Na Senzala Uma Flor

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Esperanfas e recordaf8es
Condit;oes de cativeiro, cultura centro-africana
e estrategias familiares

"Por que sentiria o pai [escravo] as austeras e santas alegrias do trabalho ?",
perguntava o viajante frances Charles Ribeyrolles, em sen livro Brazil
pittoresco (1859). "Ele nao tern interesse algum na terra, na colheita. 0
trabalho, para ele, e afli<;:ao e suor, e a servidao." Da mesma maneira, "por
que manteria a mae sen cubiculo e os filhos limpos? Os filhos lhe podem
ser tornados a qualquer momento, como os pintos ou os cabritos da fazen-
da, e ela mesma nao passa de urn semovente" 1•
A partir desse raciodnio (vera Epigrafe deste livro ), Ribeyrolles concluia
que nas senzalas "nao ha fam!lias, apenas ninhadas". 0 passado, para os
escravos, era a "dor", enquanto o futuro estava "fechado". Portanto, eles nao
podiam criar simbolos em que cintilasse a memoria, iluminando-lhes 0 que
vinha pela frente~ Urn "galho de roseira seco", para urn velho trabalhador
frances, poderia lembrar-lhe "a patria [... ],a mae ou a no iva'', e conforta-lo
na hora do encontro com a morte. Ja "nos cubiculos dos negros, jamais vi
uma fl. or: e que la nao existem nem esperan<;:as nem recorda<;:.6es".
Poderiamos lembrar, com Jack Goody, que nas sociedades africanas as
flo res raramente tern uma fun<;:ao decorativa e sao pouco valorizadas como
simbolos, ao contrario do que acontecia na sociedade francesa do seculo
XIX, em que havia urn verdadeiro culto ao uso pratico e sobretudo simb6-
lico de flo res (o tal langage des fleurs )2 • A constata<;:ao, contudo, nao escla-
receria o que Ribeyrolles viu ou nao viu nas senzalas - se hem que contri-
buiria para uma etnografia de seus filtros mentais - , pois o viajante nao
baseou esse texto num trabalho cuidadoso de observa<;:ao. Sintomatico,
nesse sentido, e a referenda aos "cabritos da fazenda'', pois, nas grandes
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propriedades cafeeiras do Vale do Paraiba, a rcgiao visitada pclo viajantc, interpretadas ou consideradas sem importancia pelos auto res que as regis-
raramente era encontrado "gado cabrum" 3• Ribeyrolles, nesse ponto, re- tram - exatamente aquilo que seria de esperar em textos marcados por
corda a uma imagem da granja francesa, da mesma forma como suas de- urn forte vies ideol6gico. Apesar disso, em seu conjunto e articuladas com
clara<;:6es sobre a incompatibilidade entre escravidao e familia tinham como dados de outras fontes - especificamente de processos crime e estudos
referenda a ideia de Adam Smith de que ninguem teria esdmulo para o etnograficos sobre povos da Africa Central-, essas informas:oes permitem
trabalho sem a perspectiva de realizar uma certa acumulas:ao. 0 viajante, uma visao surpreendente do "lar" escravo.
com sua cabes:a feita sobre esses assuntos, simplesmente nao achou neces- Na minha reinterpreta<;:ao dos textos do seculo XIX, limito-me, em
saria examinar de perto a vida do escravo ou tentar escutar sua voz. geral, a relatos sobre o Sudeste, principalmente sobre as areas de grande
Sua atitude nao era incomum. Os observadores estrangeiros e os brasi- lavoura, ja que praticamente todos os estudos demograficos acerca da fa-
leiros "bem-nascidos" tendiam a perceber o escravo a partir de uma ideolo- milia escrava se referem a essa regiao 4• Meu metodo e simples: o que torna
gia do trabalho que postulava diferens:as radicais entre a cultura do homem esta releitura possivel e minha desmontagem critica das fontes, que permi-
livre e a do cativo; ou, pior, olhavam-no atraves de fortes preconceitos raciais te identificar as informa<;:6es relevantes para o tema nos textos estudados
e culturais. Alem disso, e em parte como consequencia, eles nao se empe- e ordena-las num todo coerente. Para ser mais explicito: a constata<;:ao de
nhavam em registrar minuciosamente o comportamento e os valores dos que os relatos do seculo XIX oferecem, en passant e "nas suas margens",
escravos na vida intima. Como resultado desse olhar enviesado e miope, dados que nao se enquadram bern nas conclus6es de seus autores, mas
essas fontes tern uma certa coerenda entre si, pelo menos na sua superficie. que sao assimilaveis aos resultados das pesquisas recentes em demografia
Elas coincidem no registro de urn quadro patol6gico no que diz respeito hist6rica, aumenta a credibilidade destas pesquisas; enfim, confirma que
a familia escrava, e e compreensivel que sua "unanimidade" nesse sentido Ribeyrolles, como outros, nao avistou a "Hor" na senzala justamente porque
tenha seduzido muitos historiadores. nao quis. A confians:a redobrada nos dados demograficos, por sua vez,
Na primeira parte deste capitulo, procuro "desconstruir" as interpre- permite que reinterpretemos os textos dos observadores brancos com
ta<;:6es erigidas por esses relatos e posteriormente "habitadas" pela historio- muito mais seguran<;:a do que, de outro modo, seria o caso.
grafia ate a decada de 1970. Mostro que as opini6es de observadores no Cientes dos preconceitos que informam OS textos do seculo XIX - e
seculo XIX sobre a familia escrava sao mais uteis para revelar desvios confiantes nos estudos demograficos que apontam (por exemplo) para o
no "olhar" branco do que no "lar" negro. A conclusao e importante, pois fato de que nas posses medias e gran des de escravos em Campinas, em 1872,
refors:a nossa confians:a nos dados demograficos analisados no .capitulo 67% das mulheres acima de 15 anos eram casadas ou viuvas, e 8o% dos filhos
anterior. menores de 10 anos conviviam com os dois pais ou com urn pai ou mae
0 que mais confirma a fidedignidade desses dados, no entanto, e a viuvo( a) 5 - , podemos transformar as informa<;:6es "marginais" para o olhar
constata<;:ao de que as fontes narrativas da epoca, quando sondadas em branco daqueles relatos em evidencias centrais. Como resultado, e possivel
maior profundidade, podem ser usadas para construir urn retrato compa- usar os textos do seculo XIX para recuperar os projetos dos escravos para a
tivel com o quadro demografico. Ejustamente isso que procuro fazer no vida familiar e as "esperans:as" e "recorda<;:6es" que os orientavam. Enfim,
restante do capitulo. A tarefa e possivel porque, apesar das primeiras apa- torna-se visivel a "Hor", aquela nascida do encontro da cultura africana e
rencias, OS relatos do seculo XIX ndo sao univocos. Ao lado das conclus6es afro-brasileira dos escravos com sua experiencia no cativeiro.
enfaticas sobre a "imoralidade" do escravo nas rela<;:6es sexuais e a "inexis- Meu objetivo, com isso, nao e apenas reconstruir a "visao dos vencidos".
tencia" da familia entre os cativos, existem nesses depoimentos dados sobre Parto do prindpio de que nao e possivel entender a dinamica da relas:ao
os escravos casados e sua vida material e cultural que sao passiveis de outra entre cativo e senhor nem as contradi<;:6es e mudans:as no sistema escra-
leitura, coerente com as conclus6es dos estudos demograficos. Sao infor- vista sem "entrar na cabes:a" dos escravos, sem conhecer suas armas sim-
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ma<;:6es apresentadas "nas entrelinhas", geralmente nao entendidas, mal b6licas e suas possibilidades de ativar e coordenar essas armas entre si •

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Enfim, se os escravos nao eram seres anomicos, triturados ate na alma pclo c muito raro haver entre <>s ncgros casamentos celebrados na igreja, mas o fa-
engenho do cativeiro, se tinham uma herancra cultural propria e instituicrocs, zcndeiro permitc que os pares, que se unem segundo oportunidade ou sorte,
vivam juntos, scndo que o pronunciamento do fazendeiro basta para que eles
mesmo que imperfeitas, para a transmissao e recriacrao dessa herancra,
se considerem como esposo e esposa, numa uniiio que raras vezes hi de perdu-
entao o fato de que provinham de etnias africanas espedficas torna-sc
rar a vida inteira. As pretas possuem, em geral, filhos de 2 ou 3 homens dife-
importante. Torna-se, alias, decisivo para o curso da historia, se aceitarmos rentes. [... ] Mesmo esta formalidade [do pronunciamento do fazendeiro] nao
a ideia de que as pessoas interpretam sua experiencia vivida, e tentam se observa no mais das vezes, e os negros vivem em promiscuidade sexual, como
muda-la, a partir de sua visao do mundo, por sua vez formada na expe- o gado nos pampas 9 •
riencia anterior; e se supusermos que e a luta entre grupos sociais - as
vezes, grupos que se descobrem nesse embate como "classes", "etnias" ou Poucos anos depois, o jurista (e senhor de escravos) Perdigao Malheiro
"nacroes" - que ergue, mantem e constantemente solapa as "estruturas" observou que "as escravas, em geral, viviam e vivem em concubinato, ou
economicas e sociais 7 • (o que e pior) em devassidao; 0 Casamento nao lhes garante senao por
excecrao a propagacrao regular da prole" 10 • Em 1881, Louis Couty, que resi-
diu varios anos no Brasil e escreveu largamente sobre o cafe e a escravidao,
1. Lares negros, olhares brancos afirmou (em L 'Esclavage au Bresil) que muitos senhores, perante a dificul-
dade de impor uma ordem moral em seus cativos, decidiram nao mais
Numa cena do romance A carne, de Julio Ribeiro, publicado em 1888 e interferir na vida sexual destes. Como resultado, "nas aglomeracroes [de
situado numa fazenda do Oeste Paulista, ainda na epoca da escravidao, a escravos] nas fazendas, permite-se que os do is sexos se misturem durante
protagonista branca, Lenita, presencia a copula de urn touro e uma vaca. duas ou tres horas toda noite; e nao se preocupa em exercer nenhuma vigi-
Logo em seguida, ela assiste, sem ser percebida, ao encontro amoroso de lancia sobre os escravos isolados nas areas urbanas. Dessa maneira, a
urn jovem casal de escravos. Para Lenita, esse encontro "era a reproducrao maio ria dos filhos de escravos conhecem apenas urn de seus pais, a mae, e
do que se tinha passado, havia momentos, mas em escala mais elevada; a esta frequentemente ficaria constrangida se tivesse que preencher urn re-
copula instintiva, brutal, feroz, instantanea dos ruminantes, seguia-se 0 gistro civil exato". Alem disso, segundo Couty, havia "muitas negras que
coito humano meditado, lascivo, meigo, vagaroso". A cena e urn prenuncio nao sabem o numero de seus filhos", como tambem as havia que "nunca se
da sorte de Lenita. Mais tarde, ela se entrega como amante a Barbosa, jovem inquietaram para saber aonde [seus filhos] an dam". Por outro lado, quan-
filho de fazendeiro. Lenita se interessara pela ciencia, atraves da qual "qui- do os escravos se uniam em matrimonio, a exploracrao da mulher pelo
sera voar de surto, remontar-se as nuvens': mas "a CARNE a prendera a homem, que transformava a esposa em "sua servidora e sua coisa'', levava
terra, e ela tombara, submetera-se; tombara como a negra bocral do capao, esta geralmente a "devolver com usura essa falta de afeto" - a tal ponto
submetera-se como a vaca mansa da campina'' 8• que os casos de morte de escravos, envenenados por suas mulheres, "che-
Associar escravos e gado - nao apenas como semoventes, categoria garam a ser tao frequentes, que em quase todas as fazendas foi necessario
codificada em lei, mas tambem como seres sexualmente desregrados - era proibir as viuvas de se casarem de novo e de impedir que continuassem
co mum na epoca. Outros auto res, que nao se diziam romancistas, expres- tendo relacroes sexuais" 11 •
saram-se da mesma maneira que Julio Ribeiro. Ao visitar Cantagalo na Ha dedaracroes semelhantes para a primeira metade do seculo XIX.
provincia do Rio de Janeiro, no inicio da decada de 1860 - municipio, Johann Moritz Rugendas, viajante e artista bavaro, afirmou em 1835 que
como vimos, em que poucos escravos se casavam formalmente nesse perio- os senhores "favorecem o casamento entre os seus escravos"; mesmo assim,
do - , o viajante e diplomata suicro]. J. von Tschudi comentou "a levian- "a grande diferencra numerica entre escravos-homens e escravos-mulheres,
dade e inconstancia do negro em tudo que se refere as relacroes sexuais". .nao permite neste ponto, uma severidade mais rigorosa, e uma observa-
Segundo ele, crao estrita da fidelidade conjugal" 12 • Na mesma decada, Jean-Baptiste

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Debret, artista e observador frances de longa rcsidl!nda no Brasil, obscr- pafs, ainda assim era quase tao distante dos escravos, em seu modo de ser
vou que, e de perceber, quanta o viajante.
Quais seriam algumas das imagens previas, estampadas na retina, que
c~mo urn propried.rio de escravos nao pode, sem ir de encontro a natureza, impc- teriam atrapalhado a visao do observador estrangeiro e do nacional, quan-
drr aos negros de freqiientarem as negras, tem-se por habito, nas grandes proprie- do confrontados com o escravo? Em primeiro lugar, haveria uma imagem
dades, reservar uma negra para cada quatro homens; cabe-lhes arranjar-se para deformada do proprio negro, produzida por urn racism a extremado do qual
compartilharem sossegadamente o fruto dessa concessao, feita tanto para evitar os
seria raro, nessa epoca, o viajante europeu ou o brasileiro bem-nascido que
pretextos de fuga como em vista de uma procrias;ao destinada a equilibrar os efeitos
escapasse. Vejamos, por exemplo, o caso de Louis Couty, citado acima,
da mortalidade 13 •
que deixou 0 que e provavelmente 0 relato mais extenso que temos (menos
de duas paginas) sobre a familia escrava. Na verdade, mesmo sem conside-
0 depoimento de Debret e urn tanto ambiguo - poderia ser uma
rar seu ideario racial, ja existem raz6es para questionar a idoneidade desse
simples observac;:ao demogrifica ou uma sugestao de promiscuidade - ,
autor como observador. Urn contempora.neo de Couty, o holandes C. F.
como tambem 0 e ourro trecho no livro desse viajante, onde a negra e
van Delden Laerne, cujo estudo da industria cafeeira no Brasil prima pela
descrita como "extraordinariamente sensual, embora fiel e casta no casa-
meticulosidade de sua exposic;:ao e pelo cuidado com que foi pesquisado,
mento"14. Os demais autores, no entanto, nao deixam Iugar para duvidas.
queixou-se de que "me estenderia muito demais, se fosse refurar uma por
Junto com alguns ourros observadores da epoca, criaram a imagem de
uma as declarac;:6es nesse livro [Etude de Biologie Industrielle sur le Cafl, de
devassidao que marcou ate recentemente o comportamento sexual e a vida
Coury], que me parecem incorretas, alias ate falsas" 16 • Deixemos essa·cri-
familiar dos escravos na maio ria dos livros de historia.
tica de lado, no entanto, ja que haveri quem leia nela a inveja de urn pes-
Imagem, no minima, suspeita. Na verdade, os relatos que tratam da vida
quisador rival, e centremos nossa atenc;:ao no trecho que Coury dedica a
intima do escravo sao escassos e curtos; pior ainda, sofrem restric;:6es que
familia escrava. Seas maes desalmadas ("negras", nao "escravas") e as espo-
OS tornam muito pouco confiaveis. Os livros de viajantes, dos quais vern a
sas assassinas no texto citado acima ja nao deixam o leitor urn tanto des-
maioria das citac;:6es acima, sao extremamente uteis quando descrevem
confiado, recuemos algumas paginas no texto de Couty, para examinar seu
aspectos da cultura material que sao facilmente visiveis e pouco ambiguos
(por exemplo - como veremos adiante - a estrutura, disposic;:ao e divisao ponto de partida:
interna das senzalas nas fazendas visitadas). Sao muito menos confiaveis,
Os cidadaos livres da Africa nao tern, como seus irmaos cativos, urn desgosto
no entanto, quando opinam sabre a vida intima de todo urn grupo social,
pelo trabalho manual? Eles cultivam as terras tao ferteis que estao em sua posse?
ainda mais de urn grupo "exotica" como os escravos. George Gardner, urn Nao esti provado que, quando empregados como trabalhadores, des fornecem
ingles que viajou pelo interior do Brasil em 1836, nao poupava criticas aos muito menos mao de obra do que os operirios brancos? Eles tern ideias de liberdade
"viajantes, en passant, que derivaram seus conhecimentos de ourros, e nao individual, esses homens que acham natural serem espancados, serem vendidos,
da observac;:ao pessoal. As historias mais ridiculas sao contadas pelos resi- serem mortos de acordo com os caprichos de urn chefe militar ou de urn despota?
dentes europeus a estrangeiros recem-chegados, como bern posso atestar Eles tern ideia de familia ou de propriedade, esses infelizes que vendem suas crian-
por experiencia propria" 15 • s;as por algumas tirinhas de pano espalhafatoso, que matam os viajantes para espo-
Mesmo urn viajante criterioso, como a maio ria daqueles citados acima, lia-los, que consideram o roubo como urn modo de !uta pela vida? Eo estudo de
dificilmente conseguiria livrar suas observac;:6es sabre a familia escrava da suas sociedades embrionarias, passageiras, mal-aglutinadas, sem equipamentos e
influencia de ideias preconcebidas, suas proprias e as de seus informantes. sem produs;ao, como 0 estudo de seu cerebro ou de seu cranio, nao e suficiente para
responder aqueles que fazem teorias sociais com palavras vagas ou com ideias
Por ourro lado, o autor brasileiro, de urn modo geral, nao estaria em con-
_apriodsticas ?17
dic;:6es muito melhores. Em bora nao estivesse no Brasil en passant e pudes-
se, portanto, reconhecer e descartar "as historias mais ridiculas" sabre o

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Ora, o racismo explicito e virulento desse trecho torna o testemunho de nhando torpezas de luxuria, e ouvindo a eloqiiencia lodosa da palavra sem
Couty extremamente duvidoso. Isso ndo tem impedido, no entanto, que ele freio, fica pervertida muito antes de ter consciencia de sua perversao". Ja, ao
seja um dos autores mais citados sobre a questdo da fomilia escrava 18 • contrario, "a donzela e flor que tern por matiz o recato e o pejo". Nas boas
Em segundo Iugar, a visao dos observadores do seculo XIX provavel- familias, "ha para as filhas certa especialidade de cuidados que nas maes e
mente sofria a interferencia de preconceitos culturais. Com respeito aos religioso culto de amor que vela incessante, como o das sacerdotisas de
viajantes, e importante lembrar que a grande maio ria dos estrangeiros que Vesta que vigiavam o fogo da pureza, e nos pais [e] uma fonte sublime
escreveram sobre o Brasil, especialmente no seculo XIX, nao vinham da de melindres e de escrupulos, uma santa exagera~ao de estremecido zelo".
Espanha ou de Portugal, mas de outras na~6es, do Norte e do Oeste Como resultado de uma vigilancia desse tipo por parte de seus pais,
da Europa (principalmente da Fran~a, da Sui~a, dos paises germanicos "Candida chegara aos onze anos de idade com a perfeita inocencia de sua
e da Inglaterra). Ora, nessas na~6es a reprodu~ao humana, do inicio do primeira infancia''. Infelizmente, recebeu em seguida a Lucinda de presente,
seculo XVI ate meados do XVIII, quase nao acontecia fora de uni6es sexuais e "[foi] a escrava que a arranc[ou] das risonhas e serenas ignorancias da
sacramentadas pela Igreja, e durante o seculo XIX a taxa de ilegitimidade inocencia, ensinando-lhe rudemente teorias sensuais da missao da mulher".
nesses paises (nascimentos "ilegitimos': ou seja, filhos havidos por pais que Fica evidente, em tudo isso, que Macedo condena a forma~ao moral da
nao eram casados no religioso, como propor~ao do total de nascimentos) escrava porque ele nao admite outro padrao normativo para a educa~ao de
geralmente nao subia alem de 10% - cifra essa muito abaixo do in dice nos uma menina alem daquele adotado pelos pais da Candida. Na valoriza~ao
paises ibericos e na America Latina. Mesmo assim, o enorme aumento da "santa exagera~ao de estremecido zelo" destes, esti a condena~ao dos
dessa taxa desde meados do seculo XVIII, especialmente nas cidades, cau- pais escravos e de suas filhas. 0 leitor moderno podera perguntar-se -se e
sava espanto, e era comumente interpretado como indicia de urn enfraque- Hcito medir a moralidade dos cativos com a mesma regua20 .
cimento dos padroes de moralidade 19 • Nao e de surpreender, portanto, que A preocupa~ao de Macedo pelo fogo da Vesta, no entanto, e apenas
o viajante europeu do seculo XIX, diante dos indices relativamente baixos uma manifesta~ao extrema de urn preconceito cultural que provavelmente
de casamento religioso e das taxas comparativamente altas de ilegitimida- era compartilhado pela maio ria dos brasileiros e europeus "bem-nascidos".
de que prevaleciam entre os escravos brasileiros, especialmente ap6s 1850, Significativamente, quando confrontados com urn dos aspectos mais visiveis
tenha registrado uma impressao de patologia social. A lente distorciva de da cultura negra no Brasil - as dan~as escravas de origem africana - , a
sua cultura praticamente nao lhe permitia outra visao. maioria dos observadores brancos nao podiam percebe-las senao como
Ja no caso dos observadores brasileiros, teria havido urn preconceito extremamente sensuais ou ate lascivas, comparadas a seus pr6prios diver-
cultural diferente, mas nao menos importante. Sugestivo nesse sentido e timentos. Eis o que Ribeyrolles tinha a dizer sobre o lundu dos escravos:
"Lucinda- A mucama': urn dos romances que integramAs vltimas-algozes, "e uma dan~a louca, na qual o olhar, os seios, as ancas provocam; e uma
de Joaquim Manoel de Macedo. Publicado em 1869, o romance veicula a especie de convulsao ebria''. Ribeyrolles qualificou esta e outras dan~as
mesma imagem negativa da mulher cativa que encontramos em Couty, mas . como express6es de "alegrias grosseiras, sujas voluptuosidades, feb res liber-
oferece uma explica~ao sociol6gica, nao racial, de seu modo de ser. 0 livro tinas"21. Ele mesmo pode ter visto essas divers6es menos como manifesta-
e urn tratado antiescravista, cujo tema e a influencia malefi.ca da escravidao ~6es da cultura africana do que produtos terriveis da escravidao. Outros,
no seio da familia branca. Ao descrever como a mo~a Candida (a pureza) porem, que as descreviam de forma semelhante, ofereciam uma interpre-
e corrompida por sua mucama escrava, Lucinda (o demonio ), Macedo re- ta~ao diferente. Enrico Giglioli, que visitou uma fazenda de cafe no Rio de
vela sua visao da forma~ao moral da escrava, e sua concep~ao de como uma Janeiro em 1865, testemunhou uma dan~a escrava em que "os bra~os e o
menina honesta deve ser educada. A mulher cativa, "abandonada aos des- corpo [... ] moviam numa pantomima que nao era nada casta''. Acrescentou
prezos da escravidao, crescendo no meio da pratica dos vicios mais escan- em seguida: "e conhecido que o carater sensual prevalece nas dan~as afri-
dalosos e repugnantes, desde a infancia, desde a primeira infancia testemu- canas"22. A convic~ao de que a cultura africana nao colocava freios "civili-

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zados" no comportamento levou muitos brancos a acrcditarem (como ao homem seus "privilegios" de esposo e de pai - ou seja, sua autoridade
Lenita e seu criador, Julio Ribeiro) que a sexualidade e a familia dos afri- perante a mulher e os filhos - , o que (na suposis:ao desses autores) nao
canos e de seus descendentes eram totalmente diferentes daquelas dos acontece no regime escravista. Nao se trata, ao que parece, de uma opiniao
europeus ou dos brasileiros de extras:ao europeia. Uniram-se, nesses casos, isolada, pois exatamente a mesma ideia foi expressa, lapidarmente, por
os preconceitos "culturais" e "raciais". Alexis de Tocqueville num discurso de 1840. "Existe uma antipatia pro-
Em terceiro lugar, alem dos estere6tipos negativos referentes ao carater funda e natural entre a instituis:ao do casamento e a da escravidao", dizia
negro e a cultura africana, uma certa ideologia a respeito da escravidao e Tocqueville. "Urn homem nunca se casa quando ele esti na condis:ao de
do trabalho livre provavelmente confundia a perceps:ao da maioria dos nunca poder exercer a autoridade conjugal, quando seus filhos devem
observadores europeus e brasileiros, sobretudo na segunda metade do se- nascer seus ig~ais e quando eles sao irrevogavelmente destinados as mesmas
culo XIX. Lembremos novamente o caso do viajante frances, Charles Ri- miserias que seus pais" 24 •
beyrolles, visto no inicio deste capitulo, aquele que, a priori, declarou 0 paragrafo de Duval (via Souza) tam bern tenta definir com mais pre-
inexistentes as "esperans:as" e as "recordas:oes" dos escravos. 0 ideirio de cisao a inter-relas:ao entre familiae propriedade, que e apenas sugerida por
Ribeyrolles e facil de resumir; enfatiza a funs:ao "santa'', moralizadora, do Ribeyrolles (e, alias, por Couty, no paragrafo em que esse autor nega ao
trabalho livre, que, no feliz encontro da necessidade com o interesse, to rna african a qualquer "ideia de familia ou de propriedade"). Para Duval! Souza,
possivel a formas:ao da "familia': concebida como projeto de acumulas:ao. "em seguida a familia vern a propriedade", ja que a lura para assegurar o
Essas ideias tambem se encontram expressas, com certas modificas:6es e bem-estar da familia se to rna tambem uma luta para aumentar o patrimo-
acrescimos, em Theses sobre colonizarao do Brasil, urn relat6rio apresentado nio; mas, a partir desse momenta inicial, a propriedade e a familia marcham
ao Ministerio da Agricultura, Comercio e Obras Publicas em 1875 por Joao juntas, de maos dadas, uma refors:ando a outra. 0 que temos aqui, entao,
Cardoso de Menezes e Souza. Ao discutir a possibilidade de aproveitar o e urn enunciado clara da ideia de que havia uma relas:ao de apoio mutua
trabalho do liberto na agricultura, Souza chama a atens:ao para o exemplo entre "familia'' (definida como "familia monogamica e patriarcal") e pro-
de "urna colonia de negros fun dada [na Guiana Francesa]" depois da eman- priedade particular. Esse modelo de familia nao sera novidade para quem
cipas:ao dos escravos, onde se tinha "demonstrado que a ras:a africana podia estuda o seculo XIX, ao mesmo tempo patriarcal e burgues. Contudo, cabe
ser utilmente empregada no trabalho agricola, uma vez educada a sombra salientar que quem pensava em seus termos - como provavelmente era o
da religiao e constituida sabre a dupla base da familia e da propriedade". caso da maioria dos viajantes e dos brasileiros "bem-nascidos" no seculo
Citando urn autor frances, urn tal Duval, sobre essa experiencia, Souza XIX - teria tido uma enorme dificuldade em perceber e muito mais em
prossegue em sua analise: interpretar as esttategias e projetos de vida intima dos escravos.
Alem disso, a dificuldade teria aumentado como tempo. Nos depoimen-
a familia, de que os escravos faziam pouco caso enquanto o casamento nao lhes tos de viajantes e brasileiros a respeito da familia escrava, provavelmente
assegurava privilegios nem de esposo, nem de pai, constitui-se rapidamente na existe a influencia de urn projeto disciplinar que associava cada vez mais a
popula<;iio emancipada. Em seguida afamilia vern a propriedade, ao prindpio estabilidade da familia nuclear e a sobriedade na vida sexual com a consran-
muito diminuta, medida pelas necessidades e pela ambi<;iio. 0 negro[ ... ] trabalha-
cia eo empenho no trabalho. Na Europa enos Estados Unidos nesse periodo,
d. para aumentar sua cabana, onde e rei; seu campo, onde ninguem lhe da ordens.
os grupos dominantes e os intelectuais e profissionais a eles ligados elabo-
Sociedades de socorros mutuos, preludios das caixas economicas, vivamente recla-
raram estrategias para levar a "disciplina ao domicilio", como parte de uma
madas, viriio em auxilio deste movimento, revelando habitos de ordem e previden-
cia a ra<;as, que eram reputadas incapazes deles 23 • tentativa de criar novos valores entre as classes populares, permitindo des-
sa forma urn controle mais eficaz sobre seu trabalho 25 • Nessa, tentativa,
Nesse trecho, Duval! Souza acrescenta ao ideirio de Ribeyrolles a nos:ao havia o reconhecimento ticito de que o "aburguesamento" do modo de ser
de que a familia s6 se constitui em sua plenitude quando sao assegurados do trabalhador livre nao aconteceria por urn processo natural, mas depen-

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nn .. -,.,,~ ..-..,,. ......... -~-·--------- ..... -----

deria da "tutela'' da pr6pria burguesia e do Estado. No Brasil, o problema 2. Heram;a africana, experiencia escrava
da transi<;ao do trabalho escravo ao trabalho livre, que levantava o espectro
de uma mudans:a profunda nas pd.ticas disciplinares, provavelmente fez Nas regi6es de grande lavoura no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, e nas
com que parecesse especialmente necessaria a ados:ao de tais estrategias de areas agropecuarias mais dinamicas do sul de Minas Gerais, a escravidao
tutela26 • Chama a atens:ao, nesse sentido, que pelo menos tres dos livros na primeira metade do seculo XIX era quase literalmente "africana''. Re-
de Samuel Smiles, o propagandista escoces das virtudes da "economia do- censeamentos da epoca indicam que cerca de 8o% dos cativos adultos
mestica moral" e das vantagens provenientes da "subordinas:ao do apetite (acima de 15 anos) nessas regi6es provinham da Africa. Alem disso, os adul-
a a a
animal razao, previdencia e prudencia': haviam sido traduzidos para 0 tos "crioulos" (nascidos no Brasil) provavelmente eram, majoritariamente,
portuguese publicados no Rio de Janeiro, ate 1880 27 • Parece-me signific~­ .filhos de africanos 29 • Portanto, falar das esperans:as e recordas:oes dos cativos
tivo tambem que, no final do periodo escravista e na decada de 1890, a nessa parte do Brasil implica necessariamente voltar a atens:ao para a he-
"vadiagem" do negro liberto se tornou uma preocupa<;ao constante nos rans:a cultural que os desterrados da Africa trouxeram consigo. Os relatos
debates politicos e nos jornais; e e especialmente intrigante que a suposta do seculo XIX, no entanto, praticamente nao nos dao informa<;6es sobre
recusa desse personagem ao trabalho era comumente atribuida a sua dege- os aspectos mais visiveis dessa heran<;a - por exemplo, as linguas faladas
nerescencia moral, reveladapor todo urn complexo de caracteristicas nega- pelos escravos - , muito menos sobre as praticas e normas familiares.
tivas, entre elas a lubricidade e a falta de institui<;6es familiares estiveis 28 • No decorrer deste capitulo e no pr6ximo, outras fontes serao usadas
Em resumo, o racismo, os precbnceitos culturais e a ideologia do tra- para recuperar aspectos relevantes da heran<;a africana. Cabem aqui, no
balho da epoca predispunham OS Viajantes europeus e OS brasileiros "homens entanto, algumas observas:oes basicas. Primeiro, a grande maioria dos es-
de bern" a verem os negros, que aparentemente nao seguiam suas regras na cravos importados para o atual Sudeste do Brasil, desde o final do seculo
vida intima, como desregrados. Na segunda metade do seculo, quando o XVIII ate 1850, vieram de sociedades falantes de linguas bantu, principal-
"nao seguir as regras" parecia ameas:ar cada vez mais a disciplina no traba- mente da atual Angola e da regiao que a historiadora Mary Karasch chama
lho, essa predisposi<;ao provavelmente se tornou mais forte. Dentro desse de "Congo-Norte" (a bacia do rio Congo/Zaire e a costa ao norte da desem-
contexto, as hist6rias que nos con tam Ribeiro, Tschudi, Couty e os outros bocadura desse rio, ate e incluindo o atual Gabao ) 30 • Segundo, uma carac-
autores citados tornam-se extremamente predrias como fontes, a nao ser teristica comum a praticamente todas as sociedades bantu, como alias a
para retratar o pensamento das Lenitas da epoca - isto e, para captar o quase todas as sociedades africanas, e 0 faro de que elas se estruturam em
pensamento das elites. Para penetrar no mundo dos escravos, outros tipos torno da famllia concebida como linhagem, isto e, como urn grupo de
de informas:ao e metodos de analise sao necessarios. parentesco que tra<;a sua origem a partir de ancestrais comuns.
Ou pelo menos outras leituras. Na verdade, OS observadores da epoca Alem dis so, nao podemos generalizar - ou assim teriamos conclui-
da escravidao nao eram tao cegos - nao tinham urn olhar tao branco as- do ha apenas alguns anos, quando os estudos disponiveis enfatizavam
sim - quanto a analise acima possa sugerir. Embora eles tenham repre- a diversidade dessas sociedades e ofereciam poucas ferramentas para
sentado a vida sexual e familiar do escravo como patol6gica, eles tambem pensar o processo de mudan<;a hist6rica. Trabalhos recentes, no entan-
registraram detalhes que sao passiveis de uma interpreta<;ao diferente. Em to, debrus:ando-se sobre temas de hist6ria comparativa, tern mostrado
e
suma, possivel recuperar no olhar branco urn lar negro coerente com os que, numa vasta area da Africa Central, "a cultura e menos heterogenea
novos dados demogd.ficos. 0 restante deste capitulo se dedica a essa tare- e menos particularista do que gera1mente se supoe - "31 . A cone1usao
- re-
fa. Antes, porem, de embarcarmos nessa analise, e necessaria dizer algumas flete uma mudans:a na pr6pria ideia de "cultura"; em vez de agrupar os
palavras sobre o "territ6rio" em que ela sed. feita: o espa<;o marcado pelo povos da Africa Central, como antes, em varias "areas culturais", dcfi-
encontro entre a heran<;a cultural africana dos escravos e sua experiencia nidas principalmente a partir de considera<;6es sobre a vida material c
no cativeiro. intrincados sistemas de parentesco, esses novos estudos identificam

150 151
"paradigmas", OU pressupostOS basicos, <.JUe subjazcm as idcias e pr~\ticas basicamente "bilateral", no que se refere a defini~ao do parentesco, embo-
nas esferas da religiao e da "familia" 32 . ra tenha tornado formas diferentes (patrilineares ou, principalmente,
Em 1976, por ex~mplo, Willy de Craemer,Jan Vansina e Renee C. Fox matrilineares) de acordo com as circunstancias hist6ricas - ressaltando-se
argumentaram que, "embora as diferen~as entre as religi6es da Africa entre estas a maneira pela qual cada grupo etnico foi integrado ao trafico
Central sejam marcantes, certas constela~6es [ou conjuntos de valores] sao transadantico de escravos34 .
comuns a todas elas". Tais "constela~6es': segundo esses autores, formam Se MacGaffey advoga uma visao mais hist6rica do problema, deve ser
"o nucleo" de uma "cultura co mum" que une varias areas culturais (abar- reconhecido, contudo, que o proprio artigo que ele critica possibilitou esse
cando desde a parte Norte de Angola e Zambia ate a Republica de Gabao tipo de abordagem. Richards, afinal, em bora tenha enfatizado a diversida-
e parte dos Camar6es, incluindo a Republica Democratica do Congo - an- de empirica, tambem relativizou bastante a diferen~a entre sistemas "ma-
tigo Zaire - e a Republica do Congo [capital: Brazzaville]) e que talvez trilineares" e "patrilineares" e entre seus varios subtipos. "Nenhuma socie-
esteja presente tambem em outras regi6es. Os tres autores assinalaram a dade", dizia ela, "e inteiramente matrilinear ou patrilinear no que se refere
importancia, nesse nucleo, dos valores ligados ao conceito de "ventura- a descendencia, heran~a, sucessao e autoridade". Ao contrario, "o sistema
desventura (fortune-misfortune), ou seja, a ideia de que 0 universo e carac- familiar fornece urn equilibrio de interesses e direitos entre os dois !ados
terizado em seu estado normal pela harmonia, pelo bem-estar e pela saude, da familia com uma enfase predominante num lado ou no outro". Ao en-
e que o desequilibrio, o infortunio e a doen~a sao causados pela a~ao ma- fatizar que nas sociedades matrilineares - seu objeto de estudo - esse
levola de espiritos ou de pessoas, frequentemente atraves da feiti~aria. equilibrio e sempre "tenso" (uneasy), ela abriu 0 caminho nao apenas para
Dentro dessa visao de mundo, a manuten~ao de urn estado de pureza ritual, uma classifica~ao das diferentes solu~6es do "quebra-cabe~as matrilinear",
normalmente centrado em objetos ou prepara~6es medicinais consagrados mas tambem, implicitamente, para o estudo dos processos hist6ricos que
(charms), que medeiam a rela~ao entre OS homens e OS espiritOS, e 0 que produziram as diferen~as observadas35 .
garante a realiza~ao das metas culturais mais importantes. Como veremos, Em outro artigo recente, Anne Hilton, como que reagindo ao desafio
as coloca~6es de Craemer e seus colegas ajudam a pensar as possiveis afini- de Richards, estuda a evolu~ao hist6rica desse "equilibrio tenso" entre os
dades entre os escravos da Africa Central no Brasil, inclusive no que diz Bakongo, situados na regiao do baixo rio Zaire e do Norte de Angola (ver
respeito as ideias sobre parentesco33 , Mapa 2 para a localiza~ao dos principais grupos etnolinguisticos mencio-
Craemer, Vansina e Fox chegaram a suas conclus6es atraves de estudos nados neste livro) 36 . De acordo com Hilton, no sistema matrilinear dos
sobre movimentos religiosos especificos, isto e, abstrairam paradigmas Bakongo as rela~6es de "ego" (como dizem os antrop6logos) com pessoas
religiosos a partir do exame de processos hist6ricos. Nao demorou muito da linhagem de seu pai foram sempre significativas ao longo da hist6ria
para que outros auto res fizessem o mesmo com rela~ao a conceitos basicos conhecida desse povo, o que permitiu o surgimento, dentro do contexto
sobre a "familia'' na Africa Central, permitindo que a analise desse tema do trafico de escravos, de grupos interessados em impor urn sistema patri-
avan~asse alem da simples classifica~ao de sistemas de parentesco e da linear37. Schula Marks e Richard Rathbone, comentando os artigos de
tentativa de relacionar as categorias identificadas com condi~6es ecol6gicas Mac Gaffey, Hilton e outros auto res, observam que "a mudan~a de enfase,
ou economicas. 0 antrop6logo Wyatt MacGaffey, por exemplo, numa da matrilinearidade para a patrilinearidade e de volta novamente [para a
critica a urn ensaio classico de Audrey Richards, conclui que "os varios primeira], que observamos no Reino do Kongo, nao deve induzir-nos ao
arranjos estruturais que [... ] [essa autora] percebe como solu~6es diferentes erro de pensar que a estrutura social nao existe [.. .]. 0 que [... ] [os dois
para o quebra-cabe~as matrilinear sao muito menos diferentes do que ela autores] e outros sugerem [... ] e que ha mais espa~o de manobra para os
sup6e e que, ao inves de existirem tantas e tantas tribos diferenciadas por agentes hist6ricos atuarem em situa~6es sociais concretas do que alguns
essas caracteristicas, existe, numa vasta area da Africa Central, essencial- tipos de estruturalismo/funcionalismo permitiriam" 38 . Alem dessa con-
mente o mesmo sistema social". Esse sistema, argumenta MacGaffey, e clusao, contudo, e licito tirar outra. MacGaffey e Hilton, afinal, tambem

