.
Por fim, Giordano pareceu despertar de sua abstração e deu
umas vinte pancadas com seu cajado sobre um canto da porta,
após o que, retornou ao seu estado anterior.
Passados alguns minutos, a grande pedra girou sobre seus
gonzos e permitiu a passagem de mestre e discípulo, os quais
penetraram em uma pequena câmara iluminada com lâmpadas
azuis e decorada com murais e tapeçarias da mesma cor, utilizando
diferentes tons.
— Isto parece o céu. — comentou Pablo Simón dirigindo-se a
Giordano.
— É o verdadeiro "lar do Homem". Tu sabes.
O ruído de uma porta se abrindo interrompeu o diálogo, e um
homem de estatura média, traços delicados e idade incerta se
apresentou na sala, vestido com uma finíssima túnica de linho
branco. Trocou respeitosas saudações com Giordano e recebeu
carinhosamente Pablo Simón, que soube que ele era o Conde de
Venti, famoso em toda a Europa pela sua sabedoria e pelos
lendários trabalhos alquímicos que lhe eram atribuídos.
No pequeno Templo de Ísis, que, segundo explicou Giordano,
jamais havia servido para esse culto, haviam se reunido uma
vintena de dirigentes de diferentes movimentos dentro da Grande
Fraternidade Oculta.
Pablo Simón se integrou a distintas cerimônias, até que os
chefes de maior grau iniciático desceram à grande cripta, que
estava cavada a mais de vinte metros de profundidade por baixo do
canal. Uma escada em caracol parecia descer às entranhas da
Terra. Em uma espécie de antecâmara que estava logo acima da
principal, Giordano se afastou com seu discípulo, lhe explicando:
— Este templo foi construído pelos primitivos colonos atlantes
há mais de quarenta mil anos, em uma ilhota, no meio do mar, em
frente ao delta do grande rio. Desde então, diferentes lojas
iniciáticas o têm utilizado, devido às suas características especiais e
ao isolamento a que o confinaram os habitantes desta região,
aterrorizados por alguns fenômenos de "materialização" de corpos
sutis, normalmente invisíveis, que ocasionalmente presenciaram nas
redondezas. A construção é tão perfeita que, apesar das cheias
anuais do Nilo encobrirem-no quase até ao seu terraço superior,
ficando a porta coberta por vários metros de água, não penetram
nela mais do que algumas gotas, permanecendo as criptas
interiores secas e arejadas.
— Vós ides se reunir agora lá embaixo?
– Sim, amado Pablo Simón. Eu te trouxe até aqui, pois este é
o lugar onde, por agora, devo deixar-te. A cerimônia que
realizaremos de imediato é mais antiga que o mar e as montanhas,
pois antes de estar constituído o corpo físico deste planeta, já se
realizava em outros cantos do Universo. Nós, os sacerdotes, que
estamos de túnicas brancas abrilhantadas de forma alquímica pelo
sumo de certo fruto, colocaremos nossos corpos imitando
determinadas estrelas no céu. O ambiente é azul e os perfumes são
cuidadosamente eleitos pelos deuses da Natureza. Depois "nos
desdobraremos" e efetuaremos a cerimônia real nos planos sutis,
utilizando nossos corpos energéticos.
— Assim as almas das estrelas se reúnem em inconcebíveis
mistérios, para além de suas resplandecentes vestimentas físicas,
não é verdade?
— "Assim é acima como é abaixo"... Nunca te esqueças desta
chave de ouro. Recorda que as mais poderosas são as mais
simples. Estas abrem todas as portas da Natureza... Agora, volta
para cima, faz o que quiseres e regressa aqui dentro de setenta e
duas horas, à meia-noite.
Pablo Simón se inclinou profundamente diante de seu mestre,
saudou os outros sacerdotes e empreendeu rapidamente o
regresso.
Ao sair para o terraço, os emissários intangíveis do horizonte
encheram as pregas de sua túnica. A água, somente a dois metros
de seus pés, investia ruidosamente sobre as carcomidas paredes de
alvo mármore. A luta entre a força estática da pedra e a da água
enchia o templo de rumores vagos, como os que se ouvem ao
apertar fortemente os maxilares. De quando em quando, algum
tronco batia contra os muros com força de acicate.
Pablo Simón desfrutava de sua solidão e da Natureza em
ebulição, que não permitia chegar aos seus ouvidos nenhum outro
som que não fossem suas vozes. Aquela atalaia, de onde observava
a inundação, assemelhava-se ao seu castelo espiritual, firme e
sereno entre o tráfego das multidões enlouquecidas pela ilusão, filha
da ignorância e da dor. Algumas nuvens pequenas velavam as
estrelas...
— Assim as mentirosas ilusões do mundo velam o Ideal! —
exclamou em voz alta.
As ondas, à falta de argumentos, refutaram sua frase com
uivos poderosos. Apoiado nas ameias da muralha, para além dos
lótus, sua fronte se iluminou com o reflexo de uma lembrança:
— Hipátia... — murmuraram seus lábios. Mas ele os fechou
em uma máscara de serena indiferença.
Uma corrente, como a que estava diante de seus olhos, não
passava de uma pálida imagem, começou a assaltar seu místico
refúgio espiritual. Abandonou a varanda quase violentamente para ir
em direção ao canto que dava para nordeste. Ali a água parecia
fugir acossada pelo seu olhar. Manadas inteiras de carneiros de
espuma caminhavam espicaçadas pelos pastores da necessidade...
— Nos povos da Ásia Menor se diz que o vento traz
recordações... — A voz dulcíssima e diluída o petrificou sobre os
lótus talhados do muro. Sem se atrever a virar a cabeça, perguntou:
— És tu?
— Pensa assim, se isso te deixa feliz... Às vezes, é sábio
permanecer na ignorância...
Pablo Simón se voltou lentamente. No meio do terraço, estava
de pé a imagem tão conhecida. Seu rosto estava tão velado que
parecia um oval de luz, um traço misterioso de lua.
— Algumas vezes, me sentia adormecido... Cheguei a duvidar
destas comunicações... Mas hoje estou bem desperto e tu falas
comigo!
— Ó, não dês importância a isso! De muitas maneiras eu falo
contigo... Eu ainda estou atada, mas um dia te mostrarei como falam
entre si as árvores, as estrelas e os homens que perderam seus
rostos...
— Hipátia, doce irmã! Às vezes, me sinto fraco interiormente,
não pela tua ausência, mas porque não descem até mim os Divinos
Instrutores que, com um só sinal, levantam o caído, saram as
feridas e rasgam os véus da carne...
— Irmão, se tu dás uma esmola, tu dás ao rico ou ao pobre
que nada tem? Evidentemente, ajudarás o mais humilde... Alegra-te,
pois! Estás já tão próximo dos Mestres, que eles têm confiança em ti
e te deixam em relativa liberdade... tal qual as crianças crescidas.
— Tuas palavras são bálsamos de paz! Mas minha mente é
amiga de tecer sofismas, e ela me faz pensar que, então, os mais
incultos e afastados da harmonia divina são os adultos, os que
estão mais sós...
A sombra teve um movimento de desassossego e depois
respondeu com uma voz um pouco triste:
— Não permitas que teu corpo te engane. Tu não és teu
corpo. Aquele que vive afastado da grande Lei de amorosa
sabedoria não está só, mas mal acompanhado, rodeado de
múltiplas paixões, temores, ódios e outros engenhos espantosos.
Porém, o homem que se liberta começa a estar relativamente só,
tem menos companhia passional, se resume em seu Eu para
encontrar o Eu de todos e daí o Não-Eu. Cada passo no caminho é
uma ilusão a menos que nos acompanha, uma mentira a menos...
A visão pareceu se dissipar e sua voz se confundiu com a do
vento.
— Não vás! Hipátia... por que aconteceu esta coisa tão
horrível...? Juntos teríamos dado à Humanidade...
— Cala-te! Para que evocar o que não pode ser? Como sabes
que de outro modo teríamos sido mais úteis? Pretendes ser mais
sábio que o destino?
— Não... Mas... por que um destino tão cruel? Sei que tem de
haver uma causa, uma dívida que provoca tudo isto. Mas qual é?
Como pudemos ter sido tão malvados, tão ignorantes?
— De onde sai toda esta formidável corrente de água? Não
parece impossível que surja da terra ou do céu, assim,
espontaneamente, desmoronando as costas, destruindo ilhotas e
reconstruindo-as a quilômetros de distância, matando, quebrando e,
no entanto, levando a fertilidade, promovendo a civilização? Os
tênues vapores engendraram as gotas diminutas, e a união
oportuna delas fez todo o resto... Nos Mistérios, nos ensinaram
quão difícil é romper várias fibras juntas...
— Mas nós somos fibras separadas, Hipátia.
— Não blasfemes! Que estes muros não guardem o eco
destas torpes palavras! Se estamos unidos pelo Amor, nenhuma
Inquisição pode nos separar. Tu só deves amar o Todo por meio de
Hipátia. Um dia, seremos uma só alma, e já não nos veremos
separados. Se sabes isso, se o aprendeste nas criptas da Loja,
como é que podes negá-lo e cais no erro favorito do vulgo, e pensas
que as pequenas coisas da vida física são de importância definitiva?
O amor entre os seres transcende estes abrigos de carne e a
duração dos mesmos. Quando a afinidade espiritual estabelece um
vínculo nobre, puro, nenhuma circunstância formal o afeta, e aquele
que sabe disso não sofre. Amado irmão, quero que minhas visitas,
se puder repeti-las, não te causem amargura, mas sim felicidade
espiritual, que robusteçam tua força e vivifiquem tua inteligência.
Está próximo o amanhecer... devo me retirar....
— Vais porque amanhece? Tu não és uma larva sombria para
fugir dos pequenos Senhores da Aurora...
— Este veículo que tu vês e que emite sons como a voz
humana é uma "sombra" e não resistiria à luz solar... Mas não te
enganes, estou sempre a teu lado, e nosso vínculo místico te
contempla desde a dança cósmica das estrelas até as luminosas
declarações amorosas dos pirilampos... Um mistério em cima, um
mistério embaixo...
— Aonde irei agora? Onde estás?
— Teu sábio instrutor te aconselhará sobre o caminho a tomar.
Quanto a mim, caminharei contigo, e à noite, quando estiveres
mergulhado no sono, virás até mim e trabalharemos como até
agora, juntos...
A aparição perdeu rapidamente consistência e sua voz se
apagou com um suspiro, semelhante a uma queixa.
— Hipátia! — Pablo Simón havia estendido os braços
inutilmente. Só uma rajada de vento se refugiou entre eles, mas seu
coração batia feliz e esperançoso.
Depois de oficiar diante do sol nascente, se entregou a um
longo e esperado repouso.
À hora fixada, o discípulo desceu a tenebrosa escada em
caracol e foi esperar seu mestre junto à porta-alçapão que se
comunicava com a grande cripta.
Poucos minutos mais tarde, um abraço o unia ao peito
generoso e valente do filósofo. Subiram juntos a escada e se
detiveram em uma das pequenas salas superiores. Estava decorada
com mármores dourados e tapeçarias alaranjadas. Do teto pendia
uma grande esfera de um material parecido com vidro, que irradiava
uma luz amarela e cálida, muito similar à solar.
Apesar de Pablo Simón ter visto, em várias ocasiões,
lâmpadas alquímicas, algumas alimentadas com ouro líquido, cujas
chamas duram séculos sem necessitarem de mais carga que a
pequena original, não havia conhecido nada parecido ao que agora
o iluminava.
— Mestre, as lâmpadas anteriores que observei baseavam
suas maravilhosas qualidades na reintegração de seus elementos,
alimentados mediante a emanação de uma luz absolutamente fria.
Mas esta é cálida, tal como a do sol... Como se compensa
semelhante perda de energia? É preciso carregá-la a cada algumas
horas?
— Existem simpatias entre alguns elementos da Natureza que
tu ainda ignoras. Estão no estado potencial em todo o Universo,
mas só se encontram ativas em um lugar do tempo e do espaço.
Pois bem, alterando os fatores concorrentes, de tal maneira que o
potencial se manifeste, que dificuldade há para que aproveitemos a
enorme quantidade de força calórica e luminosa oculta nos átomos
de uns poucos grãos de ouro? Esse metal, tu sabes, é a reação de
certos elementos terrestres face à ação do sol, sob a direção dos
Anjos Solares, ou seja, de inteligências que cuidam desses
processos da Natureza. Sei que estes dados não te darão a solução
do problema, mas te colocam no primeiro passo. O erro dos homens
é pedir soluções antes de terem desenvolvido plenamente os
problemas que se lhes deparam.
— Essa é uma grande verdade!... Irmão, tens alguma
novidade para mim?
O rosto de Giordano dava ligeiras mostras de cansaço e ele
aquecia as mãos perto da lâmpada. Pablo Simón se apressou a
acrescentar:
— Parece esgotado... Não adies teu descanso por causa da
minha curiosidade.
— Oh, não! Meu corpo já está se vivificando e restabelecendo
suas correntes energéticas pelo efeito destes raios. É que ainda não
consegui dominá-lo plenamente... Logo conseguirei... Escuta, Pablo
Simón, eu te aconselho, segundo a opinião "dos que sabem", que
volte às "Ruínas". Lá está tua Loja que te espera. Eu devo partir
para a Itália. Percorrerei várias cidades da Europa e tentarei dar
uma forma mais acessível aos ensinamentos sobre Astronomia e
Física. Talvez em algumas universidades onde há anos ensinei
várias cátedras me permitam ministrar cursos para os estudantes.
Os professores estão demasiado carcomidos pela propaganda
política e pelo terror à Inquisição e às vinganças, para que se
atrevam a me ouvir, a se libertarem de seus preconceitos e dogmas,
ao menos por agora...
— Me permites acompanhar-te? Sei alguma coisa de química
e de alquimia e talvez te seja útil.
— Muito me agradaria, mas serás mais útil nas "Ruínas". O
dever está acima das infantis apreciações do "gosto" ou "não
gosto"... Assim, do dever provém a felicidade espiritual, pois,
quando se atua segundo a Lei, se planta semente sã. Farei meu
trabalho sozinho e nas minhas viagens colaborará o Conde de Venti,
um irmão admirável pelas suas virtudes, seu conhecimento e
também pela habilidade com que evita as armadilhas que
continuamente nos colocam os fanáticos e ignorantes.
— Crês que os jovens estudantes da Europa poderão beber
tanta sabedoria?
– Talvez não, mas ensinarei aquilo em que sempre insisto: "Na
falta de evidências, é preciso recorrer à dúvida". Pelo menos,
aprenderão a duvidar e, tu sabes, esse é o primeiro passo que a
alma escravizada pela ignorância dá em direção à Verdade.
Assim continuaram conversando até que a luz do sol ocultou
entre seus braços os raios da lâmpada, sua filha.
Três dias depois, duas barcas partiram do Templo de Ísis, uma
transportando o mestre, outra o discípulo. Ambas insuflavam suas
velas sob o impulso do mesmo vento.
CAPÍTULO VIII - O REGRESSO

