Teste N.° 3 - Bernardo Soares - Livro Do Desassossego
Teste N.° 3 - Bernardo Soares - Livro Do Desassossego
Teste N.° 3 - Bernardo Soares - Livro Do Desassossego
_ Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos
_ a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse dinheiro.
_ Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e nã o crê naquela
_ sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas
5 de que realmente nã o gosta. Mais adiante, há um que […]
_ Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente.
_ Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos
_ os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas,
_ vozes, frases. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o
10 estofo de que se compõ e, o trabalho com que o fizeram – pois que o vejo vestido e não estofo –
_ e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retró s de seda, com
_ que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro
_ primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos – a
_ fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retró s, de um tom mais escuro, com que se
15 orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as secçõ es das fábricas, as
_ máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos
_ escritó rios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de
_ tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social
_ nessas fábricas e nesses escritó rios... Toda a vida social jaz a meus olhos só porque tenho
20 diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar
_ irregular regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido.
_ Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic], a alma, de todos quantos
_ trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico use, em torno do seu
_ pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retró s de seda verde-escura fazendo
25 inutilidades pela orla de uma fazenda verde menos escura.
Entonteço. Os bancos de elétrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me
a regiõ es distantes, multiplicam-se-me em indú strias, operá rios, casas de operá rios, vidas,
realidades, tudo.
Saio do carro exausto e sonâ mbulo. Vivi a vida inteira.
______________
Fernando Pessoa, Livro do desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015, pp. 253 e 254.
2. Explicita a relaçã o entre o enunciador observador e a «rapariga» (linha 9) que vê «num carro
elétrico» (linha 7).
3. Tendo em consideraçã o a globalidade do texto, apresenta uma justificaçã o vá lida para a ú ltima
afirmaçã o do seu autor: «Vivi a vida inteira.» (linha 29).
B
Lê o texto.
Cena I
_ Madalena, só, sentada junto à banca, os pés sobre uma grande almofada, um livro
_ aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele, como quem descaiu da leitura na meditação.
_
Madalena (repetindo maquinalmente e devagar o que acaba de ler).
_ «Naquele engano d’alma ledo e cego
5 Que a fortuna não deixa durar muito...»
_ Com paz e alegria de alma... um engano, um engano de poucos instantes que seja... deve
_ de ser a felicidade suprema neste mundo. E que importa que o nã o deixe durar muito a
_ fortuna? Viveu-se, pode-se morrer. Mas eu!... (Pausa). Oh! que o nã o saiba ele ao menos,
_ que nã o suspeite o estado em que eu vivo... este medo, estes contínuos terrores que ainda
1 me nã o deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu
0 amor. – Oh! que amor, que felicidade... que desgraça a minha! (Torna a descair em
_ profunda meditação; silêncio breve).
______________
Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, prefácio de Annabela Rita, Porto, Ediçõ es Caixotim, 2004, pp. 59-61.
5. Explica a que se refere D. Madalena com a expressã o «o estado em que eu vivo… este medo, estes
contínuos terrores» (linhas 9 e 10), com base no teu conhecimento da obra de onde foi retirado o
texto.
GRUPO II
_ Albufeira, 28 julho de 1982 – Sol e preguiça. O sol salgado que me faltou em criança e a preguiça
_ distendida que nunca pude ter de boa consciência pela vida fora.
25 Albufeira, 29 julho de 1982 – Retomei a enxada. A moinice 2 de ontem foi sol de pouca dura.
_ Bem tento. Mas os genes são o que são e podem mais do que a vontade. Quando não trabalho
_ sinto-me em pecado mortal.
_ Albufeira, 30 de julho de 1982 – Um dia radioso lá fora, e eu aqui agarrado ao teclado3, a puxar
_ diligentemente pelos neurónios. Para quê? Para dar duração a uma existência atribulada que
30 teima em não se confinar ao império das circunstâncias. Somos assim. Sabemos que nada é
_ eterno, que tudo acaba, mas insistimos em celebrar-nos na solidez da pedra ou na fragilidade do
_ papel. Mesmo os que acreditam numa outra vida, pelo sim, pelo não, tentam perpetuar-se nesta,
_ nem que seja a canivete na casca dum olmo4. Desafiam também o total esquecimento como
_ podem. Inconformados com a nossa efemeridade terrena, queremos ao menos a memó ria
35 conservada na lembrança dos vindoiros. E o povo, na sua certeira sabedoria, entendeu-o bem e
_ disse-o lapidarmente: «Morra um homem e fique a fama.»