152 153
nn...- "'""l"'Y.-"'"' •• ............ ~•••~• .,.,~ ··~·

sugerem que hav1a . pressupostos cu1tura1s. so brc "f'am1'11 a, c "1'1111agem


1 , portados para o Brasil: a de que o conceito basico de linhagem, para as
(ou uma "heran~a cultural" nos termos dos antrop6logos Sidney Mintz e sociedades da Africa Central, e mais importante (ou e urn principia cultu-
Richard Price), comuns a muitas sociedades da Africa Central: pressupos- ral mais profunda) do que a maneira especifica de defini-lo. lsto e, pessoas
tos que condicionavam as "manobras" dos atores hist6ricos, ou que penni- de culturas matrilineares, patrilineares ou bilaterais (tra~ando a linhagem
tiam que suas a~oes discordantes fossem justificadas dentro de urn mesmo que situa socialmente o individuo, respectivamente atraves da mae, do pai
campo discursivo. 39 ou de ambos os progenitores ), reconheceriam, ao encontrar-se, uma "grama-
tica" do parentesco em comum, e estariam dispostas, em situa~oes-limite,
a mudar a maneira de definir a linhagem antes de abandona-la como prin-
cipia organizador da sociedade40 •
Cabo
Lopez f Em vista disso, podemos supor que os africanos trazidos ao Sudeste do
Brasil, apesar da separa~ao radical de suas sociedades de origem, teriam
lutado com uma determina~ao ferrenha para organizar a vida deles, na
medida do possivel, de acordo com a gramatica (profunda) da familia-li-
nhagem. Encontrando, ou forjando, condi~6es minimas para manter
grupos esraveis no tempo, sua tendencia teria sido de empenhar-se na
forma~ao de novas familias conjugais, familias extensas e grupos de paren-
tesco ancorados no tempo. Nesse sentido, os africanos for~ados a "migrar"
para o Brasil teriam procurado agir na sua nova terra da mesma maneira
0
.2 10 que os integrantes de grupos bantu, que deixavam voluntariamente suas
"E
'"'
;;( aldeias de origem (como parte de urn processo secular de migra~ao dirigi-
0
c da a regioes de baixa densidade demografica) para estabelecerem novos
m
<.)
povoados dentro da Africa Centrale Austral. Como observa o antrop6lo-
0
go Igor Kopytoff a respeito desses migrantes internos, "as 'raizes' africanas
15 nao eram concebidas como localizadas num lugar [... ],mas num grupo de
parentesco, nos ancestrais, numa posi~ao geneal6gica. [... ] Os africanos
levam seus ancestrais consigo, quando mudam de lugar, nao importando
onde esses ancestrais estejam enterrados". Ainda segundo Kopytoff, a pes-
soa migrante, "projetando-se essa no~ao [de parentesco] para o futuro,
20
deitava [... ] suas raizes futuras, tornando-se o fundador de urn grupo que
0 Milhas 300
BAKONGO, MBUNDU etc.: grupos etnolinguisticos maiores 0 ainda estava a se constituir"41 •
400
nsundi, mpangu: povos do grupo BAKONGO I
Quilometros Dentro desse contexto, a origem bantu da palavra "senzala'' talvez seja
significativa. Urn dos sentidos atuais de sanzala, em kimbundu (o idioma
Mapa 2 - Costa ocidental da Africa Central: principais grupos etnolinguisticos mencio- dos Mbundu e a lingua franca de uma extensa area em Angola, na epoca do
nados no texto. Baseado no mapa em David Birmingham e Phyllis M. Martin, History of
Central Africa, 2 vols. Londres: Longman, 1983, vol. I, p. 120. trafico de escravos), e "residencia de servi~ais em propriedade agricola'' ou,
ainda, "moradia de gente separada da casa principal": isto e, exatamente 0
Em suma, a bibliografia recente sugere mais uma generaliza~ao sobre o .significado que a palavra adquiriu no Brasil. 0 sentido principal desse vo-
parentesco, relevante sobretudo para os escravos de etnias diversas trans- cabulo, no entanto, e "povoado" - urn significado provavelmente anterior

154 155
aos outros e, nas condic;:6es hist6ricas da Africa Central (on de tun novo mesmo assim eles eram tao interdependemes que ninguem podia ter vivi-
povoado era frequentemente formado por migrantes que cram parentes), do, com bomexito, sem combina-los numa unidade domestica [householdj".
provavelmente carregado da conotac;:ao de "grupo de parentesco" 42 • Enfim, "a unidade domestica [criada pelo casamento] era o centro da ati-
46
A etimologia, no en tanto, nao eo essencial. Sejam quais forem as cono- vidade economica", alem de ser "uma uniao para a criac;:ao de crianc;:as" •
tac;:6es de "senzala" para os cativos, podemos estar seguros de que os novos Focalizemos em primeiro plano, portanto, o casal de escravos, com o
dados demogrificos sobre a familia escrava refletem, em parte, a influencia intuito, porem, de voltarmos, no capitulo seguinte, para o grupo de paren-
da heranc;:a africana. A conclusao se imp6e, mesmo que ainda nao seja tesco maior e para a linhagem. Os estudos demograficos mostram que o
possivel dizer muito sobre como os escravos manipulavam essa heranc;:a, "casamemo" - definido, nos termos de Melville Herskovits, como "uma
fazendo escolhas, como diz Roger Bastide, entre "as 'alternativas de com- uniao sexual sancionada pela sociedade [no caso, a escrava] e formada com
portamemo' que as civilizac;:6es oferecem a seus membros para permitir a intenc;:ao de permanencia"47 - era uma instituic;:ao comum entre os es-
que eles se adaptem a multiplicidade das situac;:6es concretas e ao acaso das cravos nas regi6es cafeeiras, isto e, nao apenas muitos escravos se juntavam
circunsrancias"43 • como casais, mas tambem esses matrimonios, em geral, parecem ter sido
"A multiplicidade das situac;:6es concretas": a frase nos lembra que o bastante duradouros (dentro, evidentemente, dos limites colocados pelas
comportamento e as normas de urn grupo social refletem nao apenas a altas taxas de mortalidade do grupo, e mesmo levando em coma as separa-
cultura herdada mas tambem a experiencia vivida44 • Se os estudos demo- c;:oes de maridos e mulheres por venda, dote e partilhas de heranc;:a, e atos de
gd.ficos sobre a familia escrava suscitam indagac;:6es a respeito das "recor- violencia dos senhores) 48 • Em vista disso, cabe perguntar de inicio: 0 que
dac;:6es", entre os cativos, da heranc;:a africana, eles tambem levantam uma levava o escravo e a escrava a valorizarem e procurarem o casamento?
questao mais abrangente: Quais eram as "esperanc;:as" que os escravos in-
vestiam (ou seja, quais eram as vamagens que eles percebiam, a partir de
sua heranc;:a cultural) na formac;:ao de "familias" no cativeiro? Para respon- 3· Casa e casar-se: a arquitetura das senzalas
der a essa pergunta, OS relatos do seculo XIX sao muito uteis, embora tenham,
evidememente, serias limitac;:oes. Os observadores brancos, com seu olhar .Provavelmente algumas das vamagens do casamento para os escravos - e
"ripido': geralmente registraram apenas os aspectos mais visiveis da cultura nao as menos importantes - teriam sido as de ordem emocional e psico-
material e dos comportamemos individuais, isto e, seus textos raramente l6gica: 0 consolo de uma mao amiga, por exemplo, na luta para enfrentar
nos informam sobre a trama de relac;:6es existentes entre parentes (reais e privac;:6es e punic;:6es. A "mao amiga", comudo, s6 atua de acordo com um
rituais) vivos, que nao se encontravam na mesma familia conjugal, muito determinado conceito de "consolo", que necessariamente atribua significa-
menos sobre a teia que ligava os vivos aos mortos. Enfim, a familia extensa dos ao mundo externo; isto e, as vamagens emocionais e psicol6gicas que
e a familia-linhagem - justamente as formas de parentesco que deveriam a familia teria conferido aos escravos nao podem ser analisadas independen-
ser priorizadas aqui, em vista do que sabemos a respeito das heranc;:as afri- temente de sua vida material e cultural. Precisamos, entao, examinar as con-
canas e das estrategias familiares de outros grupos sociais oprimidos - s6 sequencias do casamento para o dia a dia dos escravos e os val ores que eles
com muita dificuldade podem ser abordadas utilizando-se essas fontes 45 • atribuiam a essas consequencias. Centremos a atenc;:ao nas coisas miudas.
Os relatos do seculo XIX permitem, todavia, uma analise bastante de- Como "casar-se" literalmente significa montar "casa", vale a pena perguntar:
talhada das esperanc;:as dos escravos com relac;:ao a familia conjugal. Esta e Quais eram as implicac;:6es do matrimonio para a economia e cultura do-
a "familia" que mais tern sido examinada nos estudos demogrificos. Ao mestica dos escravos? Mais especificamente, o que podemos "surpreender"
mesmo tempo, e uma instituic;:ao importante nas sociedades africanas. nos relatos brancos e principalmente nos textos de viajantes estrangeiros,
Como diz o historiador John Thornton, a respeito do antigo Reino do que tendem a ser os mais detalhados, acerca da "casa", do "fogo" e da "roc;:a"
Kongo: "os mundos dos homens e das mulheres eram separados [... ],mas escrava - especialmente no que diz respeito as pessoas casadas?

157
Para co~ec;:ar, ha indicios de que dentro do prcdrio "acordo" que os cs- com paredcs de terra, scm janclas e cobertos de palha, sao chamados de
cravos extrarram de seus senhores, o casar-se significava ganhar maior con- senzalas na lingua do pais, e cada negro [sic] tem o seu". A frase em si e urn
trole sobre 0 espac;:o da "moradia''. Embora OS relatos do seculo XIX regis- tanto ambigua, mas as gravuras de Victor Frond, acompanhando o livro
trem uma certa variedade na arquitetura das senzalas nas regi6es de grande de Ribeyrolles, ilustram senzalas compostas de uma sequencia de compar-
lavoura, des tambem deixam entrever que as experiencias de casados e timentos colados, nao barracos separados em fila. Uma destas, ao que pa-
solteiros eram bastante diferentes. Hermann Burmeister, que visitou a pro- rece, e urn pavilhao grande, relativamente bern construido, com teto de
vincia do Rio de Janeiro em 1851, descreve a senzala do tipo "pavilhao": telha (vera Figura 1). Ja a outra (Figura 2) e pequena, abrigando apenas
tres compartimentos, e muito rustica; ao que parece, corresponde aos
Em cada faze~da encontramos pavilh6es compridos, com andar terreo apenas, "compartimentos/ cabanas dispostos em grupo" descritos por Ribeyrolles,
separados em cubrculos de 8 a 10 pes [Fuss, is to e, urn total de 2,7 a 3,4 metros J de embora tambem tenha teto de telha, nao de palha. Na verdade, essa cons-
~argura, tendo cada urn sua saida para o patio. Ela que moram os escravos; os cas ados, truc;:ao e menos urn pavilhao do que urn pequeno conjunto de "comparti-
JUntos num cubkulo, os solteiros 2 ou 3 em cada pe~a, os homens separados das
mentos conjugados". A distancia entre suas portas parece ser um pouco
mulheres. Em geral, ha pavilh6es separados para os homens e para as mulheres.
menor do que a apresentada pela outra senzala desenhada por Frond, a
julgar pelo tamanho dos tipos humanos retratados. Em to do caso, a largura
Como Burmeister afirma que "os casamentos legitimos entre os escravos
dos compartimentos em ambas e mais proxima da medida dada por Bur-
[na provincia do Rio de Janeiro] nao sao tolerados pelos senhores" OS 51
" d , 1 . , meister do que daquela recomendada pelo Barao de Pati do Alferes •
casa os a quem e e se refere aqui deviam ser na sua maioria pessoas vi-
Senzalas-pavilhao, com ou sem varanda, ainda podem ser vistas -=-- ge-
vendo em uni6es consensuais 49 •
ralmente transformadas em depositos, esdbulos etc. -em algumas fazen-
Etam bern esse tipo de senzala-pavilhao que o Barao de Pati do Alferes,
das antigas. 0 historiador Stanley Stein, em seu estudo sobre a sociedade
em sua Memoria sobre a fundapio de uma fazenda (publicada em 1847),
escravista de Vassouras, no Vale do Paraiba, inclui fotografias de uma delas,
recomenda aos fazendeiros do Vale do Paraiba. 0 Barao, contudo, pres-
provavelmente tiradas no final da decada de 1940. A construc;:ao tern uma
creve uma construc;:ao com varanda e com quartos maio res, ou pelo menos
varanda parecida com a recomendada pelo Barao de Pati, mas seus compar-
mais largos. "Deveis fazer [... ] as senzalas dos pretos': diz ele, "voltadas para
timentos parecem mais semelhantes em sua largura aqueles descritos por
o nascente ou o poente, e em uma solinha, se for possivel, com quartos de
Burmeister52 • As senzalas-pavilhao que eu conhec;:o tambern tern (ou tinham)
24 palmos [aproximadamente 5,3 metros] em quadro, e uma varanda, de oito
quartos "padrao Burmeister", ou urn pouco maio res, no que se refere alar-
[1,8 metro] de largo em to do o comprimento". Familias conjugais, de acor-
gura (de 3 a 4 metros), mas apresentam de 6 a 7 metros de profundidade;
do como Barao, deveriam receber urn tratamento diferenciado: "Cada
isto e, em bora suas medidas sejam diferentes das recomendadas pelo Barao
quarto destes deve acomodar quatro pretos solteiros" - urn ou do is a mais
de Pati, seu espac;:o intemo chega perto do tamanho que ele preconizava.
do que na senzala vista por Burmeister - "e se forem casados, marido e
As paredes do lado de frente dessas construc;:oes tern o mesmo aspecto que
mulher com os filhos unicamente" 50 •
as senzalas retratadas por Fronde descritas por Ribeyrolles; nao ha janelas,
Outros depoimentos de viajantes e algumas senzalas ainda existentes
apenas portas. Na parede dos fundos encontram-se janelas atravessadas por
nos fome~em mais informac;:6es a respeito da arquitetura dessas construc;:6es,
barras verticais de madeira (quadradas, nao arredondadas), colocadas bern
embora nao nos falem sobre as diferenc;:as nas moradias de solteiros e casais.
juntas, janelinhas com o mesmo tipo de barras, ou nenhuma especie de
Ribeyrolles, que visitou uma fazenda de cafe na provincia do Rio de Janei-
abertura53 •
ro, em 1858, observou que "os negros da fazenda, casados ou nao, sao alo-
Na senzala-pavilhao, segundo as descric;:6es de Burmeister e do Barao
jados em compartimentos/ cabanas" - a palavra no original, cases, tern
de Pati, o escravo casado tinha urn compartimento identico, em seus as-
ambos esses sentidos - "dispostos em filas alinhadas ou em grupos, de
pectos fisicos, ao do solteiro, embora menos congestionado e (sup6e-se)
acordo com o terreno [... ] . Esses compartimentos/ cabanas, construidos

159
dividido com urn parceiro de sua escolha. Ja os cspac;os para casais e soltci- mcao, na mcsma propricdadc, am bas mostrando nas suas paredes externas
ros eram bastante diferenciados na senzala que podemos denominar de nao cxatamente as "janelas com grades", descritas por Tschudi, mas peque-
tipo "barracao': observada por Tschudi no municipio de Cantagalo, no Rio nas aberturas verticais atravessadas por uma barra horizontaP 5 •
de Janeiro, em 1860. "No patio em que se encontra a casa grande", diz esse 0 texto de Tschudi nao explicita onde se encontravam os compartimen-
au tor, "existem em geral do is edificios compridos, de constrw;:ao primitiva, tos dos escravos Casados. As fotografias de Stein, a primeira vista, dao a
as chamadas senzalas ou habitas:6es dos negros, onde os hom ens sao aloja- impressao de que esses cubiculos estavam dentro da senzala, ou das senza-
dos separadamente das mulheres". Tschudi descreve o plano interno desse las, dos solteiros. Contudo, nao ha nada que indique que as fotos retratem
tipo de senzala com bastante detalhe: ''Ao longo dessas construs:6es estao partes da mesma construs:ao, e o proprio texto de Stein, citado acima, su-
as tarim bas, cerca de tres pes [3 Fuss, ou 1 metro] acima do chao, e no cen- gere fortemente que os quartos dos casais se encontravam ou num outro
tro um corredor bastante largo [... ] . As tarimbas, das quais cada uma mede barracao, abrindo para urn corredor interno, ou alinhados num pavilhao,
2,5 a 3 pes [0,9 a 1 metro] de largura, sao separadas uma da outra por uma com porta dando para fora.
divisao de madeira de 3 pes de altura, tendo na frente uma esteira ou co- Seja como for, fica claro pelos depoimentos de outros viajantes que em
bertor para tapar a entrada do lado do corredor". algumas fazendas, onde os solteiros habitavam barrac6es ou cubiculos
As aberturas nas paredes desse tipo de senzala parecem ter sido semelhan- em pavilh6es, os casais moravam nao apenas em construs:6es separadas,
tes as da senzala-pavilhao: ''As senzalas possuem janelas com grades, ou mas tambem provavelmente em barracos ou cabanas individuais. De
entao, em vez de janelas, uma abertura abaixo do teto, a 12 pes [4,1 metros] acordo com Emilio Giglioli, que em 1865 visitou uma fazenda com 300
acima do solo, que permite a ventilas:ao e a iluminas:ao suficiente para todo cativos, no Vale do Paraiba, os escravos tinham "uma casinha por familia";
o recinto". Dentro do barracao, "as crians:as men ores dorm em com as maes, isto e, "aqueles [escravos] de sexo oposto que estao juntos tern uma habi-
as maiores possuem suas tarimbas individuais, dormindo em geral duas tas:ao separada e se dizem casados, os outros vivem misturados como qual-
crians:as em cada uma". Em contraste, "os negros casados vivem em recintos quer animal domestico [sic]" 56 • Parecida, porem mais informativa, e a
menores" - isto e, menores do que o recinto do barracao -, "devidamen- descris:ao de Francis Castelnau, que em 1843 esteve em Minas Gerais numa
te separados". Como Burmeister, Tschudi tambem nota que os casamentos fazenda com 200 escravos, nao longe de Paraiba do Sui na provincia flu-
legitimos entre escravos eram muito raros, em bora observe que "o fazendei- minense. Segundo Castelnau, cada par de conjuges habitava urn "domid-
ro permite que OS pares [... ] vivam juntos"; portanto, e provavel que OS lio independente", enquanto "a maior parte dos outros [escravos] vivia
"casados" aos quais ele se refere fossem principalmente pessoas unidas em numa grande casa dividida em quartos de seis pes [6 pieds, ou 2,0 metros]
matrimonios consensuais 54• De fato, as observas:6es de Tschudi se referem quadrados [sic], contendo cada um seis individuos" 57 • (Evidentemente,
a Cantagalo, que tinha, na epoca, OS indices mais baixos de Casamento Castelnau quis dizer que os quartos tinham "seis pes de cada lado"; ainda
formal entre escravos em todo o Vale do Paraiba (ver capitulo 2). assim, ele provavelmente subestimou a medida, ja que seis individuos nao
A descris:ao de Tschudi nao deixa duvidas; tras:a uma diferens:a nitida podiam ter dormido no espas:o assinalado nero em tarimbas-beliche.)
entre os barrac6es dos solteiros, sem divis6es internas expressivas, e os espa- Ja Maria Graham apenas indica que os casais moravam em "cabanas" e
s:os separados dos casais. Stein, provavelmente baseando-se em entrevistas que estas se localizavam juntas, separadas das moradias dos solteiros. Em
com ex-escravos e em visitas a senzalas ainda existentes em Vassouras, 1822, ao passar urn domingo na Fazenda/Engenho de As:ucar Nossa Se-
descreve as moradias dos cativos de forma praticamente identica, distin- nhora da Luz, perto da cidade do Rio de Janeiro, Graham ouviu "a voz dos
guindo os "cubiculos sem janelas" dos casais das "senzalas separadas e sem escravos, em noite de ferias, enganando seus sofrimentos com cantigas
divis6rias" para homens e mulheres solteiros. 0 mesmo autor apresenta estranhas tocadas em rudes instrumentos africanos. [... ] [F]ui logo as ca-
tambem uma fotografia de urn "cubiculo de senzala'' na Fazenda Cachoeira banas dos escravos casados, onde se realizava a funs:ao, e encontrei os
Grande, em Vassouras, e outra de uma senzala possivelmente do tipo bar- .
grupos a bnncar, a can tar e a dans:ar a'1uz da 1ua"58 .

160 161
......
0\
1:-.)

Figura 1- Senzala-pavilhao. "Avant le depart pour la ror;a [Antes da partida para a ro<;:al': litografia de Ph. Benoist a partir
de fotografia de Victor Frond, in Charles Ribeyrolles, Brazil pittoresco: historia-descripr;oes-viagens-instituir;oes-colonisar;fw,
edi<;:iio bilingue (frances-portugues), 2 vols. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1861, vol. II (album de litografias) s.p.
Fonte: Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

......
0\
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Figura 2- Senzalas-compartimentos/cabanas dispostas em grupo. "Cases a negres [Senzalas]", litografia de Ph. Benoist a
partir de fotografia de Victor Frond, in Charles Ribeyrolles, Brazil pittoresco... Fonte: Biblioteca do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP. ·
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Figura 3 - Senzala -barraco. "Habitation de negres [Habitac;:ao de negros] ", litografia de I. L. Deroi com base em urn desenho
de Rugendas, in Johann Moritz Rugendas, Voyage pittoresque dans le Bresil. Paris: Engelmann & Cie., 1835, 4' divisao, Pran-
cha 5, s.p. Fonte: Biblioteca do Institute de Estudos Brasileiros da USP.

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Figura 4- Senzalas-barracos. "Feitores corrigeant des negres ala rot;:a [Feitores corrigindo (sic) negros na roc;:a]".
Aquarela sobre papel: 15 x 19,8 em, J.-B. Debret, Rio de Janeiro, 1828. Fonte: Museus Castro Maya.
Graham nao diz como moravam os soltciros ncssa propricdadc. Elcs nao deixa duvidas quanto a isso, notando que era permitido aos recem-
podem ter sido alojados em senzalas-barrac6es ou pavilhoes, mas e possivel casados "construir[em] sua casinha" 64• As observas:6es de G. W Freireyss,
tam bern que tenham morado em pequenas cabanas, como os casais. Ja de 1814-1815, tambem sao sugestivas, embora provavelmente nao digam
vimos que Ribeyrolles e Frond registraram a existencia de uma morada de respeito as areas de grande lavoura do Sudeste, mas a regiao de Ouro Preto
escravos composta de "compartimentos conjugados" (Figura 2) a meio em Minas Gerais. Segundo Freireyss, "os escravos moram em casinhas de
caminho entre a senzala pavilhao e a senzala formada de urn conjunto de barro, perto da casa da Fazenda", e o cativo pode "considerar-se feliz se o
barracos. Outros observadores, entretanto, falam apenas de cabanas ou senhor lhe permitir casar e construir para si e sua familia uma cabana" 65 •
casebres separados. Rugendas, apresentando suas pr6prias observas:oes na 0 que chama a atens:ao na maioria desses depoimentos e que 0
decada de 1820 ou as de outro viajante europeu sobre as construs=6es tipicas casar-se- mesmo sem o ritual da Igreja, se acreditarmos nos relatos
de uma fazenda de cana (nao se sabe se no Rio de Janeiro ou no Nordeste), de Burmeister, Tschudi e Giglioli - conferia acesso a urn espas:o cons-
fala dos "casebres dos negros, que com freqiiencia correm paralelamente truido proprio, seja urn cubiculo num barracao/pavilhao, seja urn barraco
em dois lances, comes:ando na altura da casa grande e formando, assim, separado. Mesmo nao sendo necessariamente maior do que os cubiculos
uma especie de patio". Trata-se aqui, possivelmente, de senzalas-pavilh6es, (nos barrac6es), os compartimentos (nos pavilh6es) ou os casebres dos
se por "lance" se entende que os "casebres" estavam colados uns aos outros. solteiros, a moradia da pessoa casada - ou pelo menos da recem-casada,
Em todo caso, Rugendas deixa claro que nas propriedades menores, "onde sem filhos- geralmente congregava menos gente: muito menos, sea si-
apenas se cultiva mandioca, milho, feijao ou algodao", bastavam "algumas tuas=ao descrita por Castelnau (de seis solteiros por compartimento)
choupanas para os negros" 59 • fosse co mum. Alem disso, e mais importante, era uma habitas=ao divid1da
Alfonso Lomanaco, que esteve no Brasil em 1885, diz que "nas grandes com urn parceiro de vida, nao apenas de ros:a. Enfim, o casar-se frequen-
'fazendas"' os escravos dormiam em senzalas que, pela sua descris:ao, eram temente implicava para o escravo ganhar mais espas:o construido; mas,
claramente do tipo barrac:io, mas "mais comumente" -fora, sup6e-se, das sobretudo, significava apoderar-se do controle desse espas:o, junto com o
propriedades maiores - "eles vivem em cabanas ('choupanas')" 60 • Outros conjuge, para a implementas=ao de seus pr6prios projetos.
viajantes, contudo, descrevem arranjos semelhantes mesmo em fazendas "Projetos!': diri o leitor; "mas quais projetos podiam ser realizados
grandes. Robert Walsh, que visitou uma senzala numa fazenda de gado dentro de urn espas:o ainda tao mesquinho e acanhado quanto o da habi-
com "uma centena de negros" na regiao da serra do Couto (acima de Mage tas=ao de urn escravo cas ad o? "0 ra, sem d'uv1'da a1guma, o "cu b'ICU1o ",
e Freichal, no Rio de Janeiro), em 1829, achava que ela "lembrava exatamente "compartimento" ou "casebre" desse escravo deixava muito a desejar. 0
urn kraal dos hotentots. Compunha-se de quarenta ou cinqiienta choupa- pequeno recinto na senzala-barracao ou pavilhao, fotografado por Stein,
nas dispostas em circulo" 61 • Adele Toussaint-Samson, que visitou uma deve medir 2 por 2 metros, ou 3 por 2 metros no maximo: bern menos do
grande fazenda no Rio de Janeiro, por volta de 1880, observou que "em que o padr:io recomendado pelo Bar:io de Pati do Alferes. Com suas duas
frente a casa[-grande] [... ], arranjadas num circulo, estavam as senzalas (as aberturas verticais na parede, atravessadas no meio por uma barra horizon-
palhos:as) dos negros, ao numero de 70 mais ou menos" 62• Finalmente, Ina tal, ele tern a exata aparencia de uma cela num presidio. As choupanas
von Binzer, escrevendo sobre sua visita a uma fazenda de cafe com 200 tambem, segundo os viajantes, eram pequenas e de construs=ao inferior a
escravos, tam bern no Rio de Janeiro, em 1881, fala apenas das "cabanas dos das melhores senzalas-barrac:io e pavilhao. A "habitas=ao de negros", repre-
pretos': nao mencionando senzalas-barrac6es ou pavilh6es63 • sentada numa gravura de Rugendas (vera Figura 3), tern planta retangular,
Lomonaco, Walsh e Toussaint-Samson nao fazem referenda a escravos que nao deve exceder 3 por 2 metros, a julgar do tamanho das figuras hu-
casados, e Binzer praticamente s6 fala deles, sem contudo dizer explicitamente manas no quadro. Sua construs=ao talvez seja acima da media para esses
que os casais habitavam seus pr6prios barracos. Ja Rugendas, baseando-se barracos; ela e feita, praticamente sem lugar para duvidas, de pau a pique,
em suas pr6prias observas:oes ou repetindo uma frase de outro viajante, sendo refors:ada com vigas nas quinas e nos do is lados da entrada. 0 teto,

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baixo, elaborado de frondas de palmeira, e de dttas ;\guas, caindo para OS bre se possivel ainda mais malfeito. "Olhamos para a primeira cabana'', diz
lados mais compridos da casa. A choupana nao tem chamine e nao ha ja- ela, "uma especie de arma<;ao das mais grosseiras, feitas de dbuas e reco-
nelas, pelo menos nos dais lados retratados 66 • berta par uma esteira de palha de milho". 0 barraco, que aparentemente
Barracos de escravos tam hem podem ser vistas, ou melhor, vislumbra- nao passava de um "comodo", tambem estava "sem janelas". Completando
dos a distancia, no fundo de uma aquarela de Jean-Baptiste Debret, junto o quadro de vida material predria, Binzer tra<;a o retrato mais detalhado
a um grupo de pessoas que lhes permite tirar a medida (Figura 4). Essas que temos de objetos no interior de um barraco de escravos: "um cobertor
"cabanas habitadas pelos negros': como Debret as chama, sao praticamen- de la, vermelho, um bauzinho de latao, uma mesa indescritivelmente pri-
a
te identicas choupana de Rugendas, pelo menos naqueles detalhes mais mitiva, alem de algumas panelas, pratos e pequenos utensilios, eram a
grosseiros que podem ser percebidos. Sao pequenas (talvez menores do que unica ornamenta<;ao" 68 •
a de Rugendas), retangulares, sem chamine e com teto baixo de duas aguas, Alem de apertadas, sem janelas e frequentemente mal construidas, as
caindo sobre os lados mais compridos. Como no caso do barraco de Ru- habita<;6es dos escravos eram comumente trancadas a noite. De acordo
gendas, e num desses lados que esd a entrada. Duas dessas cho<;as, no en- com Tschudi, as senzalas do tipo barracao "ficam abertas ate as 10 horas da
tanto- ada direita e a do centro-, parecem ter janelas, alga excepcional, noite, havendo ate hi, um convivio misto nas mesmas. A um sinal dado par
como veremos. 0 tipo de constru<;ao e o material do teto nao podem ser uma campainha, os homens e as mulheres se retiram, cada qual para a sua
habita<;ao, e o guarda as fecha achave, abrindo-as na manha seguinte" • A
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identificados67•
Os barracos de escravos retratados verbalmente par viajantes, mesmo pratica tambem era frequente na senzala-pavilhao e ate mesmo em cons-
na segunda metade do seculo XIX, tambem se assemelham acasinha dese- tru<;6es mais predrias. Nos "compartimentos/cabanas" descritos pelo·
nhada par Rugendas, ou sao mais n1sticos ainda. Como ja vimos, as sen- frances Ribeyrolles, os escravos - casados e solteiros - "dormiam debai-
zalas observadas par Ribeyrolles, chamadas par n6s de "compartimentos xo de chave como os condenados em nossas penitenciarias". Essa "medida
. d
conJuga os ," "constrm'das com pared
eram es d " - isto e, d e pau a
e terra de carcereiro", segundo o viajante, "e quase geral. Ela tem par fim prevenir
pique, se nos ativermos agravura de Frond (Figura 2) - e estavam "sem as evasoes, os encontros de sedi<;ao ou de am or, as intemperan<;as e fadigas
janelas e cobertas de palha". Lomonaco descreve uma cho<;a semelhante, noturnas que abateriam as for<;as, perturbariam a disciplina e estragariam
coberta de "feixes de palha" e tambem construida de pau a pique: "suas o grupo de trabalho" 70 • 0 fazendeiro interlocutor de Binzer da uma expli-
paredes sao feitas de varas e ramos de arvores empastados com lama': Walsh ca<;ao semelhante, ao ser indagado par que as choupanas dos escravos nao
retrata constru<;6es mais predrias que as de Rugendas e desses outros au- tem janelas: "Com certeza, no come<;o isso foi determinado para impedir
tares: "As cho<;as eram muito toscas, feitas com pause cobertas com folhas as fugas, pais as janelas nao podem ser hem fechadas como as portas. Mas
de palmeira, e seu teto era tao baixo que s6 no centro dela [sic] uma pessoa agora o preto ja se acha tao acostumado, que ao ser libertado, construindo
conseguia manter-se perfeitamente ereta. Um tabique feito de vime tran- sua propria cabana, tamhem nao lhe abre janelas"71 • Deixo para co mentar
<;ado dividia as choupanas em dais comodos [... ]; uma porta de taquara mais adiante a preciosa sugestao de que o liberto preferia viver sem janelas
tran<;ada vedava a entrada". As "palho<;as" (chaumieres) observadas par porque se havia habituado aescravidao. Aqui, quero assinalar apenas que
Toussa~nt-Samson eram ate piores, se aceitarmos sua descri<;ao ao pe da a fala do anfitriao de Binzer e um tanto ambigua, ja que nao deixa clara se
OS barracos nessa fazenda ainda eram trancados anoite ou nao. No minima,
letra. ''A chamada do feitor': diz ela, "cada um [dos escravos] emergia de
sua pobre senzala, especie de cabana feita de terrae lama, com folhas secas contudo, sugere que isso era a pratica em anos anteriores.
de bananeira para teto". Tratava-se de uma "habita<;ao triste, onde a agua Em suma, o quadro tra<;ado acima nao e muito alentador. De fato, e
penetra quando chove, [e] onde o vento sopra de toda parte ", apesar de ela bastante chocante, mesmo quando colacado na pinacoteca das sociedades
"nao ter [abertura para] chamine nem janela''. Binzer, visitando uma fazen- escravistas e comparado com retratos de outras senzalas. No Sul dos Esta-
da onde o senhor se gabava de tratar hem a seus cativos, descreve um case- dos Unidos nesse periodo, habita<;6es de escravos do tipo barracao ou