Os pinheiros, agitando suas mil mãos verdes, saudaram o


regresso de Pablo Simón às "Ruínas". Disfarçado de monge
dominicano, chegou até à entrada secreta e chamou com o sinal
convencionado. Em breves minutos, rangeram os ferrolhos e pôde
levantar a porta-alçapão.
A lua cheia, surgindo lentamente no horizonte, destacou a
absoluta obscuridade da escada e do primeiro recinto. Em voz alta,
cantarolou a frase que lhes servia de sinal. Quase de imediato, uma
pesada manta envolveu sua cabeça e sentiu-se vacilar, fortemente
preso.
Quando o descobriram, se viu rodeado por uma dúzia de
encapuzados silenciosos, porém ameaçadores. A ponta de uma
espada encostou em seu peito, e uma voz lhe ordenou que se
levantasse e caminhasse pelo corredor até uma das câmaras. Ali
lhe ofereceram um assento e, deixando cinco homens de guarda,
pediram que aguardasse em silêncio.
Pablo Simón obedeceu sorrindo, embora estranhasse as
medidas preventivas, mais enérgicas do que há quinze ou vinte
anos.
Uma voz potente e desconhecida o fez levantar o olhar.
— Quem és tu e como conheces nosso segredo? Nada te
acontecerá se disseres a verdade...
— E se eu não falar, me matarás? Onde está o Irmão Onze?
Por que este ambiente de violência? Responde-me, sou teu irmão,
anteriormente conhecido no povoado sob o nome de Pablo Simón
Fosoletoe...
— Não tentes nos enganar, dominicano! Bem sabes que Pablo
Simón morreu!
— Já basta! Estais alarmados e agis precipitadamente. Em
lugar de me censurardes, por que não pedis a descrição do sagrado
símbolo que nos distingue? Pode um dominicano conhecê-lo?
Com um gesto decidido, pegou os utensílios da mesa e
escreveu os sete signos que depois mostrou aos seus
interlocutores.
— Perdão, irmão! Faz apenas cinco anos que ingressei na
Loja. Não podia reconhecê-lo nem acreditava que ainda estivesses
vivo. Aqui, todos te davam como morto nas longínquas terras do
Oriente... Saibas que o Irmão Onze abandonou o mundo físico pelas
mãos dos inquisidores, que lhe armaram uma emboscada há três
anos.
— Meu bom mestre! Como eu não soube de nada, como meu
coração não sentiu seu suplício?
— Segundo entendo — disse outro membro que acabara de
entrar na sala —, tu estavas realizando uma missão espiritual, e ele
não quis te causar dor nem transtorno... Por razões ocultas,
podendo nos comunicar telepaticamente contigo, não nos foi
permitido... Além disso, os irmãos Maiores recomendaram que te
fizéssemos passar por morto...
— Sabeis que estou sob a instrução direta de Giordano
Bruno?
— Não sabíamos, mas Nápoles pode estar orgulhosa de em
seu solo ter nascido tão grande homem. É um santo e um sábio...
um verdadeiro filósofo.
— Vejo que o admiras...
— Querido irmão, quem de nós não admiraria um homem de
tal envergadura? Mas agora descanses. Amanhã falaremos.
Quando Pablo Simón despertou, no leito de seu antigo quarto,
uma manada de recordações se precipitou sobre ele, mas as
espantou de imediato com o fogo impessoal de seu coração.
Dedicou todo esse dia a narrar suas andanças aos irmãos da
Fraternidade e a ouvir as novas do Ocidente. Inteirou-se, com
imensa amargura, que o pleito político religioso criado pela
corrupção da fé, e sua desintegração em facções antagônicas,
seguia cobrindo de sangue os solos de todos os países da Europa.
A Reforma, embora impotente para esmagar o papado romano, era
demasiado forte para perecer e, dentro de seus domínios, se
consolidava cada vez mais. Por isso haviam dado ao Santo Ofício
plenos poderes, de tal forma que não tinha mais freio nem medida
que a intenção de seus dirigentes.
Pablo Simón, que havia pensado que o movimento da
chamada Contrarreforma poderia regenerar a moral no clero, se
inteirou de que, embora alguns católicos bem intencionados
tivessem abandonado a vida de indolência e prazeres, nem todos
agiram assim, e a nova tendência era um pretexto para arrasar
povos inteiros, passando mulheres e crianças pelas armas e
queimando todo livre-pensador que caísse nas mãos dos
inquisidores.
Quanto às Lojas esotéricas, também estavam afetadas pela
terrível convulsão. Muita gente, libertada da crença na infalibilidade
eclesiástica, procurava se refugiar nas fraternidades secretas. Mas
como estas eram muito zelosas da qualidade moral e intelectual dos
aspirantes, alguns membros de menor grau iniciático formaram
organizações semiesotéricas, que começavam a crescer, sem exigir
grandes aptidões aos seus afiliados. Estas guardavam a forma dos
Mistérios, mas careciam de profundidade, sujeitas às influências
políticas e econômicas. Daí surgiram as lojas e as federações de
lojas que, ao longo dos séculos seguintes, seriam confundidas com
as verdadeiras escolas e centros esotéricos.
A Humanidade, angustiada, teria que voltar, três ou quatro
séculos mais tarde, o seu olhar para o Oriente em busca da chave
que abrisse as portas enferrujadas de suas próprias religiões, para
vitalizar suas esgotadas fontes morais, dando, em contrapartida,
progresso material aos povos orientais. Assim, o divino equilíbrio
voltaria a reinar na Terra.
Com o ânimo obscurecido, apesar da sabedoria que iluminava
suas ideias, Pablo Simón decidiu fazer uma visita ao padre Antonio
no colégio paroquial. Este havia deixado o trabalho ativo na Loja,
onde havia militado quase cinco anos, mas sustentava que sua alma
só pulsava por meio das luzes da sabedoria eclética.
O pároco ancião não estranhou muito a visita daquele
dominicano estrangeiro, silencioso, cauteloso em seus movimentos,
de olhar profundo e bondoso. Uma vez deixados a sós, após as
apresentações de costume, o clérigo perguntou:
— De onde vens, irmão?
— De um Lar ao qual retornarei através de milhares de
jornadas... “No seio do Pai-Mãe, todos os filhos estão em seu lar...”.
Ainda recordas os ensinamentos herméticos?
Os olhos do ancião aumentaram por detrás do espesso vidro
de suas lentes, e logo baixaram escrutadores. De seus lábios secos
e rígidos escaparam, deformadas, as palavras:
— Quem és tu?
— Não temas! Sou teu antigo amigo, Pablo Simón, discípulo
do Irmão Onze... Não me reconheces?
O amplo sorriso do discípulo desarmou o religioso, que
relaxou os músculos e pôde se acomodar na poltrona. Mas,
rapidamente, o medo voltou a torturá-lo, e perguntou quase
agressivo:
— Estás louco? Pablo Simón morreu... E quem é esse Irmão
Onze?
— O padre Mateos... Não temas, irmão. Na Loja recordamos
de ti com carinho e venho aqui expressar meu afeto. Se incomodo,
irei embora sem dizer mais nada...
— Não! Perdoes este velho vacilante, mas todos julgávamos
que estavas morto... Além do mais, a perseguição tornou-se tão
terrível, de uma eficácia tal...
— Não precisas te desculpar, irmão. Aplica-se a violência tão
abertamente que todos estamos mais ou menos aterrorizados.
Podemos falar aqui livremente?
— Sim... Todos me obedecem fielmente. Os fiscais
inquisidores não se ocupam de mim e gozo de verdadeira
tranquilidade... Até possuo minha pequena biblioteca escondida,
com livros proibidos, obviamente... São cópias de grandes tesouros
filosóficos... Acho tua visita muito agradável, Pablo Simón. Se
dispuseres de tempo, peço que me dediques algumas horas. Há
tanto tempo que não falo com ninguém sobre estas coisas...
— Vejo que estás tranquilo e te instruíste na ciência sagrada
sem inconvenientes.
— Sim, a verdade é que estudo arduamente.
— Eu também, no Oriente, em perfeita paz e mergulhado em
práticas e estudos metafísicos, quase me enredei para sempre nas
sutis armadilhas do egoísmo. Tu agora tens tranquilidade e estudo,
mas nada fazes para que outros pobres e infelizes homens gozem
dessas vantagens. Não instruis ninguém nos Mistérios, nem
partilhas teus livros, nem lutas contra o opróbrio e a loucura das
lutas fratricidas por deformações dogmáticas... Ai, irmão! Não só
pecamos por agir mal, mas por não agir bem...
— E que posso eu fazer? Não sou um herói. Não tenho
coragem para dar minha vida!
O ancião arrojou suas lentes e passeava a grandes passos
pela sala. Seu rosto, lívido de medo e de ira, vincava-se em uma
contração amarga.
— Ninguém te pediu tanto! Resiste simplesmente com tua
opinião. Nas reuniões íntimas, clama pela justiça. Nos banquetes
públicos, insinua habilmente sua ausência. Despreza os delatores e
os carrascos. Nenhum tirano exercitaria suas sangrentas
tragicomédias se não existisse o coro de imbecis que o festeja e o
de covardes que dele foge. Um silêncio sereno, e ainda um sorriso
evidentemente forçado, desarmariam seu braço, fariam grotescas
suas arrogâncias e seus uivos de onipotência. Mas tu... continuas
sumido na paz! A paz debilitada, produto dos sentidos satisfeitos, do
muito dormir e do pouco trabalho...
— Cala-te! Não quero ouvir mais! Deixa-me com a minha vida!
A minha vida é minha! De que é que serviu a morte do padre
Mateos, de quê?
— Sua morte, talvez de nada, mas sim a vida que foi coroada
com essa morte...
— Estúpido! Todos loucos! Guardas!
Evidentemente, o padre Antonio tinha enlouquecido de terror,
impelido pelos remorsos. Mas, felizmente, os espessos muros e
portas abafaram seus gritos, de maneira que não se espalhou
nenhum alarme. Pouco depois, se apresentou seu secretário
perguntando se o tinha chamado, mas o velho já se acalmara um
pouco, e os olhos de Pablo Simón, penetrantes como adagas,
avivaram sua razão, chamando-o à prudência.
— Sim, padre Juan. Eu te chamei para que acompanhes este
irmão até à saída... Volta aqui dentro de dois dias, irmão. Falaremos
com mais tempo e logo poderás partir para o estrangeiro.
Pablo Simón se inclinou em silêncio, e cobrindo o rosto quanto
pôde, se deixou levar por aqueles corredores que tão bem conhecia.
Já sozinho, na rua, prevendo que o seguissem, começou a andar
rumo a uma capela muito antiga que distava alguns quilômetros.
Por um momento, se sentiu perdido, pois o padre Antonio
havia se descontrolado totalmente; mas sabia que, passado o
primeiro impacto, nem a Loja nem ele correriam perigo. O pároco,
embora de temperamento cômodo e de pouco valor, possuía bons
sentimentos e temia complicações pelas suas antigas, ainda que
efêmeras, relações com a Fraternidade das "Ruínas".
A longa caminhada, a observação das pessoas e a meditação
o devolveram às "Ruínas" física, emocional e mentalmente
esgotado.
Em sua nova visita, conforme combinado, o padre Antonio o
recebeu em seu escritório, mas lhe pediu que não dissesse
nenhuma palavra até chegar à sua cela, que servia de dormitório.
Estava situada na ala sul do enorme edifício. Em seu interior, se
apreciava um ambiente luxuoso e cômodo, sem chegar à
ostentação. Pela janela, alta e estreita, fortemente gradeada,
penetrava o sol e o ar fresco das montanhas.
O padre Antonio se acomodou em uma poltrona, indicando
outra ao discípulo. Seu rosto demonstrava cansaço e dolorosa
resignação. Apesar do correr dos minutos, Pablo Simón não pôde
iniciar o diálogo, pois seu interlocutor permanecia com o olhar
perdido nos longínquos desfiladeiros das montanhas, imensamente
absorto.
— Irmão Antonio, não prolonguemos isto inutilmente. O que
quer me dizer?
— Tantas coisas...! Mas para quê? Tu vives em outro mundo,
sem as adulações nem os terrores do meu, com outras aspirações e
preocupações diferentes. Ambos sabemos que o que se ensina aos
fiéis é a letra morta, alterada e deturpada a respeito do verdadeiro
ensinamento de Jesus Cristo, e que as atividades da Inquisição
chegam a ser monstruosas... Mas acreditas que tantos males
podem ser transmutados? Eu não, pelo menos nos próximos cinco
ou dez séculos...
— Não será assim! Há indícios de que as distintas seitas
cristãs poderão conviver pacificamente, e ainda em três quartos de
século mais, o farão todas as religiões. Porém, aquelas que só
semearam a dor e a morte serão apagadas da face do globo e
substituídas por outras novas, como formas mutáveis do único e
imutável saber a que os filósofos aspiram.
— Não te iludas... Dentro de cem anos não haverá um filósofo
em toda a Europa!
— Se tal acontecesse, os dogmas e a ignorância científica
levariam seus habitantes a viverem em cavernas, e outros povos
com religiões, fraternidades filosóficas e escolas científicas
ocupariam suas terras e criariam uma nova civilização. Mas não
será necessário um meio tão drástico. Negar que nossos povos
possam reagir perante absurdos morais tais como o castigo eterno
por uma falta cometida na Terra, mais por debilidade congênita do
que por má intenção, ou perante organizações criminosas, é afirmar
que neles não existe inteligência nem luz espiritual. Abre os olhos,
