História Do Exército Romano
História Do Exército Romano
História Do Exército Romano
Os escritores antigos, tão atreitos a exaltar a glória dos generais e as virtudes dos
cidadãos, denegriram, em contrapartida, a imagem dos soldados, mostrando-os amiúde
como indivíduos caracterizados pela brutalidade e pela cupidez. Para os historiadores
actuais, as maiores dificuldades consistem em interrelacionar essas descrições sobre o
exército romano feitas em épocas diferentes, bem como lograr apreender como seria a
vivência do soldado deixando de parte os clichés veiculados pela literatura antiga.
Deve-se buscar o motor das transformações operadas na organização das forças
armadas tanto nas mudanças que se registaram na sociedade romana, como na
evolução das relações que Roma manteve com o mundo exterior.
Além da sua óbvia função bélica, o soldado contribuiu inegavelmente para a difusão
do modus vivendi romano e o funcionamento da administração do Império, afora
muito concorrer para a circulação de ideias e crenças. Para a elaboração deste estudo,
alicerçámo-nos em abundante documentação, que, aliás, continua a ser regularmente
enriquecida com a descoberta de novas fontes epigráficas, papirológicas, arqueológicas
e numismáticas. Na lápide de um soldado, observa-se frequentemente a concepção que
1
o defunto e os seus camaradas do defunto tinham sobre o ofício das armas. Quanto às
dedicatórias ou ex-votos, espelham as crenças religiosas mais enraizadas nas
guarnições. Por seu lado, um óstraco (do grego ostrakon, fragmento de cerâmica
inscrito) exumado nas areias africanas ou, então, uma tabuinha de madeira recuperada
de uma sepultura de turfa na Britânia, podem também lançar luz sobre a vida militar
no Império. Estas peças, com efeito, serviam de suporte para os escritos mais correntes:
desde listas de provisões e relatórios, passando pela indicação de senhas, cartas
privadas e até convites, por exemplo, para uma festa de aniversário…
2
CAPÍTULO 1 - A guerra e as forças armadas nos tempos da
Roma Arcaica e no começo da República. A conquista de
Itália
Preâmbulo
Sobre o período da monarquia em Roma, muito do que é contado nas fontes literárias
corresponde a narrações lendárias e reconstituições imaginativas. A partir da fundação
da República (data tradicional: 509 a. C.), os historiadores antigos passaram a facultar
um «relatório» anual. Esta prática incorporou informações autênticas, oral ou
textualmente transmitidas, como a consignação dos acontecimentos que, desde tempos
recuados, efectuava o pontifex maximus. No entanto, este material sofreu distorções de
sucessivos escritores, que inseriram nos relatos dados suplementares, procurando
oferecer aos leitores mais detalhes. Consequentemente, a identificação do núcleo dos
informes autênticos no seio dos relatos históricos conservados revela-se complexa.
Actualmente, há um consenso praticamente generalizado de que muito do que lemos
sobre os períodos mais remotos corresponde a uma série de «construções» literárias,
das guerras, cujas narrações incluem, em muitas parcelas, invenções estereotipadas e
anacrónicas. Não obstante estas dificuldades, é possível reunir um apreciável conjunto
3
de dados sobre a história arcaica de Roma e, extensivamente, avaliar o seu modo de
fazer a guerra, nas suas grandes linhas. Para este labor, dispomos de outros
testemunhos antigos, como os relatos «antiquários» das instituições romanas, um
conjunto de fontes epigráficas e, para o período monárquico, vários achados
arqueológicos1.
4
1.1. Guerra e expansão territorial
3
Que teria o nome etrusco de Lucumon e seria originário de Tarquínia (Tarquinii), tal como Tarquínio-o-Soberbo.
4
Proviria da cidade de Vulsi. O seu nome, citado pelo imperador Cláudio, figura também nos afrescos do denominado
«Túmulo François», que data do século IV e se localiza nessa comunidade etrusca.
5
T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, capítulos 4, 6 e 8. Veja-se, também, E. Gjerstad, «Innenpolistische und
militärische Organisation in frührömische Zeit», Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt, I.1 (1972), pp. 136-188.
5
A tradição histórica romana só atribuiu a um monarca guerras vitoriosas e intentos de
expansão territorial contra os Latinos e outros povos vizinhos, mas lembremos que
poucos dados contidos na primeira terão correspondido a factos reais. Ainda assim, é
provável que em finais do século VI a. C., o território romano praticamente atingisse a
extensão que a tradição refere para o período da realeza: haveria uma significativa
«testa-de-ponte» na margem direita do Tibre e, na esquerda, pelo menos, o território
de Roma alcançaria a faixa marítima, ao passo que para sudeste se estenderia até ao
Monte Albano. A. Alföldi argumentou que muitas destas etapas expansionistas só
tiveram lugar desde o fim do século V, mas isto não parece adequar-se à verdade, já que
um crescimento substancial certamente se reflectiria na tradição 6.
Roma não foi a única comunidade latina a expandir-se no período arcaico, mas o seu
território tornou-se indiscutivelmente muito maior do que qualquer outra. As
estimativas propostas por K. J. Beloch, se bem que conjecturais, apresentam indicações
aproximativas mais ou menos plausíveis: ele afirmou que, em finais do século VI, o
território romano teria 822 km2, isto é, pouco mais de 1/3 de toda a região latina (2,344
km2)7.
Desde o reinado de Túlio Hostílio, a tradição apresenta Roma a tentar exercer a
supremacia sobre os outros Latinos, oferecendo estes, frequentemente, uma oposição
concertada. Como se disse, são poucos os informes veiculados por esta tradição com
irrefutável valor histórico; porém, ao tomarmos em consideração o maior tamanho da
sua cidade e território, não custa admitir que os últimos reis tenham conseguido
estabelecer algum género de hegemonia sobre alguns dos Latinos, pelo menos.
Deparamos com um claro testemunho das reivindicações de Roma em finais do século
VI no primeiro tratado que a mesma concluiu com Cartago, cujo conteúdo o historiador
grego Políbio, escrevendo no século III a. C., conservou (Hist. 3.22): nesse convénio, os
Cartagineses comprometiam-se a não causar danos «ao povo de Ardea, Antium,
Lavinium, Circeii, Tarracina, ou quaisquer outros Latinos, que são súbditos». Embora
a datação do acordo de 348 a. C. ainda possua apoiantes no meio académico, nos
últimos anos a maioria dos historiadores tendeu a aceitar a data apontada por Políbio,
segundo o qual o tratado terá sido celebrado no primeiro ano da República.
Independentemente de qual das datas se afigura mais correcta, a pretensão, por parte
de Roma, de dominar Antium, Circeii e Tarracina talvez represente um exagero do seu
poder. Estas cidades costeiras, bem como a Planície Pomptina por detrás das mesmas,
foram ocupadas pelos Volsci, e o controlo total desta zona pelos Romanos, só se
materializou a partir de 338 a. C.
6
A. Alföldi, Early Rome and the Latins, Ann Arbor, 1965, pp. 101-175, 236-318. Para uma refutação das ideias deste
autor, cf. os comentários de R. Thomsen, King Servius Tullius, Copenhaga, 1980, pp. 130-138.
7
K. J. Beloch, Römische Geschichte bis zum Beginn der punischen Kriege, Berlim, 1926, pp. 169-179. Estes cálculos
foram aceites por T. J. Cornell: The Beginnings of Rome, pp. 208-209.
6
Em geral, crê-se que os Volsci eram invasores que chegaram à região Pomptina em
começos do século VI. Contudo, a tradição apresenta-os já nesta área no tempo dos reis
romanos e, neste caso, cabe dar crédito à primeira. Uma suposta invasão dos Volsci, no
século V a. C., da região Pomptina e a expulsão dos Latinos teria constituído uma fase
momentânea, daí, possivelmente, nenhum vestígio destes factos perdurar na memória
romana8.
Apesar de merecer pouca fiabilidade em diversos aspectos, a tradição histórica talvez
esteja certa ao retratar os Romanos como participando frequentemente em conflitos
com os seus vizinhos latinos e outros povos. Os lucros resultantes de tais guerras foram
uma maiores fontes de prosperidade para Roma no século VI a. C.: consequentemente,
a tradição segundo a qual o grande templo no Capitólio fora construído graças aos
despojos obtidos na captura de Pometia pelo Tarquínio-o-Soberbo pode, afinal,
corresponder à realidade9.
Quanto à periodicidade com que os conflitos armados se desenrolavam, só é possível
formular conjecturas. Ainda assim, vários indícios levam a presumir que houve
confrontos violentos entre os Romanos e os membros de outras comunidades num
ritmo quase anual. Muitas vezes, apresentaram-se evidências rituais para provar que,
nos tempos mais remotos, bem como posteriormente, a guerra era um fenómeno anual
para os Romanos, diversos investigadores interpretando os antigos ritos celebrados nos
meses de Março e Outubro como marcadores, respectivamente, do início e do fim da
estação das campanhas. Porém, o significado original da maior parte destes rituais
conduziu a opiniões divergentes, além de que não se preservaram provas explícitas que
corroborem a tese de que correspondessem a um ciclo de guerra sazonal 10.
8
Sobre o tratado com Cartago: T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 210-214; S. O. Oakley, A commentary on Livy
Books, 2.252-262. Quanto aos Volsci como estando já presentes na região Pomptina desde o século VI a. C. (pelo menos)
vejam-se: D. Musti, «L’immagine dei Volsci nella storiografia antica», Quaderni del Centro di Studi per l’Archeologia
Etrusco-Italica, 20 (1992), pp. 25-31; M. Gnade, Satricum in the Post-Archaic Period, Lovaina, 2002, pp. 138-156.
9
Cícero, Rep. 2.44; Tito Lívio, Ab Urb. cond. 1.53.2-3; 55.7-9; Dionísio, Ant. rom. 4.50; Tácito, Hist. 3.72. Talvez caiba
identificar Pometia com a cidade ulteriormente denominada Satricum.
10
Interpretação ainda defendida por certos historiadores, como P. Cosme (L’armée romaine: VIIe s. av. J.-C.-Ve s. apr.
J.-C., 2ª edição, Paris, Armand Colin, 2012, pp. 9-10: este autor refere que, desde tempos muito recuados, o calendário
definiu uma estação guerreira que se iniciava na Primavera, através da lustratio das armas, que depois terminava no
Outono por meio da cerimónia do «cavalo de Outubro» e da purificação das armas. Assim, a guerra teria sido marcada
por um ritmo sagrado: «…o serviço militar investia o Romano de uma missão exigida pelos deuses, que o fazia passar
para um meio diferente da sua comunidade civil e induzia, então, uma importante mudança na sua condição. Tratava-se
de dois estados vividos alternativamente. A passsagem de um para o outro operava-se por meio de ritos, fixados por um
calendário imutável, que faziam do cidadão um soldado e vice-versa». Em Março, uma cerimónia de lustratio abria a
estação das campanhas militares com corridas no Campo de Marte, a purificação das armas e das trombetas e os
suovetaurilia, sacrifícios de um porco, de um carneiro e de um touro. Assim se protegeria a Cidade das forças nocivas e
destruidoras, mantendo os soldados afastados dos limites sagrados do pomerium, recinto cujo traçado se atribuiu
tradicionalmente a Rómulo, o qual não se poderia atravessar com armas. Através dos ritos de partida para a guerra, cada
romano mobilizado, que fora consagrado a Marte, saía dos limites sagrados e teria de ficar fora do pomerium. Por fim,
quando terminava a estação guerreira, de novo se celebravam várias cerimónias para que o miles voltasse a ser quirite,
altura em que se procedia à purificação do exército, por este representar, aos olhos do resto da sociedade, um perigo. O
ritual do Tigillum Sororium, o da passagem dos guerreiros sob o arco na entrada da Urbs, que obedecia ao propósito de
purificar os cidadãos do sangue derramado e despojá-los do seu furor belicoso, este, assim, na génese da passagem do
exército trunfante pela porta trumphalis, ao pé do Capitólio. Quanto à cerimónia do «cavalo de Outubro» (equus
october), sacrificado no dia 15 deste mês, cele braria o retorno à paz. Em tal ocasião, os habitantes de dois bairros de
Roma disputavam os restos do equídeo, para a seguir os levar até à Regia, residência real no Forum. O sangue vertido
na imolação simbolizaria a propagação das forças da vitória para a subsequente campanha. Uma derradeira lustratio
acabava de purificar os soldados. J. Rüpke, pelo contrário, é um dos historiadores que se mostra contrário à ideia de que
7
Um dos indicadores mais sintomáticos da relevância da guerra no Lácio arcaico radica
na disseminação das fortificações: em certos sítios, no século VIII a. C., terão sido
erguidas muralhas feitas de terra providas de fossos em seu redor e, ao longo dos
séculos VII e VI, estes dispositivos defensivos aparecem em muitos outros locais. Em
alguns, construíram-se fortificações completas, como as três cinturas amuralhadas
protegendo a aproximação a Ardea. Além disso, uma cidade, pelo menos, Lavinium,
possuiu uma muralha de pedra no século VI a. C.
Porém, as cidades maiores ainda não sentiriam a necessidade de possuirem sistemas
defensivos desse tipo: as muralhas que cingiram as cidades etruscas meridionais
datam, aproximadamente, de finais do século V e já do IV; no caso de Roma, embora
tivesse algumas fortificações parciais, o primeiro dispositivo verdadeiramente
fortificado, a chamada «Muralha Serviana», não data realmente do reinado de Sérvio
Túlio, mas de começos do século IV a. C.
a guerra constituía um fenómeno anual para os Romanos (Domi Militiae: Die religiöse Konstruktion des Krieges in
Rom, Estugarda, 1990, pp. 23-26). Seja como for, a sacralidade de que se revestiria o acto bélico assume todo o sentido,
dado que observamos este mesmo aspecto no contexto de ritos praticados por diversos povos da Alta Antiguidade.
11
T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 215-241.
8
pelo contrário, Roma adoptou muitas vezes uma atitude defensiva, reagindo a ataques
inimigos e chegando mesmo a ter de lutar pela própria sobrevivência 12.
A própria tradição indica uma nítida flutuação na frequência das acções bélicas: entre
454 e 411 a. C., as forças romanas devem ter lutado em apenas catorze anos, ao passo
que antes e depois deste período se afirma que a guerra se realizava quase anualmente.
Na realidade, muitos relatos de conflitos podem ter sido inventados. Mas essa flagrante
disparidade talvez corresponda, pelo menos em certos aspectos, à verdade dos factos,
não sendo de arredar a hipótese de que os Romanos se envolveram em muito menos
campanhas e combates no fim do século V do que anteriormente ou nos decénios
seguintes.
A erradicação da monarquia conduziu a uma turbulência generalizada na região do
Tibre. Provavelmente, Roma ter ocupada durante certo tempo por um «aventureiro»
etrusco, Lars Porsenna13, e, afora outros conflitos, os Romanos tiveram que enfrentar
uma coligação de estados latinos. No entanto, saíram-se relativamente bem destas
lutas. A montante do Tibre, na sua margem esquerda, os «filhos de Marte» garantiram
a posse de Fidenae e Crustumerium14. Os Latinos sofreram uma derrota decisiva no
Lago Regillus (talvez localizado a noroeste de Tusculum; Tito Lívio situou a batalha em
499 a. C., e Dionísio de Halicarnasso, em 496).
Pouco mais tarde, os Romanos concluíram tratados de aliança, primeiramente com os
Latinos e, depois, com os Hernici, que viviam no vale superior do Sacco, separados do
Vale do Tibre pelas águas que corriam entre os Montes Albanos e Praeneste. De acordo
com a tradição, ambos os tratados foram negociados por Espúrio Cássio (Spurius
Cassius), respectivamente em 493 e 486 a. C. Sob o ponto de vista formal, estes
convénios terão sido redigidos de maneira similar, mas no celebrado com os Latinos,
Roma marcou a sua proeminência, uma vez que as comunidades dos primeiros
ratificaram um acordo bilateral com a República.
Nas descrições de Lívio e Dionísio dos conflitos seguintes, é quase certo que eles
exageraram o grau de subordinação dos Latinos e dos Hernici face aos Romanos, mas
subsistem dúvidas se, alguma vez, as forças aliadas, estiveram sob a liderança de um
comandante não romano. O mais importante é que tais alianças duraram bastante
tempo. Lívio (Ab Urb. cond. 6.23) pode ter exagerado ao afirmar que não se registou
12
S. P. Oakley, «The Roman Conquest of Italy», in J. Rich e G. Shipley (eds.), War and Society in the Roman World,
Londres, 1993, pp. 14-16; K. A. Raaflaub, «Born to be Wolves? Origins of Roman imperialism», in R. W. Wallace e E. M.
Harris (eds.), Transitions to Empire: Essays in Greco-Roman History 360-146 BC in honor of E. Badian, Norman,
1996, p. 283ss. Em termos globais, T. J. Cornell (The Beginnings of Rome, pp. 293-326) é um dos historiadores que
oferece uma boa análise sobre o modo de fazer a guerra dos Romanos, bem como das relações externas no começo da
época republicana.
13
Segundo a tradição, o último dos Tarquínios, ao ver-se destronado pelos Romanos sublevados em 509 a. C., teria
pedido auxílio a outro soberano etrusco, Porsenna, que reinava sobre Clusium (actual Chiusi). Não obstante a narrativa
lendária (Tito Lívio, Ab Urb. cond. 2.9.15), Porsenna logrou apoderar-se da Cidade, mas nesta se contentou talvez em
impor uma espécie de protectorado sobre o novo regime republicano.
14
A teoria de que Fidenae esteve sob o controlo de Veios até à Segunda Guerra Veientina põe de parte os testemunhos
antigos, sem aduzir razões válidas para o facto.
9
oscilação alguma na lealdade dos Latinos e Hernici até 389, mas em princípio,
deflagraram poucos conflitos armados entre os Romanos e os seus vizinhos Latinos no
período que se seguiu, havendo assim um marcado contraste em relação ao que
acontecera durante o século VI e antes deste15.
Por outro lado, Lívio e Dionísio aludem a confrontos muito frequentes com os
Sabinos, os Volsci e os Aequi, geralmente apresentados como responsáveis por
incursões em território romano ou nos dos seus aliados. Mostram, também, os
Romanos a sofrerem desaires mas, em geral, acabando por saírem vencedores, por
vezes ganhando batalhas e tomando cidades, mas em geral contentando-se com acções
retaliatórias de pilhagem. A guerra contra os Sabinos é a última exarada para o ano 449
a. C.-, mas com as outras duas extensões a partir das primeiras notícias, em 495, até
388 no caso dos Aequi, e no fim do século IV a. C. quanto aos Volsci.
A maioria dos especialistas entende que a realidade histórica subjacente a estas
narrativas é basicamente a seguinte: especialmente no começo do século V a. C., os
Romanos e os seus aliados sofreram assaltos quase anuais dos povos das montanhas,
que assim exerceram pressão sobre os habitantes das planícies. Esta interpretação
assentou grandemente nas fontes relativas à frequência dos conflitos e na concepção do
papel dos Romanos como essencialmente defensivo. Mas essa aparente frequência pode
derivar parcialmente das invenções criadas pelos historiadores antigos, a fim de melhor
«encherem» os registos anuais, e também da tendência dos primeiros em traçar uma
imagem homógenea de todas as guerras que os Romanos travaram como sendo
reacções justificadas por diversas agressões.
Os Sabinos do Vale do Tibre entabularam contactos regulares, simultaneamente
pacíficos ou violentos, com os seus vizinhos Romanos desde tempos recuados. Os
choques intermitentes entre uns e outros terão continuado em princípios do século V a.
C., mas depois diminuíram, como aliás a tradição sugere. Quanto aos conflitos com os
Aequi e os Volsci, emergiram da agitação regional verificada no começo do século V e
das subsequentes alianças com os Latinos e os Hernici. Repare-se que os Romanos
estavam separados das terras dos Aequi e Volsci pelo espaço geográfico ocupado pelas
comunidades latinas; neste sentido, a perspectiva de receberem auxílio contra estes
inimigos constituiu, quiçá, um dos principais factores que mais atraiu os Latinos e os
Hernici a tornarem-se aliados de Roma.
Os Volsci, que porfiaram contra os Romanos e os seus aliados, habitavam a litorânea
planura Pomptina, que se estendia de Antium a Anxur (o nome e que deram para
Tarracina), estando igualmente presentes nos adjacentes Monti Lepini. Como atrás se
15
Sobre os tratados cassianos: T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 299-301; S. P. Oakley, A Commentary on Livy
Books, 1-5, 1.336-341. Dionísio alegou citar o texto do tratado concluído com os Latinos. Um fragmento do antiquarista
Lucius Cincius (Festo, 276-277, Lindsay) dá a entender ter havido uma partilha na tomada de decisões entre Romanos e
Latinos; além disso, é provável que os comandantes fossem fornecidos por outras comunidades que não só Roma.
10
disse, actualmente diversos académicos ainda defendem a tese que se tratava de
invasores oriundos da cadeia montanhosa do Centro de Itália, que recentemente
tinham chegado a tal região. Neste caso, talvez seja preferível atermo-nos às fontes
antigas, segundo as quais este povo já aí se encontrava desde o século VI ou até antes.
Acresce que, independentemente da sua origem, os Volsci não se compunham apenas
de montanheses, já que muitos viviam na planície ou junto à costa, e alguns dos seus
assentamentos até podem ter possuído um carácter urbano.
Os Aequi, que defrontaram a aliança romana, viviam no alto Vale Aniene e nas
montanhas em seu redor. A partir daqui, podiam passar facilmente para o alto Vale de
Sacco, onde, aliás, alguns se fixaram. Os Aequi inscrevem-se mais no «modelo» de
montanheses que atacavam as populações das planícies, mas a verdade é que não se
comprovou se as suas lutas contra os Latinos e os Hernici eclodiriam sempre mais em
resultado de acções de saque dos Aequi do que de disputas mútuas entre vizinhos.
Sugeriu-se que, no começo do século V a. C., os Aequi terão ocupado o Algidus, a
principal cratera dos Montes Albanos, e o território adjacente, e que importantes
cidades latinas, como Tibur e Praeneste, ficaram submetidas aos Aequi ou chegaram a
algum tipo de entendimento com eles. Se isto efectivamente aconteceu, os Romanos
ficariam numa situação muito vulnerável, mas as fontes não nos transmitem pistas
sobre uma eventual expansão dos Aequi com tais proporções.
Nas fontes, os Volsci não surgem como ocupantes do Algidus, mas a levarem a cabo
raides sobre o mesmo. É altamente improvável que a sujeição de Tibur e de Praeneste
tenha deixado vestígios na documentação textual antiga. Praeneste talvez tenha
porfiado muitas vezes contra os Aequi, mas quase nada se sabe sobre estes confrontos,
talvez por tal cidade possuía mais capacidades para se defender do que os demais
aliados romanos16. A nível global, os Romanos não terão experimentado problemas de
maior nas guerras travadas contra os Aequi e os Volsci. Só esporadicamente as
incursões destes povos atingiram o território romano: registam-se apenas em 488, 478,
470, 469, 465-463 e 446 a. C., mas todas aparecendo em récitas de dúbia historicidade.
O maior envolvimento dos Romanos consubstanciou-se no envio de exércitos em
auxílio dos seus aliados latinos e hérnicos, ainda que tal ajuda pode ter sido bastante
menor do que a tradição dá a entender. Seja como for, essas expedições forneceram
boas oportunidades para a obtenção de despojos. Além do mais, relata-se que a aliança
romana realizou investidas territoriais significativas contra os Volsci, nomeadamente
no começo do século V a. C., quando as tropas se apoderaram temporariamente de
Anxur/Tarracina e se fundou uma colónia em Circeii.
16
Para a visão aqui criticada: T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, p. 306; S. P. Oakley, A Commentary on Livy Books,
1.338. É certo que Dionísio refere ocasionalmente que Algidus se localizaria no território dos Aequi (10.21.1; 11.23.4,
28.1) mas as suas indicações topográficas revelam-se confusas: vê no Algidus uma cidade, ficando a uma noite inteira de
distância de Tusculum. Para o ano 462 a. C., Tito Lívio relata saques e pilhagens (3.8.6).
11
A primeira fase da República conheceu igualmente três guerras contra a cidade
etrusca de Veios (Veii17), a sua vizinha mais próxima: a primeira ter-se-á desenrolado
durante o período de 483-424 a. C., e a segunda (que conheceu interrupções) entre 438
e 425. A razão que despoletou o segundo conflito foi Fidenae, que se rebelou contra a
Urbs, sendo apoiada por Veios, mas os Romanos acabaram por conquistar a primeira
cidade. Estas duas guerras significaram conflagrações típicas entre comunidades
vizinhas, mas já a terceira constituiu uma autêntica luta até à morte. Os Romanos
montaram assédio a Veios; a resistência dos sitiados foi, ao que parece, prolongada,
mas os Romanos acabaram por conquistar a cidade, sob o comando do famoso Marco
Fúrio Camilo18 (data tradicional: 396 a. C.): concedeu-se a cidadania romana a alguns
dos seus habitantes, ao passo que os restantes foram vendidos como escravos. O
território arrebatado a Veios converteu-se em ager publicus («terra pública») e grande
parte do mesmo depressa foi distribuído em pequenos lotes a cidadãos romanos 19.
Então, o território romano aumentou grandemente: K. J. Beloch 20 calculou que a zona
outrora pertencente a Veios teria uma superfície de uns 562 km 2, pelo que a extensão
total do espaço controlado pelo poder romano ascenderia, por esta altura, a 1 510 km 2.
Na década de 490 a.C. houve pouco (para alguns até nenhum) expansionismo, mas no
começo do século IV principiou uma nova etapa de dilatação territorial, de que a
conquista de Veios representa o exemplo mais notável. Como se viu, registaram-se
igualmente avanços na região Pomptina contra os Volsci e, depois do seu êxito na
tomada de Veios, os Romanos, em 395-394 a. C., continuaram a sua progressão,
fortalecendo o seu controlo na zona a norte do Tibre, ao impor a submissão das
comunidades faliscanas, de Capena e dos Falerii. Porém, a anexação de Veios e a
subsequente repartição das suas terras constituem acções inseridas numa escala
distinta, daí que acertadamente tenham sido vistas como o primeiro passo de Roma em
direcção a um poder imperial. Além disso, elas constituem também um puzzle: a
tradição antiga não fornece uma explicação satisfatória para a eliminação desta cidade
vizinha.
Mas eis que em 387 a. C. (de acordo com Políbio; a tradição situa o evento em 390) o
avanço romano sofreu um forte abalo: uma horda de Gauleses invasores venceu um
exército romano, que contaria com forças aliadas que cedo debandaram, junto ao rio
Allia. Os sobreviventes foram obrigados a abandonar a cidade de Roma, salvo uma
pequena guarnição no monte Capitolino, que esteve sob cerco. Assim, a Urbs acabou
17
Sobre as campanhas militares contra Veios: F. Gilbert: «Rome en guerre contre Véies (1re partie)», Prétorien, nº 9
(janvier/mars, 2009), pp. 5-8; «Rome en guerre contre Véies (2e partie)», Prétorien, nº 10 (avril/juin, 2009), pp. 5-8.
Porém, discordamos de algumas ideias expostas por este autor.
18
Marcus Furius Camillus.
19
J. Rich, «Warfare and Army in Early Rome», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army, Oxford/Malden
MA, 2011, p. 13.
20
Römische Geschichte bis zum Beginn der punischen Kriege, p. 620.
12
por cair nas mãos do inimigo, que a saquearam e depois abandonaram. Mais tarde,
segundo reza a lenda, Camilo veio a enfrentar os Gauleses numa refrega, conseguindo
repeli-los. A seguir, ainda antes de se retomarem os trabalhos da reconstrução da
Cidade, consta que os Latinos e os Volsci se aproveitaram da situação para também a
invadir. Mais uma vez, Camilo terá rechaçado os invasores.
No século seguinte, ocorreram mais invasões gaulesas, mas não implicaram derrotas
para os Romanos. Se bem que, a partir daí, tenham passado a representar uma ameaça
para os Romanos, as consequências do saque da Cidade não se foram graves nem
duradouras. Sob o ponto de vista arqueológico, não se detectaram danos estruturais no
centro urbano, pelo que provavelmente foram menos avultados do que clamou a
tradição. Para se evitar uma repetição de fatídicas consequências, ergueu-se uma
muralha circundante, englobando uma área com uns 426 ha, construção de tremenda
magnitude, ilustrativa da resiliência romana.
Os Romanos não tardaram a retomar a sua expansão territorial. Novamente, a
tradição não se mostra digna de confiança, mas a tendência principal que nela
entrevemos é suficientemente clara. Os Romanos consolidaram a sua posição no Sul da
Etrúria, ao fundarem as colónias de Sutrium e de Nepete por volta de 383 a. C., e as
contendas contra Tarquínia e outras cidades etruscas (358-351) findaram com umas
tréguas relativamente prolongadas. Mais a sul, os Aequi reduziam-se a uma força
antagonista já desgastada e exaurida, que atacaram pela última vez em 389-388, mas,
em contrapartida, subsistem notícias de guerras frequentes com os Volsci. Os Romanos
vieram a obter mais ganhos, o que resultou na entrega de mais lotes de terra na zona
confiscada da Planície Pomptina.
Em meados do século IV, as armas romanas acercaram-se da Campânia. Lívio alude a
desavenças e querelas entre os Latinos e os Hernici imediatamente após o saque de
Roma pelos Gauleses. A causa primeira dessa agitação relacionou-se possivelmente
com o recrudescimento da dominação romana. Em 381, ante claros sinais de
resistência, a cidade de Tusculum (estrategicamente crucial) foi anexada e os seus
habitantes integrados no corpo dos cidadãos romanos, um passo inédito para uma
comunidade com tal tamanho. Este acto peremptório provocou, decerto, a eclosão da
revolta de Praeneste, derrotada em 380 a. C. Sucederam-se mais conflitos em meados
do século: colhem-se menções a guerras contra os Hernici em 362-358, Tibur e
Praeneste em 361-354. Os diferendos persistiram e, em 340 a. C., teve lugar uma
insurreição generalizada que, dois anos depois, foi esmagada: inseriu-se a maioria dos
Latinos, assim como muitos Campanianos e Volsci no corpo dos cidadãos romanos,
iniciativa radical que transformou o carácter do Estado romano e serviu de poderosa
força motriz para a conquista da Itália.
13
Dito isto, o período desde o fim do século V conheceu uma firme expansão do poder
romano, apenas brevemente interrompido pelo saque gaulês da Urbs. Ora esta
expansão e os conflitos resultantes com os aliados de Roma levaram, provavelmente, a
um acréscimo na frequência das guerras em que os Romanos participaram. Porém,
mesmo na primeira metade do século IV, os Romanos não terão atingido o nível de
campanhas militares mais ou menos anuais que caracterizariam grande parte da
história ulterior da República, facto ainda mais aplicável ao século precedente: como
acima salientámos, a antiga tradição histórica apresenta os últimos anos do século V
como uma fase invulgarmente pacífica (em termos romanos) e para quase todo este
período de cem anos, é efectivamente possível que se tenham travado menos guerras do
que a tradição sustenta. Acresce, ainda, que quando ocorreram, estes confrontos
parecem haver-se desenrolado sobretudo longe do território romano.
Os primeiros anos da República viram-se ritmados por mudanças de alianças e
conflitos com os potentados vizinhos. No entanto, o acordo firmado com os Latinos, na
década de 90 do século V a. C., depois da vitória romana no Lago Regillus, e o seguinte
tratado de aliança, inauguraram uma etapa histórica comparativamente pacífica que
durou ao longo de grande parte do século V. Quando, em finais do último, a guerra
voltou a tornar-se recorrente, a principal causa radicou no próprio expansionismo
romano na Etrúria meridional e contra os Volsci, afora as tensões que isto gerou nas
relações mantidas com os Latinos.
14
exigência apresentada se destinava ao pôr termo à «pilhagem e aos saqueadores»:
estamos aparentemente diante de uma espécie de resposta comunitária a saques
privados, exigindo-se à comunidade dos ofensores que resolvesse o problema em causa,
ao entregar os culpados ou aceitando a responsabilidade a nível colectivo.
Os senhores da guerra aristocratas, à cabeça de séquitos de acólitos armados, que
tinham ampla liberdade de circulação, constituem, para os historiadores actuais, um
importante elemento característico da sociedade no Ocidente da Itália Central arcaica.
Com efeito, dispomos de um corpus de testemunhos probatórios que apoiam esta visão.
Tais bandos de guerreiros significam com toda a probabilidade uma reminiscência do
mundo pré-estatal, não sendo difícil estabelecer paralelos com outras sociedades do
mesmo género, como a Grécia homérica. Entre estes senhores da guerra, os que melhor
se atestam consistem em três figuras da cidade etrusca de Vulci, os irmãos Caeles e
Aulus Vibenna, assim como o seu «associado» Macstarna: conhecemo-los tanto
através da arte etrusca, em especial os relevos do «Túmulo François» (do fim do século
IV a. C.) em Vulci, como pela tradição romana, segundo a qual Caeles socorreu um
monarca romano, estabelecendo-se depois na Urbs com o seu contingente23.
Bem mais tarde, o erudito imperador Cláudio aludiu a uma reivindicação etrusca,
segundo a qual Macstarna fora rei em Roma, e identificou-o com Sérvio Túlio 24. Seja
como for, as evidências conferem certa plausibilidade à eventualidade deste trio de
«aventureiros» (lembrando os condottieri dos séculos do Renascimento italiano) ter
participado, com um séquito armado, nos negócios de Roma25.
Numa inscrição-dedicatória de finais do século VI ou começos do século V a. C.,
descoberta em Satricum (localidade que terá passado das mãos dos Latinos para os
Volsci), verifica-se a menção a um bando 26 de camaradas fiel a um líder da elite; o seu
teor traduziu-se do seguinte modo: «[…] os camaradas [sodales] de Poplios Valesios
erigiram [isto] para Mamars»27. Aparentemente, Mamars significa um nome
alternativo para Marte e Poplios Valesios, uma forma arcaica para Publius Valerius. Se
os dedicantes do monumento eram de Roma, é provável, então, que este Valerius
corresponda a Públio Valério Publícola, a que a tradição atribuiu um importante papel
na fundação da República. A inscrição ilustra na perfeição a relevância dos
23
J. Rich, «Warfare and Army in Early Rome», pp.15-16.
24
A. Montesanti, «Servio Tullio. Macstarna», Storia. Rivista online di Storia e Informazione, n. 7 (31)8 (Dez. 2005-Jan.
2006), pp. 1-46.
25
T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 130-145, 157-158; L. Rawlings, «Condottieri and clansmen: Early Italian
raiding, warfare and the state», in K. Hopwood (ed.), Organised Crime in Antiquity, Londres, 1999, pp. 97-127. Para
uma visão global sobre a «guerra privada» e a «guerra pública» na Roma arcaica: T. J. Cornell, «La guerra e lo stato in
Roma arcaica (VII-V sec.)», in E. Campanile (ed.), Alle Origini di Roma, Pisa, 1988, pp. 89-100; D. Timpe, «Das
Kriegsmonopol des römischen Staates», in W. Eder (ed.), Staat und Staatlichkeit in der frühen römischen Republik,
Estugarda, 1990, pp. 368-387.
26
Sobre os «bandos de guerra»: N. Fields, Roman Battle Tactics 390-110 BC, Oxford, 2010, pp. 30-33.
27
Na inscrição lê-se: «[…] IEI STETERAI POPLIOSIO VALESIOSIO SUODALES MAMARTEI…»; J. Bremmer, «The
Suodales of Poplios Valesios», ZPE 47 (1982), pp. 133-147; M. Sage, The Republican Roman Army: A Sourcebook, pp.
13-14.
15
grupos/sodalis na região em tempos arcaicos, mostrando o caso concreto de um bando
de guerreiros28.
Não resta a menor dúvida que outros senhores da guerra seguiram o exemplo de
Macstarna e dos irmãos Vibennae, ao intervirem em Roma após a expulsão do último
rei: a actividade de Porsenna entende-se melhor neste contexto, mas a derradeira
tentativa de que há registo é de um aventureiro estrangeiro que levou a cabo um golpe
armado em Roma, o sabino Ápio Herdónio/Appius Herdonius, apoderando-se do
Capitólio em 460, redundando a iniciativa no mais absoluto fracasso.
Os périplos destes aventureiros pelas diversas comunidades constituem um reflexo
directo de um fenómeno mais vasto, o de processos migratórios de elementos da elite
tendo como pano de fundo os estados do Ocidente da Itália Central durante os tempos
arcaicos. Em Roma, o caso da recepção de não cidadãos como reis é só um exemplo
deste facto. Outro reside na admissão da gens Claudiana: na versão tradicional, o líder
sabino Attus Clausus (Ápio Cláudio/Appius Claudius) surgiu, certo dia, em 504, diante
dos Romanos, à cabeça de um grande séquito, instalando-se na Urbs; os seus 5 000
clientes terão integrado posteriormente o exército serviano (Lívio, Ab Urb. cond.
2.16.4; Dionísio, Ant. rom. 5.40.3).
De Roma, também, partiram indivíduos rumando a outras paragens, como se observa
na história de G. Márcio Coriolano (Gnaeus Marcius Coriolanus): segundo reza a
lenda, a oposição que este herói de guerra alimentava contra os plebeus levou-o a
exilar-se; juntou-se aos Volsci e depois conduziu-os numa campanha de conquista,
internando-se no território romano. A intervenção da mãe de Coriolano pôs termo à
iniciativa bélica, conhecendo o último uma morte trágica. Este conto poderoso foi
evidentemente desenvolvido, numa primeira fase, na tradição oral, antes de se inserir,
com adições, na narração formulada pelos historiadores antigos dos anos entre 493 e
488 a. C. Deve existir uma ponta de verdade neste episódio, tratando-se, segundo T. J.
Cornell, de um renegado que resolveu bandear-se para os Volsci29.
A generalidade dos estudiosos viu nas guerras privadas envolvendo clãs (gentes)30
uma extensão das actividades empreendidas pelos senhores da guerra nobres, conflitos
28
C. M. Stibbe, G. Colonna, C. de Simone e H. S. Versnel, Lapis Satricanus. Archaeological, Epigraphical, Linguistic
and Historical Aspects of the New Inscription from Satricum, Haia, 1980; H. S. Versnel, «IUN]IEI. A new conjecture in
the Satricum inscription», Mededelingen van het Nederlands historisch Institut te Rome 56 (1997), pp. 177-197: H. S.
Versnel interpretou a primeira palavra incompleta na inscrição como «young men». Para uma visão bastante recente,
consulte-se J. Armstrong, «’Bands of Brothers’. Warfare and Fraternity in Early Rome», JAH 1(2013), pp. pp. 53-69
(esp. pp. 64-66).
29
T. J. Cornell (cf. «Coriolanus: Myth, history and performance», in D. Braund e C. Gill [eds.], Myth, History and
Culture: Studies in Honour of T. P. Wiseman, Exeter, 2003, pp. 73-97) observou, com acerto, que a visão comum
segundo a qual Coriolano seria um inimigo vólscio ou latino rejeita integralmente um dos elementos essenciais da sua
história. No entanto, Cornell mostra-se menos convincente ao salientar que Coriolano já se perfilaria como um senhor
da guerra mesmo antes de abandonar Roma. Refira-se que as menções ao último nas fontes, apresentando-o
acompanhado de um séquito em Roma e chefiando uma força de voluntários contra Antium (Dionisio, 7.19, 21, 64;
Plutarco, Coriolanus, 13), são, possivelmente, construções literárias.
30
C. E. Smith, The Roman Clan: The Gens From Ancient Ideology to Modern Anthropology, Cambridge, Cambridge
Univ. Press, 2006, pp. 290-295; M. M. Sage, The Republican Roman Army: A Sourcebook, pp. 10-11; N. Fields, Early
Roman Warrior 753-321 BC, pp. 28-29.
16
liderados pelos membros dos clãs, apoiados pelos seus dependentes, os quais se
centraram na defesa e no aumento das suas possessões fundiárias. Esta hipótese,
todavia, bem como a tese de que o exército romano se formou originariamente a partir
de líderes clânicos com os seus respectivos séquitos, repousa em pressupostos
problemáticos sobre o papel e a importância das gentes nos tempos mais remotos.
A única prova textual de uma gens travando uma contenda à sua própria custa é a
história da derrota sofrida pelos Fabii, liderados pelo cônsul Kaeso Fabius, no Cremera
(afluente do Tibre, junto ao qual se situava a cidade de Veios), durante a primeira
guerra da República contra Veios. De acordo com a maior parte das fontes, em 479 a.
C., 306 Fabii estavam a guarnecer uma posição nessa zona, acompanhados (segundo
alguns relatos) por 4000-5000 clientes, mas, em 477, foram apanhados numa
emboscada e só um Fabius sobreviveu (Lívio, Ab Urb. cond. 2.48-50; Dionísio, Ant.
Rom. 9.15.3).
Embora esta história tenha sido literariamente retocada e embelezada, parece
garantido que derivou de um facto autêntico, marcado por um desastre dos Fabii.
Diversos estudiosos imaginaram que estes foram vencidos numa guerra privada, talvez
relacionada com as suas propriedades fundiárias, o que significaria um resquício dos
actos conflituais independentes e gentílicos dos tempos arcaicos. No entanto, esta
derrota ganha acrescida verosimilhança se o entendermos, segundo a tradição, na
qualidade de um episódio ocorrido numa guerra pública31. Os Fabii, que ao tempo eram
politicamente proeminentes, talvez ocupassem uma posição a partir da qual se
efectuariam incursões, mas o local não se conseguiria manter só com uma leva normal
de homens para uma operação de curta-duração; neste caso, então, isto constituiria
uma inversão excepcional relativamente à mais antiga forma de recrutamento
gentílicio. Resta outra alternativa: os Fabii talvez tenham sofrido pesadas baixas numa
batalha de características convencionais, o que corresponderia, aliás, à versão mais
antiga que se conservou, Diodoro de Sicília (Bibl. Hist. 11.53.6)32.
17
Por volta de 1000 a. C, os recheios sepulcrais passaram a incluir armas e, do século
VIII em diante, os túmulos de guerreiros de elevado estatuto, localizados nas
necrópoles etruscas e latinas, demarcam-se pela presença de combinações de armas de
ferro com couraças de bronze, muitas das quais, na realidade, se destinariam mais para
ostentação do que para serem utilizadas nos campos de batalha. No início do século VI
a. C., essas peças, bem como outros artigos funerários, quase desapareceram das
sepulturas em locais associados aos Latinos. Porém, neste momento, já o equipamento
hoplítico grego começara a ser adoptado na região, incluindo o escudo com pega dupla,
elmos e armaduras corporais distintivos.
O equipamento hoplítico surgiu possivelmente no mundo helénico em finais do século
VIII a. C. e, a partir de 650, confirma-se a disseminação deste género de panóplia nas
cidades etruscas, por meio de achados funerários e representações artísticas. Em
relação a Roma e às outras comunidades latinas, os testemunhos são mais escassos; no
entanto, é possível que o equipamento hoplítico já existisse nas últimas no mesmo
período ou pouco depois da sua introdução na Etrúria.
Actualmente, há autores que insistem teimosamente na ideia, redutora e artificial, de
que a adopção do equipamento hoplítico conduziu rapidamente a um novo estilo de
combate, com hóplitas (infantaria pesada) dispostos em formações compactas (a
falange33), servindo-se de lanças de estoque como principal arma ofensiva e munidos
também de espadas. Vários académicos modernos preconizaram a teoria de que a
defesa das cidades-estados gregas passou a depender dos hóplitas da «classe média»,
que serviriam junto dos nobres nas fileiras da falange, o que acarretaria importantes
consequências de ordem social e política.
Mas algumas dificuldades obstam a que se aplique este «modelo» à Etrúria: há quem
se interrogue se um exército de hóplitas-cidadãos seria compatível com a estrutura
social etrusca, que se acredita ter sido dominada no período em foco por gentes
aristocráticas; ademais, note-se que o equipamento grego foi amiúde descoberto
mesclado com armamento etrusco, como se assinala na estela mortuária de Aule
Feluske de Vetulonia, guerreiro que se representou provido de um escudo e de um
casco hoplíticos, mas, ao mesmo tempo, brandindo um machado duplo etrusco 34.
33
M. Sage, The Republican Roman Army, pp. 15-18; N. Fields, Roman Battle Tactics 390-110 BC, pp. 36-38.
34
A. M. Snodgrass, «The hoplite reform and history», JHS 85 (1965), pp. 110-122; N. Spivey e S. Stoddart, Etruscan
Italy, Londres, 1990, pp. 127-129; B. D’Agostino, «Military organization and social structure in archaic Etruria», in O.
Murray e S. Price (eds.), The Greek City. From Homer to Alexander, Oxford, 1990, pp. 59-82. Para um exame
circunstanciado do equipamento militar em Itália, desde o século IX até ao VII a. C., P. F. Stary, Zur eisenzeitlichen
Bewaffnung und Kampfesweise in Mittelitalien, Mogúncia (Mainz), 1981.Para a descrição de armas e armaduras (com
fotografias de achados arqueológicos e reconstituições com elevado nível de rigor) da época arcaica de Roma e do
começo da República, consultem-se: N. Sekunda e S. Northwood, Early Roman Armies, Oxford, 3ª edição, 1999; N.
Fields, Early Roman Warrior 753-312 BC.
18
As interpretações mais tradicionais sobre o protótipo da guerra hoplítica (aceites ao
longo de décadas) foram, não há muito, submetidas a uma crítica revisionista radical,
designadamente por Hans van Wees 35: este salientou que o combate em formações
cerradas não era essencial para a eficácia do novo equipamento, e que, até ao começo
do século V a. C., os hóplitas gregos continuaram a lutar num tipo de formação bastante
aberta, englobando tropas com armamento ligeiro. O mesmo historiador defendeu a
existência de uma disparidade considerável entre os hóplitas da «classe trabalhadora»
e os mais ricos e desocupados, só estes dispondo de armaduras.
Estas conclusões coincidem com alguns indicadores etruscos e, se estiverem
correctas, as diferenças entre os desenvolvimentos registados na Hélade e na Etrúria
talvez não tenham sido tão grandes como até há pouco se pensou. Isto será igualmente
válido para Roma e o Lácio, em geral: os métodos de combate continuaram
provavelmente a ser fluídos e flexíveis, baseando-se em formações abertas, envolvendo
guerreiros providos tanto de armamento ligeiro como pesado e, especialmente, no
começo, só os mais abastados teriam recursos para adoptar o novo «estilo» grego de
escudos e couraças.
Debrucemo-nos sobre o caso etrusco. Desde finais da década de 50 do século passado
que os estudos de Plinio Fraccaro vieram a contribuir para a tese de que os Etruscos, ao
«chegarem» a Roma, introduziram uma série de inovações que fortaleceu grandemente
a cidade, de entre as quais estaria a falange hoplítica. À primeira vista, as evidências
materiais parecem confirmar a existência de uma falange etrusca: sobreviveram
abundantes representações plásticas datando dos séculos VII e VI a. C., bem como
foram recuperadas peças de armamento em diversos monumentos funerários da Itália
Central (e. g. a Tomba del Guerriero, em Tarquínia, de c. 680 a. C., o «Túmulo
Regolini-Galassi» quase coevo de Cervetere, ou o «Túmulo 43» de Narce, de meados do
século VII), testemunhos que parecem materializar a imagem reflectida pelas fontes
35
«The Development of the Hoplite Phalanx: Iconography and Reality in the Seventh Century», in H. van Wees (ed.),
War and Violence in Ancient Greece, Londres, Duckworth and the Classical Press of Wales, 2000, pp. 125-166; IDEM,
Greek Warfare: Myths and Realities, Londres, Duckworth, 2004, pp. 166-184, 233-235. H. van Wees argumenta que as
verdadeiras falanges não surgiram por volta de 650 a. C., como durante lasrgo tempo os estudiosos aceitaram
consensualmente. Em vez disso, as formações de combate mantiveram-se fluídas e «homéricas» nos séculos VII e VI a.
C. Embora, neste período, se tenha utilizado o equipamento hoplítico, em especial o escudo grande e redondo (aspis), tal
não implica necessariamente, segundo o autor, o emprego de uma massa densamente compacta de soldados
uniformente armados nas batalhas. Os moldes organizativos da prática da guerra caracterizavam-se pelos laços de
parentesco e de dependência que estruturavam a vida civil dos indivíduos. Os homens mais poderosos partiam em
campanha rodeados por parentes e servidores, que podiam estar ou não equipados como hóplitas. Assim, neste
momento histórico, as refregas envolviam um estilo de peleja mais flexível.Para H. van Wees, a mudança crítica que
conduziu à adopção da falange só terá ocorrido no extremo final do século VI, quando a comunidade, actuando como
polis, adquiriu suficiente autoridade e controlo sobre os seus cidadãos, ao ponto de suplantar as matrizes sociais em que
os últimos estavam enredados, compelindo-os a ocuparem os seus lugares em formações uniformemente equipadas. Em
geral, esta teoria foi bem recebida no meio académico, mas não convenceu todos os especialistas, como, por exemplo, A.
Schwartz («The Early Hoplite Phalanx: Order or Disarray?», Classica et Mediaevalia 53, 2002, pp. 31-64). Se partirmos
do princípio de que os Gregos não desenvolveram uma verdadeira falange até finais do século VI, então a possibilidade
de Roma estabelecer uma formação idêntica cinquenta anos antes torna-se bem mais remota. Por outro lado,como
referiu N. Rosenstein, isto levanta a questão de como e quando a falange apareceu em Roma: pode ter acontecido algum
tempo após a varagem do século VI a. C, «mas, para além desta suposição toda e qualquer certeza se afigura difícil» (cf.
«Phalanges in Rome?», New Perspectives on Ancient Warfare, 2010, p. 292). A juntar-se a esta problemática está a
dúvida se os Etruscos adoptaram realmente a falange.
19
icónicas. O recheio do «Túmulo Avvolta», em Tarquínia, terá contido «um conjunto
completo de armamento corporal (elmo, couraça, grevas), dois escudos circulares de
bronze […], oito dardos, uma espada de dois gumes…»36.
No entanto, vários estudiosos manifestaram significativas reservas face a este
consenso alargado: Arnaldo Momigliano 37 questionou-se «como os Etruscos
conseguiram alguma vez combinar um exército de hóplitas com a sua estrutura social
assente numa acentuada distinção entre nobres e clientes», e Bruno D’Agostino38
também alimentou dúvidas que a sociedade etrusca tenha realmente permitido o
desenvolvimento de uma verdadeira falange hoplítica. William V. Harris 39 sugeriu até
que a falange romana não passaria de uma ficção.
Por seu turno, N. Spivey e S. Stoddart reavaliaram os vestígios arqueológicos
etruscos: notaram, por exemplo, que o corselete de bronze do «Túmulo 43» era
somente uma «folha ornamental de bronze […]», não se revelando uma peça funcional,
além de ser dispendiosa; «significa «uma ostentação conspícua, não [uma amostra] de
avançada tecnologia militar»; no entender dos dois autores, as armas e armaduras
numa sepultura «servem como […] indicadores de estatuto; no meio dos bens
domésticos depositados, as armas e as armaduras são objectos que inspiram orgulho e
reverência […] vistas sob esta luz, as evidências tumulares são provavelmente
enganadoras, quando se trata de afirmar que os Etruscos combateram em falanges
hoplíticas»; salientaram que a inumação de peças de armamento [….] constituía uma
forma de ritual, e que «panóplias como as da necrópole de Osteria, em Vulci […] de
630-620 a. C. se devem entender como produtos de luxo, [procedentes] do mundo
grego ou produzidas sob influência grega, obedecendo às mesmas finalidades rituais
que as extravagantes panóplias «orientalizantes» 40. No entanto, estes comentários só
afectam indirectamente a percepção do estabelecimento da falange hoplítica em Roma,
na medida em que se limitam à eventualidade de a Etrúria ter sido a fonte para um tal
desenvolvimento, não o desenvolvimento em si mesmo.
No terreno pantanoso da história dos primórdios de Roma, a formação da falange,
supostamente adoptada em meados do século VI a. C., consistiu, durante decénios, um
dos poucos elementos que se consideraram garantidos 41. As bases para esta convicção
36
N. Spivey e S. Stoddart, Etruscan Italy: An Archaeological History, p. 129.
37
«An Interim Report on the Origins of Rome», JRS 53 (1963), p. 119.
38
«Military Organization and Social Structure in Archaic Etruria», in O. Murray e S. Price (eds.), The Greek City…, pp.
59-82.
39
«Roman Warfare in the Economic and Social Context of the Fourth Century B. C.», in W. Eder (ed.), Staat und
Staatlichkeit in der frühen römischen Republik, Estugarda, Steiner, 1990, p. 508.
40
Etruscan Italy, pp. 129-131. Veja-se, também, o breve artigo de J. Rich, «Warfare in Early Rome», in M. Pearce, M.
Tosi et al. (eds.), Papers from the EAA Third Annual Meeting at Ravenna 1997, Oxford, Archaeopress, 1998, p. 6.
41
Assim, recentemente, consultem-se: R. E. Mitchell, Patricians and Plebeians: The Origin of the Roman State, Ithaca,
Cornell Univ. Press, 1990, pp. 35-41; S. P. Oakley, A Commentary on Livy Books VI-X, I, Oxford, Oxford Univ. Press,
1998, p. 453; T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 183-185, G. Forsythe, A Critical History of Early Rome, pp.
113-115. Sobre esta questão, J. E. Lendon, Soldiers and Ghosts: A History of Battle in Classical Antiquity, New Haven,
Yale Univ. Press, 2005, pp. 183-186.
20
são conhecidas, principalmente os testemunhos de dois autores antigos (além das
fontes iconográficas e arqueológicas). Tito Lívio, na sua descrição do exército romano
que enfrentou uma força de Latinos rebeldes em 340 a. C., afirma, de passagem:
«Antes, os Romanos usavam os clipei, depois, tornaram-se stipendiarii, fizeram os scuta em
vez dos clipei, o que havia sido uma falange, como as macedónicas, começou a desdobrar-se
como linha de batalha através de manípulos, com os soldados na retaguarda organizados em
mais destacamentos»42.
Esta asserção aparece repetida mais pormenorizadamente no fragmento textual do
Ineditum Vaticanum (de autor anónimo, aparentemente do século II) que apresenta
um diálogo, que alegadamente teve lugar antes da eclosão da Primeira Guerra Púnica,
entre um cartaginês e um romano chamado Kaiso:
«Quando o Cartaginês assim falou, Kaiso retorquiu: “Isto é como nós, Romanos, somos…
[C]om aqueles que fazem a guerra contra nós, concordamos em combater segundo os seus
termos, e quando se trata de práticas estrangeiras, conseguimos ultrapassar os que, desde há
muito, se habituaram a elas. Os Tirrenos [Etruscos] costumavam lutar contra nós com escudos
de bronze e em formação de falange, não em manípulos; e nós, mudando o nosso armamento e
substituindo-o pelo deles, organizámos as nossas forças e, ao assim porfiarmos contra homens,
que durante muito tempo estavam familiarizados às batalhas de falange, saímos vitoriosos.
Analogamente, o escudo samnita não fazia parte do nosso equipamento nacional, nem tão pouco
tínhamos dardos, mas combatíamos com escudos redondos e lanças; também não éramos
poderosos na cavalaria, já que quase toda a força de Roma residia na infantaria. Mas quando
nos vimos em guerra com os Samnitas, armámo-nos com os seus escudos oblongos e dardos de
arremesso, e pelejamos contra eles a cavalo e, ao copiarmos as armas estrangeiras, tornámo-nos
senhores daqueles que se tinham em grande conta»43.
Estas fontes não provam, todavia, que Roma adoptou o sistema da falange, tanto mais
que, para vários investigadores, restam incertezas de que os próprios Etruscos a
tenham usado; além disso, se, como afirmou H. van Wees, os Gregos não
desenvolveram uma verdadeira falange até finais do século VI a. C., então a
possibilidade de Roma ter introduzido tal formação cinquenta anos antes (segundo a
tradição literária) torna-se ainda mais remota44.
Seja como for, levanta-se a questão de como e quando a falange terá aparecido em
Roma. Provavelmente isto aconteceu algum tempo após a viragem do século VI para o
V, mas afora esta suposição, apenas sobejam dúvidas. As fontes antigas oferecem pouca
ajuda. Como se viu, o autor anónimo do Ineditum Vaticanum situa a mudança no
contexto das guerras de Roma contra os Etruscos, o que poderia significar uma
determinada altura desde começos do século V em diante. Quanto à passagem de Lívio,
igualmente citada, aponta para uma data anterior à instituição do stipendium (o
pagamento pelo serviço militar prestado, mas isto pouco vale como terminus post
42
Ab Urb. cond. 8.8.3: clipeis antea Romani usi sunt; dein, postquam stipendiarii facti sunt, scuta pro clipeis fecere; et
quod antea phalanx similis Macedonicis, hoc postea manipulatim structa acies copeit esse: postremi in plure ordines
instruebantur. Para as dificuldades interpretativas que este trecho contém, veja-se S. P. Oakley, A Commentary on Livy,
II, p. 459, 467.
43
Ineditum Vaticanum, 3. H. von Arnim, «Ineditum Vaticanum» Hermes 27 (1892), pp. 118-130 (= Jacoby FgrHist 839
F.1); T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, p. 170. Cf. Diodoro, 23.21; Ateneu de Damasco, Deipn. 6.273 e-f; Salústio,
Cat. 51.37-38.
44
C. E. Smith (The Roman Clan, pp. 286-289) e J. Rich (Warfare and the Army in Early Rome», in P. Erdkamp [ed.], A
Companion to the Roman Army, p. 17) chegaram a conclusões similares às de H. van Wees, mas para o exército arcaico
romano.
21
quem, já que não há unanimidade quanto ao momento a partir do qual os Romanos
começaram a remunerar os seus soldados: as opiniões dividem-se entre o fim do século
V, em conexão com o cerco à cidade etrusca de Veios, que é onde Lívio 45 e Diodoro46
localizam a introdução do salário, e o período da Segunda Guerra Samnita (cf. infra).
Como dissemos, as representações iconográficas do armamento hoplítico e as peças
encontradas em monumentos funerários, não asseguram, per se, que o mesmo fosse
utilizado por homens integrados numa falange47.
A adopção da falange clássica na Grécia parece representar um exemplo típico daquilo
que se convencionou designar como «peer-polity interaction»: depois de uma polis a
introduzir, no quadro de uma grande reorganização da cidade, as outras poleis eram
compelidas a imitá-la, ao correrem o risco de ficarem eventualmente para trás e se
verem suplantadas48.
Poderíamos tentar descobrir um contexto militar romano em que o uso das tácticas
da falange fizesse sentido ante alguma ameaça externa. Contudo, não divisamos uma
tal situação ao longo dos séculos V ou IV a. C.: durante o século V, os inimigos da Urbs
foram principalmente os Aequi e os Volsci, tribos cujas instituições estariam num nível
ainda mais rudimentar que o de Roma; os conflitos que então se desenrolaram
caracterizavam-se, amiúde, por raides e contra-raides, modalidades em que o emprego
de formações de infantaria compactas não se adequaria de todo. As diversas cidades
latinas com que os Romanos guerrearam durante os séculos V e IV a. C. não seriam,
decerto, tacticamente mais sofisticadas, além de que, conforme frisámos, não há provas
concretas para a utilização da falange pelos Etruscos. Importa ainda ressaltar que o
palmarés global da República em relação a estes oponentes se saldou em êxitos, embora
as vitórias nem sempre tenham sido isentas de dificuldades ou vicissitudes.
Se um enfoque estritamente militar não nos ajuda a progredir, talvez devamos analisar
o problema sob o prisma da formação do estado, como a reconstituição preconizada por
H. van Wees do desenvolvimento da falange na Hélade sugere. Coloca-se a questão: até
que ponto a República teria conseguido ganhar suficiente lealdade por parte dos seus
cidadãos e controlo sobre estes, para se sobrepor aos laços sociais que até aí haviam
estruturado a maneira como praticavam a guerra? Em 1929, M. Nilsson propôs uma
resposta, afirmando que esse momento histórico teve lugar em meados do século V a.
C49. Nilsson defendeu que a criação dos censores, em 433, foi consequência da
introdução da falange, porque a partir de então se tornou necessário conhecer a fortuna
45
Ab Urb. cond. 4.59.11-60.8.
46
14.16.5.
47
N. Rosenstein, «Phalanges in Rome?», p. 293.
48
C. Renfrew, «Introduction: Peer Polity Interaction and Socio-political Change», in C. Renfrew e D. Cherry (eds.), Peer
Polity Interaction and Socio-political Change, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1986, pp. 1-18.
49
«The Introduction of Hoplite Tactics at Rome: Its Date and its Consequences», JRS 19 (1929), p. 5.
22
de cada cidadão, a fim de apurar se ele estaria ou não obrigado a servir como hóplita. A
teoria é engenhosa: o autor associou a criação dos censores à introdução, no ano
anterior, dos tribunos militares com poder consular, o que também poderia relacionar-
se com alguma espécie de reforma militar.
No entanto, dois pontos levantam objecções: primeiro, o da eleição dos censores pela
primeira vez em 443 não implica necessariamente a inexistência da prática do census
em tempos mais recuados; segundo, e o mais importante, a «Luta das Ordens»
encontrava-se na sua fase mais intensa em meados do século V e, independemente do
que se possa afirmar sobre este período mal conhecido da história de Roma, parece-nos
razoável imaginar que não seria uma altura em que a comunidade estivesse a ganhar
acrescido controlo sobre os seus cidadãos, bem pelo contrário: o Estado achava-se
prestes a ruir e só se manteve por era preciso para a resolução dos diferendos face a
grandes ameaças externas50. De facto, o conflito entre as ordens torna muito difícil
imaginar o Estado romano, ao longo do século V e durante grande parte do IV a. C., a
ser capaz de adquirir o género de controlo mais forte sobre os cidadãos que as poleis
gregas desenvolveram no fim do século V a. C., que originou as primeiras verdadeiras
falanges.
Verifica-se uma propensão para compreender o conceito de falange na sua acepção
mais estrita e, nesta linha de raciocínio, é possível que os Romanos jamais a tenham
utilizado; porém, num sentido mais abrangente, aí, talvez, já possamos equacionar a
adopção de uma formação cerrada pelos «filhos de Marte», enquanto sistema
pontualmente aplicado, e provido de características adicionais próprias da maneira de
guerrear na península itálica dos tempos arcaicos, incluindo o recurso a armas de
arremesso e unidades tácticas mais pequenas e flexíveis, que estiveram quase sempre
presentes nas guerras travadas pela Urbs. Na realidade, é exequível pensar que os
próprios Etruscos se tenham servido da falange episodicamente 51, mas não de acordo
com o rígido modelo helénico. Assim, mesmo tendo em conta as incertezas que
subsistem nesta matéria, inclinamo-nos a aceitar a opinião de Christiane Saulnier 52 em
1980, segundo a qual haveria duas componentes distintas que fizeram parte do
primitivo exército romana, uma dotada de armamento hoplítico e outra, provida de um
equipamento mais heterogéneo e menos oneroso, se posicionariam em duas linhas
separadas no campo de batalha.
50
K. Raaflaub, «Born to be Wolves?…», pp. 290-292.
51
Como sugeriu J. R. Jannot: «Armement, tactique et société. Reflexions sur l’exemple de l’Etrurie archaïque», in B. S.
Frizell (ed.), Arte militare e architettura nuragica, Estocolmo, 1991, pp. 73-81.
52
L’Armée et la Guerre dans le monde Étrusco-Romain (VIII-IVe s. av. J.-C.), Paris, Diffusion de Boccard, 1980, pp.
105-115. P. Connolly também imaginou o exército arcaico romano como englobando uma falange e um contingente de
homens munidos de um equipamento como o que Lívio descreve na sua obra (Ab Urb. cond. 1.43.1-7).
23
Para finalizar, chamemos à atenção para a capacidade de improvisação que os
Romanos tantas vezes mostraram ter, ao introduzirem determinado armamento ou
certas tácticas, em função dos inimigos que enfrentaram ao longo da sua história:
lembremos, por exemplo, o que aconteceu, em data bem mais tardia, na batalha de
Beneventum, em 275 a. C., com base no testemunho de Dionísio: os Romanos, depois
de sofrerem duas derrotas ao defrontarem os mercenários de Pirro (rei de Épiro, cf.
infra), que combatiam armados com as sarissas (enormes piques com cerca de 7 metros
de comprimento que se celebrizaram nas forças de Alexandre-o-Grande e dos
subsequentes exércitos selêucidas e ptolemaicos), resolveram equipar os seus principes
com a mesma arma, para melhor lidar contra o ataque em massa que Pirro utilizou em
Asculum53.
Embora desconheçamos precedentes para esta medida improvisada, por outro lado,
deparamos com o que parece tratar-se de uma sequela: meio século mais tarde, em 225
a. C., Políbio conta que os tribunos militares do exército de Flamínio ordenaram aos
triarii que passassem as suas lanças para a vanguarda, a fim de se precaverem contra
uma investida de uma força muito maior de Gauleses 54. O que ocorreu em Beneventum
reflecte, quanto a nós, um dos múltiplos ajustamentos que se operaram no exército
romano ao longo do período compreendido entre meados do século IV e princípios do
século III a. C.55: algumas dessas modificações foram descartadas, ao passo que outras,
ao revelarem-se úteis e eficazes, inseriram-se numa longa evolução que culminou nas
legiões manipulares, que continuaram a conquistar um império para Roma.
24
«superação dos bandos armados primitivos»56, o que nos parece uma ideia aceitável,
mas julgamos que, a par desta força organizada, os últimos ainda coexistiram durante
considerável espaço de tempo. Num determinado momento, os efectivos do exército
duplicaram, se bem que mantendo a estrutura baseada nas três tribos, o que, segundo
alguns, teve lugar no reinado de Tarquínio Prisco (c. 616-578 a. C.), 57 mas para a
maioria dos historiadores aconteceu em data algo ulterior 58.
Originariamente, os membros do exército arcaico romano teriam armas de tradição
lacial e villanoviana59. Mais tarde, o equipamento hoplítico terá sido introduzido em
Roma, eventualmente no século V a. C., mas apenas se limitando aos seus cidadãos
mais abastados, os únicos com posses para adquirir tal equipamento. Certos indícios
apontam para que a adopção do armamento hoplítico até pode ter ocorrido antes da
denominada «Reforma Serviana» (cf. infra), mas é aspecto que levanta diversas
interrogações60.
A tradição romana atribuiu ao rei Sérvio Túlio (que governou a Cidade entre 578 e
534 a. C.) a divisão do corpo dos cidadãos em centúrias segundo o critério da riqueza, e
não há razões para duvidar da veracidade desta afirmação 61. A certa altura, o sistema
centuriato sofreu modificações drásticas e veio a assumir uma importância política
duradoura enquanto base na votação da assembleia, mas, quando foi introduzido no
56
La República Romana, Madrid, Cátedra, 1981, p. 56.
57
Segundo a discutível cronologia tradicional, contestada, entre outros, por T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp.
149-157.
58
P. Fraccaro, «La storia del antichissimo esercito romano e l’etá dell ordinamento centuriato», Opuscula, II, Pavia,
1957, p. 287ss.; E. Rawson, «The literary sources for the pre-Marian Army», Papers of the British School at Rome, 39
(1971), pp. 13-31; J. Martínez Pinna, Los orígenes del ejército romano. Estudio de las formas pre-militares en relación
con las estruturas sociales de la Roma más primitiva, Madrid, Universidade Complutense, 1981, p. 275ss.; J. M. Roldan
Hervas, La República Romana, p. 55ss.; T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, p. 143ss.
59
N. Sekunda e S. Northwood, Early Roman Armies, p. 8ss.
60
A. K. Goldsworthy, The Complete Roman Army, Londres, p. 24; T. J. Cornell entende que a adopção do armamento
hoplítico teve lugar antes das reformas de Sérvio Túlio: The Beginnings of Rome, p. 227. No entanto, outros autores
defendem que tal aconteceu no tempo serviano. L. Keppie, The Making of the Roman Army: From Republic to Empire,
Londres, 1984, p. 17; N. Sekunda e S. Northwood, Early Roman Armies, p. 14.
61
D. Sierra Estornés, «Las legiones romanas de época monárquica y republicana: un ejército armado por el Estado»,
Antesteria, nº 1 (2012), p. 485; N. Fields, Early Roman Warrior, pp. 29-33. Segundo Aulo Gélio (Noctes Atticae, 5.28),
as centúrias estariam organizadas em cinco classes censitárias e, dentro de cada uma, dividiam-se em centúrias de
iuniores e seniores: as primeiras seriam compostas por indivíduos com idades compreendidas entre os 17 e os 46 anos, e
as dos seniores englobavam os cidadãos entre os 46 e os 60 anos. Os iuniores combateriam fora de Roma, ao passo que
os seniores permaneciam no interior da Urbs como guarnição. Num grande grupo ficariam os adsidui, capazes de
custear o seu próprio armamento, e noutro os capite censi (depos proletarii), que ao não possuirem recursos, careciam
da obrigatoriedade do serviço militar e não teriam direitos políticos (J. Heurgon, Roma y el Mediterraneo Occidental
hasta las guerras púnicas, Barcelona, Nueva Clio, 1971, p. 167). Refira-se, todavia, que Tarquínio-o-Antigo (616-578 a.
C., segundo a cronologia convencional) já teria esboçado um alargamento do recrutamento da cavalaria, medida que
visaria diminuir o poder dos chefes das grandes linhagens romanas. É possível que Servio Tulio também pretendesse
atingir o mesmo objectivo.
25
fim do século VI a. C., o seu objectivo deve ter sido fundamentalmente militar. Ao
instaurar, pela primeira vez, um critério censitário na organização militar, ele talvez
pretendesse apoiar-se num corpo cívico maior do que a nobreza tradicional. A legião
totalizaria 4 000-4 500 infantes, distribuídos em 40 centúrias, na razão de 10 por cada
uma das quatro novas tribos topográficas criadas por Sérvio Túlio – Suburana,
Palatina, Esquilina e Collina. Terá igualmente aumentado o efectivo da cavalaria,
estabelecendo 12 novas centúrias equestres, que se juntariam às três primeiras, já
divididas em centúrias de priores e posteriores, antes da subida ao poder de Sérvio
Túlio. Com o sistema censitário, o monarca podia ainda beneficiar do aumento
populacional, do desenvolvimento das actividades económicas e das trocas, de que a
estampagem de lingotes de bronze (aes signatum, que significaram uma primeira
forma de moeda) é um elemento revelador.
No entanto, Michel Humm62 preconizou que, na sua génese, este sistema dividiria só
os cidadãos entre os pertencentes à classe» (classis), que serviam nas fileiras como
hóplitas, e os restantes funcionando como infantes ligeiros. Contudo, embora saibamos
que no século II a. C., a primeira das então cinco classes se designaria simplesmente
como «a classe» e as outras como «abaixo da classe» 63 (infra classem; assim Catão, que
é citado por Aulo Gélio: Noctes Atticae, 6.13), teoria igualmente abraçada por L.
Keppie, M. C. J. Miller64, bem como por N. Sekunda e S. Northwood 65. Assim, a
distribuição dos cidadãos em cinco classes censitárias atribuída por Lívio e Dionísio
única e exclusivamente a Sérvio Túlio, não terá sido criada de uma assentada, mas
resultar antes de uma evolução muito progressiva durante a época republicana,
encetada a partir de meados do século V a. C. 66. Embora não restem grandes dúvidas
sobre a historicidade da reforma serviana, há indícios, na reconstituição apresentada
pelas fontes literárias, que apontam para a inclusão de elementos mais tardios, talvez
remontando aos séculos IV-III a. C., como a distinção da segunda e da terceira classes
(com fortunas de 75 000 e 50 000 asses, respectivamente) através do critério do uso ou
não de grevas metálicas (ocreae). Originariamente, talvez só se diferenciassem três
corpos militares básicos. A infantaria pesada, a infantaria ligeira e a cavalaria. Em todo
62
Appius Claudius Caecus. La république accomplie, Roma, École française de Rome, 2005, p. 256, 261, n. 106.
63
Ideia aceite por P. Cosme: L’armée romaine, p. 12.
64
«The principes and the so-called Camillan Reform», The Ancient World 23.2 (1994), p. 64. No seio da infra classis,
posteriormente, talvez durante a guerra contra Veios (406-396 a. C.), adicionaram-se novos contingentes militares
formados por tropas com armamento inferior (possivelmente as classes II e III).
65
Early Roman Armies, p. 16.
66
Ibidem, p. 13. Veja-se J. Armstrong, «Power and Politics in Fifth Century Rome: The Censorship and Consular
Tribunate in Context», ASCS 32 Proceedings, p.6: o autor refere que o exército romano oficial, tanto do período
monárquico como do início da República, seria composto inteiramente por membros da «elite sócio-económica, embora
a natureza exacta e a estrutura interna deste exército ainda sejam incrivelmente ambíguas». Como as gentes
continuaram a assumir importância nas actividades militares em finais do século V e ao longo do IV a. C., juntamente
com a existência de motivações altamente individualistas na prática da guerra, é provável que as forças armadas
romanas desta fase mantivessem um aspecto clânico bem acentuado, baseando-se num núcleo de forte carácter
gentilício. C. J. Smith, Early Rome and Latium: Economy and Society C. 1000 to 500 BC, Oxford, Oxford Univ. Press,
1996, pp. 185-202; T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 143-150.
26
o caso, a qualificação económica mínima para se pertencer às diversas linhas do
exército não cessaria de ir diminuindo no decurso da época republicana, para satisfazer
as crescentes necessidades de recursos homanos para as guerras.
Se a criação da assembleia centuriada e a reforma tribal, acompanhada por uma
alteração substancial na composição e na organização do exército, remontarem de facto
a meados do século VI a. C., então a única coisa que temos a certeza é que as centúrias
consistiram nas suas unidades básicas. É algo que faz sentido, não só por causa do
vínculo óbvio entre o exército e a assembleia centuriada, mas igualmente pela
longevidade das centúrias, que continuaram a manter-se, mesmo depois de deixarem
de ter qualquer papel táctico no campo de batalha. Em meados da República, as legiões
manipulares continham centúrias, bem como as legiões coortais do período tardo-
republicano e ao longo do Império. A sua preservação exemplifica o género de mudança
progressiva que caracterizou a evolução do exército romano, sugerindo que as centúrias
já existiriam nos primórdios das forças armadas da Urbs.
Consequentemente, houve uma relação entre elas e as novas tribos criadas por Sérvio
Túlio, mas não sabemos ao certo como é que as últimas foram repartidas pelas
centúrias. A este respeito, T. J. Cornell sugeriu uma reconstituição plausível: os
membros de cada tribo serviana foram distribuídos em 60 grupos; quando se tinha de
mobilizar um exército, cada grupo, numa tribo, forneceria um número específico de
homens; depois, os contingentes dos grupos em cada tribo reunir-se-iam aos dos
grupos correspondentes nas outras tribos, assim formando as 60 centúrias que
compunham uma legião serviana67.
A estar correcta, esta teoria comporta duas importantes consequências: a primeira, e
mais significativa, é que o mecanismo para reunir um exército combinava nas centúrias
homens de diferentes tribos e, extensivamente, de distintas zonas – muito à
semelhança da leva que Políbio descreve para o século II a. C. -, o que neutralizaria, no
âmbito militar, os laços e as obrigações sociais que até aí haviam estruturado e
condicionada as vidas dos cidadãos. Esta conclusão parece confirmar-se no juramento
que, até 216 a. C., os soldados prestavam entre si, em cada centúria, declarando
assertivamente que não abandonariam as fileiras no campo de batalha 68. Um tal
juramento encaixa-se facilmente num contexto em que homens que não possuíam
vínculos sociais pré-existentes entre si eram chamados a suportar os perigos do
combate em conjunto, pelo que tinham de se certificar, por meio de um voto oral, que
nenhum deles faltaria à palavra dada. Ora esta necessidade só emergiria quando
indivíduos pertencentes a diferentes tribos e regiões se viam integrados nas centúrias,
da maneira que Cornell ideou.
67
The Beginnings of Rome, pp. 192-194.
68
Lívio, Ab Urb. cond. 22.38.2-5. Cf. Frontino, Strat. 4.1.4.
27
Sérvio Túlio tentou provavelmente maximizar os recursos militares do Estado,
impondo a obrigação do cumprimento do serviço militar a todos, salvo os cidadãos
mais pobres, e ao estabelecer medidas sobre como eles se deviam armar consoante os
seus meios, abrangendo que tinham a capacidade de se equipar com algumas ou todas
as peças da panóplia hoplítica, enquanto os mais ricos serviam como cavaleiros (talvez
formando uma autêntica cavalaria, não sendo apenas uma infantaria montada, como
aconteceu na maior parte das cidades-estados gregas da época arcaica) 69. Daqui
resultou um exército heteróclito, equipado com elementos hoplíticos e outros de origem
diversa, o que se adequa bem ao ideário de H. van Wees, respeitante à formação aberta
na guerra arcaica.
Quiçá no começo da República, por volta de 509 a. C. 70 ou então seguramente antes de
362, o exército terá sido dividido em duas legiões, uma para cada cônsul. Todavia,
certos autores, como T. J. Cornell, 71 consideraram pouco lógico que num mesmo
exército coexistissem escudos circulares na primeira linha e scuta oblongos nas
restantes duas. Em contrapartida, M. C. Miller72 e J. Rich73 não viram problema algum
nessa coexistência. A partir de então, o exército centuriado foi suplantando
gradualmente as levas de guerreiras baseadas nos princípios clânicos de parentesco e
dependência, à medida que os conflitos armados cessaram de se limitar a raides e
expedições de pequena envergadura e se inscreveram numa realidade bem mais ampla,
a das guerras expansionistas no final do século V e ao longo do século IV a. C.
***
69
Com base em Lívio (Ab Urb. cond. 1.44), as centúrias da primeira classe teriam como armas defensivas o elmo
(galea), o escudo redondo (clipeus), grevas (ocreae) e couraça (lorica); como armas ofensivas, a lança (hasta) e a espada
(gladius); os membros da segunda classe utilizariam basicamente as mesmas armas, salvo a lorica e, em vez do clipeus,
empregavam o escudo mais alongado (scutum); os homens da terceira classe dispunham de equipamento idêntico às da
anterior, à excepção das ocreae; quanto às centúrias da quarta classe, só combateriam com lança (hasta) e venábulo
(ueretum); por último, os «legionários» da quinta classe estariam providos apenas de fundas (fundae) e projectéis de
pedra (lapides missiles). No entanto, em diversos aspectos, o autor romano introduziu alguns anacronismos.
70
«La storia del antichissimo esercito romano e l’età dell ordinamento centuriato», in Opuscula, II, p. 32.
71
The Beginnings of Rome, p. 223.
72
«The principes and the so-called Camillan Reform», The Ancient World 23.2 (1994), p. 65.
73
«Warfare in Early Rome», in M. Pearce e M. Tossi (eds.), Papers from the EAA Third Annual Meeting…, p. 6.
74
Segundo D. Sierra Estornés, em 406 a. C., «o Estado romano estabeleceu como norma fixa que os soldados, a partir
desta data, começariam a receber uma remuneração por servirem no exército, e ao imposto de guerra já existente,
somou-se um novo imposto, destinado a financiar o pagamento das tropas (stipendium tributum)» (cf. «Las legiones
romanas de época monárquica y republicana», p. 489). Assim, a partir do referido ano, relativamente aos assuntos
militares, o Estado romano arrecadaria dois impostos, o da guerra, que sufragava as despesas de uma campanha (armas,
28
cerco à cidade etrusca de Veios. Mas a cunhagem da moeda propriamente dita só
começou cerca de um século mais tarde, daí os soldos serem pagos sob a forma de
lingotes de bronze. No entanto, a maior parte das acções bélicas limitar-se-ia a
campanhas de curta-duração e numa escala local; por outro lado, as Guerras Samnitas
em finais do século IV a. C. parecem um contexto mais favorável para a introdução de
pagamentos regulares, embora saibamos que se remunerararam alguns dos militares
que participaram no assédio a Veios.
Em finais do século IV a. C., o exército romano talvez já compreendesse vários dos
elementos que Políbio (Hist. 6.19-26) descreveu século e meio depois. Neste sistema, os
«cidadãos-soldados» foram organizados em legiões, cada uma ascendendo (pelo
menos) a 4 500 homens, entre os quais 3000 formariam a infantaria pesada. Esta tinha
como equipamento o escudo rectangular e oblongo com as extremidades arredondadas
(scutum), um dardo pesado (pilum) e uma espada relativamente pequena, combatendo
as tropas numa formação flexível, que se desdobrava em três linhas, cada uma dividida
em dez manípulos. Vários especialistas defenderam que as componentes essenciais
deste sistema, o armamento e o manípulo, enquanto unidade táctica, foram
introduzidas apenas no decurso das Guerras Samnitas, doutrina alicerçada em ideias
antigas, segundo as quais estes elementos foram tomados dos Samnitas, o que nem
todos os investigadores modernos aceitam.
Actualmente, o meio académico tende a reconhecer que o exército manipular resultou
de um processo evolutivo mais longo, provavelmente remontando a um período
anterior a 390-360 a.C.75, no seio do qual forças variegadamente equipadas se
converteram, aos poucos, num conjunto mais estandardizado e organizado. No entanto,
a formação manipular terá sido mais aperfeiçoada e simplificada durante as Guerras
Samnitas. Determinados elementos, como o scutum, podem ter aparecido muito antes,
e a Lívio e a Dionísio de Halicarnasso talvez lhes assista razão ao apresentarem certos
soldados no exército serviano munidos com escudos deste tipo. Cabe advertir para um
importante factor de continuidade, desde o sistema serviano até ao manipular, que
outros apetrechos bélicos, alimentos, etc.) e o imposto para se proceder ao pagamento dos legionários. Os cidadãos que
serviam no exército só contribuiriam com o imposto de guerra, enquanto os que ficavam em Roma pagavam tanto o
imposto de guerra como o destinado a financiar o soldo militar. Com efeito, há uma passagem de Lívio que aponta nessa
direcção, inserida no contexto do assédio de Veios e do conflito que opôs patrícios a plebeus. Neste excerto, alude-se à
situação em que se achavam os legionários que regressavam da guerra contra Veios: cum confecta labore volneribus
postremo aetatae corpora rettulerint incultaque omnia diutino dominorum desiderio domi invenerint, tributum ex
adfecta re familiari pendant aeraque militaria, velut fenore accepta, multiplicia rei publicae reddant (Ab Urb. cond.
5.10,9); pode-se interpretar este fragmento no sentido de que, quando os cidadãos romanos estavam em campanha não
pagavam qualquer imposto, mas, ao regressarem às suas residências, teriam de entregar a parte do imposto que lhes
correspondesse. O problema que parece reflectir a passagem liviana é que, durante a ausência do soldado, tal quantia ia
aumentando e, quando ele retornava, não tinha dinheiro suficiente para pagar os montantes em atraso que devia do
imposto de guerra. Este facto, conjugado com o abandono dos cultivos provocado pela sua ausência, fazia com que a
situação económica destes cidadãos se tornasse crítica. Todavia, julgamos que o pagamento de soldos numa base regular
só veio a ocorrer durante as Guerras Samnitas, embora não excluamos que durante o assédio de Veios se tenham
efectuado alguns pagamentos esporádicos
75
Veja-se, entre outros, J. Tomczak, «Roman Military Equipment in the 4th Century B.C.: Pilum, Scutum and the
Introduction of Manipular Tactics», Acta Universitatis Lodziensis/Folia Archaeologica 29 (2012), p. 59
29
possivelmente radicou na maximização dos recursos militares romanos, mediante a
imposição do serviço militar obrigatório a todos os cidadãos, excepto os mais pobres 76.
76
Sobre os scuta no exército «serviano»: C. Saulnier, L’armée et la guerre dans le monde étrusco-romain (VIIIe-IVe
siècles av. J.-C.), Paris, 1980, pp. 106-109; P. Connolly, Greece and Rome at War, Londres, 1981, pp. 95-96. Para mais
dados sobre a evolução do exército arcaico romano, consultem-se: E. D. Rawson, «The literary sources for the pre-
Marian army», PBSR 39 (1971), pp. 13-31 (artigo de novo publicado na obra Roman Culture and Society, Oxford, 1991,
pp. 34-57; D. Kienast, «Die politische Emanzipation der Plebs und die Entwicklung des Heerwesens im frühen Rom»,
BJ 175 (1975), pp. 83-112; R. Thomsen, King Servius Tullius, 1980, pp. 144-211; T. J. Cornell, The Beginnings of Rome,
pp. 173-197.Para uma visão diferente da abordagem aqui apresentada, G. Forsythe, «The Army and Centuriate
Organization in Early Rome», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army, pp. 24-38.
77N
Não dispomos de elementos que nos elucidem cabalmente sobre a origem do sacramentum: o que sabemos em
concreto é que este género de juramento constituía uma prática comum entre os povos itálicos. Se determinados
estudiosos defendem que os Romanos introduziram o sacramentum por influência dos Etruscos, outros, pelo contrário,
aventam a hipótese de o juramento significar um elemento típico dos Samnitas, que os Romanos posteriormente
adoptaram no âmbito do ius iurandum: é o que recentemente preconizou W. Doberstein, na sua tese para a obtenção do
grau académico de MA, intitulada The Samnite Legacy: An Examination of the Samnitic Influences upon the Roman
State, pp. 83-112 («Chapter 3: The Samnite Oath»), esp. 107-110; no entanto, em face da ausência de provas cabais, o
autor tem o cuidado de frisar que se trata apenas de uma sugestão provida de certa lógica. Doberstein entende,
igualmente, que a influência exercida pelos Samnitas sobre os Romanos se reflectiu ainda no domínio das formações de
combate e do armamento.
30
Com o derrube da realeza na Urbs, o domínio político transitou para os patrícios, um
grupo de ricas famílias nobres que, desde o começo da República, se tornaram numa
espécie de «casta hermética». Os primeiros dois séculos da época republicana serviram
de cenário para fricções recorrentes entre os patrícios e os plebeus, a que se deu o nome
genérico de «Luta das Ordens». No século V a. C., os plebeus lograram obter algumas
vantagens a nível jurídico: em 494/493, ganharam o direito de eleger os seus
representantes, os tribunos da plebe, e, em 451/450, viram-se contemplados em várias
medidas estipuladas no famoso código legal das XII Tábuas. No decurso do século IV a.
C., suprimiram-se muitos dos privilégios políticos que até aí os patrícios usufruiram, o
que permitiu aos plebeus mais abastados aceder a cargos públicos. Além disso, a
introdução de reformas económicas, sobretudo as disposições implementadas para
aliviar as dívidas e as limitações impostas sobre a posse das terras, contribuíram para
salvaguardar os interesses dos plebeus mais pobres78.
A principal «arma» de que os plebeus se serviam, quando estavam descontentes e
queriam ver satisfeitas as suas reivindicações era, precisamente, o serviço militar. Com
efeito, nas fontes antigas colhem-se referências a «secessões» plebeias ocorridas na
Urbs, o que significaram, por outras palavras, greves militares (494, 449 e 287 a. C.).
Sabe-se também que os tribunos impediam frequentemente a formação de levas de
recrutas, no claro intento de forçarem os magistrados e o Senado a aceitar várias
propostas dos plebeus, expediente que se usou em períodos posteriores; embora as
histórias individuais de obstrução sejam geralmente fictícias, inspiraram-se em
episódios autênticos que tiveram lugar no começo da República.
Os primitivos plebeus foram por vezes identificados com os cidadãos mais pobres que
serviam no exército (se é que realmente o fizeram), apenas providos de armamento
ligeiro. No entanto, se isto aconteceu, eles teriam então pouco «músculo» político, daí
que não exista razão alguma para rejeitarmos a imagem veiculada pelas fontes, segundo
a qual a plebe englobaria todos os não patrícios. Como vimos, a composição do exército
era bastante heteróclita, e nele todos os níveis da sociedade estariam representados,
incluindo o movimento plebeu e os seus opositores. Actualmente, ainda há
investigadores que sustentam que as guerras incessantes e as frequentes incursões
inimigas que marcaram o século V a. C. surtiram efeitos nocivos sobre o campesinato,
gerando uma recessão e o descontentamento entre os plebeus 79.
No entanto, este século foi, ao que parece, relativamente pacífico. Há, portanto, que
duvidar dessa suposta recessão: o declínio nas «importações» de peças de cerâmica
78
Sobre estes conflitos sociais: T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 242-292, 327-343; também, K. A. Raaflaub,
Social Struggles in Archaic Rome, Oxford, 2005.
79
T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 265-266, 306-307; K. A. Raaflaub, «Born to be Wolves? Origins of Roman
imperialism», p. 286.
31
(um fenómeno regional) e na fundação de templos dificilmente se revelam indicadores
seguros. A agitação causada pelo endividamento, atesta-s em fases que mostram níveis
comparativamente mais altos do fenómeno bélico: em 494/493 e, mais tarde, já no
século IV a. C. (perturbações a partir de 385 a. C. e medidas de alívio das dívidas em
367-342).
Houve, evidentemente, muita «fome» de terras por parte dos camponeses. Nas fontes
alude-se amiúde a incidentes aquando da distribuição de terras públicas no século V a.
C., mas as narrativas parecem mais reflectir as controvérsias que se registaram no fim
da República, pelo que vários académicos se interrogam se o conteúdo das mesmas
transmite elementos autênticos. Mas estabeleceram-se novas comunidades em zonas
confiscadas aos inimigos subjugados. No século V e no começo do IV, colhem-se
menções à fundação de coloniae, que adquiriram o estatuto de estados latinos e os
colonos foram tanto cidadãos romanos como aliados. Adicionalmente, no início do
século IV, concederam-se numerosos lotes individuais a cidadãos romanos no antigo
território de Veios e na Planície Pomptina. A «fome» por mais terras constituiu, aliás,
um dos factores que impulsionaram um renovado expansionismo em finais do século V
e inícios do IV a. C. Ao atingir-se o objectivo com a repartição de uma quantidade
substancial de terras confiscadas, houve um precedente que seria repetidamente
seguido, convertendo-se num aspecto nuclear da história do imperialismo romano.
O padrão tipificado por um estado de guerra endémico, que representou uma das
características nucleares da vida romana desde finais do século IV a. C. em diante,
ainda não se encontrava estabelecido no período antes do grande avanço ocorrido por
volta de 343 a. C. Sublinhe-se que a guerra contínua foi o produto mas não a causa do
imperialismo romano. Ainda assim, neste período mais remoto, os conflitos armados
travaram-se com elevado grau de periodicidade, e muitos elementos característicos (e
duradouros) da atitude dos Romanos para com a guerra, incluindo as modalidades da
condução das campanhas e das expedições, ganharam formas mais definidas na
organização militar, nos métodos de combate, no tratamento dispensado aos vencidos e
em práticas rituais como o triunfo.