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pavilhao eram pouco comuns e em geral as cabanas (scrvindo normalmcn- na ao avistar pela primeira vez urn homem branco - e, em seguida, com
te para uma familia ou para escravos solteiros) eram maiores e provavel- quase o mesmo grau de assombro, relata que "as janelas das casas tambem
mente menos congestionadas, tinham chamines e janelas, e nao eram pareciam estranhas, pois era a primeira vez em minha vida que via casas
trancadas a noite 72 • com janelas" 76 •
Ha de reconhecer, contudo, que, em certos aspectos importantes, as Algumas dessas semelhan<;:as entre as choupanas dos escravos e os padr6es
habita<;:6es dos escravos brasileiros - especialmente as choupanas - nao das constru<;:6es africanas podem ter refletido, em primeira inst:lncia, os
divergiam muito de padr6es africanos: urn fato importante, dado o afluxo limites de tempo, de material e de desenho arquitetonico impastos pelos
continuo ate 1850 de grande numero de escravos no trafico transadantico senhores, nao as decis6es dos cativos. A falta de janelas, por exemplo, pode
e, portanto, a forte presen<;:a de valores culturais africanos, mesmo ate a ter sido determinada, de fato, "para impedir as fugas", como declarou o
epoca da Aboli<;:ao. Segundo o folcloristaJohn Vlach, "do Senegal ao longo fazendeiro, interlocutor de Binzer, e como parece ter sido o caso nas sen-
da costa da Guine, e descendo a costa ocidental da Africa Central, estende- zalas-barrac6es e pavilh6es. Nesse caso, contudo, a imposi<;:ao teria coin-
se uma zona que e de uma coerencia impressionante" em termos de sua cidido com as preferencias dos escravos, ou pelo menos com as preferencias
ecologia, agricultura e certos aspectos culturais. Portanto, "nao e de causar iniciais dos cativos africanos. Estes, sem duvida, se calaram para aproveitar-
surpresa [... ] que a arquitetura des sa vasta zona tam hem possua semelhan<;:as se da situa<;:ao. Da mesma forma, eles e seus companheiros crioulos prova-
basicas': Uma destas, segundo Vlach, e a cho<;:a retangular, com teto de duas velmente imprimiram suas marcas nas senzalas, naquilo que nao estava
aguas. Outra eo pequeno tamanho 'dos comodos: "Na regiao da bafa de sujeito a limites ou padr6es alheios.
Benin, usam-se constantemente unidades de 9 por 9 pes [2,7 por 2,7 metros J; Os relatos de dois viajantes ingleses - Robert Walsh e Annie
essas dimens6es sao comparaveis as das unidades de 10 por 10 pes [3,0 par Brassey - sao sugestivos a esse respeito. Na fazenda visitada por Walsh
3,0 metros] e de 8 por 8 pes [ 2,4 por 2,4 metros] encontradas em Angola. em 1829, as choupanas dos escravos estavam divididas em dois comodos:
Urn rapido levantamento de plantas de casas na Africa Ocidental revelou "Num deles cabia apenas uma cama, armada sobre paus, no outro ardia urn
que 0 tamanho medio dos quartos era de 10 pes de cada lado" 73 • fogo, que era mantido permanentemente aceso mesmo nos dias mais
As casas tradicionais dessa regiao tambem sao normalmente baixas, tern quentes" 77 • Essa distribui<;:ao do espa<;:o nao era a unica que existia nem
0 teto coberto de colmo ( isto e, de palha, "sape': ou outro material vegetal necessariamente a mais co mum; Binzer, afinal, da a entender que as cho<;:as
entrela<;:ado) e nao tern janelas 74 • Essas caracteristicas, em seu conjunto, observadas por ela tinham apenas urn co modo. 0 interessante na descri<;:ao
muitas vezes foram vistas com estranheza pelos europeus. Urn religioso de Walsh, contudo, e que ela coincide com urn plano de divisao e utiliza<;:ao
frances, par exemplo, descreveu as habita<;:6es no Reina do Kongo, no do ambiente intetno que e comum nas constru<;:6es tradicionais tanto da
inkio do seculo XVIII, em termos que lembram muito OS dos viajantes no Africa Ocidental quanta da Africa CentraF8• Po demos to mar como tipica
Brasil, quando retratavam as choupanas dos escravos: '~s casas, no que diz a descri<;:ao de Manoel Antonio Tome, feita em meados do seculo XX, a
respeito a suas dimens6es, podem ser comparadas a uma [sicJpequena cela respeito das "cubatas" (choupanas) de urn povo mbundu (falante de kim-
de [monge] capuchinho. Sua altura e tal, que a cabe<;:a de uma pessoa em pe bundu), os "Ginga'' (Njinga), localizados ao norte do rio Cuanza, em
alcan<;:a o teto por assim dizer. As portas sao muito baixas [... ].As casas nao Ango1a, e "muito arasta
£ d os d os 1ugares ond e v1ve . 1a o europeu"79 .
. ou Clrcu
recebem outra luz alem daquela que entra pela porta. Nao ha janelas" 75 • Ap6s descrever a cubata mais comum, sem divis6rias, Tome nota que
No seculo XIX ha urn depoimento semelhante a respeito de janelas, s6 "muitas cubatas tern uma divis6ria para dormida, ficando a entrada para
que as avessas: o relata de urn africano, descrevendo seu primeiro contato cozinharem, comerem as refei<;:6es e receberem as visitas".
com a arquitetura europeia. Mahommah G. Baquaqua, urn escravo da 0 relata de Tome e sugestivo, tambem, pelo que diz sobre a cama dos
Africa Ocidental que foi capturado e enviado como escravo ao Brasil, depois Njinga. Se, nas cubatas mais simples, os habitantes "[d]eitam-se no chao,
de 1831, registra o impacto que sentiu num povoado perto da costa africa- sobre uma esteira ou embrulhados em cobertores, [... ] [n]as cubatas com

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divisoria para dormida, [eles] tem tarim bas que constrocm com 'forquilhas' num tronco da mesma grossura, terminando em forquilha. Ora, a utiliza-
de 40 a 50 centimetros, fora da terra, sabre as quais formam estrados, [... ] s:ao de forquilhas para sustentar os paus da cumeeira e dos lados de u~a
para estenderem as esteiras onde dormem" 80 . A cama considerada ideal casa e tipica de uma area extensa em Angola e na regiao do Congo. Joachtm
pelos "Sundi" (Nsundi), uma etnia bakongo estudada pelo missionario/ John Monteiro, por exemplo, descrevendo os "Mushicongo" ~~wissik~~­
etnologo Karl Laman entre 1891 e 1919, como tambem a cama dos Ovim- go ), um povo bakongo, num livro publicado em 1875, nota que os matenats
bundu, descrita pelo antropologo Wilfrid Hambly em1934, eram pratica- para suas chos:as crescem em redor deles na maior abundancia, alguns paus
mente identicas ados Njinga, inclusive no detalhe dos suportes em forma em pe, com forquilha, formam as paredes, e sustentam outros formando o
de forquilhas 81 . Seu uso parece ser extenso e antigo. Luis Antonio de Oli- teto"86. Karl Laman, estudando a vida de outro grupo de Bakongo, os
veira Mendes, em uma memoria sobre o trifico de africanos de Angola para Nsundi, deixou uma descri<;:ao semelhante: "0 teto [da choupana] e susten-
o Brasil, publicada em1812, descreve os jiraus, as camas nas casas africanas, tado porum comprido pau de madeira, apoiando-se sabre pastes com um
que repousavam em "quatro forquilhas de pau" 82. No seculo XIX, a palavra entalhe [notch] na ponta de cima'' 87 . Trata-se de uma variante do mesmo
era usada no Brasil para descrever um "leito de varas sabre forquilhas", padrao arquitetonico, como explicitou Adolphe Cureau, um a~m.inistrador
usada por cama pela popula<;:ao mais pobre e tambem como "guarda-co- do Congo frances: "Nas suas pontas superiores, os pastes verucats [de uma
mida da sanzala [senzala]" no Rio de Janeiro 83 . Enfim, ate a cama descrita casa] terminam em forquilha ou recebem um entalhe, para receber os
por Walsh, "armada sobre paus': parece ter sido feita de acordo com um membros horizontais"88. Os exploradores H. Capello e R. Ivens nos legaram
modelo africano. um registro iconogrifico desse processo de constru<;:ao. No relat~ de sua
0 relata de Annie Brassey indica que os escravos tambem estavam viagem pelo interior de Angola, entre 1877 e 1880, De Benguella as terras
acostumados a utilizar suportes com forquilhas para outras finalidades 84. de Jdcca, eles retratam a "constru<;:ao do quilombo"- isto e, de um acampa-
Em 1876, numa viagem ao redor do mundo, Brassey visitou uma fazenda mento seu - , mostrando os trabalhadores carregando e erguendo troncos
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de cafe no Brasil, alcanpda a partir de Petropolis. Seu texto sabre a visita de arvores, varios dos quais terminando em forquilhas (ver Figura 6) . Mas
e bastante pobre em informas:oes. Em compensas:ao, a gravura que acom- eManuel Antonio Tome, escrevendo sabre as habita<;:6es tradicionais dos
panha seu relata, representando a "vila dos escravos" nessa fazenda, e ex- . Njinga, que prima na descri<;:ao dessas tecnicas de constru<;:ao. Segundo
traordinaria (ver Figura 5) 85 . esse autor, para levantar suas cubatas retangulares, os Njinga
No geral, a gravura de Brassey confirma as informa<;:6es e os retratos
abrem primeiro as respectivas covas, distanciadas umas das outras aproximadam~nte
deixados por outros viajantes. As constru<;:6es sao simples, cobertas de urn metro e vinte centfmetros e nelas metem uns paus mais ou menos na verncal,
colma, nao tem chamines e nao mostram janelas. Sao mais altas, contudo, tendo na extremidade que fica para cima, uma ramifica<;:ao em V, cujas pontas ficam
do que as choupanas descritas por Walsh e as retratadas por Rugendas e com 15 a 20 centfmetros [de] "forquilhas".
Deb ret. Seu espa<;:o interno tambem parece ser mais amplo do que o normal, [...]As extremidades em V ficam voltadas umas para as outras, ~ara poderem
mas essa observa<;:ao em si vale pouco, ja que o texto de Brassey nao traz receber os "mocambos" de fora, que sao outros paus colocados honzontalmente
nenhuma informas:ao sobre as possiveis divis6es nesses barracos ou o nu- sobre as "forquilhas" e correspondem aos fechais, nas nossas constru<;:6es.
mero de seus habitantes. No canto superior a esquerda, vislumbramos, No meio da cubata sao abertas mais duas covas iguais e ai espetadas duas "for-
quilhas" muito mais altas, prontas a receberem outro "mocamb" o, que correspon-
talvez, uma senzala-pavilhao primitiva com alpendre e varias portas, ou
90
ded. ao pau de fileira .
confundimos, possivelmente, linhas e sombras aleatorias com nossa imagem
dos "compartimentos conjugados" de Ribeyrolles, Frond, Barao de Pati.
Ainda segundo Tome, os Njinga fazem a estrutura do teto que segura
Seja como for, ha um detalhe nessa gravura que esti absolutamente
colma com paus, "cujas extremidades assentam, uma no 'mocambo' do
clara. A cumeeira da choupana no primeiro plano do quadro consiste de 0
meio [a cumeeira], outra nos de fora, ou uma nos de fora e outra nos paus
um tronco de arvore que esti apoiado, pelo menos em uma de suas pontas,

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Figura 5- Senzalas: constru~ao com pau de cumeeira (mukambu) apoiado em forquilha.
"The slave village [Avila dos escravos], fazenda, Santa-Anna': gravura em madeira feita
a partir de urn desenho de A. Y. Bingham, in Annie Brassey, A Voyage in the "Sunbeam",
Our Home on the Ocean for Eleven Months, 8' ed. Londres: Longmans Green, 1879, p. 56.
Fonte: Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

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rinc6es" (as madeiras que ligam as duas pontas do mocambo do mdo aos te, 0 sentido conferido as construs;6es - isto e, a definis;ao de como se
mocambos das paredes laterais). A tecnica e diferentc da usada na scnzala usavam espas;os internos e externos - nao teria mudado muito na passagem
retratada no livro de Brassey, em que os paus transversais do teto, clara- da Africa para o Brasil, em vista dos proprios limites materiais colocados
mente visiveis na choupana ostentando a forquilha e na primeira casa a pelo cativeiro. Os viajantes, na sua maioria, nem sequer se preocupavam
direita, correm paralelos aos "mocambos': Contudo, uma gravura do final em decifrar esse sentido, insistindo em perceber as senzalas atraves de
do seculo XVIII, retratando a casa do Ma-Kayi (especie de chefe graudo) lentes etnocentricas e burguesas. Teimavam, por exemplo, em ver os espa-
de Cabinda, uma regiao de cultura bakongo, mostra uma estrutura de teto s;os construidos dos escravos como "moradias" ou "habitas;6es" - termos
a
quase identica das choupanas de Brassey91 . Portanto, nao teriam faltado que nos, tambem, utilizamos ate aqui como uma primeira aproximas;ao,
referencias africanas nem para esse detalhe das construs;6es na "vila dos mas precisamos agora qualificar para nao cair na mesma incompreensao
escravos". Em todo caso, o "detalhe" estava subordinado aqui a um coned- de detalhes arquitetonicos, como a falta de janelas, evidenciada por Binzer
to arquitetonico mais amplo, coerente com padr6es africanos. 0 aspecto e seu amigo fazendeiro. Como escreve Julius F. Gluck, em seu estudo sobre
geral das casas retratadas no relato de Brassey- alem de sua falta de jane- a arquitetura tradicional africana,
las, suas dimens6es e 0 angulo de caimento das duas aguas da cobertura de
colmo -lembr~ muito as construs;6es "tradicionais" (do tipo retangular) do ponto de vista de uma hist6ria do desenvolvimento, a chos;a nao e urn espas;o
encontradas na Africa Central, desde pelo menos o seculo XVIII 92• para morar, porem urn espas;o para dormir e, quando necessario, urn abrigo contra
E significativo o nome dado po.r Tome aos paus horizontais das casas, efeitos climaticos. Depois que o homem se tornou sedentario, o fogo, os fornos e
sustentados nas forquilhas. Na verdade, mukambu quer dizer "pau de filei- os pequenos animais tambem teriam sido levados para dentro do abrigo. 0 faro de
que nao havia verdadeiros lugares de moradia ja e confirmado pela completa ausen-
ra': ou "cumeeira': nao apenas em kimbundu, a lingua dos Njinga e outros
cia de janelas. A luz penetra apenas atraves da abertura da entrada.
povos mbundu, mas tambem em kikongo, o idioma dos Bakongo93 . Os
A chos;a primeva e projetada para o dormir deitado, ou, no maximo, para urn
escravos fugitivos no Brasil, ao escaparem para o mato, levavam seus mo- ser humano sentado; nao e feita para urn homem em pe. Portanto, podemos nos
cambos nao apenas na cabes;a, como herans;a linguistica, mas tambem as aproximar ao dimensionamento espacial dessa arquitetura primeva apenas atraves
vezes literalmente no ombro; mukambu em kimbundu tambem tem o de nosso conceito de "quarto de dormir" 97 •
significado de "pau com que dois carregadores transportam ao ombro
. pesad as", ou "suporte "94. Ch egan d o ao seu d estino, eles construiam
cmsas 0 arquiteto/historiador Carl Anthony faz observas;6es semelhantes.
seus "quilombos"- acampamentos (de guerreiros)- utilizando as tec- Ao comentar a surpresa de urn viajante - dessa vez no Sui dos Estados
nicas a sua disposis;ao, incluindo certamente aquelas apreendidas na Afri- Unidos- diante de cabanas de escravos com interiores excepcionalmente
ca95. Ao que parece, o "pau de fileira': sem duvida acompanhado de seus pequenos (3,7 metros de cada lado, no maximo), Anthony ironiza: "Se ele
suportes verticais terminando em forquilhas, era tao importante para os tivesse percorrido a Africa Ocidental, teria visto muitas construs;6es de
fugitivos na construs;ao de suas casas, que seu nome - "mocambo" -pas- escala semelhante utilizadas apenas como lugares para armazenamento, ou
sou a ser sinonimo de "quilombo" 96. A gravura de Brassey mostra literal- para dormir. La, o clima e os costumes sociais permitem que a maio ria das
mente a presens;a do mocambo na propria senzala. atividades familiares sejam praticadas fora de casa'' 98 .
Em suma, as dimens6es dos comodos das senzalas brasileiras e frequen- Gluck e Anthony talvez subestimem a import:lncia do espas;o construi-
temente seus materiais, tecnicas de construs;ao e plano interno nao teriam do na Africa; afinal, dormir e armazenar sao atividades sociais importantes,
sido totalmente estranhos aos escravos, dadas as coincidencias entre certas como tambem o sao as priticas ligadas ao fogo ou forno, localizado, segundo
imposis;6es de seus donos e sua herans;a africana, e considerando-se que Gluck, no interior da chos;a. Suas observas;6es, contudo, oferecem urn cor-
eles mesmos frequentemente tinham o poder de decidir sobre alguns as- retivo aos preconceitos burgueses da maio ria dos viajantes, permitindo que
pectos de suas habitas;6es. Alem disso, no entanto, e talvez mais importan- vejamos os retratos das senzalas com outros olhos. Percebemos agora, por

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exemplo, que quem intuiu perfeitamente como os escravos entendiam c pensar que no Brasil o trancarnento das portas das senzalas nao era uma
usavam seus barracos foi Rugendas. Ele intitulou sua gravura de "Habita~fio medida muito eficaz, ja que sao abundantes os casas de escravos que fugiam
de negros" (ver Figura 3) com a intencrao nao de retratar apenas a constru- de suas habitacr6es a noite, para se apropriarem de pequenas quantidades
~ao, como Binzer teria entendido, mas tambem de mostrar o espa~o em de cafe e negocia-las nas vendas locais, ou para realizarem "as evas6es, os
volta dela; o "habitar': em seu quadro, se realiza principalmente em frentc encontros sediciosos e as entrevistas de arnor" etc., de que fala Ribeyrolles.
a choupana, on de varias pessoas trabalham em tarefas domesticas ou ane- Tais fugas nao sao muito surpreendentes, dado o padrao de construcrao das
sanais, cuidam de criancras, descansam, relaxam ou brincam99 • senzalas. Stein relata o caso de urn escravo em Vassouras que frequente-
Nao e minha inten~ao sugerir com essas compara~6es que os escravos mente saia da senzala a noite pelo telhado, removendo (e, sup6e-se, reco-
no Brasil desfrutavam de urn "born espacro" nas senzalas, ou que sentiarn locando, na volta) as telhas de ceramica. Mais revelador ainda eo caso em
que estas se enquadravam perfeitamente dentro dos padr6es da arquitetura Campinas de urn escravo, suspeito de ser o autor de urn assassinato, que,
africana. Seria absurdo afirmar isso por varios motivos. Para come~ar, as "ao sentir que se tocava na porta da senzala [para chama-lo ], evadira por
~escricr6es citadas acima a respeito das dimens6es dos espa~os intern as na urn buraco" 102 • Contudo, mesmo sea tranca na porta da senzala fosse to-
Africa se referem apenas a comodos; nao dizem nada a respeito do m'tme- talmente inutil como medida de segurans;a, ela continuaria tendo uma
ro medio de pessoas par co modo. Na Africa, conforme a necessidade e OS fors;a simbolica; afinal, dorrnir de baixo de chave era uma das praticas mais
recursos do grupo domestico, era possivel aumentar o espacro total da visiveis que dernarcavam a linha entre a liberdade eo cativeiro, e os escravos
"habita~ao" atraves da construcrao de novos barracos ou de outros aposen- certamente teriam percebido isso.
tos, ligados ao barraco original. Urn dos eventos que servia de incentivo Par outro lado, se as senzalas, apertadas e trancadas, definitivamertte
para isso era justamente o casamento. Entre os Nsundi, par exemplo, o confirmavam para seus habitantes sua condicrao de escravos, as choupanas
marido e a mulher (esta com suas crian~as menores) moravam em chou- africanas nao teriam sido lernbradas como ideais. Isso porque o trafico
panas separadas, e "nos casos de poligamia cada esposa tern sua propria transatlantico de escravos havia piorado as condicr6es de vida e moradia de
casa"roo. No Bras1"1, provave1mente alguns escravos conseguiam ampliar seu muitos africanos destinados para a America - talvez, alias, da maio ria - ,
espacro construido alem dos dais comodos registrados par Walsh. Em 0 . antes mesmo de eles serem capturados e desterrados. Com respeito a lo-
tronco do ipe (de 1871),}ose de Alencar retrata urn velho casal de escravos calizacrao de povoados e vias de cornunicacrao, por exemplo, o historiador
que morava num barraco de quatro "divis6es". Esta "palhocra': contudo, "era John Thornton enfatiza que no Reina do Kongo as guerras civis do seculo
bern antiga e tinha antes[ ... ] pertencido a outro': ou seja, tinha idade sufi- XVII, seguindo na esteira das mudancras desencadeadas pelo co mercia de
ciente para ter sofrido reformas e acrescimos ao longo do tempo; alem escravos e, por sua vez, alimentando esse trafico, "tiveram urn efeito dura-
disso, o marido nesse caso, o pai Benedito, "gozava de certa abastan~a, douro sobre os padr6es de povoamento. [... ] Cada vez mais as pessoas
devida a SeU genio labotiOSO e as franquezas que lhe deixava 0 senhor" 101 • procuravam montanhas no mato, estrategicamente inacessiveis, para res-
Enfim, a propria descri~ao de Alencar, alem das informacr6es deixadas tabelecer suas aldeias". As inquietacr6es desse periodo tambern fizeram com
pelos viajantes, sugere que a choupana do pai Benedito teria representado que as estradas "muitas vezes [... ] [fossem] tracradas a partir de consideracr6es
urn caso-limite e bastante atipico. Portanto, tudo leva a crer que o espacro de segurancra mais do que de utilidade" 103 • Nos seculos subsequentes, as
media par pessoa nas construcr6es tradicionais africanas era bastante supe- ameacras de guerra e de "escravizacrao" periodicamente ressurgiram e, par-
rior aquele disponivel nas senzalas. A esse respeito, fora algumas excecr6es tanto, as praticas apontadas por Thornton persistiram ou foram sendo
como o pai Benedito e sua mulher, nem os escravos casados se teriam "reinventadas". De acordo com Laman, referindo-se provavelmente ao final
aproximado dos padr6es africanos. do seculo XIX e inicio do XX, quando OS Bakongo foram duramente atin-
Alem disso, evidentemente, nao era praxe na Africa as pessoas serem gidos pela politica de mao de obra forcrada das autoridades coloniais belgas,
trancadas dentro de seus barracos, a noite. Ha motivos, e verdade, para os Nsundi "preferiam estabelecer seus povoados em terras elevadas", para

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melhor perceber a aproximac;ao de inimigos. Procuravam, tambcm, loca- das paredes laterais, para possibilitar a fuga na ameac;a de algum perigo" •
lizar-se proximo das florestas, porque dcssa maneira podiam "construit· 0 fen omena descrito par Laman talvez tenha seu registro iconogrifico. A
barracos nas profundezas do mato, lange das vias publicas': nos tempos de casa do Ma-Kayi de Cabinda, na gravura ja citada, do final do seculo XVIII,
disturbios civis ou de guerras. E, como seus antepassados, descritos por mostra urn pequeno buraco quadrado numa das paredes laterais, aproxi-
Thornton, mantinham outras estrategias para enfrentar esses periodos de madamente na altura dos om bros de urn homem em pe, que possivelmen-
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perigo e incerteza: te corresponda a "portinha de escape" apontada pelo missionario •
Comec;amos com a constatac;ao de que as senzalas brasileiras cram, em
Nos tempos antigos os nativos queriam manter em segredo, fora do conhe- alguns aspectos, parecidas com as choupanas africanas. Agora, podemos
cimento dos bran cos e de outros estranhos, a localizas:ao da estrada [vinda do po- ver que as semelhanc;as entre "cubatas", senzalas e, inclusive, quilombos sao
voado grande da regiao] para a aldeia. Tal estrada muitas vezes conduzia para urn
realmente extraordinarias. Nao sabemos se o escravo em Campinas que se
brejo ou c6rrego, tornando necessaria uma pequena vadeas:ao. [... ] Ela frequente-
evadiu de seus perseguidores atraves de "urn buraco" na senzala havia feito
mente passava por cima e por baixo de arvores tombadas pelo vento. [... ] Em
tempos irrequietos, cada aldeia tinha pequenas trilhas secretas que permitiam a essa abertura em decorrencia de sua heranc;a africana. Mas, se nao foi he-
fuga para esconderijos bern encobertos, mas tambem podiam ser usadas para fa- ranc;a, foi experiencia; no minima, podemos concluir que condic;6es pa-
cilitar urn ataque contra outras pessoas. recidas deram origem as mesmas estrategias em ambos os lados do Atlan-
tica. Ja no caso de urn grupo de quilombolas na regiao de Iguac;u, no Rio
"Se urn ataque era esperado': terrriina Laman, "colocavam-se pauzinhos de Janeiro, no seculo XIX, a continuidade e patente. Em estudo recente,
pontudos nas trilhas e cavavam-se fossos. No fundo destes, lanc;as pon- Flavia dos Santos Gomes mostra que OS mocambos desses fugitivos cram
tiagudas de madeira cram plantadas" 104• Uma variante dessas pd.ticas, de dificil acesso, "par estarem as avenidas e entradas tortuosas dos mangues
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utilizada "nos paises bakongo, no baixo Congo ou na regiao das cataratas': impedidas e obstruidas de estrepes venenosos, ou envenenados" • A pri-
foi descrita par outro estudioso em 1908: "em tempos passados, durante tica, evidentemente, era parecida ados Nsundi, porem nao necessariamente
periodos de inseguranc;a, os caminhos adjacentes, excetuando-se as prin- provinha deles, ou apenas deles. A armadilha, consistindo de urn fossa
cipais vias de acesso a urn povoado, cram semeados com lascas de madeira camuflado, con tendo estacas pontudas para espetar a presa, era largamente
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[splinters] envenenadas- muito perigosas para pes descalc;os" 105 • utilizada ness a parte da Africa para a cac;a a animais de porte • Ao mesmo
Tais condic;6es e estrategias inevitavelmente tiveram um impacto nos tempo, as condic;6es de inseguranc;a descritas par Thornton e Laman para
metodos de construc;ao. Ainda no caso dos Nsundi, segundo Laman, "a as etnias bakongo cram tipicas da maioria dos povos da Africa Central,
grande maioria das casas sao moviveis, ja que os nativos gostam de mudar atingida pelo impacto do comercio atlantica de escravos; o livro recente
suas casas ou mesmo a aldeia inteira de urn lugar para outro, se [... ] [entre de Joseph Miller sabre o "modo de vida'' criado pelo trifico, que na verdade
outras raz6es] eles sao vitimas de guerra ou de outros infortunios". Para era urn "modo/via de morte" Cfiliay ofDeath ), nao deixa duvidas quanta a
que essas mudanc;as fossem possiveis, os Nsundi faziam as paredes de suas issou 0 • Podemos supor, portanto, que outras etnias dessa parte da Africa,
casas nao de pau a pique, mas de ripas de palmeira entrelac;adas com folhas ao enfrentarem condic;oes parecidas as dos Nsundi, tam bern transformaram
e amarradas a armac;ao de paus verticais e horizontais que apoiava o teto. tecnicas de cac;a em priticas de defesa, ao mesmo tempo em que adotaram
Dessa forma, na hora da mudanc;a, "as casas sao desmanteladas e cada pa- ou reafirmaram metodos de construc;ao nomadem. Chegamos, portanto,
rede e carregada par urn ou varios homens". E quando Laman descreve as a uma descoberta ins6lita, mas nao destoante do que sabemos sabre a
residencias do chefe e das pessoas mais velhas de uma aldeia, contudo, que enorme tragedia humana desencadeada em ambos os lados do Atlantica
ele nos fornece o detalhe mais revelador de como a hist6ria dos Nsundi Sul pelo comercio de escravos. Antes de serem capturadas e trazidas ao
moldou suas condic;oes de moradia. Alem da porta de entrada nessas casas, Sudeste do Brasil, muitas das pessoas desterradas da Africa Central, talvez
"colocava-se uma porta-abertura muito pequena na outra fachada ou numa a maioria, ja cram praticamente "quilombolas" - inclusive no sentido

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original da palavra, ja que moravam em aldeias que cram pouco mais do o nome de "projeto". Certamente, o espac;o construfdo dos escravos casados
que "acampamentos (de guerreiros)" 112 • era mesquinho. Mas eles decididamente nao almejavam a "casa propria'' de
As continuidades nessa historia, contudo, mostram que os "objetos" do muitos comodos, decorada com flores ao hom estilo burgues. Como afri-
trafico nao eram simplesmente "vftimas". Eles reagiram e, ao levantar seus canos e filhos de africanos, suas recordac;6es eram outras; como cativos,
"mocambos" nas choupanas africanas, nas senzalas e nas aldeias de fugitivos suas esperanc;as necessariamente nao eram essas. 0 que quero argumentar
no mato brasileiro, mostraram que sua cultura lhes dava condic;6es para e que, ao pensar no casamento, os escravos, por serem manipuladores de
enfrentar o vendaval de forma resolura e criativa. Os escravos no Brasil uma gramatica do espac;o nao inteiramente alheia as suas condic;6es de
definitivamente nao tinham ilus6es sobre as condic;6es em que viviam como cativeiro, teriam visto oportunidades que os historiadores de hoje, iguais
cativos, da mesma forma como na Africa eles e seus pais, iguais aos Bakon- aos grupos dominantes do seculo XIX, nao percebem de imediato. Ter-se-
go, conservavam a memoria da epoca relativamente pacifica e prospera, iam interessado pelas possibilidades reais de aumentar a pequena area
anterior aos disturbios causados pelo trafico transadantico 113 • Mesmo assim, construfda que estava a sua disposic;ao e de ganhar mais controle sobre essa
eles teriam reconhecido nas senzalas brasileiras uma gramatica do espac;o area, sabendo que aumentariam dessa maneira suas chances de atingir
que nao lhes era totalmente estranha e teriam elaborado maneiras de usa- certas finalidades materiais e culturais: finalidades limitadas, porem de
la em seu proveito. maneira alguma desprovidas de significado.
Os senhores, por falarem ourra "lingua': talvez nunca tenham percebi-
do isso. 0 fazendeiro anfitriao de Binzer, como muitos historiadores
modernos, pensava que o cativeiro tivesse tolhido a capacidade dos escravos 4. Fachadas e fogos: estrategias domesticas e projetos de vida
de elaborarem projetos proprios. Agora, com algum conhecimento dos
padr6es da arquitetura africana, podemos ver que a noc;ao de que os liber- Quais teriam sido essas finalidades? Como vimos, Gluck descreve a choc;a
tos, no ano de 1881, preferiam choupanas sem janelas, iguais, nesse aspecto, como "um espac;o para dormir" e "um abrigo contra efeitos climaticos", nao
aos barracos que tiveram como escravos, pode ou nao ser correta, mas propriamente urn lugar para morar. A definic;ao e util, contanto que con-
certamente e plausfvel- nao porque eles se teriam acostumado as condi- .sideremos o "dormir" uma atividade social, nao apenas fisiologica, e a
c;6es do cativeiro, como pensava com desdem o fazendeiro, mas porque sua choc;a urn refugio, alem de urn abrigo. A choupana, enfim, permitiria aos
gramatica do espac;o ainda guardava muito da tradic;ao africana. 0 senhor escravos casados e seus filhos "dormirem em familia'' - isto e, possibilita-
de escravos, nesse caso, deveria ter consultado os viajantes (outros, que nao ria a "recriac;ao" de rituais de convivencia familiar na hora de deitar e le-
Binzer) para conhecer melhor seus cativos. Quando Johann Emanuel Pohl vantar- num esparo Jechado contra o mundo 115 • Da mesma maneira, per-
viajou do Rio de Janeiro a Barbacena, em 1818, ele passou uma noite em mitiria aos casais fazerem am or sem correr o risco de serem surpreendidos
Farinha, "uma aldeia de negros"- pelo contexto, negros livres e relativa- por urn parceiro escravo ou por uma "Lenita'' curiosa.
mente prosperos ("vi talheres de prata': diz Pohl, "em quase todas as caba- Ja vimos que Lenita, protagonistadeA carne (1888) de Julio Ribeiro,
nas"). Havia uma forte influencia africana no povoado; Pohl presenciou realmente e uma intrusa116 • Numa cena do romance ela presencia, escon-
uma cerimonia noturna, um canto cadenciado pontuado pelo som de urn dida, o encontro sexual de urn jovem casal de escravos no mato; e aqui se
tambor que ele chama de "noma'' - evidentemente repetindo Ullla variante nos apresenta, sem convite, para fuc;ar a vida dos cativos nas senzalas. Mas
de (ou pronunciando mal) ngoma, 0 vocabulo quase universal para "tambor" a realidade imitava mesmo a ficc;ao. Na gravura de Rugendas, "Habitac;ao
na Africa bantu. Ora, a aldeia era constitufda "de 15 cafuas, sem janelas, que de negros" (Figura 3), os escravos que nao se encontram dentro da chou-
so recebem luz pelas portas" 114• pana estao sob o olhar da senhora da casa-grande, debruc;ada na balaustrada
Do mesmo modo, podemos ver que as praticas e os pianos das pessoas da varanda de seu sobrado, a uma distancia que provavelmente lhe permiti-
nao precisam ajustar-se aos sonhos da classe media de hoje para receberem ria uma vigilancia auditiva, alem de visual. 0 artista exagerou a proximi-

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dade da vivenda dos senhores das senzalas, pelo mcnos no que diz rcspcito a sociedade campineira, se empenhava em descrever a vida rural com o
a situa<;ao na maioria das grandes fazendas cafeeiras, mas captou bern o maximo de precisao, rivalizando nesse sentido com os viajantes mais argu-
espirito da coisa. Era co mum, nas grandes propriedades, tanto no Vale do tos. Portanto, sua sugestao de que os senhores consideravam que era urn
Paraiba quanto no Oeste Paulista, as senzalas se localizarem logo awis ou premio para o escravo poder morar "a distancia da fazenda'' - o que difi-
ao lado da casa-grande, em volta do "patio': ou terreiro de cafe. Nao s6 isso, cilmente teria sido sua atitude, se, de fato, o escravo nao tivesse a mesma
era co mum tam bern, pelo menos no caso das senzalas-pavilhoes ou barra- perceps:ao - provavelmente e digna de fe. Em to do caso, mesmo nao ha-
c6es, as portas se abrirem para o terreiro, permitindo ao senhor e ao feitor ven do registro direto sobre o assunto, e difkil acreditar que os escravos
manterem uma vigilancia estreita sobre o "habitar" dos negros, igual na sua brasileiros tenham sido menos interessados em escapar do olhar branco do
essencia ao do quadro de Rugendas 117 • que os cativos nos Estados Unidos. Estes, segundo urn estudo recente,
As mudans:as feitas numa fazenda entre Jundiai e Itu, depois de 1888, "geralmente queriam que suas cabanas estivessem fora do alcance da vista
123
sugerem o quanto esse plano arquitetonico era associado por senhores e e da audis:ao da casa-grande" •
trabalhadores imigrantes a escravidao. De acordo com o arquiteto Julio Enfim, a presen<;a de "Lenita'' na varanda de Rugendas e sua intromis-
Roberto Katinsky, o conjunto das moradias para escravos nessa fazenda, sao aqui em nosso texto sao oportunas, ja que nos lembram que a nos:ao
construido seguindo o esquema descrito acima, sofreu uma "inversao das de "privacidade" teria urn sentido especial para os escravos. Condenados a
portas e janelas para fora do patio central': quando a senzala "se transformou serem o objeto da perscruta<;ao branca a todo momento e em tudo que
no embriao da 'colonia' dos trabalhadotes livres ap6s a abolis:ao" 118 • Ao que faziam, os cativos teriam aprendido a apreciar fachadas, fossem "mascaras"
parece, essa nao foi a unica fazenda em que houve modificas:oes desse tipo. para o rosto ou paredes para o corpo. Portanto, dormir em familiae amar
Numa propriedade descrita por Louis Couty em 1884, "colonos alemaes nao teriam esgotado as utilidades da chos:a. Na verdade, o espa<;o construi-
· estavam instalados [em senzalas] sob o mesmo teto que os escravos; a unica do provavelmente adquiriu mais importancia para os escravos no Brasil do
diferens:a e que para aqueles havia portas externas nas casas" 119 • E, na Fazen- que tivera na Africa, ja que teria servido como lugar para desenvolver uma
da Lapa, em Campinas, quando a propriedade foi fotografada por Gui- variedade de atividades, escondidas da mira de feitores e senhores.
lherme Gaensly, porvolta de 1902-1903, urn edifkio em forma de quadrado, E importante enfatizar, no entanto, que a busca da privacidade por
construido em torno de urn patio - provavelmente a antiga senzala - , parte do escravo nao visaria apenas a crias:ao de urn maior espa<;o psicol6-
mostrava portas e janelas nos !ados externos 120 • Essa solus:ao arquitetonica gico e emocional, estaria ligada tambern a procura de mais independencia
nao foi a que acabou predominando em Sao Paulo, pois a tendencia geral, economica e cultural. Nesse sentido, retomando a ideia de "dormir em
com a consolidas:ao do colo nato, foi a de construir moradias novas para os familia'' e lembrando que outra utilidade da cho<;a apontada por Gluck e
trabalhadores, mais afastadas da casa-grande 121 • Mesmo assim, as op<;6es a de abrigar urn forno, quero examinar a relas:ao entre casamento e "fogo",
de construir ou de reformar provavelmente se explicam pelo mesmo con- isto e, entre casar-se e adquirir urn "lar", tanto no sentido literal dessa pa-
junto de fatores: a nova despreocupas:ao dos fazendeiros quanto a possivel lavra (lugar onde se pode preparar a comida) quanto nos seus sentidos
perda da pessoa do trabalhador, ja que este nao era mais urn semovente, e figurativos.
o desgosto dos colonos de serem perscrutados como escravos. Segundo Tschudi, no centro de cada urn dos "do is edificios coinpridos"
E a atitude dos pr6prios cativos? No romance do Visconde de Taunay, das senzalas-barrac6es dos hom ens e mulheres solteiros, havia "urn corredor
A mocidade de Trajano, publicado em 1871 e passado numa fazenda na bastante largo e alguns fogoes primitiVOS, nos quais OS negros preparam as
regiao de Campinas, o escravo "quase septuagenario': Pai Vicente, "por sua vezes urn ou outro prato simples ao voltar do trabalho". Pelo pequeno nu-
idade e pelos bons servi<;os merecera morar desde muitos anos numa casi- mero dos fog6es (apenas "alguns"), tratava-se, evidentemente, de fogos
nha [descrita tam bern como 'palho<;a'] a distancia da fazenda, mais como comunitcirios. No caso das senzalas do tipo pavilhao, com quartos para
agregado do que como dependente imediato" 122:Taunay, que conhecia bern solteiros e outros para familias conjugais, ha indicios de que havia urn fogo