irmão! Levanta-te e anda!
— Ai de mim! Ai de ti, Pablo Simón! O santo fogo dos mártires
consome teu coração, e a fumaça do terror paralisa minha alma.
Mas tu, e eu, e todos seremos esmagados por esta máquina
infernal.
— Não me assuste com esse fantoche! O Renascimento que
vivemos é grande demais para não sacudir os parasitas das costas
da Humanidade. A ciência moderna jogará por terra os dogmas
infantis do sistema geocêntrico. A História e o Direito varrerão as
superstições que afirmam a originalidade dos símbolos religiosos
atuais e a antiguidade do Homem como não superior a esses seis
mil anos que hoje lhe atribuem.
— Deixa de dizer raridades! Pensa no presente: dez mil fiscais
inquisidores percorrem o país, e seus guardas são os mais bem
preparados. Os agentes secretos estão em todas as partes, desde o
prostíbulo à Santa Sé. Talvez seja eu, talvez tu, talvez um alto chefe
das fraternidades secretas. Isto não é o Tibete, Pablo Simón!
— Se cedermos ainda mais, isto será um inferno! Padre
Antonio, se cada um fizer a sua parte e seguir os ensinamentos de
Jesus Cristo, o mal e a ignorância cairão irremediavelmente.
— Que ensinamentos? As cópias mais ou menos originais em
idioma aramaico foram destruídas por apócrifas, e se restou alguma,
quem sabe onde está guardada. O Novo Testamento, tal como nos
chegou, é uma compilação grega feita no século IV
aproximadamente, e alterada vinte vezes em mil anos.
— Não se destruiu tudo. No próprio Evangelho de João, os
investigadores podem encontrar provas dos erros que se ensinam
ao vulgo. Além disso, recorda que este Evangelho foi escrito, na
verdade, por um gnóstico dos primeiros séculos e seus diálogos
estão cheios de sabedoria esotérica. Nele se estabelecem as leis
fundamentais que nós conhecemos...
— É muito bom conversar contigo, Pablo Simón, mas tua
presença no povoado é perigosa... Não estava brincando quando
anunciei ao meu secretário tua viagem ao estrangeiro.
— Tu te referes ao dominicano, mas não ao médico, lavrador,
militar ou comerciante em que posso me transformar se me
obrigares a isso...
— Deixa de disparates! A Inquisição...
— Acabemos com isso! Não me assusta, e com um pouco de
boa vontade, também não me alteraria! Hipátia enlouqueceu nas
mãos desses miseráveis. O Irmão Onze e o padre Justino foram
assassinados, e centenas de outros homens pereceram nos últimos
vinte anos. Tudo obra da Inquisição... e dos covardes,
compartilhando a responsabilidade!
— Não me ofenda! Respeita ao menos meus cabelos brancos!
— O sábio Tales de Mileto ensinou que cabelos brancos são
argumento de idade e não de sabedoria... Eu te respeito, mas não
há razão para ignorar a covardia e a ignorância que cobrem metade
do mundo.... Pior para ti se estás entre os dessa metade. Além do
mais, eu não me inclino perante idades físicas, posições políticas
nem parentescos. Somente o faço diante da sabedoria e, no
aspecto físico, frente a um débil que necessita do meu impulso para
ajudá-lo a subir; jamais para conseguir benesses de um homem
rico, forte ou perigoso.
— Tua atitude me desagrada... Não tens direito de me
censurar! Sim, sou um covarde, mas nestes tempos é torpe ser
valente!
Pablo Simón se aproximou do velho pároco, que o olhava
aterrorizado, de costas para a janela. Seu rosto parecia uma
máscara de serenidade e seus olhos haviam se tornado ainda mais
bondosos e meigos, sem perderem o magnetismo terrível da
firmeza.
— Escuta-me bem, padre Antonio, Irmão Trezentos e Vinte e
Um, ou como prefiras ser chamado... Vários infelizes apodrecem
seus corpos nas celas subterrâneas que a Inquisição possui nesta
cidade. É teu dever ajudá-los dentro do possível e evitar novas
detenções injustas. Se preferires, atues só; se não, ofereço a
colaboração e a proteção da Loja.
— Sinto muito, mas não vou dar um passo! Se movo um dedo,
vou te fazer companhia... Longinos está velho, mas seus herdeiros
têm bons ouvidos e olhos, e ainda melhores braços... Não! Não
desejo acabar em uma viela, esfaqueado como o padre Mateos!
Não! Eu já sou velho... Deixa-me morrer em paz, na minha cama... e
não jogado como um cão...
O clérigo, fatigado pela emoção do terror, desabou em uma
poltrona e levou um frasco de licor à boca. Bebeu três longos goles
e, depois, no cúmulo da extenuação, apontou para a pesada porta
de carvalho, dizendo:
— Vai embora! Vai embora da casa, do povoado e do país!
Saibas que nada farei em tua defesa, e cedo ou tarde te
reconhecerão! Sim, morrerás na rua, mas não comigo! Eu avisei
Mateos, e ele não me ouviu! Não pude avisá-Io mais claramente.
Tive medo! Sabes o que é o medo? Que sabes tu...!
Um soluço dilacerado saiu do peito do pároco, que cobriu o
rosto com ambas as mãos.
Pablo Simón se aproximou dele e, apertando-lhe
carinhosamente o braço, despediu-se:
— Não te preocupes demais. Fazes o que for possível... ou
não fazes nada. De qualquer forma, este obscurantismo se
dissipará, com tua ajuda ou sem ela. Boa sorte, irmão!
— Nada farei! Nada farei!
A maciça folha da porta cortou violentamente aquele vínculo
de medo e dor que o unia ao pároco, e Pablo Simón desceu em
silêncio as escadas.
Lá fora, o sol poente, desaparecido entre pesadas nuvens,
deu cores ao seu rosto lívido de cansaço e dor.
Os dias se sucederam com a monotonia cambiante das ondas
do mar. Juntamente com os altos chefes da Loja, Pablo Simón
trabalhou em sua revitalização e na função social e educativa da
mesma no povoado, aspectos estes descuidados desde que o Irmão
Onze falecera.
Os meses, dando as mãos, dançaram a ronda dos anos. Para
Pablo Simón, chegaram referências e cartas de seu instrutor,
Giordano Bruno. Aquele que nascera no reinado de Nápoles no ano
de 1548 era considerado, quarenta e dois anos mais tarde, como o
sábio mais extraordinário da Europa. Cidadão do mundo, percorria
todos os países espalhando sua ciência e ecletismo religioso: Paris,
Londres, Wittemberg e Praga lhe ofereceram cátedras em suas
universidades e o encheram de honras. Seus livros Da causa e Do
infinito, apesar da perseguição eclesiástica e dos catedráticos da
época, ressuscitavam o pensamento platônico, a ciência de
Pitágoras e de Amonio Saccas, a Religião Universal dos Mistérios.
As lojas esotéricas, as bibliotecas laicas, os centros científicos
e os observatórios astronômicos floresciam à sua passagem como o
fazem os campos ante o beijo do sol e da água. A antiga Escola de
Alexandria, após mil anos de silêncio, tinha continuidade entre seus
discípulos mais estudiosos. O grande Galileu, perseguido pela
Inquisição e obrigado a se desmentir publicamente, encontrou em
Giordano Bruno um paladino formidável. Seus inúmeros tratados
contrários à teoria geocêntrica de Copérnico, apoiando o sistema
heliocêntrico, tiveram enorme repercussão em todos os círculos, e
muitos daqueles que o perseguiam em público se deleitavam a sós
com seus livros.
Por fim, em 1592, Giordano Bruno, perseguido de perto,
escapando sempre, insistiu mais do que nunca que as estrelas não
são “lâmpadas colocadas por Deus para distração dos homens”,
mas sóis, centros de sistemas semelhantes ao que nos abriga. Além
disso, proclamou que todos os mundos do Universo podem estar
habitados, e que em alguns planetas do sistema solar existem seres
parecidos com os homens, igualmente inteligentes.
Até esse momento, apesar de vários de seus discípulos terem
sido misteriosamente assassinados, Giordano, fortemente apoiado
por alguns nobres e estudiosos, havia escapado às emboscadas da
Inquisição, de que tomava sempre conhecimento algumas horas
antes. Mas o novo aspecto de suas exposições tinha se tornado
insuportável, e se chegou a ameaçar os reinos que oferecessem as
cátedras de suas universidades ao sábio. As classes sociais mais
ignorantes e analfabetas estavam convencidas de que se tratava de
um feiticeiro que tinha pactos firmados com o Diabo. Réplicas de
tais "documentos" eram mostradas aos fiéis dos púlpitos das
aldeias, e o Conde de Venti se via forçado a patrulhar as estradas
pelas quais devia transitar.
As investigações de Giordano sobre a esfericidade da Terra e
o sistema heliocêntrico, embora incomodassem os dogmas
contrários, não faziam mais do que acelerar o inevitável processo
geral a que conduziam os recentes estudos cartográficos e
astronômicos. Inventaram-se centenas de sofismas para apoiar a
posição dos que, cem anos atrás, defendiam que a Terra era plana.
Dizia-se que isso obedecia a fins religiosos que não podiam ser
divulgados, e que a Ciência continuava a ser filha do Diabo e
contrária a Deus.
Porém, a teoria da "habitabilidade dos mundos" era fatal para
o dogma central referente a Jesus como único Filho de Deus, e a
Igreja, sua única representante. Porque se a Terra não era mais que
um minúsculo grão de pó no meio de milhões de outros
semelhantes, igualmente povoados e, por conseguinte, abençoados
por Deus como ela mesma, como sustentar que Deus havia
encarnado neste único lugar, e que o Homem era o único ser
inteligente dotado de espírito imortal? E se Deus também estivesse
em outros mundos, haveria outras Igrejas? Além disso, se Deus
tivesse encarnado em distintos pontos do Universo e em distintas
épocas, quem poderia negar que o tivesse feito em tempos
passados em diferentes lugares da Terra, e que voltaria a fazê-lo
outras vezes no futuro?
Este era um verdadeiro golpe de misericórdia. Alguns
filósofos, depois de ouvirem Giordano, começaram a procurar
laboriosamente os tratados originais platônicos e herméticos para
compará-los com as ciências atuais.
Corria o ano de 1592 quando Giordano Bruno aceitou um
convite do reino veneziano, selando assim o último passo de sua
peregrinação libertadora.
Fazia várias noites que Pablo Simón não conseguia dormir,
atormentado por estranhas sensações e confusas mensagens
telepáticas dos discípulos de Giordano, quando, pouco antes de
surgir o sol, lhe foi anunciada a visita do Conde de Venti.
O discípulo e ajudante de Giordano o aguardava impaciente,
coberto com uma grande capa negra e portando uma espada à
cintura. Pablo Simón reparou em seu rosto lívido e nos olhos
rodeados de sombras.
— Irmão!
— Não me digas! Prenderam o Mestre!
— Sim. Está preso nos calabouços submarinos de Veneza...
— Quantas vezes escapou da Inquisição! Como o prenderam?
— Vínhamos fugindo de Milão e acreditávamos encontrar
refúgio no reino de Veneza. Giordano aceitou dar ali uma série de
conferências privadas para alguns nobres e catedráticos, mas um
dos primeiros o vendeu, e eu apenas pude escapar atirando-me à
água por uma janela, conforme me indicou o Mestre ao ser preso...
Além disso, vários outros discípulos foram presos e serão também
julgados...
— Que fazem as fraternidades venezianas?
— Tudo, menos libertá-lo... Isso é impossível. Nunca se
guardou tão bem um prisioneiro.
— O que opinas que deve ser feito?
— O Mestre pediu, dias antes da traição, que, se lhe
acontecesse alguma coisa, viéssemos procurá-lo... Aqui estou... Os
agentes inquisitoriais estão queimando todos os livros de Giordano
que existem nas bibliotecas, mas as Lojas salvaram alguns...
E acrescentou:
— Quando podemos partir?
— Hoje mesmo...
Pablo Simón ficou profundamente absorto em seus
pensamentos. Na tela de sua mente, voltavam a se projetar as
imagens do passado. Ele tinha muitos exemplos tristes da eficácia e
da crueldade da Inquisição para alimentar esperanças: o padre
Justino horrivelmente torturado e queimado; Hipátia enlouquecida
pelo sofrimento, cujo corpo doente e animalizado nem sequer sabia
se ainda pulsava no fundo de algum longínquo subterrâneo; seu
irmão e mestre assassinado pelas costas e injuriado torpemente...
Subitamente, voltou sua atenção para o mundo externo, e
notou o extremo cansaço que envolvia o corpo trêmulo do Conde de
Venti. Desculpando-se, levou-o até uma cela para tomar algum
alimento e descansar.
Depois, nas doze horas seguintes, resolveu uma série de
assuntos e se despediu das autoridades da Loja.
Mal as sombras cobriram o céu de estrelas e os campos de
pirilampos, dois cavaleiros disfarçados tomaram o caminho real,
cavalgando em magníficos cavalos.
Pablo Simón, com os olhos semicerrados, sentia correr o
vento nos cabelos, o que lhe dava sensação de velocidade. Talvez
sejam assim, pensou, as dores que deslizam na alma, meros
arautos da rapidez com que evolui...
Talvez seu companheiro tenha captado esse pensamento,
pois, fazendo-lhe um sinal afetuoso, aumentou o já frenético galope
de sua cavalgadura.
CAPÍTULO IX - A CIDADE BRANCA