Os Romanos continuaram a envolver-se em acções depredatórias, mas os conflitos
privados em terra firme parecem haver findado aproximadamente a partir do século V
a. C. A guerra tornou-se gradualmente numa actividade cívica: combater nas fileiras
dos exércitos da república passou a ser uma obrigação que recaía sobre todos os
cidadãos, à excepção dos mais indigentes. Esta mesma obrigação do cumprimento do
serviço militar ajudou a definir o significado do étimo «cidadão», para além de
proporcionar à gente comum uma certa margem de manobra contra a elite. Em suma, a
guerra consistia numa actividade em que tanto a elite como os cidadãos vulgares
32
tomavam parte, facto que se ilustra no papel desempenhado pelo combate individual,
nas acções bélicas da Roma arcaica. Não restam dúvidas que pelejar (por vezes através
de campeões) a título pessoal foi uma vertente importante nas guerras mais antigas. O
ideal heróico consistia, basicamente, em correr à frente dos outros guerreiros e
enfrentar os chefes inimigos, derrotando-os à vista de todos.
Ocasionalmente, os combates singulares (ou duelos) podiam ser formalmente
acordados com os adversários, costume observável na história lendária dos três irmãos
Horácios que lutaram contra os três irmãos Curiácios da vizinha Alba Longa80; segundo
a tradição, dois dos romanos rapidamente foram derrotados, apesar de ainda terem
ferido os seus adversários; porém, o último Horácio, ao simular a fuga, lançou os
Curiácios em sua perseguição, conseguindo o primeiro separá-los e matá-los um a um.
Quando regressou a Roma, ovacionado pelo exército e pelos seus concidadãos, ele
golpeou mortalmente a sua irmã por não o haver recebido com suficiente entusiasmo
(recorde-se que era a noiva de um dos Curiácios. Esta é só «uma das histórias de
heroismo singular – mesmo que a sequela seja brutal e usada para documentar a
progressiva regulação dos violentos comportamentos masculinos pelo grosso da
comunidade»81. Outro conto é o protagonizado por Horácio Cocles (com «um só olho»),
que barrou a passagem às forças armadas etruscas, enquanto a ponte sobre o Tibre era
derrubada nas suas costas, conseguindo escapar a nado. Mesmo havendo incertezas
sobre a veracidade destas narrativas, é indubitável que reflectem um género de
confronto típico e usual em muitas sociedades primitivas82.
Ulteriormente, mesmo quando predominaram os confrontos em massa, os actos de
valor individuais continuaram a ser apreciados e recompensados, tanto durante como
antes de um prélio. O hábito romano de atribuir condecorações por façanhas
demonstrativas de inaudita bravura remonta ao começo da época republicana, ou até
ao período monárquico. Antes de se travar batalha, seria habitual haver duelos entre os
Romanos e os seus inimigos; para além das porfias entre os Horatii e Curiatii, alguns
deles tornaram-se famosos, como os combates que opuseram Tito Mânlio Torquato a
vários gauleses (367 ou 361 a. C.) ou os duelos em que Marco Valério Corvo (349 a. C.)
se celebrizou. Porém, esporadicamente e a bem da disciplina, proibiam-se estas pugnas
singulares; sobreviveram também histórias de comandantes que impuseram uma
disciplina de tal modo severa que chegaram até a mandar executar os seus próprios
filhos pela infracção das regras83.
80
Episódio conhecido como a «Batalha dos Campeões». Os Horatii e os Curiatii eram primos, pelo que representam
outro exemplo de um conflito entre indivíduos partilhando laços de sangue: cf. J. Armstrong, «’Bands of Brothers’:
Warfare and Fraternity in Early Rome», pp. 61-62.
81
A. K. Goldsworthy, Generais romanos. Os homens que construíram o Império Romano, Lisboa, 2007, p. 24
82
Sobre os Horácios e os Curiácios: Tito Lívio, Ab Urb. cond. 1.23-27. Sobre Horácio Cocles, ibidem, II, 10-11.
83
S. P. Oakley, «Single combat in the Roman Republic», CQ 35 (1985), pp. 392-410; T. Wiedemann, « J. E. Lendon,
Soldiers and Ghosts. A History of Battle in Classical Antiquity, New Haven, 2005, cap. 8.
33
Os actos de valentia individual eram uma das melhores maneiras pelas quais nobres
como Torquato e Corvo se poderiam ver agraciados com distinções pessoais, mas as
recompensas também se atribuíam a simples soldados. Conta-se que o recorde em
termos de número de condecorações militares terá sido alcançado por Lúcio Sício
Dentato (Lucius Siccius Dentatus), tribuno em 454 a. C., que «lutou em 120 batalhas,
venceu oito combates singulares após o repto, notabilizando-se por ter 45 cicatrizes na
sua parte da frente e nenhuma nas costas» (Plínio-o-Velho, Nat. Hist. 7.101-102). A
magnitude das proezas de Sício é, na realidade, produto de uma ficção mais tardia,
além de que pode tratar-se uma figura legendária.
As narrativas destes feitos de armas mostram que os cidadãos comuns tinham a
possibilidade de ganhar notoriedade ao desempenhar o seu papel militar. Assim, a
partir dos primeiros tempos da República, os patrícios que buscavam a fama e a glória
através de actos de grande coragem, tentavam brilhar em actividades em que os
simples cidadãos também participavam activamente.
***
34
que eram, grosso modo, os vizinhos que habitavam as montanhas perto de Roma,
tinham estruturas tribais debilmente organizadas; mas, para sudeste, os Samnitas,
povo numeroso e extremamente belicoso, encontravam-se reunidos numa poderosa
liga, embora de carácter sobretudo defensivo. No Sul de Itália, localizavam-se as
cidades-estados helénicas da Magna Graecia, como Neapolis (Nápoles), Lócris,
Crótona e Tarentum, dispondo de exércitos compostos por hóplitas e mercenários, bem
como os territórios de povos itálicos, designadamente os Lucanianos, os Apulianos e os
Brutianos (Bruttii)84.
O período de 86 anos entre 350 e 264 a. C. foi palco de uma expansão radical do poder
romano na península italiana, definido-se a trajectória do futuro desenvolvimento
militar e imperial. Roma entraria com hostilidades contra este diversificado conjunto
de povos e, tanto através de derrotas infligidas aos inimigos, como ao conduzi-los a
integrar a sua rede de alianças, a Urbs lograria expandir cada vez mais o seu poder e
influência, controlando toda a Itália a sul do rio Rubicão.
O primeiro desafio com que a Urbs teve de lidar relacionou-se com os Latinos e os
Campanianos, que travaram uma guerra para se libertarem da hegemonia romana
(340-338 a. C.). A vitória de Roma saldou-se num aumento significativo do seu
território e dos recursos humanos. A Cidade também reformulou o seu sistema de
alianças, que se converteu num instrumento mais forte e dinâmico para as suas
operações de conquista. Depois, desencadeou uma série de longas guerras contra os
Samnitas, nos Apeninos centrais e meridionais. Em certas fases, toda a Liga Samnita
participou nas contendas, mas, em geral, a cooperação entre os membros da
confederação não funcionou, pelo que Roma defrontou amiúde tribos e comunidades
individuais. Os exércitos romanos invadiram usualmente o Samnium, sendo a situação
contrária mais rara, o que sugere que a agressão romana consistiu num elemento
subjacente na relação entre os dois grupos86.
84
Sobre a Etrúria, remetemos para estudos já citados: C. Saulnier, L’armée et la guerre dans le monde Etrusco-Romain;
B. D’Agostino, «Military organization and social structure in archaic Etruria», in O. Murray e S. Price (eds.), The Greek
City, pp. 59-84. Quanto ao modo de fazer a guerra dos Gauleses, veja-se L. P. Rawlings, «Celts, Spaniards and Samnites:
Warriors in a soldier’s war», in T. J. Cornell, B. Rankov e P. Sabin (eds.), The Second Punic War. A Reappraisal,
Londres, 1996, pp. 86-89. Sobre o Samnium e os Samnitas: E. T. Salmon, Samnium and the Samnites, Cambridge,
1967, C. Saulnier, L’armée et la guerre chez les peuples Samnites, Paris, 1983, e T. J. Cornell, The Beginnings of Rome,
p. 346, 351.
85
Dois bons estudos sobre o tema: J.-M. David, The Roman Conquest of Italy (tradução do original em língua francesa),
Londres, 1996, pp. 11-47; R. Cowan, Roman Conquests: Italy, Barnsley, Pen & Sword, 2010.
86
Para mais informações sobre as agressões perpetradas pelos Romanos no Samnium: T. J. Cornell, The Beginnings of
Rome, pp. 353-354; W. V. Harris, War and imperialism in Republican Rome, 327-70 BC, Oxford, 1979. No entanto,
35
Apesar de sofrerem algumas vexantes derrotas, como frente aos Samnitas nas Forcas
Caudinas (321 a. C.) e em Lautulae (315), os Romanos acabaram por levar a melhor
sobre este povo. De facto, a partir de 311 a. C., os Romanos também centraram a sua
atenção noutros vizinhos. Os subsequentes trinta anos (311-283) assistiram a uma
dramática dilatação do território e da esfera de influência de Roma. No último decénio
do século IV, os Romanos viraram-se contra os seus antigos aliados Hernici (acusados
de tentarem provocar uma secessão) e inimigos de longa data, os Aequi, incorporando
as suas zonas no território romano. Quanto a Sabinum, conheceu idêntico destino, após
uma campanha conduzida por M. Cúrio Dentato (M. Curius Dentatus, 290 a. C.).
No século III a. C., a natureza voraz do expansionismo romano conduziu à formação
de uma múltipla aliança integrada por Samnitas, Etruscos, Úmbrios e Gauleses, mas,
ainda assim, Roma obteve grandes vitórias em Sentinum (295) e Aquilonia (293). Estes
povos lutaram, a todo o custo, para se manter coesos face às vantagens estratégicas
romanas da integridade territorial, do comando unificado e da sua organização militar.
Os Samnitas e os Úmbrios viram-se subjugados em 290 a. C. e, poucos anos depois, os
Senones gauleses e os seus aliados etruscos foram estrondosamente derrotados em
Vadimon (238).
Além destes teatros de operações, os exércitos romanos imiscuiram-se cada vez mais
na vida dos Lucanianos, dos Apulianos e nas cidades da Magna Graecia; depararam
com a viva oposição da principal cidade grega do Sul de Itália, Tarentum, que se aliara
ao rei e aventureiro Pirro de Épiro, versado na arte da guerra de matriz helenística,
comandando um exército com 25 000 homens e 20 elefantes. A despeito de vencer as
forças romanas em Heraclea (280) e em Ausculum (279), assim como de encorajar o
reacendimento das hostilidades por parte dos Samnitas, Lucanianos e, possivelmente,
dos Etruscos e Úmbrios, Pirro acabou por ser vencido pelos Romanos em Beneventum
(275). Retirou-se para o Épiro, deixando os Romanos bem mais livres para derrotar
Tarentum (272) e os seus aliados: em 264 a. C., aproximadamente, Roma consumara a
conquista de Itália.
36
obrigou a que a maior parte das descrições modernas se tenham fundamentado nos
relatos escritos por autores romanos e gregos. Mas os investigadores experimentam
consideráveis dificuldades na interpretação de tais fontes. A narrativa mais extensa, de
Tito Lívio (59 a. C-17 a. C.), escrita trezentos anos após o período aqui em foco, só está
completa até ao ano 293 a. C. Políbio (c. 200-118 a. C.) fornece material adicional, mas
o seu interesse narrativo só começa em 264 a. C. Outros escritores antigos transmitem,
igualmente, relatos parcelares e fragmentários. Ademais, as fontes tendem a
concentrar-se firmemente na história romana, daí raramente se captarem notícias de
conflitos em Itália que não envolveram os Romanos.
Em todo o caso, a guerra foi uma realidade constante na península itálica. As pressões
económicas e demográficas empurraram muitas tribos das regiões montanhosas dos
Apeninos para a prática de depredações contra os seus rivais das planícies, forçaram
indivíduos e grupos a abandonar as suas comunidades, entrando ao serviço de
potências ultramarinas, como Cartago ou os tiranos da Sicília, na qualidade de
mercenários. Muitas das actividades guerreiras que tiveram lugar na península itálica
pautaram-se por uma reduzida magnitude, sendo pouco mais do que raides ou
incursões, motivadas pelo arrebatamento de despojos ou pela glória, ou como meios
para se obrarem proezas e um grupo exercer a dominação sobre os seus vizinhos. O
povo de Privernum, por exemplo, terão efectuado, em 342 e 330 a. C., raides nos
territórios dos seus vizinhos, as colónias romanas de Setia e Norba (Lívio, Ab Urb.
cond. 7.41.8-81; 8.19).
Os Romanos também se entregaram a operações de saque: em 310, Q. Fábio Máximo
Ruliano (Q. Fabius Maximus Rullianus) pilhou as terras situadas no sopé do Monte
Cimiano (Lívio, Ab Urb. cond. 9.36.11-14). Por vezes, estes actos de rapina
degeneraram em confrontos de larga escala, como aconteceu quando uma grande força
mista etrusco-úmbria lutou contra tropas romanas perto de Sutrium (ibidem, 9.37). Se
bem que determinadas comunidades ameaçadas por um exército romano pudessem
ripostar com uma mobilização de apreciáveis proporções, elas geralmente optavam por
reacções armadas de curta duração e a nível local. Quando se organizavam campanhas
ofensivas, visavam, amiúde, os aliados romanos que estivessem mais próximos. O que
se afigura mais surpreendente é que nas fontes os Romanos aparecem a actuar
frequentemente numa escala e numa intensidade que excediam, em geral, os seus
antagonistas.
Possivelmente a partir de 338 a. C., e com total certeza desde 312, Roma agiu
essencialmente como um poder pan-itálico, capaz de intervir em simultâneo em dois ou
mais teatros de conflitos para lá do núcleo do território romano. No mesmo ano em que
Ruliano arremeteu sobre o Monte Cimiano, outro exército romano tomou Allifae aos
37
Samnitas e «muitos outros fortes e aldeias foram tanto conquistados intactos como
destruídos» (Lívio, Ab Urb. cond. 9.37). Mais ou menos na mesma altura, os Romanos
enviaram também uma frota para pilhar a costa perto de Nuceria (ibidem, 9.38)87.
No arco temporal entre 350 e 264 a. C., só houve, aparentemente, seis anos em que
Roma não esteve em guerra: 347, 344, 328, 288-87 e 285 a. C 88. Tal grau de
belicosidade requer determinados esclarecimentos quanto às pressões culturais,
institucionais e económicas que conduziram Roma a praticar a guerra. Os Romanos
estavam indubitavelmente imbuídos de um ethos belicoso (embora não exclusivo dos
«filhos de Marte», já que era compartilhado por outros povos itálicos, sobretudo os
Samnitas, como explicitaremos noutra alínea): o êxito em combate era, como dissemos,
uma boa maneira para os homens ganharem prestígio e influência. As façanhas
militares dos membros da aristocracia romana eram recordadas pelas gerações
vindouras e, às vezes, adquiriam dimensões heróicas (Políbio, Hist. 6.53-54): Valério
Corvo89 (348 a. C.; Lívio, Ab Urb. cond. 7.26) notabilizou-se em vários duelos,
sobretudo um contra um enorme gaulês e, em virtude deste feito, tornou-se cônsul pela
primeira vez (num total de 6 consulados).
Os generais romanos almejavam glória, fama e riqueza ao vencerem batalhas e,
quando tinham êxito, exigiam o reconhecimento dos seus pares e da comunidade em
geral. Desde o ano 312 a. C., capta-se nas fontes um número cada vez maior de triunfos
e ovações, além de outras celebrações militares concedidas a comandantes vitoriosos. O
profundo desejo de alguém se ver recordado postumamente através de uma ou várias
proezas bélicas queda manifesto no túmulo de Lucius Cornelius Scipio Barbatus (cos
298, ILLRP 309), em cujo epitáfio se alude vitórias no Samnium e na Lucânia; por seu
87
Provas materiais: M. C. Bishop e J. C. Coulston, Roman Military Equipment from the Punic Wars to the Fall of Rome,
Londres, 1993, p. 48. Fontes literárias: E. Rawson, «The literary sources for the pre-Marian army», PBSR 39 (1971), pp.
13-31; T. J. Cornell, The Beginnings of Rome, pp. 1-30. Sobre os mercenários itálicos: G. T. Griffith, The Mercenaries of
the Hellenistic World, Cambridge, 1934, pp. 197-202, 208-211; G. Tagliamonte, I figli di Marte: mobilità, mercenari e
mercenariato italici in Magna Grecia e Sicilia, Roma, 1994. A respeito dos motivos predatórios: cf. Tito Lívio, 7.28.3 (a
incursão Aurunciana); S. P. Oakley, «The Roman Conquest of Italy», in J. Rich e G. Shipley (eds.), War and Society in
the Roman World, Londres, 1993, pp. 9-37, 14, n. 1. Sobre os padrões das modalidades bélicas: L. P. Rawlings,
«Condottieri and clansmen: Early Italian raiding, warfare and the state», in K. Hopwood (ed.), Organised Crime in
Antiquity, pp. 97-127.
88
W. V. Harris, War and Imperialism in Republican Rome, pp. 256-257; S. P. Oakley, «The Roman Conquest of Italy»,
pp. 15-16.
89
Valerius Corvus.
38
turno, um afresco tumular fragmentário de meados do século III a. C., descoberto no
Esquilino, talvez evoque as façanhas de Fábio Ruliano durante as Guerras Samnitas 90.
Quanto aos triunfos, estes reconheciam e simbolizavam as preocupações da elite com
a glória e os actos de bravura mas, por outro lado, significavam momentos concretos
para a comunidade, enquanto um todo, celebrar os êxitos do exército romano e
contemplar os despojos obtidos nas campanhas, sendo os últimos exibidos num cortejo
que percorria a Urbs (Lívio, Ab Urb. cond. 10.46.5, 14). Comentadores mais tardios
salientaram que, com o alargamento dos horizontes de Roma, se registou um aumento
das recompensas premiando os actos bélicos de valor; Floro (Ep. 1.13.26-27), ao
descrever o triunfo de Cúrio Dentato sobre Pirro em Beneventum, imaginou o seguindo
quadro:
«Anteriormente, os únicos despojos que poderíeis ver era o gado dos Volsci, os rebanhos dos
Sabinos, as carroças dos Gauleses ou os braços partidos dos Samnitas; mas se pudesséis haver
observado estes cativos, eram Molossianos, Tessálios, Macedónios, Brutianos, Apulianos e
Lucanianos; e se pudésseis presenciar a procissão, teríeis contemplado ouro, estátuas de cor
púrpura, pinturas e todos os luxos de Tarento».
Naturalmente que não se pode subestimar os benefícios económicos que resultavam
da guerra: à medida que o século IV a. C. foi decorrendo, as notícias alusivas a
pilhagens nas nossas fontes tornam-se mais frequentes. Embora as quantidades de
despojos e de tributos mencionadas nas fontes devam ser objecto de um estudo
cauteloso, os números apontados não deixam de servir de indicadores em relação às
fortunas acumuladas nos conflitos bélicos, com muitas riquezas afluindo para Roma.
Logicamente que tais lucros surtiram um efeito positivo na estrutura física da Cidade,
em especial no decurso da fase do recrudescimento das conquistas desde 312 a. C.
Entre 311 e 291 foram construídos nove templos. Em 312/311, o primeiro aqueduto para
uso exclusivo de Roma, que trazia água desde os Montes Albanos (perto de Gabii)
representou uma grande proeza edificatória (Lívio, Ab Urb. cond. 9.29.6).
Tudo isto mostra os recursos que o Estado dispunha e sugere, igualmente, o grau de
segurança e estabilidade que o núcleo central do território romano então já possuía.
Outra prova dos recursos da Urbs radica na construção da Via Appia, em 311 (Lívio, Ab
Urb. cond. 9. 29, 6), seguindo ao longo da costa até à Campânia, assim como a da Via
Valeria (307/306; Lívio, ibidem, 9.43, 25), no interior, em direcção a Alba Fucens. O
estabelecimento destas estradas facilitou obviamente as deslocações dos exércitos
romanos em campanha e manifesta, também, o aumento dos interesses do Estado no
estrangeiro.
90
Sobre o ethos belicoso: W. V. Harris, War and Imperialism, pp. 8-53; S. P. Oakley, «Single combat in the Roman
Republic», CQ 35 (1985), pp. 392-410. Sobre os triunfos: T. J. Cornell, «The Conquest of Italy», in F. W. Walbank et al.
(eds.), Cambridge Ancient History, 7.2 (2ª edição), Cambridge, 1989, pp. 363-364, «table 7»; S. P. Oakley, «The Roman
Conquest of Italy», p. 29; J. Rich, «Fear, greed and glory: The causes of Roman war-making in the republic», in J. Rich e
G. Shipley (eds.), War and Society in the Roman World, pp. 49-50. Sobre o epitáfio de Barbatus, T. J. Cornell, The
Beginnings of Rome, pp. 359-360, 466, n. 36. Para dados adicionais sobre o afresco do túmulo do Esquilino, veja-se F.
Coarelli, Affreschi romani dalle raccolte dell’Antiquarium communale, Roma, 1976, pp. 3-11.
39
Essencial para a conquista de Itália foi a exploração eficaz da mão-de-obra, tanto no
seu próprio território como nos dos aliados (socii). A seguir à derrota dos Latinos e dos
Campanianos (338), Roma dissolveu a Liga Latina e absorveu a maior parte da
Campânia no ager Romanus, o que fez com que, de uma assentada, triplicasse os seus
recursos humanos. Criou-se um novo sistema de aliança, mais dinâmico, que oferecia
os elementos necessários para apoiar a expansão e tinha a capacidade de integrar
futuros aliados e conquistas. De acordo com cálculos modernos, o território sob
controlo directo de Roma, o ager Romanus, aumentou de 1 902 km2, em 340 a. C., para
5 525, após a vitória sobre os Latinos e os Campanianos em 338. Em 264, o tamanho
passou para 26 805 km2, isto é, 1/6 da península itálica (c. 125 000 km2).
Parcelou-se algum deste território em lotes individuais (viritane) e entregue a
cidadãos, mas grande parte desta extensa área foi controlada por colónias, usualmente
com estatuto latino, das quais se esperava que, em caso de necessidade, fornecessem
tropas para os exércitos romanos. Crê-se que o maior índice atingido pela expansão
territorial, depois do alargamento inicial (mas substancial) do ager Romanus em 338 a.
C., ocorreu a seguir a 315 a. C. Embora, antes deste ano, se tenham estabelecido duas
colónias latinas, entre 340 e 315, fundaram-se outras sete entre 314 e 289, e mais seis
na década compreendida entre 273 e 263. Ao todo, estima-se que as colónias criadas
durante este período englobaram uns 70 000 colonos e os seus dependentes 91.
Em múltiplos aspectos, o exército romano era basicamente uma milícia cujos recrutas
tinham de se armar à sua própria custa. Muitos deles seriam camponeses que teriam
diminuta instrução formal no treino com armas, mas deles se esperava que adquirissem
a necessária destreza à medida que fossem participando em conflitos. Certamente que
um serviço militar recorrente, muitas vezes anual, aumentaria a familiaridade com as
armas, as formações e as tácticas de combate, mas não olvidemos que os exércitos eram
de carácter temporário, vendo-se geralmente desmobilizados no fim de cada campanha.
No fim do século V a. C., o Estado romano terá procedido ao pagamento de algumas
remunerações aos que serviam no exército 92, o stipendium (Lívio, Ab Urb. cond. 4.59,
91
Sobre o aumento dos recursos humanos em 338 a. C.: A. Toynbee, Hannibal’s Legacy: The Hannibalic War’s Effects
on Roman Life, I, Londres, 1965, p. 141. A respeito da dilatação do ager Romanus: A. Afzelius, Die römische Eroberung
Italiens (340-264 v. Chr.), Copenhaga, 1942; S. P. Oakley, «The Roman Conquest of Italy», p. 12; T. J. Cornell, The
Beginnings of Rome, p. 380; quanto às colónias, ibidem, p. 381, «table 9».
92
Assunto que desenvolvemos noutra alínea deste capítulo.
40
11-60.8; 8.8.3; Diodoro, Bibl. Hist. 14.16.5). Teoricamente, a concessão de soldos
permitia aos Romanos manter um exército em campanha durante um ano inteiro, se
necessário, mas, na prática, a maior parte das expedições bélicas só durava umas
semanas durante o Verão. Quando o exército de Públio Valério Levínio (Publius
Valerius Laevinius) recebeu ordens para invernar em Saepinum (280/279 a. C.), esta
injunção foi encarada como uma punição pela derrota infligida pelas tropas de Pirro
(Frontino, Strat. 4.1.24)93.
A maior parte dos estados reunia forças armadas para responder a ameaças ou
desencadear guerras publicamente aprovadas. Quando Fábio Ruliano levou a cabo um
raide na Etrúria a partir da sua base situada no Monte Cimiano, Tito Lívio (Ab Urb.
cond. 9.36-7.1) descreve primeiro como ele lutou contra milícias organizadas por
nobres locais etruscas e, depois, enfrentou um contingente maior composto por
Etruscos e aliados vizinhos Úmbrios. Os exércitos de povos como os Samnitas,
Lucanianos e as cidades gregas devem entender-se, nas suas linhas essenciais,
enquanto agrupamentos de homens que se consideravam guerreiros apenas enquanto
durava uma campanha.
Por vezes, engrossavam-se as forças com mercenários, que viviam quase em exclusivo
das suas capacidades marciais. Nas fontes, Campanianos, Samnitas e Gauleses
aparecem amúde mencionados como mercenários; mas, na realidade, é provável que
qualquer italiano com suficiente motivação procurasse «emprego» nesta actividade.
Sabemos de um romano, pelo menos, que viajou até ao Egipto para ficarao serviço dos
Ptolomeus94. Aparentemente, Roma não empregou mercenários, sobretudo porque
conseguia obter grandes efectivos de aliados, mas cidades como Tarento serviram-se
correntemente de mercenários (Dionísio, Ant. Rom. 20.1); também se colhem notícias
de Samnitas e de Gauleses (Lívio, Ab Urb. cond. 8.38; Políbio, Hist. 2.19) os utilizarem
nos seus conflitos locais e regionais.
Os bandos de mercenários tornavam-se especialmente perigosos quando os seus
empregadores dispensavam os seus serviços: um grupo de mercenários que haviam
estado ao serviço de Siracusa, campanianos que se proclamavam como Mamertinos,
apoderaram-se da cidade siciliana de Messana e depois realizaram saques e razias nas
vizinhanças (c. 289 a. C. Diodoro, Bibl. Hist. 21,18; 22,7.4.13; Políbio, Hist. 1.7-8; cf.
Plutarco, Vida de Pirro. 23-24). Outro bando de veteranos mercenários, que também
que esteve ao serviço do tirano Agátocles e foi dispensado por Siracusa, fez uma
incursão em Bruttium, mas acabou interceptado pelos habitantes locais, que reuniram
93
Segundo A. Goldsworthy (The Punic Wars, Londres, 2000, pp. 44-45, 51-52), ao introduzir-se o soldo, a milícia
«hoplítica» romana começou a transformar-se num «exército de conscritos»; o autor sublinhou, judiciosamente, a
natureza impermanente dos exércitos romanos durante os séculos IV e III a. C.
94
T. G. Griffith, The Mercenaries of the Hellenistic World, p. 243.
41
uma grande força; esta tomou de assalto o reduto dos mercenários e aniquilaram-nos a
todos com dardos (c. 338 a. C. Diodoro, Bibl. Hist.16.82.1-2; cf. Plutarco, Tim. 30, 1-2).
Existiam ainda quadrilhas independentes de «predadores» que viviam da guerra e da
pilhagem, as quais representaram, ao que se julga, uma ameaça constante. Foi
precisamente um destes grupos, que operava a partir de grutas na Úmbria, o alvo de
uma expedição romana que teve lugar em 303 a. C. (Lívio, Ab Urb. cond. 10.1.4). De
acordo com alguns relatos, os Bruttii, que formaram uma espécie de confederação que
surgiu no século IV a. C., também terão sido, inicialmente, mercenários, salteadores e
antigios escravos. Se nos ativermos a Diodoro (Bibl. Hist. 16.15.1-2), os Bruttii
conseguiram subsistir graças às acções de rapina perpetradas contra os seus vizinhos; a
certa altura, porém, ganharam mais força, a tal ponto que sitiaram e conquistaram
Terina, Hipponium, Thuri e outras cidades, assim logrando criar a sua própria liga.
As iniciativas destes bandos armados mostram perfeitamente a ubiquidade dos
elementos predatórios e da violência em Itália neste período, bem como indicam quão
maleável era o estatuto dos guerreiros, homens que em certas ocasiões podiam ser
qualificados de bandoleiros, mas que noutras trabalhavam a soldo ou agiam
autonomamente, com o objectivo de criarem as suas próprias comunidades. Ao
designarem-se como Mamertinos (Mamertini, «filhos de Mamers», sendo Mamers o
equivalente em osco para o deus Marte), os referidos mercenários campanianos que se
apossaram de Messana, estavam a afirmar as suas origens culturais e étnicas, ao
mesmo tempo que desenvolviam um forte sentido de identidade grupal. Uma história
explica como estes indivíduos se entregavam a um ver sacrum («Primavera sagrada»;
Festo, 150L), que constituía um rito de expiação devido a uma catástrofe natural, após o
que se viam expulsos da sua comunidade, tendo que arranjar um novo modus vivendi
por meio da força das armas.
Havia muito que grupos similares de guerreiros eram uma componente típica do
fenómeno bélico na península itálica; observa-se outro aspecto característico – homens
que se dedicavam à prática de certos rituais, através dos quais criavam, entre si, laços
de identidade militar que punham em prática as noções de compromisso/obrigação e
de obediência, facto que continuou a persistir no século III a. C. Em 309, homens «que
se dedicaram à maneira samnita» ingressaram no exército de Papírio Cursor (Papirius
Cursor; Lívio, Ab Urb. cond. 9.40). De acordo com Lívio, esses guerreiros ficaram
estupefactos quando um comandante romano os ofereceu como sacrifício a Orcus (o
deus osco do mundo inferior), uma forma de que se destinava a eliminar o poder
mágico do seu anterior juramento.
Em 310 a. C., os Etruscos impuseram uma lex sacrata (juramento sagrado) a cada
indivíduo que foi seleccionado, o que aparentemente os fazia combater com mais
42
valentia no campo de batalha (Lívio, Ab Urb. cond. 9.39). Por seu lado, os Samnitas da
«Legião de Linho», em 293 a. C., comprometeram-se «a prestar um juramento terrível,
uma maldição sobre cada um deles e sobre as suas respectivas famílias […] caso não
seguissem os seus generais, se fugissem do campo de batalha ou não matassem alguém
que vissem a debandar» (ibidem, 10.38). Em Roma, como referimos, os soldados
também proferiam um juramento (sacramentum), declarando que obedeceriam, sem
falhas, às ordens dos seus generais. Desta forma, o cônsul ficava com o seu poder
reforçado, no tocante à coerção (coercitivo), dando-lhe o direito de castigar
sumariamente os cidadãos durante as campanhas, podendo aplicar mesmo a pena de
morte.
Nas fontes antigas, aparecem reiteradamente certos topoi: a disciplina pessoal e
colectiva e a subordinação de um indivíduo às necessidades do Estado romano. O
dictator Lúcio Papírio Cursor terá dito: «Tanto na guerra como na paz, submete-te à
autoridade legal» (Lívio, Ab Urb. cond. 8.35). Histórias que se pretendia que servissem
de exemplos, como a de Papírio Cursor, quando ordenou que o seu oficial subordinado
Fábio Ruliano fosse flagelado, por ter pelejado contra o inimigo sem permissão, ou da
decisão tomada pelo cônsul Mânlio Torquato (Manlius Torquatus), de mandar
executar o próprio filho, eram vistos como episódios particularmente severos e dignos
de nota95.
Além do sacramentum, os soldados romanos faziam outro juramento (coniuratio)
entre eles (ao qual também nos reportámos), no sentido de «não fugirem do campo de
batalha, nem de abandonarem as suas posições na linha de batalha» (Lívio, Ab Urb.
Cond. 22.38.2-5; Frontino, Strat. 4.14). Estes juramentos ajudavam, indiscutivelmente,
a fomentar a coesão e a identidade na guerra, mas, neste período, parece que caberia
aos soldados trocar estes votos entre eles. Terá sido só a partir de 216 a. C. que o Estado
se apropriou do último género de juramento, combinando-o com o sacramentum, na
qualidade de juramento de lealdade para com os comandantes.
Em meados do século IV a. C., cada cônsul comandava geralmente uma legião de
«cidadãos-soldados», complementada por contingentes de aliados. Em 311 a. C., o
número de legiões que participava regularmente em campanhas subiu, aparentemente,
para quatro. Nesse ano, conferiu-se formalmente ao povo o direito de eleger os tribunos
militares para cada uma das legiões, o que deixa entrever que a prerrogativa popular
apareceu juntamente com uma prática militar bastante recente (Lívio, Ab Urb. cond.
9.30.3). Doravante, cada exército consular consistia, em regra, em duas legiões de
cidadãos, totalizando 8 000 a 10 000 homens de infantaria e 600 de cavalaria, afora as
95
Sobre os bandos guerreiros na Itália arcaica, veja-se o artigo já citado de J. Rich, «Warfare and Army in Early Rome»,
pp. 15-16. Sobre Papírio e Fábio: Frontino, Estr. 4.1.39; Valério Máximo, 2.7.8; Tito Lívio, Ab Urb. Cond. 8.32. Sobre a
disciplina manliana: Lívio, Ab Urb. Cond. 8.7; Salústio, Cat. 52; Cícero, Fin. 1.7.23; idem, Off. 3.31.112; Valério Máximo,
2.7.6; Frontino, Estr. 4.140-141.
43
duas alae de aliados, que, provavelmente, conteriam idênticos efectivos de infantaria
(embora em certas situações talvez muitos mais) mas o triplo de soldados na cavalaria.
Os exércitos cada vez maiores parecem espelhar as aspirações pan-itálicas dos
Romanos e coincidem com o recrudescimento da beligerância, expresso no crescente
número de triunfos e de colónias desde então registados nas fontes. Tais forças iriam
pôr à prova os recursos da maior parte dos rivais de Roma e, no século III a. C., esta
conjuntura levou à formação de uma série de alianças pan-italianas anti-romanas.
Numa das maiores batalhas travadas entre povos itálicos neste período, em Sentinum
(295 a. C.), é possível que cada facção beligerante tenha participado com um efectivo
superior de 40 000 combatentes. As refregas entre os Romanos e as tropas de Pirro
envolveram igualmente efectivos muito elevados96.
II.4. Os socii
96
A respeito da eleição dos tribunos militares em 311 a. C.: E. T. Salmon, Samnium and the Samnites, p. 232, n. 2; G. V.
Sumner, «The legion and the centuriate organization», JRS 60 (1970), pp. 70-71. Sobre a pan-italianização da guerra:
M. T. Burns, «The homogenisation of military equipment under the roman republic», « Romanisation»? Digressus
Supplement 1 (2003), pp.62-63. Acerca dos efectivos envolvidos em Sentinum, veja-se T. J. Cornell, «The Conquest of
Italy», p. 379.
97
Dionísio, Ant. rom. 19.12; Plutarco, Pyrrh. 16.8-10.
44
para travar as suas guerras, neles depositando forte confiança em razão da sua bravura
e empenho.
A visão que as fontes transmitem das operações militares romanas raramente se
afasta das acções empreendidas pelo exército dos cidadãos, mas salta à vista que o seu
êxito se escorou na organização e na integração dos socii, lutando juntamente com as
legiões. Era crucial que Roma tivesse capacidade para liderar estes aliados de uma
maneira eficaz, conseguindo absorver grupos étnica e militarmente diversos no seu
próprio sistema bélico. É muito provável que 50%, pelo menos, dos efectivos de
qualquer exército que Roma constituiu ao longo do período aqui em apreço se
compusesse de aliados, especialmente após o acordo de 338. Porém, nem todos os
aliados eram obrigados a fornecer contingentes regularmente; o teatro de operações em
que o exército fizesse a campanha determinaria, em regra, que aliados seriam
convocados a participar.
O peso sobre as comunidades, a nível individual, causado pelo recrutamento romano
foi, aparentemente, limitado, baseando-se o arrolamento nos dados contidos numa lista
guardada em Roma, conhecida como formula togatorum98. Estas tropas eram
financiadas e mantidas pelas respectivas comunidades quando se encontravam em
campanha (Políbio, Hist. 6.21), o que conduzia a que a guerra resultasse uma actividade
menos onerosa para os Romanos.
Não sobreviveram relatos coevos que nos esclareçam como os contingentes de socii
estavam armados ou combatiam neste período. Como dissemos, as fontes raramente
aludem à presença dos socii, não se dando ao trabalho de relatar detalhes acerca dos
seus actos; na realidade, parece que os imaginariam como tropas «romanas» em quase
todos os sentidos. Quando os Romanos e os Latinos lutaram entre si em 340 a. C., Tito
Lívio realça o facto de que os seus equipamentos e tácticas de combate praticamente
não se distinguiam (Ab Urb. cond. 8.8.15):
«Eles sabiam que um manípulo iria combater outro manípulo, que toda a linha dos hastati
defrontaria outros hastati, os principes contra principes, ao passo que os centuriões lutariam
entre si, enquanto as fileiras se mantinham intactas».
No entanto, o relato de Lívio é provavelmente anacrónico, reflectindo, acima de tudo,
a homogeneidade observável nos exércitos dentro do contexto mais tardio da «Guerra
Social», em que Roma porfiou contra os seus aliados no século I a. C. Com efeito, no
período em questão, as coisas não se passariam desta maneira. Sabemos que os
contingentes de aliados estavam sob o comando dos seus próprios oficiais (Políbio,
Hist. 1.7; 6,21), haja em vista o caso de Volsinius dos Frentani. Ademais, é de presumir
que as tropas lutassem com um equipamento que traduzisse as suas expectativas
marciais e os seus estilos de combate característicos.
98
Sobre a formula togatorum: A. Toynbee, Hannibal’s Legacy, pp. 424-427; P. A. Brunt, Italian Manpower 225 BC to
AD 14, Oxford, 1971, pp. 545-548.
45
Quando Roma absorveu os povos de Itália, não se sabe com que rapidez estes
sofreram influências dos métodos militares romanos ou, no sentido inverso, até que
ponto os Romanos adoptaram alguns elementos típicos seus socii. O tamanho dos
contingentes aliados e a sua organização interna variaram muito, o que se devia às
próprias diferenças das próprias dimensões dos estados aliados e à aplicação da
formula togatorum: algumas unidades podem ter sido reunidas mediante uma
combinação de elementos de diversas pequenas comunidades. Nas fontes, detecta-se
uma tendência para chamar aos contingentes de infantaria cohortes, mas, por esta
altura, estas unidades careciam da estrutura mais formal que, mais tarde, no século I a.
C., a coorte legionária viria a possuir (assunto que abordamos no próximo capítulo).
No século III a. C., estas «coortes» de tropas aliadas posicionavam-se nas alas ( alae)
do exército, estando sob o comando global de oficiais romanos, os praefecti sociorum
(Políbio, Hist. 6.26.5), que ajudavam a impor mais ordem e um controlo centralizado
sobre tais forças multi-étnicas. Nos flancos, a cavalaria aliada, dividida em turmae
(contendo cada uma 30 homens), desempenhava um papel importante, fornecendo
cerca de ¾ dos soldados montados do exército, protegendo os flancos durante as
contendas. É muito possível que os Romanos convocassem aliados com recursos
apropriados e perícia nesta arma, como os Campanianos (Lívio, Ab Urb. cond. 10.29)
ou determinadas elites locais, haja em vista o caso de Volsinius e do seu grupo, para
assim formarem o grosso da cavalaria. Entre as tropas aliadas, as julgadas mais
combativas ou que dispusessem de melhor equipamento, eram escolhidas para
actuarem na qualidade de extraordinarii no desenrolar das campanhas, encontrando-
se elas à cabeça do exército em marcha e, aquando das batalhas, talvez lutassem de em
separado, de forma mais ou menos autónoma. A primeira referência que captamos
sobre estes contingentes relaciona-se com os Hernici, que podem ter facultado o
modelo depois utilizado pelos Romanos.
Aparentemente, os Romanos depositavam confiança nos seus aliados, ao ponto de,
em várias ocasiões, os incumbirem da defesa de cidades e de praças-fortes. Porém, num
episódio ocorrido em 280 a. C., uma guarnição de campanianos liderada por um tal
Decius amotinou-se e adonou-se da cidade de Rhegium, ao longo de quase dez anos.
Por fim, estes campanianos foram capturados e trazidos até ao Forum de Roma, onde
os decapitaram. Este castigo radical e exemplar não só indica a preocupação que os
Romanos tinham enquanto protectores dos aliados, mas revela, igualmente, da forma
mais extrema, quais seriam as funestas consequências para os que se manifestassem
desleais99.
99
Lívio, Ab Urb. cond. 28.28.3; IDEM, Per. 12.15; Valério Máximo, 2.7.15; Políbio, Hist. 1.7.6-13; Orósio, 4.3.3-5. Sobre
os castigos aplicados sobre aliados, observe-se o caso do tratamento dispensado a Frusino, em 303 a. C., suspeito de
haver incitado os Hernici a rebelar-se: Lívio, Ab Urb. Cond. 10.1.3.
46
Naturalmente, Roma não foi o único estado a servir-se de alianças em guerra. Quando
os Privernates e os Fundani se aliaram, nos anos 30 do século IV, o comando geral foi
exercido por Valerius Vaccus de Fundi (Lívio, Ab Urb. cond. 8.19). No caso da «Liga
Samnita», quando as quatro tribos participavam numa operação bélica concertada, elas
escolhiam um comandante-chefe (meddix touticus) para as conduzir (ibidem, 9.1.2;
10.12.2; 24.19.2). Esta liga conheceu uma existência relativamente formal e teve
instituições federais duradouras, mas outras uniões idênticas não se mostraram tão
estreitamente integradas.
Entre aliados que eram estrangeiros, como sucedeu com os membros das grandes
alianças pan-itálicas que se estabeleceram contra o Commonwealth romano, em
princípios do século III a. C., o comando era partilhado por vários líderes, e os aliados
lutavam na ordem de batalha, organizados em contingentes separados (ibidem,10.27).
Tal divisão e a falta de familiaridade tornavam inevitavelmente a cooperação e a
confiança mútua dificilmente materializáveis, daí ocorrerem, amiúde, dissenções
(ibidem,10.10; Políbio, Hist. 2.18; 2.19).
«[…] os Etruscos, que combatiam em falanges com escudos redondos de bronze, compeliram-
nos [aos Romanos] a adoptar armas idênticas e, consequentemente, foram derrotados. Então,
quando outros povos utilizavam escudos como os que os Romanos agora empregam, e lutavam
em manípulos, eles imitaram os dois, vencendo, portanto, os que deram origem a modelos tão
bons» (Diodoro, Bibl. Hist. 23.2.1).
47
As peças mais comuns do equipamento militar no século IV a. C. consistiram nos
elementos essenciais da panóplia hoplítica: o grande escudo circular e plano (clipeus,
na sua versão itálica), a lança e o elmo. Nas fontes icónicas, os últimos aparecem
esporadicamente acompanhados por grevas e protecções para o tronco, geralmente
couraças de linho ou metal (linothorax e kardiophilax). Apesar de detectarmos
numerosas variantes regionais nos cascos100 («Apulo-Coríntio», «Negau», «Italo-
Calcidiano», «Etrusco-Trácio», «Italo-Pilos», Samno-Ático» e «Montefortino» 101), o
modelo tipológico «Montefortino» acabou por predominar na península itálica. Quanto
às armaduras, muitos protótipos e variantes conheceram ampla difusão, o que sugere
uma ambiência marcada por trocas culturais e militares. Com efeito, a maioria dos
guerreiros «samnitas» nos afrescos tumulares surge com o equipamento hoplítico, em
maior ou menor grau, consoante os casos.
Este género de panóplia adaptava-se consoante as situações e as preferências locais:
por exemplo, embora a arma básica de muitos infantes em Itália fosse, neste período, a
lança, observa-se que desta havia uma enorme diversidade tipológica; os arqueólogos
descobriram desde grandes lâminas, provavelmente concebidas para assestar estocadas
e cutiladas, até pequenas pontas ligeiras empregues para a confecção de dardos. De
permeio, havia outros géneros apropriados para o arremesso ou para assestar golpes
penetrantes. Também não são incomuns representações pictóricas de guerreiros com
panóplia hoplítica, mas providos de múltiplas lanças, como se assinala nos afrescos
tumulares lucanianos ou na cerâmica produzida no Sul de Itália.
Mesmo os soldados pertencentes à «infantaria pesada» não eram avessos a combates
que envolvessem o lançamento de projectéis. Durante os séculos IV e III a. C., surgem
indícios de que se terão levado a cabo várias experiências bastante assistemáticas com
aquilo que podemos designar de proto-pila, ou seja, lanças com uma «cabeça» estreita
e uma longa haste de ferro, destinadas especificamente para o arremesso. O pilum
constituiu a arma primeira dos infantes romanos no século III a. C., mas subsistem
dúvidas quanto às suas origens e à data da sua introdução (assunto que exploramos
mais adiante). Não obstante, é provável que alguns romanos já estivessem a ensaiar o
uso do pilum, defendendo diversos estudiosos que talvez tenham começado a empregá-
lo mais tarde, depois de combaterem com os mercenários hispanos e celtiberos ao
100
Em latim, a palavra mais comum para elmo é galea, embora também se empregue o termo cassis.
101
O elmo «Montefortino» disseminou-se, aparentemente, a partir da região do Vale do Pó, onde terá aparecido em
finais do século V a. C., para sul. Na viragem do século V para o IV, cascos deste género foram utilizados pelos guerreiros
da Itália Central: descobriram-se espécimes em Perugia, num túmulo etrusco de Orvieto e em Cerveterii, no Lácio. Por
volta do final do século III, este modelo espalhou-se por toda a península itálica, passando então a constituir, no
entender de J. M. Paddock, na protecção básica dos legionários romanos: cf. The Bronze Italian Helmet: The
Development of the Cassis from the last quarter of the sixth century B.C. to the third quarter of the first century A.D.,
tese para a obtenção do grau académico de PhD, University of London, vol. 2, Londres, 1993, pp. 482-483; consulte-se
ainda J. Tomczak, «Roman Military Equipment in the 4th Century BC», p.55. No entanto, em muitas obras recentes,
simplifica-se todo este caleidoscópio tipológico dos elmos, resumindo-o, basicamente à existência dos cascos do género
«Ático», «Etrusco-Coríntio» e «Montefortino»: cf. A. K. Goldsworthy, The Complete Roman Army, Londres, 2003, p.
29, N. Fields, Roman Republican Legionary 298-105 BC, Oxford, 2012, pp. 27-30.
48
serviço dos Cartagineses, em meados do século III a. C., que se serviam de lanças com
«pescoço» de ferro (assunto que exploraremos no capítulo seguinte). Todavia,
sublinhemos que a introdução do pilum foi uma inovação de natureza mais tecnológica
do que táctica; no decurso do século IV, os Romanos talvez já usassem dardos
arrojadiços em combate, mas apenas episodicamente102.
Diodoro dá a entender que a principal mudança que ocorreu no equipamento romano
radicou na adopção do escudo oblongo rectangular (com os cantos arredondados), o
scutum. No século IV, o último, que tinha uma nervura central de ferro (spina), gozou
de popularidade entre os Gauleses do Norte de Itália e noutros povos. O scutum
aparece em diversas pinturas tumulares e em cenas decorativas de vasos da Itália
meridional; nestas imagens, ele perfila-se como uma alternativa ao escudo circular que
surge em cenas descrevendo típicos hóplitas. Contrastando com este corpus icónico,
certos escritores antigos associaram o scutum às alterações tácticas: segundo Diodoro
(Bibl. Hist. 23.2), assim como o scutum substituiu o clipeus, a formação manipular
substituiu a falange. As fontes literárias mostram-se discordantes quanto ao momento
histórico concreto em que os Romanos introduziram tais mudanças, embora a maioria
dos escritores antigos as situem no século IV a. C. As mutações foram, ao que tudo
indica, bastante graduais, o que se vê ilustrado pelo facto de que, no próprio seio do
exército romano, os triarii, em pleno século III a. C., ainda actuariam de uma maneira
semelhante à da falange hoplítica.
Mas apesar de se assistir a uma certa lentidão na adopção das mudanças, estas
apontam para tendências mais abrangentes assinaláveis no fenómeno bélico durante
este período. Nos últimos tempos do século IV a. C., os hóplitas começaram a perder
preponderância nos conflitos travados no Mediterrâneo. Paralelamente, o escudo oval
(thyreus) encetou a sua aparição na Grécia, enquanto os exércitos helenísticos
incluiram um número cada vez maior de unidades de infantaria «especializada»,
exercendo distintas funções militares. Na Beócia do século III a. C., criaram-se
designações para grupos de infantes-cidadãos: thyreaphoroi/«portadores de escudos
ovais», os peltophoroi/«portadores do escudo pelta», epilektoi/«escolhidos» e
agema/« conduzidos». O gradual afastamento romano do sistema da falange hoplítica
viu-se também acompanhado pela emergência de diferentes termos para classificar os
vários elementos da sua infantaria103.
102
Sobre a panóplia «hoplítica»: H. Van Wees, Greek Warfare: Myth and Realities. Elmos, couraças e intercâmbios
militares: M. T. Burns, «The homogenisation of militar equipment under the Roman Republic», pp. 68-73, mapas 1-5.
Sobre as lanças e os dardos: A. Small, «The use of javelins in central and south Italy in the fourth century BC», in D.
Ridgeway et al. (eds.), Ancient Italy in its Mediterranean Setting. Studies in Honour of Ellen McNamara, Londres,
2000, pp. 221-234. Para a visualização dos afrescos tumulares de Poseidónia/Paestum, consulte-se A. Pontrandolfo e A.
Rouveret, Le tombe dipinte di Paestum, Modena, 1992.
103
Para a data da presumível aparição do scutum: Tito Lívio, Ab Urb. cond. 8.8.3 (406 a. C.); Diodoro, Ant. rom.14.16.5;
Plutarco, Cam. 40.4 (367 a. C.). Noutras fontes antigas, situa-se a introdução dos scuta (bem como dos dardos de
arremesso e dos próprios manípulos) no contexto das Guerras Samnitas: Ineditum Vaticanum 3, von Arnim, p. 12;
Salústio, Cat. 51.37-38; Ateneu, 6.273ss. Diodoro (Ant. rom. 3.2.1) revela-se vago nos seus dados. Sobre os «hóplitas»
49
II.5.1 Manípulos e linhas de batalha
Pode-se dizer que a originalidade do exército romano emergiu quando este adoptou
uma organização militar que permitia uma maior articulação da milícia cívica no
campo de batalha do que antes sucedera. Fundamental nesta organização se revelou a
criação dos manípulos (manipulus, «mão-cheia», «punhado»), que consistiam em
pequenas unidades, compreendendo cada uma cerca de 120 homens, dispondo-se em
formação, com intervalos a separá-las umas das outras (Lívio, Ab Urb. cond. 8.8.5). Os
manípulos eram comandados por dois oficiais (centuriões/centuriones) e igual número
de adjuntos (optiones; Políbio, Hist. 6.24.1-2).Os manípulos conferiram à linha de
batalha superior resiliência104, mas não formações com maior tamanho e supostamente
mais sólidas. Plutarco (Philop. 9.1-2) escreveu que, no século III a. C., os Aqueus que
utilizavam o thyreos e lanças leves revelavam eficácia no combate à distância; no
entanto, como eles se posicionavam numa falange, e não em manípulos, recuavam
facilmente e acabavam por se dispersar quando se produzia o choque com o inimigo.
Tito Lívio, por seu lado (Ab Urb. cond. 9.32) referiu que os Etruscos, na batalha de
Sutrium (311 a. C.), ao concentrarem-se numa massa compacta, ficaram exaustos ao
lutar contra a linha da vanguarda romana, sendo derrotados quando a segunda linha
entrou em acção. Um dos aspectos mais vantajosos dos manípulos relacionava-se com o
facto de facilitarem o emprego de reservas (ibidem, 8.8.9-14; 9.32; 10.14), embora haja
dificuldades em perceber como se procederia a tal canalização de reforços ou que
métodos se adoptavam para a substituição das linhas (aspectos para os quais
tentaremos apresentar soluções explicativas mais adiante) 105.
Nas narrativas antigas, a legião manipular surge quase sempre a operar em linhas
múltiplas (acies), mas não sabemos exactamente quando se adoptou esta subdivisão da
antiga formação de batalha republicana, nem quantas linhas originariamente seriam.
No entanto, como referimos, é possível que esta inovação tenha surgido, ainda numa
fase embrionária, por volta dos anos 390-360 a. C. 106, em consequência dos embates
com escudos redondos e ovais, consulte-se G. Schneider-Hermann, The Samnites of the Fourth Century BC as Depicted
on Campanian Vases and in Other Sources, Londres, 1996, est. 68 e 105. Quanto à atestação de outros géneros de
escudos na península itálica: P. Stary, «Foreign elements in Etruscan arms and armour: 8th-3rd centuries BC»,
Proceedings of the Prehistoric Society 45 (1979), pp. 53-62.
104
A articulação em pequenas unidades, treinadas a combater em conjunto ou separadamente, garantia uma maior
mobilidade e uma melhor adaptação a diferentes terrenos.
105
P. Sabin, «The face of the Roman Battle», JRS 90 (2000), pp. 1-17; A. Goldsworthy, The Punic Wars, pp. 53-62.
106
Lívio situou a aparição do manípulo no fim do século V ou em princípios do IV, mas já o Ineditum Vaticanum refere
que foi adoptado perto de 75 anos depois; cada uma destas fontes possui os seus defensores modernos: T. J. Cornell
seguiu basicamente o relato liviano (The Beginnings of Rome, p. 187, 313; embora, paradoxalmente, na p. 354, o autor
50
contra os Gauleses, aperfeiçoando-se e simplificando-se durante os conflitos que Roma
manteve contra o mais temível dos povos chamados sabelianos, os Samnitas (alguns
defendem que o manipulus surgiu em data ainda mais recuada, no século V a. C., o que
nos parece um pouco exagerado107). A mudança pode ter ocorrido quando Marco Fúrio
Camilo efectuou várias reformas no armamento e nos dispositivos organizativos do
exército romano, durante a sua quinta ditadura, em 367 a. C., se nos ativermos a
Plutarco108; porém, de acordo com outras fontes, o manípulo apareceu mais tarde, no
início do século III a. C109.
A visão que os autores antigos oferecem sobre esta mutação é muito confusa. Todavia,
as opiniões divergentes quanto à data da introdução do manípulo não significam
necessariamente que os Romanos desconhecessem quando é que as legiões começaram
a lutar com base nesta unidade táctica; na realidade, as fontes mostram, acima de tudo,
que houve uma série de desenvolvimentos que poderiam identificar-se como pontos de
transição. Por outras palavras, a passagem das centúrias para os manípulos não foi
simples nem rápida, visto que englobou diversas etapas que progressivamente
converteram o exército de Roma do século VI a. C. na temível força que Políbio
descreveu quatrocentos anos depois110. Esta transformação terá sido especialmente
complexa: num dado momento, reuniram-se duas centúrias independentes para
formarem um manípulo; esta alteração, inicialmente, até pode ter sido temporária, já
que cada centúria no manípulo conservou o seu centurião e, talvez, o respectivo
estandarte111. Seja como for, deve perspectivar-se a criação dos manípulos como um
facto distinto da decisão de dispor os mesmos ou as centúrias em três linhas, que se
terá seguido (ou ainda coexistido) ao costume de organizar o exército em quatro
linhas112.
Pierre Cosme afirmou que o combate hoplítico se revelava especialmente inadaptado a
um adversário, como o Samnita, que evitava lutar em batalhas campais, onde o poder
da falange seria eventualmente decisivo. Além disso, o mesmo autor refere que Roma
date a reforma de cerca de 311 a. C.); G. Forsythe (A Critical History of Early Rome, pp. 304-306) sugeriu que o
manípulo terá sido introduzido em finais do século IV, o que nos parece mais verosímil.
107
Como Ross Cowan, que faz remontar a adopção do manipulus ao século V a. C., uma subunidade que não combateria
numa linha de batalha contínua; além disse, considera que a formação em triplex acies foi introduzida a seguir à derrota
junto ao Allia (cf. «Enemies of Rome: Etruscans, Gauls and the Samnites», Ancient Warfare MI/265 (2010), p. 20.
Embora reconhecendo que se trata de uma hipótese alternativa, preferimos neste ponto seguir mais a corrente mais
tradicional.
108
Plutarco, Vida de Camilo, 40.3-4; Dionísio de Halicarnasso, Ant. Rom. 14.9-10. Cf. E. T. Salmon, Samnium and the
Samnites, p. 107; contra E. Rawson, «Literary Sources for the pre-Marian Army», Papers of the British School at Rome,
39 (1971), p. 27.
109
Para começos do século III a. C.: E. Rawson, «Literary Sources for the pre-Marian Army», p. 26; S. P. Oakley, A
Commentary on Livy, II, pp. 454-456.
110
J. Rich, «Warfare in Early Rome», p. 6.
111
Sobre os estandartes: Políbio, Hist. 6.24.6. No entanto, Frank W. Walbank (A Historical Commentary on Polybius, I,
Oxford, 1957, p. 707) sugeriu que o segundo signifer seria escolhido meramente como substituto, no caso de algo de mal
acontecer ao primeiro, baseando-se em Varrão (De Ling. Lat. 5.88)
112
N. Rosenstein, «Phalanges in Rome?», p. 300. Cf. Apiano, Hisp. 1.1, para uma disposição em quadruplex acies, num
episódio ocorrido em 358 a. C.
51
se viu confrontada com incursões de bandos rapinantes cujo principal objectivo não
radicava em assumir o controlo duradouro de um território, mas antes o de arrebatar a
maior quantidade possível de despojos. Assim, os Romanos necessitariam de barrar
este inimigo vindo das montanhas, antes que alcançasse as planícies. Não bastava
aumentar os efectivos, pois que também era preciso conceber novas formas de
combate, cuja necessidade se fez sentir com particular acuidade depois da derrota
romana face aos Gauleses no Allia, em 18 de Julho de 390 a. C113. Não consideramos as
asserções deste historiador inteiramente plausíveis. Eis as razões: em primeiro lugar,
subsistem incertezas que os Romanos tenham efectivamente combatido segundo o
esquema da falange, na sua acepção mais estrita: quando muito, durante algum tempo,
talvez lutassem integrados num género de formação relativamente compacta, mas mais
fluída e aberta que a do modelo helénico; em segundo lugar, a adopção do sistema
manipular não foi imposta pela maneira de guerrear dos Samnitas, antes resultou da
necessidade de uma acrescida mobilidade e maior flexibilidade dos exércitos romanos
no contexto expansionista da conquista da Itália.
Além disso, estranhamente, ainda prevalece na historiografia moderna uma visão
preconcebida e superficial a respeito da belicosidade deste conjunto de quatro tribos
(Pentri, Caudini, Caraceni e Hirpini) que habitavam na parte meridional dos
Apeninos. Tal imagem destorcida procede da antiga tradição literária romana, cujos
historiadores, embaraçados com a magnitude da derrota infligida pelos Samnitas nas
Forcas Caudinas (321 a. C.), terão deformado deliberadamente os factos e
transformaram o que originariamente foi uma batalha campal numa emboscada tendo
como cenário um desfiladeiro: o sítio onde se travou a refrega corresponde, em
princípio, ao actual vale de Forchia, um espaço amplo e desimpedido. O próprio Cícero
admitiu que o «general» samnita Gravius Pontius derrotou as legiões num prélio
convencional, obrigando-as a claudicar. Neste sentido a maneira de guerrear dos
Samnitas assumia uma atitude muito mais ofensiva do que habitualmente se costuma
pensar.
Durante as Três Guerras Samnitas (343-341, 326-304, 298-290 a. C.), os Romanos
terão aprimorado o sistema manipular 114, subdividindo os manípulos em duas centúrias
113
L’armée romaine, p. 14.
114
Segundo W. Doberstein, o sistema manipular foi adoptado pelos Romanos com base nos modelos de agrupamento
tácticos empregues pelos Samnitas em combate: cf. The Samnite Legacy, pp. 37-82 («Chapter 2: The Samnite influences
on the Roman military: the adoption of the Maniple, Scutum, and manipular tactics»). Para o autor, «By the end of the
Samnite Wars, the Roman army shifted away from the Greek phalanx and its armaments, in favour of the missile
combat of the Samnites» (ibidem, pp. 114-115). Os argumentos são frágeis e carecem de provas concretas, assim como
relativamente ao scutum, elemento que os Romanos se teriam apropriado a partir das práticas bélicas samnitas. O que
nos parece digno de nota é que os Samnitas possuíam métodos de combate bastante semelhantes aos dos Romanos,
provavelmente compartilhados por outros povos itálicos.No Quanto ao pilum, é provável que os Samnitas tenham
influenciado os Romanos: veja-se R. Cowan, «The Samnite Pilum: Evidence for Roman boasts», Ancient Warfare VI.4
(2012), pp. 39-42. De facto, os próprios Romanos gabavam-se de que haviam adoptado o pilum dos Samnitas e que
depois os venceram (Ineditum Vaticanum, 3; Salústio, Catilina, 51.38). Porém, certos académicos, como Elizabeth
Rawson, rejeitaram esta possibilidade (cf. Roman Culture and Society: Collected Papers, Oxford, 1991): «Nada que se
assemelhe a um pilum sobreviveu, aparentemente, em túmulos samnitas» (ibidem, p. 594); na realidade, encontraram-
52
de 60 homens (ou, num primeiro momento, 30). M. Humm, na sua monografia sobre
Appius Claudius Caecus advertiu para a existência de uma relação directa entre as
crescentes necessidades da Cidade em efectivos e a adopção da organização manipular;
no entanto este autor defende que a última teve lugar por volta de 312 a. C. 115.
Porém, é difícil extrair informes objectivos das fontes literárias, na medida em que
encerram menções a dois géneros básicos de formações (pelo menos), possivelmente
contrastantes: uma consistia numa divisão bipartida (talvez remontando a tempos mais
recuados) entre os pilani (que podemos designar como «colunistas»), que ficavam
atrás dos estandartes (signa), e os antepilani (ou antesignani), que se desdobravam à
frente dos últimos. Mas no tempo de Políbio, os antesignani repartir-se-iam, por sua
vez, em duas linhas: a primeira compunha-se de hastati/«portadores da hasta», e a
segunda de principes («os principais», talvez os melhores combatentes), enquanto os
pilani se tornaram mais correntemente conhecidos como os triarii («os da terceira
linha»; Varrão, De Ling. Lat. 5.89; Ovídio, Fasti, 3.129).
Segundo Políbio, a legião encontrava-se organizada numa linha tripla (triplex acies),
contendo 1 200 hastati, 1200 principes e 600 triarii (Hist. 6.21.9), cada linha
dividindo-se em 10 manípulos (ibidem, 6.24.3). Esta distribuição é a que os estudiosos
modernos mais amplamente aceitaram, não dando grande crédito à asserção de Tito
Lívio (Ab Urb. cond. 8.8.5.7-8), segundo a qual existiriam 30 manípulos de antepilani,
15 de hastati e de principes, assim como 15 unidades (ordines) de pilani, constituídas
por triarii, accensi e rorarii, sobretudo porque tudo isto formaria uma legião
totalizando mais de 8 000 homens, contradizendo o número que o próprio Tito Lívio
regista noutro trecho da sua obra – 5000 (Ab Urb. cond. 8.8.14).
Em combate, os hastati enfrentavam, na primeira linha, o inimigo e eram reforçados
pelos principes, ao passo que os triarii funcionavam como reserva, os quais até podiam
ficar sentados ou ajoelhados (Lívio, Ab Urb. cond. 8.8). Os últimos geralmente só
pelejavam caso a batalha estivesse a demonstrar-se difícil ou a correr mesmo mal para
as armas romanas, o que deu origem à frase «chegou até aos triarii», reportando-se a
qualquer situação grave (ibidem,8.8); mas, afora tais momentos críticos ou mais
periclitantes, os triarii raramente eram chamados a intervir, como queda sugerido
numa passagem de uma comédia de Plauto: «Vinde agora, sentai-vos todos na
periferia, tal como os triarii (Frivolaria, par. 5 Ritschl = Varrão, De Ling. Lat. 5.8)116.
se vários exemplares de pontas de dardos em necrópoles do Samnium que parecem confirmar as referências contidas
nas antigas fontes literárias.
115
Appius Claudius Caecus. La République accomplie, pp. 268-344, 375-397. Segundo M. Humm, Claudius Caecus, no
âmbito das suas reformas institucionais, teria estabelecido nesta altura a quarta e a quinta classes censitárias, a fim de
recrudescer o número de cidadãos inscritos nos comitia centuriata, os quais se tornavam susceptíveis de servirem no
exército.
116
Pilani: o termo «colunistas» é preferível ao etimologicamente mais duvidoso «homem-pila»: cf. F. W. Walbank, A
Historical Commentary on Polybius, vol. 1, p. 702 (contra a definição oferecida por Varrão, 5.89). Sobre o
desenvolvimento das linhas múltiplas, vejam-se, por exemplo: A. Toynbee, Hannibal’s Legacy: The Hannibalic War’s
Effects on Roman life, I, pp. 514-518; E. Rawson, «The Literary Sources for the pre-Marian army», PBSR, 39 (1971), p.
53
Mas, à frente destas linhas, havia um substancial número de tropas a actuar, embora
elas amiúde sejam ignoradas ou omitidas nos antigos relatos de batalhas. Mas, numa
análise atenta, verifica-se que na descrição polibiana do exército romano, os soldados
com armamento ligeiro ascendiam a mais de ¼ dos efectivos em cada legião (1 200
homens num total de 4 200). Políbio rotulou estes elementos como grosphomachoi
(«combatentes com dardos»), mas a terminologia em latim parece haver sido bastante
mais fluída, o que até gerou certa confusão nas nossas fontes: na sua descrição do
exército romano de 340 a. C., Lívio (Ab Urb. cond. 8.8.5) empregou o étimo leves
(«leves») para se referir aos contingentes de combatentes munidos de dardos e lanças
adstritos aos manípulos dos hastati. Porém, isto pode ter levado o autor a confundir
outros dois grupos que ele julgou estarem também presentes, os accensi e os rorarii
(8.8.8).
Apesar de Lívio os imaginar como uma espécie de triarii de inferior qualidade, tal é a
maneira pela qual ele os apresenta na sua récita da batalha de Veseris, em 340 a. C.
(ibidem, 8.9.14; 8.10.2-4)117, provavelmente, o autor (ou a fonte em que se baseou) deve
ter compreendido mal o papel desempenhado por tais tropas. Segundo outras fontes, os
accensi («servidores,«empregados»; Catão em Varrão, De Ling. Lat. 7.58) exerceriam
as funções de mensageiros e ordenanças, ainda que se afigure também possível que,
inicialmente, fossem serviçais dos «hóplitas», similares aos que transportavam o
equipamento dos infantes gregos em campanha, e que talvez interviessem como
infantaria ligeira nos prélios. Cabe levar em linha de conta esta prática, numa menção
que se faz aos mesmos numa batalha travada em 340 a. C., isto se presumirmos que os
Romanos ainda combatessem numa formação de matriz hoplítica.
A associação que Lívio fez entre accensi e rorarii, 118 embora reflicta confusão quanto
aos papéis desempenhados por uns e outros no campo de batalha, encontra-se também
numa passagem da referida comédia Frivolaria, de Plauto (que data de começos do
século II a. C.; frag. 4, Ritschl. = Varrão, L. L., 7.58): «Onde estais, rorarii? Estão aqui.
Onde se encontram os accensi? Vede…». Noutras fontes, os últimos são identificados
com os rorarii e, ainda, com outro termo, ferentarii, homens que participavam em
escaramuças, caracterizando-se sobretudo por lançarem dardos (Paulus, Epit. Fest. 13).
Esporadicamente, os rorarii surgem como os homens que começavam uma batalha,
«como um aguaceiro antes de uma forte bátega» (Varrão, De Ling. Lat. 7.58; cf.
24; S. P. Oakley, A Commentary on Livy Books VIII-X, Volume II, Books VII-VIII, Oxford, 1998, pp. 455-457.
117
Para o investigador polaco Juliusz Tomczak, os accensi pertenceriam à infantaria pesada, já que de outro modo
dificilmente se compreenderia como poderiam eles ser confundidos com os triarii pelos Latinos, que estavam
familiarizados com o dispositivo de combate romano: cf. «Roman Military Equipment in the 4th Century BC»: Pilum,
Scutum and the Introduction of Manipular Tactics», pp. 49-50. Seja como for, continuamos a ter dúvidas quanto à
exacta natureza e função dos accensi no campo de batalha.
118
P. Cosme (L’armée romaine, p. 14), relativamente aos accensi e aos rorarii, opinou: «Não se pode identificar com
absoluta certeza as duas últimas categorias de soldados, que talvez procedessem da quarta e da quinta classes
censitárias».
54
Paulus, Epit. Fest., 323). No século II a. C., ainda se empregava o vocábulo rorarii, se
bem que a partir deste momento ele já estivesse a ceder lugar a uma nova designação
para a infantaria ligeira, velites.
As tropas com armamento ligeiro correspondiam, como se disse, aos cidadãos que não
tinham posses para adquirir o dispendioso equipamento dos hóplitas, aspecto que se
constata na descrição de Lívio das classes servianas (Ab Urb. cond. 1.43; Dionísio, Ant.
romanas, 4.16-18). Conquanto o exército manipular tenha passado a ficar estruturado a
nível etário, Políbio (Hist. 6.21.7) observou que os Romanos com menos posses se
mantinham providos de armamento ligeiro. Eles jamais terão conhecido oportunidades
de progredirem, ao contrário dos seus concidadãos com mais posses, que ingressavam
nos hastati, principes e, finalmente, nos triarii119.
No extremo oposto da escala social, os cavaleiros (equites) romanos procediam da
elite: eram indivíduos que dispunham de posses e tempo para adquirirem talento no
hipismo e aprenderem a combater a cavalo. A julgarmos pelo desaire romano nas
Forcas Caudinas (e mais tarde na batalha do Lago Trasimeno, em 217 a. C.), estes
aristocratas não mostraram ser dignos de confiança para efectuar missões de
reconhecimento ao longo da linha de marcha do exército. Em cada legião, arrolavam-se
300 cidadãos para a cavalaria, repartidos em 10 turmae, mas o seu papel no campo de
batalha não é fácil de discernir: os que foram representados numa pintura do templo de
Esculápio entenderam-se como ferentarii (Varrão, De L. lat. 7.57), palavra, como
vimos, principalmente aplicável a soldados que se dedicavam a provocar escaramuças.
No entanto, segundo Lívio, os equites atacavam ocasionalmente o inimigo nos seus
flancos ou na retaguarda (Ab Urb. cond. 8.39, 9.35, 9.40, 10.29), noutras investiam
frontalmente (Ibidem, 8.30, 10.14,36) e, por vezes, também desmontavam para lutar
apeados (ibidem, 9.22,39). Geralmente, as suas acometidas pareciam surtir um efeito
desproporcionadamente heroico e decisivo (ibidem, 8.30, 39; 9.22, 27, 39; 10.28), mas
importa assimilar estes dados com precaução, já que Políbio deixa extravasar
frequentemente uma parcialidade aristocrática; seja como for, o mesmo autor relata
um caso, em Tifanum (297 a. C.), em que a carga frontal dos cavaleiros romanos parece
ter fracassado, batendo todos em retirada do campo de batalha (Lívio, Ab Urb. cond.
10.14). Assim, é difícil avaliar o verdadeiro impacto da cavalaria nas guerras travadas
pelos Romanos, mas, segundo o lugar-comum da capacidade de adaptação, eles ter-se-
iam apropriado das tácticas dos guerreiros montadas dos Samnitas (ou dos
119
Sobre os números apontados por Políbio: F. W. Walbank, A Historical Commentary on Polybius, vol. 1, pp. 702-703.
A descrição de Tito Lívio (8.8.5-8) revela-se demasiado confusa para que consigamos calcular o tamanho dos
contingentes. Isto deve-se, em parte, ao facto de o autor entender os accensi e os rorarii como diferentes dos leves. Para
problemas textuais, consulte-se S. P. Oakley, A commentary on Livy Books, pp. 459-463. Quanto aos rorarii no século
II a. C.: Lucílio, 7.290, 10.393.
55
Campanianos), bem como do equipamento utilizado pelos cavaleiros helénicos (os
pírricos ou dos estados gregos italiotas)120.
Centremo-nos agora no juramento prestado pelo soldado romano (coniuratio), de
«não fugir do campo de batalha, nem abandonar a sua posição na linha de batalha»,
que comportava uma ressalva digna de interesse: os soldados teriam de se manter nas
fileiras à excepção dos casos em que fossem recuperar uma arma, salvar um camarada
ou atacar um inimigo (Lívio, Ab Urb. cond. 22.38.2-5). Se, por um lado, a primeira
parte do juramento promovia a coesão grupal, a última, por outro, entrevê a existência
de uma considerável liberdade de iniciativa individual no campo de batalha. Da
maneira como Lívio expõe a situação, os soldados podiam deixar a linha de combate
durante a contenda para arranjar novas armas ou recuperar outras, provavelmente
projectéis arremessados, e, além disso, adiantar-se em relação à linha para lutar contra
antagonistas a título individual, ou socorrer camaradas que se encontrassem numa
situação semelhante.
Um tal juramento parece incongruente face à ordem metódica (ordinatio) de uma
falange hoplítica, mas já demonstra adequar-se melhor ao género de combates travados
por soldados armados de dardos e organizados em pequenos grupos como os
manípulos (especialmente se o oponente porfiasse num estilo similar, como se vê nas
cenas de pugnas em várias pinturas tumulares lucanianas de Poseidónia/Paestum).
Com efeito, ao reportar-se à batalha de Sentinum, Lívio conta que os Romanos
passaram algum tempo a apanhar dardos que jaziam dispersos no terreno, no espaço
que separava as duas forças beligerantes, com vista à sua reutilização contra os seus
adversários gauleses (Ab Urb. cond. 10.29.6).
A mudança para o sistema de formação manipular 121 representou um passo em
direcção dos combates efectuados com armas de arremesso. No século II a. C., os
hastati e os principes estariam providos de pila, enquanto os triarii conservavam uma
lança (hasta), a qual serviria basicamente para trespassar um inimigo ou então para
espetá-la no solo, formando-se assim uma barreira pejada de pontas de lanças. Em
princípios do século II, Énio escreveu que «os hastati arremessaram as suas hastae;
sobreveio uma chuva de ferro». Esta linguagem metafórica serve de complemento às
palavras que citámos de Varrão, a respeito dos rorarii, que eram um «aguaceiro antes
de uma forte bátega»122.
120
Sobre a cavalaria romana: J. B. McCall, The Cavalry of the Roman Republic, Londres, 2002, pp. 13-25. A respeito da
assimilação romana de tácticas e de equipamento de cavalaria, cf. Ineditum Vaticanum 3, von Arnim, p. 121; Políbio,
6.25. Dúvidas de estudiosos modernos: M. W. Fredericksen, «Campanian cavalry: A question of origins», Dialoghi di
Archeologia, 2 (1968), pp. 3-13, 14 ss; J. B. McCall, The Cavalry, pp. 27-33.
121
Para este aspecto, veja-se N. Fields, Roman Battle Tactics 390-110 BC, pp. 40-47,
122
Macróbio, 6.1.52 = Énio, Ann. 8, frag. 281 Warmington = 287 Vahl. Varrão, De ling. lat. 7.58; E. Rawson, «The
literary sources for the pre-Marian army», pp. 13-31; A. Zhmodikov, «Roman republican heavy infantrymen in battle
(IV-II) centuries BC», Historia 49 (2000), pp. 67-78.
56
O lançamento de dardos, por meio de uma série de salvas, em batalha, fossem os pila
mais «especializados» ou (inicialmente) hastae «multifuncionais», parece coadunar-se
mais plausivelmente com o período em que se começou a organizar a legião em linhas
de manípulos, visto que este dispositivo permitia a grupos relativamente pequenos
avançarem em passo de corrida para lançar as suas armas, depois retrocedendo e sendo
substituídos por uma segunda linha. Como certas fontes sugerem, a adopção do
scutum, que ofereceria melhor protecção do que o escudo circular 123 na troca de
arremesso de projectéis (Lívio, Ab Urb. cond. 9.19; Políbio, Hist. 6.23), pode ter estado
conectada com esta esta mutação no método de combate.
***
57
enquanto um todo, se tornasse mais endurecido e experiente do que a maioria dos seus
inimigos. Por outro lado, os legionários romanos ainda estavam longe de ser soldados
profissionais, consistindo em «milicianos» que, no fim de uma campanha, geralmente
regressavam à terra-natal, voltando a labutar nas suas propriedades agrícolas ou
dedicando-se a outras profissões.
Posto isto, embora as acções bélicas ocorressem num ritmo quase anual, a proficiência
das suas armas e a capacidade no desenvolvimento de manobras tácticas eram ainda
algo frustes e limitadas. A formação manipular englobou, em certa medida, estes
elementos típicos de uma «milícia». Os «hóplitas» do exército arcaico e do início da
República romana terão sido seleccionados principalmente de acordo com os critérios
da riqueza e da propriedade patrimonial, mas o exército manipular, ainda que
preservando a qualificação básica fundiária, passou a organizar-se essencialmente
segundo a idade dos soldados. Com base em Lívio (Ab Urb. cond. 8.8.6-10) e Políbio
(Hist. 6.21.7-9), às tropas mais jovens (leves e hastati) cabia a tarefa de iniciar uma
batalha, mas por precaução, viam-se apoiadas pelos seus camaradas das fileiras
seguintes, mais experientes e maduros e, por fim, contando com o reforço da «Velha
Guarda» dos triarii.
Ressalvemos também que a instrução e o treino formais, que mais tarde foram
componentes cruciais, não seriam ainda tão relevantes num sistema como o manipular,
que ocasionava a fragmentação das linhas de batalha em pequenas «mãos-cheias» de
homens, característica que cedo se transformou numa das virtudes marciais de
referência. Políbio (Hist. 18.32.10-12) afirmou que «[…] qualquer soldado romano, uma
vez armado e pronto para combater, é capaz de enfrentar um ataque a partir das mais
diversas direcções, em qualquer momento ou qualquer local. Está também preparado e
em condições para combater enquanto parte integrante de todo o exército, de uma
secção, em manípulos ou a nível individual».
Quanto à capacidade de resiliência, por meio de agrupamentos de soldados que
lançavam saraivadas de dardos contra o inimigo, ela mantinha-se sólida graças ao
significado prático dos juramentos que os homens proferiam entre si e pelo medo dos
castigos extremamente severos que poderiam sofrer por parte do cônsul depois da
contenda. Os manípulos eram comandados pelos seus próprios oficiais, os centuriões,
que tanto impunham o devido controlo sobre as tropas, como permitiam, em certas
circunstâncias, que agissem através de iniciativas individuais no campo de batalha.
Ignoramos em que data os estandartes se tornaram num elemento integral das
legiões, mas foi certamente ainda em tempos recuados; eles funcionavam como valiosos
pontos de concentração no decurso de uma refrega em que os Romanos utilizassem o
fluido sistema manipular, ao passo que os pilani/triarii, aglomerados numa densa
58
massa, atrás dos estandartes, ofereciam à formação a resoluta solidez e tenacidade
típica dos veteranos.
As legiões tiveram capacidade para cooperar eficazmente em batalha com as unidades
aliadas, talvez sugerindo, num período em que a experimentação e a fertilização
cruzada de estilos de combate e armamento constituíam um fenómeno disseminado,
que as últimas também estariam familiarizadas com as modalidades de peleja que os
Romanos empregavam. Talvez o êxito do expansionismo romano tenha contribuído
para uma pan-italianização da arte da guerra que facilitou intercâmbios marciais. Para
Louis Rawlings: «A conquista romana de Itália não se desenrolou num vaccum e, não
obstante a natureza romanocêntrica dos relatos históricos, fica claro que os demais
protagonistas tiveram papéis a desempenhar»125.
Uma boa maneira para compreender algumas etapas que marcaram a evolução da
prática da guerra entre os Romanos passa pela sua inserção no contexto de processos
mais alargados assinaláveis nos métodos de combate itálicos e helenísticos. Neste
ponto, há que complementar as fontes literárias com os achados arqueológicos
realizados em solo italiano, a fim de ganharmos uma imagem de contornos mais nítidos
sobre a natureza da guerra desenvolvida pelos Romanos.
Apesar de existirem falhas ou deficiências no seu sistema (como em qualquer outro),
os efectivos militares romanos e aliados vieram a impor-se cada vez mais sobre os seus
vizinhos e inimigos, daí os seus exércitos serem, de acordo com os padrões italianos,
grandes. Mesmo quando lutando contra forças treinadas e organizadas, como as
pírricas, os Romanos recuperaram das suas derrotas e souberam aproveitar habilmente
os recursos humanos, conseguindo substituir as baixas sofridas através da mobilização
de novos efectivos (Plutarco, Vida de Pirro, 19.5; Floro, 1.13).
Dito isto, ao longo dos 85 anos aqui passados em revista, os seus antagonistas, fossem
tribos ou comunidades individuais, ou ainda exércitos «internacionais» e pan-itálicos,
conheceram sérias dificuldades nas suas tentativas de suplantar e competir com a
flexibilidade e a resiliência da República romana e dos seus exércitos.
125
«Army and Battle during the Conquest of Italy», p. 59.
59
classes censitárias serviriam de enquadramento para o recrutamento dos soldados, pelo
menos até ao tempo de GaCaioio Mário, no fim do século II antes da nossa era. Em
virtude do princípio de «igualdade geométrica» que estava presente em qualquer
organização cívica romana, os cidadãos das primeiras classes deviam contribuir mais
para a defesa da Cidade do que os agrupados nas últimas classes. Os primeiros,
inscritos nas centúrias menos numerosas, seriam mais regularmente solicitados do que
os outros, já que cada centúria contribuiria de maneira equivalente para os efectivos do
exército (fornecendo inicialmente talvez 100 homens).
À fortuna somava-se o critério etário. Recordemos que só os cidadãos das cinco classes
censitárias com idades compreendidas entre os 17 e os 60 anos eram mobilizáveis. No
seio desta categoria dos adsidui/assidui, distinguiam-se ainda os iuniores (17-45 anos),
chamados a integrar o exército activo, dos seniores (46-60), que constituíam uma
reserva. Assim, cada classe censitária encontrava-se dividida em centúrias de iuniores e
seniores. Afora a idade, também se teria em conta a compleição física e o estado de
saúde dos mobilizáveis, mas não conhecemos bem as exigências do recrutamento neste
domínio antes da época imperial.
Os cidadãos com meios financeiros permaneciam mobilizáveis durante grande parte
das suas vidas. Mas, entre os 17 e os 45 anos, os iuniores só participariam num
determinado número de campanhas militares ao serviço do Estado. Segundo Políbio
(Hist. 6.19.2-3), tal cifra fixou-se em 16 para os infantes, mas prolongando-se até 20
anos em circunstâncias excepcionais. Todavia, estas campanhas consecutivas não se
materializavam em anos de serviço initerruptos. Enquanto os teatros de operações se
limitaram à Itália, o cidadão cumpria as suas obrigações militares entre os meses de
Março e Outubro.
Depois, mesmo quando o campo de intervenção do exército se estendeu à bacia do
Mediterrâneo, os períodos de mobilização não eram contínuos. O serviço militar dos
cidadãos consistia na participação em campanhas mais ou menos longas, em função do
tempo necessário para obter uma vitória. Entre as mesmas, os indivíduos regressavam
à vida civil. É, pelo menos, o que revela o discurso do centurião Espúrio Ligustino 126, em
171 a. C. (Lívio, Ab Urb. cond. 42.34.1.5).
A adopção destes critérios requeria procedimentos minuciosos de recenseamento e
controlo. Foi, como dissemos, a Sérvio Túlio que se atribuiu a instituição do primeiro
census127, que se converteu num importante momento da vida cívica. Desde 443 a. C., a
sua organização confiou-se a magistrados específicos, os censores 128. Quinquenalmente,
em princípio, os cidadãos eram convocados a Roma, reunindo-se no recinto da Villa
126
Que será objecto de análise no começo do próximo capítulo.
127
Sobre a aparição e o desenvolvimento histórico do census, cf. G. Pieri, L’histoire du cens jusqu’à la fin de la
République romaine, Paris, Sirey, 1968; IDEM, «Cens (Droit romain)», in J. Leclant (dir.), Dictionnaire de l’Antiquité,
Paris, PUF, 2005, pp. 440-441.
60
Publica, no Campo de Marte, onde declaravam os seus bens aos censores. A Villa
Publica era delimitada a oeste pelo pórtico que rodeava os templos republicanos da
Area Sacra do Largo Argentina, a norte pelo muro do Diribitorium, e a sul pelos
Circus Flaminius. Quando os soldados se equipavam à sua própria custa, competia
igualmente aos censores verificarem o estado do seu armamento. Este continuava
relativamente heterogéneo, na medida em que dependia muito dos recursos de cada
cidadão.
Recapitulemos vários pontos: segundo Lívio (Ab Urb. cond. 1.43), as 80 centúrias da
primeira classe conservariam ainda o equipamento de bronze hoplítico: elmo, grevas,
lança, espada e couraça constituída por discos metálicos colocados nas costas e no peito
para a protecção do coração (cardiophylax). Mas o escudo redondo (clipeus) foi
substituído por um modelo oval, o scutum, a partir do momento em que se adoptou a
ordem manipular. As armas dos soldados da segunda classe eram idênticas, à excepção
da couraça, que não tinham. Quanto às 20 centúrias da terceira, os homens estavam
desprovidos de grevas metálicas (ocreae). Em contrapartida, nas últimas classes
censitárias, o equipamento hoplítico estaria ausente: os combatentes recrutados para a
quarta tinham como armas só lanças e dardos, e as 30 centúrias da quinta forneciam
unicamente fundibulários. O resto do corpo cívico encontrava-se agrupado numa
centúria, dita infra classem, englobando os proletarii, dispensados do serviço militar.
Soldo e tributo
128
Sobre os censores, consultem-se: J. Suolahti, The Roman Censors, Helsinquia, Kirjapaino, 1963; M. Humm, «Il
regimen morum dei censori e le identità dei cittadini», pp. 283-314.
61
Michel Tarpin129 enfatizou a importância dos despojos no pensamento romano: os
Romanos empregavam, para se reportarem àqueles, vocábulos diferentes que remetem
para práticas guerreiras arcaicas: a praeda, que designava também as presas dos
piratas, resultava da pilhagem efectuada pelos soldados com a autorização do seu
general, após a vitória sobre um inimigo que não se rendera; terá sido isto o que
sucedeu, amiúde, com as cidades tomadas por Roma durante a conquista de Itália. No
rescaldo de uma batalha campal, operava-se uma distinção entre as bagagens dos
vencidos, partilhadas entre os soldados romanos, e as armas abandonadas no sítio da
contenda – estas, no dia seguinte, eram separadas, queimadas ou até deixadas no local
caso o metal não valesse a pena ser recuperado, sem nunca ocasionar uma partilha.
Relativamente aos spolia, correspondiam ao que o imperator devia depositar no
tesouro do povo romano, situado no podium do templo de Saturno, quando o
antagonista se havia rendido (deditio). Estas capitulações negociadas tornaram-se mais
correntes a partir do período em que Roma se envolveu em conflitos contra as
monarquias helenísticas. Neste caso concreto, o comandante-chefe tinha de prestar
contas ao Senado, não podendo dispor arbitrariamente dos despojos. Quanto às
manubiae, representavam a parte reservada aos deuses e ao general vencedor. Mas
este, no seu triunfo, podia proceder a distribuições, chamadas donativa.
Consequentemente, a indemnização das tropas por meio do pagamento de um soldo
surgiu provavelmente bem mais tarde do que o cerco de Veios, talvez no decurso das
Guerras Samnitas da segunda metade do século IV a. C. O soldo veio a ser financiado
através de uma contribuição dos cidadãos mobilizáveis, o tributum130. Enquanto Roma
não teve uma verdadeira economia monetária (até começos do século III) tal montante
pagava-se sob a forma de lingotes de bronze. Como todos os adsidui estavam sujeitos
ao imposto em caso de guerra, designadamente os que não haviam sido mobilizados
para a campanha em curso, os que já não estavam em idade de servir e, ainda, aqueles
que não reuniam capacidades físicas, a instituição conjunta do soldo e do tributum
repartia mais justamente os deveres inerentes à defesa da Urbs por todos os
mobilizáveis.
Durante o tempo em que o financiamento do soldo se alimentou em exclusivo pelo
tributum, os «tribunos do tesouro» (tribuni aerarii) asseguravam o seu pagamento: os
últimos escolhiam-se entre os contribuintes mais ricos em cada tribo para avançar com
o montante do soldo que entregavam directamente aos legionários; depois eram
reembolsados pelos outros cidadãos mobilizáveis da respectiva tribo, segundo regras
129
«Les ‘Manubiae’ dans la procédure d’appropriation du butin», in M. Coudry e M. Humm (eds.), «Praeda». Butin de
guerre et société dans la Rome républicaine/Kriegsbeute und Gesellschaft im republikanischen Rom, Estugarda, Franz
Steiner, 2009, pp. 81-102; IDEM, «Devenir riche par le butin: données quantitatives dans l’empire romain», in C.
Baroin e C. Michel (eds.), Richesse et société (Colloques de la MAE, 9), Paris, 2013, pp. 66-80.
130
J. P. Roth, The Logistics of the Roman Army at War, pp. 230-231.
62
análogas ao funcionamento das summoriai atenienses131. Assim, o pagamento do soldo
também se alicerçava no sistema censitário. Os tribuni aerarii constituíam
efectivamente uma ordem, cuja lista oficial de membros, distribuídos pelas tribos, era
elaborada pelos censores. A partir de 214 a. C., solicitou-se às viúvas e aos órfãos,
isentos do tributum, que contribuíssem para os «subsídios» relativos às montadas e às
forragens dos cavaleiros (Lívio, Ab Urb. cond. 24.18.13-14).