_ […]
_ Albufeira, 11 de agosto de 1982 – Mais uma barrela5 da alma. À hora menos pensada, violento a
_ timidez e descomando-me, perante o espanto ou o embaraço de quem me ouve. Confesso as
40 minhas culpas, reconheço as minhas falências, aponto as minhas limitaçõ es. Sempre o fiz, de
_ resto. Inocentemente quando em pequeno me desobrigava no confessionário6 e, depois, já
_ homem, mais maduramente, a confidentes nem sempre de eleição. Os desabafos de agora,
_ porém, igualmente sinceros, não me dão o alívio de outrora. Parecem não me dizer respeito. É
_ como se falasse de um outro, de um sósia, com o meu rosto, os meus sentimentos, o meu passado.
45 De tanto escrever sobre mim, acabei por me tornar aos pró prios olhos numa abstração.
_ Albufeira, 12 de agosto de 1982 – Tanto que dizer deste dia e a caneta nega-se a qualquer
_ rabisco significativo. Obrigo-a apenas a declarar que estou cada vez mais só no mundo. Porque
_ tudo ousei, nada calei e muito interroguei, tornei-me um monstro de inquietação até para os
_ mais compreensivos. E mesmo aqueles que não fugiram da minha lepra de poeta é como se
50 vivessem longe de mim. Nem esquecem que sou gafado7, nem mo deixam esquecer.
_ Évora, 14 de agosto de 1982 – O aprumo interior a que nos obrigam certas terras do mundo!
_ É vora é uma delas. Sempre que a visito, sou outro. Caminho nas ruas com não sei que respeito,
_ olho os monumentos com não sei que admiração, respiro o ar de cada praça com não sei que
_ agradecimento fisiológico dos pulmões. É uma dignidade ambiente que se pega, que nos impõ e a
55 mesma autenticidade, a mesma pulcritude8, a mesma distinção. Há um sagrado laico como há um
sagrado religioso. Um sagrado laico que também só contemplamos em paz a meia voz e de
chapéu na mão.
______________
Miguel Torga, Diário – volumes. XIII a XVI, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2011, pp. 113, 114 e 115.
______________
1
marcada; 2 preguiça; 3 de uma máquina de escrever; 4 espécie de árvore; 5 limpeza forte; 6 «me desobrigava no confessionário» –
me confessava a um padre; 7 leproso, portador de lepra, doença contagiosa; 8 beleza
1. No poema presente na entrada do dia 27 de julho de 1982, o sujeito poético, através dos versos
«Ainda a mesma naçã o, / Mas com outros sinais.» (linhas 18 e 19),
(A) caracteriza um espaço.
(B) identifica um espaço com outro.
(C) contrasta dois espaços.
(D) elogia um espaço.
2. Tem em atençã o a frase «Retomei a enxada.» (linha 25). Da sua relaçã o com a frase «aqui agarrado
ao teclado» (linha 28) conclui-se que o enunciador utilizou uma
(A) hipérbole.
(B) personificaçã o.
(C) metá fora.
(D) hipérbole.
7. As duas atitudes referidas no final da entrada do diá rio relativamente à visita a É vora, – «a meia voz
e de chapéu na mã o.» (linhas 56 e 57) revelam no visitante um sentimento de
(A) admiraçã o.
(B) alegria.
(C) respeito.
(D) confiança.
8. Indica o valor modal presente no verbo poder no enunciado «O sol salgado que me faltou em criança
e a preguiça distendida que nunca pude ter de boa consciência pela vida fora.» (linhas 23 e 24).
9. Identifica a funçã o sintá tica da oraçã o subordinada presente em «Sabemos que nada é eterno»
(linhas 30 e 31).
GRUPO III
A relaçã o dos portugueses com o mar tem sido muito variada ao longo dos tempos, como o é ainda
hoje.
Redige um texto de natureza expositiva, no qual apresentes modos de que se revestiu ou reveste
essa relaçã o.