“Chio Cadro morto a terra, ben m'accorgo,


ma qual vita pareggia il morir mio?”
(Furores Heroicos, Giordano Bruno)

No dia 22 de maio, Giordano Bruno foi preso. Um mês e meio


mais tarde, Pablo Simón e o Conde de Venti cruzavam os reinos da
Europa em descomunal corrida. As cavalgaduras eram substituídas
de poucas em poucas milhas. Ora suas bolsas de ouro, ora suas
iniciações nos Mistérios lhes abriam as muralhas das cidades e
ludibriavam repetidas vezes a implacável perseguição dos oficiais
do Santo Ofício.
Durante a viagem, Pablo Simón informava-se das últimas
novidades a respeito de seu Mestre. Em Wittemberg e Praga,
deixou escrito seu opúsculo De specierum scrutivio et de lampada
combinatoria e os livros De monade, numero et figura, De maginum
signorum et idearum compositione, De triplici numero et mesura.
Distintos membros das fraternidades confirmaram que o livreiro
Giotti o induziu a aceitar o convite do nobre Giovanni Mocenigo, que
depois o trairia em seu palácio de Veneza. Anteriormente, e de
forma secreta, visitara as Lojas de Zurique e de Milão.
Surpreendentemente, um novo fator apressou ainda mais
aquela enlouquecedora corrida. Poucos dias antes, em 2 de junho,
Giordano havia sido interrogado pela segunda vez pelo Tribunal da
Inquisição de Veneza. Anteriormente, no dia 26 de maio, fora
interrogado pela primeira vez e encarcerado na horrível prisão de “I
Piombi”, abaixo do nível do mar.
O "Filósofo do Fogo", apesar das humilhações e dos martírios,
teve a serena amabilidade de explicar aos verdugos o significado de
seus livros e conferências, fazendo-lhes notar que não atacava a
religião cristã, em nenhuma de suas seitas, mas sim seus erros, as
ignorâncias e os métodos sangrentos. Reafirmou suas investigações
científicas, assegurando que, se se procurasse nas Escrituras
Sagradas de todas as religiões, sem exceção, deixando de lado
dogmas e fanatismos de exclusividade, se encontrariam sinais
evidentes de uma Sabedoria eterna, para além da letra morta.
Esforço inútil! Em 30 de julho do mesmo ano, suportou novo
interrogatório, afirmando uma vez mais que sua teoria a respeito "da
pluralidade dos mundos habitados" em nada prejudicava o
verdadeiro cristianismo, pois Jesus Cristo era um Iniciado que
realizara estudos nos templos do Egito e da Pérsia, e ainda teria se
relacionado com sábios budistas e brâmanes, pelo que era fácil ver
que conhecia a esfericidade da Terra, o sistema heliocêntrico e a
realidade dos milhares de sistemas semelhantes ao nosso, que
povoam os campos do espaço.
Toda essa argumentação, fundada no estudo e na lógica,
expressa com correção, sem fazer nenhum protesto sobre as
privações e os castigos que sofria diariamente, não penetrou um
milímetro nas mentes de seus duros juízes, nem seus corações
estremeceram diante das chagas e dos farrapos que cobriam o
corpo do filósofo. Pelo contrário, enviaram a Roma um relatório a
respeito das "heresias" de Giordano, recomendando sua morte com
prévio martírio, a fim de fazê-lo revelar seus pactos com o Diabo e
dizer onde tinha escondido os documentos firmados pelo "Príncipe
do Mal".
Dias mais tarde, após permanecerem escondidos uma
semana em um pequeno povoado dos Alpes suíços, os viajantes
entraram no reino de Veneza. Relacionaram-se de imediato com as
fraternidades secretas do lugar, que agrupavam seletos artistas e
pensadores. Encontraram refúgio seguro no palácio de um marquês
florentino, antigo amigo do Conde de Venti. Este e Pablo Simón
ocuparam uma alcova que dava para o Grande Canal, próximo do
palácio dos Doges, em cujas fundações estavam os horrorosos
"Piombi". Ali, em alguma obscura cela submarina, o sábio pagava o
mesmo tributo à ignorância que antes haviam pagado Mestres tão
grandes como Pitágoras e Jesus.
As luzes permaneceram acesas toda a noite. Os dois iniciados
folheavam avidamente as compilações mais recentes dos trabalhos
de Giordano. Pablo Simón, pegando em um maço de papéis
manuscritos, colocou-os sobre a mesa em que trabalhava o senhor
de Venti, dizendo-lhe:
— Vê, irmão! Do mesmo modo que as sementes dormem no
seio da terra quando esta está abrigada pela neve, também o gelo
intelectual da idade em que vivemos apagou os germes mais
fecundos da sabedoria. Mas estes, no começo da nova primavera,
adquirirão ritmo de vida e lançarão para o ar o eterno desafio de
suas folhas e a gloriosa promessa de seus frutos.
— Certo! Os últimos escritos do Mestre adentram o futuro.
Talvez nem daqui a dez séculos os homens alcancem o
profundíssimo significado de sua obra. As leis do ritmo, da
reintegração constante da evolução sintética dos seres arrancam
Platão de seu túmulo e espalham suas palavras pelo mundo. Que
tremam os farsantes, os que, ignorando tudo, se atrevem a subjugar
os povos e a conduzir a norma de seus passos! Ai dos aprendizes
que se julgam mestres!
— Irmão... sei que o destino nivelará esta desordem que os
homens ambiciosos desencadearam, mas me aflige a atual situação
do Mestre. Sei quanto podem as torturas da Inquisição...
A recordação fez Pablo Simón voltar à janela de pequenos
vidros chumbados. O brilho das águas, dez metros mais abaixo, o
ajudou a se reconcentrar em si mesmo, nessa dor formidável que só
as almas grandes são capazes de albergar. Dor por toda a
Humanidade, cósmica, infinita...
A voz de Venti quase sussurrou ao seu ouvido:
— Tudo é ilusão. Só Deus é real...
Os olhos do discípulo perderam lentamente a firmeza. Suas
feições se suavizaram e, ao se voltar, falou com um sorriso:
— Obrigado! Às vezes esquecemos a única coisa que não
devemos esquecer... Eu também estive no Oriente...
— Que mais nos resta? Aqui tudo está em ruínas, desde o
pensamento a...
— O que está em ruínas é o meu coração... Veremos o Mestre
amanhã?
Um artístico relógio de ouro brilhou na mão de Venti, que
respondeu:
— Amanhã é hoje. Dentro de três horas cantará o galo...
— A hora das oferendas a Abraxas...
Ambos ficaram em silêncio e assim os encontrou a aurora,
inclinados sobre os inúmeros rolos de papel e sob as ainda mais
numerosas preocupações.
A pesada porta lançou um grito surdo ao ser batida. Um grupo
de discípulos, com aparência de barqueiros e comerciantes, entrou
na sala e saudou respeitosamente os dois filósofos. Um deles, que
se apresentou como instrutor de uma loja neoplatônica, professor de
Matemática, era quem tinha planejado o encontro de Giordano com
seus amados discípulos.
O Grande Canal, pela manhã, se enchia de gôndolas e
diferentes embarcações comerciais. Eles ocupariam meia dúzia de
gôndolas, entre as quais uma muito luxuosa levaria Pablo Simón e
de Venti, disfarçados de nobres generais do exército dos Estados
Pontifícios. A especial situação internacional pouparia muitas
dificuldades.
Depois de amplamente discutido e revisto em seus mais
ínfimos detalhes, o plano foi aprovado e duas horas mais tarde
estava em execução nos diferentes pontos da metrópole. O local de
encontro seria o Grande Canal.
A barca de Pablo Simón e de Venti possuía esse luxo simples
que encanta a vista, mas que não chama extraordinariamente a
atenção. Seus passageiros, sóbrios e dignos, apresentavam nos
cortinados da cabine cores e símbolos da nobreza. Diante das
reverências e dos melosos cumprimentos com que alguns oficiais e
nobres de segunda categoria os obsequiavam, de Venti comentou
entre dentes, sem deixar de sorrir:
— Vê, irmão! Os homens vulgares dividem-se em dois
bandos: os que são submetidos pela força e os que a procuram por
meio da submissão.
Seu companheiro ia responder, quando a gôndola
desembocou no Grande Canal, ao fundo do qual se avistava o
palácio dos Doges. Cerca de meio milhar de barcos navegavam ao
longo de um quilômetro, e a Praça de São Marcos elevava ao céu
suas bandeirolas coloridas como cabeças decapitadas.
Paulatinamente, após hábeis manobras, as lanchas da
Fraternidade rodearam a gôndola de forma tão dissimulada, que os
dois filósofos só se aperceberam disso ao reconhecerem alguns dos
passageiros e tripulantes.
Os nobres venezianos, enlouquecidos pelo crime, pirataria,
luxúria e medo, exibiam seus trajes uns aos outros como pavões
reais. Pablo Simón, somente recorrendo à sua elaborada vontade,
podia dissimular a impaciência que tornava rígido seu porte. Mas
seu companheiro, habituado à vida palaciana e à diplomacia, se
mostrava alegre e loquaz com todos, animando seus amigos e
desconcertando os prováveis espiões que estariam colocados
diante do palácio.
Antes de chegar, a gôndola se desviou até um pequeno
ancoradouro situado em uma das alas do enorme edifício. Uma
barca negra se antecipou a eles rapidamente, e meia dúzia de
oficiais do Santo Ofício desembarcou aguardando os filósofos.
Pablo Simón, inclinando-se para Venti, murmurou:
— Estamos mortos! Alguém avisou... Já não veremos o
Mestre!
— Cala-te! Esses são dos nossos, irmãos da Loja veneziana,
convenientemente disfarçados.
Os falsos guardas apresentaram seus machados de bronze e
os fizeram passar pela pequena porta da prisão submarina. Atrás
dos recintos da portaria, descia uma escada em caracol, cujos
degraus e corrimãos estavam úmidos, como se as pedras, mais
ternas que o coração dos homens, chorassem diante da dor que
tinham presenciado.
Acompanhavam os Iniciados dois dos irmãos disfarçados,
cinco membros do Santo Ofício e o chefe da prisão, ex-pirata da
Costa do Ouro.
As tochas iluminavam aquela escadaria que parecia descer
aos infernos, e as enormes ratazanas pestilentas tornavam
grotescos os reflexos rosados e aprazíveis dos muros polidos. O
teto, cada vez mais baixo, dava ao lugar um aspecto macabro, mas
o chefe da prisão não cessava de exaltar o edifício, sua guarida e os
refinados horrores a que eram submetidos os hereges e os infiéis ali
encarcerados.
O Conde de Venti lhe sorria e aprovava tudo que dizia, mas se
o esbirro tivesse prestado mais atenção à sua expressão, teria
notado, talvez, um "algo interior" mais agudo que uma espada e tão
terrível como o sorriso de um tigre.
Pablo Simón andava com a cabeça curvada, os olhos
nublados, e várias vezes escorregou e vacilou como se se
encontrasse fraco ou absorto em algum pensamento implacável.
Por fim, desembocaram em uma galeria horizontal, em cujos
lados se abriam portas pequenas, gradeadas. Um grupo de guardas
embriagados dormia sobre as pedras, e outros ainda bebiam
sentados a uma mesa suja e pesada como o ar da câmara.
Um grito espantoso do ex-pirata pôs de pé aqueles infelizes,
embrutecidos e ainda mais presos do que seus cativos, presos
pelas paixões grosseiras: as cadeias mais duras...
A comitiva atravessou rapidamente o corredor, enquanto os
guardas, meio adormecidos, mas firmes, apresentavam suas armas.
— Aqui só há presos políticos e infratores da lei de impostos.
O célebre renegado que quereis entrevistar ocupa um lugar
especial...
Após essas palavras, o chefe da prisão lançou uma
gargalhada tão cruel e repugnante que os falsos guardas,
admiradores e discípulos de Giordano, se detiveram bruscamente e
quase sacaram suas espadas. Um gesto imperativo de Venti os
deteve, enquanto dizia em tom de troça:
— Tende paz, senhores! Está bem que o Santo Ofício vos
tenha encomendado nossa segurança, mas essa sombra, que eu
também vi, não justifica atitude tão decidida. Depois, dirigindo-se ao
chefe, comentou: — Felicito-o, capitão, pelo ambiente dos "Piombi";
faz perder a calma mesmo aos oficiais veteranos...
Outra gargalhada feroz foi a resposta, e continuaram a
descida por escadas ainda mais sombrias, enquanto os
responsáveis pelo incidente suportavam as zombarias do resto dos
guardas.
A base do palácio dos Doges era um labirinto confuso de
corredores e celas, algumas entulhadas por desmoronamentos.
Tinha comunicações secretas com os salões superiores, de onde os
nobres convidados às festas desciam para insultar e torturar os
hereges encarcerados. Mas os presos de categoria excepcional, tais
como Giordano, ocupavam grutas escavadas no fundo dos canais
marinhos, eternamente sombrias e cheias de víboras, sapos,
aranhas e escorpiões. Ali chegava o ruído das ondas e das
correntes, velado, mas tão contínuo e audível, que tornava loucos
muitos dos que não podiam ouvir outra coisa, mergulhados na
escuridão absoluta, durante os vários anos que precediam suas
mortes.
Por fim, o capitão da guarda da prisão puxou uma argola de
ferro encravada no solo, descobrindo uma porta-alçapão, por cujo