Todavia, a equiparação do pagamento do soldo a uma leitourgia132 só seria aplicável
no quadro de uma cidade-estado, em que os soldados voltavam às suas casas depois da
realização de campanhas temporalmente limitadas. Um tal sistema pressupunha que os
legionários estivessem presentes em Roma para receber as remunerações. Assim, seria
apenas ao partirem para a guerra que eles tocariam numa primeira parte do seu soldo.
Depois teriam de aguardar pelo seu regresso para receber um complemento, em função
do número de dias que tinham passado efectivamente em campanha, uma vez que
parece improvável que os tribunos do tesouro se deslocassem com regularidade aos
teatros de operações para efectuar pagamentos frequentes. Por seu turno, o testemunho
de Varrão (A vida do povo romano = fragmento de Nonnius Marcellus, p. 853 L)
confirma que esse pagamento só ocorria uma vez por ano ou, então, uma de seis em
seis meses, consoante a duração e a localização das actividades bélicas.
É usual ler-se em apreciável número de obras que, além do soldo e parte dos despojos,
os milites podiam ganhar recompensas honoríficas ao notabilizar-se em façanhas
individuais. Efectivamente, Políbio (Hist. 6.39) evoca recompensas hierarquizadas: a
lança honorífica (gaesum) concedida ao que tivesse ferido um inimigo, uma taça ao que
eliminasse de despojasse um infante, uma phalera (placa de metal brilhante), se o
mesmo fizesse em relação a um cavaleiro adverso, uma corona muralis de ouro para o
primeiro a subir até ao topo de um bastão inimigo, e uma corona civica (coroa de
louros) para aquele que salvasse a vida de um concidadão. No entanto no período
histórico em apreço (entre finais do século IV e meados do III a. C.), é muito possível
que se atribuiria como único prémio a hasta, para assim recompensar a bravura
demonstrada em combate133.
Ao escrutinarmos as fontes literárias, epigráficas e iconográficas relativas aos dona
militaria (as condecorações militares), datando entre o século I a. C. e o II d. C.,
131
P. Cosme, L’armée romaine, p. 20. Em Atenas, as summoriai (summoría no singular) consistiam em grupos de
contribuintes que, em vez de pagarem individualmente pela manutenção de um trirreme, o faziam colectivamente.
Trata-se de uma instituição que remonta à década de 350 a. C.
132
Dever de estado imposto anualmente aos cidadãos mais ricos de Atenas, que tinham de pagar, entre outras coisas,
pela encenação de peças teatrais em festivais, pelas despesas com o funcionamento de um trirreme e outras relacionadas
com o esforço de guerra. Para este assunto: G. L. Cawkwell, «Athens at War», in P. V. Jones (ed.), The World of Athens,
Cambridge, Cambridge University Press, 1984, pp. 280-281.
133
C. Ricci, «Sul significato originario dell’hasta donatica», Rev. Ét. Milit. Anc. 4 (2009); S. E. Phang, Roman military
Service: Ideology and Discipline in the Late Republican and Early Principate, Cambridge, 2008, pp. 179-200.
63
constatamos que, neste período, as atestações são mais numerosas e diversificadas 134,
fornecendo uma série de elementos para a investigação da génese do «sistema romano
de condecorações militares»135. A distinção e o redimensionamento dos dona militaria
começaram no tempo de Augusto e dos seus sucessores. Mas é difícil acreditar, segundo
Cecilia Ricci136, que esta prática se tenha convertido alguma vez num sistema rígido. À
fase de ajustamento seguiu-se a estabilização do costume; mas, pouco depois, as
condecorações desapareceram gradualmente. É assunto que merecerá mais
comentários num dos próximos capítulos sobre o exército romano durante o Império.
134
Com base no livro de V. Maxfield (The Military Decorations of the Roman Army, Londres, 1981, pp. 42-54,
publicação que resultou do texto da tese de doutoramento da autora, defendida anos antes, a qual também
consultámos), dois terços das fontes literárias reportam-se à época republicana, ao passo que as epigráficas apenas
surgem a partir do século I antes da nossa era.
135
Expressão habitualmente utilizada por vários estudiosos: cf. V. Maxfield, The Military Decorations, pp. 63-65; D.
Rüpke, Domi militiae. Die religiöse Konstruktion des Kriegs, Estugarda, 1990, p. 204; M. A. Speidel, «Augustus’
militarische Neuordunung und ihr Beitrag zum Erfolg der Imperium Romanum. Zu Heer und Reichskonzept», in
IDEM, Heer und Heerschaft im römischen Reich der hohen Kaiserzeit, Mavors 16, Estugarda, 2007, p. 25.
136
«Dai dona ai donativa. Fine dello scambio simbolico tra comandante e soldati?», in Miti di Guerra, Riti di Pace. La
guerra e la pace: un confronto interdisciplinare, Edipuglia, 2011, pp. 235-240.
64
Esta inscrição nas centúrias equestres manteve-se essencial, mesmo sendo o papel
desempenhado pela cavalaria romana no campo de batalha relativamente reduzido:
com efeito, eram os detentores do censo equestre que tinham vocação para comandar
as forças armadas e exercer as magistraturas. Os magistrados superiores – pretores e
cônsules – investidos do imperium deviam, assim, manifestar capacidade tanto para
governar a Urbs em tempo de guerra, como para a defender em tempo de guerra. Além
disso, todo o candidato a uma magistratura tinha de cumprir o serviço militar. No
entanto, contrariamente aos infantes, os cavaleiros realizavam somente 10 campanhas
(=10 anos), antes de poderem candidatar-se à questura, que significava a primeira
etapa do cursus honorum, a «carreira das honras».
Findos esses dez anos, os cidadãos pertencentes às centúrias equestres desfilavam
solenemente no Forum, segurando os cavalos pelas rédeas, diante dos censores, que se
encontrariam junto ao templo dos Cástores, divindades tutelares dos cavaleiros.
Durante a cerimónia, chamada recognitio equitum, os magistrados verificavam as
condições em que estavam as montadas e o cumprimento das obrigações militares de
tais cidadãos. Ainda antes de acederem à pretura ou ao consulado, os últimos podiam
ter a oportunidade de ocupar postos de comando no exército enquanto tribunos
(tribuni militum). Estes oficiais (seis por cada legião), tanto eram indigitados pelos
detentores do imperium como eleitos pelos comitia tributa para as quatro primeiras
legiões a partir de 207 a. C. Nestes unidades, as legiões consulares, só dez dos tribunos
tinham cumprido dez campanhas na cavalaria, os demais dez perfazendo apenas cinco.
Alguns já pertenceriam a famílias senatoriais, ao passo que outros provinham de
famílias que possuíam o censo equestre mas em que nenhum membro tomara assento
no Senado. Neste sentido, para os últimos, o tribunato militar representava um meio
inequívoco de promoção social.
137
N. Fields, Roman Republican Legionary 298-105 BC, pp. 14-16.
65
número regulamentar de campanhas. Esta declaração de licenciamento é conhecida
pelo vocábulo missio. Investidos do seu imperium, os cônsules convocavam então, por
meio de um édito, os cidadãos mobilizados num prazo de trinta dias no Capitólio, no
cimo do qual adejava um estandarte vermelho (Políbio, Hist. 6.19.1-6). Afixava-se o
édito na Urbs e o seu teor era proclamado por pregoeiros públicos (praecones) nos
campos vizinhos.
Desde o fim da Segunda Guerra Púnica ou pouco antes, o recinto da Villa Publica, já
usado para o recenseamento no Campo de Marte, veio a substituir o Capitólio, que se
tornou demasiado exíguo em face do aumento do corpo cívico e dos efectivos a
mobilizar. Os cônsules começavam por proceder à chamada dos cidadãos convocados,
baseando-se nas tabulae iuniorum dos censores. Deste modo, certificavam-se que
todos estavam presentes, ao mesmo tempo que observavam as suas aptidões físicas e
determinavam eventuais isenções: indivíduos que exerciam certas funções sacerdotais
eram dispensados de servirem nas armas.
Ao procedimento da mobilização chamava-se genericamente dilectus, cujo significado
era idêntico ao da legio, reportando-se à «escolha» ou «selecção». A presença de todos
os cidadãos convocados era obrigatória. No entanto, muitas vezes, os cônsules
convocavam apenas uma parte dos mobilizáveis, eventualmente sorteando os membros
das tribos solicitadas ou cingindo-se a uma classe etária, já que Roma não tinha
necessidade nem meios para arrolar todos os seus cidadãos.
Os que se subtraíssem à prestação do serviço militar incorriam em sanções bastante
severas, que podiam ir até à venda dos transgressores como escravos. O único recurso
para evitar ser mobilizado consistia em apelar aos tribuni plebis. Estes podiam,
efectivamente, opor-se à leva de tropas 138 invocando o seu direito de intercessio, ou
então recusar a mobilização de certos cidadãos em virtude do seu direito de auxilum.
Mas os tribunos da plebe ficavam reduzidos à impotência quando se tratava de uma
leva em massa, o chamado tumultus, decretado em casos de urgência. Nestas ocasiões,
convocavam-se todos os cidadãos, incluindo mesmo os proletarii eram. Determinadas
circunstâncias podiam até exigir a chamada às fileiras daqueles já libertos das suas
obrigações militares, que nessas alturas serviam sob a denominação de evocati139.
Acresce que as possibilidades de intervenção dos tribunos da plebe tornaram-se mais
limitadas, quando o dilectus passou a ter lugar no Campo de Marte, fora dos limites do
pomerium.
138
P. Southern, The Roman Army. A social and Institutional History, pp. 66-67.
139
Para uma abordagem detalhada sobre os evocati, veja-se o artigo de F. Cadiou, «NON MILITES SED PRO MILITE. La
question des evocati à l’époque républicaine», pp. 57-76.
66
II.10. O juramento militar: comentários adicionais
67
Capitólio sobranceira ao Forum, o Tabularium, para servir de depósito arquivístico142.
Quanto à lista dos cavaleiros, ela talvez fosse depositada no Atrium Libertatis, a norte
do Forum.
142
P. Cosme, L’armée romaine, p. 24.
143
A. Holbrook, Loyalty and the Sacramentum in the Roman Republican Army, p. 47ss.
68
Não recuar diante do inimigo, nem ceder ao pânico e correr riscos inusitados eram
atitudes que faziam parte das qualidades que se requeriam dos oficiais subalternos, que
estavam em contacto directo com os legionários (Políbio, Hist. 6.24.9). A divisão da
legião em subunidades necessitava, de facto, de quadros bastante numerosos para
garantir uma plena eficácia táctica. Afora o comandante-chefe detentor do imperium e
dos tribunos militares, havia 60 centuriões por legião, ou seja, um por cada centúria e
dois por cada manípulo. Eles eram escolhidos pelos tribunos entre os soldados que
evidenciassem maior mérito (Políbio, Hist. 6.24.1-2)144. Cabe perguntar se a eleição do
centurião pelas tropas depois de uma acção particularmente brilhante, atestada em
circunstâncias excepcionais sob o Império e em períodos marcados por guerras civis,
não remontará aos tempos republicanos. A utilização do vocábulo suffragium para
designar esta prática e a analogia com o título de tribunus militum a populo talvez
sugiram essa possibilidade, mesmo na falta de casos documentalmente conhecidos.
Em todo o caso, o sufrágio precisava de ser avalizado pelo detentor do imperium ou,
pelo menos, pelos tribunos. Mas tratar-se-ia, ainda, de uma nomeação temporária
vigente somente no contexto da duração de uma só campanha. Assim, antigos
centuriões não seriam necessariamente reintegrados neste posto por ocasião de uma
campanha subsequente. No século II a. C., o centurionato continuaria a possuir um
carácter provisório, o que não deixou de provocar descontentamentos, como o
testemunham os protestos de certos centuriões que se viram retrogradados no início da
guerra contra Perseu da Macedónia.
Mas cedo se esboçou uma hierarquia nos centuriões, vindo o primeiro centurião
nomeado a tomar assento no estado-maior de legião 145. Cada centurião escolhia um
optio para coadjuvá-lo. Os dois centuriões de cada manípulo designavam igualmente os
dois porta-insígnias do mesmo (Políbio, Hist. 6.24.3-8). Apreende-se, a custo, a
existência destes oficiais subalternos para os primeiros séculos da República. Contudo,
estes já se diferenciavam radicalmente dos oficiais superiores - os tribunos e os
magistrados – pela sua proximidade em relação aos simples soldados, de cujas fileiras
tinham saído. Quanto à cavalaria, estaria enquadrada de acordo com princípios
idênticos: existiam 300 cavaleiros em cada legião, repartidos em dez turmae; cada
turma tinha à cabeça três decuriões secundados, cada um, por um optio (Políbio, Hist.
6.25).
144
Para uma visão sintética das etapas mais recuadas do centurionato: R. D’Amato, Roman Centurions 753-31 BC. The
Kingdom and the Age of Consuls, pp. 11-23. O primeiro exemplo conhecido de um centurião (século V a. C.)
corresponde a Lucius Siccius Dentatus, que Aulo Gélio (Noctes Atticae 2.11) recorda como sendo o «Aquiles romano».
No entanto, subsistem dúvidas se não se trata de uma figura lendária, ainda que provavelmente bebendo inspiração
num homem que realmente terá existido.
145
Ibidem, p. 20.
69
Em resumo, a organização militar da Roma republicana conservou durante largo
tempo uma natureza censitária bem marcada, ao mesmo tempo que manifestou
resquícios de primitivos rituais como o juramento. No entanto, a evolução das
condições de guerra conduziram ao estabelecimento de um soldo financiado por uma
contribuição fiscal, provavelmente no decurso do século IV a. C. O equipamento e as
tácticas manipulares passaram a assentar mais nas diferenças etárias entre os
combatentes do que nas distinções estritamente censitárias.
70
«Tornei-me soldado no consulado de Publius Sulpicius e de Gaius Aurelius [200 a. C.]. No
exército que se enviou por mar para a Macedónia, fui soldado durante dois anos contra o rei
Filipe; no meu terceiro ano, pelo meu valor, Titus Quinctus Flaminius nomeou-me centurião do
décimo manípulo dos hastati. Depois da derrota de Filipe e dos Macedónios, e após
regressarmos a Itália e sermos desmobilizados, parti, de imediato, como voluntário com o
cônsul Marcus Porcius para a Hispânia [195 a. C.] … Este general considerou-me digno para ser
nomeado centurião da principal centúria dos hastati».
«Pela terceira vez, novamente, voluntariei-me para o exército enviado contra os Etólios e o rei
Antíoco [195 a. C.]. Através de Manius Acilius, fui indigitado para primeiro centurião dos
principes … Depois, em duas ocasiões, servi em legiões que realizaram campanhas anuais. A
seguir, por duas vezes, estive em campanha na Hispânia, numa sob o pretor Quintus Fulvius
Flaccus, na segunda sob Tiberius Sempronius Gracchus [181-179 a. C.]. Por meio de Gracchus
fui trazido até casa, no meio daqueles que, pelo seu valor, vieram consigo da sua província; a
pedido de Tiberius Gracchus voltei à província».
«Quatro vezes, no espaço de poucos anos, fui primus pilus, 34 vezes condecorado, pela minha
bravura, por generais; recebi seis coronae civicae. Cumpri 22 anos de serviço no exército e
tenho mais de cinquenta anos de idade […] Mas, por favor, entendei estes comentários como
traduzindo simplesmente a minha situação. Por mim, desde que alguém que arrole um exército
me achar um soldado adequado, eu nunca suplicarei para sair das fileiras» (Tito Lívio, Ab Urb.
cond. 42.34, abrev.)146.
71
apreciável «corrida» pelos despojos, uma quinta maior e mais recursos para a família
por volta de 171 a. C. Ainda assim, 22 anos de serviço militar era muito tempo e, em
168, se Ligustino regressou vivo da campanha, completou um quarto de século a operar
na milícia. A sua dedicação ao serviço militar, ainda que descontínua, quase prefigura
os profissionais da guerra dos tempos subsequentes.
148
Sobre as Legiones Cannenses: P. A. Brunt, Italian Manpower, 225 BC-AD 14, Oxford, 1971, pp. 419-420, 648, 652,
654-656.
72
violentamente, como aconteceu na Hispânia, em 206 a. C., quando uma unidade se
amotinou por algum tempo (Políbio, Hist. 11.25-30; Lívio, Ab Urb. cond. 28.24-29),
eclodindo outra revolta envolvendo homens que estavam sob as ordens de um dos
comandantes de Ligustino, Fúlvio Flaco (Fulvius Flaccus; Lívio, Ab Urb. cond. 40.35.5-
7; 36.4, 36.10-11)149.
73
C., cuja interpretação é assaz delicada na medida em que se baseia em textos
fragmentários, não devem conduzir a exagerar o impacto das guerras hispânicas sobre
as transformações que se operaram na cidade romana nesta altura.
Ainda há uma corrente historiográfica que continua a atribuir ao palco de operações
da Hispânia uma natureza muito específica, o que é discutível 153. O medo que a
peculiaridade das guerras ibéricas alegadamente infundiu na Urbs aparece na
qualidade de um lugar-comum herdado da tradição antiga 154. Sem negarmos as
dificuldades reais experimentadas pelos exércitos romanos face aos Celtiberos e aos
Lusitanos, parece-nos, todavia, excessivo atribuir aos conflitos desenrolados na
Península Ibérica um particularismo que muitos académicos aceitaram, apoiados numa
documentação que, na realidade, se afigura bem menos explícita155.
Assim, quanto à atitude dos Romanos face ao serviço militar e a sua evolução, não nos
devemos contentar em invocar as guerras pretensamente repulsivas, mas antes
perguntarmos o que significava, concretamente, ser um cidadão-soldado nesta época 156.
Implicaria este estatuto, por definição, uma vontade permanente de todos homens se
alistarem nas legiões? Enunciada deste modo, a ideia é absurda, mas foi àquilo a que se
chegou, sem o dizer, a hipótese segundo a qual se teria sucedido a um período quase
ideal, em que os cidadãos serviam de boa vontade no exército (formando autênticos
cidadãos-soldados), um outro, em que eles teriam, em contrapartida, deixado de
desejar ingressar nas fileiras, em massa, o que reflectiria uma desagregação do laço
entre o cidadão e o soldado. Cabe não enfatizar demasiado o contraste entre os começos
153
O que F. Cadiou procurou demonstrar na sua obra Hibera in terra miles. Les armées romaines et la conquête de
l’Hispanie sous la République (218-45 av. J.-C.), Madrid, 2008.
154
A impopularidade das campanhas hispânicas é um dos argumentos mais frequentemente invocados para presumir a
existência de significativas mudanças evolutivas nas condições do serviço militar a partir de meados do século II a. C.: E.
Gabba, Esercito e società nella repubblica romana, Florença, 1973, p. 28; W. V. Harris, War and Imperialism, p. 49; J.
K. Evans, «Resistance at Home. «The Evasion of Military Service in Italy during the Second Century BC», in T. Yuge e
M. Doi (eds,) Forms of control and Subordination in Antiquity. International Symposium for Studies on Ancient
Worlds (Susono City, 5-8 January 1986), Tóquio Leiden, 1988, p. 124; P. Connolly, «The Roman Army in the Age of
Polibius», in J. Hackett (ed.), Warfare in the Ancient World, Londres, 1989, pp. 149-168. Reencontramos o mesmo
postulado em publicações mais recentes: E. García Riaza, Celtíberos y lusitanos frente a Roma. Diplomacia y derecho
de guerra, Vitória, 2002, pp. 155-156; D. S. Potter, «The Roman Army and the navy», in H. I. Flower (ed.), The
Cambridge Companion of the Roman Republic, Cambridge, 2004, pp. 79-80; J. Serrati, «Warfare and the state», in P.
Sabin, H. Van Wees e M. Whitby (eds.), The Cambridge History of Greek and Roman Warfare. Volume I, Cambridge,
2007, pp. 495-496; L. De Ligt, «Roman Manpower Resources and the Proletarianization of the Roman Army in the
Second Century BC», in E. Lo Cascio e L. De Blois (eds.), The Impact of the Roman Army (200 BC-AD 476): Economic,
Social, Political, Religious and Cultural Aspects. Proceedings of the 6th Workshop of the International Network Impact
of Empire, Leiden/Boston, 2007, p. 50; C. Wolff, Déserteurs et transfuges dans l’armée romaine à l’époque
républicaine, Nápoles, 2009, p. 72.
155
Sobre a questão da especificidade atribuída às guerras hispânicas, cf. F. Cadiou, Hibera in terra miles. Les armées
romaines et la conquête de l’Hispanie sous la République, pp. 173-276.
156
Devido às mutações profundas que afectaram a sociedade romana na era da expansão mediterrânica, parece evidente
que a própria noção de cidadão-soldado não pode revestir exactamente as mesmas implicações em meados do século III
a. C. e no início do I. Sobre esta perspectiva, afigura-se rica a abordagem relativamente recente de P. Erdkamp (cf. «The
Transformation of the Roman Army in the Second Century BC», in T. Ñaco e I. Arryás [eds.], War and Territory in the
Roman World, BAR Inter. Ser. 1530, Oxford, 2006, pp. 48-50, para quem a evolução da relação existente entre os
Romanos e a obrigação da militia «was not simply a matter of the dislike of a particular theatre of war». No entender de
Erdkamp, terão sido, acima de tudo, o desenvolvimento económico e o fenómeno da urbanização da Itália,
características do século II a. C., que teriam modificado gradualmente a atitude de uma parte dos adsidui face ao serviço
militar: «Increased avoidance of military service may not have been a sign of moral decline but of economic change».
Doravante, a participação numa campanha militar não seria mais considerada como a melhor oportunidade para melhor
a sua situação económica.
74
da República e a fase da expansão ultramarina, de outro modo arriscamo-nos a
reproduzir um dos topoi mais difundidos da literatura greco-latina.
O serviço militar, bem como o imposto que lhe estava associado, encarou-se desde a
origem «como um encargo pesado e constrangedor», o que explica, por um lado, a
vontade permanente dos cidadãos de fazerem respeitar os seus direitos neste domínio,
designadamente em relação às vacationes e aos stipendia iusta, assim como, por outro,
o cuidado manifestado pelo Senado em velar pela sua repartição 157. Tal como em termos
fiscais, a imunidade face à conscrição sempre foi um privilégio desejável, mas ela viu-se
concedida parcimoniosamente, por razões bem particulares, aspecto que Claude
Nicolet salientou158. Basta lembrar o caso do jovem cavaleiro Aebutius, a quem coube o
mérito de haver denunciado ao cônsul o escândalo das Bacanais em 186 a. C., que
recebeu como recompensa uma dispensa do serviço militar 159.
Uma repartição desigual deste encargo no interior do populus pervertia o ideal cívico e
é por esta razão que este tema aparece explicitamente nos discursos popularis a partir
de finais do século II. Estas observações não contradizem a imagem que temos de uma
sociedade romana dotada de uma cultura profundamente militarista. Para concluir
diremos que foi precisamente pelo facto de o serviço militar se manter altamente
considerado por todos como uma dimensão essencial do estatuto e da actividade do
cidadão romano, que ele só pode reflectir para nós a complexidade da relação entre o
indivíduo e a cidade, a qual não podemos resumir através de posturas simplistas e
contrapostas, como a adesão incondicional ou a total rejeição.
Aqui não abordamos as repercussões que estas guerras internacionais tiveram a nível
económico e demográfico: interessa-nos mais realçar o facto de que tais conflitos
significaram um elemento constante na vida dos Romanos e do resto dos Italianos,
ponto bem ilustrado pela carreira de Ligustino. A procura regular de recrutas
experientes foi um efeito de outra característica das guerras em que os Romanos
participaram após 264 a. C.: o tamanho, sem precedentes, das forças militares em
157
F. Cadiou, «Le dilectus de l’année 151…», p.. 30.
158
Le métier de citoyen dans la Rome républicaine, Paris, 1976, p. 139.
159
Tito Lívio, Ab Urb. cond. 39.9.2 e 19.3-4.
75
actividade. É certo que o fenómeno bélico constituiu um rasgo típico da sociedade
romana desde os primórdios da Urbs, como a própria tradição o reconheceu. O Templo
de Jano foi encerrado, como indicação de paz total, supostamente apenas duas vezes
antes do tempo de Augusto – uma sob a égide do rei Numa Pompílio (Lívio, Ab Urb.
cond. 1.19.3) e outra em 235 a. C160.
Durante o século III, as legiões compreendiam, em princípio, 4200 soldados romanos
de infantaria e 300 de cavalaria (os últimos recrutados entre os cidadãos mais
desafogados), mais as tropas latinas e italianas que totalizariam o dobro desses
efectivos. Na Primeira Guerra Púnica, dois exércitos consulares, cada qual com duas
legiões, eram reunidos anualmente. De 261 a 249, e depois, de novo, em 242-241,
precisaram-se mais recrutas para as empresas romanas no mar, obtidos não entre os
cidadãos romanos, mas entre os aliados italianos que habitavam na faixa litorânea.
Num cálculo moderado, a frota enviada para invadir o Norte de África, em 256 a. C.,
englobaria 69 000 tripulantes; em 253, outra, que realizou uma incursão na mesma
região, teria idêntico número de homens, e em 249, quando duas frotas consulares
sofreram desaires, devido tanto ao inimigo como à força dos elementos naturais, as
suas equipagens combinadas ultrapassariam os 80 000 homens 161.
Os esforços envidados para arrolar tantos efectivos foram notáveis. Quando uma
grande frota e várias legiões partiam em campanha, como sucedeu em 256 ou 249, a
península itálica teria mais de 100 000 homens em condições de serem mobilizados.
Numa estimativa aproximativa, nestes anos, cerca de 12% dos homens disponíveis
estavam nas fileiras162. Isto não conheceu precedentes, embora fosse um conjunto de
iniciativas descontínuas e as suas repercussões se afigurem pouco claras. Surgiram
necessidades ainda maiores: foram convocados uns 155 000 homens para enfrentar,
em 225 a. C., uma invasão gaulesa, e um número um pouco menor (145 000, para
exércitos e frotas) no começo da Guerra de Aníbal:no seu ponto álgido, em 212-211,
com 25 legiões em Itália, na Gália Cisalpina, na Hispânia e na Sicília, e mais de 200
navios de guerra, o total de Romanos, Latinos e Italianos ascenderia a uns 110 000
homens163. Estamos perante um número extraordinário, para uma península cujos
recursos humanos disponíveis, pouco após 218, atingiriam 770 000 homens, segundo
Políbio (Hist. 2.24), cifra ainda mais espectacular, se corrigida para um valor mais alto:
875 000.
160
Cf. MRR , l. 223.
161
Sobre a origem das tripulações e os totais da unidades das frotas: J. H. Thiel, Studies of the History of Roman Sea-
Power before the Second Punic War, Amesterdão, 1954, pp. 73-96; J. F. Lazenby, The First Punic War. A Military
History, Londres, 1996, pp. 61-141
162
Em 256 a. C., 292 000 cidadãos foram recenseados (Eutrópio, 2.18). Em 225, a ratio dos Romanos em relação a todos
os Italianos, segundo os números apontados por Políbio, seria de aproximadamente 1: 2.8, pelo que no caso do ano de
265, isto significaria uns 817 000 italianos ao todo.
163
P. A. Brunt, Italian Manpower, pp. 417-428, 432-433, 669-670 e 671-686 (calculando cerca de 300 marinheiros e 40
«fuzileiros» por cada navio).
76
A seguir a 200 a. C., com os conflitos ao longo do Mediterrâneo, da Hispânia à Ásia
Menor, os efectivos rapidamente voltaram a subir: cerca de 212 000 em 190; no
derradeiro ano da Terceira Guerra Macedónica, ainda uns 150 000; em 146, quando
Cartago e Corinto foram saqueadas, a frota e as legiões (cada uma com 5 500 soldados e
um número idêntico de contingentes aliados) alcançaram um número similar. Em cada
década, entre 225 e 146 a. C., existiriam 8%, pelo menos, e durante a Segunda Guerra
Púnica, até 29% de Romanos com 16 anos de idade a cumprirem o serviço militar.
Por seu turno, embora a proporção entre cidadãos e aliados tenha variado ao longo
dos mesmos decénios, as exigências impostas aos socii latinos e italianos não foram,
decerto, mais leves, pelo contrário, manifestaram-se até mais pesadas. A sociedade
achava-se, portanto, permeada pelo fenómeno bélico num regime quase permanente.
Não restam dúvidas de que a maioria dos Romanos e Italianos terá servido nas armas,
ou que parentes seus o fizeram ou, então, ambas as coisas 164.
Nem sempre era possível repatriar anualmente as unidades militares romanas para
Itália, a fim de as substituir por outras novas num processo rotativo. Além dos
problemas logísticos, em razão das distâncias e dos gastos com os transportes, tal
sistema tinha o inconveniente de render soldados que já haviam adquirido certa
experiência no terreno, por recrutas (tirones), obviamente menos preparados para
participar em operações bélicas. Mais do que dissolver as legiões no fim de um ano de
campanha para reformar outras novas, pareceu mais pertinente renová-las em parte
mediante o envio, o mais regular possível, de tirones, que substituiriam os legionários
feridos, doentes ou mortos, assim como os que tivessem terminado o tempo de serviço.
Estes contingentes procedentes de dilectus parcelares encontram-se mencionados nas
fontes antigas sob a designação de supplementa.
O caso bem documentado das guerras na Hispânia ajuda a compreender melhor este
aspecto: as cifras dos supplementa que Tito Lívio fornece para o período compreendido
entre 206 e 168 a. C. permitem reconstituir, nas suas grandes linhas, um sistema de
rendição bastante sofisticado, cuja razão só poderá ter sido o de repartir mais
164
As cifras polibianas para 225 a. C. foram objecto de debates académicos: F. W. Walbank, A Historical Commentary
on Polybius, 1, pp. 196-203; P. A. Brunt, Italian Manpower, pp. 44-60. Quanto a uma estimativa «corrigida», ibidem, p.
54. No que respeita aos homens em serviço entre 200 e 146 a. C.: K. Hopkins, Conquerors and Slaves, Cambridge, 1978,
pp. 33-35; P. Erdkamp, Hunger and the Sword. Warfare and Food Supply in Roman Republican Wars (264-30 BC),
Amesterdão, 1998, pp. 263-268.
77
equitativamente o dever do serviço militar entre os mobilizáveis, facilitando a
substituição regular dos soldados165. Nada leva a duvidar que este sistema não se
generalizou, nem que o seu princípio não se possa extrapolar para os períodos
subsequentes, sobre os quais carecemos de testemunhos tão precisos como o de Tito
Lívio.
Sublinhemos também que o Senado romano, do qual dependiam as decisões sobre os
efectivos e as levas, parece ter procurado assegurar em toda esta matéria uma
verdadeira gestão. O exemplo atrás mencionado de Espúrio Ligustino, de que Lívio
transmitiu o discurso proferido em público por ocasião do dilectus de 171 a. C. ilustra
tal princípio de rotatividade, no qual, em contrapartida, não se hesitava em mandar
regressar um soldado ao mesmo teatro de operações após uma interrupção
momentânea166. Se a importância desta noção de descontinuidade no cumprimento do
serviço militar faz parte, por exemplo, dos argumentos de Nathan Rosenstein 167 para
matizar o desenraizamento dos camponeses mobilizados, importa acrescentar que se
tratava de uma descontinuidade organizada em larga medida pelo Estado romano que,
longe de abandonar comodamente os cidadãos incorporados à sua sorte, como
pretendeu Arnold J. Toynbee168 para o século II, evitava, pelo contrário, deixá-los sob as
insígnias durante demasiado tempo. As próprias reivindicações em torno do respeito
pelas isenções, na segunda metade do século II a. C. só podem entender-se neste
contexto169.
Sabe-se que, em vários momentos, o Senado obrigou os generais enviados para a
Hispânia a «pouparem» os veteres milites em proveito dos tirones, como aconteceu em
145 ou em 140 a. C170. Muitas vezes interpretados de formas diversas, estes episódios
testemunham, acima de tudo, uma vontade deliberada de observar o princípio do
recrutamento, poupando o mais possível os menos jovens dos iuniores, os quais, por
volta dos 30 anos de idade, se costumavam casar e fundar uma família, isto se nos
escorarmos nos estudos dos especialistas em nupcialidade romana 171.
Para os soldados que serviam no Ultramar vários anos consecutivos, era muitas vezes
impossível fazerem-se recensear em Roma. Uma passagem de Lívio (Ab Urb. cond.
165
Veja-se F. Cadiou, Hibera in terra miles. Les armées romaines et la conquête de l’Hispanie sous la République, pp.
157-170.
166
IDEM, «À propos du service militaire dans l’armée au IIe siècle av. J.-C. Le cas de Spurius Ligustinus 76-90.
167
Rome at War: Farms, Families and Death in the Middle Republic, Chapell Hill/Londres, 2004, p. 103. Esta
interpretação da militia constitui um prolongamento de reflexões mais antigas, que nem sempre tiveram o eco que
mereceriam: tal é o caso, por exemplo, dos comentários tecidos por E. S. Gruen (The Last Generation of the Roman
Republic, Berkeley/Los Angeles/ Londres, 1974, pp. 379-380) num capítulo que se perfila como uma das apresentações
mais penetrantes e equilibradas sobre a evolução social do exército cívico no século I a. C.
168
Hannibal’s Legacy: The Hannibalic War’s Effects on Roman Life, II, Londres/Nova Iorque/Toronto, 1965, p. 75. A.
Toynbee acreditou, de facto, que o Senado abandonou à sua sorte os «forgotten armies» nas províncias.
169
E.g., em 151 (Lívio, Per. 48.16), e em 138 (ibidem, 55.3).
170
Para 145: Apiano, Ib. 65; para 140: ibidem, 78.
171
N. Rosenstein, Rome at War…, pp. 82-86.
78
29.37.5) sublinha os problemas com que deparavam os censores para exercerem a sua
função em 204 a. C. Doravante seria mais apropriado efectuar recenseamentos a nível
local para se arrolarem tanto os cidadãos romanos como os vassalos. De facto, era o
meio mais eficaz para avaliar os efectivos a renovar e calcular o montante dos soldos a
pagar. Os governadores das províncias em causa e os quadros das legiões terão sentido,
portanto, a necessidade de dispor de documentos actualizados em relação a cada uma
das unidades, a fim de gerirem mais facilmente o pessoal militar, colocado sob a
autoridade dos mesmos vários anos sucessivos, e de darem conta disto a Roma. Assim,
podiam contabilizar os anos de serviço (stipendia) e as baixas sofridas, sem que os
soldados ou os censores se vissem obrigados a deslocar-se: a mobilidade da
documentação começou a substituir-se à mobilidade dos homens.
Para distinguirem melhor as legiões mais numerosas e mantidas nos teatros de
operações anos a fio, as autoridades passaram a atribuir-lhes um número. Observa-se
esta numeração das legiões desde a Segunda Guerra Púnica. Sob a República, o sistema
de numeração das legiões era relativamente fácil de compreender: cada uma das
últimas tinha, aquando da sua criação, um número que dependia da quantidade de
legiões existente nesse ano. Os números I a IV parecem ter sido reservados para as duas
legiões mobilizadas por cada cônsul. Mas, como referimos, nem todas as legiões
formadas anualmente seriam dissolvidas ao mesmo tempo. Logicamente, a numeração
era então susceptível de mudar em cada ano, quando o número de legiões estivesse
completo ou diminuído, em função das necessidades do momento: uma legião, cujo
pessoal não houvesse sido inteiramente renovado de um ano para outro, podia ver
atribuído um número diferente.
A duração das operações bélicas excedia cada vez mais o espaço de um ano, o tempo
em que, segundo a lei, estavam vigentes as magistraturas. A continuidade indispensável
de certas campanhas tornava necessário o prolongamento dos poderes dos magistrados
que tinham recebido a tarefa de as conduzir. Estas missões encontraram-se na origem
do conceito romano de provincia: com efeito, antes de corresponder a um território
79
conquistado e bem delimitado a administrar, o termo latino provincia designava a
missão atribuída a um magistrado, podendo ela ser tanto de ordem militar como
administrativa ou jurídica. Se nos ativermos a Lívio (Ab Urb. cond. 8.23), o primeiro
caso de prorrogação dos poderes de um magistrado sobreveio durante as Guerras
Samnitas. Mas esta medida generalizou-se, sobretudo a partir da Segunda Guerra
Púnica. Em contrapartida, o recurso à ditadura, isto é, a um comando único por seis
meses, não se atesta mais como medida para afastar uma ameaça militar a seguir à
Segunda Guerra Púnica. O último que a exerceu foi Quinto Fábio Máximo, escolhido
pelo Senado para aplicar uma estratégia temporária contra Aníbal em solo itálico (217
a. C.). Não há dúvida que a limitação dos seus poderes a um período de seis meses
tornava a ditadura menos adaptada às novas condições em que se fazia a guerra.
No século III a. C., o Senado, na sua primeira sessão anual (no dia 15 de Março, até
153 a. C., que depois passou para 1 de Janeiro), podia decidir prorrogar o imperium dos
magistrados já investidos nos cargos para o ano seguinte. O senatusconsultum de
prorrogação era ser também ratificado por um plebiscito. Uma lei Sempronia, a
respeito das províncias, de Caio Graco (123 a. C.), estipulou que os senadores
determinariam quais seriam as províncias confiadas aos cônsules, antes da reunião dos
comícios eleitorais. Uma vez eleitos os magistrados, a repartição das províncias entre
eles e os promagistrados era objecto de um sorteio no Senado. Como a prorrogação ia
contra o princípio da anualidade das magistraturas, tentou-se evitar que se
desenvolvessem eventuais manobras, que poderiam levar a que certos comandos
provinciais servissem de trampolim para a instauração de um poder pessoal.
Os tribunos da plebe, ao contrário do que antes sucedera, já não podiam exercer o seu
direito de intercessão, salvo na atribuição das províncias pretorianas. Mas o Senado
conservava a possibilidade de qualificar uma província de pretoriana ou consular. Por
outro lado, constata-se a presença ainda frequente, em várias províncias, de homens
pertencentes à mesma família ao longo de duas ou três gerações. Após a derrota
romana pelos Cimbros perto de Arausio (actual Orange, França), em 105 a. C., um
plebiscito revogou o imperium do procônsul Quinto Servílio Cépio (Caepio), o que
nunca até aí havia acontecido. Em 52 a. C., uma lei Pompeia fixou um prazo de cinco
anos entre o exercício da pretura ou do consulado, e o direito de tirar à sorte uma
província, pretoriana ou consular, limitando a um só ano a duração de um governo
provincial.
A prorrogação consistia originalmente em prolongar uma magistratura para além do
seu termo legal. Contudo, este procedimento conduzia à distinção da magistratura, no
seu sentido estrito, que expirava, dos poderes que a mesma tinha conferido ao seu
titular, os quais se viam temporalmente dilatados. Mas os últimos apenas se podiam
80
exercer fora do pomerium, na medida em que a prorrogação só dizia respeito ao
imperium militiae. Atribuiram-se, então, competências e poderes a indivíduos que não
tinham forçosamente exercido a magistratura que aos mesmos correspondia. Um
procônsul não era, pois, necessariamente, um antigo cônsul, dando-se o caso de tratar-
se de indivíduos que somente ocuparam o cargo de pretor, ou até que não tivessem
exercido qualquer magistratura da carreira das honras, o chamado cursus honorum.
Foi o que sucedeu com o jovem Cipião, o futuro Africano, investido em 211 a. C. do
comando das operações militares contra Cartago na Península Ibérica, com o título de
procônsul.
Os promagistrados172 eram usualmente investidos de um imperium consular. De facto,
só este permitia ao seu detentor delegar poderes a subordinados na sua província.
Podiam, então, beneficiar um questor ou, ainda, oficiais que vieram a desempenhar um
papel cada vez maior, os legados. Num contexto caracterizado pelo aumento do número
das legiões mobilizadas em simultâneo, era necessário, de facto, confiar o mando de
algumas delas a oficiais senatoriais chamados legados. Estes, inicialmente, foram
designados pelo Senado, que os utilizava para controlar os comandantes-chefes
detentores do imperium.
No entanto, no último século antes da nossa era, parece que a sua nomeação caberia
ao magistrado ou ao promagistrado responsável pela condução das operações bélicas.
Assim, os legados recebiam uma delegação mais ampla de competências e atribuições
do que os tribunos militares. Todavia, o principal garante da continuidade da política
militar romana foi o Senado, pelo menos até ao último terço do século II a. C., que
comportava em si mesmo a permanência e a autoridade indispensáveis.
81
apontados por Políbio, é incontestável que se registaram perdas muito significativas
tanto em navios como em tripulantes, como atrás se disse. As baixas sofridas no mar
atingiram sobretudo os socii italianos, dado que os aliados da faixa costeira da
península forneciam a maioria das equipagens.
Na Segunda Guerra Púnica, foram os exércitos romanos a sofrer catástrofes, não só
em Itália, mas também na Gália Cisalpina e na Hispânia. Mesmo que, por exemplo, as
baixas que os Romanos sofreram em Canas se tenham estimado em cerca de 30 000
mortos, o que não é inteiramente convincente, e 10 000 prisioneiros – da mesma forma
que Apiano afirmou (Pun. 134.635) que Aníbal destruiu 400 cidades italianas e
massacrou 300 000 inimigos – a península itálica, em especial a sua metade
meridional, sofreu tremendamente durante quinze anos de guerra. O território romano
per se, fora da Campânia, não foi muito afectado após 217 a. C. No entanto, o census de
203, elaborado com especial cuidado (Lívio, Ab Urb. cond. 29.37.5-6), registou apenas
214 000 cidadãos - embora tenha omitido vários milhares de Capuanos então privados
de direitos civis. O impacto sobre as populações italianas mais leais a Roma terá sido
proporcionalmente muito mais duro, ao passo que os que se bandearam para o inimigo
não só tiveram de fornecer tropas para o esforço de guerra de Aníbal como também,
mais tarde, sofreram as funestas consequências da sua defecção nas mãos dos
Romanos173.
Os conflitos seguintes traduziram-se num contraste que podemos qualificar de
«revolucionário». Nenhum, no Oriente, durou mais do que quatro anos. Os Romanos
registaram baixas bem menores: 700 mortos contra 8000 macedónios em Cinoscéfalas,
em 191, em que Ligustino, a corresponder verdadeiramente a uma figura histórica, terá
participado (Políbio, Hist. 18.27.6; Lívio, Ab Urb. cond. 33.10.7); supostamente 324 em
Magnésia (190), contenda em que o monarca selêucida Antíoco III foi esmagado (Lívio,
Ab Urb. cond. 37.44.2); de acordo com Tito Lívio, na batalha de Pidna, em 168 a. C.,
terão perdido a vida, do lado romano, 100 homens, na sua maioria socii italianos, e
entre os Macedónios, 20 000 (44.42.7-8). Também houve derrotas, haja vista
Callinicus (171), contra os Macedónios (42.57.60), mas nenhuma delas assumiu,
aparentemente, grande magnitude. Houve poucas acções navais e nenhum desaire
significativo. Não obstante as mortes resultantes de ferimentos, escaramuças e
achaques diversos, é provável que as forças romanas possam ter acreditado, no âmbito
das guerras orientais, ser à prova de danos e, em certa medida, invencíveis.
173
Perdas navais e outras: (264-241 a. C.): J. F. Lazenby, The First Punic War, pp. 161-164. Baixas na batalha de Canas:
P. A. Brunt, Italian Manpower, pp. 419, 694-695; Lazenby, Hannibal’s War, Warminster, 1978, pp. 84-85; A.
Goldsworthy, Cannae, Londres, 2001, pp. 191-195; G. Daly, Cannae. The Experience of Battle in the Second Punic War,
Londres/Nova Iorque, 2002, pp. 155-200 (para a descrição da batalha), 198-199 (baixas sofridas pelos Romanos). Sobre
a punição de aliados rebeldes: J.-M. David, The Roman Conquest of Italy, pp. 62-69.
82
Ainda que os conflitos na Hispânia depois de 201 a. C. se caracterizassem por poucos
desfechos rápidos – em vez disso, envolvendo muitas marchas, uma série de assédios e
antagonistas bastante dispersos evidenciando uma resistência frustrante – as forças
romanas eram em número mais reduzido (habitualmente uma legião por cada
província), as baixas muito menores e, entre 179 e 154 a. C., o desenrolar dos
acontecimentos foi largamente pacífico.
No século II antes da nossa era, outras guerras caracterizaram-se pela sua escala
reduzida, haja em vista as operações intermitentes nas montanhas Ligurianas do Norte
de Itália, na Sardenha e na Córsega, assim como ao longo do Adriático, na Ilíria e na
Dalmácia; em geral, estas campanhas obedeceram à obtenção de despojos, escravos e
glória.
83
juramento de obediência (Hist. 6.21.1-3); cada homem mobilizado para o serviço
militar apresentava-se quando tal lhe fosse ordenado (ibidem, 6.26.1-4); as tropas que
formavam a guarda de corpo (extraordinarii) do cônsul eram escolhidas entre os
contingentes dos aliados (ibidem, 6.26.6-9), o que constituía um indubitável «símbolo
de camaradagem e confiança»; os castigos e as recompensas motivavam igualmente
todos os indivíduos – não só os soldados mas também os seus familiares e vizinhos
(ibidem, 6.37.1-39.11). O autor grego também se impressionou com a meticulosidade
existente nos exércitos romanos no que respeita à reunião e à distribuição do produto
de saque numa cidade conquistada, com os efectivos aliados recebendo, assim como os
romanos, o seu quinhão (ibidem, 10.16.2-9)174.
O exemplo mais flagrante da determinação férrea evidenciada pelos Romanos na
guerra radicou, para Políbio, na sua recusa em negociar com Aníbal após a batalha de
Canas, quando praticamente se julgava tudo perdido; e um prisioneiro de guerra a
quem se deixou sair em liberdade condicional, para se deslocar a Roma, viu-se de
imediato enviado de volta ao cativeiro (Políbio, Hist. 6.58; Lívio, Ab Urb. cond. 22.58-
59-10, 61.1-10). As denominadas legiones Cannenses, que por longo tempo sofreram, a
despeito de algumas queixas (Lívio, Ab Urb. cond. 22.5.10-7.4), acabaram por oferecer
sólidas prestações ao longo de todo o conflito: capturaram Siracusa em 211 a. C. e, em
Zama (202), destruíram o último exército de Aníbal.
Quanto a E. Ligustino e os seus camaradas centuriões, mostraram-se suficientemente
resolutos ao protestarem em face do que encararam como um tratamento injusto, mas
depois, suficientemente disciplinados para aceitarem o que o seu comandante havia
decidido (dando Lívio a entender que a decisão estaria, aliás, em conformidade com as
exigências daqueles). Todavia, por vezes, ocorriam atitudes diferentes, acima referidas,
quanto ao serviço militar: não se tratava de uma aversão em relação à guerra, mas
cepticismo, quando se era convocado para campanhas em que não estava em causa a
defesa da pátria, nem havia boas perspectivas de lucro com os despojos.
Naturalmente que os exércitos romanos não corporizavam a perfeição moral, e os
seus historiadores registam muitas falhas e atrocidades175. Os despojos, as expectativas
de obtenção de riquezas, significavam um grande catalisador para alguém se alistar em
campanhas realizadas no estrangeiro. De novo, e à parte da natureza inexorável das
batalhas e perseguições, da tomada de cidadelas e da devastação dos campos, as tropas
podiam tornar-se desmoralizadas, como sucedeu na contenda de Trasimeno (Políbio,
Hist. 3.84.2-14), ou descontrolar-se por completo, como aconteceu no motim eclodido
174
No que toca às pilhagens e aos saques levados a cabo pelos Romanos (não tão «organizados» como nos dá conta
Políbio): Ziolkowski, «Urbs direpta, or how the Roman sacked cities», in J. Rich e G. Shipley (eds.), War and Society in
the Roman World, Londres, 1993, pp. 69-91. Sobre os despojos enquanto único factor, veja-se P. Erdkamp, Hunger and
the Sword, p. 265.
175
Veja-se, a propósito, Joseph Hall, «Brutality and the Roman soldier: Killing beyond the battlefield», Ancient Warfare
VI.1 (2013), pp. 2-6.
84
na Hispânia, em 206 a. C., ou ainda no saque selvático perpetrado em Foceia, em 190
(Lívio, Ab Urb. cond. 37.32.10-13).
Ocasionalmente, os próprios comandantes também exerceram mal as suas funções: a
seguir à batalha de Canas, alguns jovens oficiais quiseram emigrar (Lívio, Ab Urb.
cond. 22.53-5.4-13). Pleminio, o legatus de Cipião-o-Africano, na italiana Locri em
205, cometeu crimes e permitiu que se levassem a cabo outras atrocidades, até fazendo
orelhas moucas aos protestos dos seus tribunos militares (ibidem, 29.9,29.16.4-19.2).
Em 171 a. C., o nada escrupuloso pretor Lucrécio (Lucretius) chegou a incentivar os
seus soldados a agirem com inusitada violência, mesmo contra cidades amigas (ibidem,
42.63.3-11; 43.6.1-3, 7.5-11).
Na Hispânia, nos anos 50 do século I a.C., sobrevieram actos verdadeiramente
hediondos, muitos ordenados pelos violentos governadores Lúculo e Galba e pelos
jovens oficiais mandriões vexados por Cipião Emiliano. Em certos casos, estes
comportamentos lamentáveis provocaram furor em Roma e alguns perpetradores, pelo
menos, vieram a receber castigos, como Plemínio, que morreu na prisão, ou Lucrécio,
que obrigado a pagar uma multa de 1 000 000 asses (29.19.3-21.3; 43.8)176.
176
Lúculo e Galba: MRR, l. 455-457. Cobardia e outros vícios nos Romanos descritos por Políbio: A. M. Eckstein,
«Physis and Nomos: Polybius, the Romans, and Cato the Elder», in P. Cartledge et al. (eds.), Hellenistic Constructs:
Essays in Culture, History and Historiography, Berkeley, 1997, pp. 175-198.
85
Como vimos, o exército fora originariamente constituído por cidadãos romanos em
armas, com o Campus Martius enquanto local tradicional de reunião das tropas 177.
Anualmente, os cônsules, e outros magistrados qualificados se necessário, recrutavam
as forças que precisavam entre os cidadãos fisicamente aptos, com idades indo dos 17
aos 46 anos (Políbio, Hist. 6.19.5-21.10). A organização das levas em fileiras legionárias
tinha lugar em Roma (embora o Africano, em 205 a. C., tenha mobilizado os seus
soldados na Sicília (Lívio, Ab Urb. cond. 29.1.1). Entretanto, as comunidades latinas e
italianas aliadas passaram a arrolar os seus próprios contingentes, conforme estava
especificado nos termos das suas alianças com os Romanos, juntando-se os mesmos, a
seguir, às forças romanas. Este processo podia levar algum tempo, mas se afluísse a
Roma um número suficiente de homens elegíveis antes da leva, como sucedeu em 169
a. C. (ibidem, 43.14.2-15.1), e talvez em 264 178, o recrutamento podia ficar terminado no
espaço de uns quinze dias.
Do século II a. C. em diante, o exército passou a incluir também, por vezes, pequenos
corpos de tropas especialistas de apoio, como os fundibulários das Baleares, cuja
pontaria certeira no arremesso de pedras e de bolas de chumbo era lendária, ou, então,
cavalaria gaulesa e ibérica, mais manobrável e dispensável do que os agrupamentos
montados de cidadãos ou de italianos. Políbio descreve, sugestivamente, como
funcionava o exército de princípios a meados do século II a. C.: os métodos utilizados
no recrutamento, o armamento, pormenores sobre a organização dos acampamentos de
marcha, e uma estrita disciplina179.
Confirmam-se alguns aspectos noutras fontes, nomeadamente nas arqueológicas: os
acampamentos romanos situados perto de Numância 180, em Espanha, bem como o sítio
de Renieblas, obedecem, grosso modo, aos princípios enunciados por Políbio, na
medida em que as condições do terreno o permitissem. Aqui, como noutros locais, os
achados apoiam igualmente a descrição que o autor grego (6.23-24) fez dos pila dos
legionários, do escudo pesado e oblongo (scutum), do gladius e das armaduras (que
podiam consistir em placas metálicas a protegerem o peito,ou, no caso dos soldados
com mais posses, em cotas de escamas ou de malha) e dos elmos, utilizando-se
sobretudo o tipo «Montefortino» e, em menor grau, o «Etrusco-Coríntio» 181.
Lembremos que na Segunda Guerra Samnita a legião desenvolveu um dispositivo
assaz flexível, baseado em pequenas «companhias» ou manipuli, desdobradas
177
L. De Ligt, «Roman Manpower and Recruitment during the Middle Republic», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to
the Roman Army, pp. 115-116.
178
D. Hoyos, Unplanned Wars: The Origins of the First and Second Punic Wars, Berlim, 1998, pp. 64-65.
179
N. Fields, The Roman Army of the Punic Wars, Oxford, 2007, pp. 17-27.
180
A. Schulten, Geschichte von Numantia, 2ª edição (a primeira data de 1933), Munique/Nova Iorque, 1975, pp. 41-48,
93-129.
181
Para uma abordagem objectiva do armamento romano durante a República: M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman
Military Equipment, pp. 47-64; quanto aos elmos, veja-se M. Feugère, Les armes des Romains de la République à
l’Antiquité Tardive, Paris, 1993, pp. 72-80; idem, Casques antiques, Paris, 1994, pp. 37-41.
86
normalmente em três linhas (triplex acies/«linha tripla») – situando-se os hastati (os
homens mais jovens) na frente, os principes no meio e os triarii (mais velhos e
experientes) na retaguarda. Por sua vez, o manípulo compunha-se de dois «pelotões»,
centuriae, cada um sob as ordens de um centurião. Em batalha, as centúrias
posicionavam-se umas atrás das outras - daí os dois centuriões manipulares serem
designados como prior e posterior (respectivamente), o que se confirma no discurso de
Ligustino -, ao passo que ao longo da triplex acies os manípulos se dispunham numa
sequência alternada, quase ao jeito dos quadrados pretos e brancos de um tabuleiro de
xadrez.
Um exército englobava igualmente numerosos soldados de infantaria ligeira aos quais,
por volta de 211 a. C., se deu o nome de velites: seriam, com toda a probabilidade,
cidadãos com idades variáveis que não tinham recursos para arranjar armamento
dispendioso. Numa legião de uns 4 200 homens, cerca de 1200 (quase um em cada
três) eram velites, cabendo-lhes a missão de perturbar os inimigos através de
escaramuças, antes de uma contenda realmente começar e, depois, após a vitória,
ajudavam na perseguição dos antagonistas e na pilhagem dos seus bens.
Lívio (Ab Urb. cond. 8.8.9-13) apresenta a formação manipular como existindo já em
338 a. C., embora nem todos os pormenores coincidam com a legião do século II
exposta por Políbio: por exemplo, Lívio atribui quinze manípulos a cada linha e lanças
(hastae) somente aos triarii. Implicitamente, então, as outras duas linhas já utilizariam
o dardo (pilum) e o gladius, embora Políbio seja o primeiro a atestar a presença destas
duas armas. Dois pila, para arremesso, um pesado e que outro ligeiro, substituíram a
longa lança (ou pique) do falangista; por fim, os triarii também deixariam de se servir
das suas hastae. Os legionários brandiam igualmente uma espada de dois gumes,
empregue tanto para estocadas como cutiladas, que Políbio e outros autores antigos
qualificaram de gladius hispaniensis (Hist. 6.23.6; cf. 2.30.8, 33.5-6; Livio, Ab Urb.
cond. 31.34.4, etc.).
Efectivamente, por meio de trocas comerciais ou de outros contactos, o gladius pode
ter procedido da Hispânia, já que se encontraram espadas muito parecidas em vários
sítios arqueológicos da Península Ibérica, datando de tempos mais recuados 182. Ao
manusearem o gládio, segundo vários textos antigos, os Romanos causaram grandes
carnificinas entre os antagonistas. Lívio registou, de maneira até complacente, o terror
dos Macedónios depois de um recontro com a cavalaria romana em 200 a. C.:
«[…] os que tinham visto ferimentos provocados por dardos, flechas e, ocasionalmente, lanças,
nos seus confrontos regulares contra os Gregos e os Ilírios, observaram corpos decapitados pela
182
D. Hoyos, «The Age of Overseas Expansion», p. 69. De acordo com F. Quesada Sanz, o tipo originário do gladius
hispaniensis romano terá sido uma versão celtibérica da antiga espada gaulesa do período La Tène I, substancialmente
modificada na Meseta hispânica durante o século III a. C., sobretudo no que se refere ao comprimento e no sistema de
suspensão: «Qué hay en un nombre? La cuestión del gladius hispaniensis», Boletín de la Asociación Española de
Amigos de la Arqueología 37 (1997), pp. 41-58.
87
espada hispânica, braços e ombros decepados ou pescoços inteiramente cortados, as cabeças
separadas dos corpos, as vísceras à mostra e outras chagas hediondas; em pânico, constataram
com que género de armas e com que homens teriam de combater» (Ab Urb. cond. 31.34.4)183.
A espada do legionário romano da época das Guerras Púnicas fez correr rios de tinta e
gerou abundante literatura, centrada sobretudo no momento histórico em que a espada
curta de estoque de tradição grega foi substítuida por outra mais comprida, servindo
tanto para assestar cutiladas como estocadas, de origem hispânica, e na identificação
do protótipo peninsular, para o qual se propuseram ideias peregrinas, como a de
considerar a falcata o modelo do gladius hispaniensis, ou o de outros tipos de espadas
da Segunda Idade do Ferro ibérica. A identificação recente de algumas espadas
romanas, datando do século II a. C., em locais como Delos, conduziu a uma autêntica
avalanche de publicações sobre outros achados no Sul de França, na Eslovénia, Israel e
noutros países, que demonstrou, em definitivo, que não se podem transpor para um
passado mais recuado as espadas de lâmina curta e recta alto-imperiais dos tipos
«Mainz» e «Pompeia»184.
Aceite tal facto, foi possível identificar com rigor o protótipo pensinsular do gladius
hispaniensis, neste labor se destacando, como atrás tivemos o ensejo e dizer, F.
Quesada Sanz185. Com base nas investigações deste historiador espanhol, os Romanos
terão adoptado, entre 216 e 209 a. C., a versão hispânica tardia da espada de lâmina
recta e ponta aguçada, produto da evolução do tipo gaulês de La Tène I (quando na
Gália propriamente dita esta arma já deixara de ser usada havia cerca de um século),
provida de uma bainha tipicamente peninsular, com armação metálica e suspensão por
meio de um boldrié e de ilhós, em vez da bainha gaulesa de chapa metálica suspensa de
um cinto. Esta teoria foi aceite por P. Connolly, 186 entre outros.
Publicaram-se outros estudos relevantes, como os de J. Horvart 187 e, sobretudo, de J.
Istenic188, que advertiu para a descoberta de um gladius na Eslovénia, pertencente ao
período tardo-republicano, dotado de uma complexa bainha de armação metálica,
denotando paralelos em algumas falcatas ibéricas 189. A. Rapin190 identificou, pelo seu
183
L. Keppie, The Making of the Roman Army, pp. 44-51. Sobre o equipamento militar: F. Walbank, A Historical
Commentary on Polybius, 2, pp. 703-706; P. Connolly, Greece and Rome at War, pp. 130-133.
184
M. Feugère, Les armes des romains de la République à l’Antiquité tardive, p. 137ss.; M. C. Bishop e J. N. C. Coulston,
Roman Military Equipment…, 1993, p. 69ss.
185
El armamento ibérico. Estudio tipológico, geográfico, funcional, social y simbólico de las armas en la Cultura
Ibérica (siglos VI-I a. C.), Monographies Instrumentum 3, Montagnac, Monique Mergoil, 1997, pp. 260-270; IDEM,
«Gladius hispaniensis: an archaeological view from Iberia», in M. Feugère (ed.), L’équipement militaire et l’armement
de la République, JRMES 8, 1997, pp. 251-270; IDEM, «Qué hay en un nombre? La cuestíon del gladius hispaniensis»,
art. cit. (para mais dados sobre as fontes originais e a discussão pormenorizada do tema.
186
P. Connolly, «Pilum, Gladius and Pugio in the Late Republic», in M. Feugère (ed.), L’équipement militaire et
l’armement de la République, p. 56.
187
«Roman Republican weapons from Smihel in Slovenia», in M. Feugère (ed.), L’équipement militaire…, pp. 105-120.
188
«A Roman late-republicans from the river Ljiubljanica (Slovenia)», Arheoloski vestnik 51 (2000), pp. 171-182; IDEM,
«A Roman late-republican gladius from the river Ljiubljanica (Slovenia)», in A. T. Croom e W. B. Griffiths (eds.), Re-
Enactment as research. 12th ROMEC, JRMES 11 (2000), pp. 1-9..
189
Por exemplo, Reig Segui, «El armamento de la necrópolis ibérica de La Serreta de Alcoi (Alicante, España)», Gladius
20 (2000), pp. 75-117, est. IV.
190
«Des épées romaines dans la collection d’Alise Sainte-Reine», Gladius 21 (2001), pp. 31-56.
88
perfil pistiliforme, como gladii polibianos duas espadas do espólio arqueológico
recolhido em Alise Sainte-Reine (Alésia), além de aflorar questões relativas às bainhas.
Três anos volvidos, G. D. Stiebel 191 descreveu um gladius exibindo características
«hispânicas», procedente de Jericó e situado num contexto helenístico, o que atesta a
rápida difusão que conheceu este tipo de espada, até no Oriente grego: a arma poderia
provir de qualquer ponto da Península Ibérica, durante o século II antes da nossa era.
Por último, a monografia de M. Luik 192 sobre Numância, o estudo de S. Sievers 193 das
armas de Osuna, bem como um artigo de E. Nuñez e Quesada Sanz 194 actualizaram os
nossos conhecimentos sobre a espada romana republicana na Hispânia.
Uma vez localizada a espada-protótipo e a sua quase indiferenciável versão romana,
facilmente deduzimos que se tratava de uma arma que requeria certo espaço para o seu
manuseamento, mais dio que os três pés, ou menos, típicos de uma falange hoplítica
(Políbio, Hist. 18.29.2). De facto, as fontes são explícitas: em Canas, os legionários
ficaram tão «atravancados» que não dispuseram de espaço para empregar eficazmente
as suas armas (Lívio, Ab Urb. cond. 22.47.10) e, já no tempo de César, este ordenava às
suas tropas para terem o cuidado de não se amontoar, a fim de possuirem mais ampla
liberdade de movimentos ao brandir os seus gladii (B. Gallico, 2.25).
A espada comprida, que servia tanto para desferir golpes penetrantes como cutiladas,
aliada a um escudo longo de extremidades arredondadas, atingindo aproximadamente
135 cm de altura (Políbio, Hist. 6.23.2), e o género de elmo de curto cobre-nuca
característico deste período, constituem factores que obtam a que se deva extrapolar
para a República (altura em que o legionário lutaria mais erguido) as modalidades de
combate do Alto-Imperio, em que o soldado se colocava mais curvado, protegendo-se
com um escudo em forma de telha, de menores dimensões 195, funcionando o gladius
essencialmente para efectuar estocadas 196, época em que o casco e a couraça foram
optimizadas para defender melhor a nuca e os ombros197.
***
191
«A Hellenistic gladius from Jericho», in E. Netzer (ed.), Hasmonean and Herodian palaces at Jericho. Final Reports
1973-1987, vol. II, Jerusalém, 2004, pp. 229-232.
192
Die Funde aus den Römischen Lagern um Numantia im Römisch-Germanischen Zentralmuseum, Mainz, RGZM,
2002, esp. Abb. 191, pp. 86-87.
193
S. Sievers, «Alesia und Osuna: Bemwerkungen zur Normierung der spätrepublikanischen Bewaffnung und
Ausrüstung», in M. Feugère (ed.), L’équipement militaire, pp. 271-276; P. Ruillard, Antiquités de l’Éspagne, Paris,
Musée du Louvre, 1997, p. 58ss (esp. p. 67).
194
«Una sepultura com armas de Baja Epoca Ibérica (o época romana republicana en la necrópolis del ‘Cerro de las
Balas’ (Ecija, Sevilla)», Gladius 20 (2000), pp. 191-220.
195
Dura Europos, c. 1 m. M. C. Bishop e J. N. C. Coulston, Roman Military Equipment, p. 149.
196
P. J. Hazell, «The pedite gladius», The Antiquaries Journal 61 (1981), pp. 78-79.
197
P. Connolly, «The Roman fighting technique deduced from armour and weaponry», in V. A. Maxfield e M. J. Dobson
(eds.), Roman Frontier Studies 1989, Exeter, 1991, pp. 358-363.
89
Actualmente, alguns autores questionam o rigor descritivo de Tito Lívio sobre das
legiões de meados do século IV a. C., uma vez que o seu contemporâneo Dionisio de
Halicarnasso escreveu, num excerto sobre a Guerra Pírrica (no presente do indicativo),
que «aos que lutam em fileiras cerradas com lanças de cavalaria firmadas por ambas as
mãos, e [que] muitas vezes decidem as coisas em batalha, os Romanos chamam
principes» (Ant. rom. 20.11.2). Como não era este o caso no tempo de Dionísio, nem de
Lívio, o primeiro talvez tenha copiado uma fonte do período pírrico, na qual os
principes aparecessem armados à maneira antiga. Mas Plutarco, ao apoiar-se noutro
testemunho literário do mesmo momento histórico, Jerónimo de Cardia (que, por sua
vez, leu os Comentários de Pirro), descreve os Romanos na sua segunda batalha contra
o rei epirota a resistirem na sua «falange» com as espadas, mas sem capacidade para se
movimentarem de acordo com o seu usual estilo flexível (Plutarco, Vida de Pirro. 21), a
«nova moda».
Provavelmente, em 279 a. C., talvez ainda coexistissem o antigo e o novo tipo de
legião, mas, a este respeito, perfila-se outra hipótese mais simples: que Dionísio (ou a
sua fonte grega) cometesse um lapsus calami, ao escrever principes em lugar de triarii,
sendo proverbialmente estes que davam o «empurrão» decisivo quando uma batalha
estivesse a revelar-se difícil para as armas romanas 198. A estar correcta esta
interpretação, a legião em meados do século IV a. C. descrita por Tito Lívio até pode
não ser anacrónica. Pouco surpreenderia que certos elementos mudassem ao longo do
subsequente século e meio (bem como o número de manípulos em cada linha e o
desaparecimento dos combatentes da retaguarda chamados rorarii).
A partir do decénio de 20 do século III antes da nossa era, o pilum, o gladius e a
formação manipular estandartizaram-se, como aliás o demonstram as narrações de
Políbio de batalhas contra os Gauleses (em 225 e 223 a. C.): nelas vemos dardos
lançados para romper as fileiras inimigas, os manípulos atacando de espadas em riste,
assestando estocadas e golpes com os gumes e, em 223, os triarii fornecendo as suas
hastae aos manípulos da vanguarda para se partirem as pontas das espadas gaulesas –
e depois, as linhas da frente desembainhavam os gládios e aniquilavam os antagonistas
(Políbio, Hist. 2.30.8.33.4-6).
198
Sobre o exército manipular: E. Rawson, «The literary sources for the pre-Marian army», PBSR 39 (1971), pp. 19-20,
24-31; L. Keppie, The Making of the Roman Army, pp. 21-23, 63-66. A respeito dos velites: F. W. Walbank, A Historical
Commentary on Polybius, 1, Oxford, 1957, p.703; N. Sekunda, Republican Roman Army 200-104 BC, Oxford, 1996, pp.
21-23. Quanto ao horror experimentado pelos Macedónios: A. Zhmodikov, «Roman republican heavy infantrymen in
battle (IV-II centuries BC», Historia, 49 (2000), p. 75.
90
Num momento histórico que não conseguimos situar com exactidão, mas que talvez
tenha ocorrido na Segunda Guerra Púnica, os manípulos passaram a ser integrados (em
número de três, um de hastati, outro de principes e outro de triarii) em unidades
denominadas cohortes. Ao relatar a vitória de Cipião em Ilipa (206 a. C.), Políbio
menciona um corpo de três manípulos «a que os Romanos chamam coorte» (Hist.
11.23.1 coortis, cf. 11.33.1). Este género de agrupamento pode ter sido tomado de
empréstimo às formações adoptadas pelos aliados, já que as primeiras coortes a que se
faz referência nas fontes, em 294, 217 e 212 a.C., eram de tropas latinas ou itálicas
(Lívio, Ab Urb. cond. 25.14.4; cf. 28.45.29). Lívio reporta-se a uma cohors Romana na
Hispânia, em 211 a. C. (ibidem,25.39.1, mas infelizmente no relato muito exagerado de
uma batalha), e a outra, em 207 a. C., na refrega de Metaurus (27.49.4).
A data e a interpretação do aparecimento da coorte foram objecto de longas e acesas
discussões académicas. Lembremos que durante longo tempo se considerou, quase
unanimemente que, por volta de 100 antes da nossa era, a reorganização do exercitus
sobre esta base teria conduzido ao apagamento da estrutura manipular, em vigor desde
as Guerras Samnitas da segunda metade do século IV a. C. De acordo com a mesma
teoria, essa substituição fora imposta pelas insuficiências tácticas da organização
anterior, tornadas manifestas aquando das derrotas que os Cimbros e os Teutões
infligiram aos Romanos. Assim, ela atribuiu-se ao conjunto de reformas alegadamente
introduzidas por Gaio Mário na viragem do século II para o I a. C 199.
Contudo, as dificuldades suscitadas por esta visão tradicional cedo foram postas em
evidência: com efeito, nenhuma fonte permite colocar uma medida de consequências
tão significativas em relação directa com as medidas marianas, as quais estão bem
documentadas. A existência da coorte atesta-se, sem qualquer ambiguidade, antes do
ano 107 a. C., nos escritos de Políbio e Salústio 200.
Tais objecções impeliram alguns historiadores a optar por uma atitude mais
matizada, rejeitando a ideia de uma ruptura brutal no início do século I a. C. Nesta nova
corrente de opinião, a substituição do manípulo pela coorte seria, acima de tudo, o
culminar de um processo201. No entanto, o emprego da coorte é encarado como uma
medida que se manteve muito pontual, antes da sua generalização no exército no
199
J. M. Marquardt, De l’organisation militaire chez les Romains, Paris, 1891, pp. 148-149;T. Steinwender, «Zur
Kohortentaktik», Rheinisches Museum für Philologie 70 (1915), pp. 416-417; H. M. D. Parker, The Roman Legions,
Oxford, 1928, pp. 26-28; M. Marín y Peña, Instituciones militares romanas, Madrid, 1956, p. 48; G. R. Watson, The
Roman Soldier, Londres, 1969, p. 22..
200
Respectivamente: Hist. 11.23.1; Bell. Iug. 49.6.
201
J. Masquelez, «Cohors», in C. Daremberg e E. Saglio (eds.), Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines, vol.
I.2, Paris, 1877, p. 1287; J. Kromayer e G. Veith, Heerwesen und Kriegsführung der Griechen und Römer, Munique,
1928, p. 376; F. E. Adcock, The Roman Art of War under the Republic, Cambridge, 1940, p. 21; P. Fraccaro,
«L’ordinamento a coorti», in Opuscula, IV, Pavia, 1975, p. 144; L. Keppie, The Making of the Roman Army, 1984, pp.
63-64; Roldán, 1996, p. 48; Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 48; IDEM, Roman Warfare, Londres, 2000, p.
99
91
contexto dos anos 100, em que os factores políticos e sociais, ao acentuarem a
profissionalização dos soldados e a uniformização do exército, desempenharam um
papel essencial. Nesta perspectiva, o recurso à coorte pré-mariana nunca foi claramente
explicado, na falta de elementos suficientemente reveladores. O problema deve-se ao
facto de as menções à mesma se entenderem como pouco fiáveis para se extrair uma
conclusão satisfatória.
Porém, ao tomar em consideração o «ficheiro» relativo à Península Ibérica,
constatamos que ele proporciona esclarecimentos dignos de interesse. O lugar
privilegiado aí ocupado pelas ocorrências do termo coorte foi ressaltado, em 1965, por
M. J. V. Bell num artigo ainda hoje muitas vezes citado 202. Esta constatação serviu-lhe
para formular uma tese sedutora, associando a inovação táctica e as guerras na
Hispânia: aqui, a coorte teria substituído precocemente o manípulo, que se manifestava
táctica e estrategicamente inadaptado à «especificidade» das modalidades de combate
contra os auctótones, antes de se disseminar gradualmente por outros teatros de
operações ocidentais (Ligúria ou Numídia), que suscitaram idênticas dificuldades 203.
Em contrapartida, no Oriente helenístico, segundo o mesmo autor, o exército romano
teria conhecido só o manípulo. Esta explicação, muitas vezes aceite, veio todavia a ser
posta em dúvida, mas sem merecer uma análise precisa e rigorosa 204.
O ideário de Bell assentou numa interpretação duplamente discutível, tanto no plano
da definição táctica da coorte, como no das concepções guerreiras próprias da
Hispânia. Assim, devemos procurar outra explicação que não um particularismo
hispânico nos desequilíbrios das informações proporcionadas pelas fontes. Para F.
Cadiou, não se deve excluir a possibilidade de uma utilização regular da coorte desde a
Segunda Guerra Púnica, da qual o espaço ibérico conserva ainda vestígios, bem como
em outros teatros de operações205.
Um dos principais fundamentos do raciocínio de Bell tem a ver com a estrutura da
legião manipular, que era táctica e estrategicamente desajustada às guerras que se
desenrolaram na Península Ibérica. Vejamos a sua argumentação: por um lado, os
intervalos estabelecidos entre cada manípulo na ordem de batalha enfraqueciam a
coesão do todo, vulnerável, portanto, face a uma impetuosa investida do inimigo; por
outro, o manípulo dividia a legião em unidades demasiado pequenas, se bem que, a
202
M. J. V. Bell, «Tactical Reform in the Roman Republican Army», Historia 14 (1965), pp. 404-419.
203
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 413: «Warfare in Spain presented certain strategic and tactical problems which the
maniple could not solve».
204
As conclusões de M. Bell foram retomadas por numerosos estudiosos (Y. Garlan, La guerre dans l’Antiquité, Paris,
1972, p. ; E. Gabba, «Le origini dell’esercito professionale in Roma: proletari e la riforma di Mario», in Esercito e società
nella tarda reppublica romana, Florença, 1973, p. 1; mais recentemente por A. K. Goldsworthy, The Roman Army at
War, p. 35, n. 91; IDEM, Roman Warfare, p. 99), mas não sem algum cepticismo (E. Rawson, «The Literary Sources for
the Pre-Marian Army», PBSR 39 (1971), p. 19; E. Wheeler, «The Roman Legion as Phalanx», Chiron 9 (1979), p. 306, n.
18; L. Keppie, The Making of the Roman Army, p. 63); tais reservas, todavia, circunscreveram-se a breves comentários.
205
«Les guerres en Hispania et l’émergence de la cohorte légionnaire dans l’armée romaine sous la République: une
révision critique», Gladius XXI (2001), p. 168.
92
nível estratégico, o exército não pudesse ser mais fraccionado de maneira eficaz em
subdivisões autónomas para operações de menor envergadura. A coorte reduziria estas
fraquezas, ao reforçar a solidez das linhas através do aumento do tamanho de cada
unidade e, sobretudo, pelo desaparecimento dos intervalos a separá-las. Para Bell, a
legião organizada no sistema de coorte apresentaria, então, uma frente contínua, ao
contrário da legião manipular; por outro lado, ao constituirem réplicas miniaturais da
legião, as coortes passaram a poder actuar de maneira autónoma 206.
Ao analisarmos o ideário deste autor, a maior dificuldade está no primeiro destes
argumentos: no plano táctico, não parece que a coorte fosse tão radicalmente oposta ao
manípulo. Em princípio, a cohors agrupava três manipuli de cada uma das linhas que
compunham a legião (hastati, principes, triarii)207. Talvez nem sempre tenha sido
exactamente assim, uma vez que Políbio não explicita que tipos de manípulos estariam
reunidos na coorte que menciona para o ano 206 a. C. Não excluamos a possibilidade
de todos pertencerem a uma mesma linha. Seja como for, ressalvemos que, desde este
período, a coorte estava bem definida, de acordo com Políbio, correspondendo ao triplo
do manípulo, isto é, a unidade de base da legião 208.
Consequentemente, a criação deste «escalão suplementar» obedeceu a uma vontade
de formar unidades de uma dimensão superior: a legião inteiramente organizada não
contava, assim, mais de dez subdivisões, em vez de trinta 209. Neste sentido, trata-se de
uma concentração, mas não podemos deduzir automaticamente que estes
agrupamentos constituiam uma frente mais maciça, unida e rectilínea como pensou
Bell, associando a coorte quase a um retorno à falange original. De facto, julgamos que
a introdução da nova subdivisão não deve compreender-se como o abandono de uma
dispersão táctica, entendida como insatisfatória 210.
É verdade que a legião manipular implicou uma certa deslocação na massa compacta
da falange: passou a formar-se em três linhas de batalha no lugar de uma e cada
manípulo ficava separado do seu vizinho por um intervalo, ao jeito de uma disposição
em jeito de tabuleiro de xadrez a que os autores modernos, não os antigos, cunharam
de quincunx211. Mas esta formação desconcentrada era precisamente o que fazia a força
e a originalidade da legião. Os intervalos permitiam manter uma melhor coesão do
conjunto durante das movimentações sobre o terreno, enquanto a linha tripla de
combate englobava parte das tropas em reserva, pronta a intervir se necessário. Por
este motivo, os espaços vazios não seriam preenchidos no momento do assalto, ao
206
M. Bell, «Tactical Reform…», , p. 411.
207
Pelo menos, é o que sugerem os títulos dos centuriões no século I: L. Keppie, The Making of the Roman Army, p. 174.
208
Hist. 11.23.1.
209
Aulo Gélio, Noctes Atticae, 16.4.6.
210
F. Cadiou, «Les guerres en Hispania…», p. 169.
211
Tal disposição foi reconstituída a partir de Lívio, Ab Urb. Cond. 8.8.9-13.
93
contrário do que se imaginou: eles poderiam servir para reforçar a frente com tropas
frescas, durante os momentos «mortos» ou pausas que caracterizavam a maneira de
pelejar na Antiguidade212. Este princípio da triplex acies, típico da legião manipular,
permaneceu vigente na sua versão em coorte, até ao fim da República e para lá desta 213.
Nada permite pensar que ele tenha dado lugar a uma interpretação diferente nessa
época214.
M. Bell, porém, concluiu haver uma frente contínua, baseando-se nas medidas
tomadas por Cipião em Zama (202 a. C.), que nos são facultadas por Lívio e Frontino 215.
Mas isto equivale a esquecer que Políbio se contentou em dizer que Cipião renunciou,
pura e simplesmente, ao quincunx, para alinhar os manípulos uns por detrás dos
outros216. É provável que os relatos de Lívio e Frontino, que escreveram numa época
muito posterior aos factos descritos, tenham sofrido a influência do facto de que, no
tempo cesariano, os três manípulos que compunham a coorte se posicionarem lado-a-
lado em batalha, e não um após outro, como anteriormente. No entanto, até neste caso,
a disposição numa frente única terá comportado, inevitavelmente, intervalos 217. A
interpretação que Bell fez de uma passagem de Frontino, sobre a batalha de Pidna, não
permite refutar esta ideia: o autor flaviano escreveu: triplicem aciem cuneis instruxit
inter quos uelites subinde emisit (Strat. 2.3.20). Bell depreendeu que Frontino,
habituado a um alinhamento ininterrupto da coorte não percebeu bem a presença de
intervalos na legião manipular, pelo que os apresentou como um estratagema 218.
Porém, afigura-se claro que Frontino descreve somente uma tentativa do general
romano para conferir maior capacidade perfurante aos diferentes segmentos da sua
linha de batalha, face à temível falange de Perseu, ao adoptar uma formação em vários
cunei219.
212
A questão dos intervalos foi das mais debatidas pelos especialistas do exército romano. Muitos consideraram
improvável, ou mesmo impensável, que se mantivessem tais espaços em pleno calor da contenda, como sustentou H.
Delbrück ou, mais recentemente, P. Connolly e L. Keppie. No entanto, durante largas décadas, no seguimento das
objecções de J. Kromayer e G. Veith (Heerwesen und Kriegsführung…, pp. 359-361) e F. E. Adcock (The Roman Art of
War…, pp. 9-10), prevaleceu a posição contrária, que se assinala nos trabalhos mais recentes de A. K. Goldsworthy ( The
Roman Army at War, p. 208) e de P. Sabin («The face of the Roman Battle», p. 16). Desenvolvemos este assunto no
apêndice do presente capítulo.
213
J. Marquardt (De l’organisation militaire chez les Romains, p. 149) entendeu que as dez coortes se dispunham numa
só linha; mas as fontes mostram o oposto, visto que apenas fornecem um exemplo de linha única, num contexto
particular (Bell. Afr. 13). Sobre isto, cf.: J. Kromayer e G. Veith, Heerwesen und Kriegsführung, pp. 428-429; P.
Fraccaro, «L’ordinamento a coorti», pp. 147-148; A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 137.
214
E. Wheeler («The Roman Legion as Phalanx», p. 307) demonstrou que na época republicana a formação tradicional
em falange compacta, à qual cabe associar a testudo, só ocorreu em circunstâncias excepcionais.
215
Lívio, Ab Urb. cond. 30.33.1 – Non confertas autem cohortes ante sua quamque signa instruebat sed manipulos
aliquantum inter se distantes; Frontino, Strat. 2.3.6 – Nec continuas construxit cohortes, sed manipulis inter se
distantibus spatium dedit. Para a interpretação de M. Bell destas passagens, cf. «Tactical Reform…», p. 409.
216
Hist. 15.9.7.
217
J. Kromayer e G. Veith, Heerwesen und Kriegsführung…, p. 378.
218
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 408. «A manipular legion would of course look like a series of wedges when seen
from its front; what is significant is that Frontinus thought of this as a stratagem, something unusual and out of the
way». No entanto, é difícil percebermos como o erro cometido por Frontino, ao escrever vários séculos após os factos,
poderia provir de uma ilusão de óptica. Por outro lado, Bell olvidou-se que, em virtude da disposição em quincunx, a
legião vista de frente parecia, pelo contrário, apresentar uma linha contínua.
94
Por fim, Bell julgou ver na expressão manipulos laxare, utilizada em várias ocasiões
por Lívio, César ou Frontino, uma prova suplementar para uma densidade superior da
linha formada em coorte, em que os manípulos não manifestariam, pois, mais
descontinuidades entre eles220. Na realidade, manipulos laxare remete sobretudo para
a elasticidade dos intervalos, que os generais romanos podiam fazer variar a sua
amplitude em função das circunstâncias: é desta forma que devemos compreender o
episódio bélico de 211 a. C., relativo à Península Ibérica, em que Márcio decidiu
aumentar os espaços entre os manípulos, a fim de permitir que o inimigo, cercado,
fugisse, o que debilitaria a sua coesão221.
A persistência desta prática até ao tempo de César confirma que os intervalos não se
encaravam como uma fraqueza, mas antes como um elemento pertencente ao
dispositivo de batalha, que o general podia tirar partido quando julgasse mais oportuno
ou necessário. Nesta ordem de ideias, é muito redutor fazer da coorte a «antítese
táctica» do manípulo: pelo contrário, a primeira prolongava, ao imprimir-lhe acrescida
complexidade, a profunda originalidade do último. Assim se percebe que o manípulo se
tenha mantido até ao Alto-Império como uma divisão de base da legião. A agrupação
em coorte, ao introduzir um elo suplementar na cadeia de comando, simplificava a
tarefa do general na chefia das suas unidades, podendo coordenar mais subtilmente as
manobras222.
No século I antes da nossa era, a crescente uniformização entre cada unidade ajudou a
multiplicar as combinações tácticas possíveis: enquanto até aí os manípulos de triarii
estavam diferentemente armados e contavam com metade dos homens do que os das
outras duas linhas, todas as coortes seriam, doravante, idênticas e intercambiáveis,
escapando assim à antiga especialização táctica das três linhas da legião manipular 223.
Imaginar o recurso à coorte como um regresso à rigidez da falange é não apreender
devidamente o significado profundo desta evolução que introduziu, pelo contrário, um
maior grau de sofisticação. A sua difusão atesta uma crescente diversificação das
soluções tácticas à disposição das legiões. Esta inflexão realizou-se, portanto, dentro do
219
Foi só num segundo momento, perante o fracasso deste primeiro desdobramento, que Emílio Paulo terá decidido
então empregar o estratagema que constituiu objecto de interesse de Frontino: um simulacro de fuga.
220
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 409. O autor apoiou-se essencialmente na leitura dos Commentarii de Bello Gallico
de César (2.25). Mas o trecho não nos transmite nada disso: o desenvolvimento da narração, referente a um combate
livrado junto ao Sambre, mostra que os legionários terão sido apanhados desprevenidos pelo ataque inimigo. Em 2.21-
22, César chega a precisar que as tropas não tiveram tempo para formar a ordem de batalha, antes de se verem
duramente pressionados pelo antagonista. A ordem dada consistiu, assim, em descerrar as fileiras, anormalmente
imbricadas umas nas outras. Posto isto, a passagem cesariana oferece antes um argumento a favor de uma prática
corrente, em que os intervalos entre os manípulos que compunham as coortes se consideravam indispensáveis para a
eficácia dos combatentes.
221
Frontino, Strat. 2.6.2: laxatis manipulis et concesso fugae spatio dissipatos sine periculo suorum trucidauit.
Consequentemente, dificilmente se pode aceitar a opinião de Bell, quando afirma que uma tal ordem só faria sentido
numa formação em coorte. Por esta razão, é impossível utilizar este excerto, como o fez Bell, enquanto prova adicional
para a existência da coorte na Península Ibérica a partir de 211 a. C.
222
Ponto sublinhado por A. K. Goldsworthy: The Roman Army at War, p. 34.
223
Para as diferentes possibilidades do desdobramento da legião em coorte, vejam-se: P. Fraccaro, «L’ordinamento a
coorti», pp. 148-149; A. K. Goldsworthy, Roman Warfare, Londres, 2000, p. 99.
95
mesmo espírito de flexibilidade, como a nível estratégico, em que a reforçada
autonomia da coorte lhe permitia actuar autonomamente, sem ser muito vulnerável 224.
A coorte, tal como a imaginou Bell, enquanto unidade que aliava a concentração
táctica à flexibilidade estratégica, não se encontra na documentação. Trata-se da
primeira objecção séria à ideia de que foi precisamente esta dupla característica que
converteu a coorte no tipo de unidade ideal para as guerras conduzidas na Península
Ibérica. Além disso, estes conflitos não apresentam o aspecto que, sob essa óptica,
requeriria uma tal inovação. Bell justificou a necessidade de uma concentração táctica
por causa da impetuosidade das investidas realizadas pelas forças indígenas, mais
temíveis ainda que as dos Gauleses ou dos Cimbros, ao passo que a dispersão
estratégica seria consequência de uma guerrilha quase perpétua. Mas esta asserção,
visando explicar o abandono precoce do manípulo, não está verdadeiramente
documentada e estabelecida para a Península Ibérica.
É certo que a flexibilidade que a coorte introduziu na ordem de batalha do exército
romano facilitaria aos generais o fraccionamento eventual dos seus efectivos e a
realização de operações de menor envergadura nas regiões peninsulares, onde a
fragmentação política do inimigo se afigura uma realidade bem atestada nas fontes.
Seguramente que Roma não lidou, na Península Ibérica, com um poder político
centralizador comparável aos das grandes monarquias helenísticas que defrontou no
Mediterrâneo Oriental. Porém, não assimilemos esta ausência de unidade a uma
estratégia de «guerrilha» que constituiria o seu corolário natural. Contrariamente a
uma ideia preconcebida muito disseminada, a guerrilha seria o recurso mais evidente
das populações autóctones, cujos meios humanos e materiais parecem, todavia, aos
olhos dos historiadores, como incapazes de se relacionar com os do conquistador:
ademais, tal prática reclamaria igualmente uma concepção guerreira que, na realidade,
não preponderou entre os povos peninsulares 225. A este respeito, Bell não demonstrou a
existência de uma guerrilha ibérica, considerando-a como um dado adquirido, quase
um rasgo civilizacional226.
Os trabalhos mais recentes sobre a guerra antiga mostram que, de uma maneira geral,
as estruturas políticas, económicas e sociais das sociedades «bárbaras», longe de
favorecerem conflitos de golpes de mão prolongados, incitariam, pelo contrário, os
224
F. Cadiou, «Les guerres en Hispania…», p. 171.
225
Tópico que F. Quesada Sanz salientou: «Las fuerzas de los antagonistas«, in Indibil i Mandoni: reis i guerrers (Lleida,
14 nov. 1996- 5 gen. 1997, Lérida, 1997, p. 142.
226
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 411: «…in Spain, the home of the word guerrilla, pitched battle area rarely decisive».
Os únicos argumentos que esgrimiu neste sentido foram a «Spanish incapacity for unity» e uma passagem extraída de
Bell. Hisp (8.3-5) sobre a qualidade defensiva dos numerosos lugarejos fortificados (turris) da Hispânia meridional.
Contudo, estes dois elementos não transmitem coisa alguma sobre as tradições guerreiras indígenas. A imagem que o
autor construiu das últimas inscreve-se, acima de tudo, numa tendência que, desde finais do século XIX, se transpõs
para o antigo mundo ibérico, numa perspectiva nacionalista, a do espírito de resistência das guerrilhas iespanholas já na
época moderna, em especial durante as guerras napoleónicas. Sobre esta noção, vejam-se os judiciosos comentários de
F. Quesada Sanz, El armamento ibérico. Estudio tipológico, geográfico, funcional, social y simbolico…, p. 654, n. 2.
96
exércitos autóctones a buscar uma decisão rápida numa batalha campal, de acordo com
moldes muito próximos dos que se conhecem para o mundo grego clássico e
helenístico227. Assim, as fontes literárias e arqueológicas revelam que o armamento e o
desenrolar dos prélios privilegiariam, no mundo ibérico dos séculos III e II a. C.,
modalidades de combate com uma formação menos apartada da levada a cabo pelos
próprios Romanos228. Os textos antigos que se alegaram como provas para a
«guerrilha» indígena reportam-se unicamente às populações do interior peninsular,
designadamente Celtiberos e Lusitanos229. Tais passagens encontram-se sobretudo em
obras de cariz geográfico ou etnográfico, pelo que as informações devem ser restituídas
dentro desta dimensão particular, sob o risco de se incorrer em contrasenso. Com
efeito, os relatos sobre a penetração romana nessas zonas contradizem as generalidades
observáveis em tais documentos230.