O teu texto deve ter entre 200 e 300 palavras e deve estruturar-se em três partes ló gicas.
CRITÉRIOS ESPECÍFICOS DE CLASSIFICAÇÃO
Grupo I ................................................................................................................... 100 pontos
A
Pergunta 1 .............................................................................................................................. 20 pontos
Aspetos de conteúdo (C) ...................................................................................................... 12 pontos
Cenário de resposta:
Com esta sequência, o autor apresenta uma série de comportamentos que se caracterizam, na sua opiniã o, por
serem absurdos – dada a sua incongruência.
Cenário de resposta:
Com esta frase o observador / autor diz-nos que, a partir do «vestido» da rapariga, imaginou a totalidade da vida
dela.
B
Pergunta 4 ........................................................................................................................................ 20 pontos
Aspetos de conteúdo (C) .............................................................................................................. 12 pontos
Cenário de resposta:
Com estas expressõ es ela refere-se ao seu estado de alma perturbado pela possibilidade de o seu primeiro
marido – cuja morte nunca foi comprovada – regressar e destruir o seu segundo casamento.
Os critérios de classificaçã o relativos à estruturaçã o temá tica e discursiva (ETD) apresentam-se orga-
nizados por níveis de desempenho nos parâ metros seguintes: (A) tema e tipologia, (B) estrutura e
coesã o, (C) léxico e adequaçã o discursiva.
Pontuaçã o
15 12 9 6 3
Parâ metro
(A) – Trata, sem desvios, o tema – Trata o tema proposto, – Aborda lateralmente o
Tema e proposto. embora com alguns tema proposto.
tipologia – Mobiliza informaçã o desvios. – Mobiliza muito pouca
ampla e diversificada – Mobiliza informaçã o informaçã o relativamente
relativamente à tipologia suficiente, relativamente à à tipologia textual
textual solicitada: produz tipologia textual solicitada: produz um
um discurso coerente e solicitada: produz um discurso geralmente
sem qualquer tipo de discurso globalmente inconsistente e, por vezes,
ambiguidade. coerente, apesar de ininteligível.
algumas ambiguidades.
Pontuaçã o
10 8 6 4 2
Parâ metro
(B) – Redige um texto bem – Redige um texto – Redige um texto com
Estrutura estruturado, constituído satisfatoriamente estruturaçã o muito
e coesã o por três partes estruturado nas três deficiente, em que nã o se
(introduçã o, partes habituais, nem conseguem identificar
desenvolvimento, sempre devidamente claramente três partes
conclusã o), articuladas entre si ou (introduçã o,
proporcionadas e com desequilíbrios de desenvolvimento e
articuladas entre si de proporçã o mais ou menos conclusã o) ou em que
modo consistente; notó rios; estas estã o
•• marca corretamente os •• marca pará grafos, mas insuficientemente
pará grafos; com algumas falhas; articuladas;
•• utiliza, adequadamente, •• utiliza apenas os •• raramente marca
conectores diversificados conectores e os pará grafos de forma
e outros mecanismos de mecanismos de coesã o correta;
coesã o textual. textual mais comuns, •• raramente utiliza
embora sem incorrecçõ es conectores e mecanismos
graves. de coesã o textual ou
utiliza-os de forma
inadequada.
Pontuaçã o
5 4 3 2 1
Parâ metro
(C) – Mobiliza, com – Mobiliza um repertó rio – Mobiliza um repertó rio
Léxico e intencionalidade, recursos lexical adequado, mas lexical adequado, mas
adequaçã o da língua expressivos e pouco variado. pouco variado.
discursiva adequados. – Utiliza, em geral, o registo – Utiliza, em geral, o registo
– Utiliza o registo de língua de língua adequado ao de língua adequado ao
adequado ao texto, texto, mas apresentando texto, mas apresentando
eventualmente com alguns afastamentos que alguns afastamentos que
esporá dicos afastamentos, afetam pontualmente a afetam pontualmente a
que se encontram, no adequaçã o global. adequaçã o global.
entanto, justificados pela
intencionalidade do
discurso e assinalados
graficamente (com aspas
ou sublinhados).
Dada a natureza deste item, nã o é apresentado cenário de resposta.