vão desciam doze degraus altos e mal talhados na rocha. Embaixo,
um túnel tortuoso e inundado os levou até à porta de uma cela, que
mais parecia uma simples abertura na rocha. Apesar de estar a uns
vinte metros abaixo do nível do mar, não contava com ventilação
pior do que as câmaras superiores, pois um hábil sistema de
arejamento mantinha viva a chama da existência que, enterrada em
tais buracos, só desejava se extinguir.
Venti foi informado de que ali estava Giordano, e solicitou aos
guardas que se afastassem até à passagem superior, a fim de
conversar livremente com o prisioneiro. O capitão consentiu, mas
fez questão de que um velho e corpulento carcereiro, que estava
agachado em um canto, permanecesse no local para ajudar os
nobres se o renegado os atacasse. Os guardas se retiraram, e o
velho foi abrir a pesada porta, voltando a se refugiar em seu canto,
hipnotizado por uma moeda de ouro que o conde lhe pusera nas
mãos.
Pablo Simón pegou uma tocha e a acendeu com a que ardia
em frente à porta. Em dois saltos, entrou na cela, mas ficou pregado
ao solo. Venti só pôde observar por cima de seu ombro e
compreendeu a razão sua atitude.
Ali, sentado à maneira oriental, rodeado de bichos e sujeira,
respirando o ar acre e neblinoso, encontrava-se um velho de
aspecto cadavérico, vestido de farrapos que deixavam ver suas
carnes dilaceradas pelas torturas e pelos caninos das ratazanas.
Seu cabelo, de cor incerta, se unia a uma barba rala e ondulada. Os
olhos negros, até então fixos como se fossem de pedra, absortos
quem sabe em que ideal longamente perseguido, foram se tornando
mais humanos, e todo o debilitado corpo se animou no amanhecer
de um sorriso.
Seus discípulos faziam denodados esforços para não chorar
e, ajoelhados junto a ele, cobriam-no de afetos. Mas Giordano, se
gabando de um domínio extraordinário sobre seu corpo, se pôs de
pé e foi se sentar com os visitantes sobre a tábua que lhe servia de
leito. O retumbar nas paredes do ruído marinho abafou suas
palavras, que foram ditas quase ao ouvido. Pablo Simón, segurando
as mãos do Mestre, lhe disse que, muito em breve, os irmãos de
Veneza conseguiriam sua liberdade, pela razão ou pela força.
— Não, meu bom irmão! Prefiro estar vivo na morte do que
morto na vida... Se utilizarmos os mesmos métodos dos
inquisidores, se empregarmos a violência e o dolo, mais cedo ou
mais tarde nos tornaremos como eles. Assim como o licor ao corpo,
a crueldade faz a alma se acostumar a ela e gozar do torpor moral
que daí advém. Devemos controlar nossa imaginação. Tu entraste
no círculo vicioso de pensar e imaginar somente meus sofrimentos,
mas esqueceste os frutos que darão no futuro. Não me enterraram
nos "Piombi", mas sim uma humilde semente da Filosofia, que
germinará nos séculos vindouros. Não chores a semente. Pressente
a árvore! Chegará o dia, irmão, em que a sabedoria de civilizações
mais antigas do que esta renovará em nós a tumba do
conhecimento. Neste dia, cairão as concepções dogmáticas e
separatistas que hoje me mantêm encarcerado por afirmar que a
Terra é esférica, o Sol, o centro do sistema, e cada estrela, o eixo de
outro sistema semelhante, com seus habitantes particulares e seus
especiais conceitos da Divindade. Como tudo isso não figura nos
livros atuais, é tomado como mentira... Ai, irmãos! Choro por vós
que permanecereis vivendo entre eles, mas vos invejo; fareis muito
pela Humanidade.
— No meio de tantas torturas, ainda pensas no bem da
Humanidade? — replicou um dos discípulos venezianos.
— Sim, irmão Marcos... Também ela, no meio de seus
martírios, pensará em si.
—Nós e a Humanidade te queremos vivo. Ainda poderás dar
muitíssimo.
— Não, Pablo Simón! A morte é um elemento valiosíssimo na
vida de uma personalidade humana, e nossa alma deve aproveitá-la
ao máximo. Talvez um dia te digam que eu, diante da morte,
desmaiei... Desde já, saibas que mentiram.
— Como não alterará a verdade quem nem sequer a tem
respeitado em seus próprios livros sagrados?
— Venti, a “santa ira” só é permitida aos puros de coração,
porque já não a utilizam para destruir, mas para construir... Cuidado
para não odiares!
— Mestre, só odeio a mentira!
— Eu te disse que a mentira não existe. Combate-a sem lhe
dar grande importância, proclamando a verdade, a universal
verdade da sabedoria, a Religião sem nacionalidade, nem época,
nem dogmas... Perdoa-me, meu corpo físico está muito fraco e se
cansa... Já não posso continuar a falar convosco por muito mais
tempo...
— Queremos estar junto a ti, nobre filósofo!
— Então, não esqueçais minhas obras. Estou mais nelas do
que neste moribundo invólucro de carne... Ide embora dos "Piombi".
Aqui só impera a dor e a ignorância!
Giordano, recostado nos braços de seus discípulos, se
fechava sobre si mesmo como o lótus ao entardecer. Venti e Pablo
Simón empurraram os jovens venezianos para a saída.
Sete anos mais tarde, apesar dos esforços daqueles que o
amavam, Giordano, que havia sido conduzido a Roma, compareceu
perante o Tribunal do Santo Ofício estabelecido no Convento de
Santa Maria da Minerva, e foi condenado a ser queimado vivo,
depois de lhe ser arrancada a língua.
Ao ser lida a sentença, aquele esqueleto ainda vivificado por
obra de uma vontade sobre-humana fez corar de vergonha os juízes
com a seguinte frase: “Vós tremeis mais ao ler esta sentença do que
eu ao escutá-la!”.
Esta última parte do processo foi silenciada, tentando fazer
Giordano passar por um simples feiticeiro ou louco. Permaneceu
oito dias incomunicável em alguma cova inquisitorial.
Enquanto isso, Pablo Simón e Venti faziam os mais
desesperados esforços para salvá-lo. Um grupo de jovens
neoplatônicos de uma escola secreta saiu às ruas o aclamando,
mas prontamente foram mortos pelos guardas; os poucos que
ficaram feridos apodreceram nos calabouços da Inquisição.
Ao amanhecer do dia 17 de fevereiro de 1600, Giordano foi
arrastado aos pés de um prelado, que pronunciou a frase instituída:
ut quam clementissime et citra sanguinis effusionem puniretur (será
punido com clemência e sem derramamento de sangue).
Depois, vestido com o infamante uniforme dos "traidores da
religião", foi conduzido ao ironicamente chamado Campo dei Fiori
(Campo das Flores). Ali, queimar o filósofo constituiria o máximo
festejo em um dia de júbilo especial.
As altas autoridades das lojas esotéricas, esforçando-se,
conseguiram deter toda tentativa de libertar Giordano, que
desautorizava tais projetos, talvez sabendo que resultariam inúteis e
perigosos para seus executores.
Quase ao meio-dia, uma grande caravana partiu em direção
ao Campo dei Fiori. Estava constituída por prelados de quase todas
as seitas cristãs, que se misturavam e se entrechocavam nas vãs
tentativas de se manterem em grupos separados. Uns agitavam
tochas, outros maldiziam o Diabo e Giordano, e não faltavam os
que, em silêncio, rezavam o terço, tão tranquilos como se
assistissem ao mais piedoso dos atos. Também havia os que
cantavam ladainhas em perfeitos coros.
À frente, rodeado pela guarda inquisitorial, o mártir, com uma
energia que surpreendia aqueles que conheciam seu estado físico,
caminhava erguido, arrastando assombrosamente os ferros das
suas correntes e grilhões.
Pablo Simón e Venti, confundidos com a ruidosa multidão que
aguardava, estavam pálidos e trêmulos sob seus chapéus escuros.
Tinham a missão, junto com outros irmãos experimentados nas
sagradas artes mágicas, de apoiar o Mestre com seus pensamentos
e transmutar as negras ondas de carga psíquica liberadas pelo povo
em sutis correntes benéficas para a alma em vias de ascensão.
Lentamente, os verdugos subiram Giordano pelos troncos da
pira, acorrentaram-no ao grande poste central, e desceram.
Vários monges cantavam em coro e milhares de tochas se
agitavam ameaçadoramente. O filósofo baixara a cabeça... Um
desmaio? O terror rompia por fim tão sobre-humana resistência?
Não faltaram aqueles que se acotovelaram sorrindo grotescamente
e murmurando.
Um verdugo, armado de tenazes enormes e afiadas, subiu à
pira para cumprir o édito que dizia: “Ser-te-á arrancada a língua”. A
multidão bramia louca de entusiasmo. Outros cinco homens também
se atreveram a subir para secundar a infâmia. A vítima permanecia
imóvel. Uma mão crispada lhe arrancou o capuz, e um rosto lívido
se elevou lentamente, pedestal do fogo sagrado de seus olhos. Não
era um olhar duro, mas seu misterioso e terrível poder, apenas
velado de ternura, chegou de algum modo à alma do infeliz que ia
mutilá-lo. Um grito de horror, longo e estrangulado, surgiu da sua
boca e, atirando para longe as tenazes, começou a fugir
enlouquecido, olhos fora das órbitas e as mãos estendidas e muito
abertas. Caiu de bruços do alto da pira, levantando-se e dando
gritos de animal. Os outros carrascos, paralisados num primeiro
momento, desceram depressa da pira, entre tropeções e tombos.
Giordano agora passeava seus olhos tristes sobre a multidão
emudecida. O silêncio, como sangue novo, partira do coração da
praça e ganhava rapidamente as ruas adjacentes. Ao longe, o
enlouquecido verdugo abria caminho dando golpes e dentadas,
derrubando e pisando tudo.
Porém, passados os primeiros segundos de estupor, ao ver
que o povo duvidava, os chefes dos diferentes movimentos
começaram a gritar por toda a parte que o Diabo, disfarçado de
Giordano, pretendia espantá-los e interromper seus festejos.
Colunas de civis armados, previamente organizados, empurraram a
multidão até à pira, e os porta-tochas se aproximaram do filósofo.
Talvez movido por uma visão interna, Giordano baixara
novamente a cabeça, e seu delgadíssimo corpo pendia das
correntes.
A multidão inteira já havia irrompido em gritos animalizantes,
repetindo estribilhos estúpidos e mesmo obscenos. Milhares de
espadas se elevavam em direção ao céu em atitude ameaçadora, e
centenas de fogos ardiam por toda a parte.
Os dois discípulos, apertados e atordoados, faziam tremendos
esforços para ajudar mentalmente seu Mestre de maneira eficaz.
Um frade, levando uma grande cruz de bronze, subiu os
primeiros troncos da pira, dizendo:
— Ouve! Se beijares esta imagem e te manifestares
arrependido, talvez ainda te seja perdoada a vida.
— Toda minha vida beijei Jesus Cristo com minhas obras. Não
preciso agora fazer que meu corpo de carne beije uma imagem de
bronze. Não posso me arrepender de um mal que não fiz, nem me
dizer servo de uma sociedade humana, chame-se de uma forma ou
de outra, que nega os fenômenos evidentes da Natureza e persegue
quem não age ou pensa como ela.
O pesado crucifixo, manejado ferozmente pelo frade,
arrebentou a boca de Giordano, fazendo saltar seus dentes. Em
seguida, pegou uma tocha e incitou atirá-la. Giordano Bruno, gênio
temerário do progresso humano, foi rodeado pelas chamas e
envolto em negras nuvens de fumaça. Toda a pira foi digerida pelo
fogo e, sem um único grito, o sábio abandonou seu invólucro de
carne.
A multidão, satisfeitos seus instintos assassinos, voltou à
orgia, à simulação e ao "não pensar" que sobrevêm logo após as
grandes agitações, velho fenômeno explorado por todas as tiranias.
Pablo Simón, Venti e alguns poucos discípulos escolhidos,
dissimulados entre as hordas, permaneciam próximos do grande
túmulo fumegante.
Ao cair da noite, os membros do Santo Ofício voltaram para
terminar sua obra. Uma centena de soldados começou a derramar
baldes de água sobre os rescaldos e assim abriram passagem até o
grande poste meio carbonizado, que ainda se mantinha de pé.
Algumas correntes candentes pendiam dele; mais abaixo, alguns
ossos calcinados e cinzas...
Um clérigo tomou as cinzas em suas mãos e as espalhou
pelos quatro pontos cardeais, como última e enfurecida vingança.
A praça estava solitária. O povo, embotado, dormia o sono
das bestas. Os poucos que velavam, viajantes que haviam assistido
aos festejos por assuntos comerciais, observavam a cena de longe;
uns temerosos das cinzas daquele feiticeiro; outros, enojados,
recordavam o mártir com respeito.
Os dois discípulos se afastaram em silêncio, lutando
desesperadamente para não se deixarem envolver na ilusão do
mundo. Ao longe, os palácios resplandescentes iluminavam com
tons avermelhados as velhas ruínas romanas... Paisagem infernal
de um Averno[6] terrível, mascarado, o reino da obscuridade e da
ignorância.
CAPÍTULO X - A COROA DE ESPINHOS