Mesmo que seja preciso distinguir em detalhe as práticas estratégicas e tácticas
variáveis consoante os povos que lutaram contra Roma, frisemos que o recurso à
guerrilha não se deduz das fontes disponíveis. Muito probavelmente, a dispersão
estratégica que a coorte permitia correspondeu mais às necessidades que nasceram das
próprias concepções romanas no âmbito da condução das operações, em que a
existência imprescindível de uma reserva, a execução de manobras complexas e o
costume de se formar destacamentos para objectivos diversos concorreram para
introduzir uma maior flexibilidade na organização da legião.
Embora a batalha campal tenha sido um fenómeno mais recorrente do que supôs Bell,
nada autoriza, porém, imaginar que ela gerasse dificuldades específicas na Península
Ibérica, obrigando à criação de uma unidade táctica mais compacta que o manípulo. Os
textos em que Bell se escorou para defender a sua argumentação são demasiado
esparsos e insuficientes para chegar a essa conclusão. Assim, o autor invocou uma
conhecida passagem de Júlio César (Bell. Civ. 1.44.1-2) para demonstrar a eficácia do
concursus indígena face a um exército romano: mas trata-se de uma pequena digressão
em relação à qual cabe não fazer excessivas extrapolações; na narração de um episódio
que teve lugar em 49 a. C. alude-se ao recuo de um destacamento cesariano, que não foi
capaz de se apoderar de uma pequena eminência, diante de Ilerda (Bell. Civ. 1.43.5).
O objectivo de César, que este declarou textualmente, era muito importante: cortar a
linha de abastecimentos do inimigo ao tomar posição num local a meio-caminho entre
a cidade e o acampamento pompeiense (ibidem, 1.43.2). Contudo, a manobra
227
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 78.
228
F. Quesada Sanz, El armamento ibérico…, p. 615.
229
Estrabão, 3.3.6; Diodoro, 5.34.4-7.
230
Na realidade, a batalha campal foi o modo de confrontação usual, tanto contra os Celtiberos (Lívio, Ab Urb. Cond.
35.7.8; 35.22.8; 39.21.3, 40.30.6; 40.50.2-3) como face aos Lusitanos (ibidem, 35.1.5-11; 37.46.7; 37.57.5; 39.21.2;
Apiano, Ib. 56.57; 58; 67).
97
afigurava-se temerária, uma vez que o monte ficava demasiado perto das forças
adversárias, no meio de uma pequena planura bastante estreita, que César calculou ter
somente uns 300 passos. Ora este risco explica o fracasso acutilante da tentativa. César
reconhece que as tropas de Afrânio chegaram ao sítio breuitore itinere. O conquistador
das Gálias tentou dissimular o fiasco, ao insistir na tónica da desorientação
momentânea das suas tropas, relativamente a uma técnica invulgar dos soldados
pompeienses, aproveitando o ensejo para a associar insidiosamente aos «bárbaros».
Desta forma, César tentou minimizar os erros que cometeu, deformando alguns
aspectos e realçando outros secundários.
Se a adopção de uma táctica indígena correspondeu, de facto, ao elemento que deu aos
pompeienses vantagem sobre os seus oponentes, é estranho que nenhuma outra
passagem do Bellum Civile faça eco de uma tal superioridade, o que poderia ser
utilizado para elevar o mérito da vitória cesariana 231. Isto sugere que o reparo de César
exerceu a função precisa e pontual que acabámos de comentar. Bell relacionou o trecho
com o que Lívio nos diz da eficácia do cuneus celtibérico para os anos 185 e 182 a. C., o
que não é um bom método, tanto mais que se trata de um contexto cronológico e étnico
assaz diferente232. Por outro lado, a formação utilizada nessas ocasiões pelos Celtiberos
não consiste numa técnica de combate indígena, mas num processo característico de
uma batalha campal: significava um dos dispositivos que um exército podia adoptar,
com o propósito de romper a linha adversa233. Na passagem de Lívio, não se descortina
ideia alguma que leve a pensar numa originalidade peculiar na versão celtibérica 234.
Estes excertos parecem indicar que os confrontos entre Celtiberos e Romanos se
desenrolavam, geralmente, segundo um esquema relativamente «clássico». A
interpretação da batalha campal formulada por Bell comporta, por último, o mesmo
defeito referido a propósito da guerrilha. Os poucos exemplos que este autor extraiu
das fontes serviram apenas para ilustrar considerações generalizantes baseadas em
modelos alegadamente intemporais235.
231
Perante este silêncio de César, torna-se difícil de subscrever a opinião de M. Bell («Tactical Reform…», p. 411),
segundo a qual o episódio de Ilerda traduziria uma eficácia específica das tácticas indígenas: «this is implied by Caesar
where he ascribes the defeat of some of its finest troops to the adoption by the Afranians of Spanish methods of
warfare». César, pelo contrário, explicita (Bell. Civ. 1.47) que os Afranianos tinham a reputação de serem os soldados
menos capazes (cum esse omnium iudicio inferiores uiderentur).
232
Lívio, Ab Urb. cond. 39.31.3; 40.40.2. A aproximação com a passagem de César que M. Bell estabeleceu («Tactical
Reform…», p. 411) foi apresentada como elemento probatório.
233
É desta maneira que Vegécio descreve o cuneus: Ep. Rei Mil. 3.19.
234
Bell («Tactical Reform…», p. 411) imaginou que o cuneus celtibérico teria uma força de penetração ainda mais
temível, por se basear na utilização de uma espada de qualidade muito superior à dos Gauleses e dos Romanos. É
argumento que não nos convence. Para já, era preciso ter a certeza que a eficácia de uma formação deste género
assentava num corpo a corpo com espada, o que não corresponde com o que sugere Vegécio,citado na nota precedente.
Segundo ele, tal dispositivo permitia romper a linha inimiga: quia a pluribus in unum locum tela mittintur. Seja como
for, deve-se evitar fazer da arma branca um elemento decisivo a favor dos guerreiros peninsulares; sabe-se que os
Romanos dispuseram, a partir do fim do século III a. C., de uma espada idêntica à dos Celtiberos – F. Quesada Sanz,
«Gladius Hispaniensis…», pp. 251-270.
235
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 410. A pretensa dificuldade experimentada pelos Romanos frente aos «bárbaros» do
extremo ocidental da Europa, ao lembrar ao autor o caso em que um exército moderno é derrotado por um adversário
menos evoluído, fez com que se contentasse em explicar largamente o princípio por meio do exemplo da derrota das
98
O caso da Hispânia mostra que esta visão estereotipada acaba por distorcer a análise
da evolução do próprio exército romano: é o que se vê no que respeita à coorte
legionária. Os dados arqueológicos militares, relativamente abundantes na Península
Ibérica, apoiam esta constatação. Os acampamentos republicanos situados à volta de
Numância, os únicos que proporcionam elementos concretos das suas estruturas
internas, não servem para confirmar no terreno uma hipotética transição do manípulo
para a coorte236, contrariamente ao que imaginou Adolph Schulten. Não nos alongamos
sobre o assunto, visto que o desenvolvemos noutra alínea, dedicada à castrametação.
Quanto à «excepção» hispânica defendida por Bell, ela não surge claramente nas
fontes antigas. Se a maneira de guerrear dos «bárbaros», como a dos Celtiberos, veio a
servir de elemento catalisador para a imposição do recurso exclusivo a uma nova
fórmula táctica, então é, no mínimo, curioso que os textos livianos respeitantes aos
anos 185 e 182 a. C. não contenham qualquer referência à coorte comparada ao cuneus,
mesmo quando estamos diante de duas das descrição mais detalhadas que possuimos
para a Hispânia neste período; Políbio, por seu turno, refere que a coorte já se utilizaria
na Península Ibérica desde 206 a. C., pelo menos. Contudo, a menção polibiana, a
menos ambígua das que dispomos, inscreve-se no relato da refrega de Ilipa, onde teve
lugar um choque em formação contra um exército cartaginês, onde a infantaria pesada
africana, e não as suas tropas peninsulares, surgem descritas como a elite das forças
púnicas.
O que expusemos nas linhas precedentes é suficiente para afirmar que a coorte, como
não obedecia à funcionalidade rígida que Bell lhe atribuiu, não resultou de uma
necessidade táctica imposta pelas características supostamente peculiares da guerra na
Hispânia. Como compreender a abundância, nas fontes literárias, das ocorrências à
coorte legionária, nas narrativas relativas à conquista da Península Ibérica? Neste
aspecto, convém matizar a originalidade do corpus documental concernente à
Hispânia.
O vocábulo cohors aparece amiúde nas fontes literárias: habitualmente designa
explicitamente os contingentes dos socii (é o seu sentido mais frequente em Tito Lívio,
havendo cerca de 40 atestações). É mais raramente possível associá-lo às legiões
romanas. Quando aplicado neste sentido para os primeiros séculos da República, fica a
forte suspeita de se tratar de um anacronismo 237. Além disso, a falta de rigor dos
tropas inglesas pelos Escoceses em Prestonpans (1745) e de uma citação retirada da Arte da Guerra de Sun-Tzu (4.27).
236
F. Cadiou, «Les guerres en Hispania…», p. 174.
237
Na primeira década de Lívio, encontramos 27 menções à coorte num contexto legionário. Mas a natureza das tropas
nem sempre é clara. Quando a palavra se relaciona manifestamente com os soldados romanos, ela parece servir
comodamente ao autor para designar um contingente inferior a uma legião inteira. Há também três passagens de
Frontino (Strat. 1.6.1; 2.12.1; 4.1.29) que se inserem nesta categoria.
99
autores antigos levou-os a chamar genericamente cohors diferentes tipos de unidades,
incluindo até formações «bárbaras»238.
Esta ambiguidade é mais flagrante na literatura de língua grega, onde σπείρα quer
dizer «manípulo» em Políbio, mas este termo já tem o significado de «coorte» nas
obras de escritores da época imperial (Plutarco, Díon Cássio, Dionísio de Halicarnasso).
Bell239 demonstrou convincentemente que Apiano de Alexandria empregou, com toda a
probabilidade, a palavra nas suas duas acepções (em função das fontes em que se
inspirou), recorrendo a τάξεις, quando evoca, para o século II a. C., uma unidade
manifestamente maior que o manípulo mas inferior à legião. Esta confusão
terminológica conduziu a que muitos historiadores tenham optado, na esteira de
Marquardt, por manter uma atitude hipercrítica, nomeadamente para o conjunto das
referências contidas no texto liviano: nesta óptica, o carácter irrefutável do testemunho
de Políbio em relação à Segunda Guerra Púnica seria considerado como uma excepção,
reflectindo, quando muito, a utilização do étimo coorte enquanto expediente
temporário240. O contributo de Bell serviu para provar quão injustificada era tal rejeição
global: ao saber que Políbio atesta a existência da coorte em 206 a. C. na Hispânia, o
autor reconsiderou várias das menções de Lívio relativas a este mesmo teatro de
operações, salientando a existência de 16 ocorrências, mas lamentavelmente não
explicita pormenores sobre os seus critérios de selecção, salvo o contexto peninsular
dessas passagens241.
Neste conjunto, certas propostas são razoáveis, a começar pela interpretação da
narração da batalha de Ilipa, compatível com os informes polibianos: a expressão
precisa romano milite cornibus firmatis deixa pouco espaço para dúvidas quanto à
presença de coortes romanas nas unidades aliadas que compunham as alas (Ita
deductis cornibus cum ternis peditum cohortibus ternisque equitum turmis ad hoc
uelitibus citado gradu in hostem ducebant sequentibus in obliquum aliis)242.
Do mesmo modo, nada se opõe à possibilidade de as coortes referidas a propósito do
motim do Sucro, no mesmo ano, se comporem, em parte, de legionários 243. Com efeito,
não acreditamos que os amotinados (em número de 8 000) fossem principalmente
socii: neste caso, dificilmente se compreenderia as admoestações repletas de desprezo
238
Isto assinala-se num considerável número de passagens livianas (32 ao todo), o que se pode explicar pela utilização de
fontes gregas, para a terminologia das quais era preciso encontrar um equivalente. Veja-se igualmente Frontino, Strat.
1.6.3; 4.1.7.
239
Bell, «Tactical Reform…», p. 406.
240
Políbio, Hist. 11.23.1; 11.33.1.
241
Bell, «Tactical Reform…», p. 405: na realidade, o autor aponta 17 referências, embora só cite 16 numa nota.
242
Lívio, Ab Urb. cond. 28.14.17. Compare-se com Políbio, Hist. 11.23.1: καί λαβών … τρείς ϊλας ίππέων τας
ήγουμένας καί πρό τούτων γροσφ ομάχους τούς είθ ισμένους καί τρείς οπέίρας (τού το δέ καλειται τό
σύταγμα τών πεζ ών παρά ‘Ρωωαίοιςκοόρτίς).
243
Lívio, Ab Urb. cond. 28.25.15.
100
que Cipião lhes dirigiu, na sua alocução em Carthago Nova, invectivando-os por
escolherem como chefes Atrius de Úmbria e Albius de Cales.244
O âmbito em que aparecem as ocorrências à coorte nesta ocasião é, ademais, o de um
fraccionamento do exército em movimento, não de uma divisão administrativa (illa
dubitativo erat, singulae ne cohortes an uniuersi ad stipendium petendum irent). Por
último, o confronto com os Ilergetas, também em 206 a. C., sugere que o agrupamento
táctico em coorte podia muito bem obedecer a uma necessidade pontual no campo de
batalha (quattuor cohortes in fronte statuit quia latius pandere aciem non poterat)245.
Nestas condições, será de concordar com Bell, de que as referências em duas passagens
a uma cohors Romana, para os anos 211 e 195, se afigura plausível, e que todas as
menções livianas aceitáveis não se aplicam exclusivamente aos aliados 246.
Consequentemente, esta constatação permite interpretar, neste sentido, certas menções
equívocas, mas não se deve extrair conclusões categóricas em todos os casos 247.
No entanto, a coerência do corpus informativo respeitante à Hispânia não é tão estrita
como sustentou Bell. Certos textos que este autor reteve devem descartar-se, na falta de
elementos suficientemente sólidos. Repare-se que Frontino (Str. 2.6.2, para 211 a. C.)
não inclui qualquer alusão à coorte. A menção explícita a uma cohors romana a
propósito de Márcio, em 211 a. C., não basta para provar que é o mesmo episódio (Lívio,
Ab Urb. cond. 25.39.2). Existe, igualmente, uma história protagonizada por Q. Metelo
Macedónico, ocorrida em 143, relatada por vários escritores antigos, na qual se faz
referência a cinco coortes248.
Por si só, o contexto não basta para pôr de parte a hipótese de se tratar de socii. De
facto, urge não depreender, a partir do momento em que se atesta a coorte legionária
na Hispânia, que toda e qualquer referência à mesma nas fontes (sobre este teatro de
operações) corresponda a uma alusão às formações de legionários. Contrariamente ao
que sustentou Bell249, o manípulo continuou a estar presente, na obra de Lívio, como
244
Ibidem, 28.27.14-15; 28.4.
245
Ibidem, 28.33.12. Compare-se com Políbio, Hist. 11.33.1.
246
Ibidem,25.39.2 (para 211 a. C.); 34.20.3 (para 195 a. C.). No primeiro caso, todavia, é preferível usar de cautela, antes
de o considerar como a «earliest certain reference… to a cohors Romana». Lembremos que os pormenores do relato de
Lívio sobre as façanhas de Lúcio Márcio em 211 não gozam de grande credibilidade no âmbito historiográfico relativo à
Segunda Guerra Púnica: de facto, vários estudiosos tenderam a ver nessa récita uma invenção analística que se
destinaria a compensar o desastre dos Cipiões; a este respeito, vejam-se os comentários de H. H. Scullard ( Scipio
Africanus in the Second Punic War, Cambridge, 1929, p. 53) e de J. F. Lazenby (Hannibal’s War…, p. 131). Seja como
for, esta reserva não basta para retirar toda a fiabilidade aos dados transmitidos por Lívio sobre a coorte. Mas ela incita
a que não se lhe atribua excessivo valor informativo, a fim de fixar um terminus ante quem para a sua criação. Bell
(«Tactical Reform…», p. 415), ao constatar que Lívio não faz qualquer referência a algum tipo de inovação nesta matéria
por Márcio, entendeu então que caberia associá-la aos primeiros Cipiões, cujas actividades bélicas se encontram menos
documentadas.
247
Neste sentido, podemos apenas excluir as cohortes duas da batalha de Baecula (Lívio, Ab Urb. cond. 27.18.10), ou as
que surgem no ano 206 a. C. em Lívio (ibidem, 28.13.8; 28.23.8), como sendo efectivamente coortes legionárias. É
excessivo aceitá-las acriticamente, como fez Bell.
248
Frontino, Strat. 4.1.23: Q. Metellus Macedonicus in Hispania quinque cohortes quae hostibus cesserant
testamentum facere iussas, ad locum reciperandum remisit, minatus non nisi post uictoriam receptum iri. Exemplum
que conhecemos também através de Valério Máximo (2.7.10) e de Veleio Patérculo (2.5), narrativas em que o vocábulo
cohors volta a surgir.
249
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 405. «By contrast, Livy at no time mentions the maniple in Spain».
101
unidade táctica. Captam-se indícios, pelo menos para 206 a. C., ano em que a coorte,
segundo Bell, é a mais explicitamente atestada250. Parece impossível conceber uma
substituição neste plano, tanto mais que em Políbio as referências ao manípulo são
dominantes, incluindo para a Hispânia251.
A extrema indigência das menções ao manípulo em contexto táctico no palco ibérico
na obra liviana nada tem de particular, visto que o mesmo se assinala noutros teatros
de operações contemplados pelo autor. Assim, não se contam mais de três referências
para a Segunda Guerra Púnica: uma para o exército da Campânia, em 209, uma para o
de Bruttium, em 207, e outra, por fim, para as forças de Cipião na batalha de Zama 252.
Relativamente à primeira metade do século II a. C., dispomos só de duas menções: uma
situada em 178, a propósito da campanha do cônsul Mânlio na Hístria, e outra,
respeitante a 171, aquando do cerco de Haliarte, na Beócia, pelo pretor Lucrécio 253.
Ora isto é bem pouco, como afirmou F. Cadiou 254, para que Bell concluísse que Lívio
evocou a coorte para a Hispânia e o manípulo para outros espaços geográficos, 255 tanto
mais que o historiador augustano não reserva a expressão cohors Romana ou cohors
legionariae apenas em exclusivo para a Península Ibérica. Encontramos quatro
referências, pelo menos – ou seja, mais duas do que para as campanhas hispânicas -,
todas respeitantes a eventos ocorridos na Grécia: a primeira relaciona-se com o auxílio
de Sulpício Galba aos Etólios, no Outono de 208, por Sulpício contra Filipe V da
Macedónia (ispse rex cum equitatu in cohortem Romanam incurrit [Ab Urb. Cond.
27.32.4]); a segunda também tem que ver com o soberano macedónio (nunc auiditate
caedis intemperantius secuit in praegressas cum tribunis militum cohortes Romanas
incidere – ibidem, 31.37.5); a terceira encontra-se no relato da confrontação entre
Nabis e Flamínio, em 195 (primae legionariae cohortes ibant, leuis armatura et
equites cogebant – ibidem, 34.28.7)256.
250
Lívio, Ab Urb. cond. 28.19.9: scalas electis per manipulos uiris diuidunt. As referências à trariorum em 207 a. C.
(ibidem, 28.3.14) e à principes hastatosque para 195 (ibidem, 34.15.16) constituem também elementos que indiciam a
continuidade do emprego táctico do manípulo, as quais Bell rejeitou («Tactical Reform…», p. 404). Não existe a menor
dúvida que o manípulo se manteve como a unidade administrativa de base: para 211 a. C., Lívio qualifica geralmente os
legionários como manipulares: neque sedari lamentatio poterat excitantibus centurionibus manipulares (Ab Urb.
Cond. 25.37.10). O costume prevaleceu até ao fim da República, como se confirma em Cícero (Phil. 5.5), mas num
contexto extra-peninsular.
251
Políbio, Hist. 10.15.9; 10.35.5; 11.22.10; 11.23.6. Bell reconheceu este facto («Tactical Reform…», p. 414), mas achou
que Políbio teria subestimado a importância da nova capacidade táctica, tanto por razões pessoais (a sua formação grega
tornava-o incapaz de compreender a «guerilha» das populações hispânicas), como por outras circunstanciais (ele esteve
na Hispânia com Lúculo, em 151-150, tendo o último realizado uma tímida estratégia de concentração das suas forças,
não dando oportunidade a Políbio para observar a coorte). Nenhuma destas ideias assenta em lastro firme.
252
Para 209 a. C.: Lívio, Ab Urb. cond. 27.13.7-9; 14.10; para 207: ibidem, 30.33.1, 30. 33.3, 30.33.15. Fora do contexto
táctico, cita o manípulo em duas ocasiões, para designar os combatentes, em 215 (ibidem, 23.42.9: manipulatim), e em
212 (ibidem, 25.14.7: manipulares sui.
253
Para 178: ibidem, 41.1.5; 41.2.3. Para 171: ibidem, 42.63.5.
254
«Les guerres en Hispania…», p. 178.
255
M. Bell, «Tactical Reform…», p. 409. «Livy speaks consistently of the cohort in Spain and the maniple elsewhere».
256
Contudo, não sabemos se Títo Lívio utilizaria sempre o vocábulo no seu sentido técnico. Seja como for, não há razões
para pôr de parte estes testemunhos a favor dos que estão conectados com a Península Ibérica. Em todo o caso, eles
contradizem claramente a ideia segundo a qual as fontes sugeririam que as guerras no Oriente privlegiavam
tacticamente o manípulo em detrimento da coorte, contrariamente às que se desenrolaram no Ocidente. Será de pensar
noutra explicação para a aparição, nas fontes, de uma coorte legionária a partir do início da conquista da Hispânia?
102
Na realidade, se nos limitarmos aos trechos em que as coortes legionárias se afiguram
prováveis ou verosímeis, conseguimos reparti-las em dois grupos básicos: quando não
dizem respeito às campanhas de Cipião, na segunda metade da Segunda Guerrra
Púnica (nomeadamente para o ano 206 a. C.), reportam-se todas às conduzidas por
Catão, em 195 a. C257.
É caso para perguntar até que ponto esta repartição não reflecte a natureza das fontes
que Políbio e Tito Lívio usaram para descrever tais episódios 258: sabemos que Políbio se
apoiou numa importante documentação em primeira mão, em que os testemunhos
orais dos actores, especialmente Laelius, desempenharam um papel essencial 259.
Quanto ao livro XXXIV de Lívio, em larga medida consagrado à campanha de Catão, ele
ocupa um lugar especial no conjunto da obra, onde se observa toda uma profusão de
detalhes e uma invulgar precisão na terminologia técnica260. Isto talvez se explique por
Lívio utilizar o relato que o cônsul provavelmente lhe entregou, respeitante à sua
campanha na Citerior261.
É significativo que os dois únicos trechos de Apiano e de Plutarco, cujo vocabulário
Bell entendeu corresponder a uma descrição da coorte para o século II a. C., estejam
relacionados precisamente com as operações bélicas realizadas por Catão em
Emporion (Ampúrias)262. Assim, a eventual «sobrerepresentação» da coorte no
contexto hispânico talvez se deva ao acaso da documentação, em que a precisão
incomum nos esclarece sobre um aspecto usualmente ignorado, no seu detalhe, pelas
fontes263.
Com efeito, o conjunto das potenciais ocorrências da coorte legionária na Península
Ibérica reporta-se a manobras pontuais, efectuadas durante os combates, para as quais
o pequeno tamanho do manípulo não se adequaria. Eis alguns exemplos: um complexo
movimento envolvente (Políbio, 11.23.1; Lívio, 28.14.17; 34.14.10); a adaptação do
257
Lembremos as reservas que colocámos quanto à cohors Romana de Márcio, em 211 a. C.
258
Bell («Tactical Reform…», p. 405) limitou-se a citar Klotz (em F.HA, III, p. 52), que considerou que o essencial das
passagens de Lívio se deveria a Coelius Antipater, Claudius Quadrigarius e Valerius Antas: o primeiro autor, que
escreveu ao longo da década de 120 a. C., corresponderia à fonte mais utilizada pelo historiador augustano no que
respeita à Hispânia. E. Rawson («The Literary Sources for the Pre-Marian Army», p. 18), tal como M. Bell, só menciona
a coorte para o Ocidente, já que, ao contrário da sua narrativa dos factos ocorridos no Oriente, em que se apoiou
essencialmente em Políbio, ele se teria servido, para a outra pars do império, dos analistas, menos fiáveis; esta
académica reconheceu, ainda assim, a superior qualidade informativa do texto de Coelius. Conquanto verdadeira na sua
globalidade, não se deve sistematizar esta selecção de dados por Lívio, em particular para a Segunda Guerra Púnica,
uma vez que a sua récita das campanhas hispânicas muito deve a Políbio.
259
Não há dúvida que ele obteve do «lugar-tenente» de Cipião numerosos «pequenos factos verdadeiros» sobre as
operações conduzidas pelo último na Península Ibérica: cf. Políbio, Hist. 10.3.2.
260
Veja-se, por exemplo, a descrição das operações de 195 a. C., que comporta um vocabulário que raramente se assinala
noutras parcelas da sua obra. Consultem-se, a propósito: P. G. Walsh, Livy: his Historical Aims and Methods,
Cambridge, 1966, p. 163; J. Martínez Gázquez, La campaña de Catón en Hispania, Barcelona, 1974, p. 65; A. E. Astin,
Cato the Censor, Oxford, 1978, p. 28.
261
Parece a hipótese mais plausível, segundo a maioria dos especialistas. B. Janzer, Historische Untersuchungen zu den
Redenfragmenten des Porcius Cato, Würzburg, 1936, pp. 15-16; P. Fraccaro, «Le fonti per il consolato di M. Porcio
Catone», in Opuscula, I, Pavia, 1956, pp. 193-197; J. Martínez Gázquez, La campaña de Catón…, pp. 69-70; A. E. Astin,
Cato the Censor, pp. 302-307. No entanto, é impossivel determinar se Tito Lívio leu directamente o texto de Catão ou se
o fez por meio de outra fonte.
262
Plutarco, Vida de Catão, 11; Apiano, Ib. 40.
263
F. Cadiou, «Les guerres en Hispania…», p. 179.
103
dispositivo de batalha ao terreno (Políbio, 11.33.1; Lívio, 28.33.12); a necessidade de um
contingente de reserva (Lívio, 34.15.1; Apiano, Ib. 40); a utilização de um destacamento
para uma emboscada (ibidem, 25.39.1; 34.20.5); uma força para manter um posto
avançado (stationes; ibidem, 27.18.10; 28.13.8); ou um meio destinado, simplesmente,
para provocar o inimigo (ibidem, 34.14.1; 34.19.9).
Aparentemente, as guarnições eram constituídas por várias coortes (ibidem, 28.23.8;
28.25.15), e talvez uma divisão do exército em campanha se organizasse igualmente
desta forma (ibidem, 34.12.6; 34.19.10; 34.20.3). Esta utilização puramente táctica
explicaria o motivo pelo qual a coorte é citada por Políbio em dois relatos de batalhas,
mas não no seu livro VI, onde descreve o agmen e não a acies, cuja apresentação
ulterior, anunciada, se perdeu264.
Porém, esta formação legionária, de carácter temporário, coexistiu com uma estrutura
aliada permanente que tinha o mesmo nome, o que causou confusão, tanto entre os
autores antigos como entre os historiadores modernos. Assim, um fragmento das
Orationes de Catão alude claramente a uma cohors:
Interea unamquamque turmam manipulum cohortem temptabam quid facere possent;
proeliis leuibus spectabam cuiusmosdi quisque esset; si quis strenue fecerat, donabam honeste,
ut alii idem uellent facere, atque in contione uerbis multis laudabam 265.
Mas o contexto indica que o cônsul de 195 a. C. evoca aqui os seus contingentes de
socii, traduzindo-se a passagem numa enumeração das suas três categorias de tropas:
cavalaria (turma), infantaria legionária (manipulus) e infantaria aliada (cohors)266. É
pouco provável que Catão adicionasse uma formação táctica a duas unidades
administrativas. Infelizmente, este trecho é o único, atribuível ao cônsul, que menciona
a coorte. Contudo, o facto de ele associar manifestamente a última aos socii não
impede, por outro lado, que a palavra tenha sido empregue com diferente sentido.
Posto isto, não é impossível que o relato de Lívio, pouco ligado ao rigor técnico, nem
sempre tenha marcado bem (ou compreendido) a diferença. Deste modo se explicaria a
dificuldade de interpretar seguramente certas passagens referentes à campanha de 195,
haja em vista a narração da refrega de Emporion, onde se torna difícil apurar se os
destacamentos eram constituídos por aliados ou legionários.
Observa-se situação análoga a propósito do simulacro dos preparativos de partida,
aos quais o cônsul se entregou na presença dos embaixadores ilergetas, pouco após
haver chegado: aqui tão pouco se precisa a natureza das tropas envolvidas (denunciari
militum parti tertiae ex omnibus cohortibus iubet ut cibum quem in naues imponant
264
Argumento que E. Rawson já sugerira: «Literary Sources for the Pre-Marian Army», p. 19.
265
Catão, frag. 35. J. Martínez Gázquez (La campaña de Catón…, p. 120) associou plausivelmente o teor deste fragmento
aos preparativos para a batalha de Emporion referidos por Lívio (Ab Urb. Cond. 34.13) e Apiano (Ib. 39).
266
Seguimos a opinião de F. Cadiou («Les guerres en Hispania…, p. 180). Para E. Rawson («Literary Sources…», p. 19, n.
20) e M. Dobson, na sua tese de doutoramento (The Roman Camps at Numantia: a Reapparaisal in the Light of a
Critical Analysis of Polybius’ Discourse on the Roman Army, Exeter, 1996, p. 67), a coorte citada no fragmento seria
legionária, ideia que nos parece incorrecta.
104
mature coquant – Lívio, 34.12.6). Não faria sentido que as instruções de Catão se
destinassem apenas aos socii. Cabe então imaginar duas alternativas – ou estamos
diante de um erro de Tito Lívio, ou trata-se de um caso semelhante ao que, por outro
lado, a narração sugere, em que a coorte servia para dividir as legiões em corpos
expedicionários (Lívio, 34.19.10; 34.20.3). De facto, sabemos que, por meio deste
estratagema, o cônsul pretendia justamente evitar enfraquecer o seu exército (minuere
exercitum), ao contentar os seus aliados indígenas (Lívio, 34.12.1).
Estas incertezas dificultam os nossos esforços analítico-interpretativos, mas é
tentador concluir que a presença da coorte nos textos concernentes ao período anterior
ao século a. C. não limita a uma só explicação: o anacronismo flagrante pressente-se na
referência aos aliados, sem excluir a menção a uma autêntica unidade táctica
legionária. Mas não sobrestimemos a coerência interna das fontes. De um livro para
outro, ou mesmo no interior de um só, a presença e o significado da palavra cohors
podem variar consoante o contexto, mas sobretudo em função da documentação
utilizada pelo autor.
Muitas vezes interpretada como reflexo da inferioridade da tradição analística,
preponderante na narração dos eventos do Ocidente, a concentração das referências a
uma coorte pré-mariana para a Hispânia poderia proceder, em parte, do recurso (muito
pontual e desigual) a informações obtidas em primeira mão, mais precisas do que o
habitual. Consequentemente, a nível táctico, a especificidade dos exércitos romanos
que combateram na Península Ibérica nos séculos III e II a. C., é apenas aparente.
Pelo que ficou exposto, as hipóteses aventadas para relacionar a aparição e o
desenvolvimento da coorte legionária com as guerras conduzidas pela Urbs na
Península Ibérica carecem de fundamentos suficientemente sólidos. As tradições
guerreiras hispânicas, não mais do que as dos Cimbros ou dos Teutões um século
depois, estariam desprovidas da especificidade que esporadicamente se lhe atribuiu.
Assim, longe de encontrar a sua origem nos constrangimentos bélicos próprios da
Hispânia, a coorte parece ter coexistido constantemente com o manípulo, desde a
Segunda Guerra Púnica, pelo menos, no conjunto dos teatros de operações da
conquista. Este aspecto do exercitus republicano está muito mal documentado. No
entanto, a extrema pobreza de ocorrências fiáveis da coorte nas nossas fontes não
permite refutá-lo, o mesmo valendo para o manípulo, também pouco mencionado nos
relatos de campanhas militares.
O argumento ex silentio revela-se claramente insuficiente: nesta perspectiva, o corpus
documental relativo à Península Ibérica manifesta a sua verdadeira originalidade; ele
permite fazer remontar certas menções à coorte legionária a testemunhos como os de
Laelius ou de Catão, ocupando lugar em pormenores técnicos geralmente arredados do
105
discurso dos historiadores antigos. Assim, oferece-nos a oportunidade de captar,
mesmo que difusamente, o quadro em que tal unidade táctica era usualmente adoptada
ao tempo: circunscrita a manobras precisas no campo de batalha ou a tipos de
destacamentos pontuais, como as guarnições, a coorte representava uma maneira
alternativa de organizar e utilizar os manípulos, e não uma unidade per se267. Encontra-
se um eco deste facto em Salústio, que a par de historiador foi militar, a propósito da
Guerra de Jugurta. Em 107 a. C., a legião manipular de Metelo, atacada pelas forças
númidas junto do rio Muthul, conseguiu, graças à coorte, mudar a sua ordem de
batalha, apesar da confusão da contenda (Bell. Iug. 49.6).
Só mais tarde, a seguir à «Guerra Social», por ocasião da única transformação
institucional que se conhece para o exército republicano após a criação da legião
manipular, é que o significado desta subdivisão veio a mudar.
***
106
Schulten ou o Marquês de Cerralbo defenderam que o pilum «nasceu» na Península
Ibérica, teoria que actualmente se sabe não corresponder à realidade, há, é certo, um
texto clássico que remete para uma tal origem (Ateneu de Damasco, Deipn. 6.273ss.
gaison), mas é contrariado por muitos outros que atribuem diferentes procedências ao
pilum271. Para F. Quesada Sanz, «Há […] mais de convergência táctica do que difusão no
aparecimento, desde o século VI a. C., de armas arrojadiças pesadas, tanto em Itália
como na Península Ibérica»272. Já em 1926 Couissin273 criticara a proposta de Schulten.
Cabe talvez imaginar uma origem itálica para o pilum romano e numa peninsular ou
pirenaica para as «versões» hispânicas e gaulesas (incluindo o soliferreum e a falarica,
funcionalmente similares ao pilum)274.
No tocante ao gládio, alguns sugeriram que os Romanos se teriam limitado a alongar
a lâmina da espada que já utilizavam, bebendo inspiração, mas indirectamente, numa
arma celtibérica, e apenas a adaga (pugio) significaria um empréstimo directo dos
Celtiberos, a qual desempenhava um papel bastante limitado no armamento romano.
Neste assunto, todavia, são mais credíveis os argumentos que Quesada Sanz carreou, os
quais aceitámos e desenvolvemos anteriormente.
Sobre o pugio, ao contrário do gladius, não colhemos referências antigas que
especifiquem terem os Romanos obtido o protótipo da adaga na Península Ibérica. Esta
ideia foi primeiramente exposta por H. Sandars 275 e depois retomada por Schulten 276, na
sua obra sobre Numância. As manifestas afinidades formais entre o pugio romano alto-
imperial e as adagas biglobulares celtibéricas (que também se atestam, no âmbito
peninsular, na zona catalã, levantina e na Andaluzia 277) justificam que se sustente uma
clara origem hispânica. A obsoleta e arrevesada sugestão de Couissin 278, segundo a qual
a lâmina pistiliforme romana derivaria de modelos gregos (o xiphos ou espada curta) e
a sua empunhadura se basearia em protótipos hispânicos não faz actualmente qualquer
sentido, visto que conhecemos espécimes bidiscoidais peninsulares com lâminas
pistiliformes.
Contudo, neste contexto, faltam elementos informativos, como para o hiato, no que
concerne ao material arqueológico romano, entre cerca de 133 a. C. (a suposta altura
em que os Romanos terão adquirido adagas celtibéricas, das quais posteriormente se
fabricariam cópias) e o século I d. C. (quando as «descendentes das primeiras se
271
Ibidem, p. 336ss.
272
«El legionario romano en epoca de las Guerras Punicas…», p. 189; IDEM, El armamento ibérico…, p. 340.
273
P. Couissin, Les armes romaines, p. 185.
274
F. Quesada Sanz, El armamento ibérico, pp. 331-343.
275
H. Sandars, The Weapons of the Iberians, Archaeologia 64, Oxford, 1913, p. 64.
276
A. Schulten, Numantia. Die Ergebnisse der Ausgrabungen 1905-1912. Die Stadt Numantia, Munique, 1931, pp. 214-
215.
277
F. Quesada Sanz, El armamento ibérico, p. 293, fig. 173.
278
Couissin, 1926, p. 236.
107
generalizariam como peça do equipamento-padrão nas legiões acantonadas no Reno),
se bem que a bainha descoberta em Basileia, anterior a 15 a. C. 279, e a estela de Pádua 280,
de aproximadamente 42 a. C., nos proporcionem uma conexão parcelar. Consideramos,
na esteira de G. Ulbert281 e Quesada Sanz282, que o momento da adopção, quiçá
inicialmente por meio de elementos de despojos ou de um troféu, terá correspondido à
guerra numantina. Além disso, na época de Cáceres el Viejo, as adagas bidiscoidais já
seriam frequentes nas legiões283.
Frequentemente, muitos estudiosos opuseram a superioridade de manobra das legiões
romanas face à rigidez das falanges dos reinos helenísticos, incapazes de pelejarem
segundo modalidades mais flexíveis, ao contrário dos guerreiros ibéricos que as
empregaram habitualmente, não se cingindo estes à prática da «guerrilha», como
amiúde alguns ainda supõem. Na sua monografia sobre a conquista romana da
Hispânia, F. Cadiou tendeu a relativizar o contraste entre a disciplina colectiva dos
legionários e a bravura individual que, alegadamente, seria apanágio dos seus
oponentes peninsulares; ainda contribuiu para restituir o lugar ocupado pela batalha
campal no Ocidente, fenómeno que teve lugar com certa recorrência no espaço ibérico.
Importa matizar diversos aspectos de uma visão preconcebida que, estranhamente,
continua a prevalecer em determinados livros e artigos. Por último, os métodos de
combate utilizados pelo exército romano até teriam mais pontos em comum do que
diferenças, quando cotejados com os dos seus inimigos, como F. Quesada Sanz
mostrou284.
Ao precisar de se adaptar a um esforço bélico que se estendia a frentes cada vez mais
distantes, o exército censitário passou por várias transformações, designadamente no
plano logístico. Os legionários passaram assim a efectuar certas tarefas de intendência e
de administração, imprescindíveis para a vida quotidiana no decurso das campanhas
ou no aquartelamento de Inverno (castra hiberna).
279
Helmig, 1990.
280
Ibidem; M. Bishop e J. Coulston, Roman Military Equipment, p. 55, fig. 20.
281
G. Ulbert, Cáceres el Viejo. Ein spätrepublikanisches Legionslager in Spanisch-Extremadura, Mainz, Philipp von
Zabern, 1984, pp. 108-109.
282
«El legionario en epoca de las Guerras Punicas…», p. 188.
283
Contra M. Luik, Die funde aus den Römischen Lagern um Numantia…, 2000, p. 90.
284
«Not so different: individual fighting techniques and battle tactics of Roman And Iberian armies within the
framework of warfare in the Hellenistic Age», in P. François, P. Moret e S. éré-Nogués (eds.), L’Hellénisation en
Méditerranée Occidentale au temps des guerres puniques. Actes du Colloque International de Toulouse, 31 mars-2
avril / Pallas 70 (2006), pp. 245-263.
108
Como vimos, as cidades latinas (nomen Latinum) e o resto dos aliados (socii)
italianos eram obrigados a fornecer contingentes específicos, de acordo com que se
estipulara nos seus acordos com a República romana. Vários aliados que habitassem na
linha costeira da península, designadamente nas cidades gregas do Sul de Itália, como
Neapoli (Nápoles), Rhegium, Locri e Tarentum, facultavam navios de guerra,
embarcações de transporte e tripulantes, ao passo que a infantaria romana e a aliada
servia a bordo das galés de combate como «fuzileiros navais» (Políbio, Hist. 1.20.13-14;
Lívio, Ab Urb. cond. 26.39.5, 36.42.1-2). No entanto, as grandes frotas da Primeira e da
Segunda Guerras Púnicas não ressurgiriam nos conflitos que se desenrolaram no século
II a. C.
As unidades do exército latinas e aliadas estavam equipadas como as suas homólogas
romanas, com efectivos variáveis de infantaria e cavalaria adstritos a cada exército: as
seis legiões formadas em 218 a. C. totalizaram 24 000 infantes e 1800 cavaleiros
romanos, afora mais de 40 000 aliados apeados e 4 400 de cavalaria (Lívio, Ab Urb.
cond. 21.17.1-2, 17.5); mas em Canas, o número de soldados de infantaria equivalia ao
dos Romanos (Políbio, Hist. 3.107.12).
Esta quase igualdade, ou certa homogeneização, observável no século II a. C., deveu-
se talvez à constatação de que as devastações da guerra hanibálica, bem como as
exigências constantes de recrutamento pelos Romanos, estavam a causar danos nos
recursos humanos dos aliados. Mais tarde, no mesmo século é possível que se tenha
assistido a uma certa recuperação nos efectivos aliados ou, pelo menos, os Romanos
assim achariam, já que o ratio parece, uma vez mais, haver subido para 2:1, por volta
de 90 a. C285.
285
Sobre as coortes aliadas: J. F. Lazenby, Hannibal’s War. A Military History of the Second Punic War, pp. 12-13, 22.
As coortes romanas: J. Kromayer e G. Veith, Heerwesen und Kriegführung der Griechen und Römer, pp. 299-300 (Ilipa
“die erste Belegstelle”), pp. 427-434; L. Keppie, The Making of the Roman Army, pp. 63-66 (datando-as do tempo de
Mário, o que não corresponde à verdade).
286
N. Fields, Roman Military Tactics 390-110 BC, pp. 52-60.
109
quando fosse montada uma emboscada, como sucedeu em Trasimeno, ou houvesse um
violento choque, como em Cinoscéfalas 287(gr. Kynoskephalai; lat. Cynoscephalae).
Realizava-se um apreciável número de manobras cautelosas, cada general buscando
escolher um sítio favorável para as suas tropas e evitando um local que pudesse
oferecer vantagens ao inimigo. Isto aconteceu, por exemplo, na Apúlia, durante meses,
em 217-216 a. C. Se bem que Aníbal tenha apanhado o exército romano desprevenido,
este veio a ser socorrido por Fábio Cunctator, que avançava com a outra metade dos
soldados. Na Hispânia, por seu turno, raramente se livraram batalhas decisivas,
assumindo os confrontos sobretudo a forma de recontros ou escaramuças, além de
envolver assaltos a numerosos centros fortificados da península.
Quando um exército romano participava numa grande batalha, esta podia determinar
o desfecho da guerra288. As excepções eram, obviamente, quando as forças da Urbs
perdiam e, neste caso, a guerra prosseguia. Actualmente os especialistas ainda
discutem bastante sobre como seria uma batalha «clássica» romana. Tanto podia ser
longa – três horas em Trasimeno e, supostamente, um prélio ainda mais demorado
contra os Ligures, em 172 a. C. (Lívio, Ab Urb. cond. 22.6.1, 42.7.5). A seguir às
escaramuças entre as tropas ligeiras de ambos os lados, uma batalha principiava
usualmente com os hastati a arremessarem os pila a curta distância, para desorganizar
o inimigo.
Surpreendentemente, talvez, esta iniciativa romana poucas vezes deparou com uma
resposta idêntica. Contra oponentes desprotegidos, como os Gaesatae, que porfiaram
completamente despidos em Telamon (Políbio, Hist. 2.30.1.5), os pila causavam
tremendos estragos mas, em contrapartida, parece que provocaram muito menos
consternação aos Púnicos, Macedónios e outras forças militares mais sofisticadas. A
seguir, as principais unidades de infantaria avançavam, uma após outra e, depois,
senão até antes, a cavalaria, posicionada nas alas, investia também contra as tropas
montadas adversas.
O combate corpo a corpo da infantaria não se resumia normalmente a uma mêlée em
que os beligerantes se defrontassem incansavelmente durante horas a fio. É fácil
perceber porquê: os soldados, ao utilizarem armaduras, escudos pesados e armas com
lâminas de ferro, não conseguiam aguentar um tal ritmo e esforço em termos físicos.
Prevalecia, em vez disso, um complexo padrão de confrontação, em que as fileiras dos
combatentes se entrechocavam ao longo de alguns minutos e, a seguir, cada um dos
lados retrocedia para recuperar o fôlego e reorganizar a formação: depois voltariam a
287
Sobre esta batalha: N. G. L. Hammond, «The campaign and battle of Cynoscephalae in 197 BC», Journal of Hellenic
Studies 108 (1988), pp. 60-82.
288
P. Sabin, «The mechanics of battle in the Second Punic War», in T. J. Cornell et al. (eds.), The Second Punic War. A
Reappraisal, pp. 59-79; IDEM, «The face of Roman battle», JRS 90 (2000), pp. 1-17; A. Goldworthy, Cannae, pp. 118-
143.
110
atacar (no apêndice deste capítulo, desenvolvemos detalhadamente este novo modelo
interpretativo). Na batalha de Zama, Cipião foi capaz, a meio da contenda, de mandar
recuar e realinhar todo o seu exército para o ataque final, recorrendo para o efeito a
sinais sonoros emitidos por trombetas, além de muito se ver ajudado pela passividade
da terceira linha de Aníbal, que quase se limitou a ficar a olhar, imóvel, para a
aniquilação do resto do seu exército (Políbio, Hist. 15.13-14; Lívio, Ab Urb. cond.
30.34).
Embora narrando uma batalha livrada aquando da guerra civil, em 43 a. C., Apiano
traça um quadro sugestivo do corpo a corpo (batalha de Filipos):
«…eles não lançaram qualquer brado de guerra… nem nenhum emitiu som 289 algum enquanto
pelejavam, estivessem a ganhar ou a perder. [Encurralados em pântanos e valas], incapazes de
empurrar as costas de cada um deles, achavam-se emaranhados uns nos outros com as suas
espadas, como se estivessem numa competição de luta. Se um homem caía, era imediatamente
retirado e outro tomava o seu lugar … Quando se encontravam extenuados, afastavam-se por
alguns instantes para recuperarem as forças … e depois lutavam uns contra os outros de novo.
Quando os novos recrutas apareceram, ficaram atónitos ao verem tudo isto se passar com tal
disciplina e silêncio» (Guerras Civis, 3.68.279-281; cf. 4.128.533-537).
A situação aqui descrita poder-se-ia aplicar tanto a Canas, antes da armadilha se
fechar sobre os Romanos, como a Zama, na sua terceira fase decisiva.
Lutar contra inimigos dispostos em falange ou noutros géneros de disposições menos
organizadas, haja em vista as hordas de Gauleses ou as unidades tribais hispânicas 290,
obrigava naturalmente a adopção de métodos diferentes. A falange podia revelar-se
irresistível, desde que avançasse firmemente e em solo plano. Assim, aos Romanos
restava aguardar até que a formação inimiga ficasse desordenada ao movimentar-se em
terreno acidentado, como sucedeu na batalha de Pidna 291, ou a carregar sobre a
retaguarda adversa ou um flanco desprotegido, o que os «filhos de Marte» fizeram em
Cinoscéfalas e em Magnésia. Frequentemente, a cavalaria decidia o resultado de uma
contenda campal, como aconteceu com Aníbal, que a utilizou em Canas, ganhando
fama; também recorreu aos ginetes o pretor Varão, contra Mago, na Ligúria, em 203 a.
C. (Lívio, Ab Urb. cond. 30. 18.1-13), bem como Masinissa e Lélio (Laelius), em Zama,
além do rei Eumenes de Pérgamo em Magnésia.
Os Gauleses, apesar de imbuídos de ardor belicoso, caracterizavam-se por terem
pouco disciplina, e a maioria deles possuía pouco armamento, à excepção dos escudos e
das espadas para assestar cutiladas. Os Hispanos, pelo contrário, estavam bem
equipados e ganharam acrescido treino desde que passaram a servir os Cartagineses. As
forças tanto gaulesas como hispânicas podiam exercer uma tremenda pressão sobre um
sólido dispositivo composto por legionários; mas, numa batalha, a dada altura, os
289
Sobre este suposto silêncio das tropas romanas, que alguns estudiosos modernos entenderam ser uma das
características típicas da actuação dos milites, teceremos mais comentários noutro capítulo.
290
P. Connolly, Greece and Rome at War, pp. 113-126, 150-152.
291
Para a descrição desta refrega, travada em 22 de Junho de 168 a. C., entre Lúcio Emílio Paulo e as forças macedónicas
do rei Perseu, consultem-se: N. G. L. Hammond, «The Battle of Pidna», Journal of Hellenic Studies, 104 (1984), pp. 31-
47; A. K. Goldsworthy, Generais romanos: «Capítulo 3: O conquistador da Macedónia: Emílio Paulo», pp. 102-126.
111
Romanos viam-se amiúde ajudados por uma carga de cavalaria ou por uma investida de
tropas ligeiras, o que ocorrendo no momento mais oportuno, geralmente lograva levar
de vencida tais inimigos (por exemplo, Políbio, Hist. 2.28.9-30.8; Lívio, Ab Urb. Cond.
29.2.4-18, sobre uma difícil vitória romana sobre os Hispanos setentrionais em 205 a.
C.).
Outra área de actividades bélicas a que os militares romanos, ao longo destes séculos,
também recorreram, ainda que não obtendo proezas verdadeiramente brilhantes,
consistiu nos assédios.292 O espírito inventivo e destruidor dos engenheiros helenísticos
gerou torres de assalto, aríetes e vários tipos de catapulta, engenhos que foram
empregues com êxito por Alexandre-o-Grande e pelos seus sucessores. Por vezes, os
exércitos romanos tentaram servir-se de tais máquinas de guerra, como aconteceu nos
prolongados cercos de Lilybaeum e de Drepana, durante a Primeira Guerra Púnica,
mas o sucesso nas empresas estava longe de ser garantido: estas duas cidades ainda não
haviam sido tomadas quando a guerra terminou. Se uma cidadela ou praça-forte não
fosse conquistada logo no primeiro assalto, como sucedeu em Carthago Nova
(Cartagena, Espanha), um dia depois de Cipião ter empreendido uma investida em 209
a. C. – havia então que estabelecer uma circunvalação e utilizar aríetes (e,
ocasionalmente, obras de sapa, para a abertura de túneis e galerias sob as muralhas
inimigas). Durante dois anos (212-211 a. C.), dois exércitos consulares sitiaram Cápua,
empregando apenas trincheiras e linhas fortificadas, até que os habitantes da cidade
acabaram por capitular, por estarem a passar fome.
Ao assediarem Oreus, na Grécia, em 200 a. C., os Romanos fizeram uso de manteletes
(parapeitos de defesa) e aríetes, mas deixaram a sofisticação militar técnica (catapultas
que lançavam pedras «e todo o tipo de artilharia») nas mãos dos seus aliados de
Pérgamo (Lívio, Ab Urb. cond. 31.46.10). No tocante ao cerco de Ambracia, em 189 a.
C., ele envolveu aríetes e a escavação de túneis, mas arrastou-se por vários meses, até
que os Etólios se renderam (Políbio, Hist. 21.27.1-6; 21.28.1-18; Lívio, Ab Urb. cond.
38.5-7). Por outro lado, os assaltos conduzidos por Marcelo contra Siracusa, de 213 a
211 a. C., viram-se frustados memoravelmente pelas engenhosas máquinas de
Arquimedes, a cuja eficácia o general só pôde responder com afirmações sarcásticas
(Políbio, Hist. 8.6.6). Por fim, como tantas vezes sucedia, Siracusa caiu por meio da
traição. Quanto a Cartago, em 146 antes da nossa era, teve de ser conquistada
literalmente rua a rua e casa a a casa.
292
Sobre a guerra de assédio praticada pelos Romanos: J. Kromayer e G. Veith, Heerwesen und Kriegsführung der
Griechen und Römer, pp. 244-245, 373-376; P. B. Kern, Ancient Siege Warfare, Bloomingtom IN, 1999, pp. 251-298.
112
2.8.1. A infantaria («pesada» e «ligeira») na legião republicana antes de
Gaio Mário. Comentários adicionais sobre o armamento romano
113
resultasse o choque dos hastati e dos principes, os velites eram tão numerosos como
cada uma dessas linhas, perfazendo o dobro dos triarii. Portanto, os velites, com os
seus dardos, espadas, escudos redondos e cascos simples (ou mesmo coifas,
perikephaia) desempenhavam um importante papel na estrutura táctica da legião.
Ao contrário do que se lê em várias obras e artigos de certos autores, que pecam por
uma generalização superficial ao descreverem os soldados romanos, estes, durante a
Segunda Guerra Púnica possuíam, em regra, um limitado armamento defensivo: só
uma reduzida proporção da legião – correspondente aos homens que declaravam no
census fortunas acima de 10 000 dracmas - tinha lorica hamata/cota de malha, que
provavelmente se limitaria aos 600 triarii e alguns principes e hastati; as restantes
tropas de «linha» exibiriam um pequeno peitoral a cobrir o peito. Embora Hans
Delbrück julgasse impossível a presença do pectorale enquanto única protecção,
acreditando que tal peça consistia apenas num reforço para uma couraça mais
completa de linho (linothorax) ou couro,298 há suficientes evidências que nos leva a
aceitar o que Políbio escreveu 299. Mais difundido estaria o elmo de bronze (Políbio,
Hist. 6.23.8), usualmente do tipo «Montefortino» – como anteriormente referimos –
ou pertencente a alguma das «versões» greco-itálicas assinaláveis na iconografia e
atestados pela arqueologia300. Quanto às grevas/ocreae, aparentemente não estariam
tão disseminadas como Políbio dá a entender (Hist. 6.23.8)301.
A principal arma defensiva era, indubitavelmente, o escudo rectangular de ângulos
arredondados, em forma de telha, ao qual Políbio prestou especial atenção e que,
conforme indicam reiteradamente as fontes literárias antigas, protegia melhor o corpo
do que o escudo oval gaulês, plano e mais estreito. Um tal escudo tornava, em certa
medida, redundante uma protecção corporal muito pesada, já que a maneira de
combater dos legionários implicava o arremesso dos pila com movimentos amplos
(Políbio, Hist. 6.23.8-9) e, depois, a luta com o gladius hipaniensis, que servia tanto
para desferir cutiladas como estocadas (ibidem, 6.23.6-7), o que requeria certo espaço
para a sua utilização.
As investigações produzidas nos últimos anos, apoiadas em abundante quantidade de
informes literários e na documentação icónica, conduzem, quase todas, à mesma
conclusão quanto ao uso do escudo romano – que pesava entre 6 e 10 kg – e que não
funcionava só como peça defensiva, uma vez que era empregue como um elemento de
298
H. Delbrück, Warfare in Antiquity, Londres, 1920, p. 280; também, incompreensivelmente, E. Hildinger, em data
bem mais recente: Swords against the Senate. The Rise of the Roman Army and the Fall of the Republic,
Cambridge/MA, 2002, p. 21.
299
P. Connolly, Greece and Rome at War, p. 133.
300
Ibidem, pp. 131-133; N. Sekunda, Republican Roman Army 200-104 B. C., Londres, 1996, pp. 6-7.
301
N. Sekunda, op. cit., pp.8-9; F. Quesada Sanz, «El legionario en epoca de las Guerras Punicas…», p. 175.
114
percussão ofensiva, vibrando fortes golpes sobre o inimigo, provocando-lhe ferimentos
ou desequilibrando-o (Políbio, Hist. 18.30.7)302.
Por outro lado, neste período, a protecção corporal metálica completa era muito
dispendiosa, daí que possivelmente estivesse fora do alcance da maioria dos soldados
das primeiras linhas da legião. A tudo isto, refira-se que os 1200 velites, uma proporção
muito considerável do total das forças de uma legião, não fariam uso de outros
elementos protectores substanciais para além de um grande escudo circular (com cerca
de 90 cm de diâmetro, se nos cingirmos a Políbio, Hist. 6.22.3).
Assim, não confundamos o armamento romano a partir do tempo de Mário em diante
com o bastante mais ligeiro do século III a. C., que, em geral, não seria mais elaborado
nem muito mais pesado do que o empregue pela maioria dos antagonistas contra os
quais os Romanos lutaram no momento histórico aqui em foco. O escudo, guarnecido
pela sua orla metálica (e o seu elemento, igualmente de metal, para o umbo), adoptado
de maneira homogénea pela legião, foi, juntamente com o elmo de bronze, simples mas
generalizado, a principal peça defensiva, mas no seu conjunto, a legião estava longe de
corresponder a uma massa de homens «forrados de bronze ou ferro como o tinha sido a
falange grega arcaica, ou como viria a ser a legião augustana ou trajânica» 303.
Quanto às armas ofensivas, detenhamo-nos no pilum, que constituiu objecto de
especial atenção por parte de Políbio; no entanto, da sua breve descrição (Hist. 6.23.8-
11), assomam quase tantos problemas como certezas: para já, os historiadores e outros
estudiosos mais perceptivos como P. Connolly, embora aceitando a sua utilização por
meio de «salvas», expressaram dúvidas sobre a possibilidade, em termos práticos, de
um soldado levar consigo os dois pila (um pesado e outro ligeiro) para o combate; de
facto, parece impraticável que segurasse numa mão o pilum pesado, enquanto com a
esquerda agarrava o escudo (com uma pequena manilha horizontal), ao mesmo tempo
que pegava na haste do pilum mais leve, ou o contrário; para além disto, colocou-se a
questão bem pertinente da dificuldade em lançar ambos os dardos a partir de uma
distância entre os 25 e os 30 m 304, contra uma formação inimiga que, por sua vez, ia
avançando; durante esses breves instantes, não haveria tempo suficiente para se
efectuarem as duas salvas e, logo a seguir, desembainhar a espada pouco antes do
contacto directo das duas linhas. A. K. Goldsworthy 305 abordou o mesmo assunto e
chegou a uma conclusão similar à de P. Connolly – o segundo pilum ficaria de reserva
na retaguarda.
302
P. Sabin, «The face of Roman Battle», p. 8; A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 218. Colhem-se
referências para períodos mais tardios nas obras de Tácito: e. g., Ann. 14.36-37; Agricola, 36.
303
F. Quesada Sanz, «El legionario romano en epoca de las Guerras Punicas…», p. 176.
304
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 186; P. Connolly, «The reconstruction and use of Roman weaponry
in the second century BC», in A. T. Croom e W. B. Griffiths (eds.), Re-Enactment as research. 12th ROMEC, JRMES,
2000, p. 45; F. Quesada Sanz, El armamento ibérico…, p. 342.
305
The Roman Army at War, p. 199.
115
Ora, ou seguimos os referidos autores, imaginando que se deixaria um pilum em
reserva, no acampamento – o que tornaria desnecessário distinguir um dardo de tipo
ligeiro com maior alcance de outro pesado – ou a progressão e a carga inicial de uma
legião assumiriam um aspecto diferente daquele que costumamos supor. Para poderem
empregar os dois pila sucessivamente, os soldados deveriam avançar a passo, cravar
um dos dardos no solo, arrojar o outro a partir de uma posição basicamente estática,
recuperar o segundo e continuar a marchar em direcção ao adversário, realizando uma
última salva a menor distância, nesta altura talvez no decurso de uma corrida
contida306. Como a distância efectiva se cifrava em 25-30 m, isto implicaria que o
inimigo estivesse numa atitude passiva e estática durante todo este tempo, o que
contradiz claramente a própria lógica e não se revela consonante com a maior parte das
descrições de batalhas contidas nas fontes literárias.
Resta, por fim, uma terceira alternativa: que os dois pila se transportassem para o
palco do prélio, mas que os legionários das primeiras linhas só ficassem com um, ao
passo que os posicionados nas filas posteriores acumulariam vários para se utilizarem
mais tarde, quiçá fazendo-os passar para os seus camaradas situados na vanguarda. Em
todo o caso, as opções dois e três pressupõem um género de combate muito mais
prolongado, indeciso e ambíguo, pelo menos no seu início, muito diferente da imagem
estereotipada que associamos a uma carga de uma legião romana, vertente que
exploraremos no apêndice deste capítulo.
Até 264 a. C., os Romanos só tinham combatido em Itália. A partir desse ano, eles
desencadearam abruptamente uma grande guerra internacional, tanto contra os
Siracusenses (que depressa foram forçados a negociar a paz) como contra os
Cartagineses (que se aguentaram por muito mais tempo). A guerra de Aníbal foi, a
seguir, o primeiro de outros quatro extraordinários conflitos que, por volta de 167 a. C.,
converteram a República romana na potência arbitral do mundo mediterrânico. No
período entre os anos de 149 e 146, um par de guerras acutilantes e breves pôs termo à
independência de todos os estados gregos, incluindo a Macedónia, ao passo que foi
necessário uma conflagração bem mais extenuante para extinguir a cidade de Aníbal.
Houve outros conflitos intermitentes mas, por vezes, sérios contra povos menos
organizados mas tenazes, designadamente os Gauleses da Itália setentrional, os
306
F. Quesada Sanz, «El legionario romano en epoca de las Guerras Punicas…», p. 176.
116
montanheses Lígures e as comunidades e «confederações» hispânicas – nenhum deles
se convencendo que iria ser subjugado e anexado pela república romana.
Foi para o período entre 219 e 167 a. C. que Políbio colocou uma questão tornada
célebre: «Quem é tão insignificante ou inerte que não deseje saber como e através de
que sistema político praticamente todo o mundo habitado caiu, em 53 anos, sob a
dominação dos Romanos?» (Hist. 1.1.5, cf. 3.1.4-5.3.9). O costume bem arreigado de
travar guerras quase anualmente continuou, assim, a persistir, mas os antagonistas da
república imperialista passaram a situar-se em três continentes – no caso da guerra de
Aníbal, em todos ao mesmo tempo.
Além da boa fortuna que gozaram os Romanos, houve outro importante facto que
concorreu para o seu êxito militar – o cuidado dos seus exércitos não enfrentarem mais
do que um inimigo de «primeira classe» ao mesmo tempo. Porém, estiveram perto de
ter de lidar com esta situação, em 215-211 a. C., quando Filipe V da Macedónia tomou a
decisão (que seria ruinosa) de se aliar aos poderosos Cartagineses e a Siracusa, mas os
últimos revelaram-se fracos aliados. Noutro momento, durante os conflitos mais
recuados contra Pirro e Cartago, os Gauleses da Itália setentrional não causaram
problemas, sendo, apenas, uma ameaça esporádica ao longo da Segunda Guerra
Púnica. Mais tarde, os aliados da Macedónia e o «Grande Rei» (Etólia e Épiro, por
exemplo) significaram, quando muito, perigos secundários, enquanto a visão de Aníbal,
de uma coligação anti-romana entre Antíoco e Cartago, se limitou apenas a um sonho
sem concretização palpável.
A nível individual, o «outro lado», esporadicamente, pôs à prova os Romanos de
forma severa e até conseguiu averbar vitórias. Uma aliança entre dois ou três inimigos
podia conduzir, teoricamente, a república a um verdadeiro desastre: Cartago, a
Macedónia e o império Selêucida lograram formar exércitos comparáveis aos dos
Romanos, tanto em tamanho como em treino. Em Agrigentum (261), o general púnico
Asdrúbal teria supostamente 56000 homens de cavalaria e infantaria (Diodoro, 23.8.1,
ao citar o historiador agrigentino Filino). Talvez numa perspectiva optimista, Políbio
relatou a presença de 74000 tropas púnicas na batalha de Ilipa, em 206 (Hist. 11.20.2;
cf. Apiano, Iber. 25.100); já Lívio aponta um número menos impressionante – 54 500
(28.12.13-14)307.
Antíoco-o-Grande apareceu na batalha de Magnésia com 72 000 soldados dos mais
variegados géneros308, se bem que as cifras pormenorizadas de Tito Lívio, tenham ou
não sido baseadas em Políbio, apontem 57000 homens (Hist. 37.40; Apiano, Syr.
307
Exércitos presentes em Ilipa: J. F. Lazenby, Hannibal’s War, p. 145 (autor que preferiu plausivelmente basear-se mais
em Políbio do que em Tito Lívio.
308
B. Bar Kochva, The Seleucid Army. Organization and Tactics in the Great Campaigns, Cambridge, 1976, pp. 8-9,
167-169; J. D. Grainger (The Roman War of Antiochus the Great, Leiden, 2002, pp. 314-323) estima apenas 50 000
homens.
117
32.161). Quanto ao exército de Filipe V, ascenderia a um total de 25 500 soldados na
refrega de Cinoscéfalas (Lívio, Ab Urb. cond. 33.4.4), ao passo que o poderio militar
macedónico todo reunido, em 171 a. C., atingiria 43 ooo, os maiores efectivos desde
Alexandre-o-Grande (ibidem, 42.51.11). Por outro lado, importa frisar que estes
exércitos seriam muito dificilmente substituídos ou reconstruídos se aniquilados, o que
contrasta com a capacidade de gestão dos recursos humanos dos Romanos 309.
Nestes reinos do Oriente helenístico, um exército regular consistia numa falange
compacta de infantaria, cujas tropas usavam piques (sarissas) extremamente
compridos (medindo aproximadamente 6 m, maiores do que os empregues no tempo
de Alexandre-o-Grande), e em unidades de cavalaria e de infantes ligeiros de diversos
tipos, como se observa nas descrições de Tito Lívio sobre as forças de Antíoco e Perseu.
Uma falange subdividia-se em grandes «brigadas», mas normalmente combatia como
uma poderosa massa humana, investindo com as sarissas das fileiras dianteiras na
horizontal. As grandes potências do Oriente não encontraram razões válidas que as
fizessem alterar os seus métodos militares 310, que haviam funcionado bem desde o
reinado de Filipe II e durante o de Alexandre, a despeito de «intrusos» estrangeiros,
como os cavaleiros partos da Ásia Central e os guerreiros apeados e a cavalo trácios
(com armamento ligeiro) das terras do Baixo Danúbio, que frequentemente eram
contratados como mercenários.
No entanto, fizeram-se tentativas para adoptar variantes: Pirro defrontou as legiões
em Asculum com manípulos de aliados italianos, posicionados entre as «brigadas» da
sua falange (Políbio, Hist. 18.28.10-11); ele conseguiu rechaçar novamente o inimigo no
campo de batalha, mas à custa de fortes baixas do seu lado. Na contenda de
Cinoscéfalas, que se ocorreu inesperadamente, Filipe V possuía uma falange direita e
outra esquerda, as quais acabaram por ficar separadas (o que resultou desastroso). Em
Magnésia, a falange com 16 000 homens do «Grande Rei» desdobrou-se em dez
colunas, cada uma com 32 fileiras de profundidade, juntamente com um par de
elefantes em cada flanco interveniente (Lívio, Ab Urb. cond. 37.40.1-3), o que talvez
representasse uma variante experimental do método aplicado por Pirro, mas nem
assim evitou a derrota.
Não se pode dizer que o dispositivo manipular tenha apanhado as potências orientais
necessariamente desprevenidas, já que Pirro lidou com o primeiro cerca de setenta
anos antes. O mais provável é que as tradições e as inércias organizativas militares
terão impedido adaptações mais inovadoras. Além disso, a batalha de Cinoscéfalas
pode ser encarada, optimisticamente, como um feliz acaso, e a de Magnésia como um
309
Para os efectivos dos exércitos macedónios: N. G. L. Hammond e F. W. Walbank, A History of Macedonia, vol. 3,
Oxford, 1988, pp. 436-437, 540-542.
310
Para mais dados sobre as forças armadas helenísticas: Y. Garlan, «War and siegecraft», in Cambridge Ancient
History, vol. 7.1, Cambridge, 1984, pp. 353-362.
118
modelo de uma vitória da cavalaria: o enérgico aliado dos Romanos, Eumenes,
precipitou a derrota da infantaria de Antíoco mediante uma carga de flanco, bem à
maneira de Alexandre-o-Grande. Houve uma ou duas tentativas de imitação dos
métodos romanos, como a legião «romana» de Antíoco IV, com 5 000 soldados
envergando cotas de malha (Políbio, Hist. 30.25.3; Macabeus I, 6.35)., mas tiveram
uma existência efémera311.
Os exércitos romanos, como Políbio assinalou, eram geralmente superiores em
termos organizativos, técnicos e tácticos em relação a quaisquer outros durante os
séculos III e II a. C., à excepção das forças de Aníbal: estas perfilaram-se como um
desafio bem distinto; à semelhança dos anteriores exércitos púnicos, começaram por
ser uma combinação helenística de uma falange de tropas africanas, hispânicas (com
armamento ligeiro) e outras unidades, além da cavalaria. Lamentavelmente, a única
comparação de Políbio da maneira de fazer a guerra púnica com a romana é
estereotipada e genérica (Hist. 6.52.3-7).
Mas Aníbal teve em apreço o equipamento romano, a tal ponto que ordenou à sua
infantaria africana que se servisse de armas e armaduras capturadas (Hist. 3.87.3); ele,
ao tomar tal iniciativa, possivelmente pode haver imposto um dispositivo operacional
mais flexível na infantaria, embora não compreendesse o sistema manipular. As suas
tácticas, especialmente em Canas e, até, em Zama (Políbio, Hist. 15.12-15) sugerem esta
hipótese, pois que ao porfiar contra os legionários munidos de espadas, a infantaria
pesada de Aníbal também as utilizou, o que contribuiu para a carnificina quase
gigantesca que foi a batalha de Canas, representando o gladius, como dissemos, uma
arma assustadora nas mãos de soldados experientes (Lívio, Ab Urb. cond. 22.51.6-9).
Ciladas, marchas forçadas, como a empreendida em direcção a Roma em 211 a. C.,
secundadas por um avanço para sul, ameaçando Rhegium, e o facto de que, à medida
que o tempo foi passando, o seu exército englobou cada vez mais italianos, são aspectos
que apontam, de novo, para formações modificadas e mais versáteis.
Ironicamente, a arma considerada como «hanibálica» por excelência, os elefantes
(ainda que Pirro os tivesse já utilizado contra Roma), desempenhou um papel pouco
útil nas suas batalhas. Dos paquidermes que Aníbal trouxe para Itália, todos, salvo um,
morreram no Inverno de 218-217 a. C. Ademais, o seu maior contingente de elefantes,
oitenta na batalha de Zama, foi «despachado» facilmente pelos Romanos (Políbio, Hist.
15.12.1-4).
Aníbal cometeu o erro de chegar à península itálica com menos de metade dos
homens que conduzira através dos Pirenéus. Mas durante a sua estadia (218-203 a. C.),
ele criou um exército de campanha capaz de vencer os Romanos, embora por alguns
311
B. Bar Kochva, The Seleucid Army, pp. 55-56, 60, 180-183.
119
anos tenha mantido outro a agir autonomamente no Sul de Itália, além de estabelecer
guarnições em cidades amigas no Centro e Sul, perfazendo um total de
aproximadamente 90 000 homens. Em 208-207 a. C., com forças ainda na Hispânia e
o seu irmão Asdrúbal comandando cerca de 30 000 tropas frescas a caminho de Itália,
os Cartagineses deviam ter algo como uns 150 000 soldados (ao todo) entre a Hispânia
e a Itália (não contando com os efectivos fixados no Norte de África). É claro que
poucos deles eram cidadãos, uma vez que a «república» púnica se apoiava em larga
medida sobre os conscritos africanos e hispânicos e em mercenários estrangeiros; em
Itália, como referimos, obteve recrutas locais. Afigura-se surpreendente como, dez anos
após o princípio da guerra, o esforço militar dos Cartagineses ainda rivalizava com o
dos Romanos312.
Além de bom armamento, elevado grau de organização e boa dose de empenho, urgia
haver talento e competência no comando e, realcemos, um forte sentido de iniciativa a
312
Para mais detalhes sobre as forças de Aníbal: D. Hoyos, Hannibal’s Dynasty. Power and Politics in the Western
Mediterranean, 247-183 BC, Londres, pp. 108-119, 127-129, 227-228. Sobre os exércitos púnicos em geral W. Ameling,
Karthago: Studien zur Militär, Staat und Gesellschaft, Munique, 1993, pp. 155-194, 210-224.
313
Sobre Mancino: MRR, l. 484-485.
314
Batalha de Túnis: J. F. Lazenby, The First Punic War, pp. 103-106. Canas: A. K. Goldsworthy, Cannae, pp. 95-156.
315
Sobre os irmãos Cipiões: D. Hoyos, «Generals and annalists: Geographic and Chronological Obscurities in the Scipios’
campaigns in Spain 218-211 BC», Klio 83 (2001), pp. 83-89.
120
todos os níveis, de preferência contra um adversário que estivesse desprovido de tais
qualidades. Depois do revés sofrido pelos irmãos Cipiões, um tribuno militar chamado
L. Márcio (L. Marcius) reuniu as forças que sobreviveram e conduziu-as para norte,
rumo ao Ebro, ficando elas expostas a alguns ataques pouco significativos por parte dos
vitoriosos Cartagineses. Foi, analogamente, um tribuno, cujo nome se desconhece, que,
num momento de inspiração, em Cinoscéfalas, comandou vinte manípulos da ala
direita vitoriosa de Flamínio – os principes e os triarii da legião? - até à retaguarda da
outra falange (ainda intacta) de Filipe V. Na batalha de Pidna, apesar de uma primeira
arremetida bem sucedida da falange, o terreno acidentado veio a permitir que se
abrissem brechas na temível massa de sarissae, aproveitando então os flexíveis
manípulos romanos para tomar a iniciativa e romperem as linhas inimigas até derrotá-
las.
O génio militar deste período foi indubitavelmente Públio Cornélio Cipião, mais
conhecido por Cipião-o-Africano316, cuja capacidade de raciocínio estratégico-táctico só
terá conhecido mais tarde um equivalente, Júlio César. Cipião treinou os seus exércitos
na Hispânia e no Norte de África, conseguindo que as tropas atingissem um notável
grau de sofisticação, ganhando cada uma das cinco vitórias sucessivas que ocorreram
entre 208 e 202 a. C., com manobras diferentes e muitas vezes complexas, para as quais
nem Aníbal tinha uma resposta adequada. Em Ilipa317, em particular, Cipião colocou as
suas divisões a realizarem uma série de movimentações intrincadas e desconcertantes
(o que se depreende, de certo modo, pelo esforço envidado por Políbio em descrevê-las:
Hist. 11.22.23). Em abono da verdade, a destreza dos exércitos cipiónicos significaram
tanto uma oposição como um tributo relativamente ao profissionalismo das forças
terrestres da era Bárcida.
316
Sobre este vulto incontornável da história militar romana e mundial, há diversas biografias: desde a da autoria de B.
Liddel-Hart, Greater than Napoleon (1ª edição, 1926), passando pela obra mais rigorosa e abrangente de Scullard,
Scipio Africanus. Soldier and Politician (1970) até, mais recentemente, ao livro de R. A. Gabriel, Scipio Africanus
(Potomac Books, 2009); para uma visão mais sucinta, consulte-se A. Goldsworthy, Generais romanos: «Capítulo 2: Um
Aníbal romano: Cipião Africano», pp. 57-87.
317
A. Goldsworthy, Generais romanos, pp. 76-84.
121
No entanto, esta sofisticação raramente se vislumbrou noutros generais romanos,
mesmo naqueles mais capazes, que não conseguiram igualar Cipião. Os comandantes e
os exércitos da primeira metade do século seguinte continuaram a mostrar-se hábeis e
bem-sucedidos, em parte porque tiveram de defrontar sistemas militares inimigos
sofisticados. Ainda assim, eles não precisaram de reproduzir as requintadas tácticas de
Cipião, e depois da subjugação dos reinos helenísticos e da aniquilação de Cartago, a
qualidade dos exércitos e dos comandantes romanos veio a oscilar entre a mediania e a
mediocridade. Os Lígures montanheses, os tenazes habitantes das terras altas da
Córsega e da Sardenha (Corsi e Sardi), os Ilírios e os Dálmatas, os povos gauleses (de
tempos a tempos nos Alpes ou para lá destes), bem como os escravos rebeldes na
Sicília, revelaram-se ocasionalmente difíceis de combater. Nos conflitos renhidos e
desencorajadores que tiveram lugar na Hispânia após 154 a. C., as tropas romanas
actuaram de maneira sofrível, quando não mesmo francamente má, embora Cipião
Emiliano tenha restaurado alguma da antiga disciplina no seu exército, em 134-133
antes da nossa era. Na realidade, seria necessário a deflagração der um novo conjunto
de grandes guerras (depois de 112 a. C.) para que o sistema militar romano viesse a
recuperar a sua elevada categoria.
A castrametação319
122
descreve um acampamento susceptível de acolher um exército consular de duas legiões,
acompanhadas pelo seu contingente de aliados itálicos, mostrando as suas etapas
construtivas a partir do quartel-general. Contudo, Políbio salientou que, no seu tempo,
os exércitos se compunham mais usualmente de quatro legiões.
Mas, em primeiro lugar, lancemos algumas achegas sobre a ordem de marcha do
exército romano durante uma campanha, ao fim de cada etapa, as tropas montavam
um arraial de carácter provisório; depois, de madrugada, levantavam o acampamento e
desmontavam as tendas: este processo era ritmado por três toques de trompa, altura
em que também se carregavam as bestas de carga e as carroças; então, os arautos
perguntavam três vezes se os soldados estavam prontos para partir, ao que estes
respondiam afirmativamente; quando retinia o terceiro toque, as tropas punham-se em
marcha. Cada legionário transportava sobre uma forquilha (cf. infra) o seu
equipamento pessoal. Quanto ao trem de transporte, seguia com as bagagens pesadas
(tendas, mós, peças de artilharia, provisões, etc.), formado essencialmente por bestas
de carga322 (machos e mulas), dispondo os oficiais superiores de várias, cada centurião
uma e outra por contubernium. O pessoal do trem compunha-se de escravos, os
muliones (arrieiros, boieiros e carroceiros) e calones, que serviam de ordenanças aos
soldados.
A ordem de marcha (agmen) era praticamente imutável: os batedores garantiam o
reconhecimento avançado; mais atrás, um destacamento de legionários e outro de
cavalaria, seguidos de um corpo de «engenheiros», encarregados de abrir caminho,
constituíam a vanguarda; depois vinham as bagagens dos oficiais, protegidas por uma
unidade de cavalaria; seguiam-se os ajudantes de campo e o próprio general com a sua
guarda; atrás, outro destacamento de cavalaria, os legados e os tribunos com os seus
respectivos séquitos e, caminhando em colunas de seis, o grosso das legiões,
secundadas pelas bagagens. Por fim, vinha a retaguarda, formada pelos auxiliares ou
tropas aliadas e, a rematar, um contingente de legionários em formação ligeira.
Caso pairasse uma séria ameaça de ataque, modificava-se a ordem para formar um
agmen quadratum, em duas ou três colunas de frente, antecedidas e seguidas pela
cavalaria, com o trem das bagagens entre as colunas: através de uma simples meia volta
à direita ou à esquerda, os soldados encontravam-se dispostos em formação de combate
(acies), em duas ou três linhas. Uma etapa diária era, usualmente, de 25 a 30 km, mas,
por vezes, tornava-se preciso realizar marchas forçadas de aproximadamente 50 km e,
quando no fim da etapa, os legionários depunham o seu equipamento, não era para
descansarem, mas para abrirem valas e montarem um novo acampamento.
Salientemos que, a deslocação de numerosas tropas requeria grande disciplina e
322
Uma legião possuía entre 1200 a 1500 bestas de carga.
123
meticulosa organização: um conjunto de colunas com 20 000 homens, o equivalente a
quatro legiões, estendiam-se ao longo de cerca de 4 km (não contando com a
vanguarda), e o último soldado iniciava a marcha só 40 km após a partida do general.
Habitualmente enviava-se um tribuno com uma escolta, à frente do exército, para
encontrar um sítio adequado para acampar: devia escolher um lugar com cerca de 800
m, em quadrado, de preferência em terreno inclinado. Além disso, o sítio não devia
oferecer possibilidades de ataque ao inimigo e teria de ser perto da água. O tribuno
plantava, então, uma bandeira branca para marcar o local da tenda do cônsul, o
praetorium, no ponto mais vantajoso. Noutros sítios, espetavam-se bandeirolas
vermelhas para indicar onde ficariam alojados os oficiais e os legionários. No centro de
uma linha definida por fora das tendas legionárias, o tribuno colocava, com a ajuda de
um agrimensor, o instrumento de verificação (groma), para medir o campo a nível
exterior, permitindo ao observador estabelecer uma grelha rectangular. Através deste
processo, marcava-se a linha das defesas frontais a uma distância de cerca 400 m.
Também se assinalavam as linhas das três principais vias do acampamento (cf. infra).
Quando o inimigo se encontrava muito próximo, o trem de bagagens ficava colocado
atrás das linhas marcadas para a defesa frontal do acampamento. Os velites, a cavalaria
e metade da infantaria pesada posicionavam-se em ordem de batalha, enquanto a outra
metade dos infantes, atrás desse anteparo humano, trabalhava no reforço das defesas.
Os legionários escavavam uma trincheira com cerca de 3 m de profundidade e 4 de
largura. Removia-se a terra da vala, alçando-a para dentro, sendo batida até se achar a
uma altura de uns 1,25 m. Reforçava-se a frente desta barreira com torrões retirados da
vala.
A referida trincheira ou fosso e o baluarte (agger) estendiam-se, em média, por cerca
de 700 m, constituindo um dos lados do acampamento, que, se possível, deveria ter
uma forma quadrangular. Uma vez construído o baluarte, o comandante ia mandando
para o interior do recinto o resto dos manípulos, um a um, mas a cavalaria só recolhia
quando a fachada estivesse acabada. Nos outros três lados do acampamento
construíam-se um fosso e um parapeito idênticos. Os acampamentos vulgares de
marcha, que estavam fora do alcance do inimigo, eram rodeados por uma vala só com
um metro de profundidade. Cada legionário carregava dois espeques, os quais firmava
no topo do baluarte, formando uma paliçada: por exemplo, 40 000 desses espeques
colocados num parapeito davam cerca de treze por cada metro. Como a disposição do
acampamento era basicamente a mesma, cada unidade sabia onde fixaria as suas
tendas.
À tenda do general-chefe chamava-se praetorium, que era flanqueada, de um lado,
pela tenda do questor (quaestiorium) e, do outro, por uma grande «praça» designada
124
forum. À frente do praetorium, do quaestorium e do forum apresentavam-se,
alinhadas, as tendas dos tribunos militares e, a seguir, as dos legionários. Tal como no
campo de batalha, as barracas dos legionários eram ladeadas pelas dos aliados
italianos, dos quais a maioria se dispunha nas duas alas do acampamento, enquanto
1/3 dos seus cavaleiros e 1/5 das suas tropas de infantaria – qualificados como
extraordinarii – ficavam posicionados atrás do praetorium, do quaestorium e do
forum, com as tendas dos auxiliares, ou seja, soldados suplementares não italianos.
A planta do acampamento não se limitava a atribuir um sítio concreto para cada
categoria de soldados, segundo o seu lugar na sociedade ou no campo de batalha:
previa igualmente as vias de circulação, que facilitavam os movimentos no interior do
recinto. A via principalis devia o seu nome ao facto de o seu traçado se situar ao longo
dos principia, ou seja, o quartel-general do acampamento constituído pelo praetorium,
quaestorium, forum e pelas tendas dos tribunos: de um lado do recinto, ela
desembocava na porta principalis dextra (à direita dos principia) e, do outro, na porta
principalis sinistra (à sua esquerda). No interior do acampamento, havia um
intervallum, que se deixava propositadamente vazio, entre as tendas e o recinto, com
vista a que as mesmas estivessem fora do alcance de eventuais projectéis lançados a
partir do exterior. Ao anoitecer, quando a palavra de passe era atribuída, os graduados
de cada manípulo tinham de se dirigir ao praetorium. Escolhia-se o oficial na cavalaria:
acompanhado por dois camaradas, efectuava as rondas nocturnas para inspeccionar a
guarda. Quando, nestas ocasiões, fosse descoberto um dos sentinelas a dormir, o
castigo que lhe estava reservado era, muitas vezes, a pena capital, sobretudo se isto
tivesse lugar durante uma campanha.
Os acampamentos de marcha não dispunham de portões, embora usassem
determinados tipos de parapeitos nas entradas (clavicular, agricola, tutulus). Eles não
impediam o inimigo de penetrar, mas evitavam que forçasse as entradas.
Segundo Plutarco (Vida de Pirro,16), o rei de Épiro, Pirro, após desembarcar no Sul de
Itália, imbuído do sentimento da sua superioridade militar, terá ficado assombrado ao
ver o exército romano a estabelecer o seu acampamento perto de Heracleia. Pelo
contrário, outros autores, como Lívio (Ab Urb. cond. 35.14) e Frontino (Strat. 4.1),
sugerem que, ao observarem o entrincheiramento do acampamento das forças de Pirro,
os Romanos teriam concebido a planimetria dos seus acampamentos. Porém, é mais
plausível encarar o acampamento romano como uma transposição, para a esfera
militar, dos métodos empregues para fundar as cidades e medir os terrenos. A
construção, a vigilância e a gestão do quotidiano de um acampamento exigiam uma
organização colectiva e uma distribuição de tarefas que vieram a tornar-se cada vez
125
mais complexas, face ao aumento da duração das campanhas e à distância geográfica
dos teatros de operações.
Os acampamentos republicanos descobertos em Espanha, designadamente em torno
de Numância, não permitem, ao contrário do que defenderam vários estudiosos,
confirmar no terreno uma hipotética transição do sistema manipular para a formação
em coorte. Como igualmente dissemos, A. Schulten acreditou identificar vestígios
materiais deste «facto» nas casernas romanas de Peña Redonda e Renieblas V, visto
que apresentam uma disposição diferente das de Renieblas III (relacionadas com as
guerras celtibéricas): o conhecido erudito alemão considerou que as duas primeiras
estruturas ilustravam perfeitamente o acampamento manipular, tal como aparece no
livro VI de Políbio. O caso de Peña Redonda, que Schulten datou da altura do assédio a
Numância, representaria uma primeira etapa, assimilável a uma «proto-coorte», ao
passo que Renieblas V, que o autor atribuiu a Titurius (um legado de Pompeio em 75 a.
C.), reflectiria a castrametação posterior à generalização da coorte 323. Mas a datação
proposta para o último local assenta em bases muito frágeis. Mais recentemente, por
meio de critérios numismáticos, propôs-se que seria um acampamento coevo de Peña
Redonda324.
Porém, é preferível não nos cingirmos a uma cronologia demasiado precisa e artificial,
e conservarmos, prudentemente, um intervalo longo entre o extremo final do século III
a. C. e as guerras sertorianas 325. Seja como for, a pobreza das estruturas de Renieblas V
trazidas à tona pelos arqueólogos, incluindo a parte nordeste (a que melhor se
conhece), impede que aceitemos a reconstituição formulada por Schulten: muito
próxima do modelo imperial, ela representa principalmente o fruto da concepção
preconcebida que o académico germânico tinha da aparência de um acampamento
romano após a «Guerra Social», mas não corresponde a qualquer elemento achado no
terreno326. Neste sentido, o acampamento V de Renieblas não se reveste de utilidade
para provar que as casernas estariam dispostas nos acampamentos republicanos da
Hispânia de um modo que deixaria entrever, precocemente, uma nova formação
táctica.
Peña Redonda é um caso mais problemático: o aspecto das estruturas situadas a sul
do praetorium, em virtude da sua forma alongada, lembra, à primeira vista, os
323
Peña Redonda: A. Schulten, Numantia. Die Ergebnisse des Ausgrabungen, 1905-1912, III: Die Lager des Scipio,
Munique, 1927, p. 135; Renieblas: IDEM, Numantia. Die Ergebnisse des Ausgrabungen, 1905-1912, IV: Die Lager bei
Renieblas, Munique, 1929, p. 128, 161.
324
Cf. H. J. Hildebrandt, «Die Römerlager von Numantia. Datierung anhand der Münzfunde», Madrider Mitteilungen
20 (1979), p. 26; ideia retomada por M. Dobson, The Roman Camps at Numantia…, p. 39.
325
J. Pamment Salvatore, Roman Republican Castrametation, p. 27.
326
A planta apresentada por A. Schulten foi criticada por J. Pamment Salvatore (Roman Republican Castrametation, p.
119) e M. Dobson (The Roman Camps at Numantia, p. 198).
126
hemistrigia que se conhecem para o Alto-Império 327. Mas torna-se difícil inseri-las num
conjunto coerente, susceptível de confirmar que a circunvalação de Numância
albergaria já uma legião organizada de acordo com o sistema da coorte, como alguns
sustentaram, ao aproximar Peña Redonda de outros dois sítios que a compõem
(Castillejo III e Molino)328. À semelhança de Renieblas V, a planta restituída por
Schulten em relação a Castillejo III levanta suspeitas, e o seu «rigor» alicerçou-se
somente na convicção de que o local teria englobado o quartel-general de Cipião 329.
Afora tudo isto, a sobreposição das diferentes fases complica consideravelmente a
interpretação dos vestígios materiais, cujo desaparecimento obsta, actualmente, a um
reexame em primeira mão330.
De igual modo, a estrutura interna de Molino, que se conhece pior, prestou-se às
suposições mais diversas331. A amplitude da margem de incerteza impossibilita que
usemos estes dois exemplos para escorar solidamente uma hipótese. Assim, em termos
globais, os vestígios são demasiado fragmentários para extrairmos conclusões
categóricas sobre a planimetria dos acampamentos numantinos, mesmo no de Peña
Redonda, em que o estado de conservação é melhor. Ao supor que isto fosse possível,
não basta estabelecer a forma e a organização das construções. Seria necessário ter a
capacidade de determinar que categorias de tropas estariam aboletadas nos
acampamentos, o que está longe de ser o caso, não obstante os comentários assertivos
de Schulten.
327
A. Schulten, Numantia. Die Ergebnisse des Ausgrabungen, 1905-1912, III: Die Lager des Scipio, pp. 163-164, J.
Pamment Salvatore, Roman Republican Castrametation, p. 99; M. Dobson, The Roman Camps at Numantia, p. 276.