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em cada cubiculo e, portanto, de que cada casal tinha uma lareira pr6pria. se a dieta no cativeiro se tivesse restringido unicamente aos comestiveis
0 Barao de Pati do Alferes, ao discorrer sabre as senzalas desse tipo em seu fornecidos pelo dono e preparados na cozinha da fazenda. Mas este nao
manual para fazendeiros, observa que suas "varandas [... ]sao de muita uti- foi o caso, a acreditar-se nas cenas registradas pelos viajantes, de escravos
lidade porque o preto, na visita que faz ao seu parceiro, nao molha os pes se cozinhando nas choupanas e nas senzalas-barracao. De fato, ha fortes in-
esti a chover; quase sempre estdo eles ao pe do fogo (grifo nosso ), saem quen- didos de que os cativos, especialmente os casais, tinham outras fontes para
tes para o ar frio e chuva, constipam e adoecem': Stein, embora nao fale seu sustento.
sobre fogos, registra a presens:a nas paredes internas dos cubiculos dos casais Uma dessas fontes foram os alimentos crus distribuidos aos escravos,
"algumas cavilhas e varias cuias para armazenar feijao, arroz, ou toucinho': pelo menos em algumas fazendas, como "ra<;:6es". Ha poucas referencias a
o que tambem sugere a existencia de uma economia domestica propria124• esses alimentos nos relatos da epoca, mas as que existem associam a pratica
Para as fazendas em que cada casal tinha seu barraco, as fontes sao mais com escravos casados ou com cativos com filhos, e deixam clara que a ras:ao
numerosas e deixam clara que o escravo, ao casar-se, ganhava urn fogo permitia a substituis:ao de uma ou mais das refei<;6es comunais por comi-
proprio. Walsh observa que, dentro de urn dos "comodos" que compunham das feitas "em casa'. Burmeister observa que "os escravos nao possuem casa
a chos:a do escravo, "ardia urn fogo que era mantido permanentemente nem cozinha propria, a nao ser os que tern filhos. Estes recebem os man-
aceso mesmo nos dias mais quentes". Giglioli retrata as casas dos escravos timentos necessaries". Ja, para Binzer, os casais em geral desfrutavam de
como "cheias de fuma<;:a, ja que eles estavam cozinhando suas ceias [cene] ". "cozinha propria'. Na fazenda no Rio de Janeiro, on de ela trabalhava como
Toussaint-Samson tam bern nota que "sai [dos barracos] uma fumas:a atroz governanta, Binzer foi informada pelo proprietirio de que" os cas ados [sao
na hora em que o negro faz esquentar sua ceia [souper] ': explicando que "a alimentados pela cozinha da fazenda] so ao almo<;o; o jantar e preparado
senzala nao tern nem chamine nem janela, de forma [sic] que o fogo e por suas mulheres as quais fornecemos as ra<;6es". Mais de meio seculo
feito nela com urn feixe de lenha, frequentemente verde, aceso no meio do antes, Maria Graham assistiu a distribuis:ao da "ras:ao diaria de comida" aos
recinto". Binzer descreve o interior dessas casas, observando que, "num escravos na Fazenda Nossa Senhora da Luz, distribui<;:ao feita "a tarde", ou
canto, havia urn fogo aceso, onde uma preta preparava uma comida qual- seja, depois do "almo<;o'' ( refei<;ao dada de manha). Em seu relata, Graham
quer". Sua reas:ao tambem e de espanto: como nao ha janelas, "deve ser da a impressao de que todos os escravos recebiam essa ra<;ao ("farinha,
horrivel ter-se de fazer fogo dentro da cabana" 125• feijao e carne-seca, uma quantidade fixa de cada coisa por pessoa'), mas ela
Ja Rugendas, em sua Viagem pitoresca atraves do Brasil (1835), retrata pode ter-se enganado, ja que sua visita a fazenda foi curta. De fato, em
visualmente a presens:a do fogo no barraco do escravo. Faz o registro de vista dos depoimentos de Burmeister e de Binzer, chama a atens:ao que a
forma indireta, com urn toque genial que poderia passar despercebido, nao {mica pessoa que Graham descreve entre os escravos que receberam a ra<;ao
fosse pelos outros relatos de viajantes (ver Figura 3). De dentro da constru- e urn hom em que "pediu duas ra<;6es em vista da ausencia do vizinho, cuja
<;:ao (retratada, como vimos, sem chamine ou janelas), urn a mulher estende mulher pedira que lhe fosse enviada sua quota para estar preparada
o bras:o pela abertura da porta com urn ti<;:ao na mao, para acender o ca- quando ele voltasse" 127 •
chimbo de urn parceiro sentado do lado de fora. A intens:ao do artista fica A distribui<;ao de ra<;:6es, em si, nao ampliava necessariamente a quan-
clara, tanto assim que o ponto de claridade pequeno (e de outro modo tidade de alimentos a disposi<;ao dos casais ou familias conjugais. Ela
ambiguo) dentro do barraco, acima do calcanhar da mulher que segura o propiciava, contudo, urn maior controle sabre o preparo da comida, o que
ti<;:ao, pode ser tornado como o registro direto do fogo, nao como urn deve ter sido vista por marido e mulher como urn ganho expressivo, espe-
possivel descuido do gravurista 126 , cialmente em vista dos outros alimentos que estavam a seu dispor - ali-
Sese casar implicava ter urn fogo separado, resta indagar o que isso memos provindos do mato e de suas atividades de cria<;ao e cultivo.
significava. Evidentemente, a chama domestica nao teria sido de grande Varios viajantes assinalam a importancia da ca<;a e da pesca para a
importancia para a "mesa' do escravo e para os rituais associados as refei<;:6es dieta dos cativos. Segundo Tschudi, "os pratos suplementares que os es-

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cravos preparam nos fog6es [nas senzalas barrac6cs], sao pcixc ou alguma em armadilhas feitas de "lac;os"), os "Pais Vicentes" passavam adiante os
cac;a do mato, especialmente tatus, iguanas, pacas, capivaras, cotias ou mesmos conhecimentos 131 •
outros petiscos de sua predilec;ao". Rugendas (baseando-se em suas pr6- No seculo XIX, as florestas e OS campos do Sudeste do Brasil, mesmo
prias observac;6es ou citando outro viajante) tambem indica que os es- nas regi6es de grande lavoura ap6s decadas de desmatamento, ofereciam
cravos comiam "carne de cac;a': acrescentando que ela era importante em uma grande variedade de cac;a. Ernest Michel, que visitou uma fazenda de
sua dieta (junto com frutas e "legumes de mato"), em vista da pouca cafe perto de Barra do Pirahy, em 1883, conversou longamente com seus
quantidade de comida dada pelo senhor. Deb ret, referindo-se aos escra- anfitri6es sobre a cac;a da regiao. Alem de mencionar a existencia de "qua-
vos de senhores mais "pobres", que nao forneciam comida suficiente a sua tro especies de tigres ou onras, tres variedades de gatos selvagens, quatro
escravatura, assevera que "a cac;a e a pesca, praticadas nas suas horas de qualidades de cervos, quatro qualidades de javalis, uma grande quantidade
lazer, dao-lhes uma possibilidade de alimentac;ao mais suculenta". Debret de coelhos", ele lista e descreve outros mamiferos - a preguic;a, paca, capi-
tambem elogia os cac;adores libertos da cidade do Rio de Janeiro, afir- vara, cutia e macaco- e varios tipos de passaros, entre eles o jacu, ja6, uru,
132
mando que "e principalmente na roc;a que se criam os negros destinados mutum, pavao, jaburu, pato silvestre, marreco, ariri e curicaca • Nem
a [essa] profissao"; sugere, no entanto, que nao eram todos os escravos todos esses animais teriam sido objetos de cac;a dos escravos, ou pelo menos
que se aprimoravam nessa atividade, mas apenas aqueles preparados para dos africanos recem-chegados. Segundo Laman, por exemplo, OS Nsundi
"acompanharem as tropas [de bestas], ou simplesmente o seu senhor nas cac;avam e comiam gatos selvagens, mas nao leopardos, porque suas regras
longas e penosas viagens", andando rtessas ocasi6es "sempre armados de alimentares proibiam o consumo da carne desse animal. Segundo Monteiro,
um fuzil, tanto para a sua seguranc;a pessoal como para conseguir viveres os Mwissikongo e o povo da regiao de Ambriz raramente cac;avam antilo-
durante as paradas indispensaveis" 128• pes ou lebres, em bora esses bichos fossem "abundantes". Por outro lado, os
Os cativos, contudo, nao precisavam de armas de fogo para cac;ar. Os escravos, quando falavam sobre as delicias do mato, provavelmente men-
povos da Africa Central desenvolveram uma variedade de armadilhas para cionavam outros animais que nao entravam na conversa de seus senhores.
usar na cac;a e sem duvida algumas delas foram adaptadas as condic;6es Os Mwissikongo, por exemplo, comiam ras e apreciavam, iguais a gente de
brasileiras 129 • Walsh registrou o uso de armadilhas pelos escravos, embora . Ambriz, ratos silvestres, camundongos, certas especies de gafanhotos,
nao as descreva em detalhe: grilos, grandes larvas brancas e cupins ("formigas brancas"), estes na sua
fase alada. Os Nsundi, os Ovimbundu e muitos outros povos da Africa
133
Nos domingos os negros [escravos] tinham permissao para se divertir asua Centralnutriam uma paixao semelhante por esse tipo de "cac;a miuda'' •
maneira. As vezes eles se valiam disso para se embrenhar no mato e preparar arma- Os africanos nao introduziram no Brasil o gosto pela tanajura (a femea
dilhas para diversos bichos. Devido a sua destreza nesse particular, nossa mesa era alada da formiga sauva), que estava difundido entre todas as classes sociais
suprida com variadas carnes de ca<;:a, entre as quais figuravam ada cutia [sic], urn no Sudeste, no seculo XIX, mas certamente estavam preparados para ade-
animal parecido com a lebre, de pelo muito aspero, e a jacutinga, uma ave de gran-
rir a "moda'' 134•
de porte conhecida como a tetraz do Brasil 130•
A variedade de fauna que estava a disposic;ao dos escravos nao significa,
evidentemente, que eles comiam "bern". 0 regime de trabalho nas fazendas,
0 Pai Vicente, personagem africano do romancista Taunay, tambem afinal, nao deixava muito tempo sobrando para a cac;a e a pesca. Por outro
conhecia armadilhas, alem de dominar segredos da pesca. 0 filho de seu lado, o relato de Deb ret (e o de Rugendas, possivelmente citando outro
senhor, quando menino, buscava com ele "conselhos sobre a maneira de viajante) sugere que muitos senhores se aproveitavam da relativa fartura
pescar camar6es do rio ou de armar arapucas e lac;os para periquitos': A do mato para reduzir ao minimo os alimentos fornecidos a seus cativos. 0
caracterizac;ao e mais verossimil do que Taunay podia imaginar; na Africa que podemos conduir, contudo, e que, atraves da cac;a e da pesca, os escra-
Central, onde os meninos comec;avam a ajudar hem cedo na pesca e na cac;a vos ganhavam uma dieta mais variada e maior controle sobre o que eles
men or (a ratos do campo e a passaros, estes U:ltimos frequentemente presos

188 189
comiam. Alguns, contudo, teriam sido mais bendidados do que outros, 0 processo de Sorocaba nao nos permite concluir que a crias;ao de
mesmo que todos recorressem acas;a e apesca, ou que prevalecessem entre animais era uma atividade especialmente ligada aos casais, embora seja
eles normas de troca de servis;os e ajuda mutua. 0 casamento e, posterior- sugestivo o fato de Jose Fernandes ser casado. Contudo, outro processo
mente, o compadrio de batismo no minima teriam modificado a distribui• crime, dessa vez de Campinas, possibilita essa inferencia de maneira indi-
s;ao dos frutos silvestres, como resultado das alianps criadas entre indivi- reta. Ao mesmo tempo, indica que a crias;ao de animais era comum e
duos e grupos consanguineos diferentes. Dificilmente, nesse caso, os bastante valorizada pelos escravos. Em 1871, varios escravos na fazenda de
solteiros - ou pelo menos aqueles nao incluidos em redes familiares ex- Joaquim Guedes de Godoy tramaram e levaram a efeito o assassinato de
tensas ou em grupos informais de amigos ou "malungos" - conseguiriam seu senhor. Posteriormente, perante a justis;a, eles explicaram sua as;ao,
obter do mato comida mais farta e garantida do que os casados. detalhando (em linguagem calculada para ganhar a simpatia de seus juizes)
Outra fonte de sustento para os escravos era a crias;ao de animais. De parte de sua "economia moral da escravidao" - isro e, de sua visao dos
acordo com Rugendas, parafraseando Koster sabre Pernambuco, "as choupa- padr6es de comportamento que urn "born" senhor deveria respeitar. Eles
nas dos escravos [... ]em geral possuem ate algumas galinhas, porcos e urn ou acusaram seu dono de ser especialmente vi olen to, de nao perdoar escravos
mais cavalo ou besta, que aluga [sic], com proveito, sendo que nao tern gas- fugidos que voltavam "apadrinhados" por uma pessoa livre, e de nao ob-
tos com sua manutens;ao" 135• Esse trecho pode refletir, tam bern, as pr6prias servar urn c6digo impliciro de tratamento - nao lhes dando ceia, por
observas;6es de Rugendas no Rio de Janeiro, pois esti de acordo com urn exemplo, "sendo que no almos;o e no jantar era pouca a comida''. Mas, alem
detalhe em sua prancha representando a "habitas;ao de negros"; ao colocar disso, eles denunciaram o faro de que Godoy "nao lhes clava licens;a para
duas galinhas na cena, a intens;ao do artista muito provavelmente era a de criarem nem plantarem" 139 •
retratar uma parte da economia domestica dos escravos 136 • Seja como for, "Criar e plantar": a conjuns;ao dessas atividades na fala dos escravos
6o anos mais tarde, Michele o fazendeiro anfitriao de Binzer observaram sugere que a crias;ao estava ligada ao cultivo de uma "ros;a'' - urn terreno
explicitamente que os escravos do Vale do Paraiba criavam galinhas 137• cedido pelo Senhor -, pritica esta tambem muito comum nas areas de
Que eu saiba, nenhum viajante alem de Rugendas e Koster fala de es- grande lavoura do Sudeste 140 • E, de faro, so podia ser; apenas o escravo
cravos com crias;ao de animais de porte media ou grande. Urn processo de que plantava para si disporia de ras;ao para animais como galinhas e
Sorocaba, contudo, retrata urn caso desse tipo e ao mesmo tempo nos porcos. Ora, essa associas;ao e importante, ja que, se nao ha registro di-
alerta sabre outra estrategia de "acumulas;ao". Em 1861, o escravo Jose Fer- reto de que a crias;ao era atividade desenvolvida especialmente pela fa-
nandes, casado com uma mulher livre, "Maria de tal" - pelo nome, pos- milia conjugal, existem, sim, informas;6es sugerindo que o casamento
sivelmente liberta -, foi acusado de roubar urn do fila. No decorrer do podia trazer maior possibilidade de acesso a terra para 0 cultivo em be-
processo, revelou-se que "a do is meses Salvador Rodrigues de Abreu, con- neficia proprio. Castelnau, descrevendo uma fazenda na provincia do
tau ao Suplicante [o acusador] que tendo-se-lhe furtado urn parco em seu Rio de Janeiro, na regiao de Paraiba do Sui, notou que "cada casal [de
sitio, dirigiu-se ao Sitio de Boa Vista procurando o chiqueiro de Jose Fer- escravos] recebe como dote urn pedas;o de terra, para cultivar como lhe
nandes la [sic] estava o parco roubado!': Nao sabemos se Jose Fernandes convenha''. Rugendas, possivelmente parafraseando a descris;ao de Koster
construiu seu chiqueiro antes ou depois do furta alegado; em todo caso, da vida num engenho em Pernambuco, observa que "ap6s o casamento
aparentemente contava com a permissao de seu senhor para criar porcos, [... ] o novo casal recebe urn lore de terra, a fim de construir sua casinha,
pretendia criar urn ou mais desses animais, e (se de faro arrebatou o touci- e para trabalharem em proveito proprio, nos dias concedidos para tal".
nho alheio) desejava acelerar o processo. 56 podemos especular se seu Isso sugere que alguns escravos nao apenas receberam uma ros;a ao casar-
empenho em aumentar o "patrimonio" ja havia dado frutos, no sentido de se, mas tambem conseguiram escapar das senzalas localizadas asombra
ter-lhe possibilitado a compra da liberdade de sua mulher. Nao ha duvida, da casa-grande na hora de contrair matrimonio, nao no final da vida,
entretanto, de que ele tinha la seus projetos 138 • como o Pai Vicente, no romance do Visconde de Taunay. Alem desses

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depoimentos, podemos citar tambem a frasc usada f-i·cqucntcmcntc por junto com os resultados da ca<;a, da pesca, da coleta de plantas no mato e
um fazendeiro da regiao de Campinas por volta dos anos 1860 e regis- da cria<;ao de animais, teriam suplementado sua dicta, especialmente na-
trada no livro de mem6rias de sua filha; falando de um jovem escravo quelas propriedades onde a comida fornecida pelo senhor nem satisfazia
143
solteiro, ele dizia: "e preciso casar esse negro e dar-lhe um peda<;o de as necessidades basicas de sustento •
terra para assentar a vida e tomar jufzo" 141 • Alem de sonhar com mais recursos, o escravo, ao casar-se, podia pensar
Dentro desse contexto, a descri<;ao que Stein nos da da inter-rela<;ao em conseguir mais controle sobre sua economia domestica. No mfnimo,
entre a ro<;a escrava e o fogo conjugal nos domingos e dias santos adquire podia ter mais esperan<;a de tornar sua vida na escravidao uma vida de
uma significa<;ao que ela nao tem no proprio livro desse autor, dada a "gente" dentro de seus pr6prios padroes culturais. Para isso, uma vez tendo
pouca importancia af atribuida a familia escrava. De acordo com Stein fontes de alimentos independentes, o controle sobre o fogo era fundamen-
(baseando-se aparentemente em entrevistas com ex-escravos idosos da tal. Vejamos em mais detalhe as implica<;6es para o escravo casado de poder
regiao de Vassouras), "quando escravos e escravas coabitavam, os homens substituir uma das refei<;6es comunais na fazenda por uma comida feita
frequentemente eram acompanhados a suas ro<;as por seus filhos e filhas em casa, ou de ter a possibilidade de preparar comida fora dos horirios
[children], enquanto as mulheres lavavam [roupa], remendavam, cozinha- estabelecidos pelo senhor.
vam e levavam a refei<;ao do meio-dia a seus parceiros no campo". Em Para come<;ar, o controle sobre o fogo teria significado um pouco mais
contraste, "os hom ens solteiros [com ro<;as] levavam lenha para a cozi- de tempo para si, Ionge do olhar branco, e tambem a possibilidade de es-
nheira preparar sua refei<;ao, voltando no horirio de comer" 142• colher os companheiros com quem compartilhar a refei<;ao. Para muitos
0 texto de Stein indica que a ro<;a nao era privilegio apenas do escravo africanos, teria representado a oportunidade de recriar os rituais domesti-
casado. Contudo, ele aponta para a existencia de uma complexa divisao de cos de suas origens, nao (como poderiamos pensar etnocentricamente)
trabalho dentro da familia cativa, em torno da ro<;a. 0 escravo solteiro, ao juntando marido e mulher na hora de comer, mas garantindo sua separa<;ao.
que parece, tambem elaborava estrategias de trocas de servi<;os com outros Entre os Nsundi, por exemplo, como entre muitos outros povos da Africa
cativos, mas dificilmente teria conseguido estabelecer uma rela<;ao de tro- Central, a mulher preparava e servia a comida para seu conjuge, mas nao
ca tao variada (a mulher que cozinhava para ele tambem lavava e remen- comia com ele. Alias, para as pessoas do sexo masculino, a refei<;ao princi-
dava sua roupa?), previsivel e "estivel" no tempo quanto a que (podemos pal normalmente era comunitiria; os hom ens e meninos de um grupo de
sup or) existia entre um hom em e uma mulher cas ados, ou entre pai e filho. parentesco comiam juntos, com cada unidade domestica participando da
Alem disso, o solteiro normalmente teria menos familiares com quem prepara<;ao dos alimentos 144 • Do ponto de vista africano, o problema da
formar alian<;as de troca seguras do que a pessoa casada, com seu acesso a comida preparada na cozinha da fazenda nao teria sido seu carater coletivo,
rede de parentesco do conjuge, nao apenas a sua. mas o fato de que os escravos praticamente nao tinham escolha sobre quem
Enfim, ha raz6es de so bra para acreditar que o escravo, quando pensava estava "convidado" a come-la.
em casar-se, podia ter a esperan<;a de melhorar sua vida de varias maneiras. Sugestivo a respeito das tensoes que poderiam surgir nesse contexto e
Nao seria irrealista de sua parte almejar mais acesso a recursos materiais. um processo crime de 1881, retratando a briga entre do is escravos no refei-
No mfnimo, podia pensar numa divisao do trabalho em torno de um es- t6rio de uma fazenda em Campinas 145 • De acordo como administrador da
pa<;o e de um fogo "proprio': que dessem melhores condi<;6es de sobrevi- fazenda, as desaven<;as surgiram "no sabado ultimo[ ... ] em um salao deno-
vencia. Suacolheitade "cafe,[ ... ] milho, feijao, banana, batata, cara, aipim, minado curro, onde os escravos costumam vir comer por ocasiao de almo-
cana, etc." (produtos que o Barao de Pati do Alferes, escrevendo no Vale <;ar, pelas nove horas mais ou menos da manha" (o "curro" era o Iugar onde
do Parafba, associava a ro<;a escrava), ou de jabuticaba, aipim, ab6bora e se juntava o "rebanho" de escravos e onde eles iam curiar, expressao de
"melao carvalho" (produtos que o Visconde de Taunay atribuia, a titulo orig~m bantu, significando "comer") 146• Os dois primeiros que chegaram
de exemplo, a ro<;a de seu personagem, Pai Vicente, na regiao de Campinas ), do servi<;o, Raymundo e Andre, "se assentaram no chao junto da gamela

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de comida que ai estava quase encostada no cstcio colocado no mcio da Se o relata da senhora Amelia traz agua a boca, o de Adele Toussaint-
casa". Raymundo perguntou ao parceiro "por que nao se ia assentar em Samson, ao contrario, faz engasgar. A parisiense ficou tao indignada com
outra parte a fim de comer noutra gamela': ao que Andre "respondeu que a comida comunal de uma fazenda no Rio de Janeiro, que lavrou uma de-
o mesmo era comer nessa, como em outra gamela, e assim comeria ai por nun cia detalhada:
ja estar". A resposta provocou Raymundo a agredir Andre, que retrucou
com uma facada mortal. A rixa entre os do is escravos ja se manifestara na Ha sempre duas cozinheiras numa fazenda, a dos brancos e a dos negros, da
mesma forma que existem nela duas cozinhas. Fui a sala enfuma~ada que servia de
senzala (seja barrado, cubiculo ou choupana) que eles compartilhavam,
cozinha para os negros, e vi la duas negras, tendo diante de si do is imensos caldeir6es,
aparentemente com outros parceiros solteiros. Segundo Andre, "os lugares
dos quais urn continha feijao e o outro angu (pasta feita de farinha de mandioca e
na tarimba onde ambos dormiam eram pr6ximos, e assim constantemente de agua fervente). Logo em seguida, cada escravo chegava, de cuia em mao; nela, a
vivia Raymundo a provocar a ele interrogado, nao obstante que, viviam OS cozinheira despejava uma grande colherada de feijao, adicionando-lhe urn pequeno
do is em santa uniao por serem parceiros, pois que vieram juntos do Rio de peda~o de carne-seca da mais baixa qualidade, assim como urn pouco de farinha de
Janeiro ha anos". E interessante que a rixa nesse caso separou "malungos", mandioca para polvilhar o conjunto; a outra distribuia o angu aos velhos e as crian-
parceiros que vieram "no mesmo barco': Se antes eles conseguiam perma- ~as. Os pobres escravos iam embora com isso, resmungando em voz baixa que a
necer pr6ximos urn do outro e mesmo comer juntos, na hora em que urn carne estava podre e que ela era insuficiente. Nossos cachorros certamente nao teriam
desejado esta alimenta~ao
148
deles queria distanciar-se do parceiro a disciplina e a rotina da fazenda •
atrapalharam. Os detalhes desse processo - a necessidade de dividir o
mesmo "prato" com outro escravo, os lugares em que se manifesta a rixa Na mesma epoca, C. C. Andrews, urn diplomata norte-americana,
(na senzala, nao apenas no refeit6rio) e a presens:a do administrador no deixou urn depoimento semelhante, apenas substituindo cachorros por
desfecho dela - revelam bern o quanta poderia ser importante para o bois. Em visita a uma fazenda campineira em 1884, Andrews observou que
escravo ganhar urn espas:o proprio e reduzir o controle alheio sobre ativi- "na cozinha [... ] cortavam-se algumas ab6boras-moranga, nao muito ma-
dades sociais basicas, como o dormir e o comer. duras, para colocar num caldeirao grande e cozinhar para a comida dos
149
Escapar da refeis:ao no curro, ou mesmo simplesmente nao depender . trabalhadores. Lembrou-me o que ja havia visto fazer-se para gado" •
dela, teria significado tambem a possibilidade de melhorar a "qualidade" Todos esses observadores tinham, e claro, seus preconceitos e intens:oes
da comida, atraves de urn preparo mais caprichoso, do acrescimo de ingre- previas. A antiga "sinhazinha'' saudosista nao ia criticar sua mae, que "inu-
dientes e da substituis:ao ou apenas eliminas:ao de componentes indeseja- meras vezes provava, ela mesma, o que ia para o eito, para ter certeza de
veis. Melhorar certamente era preciso, embora os relatos brancos sejam que eram bern tratados os escravos"; tampouco ia manchar a imagem de
contradit6rios a esse respeito e, na verdade, pouco confiaveis. Ao lembrar- seu pai, retratado em seu livro como urn bondoso senhor. Andrews prova-
se dos tempos de sua juventude, Amelia de Rezende Martins, filha de urn velmente foi influenciado pelo fato de que em seu pais a ab6bora-moranga,
fazendeiro de Campinas, elogiava a qualidade das refeis:6es preparadas a nao ser quando era usada para fazer tortas, normalmente servia, de fato,
para os escravos "em grandes caldeir6es na 'sala de administras:ao"'. A co- para comida de gado. Toussaint-Samson, uma burguesa parisiense, possi-
mida consistia de "feijao, angu, ensopado esplendido com legumes, ou velmente comparava a comida dos escravos a haute cuisine. Evidentemen-
cozido, ou carne-seca, ou bacalhau; as vezes tutu de feijao com torresmo". te, pelo que conhecemos da 16gica da escravidao e sabendo como e a pre-
Ap6s esse banquete, ate sobremesahavia: "a comida de sal era acompanha- paras:ao de "comida institucional" em grandes quantidades, podemos
da das frutas de epoca, laranja, banana, melancia''. Doce mesmo era a es- concluir que os observadores estrangeiros se aproximavam muito mais da
tas:ao da safra de cana-de-as:ucar: "No tempo da moagem, ia a garapa em "realidade" social nesse caso do que a porta-voz dos fazendeiros. Enfim, se
garraf6es revestidos de palha e tam bern rapadura ou melado, com cara ou ha raz6es para desconfiar do registro que Toussaint-Samson fez das recla-
'mandioca'" 147• mas:6es dos escravos, a cena retratada por ela certamente e verossimil. Mais

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11 . . . - ............ ~···~· ...

interessante, contudo, e tentar recuperar como os cscmvos julgavam essa [de pessoas], desejosas de nao serem ridicularizadas". Por exemplo, "plantas
comida a partir de seus pr6prios pontos de referenda. da familia dos pepinos", "batatas-masoko [sic]" e "a ab6bora-moranga
Toussaint-Samson, Andrews e a sinhazinha provavelmente nao teriam (malenge) [ ... ] antigamente eram consideradas pr6prias somente para
apreciado o repasto feito pelos cativos em seus pr6prios fogos, ou, como mulheres". Laman, que escrevia em sueco e cujo manuscrito foi traduzido
Ina von Binzer, vendo dentro de urn barraco de escravos "urn fogo aceso para o ingles (britanico), pode nao ter visto a mesma especie de abo bora
onde uma preta preparava uma comida qualquer': nem teriam cogitado na que o ianque Andrews, embora nos livros de ambos se utilize a palavra
possibilidade de essa comida ser "boa''. Contudo, o controle sobre o pre- pumpkin. 0 exemplo, contudo, serve para chamar a atens:ao sobre o receio
paro de uma parte da comida diaria teria trazido ganhos materiais e sim- que muitos africanos devem ter tido de descobrir em seus "pratos" urn in-
b6licos para os escravos que nao devem ser subestimados. Como nos ad- grediente proibido - ou, pior, de nao descobri-lo a tempo, para depois
verte o historiador Charles Joyner, em seu estudo sobre uma comunidade sofrer as consequencias. Sua preocupas:ao, alias, nao teria sido apenas a de
escrava na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, "a comida [ ... ] tinha uma evitar zombarias; muitas transgressoes contra proibis:oes alimentares eram
enorme significas:ao cultural e ideol6gica: a escolha de co midas espedficas consideradas nocivas a saude e/ ou ofensivas aos espiritos ancestrais ou da
e meios espedficos de preparo envolvia questoes [que eram] de uma im- natureza151 •
portancia crucial para o sentido de identidade dos escravos". Aos alimentos Salguemos a discussao com outro exemplo. Hoje em dia, os brasilei-
do Novo Mundo, segundo Joyner, "as cozinheiras escravas aplicavam uma ros de todas as classes sociais em geral preferem sua comida "bern tem-
gramatica culinaria africana - metodos de cozinhar e de condimentar, perada'', o que quer dizer (para o paladar de urn estrangeiro nao acostu-
receitas recordadas, gostos ancestrais. Eles acrescentavam os ingredientes mado, de procedencia europeia ou norte-americana) preparada coin
que sustentavam a alma da pessoa [soul ingredients] "150• Da mesma maneira, condimentos que podem variar, contanto que nao falte o sal. Para boa
para os escravos brasileiros, o controle familiar sobre o preparo do jantar parte da populas:ao negra, conmdo, esse grande gosto pelo sal provavel-
(ou de outra comida, fora do horario estabelecido pelo senhor) nao teria mente tern suas origens num processo de aculturas:ao fors:ada. Em ex-
significado apenas a possibilidade de escapar da comida do curro, prova- tensas partes da Africa, especialmente no interior do continente, o
velmente feita sem capricho e variedade; teria representado, sobretudo, a · consumo de sal (pelo menos antes do colonialismo europeu) era muito
oportunidade de conferir urn sentido cultural proprio a uma das refeis:oes baixo. As evidencias mais sistematicas para essa afirmas:ao vern da Afri-
do dia, alimentando dessa forma a alma. ca OcidentaF 52 • Hi indkios, no entanto, de que em boa parte da Africa
Escrevi alma, sem aspas, porque nao se trata aqui de uma metafora. Para Central, tambem, o sal era pouco usado 153 • Nao s6 isso: para muitos
os africanos, o mundo do espirito nao era radicalmente separado do mun- africanos dessa regiao, o sal, pelo menos quando consumido em excesso,
do do corpo e, portanto, a soulfood era isso mesmo -literalmente comida ofendia o espirito tanto quanto o paladar. Monica Schuler, referindo-se
para a alma. Vejamos dois exemplos, as avessas, de alimentos que decidi- a africanos de origem congolesa, levados para a Jamaica como trabalha-
damente ndo nutriam o espirito. 0 primeiro entra em nosso cardapio di- dores sob contrato no periodo 1841-186s, explica que "o consumo de ba-
retamente da cena descrita por Andrews. Ao vera ab6bora-moranga calhau, cavalinha, arenque e carne de porco preservados em salmoura e
caindo em sua comida, urn homem bakongo tambem poderia ter reagido importados - a comida tradicional de escravos e da classe trabalhadora
com desgosto, mas suas razoes nao teriam sido as do viajante norte-ameri- na Jamaica - era associado com seu exilio". Alem disso, "os espiritos nao
cana. Nas sociedades da Africa Central, hi urn grande numero de proibis:oes comem sal, e acreditava-se que a abstens:ao do sal conferia poderes especiais
alimentares que frequentemente sao espedficas para determinadas catego- iguais aos dos espiritos, fazendo com que as pessoas 'viessem [sic] como
rias sociais. Entre os Nsundi, segundo Laman, "ha alguns pratos que sao uma bruxa', 'interpretassem todas as coisas' e tivessem fors:a suficiente para
considerados especialmente pr6prios para homens, mulheres, crians:as e voat de volta para a Africa''. Schuler observa ainda que
escravos, respectivamente, e que eram [sic] evitados por outras categorias

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1\0J•nl\l'li,'tl''-n n ., .. ,..,.._,.,_.,,.,'1'"''""•

no ritual cristao de batismo introduzido pelos portugueses no Rei no do Congo, no


Brasil tam bern, para africanos pouco acostumados com esse mineral, "comer
final do seculo XV, enfatizava-se a pratica de colocar sal na lingua do batizando,
sal" facilmente poderia significar "tornar-se parecido demais com os bran-
nao a de salpica-lo com agua. "Ser batizado" era "comer sal'; e por extensao "tornar-
se parecido demais com os europeus". Dessa forma, na Jamaica o resistir-se a comer cos" nas praticas religiosas, nao apenas nas culinarias. Ainda segundo
sal pode ter sido uma merafora para a resistencia a costumes estrangeiros (inclusive Karasch, a esperan<;:a de que o espirito pudesse atravessar o kalunga (a agua
aconversao ao cristianismo). Assim, somente os que eram fieis aos costumes afri- do mar e a barreira entre a vida e a morte) e voltar para a Africa, tam bern
canos eram dignos de retornar aAfrica 154• existia no Brasil161 • Enfim, aqui, como no Caribe britinico, urn maior
controle sabre o preparo da comida provavelmente significava, para muitos
No Brasil do seculo XIX, OS estrangeiros se impressionavam com a escravos africanos, poder reduzir ou ate eliminar o consumo de sal - e
falta de sal na comida. De fato, a popula<;:ao livre comia muito menos sal fortalecer dessa forma a alma para resistir aescravidao.
do que os brasileiros de hoje, em parte por seu custo relativamento alto 155• Outro ganho importante decorrente do controle sabre o preparo da
E possivel, portanto, que a dieta do escravo nao tenha incluido tanto sal comida - e consequentemente sabre o ritual de comer - pode ter sido o
aqui quanta na Jamaica. 0 depoimento de Thomas Davatz, o Hder da re- de nao ter que utilizar, necessariamente, as cuias observadas por Toussaint-
volta dos colo nos sui<;:os na Fazenda Ibicaba em Sao Paulo, em 1857, certa- Samson, ou especialmente as gamelas, descritas no processo crime de
mente sugere isso. Segundo Davatz, os escravos comiam "o milho, o arroz Campinas, em que comiam duas (ou mais) pessoas. Estas ultimas, ao que
e o feijao sem tempera algum" 156• 0 Barao de Pati do Alferes, no entanto, parece, eram bastante usadas nas refei<;:6es preparadas pela cozinha da fa-
notou que "em serra acima [no Vale do Paraiba], em geral, [... ] [os escravos] zenda; de acordo com Couty, o angu de milho, a base da comida escrava,
comem feijao temperado com sal e gordura': esta ultima certamente pro- era despejado numa gamela que continha "a comida para seis a dez escravos" 162•
veniente do toucinho (segundo Stein, o feijao dos cativos era temperado Ha nodcia, inclusive, de recipientes maio res; Eduardo Frieiro, citando urn
com "peda<;:os de toucinho e gordura de toucinho"); e, a acreditar no relata romance sabre o sul de Minas, baseado aparentemente em acontecimentos
do proprio Davatz, o toucinho brasileiro era "impregnado de sal" 157• Alem reais, nos coma de uma fazenda em que os donas "davam de comer amo-
disso, a carne que os escravos recebiam de seus senhores nao era, normal- lecada [escrava] num cocho de que ainda no eirado restam vesdgios" 163 • 0
mente, carne fresca, mas a "carne-seca'' (o charque) descrita por Toussaint- cocho dispensa comentarios; teria lembrado aos escravos a cada instante
Samson, uma carne preservada com sal e, de acordo c~m Couty, utilizada sua condi<;:ao de semoventes. A gamela, em si, nao teria tido conota<;:6es tao
na comida dos trabalhadores rurais ainda "incompletamente dessalgada" 158• fortes, pelo menos de inicio; e possivel que muitos africanos tenham pro-
Em Minas Gerais, segundo o historiador Eduardo Frieiro, "o mote de vindo de sociedades em que era praxe tamar as refei<;:6es em recipientes
muito senhor" rural era: "comida pouca e bern salgada para o negro heber comunitarios 164 • Coritudo, nao seria surpreendente se os escravos chegassem
muita agua" e assim enganar a fame, enchendo a barriga com Hquido 159• a identificar o comer em gamelas com o cativeiro (ou pior, com a condi<;:ao
Nas regi6es cafeeiras - pelo menos nas grandes fazendas - os escravos de animais), e dai passassem a valorizar o uso de pratos individuais- in-
podem ter recebido do fazendeiro uma comida mais substanciosa, se acei- clusive de pratos feitos com material mais "nobre" do que as cuias- como
tarmos as observa<;:6es do viajante Laerne a esse respeito; mas, na medida pratica que poderia distancia-los urn tanto de sua situa<;:ao social.
em que isso se traduzia em mais toucinho e carne-seca, implicava tam bern Einteressante, nesse sentido, que o velho casal de escravos relativamen-
uma dieta ainda mais salgada 160• te "privilegiados" em 0 tronco do ipe possuia "lou<;:a [que] ate nos lugares
Por outro lado, o significado simbolico do sal para o escravo de origem desbei<;:ados era tao limpa que parecia recentemente quebrada': As personagens
congolesa nao deve ter sido muito diferente, no Brasil, daquele registrado de Alencar sao "inventadas" e possivelmente essa cena nao tenha base algu-
por Schuler na Jamaica. De acordo com Karasch, a pratica de colo car sal ma na observa<;:ao. Ha, contudo, urn ar de veracidade na sugestao de que o
na boca do escravo como parte do ritual do batismo existia no Brasil colo- casal valorizava a lou<;:a e de que, apesar disso, ela se tinha quebrada havia
nial e ainda na cidade do Rio de Janeiro, no seculo XIX; portanto, no tempos - seja pelo uso dos proprios escravos, seja porque fora comprada de