Pablo Simón, com uma estranha expressão nos olhos, havia


abandonado a Cidade Branca e regressado à sua base nas
"Ruínas".
Venti e outros discípulos, erguida uma estátua a Giordano
Bruno nos pedestais de seus corações, voltaram às atividades
normais.
No céu, os astros continuavam cantando a verdade pela qual
o sábio fora sacrificado.
O alquimista, agora chefe da Escola à qual chegara tantos
anos atrás por uma aparente casualidade, trabalhava
incansavelmente investigando as intimidades dos metais e suas
ocultas relações com os poderes do Cosmos. Mas algo havia se
quebrado em seu interior. O sofrimento, superando o limite de suas
forças, fê-lo mergulhar numa indiferença absoluta para com os
próprios padecimentos e os do mundo.
Já não procurava atrair novas almas à Verdade. Preferia
trabalhar com os que, espontaneamente, se apresentavam, e
descuidou das obras de caridade e ajuda que, outrora, tanto haviam
beneficiado as populações vizinhas à sua Loja. Desprezava o povo
pelo seu servilismo às instituições estabelecidas e estava decidido a
combater o mal com as próprias armas. A fraternal doutrina da não
violência era vista, por ele, mais como uma maravilhosa utopia do
que uma necessária realidade.
A população, majoritariamente composta por lavradores,
pastores e clérigos, de almas primitivas e simples, que antes o
olhava com respeito afetuoso, agora o temia e comentava em voz
baixa os prodígios que dele eram narrados. As autoridades
eclesiásticas já tinham provas abundantes de suas investigações
científicas, nessa época proibidas, mas não ousavam denunciá-lo,
possuídas de terror supersticioso.
Contrariamente a essas reações, seus discípulos da Loja o
admiravam e reconheciam que nunca haviam tido um instrutor tão
capacitado e conhecedor dos mais profundos Mistérios da Natureza.
Reconcentrado em si mesmo, silencioso como uma
recordação, pálido, de olhos enigmáticos, cruzava as ruas todo
amanhecer, após seus misteriosos trabalhos noturnos efetuados na
montanha, nas galerias de uma mina abandonada.
Seu velho laboratório, a poucas centenas de metros da Casa
Paroquial, tinha as luzes acesas toda a noite. Mas... quem
trabalhava nele?
Pablo Simón o ocupava a cada dois ou três dias, e às vezes
permanecia semanas fechado sem que lhe trouxessem alimentos,
mas apenas pequenos cestos que passavam ao redor da porta.
Desde seu regresso, despedira todos os seus serventes e
ajudantes... Quem os substituía? Somente alguns irmãos de alto
grau iniciático o acompanhavam ocasionalmente, e estes eram tão
zelosos guardiões do segredo quanto seu mestre.
Os anos foram curvando as costas de seus companheiros,
mas ele aparentava sempre a mesma idade. A seu lado, o tempo
era o que é na realidade: o oceano ilusório onde navegam, se
afundam e emergem todos os enganos da manifestação.
Respeitoso com a vida do menor inseto que cruzasse seu
caminho, não movia um dedo para ajudar os muitos doentes que,
atormentados pela dor, lhe solicitavam a cura de seus males.
A sua Loja contava com os aparelhos mais caros para a
investigação e custeava viagens ao Oriente a todo componente que
se destacasse e assim o desejasse. Porém, o povo, a grande massa
ignorante, não recebia a menor ajuda nem palavra de consolo ou
instrução. Tinha tanto ouro quanto desejasse, pois a transmutação
dos metais não tinha para ele nenhum segredo.
No regresso de uma de suas viagens ao Egito, soube que a
Inquisição o procurava, e que o mais temível inquisidor ia a caminho
de seu povoado para prendê-lo e queimá-lo vivo. Sem dar
importância à notícia, se fechou em seu laboratório e deixou
passarem os dias.
O outono atapetava as ruas com cadáveres de folhas, quando
um pelotão de cavalaria, comandado pelo Grande Inquisidor,
posicionou-se em frente ao seu laboratório. As primeiras luzes da
aurora destacavam os lagos de névoa no fundo dos vales, ao
mesmo tempo que os guardas e os familiares do Santo Ofício
batiam à porta com o punho das espadas e as culatras das pistolas.
Todos os membros da Fraternidade tinham ordem de
permanecerem inativos, e corria o boato de que, de qualquer
maneira, o destacamento armado fugiria diante da aparição de
alguns "espíritos" que guardavam a Loja.
Ali estava Pablo Simón, vestido com uma estranha túnica de
fibras de chumbo e amianto, contemplando nas criptas subterrâneas
sua obra mágica mais terrível.
Desde o tempo dos atlantes, tais criações se tornaram cada
vez mais raras, pois somente podia realizá-las quem conhecesse e
controlasse à vontade a transmutação e a evolução dos elementos
simples nos quatro aspectos inferiores da Natureza, desde os
germes mentais até os esquemas etéreos das formas físicas. Sua
obra era algo digno dos pesadelos de um louco: o corpo de um
jovem árabe, morto há anos e revitalizado de forma imediata pelo
Iniciado... Mas não se detivera ali: havia mudado sua cabeça pela
de um leopardo, e suas mãos estavam tão bestializadas que
pareciam garras peludas e enormes.
Tal engenho pareceria irreal e fantástico a quem não estivesse
habituado aos conhecimentos e às artes secretas. Porém, realizar
tais fenômenos não era milagre nem dádiva de nenhum ser
extraordinário, mas domínio das leis naturais, ocultas para a imensa
maioria dos homens, que, nem mesmo nas suas maiores fantasias,
poderiam conceber de perto o poder da vontade canalizada e
aplicada.
Pablo Simón ouviu o rumor dos golpes e ergueu lentamente a
cabeça. Com um gesto cansado, baixou o capuz que o cobria e
alisou maquinalmente os cabelos. Atrás dele, o monstro grunhia em
direção à escada, sedento de sangue...
— Deixa-os, Obó! Deixa que profanem meu direito à
investigação! Em última instância, tua ferocidade não é obra minha,
mas deles, e agora os enfrentará...
Suas palavras, ditas em voz baixa, lhe pareceram ocas, vazias
de força interior.
De súbito, o espantoso engenho, dando um crispado uivo, foi
se refugiar no canto mais afastado da câmara, atropelando
alambiques, retortas e cabos que surgiam do teto e das paredes.
Pablo Simón se voltou e descobriu às suas costas uma forma
esbranquiçada, radiante na semiobscuridade.
— Tu! Voltaste! Vai embora, Hipátia. Já não sou o mesmo.
Não envenenes tua alma com a minha presença! Retorna às
imóveis formas da lembrança!
A visão não se moveu, mas uma voz tênue, íntima, murmurou
aos seus ouvidos:
— Volta tu à lembrança... Ali vejo gravadas as palavras de teu
mestre: “Se utilizarmos os mesmos métodos dos inquisidores, se
empregarmos a violência e o dolo, mais cedo ou mais tarde nos
tornaremos como eles...”. Não mates nossa união que encadeia
nossas almas no Amoroso Serviço, para além das vidas e das
mortes. Há milênios, prometemos juntos fidelidade no altar de Eros-
Pteros, o amor que dá asas... Não me percas, perdendo-te...
Lentamente, a forma luminosa se expandiu no ambiente,
fazendo palpitar o escuro coração das sombras. O sábio, ajoelhado
sobre as lajes de mármore, soluçava silenciosamente... Um rugido
de Obó tirou-o de sua dor, e Pablo Simón, com um gesto de doce
serenidade que há muito tempo o abandonara, se dirigiu para a
porta. Lá fora, ressoavam os golpes de um aríete e o ranger das
tábuas de madeira. O monstro, com os afiados músculos em tensão,
aguardava suas ordens.
As mãos enluvadas de Pablo Simón colocaram de novo o
capuz na cabeça e tiraram uma refulgente gema de uma caixa de
chumbo. Apagou as lâmpadas alimentadas misteriosamente e,
arrojando-as aos pés da horrível criatura, fechou a porta, ao mesmo
tempo que violentíssimas chamas e tremores de terra desfaziam
tudo que o laboratório guardava, lançando um espantoso rugido de
morte.
A passos rápidos, subiu a escada em caracol, cuja abóbada,
rachando-se, começava a desmoronar. Os degraus saltavam de
seus encaixes, fazendo-o tropeçar e bater duramente no solo.