328
Foi esta, em suma, a hipótese aventada por M. Dobson (The Roman Camps at Numantia, p. 67): segundo este, os
vestígios de Peña Redonda, Castillejo III e Molino atestariam um tipo de casernas em que cada um dos três manípulos
que fazia parte da coorte se encontraria posicionado atrás do precedente; acrescentou ainda que o que Schulten
entendera consistir no anexo do acampamento III de Renieblas, seria, na realidade, um acampamento suplementar,
datável do cerco de Numância, rotulando-o de «acampamento VI». Cabe salientar que o laço entre o último e o
acampamento III não se fundamenta em bases sólidas, além de que a sua associação aos acontecimentos do ano 133 a.
C. também carece de testemunhos com valor probatório. O único argumento aceitável de Dobson relaciona-se com uma
suposta semelhança com a planimetria dos sítios de Numância.
329
A este respeito, observem-se as críticas metodológicas de J. Pamment Salvatore, Roman Republican Castrametation,
pp. 85-90.
330
As «correcções» sugeridas por M. Dobson (The Roman Camps at Numantia, pp. 234-235) são pouco convincentes:
ele identificou dez blocos, designados A-J, repartidos em duas filas de casernas no sentido norte-su, relacionadas com as
dez coortes da legião. Mas o rigor desta reconstituição vê-se enfraquecido pelas reservas expressas pelo próprio autor,
que reconheceu a insuficiência de dados: «…the layout of the camp, on which any discussion of its garrison is based, is
itself based on much conjecture». Por estranho que pareça, Dobson veio a utilizar a sua interpretação como argumento
para apoiar as restituições de Renieblas VI ou de Molino.
331
A interpretação dos pouquíssimos vestígios da planta interna de Molino é bastante reveladora quanto aos limites do
método seguido por M. Dobson: este corrigiu (The Roman Camps at Numantia, pp. 279-282) arbitrariamente a
reconstituição já arbitrária de Schulten, ao transformar num edifício único as estruturas A e B, atribuidas pelo autor
alemão a duas construções alinhadas, apesar de não existir qualquer indício edificatório entre ambas. Esta primeira
conclusão serviu depoiis como argumento para reconstituir as estruturas C e D, que se entenderam como pertencendo,
sem nenhum grau de certeza, a um segundo hemistrigium, paralelo ao primeiro: «The northern limit of C/D is
uncertain, but like A/B could have extended as far as the northern edge of the terrace. The location of the southern end
of C/D is also uncertain but was presumably similar to that of A/B. It is conceivable therefore that A/B and C/D were
similar in length». A comparação sistemática entre uma série de reconstituições tão conjecturais forma, então, a base da
reflexão de conjunto de M. Dobson: «A degree of validity is given to this overall southern end, comparable to those at
Castillejo and Peña Redonda». J. Pamment Salvatore (Roman Republican Castrametation, p. 110) optou por uma
atitude mais razoável, declarando ser incapaz de se pronunciar sobre a morfologia de Molino.
127
Posto isto, não há garantia alguma de que os acampamentos da circunvalação de
Numância sejam realmente representativos da castrametação republicana: inseridos
numa zona, eles pertenceriam mais a um conjunto de fortes pelos quais as tropas
estavam distribuídas segundo uma lógica que nos escapa 332. Critérios circunstanciais,
como a necessidade de adaptação dos acampamentos aos constrangimentos impostos
pela topografia, influíam igualmente na mudança da disposição habitual das estruturas
internas333.
O alargamento geográfico do raio de acção dos exércitos romanos levou a que fosse de
todo impraticável o pagamento do soldo pelos tribunos do tesouro. Com efeito, quando
as campanhas passaram a durar mais tempo e as primeiras guarnições se instalaram
nas províncias conquistadas, os soldados viram-se retidos vários anos longe de Roma,
sem poderem regressar para receberem o soldo. A partir de então, não seria mais
possível aos tribunos do tesouro procederem ao adiantamento da totalidade das somas
necessárias para efectivos tão numerosos e para períodos tão longos.
O montante do soldo do legionário republicano continua a alimentar debates no seio
da comunidade académica. Políbio (Hist. 6.39.12) representa a nossa principal fonte
sobre isto quanto ao exército romano antes do tempo de Júlio César:
«No que concerne ao montante do soldo, o legionário recebe diariamente dois óbolos, os
centuriões o dobro, e os cavaleiros uma drachma».
É difícil interpretar este trecho por várias razões: antes de mais, cabe identificar a
dracma que lhe serviu de referência (2 óbolos representando 1/3 de uma dracma).
Políbio terá utilizado o padrão ático ou outro? A primeira hipótese parece a mais
verosímil, na medida em que corresponde a uma referência compreensível para todos
os seus leitores. Uma vez identificada, a dracma de Políbio deve, em seguida, ser
convertida em moeda romana. Mas importa ter em conta a desvalorização da última no
decurso da Segunda Guerra Púnica, o que fez oscilar as equivalências entre o bronze e a
prata. O denário (denarius) de prata, introduzido em 214 a. C., valia, então, 10 asses.
332
Impõe-se, pois, uma atitude prudente, no momento de aplicar um modelo teórico para se compreender a organização
dos raros vestígios descobertos. A dificuldade de conciliar esta prudência com a tentação de se atingir um resultado
observa-se claramente nas contradições que o discurso de M. Dobson comporta. O autor admite (The Roman Camps at
Numantia, p. 134) que «the layout of these may be atypical compared to castra in general and so the above discussion of
the layout of camps could be irrelevant»; por outro lado, considera que os sítios de Numância reproduziriam, pelo
menos em certa medida e em escala miniatural, a estrutura dos grandes acampamentos, embora «as a result, applying
the general theroretical model to the siege sites has some justification». Ao procurar confirmar no terreno as ideias
advogadas por Bell («Tactical Reform…», p. 67), Dobson acabou por não se distanciar muito da metodologia de A.
Schulten, a qual, todavia, criticou severamente.
333
É o que acontece com Peña Redonda, onde todas as construções se apresentam agrupadas na única parte plana do
local, no seu lado leste. Cabe não excluir que o recurso a uma morfologia diferente das casernas poderia corresponder à
necessidade de aproveitar ao máximo o espaço disponível, e não tanto reflectir a organização de uma nova táctica. Sobre
este assunto, cf. J. Pamment Salvatore, Roman Republican Castrametation, p. 77; F. Cadiou, «Les guerres en
Hispania…», pp. p. 75-76.
128
Em 218 a. C., o as (pl. asses) pesava ainda meia libra de bronze, isto é 6 onças (163,8
gramas). Para o período em apreço, fala-se de as semi-libra.
No entanto, quatro anos mais tarde, o as talvez não excedesse 1/6 da libra (2 onças);
passou, portanto, a qualificar-se de as sextans. No final da guerra, ou possivelmente
por volta de 211 a. C., o as foi reduzido a um duodécimo da libra (uma só onça),
recebendo a designação de uncialis. Consequentemente, alterou-se a tarifa do denário,
que passou a valer 16 asses unciales, em vez de 10 asses sextantis334.
Provavelmente, os legionários continuaram a receber asses de bronze até meados do
século II a. C335. Mais tarde substituiu-se o as pelo denário de prata, que apresentava a
vantagem de limitar a massa monetária a transportar, quando as despesas militares
registaram uma tendência para aumentar. Contudo, Plínio-o-Antigo (Nat. Hist. 33.45)
indica-nos que os legionários tinham um soldo que consistia num denário valendo
sempre 10 asses sextantis, a fim de não serem prejudicados pela mudança da tarifa. Por
último, não olvidemos que Políbio só alude a um soldo diário, que os historiadores
modernos converteram, possivelmente de maneira algo precipitada, num montante
anual (tendo por base um ano de 360 dias). Mas em, termos práticos, as variações da
duração do ano no tempo de Políbio podem ter acarretado oscilações 336.
Independentemente do montante quotidiano calculado – 3 asses sextantis, 1/3, 4 ou
5 asses unciales – ele permaneceria inferior ao de um verdadeiro salário diário. É certo
que só dispomos de elementos comparativos para o século I a. C. Assim, Cícero diz-nos
que um trabalhador manual em Roma recebia, ao tempo, 12 asses unciales, isto é, ¾ de
um denário por dia. Mas não podemos assimilar o soldo a uma autêntica remuneração,
já que a defesa de Roma assentava num exército censitário, pelo que se esperava,
essencialmente, que os soldados servissem à sua própria custa. Assim, o soldo
representava apenas um simples «subsídio de subsistência», destinado a compensar a
duração cada vez maior das campanhas.
Não se utilizaram os despojos para pagar directamente o soldo dos legionários
vencedores. Em Roma, a colecta e a utilização dos despojos encontravam-se codificados
por regras muito precisas que repousavam no princípio geral de que as pessoas e os
bens dos vencidos pertenciam, por direito, aos vencedores. Admitia-se, então, que tudo
o que um exército derrotado pelas legiões romanas deixasse para trás fica à inteira
334
P. Cosme, L’armée romaine, VIIIe s. av. J.-C.-Ve s. ap. J. C., p. 36.
335
D. Rathbone, «Warfare and the State», in P. Sabin, H. van Wees e M. Whitby (eds.), The Cambridge History of Greek
and Roman Warfare, Volume II: Rome from the Late Republic to the Late Empire, Cambridge, 2007, p. 159; P.
Erdkamp, «War and State Formation in the Roman Republic», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army,
p. 105.
336
Sobre a introdução da moeda no pagamento dos soldos, vejam-se: M. H. Crawford, Coinage and Money under the
Roman Republic. Italy and the Mediterranean Economy, Londres, 1985, pp. 29-51; K. Harl, Coinage in the Roman
Economy, 300BC-AD 700, Baltimore, 1996, pp. 21-37; C. Nicolet, Roma y la conquista del mundo mediterráneo 264-27
a. de C., Barcelona, 1982, pp. 88-89. Para uma visão mais recente e problematizante: Elio Lo Cascio: «Spesa militare,
spesa dello Stato e volume delle emissioni nella Tarda Repubblica», AIIN 29 (1982), pp. 75-97; IDEM, «Ancora sullo
stipendium legionario dall’età Polibiana a Domiciano», AIIN 36 (1989), pp. 101-120.
129
disposição das últimas. Em contrapartida, o destino dos bens e das pessoas civis dos
Estados vencidos terá escapado aos simples soldados, uma vez que se considerava
pertencerem à colectividade dos cidadãos. Em 187 antes da nossa era, os ganhos
obtidos pela guerra conduzida por Gneu Mânlio Vulso, na Ásia, já haviam permitido
reembolsar uma parte do tributum aos cidadãos. Vinte anos mais tarde, após a vitória
de Emílio Paulo sobre Perseu, os despojos trazidos da Macedónia (120 milhões de
sestércios) revelaram-se suficientes para que se suspendesse o tributum. Se o depósito
de Emílio Paulo serviu para suspender a percepção do tributum, tal se deveu ao facto
de o vencedor de Perseu se manifestar mais parcimonioso para com as suas próprias
tropas.
Doravante, o pagamento do soldo exigiria uma organização das transferências de
fundos entre a Roma e os exércitos em campanha. Os despojos eram enviados para
Roma após a vitória, ao passo que o numerário destinado à subsistência dos legionários
se transportava decerto anualmente com o supplementum, assegurando a rendição das
tropas. Os magistrados que exerciam os seus cargos fora dos limites de Roma recebiam
uma dotação especial orçamental, a fim de prover à aquisição e manutenção de todo o
equipamento necessário para a prossecução das operações militares que eles deviam
conduzir: o vasarium era determinado caso a caso pelo Senado ou por uma lei. O
vocábulo deriva provavelmente de vasa, plural de vas, vasis, que designa as bagagens
dos soldados. As gratificações suplementares permitiam aos governadores satisfazer as
necessidades em víveres dos adjuntos que levavam com eles os cibaria.
Mas estes «subsídios» estavam longe de cobrir o conjunto de despesas que uma
campanha militar implicava. Assim, governadores e generais recebiam igualmente
fundos para remunerar os soldados que encontravam no terreno ou que os
acompanhavam. No fim da República, estes fundos procediam, na sua maior parte, do
tesouro de Saturno (aerarium Saturni). A sua afectação dependia geralmente de uma
decisão do Senado. O novo papel confiado aos tribunos do tesouro radicava na
distribuição desses fundos pelos diferentes exércitos.
Em termos concretos, a dedução do fornecimento de víveres e de armas de reserva do
montante do soldo dos legionários veio a limitar a amplitude das transferências de
fundos. Nos casos frequentes de transporte por mar, o impacto de um naufrágio via-se
mitigado pela organização de comboios de vários navios. Contudo, os que tinham sido
investidos do imperium nem sempre eram compelidos a transportar a totalidade dos
fundos de que precisavam a partir de Roma. Por vezes, podiam encontrar uma parte
dos mesmos no local onde exerciam o seu comando. De facto, ao tratar-se de uma
província explorada há já vários anos, o governador nela dispunha certamente de um
130
cofre alimentado pelas receitas fiscais chamado fiscus, palavra que se reportava ao
cesto ou cabaz onde se depositava o dinheiro.
Na maior parte das situações, as receitas eram arrecadadas por «sociedades» de
publicanos337, encarregados de recolher os impostos devidos pelos provinciais. Em caso
de urgência, um governador de província podia até requisitar os fundos reunidos por
aqueles. O produto do fisco provincial não era, portanto, canalizado integralmente para
Roma. O numerário que ficava no local servia para cobrir, esporadicamente, parte dos
gastos com a manutenção das tropas lá presentes.
Porém, os generais em campanha, tanto os cônsules como os pretores, salvo os
dictatores, não dispunham arbitrariamente dos fundos. O seu poder de mexer no
dinheiro público estava sujeito ao controlo prévio do questor que agia na qualidade de
adjunto dos primeiros. A complementariedade dos papéis desempenhados pelo questor
e pelo comandante-chefe materializava-se na própria topografia dos próprios
acampamentos militares, onde os principia associavam os aposentos do general
(principia) e do questor (quaestorium).
A partir daí, seriam os fundos geridos pelos questores enviados aos exércitos que
serviriam para pagar o soldo. No entanto, eles, ao serem por vezes responsáveis pelas
finanças de várias legiões, nem sempre se encarregavam pessoalmente do pagamento,
delegando esta tarefa aos tribunos militares. Como este pagamento se efectuava mais
frequentemente nos sítios onde se achavam as tropas do que aquando do regresso das
mesmas a Roma, o processo tinha de se fundamentar nos elementos informativos
facultados pelas legiões. O soldo era, então, provavelmente pago numa só vez, no fim de
cada campanha.
337
E. Badian, Publicans and Sinners. Private Enterprise in the Service of the Roman Republic, Oxford,
1972.
131
ou o de aliados. Por outro, o inimigo podia adoptar a táctica da «terra queimada»,
tornando assim o aprovisionamento muito aleatório. Mas fazer vir de Itália todas as
provisões necessárias nem sempre era concretizável.
Relativamente aos víveres, só se distribuíam as rações de trigo aos soldados 338. O
produto dos dízimos em géneros das províncias da Sicília e da Sardenha era, assim,
destinado a alimentar os exércitos em campanha. Com efeito, os grãos podiam ser
transportados cobrindo distâncias longas e conservados sem demasiadas perdas nos
celeiros. Mas quando as terras cerealíferas passaram a ficar sob o controlo dos exércitos
romanos, como sucedeu na Península Ibérica ou em Africa, recorria-se obviamente
também às mesmas. Moído pelos próprios soldados, o trigo consumia-se sob a forma de
papas (puls), pão ou de biscoitos, mas não consistia no seu único alimento.
Os despojos, as colheitas, as cabeças de gado que acompanhavam os exércitos, bem
como as aquisições feitas a mercadores ambulantes, permitiam aos militares abastecer-
se igualmente de carne, frutos e legumes. Uma mistura de vinagre e água, a posca, era o
tipo de bebida mais corrente entre as tropas. Determinados géneros eram objecto de
um aprovisionamento diário, in situ, pelos soldados encarregados desta tarefa, haja em
vista a água, a madeira e as forragens, as últimas devido à importância da tracção
animal no trem dos exércitos antigos.
De facto, os soldados partiam em campanha sem a possibilidade de com eles levar
todos os alimentos de que precisavam. Diversos estudiosos já discutiram muito acerca
da «mochila» individual do legionário, as sarcinae (que significa «bagagem», «carga»)
mas, aparentemente, não ultrapassaria os 40 kg. Nas regiões áridas, limitava-se o
recurso às atrelagens, devido à falta de água e de montadas. Ademais, os impedimenta,
grande parte dos víveres e das forragens eram transportados com as tendas, as
máquinas de guerra e o equipamento dos oficiais pelos comboios que acompanhavam
os exércitos. Assim, o legionário partiria apenas com os víveres previstos para uns dez
dias, no máximo, mas não podia arcar pessoalmente com a carga que representava uma
tal quantidade de cereais. Em princípio, ele receberia uma vez por mês a sua ração de
trigo.
O Estado romano começou provavelmente a substituir as armas danificadas ou
perdidas em combate. Somente neste caso se procedia a uma dedução sobre o
montante do soldo. Com efeito, os recrutas não obteriam armas através dos vales
entregues pelos tribunos militares, adquirindo os primeiros a panóplia apropriada no
manípulo em que haviam sido incorporados. Até no seio dos manípulos que formavam
a mesma linha de batalha, o armamento dos legionários manteve-se, durante largo
338
P. Erdkamp, «The corn supply of the Roman armies during the third and second centuries BC», Historia, 44 (1995),
pp. 168-191.
132
tempo, relativamente heterogéneo. Em contrapartida, o vestuário parece ter sido
fornecido pelo Estado.
No entanto, é caso para perguntar se as mudanças neste domínio ocorreram no
decurso do século II a. C. Em 123 antes da nossa era, Caio Graco 339 instaurou a
distribuição gratuita de vestes pelos legionários (Plutarco, Vida de Caio Graco, V, 1),
mas torna-se bastante difícil apurar, ao certo em que é que consistiriam. Estes
vestimenta incluiriam, talvez, uma túnica e calçado. O mais novo dos Gracos o mesmo
fez em relação às armas dos legionários: esta medida obedeceria ao propósito de se
introduzir alguma estandardização do seu equipamento? De facto, as descobertas
arqueológicas atestam maior homogeneidade do equipamento militar neste período, o
que acarretava menores custos de produção. O fornecimento de armas diria respeito
apenas aos soldados mais pobres; os outros, nomeadamente os oficiais, continuariam a
comprar as suas armas a artífices italianos antes de partirem em campanha.
Mas, ao receberem as armas, os soldados não se tornariam, aparentemente, nos seus
proprietários340: em princípio, teriam de devolvê-las no fim do serviço militar,
retirando-se uma quantia do soldo que serviria como caução, em conformidade com as
modalidades que captamos melhor para a época imperial. Consoante as circunstâncias,
ofereciam-se várias soluções aos questores para encaminharem estas provisões para os
exércitos.
De acordo com pesquisas recentes, é de valorizar o papel das «sociedades» de
publicanos no abastecimento dos exércitos341. O Estado também adquiriria vestuário e
armamento a fabricantes privados. O seu transporte, assim como o do trigo fornecido
pelos dízimos da Sicília e da Sardenha, seria igualmente objecto de contratos com
armadores (navicularii) particulares, embora não se deva excluir o recurso a navios
requisitados. A amplitude de certas campanhas, sobretudo durante a Segunda Guerra
Púnica, pode ter conduzido, de igual modo, à instalação de verdadeiras bases logísticas,
englobando oficinas e celeiros, situadas nas proximidades dos teatros de operações.
Já em 311 a. C., Roma terá mandado construir uma vintena de navios para mover
perseguição a piratas. Mas foi principalmente a Primeira Guerra Púnica, que se
desenrolou entre 264 e 241 a. C., em que estava em causa o controlo da Sicília, que
339
IDEM, «Feeding Rome or feeding Mars? A long-term approach to C. Gracchus’ lex frumentaria», AncSoc., 30 (2000),
pp. 53-70.
340
P. Cosme, «Les fournitures d’armes aux soldats romains», in L. De Blois e E. Lo Cascio (eds.), The Impact of the
Roman Army (200-BC-AD476). Economic, Social, Political, Religious and Cultural Aspects, Leiden/Boston, pp. 167-
196.
341
Sobre estes fornecedores privados (também chamados socii), afora a monografia anteriormente citada de Badian,
vejam-se: J.-J. Aubert, Business Managers in Ancient Rome: A Social and Economic Study of Institores, 200 BC-AD
250, Nova Iorque, Brill, 1994, pp. 325-330, 342-346; J. P. Roth, The Logistics of the Roman Army at War, pp. 230-
231.Consultem-se também os artigos incluídos na obra colectiva editada por C. Nicolet, Censeurs et publicains.
Économie et fiscalité dans la Rome antique, Paris, 2000.
342
Sobre as frotas romanas e as acções bélicas navais durante a época republicana, as obras de referência ainda
continuam a ser as de J. H. Thiel, Studies of the History of Roman Sea-Power in Republican Times, Amesterdão, 1946,
e A History of Roman Sea-Power before the Second Punic War, Amesterdão, 1954.
133
obrigou os Romanos a iniciarem-se na guerra naval. Segundo Políbio (Hist. I, 20, 9-5),
os Romanos teriam encetado a construção da sua primeira frota de guerra no início
desse conflito, inspirando-se num navio cartaginês que havia encalhado.
Uma batalha entre galés exigia o recurso à força propulsora dos remadores, uma vez
que a navegação à vela se mostrava então demasiado aleatória. No século III a. C., que
se caracterizou pelo gigantismo crescente das unidades navais, o principal barco de
guerra passou a ser a quinquerreme, que suplantou o trirreme: como o nome do
primeiro indica, compreendia cinco filas de remeiros, mas subsistem incertezas
relativamente à sua disposição concreta. Porém, a quinquerreme, por razões de
manobrabilidade, não era provavelmente muito maior.
Em contrapartida, como os efectivos dos seus remadores deviam ser cerca de 40%
superiores aos do trirreme, restava pouquíssimo espaço para embarcar combatentes
suplementares e víveres em quantidade suficiente para empreender grandes travessias.
Plenamente conscientes da superioridade das capacidades de manobra dos
Cartagineses no mar, os Romanos, em vez de investirem com os esporões (rostra)
contra os navios inimigos, preferiam fazer a abordagem, utilizando para o efeito uma
rampa provida de uma ponta acerada na sua extremidade, chamada corvus, que
aferrava na ponte adversa. Depois da aplicação deste dispositivo, os soldados podiam
então transpor a sua arte de combate terrestre para o mar.
Afora os legionários embarcados, os marinheiros e os remadores eram recrutados
entre os libertos ou entre os aliados italianos de Roma. Os procedimentos que Roma
adoptou para reunir as equipagens da sua frota de guerra, que Tito Lívio descreveu
pormenorizadamente (Ab Urb. cond. 24.11.7-9; 26.35.1-3), assemelham-se aos das
leitourgíai das cidades-estados gregas, sobretudo à trierarquia ateniense. Em função da
sua riqueza, em situações de emergência, como a que ocorreu em 214 a. C., os cidadãos
romanos deviam fornecer um certo número de escravos para servirem como remeiros,
juntamente com o montante do seu soldo e os víveres para um mês. Assim, cada
senador facultaria oito escravos com um ano de soldo incluído. Nenhum magistrado
estava especificamente afecto ao comando da frota: esta fazia parte dos meios militares
postos à disposição dos magistrados ou promagistrados responsáveis pelo conjunto de
uma campanha, os quais podiam delegar o seu poder de mando no mar aos legados.
Aparentemente, a primeira frota de guerra romana terá compreendido uma centena
de quinquerremes. No fim da Primeira Guerra Púnica, este número duplicou,
garantindo a Roma superioridade sobre Cartago. Mas, note-se, este esforço bélico
manifestou-se muito descontínuo: a partir do momento em que uma ameaça se
dissipava, Roma renunciava a manter uma frota de guerra. Durante a Segunda Guerra
Púnica, foi então preciso reconstruir praticamente uma nova frota com perto de 300
134
navios, a qual não sobreviveu a este conflito: quando Roma se envolveu na Terceira
Guerra da Macedónia, a sua frota comportava apenas 68 galés. Não havendo uma
ameaça marítima concreta, a Urbs recorria preferencialmente à marinha de guerra dos
seus aliados ou impunha cláusulas muito restritivas nos tratados de paz firmados com
os seus inimigos: depois da sua derrota em Zama, em 202 a. C., Cartago só pôde
conservar dez navios; o reino da Macedónia, por seu lado, após ser vencido em
Cinoscéfalas em 197 a. C, apenas conseguiu ficar com seis. Quanto ao reino selêucida,
com a paz de Apamea em 188 a. C., preservou somente dez barcos. Não admira que
esta política tenha contribuído para gerar um «vazio» militar no Mediterrâneo, o que
favoreceu o desenvolvimento da pirataria.
135
ANEXO: A problemática das modalidades de combate no período das
Guerras Púnicas. Um modelo interpretativo sobre a utilização dos pila, os
confrontos corpo a corpo e a duração das batalhas
Os últimos decénios foram palco de acesos debates no meio científico sobre a maneira
como se deve entender o legionário romano e a sua maneira de fazer a guerra. Por
oposição ao hóplita grego, basicamente um lanceiro que empunhava a sua arma e
apenas empregava o seu curto xiphos quando a primeira se quebrava no corpo a corpo,
a communis opinio viu, até não há muito (apoiando-se em larga medida nas fontes
clássicas: Políbio, Hist. 2.30.8; 2.33; 15.12.8; Vegécio, Epit. rei mil. 1.12), o soldado
republicano como, acima de tudo, um «espadachim», que combinava a utilização activa
do escudo para empurrar e desequilibrar o inimigo com golpes vigorosos, assestando
cutiladas e estocadas por meio do seu gladius. Nesta concepção, os dois pila (o pesado
e o ligeiro) seriam lançados em «salvas», sobretudo na fase inicial do prélio, para
desorganizar as forças do antagonista e causar-lhe baixas no momento imediatamente
antes do choque com a espada, como Lívio amiúde descreve (Ab Urb. cond. 9.13.2-5;
9.35.4-6; 28.2.5.5-6, etc.)343. De facto, Políbio só menciona a utilização do pilum em
batalha numa única ocasião (Hist. 1.40.12), na refrega de Panormus, em 250 a. C.
No entanto, algumas vozes dissonantes plasmaram-se num importante estudo de A.
Zhmodikov, publicado em 2000, que compilou um significativo número de fontes
literárias referentes ao emprego prolongado dos pila durante toda uma contenda, não
só no começo, o que implica que normalmente não se efectuariam salvas maciças de
dardos arrojadiços, já que desta forma se esgotaria a sua dotação logo nos primeiros
instantes da porfia344. Mais: isto também sugere que existiam momentos em que as
linhas dos exércitos beligerantes se separavam, dando assim a possibilidade aos
infantes de recuperar o fôlego, e que em tais alturas é que sobreviria um «intercâmbio»
mediante o arremesso de dardos, talvez a uns 20 m de distância.
Consequentemente, modificou-se a percepção que, durante largo tempo, se teve do
desenrolar de um combate, apresentando-se este menos concentrado, brutal ou
decisivo, resumindo-se a uns quantos segundos e minutos, e convertendo-se numa
confrontação mais prolongada, vacilante e irregular, até na fase do corpo a corpo com
espadas345. Esta nova visão do uso dos pila coaduna-se por inteiro com a longa duração
das batalhas e recontros que se relatam normalmente nas fontes literárias, pelo que um
343
Zhmodikov, 2000, p. 68.
344
Para outras referências: Sabin, «The Face of Roman Battle», p. 12.
345
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, 1996, p. 222.
136
combate decidido em breves minutos significaria mais a excepção do que a regra.
Embora algumas refregas se resolvessem muito rapidamente, principalmente quando o
adversário debandava antes de ocorrer o corpo a corpo (Lívio, Ab Urb. cond. 8.16.6;
9.13.2; 9.35.7),346 muitas outras duravam duas, três ou até mais de quatro horas 347.
Como é inconcebível imaginar duas massas de soldados a lutarem corpo a corpo
continuamente, ultrapassando os 30 minutos, por uma simples questão de resistência
física348, cabe encontrar uma explicação para o facto de a maior parte das batalhas se
desenrolar por muito mais tempo, o que pressupõe momentos «mortos», em que as
linhas se afastariam e o combate dimuiria de intensidade.
Os estudos recentes de Adrian K. Goldsworthy 349 e de Philip Sabin ajudaram a
estabelecer um modelo de batalha que se distancia da perspectiva tradicional, mas que
está, por um lado, muito mais conforme com o conjunto das fontes literárias antigas (e
não só de certas descrições seleccionadas que sobressaem pelo seu carácter
excepcional, como as batalhas resolvidas numa única investida350), e, por outro, com as
possibilidades do emprego das armas, fundamentalmente, o gladius hispaniensis, os
pila e a relativa leveza do armamento corporal.
No mesmo modelo, introduziu-se também o exame das baixas documentadas em
diferentes batalhas pelos textos literários, relativamente reduzidas, oscilando entre 5 e
15% na conflagração propriamente dita, o que é incompatível com a visão de uma melée
quase interminável e sem interrupções, encenada à maneira de Hollywood, o que se
traduziria decerto em cifras de perdas humanas muito maiores do que as que as
conhecidas351.
Julgamos que P. Sabin foi quem melhor resumiu o consenso emergente entre os
especialistas: «[…] começa a surgir um consenso sobre a natureza dos choques da
infantaria pesada romana […] que estes choques eram muito mais indecisos [tentative]
e esporádicos do que se havia presumido, e que só um modelo como este pode explicar
a combinação aparente da longa duração, do desequilíbrio de baixas 352, da fluidez da
linha de batalha e da ênfase nas reservas, mais do que na profundidade da
formação»353.
346
Ibidem, p. 202, n. 96.
347
As fontes revelam-se explícitas neste sentido: Zhmodikov, pp. 70-71 (especialmente o catálogo na nota 34); Sabin,
«The Face of the Roman Battle», pp. 4-5; A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 225.
348
Militares experientes como Clausewitz ou Fuller estimaram que o tempo máximo de luta corpo a corpo rondaria os
15-20 minutos, ou mesmo menos: cf. A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 224.
349
Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 171-247, esp. 223-227.
350
Ibidem, p. 201ss.
351
P. Sabin, «The Face of the Roman Battle», pp. 5-10.
352
A favor do vencedor, o inimigo sofreria as maiores perdas durante a sua fuga: P. Sabin, «The Face of the Roman
Battle», p. 5; Krentz, 1986; Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 223-224.
353
«The Face of Roman Battle», p. 17.
137
Nesta visão, na maior parte das batalhas romanas, as linhas entravam em contacto de
forma esporádica, quando um ou outro lado arremetiam para um violento mas breve e
localizado corpo a corpo. Os confrontos cessariam quando uma das facções ficava em
desvantagem, e as suas tropas recuavam para restaurar uma «distância de segurança»,
enquanto brandiam as armas para dissuadir uma perseguição imediata do inimigo.
Para P. Sabin, «Este tipo de equilíbrio dinâmico, pontuado por episódios de luta corpo
a corpo, podia continuar durante algum tempo, até que um dos lados finalmente
perdesse a sua capacidade de resistir […] O mecanismo mais comum para esta
transformação seria o pânico das tropas devido a uma brecha na sua linha, um choque
psicológico como, por exemplo, a morte do general, ou a pura acumulação das baixas e
da fadiga»354.
Relativamente a esta vertente (e outras), a obra de J. E. Lendon, Soldiers & Ghosts. A
History of Battle in Classical Antiquity (2005), voltou a explorar o problema não
resolvido do funcionamento da legião manipular no campo de batalha, que, do século
XIX em diante, ocupou dezenas de investigadores 355. Da descrição de Tito Lívio (Ab
Urb. cond. 8.8.9-14), que é o autor que nos proporciona dados mais pormenorizados
sobre a forma de combate manipular, depreendemos que as sucessivas linhas de
batalha dos hastati, principes e triarii se formavam em manípulos – desconhecemos se
com as duas centúrias alinhadas ou uma atrás da outra - deixando entre elas espaços
vazios, talvez com a mesma frente de um manípulo ou algo menores, para assim
poderem realizar as manobras que Lívio descreve da substituição das tropas exaustas
por outras frescas. Importa citar integralmente o trecho fundamente a este respeito:
«…os hastati eram os primeiros a combater. Se não fossem capazes de desorganizar o inimigo,
retrocediam, passo a passo, e recebiam-nos os principes nos espaços livres existentes nas suas
fileiras. Então competia aos principes lutarem; os hastati postavam-se atrás; os triarii
mantinham a sua posição sob as insígnias, tendo a perna esquerda avançada, sustendo o escudo
sobre o ombro, as lanças com as pontas para cima, apoiadas em terra, oferecendo o aspecto de
um exército eriçado de pontas e rodeado por uma paliçada. Se tão pouco os principes obtinham,
ao lutar, resultados suficientemente satisfatórios, iam então recuando pouco a pouco, desde a
primeira linha até aos triarii; foi por causa disto que se tornou proverbial a expressão ‘a coisa
chegou até aos triarii’ [res redacta est ad triarios], quando se pretende dizer que se está em
apuros. Os triarii incorporavam-se e, depois de receberem os principes e os hastati, por meio
dos espaços livres das suas fileiras, estas, imediatamente fechadas, cortavam, por assim dizer, os
passos e, numa única formação compacta, já sem deixar atrás de si qualquer esperança, porque
este, ao perseguir os que pareciam vencidos, via de repente aparecer uma nova linha, com
efectivos maiores» (Ab Urb. cond. 8.8.9-13).
Esta descrição pressupõe uma formação inicial ao jeito de um tabuleiro de xadrez 356, a
que os autores modernos (não as fontes antigas) convencionaram chamar quincunx,
que parece consistir na única solução lógica para se explanar a táctica enunciada por
Lívio. Com efeito, para poderem retroceder e deixar espaço aos principes, os hastati,
354
Ibidem, pp. 14-15.
355
J. E. Lendon, Soldiers and Ghosts. A History of Battle in Classical Antiquity, New Haven, Yale University Press,
2005, p. 180ss.
356
E. Wheeler, 1979, pp. 305-306.
138
das duas uma - ou teriam adoptado formações, desde o início, com intervalos, para não
colidirem com os manípulos dos principes, ou, então, criariam tais intervalos no
momento em que retiravam, no pior momento possível, justamente quando se achavam
esgotados pela pugna e se viam pressionados pelo oponente que os estava a vencer.
Como há muitos decénios advertiu H. Delbrück357, por muito bem que Lívio tenha
descrito este sistema, trata-se de um processo táctico impossível, apenas compreensível
na qualidade de uma manobra de parada, e não como prática desenvolvida em batalha.
Mas não faltaram estudiosos que aceitaram directamente a ideia de que os Romanos
combatiam, possuindo grandes espaços vazios na sua linha 358.
A nosso ver, é impossível sustentar a hipótese de que os manípulos da primeira linha
de batalha lutassem deixando entre si intervalos do tamanho de outro manípulo, como
aliás salientou H. Delbrück e F. Quesada Sanz, 359 «interstícios» que não podiam ser
protegidos pelos manípulos, colocados na disposição em quincunx, dos principes da
segunda linha. Qualquer inimigo facilmente se aproveitaria destes intervalos, para se
infiltrar, apanhar pelos flancos os manípulos dos hastati, e neutralizá-los antes de os
principes terem tempo de intervir.
A disposição em coortes suscita dificuldades idênticas. Assim, propuseram-se várias
soluções para que, a partir da descrição de Lívio, a legião apresentasse, no momento do
combate, uma linha contínua, incluindo, quando muito, pequenos intervalos entre os
manípulos. À primeira vista, a solução que parece mais viável é que, no desdobramento
inicial, as centúrias de cada manípulo se dispusessem uma atrás da outra e que, no
momento antes do choque, as centúrias posteriores avançassem obliquamente para
fechar a linha de batalha, apresentando, assim, uma frente contínua mas articulada.
O problema é que esta hipótese gera dificuldades adicionais, algumas irresolúveis. De
acordo com as fontes antigas, a razão básica do sistema manipular e das linhas
dispostas em quincunx seria a de possibilitar que, encontrando-se esgotados os hastati,
os principes avançassem pelos intervalos que havia na linha para os render – ou que os
primeiros retrocedessem, ficando entre os manípulos dos segundos – e, se necessário,
que também os triarii pudessem revesar os seus camaradas das duas primeiras linhas.
Pois bem, para fazer tal substituição no sistema manipular, a primeira linha teria de se
afastar do inimigo e fazer recuar as centúrias posteriores de cada manípulo para ocupar
o seu lugar original atrás de cada centúria prior. Desta forma, abririr-se-iam
novamente os intervalos, para que a segunda linha avançasse com manípulos formados
por uma centúria (uma atrás da outra), a fim de substituir os extenuados hastati,
357
H.Delbrück, 1920, p. 293.
358
E. Wheeler, p. 306, n. 14.
359
«El legionario romano en época de las Guerras Punicas: formas de combate individual, táctica de pequeñas unidades
e influencías hispanas», p. 183.
139
desdobrando as suas centúrias posteriores, voltando a fechar a linha e a contunuar o
combate.
Ora isto significaria que, enquanto se combatia o inimigo, duas linhas executariam
uma coreografia complexa, exigindo que os hastati contraíssem os seus manípulos e
retrogradando, ao mesmo tempo que os principes vinham preencher os espaços vazios
recém-abertos, dispondo-se em linhas e fileiras nítidas, formando rectângulos
regulares. Todo este processo pode ficar bem no papel, através de gráficos atractivos 360,
mas manifesta-se absolutamente impraticável num campo de batalha, no momento em
que as forças em contenda estariam supostamente a menos de 20 metros uma da outra
– ou na fase do contacto directo, se as tropas da primeira linha se encontrassem
verdadeiramente esgotadas. O inimigo certamente tentaria desorganizar por completo
este mecanismo de substituição de tropas, operada no calor do prélio. O sistema
manipular não poderia funcionar assim 361, nem tão quanto das outras maneiras que se
propuseram362. De facto, como apontou E. Wheeler, a linha frontal de batalha deveria
ser essencialmente contínua, com intervalos muito pequenos a separar as unidades,
assemelhando-se a uma falange363.
Mas, por outro lado, numerosas fontes literárias (além do trecho problemático de
Lívio que atrás transcrevemos) mostram que a vantagem do sistema manipular (e
depois, nos tempos pós-marianos, do sistema de coortes) radicava na possibilidade de
substituir os soldados fatigados da primeira linha, apresentando ao antagonista uma
nova linha completamente fresca: foi o que aconteceu em Zama (Políbio, Hist. 15.14;
Lívio, Ab Urb. cond. 30.34.9-12) e, mais tarde, em Ilerda ou em Farsália (César, Bell.
Civ. 1.45; 3.94). Esta é uma das constantes observáveis nas descrições de batalhas do
exército romano. No entanto, como conciliar a rendição das tropas, aspecto bem
documentado pelas fontes, com a necessidade de evitar a existência de intervalos entre
os manípulos e a substituição dos legionários em pleno enfrentamento corpo a corpo
com o inimigo? Parece-nos que a resposta se encontra, em parte, (a) no estudo das
batalhas narradas com mais detalhe nas fontes antigas; parcialmente, também, nas
considerações anteriormente expostas sobre o espaço necessário para a utilização das
360
Como os apresentados por J. Warry ( p. 111) e P. Connolly, 1988, pp. 140-142), entre outros. Estas interpretações não
resistem a uma análise rigorosa.
361
Como frisou F. Quesada Sanz («El legionario romano en epoca de las Guerras Punicas…», p. 184).
362
O que já há muito afirmou H. Delbrück (1920, pp. 272-296), que rejeitou liminarmente a possibilidade de que a
primeira linha combatesse englobando grandes intervalos (ibidem, p. 283), bem como a ideia de que se substituissem
linhas completas em plena refrega (ibidem, pp. 292-294), embora acreditasse que manípulos individuais de principes
podiam, caso fosse necessário, ocupar os espaços que ficassem abertos na linha dos hastati (ibidem, p. 273): depreende-
se, portanto, que a primeira linha não lutaria com intervalos do tamanho de um manípulo, mas com espaços vazios
muito menores, por forma a ajustar as inevitáveis contracções e extensões das unidades num terreno irregular ou
acidentado. Só se o intervalo se alargasse excessivamente é que o manípulo correspondente da linha posterior intervia,
ocupando-o, postulado que se afigura também problemático no meio da confusão de um prélio, em que as nuvens de
poeira e a oscilação da linha tornariam impossível, no nosso ponto de vista, agir com tanta precisão ao nível dos
manípulos individuais, que contariam, todos eles, com centuriões que certamente avaliariam o melhor momento para
tomar a iniciativa e entrar em acção.
363
E. Wheeler, 1979, p. 306.
140
armas do exército republicano (b); e, por último, no modelo de um combate muito mais
prolongado e dubitativo do que se costuma imaginar (c).
Quanto ao ponto a, no relato de Lívio da batalha de Zama (Ab Urb. cond. 30.34.9-12),
fica claro que a reorganização da linha ocorreu durante uma longa pausa nas
hostilidades, estando as forças beligerantes separadas por um campo juncado de
mortos e feridos. A imagem que se extrai é a de breves períodos marcados por combates
furiosos corpo a corpo, interrompidos por fases de descanso relativamente
prolongadas, e não a de uma frenética e trepidante carga decisiva (o que só
esporadicamente sucedia) ou de uma melée (othismos) quase interminável.
Se, além disto, tivermos em conta para o ponto b os modelos preconizados por P.
Sabin, A. Goldsworthy, Zhmodikov e J. Lendon, alicerçados na análise das fontes e nas
nossas propostas (c) relativamente ao uso das armas num espaço desimpedido, é então
possível descobrirmos uma solução. Por um lado, a ideia de que as batalhas eram muito
mais vacilantes e prolongados do que se poderia supor implica que, durante períodos
relativamente grandes, as linhas opostas não estariam em contacto directo, nem sequer
muito perto, mas apenas dentro do alcance dos dardos arrojadiços, aguardando que um
dos lados comecasse a ceder, dando nítidos sinais de se econtrar psicologicamente
derrotado, ou com grupos de ambas as facções efectuando movimentos agressivos,
enquanto o resto dos soldados se dedicava à sua principal função, a de conservar a
própria vida364. Numa tal situação, seria viável que se procedesse a uma substituição
das linhas, mas se esta se realizasse como se fossem meras peças num tabuleiro de
xadrez, a confusão estaria garantida, num campo de batalha repleto de homens
exaustos, feridos e mortos no solo, e com um inimigo que não hesitaria em aproveitar a
ocasião. Posto isto, é necessário procurar um modelo alternativo que não envolvesse
manobras idênticas às de um batalhão de infantaria num quartel do século XVIII.
Regressemos a uma ideia atrás mencionada, de que tanto o manuseamento do pilum
como da espada (a lâmina medindo cerca de 60 cm de comprimento) exigia um certo
espaço nas linhas, uma separação que permitisse a esgrima individual ou o arremesso
do dardo, sem que houvesse o perigo de atingir o companheiro situado à frente ou
atrás365. Políbio (Hist. 18.28-30) atribui para cada legionário um espaço de «pelo
menos» três pés, isto é, quase um metro, ao qual cabe somar o lugar ocupado pelo
próprio soldado, outros três pés, perfazendo seis ao todo. Observemos o trecho
polibiano:
«Também os romanos ocupam com as suas armas um espaço de três pés quadrados. Mas,
como no seu modo de lutar, cada um se move separadamente, porque o escudo protege o corpo,
girando sempre para prevenir um possível ferimento, e o legionário romano em combate porfia
364
F. Quesada Sanz, «El legionario romano en epoca de las Guerras Punicas…», p. 185.
365
N. Sekunda, Republican Roman Army 200-104 BC, Oxford, 1996, p. 19, A. K. Goldsworthy, The Roman Army at
War, p. 179.
141
com a espada, que fere com a ponta e o fio [da lâmina], é notório que se precisará de uma ordem
mais solta e um espaço de, pelo menos, três pés entre cada um dos homens na mesma fila
colateral e longitudinal, se quiserem cumprir satisafatoriamente a sua missão. A conclusão é que
cada legionário se irá opor a dois soldados da primeira fila da falange».
Consequentemente, numa falange helenística, os homens estavam em ordem unida,
ocupando cada um três pés de frente (1 m); na legião, por seu turno, a separação
chegada, no mínimo, ao dobro. Refira-se que o manual de Eliano atribui à falange uma
frente normal, em combate e em plena carga (11.2, 11.4), 366 de dois côvados (uns 3 pés =
1 m), reduzindo para metade numa posição defensiva (synaspismos). Vegécio, pelo
contrário, escrevendo muitos anos depois mas provavelmente inspirando-se numa
fonte muito antiga, uma vez que cita os hastati, os principes e os triarii (Ep. de rei mil.
3.14.15), indica 3 pés de frente para cada legionário e 7 (uns 2 m) de profundidade para
manejar o pilum. No entanto, talvez Vegécio tenha lido ou interpretado mal a sua fonte,
e que os 3 pés por legionário correspondessem ao intervalo entre cada um, como diz
Políbio, o que aumentaria para 6 pés (1,8 m) a frente ocupada por cada soldado em
combate. Em qualquer dos casos, a frente atribuída a cada legionário é ampla, tanto em
Políbio como em Vegécio, quando cotejada, por exemplo, com as frentes preenchidas
por soldados armados de mosquetes no tempo napoleónico: cerca de 55-70 cm de
frente por cada homem (22 polegadas no exército britânico, 26 no francês e 27 no
russo) e um intervalo de 30-60 cm entre as linhas 367.
Consideramos razoável sugerir, desenvolvendo e modificando um pouco a
argumentação de J. Lendon368, a ideia de que os manípulos em contenda não se
encontrariam dispostos em rectângulos lineares 369 (ao modo dos syntagmata da
falange helenística), cuja eficácia radicava na coesão da sua formação, apresentando
um conjunto eriçado com pontas de sarissas370. Acreditamos, servindo-nos da
terminologia gráfica de Lendon, que se agrupariam em blobs371, nuvens relativamente
densas de legionários que se reuniam, de maneira fluida, à volta dos seus estandartes
(daí a sua importância, e que cada unidade tivesse o seu: Políbio, Hist. 6.24.4-6),
estendendo-se e contraindo-se ligeiramente, como uma amiba, mas sem jamais
olvidarem a sua pertença a cada unidade.
Nesta situação, embora na altura do desdobramento inicial cada manípulo deixasse
um intervalo com os dos seus flancos, quando se ia combater a linha convertia-se num
conjunto quase contínuo, tendo a capacidade de abrir e fechar espaços com bastante
facilidade, em vez de procurar manter uma formação rígida em fileiras e linhas, e apta a
366
Devine, 1989, p. 48.
367
Nafzinger, 1996, p. 22.
368
Soldiers and Ghosts, p. 179, figura.
369
Como os apresentados por J. Warry (p. 112) e P. Connolly, 1989, p. 128 e 141.
370
P. Connolly, 1988, pp. 76-78.
371
Conforme o autor referiu num debate que teve lugar na II International Conference on Hellenistic Warfare, Valência,
Outubro de 2005.
142
recolocar-se rapidamente nos intervalos da segunda linha – que até aí permanecera em
reserva, com uma formação mais rigorosa -, podendo assim «dissolver-se» nas ditas
amibas, ao ocupar o lugar das primeiras. As distâncias envolvidas são pequenas e não
suscitam problemas neste modelo, na medida em que, ao não haver necessidade de
manter um alinhamento extremamento rígido, os movimentos se processariam em
segundos. Não sabemos qual a profundidade com que se formariam as centúrias no
século III a. C.: possivelmente variava consoante a ocasião, se tivermos em conta o que
Políbio escreveu sobre Canas (Hist. 3.113). Normalmente, a profundidade seria de 3,4
ou 6 linhas372. No último caso, se os manípulos formassem com uma frente de duas das
suas centúrias, ocupariam uma linha em ordem de marcha na razão de três pés por
cada homem, menos de 20 m, deixando um intervalo de 20 m em relação ao manípulo
posicionado ao seu lado; ao transitar-se para a ordem de batalha, que englobaria cerca
de seis pés para cada soldado, as tropas dos extremos precisariam de se deslocar
lateralmente apenas 10 m em cada lado, para assim se enlaçarem com os manípulos
dos flancos. Caso se formasse com uma centúria atrás de outra, a frente do manípulo –
imaginando uma profundidade de 6 homens por centúria – cifrar-se-ia apenas nuns 10
m, com os espaços correspondentes entre os manípulos.
Se, como defendeu A. K. Goldsworthy373, a profundidade habitual consistisse somente
em três linhas em lugar das seis, os intervalos atingiriam, quando muito, 20 ou 40 m,
de acordo com a disposição inicial das centúrias; seja como for, tratava-se de pequenas
distâncias para contrair ou expandir uma formação, onde a rigidez das linhas e fileiras
não se afigurava propriamente essencial374. Neste modelo conceptual, a posição dos
estandartes de cada unidade táctica desempenhava um papel decisivo, funcionando
como «centro» de cada uma das densas «nuvens» de legionários, daí que se perceba
bem a enorme importância que eles possuíam na legião romana, bem como a função
dos centuriões (verdadeiros oficiais subalternos de «companhia», mais do que sub-
oficiais), essencial para manter a coesão numa aparente desordem. Quando H.
Delbrück refutou a possibilidade de os manípulos de hastati se «estirarem» para
preencher os intervalos, antes de se produzir o choque com as forças inimigas, o erudito
alemão justificou o seu ponto de vista dizendo que os soldados não poderiam (nem
teriam tempo) para se preocupar em adoptar um novo intervalo de linhas e fileiras na
fase imediatamente precedente ao combate. Mas isto deveu-se ao facto de Delbrück
continuar a pensar em rígidos rectângulos alinhados por fileiras, ao jeito dos batalhões
prussianos do século XVIII, e não numa «nuvem» densa mas muito elástica de
soldados.
372
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 179ss.
373
Ibidem, p. 179ss.
374
F. Quesada Sanz, «El legionario en epoca de las Guerras Punicas…», p. 187.
143
O modelo aqui desenvolvido e proposto será mais plausível do que os demais, na
medida em que tem em conta as peculiaridades do armamento legionário, demonstra
flexibilidade e permite explicar melhor como a legião manipular funcionaria realmente,
desde que se aceite, igualmente, que o combate não se decidia usualmente numa ou em
diversas arremetidas decisivas, significando ele um fenómeno mais prolongado,
vacilante, irregular e, até, indeciso do que até há pouco se supunha 375.
Apesar de subscrevermos muitas das ideias de J. Lendon, a explicação de carácter
psicológico que este oferece, a fim de perceber não o «como» mas o «porquê» do
sistema manipular, não nos parece inteiramente convincente: na sua opinião, tal
dispositivo basear-se-ia na típica agressividade dos legionários romanos (reflectida no
seu gosto pelo combate singular 376), visto que este sistema estaria mais conforme à sua
maneira de actuar do que a formação em falange377.
375
Ibidem, p. 187.
376
S. Oakley, 1985. A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p.264ss.
377
Soldiers and Ghosts, p. 185ss.
144
CAPÍTULO III: O exército romano durante as Guerras
Civis do final da República
378
Com efeito, em 107 a. C., Mário aceitou voluntários procedentes de classes que não eram elegíveis para o serviço
militar, devido aos seus baixos rendimentos. Mas, na realidade, os capite censi já eram esporadicamente admitidos
desde os anos 130 a. C. (J.-M. Carrié, «Recrutement militaire romain», in J. Leclant [ed.], Dictionnaire de l’Antiquité, p.
1870). A expressão capite censi reporta-se ao facto de eles serem apenas arrolados como números nos censos, por não
possuírem património assinalável. Um dos méritos que coube a Mário foi o de acabar por abrir as portas do
recrutamento ao voluntariado, assim suprimindo os derradeiros vestígios do exército censitário.
379
L. De Ligt, «Roman Manpower Resources and the Proletarianization of the Roman Army in the Second Century BC»,
in L. de Blois e E. Lo Cascio (eds.), The Impact of the Roman Army (200 BC- AD 476), pp. 3-20.
380
Não cabe nos nossos propósitos analisar a rivalidade conflitual que opôs Gaio Mário a Lúcio Cornélio Sula, pelo que
remetemos para a leitura de uma obra recente: G. C. Sampson, The Collapse of Rome, Marius, Sulla & the 1st Civil War
(91-70 BC), Barnsley, South Yorkshire, 2013.
145
número dos adsidui/assidui conhecido uma certa diminuição na segunda metade do
século II a. C., isto não comprometeu seriamente, ao que se julga, o esforço bélico
romano.
A teoria de uma eventual redução do número de cidadãos mobilizáveis assenta na
interpretação de cifras do recenseamento que os autores antigos transmitiram, em
primeiro lugar por Tito Lívio, cujo testemunho nos chegou sob uma forma abreviada ou
fragmentária a partir de 167 a. C. Após um pico atingido em 164-163 a. C., tais números
indicam a seguir uma certa descida, mas mantêm-se todavia superiores aos do período
anterior. É verdade que todos os cidadãos eram recenseados, incluindo os proletarii, e
que esta estabilidade relativa das cifras do census poderia ocultar um aumento da
proporção dos proletarii isentos do serviço militar no seio do corpo cívico.
Porém, contrariamente às opiniões de Emilio Gabba 381 e Peter A. Brunt382, John W.
Rich383 não acredita que as mudanças ocorridas nas estruturas agrárias italianas, após a
Segunda Guerra Púnica, tenham efectivamente levado a uma redução drástica do
número dos adsidui, que se manteve acima de 200 000. Embora não restem dúvidas
quanto às transformações sofridas na agricultura em Itália neste período, o
desenvolvimento de grandes domínios fundiários (os latifundia), empregando
abundante mão-de-obra servil, não fez desaparecer completamente o pequeno
campesinato livre, que continuou a servir nas fileiras das legiões, designadamente no
Centro da península.
Com efeito, J. W. Rich defendeu que o valor do património fundiário requerido para se
ficar inscrito na última classe censitária não se afigurava muito elevado, pelo que não é
preciso supor uma diminuição do nível do censo exigido para aceder à mesma durante
o século II a. C. Este abaixamento hipotético – numa ou em várias etapas - é, aliás,
muito difícil de apreender nas fontes antigas 384. É também possível que os censores se
recusassem, muitas vezes, a desclassificar os camponeses livres empobrecidos que,
deste modo, preservavam o seu estatuto de mobilizáveis.
No que respeita à legislação agrária dos Gracos 385, ela não teve por objectivo imediato
aumentar o número dos adsidui, já que as parcelas de terra distribuídas permaneceram
no ager publicus, não sendo, então, tidas em conta pelos censores, ao avaliarem o
património fundiário dos cidadãos mobilizáveis. A referida legislação buscou antes
381
E. Gabba, «Le origini dell’esercito professionale in Roma: I proletari e la riforma di Mario», Athenaeum XXVII
(1949), pp. 173-209; artigo que foi reeditado numa colectânea de estudos do mesmo autor: cf. Republican Rome. The
Army and Allies, Oxford, 1976, pp. 5-8.
382
P. A. Brunt, «The Army and the land in the Roman revolution» JRS 52 (1962), pp. 69-86.
383
J. W. Rich, «The supposed Roman manpower shortage in the later second century BC.», Historia, 32 (1983), pp. 53-
57, 156-157.
384
A. Goldsworthy também referiu haver dificuldades para se saber «qual seria a proporção da população de cidadãos
que se teria conservado na condição de não elegível para o serviço militar», a despeito de «sucessivas diminuições da
dimensão mínima da propriedade para habilitar ao serviço militar»: cf. Generais romanos, p. 154.
385
Sobre a lei da terra de Tibério Graco: Y. Shochat, Recruitement and the Programme of Tib. Gracchus, Bruxelas, 1980.
146
incentivar a demografia italiana, ao permitir que os cidadãos mais pobres tivessem
mais filhos, com o propósito de evitar uma desproporção demasiado forte entre os
efectivos das populações servil, liberta e de origem modesta. Neste caso, os efeitos da
legislação parecem ter sido apenas indirectos.
Os cidadãos que se alistaram como voluntários para o exército de Mário eram
homens sem terras e, caso aceitemos as conclusões enunciadas por N. Rosenstein, eles
tinham chegado a tal situação, não em resultado de um longo serviço militar
ultramarino ou por causa de disputas com latifúndios explorados por escravos, mas
simplesmente por não haver terra disponível para eles. Até Tibério Graco se apercebeu
deste facto, quando a comissão encarregada de implementar a sua lex agraria
constatou restar pouquíssima terra para os soldados. Consequentemente, os recrutas
de Mário estariam motivados pela esperança de ser recompensados na altura do seu
licenciamento, assim se convertendo em agricultores independentes. E, efectivamente,
não terão ficado desapontados386.
Neste contexto, como compreender a decisão tomada pelo cônsul Caio Mário de
arrolar os proletarii no supplementum que ele comandou para combater contra
Jugurta, na Numídia? À primeira vista, daria a impressão que este homem, detentor,
havia pouco, da magistratura suprema, pretenderia, acima de tudo, consolidar a sua
popularidade, ao aceitar todos - proletarii ou não - os que se apresentassem no
arrolamento, convencidos de que o cônsul os conduziria à vitória e atraídos pela
perspectiva dos despojos que poderiam advir dessa campanha militar no Norte de
África. Contudo, cumpre relativizar o impacto militar imediato deste recrutamento de
proletarii, dado que se revelou pontual e dizia respeito apenas a um conjunto de tropas
de efectivos limitados.
Imaginando que nessa altura Mário tenha arrolado um número de homens superior
ao que decretado pelo Senado, tal supplementum não terá ultrapassado os 5 000, isto é,
uma só legião. Foi necessário esperar mais algum tempo para se verem novamente
proletarii recrutados. Pondo de parte Mário, os magistrados e os promagistrados terão
decerto hesitado em tomar tal medida, desaprovada pelo Senado, e à qual os tribunos
da plebe podiam opor o seu direito de veto, caso recrutas mais reticentes a eles
apelassem. Até no ponto mais forte da ameaça dos Cimbros e Teutões, entre 105 e 101
a. C., as fontes não mencionam o recurso aos proletarii. É certo que esta guerra
386
Os veteranos de Mário, tanto na Guerra Númida (107-105 a. C.), como no conflito contra os Germanos (105-101 a. C.),
receberam lotes de terreno, a maior parte destes no Norte de África e na Itália Setentrional. Então, pode-se afirmar que,
de 107 antes da nossa era em diante, os indivíduos que se alistavam no exército alimentavam a forte expectativa de que
os seus generais lhes oferecessem recompensas financeiras no fim de cada campanha. Para além dos despojos que as
tropas podiam ganhar numa guerra, a antecipação de benefícios tangíveis no momento da desmobilização passou a
tornar-se na principal motivação para ingressar nas fileiras, o que transformou o soldado romano basicamente num
mercenário. Dentro em breve, surgiria outra consequência lógica: os legionários compreenderam que o seu futuro
dependia dos seus comandantes, os únicos capazes de prover à subsistência dos seus homens, facto que se encontra na
raiz dos exércitos profissionais e privados. Cf. Rosenstein, Rome at War, pp. 167-169.
147
defensiva oferecia menos possibilidades para a obtenção de despojos, suscitando uma
nítida diminuição dos alistamentos voluntários.
A Guerra Social387(91-89 a. C.) significou uma ruptura muito mais determinante para
a organização militar romana do que a admissão pontual de proletarii por Mário no
supplementum que partiu para África em 107 a. C. As duas facções afrontadas
mobilizaram efectivos que excederam provavelmente os que foram reunidos durante a
Segunda Guerra Púnica: terão servido nas fileiras 300 000 italianos. Roma arrolou os
libertos, adstritos à defesa das costas itálicas e, talvez, também os proletarii. Este
aumento acentuado dos efectivos conduziu, então, ao que se julga, ao abandono dos
procedimentos tradicionais inerentes ao dilectus.
Numa primeira fase, a principal modificação foi a de não ter mais em conta a
qualificação censitária dos recrutas. É certo que na falta de informes de recenseamento
no período entre 86-85 e 70-69 a. C., devido às guerras civis entre os partidários de
Mário e os de Sula, não foi possível encontrar qualquer tabula iuniorum que fornecesse
dados fiáveis ao longo de uma quinzena de anos. Os velites, recrutados entre os mais
jovens e mais pobres adsidui/assidui, não aparecem mais atestados após o fim do
século II a. C388. A guerra civil entre Júlio César e Pompeio e, depois, os conflitos do
período triunviral provocaram mais interrupções nos recenseamentos e conduziram a
recrutamentos maciços incluindo também proletarii, desta vez mesmo não voluntários.
Ora, no final da Guerra Social, no seguimento da concessão da cidadania romana a
todos os italianos livres que residissem a sul do Pó, os efectivos cívicos subiram de 395
000, em 115-114 a. C., para 463 000, em 86-85 a. C. Nesta data, os novos cidadãos não
puderam ser recenseados em Roma, pelo que tiveram de aguardar pelo recenseamento
de 70-69, altura em que eles afluíram de toda a Itália para a Urbs, enumerando os
censores 910 000 cidadãos.
387
Para esta matéria: C. Nicolet, Roma y la conquista del mundo mediterráneo 264-27 a. de J. C., pp. 188-216
388
De facto, os velites surgem mencionados pela última vez em fontes literárias durante a campanha de Metelo, em 109
a. C.; a cavalaria, composta por cidadãos romanos, desapareceu aproximadamente na mesma altura. Mas julgamos
precipitado pressupor, como o fez A. Goldsworthy, que doravante as legiões deixariam de ter infantaria ligeira e
cavalaria; este autor sustenta ainda que «Todos os legionários passaram a ser efectivos de infantaria pesada, equipados
uniformemente com capacete, cota de malha ou loriga de placas, scutum, espada e pilum»: Generais romanos, p. 154.
Parece-nos uma generalização excessiva e artificial, até porque o equipamento dos soldados romanos foi bastante mais
heterogéneo do que geralmente se pensa.
148
Perante o aumento do corpo cívico, foi necessário descentralizar as operações de
recenseamento e recrutamento389. Prova-o a Tábua de Heracleia (CIL XII 593), que
precisa as excepções às cláusulas sobre a idade mínima de acesso às magistraturas (30
anos) - favorecendo os candidatos que tivessem servido, pelo menos, seis anos na
infantaria legionária, ou três na cavalaria legionária – bem como nos elucida sobre as
novas medidas para recensear os cidadãos deste município lucaniano, provavelmente
no tempo de Júlio César.
Nos sessenta dias após o anúncio do início do census em Roma, o principal
magistrado de cada município e de cada colónia teria de proceder, no local, ao
recenseamento dos cidadãos romanos segundo as normas fixadas na Urbs. Os dados
deste censo foram, portanto, conservados nos registos locais. Mas uma cópia devia ser
entregue em Roma, no prazo de sessenta dias, antes do fim das operações do censo, a
fim de que na mesma fossem transcritos e arquivados todos os elementos informativos
dos recenseamentos locais. Em muitos casos, a inovação traduziu-se no facto de as
cidades romanas normalizarem, decalcando o modelo de Roma, os procedimentos que
teriam de aplicar para estabelecer a sua formula togatorum. Doravante, os Italianos,
que outrora haviam servido como aliados, passaram a ser admitidos nas legiões.
No recrutamento, a descentralização ganhou mais visibilidade com a aparição de
verdadeiros «sargentos-recrutadores», os conquisitores390, enviados para diversos
sectores de Itália, onde mobilizariam os mancebos. Cabe então presumir que, desde
este momento histórico, existiria uma divisão do território itálico em circunscrições de
arrolamento. A criação de tais estruturas administrativas tornava inútil a deslocação
dos italianos mobilizáveis até Roma, porque a partir de então podiam ser recrutados
nas suas cidades de origem.
O recrutamento adquiriu uma dimensão mais rural, o que não causa estranheza, já
que os camponeses eram considerados mais disciplinados e robustos do que os
citadinos, bem como um âmbito mais local, na medida em que se efectuavam as levas
numa ou em várias regiões concretas. Assim, Pompeio mobilizou homens no Picenum,
onde o seu pai estabelecera sólidos laços clientelares, enquanto Júlio César obteve a
maioria dos legionários na sua província da Gália Cisalpina, e Crasso, por seu lado,
recrutou os homens para a sua campanha pártica entre os Lucanianos (Plínio-o-Antigo,
Nat. Hist. 2.147). O exército imperial herdou estas inovações tardo-republicanas.
A descentralização do dilectus estendeu-se mesmo a certas províncias, nestas se
arrolando os supplementa e até legiões inteiras ao longo do derradeiro século da
República. Diversos académicos interrogaram-se sobre a natureza da legião dita
389
E. Lo Cascio, «Recruitment and the size of the Roman population from the third to the first century BCE», in W.
Scheidel (ed.), Debating Roman Demography, Leiden, 2001, pp. 111-138.
390
C. Wolff, «À propos des conquisitores», Latomus 68 (2009), pp. 1050-1052.
149
Vernacula, que se atesta na Hispânia Ulterior, entre 49 e 45 a. C. (César, Bell. Civ.
2.20.4; Bell. Alex. 53.4-5, e 57; Bell. Hisp. 12.1, e 10.2.4-5). As interpretações mais
recentes privilegiam a hipótese de se tratar, pela primeira vez, de uma legião formada
apenas pelos cidadãos romanos que se encontravam estabelecidos na Península Ibérica.
Eles já haviam contribuído, aliás, para os supplementa: a inovação radicou no
recrutamento in loco de todos os efectivos da sétima legião de Pompeio presentes na
Hispânia. As necessidades bélicas, nomeadamente da guerra civil, implicaram até o
recrutamento de peregrini nas legiões.
Tal foi o caso da célebre legião Alaudae, formação atípica criada e equipada na Gália a
expensas de Júlio César, durante o Inverno de 52-51 a. C. (Suetónio, Júlio César, 24).
Os «Pompeianos», entre 49 e 45 a. C., os «Cesaricidas» em 43-42 e, depois ainda, os
«Antonianos», terão recorrido a idênticos procedimentos quando se acharam privados
de recrutarem tropas em Itália. Certos Orientais ou Africanos, indivíduos livres ou
libertos, receberam, ademais, a cidadania romana ao mesmo tempo em que foram
arrolados (César, Bell. Civ. 3.102-103; Bell. Afr. 36.1).
Qual terá sido o impacto da abertura das legiões aos proletarii e aos Italianos na
composição ideológica do exército romano? Afirmou-se frequentemente que estes
soldados, recrutados entre as camadas populacionais mais pobres, se mostraram mais
ávidos pela obtenção de despojos, tendo combatido menos para defender as suas
próprias terras do que para as ganhar. Na medida em que muitos legionários eram, sem
dúvida, já no fim do século II a. C., camponeses indigentes que haviam conservado o
estatuto de adsiduus, cabe relativizar a hipótese de uma mudança radical de atitude por
parte dos soldados a partir do século I a. C.
Por outro lado, as fontes aparentam testemunhar um comportamento mais violento
dos militares desde meados do século II antes da nossa era, em Cartago, Corinto ou,
ainda, na Península Ibérica. No entanto, urge tomar em consideração que os autores
antigos, muitas vezes, pertencentes a famílias senatoriais e equestres, manifestavam
geralmente um certo desprezo pelos simples soldados de extracção social mais humilde,
tendendo a atribuir-lhes os piores excessos.
Foi neste período que o termo veteranus apareceu na literatura latina (e.g., Salústio,
Catilina, 59; Júlio César, B.Gall. I.24). Ele designava então um soldado experiente, que
serviu nas armas durante uma série de anos consecutivos e que almejava usufruir de
150
uma recompensa por todo esse esforço. Por seu turno, nesta altura, começou-se a medir
o tempo de serviço das tropas mais pelo número de anos do que pelo número de
campanhas. Assim, estes soldados que se mantiveram nas fileiras podiam já ser
considerados como profissionais. A sua desmobilização exigia, portanto, medidas que
facilitassem a reinserção dos veterani na sociedade civil.
Para os legionários, a distribuição de terras cedo foi a solução mais apropriada. O
primeiro caso conhecido atesta-se em 201 a. C., a favor de veteranos das legiões que
guerrearam na Hispânia e em Africa (Lívio, Ab Urb. cond. 31.4.1-3). Estas distribuições
de lotes fundiários confirmavam, aliás, uma tendência espontânea dos veteranos
licenciados em estabelecer-se nos sítios onde haviam servido: foi desta maneira que se
fundou a colónia de Italica na Hispânia Ulterior, em proveito dos soldados feridos de
Cipião-o-Africano em 206 a. C.
Os estudos de J. C. Mann391, L. Keppie392 e C. Moatti393 deram a conhecer as etapas da
repartição de terras pelos veteranos: desde logo, uma lei agrária votada pelos comitia
estipulava as terras em questão, as modalidades da distribuição, o número e os poderes
dos comissários (curatores) e dos técnicos responsáveis pela sua aplicação e pela
delimitação dos lotes. Estas operações tanto podiam assumir a forma de concessões
viritanas, quando beneficiavam cidadãos a título individual, como de deduções
coloniais quando se destinassem à fundação de cidades. Foi sobretudo desde o século I
a.C. que a distribuição de terras acompanhou sistematicamente as desmobilizações.
Veleio Patérculo (História romana, 1.15.5) salienta que as únicas colónias criadas neste
período se destinaram aos veteranos. Os de Mário, que haviam combatido Jugurta,
puderam assim instalar-se em África; os de Sula, ascendendo a 120 000 homens,
receberam terras em Itália depois das proscrições; quanto aos de Pompeio, totalizando
50 000 homens em 59 a. C., viram-se estabelecidos à volta do Mediterrâneo: Península
Ibérica, Ásia Menor, Creta e Macedónia.
A eclosão do conflito contra Pompeio, a seguir à Guerra das Gálias, fez com que o caso
dos veteranos de Júlio César diferisse, em certa medida, os quais não terão
ultrapassado 25 000-30 000. Alguns fixaram-se no Latium, na Campânia, no Picenum
e na Etrúria, enquanto outros ficaram na Gália Transalpina (Arelate/Arles, Béziers,
Narbo/Narbonne) e até em Cartago, que foi novamente fundada por César. Mas o
processo ainda estava inacabado por altura do assassinato do dictator, como salienta
Apiano de Alexandria (Guerras Civis, 2.17.120), que evoca os numerosos veterani à
espera de terras que estiveram reunidos em Roma nos Idos de Março de 44 a. C.
391
Legionary Recruitment and Veteran Settlement during the Principate, Londres, 1983.
392
Colonization and Veteran Settlement in Italy, 47-14 BC, Papers of the British School at Rome, 51, Londres,
1983;IDEM, Legions and Veterans. Roman Army Papers 1971-2000, Mavors Roman Army Researches, 12, Estugarda,
2000.
393
Archives et partage de la terre dans le monde romain (IIe siècle avant- Ier siècle après J. C.), Roma, 1993.
151
Após a batalha de Filipos (Philippi), devia haver uns 50 000 veteranos à espera de
receberem o seu quinhão. Para satisfazerem as suas exigências, os triúnviros
efectuaram expropriações nas 18 cidades mais prósperas de Itália. O descontentamento
ocasionado por tais confiscações provocou conflitos por toda a península, conhecidos
como a Guerra de Perúsia, em 41-40 a. C. Com efeito, registaram-se as mais
significativas transferências de propriedades que a antiga Itália alguma vez conheceu.
Nas províncias, todavia, a fixação dos legionários veteranos contribuiu para a difusão
da civilização romana, sobretudo quando se fundavam novas cidades, que se pretendia
constituírem verdadeiras amostras da romanidade.
Mas o exército romano contava igualmente - e cada vez mais – com auxiliares não
cidadãos. Estes eram recrutados entre os peregrini nas províncias, mesmo fora da área
de influência directa de Roma, depois de os aliados itálicos passarem a ser admitidos
nas legiões. De facto, ao longo da Guerra das Gálias, Júlio César não hesitou em arrolar
auxiliares gauleses e germanos, comandados pelos seus respectivos chefes ou por
prefeitos romanos da ordem equestre. Ora a Guerra Social fez com que os Romanos
tivessem consciência da necessidade de recompensar o apoio militar prestado pelos
auxiliares através de privilégios jurídicos, a fim de evitarem a eclosão de manifestações
violentas de desagrado dos últimos.
Data precisamente da Guerra Social o primeiro documento preservado que concede
colectivamente a cidadania romana a auxiliares não romanos: o «Bronze/Aes de
Asculum» (ILS 8888), relativo a trinta cavaleiros auxiliares da Hispânia que serviram
sob as ordens de Cneu Pompeio Estrabão. No texto da inscrição, a concessão da
cidadania romana precede a menção às demais recompensas militares, uma das quais
consistindo numa dupla ração de trigo. Havia ainda outras vantagens que se ajuntavam
ao direito de cidade: foi assim que o navarca Seleucos de Rhosos (na fronteira entre a
Síria e a Cilícia) recebeu de Octávio, além da cidadania romana, uma imunidade fiscal,
isenção de liturgia e de serviço militar na sua cidade-natal, bem como a escolha da sua
jurisdição em caso de processo, benefícios que se estendiam também para os seus
descendentes, em virtude da coragem que Seleucos evidenciara na refrega de Filipos ou
na de Nauloco (IGLS III, 1, 1950, 718).
Afora a cidadania romana, alguns auxiliares de Roma receberam o título de «amigo
do povo romano», como sucedeu a Asklepiades de Klazomenes, em 78 a. C. (AE 1948,
64). Tal epíteto, que recompensava a participação dos auxiliares em acções navais,
durante a Guerra Social ou aquando da marcha de Sula sobre Roma, garantia-lhes um
direito de embaixada diante do Senado romano, podendo também fazerem anular
eventuais medidas tomadas a seu desfavor nas suas cidades de origem (quando destas
152
se encontrassem ausentes ao serviço de Roma) e uma imunidade fiscal retroactiva para
eles e os seus descendentes.
Na origem da concessão da civitas Romana e de outros privilégios jurídicos, estava
geralmente uma lei autorizando um magistrado ou um promagistrado a recompensar
os auxiliares sob o seu comando. No tempo do Triunvirato, os privilégios outorgados
aos veteranos tinham por base uma lei Munatia Aemilia, votada em 42 a. C. Foi ao ter
em conta a última que Octávio promulgou, entre 40 e 37 a. C., um édito conferindo
numerosas vantagens a determinados veteranos e às suas famílias, do qual temos
conhecimento graças ao teor de um papiro latino (ChLA X, 416).
A guerra travada na Numídia, tal como a relatou Salústio, oferece uma imagem
curiosa sobre o período de transição durante o qual o exército romano ainda estava
muitas vezes organizado numa formação manipular. Porém, Metelo e, após 107 a. C.,
Gaio Mário, fizeram uso ocasional de coortes de tropas étnicas aliadas (Lígures:
Salústio, B.Iug.77.4, 88.6, 93.2, 100.2; Pelignianos – Salústio, Bell. Iug.105.2), bem
como de coortes legionárias (ibidem, 51.3 [Metelo], 56.3-4, 94.3, 99.1 e 100.4 [Mário]).
Além disso, é no conflito contra Jugurta que encontramos a última referência aos
velites, que desapareceram com a adopção definitiva do sistema coortal (Salústio,
B.Iug. 46.7). Também vale a pena notar que foi durante a batalha de Muthul que se
observa a derradeira menção à formação manipular (Salústio, B.Iug.. 49.6, com
Metelo).
Na realidade, as coortes, enquanto formações de combate, permaneceram, em certa
medida, uma excepção ao longo de quase todo o século II a. C., afirmando-se o sistema
manipular a regra. E, no entanto, os Romanos defrontaram mais inimigos praticando a
«guerrilha» (como os Scordisci e os Lígures) ou, então, maciços assaltos frontais,
designadamente dos Gauleses e dos Germanos, para os quais as coortes estariam, na
realidade, mais adequadas. Por fim, ao fazer face aos Cimbri e aos Teutones, Mário
optou por organizar as suas legiões de acordo com o modelo coortal e, juntamente com
outras reformas que introduziu, ele tornou o sistema das coortes na nova formação-
padrão das forças militares romanas, generalizando a utilização de uma formação mais
fechada394. Depois de Mário, todas as legiões passaram a ser compostas por coortes.
394
Sobre as reformas militares de Gaio Mário e a função política do exército: H. Aigner, «Gedanken zu sogennanten
Heersreform des Marius», in Kritisch und vergleishende Studien zur Alten Geschichte, Innsbruck, 1974; idem, Die
Soldaten als Machtfaktor in der ausgehenden römischen Republik, Innsbruck, 1974; Michael C. Gambino, The Military
Reforms of Gaius Marius in their Social, Economic, and Political Context, tese para a obtenção do grau académico de
MA, East Carolina University, August, 2015, pp. 101-123 («Chapter VI: Marian Military Reforms»).
153
Assim, nos últimos dez anos do século II a. C., a legião de 30 manípulos foi substituída
pela legião de 10 coortes: cada uma destas compreendia 3 manípulos, cada qual, por
sua vez, com 2 centúrias; uma centúria, por seu turno, compunha-se de 80 homens, e
estava sob o comando de um centurião. Embora as fontes antigas não especifiquem a
questão, uma coorte certamente tinha um comandante, pois que de outra forma, ela
facilmente se limitaria a uma massa de soldados desorganizados. É muito provável que
o centurião «sénior» (pilus prior) assumisse tal mando, exercendo a sua autoridade
sobre os restantes cinco centuriões. Uma coorte ascendia a um efectivo oscilando entre
os 480 e os 600 homens.
No campo de batalha, as coortes, consoante a topografia do local ou o tamanho e a
formação de combate do inimigo, podiam ser distribuídas numa só linha (disposição
adoptada por César em África, B. Afr. 13.2), em duas (como Crasso na Aquitânia, César,
B.Gall. 3.24.1) ou em quatro (quadruplex acies), mas a formação em três linhas (triplex
acies) era a mais comum (um sistema 4-3-3).
Nas coortes, cessou de existir distinção entre idade, riqueza e equipamento militar.
Esta nova ordem não incluía unidades de infantaria ligeira. A coesão e a uniformidade
significaram os marcos definidores do sistema coortal. Afora fazer parte de uma legião,
de uma coorte e de uma centúria, um legionário era membro de um grupo de oito
soldados, que tomavam as suas refeições em conjunto e dormiam na mesma tenda
(contubernium). Ao viverem juntos, partilhando as adversidades, as expectativas e os
momentos mais exaltantes durante as campanhas, estes indivíduos desenvolviam entre
si fortes laços de amizade e de solidariedade. Ao lutarem, eles mostrar-se-iam desejosos
de não desapontar os seus camaradas, procurando, acima de tudo, apoiá-los e protegê-
los.
Se bem que não possamos atribuir a Mário a criação da coorte, o certo é que a
organização que ele estabeleceu no exército nos anos 104-103 a. C., enquanto esteve à
espera das tribos germânicas, numa zona situada no actual Sul de França, contribuiu
sobremaneira para aperfeiçoar o sistema. Mário melhorou a mobilidade e a
independência de movimentos da legião, ao livrar-se das catervas de civis que
tradicionalmente acompanhavam os exércitos romanos: escravos que transportavam os
equipamentos dos soldados, mercadores de escravos e outros comerciantes (lixae) em
busca de lucro e prostitutas.
Mário, que desprezava estes enxames de gente não combatente, ainda que não tenha
logrado desembaraçar-se de todos estes «parasitas», retirou do exército aqueles que
carregavam o equipamento militar, incumbindo os legionários de cuidarem das suas
próprias armas e de tudo aquilo que era preciso para as campanhas; ademais, Mário
reorganizou o trem das bagagens (com animais de carga ou carroças se o terreno das
154
operações o permitisse), que passou a pertencer às legiões e a encontrar-se sob a
supervisão de escravos denominados calones. Se não houvesse a possibilidade de
utilizar o trem de bagagens, então cada soldado teria de transportar às costas as suas
armas, as rações de comida, utensílios de cozinha e apetrechos necessários para montar
acampamentos. As tropas assemelhavam-se a bestas de tiro, pelo que depressa
ganharam o epíteto popular de «mulas de Mário» 395. Posto isto, com Mário, a legião
adquiriu uma mobilidade, uma autonomia e uma capacidade de prontidão operacional
que antes jamais possuíra (Frontino, Strat. 4.1.7).
Acresce que este general teve o cuidado de supervisionar estreitamente todas as
actividades militares em campanha, chegando a comer a mesma ração dos simples
soldados e vivendo em condições quase iguais. Era seu costume inspeccionar
pessoalmente as sentinelas de guarda aos acampamentos, não por considerar que os
seus oficiais fossem incapazes de o fazer de modo adequado, mas para que as suas
tropas reparassem que Mário não estava a repousar enquanto elas se encontravam em
serviço. Também interpelava directamente os seus homens, independentemente do seu
grau hierárquico, fosse para criticar e punir, fosse para elogiar ou conceder
recompensas. Assim, ganhou o respeito das tropas, mostrando-se um comandante
simultaneamente duro e justo (Salústio, B. Iug. 87-88. 100).
Mário também se preocupou com o nível da instrução militar ministrada aos seus
soldados. Às marchas diárias com equipamento completo e à construção (e posterior
desmantelamento) dos acampamentos, Mário acrescentou exercícios e combates
simulados com armas, com base no modelo adoptado nas escolas gladiatórias, método
de treino implementado no exército por P. Rutílio Rufo, cônsul em 105 a. C. (Valério
Máximo, 2.3.2), a fim de melhorar as possibilidades de sobrevivência individuais 396.
Por último, ao fazer da águia (aquila) o estandarte para todas as legiões, Mário
aumentou a coesão dos exércitos e forneceu aos soldados um símbolo que expressava o
vínculo dos mesmos a um corpo que tudo abrangia, uma instituição para a qual a
lealdade dos militares se devia direcionar. As reformas instauradas por Mário
melhoraram, portanto, a capacidade de combate dos legionários romanos. A derrota
esmagadora infligida aos Ambrones e aos Teutões, em Aquae Sextiae (102 a. C.) e a
vitória sobre os Cimbros em Vercellae (101 a. C.) puseram bem à prova o exército
mariano. Ulteriormente, no século I antes da nossa era, generais como Sila, Lúculo,
Pompeio e César viriam a confirmar a excelência da metodologia de combate e a
395
M. C. Gambino, The Military Reforms of Gaius Marius…, pp. 121-123. No entanto, subsistem dúvidas se Mário
introduziu realmente a prática de cada soldado transportar o seu equipamento e pertences, ou se apenas generalizou a
mesma.
396
G. Brizzi, Il Guerriero, l’oplita, il legionario – Gli eserciti nel mondo antico, p. 91.
155
superioridade do sistema coortal, a formação que se manteria ao longo de toda a época
imperial397.
156
qualidade, por excelência, dos optimates, que só reconheciam os senadores como
interlocutores privilegiados.
No decurso de uma campanha, a levitas ia para além das palavras: ao participar tanto
no treino como na porfia, por vezes mesmo na primeira linha, César podia exigir muito
das suas tropas.Não resta a menor dúvida que esta atitude lhe valeu a simpatia da plebe
urbana, que também ganhou a sua confiança. Yann Le Bohec, na sua obra dedicada
Cèsar chef de guerre: Cèsar stratège et tacticien (Lanrai, 2001), sugeriu, que o
relacionamento entre o general e os soldados no exército de César teria sido mais
próximo dos que actualmente existem no seio do Tsahal, em Israel, ou do que
aconteceu, por exemplo, nos exércitos britânico e francês do século XX. De facto, é
verdade que a evolução do recrutamento desenvolveu um sentimento crescente de
pertença e de solidariedade no seio das legiões, o que César encorajou na Gália e de que
se aproveitou ao enfrentar os Pompeienses.
Mas nem todos os imperatores do último século da República revelaram a mesma
levitas. A este respeito, Lúcio Licínio Lúculo representa um «contra-modelo», ao
manifestar o mesmo tipo de gravitas em todas as circunstâncias: com base em Plutarco
(Vida de Lúculo, 36.16-17), ele terá até suscitado a hostilidade das suas tropas, devido
ao distanciamento que revelou para com elas durante as suas campanhas contra
Mitridates VI Eupator no Oriente, entre 74 e 68 a. C. No entanto, Lúculo comandava 5
legiões e cerca de 2 000 cavaleiros num teatro de operações muito longe de Itália, e que
se estendia ao longo de 1 200 km de leste para oeste. Pelo contrário, na Gália Júlio
César nunca se afastou mais de 800 km da província da Transalpina e chefiou as suas
legiões, em número de 4 a 12. Além disso, estas viram-se acompanhadas por
contingentes de cavalaria duas vezes maiores do que os de Lúculo, aos quais cabe
adicionar os auxiliares germanos e gauleses. Consequentemente, os soldados de Lúculo
estavam sujeitos a uma prova bem mais dura que os de César.
157
César, pelo contrário, preocupou-se muito com a recolha de informações sobre as
regiões gaulesas que teve de percorrer, solicitando ajuda aos povos aliados ou
interrogando prisioneiros. Ele evidenciou as suas qualidades mavórticas na sua obra
Commentarii de Bello Gallico, que contém muitos dados de grande utilidade para os
historiadores, mas é, acima de tudo, um texto propagandístico de glorificação pessoal.
Por outro lado, Pompeio gozava também de elevada reputação enquanto organizador e
administrador, o que demonstrou cabalmente no Oriente. Mas, como sublinhou C.
Meier, César conseguiu vencer adversários mais difíceis de subjugar do que os
anteriormente defrontados por Pompeio e, até, por Alexandre-o-Grande.
Efectivamente, a Guerra das Gálias não envolveu apenas um soberano inimigo que
bastasse derrotar para depois se conquistar e ocupar o seu reino: o exército romano
teve que fazer face a múltiplos poderes locais ao sabor de coligações militares
flutuantes. Certamente que se poderia objectar tais argumentos, ao afirmar que
Alexandre-o-Grande lutou igualmente contra inimigos comparáveis nas satrapias do
Império Aqueménida, e que as cisões entre os seus antagonistas ajudaram César nos
seus propósitos. Os detentores do imperium podiam, assim, destacar-se por uma maior
ou menor mestria da estratégia e das tácticas, se entendermos a primeira como a arte
de ganhar as guerras e a segundas como a arte de ganhar batalhas.
158
duração, as províncias da Ásia-Cilícia e da Bitínia-Ponto aos territórios sobre os quais
já se exercia o imperium de Pompeio, para que este pudesse enfrentar Mitridates IV,
substituindo assim Lúculo.
Pela primeira vez que se saiba, os legados de um imperator - cujo número chegou por
fim a 23 – foram designados por ele e não pelo Senado. Cada um dos legados via-se
adstrito a um sector geográfico concreto em missão de vigilância, enquanto Pompeio
marchou rumo aos principais teatros de operações. É curioso verificar que alguns
legados não aceitaram de bom grado ficarem subordinados a Pompeio: veja-se, por
exemplo, o caso de Quinto Cecílio Metelo Crético (Quintus Caecilius Metellus Creticus),
que se recusou a obedecer à ordem de se levantar o cerco a Hierapitna, em Creta
(Plutarco, Vida de Pompeio, 29). Uma tal concentração de poderes de comando nas
mãos de um só homem ainda não se tornara corrente nos hábitos políticos de então.
Em 59 a. C., a lex Vatinia atribuiu a Júlio César o direito de nomear os legados, com
vista às acções bélicas que ele iria conduzir na sua província.
Em virtude dos acordos celebrados em Luca com César e Crasso em 56 a. C., Pompeio
obteve a governação das províncias de Hispânia. No entanto, o último permaneceu na
Urbs, fora do pomerium, para conservar o seu imperium, e exerceu o comando sobre as
guarnições ibéricas por meio de legados, mesmo quando se tornou cônsul único em 52
a. C. Em certa medida, este modus operandi prefigurava o comando por Augusto das
tropas das suas províncias através de legados (Plutarco, Vida de Pompeio, 52-54).
Os legados também participavam nas decisões junto do comandante-chefe: tinham
lugar nos conselhos de guerra (consilia) convocados pelo último. Mas não eram os
únicos. Com efeito, muito se discutiu sobre a eventual admissão dos centuriões nestes
casos. Estariam eles presentes? Aparentemente, nos três derradeiros séculos da
República, atesta-se a presença de centuriões, ainda que apenas captemos os exemplos
cesarianos. Apesar de tudo, uma coisa se afigura garantida: no último século antes da
nossa era, definiram-se as etapas da carreira de centurião numa série de graus
hierarquizados. De facto, até ao século II a. C., de um ano para outro, os centuriões
reconvocados não eram reintegrados no último posto (ordo) que haviam ocupado antes
da sua desmobilização, mas no grau mais baixo da hierarquia. Os protestos de antigos
primipilos chamados novamente às fileiras por ficarem num posto inferior, aquando do
desencadear da guerra contra Perseu da Macedónia em 171 a. C. (episódio conhecido
através do referido discurso de Espúrio Ligustino) revelam que tal prática era cada vez
mais mal aceite neste momento histórico. A partir do século I antes da nossa era, como
dissemos, estabeleceu-se uma verdadeira carreira contínua para os centuriões, que iam
progredindo, transitando de uma coorte para outra, até atingirem o primipilato 402.
402
J. Harmand, L’armée et le soldat à Rome de 107 a 50 avant nôtre ère, p.332; C. Nicolet, Les structures de l’Italie
romaine, Paris, 1991, p. 318.
159
Todos os centuriões se distinguiam visualmente dos soldados ao cingir um elmo cujo
penacho, a crista transversa, ia de uma orelha à outra, e estarem providos de um cepo
de vinha, a vitis, símbolo da sua autoridade e dos seus poderes disciplinares 403. Na sua
maioria, consistiam em soldados saídos directamente das fileiras, provenientes do
campesinato italiano. Alguns, todavia, pertenciam a famílias de notáveis das cidades da
península; mas os casos de centuriões de ordem equestre, como Públio Valério Flaco
(Publius Valerius Flaccus), citado por César (B. Civ. 3.53.1) parecem ter representado
uma excepção durante os últimos cem anos da República.
Numeradas de uma a dez, obedecendo a uma ordem hierárquica decrescente, as 10
coortes de uma legião comportavam, cada uma, três manípulos chamados hastati,
principes e pilani (o mesmo que triarii), que obedeciam igualmente a uma ordem
crescente de dignidade. Um manípulo tinha duas centúrias, que se diferenciavam
hierarquicamente sob as denominações de ordo posterior e ordo prior. Quanto aos seis
centuriões de uma coorte404, eram sempre designados de acordo com uma ordem
hierárquica ascendente, da seguinte maneira: hastatus posterior, hastatus prior,
princeps posterior, princeps prior, pilus posterior, pilus prior. Numa legião, o pilus
prior da primeira coorte, também chamado primus pilus, representava, assim, o
primeiro centurião da unidade, e o hastatus posterior da décima o último, embora
desconheçamos em larga medida como eram as regras de promoção 405 de uma coorte
para outra.