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segunda mao ou recebida nessa condi~ao da casa-grandc, scja por outra razao
portrmcia da venda dos produtos da ro~a para a sustenta~ao da familia
ficticia, mas igualmente verossimil. De faro, um cot~ unto pequeno de lour;:a
escrava, especialmente dos la~os entre padrinhos e afilhados: "Os padrinhos
usada nao estaria fora da possibilidade de compra do escravo; em 1877, apc-
escravos davam ao nenem [escravo] recem-batizado uma roalha, sabonete,
nas alguns anos ap6s a publica~ao do livro de Alencar, um invend.rio post-
c::amisola de dormir e touca, comprados de caixeiros viajantes com os trocados
mortem em Vassouras listava "setenta e nove pe~as de lou~a azul usadas':
ganhos pela venda de seus produtos agricolas ou aves domesticas". Quando o
avaliadas todas em 15$ooo (15 mil-reis), aproximadamente ovalor medio dos
afilhado chegava a idade "de fazer a barba pda primeira vez, seu padrinho
porcos da propriedade, 14$000 (14 mil-reis ). Em todo caso, convem lembrar
presenteava-o com uma navalha de barba, e sua madrinha comprava ou
que Ina von Binzer observou, dentro de uma das cabanas de escravos, "algu-
fazia uma toalha'' (grifo nosso aqui enos trechos citados do Barao de Pari
mas pandas, pratos e pequenos utensilios" (grifo nosso) 165.
e de Barros) 168.
Se o escravo e a escrava que se casavam podiam ter em mira, como ob-
Alem das fontes de renda ja mencionadas, havia outras maneiras para
jetivo realista, conseguir mais recursos para si e mais conrrole sobre sua
os escravos ganharem dinheiro. Uma era o furto, como foi alegado no caso
economia domestica, des tambem podiam aspirar a levar adianre, com
de Jose Fernandes, no processo de Sorocaba. Ampliando dessa forma sua
mais sucesso, projetos de medio e longo prazo. Enfim, se o fogo conjugal
"cria~ao': esse escravo e outros como de poderiam dispor de mais carne
oferecia mais garantia de um presente de "genre': vivido a luz do passado,
para consumir ou para vender. A apropria~ao por parte dos escravos de
de tambem abria mais esperan~as para um digno futuro. Os frutos da ro~a,
uma parte do cafe que des produziam, para comerciar em vendas locais,
da cria~ao e da explora~ao do mato tinham um valor de troca, alem de sua
chegou a propor~oes epidemicas, a julgar pdas reclama~oes dos fazen-
utilidade imediata. Os casais, desfrutando de mdhores condi~oes para
deiros169. Nem sequer escravos em que o dono mais confiava se eximiam
suprir suas necessidades basicas, tambem mais frequenremente teriam
dessa pritica, se pudermos aceitar como verossimil o caso de um feitor
excedentes para vender ou poderiam ate planejar suas atividades produti-
cativo adepto desse tipo de furto no romance A mocidade de Trajano 170•
vas parcialmente em fun~ao dos incentives do mercado. A venda de alguns
Outra fonte de dinheiro era a manufatura domestica de objetos para ven-
de seus produtos, seja apenas ao senhor, como recomendava o Barao de
da. Segundo Stein, havia escravos na regiao de Vassouras que usavam seu
Pari do Alferes, ou tambem (clandestinamenre ou nao) a casas de neg6cios
tempo livre "para cortar e costurar roupa para vender" 171 . Na fazenda de
na vizinhan~a da fazenda, teria permitido aos escravos a compra de objetos
Jose Vergueiro, em Sao Paulo, conforme observou o historiador Eduardo
que, mesmo sendo de pequeno valor monetario, provavdmente eram de
Silva, havia na decada de 1870 uma fabrica~ao de "cestinhos" de cip6, em
um alto valor simb6lico para a manuten~ao da dignidade humana diante
que se plantavam as mudas de cafe, manufatura esta que " [constitui] uma
das pressoes da escravidao. Podemos vislumbrar a importancia dessa "ren-
industria dos pretos e pretas vdhas, que nisso se ocupam aos domingos e
da'' para a familia escrava numa frase sucinra do Barao de Pari do Alferes e
dias de guarda, e que [... ] vendem [os cestos] ao fazendeiro, ao [sic] centos,
numa observa~ao de Maria Paes de Barros, lembrando as festividades dos
a razao de 40 reis cada um" 172 • Finalmente, havia a possibilidade de o escra-
escravos no Oeste Paulista no tempo de sua juventude. Segundo o Barao,
vo trabalhar por salado em seus dias de "folga': para seu senhor ou outro
"este dinheiro [proveniente da venda dos produtos da ro~a] serve-lhe [ao
empregador. Sao frequentes as referencias a esse tipo de pagamento a es-
escravo] para o seu tabaco, para comprar sua comida de regalo, sua roupa
cravos nas presta~oes de contas de administradores e tutores, incluidas as
fina> de sua mulher see casado, e de seus filhos" 166• De acordo com Barros,
vezes nos inventarios post-mortem de propriedade 173 • 0 processo de Campi-
"com a pequena quantia que alguns dos pretos conseguiam ajuntar, ven-
nas, citado acima, retratando a "economia moral" dos escravos que assas-
dendo na vila oproduto da gleba que lhe era concedida, preparavam-se para
sinaram seu dono em 1871, tambem revda o quanto era co mum o trabalho
o dia de Sao Joao, sempre tao festivo. Compravam para si uma bonita ca-
remunerado feito para outros, que nao o senhor, e o quanto os escravos
misa de cor e uma saia de chita de ramagens para a mulher" 167• Stanley
valorizavam a oportunidade de prestar esse tipo de servi~o, que podia ser
Stein, baseando-se em enrrevistas com ex-escravos, tambem registra aim-
mais proveitoso. Entre as reclama~oes dos escravos contra seu senhor

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morto, estava a de que "aos Domingos agora [de] niio lhcs pcrmitia traba-
submctido aos interesses mercantis do senhor", diz Gorender - como se
lhar para fora dando-lhes urn minguado salario pelos scus servic;os" 17 ~.
o prindpio que definia a "escravidao" por si so determinasse as relac;6es de
A renda monetaria proveniente de todas essas fontes, alem de ampliar
produc;ao e instituisse o "escravismo': Ou ainda, mesmo reconhecendo que
as possibilidades de "consumo" e, dessa forma, ajudar a viabilizar projetos
os escravos estavam interessados na "ampliac;ao do espac;o de autonomia'',
de vida e redes de solidariedade dentro da escravidao, tam bern podia pos-
centrado na sua roc;a, Go render afirma categoricamente que "os resultados
sibilitar a poupanc;a. Em primeira instincia, a poupanc;a deve ter sido
obtidos por eles [... ] nao introduziram alterac;ao alguma na estrutura e na
concebida como uma garantia da sobrevivencia no futuro, em dias diffceis.
dinamica do escravismo colonial" 176 • Na quase total ausencia de estudos
Teria sido uma extensao de praticas diarias na roc;a; criar porcos, por exem-
empiricos densos sobre a brecha camponesa no Brasil, essa frase pode ter
plo, nada mais e do que uma maneira de "estocar" milho ou inhame para
apenas dois significados possiveis: ou e uma reiterac;ao do fato banal de
o uso futuro. Mas, em alguns casos, e talvez no horizonte de todas as pes-
que o cativo era "escravo", do ponto de vista legal, ate deixar de ser "es-
soas que lutavam para sobreviver na escravidao, havia a possibilidade de
cravo" em 1888 - isto e, de que nao houve no Brasil uma revoluc;ao
uma "acumulac;ao" mais significativa, que permitisse a compra da liberda-
negra que acabasse como cativeiro antes da Lei Aurea; ou e uma negac;ao
de. Antes de discutirmos essa questao, no entanto, e necessaria abrir urn
da possibilidade de que os senhores pudessem alguma vez ter sofrido
parentesis na analise - ou melhor, uma brecha.
reveses (ou conseguido avanc;os) significativos no embate com seus es-
cravos. Supondo que nao se trate de uma frase banal, somos forc;ados a
concluir que Gorender nega, a priori, qualquer importancia "luta de a
s. Camponeses e cativos: a ''arquitetura" do sistema classes" no escravismo.
escravista A conclusao nao deve surpreender, ja que a metafora "brecha'; no traba-
lho de Gorender, como no primeiro estudo de Cardoso sobre o assunto,
Em 1975, o historiador Ciro Cardoso chamou a atenc;ao dos estudiosos da remete a uma "fenda em alguma coisa" (no caso, no "modo de produc;ao
escravidao no Brasil para a importancia da "brecha camponesa': Com esse escravista colonial"), nao a uma "trincheira'' definida por relac;6es de con-
termo, emprestado de urn especialista na historia do Caribe, ele quis refe- . flito. Alem disso, uma tal "brecha'', qualificada por "camponesa'', projeta a
rir-se a produc;ao independente de alimentos pelos escravos, para uso imagem nao apenas de uma superficie (parede, "estrutura'') rachada, mas
proprio ou para venda. Cardoso argumentava que a "brecha" abria ao es- tambem de pessoas que saem pela fenda para exercer extramuros (em outro
cravo urn maior espac;o psicologico e economico, sem, contudo, abalar ou modo de produc;ao?) o papel de cultivador autonomo. Ora, aceitar os ter-
modificar significativamente as estruturas do escravismo. Em trabalho mos dessa met<ifora significa aprisionar o pensamento; a discussao so pode
publicado em 1987, no entanto, ele confere ao fenomeno uma importancia girar em torno da existencia da fenda ou do tamanho dela, que (pela propria
mais significativa. Sustenta agora que a luta entre escravo e senhor em definic;ao de "brecha'') apenas pode variar entre pequeno ou minusculo.
torno da brecha camponesa era urn elemento central na propria formac;ao Uma vez encarcerado na merafora, o historiador nao consegue colocar a
do "modo de produc;ao escravista colonial': Ao que parece, nao se trata questao central: Quem construiu o "muro" desse escravismo, existente em
mais de "uma fenda ou abertura em alguma coisa" - a definic;ao do voca- sua forma acabada antes mesmo de iniciar-se a luta de classes?
bulo "brecha'; dada pelo dicionario - , mas do lugar privilegiado para a Examinada pelo lado de fora, contudo, a medfora se revela totalmente
contenda entre escravos e senhores ("estar na brecha'; segundo o Novo idealista. Pior, nas maos de Gorender, que deriva as leis do "modo de pro-
Aurelio, significa "estar sempre pronto para a luta'') 175• duc;ao escravista colonial" quase inteiramente a partir do raciodnio eco-
A atual posic;ao de Cardoso contrasta com a de Jacob Gorender, que nomico dos senhores, a imagem assume feic;6es senhoriais. 0 muro inaba-
nega qualquer impacto da "brecha camponesa'' sobre o escravismo. "Nem lado do escravismo, com brecha minuscula ou inexistente, nada mais e do
por cultivar seu lote com autonomia o escravo deixava de ser bern venal, que o quadrado trancado das senzalas - nao a construc;ao real, "remode-

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lada" pelo escravo e crivada de "buracos" por on de sc fi.tgia a toda hom, mas Entcndct' csscs processos, desvendar sua l6gica e suas implica<;:6es para
aquele quadrado-prisao perfeito do imaginario do fazendciro. Ora, quem o sistema cscravista, constitui o objetivo de boa parte da bibliografia mais
entra neste "edificio de erros" perde de vista o essencial: a luta entre senho- recente sobre a "economia interna" dos escravos nos EUA e no Caribe. Nao
res e escravos para definir o grau de dependencia ou autonomia destes - cabe aqui uma resenha dessa nova historiografia; basta dizer que ela e for-
uma luta em que as rela<;:6es entre as duas partes e, portanto, as pr6pdas temente influenciada por urn marxismo "thompsoniano" (um marxismo
formas de reprodu<;:ao ou nao do "sistema" estavam constantemente sujei- heterodoxo, marcado pela obra do historiador ingles E. P. Thompson), cujo
a
tas redefinis:ao.
intuito e 0 de procurar as "estruturas" nos pr6prios processos sociais, espe-
Como acabou percebendo Cardoso, e essa contenda, nao urn tipo es- cialmente nas lutas "miudas". Essa bibliografia e caracterizada, portanto,
pedfico de economia escrava, que e urn elemento determinante do "escra- por estudos empiricos densos, que enfocam a economia interna como
vismo': Infelizmente, quem entende ao pe da letra a expressao "brecha palco de conflitos, cujos desenlaces sao ambiguos e imprevisiveis (em bora
camponesa" acaba-se trancando dentro da metafora arquitetonica177• Goren- possam ser parcialmente apreendidos atraves de analises de "economia
der interpreta o qualificativo "camponesa" no sentido estreito: o escravo politica") 178 • De um modo geral, os estudos recentes continuam a desbravar
com uma "economia camponesa" e aquele que tern uma ros:a independen- o caminho analitico aberto anos atras pelo antrop6logo Sidney Mintz,
te, capaz de fornecer a maior parte de seu sustento e que consegue uma quando afirmou, a respeito das "origens do sistema de mercados na Jamaica':
renda significativa, vendendo seus produtos no mercado. Alem disso, que "as contradi<;:6es internas do sistema de plantation tornaram possivel a
Gorender parte da premissa de que os fenomenos sociais com "natureza elaboras:ao, pelos pr6prios escravos, de padr6es [de comportamento] adapta-
estrutural" necessadamente tern urn grande grau de "generalidade" e "es- tivos, padr6es que, pode-se dizer, contribuiram, de um lado, para a ope"ra<;:ao
tabilidade". Partindo desses pressupostos, ele mostra facilmente que "o efetiva do sistema e, de outro, para seu progressivo enfraquecimento" 179•
sistema de 'brecha camponesa"; stricto sensu, "nao teve estabilidade e genera- Com essa frase de Mintz, fecha-se o parentesis e da-se um fim (para
lidade que facultem considera-lo estrutural'; nem no Brasil nem no hemis- a
sempre, espero) "brecha camponesa'' 180 • Abandonemos essa merafora
fedo; com isso, ele pensa ter rebatido o argumento de Cardoso sobre a infeliz para voltarmos a aten<;:ao novamente para a "economia interna dos
centralidade da "brecha camponesa" na formas:ao do "modo de produ<;:ao escravos" no Brasil. Ate aqui, enfatizei as adapta<;:6es dos cativos em torno
escravista colonial':
da ro<;:a e do lar, que (para usar os termos de Mintz) "enfraqueceram o
Seu raciodnio, contudo, reflete urn desencontro de metaforas e uma sistema'', na medida em que contribuiram para uma identidade escrava
confusao entre processos e "resultados" sociais. A "brecha camponesa" para autonoma. E necessario, contudo, ver o outro lado da questao, especial-
Cardoso nao e mais nem "brecha" (fenda) nem, a rigor, "camponesa"; mente em vista da enfase dada na bibliografia brasileira aos possiveis bene-
corresponde ao que tern sido chamado frequentemente, na bibliografia ficios da economia dos escravos para os senhores e a respeito da "funs:ao
norte-americana sobre a escravidao, de "economia interna dos escravos'; ideol6gica'' dessa economia, como forma de controle sociaP 81 •
urn termo que abrange todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para Como mostrei em outro estudo, as taxas de alforria no Brasil no secu-
a
aumentarem seus recursos desde o cultivo de suas ro<;:as ca<;:a e, inclusive, lo XIX eram suficientemente altas para que todo cativo pudesse sonhar
ao furto. Como as lutas entre escravos e senhores se desenvolveram em com a liberdade como uma possibilidade real, isto e, embora a grande
contextos diferentes, os perfis dessa economia interna foram bastante va- maio ria de escravos terminassem a vida ainda no cativeiro, as chances para
dados. Como essas lutas se travaram entre adversados muito desiguais, nao se redimir dessa condi<;:ao nao eram irris6rias. Por exemplo, de acordo com
surpreende que a economia escrava, qualquer que fosse seu perfil, tenha um censo da provincia do Rio de Janeiro em 1856, aproximadamente 1 em
tido pouca garantia de "estabilidade". Tudo isso, no entanto, nao significa cada 15 individuos (6,8%) que haviam sido escravos no Brasil e que ainda
que os processos de luta, que conduziram aos resultados diversos e ineren- estavam vivos nesse ano era liberto. Em 1874, a taxa anual de alforria no
ternente instaveis, nao tenham tido muito em comum. Brasil como urn todo era de aproximadamente 6,3 escravos por 1.ooo;

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Ja vimos que, na hora da distribuis;ao das ras;oes di<l.rias aos escravos na
muito mais alta do que os 0,45 por 1.000, que tcm sido cstimado para a
fazenda visitada por Graham em 1822, "urn homem pediu duas ras;oes em
populas;ao cativa dos Estados Unidos em 1850. Supondo scr essa a taxa
vista da ausencia do vizinho, cuja mulher pedira que lhe fosse enviada sua
tipica do seculo XIX como urn todo, podemos estimar que, de uma coortc
quota". Graham, curiosa, perguntou mais a respeito desse hom em ausente
de escravos de 10 anos de idade ( isto e, de crians;as proximas a entrar ple-
e foi informada de que ele era "urn mulato remador, o escravo de mais con-
namente na fors;a de trabalho), no minimo 1 pessoa em cada 20 (5,1%)
fians;a da fazenda, e rico, porque foi tao industrioso, que conseguiu uma boa
a
poderia esperar ser libertada antes de chegar idade de 40, e 1 em cada 11
pors;ao de propriedade privada''. Esse escravo, que ainda nao era velho, na
(8,4%) antes da idade de 6o. Esse exercicio de calculo, evidentemente, nao
sua juvemude "havia-se ligado a uma negra crioula, nascida, como ele, na
leva em coma as diferens;as regionais. No Rio de Janeiro e em Sao Paulo,
fazenda; mas nao se casou com ela senao quando obteve bastante dinheiro
em 1874, por exemplo, a taxa de alforria era significativamente mais baixa para compra-la, de modo que seus filhos, se os tivesse, nascessem livres".
(respectivamente de 3,4 e 4,8 por 1.000) do que no resto do pais. Contudo,
Depois de resgatar sua companheira da escravidao, o hom em (supoe-se,
na primeira metade do seculo XIX, a manumissao, seja por compra ou
com sua mulher) conseguiu poupar o dinheiro suficiente para comprar sua
doas;ao, provavelmente era mais comum do que em meados da decada de propria liberdade. Seu senhor, contudo, "nao lhe quer vender a alforria,
1870, ja que o pres;o real do escravo na epoca do trafico transadantico era
por serem os seus servis;os valiosos demais para dispensa-los, apesar de sua
bern inferior ao que chegou a ser depois de 1850 182 • Enfim, embora o as-
promessa de ficar trabalhando na fazenda'. Enfim, esse casal havia realizado
sumo requeira mais estudo, a (pequena) possibilidade de manumissao uma parte de seu sonho de liberdade, quando Graham visitou a fazenda,
provavelmente era suficientemente·real, mesmo em Sao Paulo e Rio de mas nao parecia ter muita perspectiva para completar o restante de seu
Janeiro, para garantir que todos os escravos tenham ponderado seu signi- projeto no futuro imediato. Alem disso, seu desejo de ter descendentes
ficado, ao elaborarem suas estrategias de vida. Alguns, compreensivelmen-
livres aparentemente havia ido por agua abaixo, na correnteza do tempo.
te mais impacientes- ou com menos chances de alforria, como os africa- "Infelizmente, esta gente nao tern filhos", diz Graham, sugerindo a seguir
a
nos - , provavelmente chegaram condusao de que a procura da
que sua idade ja nao permitia mais a procrias;ao •
185

manumissao nao valia a pena, ou de que a alforria era mesmo urn "horizonte': A hist6ria e fascinante, em primeiro lugar, porque revela uma estrategia
mas daquele que sempre recuava na frente de quem o procurasse. Outros,
reprodutiva, inclusive uma pratica de controle de nascimentos, aliada ao
contudo, devem ter percebido essa possibilidade como urn motivo a mais
projeto de poupans;a. Quando Graham diz que o homem "havia-se ligado
para uma estrategia de poupans;a, ou eventualmente (se estavam especial-
a uma negra crioula'', certamente ela nao quer dizer que o casal passara anos
mente bern situados para acumular recursos) como a razao principal183 •
como noivos celibararios; da mesma forma, quando ela escreve que o escra-
Entre os escravos casados ou os escravo~ com familia extensa, a tenden-
vo finalmente "se casou'', podemos supor que a referenda seja ao matrimo-
cia de encarar a possibilidade da alforria dessa segunda maneira pode ter
nio ratificado pela Igreja, nao ao inicio do concubinato. A hist6ria faz
sido mais comum do que entre os solteiros ou os solirarios. Afinal, os las;os lembrar uma observas;ao de Robert Walsh, de que as mulheres escravas
familiares nao apenas criavam maio res possibilidades para a poupans;a- se
(reconhecidas por ele como "excelentes maes") frequentemente recorriam
meu argumento ate aqui for correto -,mas tam bern potencializavam esse
ao "infantiddio", isto e, de que elas empregavam "varios meios para matar as
esfors;o de acumulas;ao. Especificamente, a poupans;a da familia conjugal
crians;as ainda no ventre". Ela sugere, contudo, uma possivel explicas;ao para
ou da familia extensa poderia ser coordenada com a finalidade de resgatar
essa pratica de aborto que vai alem da simples rejeis;ao aescravidao - a
um de seus membros do cativeiro, ou mais de urn, sucessivamente, de
tentativa por parte das maes de evitar "a desgras;a de por mais escravos no
acordo com os criterios do grupo. Recentemente, o historiador Sidney mundo"- apontada por Walsh 186 • Sera que o aborto nao refletiria, em
Chalhoub encontrou alguns exemplos dessa estrategia entre os escravos da muitos casos, a tentativa de viabilizar urn projeto familiar de liberdade
Corte 184 • Urn caso especialmente revelador, no entanto, foi contado no
a longo prazo, que seria seriamente prejudicado pelo nascimento de urn
inicio do seculo XIX pela viajante Maria Graham.

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filho "antes da hora"? Afinal, um reccm-nascido significa, de imcdiato, para o tal en to de esc rever uma novela a respeito dessa hist6ria de escravos", mas
qualquer pail mae, livre ou escravo, um desvio prolongado de recursos deixou o ass unto para "melhores artistas". S6 mesmo urn Henry James para
para o "consumo" e, portanto, um entrave para a pou pan<;a. Contudo, para escrever esta variante de A fora na selva 190• A hist6ria, dessa vez, e a de urn
o pail mae escravo que sonha com resgatar sua familia do cativeiro, um filho hom em ativo, que procura e agarra seu destino - sai em busca do monstro
novo representa, alem disso, um acrescimo a "divida'' ao senhor - alias, da Boresta e o doma - , apenas para descobrir, tal qual o protagonista
um acrescimo que ira aumentar assustadoramente com a idade e o pre<;o passivo do conto de James, que tudo foi equivoco e que sua sina mesmo foi
de mercado da crian<;a 187• No raciodnio do casal retratado por Maria a de nem ter tido a vida que cabia a alguem em sua condi<;ao.
Graham, tais considera<;6es parecem ter contrabalan<;ado a perspectiva de "Equivoco" talvez nao seja a palavra. Alguns historiadores diriam que
ganhar, na pessoa de urn filho escravo "consumidor': urn futuro "trabalha- rudo foi engodo, e em dose dupla. Muitos cativos, como o escravo des-
dor/poupador" para os projetos da familia. crito por Graham, podem ter sido burlados por senhores que nao cum-
Nao e minha inten<;ao propor, com isso, uma nova explica<;ao para o priram sua parte num contrato implicito ou explicito, mas todos, como
fato de que as taxas de fecundidade escrava no Brasil eram relativamente grupo, teriam sido ludibriados por uma politica senhorial que, na medi-
baixas, quando comparadas as dos Estados Unidos 188 • Nao haveria base da em que facultava "melhorias" para os individuos, desarmava a possi-
empirica para isso e, em todo caso, uma explica<;ao baseada apenas nas es- bilidade de uma rebeliao coletiva. Nessa visao, a familiae a ro<;a, embora
trategias do casal descrito por Graham me soa simplista demais para uma uma "brecha'' para alguns escravos, teriam sido uma grande tapea<;ao para
realidade complexa. 0 que quero e .reiterar minha sugestao de que qualquer a escravatura.
teoria a respeito da demografia da escravidao, como, alias, sobre qualquer A afirma<;ao nao carece de base empirica. Vejamos outra hist6ria, inais
aspecto minimamente importante dessa institui<;ao, tera que levar em bern documentada que a de Graham, que retrata as estrategias de casais
considera<;ao os projetos e estrategias dos escravos. Se estivessemos tratan- escravos, ilustra boa parte de meu argumento ate agora- e aparentemen-
do de urn conjunto de camponeses ou da popula<;ao de baixa renda no te subverte meu raciodnio, chamando a aten<;ao para a "fun<;ao ideol6gica''
Brasil de hoje, essa sugestao seria banal; ao estudar os padr6es de fecundi- (como refor<;o para o escravismo) do casamento e do "lar" escravo. Saimos,
dade desses grupos, a primeira pergunta que urn pesquisador colocaria e aqui, dos livros dos viajantes e entramos novamente nos registros dos car-
"quais sao suas estrategias reprodutivas"? Se a indaga<;ao parece ins6lita no t6rios, mais especificamente num invent:irio post-mortem de urn casal de
caso de uma popula<;ao cativa, e apenas mais uma confirma<;ao da inBuen- fazendeiros em Vassouras.
cia, ainda hoje, de autores como Ribeyrolles nos estudos sobre a escravidao. No ano de 1882, o africano Samuel, escravo de "servi<;o domestico': tinha
Afinal, e dificil pensar que escravos "anomicos': ou cativos subordinados a razao para estar satisfeito e ao mesmo tempo desapontado. Aos 64 anos de
urn "modo de produ<;ao escravista colonial" brotado da cabe<;a dos senho- idade, ele havia reunido um peculio de 2oo$ooo (200 mil-reis) - uma
res, pudessem ter metas pr6prias e possibilidades de realiza-las 189• quantia consideravel, mas aquem do valor de sua liberdade, estimada na
A hist6ria contada por Maria Graham e fascinante, tambem, por seu epoca em 8oo$ooo (Boo mil-reis). Pensando na seguran<;a de seu dinheiro
desfecho ironico. 0 escravo que pautava boa parte de sua vida numa estra- e, talvez, na possibilidade de faze-lo render juros, Samuel entregou sua
tegia de aproxima<;ao do senhor, visando a liberdade e a constitui<;ao de uma poupan<;a a custodia do inventariante de seu falecido senhor. Este, logo em
familia livre, de certa forma foi bem-sucedido demais. Tornou-se tao valioso seguida, solicitou as autoridades judiciais que 0 peculio fosse depositado
ao senhor que este se recusou a alforria-lo, mesmo em troca de seu pre<;o em nome do escravo na "Caixa Economica ou Coletoria desta Cidade", de
de mercado e sua promessa de continuar na fazenda como trabalhador livre. acordo com os termos do decreto regulamentando a Lei do Ventre Livre.
Por outro !ado, o escravo calculou mal o tempo que levaria para comprar Segundo o dispositivo relevante, "o peculio do escravo sera deixado em
a alforria da mulher; quando conseguiu a liberdade do ventre, ja nao era mao do senhor ou do possuidor, se este o consentir [... ], vencendo o juro de
mais possivel ter filhos. Graham, impressionada, expressou o desejo "deter 6% ao ano"; contudo, o dinheiro "outrossim podera, com previa autoriza-

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<;:ao do juizo de 6rfaos, ser recolhido pelo mesmo senhot· ou possuidor :\s ela havia "coadjud[ado] a cria<;:ao" de varios filhos do falecido casal. Me-
esta<;:6es fiscais, ou a alguma caixa economica ou banco de dep6sitos" 191 • renciana, a mulher de Vidal, recebeu a liberdade nos mesmos termos em
Se Samuel nao obteve sua liberdade nesse momenta, seu companheiro 1874, aidade de 42. Se tivesse sido a unica pessoa de sua familia a ser liber-
de trabalho, o tambem africano Vidal, tivera mais sorte. Em1878, aos 56 tada gratuitamente, poderiamos pensar que a a<;:ao de seus donas fosse
anos de idade, Vidal conseguira sua alforria par 1:6oo$ooo (1 canto, 6oo influenciada apenas par seu estado de saude (ela foi descrita como "aliena-
mil-reis), o valor de sua avalia<;:ao nessa epoca. 0 dinheiro fora recebido da'', isto e, clemente, com "nenhuma aptidao" para 0 trabalho, em 1872).
pelo inventariante "do Tesouro Nacional" - possivelmente do Fundo de No mesmo ana de 1874, contudo, sua mae, Elvira, uma africana de 62 anos,
Emancipa<;:ao ou de uma conta de poupan<;:a na coleta ria, contendo o pe- tam bern foi manumitida incondicionalmente, par doa<;:ao de seus senhores.
culia do libertando, ou talvez de ambas as fontes 192 • Seja qual for a origem Isso apesar de gozar de boa saude; Elvira tinha "boa aptidao" para o traba-
desse pagamento, outros documentos no invend.rio sugerem que Vidal, lho de "lavadeira'' em 1872 e aparecia na rela<;:ao do inventariante como o
do mesmo modo que Samuel, havia acumulado uma poupan<;:a e fornecem segundo recebedor de salarios entre libertos e escravos, apenas atras de seu
pistas sabre como ele e seu companheiro fizeram isso. genro, VidaP 94 •
De acordo com as presta<;:6es de contas do inventariante e de um admi- Todos esses escravos pertenciam ao grupo de 14 pessoas, que, segundo
nistrador, a fazenda em que Samuel e Vidal residiam gastou aproximada- o documento da matricula de escravos de 1872, fora recebido par seus
mente 3:431$000 (3 cantos, 431 mil-reis) em pagamentos a escravos entre senhores via herant;:a. Nesse grupo predominavam os escravos casados, o
novembro de 1877 e agosto de 1882, on em torno de 127$000 (127mil-reis), que nao era o caso entre cativos havidos par compra ou doa<;:ao. Nao ha
em media, para cada urn dos 27 cativos adultos (acima de 15 anos) da proprie- duvida, portanto, de que Samuel e Vidal aproveitaram de sua situa<;:ao
dade. Os gastos incluiram gratificat;:6es a escravos par servi<;:os diversos - relativamente estavel como "escravos da casa'' para criar, ao longo do tem-
par exemplo, "pela limpa dos cafezais': "pela colheita': pelo "arrancamento po, uma economia domestica em torno do casamento (e no caso de Samuel,
de formigas" - e pagamentos de "alugueis" (salarios) de escravos nos do- pelo menos, em torno de uma "rot;:a'' pr6pria), visando entre outras coisas
mingos e dias santos. Mais de dais ter<;:os do total desses gastos, contudo, aforma<;:ao de urn peculia. Ambos, tambem, seguiram uma estrategia de
a
se destinaram compra de "mantimentos" ("milho" ou "feijao': quando h:i aproxima<;:ao ao senhor - Samuel em cons6rcio com sua esposa, Vidal
discrimina<;:ao) vendidos pelos pr6prios cativos. 0 administrador nao conjuntamente com sua sogra, senao com sua mulher. Ao entregar suas
identifica nominalmente as pessoas que receberam esses varios tipos de poupan<;:as ao don: a ou a seu representante, Samuel (e Vidal tambern, se
pagamento. 0 inventariante, contudo, faz isso num documento relacio- assim procedeu) demonstrava, pelo menos no teatro das representa<;:6es,
nando quase que exclusivamente escravos capatazes, domesticos e qualifi- que nao tinha a interi<;:ao de fugir do cativeiro ou de contestar radicalmen-
cados, alem de alguns livres e libertos: isto e, pessoas com maior cantata te sua subjuga<;:ao. A estrategia de aproxima<;:ao deu certo, especialmente
com a casa-grande. Dentre estas, quem mais assiduamente vendia manti- para Vidal. Empregado no "servi<;:o de rot;:a'' em 1872, ele havia consegui-
memos ao esp6lio era Samuel. Quem mais se oferecia para trabalhar por do ser promovido a "carreiro" antes de sua avalia<;:ao no esp6lio em 1877,
"salarios': entre escravos e ex-escravos identific:iveis, era Vidal, qualificado o que provavelmente lhe garantira salarios mais altos e mais constantes
sempre no documento como liberto 193 • em seus dias de "folga'', quando podia trabalhar para si. Alem disso, na
Esses africanos se casaram com mulheres "crioulas", pertencentes ao hip6tese de ele nao ter tido poupan<;:a suficiente para adquirir sua liber-
mesmo senhor, que depois foram libertas "a titulo gratuito". Christiana, a dade - isto e, de o Fundo de Emancipa<;:ao ter pago toda ou parte de sua
esposa de Samuel, empregada no "servi<;:o de rot;:a'' e de "boa aptidao" para alforria - , o beneplacito de seu senhor teria sido essencial; de acordo com
0 trabalho em 1872 (de acordo com a matricula de escravos nesse ana), foi a lei que regulamentava a a<;:ao do Fundo, "na ordem da emancipa<;:ao das
alforriada sem onus e sem condit;:6es em 1878, aos 46 anos de idade. A familias e dos individuos, serao preferidos [... ] os mais morigerados a juizo
pessoa que a libertou - o marido de uma das herdeiras - explicou que dos senhores" 195 •