Enquanto corria, tirou a pesada túnica a fim de não perecer no
desmoronamento. Por fim, com os pés, os joelhos e as mãos
jorrando sangue, chegou à superfície, fechando a porta-alçapão,
enquanto o último desmoronamento destruía toda a construção.
Criptas, tanques e laboratórios subterrâneos jaziam destruídos por
completo, e estranhas radiações concluíam a obra em planos mais
sutis da Natureza.
Nos dormitórios da casa propriamente dita, imperou o silêncio,
pois os atacantes, espantados ante o estrondo, ganharam distância
prudente. Pablo Simón, revivificado e reencontrado consigo próprio,
cheio de felicidade, transbordando de alegria, com o mesmo
entusiasmo com que na juventude se lançara ao Oriente em busca
das fontes da sabedoria, se dirigiu para a grossa porta que dava
para o exterior, já meio destruída pelos golpes. Ao abri-la, apareceu
sorridente ante os olhos do inquisidor, que estava montado em seu
cavalo branco. Convertido, outra vez, em um mero observador da
vida, estando no mundo sem pertencer a ele, encarou sua
aproximação com socrática atitude de compreensão.
Uma turba guiada pelos oficiais do Santo Ofício se atirou
sobre ele, e ondas de mãos o rodearam para lhe bater e arrancar
suas roupas, mergulhando-o finalmente na inconsciência.
A água fria, ao tocar seu corpo quase nu, fez Pablo Simón
recuperar os sentidos. Viu que se encontrava em um escuro
calabouço, sob a guarda de uma dúzia de soldados e de um clérigo.
Segundo o informaram, estava na casa paroquial e devia
comparecer imediatamente perante um tribunal expeditivo reunido
para tal efeito.
Ergueu-se pesadamente, e só seu domínio respiratório o
evitou tremer fortemente ante o frio do exterior. Sorriu pensando na
inútil crueldade de seus guardiões, que o expunham ao ar invernal
completamente molhado. Subiu as escadas sem resistência e foi
introduzido em um dos salões do primeiro piso. Ali, o Grande
Inquisidor, o pároco, vários clérigos e alguns civis e oficiais, haviam
se reunido em tribunal, presidido pelo primeiro.
Após as perguntas regulamentares, acusaram-no de praticar
feitiçaria, antropofagia e um grande número de crimes em moda
naquela época. Absorto em suas reflexões, o acusado não prestava
atenção às calúnias, tentando visualizar se a obra de destruição de
seu monstruoso engenho e dos laboratórios de alquimia havia se
cumprido plenamente. Uma referência aos seus irmãos da Loja
arrancou-o de seu estado, inteirando-se de que alguns de seus
discípulos tentaram resgatá-lo, por isso haviam ocorrido pequenos
choques nas ruas. Pouco menos de uma hora depois, o convidaram
a fazer sua defesa.
— Irmãos! Eu vos chamo assim porque a irmandade entre os
homens é um fato, reconheçais ou não. Jamais cometi nenhum dos
crimes de que me acusais. Procurei a Verdade por um caminho
diferente do vosso, mas, mesmo em momentos de me ver forçado a
isso, nunca me manchei com sangue. Espero que algum dia possais
dizer o mesmo sem faltar com a verdade... Uma coisa é certa:
investiguei os Mistérios da Natureza. Estudei o enigmático caminho
das almas através de todos os reinos e de suas inúmeras
reencarnações. Observei a relação oculta entre os "anjos" que
levam os carros planetários e os que cuidam dos órgãos de nossos
corpos. Comprovei a identidade de todas as religiões e combati com
meus ensinamentos as seitas que atribuem a si próprias a soma
total do conhecimento teológico, pois quando duas delas se
encontram, sempre a violência é propagada. Ouvi! Não "creio" em
Deus assim como vós não "credes" na existência de vossas mãos.
"Sabeis" que existem, o comprovais a cada instante. De igual modo,
a Divindade mostra-se a mim em todas as coisas, e Sua existência,
para mim, já não é um artigo de fé, mas sim uma realidade serena e
natural. Conheço uma Lei Universal que, por intermédio de
adaptações, rege todos os seres com os instrumentos da alegria e
da dor, ambos artífices da perfeição.
— Crês no perdão dos pecados?
— O perdão é recomendado por todas as religiões por meio
dos ensinamentos de seus fundadores. Porém, meus irmãos, o
perdão só mata as sementes mentais da dor. O dano já feito só se
repara com o sofrimento e nada pode compensar a morte de uma
formiga, nem há homem capaz de pagar as dívidas de outro.
— Herege! — explodiu o pároco. — Não crês na redenção da
Humanidade pelo sacrifício de Nosso Senhor?
— Quão cômoda é esta doutrina! Pecais, matais e destruís na
crença interessada de que o sacrifício daquele Mestre vos lava a
todos... Lavaria-os, sim, se praticásseis as virtudes que os
recomendou. Sua morte é somente o sinal que chama a atenção
sobre a vida. Ele não queria adoradores, mas seguidores de seus
passos, praticantes da virtude e da não violência. Que diria o
Príncipe da Austeridade ao contemplar os luxos de seus hierarcas e
ao observar suas fogueiras?
— Ele expulsou a chicotadas os mercadores do Templo...
— Expulseis assim os mercadores da vossa alma. Limpai-vos
interiormente, e vossos templos serão puros graças à pureza interior
dos assistentes.
— Cala já, blasfemo! Reconheces ou não as acusações que
este tribunal te faz?
— Não reconheço mais acusações que as da minha
consciência, e eu vos encomendo ao juízo das vossas!
A um sinal do inquisidor, dois soldados obrigaram o Iniciado a
se ajoelhar sem oferecer a menor resistência. Após breve
deliberação, comunicaram-lhe que antes de sete dias seria
queimado vivo na praça pública. Ao indicarem que se retirasse,
Pablo Simón se inclinou cortesmente diante de seus juízes e saiu da
sala com um sorriso e cabeça erguida.
Na data fixada, após uma semana, a vítima, com o semblante
envelhecido e o corpo desfeito em mil feridas, foi conduzida à praça
central. Seus irmãos da Loja foram silenciados uma vez mais por
seus dirigentes e pelas instruções que, de maneira velada, o Mestre
lhes fizera chegar.
Ao ser levado, acorrentado, cuspido e apedrejado por uma
pequena multidão inflamada, o inquisidor se adiantou em seu
cavalo, lhe perguntando com ironia:
— Onde estão teus companheiros?
— Muito perto daqui. Me ajudarão no sempre incômodo
trâmite da separação violenta do corpo físico.
— E por que não correm em tua ajuda. Temem abandonar
seus diabólicos corpos?
— Vê, inquisidor, existe uma diferença: tu aconselhas a
piedade de Jesus Cristo, nós aconselhamos a nossa...
A irônica resposta enfureceu o chefe do Santo Ofício, que,
com seu chicote, castigou repetidamente o filósofo.
A massa do povo, humildes e bondosos pastores, permanecia
alheia ao espetáculo, observando-o de longe. Mas um grupo de
várias centenas deles, unido aos seminaristas e soldados, empurrou
o sentenciado para a pira, o amarrou ao poste e começou suas
canções e estribilhos.
Uma alegria transbordante emanava do rosto de Pablo
Simón... Vivera quase a maior parte de sua vida desejando esse
momento. Nos planos sutis, se uniria a Hipátia em sagrado
matrimônio espiritual, e desse casamento de almas nasceriam
novos ideais. Ali estaria rodeado pelos seus irmãos, Giordano e os
sábios adeptos orientais, que poriam luz nas lâmpadas de suas
mentes celestes.
Uma rápida, porém vívida, síntese de sua vida desfilou diante
de seus olhos fechados, enquanto que aos seus ouvidos chegavam
confusas as vozes da multidão. Notou a presença mental de seus
irmãos das "Ruínas", apoiando-o e enviando-lhe maravilhosas
mensagens telepáticas. Abriu os olhos, contemplando seus
assassinos e, nesse momento, atiraram meia dúzia de tochas para a
base da pira de madeira de pinho.
Pablo Simón baixou as pálpebras e se voltou vertiginosamente
para seu interior. Imediatamente cessou quase por completo toda
sensação corporal. Ouviu a tosse de alguém que se afogava e
sentiu um grande calor na parte superior da cabeça. Depois...
CAPÍTULO XI - A LEMBRANÇA