Em contrapartida, ao acederem à primeira coorte de uma legião, os centuriões
recebiam o título de primi ordines, um soldo superior e, sem dúvida também, o direito
de participarem no consilium com os oficiais superiores. De facto, a longevidade das
suas carreiras conferia-lhes uma experiência preciosa para o alto comando, cujos
titulares, em geral, tinham passado muito menos tempo nas fileiras. Alguns desses
primi ordines foram promovidos à ordem de cavaleiros romanos. Sula e César ousaram
até fazer ingressar centuriões no Senado, mas tais promoções revelaram-se raras e
pontuais
160
primeiro terão ficado particularmente exasperados ao verem as caravanas de camelos
transportarem as riquezas do Oriente rumo aos portos do Mediterrâneo, enquanto eles
próprios duvidavam de algum dia virem a lucrar com um magro quinhão que o
procônsul lhes deixasse (Plutarco, Vida de Lúculo, 34). Na altura em que rendeu
Lúculo, em 66 a. C., Pompeio admoestou-o pela sua avidez (Veleio Patérculo, História
romana, II, 32; Plutarco, Vida de Pompeio, 31). Contudo, a soma entregue por Lúculo a
cada um dos seus legionários no término das suas campanhas ascendeu a 950 denários.
Os despojos das guerras do século I a. C. atingiram proporções bem consideráveis:
Tigranes pagou 36 milhões de denários a Pompeio e 6000 aos seus oficiais, ao passo
que a pilhagem da Gália resultou em dezenas de milhão de denários para César.
Pompeio, distribuiu 1500 denários a cada um dos seus legionários, depois da sua
vitória sobre Mitridates, e César entre 5 000 e 6 000, por ocasião do seu triunfo.
Compreende-se, portanto, que o último tenha conseguido proceder a um aumento do
soldo dos legionários, como nos conta Suetónio (César, 26.3):
«No que respeita às legiões, ele duplicou os seus soldos para todo o sempre/legionibus stipendium in
perpetuum duplicavit».
A subida remuneratória406 teve lugar provavelmente no fim da Guerra das Gálias.
Com efeito, se bem que a composição das biografias de Suetónio não obedeça a uma
lógica cronológica, o conjunto dos capítulos 26 e 28 da vida de Caesar é concernente às
suas actividades na Gália, já terminada a conquista. Porém, devemos relativizar tal
aumento, já que terá sido aplicado possivelmente com base no denário reajustado em
16 asses. Na realidade, não assinalamos qualquer outra subida do montante do soldo
antes do reinado de Domiciano, por volta do ano 83 d. C. (Suetónio, Domiciano, 7):
«Ele acrescentou igualmente ao soldo das tropas um quarto pagamento de três moedas de ouro por
soldado»
Estas moedas de ouro - os aurei - valiam, cada uma, 25 denários desde o reinado de
Nero (57-68 d. C.). Sob a égide de Domiciano, ¼ do soldo anual ascendia a 75 denários,
isto é, um montante total de 300 denários por ano. Consequentemente, antes deste
aumento de 25%, um legionário romano recebia 225 denários por ano. Ora
anteriormente, em 14 d. C., os motins que deflagraram na Panónia foram descritos
assim por Tácito (Ann. 1.17.4):
«O serviço em si mesmo era penoso, sem proveito: 10 asses por dia, eis o preço em que se estimava uma
alma e um corpo […]».
Nessa ocasião, os soldados avançaram com reivindicações incluindo cifras (Tácito,
Ann. 1.17.5):
«[…] o único remédio era entrar em serviço apenas em condições fixas: um denário por dia como soldo».
Estas duas passagens dos Anais de Tácito demonstram que, por essa altura, o soldo
não era mais pago com base num denário de 10 asses, já que 10 asses por dia
406
M. P. Speidel, «Roman Army Pay Scales», JRS 82 (1992), p. 88, «Table I».
161
correspondiam a 3 600 asses por ano valendo, então, 225 denários 407, isto é, 16 asses
por um denário. De outra maneira a reivindicação de 1 denário por dia não faria
qualquer sentido. Ao aumentar o soldo dos legionários 408, Júlio César fez com que eles
certamente lucrassem com os ganhos derivados da conquista das Gálias e teve em conta
a evolução do recrutamento. Mas César procurava também que os soldados aceitassem
uma mudança de padrão monetário, o que amputava 20% dos rendimentos dos
mesmos.
Ao interpretarmos as cifras de Políbio, e tomando em consideração esta alteração do
padrão, constatamos que a subida do montante decidida por César não representaria
forçosamente o dobro do anteriormente existente. O próprio verbo duplicare pode ter o
sentido de aumentar muito, sem contudo significar «duplicar» 409. Se cotejarmos este
soldo do legionário reavaliado por César com o valor de alguns salários coetâneos que
se conhecem, mencionados por Cícero, verificamos que um um trabalhador manual
civil recebia 12 asses por dia, ou seja, mais do que um soldado.
De facto, é difícil falar numa autêntica duplicação do montante do soldo, na medida
em que certas mudanças introduzidas nas modalidades de pagamento, a partir do
tempo de Políbio, nos impedem de realizar juízos comparativos. Mário começou a
proceder a um triplo pagamento anual em vez de entregar todo o dinheiro devido aos
legionários no fim de uma campanha. A correspondência epistolar de Cícero informa-
nos, assim, que à data da sua chegada à Cilícia, em 51 antes da nossa era, as tropas que
estavam sob o seu comando já haviam recebido o montante dos seus soldos para um
período que ia até 15 de Julho do ano seguinte (Ad Atticus, 5.14.1).
Assim, o enriquecimento gerado pela crescente amplitude dos despojos permanecia
desigualmente repartido. Um tribuno militar podia receber uma parte dos despojos
cem vezes maior do que a do simples legionário. Quando findou a campanha contra os
Bituriges, em 51 a. C., Júlio César prometeu 200 sestércios a cada soldado e 1000 a
cada centurião. A concessão de poderes militares extraordinários a alguns indivíduos –
Sula, Pompeio, César e Crasso – favoreceu uma concentração muito grande dos lucros
de guerra suas mãos. Este facto possibilitava que eles também controlassem poderosas
redes clientelares (à escala de uma região italiana, de uma província ou, até, de um
reino aliado), pela sua importância em nada comparáveis às clientelas da maioria dos
outros senadores, cuja margem de manobra se encontrava cada vez mais reduzida.
Posto isto, as guerras no estrangeiro serviram para alimentar os conflitos civis
protagonizadas por estes imperatores que disputavam a conquista de um poder único.
407
D. Rathbone, «Warfare and the State», in p. Sabin, H. van Wees e M. Whitby (eds.), The Cambridge History of Greek
and Roman Warfare: Volume II, p. 159.
408
R. Alston, «Roman military pay from Caesar to Diocletian», JRS 84 (1994), pp. 113-115.
409
P. Cosme, L’armée romaine, pp. 61-62.
162
Os despojos obtidos após a batalha de Pidna permitiram suspender a percepção do
tributum em 167 a. C., os da conquista do Egipto provocaram, a partir de 29 a. C., uma
clara diminuição do valor da prata e uma forte inflação do preço da terra (Suetónio,
Augusto, 41.1; Díon Cássio, Hist. romana, 51.21, 5).
Não obstante a má reputação que os autores antigos deram aos soldados do século I
antes da nossa era, aparentemente não não foram as reivindicações dos últimos que
estiveram na origem das guerras civis, mas antes o choque das ambições dos
imperatores (que concentraram em si mesmos enormes poderes e riquezas) que
assestou o golpe de misericórdia nas instituições republicanas. Cumpre advertir
igualmente para a relativa raridade da eclosão de motins antes do fim da Segunda
Guerra Púnica. Até à morte de César, as causas dessas revoltas relacionaram-se com
razões basicamente militares, protestando os soldados contra as suas condições de
serviço, como aconteceu em Sucro, na Península Ibérica, em 206 a. C. (Lívio, Ab Urb.
cond. 28.24-29), ou na Dalmácia, em 177 a. C. (ibidem, 41.10-11).
Plutarco, nas biografias de Sula (23-25) e Lúculo (3.7 e 34-36), evocou igualmente o
caso das duas legiões recrutadas em Itália logo após a Guerra Social pelos partidários
de Mário para irem combater no Oriente Sula e Mitridates: encorajados pelo legado
Caio Flávio Fímbria (Caius Flavius Fimbria)411, os legionários (que se tornaram
conhecidos como «Fimbrianos») mataram o cônsul marianista Lúcio Valério Flaco
(Lucius Valerius Flaccus) antes de desertar e se pôr ao serviço de Sila, que os deixou
em guarnição nas cidades da Ásia, onde cometeram as piores exacções. Não tendo
Lúculo conseguido reduzi-los à obediência, Pompeio resolveu desmobilizar alguns
destes legionários, que se tornaram incontroláveis. Se bem que o caso dos
«Fimbrianos»412 não se deva utilizar para estabelecer generalizações, os autores antigos
depressa imputaram os saques e as desgraças das guerras civis à brutalidade da
soldadesca. Isto começou a manifestar-se na Urbs, a partir de 101-100 a. C., quando os
veteranos de Mário intervieram para fazer votar pela força a lei agrária Appuleia. Mas,
no imaginário colectivo, reteve-se sobretudo a data de 88 a. C., altura em que Sila
410
Sobre este tópico: W. S. Messer, «Mutiny in the Roman Army. The Republic», Classical Philology 15 (1920), pp. 158-
175; L. de Blois, «Army and society in the late Republic: Professionalism and the role of the militar middle cadre», in G.
Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft in der Römischen Kaiserzeit, Estugarda, 2000, pp. 11-
31,
411
Vertente amplamente dissecada por L. de Blois: The Roman army and politics in the first century B.C., Amesterdão,
1987; IDEM, «Army and General in the Late Roman Republic», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army,
pp. 172-173.
412
Veja-se, a este respeito, C. Wolff, «Les légions de Fimbria», Latomus 72 (2013), pp. 338-349.
163
marchou sobre Roma e franqueou o pomerium, à cabeça de seis legiões mobilizadas
contra Mitridates, das quais se pretendia retirar-lhe o comando em proveito de Mário.
Conquanto existissem laços cada vez mais fortes a unir os exércitos aos seus chefes, os
generais que tentaram apropriar-se do poder pela força tiveram sempre que se
justificar diante dos seus soldados. Em vez de corresponderem a verdadeiros exércitos
«privados», como não há muito vários estudiosos sustentaram irreflectidamente, os
legionários continuaram a ser cidadãos atentos aos argumentos defendidos pelo
magistrado ou promagistrado que eles tinham contribuído para eleger. Como
testemunhos, dispomos dos numerosos discursos que lhes foram dirigidos por Sula,
César, Octávio e Marco António, nos momentos em que cada um deles defrontou o
partido adverso. E certo que é possível rebater tal facto alegando que estes apelos ao
sentido cívico dos soldados dissimulariam motivações bem menos nobres; no entanto, é
curioso constatar que o mesmo ainda era invocado. Assim, Octávio teve o cuidado de
justificar a sua última contenda contra Marco António, ao declarar guerra (de acordo
com os ritos tradicionais) à única rainha do Egipto, Cleópatra VII, em nome da defesa
de Itália.
Porém, a partir da segunda metade do século I a. C. esboçou-se uma inflexão: com
dois anos de intervalo, Júlio César viu-se confrontado com dois graves motins: o
primeiro em Placentia (actual Piacenza), no fim de 49 a. C., antes da travessia do
Adriático, e o segundo na própria Roma, no Campo de Marte, no fim de 47 a. C. 413, na
véspera do embarque das tropas para Africa. Estas atitudes revelam as reticências do
seu exército em prosseguir com uma guerra civil extenuante, em que não se podia
ganhar quaisquer proventos, na falta de despojos.
A seguir, ao longo de todo o período triunviral, as sedições multiplicaram-se, ao ponto
de incitar, esporadicamente, o alto comando a infligir a dizimação (decimatio) entre os
soldados descontentes (Apiano, Guerras civis, 3.43). Os legionários que se insurgiram
em 47 a. C. não aceitaram ser tratados como quirites (cidadãos) pelo seu chefe,
reivindicando o título de soldados (Suetónio, Caesar, 70).
O exército converteu-se numa força política bem ciente dos seus interesses e disposta
a defendê-los contra os civis de cada facção. Em várias ocasiões depois do assassinato
de César, os seus antigos soldados e veteranos impuseram, assim, espontaneamente aos
seus herdeiros a vontade de que se reconciliassem: foi o que sucedeu no fim do assédio
de Perusia e defronte de Brindisium, em 40 a. C414. A derrota de Marco António colocou
Octávio à cabeça de umas sessenta legiões à espera de receberem terras e dinheiro.
413
S. G. Chrisanthos, «Caesar and the mutiny of 47 BC», JRS 91 (2001), pp. 63-75.
414
Para uma rigorosa análise sobre o papel político do exército no período entre a morte de César e o Segundo
Triunvirato, consulte-se H. Botermann, Die Soldaten und die römische Politik in der Zeit von Caesars Tod bis zur
Begründung der Zweiten Triumvirats, Munique, 1968.
164
Ao reportar-se ao motim no Campo de Marte, Apiano (Guerras civis, 2.13, 92-93)
escreveu que Júlio César mandou dispor «uma legião de soldados que António tinha
previsto para a guarda da Roma, à volta da sua casa e nas portas da Cidade, por temer
as pilhagens». O autor alexandrino referiu-se ainda (Guerras civis, 2.17, 118-119) ao
«exército que Lépido comandou na Urbs», na altura do assassinato de César,
precisando que se compunha por uma só legião acantonada na ilha tiberina, e que o
futuro triúnviro se apressou a transferi-lo para o Campo de Marte, «a fim de ter mais
facilmente sob controlo, para executar as ordens de António». Posto isto, Apiano sugere
que, desde meados do século I a. C., a manutenção da ordem numa cidade com a
envergadura de Roma requeria a presença de tropas. Estas vaticinavam, em certa
medida, a guarnição que Augusto iria estabelecer progressivamente na Urbs, que
desempenharia um papel político muitas vezes determinante.
415
Para reproduções fotográficas do relevo (actualmente no Louvre) e a sua descrição, vejam-se, entre outros: P.
Connolly, The Roman Army, Londres, 1975, pp. 34-35; L. Keppie, The Making of the Roman Army, p. 84, est. 3; M. C.
Bishop a J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment, p. 48, figs. 1-6; R. D’Amato e G. Sumner, Arms and Armour of
the Imperial Roman Soldier: From Marius to Commodus, Londres, 2009, fig. 14, p. 27. Nesta composição escultórica
bidimensional representou-se também um oficial – que usa uma pesada túnica por baixo de uma couraça, com dois
saiotes sobrepostos, feitos de pregas (pteryges). Possui ainda grevas e ostenta um casco do tipo etrusco-coríntio, tendo
um cinturão, preso à frente, com pontas entrelaçadas do outro lado, símbolo do seu elevado estatuto.
416
Provavelmente, esta escultura de vulto redondo retrata um aristocrata gaulês. Se nos cingirmos ao equipamento de
origem romana que exibe, é de supor que se trata de um oficial de tropas auxiliares pertencente ao exército de César: cf.
A. Tondeur e S. Lemoine, «Les auxilia gallo-romains sous le Haut-Empire», Champs de Bataille, nº 33 (avril-mai 2010),
p. 87 (fotografia).
165
actual département dos Alpes da Alta Provença), que deve remontar a finais do século I
a. C.
Importa cotejar estas representações com algumas descobertas de armas autênticas,
como o escudo de madeira (com 128 cm de comprimento por 63 de largura) achado em
Kasr el Harit, no Faium 417 (Egipto), ou as compridas espadas exumadas em Delos, no
Norte de África e no Sul de França. As armas encontradas no sítio onde outrora se
situava Alésia418 são particularmente numerosas, aproximadamente seiscentas, mas a
sua identificação levanta problemas: de facto, não é fácil distinguir neste conjunto as
armas romanas das gaulesas419. Neste ponto, ressalvemos que o armamento de uns e
outros na Guerra das Gálias parece ter-se caracterizado pela existência de semelhanças
muito mais fortes do que anteriormente se supusera420.
Desde finais do século II a. C., registou-se uma tendência para a diminuição dos
custos de produção de elmos e para a sua estandardização, cuja concepção se viu
simplificada. O tradicional modelo cónico, feito em ferro e provido de um botão no
topo, chamado «Montefortino» foi substituído por outro, de calote lisa. No último, há
dois tipos - denominados de também de acordo com os sítios em que se acharam pela
primeira vez -, o casco Mannheim, mais pesado, e o Coolus, de qualidade inferior421, de
factura medíocre: o primeiro equipou talvez os legionários, e o outro, os auxiliares. No
entanto, os anteriores elmos cónicos (com um orifício no cimo para se inserir um
penacho) continuaram a ser utilizados, provavelmente pelos oficiais.
417
M. Bishop e J. Coulston, Roman Military Equipment, pp. 58-59, fig. 28 (1 a, b, c e 2); R. d’Amato e G. Sumner, Arms
and Armour of the Imperial Roman Soldier, pp. 25-26, fig. 13.
418
A localização exacta da Alésia gaulesa fez correr rios de tinta e ainda continua, pontualmente, a suscitar discussões
entre arqueólogos e historiadores franceses. Em meados do século XIX, ficou oficialmente estabelecido que se tratava do
Mont-Auxois, junto da localidade de Alise Sainte-Reine, no Borgonha (Côte d’Or). O principal responsável por esta
atribuição foi Napoleão III, que promoveu entusiasticamente escavações nessa área (que até escreveu uma biografia de
Júlio César), onde se exumaram muitas peças de equipamento militar. Mas não tardou a que diversas vozes se
insurgissem contra o que consideraram ser «a impostura de Alésia», e propuseram outros sítios mais conformes ao
relato cesariano contido nos Commentarii de Bello Gallico. A maior objecção quese colocou relativamente ao Mont-
Auxois foi de ordem topográfica, já que o local parecia demasiado pequeno e não coincidente com a descrição feita por
Júlio Cesar. Com maior ou menor solidez argumentativa, avançaram-se com perto de umas trinta atribuições
alternativas, tendo por base derivações toponímicas (Alés, Alaise, Aloise, Alièze). Esta abundância de nomes idênticos
deve-se ao facto de que, a nível etimológico, o termo «alesia» se reportar genetricamente a uma falésia (falaise). Nos
últimos anos, certos arquéologos tenderam a localizar Alésia na região do Jura (Franche-Comté), mais especificamente
no oppidum de Chaux-des-Crotenay. Contudo, sobre esta matéria, ainda não se gerou consenso, embora a maioria dos
estudiosos aceite a identificação com o Mont-Auxois e Alise Sainte-Reine. Isto porque, além de se ter descoberto uma
quantidade não negligenciável de artefactos bélicos na zona, cabe não interpretar literalmente a visão transmitida por
César, que na sua narrativa exagerou as dimensões das obras do assédio romano em Alésia: com efeito tais defesas não
eram tão extensas ou completas como ele afirmou. A este respeito, consulte-se K. Gilliver, Caesar’s Gallic Wars 58-50
BC, Oxford, 2002, p. 61.
419
M. Feugère, Les armes des Romains de la Repúblique à l’Antiquité Tardive, p. 81; IDEM, «Le légionaire de Jules
César», in Vercingétorix et Alésia, catálogo de exposição, Saint-Germain-en-Laye, 1994, pp. 187-188.
420
S. Sievers, «Les armes de Alésia», in Vercingétorix et Alésia, pp. 270-287; M. Feugère, «L’équipement militaire
d’époque républicaine en Gaule», JRMES 5 (1994), p. 17 (o autor alerta para a dificuldade da distinção entre as armas
célticas ou germânicas e as romanas, «souvent délicate, voire impossible»).
421
Em França, descobriu-se um considerável número de elmos dos tipos Mannheim e Coolus (ou mistos): na região de
Aisne (Variscourt, Lusigny, na zona do Haute-Garonne (Vieille-Toulouse), no Alto-Marne (Breuvannes), em Marne,
Vadenay, no Ródano (Belleville, St.Foy-lès-Lyon, etc. Para um inventário destas peças, bem como de outros elementos
do equipamento militar romano, cf.M. Feugère, «L’équipement militaire d’époque républicaine en Gaule», pp. 16-19.
Veja-se também R. Cowan, Roman Legionary 58 BC-AD 69, Oxford, 2003, p. 41.No começo do periodo augustano, ou
mesmo ainda durante a conquista cesariana da Gália, as tropas romanas passaram a utilizar outros dois géneros de
elmos, denominados «Gálicos Imperiais», correspondentes aos tipos «Port» e «Agen», produzidos em ferro.
166
No tempo de Mário, os legionários ainda protegeriam o peito com uma placa metálica
quadrangular que só cobria parte do busto, ao passo que os auxiliares adoptariam
usualmente uma lorica squamata, couraça composta por fiadas de escamas metálicas
cozidas umas às outras e sobrepostas a um tecido.
Porém, a partir do século I a. C., muitos legionários começaram a envergar cotas de
malha de concepção originariamente gaulesa: esta protecção, formada por uns 30 000
anéis de ferro, medindo 3 a 9 mm de diâmetro e 1 a 2 mm de espessura, esta lorica
hamata oferecia uma melhor defesa face aos golpes de espada, permitindo ao mesmo
tempo uma razoável liberdade de movimentos ao seu portador, graças às filas de anéis
cerradas mas, ainda assim, flexíveis. Mas a lorica hamata tinha desvantagens: o tempo
de fabrico (estimado numas duzentas horas) tornava-a dispendiosa e o seu peso (9-12
kg, contra 6-8 para a lorica squamata) podia representar um estorvo. Identificaram-se
cotas de malha no dito «Guerreiro de Vachères» e no baixo-relevo do altar de D.
Aenobarbo. No último, o oficial que simboliza o deus Marte exibe uma couraça
chamada «musculada», por reproduzir a musculatura do tórax.
Quanto aos pila, ainda hoje é frequente vermos escrito em vários livros 422 e artigos,
que no tempo de Mário, eles eram ligados à haste de madeira por dois cravos,
revelando-se, assim, do tipo com espigão, similares aos pesados dardos descobertos em
Numância. Em Alésia, identificou-se um objecto bastante deteriorado que, em
princípio, segundo alguns, teria pertencido a tal género. Segundo as fontes literárias
antigas, Mário teria entendido que a longa haste de ferro característica desta espécie de
pilum nem sempre era flexível no momento em que chocava contra o alvo, e que o
inimigo lograva reutilizá-lo contra os Romanos: consequentemente, ele resolveu
remover um dos cravos, mandando colocar uma cavilha de madeira que se estilhaçava
aquando do impacto. Mais tarde, Júlio César aperfeiçoaria este sistema, ao deixar o
metal da ponta da lança por temperar, o que tornaria o projéctil inutilizável pelo
antagonista, ficando cravado no seu escudo sem lograr tirá-lo.
Na realidade, isto corresponde um dos mitos mais correntemente associados ao
pilum: que fora concebido para que a sua ponta de ferro se dobrasse ao chocar contra
os escudos do inimigo, assim impedindo a sua reutilização, por um lado, e
embaraçando as defesas dos soldados adversos. A verdade é que nenhum texto clássico
diz tal coisa423. Plutarco (Vida de Mário, 25) conta como se tratando de uma novidade o
facto de Mário ordenar, antes da luta contra os Teutões (102 a. C.), que se substituísse
um dos cravos do ponto de união entre o cabo de madeira da haste e comprida ponta de
ferro do pilum, para que, com o impacto, a espiga de madeira se partisse, ficando
422
Por exemplo, R. D’Amato e G. Sumner, Arms and Armour of the Imperial Roman Soldier, p. 6.
423
P. Connolly, «The pilum from Marius to Nero: A reconsideration of its development and function», Exercitus 3.5
(2005), pp. 103-112.
167
presas as duas partes constitutivas do pilum por um único rebite; assim, a componente
metálica, deixou de perfurar um escudo, manter-se-ia agarrada ao mesmo, ao passo
que a haste de madeira se arrastaria pelo solo, ao rodar sobre um só cravo de ferro. A
arma ficaria, desta maneira, inutilizável, mas só momentaneamente; depois da batalha,
nas oficinas legionárias, seria fácil substituir o rebite de madeira partido e restituir a
função original do pilum, isto se a «vareta» metálica não se tivesse dobrado.
Bem diferente era buscar que o próprio metal se dobrasse, o que Plutarco nunca
referiu. Por outro lado, a medida de Mário foi tão peculiar e inovadora que mereceu
uma menção relativamente detalhada, o que parece indicar que, antes dele, o pilum
geralmente não se partiria da maneira que acima descrevemos. Com efeito, o que
Políbio nos conta, reportando-se a finais do século III ou à primeira metade do século I
a. C., é precisamente o contrário: os Romanos tinham muitas precauções para evitar
que as duas partes do pilum nunca se deprendessem:
«A sua inserção e o seu uso ficam tão assegurados pelo facto de estar atado até ao meio da hasta e fixado
por uma tal quantidade de cravos que, em combate, antes que ceda a juntura e se rompa o ferro, embora
este tenha, na sua base, por onde se implanta na madeira, uma grossura de dedo e meio; tal é o cuidado
que os Romanos mostram nesta inserção» (Hist. 6.23.11).
O mesmo afirma Vegécio (Epitoma de rei militaris, 1.20), que, apesar de haver escrito
já num período muito tardio, consultou por vezes fontes bastante antigas. Interpreta-se
amiúde erradamente uma passagem de Políbio (Hist. 6.22.4), onde, ao aludir ao dardo
ligeiro empregue pelos velites (e não o pilum), diz efectivamente que «…esta ponta é
tão afilada e aguçada que, ao primeiro choque, se torce, e o inimigo não pode lançá-la;
se não fosse isto, o dardo serviria os dois exércitos». Que a costume de recuperar
dardos arrojados era habitual queda demonstrado pelas fontes (Lívio, Ab Urb. cond.
10.29.6). A este respeito, lembremos o trecho de Lívio (ibidem, 22.38.4) em que se
evoca o juramento proferido pelos legionários imeditamente antes de se ferir a batalha
de Canas: «… comprometeram-se entre si, sob juramento … a não fugir, fosse por se
gerar pânico ou por medo, nem a abandonar as fileiras, excepto para recolher ou
resgatar armas arrojadiças [tela], ou para ferir um inimigo ou socorrer um camarada».
A outra fonte habitualmente citada para o «pilum dobrado», Júlio César (B. Gall.
1.24) tão pouco diz que os ferros se dobrassem, nem sequer décadas após a suposta
reforma de Mário, por volta de 50 a. C.: na sua narração, os pila atravessam vários
escudos gauleses ao mesmo tempo, fixando-os entre si. Mas para isto, era essencial que
o ferro não se torcesse com o impacto, mas que penetrasse com «limpeza» vários
escudos. Se a parte metálica da haste do pilum se dobrasse, cravando-se apenas no
escudo, perderia a sua função primordial, perfeitamente documentada, a de trespassar
um escudo e ferir o corpo que o mesmo deveria proteger. É também incerto que César
mandasse que a ponta metálica do pilum se produzisse em ferro maleável, por
168
temperar, a fim de que mais facilmente se dobrasse. Como bem salientou L. Keppie 424,
trata-se de uma inferência que se transformou em dado adquirido, aceite e exposta em
muitas obras, mas não surge explicitamente citada nas fontes antigas.
Por outro lado, a maior parte das armas romanas, incluindo as espadas, era de ferro
maleável, sem carburação intencional425, o que fazia com que as que tivessem pior
qualidade de fabrico se torcessem com certa facilidade, não por tal se pretender, mas
acidentalmente. Além disso, os pila republicanos romanos que foram descobertos,
datando de uma fase anterior a Mário (em Numância e outros sítios arqueológicos 426),
bem como os do tempo de Sertório, em La Almonia (Valência) 427 e em «La Caridad» 428 -
todos possuem dois cravos de ferro sólido, pelo que Plutarco não interpretou mal a sua
informação - , sugerem que a reforma de Mário não se generalizou. Ainda que alguns
pila recuperados em contextos funerários ibéricos se apresentem dobrados por motivos
rituais, praticamente todos os que se encontraram em locais correspondentes a antigos
acampamentos ou a palcos de batalha costumam mostrar-se quase rectos ou, então,
algo encurvados devido à voragem temporal e à própria pressão exercida pela terra,
mas não com o género de curvatura que pudesse resultar de um impacto contra um
objecto duro.
Por fim, as reconstituições e testes da «arqueologia experimental», sobretudo os que
efectuou Marcus Junkelmann429, demonstraram que o pilum atravessa na perfeição
tábuas de madeira até 3 cm de espessura, ou 2 cm de contraplacado, sem sofrer
qualquer alteração formal. O que tornava difícil extraír um pilum, uma vez tendo
perfurado um escudo, relacionava-se com a configuração da sua ponta metálica
piramidal, mais grossa do que a haste. De facto, ao penetrar no escudo, a madeira, pelas
suas propriedades plásticas, tendia-se a ficar porosa, afigurando-se tarefa espinhosa
retirar a ponta através do mesmo orifício que havia provocado, a não ser que
eventualmente se tombasse o escudo solo e ela se arrancasse na vertical.
O pilum consistia, então, num dardo com grande poder de penetração, tendo, em
média, 2,1 m de comprimento e um alcance máximo de 30 m, mas só era
verdadeiramente eficaz a partir dos 15 m. Se o dardo fosse lançado a 5 m de distância,
trespassaria igualmente o homem que estava atrás do escudo.
424
The Making of the Roman Army, pp. 101-102, n. 19.
425
A. Williams, The metallurgy of body armour in the Ancient World», in 2nd International Conference on Hellenistic
Warfare, Valência, 2005.
426
M. Luik, Die funde aus dem Römischen Lagern um Numantia im Römisch-Germanischen Zentralmuseum; P.
Connolly, «Pilum, Gladius and Pugio in the Late Republic», in M. Feugère (ed.), L’équipement militaire et l’armement
de la République, pp. 41-57.
427
A. Ribera Lacomba, «La primera evidencia arqueológica de la destrucción de Valentia por Pompeyo», Journal of
Roman Archaeology 8 (1995), pp. 19-40; P. Connolly, «The pilum from Marius to Nero…»,, fig. 2.
428
J. Vicente, M. P. Punter e B. Ezquerra, «La catapulta tardo-republicana y outro equipamiento militar de ‘La Caridada’
(Caminreal, Teruel)», in M. Feugére 8ed.), L’équipement militaire et l’armement…, pp. 167-199.
429
Die Legionen des Augustus, Mainz, Phillip von Zabern Verlag, 1986, p. 186ss, taf. 51a. Observe-se, também, o artigo
de P. Connolly, «The pilum from Marius to Nero…», p. 106.
169
***
430
Para os discursos pronunciados antes de uma batalha: M. Hansen, «The Battle Exhortation in Ancient
Historiography: Fact or Fiction», Historia 42 (1993), pp. 161-180
431
Quanto ao papel de um comandante antes e durante uma batalha, veja-se A. Goldsworthy, The Roman Army at War,
pp. 131-163.
170
combativo e intimidar o adversário, enquanto arqueiros e fundibulários tentavam
romper as fileiras inimigas.
A formação habitual de combate 432 era a já referida triplex acies, isto é, em três linhas:
cada legião desdobrada apresentava, na primeira linha, quatro coortes separadas entre
si por uma distância igual à sua largura; seguiam-se outras três coortes, dispostas em
segunda linha, atrás de cada um destes intervalos; as três últimas coortes ficavam de
reserva, na terceira linha. Esta disposição permitia manobras relativamente fáceis; a
segunda linha, ao avançar, podia colocar-se ao nível da primeira, formando uma frente
contínua; alternativamente, a primeira linha podia recuar, sem ver-se obrigada a
misturar-se nas fileiras da segunda. Em certas ocasiões, os Romanos recorriam à
duplex acies, ou formação em duas linhas, e até à quadruplex acies (embora muito
raramente) baseada no mesmo princípio que a triplex acies.
Em geral, as legiões formavam o centro da ordem de batalha, colocando-se a
infantaria ligeira e a cavalaria nas alas. Quando uma legião (ou um corpo do exército)
era atacada a descoberto por uma força muito superior, sem que houvesse
acampamento onde se refugiar, adoptava a formação em orbis ou círculo: as unidades
desdobravam-se, ficando juntas em redondo, para não exporem o flanco ou a
retaguarda, como muito mais tarde aconteceria, nos quadrados de infantaria da Europa
do século XVIII.
Um prélio começava frequentemente por meio de escaramuças de infantaria ligeira
auxiliar ou de cavalaria, com o claro intento de «tactear» as posições e a determinação
do inimigo433. Logo que este ficasse à distância de uns 15-10 m (ou menos), os Romanos
arremessavam os seus dardos e atacavam-no com o gládio, antes que ele tivesse tempo
de se recompor. Pouco depois, a batalha assumia a forma de múltiplos combates
individuais, um momento em que a mestria no manuseamento do gládio, que servia
principalmente para assestar estocadas, significava um elemento muitas vezes decisivo.
Mas o escudo também exercia uma função ofensiva, estando dotado de uma
proeminência metálica na sua face exterior, que correspondia ao sítio onde a mão
esquerda do soldado ficava na face interior: este umbo, sem dúvida de origem
germânica, permitia desviar a trajectória das flechas e lanças inimigas, empregando-se
igualmente para exercer movimentos de percussão contra o adversário. Por vezes, era
preciso romper ou penetrar na formação inimiga, efectuando uma carga em cunha
(cuneus), conduzida por alguns bravos, secundados por fileiras cada vez maiores.
432
Sobre as tácticas e as formações de combate: R. Cowan, Roman Battle Tactics 109 BC- AD 313, Oxford, 2007, pp. 23-
41
433
E. Abranson, Roman Legionaries at the Time of Julius Caesar, Londres, 1979, pp. 40-41; A. Goldsworthy, The
Roman Army at War, pp. 171-247 (para uma minuciosa análise sobre a natureza das batalhas neste período); R. Cowan,
Roman Legionary 58 BC-AD 69, pp. 51-56.
171
Quando saíam vitoriosos, os Romanos, à semelhança dos Gregos, erigiam um
tropaeum/troféu (Tácito, Ann. 2.18, 22), depois de inumarem os seus homens. O troféu
consista geralmente numa espécie de «manequim» armado (uma árvore ou uma
simples vara), instalado sobre uma pilha de armas e despojos arrebatados aos vencidos.
Em circunstâncias extremas, os corpos e as cabeças dos antagonistas tombados em
combate podiam utilizar-se para «adornar» tais troféus, como aconteceu depois de as
tropas de Júlio César derrotaram as forças de Pompeio perto de Munda:
«Os escudos e os pila arrebatados dos braços do inimigo foram colocados para servirem como uma
paliçada, os corpos como uma plataforma. No topo, empaladas nas pontas de espadas estavam cabeças
humanas» (César, B. Hisp. 32).
172
emboscadas ou, ainda, porque o êxito de um estratagema simplesmente forçava o
adversário a capitular sem sequer porfiar.
Na realidade, os legionários romanos praticavam mais a guerra de assédio e de
desgaste do que enfrentavam o inimigo nos campos de batalha. Repare-se que até é
comum dizer-se que os Romanos ganharam as suas guerras mais com pás do que com
gládios. Qualquer pessoa que tenha lido os Commentarii de Bello Gallico de César
verificou, decerto, a importância fundamental assumida pelas operações de cerco, tanto
durante a Guerra das Gálias, como no decurso da Guerra Civil. Os soldados de César
passaram grande parte das suas campanhas a sitiarem cidadelas e fortificações, ou a
tentar imobilizar os oponentes, obrigando-os a entrincheirar-se.
Posto isto, quanto às batalhas em si mesmas, é uma ilusão acreditar num só modelo
operatório, por outras palavras, na existência de um conjunto de regras que se
aplicassem uniformemente a uma chamada «arte da guerra romana» 434. Aliás, como
poderia ser de outra forma? Os factores topográficos e climáticos jamais eram
inteiramente previsíveis, além de que os respectivos tamanhos dos exércitos em
campanha, as capacidades combativas dos soldados em ambas as forças beligerantes e
as distintas tácticas adoptadas pelos adversários (a «lista» encontra-se longe de estar
completa), tornam falaciosa a convicção de haver um «modelo» sistematicamente
empregue pelos generais romanos. No período aqui em causa, o exército romano
combateu em modalidades de «contra-guerrilha», suprimiu revoltas de escravos,
moveu perseguição a piratas e, claro, interveio activamente nas guerras civis. Os
conflitos contra inimigos estrangeiros nunca foram comparáveis e compeliram os
Romanos a lidar com desafios que exigiram defrontar diferentes modalidades de luta
por parte dos seus inimigos.
As estratégias e as tácticas utilizadas pelos adversários de Roma pautavam-se por
distintas maneiras de fazer a guerra: Jugurta na Numídia, Mitridates ou Tigranes no
Oriente, os Partos ao longo do Eufrates, as tribos célticas na Gália, os Germanos tanto
na Germânia como durante os seus movimentos migratórios através do Reno, os
Bretões, os Hispanos, para apenas mencionarmos alguns, eram povos e sociedades
diferentes que empregavam variegadas formas de combate. Isto, todavia, não quer
dizer que os generais e os soldados romanos não actuassem segundo certos princípios
gerais de confronto. Atrás aludimos às suas formações (o sistema coortal), às suas
armas e ao seu treino.
Em condições ideais, deles se esperava que se comportassem do seguinte modo, como
referimos: os legionários, defronte do inimigo, ficariam dispostos em três linhas
(embora, conforme vimos, também pudessem usar duas, ou mesmo só uma,
434
P. Cagniart, «The Late Republican Army (146-30 BC)», pp. 92-94.
173
dependendo de considerações de ordem numérica e topográfica), estando as suas alas
protegidas por contingentes de cavalaria, por obstáculos naturais ou por fortificações
construídas pelo homem. Dada a ordem para a investida, os legionários começariam a
marchar lentamente, rumo às linhas inimigas, até atingirem uma distância a partir da
qual podiam arremessar eficazmente os dardos. Era só nesta altura que eles correriam,
efectuando «descargas» ou «salvas» de pila e emitindo brados de guerra. Se o
antagonista não tivesse batido em retirada, os Romanos desembainhariam os gládios e
entrariam no corpo a corpo. Na maior parte das ocasiões, tais cargas, realizadas com
disciplina e férrea determinação, faziam esmorecer o ânimo do inimigo, e se isto
sucedesse os oponentes em debandada eram massacrados pela cavalaria e pela
infantaria romanas. Mas se o inimigo resistisse e se mantivesse firmemente no campo
de batalha, o desfecho só poderia resolver-se mediante a habilidade combativa e pela
coragem dos legionários, bem como pela liderança enérgica dos centuriões e pelo
talento do general, ao mudar as posições das coortes para os locais em que elas se
afiguravam necessárias ou no recurso às reservas no momento mais oportuno.
Basicamente é desta forma que muitos historiadores modernos continuam ainda a
descrever uma batalha, cujo tipo de cenário se encontra plasmado, efectivamente, em
alguns relatos antigos. O maior problema surgia quando uma contenda não se decidia
rapidamente, isto é, naqueles poucos minutos em que um soldado de infantaria
conseguia reunir todas as condições físicas para guerrear. Este aspecto constituiu a
questão-chave colocada por P. Sabin, a qual o autor explicou por meio do conceito de
«sporadic close combat»,435 vendo os choques produzidos pela infantaria romana
«como um afastamento natural pontuado por investidas periódicas e localizadas de
combate corpo a corpo». A interpretação preconizada por Sabin é, talvez, a melhor
tentativa explicativa quanto ao que acontecia no campo de batalha, quando as refregas
se livravam ao longo de várias horas.
Para concluir, insistamos no ponto de não haver «modelos» nas batalhas travadas
pelos Romanos. Nos primeiros seis livros dos Commentarii de Bello Gallico
(abrangendo o espaço temporal entre 58 e 52 a. C.), deparamos com as descrições de
sete batalhas campais: (1) contra os Helveti, em 58 a. C. (1.24-26); 2) contra Ariovisto,
no mesmo ano (1.51-52); 3) contra os Belgae, em 57 a. C. (2.8-11); 4) contra os Nervii e
os seus aliados, no mesmo ano (2.19-28); (5) contra as tribos germânicas dos Tencteri e
dos Usipetes, em 56 a. C. (4.7-15); 6) duas batalhas, sob o comando de Labieno, contra
os Treveri, em 53 (6.7-8); 7) contra os Parisii, em 52 (7.57-62). Em nenhuma destas
batalhas se adoptou um modelo operatório comum, todas dependeram das
circunstâncias, que foram sempre específicas. As últimas também podiam ser criadas
435
«The face of the Roman Battle», JRS 90 (2000), pp. 1-17
174
pelos próprios generais, que pretendessem impedir que o inimigo adivinhasse a sua
estratégia e as suas tácticas: Apiano refere, citando César: «…a coisa mais poderosa na
guerra é o elemento-surpresa» (B. Civ. 2.53). Esta asserção afigura-se válida para todos
os conflitos em que participaram os Romanos e, até, para todas as guerras na história
mundial.
436
G. Webster, The Roman Imperial Army, 3ª edição, Londres, 1985, pp. 103-109; L. Keppie, The Making of the Roman
Army. From Republic to Empire, Londres, 2ª edição, 1998, pp. 115-125.
437
A. von Domazeswski, «Die Thierbild der Signa», Archaölogische Epigraphische Mitteilungen aus Österreich-
Ungarn, XV (1892), pp. 182-193; idem, Die Fahnen im Römischen Heere, Viena, 1885.
438
K. Kraft, «Zum Capricorn auf den Münzen des Augustus», Jahrbuch für Numismatik und Geldgeschichte XVII
(1967), pp. 17-27; E. J. Dwyer, «Augustus and the Capricorn», Röm. Mitt. LXXX (1973), pp. 59-67.
439
J. Harmand, L’armée et le soldat à Rome de 107 à 50 av. J.C., pp. 231-234.
175
legiões de Varão (Varus), que desapareceram em Teutoburgo (Alemanha), as XVII,
XVIII e XIX. Os seus sucessores o mesmo fizeram, o que tende a provar que a
numeração terá sofrido, entretanto, uma mudança de significado.
César também pediu «emprestada» a Pompeio uma legião, a I, porque esta fora
criada em 55 a. C., em virtude os poderes consulares do último. Ademais, Pompeio
tinha formado outras três, e Crasso partiu para guerrear os Partos com oito legiões, mas
das quais desconhecemos os seus números. A legião cedida a César sugere que os
números I a IV estariam, sem dúvida, reservados para as legiões criadas e comandadas
pelos cônsules. Na Primavera ou no Verão de 52 antes da nossa era, outra legião
recrutada por César recebeu o número VI, talvez por este ficar «vago» após a derrota de
Crasso em Carras, em 53 a. C. No fim do mesmo ano, uma milícia autóctone, com 22
coortes arroladas na Transalpina, com vista a defender a fronteira setentrional desta
província, formou possivelmente o núcleo inicial da V legião Alaudae.
Em 50 a. C., César enviou a Iª legião (a cedida por Pompeio) e a sua XVª para Itália,
sob o pretexto de que se destinariam a proteger as províncias orientais contra os Partos.
Em nove anos, o número de legiões colocadas sob o comando de César passou de
quatro para doze: realizavam campanhas no Verão e ficavam nos aquartelamentos de
Inverno quando as condições climatéricas já não fossem apropriadas para operações
bélicas. Procedia-se à desmobilização dos soldados que houvessem cumprido o tempo
de serviço regulamentar, bem como à leva de recrutas, obtidos principalmente na Gália
Cisalpina. Cada legião assim constituída parece ter conservado o número que era o seu,
no momento da sua criação. Após a travessia do Rubicão 440 em Janeiro de 49 a. C.,
César recrutou no espaço de alguns meses 80 000 homens, chegando a assumir o
controlo de certas unidades que se encontravam em curso de formação para Pompeio.
Desde Agosto de 49, atestam-se as legiões exibindo os números XXVIII (AE 1924, 55),
XXIX (AE 1931, 95) e XXX (ILS 2232).
Em pleno exercício dos seus poderes consulares, César, no ano 48 a. C., criou quatro
legiões suplementares, numeradas de I a IV. O seu exército passou, pois, a ser
composto por legiões provavelmente numeradas de maneira ininterrupta de I a
XXXIII. A seguir à batalha de Farsália, os cidadãos arrolados por Pompeio que estavam
nas fileiras para além do tempo normal de serviço foram incorporados no exército de
César. Todavia, não foi o número de legiões criadas por César que representou uma
verdadeira inovação. Roma, de facto, já havia mobilizado efectivos bem consideráveis
no tempo da Guerra de Aníbal e da conquista da Península Ibérica, no início do século
II a. C. Devido à lex Gabiniana de 67 a. C., Pompeio terá ficado à cabeça de vinte
440
Veja-se A. Goldsworthy, «Part II: Caesar’s Civil War 49-44 BC», in C. M. Gilliver, A. Goldsworthy e M. Whitby, Rome
at War. Caesar and his Legacy, Oxford, 2005, pp. 119-121. Para mais dados sobre a Guerra que opôs César a Pompeio
(incluindo descrições objectivas de batalhas como Farsália ou Munda, cf. ibidem, pp. 123-155.
176
legiões para combater a pirataria. No exército cesariano, destaca-se sobretudo a
tendência para a manutenção do número original. É certo que para César, tal
manutenção não se prolongaria por muito tempo depois de uma campanha. Mas certas
legiões surgem também citadas várias vezes com o mesmo número em diferentes
conflitos armados, haja em vista a célebre Vª legião Alaudae (Cícero, Ad Fam. 10.33;
Ad Att. 16.8; B. Afr. I, 5, 47, 60, 80, 84; B. Hisp. 30).
Se a preservação da numeração inicial não parece já estabelecida, não deixa de se
verificar uma tendência neste sentido, confirmada por alguns testemunhos epigráficos
(por exemplo, CIL X.4786, respeitante à VIIª legião). Cabe ver em Júlio César, como
sustentou J. Harmand, um pioneiro? Há que ter em conta a desproporção da nossa
documentação, que faculta dados sobretudo a respeito do seu exército. É possível que
os mesmos usos também estivessem em prática nas forças de Pompeio, e sempre que
uma campanha militar se prolongasse num mesmo teatro de operações, mas o facto é
que carecemos de evidências para várias destas suposições. Na inscrição CIL III 6541a,
faz-se menção a uma IIIª legião de Pompeio.
César não foi o criador do exército permanente do Alto-Império (embora haja autores
que defendam tal ideia), na medida em que as legiões que ele comandou na Gália foram
dissolvidas no fim da sua luta contra os acólitos de Pompeio. César não se afastou dos
costumes habituais ao licenciar primeiro as suas legiões mais antigas, numeradas de VI
a XIV, entre 47 e 44 a. C., e ao manter operacionais as que recrutou em 49-48. Depois
da sua vitória em Munda, César planeou uma ofensiva contra os Partos, empregando as
tropas que recrutou no começo da guerra civil: consistiam, essencialmente, nas legiões
numeradas de II a IV, visto que foram constituídas em virtude dos poderes consulares
de César em 48 a. C., numa legião chamada Martia, cujo número desconhecemos, nas
legiões XXXV (formada por antigos soldados de Pompeio, em guarnição na
Macedónia), XXVII (que ficara no Egipto em 47 a. C.), e nas XXXVI e XXXVII
(igualmente composta por tropas pertencentes ao seu rival, de guarnição na Síria). Nos
Idos de Março de 44 a. C., na altura do assassinato de César, o seu exército
compreendia 37 legiões.
O prestígio de César e das suas legiões era tal que, após os Idos de Março de 44 a. C.,
Marco António e Octávio pretenderam reconstituir as suas legiões, conservando o seu
número, o seu eventual cognome e apelando aos veteranos, que temiam não receber as
suas gratificações. Foi este fenómeno crucial que esteve na génese da atribuição de um
número permanente a cada legião, como defendeu L. Keppie. Octávio partiu, assim,
para a Campânia, a fim de persuadir mais de 3000 veterani das legiões VII e VIII a
reingressarem nas fileiras. As legiões IV e Martia também se lhe reuniram, ao passo
que a Vª Alaudae, a IIª e a XXXVª legiões estavam sob as ordens de Marco António na
177
Gália Cisalpina. Lépido, procônsul da Transalpina e da Hispânia Citerior, havia
reformado as VIª e Xª legiões. Reformar as legiões de César significava também um
meio para que cada triúnviro buscasse tornar-se um herdeiro legítimo do dictator
defunto. Assim, a numeração das novas legiões criadas veio completar a das antigas
unidades cesarianas.
O exército de Bruto e Cássio era composto maioritariamente pelas guarnições do
Oriente, que César havia estabelecido após a batalha de Farsália: tratava-se das
XXVIIª, XXXVIª, XXXVIIª e, sem dúvida, das XXXIª e XXXIIIª legiões. A seguir à
refrega de Filipos, das tropas derrotadas, 14 0000 soldados foram incorporados no
exército dos triúnviros (Apiano, Guerras civis 4.135), limitando, doravante, a onze
legiões após a desmobilização dos veteranos de César. Os que foram novamente
convocados em 44 a. C. viram-se licenciados, assim como os arrolados em 49-48 a. C., e
que já haviam cumprido o seu tempo de serviço.
Seria lógico que as onze legiões mantidas após Filipos voltassem a ser numeradas a
partir de um novo algarismo I. No entanto, a numeração cesariana foi preservada
basicamente por motivos políticos – cada triúnviro tentou perpetuar a memória das
legiões cesarianas, mesmo a seguir ao licenciamento definitivo dos derradeiros
veteranos de César. As denominações cesarianas ganharam um forte valor simbólico,
em razão do carácter muito peculiar da sua última guerra civil; cada campo em
presença reivindicava efectivamente um mesmo legado político, o que antes jamais
sucedera.
Conhecemos os números das legiões envolvidas no cerco de Perusia (actual Perúgia)
graças à descoberta de bolas de chumbo utilizadas por fundibulários, nas quais se
gravaram os primeiros441: foram elas as legiões IIIª, VIª, XIª, XIIª Victrix, VIIIª e
XIXª. Octávio completou em seguida a sua própria série numérica de legiões: além das
três legiões que trouxe de Filipos, ele dispunha de várias legiões arroladas entre 45 e 42
a. C., nomeadamente as cinco da série consular de Pansa em 43, como a IIIª Sabina, a
IIIIª Sorana e a Vª Urbana. Ao actuar desta maneira, Octávio não teve peias em
duplicar certos números já em uso no exército de Marco António, na medida em que ele
não buscava mostrar-se como um continuador do último: tal foi o caso das legiões X
Fretensis, XII Victrix ou das XVII e XVIII. Posto isto, a conjuntura após os Idos de
Março de 44 a. C. esteve na base da manutenção ou da «ressurreição» da numeração
cesariana, enquanto as fases subsequentes a Filipos e à Guerra de Perusia engendraram
a dupla numeração de certas unidades.
Não há dúvida que neste período proliferaram os títulos e os cognomes das legiões,
certamente por causa das duplicações. A Xª legião Fretensis deveu, assim, o seu
441
ILLRP 1106-1118; E. Zangemeister, Ephemeris Epigraphica, IV, 1885, pp. 52-78.
178
cognome ao Estreito da Sicília (Fretum Siculum), onde se defrontaram Octávio e Sexto
Pompeio em 38-36 a. C. No acampamento de Marco António, no contexto da guerra
pártica do triúnviro, encontravam-se as legiões III Gallica (Tácito, Hist. 3.24; Plutarco,
Vida de Marco António, 42) e a VI Ferrata, como testemunha uma moeda de Lúcio
Vero, cunhada para celebrar o bicentenário desta campanha em 166 d. C 442.
Sabemos quais eram os números e os cognomina das legiões de Marco António graças
às moedas cunhadas no fim da década de 30 a. C., destinadas aos soldados que
pelejaram na batalha de Actium: consistem, na sua maior parte, em denários de prata e
alguns aurei, nos quais se representou uma galé no anverso e uma águia legionária no
reverso, entre dois emblemas. O epíteto Antiqua para uma XIIª legião indica
provavelmente uma origem cesariana, ao passo que Classica, para uma XVIIª legião
sugere actividades bélicas navais, e a Lybica para uma XVIIIª legião uma primeira
campanha no Norte de África ou ao largo da sua linha costeira 443.
Depois de vencer as forças coligadas de Marco António e de Cleópatra na contenda
naval perto do promontório de Actium (Ácio), em 31 a. C., Octaviano (nome que
adoptou, deixando de parte Octávio, na qualidade de herdeiro e sucessor legítimo de
César) ficou à frente de cerca de sessenta legiões. Destas licenciou mais de metade,
conservando, numa primeira fase, 26 ou 27 legiões, e depois elevando-se o total a 28 444,
associando as suas unidades às que haviam servido Marco António, sem modificar a
numeração delas. Assim, muitas das legiões augustanas já estavam operacionais antes
da batalha de Actium, e até da morte de Júlio César. Algumas utilizaram, portanto, o
mesmo número e para as diferenciar foi necessário que exibissem um cognome
diferente, haja em vista as legiões III, uma das quais esteve sob as ordens de Octávio e
recebeu o epíteto de Augusta, outra que passou do exército de Lépido para o de Marco
António – que manteve o seu título de Cyrenaica - e, por fim, a chefiada por Marco
António, com o nome de Gallica.
Octaviano (intitulado Augustus pelo Senado em 27 a. C., tornando-se o primeiro
imperador de Roma) resolveu preservar as denominações do exército de César 445, de
molde a destacar-se como um reunificador. O cognome Gemina446 foi então atribuído
para identificar as novas legiões resultantes da fusão de duas unidades anteriores:
observe-se o caso da Xª legião Gemina, herdeira da Xª Equestris de 58 a. C., que
partira com Marco António após a batalha de Filipos, cujo cognomen não se conservou
442
E. H. Mattingly et al (eds.), Coins of the Roman Empire in the British Museum, vol. IV, Londres, 1940, p. 456, nº
500.
443
H. Cohen, Monnaies imperiales, I, p. 41; M. H. Crawford, Roman Republican Coinage, Cambridge, 1974, p. 529, 552.
444
A este respeito, veja-se A. K. Goldsworthy, Augusto. De Revolucionário a Imperador de Roma, Lisboa, A Esfera dos
Livros, 2016, pp. 253-255. Refira-se que em 29 a. C., existiam 120 000 veteranos estabelecidos em colónias, número que
equivaleria aos efectivos máximos de 24 legiões.
445
R. Cowan, «Augustan legionaries: Defining features of the Roman army», Ancient Warfare, Special Issue (2009), p.
35; E. G. Hardy, «Augustus and his Legionaries», CQ xvi (1920), pp. 187-194.
446
E. B. Birley, «A Note on the Title “Gemina”», JRS 18 (1928), pp. 56-60.
179
a seguir a Actium possivelmente devido a um motim, o que conduziu a incorporação de
recrutas ou de novos soldados extraídos das legiões de Octávio (Suetónio, Augusto, 24).
No conjunto das legiões imperiais, o número mais alto foi o da XXIIª, empregue por
uma legião Deiotariana (assim chamada por derivar de Deiotaro, o rei da Galácia que
enviou tropas de reforço a Pompeio e, depois, a César): numa primeira fase ao serviço
de Marco António, ela só veio a ser integrada no exército imperial no ano 25 da nossa
era, depois da anexação da Galácia por Roma.
Com o objectivo de melhor gerir os efectivos destas legiões, que adquiriram uma
relativa permanência, segundo Apiano, encetou-se a criação de funções administrativas
no seio de cada uma delas, para facilitar o processo contabilístico dos anos de
campanhas, o pagamento dos soldos ou ainda a distribuição de gratificações e de lotes
de terra (Guerras civis, 5.46). Noutra passagem, alusiva a um motim contra Marco
António em 44 a. C., o autor alexandrino faz referência à existência de verdadeiros
arquivos individuais para cada soldado, comparáveis às actuais «cadernetas» militares
(ibidem, 3.43). A redacção destes documentos implicou o desenvolvimento de uma
administração militar específica, no início talvez levada a cabo pelos assistentes dos
questores nos exércitos, e depois por soldados que tinham dado mostras das suas
competências ou que se tinham especializado em tais tarefas.
***
A Guerra Social contribuiu, mais do que as medidas implementadas por Mário, para o
abandono dos critérios censitários nos procedimentos respeitantes ao recrutamento.
Neste período atribulado, os problemas conduziram ao arrolamento de cidadãos
romanos que viviam nas províncias, bem como de peregrini. Em geral, a repartição de
parcelas de terras e de dinheiro acompanharam então o licenciamento dos soldados,
além de se conceder a cidadania romana aos peregrini desmobilizados.
Os exércitos estabeleceram, também, relações cada vez mais estreitas com os seus
comandantes, mas os primeiros só começaram a assumir autênticas iniciativas políticas
a partir do fim das guerras civis. As inovações militares que se assinalam neste
momento histórico têm sido amiúde atribuídas a Júlio César, mas isto pode não
corresponder à verdade, uma vez que dispomos de mais documentação sobre o seu
exército do que os dos seus concorrentes e rivais, facto que talvez conduza a
extrapolações erradas.
180
CAPÍTULO IV: O exército da Pax Romana (séculos I-II d. C.)
181
resistiram e se opuseram às condições ditadas pela República foram pacati, ou seja,
«pacificados», «dominados» por uma força que, na paz imposta por seu intermédio,
encontrou a própria justificação.
Mas foi Augusto quem deu o passo definitivo. Na sua concepção cósmica, para a paz
ser efectiva tinha de se revelar absoluta450; a acepção do termo a que Augusto se refere é
completamente particular. Numa implicação óbvia do imperialismo romano, em que se
encarava cada realidade como res romana ou res nullius451, a paz justa só podia
corresponder à pax romana, conforme às regras ditadas por Roma ao mundo 452. Um
pressuposto que encontra, aliás, a sua fonte na orgulhosa justificativa de Virgílio sobre
o império de Roma: tu regere imperio populus, Romane, memento/ […] pacisque
imponere morem/parcere subiectis et debellare superbus (Eneida, VI, 851ss.).
Se, como afirmou W. Haase 453, é verdade que, para Virgílio, nos superbi se
reconheçam os agressores de todo o o género e nos subiecti aqueles que, pelo contrário,
evitavam colocar-se em posição antagónica, nos confrontos travados por Roma, não
deixa também de ser verdade que a perspectiva se pode simplesmente inverter. Assim,
percebe-se que o poder romano considerava como agressores, pelo menos
potencialmente, todos os que não lhes fossem subiecti.Neste momento culminante do
imperialismo romano, a paz era vista indubitavelmente como fruto exclusivo de uma
guerra que, mais tarde, seria sarcasticamente recordada por Tácito (An.1.10, 4).
A autoridade de Augusto, ao medir forças com a aristocracia, adveio principalmente
do facto de ele haver imposto garantias de estabilidade aos impulsos «revolucionários»
das camadas inferiores da sociedade, das tropas e de uma parte, pelo menos, do mundo
provincial. De acordo com as palavras de Tácito, foi somente por isso que, como
discordantes patriae remedium (An. 1.9), omnem potentiam ad unum conferri pacis
interfuit (Hist, 1.11), se resignou a confiar nele e nos seus sucessores o comando
supremo das forças armadas de Roma. Tal comando era garantido pela concessão
450
Em 11 de Janeiro de 29 a. C., as portas do templo de Jano Quirino (Ianus Quirinus) foram solenemente fechadas e
celebrou-se o vetusto rito do Augurium Salutis. As duas cerimónias requeriam uma condição: que houvesse paz em todo
o império romano. As portas do referido templo permaneceram encerradas por mais de dois anos, e o herdeiro de Júlio
César teve o cuidado de que ninguém compreendesse mal todo este simbolismo. Pela primeira vez em séculos, o mundo
romano encontrava-se oficialmente numa situação de paz universal. O que se afigura verdadeiramente significativo é
que a tradição exigia, então, que os soldados-cidadãos fossem dispensados. Mas, embora se tivesse desmobilizado um
elevado número de legiões, perto de metade delas manteve-se em serviço (em breve as legiões ascenderiam a 28),
vendo-se distribuídas per provincias: Suetónio, Aug. 17.3; 49.1; Díon Cássio, Hist. rom. 51, 4, 1-5, 1; Orósio, Advers. Pag.
6.19.14; G. Wesch-Klein, «Alen und Legionen in der Frühzeit des Prinzipats», in Die römische Okkupation nördlich der
Alpen zur Zeit des Augustus. Kolloquium Bergkamen 1989, Münster, 1991, pp. 205-216. Ao mandar encerrar
simultaneamente as portas de Jano Quirino e posicionar as legiões no mundo provincial, o Imperator Caesar admitia
publicamente que iria conservar, contra a tradição, um exército profissional e permanente, mesmo em tempo de paz.
Não obstante o longo período de mudanças contínuas e profundas que afectaram o sistema militar romano, em especial
desde a Segunda Guerra Púnica, o 11 de Janeiro de 29 a.C. pode considerar-se como marcando a data do aniversário
simbólico do novo exército imperial romano, e de um novo tipo de soldado romano.
451
G. Alföldy, «The moral barrier on Rhine and Danube», in E. Birley (ed.), The Congress of Roman Frontier Studies
1949, Durham, 1992, p. 5.
452
Sobre o conceito da pax e a importância que assumiu na construção ideológica augustana, veja-se G. Brizzi, Storia di
Roma, I: Dalle origini ad Azio, Bolonha, 1997, p. 438ss.
453
«”Si vis pacem para bellum”, Zu beurteilung militärscher in der römischen Kaiserzeit», in J. Fitz (ed.), Limes. Akten
des XI. Internationalen Limeskongresses (Székesfehérvar, 30-8-6.9.1976), Budapeste, 1977, p. 742.
182
exclusiva de um imperium proconsulare, de um poder militar que, pelas suas enormes
dimensões, se definiu como maius et infinitum. Além de assegurar a Augusto o controlo
sobre todas as unidades militares do império e sobre as zonas não pacatae (em risco,
que, em teoria, necessitariam da presença de tropas legionárias), este poder estendia-se
formalmente até à capital454.
183
poderiam representar456. Prudentemente, o filho adoptivo e herdeiro de César actuou
por etapas: principiou por licenciar sem gratificações os veteranos de Marco António e
uma parte dos seus em Itália, enquanto a manutenção do resto do exército operacional
se via garantida pelas perspectivas de pilhagens e despojos no Egipto.
No entanto, durante o Inverno que precedeu esta última campanha contra o seu ex-
colega do triunvirato, ele teve de regressar à península itálica, a fim de apaziguar o
descontentamento dos soldados desmobilizados: distribuiu-lhes dinheiro e terras para
aqueles que o haviam servido em todas as suas campanhas. Depois da tomada de
Alexandria, os despojos obtidos na conquista do reino lágida forneceram a Octaviano os
recursos para financiar novamente o licenciamento de tropas, com vista a fixar o
número de legiões em 28. Os efectivos legionários mantiveram-se inalterados sob o seu
Principado até ao ano 9 d. C., altura em que diminuíram para 25, no seguimento da
perda das XVIIª, XVIIIª e XIXª legiões comandadas pelo legado da Germânia, Públio
Quintílio Varão (Varus), que foram estrondosamente derrotadas numa emboscada
montada por Armínio, no saltus Teutoburgensis (Kalkriese, Alemanha457).
Apesar de sofrerem uma redução tão drástica nos seus efectivos (20 000 homens), as
legiões continuavam a ser uma arma perigosa nas mãos daqueles que as lideravam.
Efectivamente, os procônsules das províncias com fortes guarnições podiam tentar
competir com o filho adoptivo do divino Júlio. Afinal, o procônsul da Macedónia,
Marco Licínio Crasso, neto do infortunado vencido em Carras, não reivindicara a honra
dos ricos despojos aquando do seu triunfo sobre os Bastarnos, cujo rei ele havia
assassinado com as próprias mãos? Em Julho de 27 a. C., Augusto conseguiu evitar que
o triunfador não dedicasse as armas do antagonista derrotado no templo de Júpiter
Feretrius, no Capitólio [encaixe Cowan].
Entretanto, em Janeiro do mesmo ano, efectuou-se a partilha das províncias romanas
entre o Senado e o princeps. Este aceitou, então, assumir a governação das províncias
da Gália, Hispânia e da Síria, mediante um imperium consular com a duração de dez
anos, ao passo que as restantes eram administradas por promagistrados, em
conformidade com os tradicionais princípios republicanos.
Esta repartição esteve na origem da distinção que os historiadores modernos fizeram
entre províncias «imperiais» e as «senatoriais» (também chamadas províncias do povo
456
Além disso, a primeira solução posta em prática pelo poder romano para resolver o espinhoso problema dos soldados
desmobilizados, a da distribuição de terras aos veterani, encontrou oposição nas classes superiores, que não viam com
bons olhos a entrega a militares de lotes fundiários, os quais julgavam pertencer-lhes por direito. Em 41 a. C., uma liga
de aristocratas romanos protestou contra a repartição de terrenos em solo itálico por mais de 50 000 veteranos; esta
sublevação contra o então triúnviro Octávio é conhecida pelo nome de «Guerra Civil Fluviana»; P. Cosme, Auguste,
Paris, Perrin, 2005, p. 57.
457
W. Schlüter, «The Battle of the Teutoburg Forest», in J. D. Wilson e R. J. A. Wilson (eds.), Roman Germany: Studies
in Cultural Interaction, Journal of Roman Archaeology Supplementary Series no. 32, pp. 125-159; A. Murdoch,
«Arminius’ masterstroke. The campaign of AD 9», Ancient Warfare, Special Issue (2009), pp. 52-61; do mesmo autor,
consulte-se a obra, subordinada ao mesmo tema, Rome´s Greatest Defeat. Massacre in the Teutoburg Forest, Londres,
2008; P. Wells, The Battle that Stopped Rome: Augustus, Arminius, and the Slaughter of the Legions in the Teutoburg
Forest, Londres, 2005.
184
romano). As atribuídas a Augusto albergavam as guarnições mais importantes: ao todo,
nelas haveria uma vintena de legiões, pelo menos. Nos anos subsequentes, o princeps
cedeu determinadas províncias suas ao Senado. Claro que Augusto não poderia
assegurar sozinho a governação provincial, a que cabe acrescentar o Egipto, regido por
um estatuto particular depois da sua conquista. O país nilótico foi confiado a um
membro da ordem equestre, portador do título de praefectus, a fim de prevenir a
eventualidade de um senador demasiado ambicioso não utilizar esta província tão
próspera como trampolim para ganhar o poder supremo.
Tal como Pompeio havia governado as províncias hispânicas a partir de Roma entre
54 e 49 a. C., Augusto exerceu o controlo das suas províncias e o comando das tropas
nelas estacionadas por meio de legados. Numa primeira fase, ele escolheu os últimos
entre os antigos pretores, já que ainda desconfiava dos ex-cônsules, habituados a
governar vastas províncias e a chefiar exércitos sob os seus próprios auspícios.
Gradualmente, as províncias consulares vieram a ser distribuídas aos legados
pretorianos enviados para aquelas que possuíssem só uma legião; para as que tinham
várias legiões, mandaram-se legados consulares. Neste caso, cada uma das legiões
ficava sob as ordens de um legado pretoriano. No Egipto, substituíram-se os legados
por prefeitos equestres.
O conjunto destas medidas militares e institucionais serviu para que Augusto se
mantivesse ao abrigo de atitudes hostis por parte dos procônsules que ainda
conservavam o comando de tropas - os da Ilíria (Illyricum), da Macedónia e de África.
Os dois primeiros viram-se progressivamente privados da chefia das legiões através da
criação das províncias imperiais da Panónia e da Mésia (Moesia).
Augusto também se preocupou com a sua própria segurança em Roma, que se
convertera numa cidade com aproximadamente 1 milhão de habitantes, e que havia
conhecido violentos tumultos depois da morte de Júlio César. A partir de 44 a. C.,
Octávio e Marco António tiveram uma guarda de corpo formada essencialmente por
veteranos de César e, depois, por soldados que continuaram nas fileiras a seguir à
batalha de Filipos. Isto inseria-se na tradição dos magistrados investidos do imperium
que, desde o século II a. C., eram acompanhados por tais escoltas armadas. Não tardou
a que fossem designadas como coortes pretorianas e, com este nome atravessariam a
história do Império romano até princípios do século IV d. C. Segundo uma hipótese
aventada não há muito, Augusto teria criado, desde 27-26 a. C., doze coortes de 500
homens (quingenariae) cada uma, três delas patrulhando Roma e montando guarda no
Palatino (onde residia o princeps), enquanto as demais estavam acantonadas nas
imediações da Urbs.
185
Todos estes soldados foram retirados da guarda pessoal dos triúnviros, a qual ainda
não se desmobilizara. Mais tarde, as coortes numeradas de X a XII adquiriram a
denominação de coortes urbanas, encontrando-se incumbidas de realizar tarefas
sobretudo no âmbito do policiamento. Procurando não ocasionar o antagonismo do
Senado, Augusto hesitou bastante tempo antes de nomear homens da ordem equestre
como comandantes dos pretorianos; quanto às três coortes urbanas, estiveram
primeiramente sob as ordens do prefeito da Cidade, pertencente à ordo senatorial. Com
efeito, o princeps esperou até 2 a. C. para, finalmente, nomear os primeiros dois
prefeitos do pretório – Quinto Ostório Escápula (Quintus Ostorius Scapula) e Públio
Sálvio Aper (Publius Salvius Aper) – na altura do banimento da sua filha Júlia.
Mas a benevolência dos Romanos em relação ao poder imperial supunha que os
habitantes da Urbs se sentissem, eles próprios, protegidos de duas ameaças
permanentes: a miséria e os incêndios. A luta contra os últimos representava um
verdadeiro jogo político, de que Augusto tomou plena consciência em 23 a. C., quando
um edil ambicioso, E. Rufo (Egnatius Rufus), adquiriu enorme popularidade ao
formar, com os seus próprios escravos, um corpo de bombeiros, no intento de melhor
proteger os Romanos das chamas. No ano seguinte, Augusto aumentou o número dos
escravos públicos encarregados de combater os fogos, além de adicionar outros
seiscentos que lhe pertenciam. No entanto, foi preciso que Roma fosse, uma vez mais,
pasto de chamas para que ele criasse, em 6 d. C., um corpo de sete coortes de 500
vigiles cada, especialmente adstrito ao policiamento nocturno e à prevenção de
incêndios. Os vigiles eram recrutados entre os libertos, para não parecerem uma nova
tropa de soldados a tempo inteiro, ocupando a Cidade e comandados por um prefeito
equestre. Assim, aquilo a que habitualmente se rotula de «guarnição de Roma»
resultou de uma sucessão de decisões empíricas que Augusto tomou ao longo do seu
principado.
Em 5 de Julho de 13 a. C., um dia após o seu regresso da Península Ibérica, Augusto
proferiu um discurso no Senado consagrado aos assuntos militares: anunciou a criação
oficial de um exército permanente e profissional, fixando em doze o número de anos de
serviço nas coortes pretorianas, em 16 (acrescidos de mais quatro em reserva) nas
legiões e nas coortes urbanae, e em 25 nas tropas auxiliares e da frota 458. Durante este
período, os soldados não gozavam do direito de se casarem, já que se considerava a vida
conjugal incompatível com o ofício das armas. A «proibição matrimonial» trata-se,
quiçá, do aspecto mais controverso da vida militar, tanto para os soldados na
Antiguidade, como para os historiadores hodiernos. Augusto promulgou duas leis cujo
teor parece contrastante: por um lado, a Lex Papia Poppaea incentivava a formação de
458
A. K. Goldsworthy, Augusto, pp. 353-354. Díon Cássio situou a introdução da nova regulamentação para o exército
em 13 a. C.
186
famílias e a procriação; por outro, uma lei ou decreto de que desconhecemos o nome
interditava os soldados de se casarem 459, impedindo-os, assim, de constituír uma
família legítima. Esta justaposição de medidas manifesta dois objectivos contrapostos,
relacionados com a organização da comunidade romana no tempo augustano.
No início e em meados da época republicana, o exército se alimentava das famílias e
os militares serviam apenas por um período não muito longo. O ideal do «soldado-
camponês» estava enraizado na prática e na lenda: o agricultor que abandonava a sua
casa, a família e os campos para servir a comunidade, por vezes em zonas distantes,
depois regressando de novo ao arado. No decurso do século III a. C., este fenómeno
transformou-se mais num mito do que uma realidade, sendo cada vez menos os
mancebos das áreas rurais que se alistavam e serviam no exército para, pouco depois,
tornarem a casa. Pelo contrário, eles achavam-se crescentemente ligados aos seus
generais e às recompensas que poderiam receber após as batalhas e as grandes
campanhas.
Culminando nas guerras civis entre Pompeio e Júlio César, e de Octávio contra Marco
António, os soldados passaram a representar mais uma ruptura face à comunidade
cívica do que a sua pedra angular. Perante esta situação, Augusto deu-se conta que teria
de controlar o exército, a fim de impedir que continuasse a ser uma força ameaçadora,
que, todavia, o havia guindado ao poder supremo: ele actuou a nível organizativo,
controlando pessoalmente ou através de subordinados seus de confiança, o
recrutamento, o desdobramento e os mandos de quase todas as legiões aboletadas nas
províncias460. Ora isto levou à eliminação da capacidade de outros levantarem um
exército contra o princeps.
Augusto teve igualmente que lidar com as expectativas dos soldados quanto às
recompensas que almejavam auferir graças às promessas de gratificações dos seus
comandantes, como incentivo para o serviço militar durante os conflitos intestinos dos
primeiros quinze anos do seu mandato. Depois de desmobilizar elevado número de
tropas, pagando-lhes com numerário e lotes de terra, Augusto constatou que a nova
comunidade que tinha previsto não se podia dar ao luxo, política ou financeiramente,
de continuar a aceitar o facto de os soldados a chantagearem, no intuito de obterem
avultadas, dispendiosas e imprevisíveis recompensas.
A solução de Augusto rompia com o modelo do «soldado-camponês» e estabeleceu
uma nítida separação da «família militar» da família civil, enquanto base do
recrutamento, da organização e da fidelidade do futuro exército 461. Embora escrevendo
459
C. M. Gilliver, «The Augustan Reform and the Imperial Army», p. 187, 197 (nota 3).
460
A. Lintott, The Romans in the Age of Augustus, Oxford/Malden, MA, Wiley-Blackwell, 2010, pp. 159-165.
461
R. C. Knapp. Los Olvidados de Roma. Prostitutas, forajidos, esclavos, gladiadores y gente corriente, Barcelona,
2011, cap. 6 - «Una vida en armas: los soldados», p. 254-255.
187
no século II, Artemidoro de Daldis mostra o que estava a suceder sob a égide do
primeiro imperador de Roma, na sua interpretação do sonho «empreender a carreira
de soldado»:
«Alistar-se como soldado ou servir no exército augura a morte para os que padecem de alguma espécie de
enfermidade, pois um homem que se alista muda completamente de vida. Deixa de ser um indivíduo que
toma as suas próprias decisões e entra numa nova vida, deixando para trás a anterior» ( Oneirocritica,
2.31).
Na realidade, a Lex Papia Poppaea e as reformas militares concebidas por Augusto
apontavam na mesma direcção: recriar ou criar uma unidade básica de vida e
responsabilidade, tanto na esfera civil como na militar. Este exército emergente tinha
tudo aquilo que faltava ao que Augusto conhecera na sua juventude. Criar unidades
deixou de ser um processo que afectava as famílias civis por causa das conscrições. O
tempo de serviço militar, estipulado entre os vinte e os 25 anos, significava que só era
necessário recrutar cerca de 7 500 novos soldados anualmente entre os cidadãos de
Roma. Os homens recrutados só deviam fidelidade a Augusto, fosse directamente ou
por meio dos seus representantes. Assim, fixou-se um sistema de recompensas que
incluía as vias de promoção hierárquica, o pagamento regular dos soldos e a isenção de
certas tarefas (corveias), terminando com a predisposição para as gratificações e as
expectativas por estas geradas462.
No que respeita ao dever militar, o compromisso geral via-se assegurado, ao apartar
os soldados das expectativas civis e estimulando-os a que recorressem aos seus
camaradas, em busca de apoio e relações sociais, em vez de o fazerem em relação às
famílias civis. Frequentemente, eram afastados das suas terras-natais, dos seus
agregados familiares, permanecendo longe durante muitos anos, não raramente ao
longo do resto das suas vidas. A prova mais clara do êxito deste processo capta-se no
elevado número de dedicatórias funerárias de uns milites para outros. Eis dois
exemplos:
«Aqui jaz Gaius Iulius Reburrus, soldado da legio VII Gemina Fortunata, nado em Segisama Brasaca,
depois de ter vivido 54 anos e servido [no exército] durante 24. Licinius Rufus, soldado da mesma legião,
dedica-lhe esta lápide» (CIL II 4157; Tarraco/Tarragona, Espanha);
«Em memória de Aurelius Vitalis, soldado da legio III Flavia, o qual serviu durante sete dos 25 anos que
viveu. Flavius Proculus, participante na incursão germânica, soldado da referida legião, e Vitalis, herdeiro
em segundo grau, erigiram este monumento em honra do seu excelente camarada» (CIL XIII 6104 = ILS
2310, Speyer, Alemanha).
Estes epitáfios diferem muito das dedicatórias familiares que predominavam no
mundo civil. Os soldados formavam, entre eles, uma «família», pelo que era preciso,
aos olhos de Augusto, proibir o conubium (casamento)463. Para criar tal «família
462
Sobre os direitos legais dos soldados, veja-se B. J. Campbell, The Emperor and the Roman Army, Oxford, 1984, cap.
4.
463
Sobre o casamento, o sexo e a vida familiar entre os soldados, consultem-se: B. J. Campbell, «The marriage of soldiers
under the empire», JRS 68 (1978), pp. 153-166; S. E. Phang, The Marriage of Roman Soldiers (13 BC-AD 235): Law
and Family in the Imperial Army, Leiden, 2001; W. Scheidel, «Marriage, Families, and Survival», in P. Erdkamp (ed.),
A Companion to the Roman Army, pp. 417-434. Segundo A. K. Goldsworthy, «A razão de ser da medida seria, sem
dúvida, a relutância em alimentar famílias ou pagar a viúvas e órfãos, bem como o desejo de manter as legiões
suficientemente móveis para poderem estar prontas para serem transferidas de uma ponta à outra do Império» (cf.
Augusto, pp. 455-456. Não se sabe se a proibição estabelecida por Augusto quanto ao conubium ocorreu no ãmbito das
reformas militares mais abrangentes implementadas em 13 a. C. ou 6 d. C. «Dependendo da data da reforma, alguns
188
militar», era indispensável cortar pela raiz a base da família civil, isto é, a procriação e,
com esta, a projecção futura enquanto unidade da dita família civil. Do mesmo modo
que os filhos e a transmissão de uma herança constituíam a razão de ser da família civil,
a abstenção de procriar era a chave para a continuidade da «família militar». Com
efeito, só neutralizando a possibilidade de ter filhos de maneira legítima é que se podia
dar a ruptura da conexão do soldado com a orientação da família civil, garantindo
assim que ele se centraria na «família militar». Vivendo vários séculos depois do
reinado augustano, Tertuliano salientou que o celibato afastava o homem da sociedade
e criava outra dentro da mesma, no caso do autor a cristã, e no de Roma, a militar.
Claro que a abstenção de se procriar, juntamente com o objectivo radical da criação
de uma «sociedade militar»464, não tinha a ver com o sexo, as mulheres ou os filhos em
sentido lato. Os soldados dispunham sempre da liberdade para terem contactos sexuais
e de se juntarem a mulheres, já que nenhuma norma o interditava. A proibição
introduzida por Augusto referia-se especificamente à formação de famílias legítimas: o
que se pretendia era que tais relações se mantivessem externas às vidas dos milites.
Mas a significativa diminuição das guerras em grande escala após Augusto acarretou
como consequência as legiões se converterem gradualmente em forças aquarteladas.
A «bênção» que pressupunha a ausência de mulheres e filhos na peripatética vida
militar acabou por se tornar numa «maldição», à medida que as legiões passaram a
ficar aboletadas em bases militares, logo se tornando mais sedentárias. Ademais, o
gradual afrouxamento do rigor impositivo das normas contra a procriação –
autorização para se gozar dos direitos de um homem casado (sob Cláudio), a
possibilidade de exarar disposições testamentárias e sucessórias que permitiam aos
soldados instituir como herdeiros filhos ilegítimos (sob a dinastia Flávia, bem como nos
principados de Trajano e de Adriano) – que teve por corolário a autorização, durante o
reinado de Septímio Severo, para os soldados poderem viver com as suas mulheres,
quando não estivessem de serviço (no entanto, este imperador não aboliu a proibição
do conubium, como durante largo tempo se pensou; recentemente a descobriu-se um
diploma militar que prova tal facto), mostrou-se conforme à acrescida imobilidade das
legiões e à criação de acampamentos e fortes de carácter permanente.
O sistema que propugnava uma «sociedade militar» à parte acabou por ruir. No
século III da nossa era, já tinham desaparecido os vestígios dos objectivos augustanos
de eliminar a aparição de senhores da guerra por meio do estabelecimento de uma
família militar que se pautasse por uma fidelidade exclusiva ao pater familias militum.
soldados poderiam estar ainda a servir acompanhados das respectivas esposas, já que teriam casado antes da proibição.
Outros ignoraram-na simplesmente, forjando relações e criando famílias apesar de ser ilegal – uma realidade a que as
autoridades fechavam de facto os olhos» (ibidem, p. 456).
464
R. MacMullen, «The legion as society», Historia 33 (1984), pp. 440-456.
189
Com o tempo, a experiência ensaiada por Augusto veio a estatelar-se «de encontro às
rochas da natureza humana»465.
Como dissemos, Augusto também regulamentou os procedimentos aplicados na
desmobilização, estipulando um prémio ou gratificação para os soldados que tivessem
cumprido o seu tempo de serviço (Díon Cássio, História rom. 54.25). Com esta medida,
ele tencionava pôr termo aos contínuos pedidos de parcelas de terra que haviam
agitado o último século da República. Desde então, o termo veteranus correspondeu a
um estatuto juridicamente definido, atribuído ao soldado desmobilizado, que tinha um
determinado número de direitos e privilégios.Desta maneira, Augusto julgava satisfazer
tanto o exército que o ajudara a subir ao poder, como os proprietários fundiários
italianos (outra base de apoio essencial do regime), que não deviam mais recear ver-se
expropriados em proveito das tropas. Numa primeira etapa, a imensa fortuna de
Augusto serviu para conciliar estas duas exigências, ao instaurar-se um prémio
(praemium) de reforma para os veteranos do pretório, das legiões e das coortes
urbanae466. Como as superfícies disponíveis tendiam a diminuir, o pagamento desta
espécie de «pensão» funcionaria como substituto da atribuição de lotes de terrenos
que, todavia, ainda se atesta até ao reinado de Vespasiano, em Itália, e até ao de
Adriano noutras regiões.
A ideia do praemium que Augusto introduziu não foi motivada pelo desejo de
instaurar uma segurança social que garantisse aos soldados meios de subsistência
depois dos anos passados nas fileiras: significou antes uma «estratégia de controlo
político». Suetónio diz que a medida visava impedir que os veterani realizassem um
golpe de estado, como antes já havia acontecido 467. O próprio imperador terá descrito o
interesse do praemium ao Senado, no sentido de que servia para manter os soldados
numa situação em que não poderiam, sob o pretexto da pobreza, «desejar seja o que for
que pertence aos demais … e que não se sintam tentados a mal agir» 468.
No ano 6 d. C., Augusto necessitou de novas fontes de financiamento para prosseguir
com o pagamento do prémio aos veteranos. De facto, uma sublevação generalizada na
Ilíria (Illyricum) ameaçou a fronteira nordeste de Itália, o que obrigou Augusto a
prolongar a duração do serviço militar até aos 16 anos para os pretorianos e até aos 20
para os legionários. Estas medidas provocaram descontentamento entre os soldados,
465
R. C. Knapp. Los Olvidados de Roma, p. 257.
466
Assim, primeiro ainda como triúnviro e depois como imperador, Augusto entregou 12 000 sestércios como prémio de
licenciamento aos simples legionários e, aos soldados da guarda pretoriana, 20 000: S. Phang, Roman Military Service:
Ideologies of Discipline in the Late Republic and Early Principate, Cambridge, 2008, p. 163. Eram montantes
certamente substanciais, que permitiam aos veteranos usufruir de um final de vida confortável (um ano de salário de um
legionário valia, ao tempo, cerca de 1 000 sestércios (P. Southern, The Roman Army: A Social and Institutional History,
p. 167)
467
Augusto, 4.4. S. de Valeriola, «Clin d’oeil historique: La retraite des légionnaires romains», Université Catholique de
Louvain (2014-2015), pp. 1-2 (http://sites.uclouvain.be/chairepensions/).
468
Díon Cássio, Hist. romana, 53.10.
190
pelo que o princeps procurou então oferecer provavelmente uma compensação aos
veteranos, subindo o montante do seu prémio de licenciamento. Mas o seu património
não lhe permitia fazer face, sozinho, às despesas com tais gratificações. Augusto
começou por solicitar ao Senado que lhe propusesse soluções para o problema. Na falta
de respostas, ele criou em 6 d. C., um tesouro militar 469 (o aerarium militare, objecto
de comentários mais alargados noutro capítulo), em que depositou 170 milhões de
sestércios, comprometendo-se a proceder, a seguir, a outros pagamentos, voltando a
apelar aos senadores. Porém, Augusto não aceitou qualquer das suas propostas e
recusou, igualmente, os donativos de particulares que poderiam desenvolver perigosas
relações clientelares com o exército. Augusto asseverou ter encontrado nos arquivos de
Júlio César o projecto de um imposto de 5% sobre as heranças dos cidadãos romanos
(vicesima hereditatum et legatorum); o imposto veio a ser implementado, incidindo
sobre as heranças a partir de certo montante (100 000 sestércios?), quando destinadas
a pessoas não vinculadas por parentesco directo com o defunto. Como as heranças de
pai para filho estavam isentas do mesmo, esta medida tinha a vantagem de incentivar,
indirectamente, o aumento da natalidade (Díon Cássio, Hist. rom. 55.25; Suetónio,
Augusto, 49).
Mas o aerarium militare foi alimentado por outros impostos, igualmente novos, além
da vicesima hereditarium: a centesima rerum venalium, que consistia na cobrança de
1% sobre as vendas feitas em leilões; a vicesima quinta venalium mancipiorum, que
retirava 4% dos lucros do comércio dos escravos; e, por último, a vicesima libertatis,
5% sobre os encetamentos dos servi. Embora os Romanos mais ricos não encarassem
de bom grado estas novas medidas fiscais, achavam-nas todavia preferíveis à política de
distribuição de terras aos veteranos470.
469
D. Shotter, Augustus Caesar, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1991, p. 50.
470
S. Phang, Roman Military Service…, p. 164.
471
Y. Le Bohec, L’armée romaine, pp. 197-198; D. B. Campbell, The Rise of Imperial Rome, AD 14-193, Oxford, 2013, pp.
31-44.
191
auxiliares germanos, decidiu montar uma armadilha mortal ao legado que vinha à
cabeça das XVIIª, XVIIIª e XIXª legiões472.
Ao ascender ao trono imperial, Tibério deparou com o descontentamento das legiões
acantonadas na Panónia e no Reno. O impacto das reforma das instituições militares
concebida por Augusto em relação às condições de serviço culminou em violentos
tumultos em 14 d. C473. Efectivamente, quando Augusto faleceu, os cidadãos que lhe
tinham prestado juramento de fidelidade, no recrutamento, podiam considerar-se
desvinculados do compromisso assumido, atitude que se coadunava com as tradições
republicanas. Estes legionários sairam particularmente desgastados dos últimos
conflitos do Principado e esperavam do novo imperador, que anteriormente os
comandara, melhorar a sua sorte. As reivindicações das tropas incidiram na duração do
tempo de serviço – alguns homens terão ficado nas fileiras durante trinta anos -, no
montante do soldo, na disciplina e nos moldes em que se processava o licenciamento
(Tácito, Ann. 1.17).
A partir daí, a concessão de lotes de terra, cada vez mais distantes de Itália, não
interessavam aos veteranos, bem como o prolongamento do tempo de serviço, que os
impedia de se dedicarem à agricultura. Os motins expressavam também o rancor destes
soldados face aos seus camaradas da guarnição de Roma, que beneficiavam de um
serviço menos penoso e de remunerações mais elevadas. Tibério 474 enviou o seu filho à
Panónia e o seu sobrinho Germânico à Germânia. O último cedeu perante certas
reivindicações, ao desmobilizar os legionários que contavam com vinte anos de serviço
e ao limitar as obrigações militares dos que já tivessem cumprido dezasseis. O
imperador e o Senado confirmaram estas concessões, mas no ano seguinte resolveram
revogá-las.
Calígula, por seu lado, acabou por retirar todas as consequências da partilha das
províncias operada entre Augusto e o Senado, em 27 a. C., ao privar o último procônsul
de África, que ainda conservava uma legião, do comando das tropas (39 d. C.) 475. A
legio III Augusta foi então colocada sob as ordens de um legado de Augusto pro
praetor, escolhido pelo imperador entre os senadores com estatuto pretoriano. Tácito
(Hist. 4.48) e Díon Cássio (Hist.rom. 59.20.7) explicaram esta decisão com base na
psicologia de Calígula, que alimentava fortes suspeições por senadores demasiado
poderosos. Na medida em que o legado exercia legalmente a sua autoridade num
472
Além da bibliografia anteriormente citada, leia-se a descrição de A. K. Goldsworthy sobre a Clades Variana: Augusto,
pp. 451-461.
473
J. J. Wilkes, «A Note on the Mutiny of the Pannonian Legions in A.D. 14», CQ LVI (1963), pp. 268-271.
474
D. Shotter, Tiberius Caesar, 2ª edição, Londres/Nova Iorque, 2004, pp. 23-24.
475
A. A. Barrett, Caligula. The Corruption of Power, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2001, pp. 115-123; B. Rankov,
«Military Forces», The Cambridge History of Greek and Roman Warfare, Vol. II: Rome from the Late Republic to the
Late Empire, Cambridge, 2007, p. 37.
192
distrito militar, aludiu-se igualmente à vontade imperial de preparar uma expansão
territorial nessa região.