210 211
nno-u•.,•••"''f'*•u u "'"""''"'"'"""...,."""J''~"n•

Essa hist6ria certamente ilustra a "importanda [para o escmvo] - tan- implica<;6es da "posse" (de propriedade e de recursos pr6prios) para o in-
to economica quanto psicol6gica" - da economia interna dos escravos, dividuo cativo e para seu grupo.
ja notada pelo historiador Eduardo Silva, entre outros. Ao mesmo tempo, Em estudo recente, Flavia dos Santos Gomes sugere que as trocas rea-
poderia ser lida como uma confirmas:ao do argumento do proprio Silva lizadas entre escravos e quilombolas, possibilitadas por uma produs:ao
(e de Gorender), de que essa economia, antes de mais nada, funcionava "camponesa'' complementar, aumentaram os recursos disponiveis dos ca-
197
como um forte mecanismo de controle social. No seculo XIX, ja havia tivos, modificando, portanto, os termos de sua relas:ao com os senhores •
fazendeiros que pensavam da mesma forma. Como nota Silva, os cafCi- 0 argumento identifica exatamente o cerne da questiio da "economia in-
cultores de Vassouras, preocupados com a possibilidade de uma revolta terna dos escravos"; e necessaria centrar a atens:ao sobre 0 que efetivamen-
escrava, reuniram-se em 1854 para recomendar, entre outras coisas, "que te essa economia implicava para o embate cotidiano dos cativos com seus
os escravos tenham ro<;:as e se liguem [dessa forma] ao solo pelo am or da senhores. 0 discurso da classe dominante sobre o assunto, entendido ao
propriedade; o escravo que possui nem foge, nem faz desordens" 196 • Enfim, pe da letra, contribui muito pouco para isso. Mais infrudfera ainda e a ·
muitos senhores tambem viram na abertura de uma "fenda" para o indi- tentativa de descobrir o "estatuto" da economia domestica do escravo
viduo cativo uma maneira de tampar eventuais "gretas" na muralha do dentro de urn modelo preconcebido das "estruturas" do escravismo - es-
sistema escravista. pecialmente se esse modelo se assenta, de maneira acritica, no discurso de
198
A constata<;:ao deveria soar como sinal de alarm e. Os senhores, e verda- senhores e de outros observadores brancos da epoca • Se existe "urn Sao
de, eram "observadores participantes" de sua relas:ao com os escravos. Como Domingos inscrito como possibilidade em cada sociedade escravista': como
resultado, nao incorreram no erro de Ribeyrolles; ao contrario, perceberam diz Antonio Barros de Castro, entao o trabalho de pesquisa e de constru~ao
que a determinas:ao dos escravos em melhorar sua condi<;:ao, se necessaria te6rica tern que se concentrar exatamente onde estao "riscados" (nos dois
com a fuga ou outras formas de rebeldia, fez com que fosse possivel a aplica- sentidos - tras:ados ou apagados) os "pontos" dessa insurrei<;:ao, ou seja,
99
s:ao de uma "politica de incentivos". Contudo, os senhores eram apenas na experiencia dos escravos, vivida aluz de sua heran<;:a culturaP •
uma das partes nessa relas:ao. Como parte dominante, preocupavam-sc Proceder de outra forma e dar estatuto te6rico aos axiomas dos escra-
acima de tudo em manter seu dominio; portanto, seu discurso traduzia, vocratas; e seguir o exemplo anterior dos analistas da "anomia'' escrava,
entre outras coisas, a necessidade de se convencerem a si mesmos de sua que, no fun do, deram respeitabilidade te6rica as ideias de viajantes como
capacidade de controlar seus subordinados. Frases tais como "o escravo que Ribeyrolles. Para superar esses desvios do olhar, e necessaria reconhecer o
possui nem foge, nem faz desordens" nasciam exatamente para isso. Sao escravo como sujeito hist6rico e deslocar o enfoque para as "coisas miudas".
declara<;:6es que transformam processos hist6ricos reais e de mao dupla em Sim, Sr. Ribeyrolles, o trabalho para o escravo era "aflis:ao e suor", era "a
axiomas, nos quais aparentemente s6 o enunciante detem a iniciativa. Ou, servidao". De fato, o cativo nao sentia "as austeras e santas alegrias do tra-
dito de outra maneira, congelam o conf!ito, fazendo com que se esques:a o balho", isto e, nao chegou a elevar "o trabalho" praticamente ao nivel de
escravo que, nada possuindo, convenceu o senhor a formular o axioma uma religiao, como se fazia no ideario burgues. Mas isso nao quer dizer que
atraves de sua fuga de ontem. seu futuro estivesse inteiramente fechado; como vimos, existia para ele a
0 problema principal, contudo, nao e esse. E que OS senhores, como ja possibilidade de tirar da afli<;:ao e do suor uma vida melhor, mesmo que
vimos, eram estranhos ao mundo mais intimo de seus cativos, e estes, por aliberdade nao chegasse a se concretizar. 0 escravo que trilhava esse cami-
sua vez, nao se interessavam em abrir-lhes "janelas" para as senzalas. 0 nho, igual ao quilombola, levantava seu "mocambo"; resgatava seu passado,
axioma senhorial, portanto, mesmo descontado seu malabarismo de fazer que nao era apenas a dor, e usava-o para enfrentar o que vinha pela frente.
sumir a hist6ria, dificilmente encerraria mais do que uma verdade parcial. Cultivando sua "ro<;:a'' urn dia por semana e tentando formar uma familia
Enfim, uma declara<;:ao como a de que "o escravo que possui nao foge", e urn "lar" em torno dela, ele nao virava apenas uma setima parte de urn
ainda que captasse a aparencia das coisas, certamente nao esgotaria as campones, ganhando com isso urn certo espa<;:o psicol6gico, porem conti-

212 213
IIUI-Itl,l"t.•'lyll"t"' tJ ''n""''"""''""""r•y--n••

nuando a ser na sua maior parte (ou essencialmcntc) "cscmvo': Elc con- sodedad preindustrial. Barcelona: Editorial Cdtica, 1979, pp. 13-61; e idem, A formaflio da
quistava "direitos" e formava uma visao de economia moral que ajudava a classe opcrdria inglesa, 3 vols. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
aglutinar sua comunidade, solidificando a determina~ao coletiva de colocar Como Thompson, nao sou avesso a utilizac;ao de metaforas para fins heuristicos, contanto

limites explora~ao senhorial. E, mais importante do que isso, adquiria


a que se lembre que sao apenas meraforas. Para uma posic;ao te6rica diametralmente oposta
a de Thompson, ver Jacob Go render, 0 escravismo colonial. Sao Paulo: .Atica, 1985; e A es-
condi<;:oes para (re)criar uma cultura e uma identidade propria, que torna- cravidiio reabilitada. Sao Paulo: .Atica, 1990. Nesse ultimo livro, Gorender dirige suas criti-
vam a familia e a ro<;:a muito mais do que um engodo ideologico, mesmo cas especialmente ao que de chama de "a escola da Unicamp"; essa "escola'; de fato, procura
para aqueles que se empenhavam emmelhorar sua situa<;:iio atraves de uma resgatar o "escravismo" - isto e, o conceito -, devolvendo-lhe urn conteudo de "lura de
estrategia de aparente colabora<;:iio com o senhor. classes" no sentido thompsoniano. Sobre esse debate "no interior das esquerdas~ ver Silvia
Lara, "Gorender escraviza hist6ria'', Folha de S.Paulo, 12/1/1991, Caderno Letras, p. F-2.
Na verdade, o "lar" e a ro~a constituiram-se como uma encruzilhada da Sobre a "invenc;ao" da cultura, a formac;ao (eo fazer-se) de "comunidades imaginadas" (et-
identidade, onde se encontravam tradi<;:oes africanas de diversas origens: nicas e nacionais) e a centralidade das "luras culturais" na formac;ao da identidade social,
o imago do processo de cria~ao de uma classe ou, talvez, de uma na~ao 21111 • ver, entre ourros estudos, Fredrik Barth, (org.), Ethnic Groups and Boundaries: The Social
Garantiram que, mesmo onde nao parecia haver chispa alguma, pudessc Organization of Culture Dijfirence. Boston: Little, Brown and Company, 1969; Manuela
Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros. Sao Paulo: Brasiliense, 1985; Roy Wagner, The
explodir um incendio a qualquer instante para devorar os senhores e sua Invention of Culture, ed. rev. e ampl. Chicago: The University of Chicago Press, 1981;
sociedade. No proximo capitulo, veremos em mais detalhe o "fogo" na Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of
forma<;:ao dessa identidade escrava. Nationalism, 2• ed. rev. Londres: Verso, 1991; Eric Hobsbawm, Nations and Nationalism
Since 1788, 2• ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1992; Stanley Aronowitz, Roll
Over Beethoven: the Return ofCultural Strifo. Havover: Wesleyen University Press, Univer-
sity Press ofNew England, 1993.
Notas Julio Ribeiro, A carne. Rio de Janeiro: Edic;oes de Ouro, s.d., pp.101, 231.
9
J. J. von Tschudi, Viagem tis provincias do Rio de janeiro e Sao Paulo. Trad. Eduardo de Lima
Charles Ribeyrolles, Brazil pittoresco: historia-descripfoes-viagens-instituifoes-colonisaflio, Castro. Belo Horizonte: ltatiaia; Sao Paulo: Edusp, 1980, p. 57·
10
edic;ao bilingue (frances-portugues), 2 vols. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1859, Agostinho Marques Perdigao Malheiro, A escravidiio no Brasil: ensaio histOrico, juridico,
vol. I, t. III, pp. 40-1 (trad. nossa do frances). social,·2 vols. Petr6polis: Vozes, 1976, vol. II, p. 129.
2 11
Jack Goody, The Culture ofFlowers. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, caps. 1, 8. Louis Coury, L'Esclavage au Bresil. Paris: Librairie de Guillaumin et Cie., 1881, pp. 74·5·
12
Ver dados detalhados sobre os animais registrados em invenrarios post-mortem em Paraiba Johann Moritz Rugendas, "lmagens e notas do Brasil'; trad. D. Clemente Maria da Silva
do Sul (Rio de Janeiro), emJoao Luis Ribeiro Fragoso, "Sistemas agririos em Paraiba do Nigra, Revista do SPHAN, XIII, 1956, pp. 17-84, trecho citado p. 36. Esse trabalho, apresenta-
Sul (1850-1920)- Urn estudo de relac;oes nao capitalistas de produc;ao". Dissertac;ao de do como obra inedita por David James, "Rugendas no Brasil: obras ineditas'; Revista do
mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1983, pp. 56, 58. SPHAN, XIII, 1956, pp. 9-16, na verdade e praticamente identico, salvo alguns cortes e acres-
4
Poi muito util para essa pesquisa o indice tematico preparado por Leite et al., referente aos cimos, aJoao Mauricio .Rugendas, Viagem pitoresca atraves do Brasil, 4" ed. Trad. Sergio Milliet.
livros de 153 viajantes que visitaram o Rio de Janeiro (provincia e cidade) no seculo XIX: Sao Paulo: Martins, 1949, pp. 41-50,102-27,138-205 (c£ p.180 desselivro parao trecho cita-
Miriam Lifchitz Moreira Leite, Maria Lucia de Barros Motte Bertha Kauffmann Appen- do aqui: "[os senhores] facilitam o casamento entre os seus escravos [... ]. [Mesmo assim],
zeller, A mulher no Rio de janeiro no seculo XIX: um indice de referencias em livros de via- "ocorre [...] que as relac;6es entre escravos do sexo feminino e do sexo masculine tornam
jantes estrangeiros. Sao Paulo: Fundac;ao Carlos Chagas, 1982. impossivel a severa observancia da moral ou a perseveranc;a conscienciosa na fidelidade con-
5
Ver Tabelas 1 e 9 no capitulo 2. jugal"). Umacomparac;ao dos dois textos como original (Johann Moritz Rugendas,Malerische
6
Ver, por exemplo, Robert W. Slenes, "'Malungu, ngoma vern!': Africa encoberta e desco- Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & Cie., 1835) revela que a traduc;ao de "lmagens e notas .. :'
berta no Brasil'; Cadernos do Museu da Escravatura, n" 1. Luanda: Ministerio da Cultura, tende a sera mais fie!; por isso, prefiro cit:i-la aqui. Rugendas visitou principalmente o Rio
1995. E evidente que tambem e necessario conhecer o mundo dos senhores e dos outros de Janeiro e Minas Gerais; contudo, tambem passou por Salvadore Recife na volta para a
grupos sociais que comp6em uma determinada sociedade escravista. Europa. 0 texto do livro de Rugendas foi escrito por seu amigo Victor Aime Huber. Na
7
composic;ao do texto, Huber aparentemente manteve urn contato estreito com Rugendas,
Evidentemente, as lutas de urn dado momento sao condicionadas por lutas anteriores, as
mas tambem recorreu a bibliografia "secundaria'' existente (normalmente sem indicar suas
quais muitos dao o nome de "estrururas'; urilizando uma merafora cara ao seculo XIX.
fontes), expecialmente ao livro de Henry Koster sobre Pernambuco (ver Henry Koster,
Adoto aqui a posic;ao de E. P. Thompson, "La sociedad inglesa del siglo XVIII: {Luta de
clases sin clases ?'; in Tradicion, revuelta y conciencia de clases: estudios sobre la crisis de la
Travels in Brazil, 2• ed. 2 vols. Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1817 [1816]).
Portanto, se podemos supor que as gravuras de Rugendas tern uma base na sua propria ob-

214 215
c
servac;:ao em primcira mao, isso niio ncccssariamcntc o caso em sc tratando das inf'(mna~<>cs 23 Joao Cardoso de Menezes e Souza, Theses sobre coloniza[iiO do Brasil[. ..] Relatorio apresen-
etnognlficas em seu texto. Ver Robert W. Slcncs, ''As pwvac;:ocs de um Abraiio africano: a tado ao Ministerio da Agricultura, Commercio e Obras Publicas em 1875. Rio de Janeiro,
nascente nac;:ao brasileira na Viagem alegorica de Johann Moritz Rugcndas'; Revista de I listtl" 1875, pp. 166, 169-70.
ria da Arte e Arqueologia, n• 2. Centro de Pesquisa em Hist6ria da Arte e Arqucologia, 24 Citado em Augustin Cochin,EA.bolition de L'esclavage. Paris: Editions Emile Desormeaux,
IFCH-Unicamp, 1995-1996, pp. 271-94. 1979 [1861], p. 65.
13
Jean-Baptiste Debret, Viagem pitoresca e historica ao Brasil, 3 vols. em 2 tomos. Bclo Hori" 25 Isaac Joseph, Philippe Fritsche Alain Battegay, Recherches, n• 28, Disciplines aDomicile:
zonte: Itatiaia, 1978, t. I, vol. II, p. 268. !'Edification de Ia Famille, numero tematico, nov., 1977; Jacques Donzelot, A policia das
14
Idem, op. cit., t. II, vol. III, p. 202. familias. Rio de]aneiro: Graal, 1980.
15
George Gardner, Travels in the Interior ofBrazil Principally through the Northern Provin- 26 Ver o estudo sugestivo de Jurandir Freire Costa, Ordem medica e norma familiar. Rio de
ces and the Gold and Diamond Districts During the Years 1836-1841. Boston: Milford Janeiro: Graal, 1979·
House, 1973, p.14 (republicac;:ao da edic;:ao de 1846, Londres). 27 Samuel Smiles, Economia domestica moral ou a ftlicidade e a independencia pelo trabalho e
16
C. F. van Delden Laerne, Brazil and java: Report on Coffie Culture in America, Asia and pela economia. Trad. Jacintho Cardoso da Silva. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1880, p.19.
Africa. Londres: W. H. Allen; A Haia: Martin us Nijhoff, 1885, pp. 253-4. Laerne conti" Outros dois livros de Smiles, ja publicados, foram anunciados por Garnier nessa obra, sem
nuava: "encontrei tantas noc;:6es erroneas, tantos dados que os pr6prios fazendeiros, a quem indicac;:ao da data de sua edic;:ao: 0 caracter e 0 poder da vontade, ou Caracter, comporta-
diziam respeito, questionavam imediatamente, que preciso declarar com toda franqueza mento e perseveran[a, 2' ed.
que o trabalho do Dr. Couty, por mais merito que tenha em muitos respeitos, foi comple- 28 Sidney Chalhoub, Trabalho, fare botequim. 0 cotidiano dos trabalhadores no Rio de janeiro
tamente inadequado como guia para a redac;:ao de meu relat6rio" (o Etude de Biologie In- da "belle epoque". Sao Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 39-40; Celia Maria Marinho de Azeve-
dustrielle... , de Coury, foi publicado no Rio de Janeiro em 1883). do, Onda negra, medo branco. 0 negro no imagindrio das elites - Seculo XIX. Rio de Janeiro:
17
Coury, L'Esclavage... , p. 68. Paz e Terra, 1987, esp. caps. II, IV; Lilia Moritz Schwarcz,Retrato em branco e negro.jornais,
18
Ver Stanley]. Stein, Vassouras: a Brazilian Coffie County, 1850-1900, 2' ed., com novo Pre- escravos e cidadaos em Sao Paulo no final do seculo XIX. Sao Paulo: Companhia das Letras,
facio e fotografias. Princeton: Princeton University Press, 1985, p. 155 (c£ idem, Vassouras:
1987, pp. 163 e segs., esp. pp. 224-26, 232-40.
um municipio brasileiro do cafl, 1850-1900. Trad. Vera Bloch Wrobel. Rio de Janeiro: Nova 29 Sobre a alta proporc;:ao de africanos entre escravos adultos no Sudeste do Brasil na primeira
Fronteira, 1990, p. 191); Roger Bastide, As religioes afticanas no Brasil: contribuifliO a uma metade do seculo XIX, ver Robert W. Slenes, "'Malungu, ngoma veml'..:', p. 55·
sociologia das interpenetrafoes de civilizafoes, 2 vols. Trad. Maria Eloisa Capellato e Olvia Mary Karasch, Slave Life in Rio de janeiro, 1808-1850. Princeton: Princeton University
30
Krahenbuhl. Sao Paulo: Pioneira, Edusp, 1971, vol. I, p. 89; Florestan Fernandes, A integra-
Press, 1987, cap. 1, esp. pp. 13-6; Slenes, "'Malungu, ngoma veml'...".
flio do negro na sociedade de classes, 2 vols. Sao Paulo: Dominus, Edusp, 1965, vol. I, p. 36. Willy de Craemer,Jan Vansina e Renee C. Fox, "Religious Movements in Central Africa:
19 31
Ver Edward Shorter, "Sexual Change and illegitimacy: the European Experience'; in Robert
a Theoretical Study", Comparative Studies in Society and History, 18 (4), out., 1976,
Bezucha (coord.), Modern European Social History. Lexington (MA): D. C. Heath, 1972,
pp. 458-75, trecho citado p. 475· Corrijo urn erro no original (homogeneous): o contexto e
pp. 231-69; e Edward Shorter, John Knodel e Etienne van de Walle, "The Decline of
o sentido da frase claramente requerem que a palavra seja heterogeneous. Ver Karasch,
Non-Marital Fertility in Europe, 1880-1940'; Population Studies, vol. XXV, n• 3, nov., 1971,
Slave Life... , cap. 9, para urn instigante estudo da religiosidade negra no Rio de Janeiro no
pp. 375"93· (A maior parte dos dados nesses estudos sao para paises no Norte e Oeste da
seculo XIX, feito a partir da perspectiva de Craemer et al., "Religious Movements .. .".
Europa.) Ver tambem Peter Laslett, "Introduction: the History of the Family'; in Peter
32 Craemer et al. ("Religious Movements .. :', p. 463) reconhecem que seu conceito de cultura
Laslett (coo rd.), Household and Family in Past Time. Cambridge: Cambridge University
deve muito a Clifford Geertz e Jack Goody. Ver especialmente Clifford Geertz, "The Impact
Press, 1972, pp. 16-7. Sobre a Peninsula Iberica, ver Antonio Candido, "The Brazilian Fa-
of the Concept of Culture on the Concept of Man'', in J. Platt (org.), New Views qf the
mily'; in T. Lynn Smith e Alexander Marchant (coords. ), Brazil: Portrait q/Haifa Continent.
Nova York: Dryden Press, 1951, pp. 300-1; e Emilio Willems, Latin American Culture. An Nature ofMan. Chicago: University of Chicago Press, 1966, pp. 93-118.
Anthropological Synthesis. Nova York: Harper and Row Publishers, 1975, pp. 52-3. Segundo 33 Craemer et al., "Religious Movements ...", trecho citado p. 463.
este ultimo (p. 53), em Portugal e na Espanha "a uniao consensual [...] era um padrao cul- 34 Wyatt MacGaffey, "Lineage Structure, Marriage, and the Family Amongst the Central
tural com raizes profundas, nao um desvio; certamente foi transplantada para a America Bantu",journal qfAftican History, 24 (2), numero especial sobre a hist6ria da familia na
[Latina], onde encontrou urn ambiente receptivo, especialmente entre o campesinato e os Africa, 1983, pp. 173"87, trecho citado p. 181.
trabalhadores rurais". 35 A. [Audrey] I. Richards, "Some Types ofFamily Structure Amongst the Central Bantu",
20 in A. R. Radcliffe-Browne Darylle Forde (coords.), Aftican Systems qfKinship and
Joaquim Manoel de Macedo, As vitimas algozes. Quadros da escravidao, 2 vols. Rio deJa-
neiro: Typographia Perseveranc;:a, 1869, vol. II, pp. 6o, 91, 115, 21, 273· Marriage. Londres: Oxford University Press, 1950, pp. 207-51, trechos citados
21
Ribeyrolles, Brazilpittoresco... , vol. I, t. III, pp. 47-8 (trad. nossa do frances). pp. 207,211.
22
Enrico Hillyer Giglioli, Viaggio Intorno a! Globo della Pirocorvetta Italiana Magenta negli 36 Hoje, OS falantes dos varios dialetos de kikongo geralmente sao considerados membros do
Anni 1865-66-67-68 Sotto if Comando del Capitano de Fregata V. F. Arminjon. Relazione mesmo grupo etnolinguistico, os "Bakongo"; da mesma forma, os falantes de kimbundu
Descrittiva e Scientifica [. .. }. Milao: V. Maisner e Compagnia, Editori, 1875, p. 59·

217
216
no•·n•'"',~"" n '""""""''''""'""••••J•""'"._.

41 Igor Kopytoff (coord.), "Introduction", The African Frontier: the Reproduction of Tra-
sao agrupados como "Mbundu", cos 1-illanccs de umbundu silo considcrados "Ovimlmndu".
Contudo, a "tomada de conscicncia" dcsscs grupos como "ctnias" stS sc d:\ a partit· do iniclo ditional African Societies. Bloomington: Indiana University Press, 1987, p. 22. Sobre a
do seculo XX, como impacto do colonialismo europcu. Segundo Miller, "o sentiment<> de
migra~ao para a "fronteira interna'' na .Africa Central, ver Joseph C. Miller, "Lineages,
Ideology, and the History of Slavery in Western Central Mrica'', in Paul E. Lovejoy (coord.),
que existe uma identidade mbundu co mum [... ] ede origem relativamcntc rcccntc c niio sc
deve permitir que tal sentimento contribua a falsa impressao de que uma unidadc scmc- The Ideology ofSlavery in Africa. Beverly Hills: Sage Publications, 1981, pp. 41-72.
42 ,As tres definic;:oes constam em A. de Assis Junior, Diciondrio kimbundu-portugues: lingufs-
lhante existia no passado" (Joseph Miller, Kings and Kinsmen: Early Mbundu States in
Angola. Oxford: Clarendon Press, 1976, p. 40 ). MacGaffey faz observa~6es semelhantcs tico, botanico, historico e corogrdfico. Luanda: Argente, Santos e Cia., s.d., verbete sanzala.
Renato Mendonc;:a, A influencia africana no portugues do Brasil, 2• ed. Sao Paulo: Compa-
sobre os Bakongo; os pr6prios termos "bakongo" e "kikongo" sao cunhados apcnas
nhia Editora Nacional, 1935, p. 241, deriva "senzala'' do kimbundu sanzala, "povoado''; Jose
por volta de 1910 (Wyatt MacGaffey, "Ethnography and the Closing of the Frontier in
Pedro Machado, Diciondrio etimol6gico da lingua portuguesa, 2• ed. 3 vols. Lisboa: Editorial
Lower Congo, 1885-1921",-4frica, 56 (3), 1986, pp. 263-79, esp. pp. 269-70; "The Eyes of
Confluencia, 1967, verbete "senzala': segue Mendon~a. Sem indicar sua fonte, o Novo di-
Understanding: Kongo Minkisi", in Wyatt MacGaffey e Michael D. Harris (coords.),
Astonishment and Power. Washington (DC): National Museum ofMrican Art, Smithsonian ciondrio Aurelio diz que "senzala'' vern do kimbundu "sanzala, com dissimilac;:ao [sic)"; ora,
nenhum dos dicionarios de kimbundu que consultei apoia essa afirmac;:ao (Aurelio Buarque
Institution Press, 1993, pp. 22-3). Enfim, nao podemos supor que, na epoca do trafico
de escravos, os varios grupos de fa!antes de kimbundu (ou de kikongo ou umbundu) com- de Holanda Ferreira, Novo diciondrio da lingua portuguesa, 13 ed. [15' impr.) Rio de Janeiro:
partilhavam uma identidade comum. Mesmo assim, e importance destacar outra frase de Nova Fronteira, s.d.).
43 Roger Bastide, Les Religions Africaines au Bresil: Vers une Sociologie des Interpenetrations
Miller a respeito dos Mbundu e relevance tambem para os Bakongo e Ovimbundu: "os
dados disponiveis mostram que algumas das caracteristicas mais basi cas da cultura e socie- de Civilisations. Paris: Presses Universitaires de France, 1960, p. 279· C£ a versao brasileira:
dade mbundu sempre tern ocorrido em distribui~6es nao congruentes que coincidem
As religioes africanas no Brasil, vol. II, p. 280. A formulac;:ao de Bastide aqui e extremamen-
[overlap) com [caracteristicas de] outros povos circunvizinhos. Esses fatos fazem com que te instigante e muito "avanc;:ada'' para seu tempo. Contudo, ha resquicios em seu livro da
seja dificil identificar divisoes etnicas p;ofundas na parte ocidenta! de Angola" (Miller, "rigidez dos 'modelos' de comportamento" que ele mesmo critica. Por exemplo; num
momenta ele argumenta que, como as condic;:6es da escravidao nao permitiam a formac;:ao
Kings and Kinsmen ... , p. 40).
37 de casamentos escaveis, conduzindo a "uma vasta prostituic;:ao primitiva'', "a ignorancia da
Anne Hilton, "Family and Kinship Among the Kongo South of the Zaire River from the
paternidade [sic) punha lim ao culto domestico" dos escravos ioruba e daomeanos, ja que
Sixteenth to the Nineteenth Centuries'Journal ofAfrican History, 24 (2), 1983, pp.189-206.
38 os orixds e voduns de pessoas dessas etnias "transmitiam-se atraves da linha masculina''. Mais
Schula Marks e Richard Rathbone, "The History of the Family in Mrica: Introduction",
adiante, no entanto, ele reconhece que as culmras daqueles povos ofereciam outras saidas.
journal ofAfrican History, 24 (2), 1983, pp. 145-61, trechos citados pp. 152-3.
Dessa forma, "sea escravidao, ao desagregar as linhagens, impedira que a regra costumeira
Sidney W. Mintz e Richard Price, '~n Anthropological Approach to the Afro-American
39

Past: a Caribbean Perspective", ISH! Occacional Papers in Social Change, n 2 2. Filadelfia: africana continuasse, codas as outras alternativas [permitidas por sua cultura] permaneciam
possiveis; e elas sao, de fato, aplicadas: herda-se o orixd, seja do pai ou da mae" (Les Religions,
Institute for the Study of Human Issues, 1976, p. 7· A distin~ao feita por Mintz e Price
entre "cultura" e "heranc;:a cultural" (cultural heritage) e muito uti!: "Concebemos a cultu- pp. 83, 280; c£ As religioes, vol. I, p. 89, vol. II, p. 280 ).
ra como estreitamente ligada as formas institucionais que a articulam. Em contraste, a 44 Sobre o conceito de "experiencia'', ver E. P. Thompson, A formarao ... , passim.
45 Ver, por exemplo, Carol Stack, All our Kin: Strategies for Survival in a Black Community.
noc;:ao de uma heranc;:a compartilhada da .Africa Ocidenta! ad quire sentido somente dentro
Nova York: Harper and Row, 1974; Eunice R. Durham, A caminho da cidade: a vida rural
de um contexto comparativo, quando se pergunta quais sao as caracteristicas (se ha alguma)
que os varios sistemas culturais da .Africa Ocidental podem ter tido em comum". Elabora- e a migrarao para Sao Paulo, 2• ed. Sao Paulo: Perspectiva, 1978.
46 John Thornton, The Kingdom ofKongo: Civil war and Transition, 1641-1718. Madison: The
do para pensar o mundo que africanos da.Africa Ocidenta! forjaram no Caribe, o conceito
University of Wisconsin Press, 1983, p. 30. Ver tambem Max Gluckman, "Kinship and
de "heranc;:a cultural" pode servir tambem para a analise das vis6es e ac;:6es de pessoas da
Marriage Among the Lozi of Northern Rhodesia and the Zulu of Natal", in Radcliffe-
.Africa Central no Brasil; alias, o conceito de "cultura comum" de Craemer, Vansina e Fox
Browne Forde (coords.),African Systems... , p. 193: "e importance enfatizar que mesmo onde
e muito proximo ao de "heran~a cultural".
os casamentos sao inscaveis [na .Africa], eles sempre existem. [... ) Sempre, [...] a associa~ao
Mintz e Price ('~Anthropological Approach .. :', pp. 5, 7) tambem chamam a "heranc;:a
40

cultural" de "esses prindpios culturais de nivel profunda, pressupostos e compreens6es que para a gerac;:ao de filhos e institucionalizada e importance".
47 Melville Herskovits, Man and His Works. Nova York: Alfred A. Knopf, 1948, p. 296, cita-
cram compartilhados"; alem disso, eles sugerem que "uma heranc;:a cultural da .Africa Oci-
do em Willems, Latin American Culture... , p. 52. Entendo "permanencia" como um con-
dental [ ... ) tera que ser definida [ ...] enfocando mais os valores, e menos as formas socio-
culturais, e ate mesmo tentando identificar prindpios subconscientes, 'gramaticais', que ceito relativo, definido por cada cultura.
possam fundamentar e dar forma a resposta comportamenta!". Devo muito ao modelo de 48 Ver discussao no capitulo 2.
49 Hermann Burmeister, Viagem ao Brasil atraves das provincias do Rio de janeiro e Minas
mudanc;:a cultural desenvolvido por Mintz e Price e urilizarei em outra parte deste trabalho
sua merafora de "prindpios gramaticais [de nivel pro fun do)".
Gerais. Trad. Manoel Salvaterra e Hubert Schoenfeldt. Sao Paulo: Martins, 1952,

219
218
pp. 54, 135· Presumo que Bmmcistcr usava o f.its.,· pntssiano, rquivalcntc a 34,44 nn (vt·r barras muito scmclhantcs :\s que cxistcm na scnzala da Santa Maria. Pclo mcnos uma
Georg Heinrich von Langsdorff, Remarks and Observations on tl V!~y,zge /lromul tbt• 1'1/mlr/ parte dessa estrutura parece ter sido uma senzala-pavilhao, com espa<;:os intcrnos aproxi-
from 1803 to 1807, 2 vols. eml. Traduzido e anotado por Victoria Joan Moessner. King.1ton madamente do mesmo tamanho que os das outras senzalas visitadas.
54 Tschudi, Viagem ... , pp. 56-7, 52-3. Presumo novamente que a medida usada eo Fuss prus-
(Ontario), Fairbanks (Alasca): The Limestone Press, 1993, "Appendix: Weights and
Measures': pp. 237-40). siano, igual a 34.44 em (Langsdorff, Remarks... , pp. 237-40 ). Outro viajante que descrcvc
5
° Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, Barao de Pati do Alferes, Memoria sabre ajimdaflio a senzala-barracao e Lomonaco: "Nas grandes 'fazendas' os escravos dormem em longas
salas construldas expressamente para serem seus dormit6rios, divididas em muitos peque-
de umafazenda na provincia do Rio de janeiro. In trod. Eduardo Silva. Rio de Janeiro: hm-
da<;:ao Casa de Rui Barbosa; Brasilia: Senado Federal, 1985, p. 57 (1• ed. Rio de Janeiro: nos compartimentos por divis6rias feitas de ramos de arvore, separados os homens das
Laemmert, 1847). Urn palmo e igual a o,22 metro. Outra senzala-pavilhao e descrita, com mulheres". Lomonaco nao menciona tarimbas: os escravos dormiam "em esteiras de folha
menos detalhes, em Jose Alencar, 0 tronco do ipe. Rio de Janeiro: Edi<;:6es de Ouro, 1971 de palmeiraestendidas no chao" (Alfonso Lomonaco,AlBrasile. Milao: Leonardo Vallardi,
[1871], p. 21. Edit., 1889, pp. 306-7 ). Ver tambem Laerne, descrevendo a regiao cafeeira do Rio de Janei-
51
Ribeyrolles, Brazilpittoresco... , 1859, vol. I, t. II , p. 39 (trad. nossa do frances). ro: "as dez horas, em geral, eles [os escravos] sao trancados nos dormit6rios- cada sexo
52
A habita<;:ao, provavelmente feita de pau a pique, e coberta de telhas de ceramica e parccc separado ate a manha seguinte" (Laerne, Brazil andjava ... , p. 92). Tambem Smith, descrc-
relativamente boa, quando comparada as descri<;:6es de outras senzalas (Stein, Vassouras: a vendo uma fazenda de cafe no Rio de Janeiro, diz que "os homens e as mulheres sao tran-
Brazilian ... , fotografias das senzalas da Fazenda Sao Luis, depois da p.138, e descri<;:ao na cados em senzalas separadas, para dormir durante sete horas", sem, no entanto, explicitar
p. 43 (c£ idem, Vassouras: um municipio... , fotografias ap6s a p.16, e p. 70)]. A varanda na se sao senzalas do tipo barracao ou pavilhao (Herbert Huntington Smith, Brazil the
foto e na descri<;:ao tern uma grade feita de barras fortes de madeira: simples prote<;:iio Amazons and the Coast. Londres: Sampson Low, s.d. [1880], p. 526).
55 Stein, Vassouras: a Brazilian ... , pp. 43-4 e fotografias ap6s a p.138 (c£ idem, Jlassouras: um
contra o sol, ou medida de seguran<;:a (em combina<;:ao, talvez, com portas nas extremidades
da varanda que podiam ser trancada,_s)? Stein sugere que a varanda e o teto de telha eram municipio... , p. 70 e fotografias ap6s a p.16). Stein nao indica as fontes para sua descri<;:ao
melhoramentos nas senzalas que come<;:avam a aparecer com certa frequencia por volta de das senzalas, mas sua recria<;:ao do interior do cublculo do escravo casado s6 podia ser ba-
1850. 0 teto de telha, no entanto, pode ter sido visto pelo escravo como urn retrocesso; seada nas suas entrevistas com ex-escravos. (Note-se, por exemplo, o detalhe de que a ta-
afinal, o colmo propicia urn ambiente interno mais fresco e nao deixa a agua da chuva rimba do escravo era feita de "rabuas, apoiadas em dois cavaletes" - detalhe, alias, que, ao
respingar para dentro da casa, como acontece com a telha, quando nao ha forro. (Agrade- revelar a precariedade das condi<;:6es de alojamento dos escravos, refor<;:a a impressao trans-
<;:o a Miridan Britto Knox, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, por mitida par Tschudi, de que as divis6rias de madeira entre as tarimbas nas senzalas dos
chamar-me a aten<;:ao para esse fato.) Ver tam bern a breve descri<;:ao de senzalas-pavilhoes solteiros eram realmente pequenas e frageis.)
56 Giglioli, Viaggio Intomo al Globo... , pp. 52, 55·
nas fazendas Pau d1\lho e Barreiro, no municipio de Sao Jose do Barreiro (no Vale doPa-
ralba, Sao Paulo), em Luis Saia, "Notas preliminares sobre a Fazenda Pau d1\lho (Hist6ria,
57 Francis Castelnau, Expedirao ds regioes centrais da America do Sul. Trad. Oliverio M. de
restaura<;:ao e projeto de aproveitamento)'; Revista de Histtlria, 51 (102), ana XXVI, 1975, Oliveira Pinto, 2 vols. Sao Paulo: Companhia Editora Nacional, s.d. (1949], Brasiliana,
pp. 603, 612-3. Saia argumenta que a senzala desse tipo e de origem mineira. Serie Pedag6gica Brasileira, vols. 266, 266-A. Presumo que Castelnau usava o pied pari-
53
Essas observa<;:iies dizem respeito a tres fazendas visitadas no final de 1992: Sao Sebastiao, siense, igual a 1,07 pes norte-americanos (Langsdorff, Remarks... , pp. 237-40 ).
em Amparo (SP ), Santo Antonio (Fazenda Esteves), em Paralba do Sui (RJ), e Santa Maria
58 Maria Graham, Didrio de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse pais durante parte dos
(hoje Hotel Fazenda do Arvoredo), em Barra do Piral (RJ). As senzalas nessas fazendas anos de 1821, 1822 e 1823. Trad. e notas America Jacobina Lacombe. Sao Paulo: Companhia
estao em pe, mas passaram por modifica<;:6es significativas (as das duas primeiras foram Editora Nacional, 1956, p. 222, Brasiliana, Biblioteca Pedag6gica Brasileira, Serie V, vol. 8.
59 Rugendas, "lmagens e notas ...'; pp. 18-9. Sabre a dificuldade em usar o texto de Rugendas como
transformadas em estabulos ou cocheiras e ada terceira recentemente foi remodelada para
hospedar turistas ). Ainda assim, e posslvel apreciar muitos detalhes arquitetonicos originais. fonte etnografica, vera nota 12, acima, e Slenes, "As prova<;:6es de urn Abraao africano ...''.
60 Lomonaco, Al Brasile, pp. 306-7; "choupanas" esta em portugues no original.
Na Fazenda Santa Maria, os do nos garantem que o alpendre ( aproximadamente da mesma
61 Robert Walsh, Notfcias do Brasil, 2 vols. Trad. Regina Regis Junqueira. Bela Horizonte:
largura que a recomendada pelo Barao de Pati), inclusive com suas colunas de madeira, e
original, como tambem uma das janelas com barras na parede dos fundos; alem disso, nao ltatiaia; Sao Paulo: Edusp, 1985, vol. II, p. 172.
foram modificadas as dimens6es externas do predio nem o espa<;:o entre as portas. Nas
62 Adele Toussaint-Samson, Une Parisienne au Bresil, 2• ed. Paris: Paul Ollendorff, Editeur,
outras duas senzalas varias portas foram ampliadas e as paredes internas sofreram modifi- 1883, pp. 103 e segs.
ca<;:iies. A de Sao Sebastiao, contudo, eclaramente uma senzala do tipo pavilhao, tambem
63 Ina von Binzer, Os meus romanos. Alegrias e tristezas de uma educadora alemii no Brasil.
com alpendre, e no interior percebem-se os sinais das paredes derrubadas. As paredes ex- Trad. Alice Rossie Luisita da Gama Cerqueira. Sao Paulo: Paz e Terra, 1980, pp. 50-1.
64 Rugendas, "lmagens e notas .. .': p. 40.
ternas, inclusive a dos fundos, sao de taipa, e nao ha sinal de janelas. Nessa fazenda, como
na de Santa Maria, ha urn {mico pavilhao existente. Na Fazenda Santo Antonio a senzala e
65 G. W. Freireyss, Viagem ao interior do Brasil. Trad. A. Lofgren. Belo Horizonte: ltatiaia;
feita em forma de quadrado. Numa das paredes de fundo ha pequenas janelas contendo Sao Paulo: Edusp, 1982, p. 135.