Os picos mais altos das montanhas ruborizaram-se de amor


diante da imponente aparição do sol. A bruma pesada e opaca
retinha as mais espessas sombras entre as pedras e as vigas
carbonizadas da antiga igreja. Os dois espectros, acabada a
evocação, reuniram-se junto à pia batismal.
— Percebes?
— O quê?
— Ele, em sonhos, nos acompanhou na recordação...
— Que importância tem? Para nós, pode ainda haver algo
mais importante fora de nós mesmos?
— Não posso te censurar o egoísmo, mas sim a torpeza... Se
ele recorda, talvez...
— Deixes de ilusões! O sol vai sair... Apressemo-nos a infundir
nas gretas da terra.
— Larvas astrais, ratos, é o que somos! Mas quem sabe
deixemos de sê-lo...
As duas sombras com aparência humana foram se diluindo na
névoa que as gretas bebiam avidamente.
Os morcegos retornaram aos seus cantos, ao mesmo tempo
que os pássaros do vale ensaiavam os primeiros gorjeios. Uma
multidão de pequenos gênios invisíveis convergia para o lugar,
enquanto os anjos da aurora os perseguiam com suas espadas
pungentes...
Pelo caminho que percorreram na tarde anterior, Antonio
apressava o passo de seu pai. As últimas ilhotas de névoa se
dissolviam ante o calor do sol quando ambos entraram na área das
antigas ruínas. O jovem, adiantando-se, começou a passear suas
mãos pelas desgastadas esculturas originais dos pavimentos.
A sombra que projetava no chão foi se tornando cada vez
menor. Os olhos do ancião, com um brilho enigmático, seguiam-no
em suas incansáveis buscas. Ora levantava uma pesada placa de
mármore, ora removia as pedras dos muros, ora desaparecia por
meio dos corredores sombrios. O sol atingia sua altura máxima
quando o jovem se ergueu apertando algo nas mãos. Seus olhos
estavam úmidos como a terra grávida depois de uma chuva. Algo
nascia nele, dolorosa e gloriosamente.
Ali, no cofre de suas mãos, reluzia um tesouro de valor
incalculável: um medalhão com a imagem de um galo, o Abraxas
dos gnósticos medievais, formado por um vegetal petrificado,
recebido há cinco séculos de um Adepto hindu. Ali, Oriente e
Ocidente selavam sua união na ponte luminosa de uma alma que se
reencontrava a si mesma.
O jovem Antonio viu, em vertiginosa passagem, os séculos do
futuro, e vislumbrou uma Humanidade unida sem diferenças sociais,
com religiões verdadeiras que ligavam os homens em vez de
separá-los, com uma ciência espiritualizada eduzindo os arcanos
potenciais da Natureza tão somente para o bem.
O ancião e o jovem tomaram o caminho de retorno, muito
juntos, alegremente silenciosos, símbolos de duas épocas e do
único, universal caminho.
As sombras, liberadas, transmutadas em luz, surgindo das
gretas, perderam-se em um céu sem nuvens...

FIM
Curriculum do Autor

O professor Livraga, de nacionalidade italiana, nasceu em Buenos Aires em


1930. Cursou as faculdades de Medicina, História da Arte e Filosofia. Publicou
várias obras: estudos sobre antigas culturas e civilizações, romances, ensaios
filosóficos e reflexões sobre o mundo atual, bem como numerosos artigos.
Seu trabalho foi reconhecido com a concessão da Cruz de Paris em Artes,
Ciências e Letras, em 1976, e seu ingresso como membro na Academia
Burckhardt, entre outras distinções. Em 1951 obteve o primeiro lugar no
Prêmio Nacional de Poesia na Argentina.
Dedicou sua vida ao serviço do ideal humanista que inspira e anima a
Organização Internacional Nova Acrópole, para a qual legou todos seus bens.
1

[1] Mestre, instrutor em assuntos espirituais.


[2] Discípulo aceito.
[3] Denominação que só o discípulo com certo grau de iniciação nos pequenos mistérios
recebe por parte do mestre.
[4] Ilusão, aquilo que se refere ao mundo objectivo.
[5] Exercício psicofísico hindu que consiste em fixar a vista e a mente num único ponto.
[6] Lago muito profundo situado perto de Cumas (Itália), na cratera de um
vulcão extinto. O nome vem do grego aornon [sem pássaros], porque nenhum
pássaro podia sobrevoar esse lago de cujas águas subiam vapores
pestilentos que espantavam a vida; inferno. Para os romanos, Averno estava
consagrado a Plutão, o deus dos infernos.

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