Cláudio tomou medidas em prol dos auxiliares. Inicialmente, o comando destes foi
confiado a chefes da mesma origem étnica, admitidos na ordem equestre, os quais
davam, por vezes, os seus nomes às unidades que comandavam. Os batavos Caius
Iulius Civilis, que se rebelou em 69-70, e Flavius Cerialis (citado nas tabuinhas de
Vindolanda), estariam provavelmente entre os últimos. As carreiras destes oficiais
equestres foram regulamentadas pelo sucessor de Calígula (Suetónio, Cláudio, 25)476: a
primeira etapa consistia na chefia de uma coorte auxiliar quingenaria, com o posto de
prefeito, a segunda no comando de uma ala de cavalaria quingenaria, ainda mantendo
a patente de prefeito. A terceira fase implicava a passagem para uma legião e pela
atribuição do posto de tribuno angusticlavo (tribunus angusticlavus), durante um ano
ou seis meses, ou pelo comando de uma coorte auxiliar milliar (de cidadãos
romanos477).
Cláudio deu um verdadeiro rosto ao serviço militar equestre imperial, ao criar a série
das três militiae: a prefeitura de coorte (unidade contando com 500 homens), seguida
do tribunato de legião ou do tribunato de uma coorte milliaria (1000 homens) e,
depois, a prefeitura de uma ala de cavalaria (unidade com 500 homens), dos seis
tribunos que uma legião englobava, o primeiro pertencente à ordem senatorial, os
restantes cinco à equestre. Realcemos que Cláudio preferiu uma hierarquia que
conferisse acrescido valor ao tribunato legionário, isto é, ao comando sobre os cidadãos
romanos; mas foi somente durante o seu principado que se observa a sequência
prefeitura de coorte-prefeitura de ala-tribunato legionário. Depois deste reinado,
abandonou-se o sistema e restabeleceu-se a proeminência da prefeitura de ala 478.
O número de postos ocupados por oficiais equestres jamais terá excedido os 450.
Consequentemente, alguns cavaleiros romanos, desejosos de exercer um comando
militar, optavam, às vezes, por abraçarem a carreira das armas mediante o posto de
centurião ex equite romano. Outros, por seu turno, contentavam-se com um tribunato
legionário com a duração de seis meses (sexmentris), em lugar de um ano. Os
comandos das tropas auxiliares não se viam limitados no tempo. Em certos casos, um
oficial equestre podia exercer também vários comandos sucessivos dependendo da
mesma milícia. Foi igualmente a Cláudio que os auxiliares e seus filhos deveram a
concessão da cidadania romana, depois de servirem ao longo de 25 anos. Observa-se
476
H. Devijver, «Suétone, Claude 25 et les milices équestres», Anc. Soc., I (1970), pp. 69-81; idem, «The Career of M.
Porcius Narbonensis: new evidence for the reorganization of the Militia Equestres by the Emperor Claudius», Anc. Soc.
III (1972), pp. 165-191.
477
M. P. Speidel, «Citizen Cohorts in the Roman Imperial Army», T. American Phil. Ass. 106 (1976), pp. 339-348.
478
S. Demougin, «Milices équestres», in J. Leclant (dir.), Dictionnaire de l’Antiquité, Paris, 2005, p. 1419.
193
esta recompensa em abundantes testemunhos epigráficos, sob a forma de diplomas
militares.
479
B. W. Jones, The Emperor Domitian, Londres/Nova Iorque, 1992, p. 131. As tropas romanas recebiam, antes do
reinado de Domiciano, o soldo repartido em três fracções (stipendia), no primeiro dia de Janeiro, em Maio e Setembro.
Com Domiciano, passou a haver um quartum stipendium, correspondente a 3 aurei: M. A. Speidel, «Roman Army Pay
Scales», p. 92; J. Jahn, «Zur Entwiclung römischer Soldzahlungen von Augustus bis auf Diokletian», Studien zu den
Fundmünzen der Antike 2 (1984), pp. 53-55; B.J. Campbell, The Roman Army 31 BC-AD 337. A Sourcebook, Londres,
2ª edição, 1996, pp.20-23.
480
M. A. Levi, «Le iscrizioni di Lambaesis e l’esercito di Adriano», RAL 9.5 (1994), pp. 711-723. Abordaremos este
assunto mais detidamente no Capítulo VII.
194
mais compacta), parece-nos uma teoria mais assente em conjecturas do que em dados
concretos. Esta baseia-se parcialmente numa passagem de Arriano de Nicomédia,
amigo íntimo do imperador e legado da Capadócia entre 131 e 137 d. C, que descreve, na
sua Ordem de marcha [Ectaxis] contra os Alanos, uma formação de infantaria
concebida para suportar a uma carga de cavalaria couraçada, a propósito da XVª legião
Apollinaris de Satala e de uma vexillatio da XIIª legião Fulminata de Melitene.
A guarnição de Roma481
195
seguimento das precedentes, de X a XII; posteriormente, instituiram-se e instalaram-se
mais duas unidades, uma em Lugdunum e outra em Cartago. As três primeiras
passaram a quatro de 41 a 47, a sete, sob Cláudio, e diminuidas para quatro por Vitélio,
em 69, mas tornando-se miliárias. Foi possivelmente Vespasiano que as reconduziu á
categoria de quingenárias. Em finais do século II, Septímio Severo terá alegadamente
aumentado o seu efectivo para 1500 homens por unidade, mas diversos especialistas
modernos consideram isto pouco plausível. Servindo de guarda da Urbs, ou melhor,
como uma espécie de força policial municipal, os urbaniciani ficaram sob as ordens do
prefeito de Roma no século I, mas no decurso do século II passaram a estar debaixo da
alçada do prefeito do pretório. Cada coorte tinha como comandante um tribuno
coadjuvado por seis centuriões, tal como as coortes pretorianas (com as quais
partilharam o acampamento até 270, ano em que os urbaniciani receberam a sua
própria caserna, no Campo de Marte).
A localização topográfica dos acantonamentos dos corpos de tropas pretorianas e
urbanas sugere que o poder imperial tentou situá-los fora do coração da Cidade e do
pomerium. Aos pretorianos e aos urbaniciani (recrutados entre gente simples de
Itália), vieram a juntar-se cerca de 500 cavaleiros ligados pessoalmente a Augusto,
como antes o haviam sido em relação a Júlio César: os Germani corporis custodes487
(guardas de corpo germanos), também qualificados de Batavi. Esta guarda imperial a
cavalo ficou primeiramente aboletada no Trastevere, durante o período Júlio-Cláudio.
Licenciada por Augusto depois da derrota de Varão na Germânia, voltou a ser formada
antes da morte do primeiro princeps, e depois novamente dissolvida por Galba em 68
d. C.
Trajano criou uma nova guarda, recorrendo a auxiliares que serviram nas fronteiras do
Império, tornando-se conhecidos pela designação de equites singulares Augusti488:
estes cavaleiros foram instalados em duas casernas sucessivas, localizadas perto do
actual bairro de Latrão, a sudeste de Roma; até 138 d. C., devem ter cumprido 27 a 29
anos de serviço, depois diminuindo para 27. Encontravam repartidos por turmae, cada
uma comandada por um decurião, o primeiro dos quais tinha o posto de princeps. No
topo da hierarquia, estava um tribuno (mais tarde dois, a partir de Septímio Severo),
subordinado, por sua vez, aos prefeitos do pretório.
Por sua vez, desde o início, cada coorte de vigiles489 foi aboletada numa caserna afecta
à vigilância das regiões urbanas (em número de sete coortes, na razão de uma em cada
duas das catorze regiones em que Augusto dividira a Cidade), todas elas possuindo
vários excubitoria (sing. excobitorium, posto de guarda), a fim de garantir um controlo
mais eficaz do espaço citadino. Os vigiles apresentavam-se equipados de lamparinas e
archotes (para fazerem as rondas nocturnas), bem como de escadas, cifões e baldes,
elementos imprescindíveis para a extinção de incêndios.Dispunham, ainda, de
machados e artilharia para desmantelarem edifícios, quando havia o perigo da
propagação das chamas. Cada coorte de vigiles era enquadrada por um tribuno, um
centurião com o título de princeps e por seis outros centuriões que, em geral,
correspondiam a ex-soldados do pretório, amiúde chamados a seguir para liderarem
uma centúria de urbaniciani e, por fim, outra de pretorianos.
Ao todo, os efectivos da guarnição de Roma ascenderiam a cerca de 7 000 homens,
pelo menos, sob o Principado de Augusto, a 12 500 durante o reinado de Cláudio, a
aproximadamente 13 000-20 000 no de Trajano, vindo a subir ainda mais no tempo de
487
Consultem-se: H. Bellen, Die Germanische Leibwache der römische Kaiser des jülisch-claudischen Hauses,
Wiesbaden, 1981; M. P. Speidel, «Germani corporis custodes», Germania 62 (1984), pp. 31-45; idem, Riding for
Caesar: The Roman Emperor’s Horse Guards, Cambridge, Mass, 1994, pp. 12-31.
488
M. P. Speidel, Die “Equites Singulares Augusti”. Begleittrupe der römischen Kaiser des zweiten und dritten
Jahrhunderts, Bona, 1965; idem, Die Denkmäler der Kaiserreiter (“Equites Singulares Augusti”), Bona, 1993.
489
Apesar de antiga e datada em certos aspectos, ainda se reveste de utilidade a monografia de P. K. Baillie-Reynolds,
The Vigiles of Imperial Rome, Oxford, 1926. Para um estudo mais recente e bem documentado, veja-se R. Sablayrolles,
Libertinus miles. Les cohortes de vigiles, Roma, 1996. O último autor salientou que a função primeira dos vigiles
radicava na prevenção dos fogos, pelo que patrulhavam as ruas de Roma, à noite, centrando a sua atenção sobre os sítios
mais atreitos a tornarem-se pasto de chamas. Além disto, os vigiles, nessas rondas nocturnas, efectuavam também
detenções de marginais. Conduziam os criminosos até à presença do prefeito. Assim, à semelhança do prefeito do
pretório e o da Cidade, o prefeito dos vigiles tornou-se, de igual modo, um dos principais juízes da capital.
196
Marco Aurélio – 15 000 ou 20 000. Assim, era em Roma que se concentrava o maior
número de tropas em todo o Império.
Uma presença militar tão forte conduziu a que a guarnição de Roma tivesse claro peso
decisório na transmissão do próprio poder imperial, a tal ponto que a aclamação de um
novo princeps pela guarda pretoriana se converteu numa etapa obrigatória da sua
investidura. Desde o principado de Tibério, o prefeito do pretório Sejano, adquiriu
tamanho poder que o sucessor imediato de Augusto teve de recorrer ao prefeito dos
vigiles, Laco, e às suas coortes para eliminar a ameaça representada por Sejano em 31
d. C. (Díon Cássio, Hist. rom. 58.12.7). Os pretorianos, como é sabido, vieram a
desempenhar um papel decisivo pouco mais tarde, no assassinato de Calígula e na
ascensão ao poder de Cláudio, em 41 d. C. (Díon Cássio, Hist. rom.,59.29; Suetónio,
Cláudio, 10), de Nero em 54 (Tácito, Ann. 12.68-69) e de Otão, em 68 (Tácito, Hist.
1.36)490.
No dia 31 de Dezembro de 192, Cómodo sucumbiu, vítima de uma conjura em que
esteve envolvido Leto (Laetus), o prefeito do pretório (Díon Cássio, Hist. rom. 72.22;
Herodiano, História, I, 16-17; História Augusta, Cómodo, 17). Não admira então que os
imperadores cumulassem de favores a guarnição, além de tentarem evitar, por outro
lado, que se concentrasse demasiado poder no comando da mesma. Se o prefeito do
pretório acabou por acumular, no século II, o comando das coortes pretorianas e
urbanae, bem como o dos equites singulares Augusti, o certo é que ele jamais exerceu
autoridade sobre os vigiles. Enquanto corpo de elite, os pretorianos beneficiavam de
um soldo anual superior ao dos legionários – possivelmente 750 denários em lugar dos
225 auferidos à data da morte de Augusto – e de um tempo de serviço fixado em 16
anos em vez de 20. Quanto aos urbaniciani, serviam o mesmo número de anos do que
os legionários, mas auferiam de um soldo mais alto, cifrando-se em 375 denários anuais
em 14 d. C. Além disso, a partir de 65 d. C., os pretorianos receberam de Nero rações
gratuitas de trigo como recompensa pela sua lealdade durante a conspiração
maquinada por Pisão (Tácito, Ann. 15.72; Suetónio, Nero, 10). Os vigiles, por seu lado,
recebiam em princípio só uns 200 denários por ano no período augustano, durando o
seu serviço entre os 14 e os 16 anos; no entanto, ao fim de três anos em funções, viam-
se integrados na plebe frumentaria: tratava-se de um dos raros privilégios que tinha o
corpo das tropas subalternas. Mais tarde, os seus soldos foram alinhados com os
recebidos pelos auxilia.
Assim, era expectável que desde cedo se gerasse um clima de tensão entre as tropas da
Cidade e os exércitos estacionados junto das fronteiras: desde a morte de Augusto, os
legionários amotinados da Panónia e da Germânia manifestaram o seu rancor contra os
soldados privilegiados que compunham a guarnição de Roma. O conflito civil de 68-69
acentuou ainda mais esta oposição quando Vitélio e, a seguir, Vespasiano entraram em
Roma à frente das suas tropas. Para satisfazer as legiões da Germânia que o ajudaram a
subir ao poder, Vitélio aumentou o número de coortes pretorianas para dezasseis, e os
efectivos de cada uma delas subiu para 1000 homens, com o intuito de nelas inserir os
seus legionários mais fiéis. Todavia, depois Vespasiano revogou provavelmente estas
medidas.
Mas deixando de parte a crise do chamado «ano dos quatro imperadores» (69 d. C. 491),
o remanescente do exército encontrava-se, ainda assim, representado em Roma: com
efeito, realizavam-se trocas com regularidade, por forma a atenuar a animosidade dos
exércitos provinciais relativamente à guarnição da capital e, também, para contribuir
para um adequado funcionamento da administração: por um lado, os pretorianos
podiam continuar as suas carreiras nas legiões enquanto centuriões. Certos equites
singulares Augusti até chegaram a ser promovidos a decuriões nas alas da cavalaria
490
J. L. Kerr, The Role and Character of the Praetorian Guard and the Praetorian Prefecture until the Accession of
Vespasian, tese para obtenção do PhD, Glasgow, Universidade de Glasgow, 1991, pp. 41-140. M. Jallet-Huant, «Quel fut
le rôle politique des Prétoriens dans la nomination et l’élimination des empereurs?», Les Mondes Antiques, 2 (janvier-
février 2007), pp. 42-49.
491
Dois estudos sobre este ano atribulado e violento: K. Wellesley, The Year of the Four Emperors, 3ª edição, Londres,
2000, e P. Cosme, L’année des quatre empereurs, Paris, 2012.
197
auxiliar, ao passo que os decuriões desta guarda de corpo reuniam todas as
possibilidades de se tornarem centuriões legionários. Por outro lado, cada coorte de
vigiles estava sob as ordens de um tribuno, que correspondia a um antigo primus pilus
de uma legião, o qual podia prosseguir a carreira depois entre os urbaniciani e os
pretorianos. Havia também primipili chamados a Roma, talvez para servirem como
conselheiros do estado-maior, mas ainda estão por apurar as funções concretas deste
numerus primipilarium.
Na capital, existiam também destacamentos de marinheiros: os pertencentes à frota de
Misenum, encontravam-se aquartelados no Castra Misenatium, decerto construído no
período dos Flávios e situado numa das encostas do Mons Oppius, nas proximidades do
Amphitheatrum Flavium (popularmente conhecido como Coliseu) e da principal
«escola» gladiatória, o Ludus Magnus; quanto ao contingente da classis de Ravenna,
estava no Castra Ravennatium, que talvez se localizasse na região transtiberina 492. A
partir da inauguração do anfiteatro por Tito em 80 d. C., esses soldados tinham como
incumbência desfraldar e recolher o velum, o toldo gigante que se utilizava no Coliseu,
para proteger os espectadores da luz do sol, no Verão (ou da chuva), durante os
espectáculos aí organizados; além disso, também desempenhariam o papel de correios.
Numa caserna localizada no Monte Célio (Caelius) havia soldados destacados das
legiões provinciais, que nas fontes epigráficas aparecem referidos como peregrini e
frumentarii493: actuavam sobretudo como mensageiros, levando a cabo missões mais
ou menos secretas a mando do imperador. De acordo com hipóteses recentemente
aventadas, eles eram designados como frumentarii pelo facto de beneficiarem de
rações gratuitas de trigo, e a de peregrini porque os soldados que estavam em regime
de permanência em Roma, bem como os seus habitantes os rotulavam de
«provinciais», mesmo se fossem cidadãos romanos. Criaram-se ainda (como atrás
dissemos) novas cohortes urbanae, que se enviaram para ficar alojadas em Lugdunum
e Cartago, afora as aboletadas em Puteoli (actual Pozzuoli) e Óstia. Além disso, estas
duas cidades ainda acolheram, cada uma, uma coorte de vigiles.
As legiões494
198
cada. Em tempo de paz, as legiões nem sempre estavam completas, por razões
económicos. Uma centúria compreendia 80 homens (Pseudo-Higino, De munitionibus
castrorum, 1) e duas centúrias formavam um manípulo.
Cabe indagar que papel táctico os manípulos ainda desempenhariam depois da criação
das coortes. Na sua maioria, os legionários pertenciam à arma de infantaria, mas cada
legião englobava um contingente de 120 cavaleiros (Flávio Josefo, Bell. Iud. III, 6, 2). O
número de soldados das centúrias da primeira coorte viu-se sem dúvida duplicado no
fim do século I ou no começo do II d. C.: possuíam, então, 160 homens, em vez de 80
(Pseudo-Higino, De mun. Castr.).
De acordo com S. S. Frere 495 e L. Keppie496, esta particularidade remontaria ao reinado
de Vespasiano, que terá recolocado na primeira coorte os veteranos que se mantiveram
nas fileiras já depois do seu licenciamento. Permanecendo no exército para além do
tempo de serviço legal, com a designação de evocatus, alguns deles haviam protestado
veementemente em relação às suas condições de vida no decurso dos motins de 14 d. C.
Até aí, estes «reservistas» formavam um destacamento com 500 homens, segundo L.
Keppie497, reunidos em torno de um estandarte, o vexillum veteranorum (Tácito, Ann.
1.39; 2.21), e estavam dispensados de obrigações que os restantes legionários teriam de
cumprir. Assim, o papel deles seria apenas defensivo. Antes de desaparecer, este género
de destacamento estaria sob o comando de um centurião com o grau de triarius ordo
ou, então, por um curator.
Cada legião era comandada por um legado 498, tratando-se de um senador com estatuto
pretoriano indigitado pelo imperador. Tinha a coadjuvá-lo um tribuno laticlavo, um
jovem membro da ordo senatorial que prestava serviço militar durante um ano (ou às
vezes seis meses), ocupando o lugar de segundo oficial da legião, antes de encetar o seu
cursus honorum. O termo laticlavo – laticlavus - aludia à larga faixa de cor púrpura
que exibia na sua túnica. Junto do legado e do tribuno laticlavo, estavam um prefeito de
campo, antigo primus pilus - ou seja, que ficou à frente da primeira centúria da
primeira coorte - promovido à ordem equestre, encarregado da administração do
acampamento, e cinco tribunos angusticlavos que efectuavam a sua segunda milícia
equestre. Estes já haviam adquirido experiência no comando de tropas auxiliares e
deviam o seu título a uma faixa púrpura mais delgada que a dos tribunos saídos da
classe senatorial.
Desde o principado augustano, os legionários eram, como se disse, profissionais que
tinham de servir ininterruptamente durante vinte anos. Do fisco imperial recebiam um
soldo anual apreciável que se viu elevado por Domiciano a 1200 sestertii. No término
do seu serviço, em caso de honesta missio, isto é de um licenciamento honroso
(retirando-se das fileiras sem terem incorrido em faltas graves), auferiam de um prémio
de reforma pago pelo aerarium militare. No tempo augustano ascendia a 12000
sestércios (os pretorianos recebiam bastante mais, 20 000), o que representava mais de
treze anos de soldo.
Cada centúria estava sob as ordens de um oficial subalterno, o centurião 499 que, como
vimos, geralmente correspondia a um indivíduo que iniciara a sua carreira como
simples soldado raso, ou então, por vezes, um equestre romano que desta maneira
principiava o seu cursus militar. Todos os centuriões de uma legião estavam
hierarquicamente classificados de acordo com o número da sua coorte. O primus pilus,
à cabeça da primeira centúria da primeira coorte, situava-se no topo desta hierarquia,
tendo assento no estado-maior do legado. Porém, ainda hoje se discute qual seria o
número exacto de centuriões em cada legião, bem como as regras da sua promoção. Se,
por um lado, o princípio da duplicação dos efectivos da primeira coorte parece um dado
495
S. Frere, «Hyginus and the first cohort», Britannia 11 (1980), pp. 51-60.
496
The Making of the Roman Army, p. 149.
497
«Vexilla Veteranorum», PBSR, XLI (1973), pp. 8-17.
498
Para a hierarquia e a estrutura do comando no exército imperial romano, veja-se B. Isaac, «Hierarchy and Command
Structure in the Roman Army», in Y. Le Bohec (ed.), La Hiérarchie (Rangordnung) de l’armée romaine, Paris, 1994,
pp. 23-31.
499
Sobre os títulos dos centuriões, consulte-se M. Speidel, «The Centurions’ Titles» Epig. Stud. 13 (1983), pp. 43-62.
199
adquirido, por outro, há dúvidas e incertezas quanto ao número de centúrias que a
compunham. Durante largo tempo, os estudiosos, baseando-se em Vegécio (Epit. rei
mil. II, 8) e nos vestígios arqueológicos da fortaleza legionária de Inchtuthil, 500
(Perthshire, na Escócia), sustentaram que a primeira coorte compreendia apenas cinco
centúrias501.
Mas novas interpretações e descobertas puseram em causa tal interpretação. Por um
lado, as cifras apontadas por Vegécio carecem de fiabilidade e as cinco habitações que
se atribuíram aos centuriões da Iª coorte não incluíam provavelmente a residência do
primus pilus, que podia estar alojado com os tribunos no scannum tribunorum; por
outro lado, um papiro egípcio de 150 (PSI 1026) menciona uma centúria comandada
por dois primipilares, e uma inscrição de Lambaesis, no Norte de África, datada de 162
d. C. (CIL VIII 18065; ILS 2452) fornece uma lista de 62 (em lugar de 59) centuriões da
IIIª legião Augusta, na qual a Iª coorte contava com sete (em vez de cinco), dois sendo
primipilares.
Por último, as escavações no aquartelamento de Inverno da legio II Parthica, em
Apamea502, na Síria, trouxeram à tona estelas funerárias mencionando o posto de
centurião pilus posterior na Iª coorte (AE 1993, 1588), anteriormente jamais atestado.
Contudo, podemos estar diante de uma inovação introduzida no período severiano, que
consistiria em inserir todas as coortes de uma legião no mesmo modelo. Para os
primeiros dois séculos da nossa era, caberia por vezes acrescentar ainda aos 59
centuriões habituais o triarius ordo, antes da integração dos veteranos nas fileiras da Iª
coorte, e os centuriões que comandavam a cavalaria legionária, que, a partir de meados
do século I d. C., se viram repartidos pelo conjunto das centúrias, como realçou David
J. Breeze503.
Os efectivos legionários variaram relativamente pouco sob o Império, visto que o
número de legiões passou de 25, nos reinados de Augusto e Tibério (Tácito, Ann. 4.5)
para 30 no de Trajano e 33 sob a égide de Septímio Severo. A criação de novas legiões
era uma operação onerosa e, usualmente, esteve ligada a projectos de extensão
territorial, como aconteceu em relação às XV e XXII Primigeniae no momento da
conquista da Britânia, a I Italica sob Nero, a I Minervia no principado de Domiciano, a
XXX Ulpia Victrix e a II Traiana, ou ainda, no tempo de Septímio Severo, a I, II e III
Parthicae, duas delas se destinando às novas províncias da Mesopotâmia. As
dissoluções das unidades, mais raras, explicam-se por desastres irreparáveis, como as
mencionadas três legiões de Varão (XVII, XVIII e XIX, cujos numerais jamais foram
reatribuídos), ou a IX Hispania e a XXII Deiotariana, ao longo do século II, ou então
por casos de revoltas ou acasos das guerras civis (nomeadamente as legiões suprimidas
na Germânia por Vespasiano).
A continuidade dos efectivos viu-se reforçada por uma notável estabilidade das
guarnições. Os principais acampamentos (que logo se transformaram em fortalezas),
como Castra Vetera e Mogontiacum na Germânia, Carnuntum na Panónia, Oescus e
Novae na Mésia, remontam ao período Júlio-Cláudio, e muitos outros datam dos
Flávios ou do reinado de Trajano. As últimas grandes movimentações legionárias
tiveram lugar justamente sob Domiciano e Trajano, quando a principal força do
exército romano passou da Germânia para as províncias danubianas (uma dezena de
legiões, isto é, 1/3 do total). Mais tarde, registaram-se apenas mudanças modestas,
guardando as legiões geralmente as mesmas regiões, pelo menos até à ruptura ocorrida
em meados do século III. Instaladas junto à própria fronteira ou ligeiramente recuadas,
as legiões passaram a estar incumbidas da vigilância de um sector do limes, que se
organizou entre finais do século I e começos do século II. Ainda que o essencial das
guarnições se compusesse de tropas auxiliares, as legiões para aí destacaram pequenos
500
L. F. Pitts e J. K. St. Joseph, Inchtuthil: The Roman Legionary Fortress, Londres, 1985.
501
Como L. Keppie, entre outros (cf. The Making of the Roman Army, p. 148, e a planimetria mapa do forte, fig. 47). F.
Bérard, «Légion Romaine», in J. Leclant (ed.), Dictionnaire de l’Antiquité, p. 1242.
502
J.-C. Bally e W. van Regen: Apamée de Syrie. Quartiers d’hiver de la IIe légion Parthique. Monument funéraires de
la nécropole militaire, Bruxelas, 1993.
503
«The Organization of the legion: The first cohort and the Equites Legionis», JRS 59 (1969), pp. 50-55.
200
contingentes, especialistas e técnicos diversos, forças de policiamento ou de recolha de
informações (designadamente os beneficiarii), oficiais e suboficiais, em particular os
centuriões, que assumiam o comando de pequenas formações étnicas, ou forças
provisórias concebidas para missões pontuais.
Com as legiões fixadas nas suas guarnições, o sistema da vexillatio tornou-se habitual,
empregando-se de maneira quase generalizada, tanto envolvendo contingentes
reduzidos encarregados de tarefas logísticas (que os académicos alemães rotularam de
Arbeitvexillationen, em regra confiadas a centuriões), como forças maiores organizadas
para grandes expedições (Kriegvexillationen, comandadas por um praepositus, que
podia ser um legado, um tribuno ou um antigo primus pilus). Se, por um lado, as
expedições no início do Império ainda foram realizadas com unidades completas –
desde as oito legiões de Germânico em 16-17, até às consideráveis forças que Trajano
utilizou nas campanhas da Dácia -, por outro, as difíceis guerras danubianas de Marco
Aurélio e de Cómodo, bem como as campanhas severianas, fizeram-se por meio de
vexilações, sobre as quais abundantes fontes epigráficas dão a conhecer muitos dos
seus comandantes.
A crise da segunda metade do século III traduziu-se em mudanças significativas, como
a substituição dos legados senatoriais pelos prefeitos equestres, o aumento do número
das legiões (que subiram de 34 para 66 sob Diocleciano, voltando a duplicar no século
IV) e a sua divisão em diversas guarnições como se atesta pela Notitia Dignitatum. No
entanto, estes fenómenos continuam a ser mal conhecidos, assim como o efectivo de
cada nova legião; actualmente, a maioria dos especialistas vê nos 1000 homens
tradicionalmente aceites um número demasiado pequeno sobretudo para o período
tetrárquico. Em todo o caso, a legião permaneceu, até ao tempo de Constantino I, uma
das forças essenciais de Roma, tanto nas tropas da fronteira (limitanei ou riparienses)
como igualmente no exército de campanha (comitatenses e palatinae), em que a
infantaria era sempre constituída por vexillationes destacadas a partir das legiões,
mesmo numa altura em que os auxiliares e as novas unidades de cavalaria gozassem,
doravante, de um prestígio pelo menos equivalente. Nesta alínea, contentámo-nos em
oferecer uma visão de conjunto sobre as legiões. Mais à frente, esmiuçaremos várias
destas evoluções e mudanças.
Cavalaria legionária
504
K. R. Dixon e P. Southern, The Roman Cavalry, from the First to the Third Century AD, Londres, 1992.
201
cavaleiro Quintus Cornelius esteve sob as ordens do centurião Cassius Martialis. Não
temos maneira de apurar se os equites residiriam nas casernas das centúrias nas quais
inicialmente foram incorporados, ou se (embora figurando nos registos das centúrias)
estariam alojados juntos num determinado lugar dentro de uma fortaleza legionária.
Afora Flávio Josefo, não dispomos de mais fontes antigas que nos esclareçam quanto
aos efectivos da cavalaria legionária até meados do século III: durante o reinado de
Galieno, como oportunamente pormenorizaremos, quando o Império corria o sério
risco de se desintegrar, o número dos equites legionis aumentou grandemente,
passando para 726 cavaleiros: esta cifra colhe-se na obra de Vegécio, que afirma haver
66 soldados de cavalaria em cada coorte e 132 na primeira coorte (Epitoma rei
militaris, II, 6).
Quanto às funções da cavalaria legionária, jamais surgem explicitamente estabelecidas
na documentação, em qualquer fase da sua existência. Alguns sugeriram que estes
soldados eram mensageiros montados, mas parece que eles treinavam em conjunto
enquanto unidade e praticavam os mesmos exercícios que a cavalaria vulgar, utilizando
as mesmas armas. Quando Adriano discursou às suas tropas depois dos seus exercícios
militares em Lambaesis, na Numídia, o imperador enalteceu os equites legionis pela
destreza evidenciada no arremesso de dardos, actividade que levaram a cabo
envergando as couraças legionárias (CIL VIII 18042; ILS 2487; 9133-9135).
Embora saibamos que a cavalaria legionária actuava como um todo coeso e se
apresentava agrupada na ordem de marcha, desconhecemos se havia um oficial a
comandar os equites. De acordo com certos autores, ele poderia corresponder a um
centurião, mas para outros seria um optio, ao basearem-se na inscrição acima citada
(CIL VIII 2568). No século III, quando o imperador Galieno necessitou de forças
armadas dotadas de grande mobilidade e velocidade para acudirem a ameaças em
várias frentes distintas, ele, alegadamente, terá reunido todos os tipos de cavalaria,
tanto das unidades auxiliares como das legiões, criando uma espécie de «exército
montado» sob o mando de Auréolo (teoria, porém, que ultimamente tem sido posta em
causa). Vegécio, por seu turno, diz-nos que a cavalaria legionária do Baixo-Império
estava dividida em turmae e era comandada por decuriões.
202
que ela inclui o pessoal que efectuava actividades de engenharia, aqueles que
fabricavam armas e outras peças do equipamento militar, soldados que trabalhavam na
administração (mantendo actualizados os registos das unidades), outros que se
achavam afectos aos hospitais e eram assistentes de médicos, além dos que tratavam
dos animais pertencentes a uma legião.
Entre os que constam como ligados à engenharia, Tarrutieno alude aos metatores e aos
militares que supervisionavam o escavamento de valas ou fossos e a demarcação de um
recinto, necessários quando se montavam acampamentos ou para a escolha dos sítios
para a construção de fortes, além daqueles que estavam envolvidos em obras
edificatórias e no transporte de materiais (fazedores de telhados, pedreiros,
carpinteiros e marceneiros, trabalhadores de metal e vidro, canalizadores, construtores
de condutas de água, ferreiros, etc). Especificamente associados ao fabrico e reparação
de armas e equipamentos, havia homens que manufacturavam arcos, flechas e espadas,
e outros especializados na feitura de instrumentos musicais, como as trombetas.
As actividades edificatórias ocupavam um significativo lugar na vida laboral do
legionário. Com efeito, eram habitualmente os soldados que construíam estradas e
pontes (além dos fortes e fortalezas nas diversas províncias), participando também na
abertura de canais, obras de alargamento de rios e, até, na abertura de minas. Tácito
(Ann. 11.20) conta que um comandante chamado Curtius Rufus empregou soldados
para escavar uma mina de prata no território da tribo dos Mattiaci (zona actualmente
situada entre Mainz/Mogúncia e Wiesbaden, na Alemanha). Curtius recebeu honras
triunfais (ornamenta triumphalia) pelas suas proezas na Germânia; as suas tropas
escreveram ao imperador, sugerindo, não sem ironia, que o princeps deveria ter
concedido um triunfo ao dito comandante antes de partir em campanha, de maneira
que, ao haver já obtido uma recompensa, se mostrasse menos ansioso por alcançar a
glória e não obrigasse os seus homens a trabalharem tão arduamente.
As estradas assumiam especial importância para o estabelecimento de uma boa rede de
comunicações e para as movimentações das tropas; as legiões construíram milhares de
milhas de estradas por todo o Império. Muitas das informações sobre quem realizou
tais obras procedem de legendas gravadas em marcos miliares e de outras fontes
epigráficas: num marco (ILS 5834) da província da Arábia faz-se referência ao
calcetamento de uma estrada que foi construída pelos soldados do governador
provincial Gaius Claudius Severus, durante o reinado de Trajano506. Ao contrário ao
que por vezes se supõe, a pavimentação das estradas constituiu um desenvolvimento
relativamente tardio, não se evidenciando em todas as províncias; no caso citado, o
simples facto de se realçar a obra viária mostra que se tratou de um empreendimento
invulgar e útil. Por seu lado, os legionários da III Flavia e da VII Claudia construíram a
estrada de Trajano ao longo do Danúbio, para o efeito chegando a remover parte de um
desfiladeiro. Noutro palco geográfico, na Síria, encontrou-se uma inscrição perto do rio
Orontes, documentando a construção de uma via por quatro legiões, a III Gallica, a IV
Scythica, a VI Ferrata e a XVI Flavia. A epigrafia testemunha, igualmente, a presença
de soldados pertencentes a vinte unidades auxiliares, as quais raramente aparecem em
inscrições alusivas a obras edificatórias507.
Passemos à artilharia508. Os Romanos utilizavam diversos tipos de peças (algumas
herdadas dos Gregos), descritas de diferentes maneiras nas fontes, como as ballistae,
os scorpiones, catapultae, onagri e as carroballistae, categorizadas sob a designação
genérica de tormenta, como se assinala na narrativa da Guerra das Gálias, de Júlio
César. As ballistae eram uma espécie de grandes béstas montadas, que lançavam
projécteis deslizando através de uma ranhura: tanto podiam disparar flechas com
pontas de ferro quadrangular como dardos e enormes lanças concebidas para o
desmantelamento de muralhas (pila muralis). À excepção, talvez, dos modelos de
506
J. B. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, doc. nº 198.
507
D. van Berchem, «Une inscription flavienne du musée d’Antioche», Museum Helveticum 40 (1983), pp. 185-196.
508
Estudos globais: O. Lendle, Schildröten. Antike Kriegmaschinen in poliorketischen Texten, Wiesbaden, 1975; D.
Baatz, Bauten und Katapulte des römischen Heeres, Estugarda, 1994; D. B. Campbell, Greek and Roman Artillery 399
BC-AD 363, Oxford, 2003, pp. 22-43.
203
menores dimensões, a propulsão não resultava da elasticidade de um arco, mas antes
da súbita distorção de dois feixes de fibras torcidas, nos quais estavam encaixados os
braços do aparelho, que, por sua vez, se viam esticados por meio de alavancas de
linguetas.
Os scorpiones509eram pequenas balistas que lançavam, essencialmente, pesados
dardos, as catapultae, fundas mecânicas, arremessavam bolas de pedra de peso
variável, podendo atingir mais de 40 kg; assemelhavam-se às ballistae, providas de
uma ranhura para o lançamento, a menos que fossem construídas segundo o princípio
das manganelas, com uma alavanca propulsora rematada por uma «colher», onde se
colocava o projéctil. Quanto aos onagri510 (sing. onager, «onagro»), seriam pequenas
catapultas deste género. Por fim, as carroballistae comportavam engenhos de guerra
de maiores dimensões (manuballistae, cheiroballistrae511), mais potentes e facilmente
transportáveis do que as ballistae, montadas sobre rodas e puxadas por animais de
carga. Em princípio, cada centúria dispunha de uma peça, mantida por alguns dos seus
soldados. Utilizava-se a artilharia na defesa dos acampamentos, dos entricheiramentos,
e, naturalmente, nos cercos. O peso e a lentidão do tiro conduziam a que, por norma,
ela não fosse utilizada nas batalhas em terreno descoberto, embora saibamos que Júlio
César se tenha servido de peças ligeiras em tais circunstâncias. Algumas delas até
podiam ser montadas na proa das galés.
Para os assédios, havia muitos tipos de engenhos 512, geralmente construídos no local.
Os mais imponentes eram as torres de assalto (turres ambulatoriae), por vezes com
uma altura superior a 30 m, montadas sobre rodas ou cilindros, feitas de madeira e
cobertas por couro espesso ou placas de ferro, para as proteger dos projécteis
incendiários dos sitiados. Os aparelhos mais modestos eram os plutei, simples guarda-
fogos de vime, ocasionalmente munidos de rodas, que serviam para proteger os
legionários enquanto trabalhavam. As vineae, por seu turno, correspondiam a cabanas
de uns 5 m de comprimento, 2 de largura e 2, 5 de altura, cujo tecto, de tábuas
revestidas de vime e couro, se destinavam à protecção contra projécteis inimigos: os
seus lados podiam ser abertos ou resguardado da mesma maneira, mas as extremidades
eram sempre abertas; várias vineae encostadas umas às outras formavam uma galeria
protegida, que permitia a aproximação das defesas do adversário (algumas estando
montadas sobre rodas). Havia ainda os musculi, parecidos com as vineae, só que mais
compridos, baixos e estreitos, que também serviam para formar galerias.
As testudines eram outro género de vineae, muito sólidas, montadas sobre rodas, com
a parte frontal blindada, estando geralmente armadas de um aríete: este, que também
podia ser suspenso do piso inferior de uma torre de assalto, compunha-se de uma
massa de ferro fixada num tronco maciço, por sua vez envolto em cordas e couro, a fim
de não estalar sob o efeito de choques repetidos. No equipamento de cerco existiam
igualmente ganchos com grandes cabos (falces murallis) para abrir brechas nas
muralhas, e escadas (scalae) para trepar ao assalto.
No seu capítulo sobre as máquinas, o arquitecto Vitrúvio (De Arch. X, 10-13) dedicou
uma breve secção sobre a artilharia e os engenhos de cerco, oferecendo descrições de
como construí-los e apontando as dimensões de cada parcela dos aparelhos,
dependendo do comprimento das setas ou do peso das pedras lançadas. Flávio Josefo,
por seu lado, faculta elementos informativos sobre o emprego da artilharia nos assédios
que se efectuaram na Guerra Judaica, sob o comando de Vespasiano, e já no Baixo-
Império, Amiano Marcelino relata o cerco de Amida. Vegécio discute a utilização da
artilharia nas legiões (Epitoma rei militaris, 4.25). Estes dados, conjugados com os
achados arqueológicos de vários elementos de peças de artilharia no mundo romano,
509
No singular scorpio. A. Wilkins, «Scorpio and cheiroballistrae», Journal of Roman Military Equipment Studies 11
(2000), pp. 77-101.
510
V. G. Hart e M. J. T. Lewis, «Mechanics of the onager», Journal of Engineering Mathematics 20 (1986), pp. 345-365.
511
A. Wilkins, «Reconstructing the cheiroballistra», Journal of Roman Military Equipment Studies 6 (1995), pp. 5-60.
512
Sobre as máquinas de cerco e a poliocértica: D. B. Campbell, Greek and Roman Siege Machinery 399 BC-AD 363,
Oxford, 2003, pp. 34-43; idem, Siege Warfare in the Roman World 14 BC-AD 378, Oxford, 2005.
204
permitem aos historiadores actuais proceder a reconstituições no âmbito da
arqueologia experimental, algumas das quais funcionaram eficazmente.
Sabemos menos a respeito dos soldados que manobravam estes engenhos. Os
«artilheiros» aparecem especificamente referidos na lista dos immunes de Tarrutieno,
mas carecemos de pormenores quanto ao seu número e à maneira como estariam
organizados. Vegécio indica que onze homens de cada centúria eram empregues no
funcionamento das carroballistae, que disparava grandes flechas. E. W. Marsden 513
observa que na Coluna de Trajano apenas se representaram dois homens a manejarem
uma máquina de lançamento de setas, quando não há dúvidas de que existiriam outros
soldados encarregados de cuidar dos animais e da carriagem empregues no transporte
das peças.
Provavelmente, os indivíduos que fabricavam e mantinham em condições os engenhos
de artilharia seriam designados como architecti, mencionados como immunes na lista
de Tarrutieno. As oficinas (fabricae) dos acampamentos e fortes legionários teriam
meios para produzir e consertar facilmente as peças de artilharia, contando com a
imprescindível ajuda dos ballistari, sob a supervisão do praefectus fabrum e do
praefectus castrorum. Uma estela funerária descoberta em Roma evoca a carreira de
um architectus legionário, Gaius Vedennius Moderatus (ILS 2034), que viveu durante
o século I d. C.: ele começou o serviço militar na XVIª legião Gallica, na Germânia
Inferior, e depois foi transferido para a Guarda Pretoriana; logo a seguir à sua
desmobilização, pediram-lhe que continuasse a trabalhar no arsenal imperial, devido
ao seu talento como «arcitect[us] (sic)».
Auxilia e numeri514
205
infantaria (cada com 80 homens: cohors peditata), totalizando 480, como nas legiões.
Havia também coortes mistas, chamadas «montadas» (cohortes equitatae), que
associavam às 6 centúrias de 80 infantes cada 4 turmae de 30 cavaleiros, totalizando
um efectivo de aproximadamente 600 homens (ou 500, se as centúrias tivessem apenas
60 homens).
A partir dos Flávios, atestam-se também as coortes milliares, cujos efectivos, como se
infere, representavam cerca do dobro das precedentes (quingenariae). As alas
milliares tinham 24 turmae com 30 cavaleiros cada (= 740 homens, em vez de 1000,
número teórico que obrigaria a pressupor a existência de turmae com 42 cavaleiros)), e
as coortes milliares 10 centúrias com 80 homens de infantaria, e as coortes milliares
«montadas», juntamente com 10 centúrias de infantes, 8 turmae de cavalaria.Tratava-
se de unidades de elite: o exército romano só dispunha de uma dezena ao mesmo
tempo, na razão de uma, no máximo, por cada província518.
O comando das unidades auxiliares foi inicialmente confiado a notáveis indígenas que,
por vezes, davam os seus nomes às mesmas (alae Gallorum, Atectorigiana, Indiana519),
mas depressa passou para os oficiais romanos, tribunos, primipili ou mesmo centuriões
e, pouco depois, reservou-se para os membros da ordem equestre; além disso, elas
tinham um número e um nome que indicava o povo em que tinham sido recrutadas
originalmente520. Esta nomenclatura podia ser completada por um epíteto relativo ao
imperador criador da unidade em questão (e.g. Ulpia para Trajano), por adjectivos
evocando uma qualidade caracterizadora da mesma (piedosa, fiel), pela explicitação de
uma determinada especialização militar (archeiros, etc.) ou, ainda, da província de
guarnição.
Depois de vários ensaios, a carreira das milicias equestres adquiriu a sua forma
definitiva durante o reinado de Cláudio, começando, primeiramente, com uma
prefeitura de coorte auxiliar, a seguir um tribunato legionário angusticlavo ou um
tribunato de coorte miliária (ou de cidadãos romanos) e, por fim, a prefeitura de uma
ala de cavalaria521. A partir do tempo de Adriano, o comando de uma ala miliar veio a
acrescentar-se como uma quarta milícia para coroar as carreiras mais brilhantes.
Quanto aos oficiais subalternos, centuriões e decuriões, consistiam habitualmente em
antigos principales das legiões ou do pretório.
Com base nos diplomas militares que se preservaram, sabemos que as tropas auxiliares
eram numeradas de acordo com cada província, diferentemente das legiões, e pela série
de unidades recrutadas (por exemplo, conta-ser mais de meia dúzia de cohortes I
Thracum). Assim, não é possível determinar o número total de unidades dos auxilia no
Império com base nessa numeração. Apesar de tudo, houve quem calculasse os seus
efectivos, sugerindo que ascenderiam a cerca de 125 000 homens sob o principado de
Tibério. De facto, segundo Tácito (Ann. 4.5), deveriam equivaler, grosso modo, aos das
legiões e da guarnição de Roma. No fim do século I, supõe-se que terão subido para uns
150 000 homens e, na viragem do século II para o III, cifrando-se entre os 200 000 e
220 000. Este aumento explica-se sobretudo pelo facto de os auxiliares terem a tarefa
essencial da guarda das fronteiras.
Desde a dinastia dos Flávios, assiste-se ao desenvolvimento de unidades de choque,
haja em vista as coortes de Batavos ou de Bretões que estiveram envolvidas nas
campanhas danubianas de Domiciano e Trajano. De facto, o papel dos auxilia não se
cingiu à protecção do limes: note-se que a decisiva batalha de Mons Graupius522 (na
Caledónia, actual Escócia) foi ganha por um corpo de 8 000 soldados auxiliares (4
coortes de Batavos e 2 de Tungrianos), permanecendo as legiões em reserva (Tácito,
Agricola, 35-36). Por seu turno, nas guerras contra os Dácios, os auxilia contaram-se
518
E. Birley, «Alae and cohorts milliariae», in Corolla memoriae Erich Swobodae dedicatae, Graz, 1966, pp. 54-67.
519
Unidade que serviu pela primeira vez sob as ordens de Iulius Indus.
520
E. Birley, «Alae named after their commanders», Anc.Soc. IX (1978), pp. 257-274; M. A. Speidel, «Auxiliary units
named after their commanders: four new cases from Egypt», Aegyptus 62 1982, pp. 101-108.
521
F. Bérard, «Auxiliaires (Rome), in J. Leclant (ed.), Dictionnaire de l’Antiquité, p. 295.
522
Noutro capítulo estudaremos diversos aspectos sobre esta refrega.
206
entre as primeiras unidades miliárias e formaram, a par das legiões, o corpo de batalha
do exército romano: nos relevos da Coluna de Trajano, salta bem à vista a participação
activa das tropas auxiliares. Este fenómeno ainda é mais evidente na cavalaria, de que
as legiões se achavam quase desprovidas. Ao lado das alas quingenárias, ilustraram-se
as famosas alas miliárias (como a I Ulpia contariorum e a I Flavia Britannica, na
Panónia, ou a Petriana na Britânia), o contingente referido de mauri de L. Quietus, e
vexillationes provinciais, como o numerus equitum Illyricorum, que interveio na Dácia
e se tornou uma unidade autónoma.
Além das cohortes voluntariorum e das cohortes ingenuorum, formadas no decurso
das campanhas germânicas do fim do Principado de Augusto, as unidades auxiliares
foram-se abrindo paulatinamente a cidadãos romanos que se sentissem atraídos por
um serviço militar considerado menos difícil do que nas legiões, ou que não
satisfizessem os critérios exigidos para ingressarem nas últimas. Esta integração
progressiva dos auxilia no exército romano levou, no reinado de Adriano, à aparição de
novos contingentes étnicos denominados numeri523 (que também ainda se designavam
como nationes), cujo estatuto se revelava menos favorável, mas que conservavam os
seus métodos tradicionais de combate. Consistiam em tropas milliares, comandadas
por tribunos, ou quingenariae, sob as ordens de prefeitos.
As unidades auxiliares também levavam a cabo, no interior do império, tarefas mais
civis, de manutenção da ordem e de apoio das administrações provinciais. Mesmo que
não sejam todas conhecidas, havia em cada uma das províncias, ditas inermes, um
contingente militar, frequentemente de auxiliares, como na Ásia a cohors I Raetorum,
que fornecia officiales ao procurador provincial (AE 1981, 845; 1988, 1023). Tais
responsabilidades, que implicavam um certo grau de instrução dos soldados, mostram
que no século II os auxiliares realizavam, juntamente com os legionários, a maior parte
das missões confiadas ao exército romano, incluindo a própria guarda pessoal do
imperador, composta pelos equites singulares.
Os destacamentos
523
Para além do artigo de P. Southern citado numa das precedentes notas de rodapé, remetemos igualmente para outro,
mais antigo, de J. C. Mann, «A note on the Numeri», Hermes 82 (1954), pp. 501-506.
524
525
526
527
207
Na província de África identificou-se um caso invulgar, atestando-se numeri collati
(61). Estas unidades, idênticas às vexillationes, compunham-se de soldados extraídos
de diversas guarnições e reunidos sem um vexillum.
Forças suplentes
Numa situação de guerra, o poder central podia utilizar forças que Y. Le Bohec rotulou
de «supletivas»528, as quais frequentemente foram olvidadas pelos historiadores. Desde
as etapas iniciais do seu expansionismo, Roma constituiu protectorados governados
por príncipes ou reizetes, que, em alturas de conflitos armados, enviavam reforços:
estas tropas tinham o estatuto jurídico de socii. Juba II e depois o seu filho, Ptolomeu,
apoiaram os legionários contra o rebelde africano Tacfarinas (63) 529. Pisão, por seu
turno, utilizou estes aliados num projecto de guerra civil (64) 530. Os soberanos do
Oriente, principalmente árabes, ajudaram Vespasiano e Tito contra os Judeus (já neste
tempo os Judeus e os Árabes se odiavam, como escreveu, aliás, Flávio Josefo (65) 531).
Porém, a partir do começo do século II, tais protectorados, ao serem progressivamente
absorvidos, um após outro, acabaram por deixar de desempenhar um papel
significativo.
Por outro lado, a existência de milícias locais, dependendo das cidades, foi admitida
por vários historiadores, depois contestada e, a seguir, novamente aceite. De acordo
com o balanço actual, julga-se que elas serviriam mais para combater os bandoleiros e
salteadores do que os inimigos externos (66)532. Os estudiosos têm manifestado
opiniões divergentes quanto ao papel militar desempenhado pelos iuvenes, uma
espécie de associações ou «clubes» que integravam os filhos dos notáveis, que
promoviam a prática de desportos violentos e cultos cívicos (67) 533. Alguns escritores
antigos atribuiram-lhes um papel-chave, como, por exemplo, o autor anónimo da
História Augusta: ele escreveu que os iuvenes – quibus Africa tuenda comissa est-
eram responsáveis pela segurança de África (68) 534. Com efeito, eles podiam intervir em
face de uma ataque de um inimigo inesperado. Em 60, aquando da rebelião dos Iceni
liderados pela rainha Boudicca, a iuventus de Camulodunum representou a única força
de defesa da cidades contra os Bretões insurrectos (69) 535. Durante a guerra civil de 69,
temos notícia de iuvenes gauleses envolvidos contra os sublevados Boii de Marice
(70)536. No mesmo ano, outros combateram, aparentemente, no Nórico (71) 537.
No reinado de Marco Aurélio, os jovens de Thespias partiram numa expedição ao
serviço do imperador (72)538. Mas, na verdade, contra tropas profissionais, estes filhos
de gente rica não valiam grande coisa: por exemplo, os mobilizados nos Alpes
Marítimos para repelir os soldados de Otão e Vitélio foram logo desbaratados no
primeiro choque (73)539. Em 238, os iuvenes de África viram-se também rapidamente
eliminados por legionários (74)540, Por volta de 300, ainda, os jovens de Saldae (Bejaia,
528
La guerre romaine, p. 48.
529
530
531
532
533
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538
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540
208
ex-Bougie, Argélia) conseguiram afastar da muralha urbana misteriosos atacantes,
talvez montanheses Mauri (75)541.
As origens das frotas imperiais foram, em muitos aspectos, semelhantes às das legiões
e dos auxilia. Na parte final das guerras civis, a luta contra Sexto Pompeio e a batalha
de Actium vieram a revelar a importância política do controlo das vias marítimas do
Mediterrâneo e, em especial, das águas em torno da península itálica. Após a vitória
definitiva sobre os seus adversários, o ainda só Octaviano viu-se, de repente, com 700
navios nas suas mãos. Muitas das unidades navais de Marco António ficaram
literalmente reduzidas a cinzas, mas o resto das mesmas foi enviado, como dissemos no
começo do presente capítulo, para Forum Iulii/Fréjus, na costa meridional da Gália,
onde se manteve uma esquadra até ao reinado de Nero. No entanto, as principais frotas
de Roma estacionaram em Misenum, na Baía de Nápoles, parcialmente para escoltar os
comboios de transporte de cereais provenientes do Egipto, e em Ravenna, no Adrático.
Estas bases foram escolhidas por usufruírem de portos grandes e seguros, e não tanto
por razões estratégicas, mas havia também contingentes da classis Misenatium ao
longo da costa ocidental de Itália, em Óstia, Puteoli (Pozzuoli) e Centumcellae. O
Mediterrâneo converteu-se num «lago» romano, sendo conhecido como mare nostrum
(se bem que a designação oficial nos mapas fosse a de Mare Internum), e a ameaça
maior radicava mais nos conflitos civis ou na pirataria do que nos antagonistas
externos. O que mais interessava ao imperador era manter tais frotas operacionais,
prontas a intervir quando necessário. Na realidade elas não foram precisas para
nenhum conflito de grande envergadura, pelo menos até às guerras civis de começos do
século IV.
Assim, a marinha serviu sobretudo para o transporte da família imperial e das tropas
em campanha. A este respeito, é sintomático o facto de existir, como anteriormente
referimos, um substancial destacamento de marinheiros de Misenum em Roma, que
participava na organização de espectáculos encenando batalhas navais (naumachiae;
Tácito, Ann. 12.56; Suetónio, Cláudio, 12.6) e manobrava, a partir de 80 d.C., o
gigantesco toldo montado no topo do Anfiteatro Flávio (Hist. Augusta/SHA, Cómodo,
15.6).
Os marinheiros (nautae) e soldados (milites classiarii)543 a bordo das frotas consistiam,
normalmente, tal como sucedia com os auxilia, em indivíduos sem a cidadania romana.
Integravam ex-escravos e egípcios544, que estavam impedidos de ingressar na maior
parte dos outros ramos das forças armadas romanas. As fontes epigráficas mostram
que os homens pertencentes à Classis Misenatum foram recrutados sobretudo nas
541
542
Sobre as forças navais romanas durante a época imperial, a monografia de C. G Starr, The Roman Imperial Navy, 31
BC-AD 324 (Ithaca, 1941, conhecendo uma 3ª edição em Chicago, 1993) continua a ser incontornável, ainda que se
revele desactualizada em alguns aspectos. Merecem igualmente referência os seguintes estudos, mais recentes e
documentados: D. Kienast, Untersuchungen zu den Kriegsflotten der römischen Kaiserzeit, Bona, 1966; H. D. L.
Viereck, Die römische Flotte. Classis Romana, Herford, 1975; M. Reddé, Mare Nostrum. Les infrastructures, le
dispositif et l’histoire de la marine militaire sous l’empire romain, Roma, 1986; J. Spaul, Classes Imperii Romani,
Andover, 2002; R. D’Amato e G. Sumner, Imperial Roman Naval Forces 31 BC-AD 500, Oxford, 2009. Para uma visão
genérica mais breve: B. Rankov, «Fleets of the early Roman empire, 31 BC-AD 324», in R. Gariner e J. S. Morrison
(eds.), The Age of the Galley, Londres, 1995, pp. 78-85; D.B. Saddington, «Classes. The Evolution of the Roman
Imperial Fleets», in P. Erdkamp (ed.), A Companion of the Roman Army, pp. 201-216.
543
Nas fontes antigas, utilizam-se também, de maneira intercambiável, os tradicionais termos gregos, reportando-se os
autores romanos aos oplitai fortemente armados, aos epibatai, aos nautai e aos eretai, os remadores.
544
Colhem-se provas em fontes papirológicas de recrutas egípcios incorporados na marinha até ao século IV d. C.: R.
Palme, «Die römische Armee von Diokletian bis Valentinian I: Die papyrologische Evidenz», in Y. Le Bohec e C. Wolff
(eds.), L’armée romaine de Dioclètien à Valentinien Ier, p. 113.
209
províncias orientais, em particular no Egipto, ao passo que os da classis Ravennatum
procediam maioritariamente das províncias danubianas.
Havia também várias frotas provinciais: a Classis Alexandrina, sediada em Alexandria,
no Egipto, no tempo augustano, constituía provavelmente um legado da guerra contra
Marco António e Cleópatra; as equipagens compunham-se igualmente de Egípcios, mas
só os que usufruíssem da cidadania alexandrina e romana (embora diversos autóctones
tenham servido nas frotas italianas). O papel desempenhado pela Classis Alexandrina
consistia, decerto, em garantir protecção aos navios que, da foz do Nilo, partiam em
direcção a Roma carregados de cereais, se bem que a frota também operasse noutras
missões ao longo do rio, esporadicamente. Existia também a Classis Syriaca, no século
I d. C., que vigiava e defendia a linha costeira da Síria e da Judeia. Depois de 44 d. C., as
frotas Alexandrina e Syriaca destacaram vários navios para Cesareia (actual
Cherchell), a capital da Mauretania Caesariensis, no Mediterrâneo Ocidental.
Quanto às demais flotilhas 545 provinciais, encontravam-se todas baseadas junto das
fronteiras setentrionais, tendo a sua génese em finais do século I a. C. e no começo de I
da nossa era. Várias delas eram fluviais, em vez de marítimas, incluindo a Classis
Germanica546, no Reno, cuja base se localizava em Colonia Agrippinensis (Colónia), a
Classis Pannonica, no Médio Danúbio, sediada em Sigidunum (perto da actual
Belgrado), e a Classis Moesiaca, no Baixo Danúbio, cujo centro operacional se situava
perto do delta do Danúbio. As tarefas destas frotas prendiam-se basicamente com o
transporte de soldados e provisões, ainda que, por vezes, estivessem envolvidas em
operações bélicas que se desenrolavam próximo dos rios. No mar Negro, a marinha dos
reis do Ponto viu-se reorganizada, recebendo a denominação de Classis Pontica,
estacionada na costa norte da Ásia Menor e na Crimeia 547. Adicionalmente, na Britânia
estabeleceu-se uma frota, a Classis Britannica548, quando a ilha foi invadida em 43 d.
C., funcionando a partir das bases de Dover e Boulogne.
O tipo de galé de maior importância nas frotas era a trirreme, que compreendia três
níveis de remadores (remiges) e uma tripulação de aproximadamente 200 homens,
embora as flotilhas fluviais possuíssem mais birremes (de menor tamanho) e
embarcações com apenas uma só bancada. As duas principais frotas dispunham de
algumass quadrirremes (com duas bancadas e igual número de homens por cada remo)
e quinquerremes (três níveis com um ou dois homens por cada remo).
A frota de Misenum tinha uma «galé-capitânia», a Ops/«Riqueza» (CIL 10 3560,
3611), provida de três bancadas de remadoras (na razão de dois homens por cada
remo). Temos conhecimento da existência de 88 navios na classis Misenum: um
hexarreme, um quinquerreme, dez quadrirremes, 52 trirremes e quinze naves mais
pequenas (liburnae). Quanto à frota de Ravenna, sabemos os nomes de dois
quinquerremes, seis quadrirremes, 23 trirremes e quatro liburnae, o que nos leva supor
que teria cerca de metade do tamanho da frota de Misenum.
Os marinheiros549 serviam ao longo de 26 anos (subindo para 28 no século III) e,
aquando do seu licenciamento, recebiam a cidadania romana. Apresentavam-se
organizados de maneira similar aos auxilia; nas inscrições, verifica-se que vários deles
se intitulam de milites e, aparentemente, uma distinção nítida entre os remadores e as
tropas a bordo, que poderíamos qualificar de «fuzileiros». Com base na documentação
antiga, entre os efectivos encontramos menções aos habituais immunes, bem como ao
tesserarii, suboptiones, optiones, signiferi e vexillarii. Contudo, havia principales
especificamente náuticos - os celeustae ou pausarii (encarregados de transmitir a
cadência de voga aos remeiros), os proretae, «oficiais de proa» e os gubernatores,
«timoneiros».
545
Por vezes, tratava-se apenas de esquadras.
546
H. C. Konen, Classis Germanica. Die römische Rheinflotte im 1.-3. Jahrhundert n. Chr., St. Katharinen, 2000.
547
Sobre as flotilhas do Baixo Danúbio e do mar Negro, veja-se O. Bounegru e M. Zahariade, Les forces navales du Bas
Danube et de la Mer Noire, Oxford, 1996.
548
D. J. P. Mason, Roman Britain and Roman Navy, Stroud, 2003.
549
M. Reddé, «Les marins», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft in der Römischen
Kaiserzeit, pp. 179-189.
210
Ao comandante de um navio chamava-se trierarchus e os das esquadras navarchii
(designações tomadas de empréstimo da língua grega); destes, o mais graduado era o
navarchus princeps. Estes postos equiparavam-se, em certa medida, aos centuriões, o
que se confirma através do facto de alguns dos seus titulares se referirem a si próprios
enquanto tais, se bem que vários estudiosos acreditem que os centuriones das frotas
deveriam corresponder somente aos oficiais das tropas de guarnição 550. Uma frota tinha
como seu chefe supremo um praefectus equestre, situado hierarquicamente acima dos
militia equestris, coadjuvado por procuratores. Muitos dos últimos, sob a égide de
Cláudio e de Nero, ainda eram libertos (antigos escravos alforriados dos imperadores) e
alguns vieram a comandar até frotas.
A participação activa das frotas de Misenum e de Ravenna, durante a Guerra Civil de
68-69, conduziu a que se reconhecesse oficialmente a sua relevância: Vespasiano
concedeu às duas o título honorífico de praetoria e, a partir de então, viram-se
confiadas a prefeitos da ordem equestre que ocupavam um escalão abaixo do prefeito
dos vigiles e das outras grandes prefeituras. Em 79 d. C., o prefeito da frota de
Misenum foi o conhecido escritor Plínio-o-Antigo, que veio a perecer quando conduziu
os seus navios ao longo da Baía de Nápoles, ao tentar salvar alguns amigos da trágica
erupção do Vesúvio; este episódio foi narrado, aliás, numa carta (Ep. 6.16), pelo seu
sobrinho homónimo, Plínio-o-Moço.
550
E. Sander, «Zur Rangordnung des römischen Heeres: Die Flotten», Historia 6 (1957), pp. 347-357.
211
No presente capítulo, rastrearemos as modalidades ou tipos de guerra que o exército
romano adoptou durante os últimos tempos da República e ao longo do Principado.
Sempre que possível, teremos em conta o contexto em que esses conflitos ocorreram, a
sua frequência, a duração, o seu valor (decisivo ou não), bem como os resultados. Antes
de mais, convém não esquecermos que qualquer conflito envolve, pelo menos, dois
lados, o que B. Isaac realçou no seguinte trecho: «São necessários dois partidos para
travar uma guerra, e ambos têm motivos. Enquanto a guerra estiver a desenrolar-se, os
objectivos dos dois lados irão mudar em função dos desenvolvimentos no campo de
combate, e o que quer que seja atingido poderá ser completamente diferente do que
fora planeado. Nem tão quanto é necessariamente verdade que existe um consenso em
cada um dos lados, no que respeita às metas e métodos. Tudo isto pode parecer um
lugar-comum. No entanto, é algo frequentemente ignorado pelos historiadores do
Principado»551.
Efectivamente, os Romanos não travaram a guerra num vácuo, mas contra oponentes
que possuíam as suas próprias razões para lutar e expectativas de como deveria
decorrer o conflito e qual seria o seu desfecho (os exércitos romanos pelejavam
sobretudo contra povos estrangeiros). A cultura e as práticas militares dos antagonistas
de Roma assumiram tanta importância em dar forma a cada conflito como o
comportamento do exército romano. Assim, afigura-se crucial estudar as primeiras,
embora quase todos os testemunhos disponíveis consistam em narrativas gregas e
romanas, as quais encerram distorções deliberadas, equívocos culturais e erros
flagrantes.
B. Isaac também realçou uma verdade fundamental, ao dizer que as finalidades das
guerras tendem a mudar amiúde e não podem, em caso algum, ser claras ou
universalmente aceites até por aqueles que lutam do mesmo lado. Quanto maior for a
magnitude e a duração de um conflito, o mais provável é que os objectivos dos
beligerantes se alterem. O desfecho pode não corresponder ao previsto por cada um dos
lados, o que muitas vezes origina novos problemas ou fontes de conflito.
Outra ressalva se impõe fazer. Urge não introduzir excessiva rigidez na análise que se
faça do fenómeno bélico, seja em que período for. Até os planos supostamente racionais
das nações modernas tiveram de se modificar grandemente em virtude de factores
como a pressão política, as rivalidades pessoais, objectivos confusos, o acaso e a
incompetência, entre outros. Não devemos ficar supreendidos ao observarmos
elementos semelhantes nas guerras de Roma, e cabe recorrer à prudência na
extrapolação de conclusões gerais a partir de incidentes particulares.
Na realidade, esta discussão da guerra praticada por Roma, e da utilização, pelo Estado
romano, do seu poder militar, insere-se num debate ainda mais amplo sobre a própria
natureza da sociedade romana. Nos últimos anos, diversos estudiosos interrogaram-se
até que ponto o sistema romano se deve realmente entender em termos hodiernos e
racionais. Frequentemente, os imperadores romanos têm sido descritos como figuras
quase passivas, reagindo a um apelo ou a um problema, mais do que perseguindo, de
modo activo, políticas conscientes e consistentes. Quanto à máquina burocrática
existente para administrar as províncias a nível local ou num âmbito mais alargado,
certos investigadores encararam-na como primitiva e ineficaz, por vezes mesmo como
praticamente simbólica. Analogamente, a economia do império foi entendida por
alguns como pouco sofisticada, impondo limites severos sobre o crescimento e a
prosperidade. Todavia, afirma-se incontestável o êxito de Roma, ao criar e manter um
tão vasto império, que perdurou por muitos séculos e exerceu uma profunda influência
na história posterior. Muitos académicos têm colocado a questão se este império foi
construído graças à força das instituições romanas ou, apesar das deficiências das
últimas. Ora, no coração deste debate há que situar o desempenho, o papel e a
551
The Limits of Empire, 1992, p. 3.
212
capacidade do exército profissional que foi, aparentemente, a instituição romana mais
sofisticada e moderna552.
Consagramos boa parte deste capítulo à estratégia ou aos factores de ordem prática,
como o serviço de informações, as comunicações e a logística, que impõem limites
sobre a mesma. A estratégia abrange todos os planos, decisões e acções tomadas antes e
durante uma campanha, para se atingirem os objectivos de um exército. Os
comentadores modernos inventaram outra expressão, «grande estratégia», para
definirem o nível mais elevado da tomada das decisões, onde os líderes do Estado têm
em conta as preocupações políticas e militares para desenvolverem os seus interesses a
longo-prazo. Isto pouco se relaciona com o desenrolar de uma determinada guerra, e
nada tem a ver com campanhas específicas, mas como os conflitos individuais estão
conjugados com a diplomacia e a política, a fim de se atingirem as ambições de um
Estado no domínio dos negócios estrangeiros.
As definições destes termos e expressões, muito empregues em estudos estratégicos
contemporâneos, partem do pressuposto da existência de muitas instituições do
estado-nação actual que não conhecem paralelos nos tempos romanos. Note-se que em
latim, nem em grego, não há um vocábulo que signifique exactamente o mesmo que
«estratégia», e muito menos um equivalente a «grande estratégia». Consequentemente,
torna-se importante averiguar até que ponto é apropriado aplicar tais palavras para a
época romana.
É verdade que em certos aspectos a guerra não mudou ao longo da história humana.
Os guerreiros ou soldados têm de comer e beber para actuarem eficazmente. Ordens ou
planos, mesmo que rudimentares, necessitam de ser transmitidos ao grupo, se este
participar numa iniciativa que exija coordenação de esforços. Também existem limites
para a velocidade com que homens e animais se movimentam e nesta vertente a
geografia pode acarretar grandes restrições, uma vez que, por exemplo, apenas se
podem atravessar ou transpor rios e cadeias montanhosas em determinados pontos.
Estes são problemas básicos, incontornáveis, em qualquer género de operação militar,
desde a conquista das Gálias por Júlio César até às campanhas massivamente maiores e
mais complexas das guerras mundiais do século XX, ou até em raides envolvendo uma
dúzia (ou pouco mais) de guerreiros, como efectuaram os índios Apaches na década de
80 do século XIX, ou pelas tribos da «Idade da Pedra» estudadas por antropólogos e
etnólogos na Papua-Nova Guiné ou na Amazónia 553.
A tecnologia – com assinaláveis progressos nos transportes, comunicações e na
produção de material – pode ter alterado a maneira de lidar com tais problemas, mas
não chegou a resolvê-los totalmente. Porém, apesar de as dificuldades enfrentadas
pelos exércitos se terem mantido extraordinariamente consistentes ao longo da
história, as suas tentativas para as solucionar diferiram enormente no decurso do
tempo e de cultura para cultura. As guerras variaram imensamente na amplitude, no
tipo e na intensidade dos confrontos, nas suas motivações originais e nas suas
derradeiras consequências. O que faz sentido, a nível militar, para a guerra, real ou
hipotética, entre estados modernos providos de grandes exércitos, sofisticados,
profissionais ou constituídos por conscritos, combatendo dentro do contexto de
552
Millar, 1977; B. Isaac, 1992, pp. 5-6. Para uma visão da burocracia romana como uma máquina ineficaz, veja-se
Garnsey e Saller, 1987, pp. 20-40; para uma abordagem espelhando um ponto de vista oposto, ao centrar-se
principalmente na administração militar, consulte-se N. B. Rankov, 1999, pp. 15-34.
553
Veja-se, entre outros, Gardner e Heider, 1974. J. Keegan (1993) sublinhou a questão das influências culturais sobre os
métodos de fazer a guerra.
213
fronteiras nacionais claramente delimitadas, e sob o escrutínio do Direito Internacional
e da própria opinião pública, não teria necessariamente relevância para conflitos
opondo povos tribais vagamente organizados, ou entre Roma e os seus inimigos.
Afigura-se provavelmente inevitável estabelecer analogias com conflitos mais recentes
quando estuda a guerra praticada pelos Romanos, uma vez que há significativas
lacunas nas informações recolhidas nas fontes primárias. De facto, sobreviveram
poucos relatos detalhados para muitas das guerras que tiveram lugar nos séculos II e
III a. C., e para todo o Principado não se preservou uma narrativa de uma conflagração
contra povos fora do império comparável, no quer toca a pormenores, com a obra de
César, os Commentarii de Bello Gallico. Efectivamente, há escassos dados nas fontes
literárias antigas que ajudem a compreender bem a grande quantidade de documentos
arqueológicos e epigráficos relacionados com a presença do exército junto às fronteiras
do império. Não admira, pois, que isto tenha engendrado interpretações radicalmente
diferentes sobre as finalidades destas fronteiras e como estas funcionariam. Embora
algumas leituras comparativas com outras épocas sejam úteis, estes cotejos devem
fazer-se com extrema precaução, para que estes exercícios não ganhem precedência
sobre as fontes primárias.
A atenção dos investigadores centrou-se nos níveis mais altos e na polémica questão se
os imperadores romanos teriam verdadeira capacidade para conceber uma «grande
estratégia» para a defesa do império. Por enquanto, nesta matéria ainda não se reuniu
um amplo consenso, razão pela qual o debate continua bem aceso. Em contrapartida,
produziu-se um número bem menor de tratabalhos sobre a estratégia utilizada pelos
exércitos romanos em campanha. Muitas pesquisas incidiram em decisões estratégicas
particulares tomadas por ocasião de uma campanha específica, mas geralmente
incluindo comparações aleatórias com outras operações romanas 554.
Na medida em que cada estratégia é única, ditada pelas circunstâncias peculiares dos
acontecimentos e pelo grau de conhecimento acerca dos mesmos que possuíam aqueles
que tomavam a decisão (factores sobre os quais geralmente dispomos de informações
diminutas, vagas e imprecisas), justifica-se que se aborde cada escolha isoldadamente.
Contudo, ainda que cada situação militar possa traduzir um problema peculiar, os
comandantes, a título individual, da mesma sociedade, que ingressaram nas fileiras
mediante o mesmo processo de selecção (independentemente de qual tenha sido),
inclinar-se-iam a buscar soluções de maneiras similares. Assim, vamos explorar os
princípios em comum que estão subjacentes ao comportamento de um exército em
campanha.
Curiosamente, registaram-se poucas tentativas de examinar a estratégia desta forma.
Tal não se deveu à falta de evidências, na medida em que as descrições de guerras
figuram proeminentemente nos escritos de muitos historiadores gregos e romanos.
Parece-nos apropriado começar pelo nível da estratégia de campanha, antes de
transitar para a discussão das controversas mas fracamente documentadas questões
relativas à «grande estratégia» e à defesa fronteiriça. Talvez sirva, igualmente, para se
compreender alguns dos problemas suscitados pelo debate quanto a estes níveis mais
elevados de actividade e planeamento militares, se os perspectivarmos à luz da
actuação do exército romano em campanha.
214
conhecimento e experiência colectivos. Embora os soldados e os oficiais possam ter
voltado ao serviço militar, não o faziam nas mesmas unidades e com os mesmos
comandantes. Assim, sempre que se formava um novo exército na época republicana, o
treino e a preparação das legiões para o combate teria de começar de novo.
Ora, a crescente permanência das legiões, fenómeno confirmado por fim por Augusto,
mudou esta situação, possibilitando que muita da experiência acumulada pelos
efectivos fosse transmitida para sucessivas gerações de recrutas. Mas isto não significa
que todas as legiões sob o Principado se mantivessem permanentemente no pico da
eficiência, na medida em que para o efeito era necessária vasta e exitosa experiência na
participação em campanhas. A este respeito, podemos destacar a asserção de Hirtius,
de que em 51 a. C. a legio XI estava a servir na sua oitava campanha, mas ainda não
havia chegado à qualidade das legiões veteranas (César, B. Gall. VIII.8). Isto sucedia
apesar de a referida legião ter combatido na maior parte das operações militares de
César nas Gálias, período que se caracterizou, de longe, por muitos mais confrontos dos
que em que o exército do Principado veio a intervir. No âmbito literário, o ideal do bom
comandante continuou a ser o de um homem que não arriscaria a chefiar os seus
homens numa pugna antes que eles tivessem passado por um rigoroso e intensivo
regime de treino555.
Porém, não resta a menor dúvida que a qualidade média de cada legião profissional de
finais da República e do Principado era superior à das unidades arroladas em períodos
mais recuados, de acordo com o sistema da milícia. Mais significativamente ainda, o
exército profissional exibia um altíssimo grau de engenho, tanto nas suas obras
edificatórias como um índice muito acrescido na capacidade de tomar de assalto
fortificações556. Era uma consequência directa da maior continuidade de pessoal no seio
das legiões profissionais e da inclusão de oficiais e soldados especializados, treinados
como engenheiros, artífices e artilheiros, bem como a própria vontade dos legionários
em servirem como força de trabalho.
Com a criação de unidades regulares de auxilia durante a primeira metade do século I
da nossa era, tornou-se claramente mais previsível a qualidade dos soldados não
cidadãos a servirem no exército. Estas tropas não só forneciam uma proporção bem
considerável dos efectivos do exército, como também o dotavam de uma arma de
cavalaria disciplinada, afora archeiros, fundibulários e outros géneros de infantaria
ligeira. Assim, a maior parte dos exércitos de campanha romanos consistiam em forças
bem equilibradas e muito flexíveis.
Neste período, nenhum inimigo estrangeiro de Roma possuía forças numericamente
comparáveis de soldados profissionais bem treinados. Os Partos e os Persas Sassânidas
(os reinos independentes com mais poder em contacto directo com o Império) tinham
exércitos compostos a partir de uma mescla de soldados mantidos em regime de
permanência na casa real e de contingentes fornecidos por «sub-reis» e nobres, daqui
resultando massas heterogéneas de guerreiros habitualmente providos de uma
cavalaria de grande qualidade, mas carecendo de uma infantaria eficiente. Se bem que,
neste ponto, os Sassânidas se revelassem melhores do que os Partos, nenhum deles
conseguia rivalizar com a capacidade e o talento dos Romanos em conquistarem
posições fortificadas. Noutras paragens, os «filhos de Marte» lidaram com povos cuja
organização social era bem mais frouxa. A maior parte dos povos tribais dos
«exércitos» da Europa consistiam em pequenos bandos de guerreiros mantidos por
chefes individuais, juntamente com um número muito maior de elementos livres das
tribos capazes de se equiparem à sua própria custa, lutando em grupos familiares ou
clânicos.
Na maior parte destas sociedades, o poder de um líder media-se pela quantidade de
guerreiros que conseguia manter à sua volta. Alguns deles, como Ariovisto, Marobodus
e Arminius, na Germânia, ou Burebista e Decébalo na Dácia, reuniram bandos
englobando milhares de guerreiros, mas o mais usual era que tais grupos se cifrassem,
555
R. Davies, 1989, pp. 71-90.
556
E. Luttwak, 1976, pp. 40-41.
215
no máximo, em várias centenas. Subsistem escassos indícios de que estes guerreiros
semi-profissionais praticassem algo mais do que a destreza militar individual. Os
«exércitos» tribais eram muitas vezes grandes, mas invariavelmente desajeitados e
descoordenados nas suas movimentações. Afora escassas excepções, eles não tinham
capacidade para se aprovisionarem numa campanha de longa duração, pelo que se
viam forçados a dispersar ou a passar fome se não obtivessem um resultado satisfatório
no espaço de algumas semanas. Quanto às forças compostas por populações sublevadas
nas províncias romanas, elas variavam enormemente: se a rebelião ocorressse durante
os primeiros anos de ocupação, os insurrectos podiam estar bem organizados e
pelejarem segundo as tradições auctótones; nas províncias que já se encontrassem
ocupadas há mais tempo, as populações tornavam-se, em maior ou menor grau,
desmilitarizadas, o que dificultava sobremaneira os revoltosos na tarefa de organizarem
forças numericamente grandes, bem equipadas e eficientes, mesmo que incluíssem
pequenos contingentes de indivíduos altamente motivados 557.
Em múltiplos aspectos, o exército romano era claramente superior a qualquer dos
antagonistas que enfrentou no período em questão, facto que se manifestava sobretudo
em acções militares de larga escala, em que a disciplina, a instrução militar, o comando
e o controlo se tornavam mais importantes, e na guerra de assédio. Isto conferiu ao
exército romano o que E. Luttwak definiu como «dominação de escalada» sobre os
adversários558. Se razoavelmente adestrados, aprovisionados e competentemente
comandados, o que usualmente, mas nem sempre, era o caso, os Romanos reuniam
possibilidades de vencer uma campanha, em tudo excepto em termos iguais. Generais
como Lúculo, Pompeio e César mostraram que legiões bem comandadas podiam
derrotar numerosos inimigos com bastante à vontade. Qualquer análise sobre as
guerras de Roma contra oponentes estrangeiros no espaço temporal em apreço deve ter
em conta a acentuada inferioridade técnica e táctica dos últimos relativamente ao
exército romano. Acresce que os comandantes romanos possuíam uma auto-confiança
que por vezes raiava a temeridade ou a imprudência.
Passemos às vertentes ligadas à geografia, tanto política como física. Não há provas de
que os Romanos tenham travado uma guerra simplesmente para controlarem
território559. As guerras desencadeavam-se sempre contra um oponente humano, uma
entidade sóciopolítica como uma tribo, um reino, uma cidade-estado ou uma aliança
formada por várias destas unidades. Não se podiam ignorar as barreiras físicas e um
terreno difícil, mas a geografia política era o factor mais importante que determinava
onde iriam combater os exércitos romanos. Muitas das fronteiras entre tais unidades
políticas afiguram-se actualmente muito complexas de discernir, e torna-se impossível
identificar a fronteira entre o território de duas tribos apenas com base nos dados
facultados pela arqueologia, apesar de muitas vezes se terem feito tentativas neste
sentido, recorrendo os investigadores a moedas ou vários tipos de cerâmica. Em todo o
caso, provávelmente tais realidades raramente seriam componentes estáticas. As
relações e a possível hierarquia existentes no seio de alguns dos grupos nomeados, por
exemplo, as tribos gaulesas e germânicas também não se deslindam a partir das fontes
antigas que se conservaram, além de que os próprios Romanos deveriam ter uma noção
bastante vaga sobre essas divisões. Acresce que as referidas fronteiras flutuavam em
557
Para uma descrição pormenorizada dos exércitos gauleses, germânicos e partos: A. K. Goldsworthy, The Roman
Army at War, pp. 39-75; Kennedy, 1996, pp. 67-90, 83-84. Grande parte da abordagem feita por Elton sobre os
Bárbaros ocidentais na Antiguidade Tardia também é relevante e válida para os tempos anteriores: cf. 1996 b, pp. 45-88.
558
Luttwak, 1976, p. 42.
559
Citemos outra passagem de B. Isaac (The Limits of Empire, p. 395): «Mais importante ainda, não pode restar
qualquer dúvida de que o foco do imperialismo romano tendia a ser étnico, mais do que territorial ou geográfico. Os
Romanos conquistaram povos, não terras. Isto fica claro pela terminologia utilizada em numerosas fontes. Os Romanos
falavam de Imperium Populi Romani, o poder do povo romano, não de Imperium Romanum num sentido geográfico. A
literatura latina fala invariavelmente da guerra contra um povo ou o seu rei».
216
função do poder dos chefes individuais 560. Ora foi neste ambiente que ocorreram as
guerras do período aqui em foco.
Ao estudar uma campanha, o historiador moderno procura, instintivamente, traçar o
seu percurso e etapas num mapa. Este método é profícuo, na medida em que nenhum
exército pode ignorar as características concretas do terreno em que se movimenta,
mas afirma-se igualmente uma tarefa decepcionante. Lembremos que os mapas
detalhados e rigorosos constituem uma inovação bastante recente e mesmo nos dias de
hoje existem largas parcelas do mundo que permanecem mal cobertas. Até ao século
XIX, muitos exércitos tiveram de elaborar os seus próprios mapas antes ou durante as
campanhas, o que se traduziu numa importante função de desenvolvimento do pessoal
militar.
Certamente que os Romanos necessitavam de obter informações topográficas da área
onde iria ter lugar uma campanha, embora eles não tenham reunido estes dados em
mapas elaborados á maneira moderna. A maior parte dos elementos informativos que o
exército precisava teria de ser reunida por patrulhas que, por vezes, incluíam oficiais
superiores e até o próprio comandante das forças armadas. As patrulhas não se cingiam
a explorar o terreno, visto que também interrogavam os habitantes da zona em causa e,
ocasionalmente, utilizavam guias auctótones. Depois, quase todo este conjunto de
informes era descrito em palavras, em vez de o transpor e representar numa espécie de
diagrama561.
A quantidade de informações geográficas à disposição dos comandantes romanos antes
de uma campanha variava consideravelmente em função das circunstâncias: uma
província, logo no interior do império, seria inevitavelme nte mais bem conhecida do
que o território não administrado por Roma. Ainda assim, há indícios de que se
mantinham apenas registos completos das estradas oficiais romanas, ao passo que as
outras vias, se bem que estabelecidas, se apontariam de maneira vaga. As guarnições
estacionadas na área estariam presumivelmente aptas a oferecer dados específicos
sobre tais caminhos562. Muitas dos informes obtidos relacionar-se-iam com os meios de
comunicação que davam acesso às principais localidades, através das quais um exército
marchava. Isto manifestava-se claramente no comportamento de uma força em
campanha, na medida em que havia uma grande propensão em seguir os mesmos
itinerários utilizados por tropas romanas que já tivessem operado nessa zona.
Em termos arqueológicos, a Alemanha e a Inglaterra oferecem muitos exemplos
palpáveis de sucessivos acampamentos de marcha construídos nos mesmos sítios, daí
que os exércitos romanos, por vezes décadas volvidas, optavam não só por marchar
pela mesma via, como também paravam nos mesmos intervalos, acampando quase nos
mesmos locais. Os factores que tornavam determinado um lugar apropriado para um
acampamento temporário erigido no decurso de uma operação bélica anterior podiam
ainda ser evidentes numa campanha posterior. Esta tendência reforça a imagem de um
exército que se centrava em vias concretas com um objectivo em mente 563.
217
É quase desnecessário dizer que os Romanos lutavam sempre pela vitória, mas as
causas das guerras, a nível individual, contribuíram muito para moldar o seu curso.
Cada conflito tinha, alegadamente, um motivo e um objectivo distintos, mesmo que
este facto não fosse consensualmente aceite. A questão de até que ponto a sociedade
romana, sobretudo sob a República, necessitou de participar numa constante sucessão
de guerras para conferir glória e riqueza à sua aristocracia, ou fornecer à economia
fornadas de prisioneiros (parte dos quais se convertiam em mão-de-obra servil), é
assunto que não nos cabe aqui desenvolver. Interessa-nos mais como é que o exército
romano fazia a guerra. Talvez seja conveniente agrupar as guerras contra inimigos
estrangeiros neste período em quatro grupos básicos, baseando-nos no modelo
classificatório preconizado por A. K. Goldsworthy:
Guerras de conquista. Implicavam um ataque contra um povo independente, fosse
um reino ou um estado. Em certos casos, a vitória romana resultava na criação de uma
nova província permanente, para administrar o território conquistado, mas era
igualmente possível que o inimigo derrotado ficasse reduzido à condição de cliente ou
aliado. Em ambas as situações o antagonista subjugado via-se incorporado no império.
O objectivo primacial de um exército de conquista era conseguir e manter o controlo
sobre o povo invadido. Os melhores meios para atingir esta meta dependiam da
organização social e política do inimigo. Se este dispusesse de uma força armada em
campanha, então a sua derrota numa batalha campal (ou ocasionalmente numa série
de recontros), depressa poderia conduzir à sua rendição. Estas derrotas mostravam
incontestavelmente que os Romanos eram mais fortes.
Todas as tribos da Gallia Belgica que estiveram presentes no Sambre, em 57 a. C.,
capitularam no rescaldo de uma refrega. Noutras fases das campanhas gaulesas, a
derrota de um «exército» tribal, tanto na Gália, como na Britânia ou Germânia,
obrigava muitas vezes a tribo a tentar negociar um acordo (B. Gall. II, 28, 3.27). No
caso dos Veneti, a sua marinha, mais do que o seu «exército» representava a principal
fonte de orgulho marcial da tribo, e só quando esta se envolveu em combate e foi
destruída é que a campanha terminou (B. Gall. 3.9, 3.12, 3.14-16). Assim, ganhar uma
batalha em campo aberto assegurava uma vitória célere e decisiva. Como vimos, os
exércitos romanos gozavam de muitas vantagens sobre os seus oponentes neste género
de porfia. Porém, tal não significa que um general romano procurasse livrar batalha em
todas as situações. No início da sua campanha do ano 57, Júlio César decidiu não
enfrentar as hostes concentradas das tribos da Belgica, não obstante ambos os lados
permanecerem bastante próximos um do outro durante algum tempo: nenhum dos
exércitos mostrou vontade de abandonar a sua posição para investir e, deste modo,
poder ficar em desvantagem (B. Gall. 2.7-8). De facto, as batalhas implicavam quase
sempre uma boa dose de risco, e um bom comandante demarcava-se por saber travá-
las apenas nas circunstâncias mais favoráveis e quando existiam perspectivas de
ganhos tangíveis564.
Recuando mais no tempo, em 134 a. C. Cipião Emiliano negou-se a ferir batalha com os
Numantinos, mesmo beneficiando de uma tremenda superioridade numérica de
efectivos (Apiano, Hisp. 87, 90-92). A precaução deste célebre general explica-se pelo
conjunto de recentes e humilhantes derrotas dos Romanos infligidas pelos Celtiberos.
Consequentemente, o moral dos soldados situava-se num dos seus níveis mais baixos e,
neste altura, o êxito numa contenda dependia, acima de tudo, do estado anímico das
tropas. Ao evitar um choque campal, Cipião resolveu montar assédio a Numância e
levar os sitiados à submissão. A rendição final de Numância pôs termo à guerra.
Tanto antes como depois da refrega junto ao Sambre, César venceu várias tribos da
Belgica ao assaltar os seus oppida mais importantes (B. Gall. 2.12-13, 2.29-33). A
564
B. Gall. 7.52.53. Para mais detalhes, A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 204-206.
218
tomada da cidade mais emblemática de um povo, especialmente se ela tivesse um forte
significado político ou religioso, conduzia muitas vezes à capitulação. Em princípios do
século II d. C., Trajano parece ter feito da capital dácia de Sarmizegetusa o seu
principal alvo, nas duas primeiras guerras na Dácia: o cerco da cidadela avulta nos
relevos da Coluna de Trajano; em 102, a ameaça directa que pairava sobre a capital
compeliu Decébalo a buscar a paz; em 106, a conquista da mesma, para além de uma
série de derrotas e a perda de muitas praças-fortes, fez com que o rei dácio, em
desespero de causa, cometesse suicídio565.
Um inimigo que se negasse a ferir batalha podia ver-se forçado a fazê-lo por causa do
perigo que corriam as suas praças-fortes: tanto Metelo como Mário fixaram como alvos
as localidades amuralhadas da Numídia de Jugurta, acabando por tomá-las uma a uma,
o que obrigou o soberano a travar combate566.
O exército profissional romano revelou grande proficência na guerra de assédio e, não
raramente, aceitava sofrer pesadas baixas num assalto directo. Mesmo assim, o êxito
jamais era garantido e o cerco de qualquer posição fortificada de razoáveis dimensões
traduzia-se numa operação que demorava consíderavel espaço de tempo. Manter um
elevado número de tropas concentradas num local suscitava, inevitavelmente,
problemas de aprovisionamento, que aumentavam ainda mais quando o clima, a
estação do ano ou as condições locais reduziam a quantidade de comida, água,
forragens e madeira obtidas na zona. As extensas linhas de abastecimento que
suportavam um exército sitiante ofereciam, ademais, alvos tentadores para forças
inimigas que se caracterizassem pela sua mobilidade. Note-se, a propósito, que a
expedição contra os Partos conduzida por Marco António redundou num fracasso
depois de se registarem ataques sobre as suas linhas de abastecimento; numa das
investidas, o adversário logrou destruir o trem de campanha que reunia a maior parte
dos engenhos de assédio romanos567.