220 221
66
Johann Moritz Rugcndas, Maleriscbe Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & Cic., 1835. Nova York: W. W. Norton, 1978, pp. 3-9; George W. McDaniel, Hearth and Home:
4• divisiio, Prancha 5, s.p. (litografia intitulada "Habitation de negrcs"). Karasch sugcrc Preserving a People's Culture. Filadelfia: Temple University Press, 1982, pp. 29-102; Charles
que essa casa e feita de tijolo (Karasch, Slave Lift... , pp. 127-8); fica claro, no en tanto, que Joyner, Down by the Riverside: a South Carolina Slave Community. Urbana: University of
e
Rugendas quis retratar uma casa de pau a pique, quando sua gravura colocada ao !ado Illinois Press, 1984, pp. 117-26; Mark L. Walston, "'Uncle Tom's Cabin' Revisited: Origins
das fotografias de constru<;6es desse tipo em Stein, Vassouras: a Brazilian ... , encartc entre and Interpretations of Slave Housing in the American South", Southern Studies, 24 (4),
as pp. 138-9 ("Parede externa, Fazenda de Castro[ ... ]"), e Rene Gardi, Indigenous African inverno, 1985, pp. 357-73; Mechal Sobel, The World They Made Together: Black and White
Architecture. Nova York: Van Nostrand Reinhold Company, 1973, p. 38 (Grasslands house, Values in Eighteenth-Century Virginia. Princeton: Princeton University Press, 1989,
nos Camar6es). (Em Stein, Vassouras: um municipio... , a fotografia "Parede externa..." niio cap. IX; Leland Ferguson, Uncommon Ground: Archaeology and Early African America,
esta no encarte ap6s a p. 16.) 1650-18oo. Washington: Smithsonian Insitution Press, 1992, pp. 63-82; John Michael
67 Vlach, Back of the Big House: The Architecture ofPlantation Slavery. Chapel Hill: The
Debret, Viagem ... , t. I, vol. II, Prancha 25, p. 269. Debret chama essas casas de cabanes
("cabanas" ou "cho<;as"); ver Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Bresil University ofNorth Carolina Press, 1993, cap. 11.
ou sijour d'un artistefranrais au Bresil depuis 1816jusqu'en 1831 inclusivement, 3 vols. Paris:
73 John Vlach, The Afro-American Tradition in Decorative Arts. Cleveland: The Cleveland
Firmin Didot Freres, 1834, 1835, 1839, vol. II, p. 83. Museum of Art, 1978, p.124. Vlach e os autores citados daqui em diante usam ope (foot)
68 norte-americana, igual a 30.48 em. Deve-se notar que o plano retangular, embora predo-
Ribeyrolles, Brazilpittoresco... , 1859, vol. I, t. III, p. 39 (trad. nossa do frances); Lomonaco,
AlBrasile, pp. 306-7; Walsh,Noticias... , vol. II, p.172; Toussaint-Samson, Une Parisienne... , minante na regiiio assinalada por Vlach, niio e universal. Entre os Ovimbundu, por exem-
pp. 103 e segs.; Binzer, Os meus romanos... , p. 50. Walsh (Noticias... , vol. II, encarte ap6s a plo, o plano "tradicional" das casas e circular (Wilfrid D. Hambly, The Ovimbundu of
p. 20) apresenta uma gravura de uma varzea ("The Vargem or Horse Pasture"), provavel-
Angola. Chicago: Field Museum of Natural History, Publication 329, Anthropological
Series, vol. XXI, n 2 2, 1934, p. 210; cf. Joachim John Monteiro, Angola and the River Congo,
mente aquela localizada bern perto dos barracos dos escravos que ele descreve em seu texto.
2 vols. Londres: MacMillan and Company, 1875, vol. II, gravura em frente a p.185). Ainda
Duvido, contudo, que as constru<;6es retratadas nesse quadro sejam senzalas, ja que sao
segundo Vlach, "a constru<;iio de pau a pique tambem se encontra aproximadamente na
maiores e bern mais altas que as choupanas descritas. Alem disso, em duas delas ha janelas.
mesma area''. Do ponto de vista hist6rico, a observa<;iio e muito discudvel; de acordo com
A porta excepcionalmente larga na terceira, com a presens:a de cavalos no primeiro plano
Balandier, na regiiio do antigo reino do Kongo essa tecnica, embora prevale<;a hoje, foi
da gravura, faz pensar que esses predios se destinavam a abrigar animais. Num estudo re-
cente sobre o Nordeste a<;ucareiro, conclui-se que Ia, tambem, no seculo XIX, "muitas
"empr~stada'' dos europeus (Georges Balandier, Daily Lift in the Kingdom ofthe Kongo
. from the Sixteenth to the Eighteenth Century. Trad. do frances por Helen Weaver. Nova
senzalas possuiam apenas portas de ingresso': isto e, niio tinham janelas (Esterzilda Berens-
tein de Azevedo, Arquitetura do arucar. Siio Paulo: Nobel, 1990 ). York: Pantheon Books, 1968, p. 142).
69 74 McDaniel, Hearth and Home... , pp. 34, 41-2, 89; Vlach, Afro-American Tradition ... ,
Tschudi, Viagem ... , p. 57· Ver tambem Laerne, Brazil and java... , p. 92, e Smith, Brazil...,
p. 526, citados acima na nota 54. pp. 125, 135· Cf. (Sir) Harry H. Johnston, George Grenfell and the Congo: A History and
70 Description ofthe Congo Independent State and Adjoining Districts of Congoland, 2 vols.
Ribeyrolles, Brazilpittoresco... , 1859, vol. I, t. III, p. 39 (trad. nossa do frances).
71 Londres: Hutchinson and Company, 1908, vol. II, p. 732: "[A] moradia retangular, cujo
Binzer, Os meus romanos... , p. 51.
72 teto e sustentado num pau de cumeeira e que e construida de postes, varetas e colmo,
As condi<;6es de moradia dos escravos norte-americanos melhoraram durante o seculo XIX.
seen contra ao Iongo da costa baixa da Guine, entre o rio del Reyno Norte [aproximada-
Segundo Genovese, "a pratica de alojar os escravos nos s6tiios de celeiros e esdbulos ou em
mente a divisa atual entre Nigeria e Camar6es] e a regiiio de Benguela no Sul". Ver tambem
barrac6es improvisados, muito comum no seculo XVIII, foi cedendo Iugar as unidades
Sobel, The World they Made Together. .. , cap. IX; Ferguson, Uncommon Ground... , pp. 62-83.
familiares individuais". Por volta de 1850, a grande maio ria das cabanas de escravos mediam
Utilizo "colmo" neste ensaio como equivalente a palavra thatch em ingles (que designa
16 por 18 (ou 20) pes (4,9 por 5,5 [ou 6,1] metros). Pelos censos de 1850 e 1860, o nll.mero
qualquer material vegetal entrela<;ado, usado para fazer tetos), ja que entendo que a palavra
medio de escravos por cabana ficava entre cinco e seis (Eugene D. Genovese, Roll jordan,
mais comum no Brasil, "sape", deveria ser usada apenas para o tipo especifico de capim
Roll: the World the Slaves Made. Nova York: Pantheon Books [Random House], 1974,
(Imperata brasiliensis) que tern esse nome.
pp. 524-6). Ver tambem William Dosite Postell, The Health ofSlaves on Southern
75 Jean Cuvelier (org. e trad.), Relations sur le Congo du pere Laurent de Lucques (1700-1717).
Plantations. Baton Rouge: Louisiana State Universiy Press, 1951; Kenneth M. Stampp, The
Bruxelas: Institut Royal Colonial Beige [Academic Royale des Sciences d'Outre-Mer],
Peculiar Institution: Slavery in the Ante-Bellum South. Nova York: Vintage Books (Random
Section des Sciences Morales et Politiques, 1953, p. So, Memoires, vol. XXXII, n• 2. 0
House), 1956, pp. 292-5; John W. Blassingame, The Slave Community: Plantation Lift in
trecho e citado em ingles em Balandier, Daily Lift... , p. 141, e tambern em Vlach, The Afro-
the Antebellum South. Nova York: Oxford University Press, 1972, pp.159-60; Carl Anthony,
American Tradition ... , p. 135· Trad. nossa de Cuvelier.
"The Big House and the Slave Quarters. Part I. Prelude to New World Architecture': 76 "Biografia de Mahommah G. Baquaqua'', Revista Brasileira de Historia, 8 (16), mar.-ago.,
Landscape, 20 (3), 1976, pp. 8-19; Carl Anthony, "The Big House and the Slave Quarters.
1988, p. 270 (trad. parcial de Mahommah G. Baquaqua,Biography ofMahommah G. Ba-
Part II. African Contributions to the New World': Landscape, 21 (1), 1976, pp. 9-15; Thomas
quaqua, a Nativo ofZoogoo, in the Interior ofAfrica. Org. Samuel Moore. Detroit: George
L. Webber, Deep Like the Rivers: Education in the Slave Quarter Community, 1831-1865.
E. Pomery and Co., Tribune Office, 1854).

222 223
77 primitivo do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Ministerio da Educas:ao e Saude, s.d., dese-
Walsh, Notlcias do Brasil..., vo!. II., p. 172 (vcr a dcscri<;i\o scmdhantc da divisi\o do csp:u;o
nhos no final do livro). Ora, esses fog6es sao muito parecidos com urn que foi registrado
nos bohios [chos:as) dos escravos cubanos em Rebecca]. Scott, Slave Bmtmdpation in Citba:
entre os Mboma, uma etnia localizada ao leste dos Bakongo, na regiao entre o rio Kwango
the Transition to Free Labor, 1860-1899. Princeton: Princeton University Press, 1985, p.18).
e o baixo rio Kwilu (Lumbwe Mudindaambi, Objets et techniques de la vie quotidienne
Em algumas senzalas do tipo pavilhao, os comodos podem ter sido divididos de forma
Mbala, 2 vols. Bandundu: Republica do Zaire [hoje Republica Democ.ratica do Congo),
parecida. Na construs:ao desse tipo na Fazenda Sao Sebastiao em Amparo, ha indlcios de
Ceeba Publications, 1976, vol. II, p. 40 ). Ver tam bern a estrutura semelhante das platafor-
que os compartimentos dos escravos (medindo 6 por 4 metros ou urn pouco mais) haviam
mas parasecar mandiocaentre os Mboma (idem, op. cit., vol. I, pp.104, 166, vol. II, p. so).
sido em algum momento divididos no meio por uma parede de pau a pique. Ao Iongo do
A utilizas:ao do "girau" para "guarda-comida'' nas senzalas do Rio de Janeiro (Soares, Di-
!ado de baixo da grande viga mestra longitudinal que faz parte da estrutura apoiando o
teto, percebem-se os buracos feitos tipicamente para receber os paus verticais usados em ciondrio brasileiro... , vol. II, pp. 218) tern aqui urn antecedente africano.
85 Annie Brassey, Voyage d'uneJamille autours du monde a bord de son yacht "le Sunbeam'; ra-
paredes desse tipo. (Agrades:o ao historiador Roberto Pastana Teixeira Lima por ter-me
chamado a atens:ao para esse detalhe.) conti par la mere. Trad. do ingles por]. Buder. Paris: Maurice Dreyfous, Editeur, s.d., p. 40.
78 Brassey esteve no Rio de Janeiro e sua regiao entre 17 de agosto e 5 de setembro de 1876. As
Ver os estudos de John Michael Vlach, TheAfto-American Tradition ... , cap. 8, ''Architecture";
e By the Work oftheir Hands: Studies in Afto-American Folklife. Charlottesville, Londres: gravuras em madeira que acompanham o livro foram realizadas, segundo o titulo do livro
University Press of Virginia, 1991, cap. 7, "The Shotgun House: an African Achitectural em ingles, "principalmente a partir de desenhos feitos por [...]A. Y. Bingham" (ver Paulo
Legacy'; pp. 185-214, esp. pp. 206 e segs. Vlach procura a origem da shotgun house ("casa Berger, Bibliografia do Rio de janeiro de viajantes e autores estrangeiros, 1531-1900. Rio de
espingarda''), uma habitas:ao composta de do is ou mais comodos arranjados em sequencia, Janeiro: Livraria Sao Jose, 1964, pp. 47-8 ). Bingham acompanhou Brassey e sua familia na
sem corredor, dpica da populas:ao negra de New Orleans. Ele a en contra naAfrica Ociden- viagem. Em nenhum momento o navio de Brassey aportou na Africa, a nao ser na passagem
tal, especialmente na casa de do is comodos (o primeiro, "urn quarto para receber visitas"; pelo mar Vermelho e pelo estreito e canal de Suez na viagem de volta a Inglaterra; portan-
o segundo, usado para dormir) dos Ioruba (Nago) e de povos relacionados. to, nao existe a possibilidade de que Bingham, ao retratar a senzala na Fazenda Santa Anna,
79 tivesse sido influenciado por construs:6es vistas pouco antes na Africa.
(Capitao) Manuel Antonio Tome, Angold: vida e costumes dos nativos. Beja: Sociedade
86 Monteiro, Angola ... , vo!. I, p. 283. Segundo Murdock, "mouchicongo" e outro nome para
Editora Ala Esquerda (edis:ao do autor), 1961, pp. 48-9. Jan Vansina, como Tome, utiliza a
grafia "ginga''; Joseph Miller prefere "jinga''; utilizo aqui "njinga'; seguindo o linguista os "bashikongo"; evidencias internas no texto de Murdock (e tambem no de Monteiro)
Malcolm Guthrie (Malcolm Guthrie, Comparative Bantu: An Introduction to the Com- sugerem que este eo povo da regiao de Sao Salvador (Mbanza Kongo). A suposis:ao faz
parative Linguistics and Prehistory of the Bantu Languages, 4 vols. Hants (Inglaterra): sentido, ja que, segundo Hilton, a elite dessa regiao antigamente era conhecida como os
Gregg Press, Gregg International Publishers, 1967-1971, vol. III, pp. 14-5). "mwissikongo". Utilizo aqui a grafia de Hilton, supondo que seja mais proximo ao vocabu-
80
Tome, Angola... , pp. 48-9, ver tam bern pp. 11, 94, 141. lo em kikongo. (George Peter Murdock,Aftica: its Peoples and their Culture History. Nova
81
Karl Laman, The Kongo, 4 vols. Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia IV, VIII, XII, York: McGraw-Hill Book Company, 1959, p. 292; Anne Hilton, The Kingdom ofKongo.
XVI, 1953, 1957, 1962, 1968, vol. I (1953), p. 34; Hambly, The Ovimbundu... , p. 210. Laman Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 35.)
87 Laman, The Kongo, vo!. I, p. 78.
(vol. I, p. So) e Hambly (p. 210) tambem descrevem a casa de do is comodos dos Nsundi e
88 Adolphe Louis Cureau, Savage Man in Central Aftica: A study ofPrimitive Races in the
dos Ovimbundu. Num deles (entre OS Nsundi, 0 primeiro, junto a entrada), encontrava-se
o fogo; no outro, estava a cama. French Congo. Londres: T. Fischer Unwin, 1915, p. 199.
82
Luis Antonio de Oliveira Mendes, "Discurso Academico ao Programa. Determinar com
89 H. Capello e R. Ivens, De Benguella ds terras de Jdcca. Descrip[do de uma viagem na Aftica
todos os seus sintomas as doens:as agudas, e cronicas, que mais frequentemente acometem Centrale Occidental. [. .. } Expedirao organisada nos annos de 1877-1880, 2 vols. Lisboa:
os pretos recem-tirados da Africa [... ) ", pronunciado em 1793, publicado com alteras:oes nas lmprensa Nacional, 1881, vol. II, gravura apos a p. 7·
Memorias economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lis boa, 1812, t. IV, e reedi-
90 Tome, Angola... , pp. 45-6. C£ a breve descris:ao em Hambly, The Ovimbundu ... , p. 210,
tado em Antonio Carreira, As companhias pombalinas de Grao-Pard eMaranhao ePernam- do metodo de colocas:ao na terra dos paus verticais usados na construs:ao das paredes
buco e Paraiba. Lisboa: Editorial Presens:a, 1983, pp. 364-420, ver p. 373 para a descris:ao das casas.
detalhada do "girau" (grafia antiga).
91 Gravura intitulada "0 luto para o Ma-Kayi de Cabinda, c. 1787'', em L. Degrandpre, Voyage
83
Antonio Joaquim de Macedo Soares, Diciondrio brasileiro da lingua portuguesa. Eluciddrio ala cote occidentale d'Aftiquefait dans les annies 1786 e1787. Paris: Dantu, 1801, vol. I, p. 152,
etimolOgico critico [. .. } (1875-1888), 2 vols. Rio de Janeiro, 1954, vol. I, verbete "girau'; reproduzido em Robert Farris Thompson e Joseph Cornet, 'Ihe Four Moments ofthe Sun:
pp. 218-9. Soares atribui a palavra uma etimologia tupi. Nao a encontrei em dicionarios Kongo Art in Two Worlds. Washington: National Gallery of Art, 1981, p. 53, Figura 15.
de kikongo, kimbundu e umbundu.
92 Ver Robert Farris Thompson e Joseph Cornet, The Four Moments ofthe Sun: Kongo Art in
84
Note-se, tambem, que Freyre documentou em "mocambos"- casas populares no Nordes- Two Worlds. Washington: National Gallery of Art, 1981, p. 53; gravuras em Monteiro,
te, com reconhecida influencia africana - a presens:a de fog6es apoiados em forquilhas Angola... , vol. II, em frente as pp. 20, 147; e fotografias do inkio do seculo XX apresentadas
(Gilberto Freyre, Mucambos do Nordeste: algumas notas sobre o typo de casa popular mais por Johnston, MacGaffey e Mack ((Sir) Harry H. Johnston, George Grenfell..., vo!. II,

224 225
pp. 726-76, csp. pp. 732, 736-7; Wyatt MacGaHcy, '"Iltc Eyes of Understanding: Kongo 1982; John T. Schneider, Dictionary ofA.fican Borrowings in Brazilian Portuguese. Ham-
Minkisi", in Wyatt Mac Gaffey e Michael D. Harris, Astonisbment and Pmver. W.tshington: burgo: Helmut Buske Verlag, 1991). Ora, nenhum dos diciom1rios de linguas bantu con-
National Museum of African Art e Smithsonian Institution Press, 1993, p. 24; John Mack, sultados por mim indica que mukambu (ou kambu) tern o sentido de "esconderijo". Tanto
Emil Torday and the Art ofthe Congo, 1900-1909. Londres: British Museum Publications, na Africa como no Brasil, contudo, o termo pode ter adquirido esse significado por meto-
s.d. (1990], p. 19). Muito parecida, tambem, e a "casa (rural] do seculo XIX naJamaica", nimia, ja que a "cumeeira'' (suporte para o teto) era a parte mais importance de uma casa
habitada por negros, na fotografia reproduzida em Ferguson, Uncommon Ground, p. 66. tempor:iria ou no made, pensada de fato como "esconderijo". Entre os Bakongo, esse meto-
A gravura em Brassey nao permite concluir se as choupanas estavam construidas apcnas nimico teria tido condic;:6es especiais para surgir, se (como e provavel) o quilombo/ escon-
com paus, galhos e palha entrelac;:ada (como a "casa-nomade" na Africa, descrita mais derijo fosse concebido como urn "cantinho" de on de se realizava emboscadas. Em kik:ongo,
adiante neste ensaio), ou se cram feitas de pau a pique com algum acabamento externo de kambu tern o significado de "barreira'', "oposic;:ao"; kamba pode ter o significado de "canti-
barro. (As linhas finas que o artista usou, ora verticais ora horizontals, para retratar a su- nho" [petit coin, em frances] ou, como verbo, de "e. {etre] en travers de" e, por extensao,
perficie das paredes externas das casas, podem ter sido usadas apenas para representar "resistir~ "se opor a''; mu, como prefixo, pode ter o senti do de "pessoa que executa a ac;:ao
sombras; nao indicam necessariamente que a construc;:ao foi feita com pause galhos aparen- indicada pela palavra principal". Portanto, mu-kamba poderia ter o significado de
tes, colocados bern juntos, como nas construc;:6es africanas nas gravuras e fotos cicadas.) "aquele que se op6e, que resiste" (Laman, Dictionnaire... , verbetes kambu e kamba).
93
Neste escudo, os termos "kimbundu'; "kikongo" e "umbundu" referem-se aos grupos de Enfim, para os Bakongo, a metifora ja existia, o que permitiria uma identificac;:ao facil
linguas/dialetos que Guthrie chama de "grupo kimbundu'; "grupo kikongo" e "grupo do quilombola (aquele que "atravessa" o dominio dos senhores) como proprio pau de
umbundu": Malcolm Guthrie, Comparative Bantu... , vol. III, pp. 14-5. Para o significado fi!eira, o mukambu.
de mukambu em kimbundu e kik:ongo, ver Ass is Junior, Diciondrio kimbundu-portugues... , 94 Assis Jilnior, Diciondrio kimbundu-portugues... , verbete mukambu.
verbetemukambu (definido como "pau de fileira''), em que mukambu ua'nzo (isto e, o "pau 95 Lombo em umbundu tern o significado de "sebe de acampamento; acampamento" ( [padre]
de fileira da casa") e dado como "cumeeira"; (padre) Antonio da Silva Maia, Diciondrio Albino Alves,Diciondrio etimol6gico bundo-portugues, 2 vols. Lisboa: Centro Tip. Colonial,
complementar portugues-kimbundu-kzkongo. Vila da Feira (Portugal): edic;:ao do autor 1951, verbetes lombo e vala [1], exemplo III, n 2 2; apesar do titulo, essa obra e urn dicionario
(depositiria: Editorial Miss6es-Cucujaes), 1964, verbete "cumieira'; em que mukambu eo de umbundu). Kilombo em kimbundu tern o mesmo sentido; a primeira palavra que Maia
primeiro dos vodbulos kik:ongo indicados; Karl Laman, Dictionnaire Kikongo-Franfais da para "acampamento, sanzala de trabalhadores" e kilombo (Maia, Dicindrio... , verbete
[. .. ]. Bruxelas: Librairie Falk fils, Georges Van Campenhout, Successeur, 1936, verbete '~campamento"). Kilombo, contudo, tambem tern outros sentidos em kimbundu: "Con-
a
mukambu (definido como "qqch [quelque chose] de traver, traver"), em que mukambu junto de forc;:as militares/ Arraial/ /Lugar de reuniao ou sanzala de trabalhadores" (Assis
anzo ("travessa da casa'') e dado como "cumeeira" (frand::sfoite) no dialeto kikongo "do Junior, Diciondrio kimbundu-portugues... , verbete kilombo ). 0 conjunto de sentidos de
noroeste". (0 vocabula.rio kikongo no dicionario de Maia provavelmente corresponde ao lombo em kikongo e semelhante: "caravane; societe; groupe, troupeau, troupe, foule; armee;
dileto kikongo "do Sui" nos termos de Laman.) 0 Novo diciondrio Aurelio explica que auberge, logis, logement, hospitalite'' (Laman, Dictionnaire... , verbete lombo ). Para o sen-
"mocambo" vern [sic] "do kimbundu mu'kambu ('cumeeira')" (Ferreira, Novo diciondrio... , tido de "exercito" que kilombo!lombo tern em kimbundu/kik:ongo, ha urn paralelo em
verb etc "mocambo"). A maio ria dos dicionarios etimologicos, contudo, dao outra explica- umbundu. Entre os Ovimbundu, havia uma sociedade de guerreiros chamada kilombo,
c;:ao. Segundo Mendonc;:a, "mocambo" vern "do quimbundo mu prefixo + kambu, escon- termo que talvez derive de lombo, "acampamento", citado acima, de lumnu, "muro", ou (na
derijo" (Renata Mendonc;:a, A injluencia a.ficana no portugues do Brasil, 3' ed. Prefacio de hipotese de Miller) de uma raiz antiga designando "circuncisao" ou "sangue"; entre certo
Rodolfo Garcia. Porto: Livraria Figueirinhas, 1948 (1935], p. 243). Mendonc;:a nao indica grupo de Ovimbunclu hoje, kilombo significa "acampamento para o ritual de circuncisao"
sua fonte, mas provavelmente nao encontrou a definic;:ao em dicionario etimologico ante- (Miller, Kings and Kinsmen ... , pp.161-7). Os Imbangala (Jaga), grupos de guerreiros noma-
rior a 1889. (Beaurepaire-Rohan diz desconhecer a origem da palavra: Dicciondrio de vo- des, adotaram dos Ovimbundu a instituic;:ao militar do kilombo, transformando-a num
cabulos brazileiros. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, pp. 94-5.) Freyre e Machado poderoso instrumento de recrutamento de pessoas deslocadas pelas guerras civis na Angola
seguem a autoridade de Mendonc;:a; Morais Silva (10• ed.), Silveira Bueno, Aulete, Cunha e no Kongo, nos seculos XVI e XVII; como impacto desolador das guerras dos Imbangala
e Schneider dao a mesma etimologia, mas (com a excec;:ao de Schneider, que reconhece sua contra os estados desta parte da Africa Central, o significado de kilombo em kimbundu e
divida a Cunha) nao dizem sua fonte (Gilberto Freyre, Mucambos do Nordeste... , p. 20; kik:ongo provavelmente adquiriu (se ja nao tinha) conotac;:6es ligadas especialmente a
verbete "mocambo" em Jose P. Machado, Diciondrio, 3• ed., 5 vols. Lisboa: Livros Horizon- guerra. Enfim, o sentido de "acampamenco'; desprovido de conotac;:6es belicas necessarias
te, 1977, vol. 4; Antonio de Morais Silva, Grande diciondrio da lingua portuguesa, 10• ed., que a palavra tern hoje nessas linguas, e ja tinha na epoca de Capello e Ivens, citados acima,
12 vols. Lisboa: Editorial Confluencia, 1949-1959, vol. VI; Francisco da Silveira Bueno, provavelmente, na sua origem, e uma extensao de "acampamento de soldados", que por sua
Grande diciondrio etimol6gico-prosodico da lingua portuguesa, 8 vols. Sao Paulo: Saraiva, vez teria nascido como urn metonimico para "sociedade de guerreiros" ou "exercito" (sobre
1963-1967, vol. V; Caldas Aulete, Diciondrio contempordneo da lingua portuguesa, 5• ed., os possiveis significados de "quilombo" para os Bakongo, Mbundu e Ovimbundu, ver
5 vols. (2• ed. bras.). Rio de Janeiro: Delta, 1968, vol. IV; Antonio Geraldo da Cunha, Di- tambem Stuart Schwartz, "Rethinking Palmares: Slave Resistance in Colonial Brazil'; in
ciondrio etimol6gico Nova Fronteira da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Slaves, Peasants and Rebels: Reconsidering Brazilian Slavery. Urbana: University oflllinois

226 227
IHli"HI'\11.1-.'Jfllt.U It 1'\U ... .I't.~A"I"'II"''•"'•••"

Press, 1992, csp. pp. 125-8; Schwartz tambcm se bascia em Miller, King.~ 11nrl Kinsmm .... 106 Laman, The Kongo, vol. I, pp. 78-9. Thornton, The Kingdom ofKongo... , p. 36, tambem des-
mas diz que os Imbangala adotaram o kilombo dos Mbundu, cnquanto Miller c taxativo a creve as casas do antigo reino do Kongo como feitas de ''folhas de palmeira e alguns paus': A
respeito de suas origens entre os Ovimbundu). Ver tambem Kabcngcle Munanga, "Origem maio ria das fontes que embasam essa observac;:ao, contudo, sao ja do periodo das guerras civis,
e historico do quilombo naAfrica'; Revista USP, n 2 2.8, dez.-jan.-fev., 199S·1996, pp. 56-63. is to e, a arquitetura de periodos anteriores, mais padficos, pode ter sido menos "nomade':
0 significado de "quilombo" no Brasil obviamente esti relacionado a esse conjunto de 107 Gravura em Degrandpre, Voyage... , vol. I, p. 252, reproduzido em Thompson e Cornet, Four
sentidos nessas linguas importances da Africa Central, tendo sido reforcrado talvcz pcla Moments... , p. 53, Figura 15.
influencia do kimbundu kilombe, "Negror; Negrume/0 que constitui a cor negra'' (Assis 108 Oficio do delegado de Policia de Iguac;:u ao chefe de Policia da provincia (RJ), 9/12/1859,
Junior, Dicionario kimbundu-portugues... , verbete kilombe ). Schneider, citando Maia, db: citado em Flavio dos Santos Gomes, Hist6rias de quilombolas: mocambos e comunidades
que kilombo em kimbundu cem o significado de "capital, aldeia [town], confederacrao". Ora, de senzalas no Rio de Janeiro - Seculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 55·
"confederacrao" nao aparece no dicionario de Maia; tambem kilombo e a quinta palavra Ha registro de outros cases semelhantes no Brasil; segundo Schwartz ("Rethinking
indicada por esse auror para "capital'; a decima primeira palavra para "povoacrao" e nfio Palmares ...", p.n6), "fossos cheios de paus afiados e escondidos de baixo de mato e capim"
aparece entre os vodbulos que traduzem "vila'' e "aldeia''. Schneider, citando outra fonte, foram usados para defender o "Buraco de Tatu", Palmares e outras comunidades de es-
tambem indica "casa'' como ourro significado do kimbundu kilombo, mas Maia da kilombo cravos fugidos.
apenas como a oitava opcrao para traduzir essa palavra. Enfim, se kilombo tern os significa- 109 Esse tipo de armadilha para cacra existia entre os Nsundi e os Vasele (urn povo ovimbundu),
dos em kimbundu assinalados por Schneider, e sopor extensao de seus sentidos principais, como tambem entre os Lozi, habitantes de Zimbabwe (Laman, The Kongo, vol. I, p. 97;
"acampamento'; "exerciro'; "arraial" (Schneider, Dictionary... , verbete kilombo). Hambly, The Ovimbundu... , p. 142; V. W. Turner, The Lozi Peoples ofNorth-Western Rho-
96
Segundo Delgado, "Mucambo- (mukambu), ainda e hoje [em Angola] a forquilha que desia [Ethnographic Survey ofAfrica: West Central Africa, Part III]. Londres: Internatio-
sustenta o pau da cumeeira da cas a': Se Delgado esti correto, isso significa que a forquilha, nal African Institute, 1952, p. 19: entre os Lozi, a estaca, quando descrita, era de ferro).
talvez porque funcione tambem como "suporte" (vera segunda definic;:ao de mukambu, Segundo Hambly, esse tipo de armadilha era "muito co mum [often seen] na Angola central-
cicada em Assis Junior, Dicionario kimbu,;du-portugues... ), ganhou o mesmo nome que o ocidental" (Wilfrid D. Hambly, "Hunting Customs of the Ovimbundu", Bantu Studies,
pau da cumeeira que sustenta. Ver Antonio de Oliveira de Cadornega, Hist6ria geral das
VIII, 1934. pp. 151-6).
guerras angolanas {168o}, 2 vols. Anotado e corrigido por Jose Mathias Delgado. Lisboa: no Joseph C. Miller, JiVtzy ofDeath: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade,
Agenda Geral das Colonias, 1940, Glossario (feito por Delgado), vol. I, p. 618. 1730-1830. Madison: The University ofWisconsin Press, 1988, passim.
97
Julius F. Gliick, "African Architecture'; in Douglas Fraser, The Many Faces ofPrimitive Art: 1 ll Schwartz ("Rethinking Palmares .. :', p. n6), citando os estudos sobre os Bakongo de Balan-
A Critical Anthology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1966, p. 225. dier e de Wing, afirma que armadilhas desse tipo "cram usadas para a protec;:ao de aldeias
98
Anthony, "The Big House[ ... ]. Part II .. :; p.1o.
99 desde a Nigeria ate o antigo reino do Kongo".
0 quadro de Rugendas talvez nao deva ser interpretado literalmente; para ilustrar as varias lll Nao quero exagerar os efeitos do trafico transaclantico de escravos sobre a arquitetura e a
atividades que constitulam o "habitar'; o artista teve que retrad-las junto a choupana, localizac;:ao das aldeias. Antes da chegada dos europeus, havia uma violencia endemica nas
em bora nem todas se realizassem necessariamente, ou sempre, na proximidade dessa cons- sociedades da Africa Central, alem de conflitos mais ou menos frequentes entre elas (ver
truc;:ao. Ver, contudo, o sugestivo depoimento de Walsh (Noticias ... , vol. II, p.172): "Na area
Kopytoff, "The Internal African Frontier.. :', p. 20). Nao ha duvida, no entanto, de que o
central [do drculo de choupanas que constitufa a senzala observada] os negros joeiravam
trifico piorou muito essa situac;:ao. Portanto, mesmo que a arquitetura "nomade" e a preo-
o milho, ordenhavam suas vacas e faziam seus trabalhos habituais".
100 cupacrao com a defesa das aldeias antecedam ao contato europeu, elas provavelmente foram
Laman, The Kongo, vol. I, pp. 80-1.
101 muito reforcradas (e se tornaram mais comuns) como decorrencia do trafico.
Alencar, 0 tronco do ipe, pp. 44-5, 52, 55·
102 ll 3 Sobre a "memoria'' dos Bakongo, ver especialmente Thornton, The Kingdom ofKongo... ,
Stein, Vt:tssouras: a Brazilian... , pp. 171-2 (cf idem, Vt:tssouras: um municipio... , p. 208). Ver
cap. VIII.
urn caso semelhante no romance de Alfredo d'Escragnolle, Visconde de Taunay, A moci-
ll 4 Johann Emanuel Pohl, Viagem no interior do Brasil. Sao Paulo: Edusp; Belo Horizonte:
dade de Trajano, 2• ed. Sao Paulo: Biblioteca Academia Paulista de Letras, 1984 [1871],
p. 46. Processo n• 920 (reu: Thome, escravo de Eliziario Xavier de Camargo), Autos Itatiaia, 1976, p. 78.
115 Ver, por exemplo, a descricrao das noires "em familia'' dos escravos norte-americanos dentro
crime de Campinas, caixa 39, Apesp.
103 de suas cabanas em Webber, Deep... , pp. 17-8.
Thornton, The Kingdom ofKongo... , p. 96.
104 ll 6 Julio Ribeiro, A carne. Rio de Janeiro: Edic;:6es de Ouro, s.d., p.101.
Laman, The Kongo, vol. I, pp. 77, 86. Hambly, The Ovimbundu... , p. 210, descreve preocu-
ll 7 Ver, por exemplo, Rugendas, "Imagens e notas ...", p. 18; Tschudi, Viagem ... , p. 56; Burmeis-
pac;:6es semelhantes com a localizac;:ao de urn povoado. Sobre as press6es sofridas pelos
ter, Viagem ... , p. 135; Toussaint-Samson, Une Parisienne... , p. 103. Cf as aquarelas de Jose
Bakongo na virada do seculo, na regiao de domlnio helga, ver Wyatt MacGaffey, "Ethno-
de Castro Mendes em: Jose Estevam Teixeira Mendes e Jose de Castro Mendes, Lavoura
graphy and the Closing of the Frontier in Lower Congo, 1885-1921'; Africa, 56 (3), 1986,
cafeeira paulista: velhas fozendas do municipio de Campinas. Sao Paulo: Departamento
pp.263-79·
105 Estadual de Informacr6es, 1947, passim.
Johnston, George Grenfell, vol. II, p. 732.

228 229
1\"I'UI'OI,'J•l\n ,., t'\tl''''"''''•"'"'''"'

118
Julio Roberto Katinsky, ·~rquitetura do a<;1kar", mimco., 4 vols. Siio Paulo: Condcphaat,
Viagem pitoresca atraves do Brasil. Trad. Sergio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia; Sao Paulo:
abr., 1977, vol. III, s.p. (texro no final). Edusp, 1989). A mesma observa<;ao vale para a reproduc;:ao em tons de cinza dessa gravura
119 em Rugendas, Das Merkwiirdigste aus der Malerischen Reise in Brasilien. Schaffhausen: J.
Louis Coury, 0 Brasil em 1884: esboros sociologicos. Trad. Llgia Vassalo. Rio de Janeiro:
Brodtmann's lithographischen Kunst-Anstalt, 1836, 5' divisao, Prancha 5 ("Wohnung dcr
Fundac;:ao Casa de Rui Barbosa; Brasilia: Senado Federal, 1984, p. 149 (publicado ori-
Neger"). Esse livro, cujo titulo significa "0 mais notivel da Viagem pitoresca atraves do
ginalmente em frances, no Rio de Janeiro, em 1884). Pelo contexto, Coury provavelmcntc
se refere aqui a uma colonia em Sao Paulo. Brasil:; contem o mesmo texto (com a sequencia das partes urn tanto alterada), mas apenas
120 40 das 100 gravuras originais. Inexplicavelmente, a "Habitac;:ao de negros" nessa versao esra
Boris Kossoy, Sao Paulo, 1900. Imagens de Guilherme Gaensly. Sao Paulo: Kosmos, 1988,
p. 97. A fazenda datava da epoca do Imperio. Dois dos !ados externos sao visfveis na foro. virada da esquerda para a direita, em relac;:ao a reproduc;:ao emMalerische Reise...
127 Burmeister, Viagem ... , p. 135; Binzer, Os meus romanos... , p. 51; Graham, Didrio... , p. 220.
Eimpossfvel verse havia portas (ou janelas) nos !ados internos do quadrado.
121 A respeiro do horario das refeic;:oes, o Barao de Pari do Alferes recomendava que o escravo
Ver, por exemplo, as fotografias em Thomas H. Holloway, Immigrants on the Land: Coffie
devia "almoc;:ar as oito horas, jantar a uma horae cear as oiro ate nove"; reconhecia, contu-
and Society in Sao Paulo, 1886-1934. Chapel Hill: The University ofNorth Carolina Press,
do, que "alguns agricultores adotaram ha tempos a esta parte o costume de dar s6 duas
1980, pp. 77, 80-1. A colonia descrita por Coury, instalada dentro de uma senzala, e consi-
comidas aos escravos, dando-lhe [sic] as 10 ou 11 horas do dia o almoc;:o, e o jantar as 5 da
derada por ele como excec;:ao a regra: "Os imigrantes tern geralmente suas pequenas casas,
tarde" (Pari do Alferes, Memoria ... , pp. 64-5). Ao que parece, o fazendeiro anfitriao de
em meio as suas planta<;6es e distantes das senzalas dos negros" (Couty, 0 Brasil em 1884... ,
Binzer era desse tipo. Na fazenda de cafe da regiao de Campinas, retratada no romance Til,
p. 148). Cf. [Arrigo de Zettiry], ·~ imigra<;ao italiana em Sao Paulo", artigo xiv: "Os re-
de Jose de A! en car, os escravos recebem "a rac;:ao do almoc;:o" por volta de 9 horas (a "hora
gulamenros das fazendas - as casas dos colonos':]ornal do Commercio, 24/Io/1891, p. 2,
habitual do almo<;o" da familia branca), ou pouco antes (Jose de Alencar, Til. Sao Paulo:
cols. 2-4, segundo o qual as casas "ruins" no colonato, isro e, "as que ainda serviam na
epoca da escravidao': eram geralmente encontradas nas melhores fazendas, que nao preci- Arica, 1980 [publicado originalmente em 1872], pp. 30, 37).
128 Tschudi, Viagem ... , p. 56; Rugendas, "Imagens e notas .. :', p. 36; Deb ret, Viagem ... , t. I, vol.
savam oferecer boas condic;:oes de moradia para atrair trabalhadores. Ja segundo Dean, os
"camaradas" brasileiros (a maioria negros e mulatos) que trabalhavam por salarios e em II, pp. 240, 268.
129 Laman, The Kongo, vol. I, pp. 97-114; Hambly, The Ovimbundu... , pp.142-3, 145-6; Lumbwe
turmas eram alojados as vezes nas antigas senzalas, enquanto os colonos italianos tinham
maior remunerac;:ao e melhores condic;:oes de moradia (Warren Dean, Rio Claro: a Brazilian Mudindaambi, Objets et techniques... , vol. I, pp. 111-39·
130 Walsh, Noticias... , vol. II, p. 173.
Plantation System, 1820-1920. Stanford: Stanford University Press, 1976, p.170 ).
122
Taunay, A mocidade de Trajano, pp. 25-6.
131 Taunay,A mocidade de Trajano, p. 26. Sobre a variedade de armadilhas usadas por meninos
123
Webber, Deep... , p. 3· nsundi, ovimbundu e mbala para ca<;ar passaros, ver Laman, The Kongo, vol. I, pp. 101-2;
124 Hambly, The Ovimbundu... , pp. 142-3, 145-6; Lumbwe Mudindaambi, Objets et techniques... ,
Tschudi, Viagem ... , p. 56; Pati do Alferes,Memoria... , pp. 57-8; Stein, Vassouras: a Brazilian ... ,
p. 44 (c£ idem, Tlassouras: um municipio... , p. 70). vol. I, pp. 133-9. Para urn exemplo, vera forografia em D. Crawford, Thinking Black. Nova
125 York: George H. Diran Co., 1912, em frente a p. 68.
Walsh, Noticias... , voi.II, p. 23; Giglioli, Viaggio... , p. 55; Toussaint-Samson, Une Parisien-
132 Ernest Michel, A travers !'hemisphere sud, ou mon second voyage autour du monde [... ]. Paris:
ne... , pp. 103 e segs.; Binzer, Os meus romanos... , pp. 50-1. Cene e souper talvez devam ser
traduzidos como "jan tar"; depende de se essas fazendas ofereciam tres refei<;6es aos escravos, Librairie Victor Palme, 1887, pp. 105-6.
133 Monteiro, Angola... , vol. I, pp. 297-8; C£ Laman, The Kongo, vol. I, pp. 55, 95, 101-2; e
como recomendado pelo Barao de Pati do Alferes, ou apenas duas (ver nota 127).
126 Hambly, The Ovimbundu... , p. 140. Segundo Johnston, George Grenfell, vol. II, pp. 612-3,
Rugendas, Malerische Reise... , 4' divisao, Prancha 5 ("Habitation de negres"). As gravuras
"na maioria das regioes do Congo [nao apenas entre os Bakongo], os nativos [...]sao, de
de Rugendas foram publicadas em preto e bran co (tons de cinza) e s6 depois eram coloridas
a mao. Pelo prospecro original de 1826, os assinantes da obra tinham a opc;:ao de receber da fato, grandes comedores de inseros".
134 Sobre a pritica (de origem indfgena) de comer a tanajura, tambem chamada de "i<;a', ver
Edirora apenas sete gravuras coloridas, representando tipos hurnanos e seus trajes. (Newton
Karol Le~ko e Nelson Papavero, Insetos nofolclore. Sao Paulo: Conselho Estadual de Artes
Carneiro, Rugendas no Brasil. [Rio de Janeiro: Kosmos, 1979,] p. 43.) Portanto, no caso dos
e Ciencias Humanas, 1979, pp. 276-83. Os metodos us ados para capturar cup ins e tanajuras,
exemplares do livro em que todas as ilustra<;6es aprecem em cores, cada comprador dos
segundo Monteiro e as fontes citados por Karol e Papavero, nao eram muito diferentes;
fasdculos (ou do livro completo) provavelmente contrarou urn pin tor de sua escolha para
nem tampouco o eram os condimentos usados em seu cozimento ("sale pimentas picantes"
colori-las. (Daf a diferenc;:a nas cores entre versoes da mesma gravura.) Isso e importante,
entre os Mwissikongo e "sale pimenta" no Brasil). A tanajura "no gosto assemelha-se ao
pois, na versao em tons de cinza de "Habitation de negres" - certamente mais proxima as
camarao"; ja os cup ins na Africa "tern urn gosro muito forte [sharp] devido ao icido f6r-
intenc;:oes de Rugendas -, o ponto de claridade no interior do barraco e mais intenso do
mico que eles contem". Em rodo caso, se o sabor da tanajura nao era parecida ao do cupim,
que na versao colorida do exemplar na Wtirttembergischen Landesbibliothek de Stuttgart,
provavelmente lembrava o de outra delfcia, o gafanhoro; estes, quando assados, "cheiram
usado para uma edic;:ao alema moderna e tambem, aparentemente, para uma edic;:ao brasi-
exatamente a camaroes secos e velhos" (Monteiro, Angola... , vol. I, pp. 297-8; Karole Pa-
leira, am bas em cores. (Ver, respectivamente, [Johann] Moritz Rugendas, Malerische Reise
in Brasilien, ed. fac-similar. Stuttgart: Deco-Verlag Blase, 1986; e Johann Moritz Rugendas, pavero, Insetos ... , p. 282, citando urn livro de cozinha do seculo XIX).

230 231
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135 113 Pati do Alfcres, Memoria ... , p. 63; Taunay, A mocidade... , p. 25.
Rugendas, "Imagcns c notas ...", p. 36, parafrascando Henry Kostcl", 'lhwr/.•· in Bmzil, 2' cd.,
2 vols. Londres: Longman, Hurst, Rees, Ormc and Brown, 1817, vol. !1, p. 36. 144 Laman, The Kongo, vol. I, pp. 59-61. A pritica de separar homen e mulher na hora da refei<;:ao
136 era antiga entre os Bakongo: ver Thornton, The Kingdom oJKongo, p. 30. No infcio do se-
Depois de escrever isso, vi que Karasch tambem chegou a essa conclusao (Karasch, Slave
Life... , p. 128). culo XX, a maioriados (mas nao todos os) povos do Congo seguiam essa pritica (Johnston,
137 George Grenfell, vol. II, p. 631), como tambem o faziam os Ovimbundu (Hambly, The
Michel, A travers... , pp. 101-2; Binzer, Os meus romanos... , p. 37 (segundo o fazendeiro, os
cativos podiam vender os ovos fora da fazenda). Ovimbundu... , p. 148).
138 145 Processo n 2 1.216, de 1881 (Apelac;ao crime: Andre, escravo, apelado ), f. 10, Autos crime de
Processes crime (mac;o 12), Primeiro Cart6rio (Registros), Sorocaba: Sumario de Culpa,
Delegacia de Polfcia, 1861 (sumariado: Jose Fernandes, escravo do Alferes Jose Timothea Campinas, caixa 4.080-56, Apesp.
d'Oliveira); Processo do Tribunal do Jury, 1860 (reu: Francisco, escravo do Alferes Jose 146 Soares, escrevendo em 1880, da o kimbundu curia, "comer'; como origem de "curiar'' e diz
Timothea d'Oliveira). E s6 no segundo processo que descobrimos que Jose Fernandes que a palavra era usada "s6 entre os negros e a gentalha'' (conselheiro Antonio Joaquim
estava casado com "Maria de tal'; mulher livre. Macedo Soares, Obras completas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949, vol. I I - Estu-
139 dos lexicogrificos do dialeto brasileiro, p. 63). Segundo o Novo Aurelio, um dos sentidos
Processo n° 871, de 1871 (Sumario crime: os escravos Camillo e outros, reus), Autos crime
de Campinas, caixa 4.066-38, Apesp, passim, esp. f 9v. Ver a interessante analise desse de "curro'; atribuido apalavra em Sao Paulo, e "reuniao de senzalas". Ainda de acordo com
processo em Maria Helena Pereira Toledo Machado, Crime e escravidao. Sao Paulo: Brasi- essa fonte, a palavra possivelmente vern de "curral", o que de fato combina como primeiro
liense, 1987, pp. 119-23. sentido do vocibulo, "Iugar anexo a prac;a de touros onde estes ficam antes e depois da
140 corrida'; e com o sentido que a palavra tern no processo crime de "refeit6rio de cativos" -
Praticamente nao hi estudos empiricos densos sobre a "roc;a" escrava no Brasil. Ver, contu-
do, Ciro Cardoso, Agricultura, escravidao e capitalismo, Petr6polis: Vozes, 1979, cap. 4, "A urn Iugar perto da senzala dos semoventes humanos, onde estes ficavam antes e depois do
brecha camponesa no sistema escravista''; e Escravo ou campones: oprotocampesinato negro trabalho. "Curiar" talvez tenha simplesmente reforc;ado esse sentido original (Ferreira, Novo
nasAmericas. Sao Paulo: Brasiliense, 1987; Eduardo Silva, "A func;ao ideol6gica da brecha diciondrio... , verbete "curro").
camponesa'', in Joao Jose Reis e Eduardo Silva, NegociafliO e conjlito: a resistencia negra no 147 Amelia de Rezende Martins, Um idealista realizador: Bardo Geraldo de Rezende. Rio de
Brasil escravista. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 22-31; Eduardo Silva, "0 Janeiro: Oficinas Grificas do Almanak Laemmert, 1939, p. 259.
148 Toussaint-Samson, Une Parisienne... , p. 110.
Barao de Pati do Alferes e a fazenda de cafe da velha provincia'; "Introdw;:ao" a Pati do
Alferes, Memoria ... , pp. 13-48. 0 estudo mais sugestivo sobre o tema eo unico que enfati- 149 C. C. [Christopher Columbus) Andrews, Brazil its Conditions and Prospects. Nova York:
za a ligac;ao entre a familia escrava e a roc;a e Joao Luis R. Fragoso e Manolo G. Florentino, D. Appleton and Company, 1887, p. 165.
"Marcelino, filho de Inocencia Crioula, neto de Joana Cabinda: um estudo sobre familias 150 Joyner, Down by the Riverside... , pp. 91, 106; ver tambem Richard Price, "Subsistence on
escravas em Paraiba do Sui (1835-1872)", Estudos Economicos, 17 (2), maio-ago., 1987, the Plantation Periphery: Crops, Cooking, and Labour among Eighteenth-century Suri-
pp. 151-73. A bibliografia estrangeira sobre o "protocampesinato negro" (termo cunhado name Maroons", in Berlin e Morgan (coords.), The Slaves' Economy... , pp. 107-27.
pelo antrop6logo Sidney W. Mintz) e grande: ver Mintz, Caribbean Transformations. 151 Laman, The Kongo, vol. I, pp. 55-6, trecho citado p. 56, vol. Ill, pp. 197-203, sobre as varias
Chicago: Aldine Publishing Company, 1974; e, mais recentemente, Ira Berlin e Philip D. categorias de proibi<;:6es entre os Nsundi; cf. Hambly, The Ovimbundu... , pp. 184, 285.
Morgan (coords.), Slavery and Abolition, 12 (1), The Slaves' Economy: Independent Pro- Note-se, contudo, que, na sua condic;ao de escravos numa terra estrangeira, muitos africa-
duction by Slaves in the Americas, numero especial, maio, 1991. nos podem ter-se sentido menos ansiosos com relacrao a essas proibic;6es. Ver Laman, The
141 Kongo, vol. III, p. 198: "Num pais estrangeiro nao e necessaria [para um Nsundi) ser tao
Castelnau, ExpedifliO... , p. 118; Rugendas, "Imagens e notas .. .'; p. 40 (cf Koster, Travels in
Brazil..., vol. II, p. 264); Maria Paes de Barros, No tempo de dantes. Sao Paulo: Brasiliense, meticuloso a respeito das proibic;6es, porque nkisi [a preparac;ao medicinal consagrada,
1946, p.104. Sobre ainfluenciade Koster no texto de Rugendas (escrito por V. A Huber), vefculo para o poder do espirito que exige determinada proibi<;:ao] sabe que Ia pode enfren-
ver Slenes, ''As provac;6es de urn Abraao africano': Hebe Maria Mattos [de Castro] (Das tar-se urn dilema e ser obrigado a comer coisas proibidas".
cores do silencio: os significados da liberdade no Sudeste escravista- Brasil seculo XIX, 2• ed. 152 Thomas W. Wilson, ''Africa, Afro-Americans, and Hypertension: An Hypothesis", in
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p.135), comentando uma versao anterior deste capi- Kenneth F. Kiple (coord.), The African Exchange: Toward a Biological History ofBlack
tulo, observa a respeito de sua propria pesquisa: "Os processes aqui analisados sugeriram People. Durham: Duke University Press, 1987, pp. 257-68.
ainda mais fortemente que, alem de urn espa<;:o de moradia privative, em muitos casos se- 153 Luis da Camara Cascudo, Historia da alimentafliO no Brasil, 2 vols. Belo Horizonte; ltatiaia;
parado das senzalas coletivas, o casamento (legal ou consensual) potencializava o acesso Sao Paulo: Edusp, 1983, vol. II, pp. 525-8. Cf. Laman, The Kongo, vol. I, p. 57: entre os
dos cativos aexplorac;ao de roc;as pr6prias". Nsundi, acrescenta-se pimenta ayuuma ("urn prato popular") e, "hoje em dia, tambem sal",
142
Stein, fassouras: a Brazilian ... , pp. 170-1. Ver tambem idem, op. cit., p. 181, para outra in- isto e, em tempos passados nao se usava sal.
formacrao recebida de ex-escravos, sobre a divisao de trabalho dentro da familia: "Homens 154 Monica Schuler, "Alas, Alas, Kongo": A Social History ofIndentured African Immigration
escravos, com mulheres, frequentemente deixavam que elas fizessem suas roupas': (Cf idem, into Jamaica, 1841-186s. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1980, p. 96. Ver
fassouras: um municipio... , p. 207.) tambem idem, op. cit., p. 77: "uma crenc;a na Africa Central [e que] os min'kuyu [os espi-

232 233
an-.a-•••~"''"~'l'"'u u .,.._. ..... ,......, .. ...
~ T~~-

ritos dos ancestrais )niio com em sal". Portanto, nos rituais da Kumifltl, tun culto afi·o-jn- pouco diferente, mas nao muda de sentido; acrescenta-se apenas a informac;:ao de que os
maicano de origem congolesa, a comida preparada para os csplritos 6 fcita scm sal. Cf: escravos "sao grandes consumidores [do tabaco e do fumo]" (idem, op. cit., p.102).
Camara Cascudo, Historia da alimentafiio... , vol. II, p. 528, que diz que, entre os "Quim- 167 Barros, No tempo de dantes... , p. 100.
bundo" [sic: Leia-se "Mbundu"?], "o sabor do sal impressionou tanto [... ] que provocou 168 Stein, Vtlssouras: a Brazilian... , p. 149 (c£ idem, Vtlssouras: um municipio... , p. 185).
criac;:ao vocabular: - filho do sal, mon'a mungua, afilhado" (e, da mesma forma, "pai do 169 Ver, por exemplo, idem, op. cit., p. 171.
sal" e "mae do sal': respectivamente "padrinho" e "madrinha'' de batismo ). Contra o argu· 170
Taunay,A mocidade... , pp. 46-7.
mento de que escravos da regiao do Congo teriam rejeitado o sal por associa-lo a praticas 171 Stein, Vtlssouras: a Brazilian ... , p.171 (cf. idem, Vassouras: um municipio... , p. 207).

de uma religiao estrangeira, o cristianismo, deve-se notar que muitos Bakongo provavcl- 172 Pati do A!feres, Memoria ... , p. 200 ( artigo de Dr. Luiz Correa de Azevedo sobre a cultura
mente se definiam como cristaos antes mesmo de sua escravizac;:ao (ver John Thornton, do cafe, incorporado a 3" edic;:ao do livro do Bariio, de 1878) e p. 37 (Introduc;:ao de Eduardo
"The Development of an African Catholic Church in the Kingdom ofKongo, 1491-1750", Silva ao livro do Bariio, chamando a atenc;:ao para esse trecho).
journal ofA.frican History, 25, 1984, pp. 147-67; e "On the Trail ofVoodoo: African Chris- 173 Encontrei varios documentos desse tipo em pesquisa sistematica nos inventarios post-
tianity in Africa and the Americas': The Americas, 44 (3), jan., 1988, pp. 261-78). mortem em Campinas e Vassouras.
!55
Ver Walsh, Notfcias... , vol. II, pp. 31, 46, 74; e os viajantes e outras fontes citados em Cama- 174 Processo n° 871, de 1871, £ 9v, Autos crime de Campinas, caixa 4.066-38, Apesp.
ra Cascudo, HistOria da alimentafiiO... , vol. II, pp. 529-30. Walsh deixa claro que no Brasil, 175 Ciro F. S. Cardoso, Agricultura... , cap. 4; e Escravo ou campones, passim; Ferreira, Novo
como, alias, acontecia na Africa Central, o sal era urn dos produtos mais comercializados. diciondrio... , verbete "brecha''. Na minha avaliac;:ao, a nova formulac;:ao de Cardoso sobre
Em ambos os casos, contudo, esse comercio apenas revela a falta de produc;:ao local, sen do a brecha nao apenas "matiza'' sua teoria do "escravismo colonial", mas tambem a trans-
coerente com o alto prec;:o do produto e seu consumo per capita relativamente pequeno. forma.
!56
Thomas Davatz, Memorias de um colono no Brasil: 1850. Trad., Prefacio e notas Sergio 176 Gorender, "Questionamentos .. .'', pp. 23-4.
Buarque de Holanda. Sao Paulo: Martins, Ef{usp, 1972, p. 71. 177 Nao e qualquer metifora arquitetonica; no fun do, e urn tropo etnocentrico e burgues, pois
!57
Pati do Alferes,Memoria... , p. 64; Stein, Vassouras: a Brazilian ... , p. 174 (c£ idem, Vassouras: concede pouca importancia a "superestrutura", ao contrario do metonfmico do mocam-
um municipio... , p. 212); Davatz, Memorias... , p. 53. beiro-nomade, preocupado acima de tudo com sua cumeeira ( isto e, seu teto ). Como seria
!58
Stein, Vassouras: a Brazilian ... , p. 175 (c£ idem, Vassouras: um municipio... , p. 212); Dr. o "modo de prodw;:ao escravista colonial" pensado em termos "estruturais" pelo qui-
[Louis] Couty, "L'Alimentation au Bresil et dans les Pays Voisins': Revue d'Hygiene et de lombola?
Police Sanitaire, III, 1881, p. 474· Stein (op. cit., p. 175) nota ainda que as cozinheiras da 178 Ver, mais recentemente, Berlin e Morgan (coords.), The Slaves' Economy... Nao descarto,
fazenda, preparando a comida dos escravos, usavam apenas "sal, pimenta ou salsinha'' como como faz Antonio Barros de Castro, a possibilidade de estudar a "economia polftica'' das
condimentos. sociedades escravistas ( isto e, de fazer uma analise sistemica dessas sociedades, baseada no
!59
Eduardo Frieiro, Feijiio, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: estudo das relac;:oes entre grupos sociais). Apenas espero resultados mais modestos de tal
Itatiaia; Sao Paulo: Edusp, 1982, p. 120. esforc;:o do que Gorender: a delineac;:ao, niio das "leis" do sistema, mas (como diz E. P.
160
Laerne, Brazil andjava ... , pp. 333, 348, 351. Thompson) de seus "campos de forc;:a''. Ver Antonio Barros de Castro, "A economia polfti-
161
Karasch, Slave Life... , pp. 255-6, 319. ca, o capitalismo e a escravidao", in Jose Roberto do Amaral Lap a (ed.), Modos de produfiiO
162
Couty, "L'Alimentation .. .'; p. 172. e realidade brasileira .. Petropolis: Vozes, 1980, pp. 67-107; E. P. Thompson, A misl!ria da
163
Frieiro, Feijiio, angu e couve... , p. 123; o romance citado e Vida ociosa, de Godofredo Rangel. teoria, ou um planetdrio de erros: uma crftica ao pensamento de Althusser. Trad. Waltensir
164
No antigo reino do Kongo, por exemplo, os homens e meninos do mesmo grupo de paren- Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
tesco "expressavam sua solidariedade comendo comida em comum e bebendo agua da 179 Sidney W. Mintz, "The Origins of the Jamaican Market System", in Caribbean ... ,
mesma cabac;:a enorme" (Balandier, Daily Life... , p. 161). pp. 180-213, trecho citado pp. 211-2. Esta e uma versao revista de urn artigo publicado an-
165
A!encar, 0 tronco do ipe, p. 47; Inventirio post-mortem, 1883 [sic] (inventariados: Francisco teriormente, em coautoria com Douglas Hall, "The Origins of the Jamaican Internal
Ribeiro de Avellar e sua mulher), £ 37v, 38 (avaliac;:ao de 21/8/1877), Cart6rio do Primeiro Marketing System~ Yale University Publications in Anthropology, vol. 57, 1960, pp. 1-26.
Oficio, Vassouras; Binzer, Os meus romanos, p. 50. Em Til, era nos cafezais que os escravos 180 Com isso, nao quero negar a utilidade do termo "protocampesinato" de Sidney Mintz, que
recebiam "a rac;:ao do almoc;:o, que as rancheiras de cada turma dividiam pelas gamelas epa- (ao contririo de "brecha camponesa'') focaliza a atenc;:ao no grupo social e reconhece sua
langanas que llies apresentavam" (Alencar, Til, p. 37, grifo nosso). Stein ( fdssouras: a Brazilian... , importancia como agente hist6rico. Contudo, Mintz cunhou o termo como ferramenta
pp. 162, 164) indica que era comum nas grandes fazendas do Vale do Parafba levar a comida para a analise da (re)constituic;:ao de campesinatos no Caribe, apos o fim da escravidao.
para servir nos cafezais; comia-se em "cuias': ou "em fazendas mais pr6speras os escravos as Portanto, seu uso para o estudo das lucas espedficas dos escravos me parece urn tanto
vezes tinham pratos de estanho" (c£ idem, Vassouras: um municipio... , pp. zoo-1). problematico; prefiro urn termo mais neutro, sem compromissos com desdobramentos
166
Pati do A!feres, Memoria ... , p. 63. Na terceira edic;:ao desse livro, publicada em 1878 com posteriores. Deve-se notar que o conceito de "economia interna dos escravos" se constr6i
anotac;:oes e acrescimos do filho do Bariio, Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, a frase e um em oposic;:ao a "economia externa'' (a produc;:ao voltada para o exterior) da plantation; nao

234 235
cmplricas c que teve o grande merito de estimular a pesquisa em arquivos regionais e locais,
aponta necessariamcntc para uma cconomia "natural': scm lig;u;()cs como mcrcado. Sim- ver Ciro F. S. Cardoso, "0 modo de produc;:ao escravista colonial na America'; in Theo
plesmente, a "grande lavoura'' do senhor sc opoc a "pcqucna lavoum" etc. do cscravo. Araujo Santiago (org.),America colonial: ensaios. Rio de Janeiro: Pallas, 1975, pp. 89-143.
181
Ver Robert W. Slenes, "The Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888", Ver, tambem, do mesmo Cardoso, Escravo ou campones, em que a !uta entre escravos e se-
Tese de doutorado em hist6ria. Stanford University, 1976, cap. 8, em que a analise da faml· nhores na formac;:ao do "modo de produc;:ao escravista colonial" ganha destaque.
lia cativa se con centra na questao do controle social, embora a importancia dessa instituic;:ao 190 Trad.Jose Geraldo Couto. Sao Paulo: Cosac Naify, 2007 (1903, orig. ingl.).
para a formac;:ao de uma cultura escrava "aut6noma'' seja assinalada. Mais recentemcntc, 191 Inventario post-mortem, 1883 (inventariados: Francisco Ribeiro de Avellar e sua mulher),
ver os trabalhos de Gorender, especialmenteA escravidiio reabilitada, cap. 5; Eduardo Silva, ff. 50-1, 133-4, Cart6rio do Primeiro Oficio, Vassouras. 0 inventariante se refere explici-
"A func;:ao ideol6gica.. :'; Manolo Florentino e Jose Roberto Goes, A paz das senzalas:fo· tamente ao decreto n 2 5.135, de 13/n/1872, art. 49· Para o texto do decreto, ver Jose F. da
mflias escravas e trdjico atldntico, Rio de janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilizac;:ao Veiga, Livro do estado servile respectiva libertariio. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,
Brasileira, 1997; e Hebe Maria Mattos [de Castro], Das cores do silencio ... , cap. 7. Tambem
1876, pp. 47-72, esp. p. 58.
lido com a questao em Robert W. Slenes, "Senhores e subalternos no Oeste Paulista'; in 192 Inventario de Francisco Ribeiro, 1883, ff. 24-31 ("Conta de receita e despesa''), 325. Ver
Luiz Felipe de Alencastro (org.), Historia da vida privada no Brasil. Sao Paulo: Companhia entrada de receita em 1879 (data nao indicada): "im."' [imporrancia] do prec;:o da liber-
das Letras, 1997, vol. I I - Imperio: a Corte e a modernidade nacional, pp. 233-90. tac;:ao do escravo Vidal, recebida do Thez.o Nac.'1". Vidal, na epoca, estava casado com
182
Essa conclusao parece ser contrariada pelo unico escudo que permite o d.lculo de uma uma mulher liberta e, portanto, estava na categoria de escravos mais priorizada pelo
serie de taxas de alforria para a mesma populac;:ao antes e depois de 1850: ver Peter Eisenberg, Fundo de Emancipac;:ao. Oferecendo seu peculio para pagar parte de seu valor, teria fi-
"Ficando livre: as alforrias em Campinas no seculo XIX'; Estudos Economicos, 17 (2), cado mais alto ainda na ordem de preferencias do fun do. Ver Veiga, Livro do estado
maio-ago., 1987, pp. 175-216. Estou convencido, contudo, de que o sub-registro de alforrias servil...,, decreto n 2 5.135, de 13/n/1872, art. 27, p. 52, esclarecido pelosAvisos do Minis-
nos cart6rios foi muito maior na primeira parte do seculo XIX do que na segunda e, por- terio da Agricultura de 12/n/1873, p. 147, e de 17/6/1875, pp. 171-2). Contudo, o artigo
tanto, de que os dados de Eisenberg (baseas{os nos registros cartoriais) nao permitem urn 55 do decreto n 2 5.135 especifica que "o peculio, recolhido ao tesouro nacional, e as te·
calculo realista da incidencia da alforria antes de 1850, ou mesmo antes de 1870 (ver, sobre sourarias de fazenda, sera equiparado a dinheiro de 6rfaos"; isto e, seria natural que o
esse sub-registro, Adauto Damasio, '~forrias e ac;:oes de liberdade em Campinas na pri· peculio do escravo, oriundo de uma coma na coletoria do municipio, tambem fosse
meira metade do seculo XIX': Dissertac;:ao de mestrado. Departamento de Hist6ria, Uni- contabilizado num invent:irio como dinheiro do "Tesouro Nacional", mesmo que nao
versidade Estadual de Campinas, 1995, cap. I).
183 viesse com o reforc;:o de dinheiro do fundo.
Slenes, "The Demography.. :; pp. 486-506. 0 recenseamento de 1856 cobria apenas uma 193 lnventario de Francisco Ribeiro, 1883, ff. 24-31, 274v-81, 365-70. Do total de 3:383$460
parte da provincia do Rio de Janeiro. 0 modelo demogdfico utiliza dados sobre a popu- (3 contos, 383 mile 460 reis) pago pelo administrador a escravos, 2:324$520 (2 contos,
lac;:ao escrava matriculada em 15 provincias em 1872-1873 e o nilmero de alforrias registradas 324 mile 520 reis) se destinavam a compra de mantimentos, 813$940 (813 mile 940 reis)
nessas provincias entre 1872 e 1875, inclusive. Presume, ainda, taxas "extremas" de morta- a salarios e 245$000 (245 mil-reis) a outras gratificac;:oes. Alguns dos sal:irios podem ter
lidade (que, de faro, descrevem bern a experiencia de uma amostra de escravos em Campi- sido pagos a escravos de outras fazendas, e nesse caso a media calculada aqui seria urn
nas) e uma estrutura de taxas de alforria por grupo de idade, que provavelmente subestima pouco exagerada. Nos pagamentos a escravos feitos pelo inventariante (urn total de
a frequencia da manumissao entre as idades de 10 e 6o anos. Por isso, os resultados obtidos apenas 48$ooo [48 mil-reis]), a razao do dispendio nem sempre e indicada. Samuel
sao considerados estimativas minimas. aparece quatro vezes ~a prestac;:ao de comas do inventariante, recebendo urn total de 17$000
184
Sidney Chalhoub, Visoes da liberdade: uma historia das Ultimas decadas da escravidiio na (17 mil-reis ). Vidal aparece cinco vezes nesse documento (a primeira vez em 24/12/1878,
Corte. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 49 e segs., p. 143 e segs. quando ja era "liberto"); recebeu urn total de 105$000 (105 mil-reis) em "salarios" (nao in-
185
Graham, Didrio... , pp. 220-1. cluidos acima nos pagamentos a "escravos"). Ede se supor que ambos (Vidal em 1877 e parte
186
Walsh, Notfcias... , vol. II, p. 162. de 1878) estavam entre os escravos nao especificados por nome que receberam pagamentos
187
Ver Slenes, "The Demography.. :', pp. 253, 260, para dados sobre o prec;:o do escravo em do administrador. Havia 29 escravos adultos na avaliac;:ao da propriedade, em 1877, e 25 na
Campinas (para varios anos), por sexo e idade. avaliac;:ao de 1882; dai a media de 27 adultos no periodo das prestac;:oes de contas.
188
Sobre essa questao, ver Robert W. Slenes, "As taxas de fecundidade da populac;:ao escrava 194 Inventario de Francisco Ribeiro, 1883, ff. 24-31, 69-71, So, 87, 245. 2
brasileira na decada de 1870: estimativas e implicac;:oes", Anais do V Encontro Nacional de 195 lnventario de Francisco Ribeiro, 1883, ff. 32-5, 69-71; Veiga, Estado servil..., decreto n 5.135,
Estudos Populacionais, 4 vols. Aguas de Sao Pedro: Associac;:ao Brasileira de Estudos Po- art. 27, pp. 52-3. Em 1872, 9 dos 14 escravos herdados, rodos acima de 15 anos, estavam ca-
pulacionais (Abep), 1986, vol. I, pp. 53-71. sados. Desses 14, 5 foram libertados ate o final de 1882. Entre os outros cativos presences
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Ver o capitulo 1 deste livro para uma analise dos estudos que enfatizavam a "anomia'' escrava. em 1872 (25, sendo 18 acima de 15 anos, apenas 4 destes casados), nao houve alforriados.
Minhas criticas ao "modo de produc;:ao escravista colonial" dirigem-se principalmente ao Sobre as possibilidades de "mobilidade ocupacional" dentro da escravidao, a tendencia dos
liv;o de Jacob Gorender, 0 escravismo colonial. Para outro esfon;o de teorizac;:ao sobre o senhores de promover escravos crioulos ou "da casa'' para trabalhos domesticos e qualifi-
"modo de produc;:ao escravista coloniaC que foi mais aberto ao di:ilogo com as evidencias

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236
NA ~IIN1.Al,A 1 UMA 111,()11

cados, e a utilizac;:ao da alforria pelos scnhores como o "pri:mlo got·du" dcntro de uma po· 4
lftica de incentives, ver Slenes, "The Demography...", cap. X.
196
197
Eduardo Silva, ''A func;:ao ideol6gica.. .'; pp. 22-31, trechos citados pp. 29, 31. Lares e linhagens
Gomes, Historias de quilombolas... , passim; ver tambem Flivio dos Santos Gomes, "A hidra
e os pantanos: quilombos e mocambos no Brasil (seculos XVI-XIX)". Tese de doutorado A jlor na senzala
em hist6ria. Unicamp, 1997 (publicado posteriormente como mesmo titulo: Sao Paulo:
Edunesp, 2005).
198
Refiro-me a Gorender, 0 escravismo colonial.
199
Castro, "A economia polftica.. .'; p. 79. Minha referenda aqui a "pontos riscados" (pdticas
divinat6rias elaboradas a partir de uma heranc;:a centro-africana) lembra novamente aim-
porrancia da cultura no processo hist6rico.
200
Sobre o processo de formac;:ao de uma "protonac;ao" bantu no Brasil, ver Slenes, "'Malungu,
ngoma vemL.': C£ Sterling Stuckey, Slave Culture: Nationalist Theory and the Foundations
ofBlackAmerica. Nova York: Oxford University Press, 1987, cap.1.

No capitulo anterior, tentei identificar alguns dos possiveis ganhos simb6-


licos que o matrimonio podia trazer para os escravos, ao aumentar seu
acesso a recursos materiais e seu controle sobre a economia domestica.
Nisso, tive urn sucesso apenas relativo devido as limita<;:6es das fontes; como
ja vimos, OS relatos dos observadores brancos do seculo XIX sao muito uteis
para a reconstru<;:ao da vida material dos escravos, mas praticamente nao
nos servem para a recupera<;:ao de significados culturais. Contudo, e pos-
sivel refletir urn pouco mais sobre o assunto, lendo esses relatos "nas entre-
linhas" e a partir de uma perspectiva comparativa. 0 metodo talvez nos
ajude a perceber o que escravos como Samuel, Vidal e suas familias cons-
truiram para si e para seu grupo, alem de urn peculio e urn (aparente)
compromisso com seus donos.
Recuperando 0 sentido etimol6gico de "lar" (lares em latim sao OS es-
piritos protetores dos ancestrais), quero examinar as possiveis implica<;:6es
da posse do fogo para a sustenta<;:ao da familiae da comunidade escrava no
tempo. Que eu saiba, nenhum viajante ou observador brasileiro tocou
nesse assunto, pois poucos entendiam as raz6es priticas dos escravos com
rela<;:ao ao fogo domestico, muito menos suas raz6es simb6licas. Urn trecho
do relato de Ina von Binzer, a professora alema, e especialmente obtuso a
esse respeito. Ao mesmo tempo, merece destaque por trazer informa<;:6es
que sugerem uma hip6tese fascinante. Apergunta de Binzer sobre a loca-
liza<;:ao do fogo - "0 senhor nao permite que com urn calor destes essa
pobre gente acenda o fogo fora da casa?" - , o fazendeiro, seu anfitriao,
responde: "Permitir? Tentei urn sem-nu.mero de vezes vencer-lhes a resis-

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