Usualmente, um povo politicamente unido podia ver-se obrigado a claudicar a seguir à
derrota da sua principal força militar (fosse exército ou marinha) ou à perda dos seus
centros mais importantes. Comunidades com uma organização sóciopolítica menos
estruturada raramente tinham alvos tão evidentes. Quando o inimigo estava repartido
por muitas cidades ou aldeias semi-independentes, ou em pequenas subdivisões de
tribos maiores, então havia que derrotar cada uma destas componentes em separado.
Estes conflitos desenrolavam-se numa escala menor, dividindo-se o exército romano
em destacamentos mais pequenos para conquistar cada assentamento ou vencer os
seus guerreiros em batalha.
A reconquista da Judeia, que se seguiu ao êxito inicial das sublevações contra Nero e
Adriano, exigiu, em cada um dos casos, a captura de elevado número de cidadelas e
aldeias fortificadas (Díon Cássio, Hist. rom. 69.12.3-13.3). Este género de conflito podia
ser árduo, mas se o exército romano dispusesse de recursos e determinação para
completar a tarefa, o seu sucesso estaria praticamente garantido.
Em 56 a. C., o primeiro ataque de César contra os Menapii e os Morini de pouco serviu
quando os membros das tribos se recusaram bater-se num confronto campal e se
esconderam nas florestas e pântanos, só reaparecendo para fazer uma emboscada aos
Romanos. César mandou talar os seus campos, incendiar umas quantas aldeias e
quintas, mas depois resolveu retirar-se com as tropas para os aquartelamentos de
Inverno, apesar de as tribos ainda não se terem rendido (B. Gall. 3.28). No ano
seguinte, alguns dos Morini enviaram representantes para obter a paz. Contudo, eles
rapidamente romperam a trégua, arremetendo contra um grupo isolado de 300
romanos, cujos navios se tinham afastado mais da costa do que o resto da frota que
regressava da Britânia. A cavalaria partiu em socorro desse contingente e, nos dias
subsequentes, César ordenou a Labieno que avançasse com duas legiões contra a tribo:
565
Díon Cássio, Hist. rom. 68.9.4-7, 14.3; Xifilino, 8.3; Lepper e Frere, 1988, pp. 304-307.
566
Salústio, B. Iug. 56. Algo de idêntico ocorreu amiúde nas campanhas contra a Pártia – por exemplo, Díon Cássio, Hist.
rom. 40.13.1, 40.16.3, 40.20.3; Tácito, An. 13.37.41.
567
Plutarco, Vida de Marco António, 38. Cf. Díon Cássio, Hist. rom. 68.31.1-32.1.
219
os Morini depressa se renderam, escrevendo César que as zonas pantanosas se
achavam mais secas nesse ano e ofereciam um fraco abrigo. Entretanto, outra coluna
romana marchou de encontro aos Menapii e, uma vez mais, devastou o seu território
mas não conseguiu que a tribo se submetesse (B. Gall. 4.36.38). No Inverno de 54-53 a.
C., uma legião ficou estacionada para vigiar os Morini e, a dada altura, César tornou a
tribo tributária do seu aliado Commius, o Atrebatiano (B. Gall. 5.24, 7.76). Quando
César voltou a atacar os Menapii em 53, os Gauleses bateram em retirada com as suas
famílias e bens para zonas arborizadas e pantanosas dificilmente acessíveis. Mas, desta
vez, os Romanos construiram calçadas ao longo dos pântanos e, ao distribuirem-se em
três colunas deslocando-se velozmente, destruiram quintas e aldeias, além de
arrebatarem cabeças de gado e capturarem muita gente. Em face de tudo isto, a tribo
acabou por buscar a paz (B. Gall. 6.5-6).
A fraca estrutura sociopolítica de alguns povos tribais, que usualmente tinham
múltiplos pequenos chefes mas não uma clara autoridade central, e a independência de
muitos guerreiros parecem ter desconcertado os Romanos. Na Hispânia, em 152 a. C.,
Cláudio Marcelo aceitou a rendição dos Nerobriges e exigiu-lhes, em troca, que
fornecessem 100 cavaleiros. No entanto, pouco depois, a sua coluna sofreu uma
acometida de alguns guerreiros desta tribo. Mais tarde, quando o número acordado de
auxiliares chegou, Marcelo mandou acorrentá-los, não obstante eles afirmarem que os
homens que armaram a emboscada não tinham conhecimento do tratado celebrado.
Pode ter havido traição, mas ainda mais provável seria o facto de os elementos da tribo
não perceberem por que razão os Romanos os culpabilizaram pelo comportamento
agressivo dos seus parentes étnicos que, tal como eles, eram guerreiros livres (Apiano,
Hisp. 9.48).
A invasão da Britânia, durante o reinado de Cláudio, conheceu confrontos de todos os
tipos e proporções atrás mencionados. Inicialmente, o alvo principal consistiu na forte
confederação tribal organizada em torno dos Catuvellauni e dos Trinovantes, chefiada
por Caratacus e Togodumnus. Os Bretões possuíam forças consideráveis e desejavam
ardentemente porfiar contra os invasores romanos. Mas a demora no desencadear da
expedição veio a dispersar das hostes britânicas, pelo que Caratacus, em primeiro logo,
e depois o seu irmão, à cabeça de reduzidos contingentes de guerreiros, acabaram por
ser vencidos em separado. Quando voltaram a mobilizar os seus homens, os líderes
bretões resolveram, novamente, livrar batalha na defesa de um rio, possivelmente o
Medway, onde sofreram mais uma derrota, após uma encarnecida pugna que se
arrastou por dois dias. Pouco mais tarde, os Romanos forçaram a passagem do Tamisa
e, no combate que se seguiu, pereceu Togodumnus.
Por motivos de ordem política, o exército romano interrompeu as operações, e o seu
comandante, Aulo Plautio pediu a ajuda do próprio imperador. A seguir à chegada de
Cláudio, os Romanos venceram mais uma vez os Bretões e tomaram o principal
oppidum de Camulodunum. Em resultado destas primeiras derrotas, registaram-se
defecções entre os dependentes dos Catuvellauni, principalmente uma parte dos
Dobunni, o que marcou o colapso da sua confederação, na medida em que muitos
chefes se renderam formalmente ao imperador (Díon Cássio, Hist. rom. 60.19-22.2).
A partir de então, o exército invasor repartiu-se em destacamentos para continuar a
conquista. Pelo menos um dos comandantes dos legionários, o futuro princeps
Vespasiano, parece ter gozado de substancial liberade de iniciativa nas acções
empreendidas no Sudoeste da Britânia. A acreditarmos em Suetónio (Vespasiano, 4),
ele venceu duas tribos, uma delas correspondendo à dos Durotriges, participou
exitosamente em 20 refregas, tomou 20 oppida e conquistou ainda a ilha de Wight.
Aparentemente, os Durotriges careciam de uma sólida autoridade central, daí que o
poder se encontrasse disperso pelas mãos dos chefes de numerosos fortes situados no
topo de colinas que pontilhavam o seu território. O grande número de contendas e
cercos em que esteve envolvida uma força não maior do que uma única legião (II
Augusta) e os seus auxiliares indica que muitas destas operações seriam de reduzida
220
escala. Uma coisa é certa – estas campanhas demonstraram a indiscutível capacidade
de adaptabilidade ao teatro dos conflitos e um altíssimo nível de eficácia 568.
Guerras de supressão de revoltas. Consistiam na derrota de um povo, reino,
estado ou seguidores de um líder (ou líderes) no interior do império. Uma vitória
romana significava o restabelecimento do controlo sobre a região e a respectiva
população. Ao deflagrar uma sublevação, a iniciativa cabia inevitavelmente aos
insurrectos. Então, a prioridade máxima estabelecida pelos comandantes romanos que
tentavam jugular uma rebelião radicava em assumir o controlo dos acontecimentos e
definir o curso da campanha.
Em 48 e em 60 d. C., anos em que os Iceni se rebelaram, os Romanos reagiram, em
ambas as ocasiões, ao contra-atacarem de imediato utilizando as forças que tinham
disponíveis (Tácito, Anais, 12.32, 14.31-39). Igualmente rápida foi a reacção de César
ante a revolta dos Eburones e Nervii, no Inverno de 54-53 a. C. Com apenas duas
legiões desfalcadas e alguma cavalaria, o general romano 569 avançou para socorrer a
guarnição sitiada de Quinto Cícero. A pequena coluna dispunha de escassos
mantimentos, apenas recolhendo, a custo, mais alguns víveres na paisagem invernosa,
não reunindo condições para realizar uma campanha de longa duração. Mas César
conseguiu atrair os Nervii para um confronto, neutralizando-os e assim levantando o
cerco sobre o acampamento de Cícero (B. Gall. 5.24-52)570. Durante a Guerra das
Gálias, outras insurreições conduziram igualmente a reacções igualmente firmes e
imediatas por parte dos Romanos: em 52 e 51 a. C., César efectuou uma série de contra-
ataques fulminantes contra tribos rebeldes, muitas vezes sem beneficiar de grandes
meios de aprovisionamento (B. Gall. 7, 6.13, 8.3-13).
Quando eclodia uma rebelião, qualquer êxito que os sublevados atingissem podia
encorajar outros a juntarem-se-lhes: os Nervii apenas se revoltaram em 54 a. C., depois
de os Eburones terem atacado e vencido Sabino e Cota (Cotta). Até a inacção por parte
dos Romanos era passível de se interpretar como amostra de fraqueza, concorrendo
para a disseminação de uma revolta. Neste sentido, uma resposta pronta e resoluta das
forças romanas que se localizassem mais perto do foco sedicioso transmitia uma
mensagem de força e auto-confiança que, esporadicamente, era suficiente para
aterrorizar a oposição. Na Judeia, em 4 a. C., o governador da Síria, Públio Q. Varão
logrou reprimir os incidentes que ocorreram a seguir ao falecimento de Herodes-o-
Grande, por meio de uma rápida e intimidatória exibição de poderio militar. Porém,
uma reacção também agressiva conduzida pelo mesmo homem, face a rumores de uma
revolta na Germânia em 9 d. C. culminou, como vimos, num enorme desaire.
Analogamente, em 66, o envio de um exército apressadamente mobilizado para a
Judeia, procedente da Síria, falhou o objectivo do esmagamento da sublevação em
Jerusalém, e até provocou outra, ainda que menos espectacular, desastre para as armas
romanas (Flávio Josefo, Bell. Iud. II.39-79, Díon Cássio, Hist. rom. 56.18-22).
Posto isto, os comandantes que lidavam com sublevações teriam de levar em linha de
conta a necessidade de uma acção imediata, mas avaliando e ponderando os riscos de
sujeitarem forças numericamente pequenas e indevidamente preparadas a derrotas, o
que, a acontecer, mais motivaria o inimigo. Os bons generais tentavam, se possível,
reunir grandes efectivos e de elevada qualidade. Tanto Júlio César, em 54 a. C., como
Suetónio Paulino, em 60 d. C., mandaram mensageiros para convocar mais legiões.
Mas não aparecendo estas, e não havendo perspectivas de reforços iminentes, ambos os
comandantes agiram com as tropas que já tinham sob as suas ordens. Estas rebeliões
tiveram lugar quando a conquista de uma província ainda não terminara, daí os
Romanos manterem forças de certa envergadura no teatro de operações.Quanto às
províncias ocupadas há bastante tempo, não subsistem elementos que indiquem que as
suas tropas de guarnição se encontrassem permanentemente preparadas para a guerra.
568
Maxfield, 1986, pp. 70-71; 1989 a, pp. 24-25.
569
César tentou obter uma terceira legião, mas apoiou a decisão do seu comandante em manter as suas tropas no local, já
que havia o perigo de a revolta se propagar a essa região.
570
Para uma descrição mais detalhada sobre esta campanha, veja-se A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War,
pp.79-84.
221
As unidades do exército forneciam destacamentos para uma multiplicidade de tarefas e
missões, alguns por vezes mal treinados e com poucos efectivos. Era, também,
extremamente difícil arranjar de repente as provisões e o transporte necessários para
manterem um exército numa longa campanha. Vários dos reveses atrás citados
aconteceram principalmente porque as colunas romanas não estavam preparadas para
participar numa verdadeira campanha. Assim, se uma destas forças deparasse com viva
resistência por parte do inimigo era quase certo que sofreria uma derrota. No entanto,
esperar pela formação e envio de um exército mais poderoso só valeria a pena se,
efectivamente, houvesse garantias de reforços e recursos. Se isto não sucedesse, a
maioria dos comandantes resolvia investir, como dissemos, com os seus homens.
Em 26 d. C., ao circularem rumores que as tropas auxiliares trácias não iriam mais
integrar unidades étnicas e seriam enviadas para o estrangeiro, algumas tribos
insurgiram-se: o romano Popeus Sabino (Poppeos Sabinus) procurou retardar o
inimigo, fingindo querer negociar. Quando, os reforços esperados (uma legião e
contingentes de auxilia) chegaram da Mésia, Sabino tomou uma atitude ofensiva:
conquistaram-se diversas posições fortificadas e travaram-se alguns recontros. Por fim,
quando a principal força trácia se recusou a travar batalha, Sabino começou a assediar
o seu forte alcandorado numa colina: só uns quantos elementos tribais conseguiram
escapar do cerco romano, e a revolta findou no momento em que os restantes
sublevados se renderam (Tácito, Ann. 4.46-51). Neste caso, Sabino adiou a acção até
que dispusesse de adequados meios, visto que sabia que estes já vinham a caminho.
Por seu lado, durante a revolta de Bar Kochba, Júlio Severo mostrou-se relutante em
defrontar os insurrectos em campo aberto, optando por conduzir uma guerra feita de
incursões e emboscadas, ganhando muitos combates de pequena escala e centrando-se
na conquista das praças-fortes adversas (Díon Cássio, Hist. rom. 69.13.1-14.3)571.
Se bem que o exército romano gozasse de claras vantagens na prossecução das formas
mais intensivas de combate, isto não quer dizer que as forças romanas tentassem
porfiar sempre da mesma maneira. Os «filhos de Marte» adaptavam-se a lutar contra
diferentes antagonistas, recorrendo a diversas modalidades conflituais. À semelhança
do que ocorria nas guerras de conquista, podiam escolher uma de várias alternativas:
atacar as mais importantes praças-fortes do inimigo; enfrentar o seu exército; ou
saquear as suas explorações agrícolas e aldeias, destruindo as colheitas e capturando
cabeças de gado. Os comandantes romanos mais competentes tinham o cuidado de
explorar todas as eventuais vantagens sobre o inimigo, não praticando, portanto, a
guerra segundo um modelo rígido.
Expedições punitivas/retaliatórias. Operações contra um povo, reino ou um
estado que não visavam a sua incorporação permanente no império. As fontes antigas
apresentam frequentemente estes ataques romanos. O seu objectivo era o de provocar o
maior dano possível num adversário, impedindo-o assim de levar a cabo futuras acções
hostis contra Roma. Estas expedições permitiam aos Romanos dominar uma região
sem a ocupar ou anexar. Geralmente, estas campanhas justificavam-se como respostas
duras a raides efectuados contra os aliados de Roma, mas muitas vezes significavam
uma modalidade de retaliação ou vingança face a golpes que haviam ferido o orgulho
romano.572Levavam-se a cabo operações deste tipo sobretudo contra oponentes tribais.
Em 51 a. C., Cícero conduziu uma expedição, à frente de duas legiões incompletas de
contingentes de socii contra os povos do monte Amanus; dividiu o seu exército em três
colunas para realizar ataques-surpresa sobre uma série de povoados, e, ainda, cercou
uma das fortificações mais importantes da área, que capitulou passados 57 dias. Ante a
ameaça de assédio, outra cidadela nas imediações decidiu capitular (Cícero, Ad Fam.
15.4). Esta expedição mostrou inequivocamente à população local que os Romanos
conseguiam atacar os seus redutos nas montanhas, se provocados. Manter uma
operação de sítio ao longo de quase dois meses, de uma obscura localidade revelou a
determinação e a superioridade técnica dos Romanos. Mais tarde, o esforço e o tempo
571
Cf. ibidem, 744.2: revolta dos Bucoli, em 172 d. C.
572
Tema abordado por Mattern: 1999.
222
que as tropas dedicaram para eliminar o pequeno número de rebeldes que se
encontrava na fortaleza de Masada enfatizam o tremendo empenho do exército na
neutralização completa de todos os focos de resistência na Judeia 573. Tais iniciativas
criavam a imagem de um poder demolidor, embora este naturalmente se visse
enfraquecido caso os Romanos sofressem derrotas. Pouco após a campanha de Cícero
na Cilícia, Bíbulo, governador da Síria, organizou uma expedição punitiva por si
mesmo, rumo à mesma região montanhosa, que resultou num pesado fracasso, assim
dissipando a ilusão da força invencível dos «filhos de Marte» (Cícero, At. 5.20).
Júlio César conduziu muitas expedições deste género durante a Guerra das Gálias.
Como Cícero, ele valorizou o factor-surpresa, ao desencadear ataques inesperados ou
fora da estação normal das campanhas, avançando com poucas bagagens para não
retardar a progressão da coluna. Usualmente, as bagagens do exército depositavam-se
num lugar bem defendido e dissimulado, enquanto o resto dos soldados marchava, com
maior rapidez, para efectuar incursões de curta-duração na área circundante. Certa vez,
as tropas cesarianas não atearam fogo às povoações por onde foram passando, porque
as nuvens de fumo alertavam o inimigo quanto à sua presença e proximidade (B. Gall.
8.3). Nos seus Commentarii, César salientou a frequência da prática dos raides por
parte dos povos gauleses e germânicos. Os Romanos adoptavam, então, tácticas
idênticas às das tribos, se bem que mais eficazmente e em maior escala.
Em 14-15 d. C., Germânico e Cecina, por seu turno, chefiaram colunas incluindo quatro
legiões (acompanhadas de auxiliares) nas incursões repressivas que fizeram ao longo
do Reno (Tácito, Ann. 1.50.81; 1.55-57; 1.60). Ao actuarem rapidamente, muitas vezes
os Romanos não deparavam com grande oposição, até porque levava tempo a que uma
tribo reunisse as suas forças. Quando se livrava uma batalha, era, em regra, no
momento em que uma coluna romana se estava a retirar da zona 574.
Na maior parte das situações, os Romanos não tinham como objectivo provocar o
inimigo para travar batalha. Repare-se que César considerou que a empresa da
construção de uma ponte sobre o Reno e o facto de conseguir avançar confiante para
leste já eram feitos mais do que suficientes tanto em 55 como em 53 a. C. (B. Gall. 4.19;
6.29). Na ocasião em que os Suebi se retiraram para o seu território e começaram a
renir forças, César achou melhor não defrontá-los numa refrega. Para os Romanos, o
essencial era mostrar que, caso o desejassem, logravam atingir uma tribo e devastar as
suas terras impunemente. Aliás, a devastação correspondia à principal finalidade deste
tipo de operações575. Transformavam-se as casas e as colheitas do inimigo em pastos de
chamas e apanhava-se o gado do inimigo. O impacto destas incursões era, sem dúvida,
terrível para as comunidades que se encontrassem no caminho do exército romano,
embora aquelas que até se situassem a uma distância relativamente pequena da linha
de marcha dos Romanos e o alcance dos seus bandos rapinantes podiam não se ver
afectados de maneira directa. Contanto que não se repetissem ano após ano, parece
improvável que tais raides gerassem sérios problemas económicos para a tribo ou
«estado» que fora escolhido como alvo: afinal, as habitações, feitas de madeira e adobe,
depressa se reconstruíam e o grosso dos animais e os depósitos de víveres eram
geralmente colocados fora do alcance dos invasores.
Todavia, quando uma tribo se via apanhada desprevenida ante estes ataques, então ela
revelava a sua vulnerabilidade e as consequências resultavam num rude golpe para o
seu orgulho. O medo de sofrer mais assaltos obrigava muitas vezes um povo a
submeter-se, ainda que o profundo ressentimento gerado pelas expedições punitivas
pudesse servir de catalisador de futuros conflitos.
Noutras circunstâncias, os Romanos buscavam uma confrontação directa com o
adversário: em 28 d. C., os Frisii atacaram um contingente militar romano que estava a
arrecadar o tributo, matando alguns soldados e cercando os restantes no forte
573
E. Luttwak, p. 117.
574
Por exemplo, Tácito (Annales, 1.51; 1.56) achou estranho que os Chatii não tivessem atacado a retaguarda das forças
romanas.
575
Para uma visão detalhada sobre os actos de pilhagem, veja-se J. Roth, 1999, pp. 148-154.
223
localizado em Flevum. O legado da Germânia Inferior, Lúcio Aprónio, reagiu com a
típica prontidão romana: reuniu rapidamente destacamentos de legionários e
auxiliares, transportou-os pelo Reno abaixo e realizou uma violenta investida contra a
tribo. Apesar de Tácito referir que o general encetou a construção de calçadas e
estradas para facilitar o trânsito das suas colunas e dos víveres num terreno pantanoso
e acidentado, Aprónio agiu insensata e precipitadamente, decidindo atacar antes que as
obras estivessem concluídas. Fica claro que ele desejava combater o inimigo o quanto
antes. Mas a operação padeceu de uma má coordenação e as suas tropas foram
derrotadas sem grande dificuldade, sofrendo pesadas baixas; o corpo principal só muito
a custo veio a escapar (Tácito, Ann. 4.72-73).
Guerras em resposta a invasões ou incursões. As operações deste tipo
representavam o oposto da categoria precedente. Se os Romanos fossem vistos como
incapazes de proteger os seus aliados e províncias de incursões, isto punha em causa a
sua reputação bélica e aumentava a probabilidade de ocorrerem mais ataques. Em
meados do século II a. C., vários carismáticos líderes lusitanos realizaram raides em
larga escala na província romana; numa das fases, Viriato logrou obrigar muitas
comunidades aliadas de Roma a pagarem tributo. Sucessivos governadores romanos
envidaram todos os esforços para interceptar e neutralizar tais grupos ou então para
organizar expedições punitivas. Uma incursão lusitana que obtivesse despojos ou
derrotasse uma coluna romana encorajava a prática de mais acções deste género e em
proporções cada vez maiores576.
Em 50 d. C., alguns bandos guerreiros Chatti penetraram várias vezes na Germânia
Superior. O governador, Públio Pompónio Secundo enviou unidades de infantaria e
cavalaria auxiliares para apanhar o inimigo, enquanto foi reunindo o grosso das suas
forças. Secundo ordenou aos seus auxilia para interceptarem os bárbaros se estes
fugissem ou, caso se dividissem em grupos mais pequenos, para os encurralar. Os
Romanos repartiram-se em duas colunas, uma das quais descobriu um bando de Chatti
carregado com o produto das suas pilhagens: como muitos deles estavam embriagados
quase não opuseram resistência, sendo facilmente chacinados ou capturados; a outra
coluna deparou com uma força disposta a combater, a qual também foi vencida.
Pompónio estava à espera que estas derrotas conduzissem os Chatti a buscar vingança
e a livrar novo prélio. Mas, em vez disso, os Germanos despacharam emissários para
estabelecer a paz, assim indicando que não pretendiam envolvir-se num conflito sério
com os Romanos, pois que se tal sucedesse eles ficariam mais expostos aos ataques dos
Cherusci, seus tradicionais inimigos (Tácito, Ann. 12.27-28).
Contudo, era difícil interceptar os bandos que faziam raides nas províncias, já que se
movimentavam com muita velocidade e tinham a vantagem do factor-surpresa. Além
disso, também levava algum tempo a detectar a presença desses grupos e a organizar
uma força de reacção. Mas quando estes bandos rapinantes atingiam o seu objectivo e
arrebatavam fartos despojos, o ritmo da sua progressão diminuía. Consequentemente,
a altura melhor para os Romanos os apanharem era quando eles batiam em retirada
para o seu território. Carregados com o espólio, estes bandos tornavam-se presas mais
fáceis, daí que considerável número de ocasiões, foram surpreendidos e eliminados
pelas tropas romanas577.
Entre 17 e 24 d. C., o maior problema suscitado pela rebelião de Tacfarinas radicou no
facto de este fazer incursões numa província estabelecida. Embora Camilo tenha
vencido o númida numa batalha campal, nem assim o poder deste antigo auxiliar do
exército romano esmoreceu. Depois dessa contenda, Tacfarinas conduziu raides em
reduzida escala, movimentando-se rapidamente para não ser interceptado. Quando as
acções resultaram em êxitos, ele aumentou gradualmente a amplitude dos seus ataques.
Quando desbaratou uma coorte romana, a fama e a auto-confiança de Tacfarinas
cresceram ainda mais, incentivando-o a realizar outra investida directa contra uma
guarnição romana. O fracasso desta tentativa levou a que Tacfarinas pusesse de parte
576
Dyson, 1985, pp. 187-197, 199-216.
577
Por exemplo, Tácito, Hist. 1.79. Cf. Elton, 1996 b, pp. 214-217.
224
futuros assaltos a bases romanas, mas o certo é que se assistiu a uma autêntica escalada
de raides contra assentamentos desprovidos de defesas. Uma incursão na faixa costeira
da província romana produziu tantos despojos que a necessidade de os transportar e
proteger restringiu e abrandou os movimentos dos saqueadores, o que permitiu que
uma coluna romana os apanhasse e derrotasse. No entanto, os raides continuaram e o
governador seguinte, Blésio (Blaesius) decidiu dividir as suas forças em três colunas
móveis para perseguir os pequenos grupos velozes de salteadores. Tomou igualmente o
cuidado de proteger o maior número possível de aglomerados, através da presença de
tropas ou por meio de fortificações. Estas medidas surtiram algum efeito, mas a
reduzida escala em que o inimigo actuava obrigou os Romanos a repartir as suas forças
em contingentes ainda mais pequenos, prosseguindo com a guerra durante os meses de
Inverno.
Ainda a vitória não se concretizara a favor dos Romanos quando Tacfarinas propalou o
boato de que os Romanos planeavam evacuar a província de África devido a todo um
conjunto de problemas que assolava o império. Os Romanos não tardaram a reagir,
utilizando quatro colunas de campanha, cada uma provida de contingentes auxiliares
mauri, que também funcionaram como guias, visto que conheciam bem o terreno e
estavam familiarizados com as condições locais. E eis que, a dado momento, se
localizou o acampamento de Tacfarinas, e as tropas romanas fizeram um ataque-
surpresa, não sem antes terem de marchar em passo acelerado para chegar a esse sítio.
Tacfarinas foi morto e, como frequentemente acontece quando desaparecem chefes
carismáticos, a vontade do inimigo em oferecer oposição colapsou (Tácito, Ann. 2.52,
3.20-21; 3.73-74; 4.23-25).
Este género de campanhas ilustra a flexibilidade e a capacidade de adaptação do
exército romano, que recorria a uma série de variegadas tentativas para solucionar os
problemas. Mas tais operações ilustram, também, a dificuldade que havia em defender
uma grande quantidade de localidades espalhadas por uma vasta área. É importante
realçarmos este ponto se quisermos avaliar como funcionariam, em termos militares, as
zonas fronteiriças de Roma. No referido caso de Bleso, este só conseguiu assegurar
verdadeiramente a protecção das povoações através do reforço dos seus efectivos, que
subiram para quase o dobro com a vinda da legio IX.
É bem provável que muitos povos tribais tivessem a percepção de que uma província
romana ficava especialmente vulnerável no perío de transição entre dois governadores.
Legados recém-chegados, como Corbulão na Germânia Inferior ou Escápula (Scapula)
e Agrícola na Britânia, encontraram as suas províncias em ebulição, mas vieram a
surpreender o inimigo com a firmeza e rapidez com que assumiram o mando (Tácito,
Ann. 11.18-19; Agrícola, 18). Em 57 d. C., circulou o boato de que Nero tinha proibido
os seus legati de comandarem os exércitos contra os antagonistas: então, os Frisii
resolveram ocupar uma superfície de terra fértil junto ao Reno, mas os Romanos
depressa os expulsaram (Tácito, Ann. 13.54). Pouco depois, os Ampsivarii, que se
viram sem as suas terras no seguimento do conflito com os Chauci, fixaram-se na
mesma área onde haviam estado os Frisii. O comandante romano, actuando em
concertação com o governador da outra província germânica (que organizou uma
manifestação de força contra os potenciais aliados dos Anpsivarii) erradicou, de novo,
os bárbaros estabelecidos nessa zona próxima do rio. Nesta campanha, é possivel que
nem se tenha travado qualquer combate: as demonstrações do poderio militar romano
foram, talvez, suficientes para obrigar os aliados a retroceder e os próprios Ampsivarii
a abandonar a referida faixa de terra (Tácito, Ann. 13.15-16).
Exibições de poder e ameaças implícitas ou directas de recurso à violência armada
constituiram fenómenos habituais nas relações que Roma entabulou com outros povos.
Na conhecida inscrição evocativa da governação da Mésia por Tiberius Plautius
Silvanus (ILS 986), poucas ou mesmo nenhumas das proezas nela mencionadas
envolveram as suas tropas em verdadeiras pugnas. Com efeito, as intimidantes
manifestações de força e as ameaças ao uso de extrema violência foram modalidades
225
comportamentais correntes dos Romanos, tanto face aos Partos, por exemplo, como
relativamente a uma pequena e menos perigosa tribo bárbara no Ocidente europeu 578.
Por fim, dediquemos algumas linhas às guerras civis. Estas deflagraram basicamente
em três momentos históricos: entre 88 e 31 a. C., novamente em 68-69 d. C., depois em
193 e, uma vez mais, a seguir à morte de Caracala. A estratégia adoptada em tais
conflitos era quase sempre simples, terminando cada um com a morte de um dos
comandantes rivais. Os compromissos, como sucedeu entre Septímio Severo e Albino,
em finais do século II, afiguravam-se inevitavelmente fugazes. Estas campanhas não se
relacionavam com a dominação ou o propósito de aterrorizar o inimigo mas apenas
perseguiam uma clara vitória decisiva.
A maior parte destas guerras civis decidiu-se por meio de uma ou mais batalhas em
campo aberto. Os exércitos envolvidos foram alguns dos maiores alguma vez reunidos
em campanha, integrados por soldados profissionais, já que a vitória dependia mais dos
efectivos e da determinação do que de subtilezas tácticas. Muito frequentemente, a
necessidade de ganhar uma vantagem numérica resultava no recrutamento apressado
de homens com fraco treino, enviados para as campanhas a fim de reforçar o tamanho
do exército. As forças armadas eram, muitas vezes, compósitas, englobando não só uma
mescla de tirones e veterani, como também unidades de várias províncias, as quais não
estavam acostumadas a operar em conjunto, raramente lhes dando tempo para se
familiarizarem. As refregas consistiam, geralmente, em choques confusos, prolongados
ou em desfechos que se traduziam em impasses, quando as duas facções beligerantes se
afastavam uma da outra.
Havia sempre uma ponta de sorte na definição do equilíbrio do poder no decurso de
uma guerra civil, na medida em que um governador à cabeça de um número
considerável de tropas se podia tornar protagonista, caso ganhasse a fidelidade das
mesmas. Ocasionalmente, alguns tiveram a capacidade de formar um exército já depois
de eclodir o conflito: Pompeio criou legiões por sua própria iniciativa durante o
enfrentamento entre Sula e os «Marianos», pelo que ganhou demeasiado poder para
que ambos os lados o ignorassem. Catilina, por seu lado, foi incapaz de recrutar,
adestrar e equipar efectivos suficientes para evitar a sua derrota.
Algumas guerras foram antecipadas e preparadas. Os anos que conduziram à travessia
do Rubicão por César assistiram a Pompeio assumindo o comando de um exército
comparável em tamanho ao do seu rival, ao passo que as divisões do poder entre os
«Cesaricidas» e os «Cesarianos», após 44 a. C., tiveram mais a ver com o assegurar das
respectivas posições contra outros líderes do que relativamente a inimigos externos.
Sob o Principado, os imperadores revelaram grande cuidado em manter a fidelidade do
exército. As dimensões dos exércitos provinciais eram limitadas e as actividades dos
governadores estreitamente vigiadas. Domiciano suprimiu o costume de permitir que
duas legiões partilhassem o mesmo acampamento, para deste modo dificultar a
eventualidade da propagação de um motim ou de uma revolta. Analogamente, também
se estabeleceram limites nas poupanças que cada miles podia guardar no tesouro da
sua unidade, no intento de obstar potenciais usurpadores de acederem a esta
conveniente fonte de receitas (Suetónio, Domiciano, 7). No entanto, noutros aspectos, o
exército não foi organizado para defender exclusivamente o imperador contra eventuais
candidatos ao trono. Porém, isto começou a mudar quando Septímio Severo reforçou a
guarnição de Roma, o que foi uma importante etapa no desenvolvimento de exércitos
pessoais que garantiram a segurança de imperadores subsequentes.
Mal eclodisse uma guerra civil, as unidades militares agiam com o mesmo espírito
agressivo e recorriam à combinação entre força armada e diplomacia, à semelhança do
que faziam num conflito contra povos estrangeiros. Quando lhes faltava certa vantagem
táctica ou organizativa em relação ao inimigo, os comandantes eram mais cautelosos
em livrar batalha (na realidade, as decisões dificilmente se tomavam de ânimo leve, até
578
Tácito, Ann. 6.36: a ameaça de uma invasão romana compeliu os Partos a baterem em retirada da Arménia. Veja-se
igualmente E. Luttwak, 1976, pp. 32-33: porém, a asserção deste autor, de que as ameaças ao recurso da força seriam
mais eficazes contra estados mais civilizados parece-nos altamente contestável.
226
em campanhas contra inimigos externos, pelo que a diferença radicava sobretudo no
seu grau). Embora os diferendos entre líderes rivais fossem geralmente irreconcliáveis,
era usual incentivar a defecção de tropas do campo adverso ou de comunidades civis.
As guerras civis, na sua maior parte, travaram-se no interior das províncias ou na
própria Itália, o que logicamente permitia aos comandantes dispor de informações
geográficas detalhadas. Os exércitos também podiam servir-se da infraestrutura das
comunicações: avançando por estradas e canais, assim deslocando homens e materiais
mais rapidamente do que seria possível em regiões situadas para lá das fronteiras. O
controlo das principais cidades (acima de tudo de Roma) e vilas, conferia, obviamente,
uma vantagem política, ainda que não determinante, visto que este género de conflitos,
à semelhança de outros, apenas se decidia através do poderio militar. Não foi a decisão
de Pompeio de abandonar a península itálica em 49 a. C. que o fez perder a Guerra
Civil, mas o fracasso ao defrontar César na campanha macedónica. Desde que um líder
rival estivesse vivo e mantivesse a fidelidade de um significativo número de soldados,
ele só poderia ser derrotado pela força das armas.
***
227
em geral e nos seus recursos económicos através de raides, massacres e da prática da
escravatura, mas tais perdas dificilmente seriam tão sérias ao ponto de justificar
algumas ideias expressas por autores modernos, segundo as quais os Romanos
realizavam autênticas guerras de extermínio. As palavras drásticas muitas vezes citadas
de Domiciano, de que este «tinha proibido os Nasamones de existirem» foram
interpretadas sob essa perspectiva quando, na realidade, o imperador se referia à
tremenda derrota que tal tribo sofrera, resultando em numerosas baixas mas não na
aniquilação de todo um povo (Díon Cássio, Hist. rom. 67.4,6)579. Bem vistas as coisas, a
eliminação completa de uma tribo ou de um povo não se afigurava uma opção realista:
um inimigo insubmisso e desordeiro podia ver-se deportado e estabelecido noutra
região. Foi o que aconteceu com alguns Ligures, no começo do século II a. C. e, mais
tarde, em 67, aos piratas que Pompeio subjugou numa vitória espectacularmente
rápida580. Supõe-se que Ostório Escápula terá ameaçado os Silures com idêntico castigo
(Tácito, Ann. 12.39).
A morte de um rei ou de outro género de líder poderoso fragmentava amiúde a sua
confederação e punha termo a um conflito. A execução em massa de anciãos tribais só
poderia surtir um impacto grave na vida de uma comunidade. Certos registos
arqueológicos indiciam uma significativa deslocação populacional em algumas zonas,
em consequência da invasão romana 581. No entanto, a maioria dos povos vencidos pelos
Romanos continuou a existir após os conflitos, muitos deles tornando-se aliados.
Em regra, como dissemos, uma guerra terminava com um dos lados reconhecendo a
derrota. Afora poucas excepções no período aqui em apreço, eram os inimigos de Roma
que admitiam ter perdido. Os Romanos travavam as guerras com tremenda
determinação, perseguindo incessantemente a vitória, rasgo que exibiram desde, pelo
menos, o século III a. C. Não era expectável que os generais negociassem um tratado de
paz que não deixasse bem clara a vitória total de Roma, embora, sob a República, a
vontade de obter a glória por terminar um conflito levasse, por vezes, os comandantes a
oferecerem ao antagonista condições mais favoráveis582.
Tácito criticou Tibério por não ter retomado a guerra contra os Frisii, depois do desaire
sofrido por Lúcio Aprónio, e o mesmo autor também manifesta uma viva reprovação
quanto às vitórias parcelares de Domiciano na Germânia e na Dácia: o tratado que o
princeps celebrou com Decébalo, mediante o qual os Romanos se comprometiam a
pagar um «subsídio» ao rei e prestar assistência técnica mostrava que a Dácia
continuava a ser uma potência independente e não um reino aliado nitidamente
subordinado, o que se considerava como o desfecho ideal para uma guerra romana 583.
Acordos insatisfatórios conduziam, quase inevitavelmente, ao reacendimento de
hostilidades. Isto mais se aplicava face a derrotas romanas, e Tácito (Germania, 37)
deixou subentendido que a subjugação das tribos germânicas representava uma luta
constante. De modo similar, as recordações das derrotas infligidas pelos Partos fizeram
com que a guerra prosseguisse durante várias décadas no Oriente, sendo a maior parte
dos conflitos aparentemente despoletada por Roma584. Quando Nero e o seu consilium
discutiram o que fazer após o desatre ocorrido na Arménia, em 62 d. C., eles viram-se
confrontados ante a escolha entre uma guerra incerta e uma paz ignominiosa (bellum
anceps na pax inhonesta); mas não houve qualquer hesitação de que o caminho teria
de ser a guerra - uma das poucas decisões de Nero que Tácito aprovou (Ann. 15.25).
A recusa peremptória dos Romanos em aceitarem as derrotas, conjugada com a
qualidade do seu exército e a extensão dos seus recursos, tornava extremamente difícil
para os seus inimigos averbarem uma vitória permanente. Um povo sublevado
579
E. Luttvak, 1976, p. 46.
580
Dyson, 1985, pp. 55, 90, 100-101, 104-106, 113, 205-206, 213-214, 226. Cf. Plutarco, Vida de Pompeio, 28.
581
Por exemplo, B. Gall. 2.28, 3.17. Para testemunhos arqueológicos do impacto das campanhas romanas de César na
Gallia Belgica, veja-se Roymans, 1983, pp. 43-69; IDEM, 1990.
582
Exemplos: Apiano, Hisp. 9.49; César, B. Gall. 5.22-23; Políbio, Hist. 18.11.1-2.
583
Tácito, Ann. 4.74; IDEM, Agricola, 41; Díon Cássio, Hist. rom. 67.6.1-7.4.
584
B. Isaac, The Limits of Empire, pp. 28-33.
228
raramente podia acalentar a esperança de que a sua continuada resistência iria
convencer os Romanos a bater em retirada e a desistir. Na etapa inicial de uma
conquista, existia a remota possibilidade de que uma grande vitória pudesse erradicar
momentaneamente o exército ocupante, como aconteceu na Germânia em 9 d. C., e
talvez tenha sucedido igualmente o mesmo na Gália, em 52 a. C., ou na Britânia, em 60
d. C.
Porém, as consequências de se resistir a Roma eram habitualmente aterradoras e
funestas. O adequado desfecho de uma vitória romana no campo de batalha radicava na
perseguição movida pela cavalaria, cujo objectivo visava causar o maior número de
baixas possível ao inimigo. O saque de uma cidade ou a devastação de aldeias e quintas
também se faziam de uma maneira intencionalmente brutal. Os Romanos tinham uma
atitude caracteristicamente pragmática em relação às atrocidades, acreditando eles que
todos os actos se justificavam, desde que servissem para atingir um objectivo útil 585.
Podiam lançar-se cabeças decapitadas para o interior de uma cidade sitiada ou
crucificar-se uma série de prisioneiros, à frente das suas muralhas, para apavorar o
inimigo e levá-lo a submeter-se586.
Mas não era só a ferocia («ferocidade») da guerra praticada pelos Romanos que
assustava os seus oponentes. Em todos os tipos de campanhas ou expedições que atrás
descrevemos, o comportamento dos exércitos romanos pautava-se sempre por uma
tremenda agressividade. Logo no começo, os generais tentavam ganhar a iniciativa e
depois mantê-la, renovando constantemente as investidas. Mesmo quando tivessem
renitência em travar uma batalha campal, os Romanos atacavam o inimigo de outras
maneiras, visando as suas praças-fortes ou efectuando raides nos seus territórios. Não
se colhe notícia de casos em que um exército romano ficasse numa atitude passiva
defensiva por muito tempo. Pelo contrário, o instinto dos oficiais ditava-lhes que
enfrentassem os inimigos o mais brevemente possível; as suas forças, mesmo que
numericamente inferiores e por vezes indevidamente preparadas ainda conseguiam
fazer arremetidas resolutas.
A atitude confiante dos milites transmitia a sensação de que as suas vitórias eram
inevitáveis e obtidas sem grande esforço. Ora como as guerras se decidiam quando um
dos lados perdia a vontade, mais do que a capacidade, de continuar a lutar, essas
exibições de suma confiança das tropas romanas eram muito intimidatórias. As acções
tenazes e firmes assumiam crucial importância numa época em que a afirmação da
força desempenhava um papel essencial nos conflitos. Os comandantes romanos eram
consistentemente resolutos, por vezes até incorrendo em destemor face ao perigo.
Curiosamente, lembremos que Fábio Máximo se perfila como uma figura única entre os
comandantes romanos, ao ser louvado pela sua prudência e relutância em combater em
situações arriscadas587.
Os inimigos de Roma
O império romano era muito vasto e poderoso: atingiu o auge da sua amplitude
territorial no século II e começo do III; nos subsequentes duzentos anos veio a sofrer
uma certa redução na sua área, mas manteve-se, apesar de tudo, substancialmente
intacto. Como se disse, nenhuma potência rival teve uma força de algum modo
comparável à de Roma, e ao longo do Principado nenhum conflito armado ameaçou
verdadeiramente a existência do império.
A afirmação do esmagador poderio militar de Roma e o género de enfoque que se
observa nas fontes latinas conduziram a que, na historiografia moderna, se tenha
585
Gilliver, 1996 b.
586
Frontino, Strat. 2.9.4; Flávio Josefo, B. Jud. 5.446-451, 7.202-206.
587
A. K. Goldsworthy, 1998, pp. 200-201.
229
privilegiado os objectivos e as ambições de Roma, ficando exclúídos e na penumbra os
dos seus antagonistas. Neste sentido, vale a pena tecer alguns comentários sobre os
povos situados do «lado de fora» das fronteiras.
A Pártia e a sua sucessora, a Pérsia Sassânida, foram os maiores Estados cujo território
confinou com o império. Em determinadas ocasiões, os exércitos partos ou persas
percorreram grande parte da Síria, ameaçando Antioquia e chegando à costa
mediterrânica, mas jamais tiveram capacidade de estabelecer um controlo efectivo
sobre esta região. Por seu turno, e com mais frequência, os exércitos romanos desceram
o Eufrates e saquearam Ctesifonte, mas nunca aí se estabelecerem permanentemente.
As guerras que opuseram Roma a estes Estados relacionaram-se, invariavelmente, com
o controlo das zonas fronteiriças, especialmente o reino da Arménia e a Mesopotâmia.
B. Isaac afirmou que, nestes conflitos, foram os Romanos habitualmente os agressores,
e que as ambições dos Partos e dos Persas nunca se terão estendido para além da
dominação das províncias fronteiriças588. Embora outros estudiosos tenham contestado
esta tese, ainda assim fica-se com a impressão de que aos dois Estados faltou força para
conquistar as possessões romanas no Oriente589.
Os soberanos partos e persas tiveram, na realidade, um poder limitado, que se
escorava nos principais nobres, para manter o controlo e formar exércitos, além de que
estes aristocratas representavam sempre um perigo de se tornarem rivais e candidatos
ao trono. É certo que Roma não era o único vizinho do reino oriental, e os «filhos de
Marte» tiveram plena consciência de que algumas das suas vitórias ocorreram em
momentos históricos em que a Pártia enfrentou graves ameaças procedentes de outras
direcções ou espinhosas agitações internas 590. Assim, salta à vista que vários
historiadores modernos exageraram a magnitude da ameaça sobre o Oriente romano
suscitada tanto pelos Partos como pelos Persas 591. Mas cumpre usar de prudência antes
de supor que os próprios Romanos estariam a par deste facto. Note-se, por exemplo,
que em 149 a. C., apesar de já não significar uma verdadeira ameaça, Roma ainda temia
Cartago592.
A fronteira com a Pártia apresentava problemas diferentes relativamente a outra zonas
fronteiriças. As incursões eram menos prováveis, mas existia a possiblidade de uma
guerra em larga escala, em média, eclodindo sempre um conflito em cada geração. No
entanto, mantiveram-se contactos diplomáticos regulares com os monarcas partos ou
persas. Ambos os lados pretendiam dominar os territórios fronteiriços em disputa e em
certas alturas apoderaram-se da Arménia, apoiando candidatos ao seu trono. Até ao
século IV, pelo menos, os imperadores romanos continuaram a almejar uma vitória
decisiva sobre a Pártia ou a Pérsia, mas nunca conseguiram obtê-la. Nesta fronteira,
não se abandonou a ideia de uma nova conquista, mas tal não significa que se
decartassem propósitos menores, incluindo os da defesa. Era comum Roma acenar com
a ameaça de abrir hostilidades para atingir objectivos diplomáticos secundários.
Em nenhum outro espaço geográfico os Romanos enfrentaram um estado ou reino de
grande tamanho e relativamente unificado. A maioria dos seus vizinhos nas demais
fronteiras traduzia-se num conjunto de povos tribais dotados de uma organização
sociopolítica desarticulada e uma débil autoridade central. Se aos Partos faltou
capacidade militar para invadirem e ocuparem de forma duradoura território romano,
bem como para destruirem, sozinhos, a própria Roma, isto aplicava-se ainda mais aos
povos tribais. Até à Antiguidade Tardia, não houve povo algum, exterior ao império,
que reunisse meios para conquistar e ocupar em regime de permanência toda uma
província romana ou apenas uma parte da mesma (regiões como a Dácia e a parcela
mais setentrional da Britânia foram deliberadamente abandonadas, em vez de tomadas
pela força).
588
The Limits of Empire, pp. 19-53.
589
J. B. Campbell, 1993.
590
Kennedy, 1996, pp. 69-90.
591
B. Isaac, The Limits of Empire, pp. 22-51.
592
J. Rich, 1993, pp. 38-68, 64.
230
Como sublinhámos, os «exércitos» tribais possuíam um carácter temporário, sendo
reunidos para campanhas de curta-duração. Depois dispersavam, ficando apenas os
guardas de corpo e servidores dos chefes mais poderosos prontos a bater-se. Os
efectivos destas forças eram reduzidos; só líderes altamente excepcionais de
confederações tribais, como Arminius, Marobodus ou Decébalo lograram dispor de
considerável número de guerreiros. O poder destes chefes carismáticos era pessoal e
relativamente efémero, na medida em que as suas coligações se fragmentavam com a
morte deles. Normalmente, vários chefes ou reis exerciam o poder em simultâneo,
dependendo o prestígio e a autoridade de cada um da sua riqueza e da sua reputação
bélica. Consequentemente, nenhum tinha o poder suficiente para organizar campanhas
concertadas, recorrendo a exércitos de grandes dimensões, nem muito menos a
capacidade de desenvolver uma estratégia bem planeada e consistente ao longo de anos
a fio.
Existiam, basicamente, três cenários que levavam toda ou parte de uma tribo a entrar
em conflito contra Roma: o primeiro era responder a ataques romanos, quando se
conseguia reunir as forças tribais e tentar confrontar o exército romano num prélio; o
segundo – a tribo podia emigrar , fixando-se numa área no interior de uma província,
numa altura em que o seu próprio território já não tinha condições para alimentar a sua
população, ou em resultado da pressão exercida por outras tribos; terceiro – por
último, a tribo podia atacar uma província ou um aliado dos Romanos. Uma tal
investida geralmente assumia a forma de uma incursão, em maior ou menor escala,
cujo principal intento era a obtenção de despojos. Os raides eram, de longe, o género de
modalidade bélica mais corrente praticado por quase todos estes povos. Por vezes, uma
acometida, especialmente se fosse de maiores proporções, significava uma réplica às
ofensivas romanas, mas a maior parte destes ataques ocorria quando os bandos de
assalto pressupunham que o seu alvo era vulnerável.
Globalmente, o «estilo» de guerra e a capacidade militar dos povos tribais ou bárbaros
que Roma enfrentou não se terão desenvolvido significativamente desde o século II a.
C. até ao século IV da nossa era 593. Alguns povos eram mais agressivos do que outros, e
a este respeito deve ter havido consideráveis variantes ao longo do tempo, mas, ao que
parece, foram poucas as sociedades pacíficas que entraram em contacto com os
Romanos594. Em todo o caso, a política internacional de Roma, muitas vezes agressiva,
pode ter conduzido algumas comunidades mais pacíficas a agirem violentamente 595.
A prática de raides constituiu, aparentemente, um fenómeno endémico nas sociedades
tribais da Hispânia, Britânia, da Germânia e Trácia, bem como nas da Ilíria e de África.
Júlio César escreveu que os Helvetii decidiram emigrar para ocupar terras que lhes
proporcionassem mais oportunidade para saquear os seus vizinhos (B. Gall. 1.2).
Sabemos, por outro lado, que as tribos germânicas tentavam manter uma faixa de
terreno despovoada junto às suas fronteiras como medida preventiva contra incursões
inimigas. As tribos belgas faziam crescer sebes de espinheiros para servirem de
marcadores fronteiriços e, ao mesmo tempo, dificultar e retardar as manobras dos
grupos que efectuavam raides; as mesmas também possuíam um valor simbólico e
admonitório: quem as ultrapassasse iria deparar com viva oposição; provavelmente não
foi mera coincidência o facto de o exército de César se ver obrigado a travar batalha no
Sambre, pouco depois de transpor uma dessas barreiras (B. Gall. 2.17, 6.23). As
descobertas de sepultamentos de armas em numerosas regiões da Europa transmite-
nos a imagem de sociedades em que os símbolos guerreiros assumiam grande
593
Muitas das conclusões de Elton (1996 b), na sua avaliação dos métodos de combate empregues pelos Romanos e pelas
nações bárbaras na Antiguidade Tardia são, em certos aspectos, igualmente válidas para os tempos anteriores.
594
Os tratados com os povos germânicos reconheceram que alguns destes seriam mais atreitos a não provocar atritos, daí
que lhes desse maior acessibilidade ao território romano (Tácito, Germ. 41; Díon Cássio, Hist. rom. 72.2-3).
595
Freeman (1996, p. 102, 114) sugeriu que a ocupação romana da Arábia pode ter gerado um problema militar.
Contudo, as provas documentadas são insuficientes para confirmar este facto, mas importa tomar em consideração tal
possibilidade, o mesmo talvez ocorrendo noutras regiões.
231
importância, pelo que não se afigura plausível defender a ideia de que muitas tribos
célticas não correspondiam a sociedades belicosas 596.
As fontes relatam diversas incursões efectuadas em larga escala, envolvendo milhares
de guerreiros. Só chefes com elevada autoridade e carisma no seio das suas tribos
teriam a possibilidade de reunir forças com tal envergadura. Note-se, porém, que
muitos guerreiros, nessas mesmas sociedades gozavam de bastante independência,
resolvendo eles juntar-se ao não a um líder que anunciava que iria conduzir um raide.
Mas a maior parte dos bandos continha provavelmente menos elementos. Até Amiano
Marcelino, que fornece descrições bem mais detalhadas das actividades nas províncias
fronteiriças do que qualquer outra fonte anterior, nunca menciona especificamente
grupos com menos de 400 combatentes597.
A distribuição das tropas romanas em destacamentos com reduzidos efectivos a
montarem guarda nas linhas providas de torres de vigia só faz sentido se as mesmas
tivessem que enfrentar incursões de bandos numericamente equivalentes ou inferiores
de inimigos. Neste nível, a distinção entre guerra e banditismo fica mais esbatida, mas
encontram-se bastantes indícios de que a violência em pequena escala seria vulgar no
império598.
No que toca aos nómadas árabes, B. Isaac não encontrou evidências de que tenham
representado uma séria ameaça para a fronteira romana até à Antiguidade Tardia.
Talvez houvesse, esporadicamente, algumas incursões menores (se de facto ocorreram),
mas os dados que dispomos não permitem que se confirmar esta eventualidade. Seja
como for, não causaram problemas que preocupassem o governo romano ou
desafiassem a sua autoridade599.
No Norte de África, conservaram-se bastantes provas de que os os nómadas eram
encarados pelo exército romano como um verdadeiro problema, daí envidarem esforços
para controlar estreitamente as suas movimentações 600. Não há, é certo, razões válidas
para partir do princípio de que os povos nómadas em diferentes regiões se
comportavam da mesma forma. À excepção do caso referido de Tacfarinas, julga-se que
praticamente todas as incursões realizadas por nómadas seriam de fraca amplitude.
Assim, estes ataques teriam somente um impacto a nível local, não ameaçando, per se,
o poder romano. No entanto, tais raides significavam apenas uma das modalidades do
género de guerra concebido e praticado por esses povos.
Tácito afirmou que Tacfarinas iniciou a sua «carreira» de salteador com um pequeno
grupo de acólitos. À medida que foi obtendo vários êxitos, cresceu a sua reputação,
aumentando o número dos seus seguidores, o que permitiu efectuar ataques mais
frequentes, com maior envergadura e profundidade. Ao longo do resto da sua vida,
Tacfarinas continuou a utilizar o mesmo modus operandi, com os sucessos fazendo
recrudescer a sua fama e os fracassos afectando a solidez do seu poder (Tácito, Ann.
2.52; 3.20-21; 3.73-74; 4.23-25).
Independentemente da sua magnitude, as incursões exitosas encorajavam novas
arremetidas. Cada uma deles atingia a aura de invencibilidade de Roma e incentivava
outros líderes a tentar imitar tais sucessos. Consequentemente, ainda que estes
pequenos raides em território romano não surtissem um grave impacto sobre o poder
romano, não deixavam de abalá-lo, convidando a mais e maiores assaltos.
Contudo, poucos povos tribais terão apreendido bem qual era o verdadeiro tamanho e
força de Roma, ou os amplos recursos militares que dispunha. Quando se fala nas
limitadas informações que os Romanos tinham ao seu alcance, cabe não esquecer que
menos ainda possuiria a maioria dos seus oponentes, especialmente em culturas
iletradas. Constata-se, sem qualquer margem para dúvidas, que nenhuma tribo tinha
596
Contra Webster, 1994.
597
Elton (1996 b, p. 206) salientou que, já na Antiguidade Tardia, os bandos mais pequenos podiam ser travados pelos
limitanei.
598
M. C. Bishop, 1999, pp. 113-114.
599
B. Isaac, The Limits of Empire, pp. 72-74.
600
Rushworth, 1996, pp. 297-316.
232
meios que servissem para averbar uma vitória militar permanente sobre Roma. Os seus
inimigos, quando muito, poderiam convencer os Romanos de que exigiria demasiado
esforço subjugá-los e, deste modo, levando a que estes se fossem embora. Ora nós
sabemos isto mas, na maior parte das situações, as comunidades que entraram em
conflito com Roma nem sequer estavam cientes desta realidade.
Uma vertente importante era a impressão local provocada pela força das tropas
romanas. Nas províncias consideradas mais fracas, o inimigo atacá-las-ia apenas pelo
motivo de que a sua prosperidade oferecia boas perspectivas de lucro e glória. Como
tivemos a oportunidade de ver, nas fontes latinas descrevem-se os povos tribais como
atreitos a agir a partir de súbitos rumores, e não de acordo com planos adequadamente
congeminados e de longa-duração. Embora esta asserção talvez corresponda a uma
simplificação excessiva, ela também não deixa de encerrar uma boa dose de verdade.
601
Só em 1995 foi publicada uma monografia versando um estudo sistemático sobre a recolha das informações pelos
Romanos:Austin e Rankov.
602
B. Gall. 4.21. Austin e Rankov, 1995, pp. 13, 100-101.
233
73.2,4). Talvez isto fosse, aliás, um dos deveres dos centuriões regionais mencionados
em fontes descobertas na Inglaterra603.
Os aliados de Roma, entre os povos que viviam fora das províncias, eram outros
veículos de informação. Não esqueçamos que, a par da guerra desencadeada pelas
forças romanas, também funcionava uma diplomacia muito activa, envolvendo
plenipotenciários (muitas vezes sendo oficiais do exército), que se deslocavam ao
encontro de líderes estrangeiros, e dos considerados «amigos» não eram poucos os que
recebiam aubsídios ou outro género de ajuda. Entre as tribos, o poder tinha a
propensão de ser instável, já que dependia muito do prestígio dos chefes a nível
individual, além de que o grau de coesão desses povos oscilava com o passar do tempo.
Os pormenores de tais mudanças eram complexos, mas os Romanos procuravam gerir
os seus conhecimentos e agir consequentemente. César, entre outros, persuadiu o
Senado a reconhecer oficialmente Ariovisto como «Amigo do Povo Romano» durante o
seu consulado e bastante antes deste chefe germano se aproximar de território romano.
Nos Commentarii, lemos até que Ariovisto terá recebido mensagens da Urbs, dos
inimigos políticos de César (B. Gall. 1.36, 1.40, 1.44). Mais tarde, César soube da
aproximação do fluxo migratório dos Helvetii quando estava em Roma (B. Gall. 1.7),
presumivelmente através de uma tribo aliada ou de informes recolhidos pela guarnição
da Gália Transalpina.
A quantidade de informações sobre acontecimentos ocorridos a longa distância sofria
variações, mas os principais movimentos migratórios eram habitualmente detectados,
como aconteceu com os dos Frisii e dos Ampsivarii. As mensagens podiam passar mais
rapidamente através de regiões povoadas. O despacho de Cícero, comunicando a César
que o seu acampamento estava a ser atacado só pôde ser levado por um servidor de um
chefe da tribo dos Nervii, atravessando as linhas inimigas (B. Gall. 5.45-46). A resposta
foi atada a um dardo que um auxiliar gaulês lançou para o interior do acampamento
sitiado, mas as tropas só a encontraram volvidos alguns dias (B. Gall. 5.48). César foi
capaz de comunicar muito mais facilmente com as legiões comandadas por Fábio e
Labieno, quando coordenou a expedição de socorro.
Escapam-nos muitos detalhes sobre a recolha das informações: por exemplo, não
sabemos quem, ao certo, no pessoal subordinado a um governador, seria responsável
pela recepção, processamento e registo de relatórios de espionagem. As fontes antigas
sublinham que a meticulosa reunião de elementos informativos constituía um das
qualidades requeridas a um bom comandante. Os exércitos romanos não terão sido
piores (provavelmente, em vários casos, até foram melhores) do que a maior parte dos
exércitos até ao século XIX. Doravante, os progressos significativos nas comunicações e
a emergência dos estados-maiores profissionais concorreram para o substancial
desenvolvimento destes serviços, dispondo os generais de muitos mais dados que antes.
234
encontrava guarnecida por legionários estacionados numa série de fortes. Noutras
ocasiões, empregaram-se dispositivos fortificados para a protecção de pontes ou
travessias de rios ou, ainda, para defender os flancos de um exército em batalha.
Durante a Guerra Civil, em Dyrrachium (48 a.C.), ambas as forças beligerantes
ergueram extensas linhas de defesas em face uma da outra (César, B. Civ. 3.44-74). As
linhas defensivas, tanto as de circunvalação (que cercavam o inimigo), como de
contravalação (viradas para o exterior) eram especialmente correntes em situações de
assédio ou de bloqueio. A utilização destas linhas fortificadas não parece ter feito da
prática romana da guerra um processo lento e metódico, nem gerar algo tão estático
como a guerra das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Se, por um lado, os
exércitos romanos estavam prontos a utilizar estes dispositivos em campanha, quando
perseguiam objectivos específicos, por outro, raramente demonstraram relutância em
abandonar tais posições mal se atingisse a sua finalidade.
A construção de um acampamento temporário – cujas defesas variavam consoante a
natureza da ameaça local -, depois de cada dia de marcha, fazia com que os soldados se
envolvessem em actividades que se esperava servirem apenas para um curto espaço de
tempo. Estas bases forneciam aos exércitos romanos segurança contra ataques súbitos,
um local para as tropas pernoitarem e um sítio para se concentrarem antes de livar
batalha. Se o exército tivesse de permanecer numa zona por mais tempo, então as
muralhas desses fortes precisavam de ganhar mais altura, e os fossos maior
profundidade. Além disso, a presença de torres aumentava a solidez de tais posições.
Todos os géneros de fortificações que os Romanos adoptaram destinavam-se a
funcionar como parte integrante de um sistema defensivo agressivo, envolvendo
unidades móveis que avançavam para se bater em campo aberto. Assim, é importante
enfatizar que o papel destes dispositivos não consistia em suster e derrotar investidas
inimigas só através da sua força.
As longas linhas fortificadas que o exército por vezes erigiu obedeciam a um propósito
prático, mas também se perfilavam, em termos visuais, como estruturas providas de
certa imponência, daí que resultassem intimidatórias para os oponentes, a maioria dos
quais não tinha capacidade para realizar obras com tal envergadura. Esta combinação
de utilidade e espectáculo era igualmente visível nas estradas, calçadas e nas pontes que
o exército construía para facilitar a sua progressão e beneficiar de apropriado apoio
logístico. No período entre meados do século I antes da nossa era e os dois primeiros
séculos do Principado, nas províncias, o programa da construção viária já estava
relativamente bem definido. Acresce que os exércitos em campanha traçavam
igualmente estradas temporárias, pelo que as colunas em marcha se viam regularmente
precedidas por destacamentos de «especialistas» com a tarefa de melhorarem os
caminhos existentes e removerem obstáculos 605. De facto, várias das campanhas atrás
descritas incluíram uma fase em que os Romanos varriam espaços densamente
arborizados e estabeleciam vias em zonas pantanosas, antes de desencadearem as
ofensivas.
As pontes representam um dos símbolos mais portentosos da determinação dos
Romanos, no sentido em que natureza não os impedia de alcançarem os seus
objectivos. Um tabuleiro suportado por um conjunto de barcas amarradas umas às
outras era um dos métodos mais comuns para a travessia de rios, o equivalente romano
para uma ponte flutuante. Estas estruturas surgem muitas vezes mencionadas nas
fontes antigas (por exemplo, Díon Cássio, Hist. rom. 71.3), e representadas em
monumentos como a célebre Coluna de Trajano.
Nos Commentarii, Júlio César refere que a travessia do Reno de barco era algo
simultaneamente arriscado e incompatível com a dignidade romana. Ele descreve, com
toda uma profusão de detalhes, a ponte que mandou construir nesse rio, assente sobre
postes cravados no leito. Nenhuma campanha cesariana junto ao Reno implicou
confrontos de vulto, mas o conquistador das Gálias teve a noção de que os pormenores
desta empresa edificatória talvez cativassem os leitores (B. Gall. 4.17). Depois de um
605
Flávio Josefo, B. Iud. 115-126; Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 24.
235
curto espaço de tempo, César retrocedeu para a margem ocidental do Reno, tanto em
55 e 53 a. C., e em cada um destes casos desmantelando a ponte logo a seguir à
passagem do exército. Esta atitude não enfraqueceu o desenrolar da guerra em
qualquer das expedições. César evidenciou uma resolução inabalável em atingir o
inimigo, apesar das dificuldades envolvidas. Destruiu-se a ponte naturalmente para que
os bárbaros não a utilizassem, mas nada havia que impedisse os Romanos de repará-la
ou de construir outra, se decidissem fazê-lo.
Quanto a Díon Cássio, consagrou uma série de linhas à descrição da ponte que Trajano
ergueu sobre o Danúbio, dispensando mais atenção a esta empresa de engenharia do
que a qualquer outro episódio das Guerras Dácicas (Hist. rom. 68.13.1-6). As
inscrições, de igual modo, atestam a importância simbólica do triunfo sobre as forças
da natureza, materializada na construção de uma ponte fluvial 606.
Logística
606
Braund, 1996, pp. 43-47.
607
Para a logística, aconselhamos duas obras já mencionadas: J.Roth, 1999 e P. Erdkamp, 1998; também se revestem de
interesse: Labisch, 1975, e Breeze, 1986-87.
608
Aspecto que P. Erdkamp sublinhou:
236
O sistema de apoio logístico do exército romano era nitidamente superior ao de todos
os seus inimigos. Com os devidos preparativos, as forças romanas reuniam meios para
operar em condições extremamente duras e adversas, como aconteceu quando Aélio
Galo (Aelius Gallus) marchou pelo deserto durante a Campanha da Nabateia, dispondo
as suas tropas de toda a comida e bebida necessárias (Estrabão, 16.4.24). Noutras
ocasiões, os exércitos romanos mantinham-se activos ao longo do Inverno, mais
especificamente no Norte de África, na sua luta contra Tacfarinas, ou desencadeavam
excpedições punitivas contra tribos gaulesas, germânicas ou bretãs antes ou depois da
estação do ano mais normal para a realização de campanhas.
As forças tribais raramente conseguiam ficar mais do que algumas semanas em
campanha, mas bandos mais pequenos de rapinantes ou grupos muito grandes em
migração aguentavam-se por mais tempo. Alguns líderes ou tribos de bárbaros
sobressairam por prestar mais cuidado ao aprovisionamento dos seus «exércitos».
Vercingetorix buscou impedir que os Romanos tivessem acesso a comida e forragens;
no entanto, estas situações eram incomuns, daí aparecerem enfatizadas em algumas
fontes (B. Gall. 3.23, 7.14, 7.18, 7.20-21; Tácito, Germ. 30). Além disso, foram poucas as
tribos bárbaras com capacidade de manter suficiente número de guerreiros numa zona,
para montarem um cerco com reais possibilidades de êxito (Por exemplo, Díon Cássio,
Hist. rom. 56.22; Tácito, Ann. 72-73)609.
Quanto às invasões dos Partos das províncias orientais romanas, limitaram-se quase
sempre a raides, se bem que em grande escala, evitando o mais possível localidades
defendidas. Em parte, isto resultou do facto de eles consistirem, quase em exclusivo,
em cavaleiros, que se movimentavam velozmente, mas faltando-lhes talento e meios
para empreender acções de assédio. Os problemas de aprovisionamento também terão
conduzido a que tais exércitos demorassem pouco tempo nos alvos que escolhiam 610.
Como dissemos, os exércitos romanos podiam operar fora da altura mais normal para
as campanhas e em regiões inóspitas; contudo, para assim actuarem era preciso um
planeamento cuidadoso e específico. A maior parte das acções bélicas era de cariz mais
convencional, desenrolando-se entre a Primavera e o início do Outono, e em palcos
geográficos onde algumas das provisões, pelo menos, o exército obtinha in situ.
Recordemos de igual modo que os aliados eram muitas vezes chamados a abastecer as
tropas romanas, mais frequentemente em géneros alimentares mas também peças de
vestuário. A madeira, tanto para a cozinha (as rações do exército distribuíam-se não
confeccionadas) como para a construção, era uma matéria-prima geralmente
disponível, além da água. A nível local, conseguia-se arranjar alimentos para os homens
e os animais, só que para uma pequena parte do ano, mediante o recurso ao produto
das colheitas ou a confiscação dos depósitos de víveres (prática mais corrente) às
populações auctótones611. Na realidade, poucas áreas podiam fornecer facilmente
provisões para um excedente humano na ordem de várias dezenas de milhar. Assim,
era inevitável que uma substancial quantidade de víveres tivesse que ser carregada pelo
exército.
O que se transportava no trem de bagagens de um exército variava consoante o
tamanho deste, a estação do ano, a natureza da campanha e o grau de proximidade
relativamente a bases seguras. Mesmo no caso das campanhas de Júlio César que são,
de longe, as mais bem documentadas, não logramos criar uma visão de conjunto
quanto ao seu sistema de aprovisionamento, ainda que se descortinem alguns
pormenores. No trem de bagagens, seguia uma considerável quantidade de provisões,
peças de equipamento, apetrechos bélicos e reféns, o que era bem protegido quando os
Romanos marchavam em território hostil. Ele ficava num sítio, devidamente guardado,
enquanto o exército arrancava com os víveres e outros elementos necessários, o que
permitia a uma coluna – ou várias – deslocar-se muito mais rapidamente. Porém, estas
609
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 58.
610
Ibidem, p. 63; Kennedy, 1996, pp. 83-84.
611
J. Roth, pp. 117-155; P. Erdkamp, pp. 122-140.
237
forças expedita não subsistiam por muito tempo sem apoio logístico, razão pela qual as
operações raramente duravam mais de uma ou duas semanas612.
Os exércitos romanos podiam avançar com mais velocidade em território povoado,
onde era relativamente fácil recolher provisões, reunindo-se estas antecipadamente.
Este facto vê-se plenamente ilustrado nas guerras civis, que se desenrolavam num
ritmo mais rápido do que os conflitos no estrangeiro, permitindo às forças cobrir
grandes distãncias em pouco tempo e entrar em contacto com o inimigo. No espaço
temporal aqui em foco, a maior parte das guerras contra povos estrangeiros ocorreu em
regiões bem menos povoadas e prósperas, o que obrigava a que os Romanos
realizassem campanhas pautadas por um ritmo mais lento. Em certas zonas, a vitória
podia ser quase imediata, mas depois demorava a organização do aprovisionamento do
exército para a seguinte etapa da marcha, uma vez que os depósitos de víveres e
materiais se encontravam estabelecidos num local mais à frente. Porém, nenhum
conquistador romano conseguiu rivalizar com Alexandre-o-Grande e as suas rápidas
conquistas, quando ele venceu a Pérsia613.
A marinha
612
B. Gall. 6.33. Por exemplo, em 53 a. C., as colunas punitivas de César regressavam ao trem de bagagens do exército
passada uma semana.
613
Para uma visão da organização logística que permitisse equiparar-se ao ritmo verdadeiramente frenético com que
Alexandre-o-Grande leveou a cabo as suas campanhas, veja-se Engels, 1978.
238
envergadura, os Romanos venceram ou repeliram os Germanos (Tácito, Ann. 11.18-19).
Esta operação foi típica quanto ao papel desempenhado pela marinha de guerra sob o
Principado, actuando como parte do exército, sob as ordens dos mesmos comandantes
e quase sempre da mesma maneira. Em muitos aspectos, a marinha significava
simplesmente aquela parte do exército que habitualmente operava no meio marítimo
ou fluvial (embora as suas tripulações também pudessem ser chamados a intervir em
terra, quando necessário).
As frotas permitiam aos Romanos levar a cabo invasões, atravessando mares, rios e até
lagos. De entre as empresas deste género as mais emblemáticas consistiram nas
invasões da Britânia por Júlio César e, mais tarde, por Cláudio; serviam naturalmente
para efectuar missões de patrulhamento e estabelecer comunicações nos rios
navegáveis, podendo acompanhar a progressão de um exército junto à faixa costeira,
como se observa numa passagem de Tácito na sua obra Agrícola. A marinha protegia
igualmente o transporte naval de víveres e equipamento necessários aos exércitos em
campanha.
No que toca às operações autónomas das flotilhas, relacionavam-se sobretudo com o
combate e a supressão da pirataria. Porém, é difícil calcular até que ponto a última
constituía um problema sério após o século I a. C.. A reacção romana era muito
parecida à adoptada contra incursões em terra firme, implicando a intercepção dos
salteadores e uma rigorosa acção punitiva. Os vocábulos empregues, latrones ou leistai
eram intermutáveis, tanto podendo significar «bandidos» como «piratas», se bem que
a sua aplicação dependesse do facto desses bandoleiros operarem em terra ou no
mar614.
239
obstante se verificar um indiscutível abrandamento do ritmo desde os primeiros
séculos da República.
Após a anexação do Egipto, o último estado territorial de alguma importância que
restava nas proximidades do Império romano era indubitavelmente o reino parto dos
Arsácidas. Desde então, Roma recorreu menos frequentemente a ataques frontais
contra as potências inimigas, como fora o caso das Guerras Púnicas. Mas, por detrás do
discurso oficial que exaltava um império sem limites, em termos concretos as fronteiras
do expansionismo romano foram atingidas quando já não era mais possível encontrar
bases de apoio entre aqueles a que Roma pretendia impor-se: desde o início das suas
conquistas, os Romanos tiveram quase sempre o cuidado de consolidar de forma
duradoura os êxitos averbados nos campos de batalha, graças a uma diplomacia activa
e buscando nas cidades e povos subjugados uma aceitação da sua influência.
A integração gradual das elites dominadas, que podiam ter acesso à cidadania romana
e participar na gestão do Império, contribuía para o fortalecimento deste. Nestas
condições, a expansão territorial conheceu o seu término quando Roma se confrontou
com sociedades cujo desenvolvimento era demasiado insuficiente para que as suas
elites fossem assimiladas, como anteriormente acontecera com a defecção de Armínio
na Germânia ou, pelo contrário, quando se tratava de Estados estruturados e coerentes,
cujos dirigentes não queriam sujeitar-se a uma tal assimilação, como sucedeu com vista
a Pártia. Essas fronteiras foram então justificadas num plano teórico, por meio do
discurso imperial que as identificou com os limites do mundo conhecido e habitável, a
oikoumene. Diante de povos encarados como pouco assimiláveis, a missão principal do
exército romano era a de vigiar e, eventualmente, impedir as deslocações dos mesmos.
Doravante, a evolução da estratégia imperial traduziu-se em movimentações sobre as
diferentes frentes das legiões, estas encontrando-se acompanhadas pelas tropas
auxiliares. No século I d. C., o grosso das forças militares romanas, ou seja, oito legiões,
concentrava-se no Reno (Tácito, Ann. 4.5.2). Este dispositivo permitiu a conquista da
Britânia e desembocou na criação das duas províncias da Germânia Superior e da
Germânia Inferior, sob o reinado de Domiciano. No século II, com a conquista e a
ocupação da Dácia entre 101 e 106, as províncias danubianas acolheram o maior
número de tropas: existiam somente quatro legiões no Reno contra onze estacionadas
nas Panónias, nas Mésias e na Dácia.
617
Para abordagens genéricas sobre as bases militares das legiões durante a época imperial, consultem-se: A. Johnson,
Roman Forts, Londres, 1983; R. J. Brewer, Roman Fortresses and Their Legions, Londres, 2000; D. P. Davidson, The
Barracks of the Roman Army from the 1st to 3rd Centuries AD, Oxford, 1989; E. A. M. Shirley, Building a Roman
Legionary Fortress, Stroud, 2001; P. Connolly, The Roman Fort, 5º edição, Oxford, 2003; D. B. Campbell, Roman
Legionary Fortresses 27 BC- AD 378, Oxford, 2006.
240
relação de 3 para 2 entre o comprimento e a largura), inspirada nas das colónias
romanas, possuindo de permeio certas adaptações de pormenor consoante os lugares e
as circunstâncias.
À semelhança do modelo republicano, o típico acampamento das legiões imperiais
compunha-se de três partes separadas por duas vias de comunicação paralelas,
orientadas no sentido este-oeste: a via principalis, verdadeira praça pública, entre a
praetentura e os principia, e a via quintana, entre os principia e a retentura. Os
principia constituíam o quartel-general do acampamento. Passaram a ser compostos
por um forum ladeado pelo santuário das insígnias e das imagens imperiais (aedes
signorum ou sacellum), por «gabinetes» administrativos (tabularia) e por uma
basílica, que servia de local de reunião em caso de intempéries. No prolongamento
desta praça central estava a residência do comandante-chefe, à qual se dava sempre o
nome de praetorium.
A praetentura e a retentura correspondiam essencialmente ao espaço destinado para o
acantonamento dos soldados: tratava-se estruturas ligadas duas a duas (num
acampamento provisório sendo tendas, noutro, de carácter mais permanente, edifícios
construídos em madeira e blocos de pedra), acolhendo cada uma 80 homens (uma
centúria). No interior de uma centúria, os homens estavam repartidos em grupos de
seis ou, mais usualmente, oito (contubernia). Os centuriões estavam instalados à parte,
geralmente na extremidade do edifício reservado para a sua centúria, e os tribunos
militares instalavam-se no scannum tribunorum. Nestas parcelas do acampamento,
localizavam-se também as cavalariças, os celeiros (horrea)618, oficinas (fabricae), um
hospital ou enfermaria (valetudinarium619) e, por vezes, termas620. No exterior, era
relativamente usual erigir-se um anfiteatro 621, como o confirmaram os achados de
escavações arqueológicas em vários sítios (Inglaterra, Áustria e Alemanha).
O recinto dos castra tinha quatro acessos; tal como na época republicana, a porta
principalis dextra (à direita dos principia) ligava-se à porta principalis sinistra (à
esquerda) através da via principalis. A via praetoria, orientada no sentido norte-sul,
estabelecia a ligação entre a porta praetoria e os principia. No seu prolongamento, a
via decumana conduzia à porta decumana, correspondente, simetricamente, à porta
praetoria. Ao ponto de intersecção da via principalis e da via praetoria dava-se o
nome de groma, termo referente ao instrumento utilizado pelos agrimensores. As
escavações arqueológicas revelaram que os acampamentos permanentes de legionários
ocupavam uma superfície que oscilava entre os 17 e os 28 ha 622, ao passo que os dos
auxilia eram de menores dimensões: entre 1 e 2,7 ha para uma coorte quingenaria,
618
Os horrea, que tanto podiam consistir em celeiros como depósitos para outros géneres de víveres, eram
habitualmente construídos sobre pilares ou muros elevados, a fim de que os cereais e demais alimentos se conservassem
frescos e fora do alcance de animais daninhos: veja-se G. Rickman, Roman Granaries and Store Buildings, Londres,
1971.
619
Descobriram-se vestígios de estruturas hospitalares, nomeadamente na fortaleza de Vetera/Xanten, na Renânia (cf.
E. Schultze, Bonner Jahrbuch CXXXIX [1934]; ILS 9174), ou os valetudinaria das bases militares situadas em Haltern,
Lochitz, Altenburg (Carnuntum) e Neuss (Novaesium), todas na Alemanha.
620
Como se vê na fortaleza de Exeter/Isca Dumnoniorum (Inglaterra): P. T. Bidwell, The Legionary Bath-House and
Basilica and Forum at Exeter, Exeter, 1979. Para mais informações sobre edifícios no interior das fortalezas romanas,
consulte-se a obra de H. Petrikovits, Die Innenbauten römischer Legionslager während der Principatzeit, Opladen,
1975.
621
S. Grosser, «For training and entertainment: Gladiators and military amphitheaters», Ancient Warfare, III..2
(April/May 2009), pp. 38-41. Descobriram-se vestígios de dois anfiteatros ligados a bases militares romanas: perto de
Budapeste, antiga Aquincum (Hungria), em Carnuntum (Petronell/Bad Deutsch-Altenburg, Áustria) e em Xanten
(Alemanha), junto do forte (Castra Vetera I) e da cidade civil Colonia Ulpia Traiana. Sabe-se também terem existido
anfiteatros em sítios adjacentes a fortalezas legionárias, como em Isca Silorum (Caerleon), Deva (Chester),
Cataratonium (Catterick), todas situadas em Inglaterra, e em Nijmegen (antiga Noviomagus), na Holanda. Também
houve anfiteatros ao pé de fortes auxiliares, tais como em Tomen-y-Mur (Reino Unido), Arnsburg, Zugmantel (com duas
estruturas), Dambach, na Alemanha, Micia e Porolissum, na Roménia, em Gemellae e Mesarfalta, na Argélia, e em
Dura Europos, na Síria.
622
Segundo os cálculos de Y. Le Bohec, L’armée romaine sous le Haut-Empire, p. 171 (cf. quadro com dados sobre os
acampamentos legionários durante o Alto-Império, incluindo a identificação dos locais, as superfícies em hectares e o
número de unidades acantonadas).
241
entre 2,1 e 3, 3 ha para uma coorte equitata623, entre 1, 8 e 3,1 para uma coorte
milliaria624, entre 2625 a 4 ha para uma ala quingenaria, e cerca de 3 ha para uma ala
milliaria626.
As bases militares implantaram-se com o objectivo de controlar as províncias, ao
mesmo tempo que vigiavam as populações exteriores ao Império. Os arqueólogos
descobriram alguns acampamentos situados no coração das províncias gaulesas: o de
Aulnay de Saintonge627, que deve remontar ao principado de Tibério, o de Arlaines 628
(perto de Soissons), talvez ocupado desde o reinado de Tibério até ao de Domiciano, e o
de Mirebeau629 (na Côte-d’Or), que acolheu, no período Flávio, a VIIª legião Augusta,
antes de ser transferida para Vindonissa630 (actual cidade de Windisch, na Suíça) e da
sua fixação definitiva em Argentoratum631 (Estrasburgo). Quanto ao acampamento de
Saint-Bertrand de Comminges, data provavelmente da dinastia Severiana. Atesta-se
idêntico dispositivo na Britânia, nos acampamentos de Deva632 (hodierna Chester), de
Isca Silorum633 (Caerleon) e Eburacum634 (York). Na Península Ibérica, a sua guarnição
viu-se reduzida, após o ano dos quatro imperadores (69 d. C.), apenas à VIIª legião
Gemina, acantonada num local que hoje corresponde à cidade de Léon.
Os acampamentos e fortes de tropas auxiliares 635 estavam especialmente adstritos aos
postos avançados do Império, o que explica o crescimento contínuo dos seus efectivos.
A necessidade de ligar estas guarnições umas às outras esteve na origem do
desenvolvimento de uma rede viária nos limites do mundo romano, o que hoje em dia
os historiadores designam como limes. Na sua génese, o vocábulo, extraído do léxico
técnico dos agrimensores, reportava-se aos caminhos abertos pelos militares romanos
em território hostil, os quais constituíam pontos de penetração para o exterior do
Império, onde a esfera de influência romana poderia ainda progredir. A estes eixos,
adicionavam-se depois vias paralelas, que estabeleciam uma conexão entre as
estruturas militares, apoiando-se em elementos naturais como os rios, cujas margens
representavam defesas naturais chamadas ripae.
Gradualmente, esta rede foi completada por outros fortins, acampamentos, muralhas,
torres de vigia e simples paliçadas, mais ou menos elaborados consoante os sectores.
Significava, assim, uma barreira teoricamente intransponível. Note-se que os efectivos
das forças militares acantonadas ao longo das fronteiras podem até parecer irrisórias,
relativamente à grande extensão das últimas: ao todo, existiriam 400 000 homens no
máximo. As fortificações desenvolveram-se mais na Europa a partir de finais do século
I d. C. do que em Africa e no Oriente, onde os desertos forneciam geralmente uma
623
G. C. Boon, Segontiacum, 1963, p. 15. R. W. Davies, «Cohortes Equitatae», Historia XX (1971), pp. 751-763.
624
G.-C. Picard, Castellum Dimmidi, 1947, p. 87; G. C. Boon, op. cit, p. 15.
625
G. Webster, The Roman Imperial Army, p. 206.
626
Quanto às superfícies ocupadas pelas unidades auxiliares, é difícil chegar a conclusões categóricas, defendendo os
estudiosos números diferentes (G. C. Picard, G. C. Boon, G. Webster, R. Rébuffat, M. Reddé e Y. Le Bohec). Cf. Y. Le
Bohec, L’armée romaine, p. 172.
627
D. e F. Tassaux et al., «Aulnay de Saintonge, un camp militaire augustotibérien en Aquitanie», Aquitania 2 (1983), pp.
50-95; Idem, «Aulnay de Saintonge, un camp militaire augustotibérien en Aquitaine», Aquitania 2 (1984), pp. 105-151.
628
M. Reddé, Cahiers du Groupe de recherches sur l’armée romaine, I (1977), pp. 35-70; III (1984), pp. 103-107; Gallia
XLIII (1985), pp. 49-79.
629
R. Goguey e M. Reddé (eds.), Le camp légionnaire de Mirebeau, RGZM, Mogúncia/Mainz, 1995.
630
R. Laur-Belart, Vindonissa: Lager und Vicus. Römisch-Germanische Forschungen 10, Berlim/Leipzig, 1935; também
do mesmo autor, veja-se, «Fortschritte in der Erforschung des Legionlagers Vindonissa», in E. Swoboda (ed.),
Carnuntina, Vorträge beim internationalen Kongress der Altertumsforscher, Graz/Colónia, 1956, pp. 91-94.
631
J.-J. Hatt, «Contribution des fouilles de Strasbourg (1947-1957) à l’histoire de la defense romaine sur le Rhin et sur le
Limes», Limes-Studien, Vorträge des 3. Internationalen Limes-Kongresses in Rheinfelden, 1957, 1959, pp. 49-54.
632
F. H. Thompson, «The legionary fortress of “Deva” (Chester), Recent Discoveries», Latomus 56 (1962), pp. 1491-
1500; T. J. Strickland e P. J. Davey (eds.), New Evidence from Roman Chester, Univ. of Liverpool Inst. Extension Stud.,
Liverpool, 1977.
633
G. C. Boon, Isca: The Roman Legionary Fortress at Caerleon, Mon., Cardiff, 1972.
634
H. G. Ramm, «Roman York: Excavations in 1955», JRS 46 (1966), pp. 76-90
635
D. B. Campbell, Roman Auxiliary Forts 27 BC- AD 378, Oxford, 2009; M. W. C. Hassall, «The internal planning of
Roman auxiliary forts», in B. Hartley e J. Wacher (eds.), Rome and her Northern Provinces, Gloucester, 1983, pp. 96-
131
242
protecção natural. O limes servia, então, tanto para canalizar ou controlar os
movimentos de populações fronteiriças, como para os impedir, caso se julgasse que
constituíssem uma ameaça. Simultaneamente palco de trocas comerciais e baliza de
demarcação do mundo civilizado aos olhos dos Romanos, o limes, com uma amplitude
variável conforme as regiões, adquiriu progressivamente uma dimensão económica e
cultural.
O planeamento central
Principiemos esta alínea com uma citação de C. R. Whittaker:«O que está em causa,
assim, não é se podemos encontrar exemplos do planeamento romano, de que existem
provas em quase todas as páginas da Guerra das Gálias de César, mas se tal
planeamento se é passível de definir como estratégia […] o termo torna-se tão
abrangente que deixa de ser um instrumento útil de análise […] A estratégia tem muitos
níveis de planeamento, e até as tácticas podem implicar manobrar todo um exército» 636.
Não restaa menor dúvida de que os Romanos eram capazes, pelo menos, de algumas
tomadas de decisão e planeamento a nível central. Desde o século II a. C., senão mais
cedo, anualmente o Senado passava em revista o número de legiões e de alae que
participariam em campanhas e para onde as mesmas deveriam deslocar-se. Os cônsules
recebiam, normalmente, exércitos compostos por duas legiões e igual número de alae,
os pretores, uma legião e uma ala. Todavia, se o problema militar fosse encarado como
um assunto muito sério, então cada magistrado podia comandar mais unidades. O
tamanho dos contingentes que compunham o exército e a proporção de infantaria em
relação à cavalaria no seu seio também podiam variar, dependendo da natureza do
conflito armado que se previa travar.
A natureza do problema bélico em questão era um factor que afectava a decisão do
Senado nesta matéria, mas, indiscutivelmente, os factores políticos assumiam, de igual
modo, igual ou até maior importância do que uma avaliação pragmática da situação.
Houve quem tenha afirmado que os rivais no interior do Senado tentavam reduzir o
número de tropas atribuído a vários comandantes romanos que conduzissem
campanhas relevantes, ao passo que no final da República, homens como Pompeio e
César obtiveram grandes exércitos e acrescida liberdade, mal se encontrassem nas suas
províncias. Isto não é surpreendente, já que muitas mais operações militares, em
tempos bem mais recentes, deveram a sua criação, desenvolvimento e amplitude à
influência exercida por oficiais ou políticos, assim como às suas ambições, tanto ou
ainda mais que a um frio exame das circunstâncias militares.
Sob o Principado, a tomada de decisões e o planeamento a nível central ocorreram,
decerto, de uma maneira similar. Havia cerca de 30 legiões no exército romano. Estas
unidades não só facultavam a mais significativa força militar nas províncias principais,
como também administradores, engenheiros e técnicos que desempenhavam uma série
de papéis essencialmente civis ou burocráticos. Movimentar uma legião, ou até uma
vexillatio reforçada, para outra província significava uma decisão importante, que
podia alterar o equilíbrio das forças militares nas circunscrições provinciais e perturbar
o funcionamento da administração. Tais decisões apenas eram tomadas pelo imperador
e pelo seu consilium, quanto mais não fosse porque o princeps necessitava de evitar
que algum governador senatorial (e potencial rival) detivesse o controlo de efectivos
demasiado grandes.
636
«Where are the frontiers now?, in D. L. Kennedy (ed.), The Roman Army in the East, JRS suppl. 18, Ann Arbor, 1996,
pp. 25-41.
243
Por vezes, tomavam-se medidas para redistribuir legiões devido ao medo da eclosão de
um motim, e não tanto por causa de necessidades militares: por exemplo, Domiciano
aboliu a prática de aboletar duas legiões num mesmo acampamento ou forte (Suetónio,
Dom. 7). Noutras ocasiões, as forças eram transferidas para reforçarem um exército que
tivesse sofrido numerosas baixas, como aconteceu na Britânia, no rescaldo da revolta
encabeçada por Boudicca, «rainha» dos Iceni. Enviavam-se legiões do Danúbio para
aumentarem os efectivos dos exércitos que operavam na Arménia ou no Norte de
África, embora em cada um dos casos a transferência fosse temporária, pelo que,
volvido algum tempo, cada unidade regressava à sua base de origem. Q. Júnio Bleso
(Quintus Iunius Blaesius) recebeu a legio IX Hispana com o objectivo de reforçar a III
Augusta, durante a luta contra Tacfarinas. No fim do mandato de Bleso como
governador, ele viu-se recompensado com honras triunfais e a IX legião retornou à
Panónia, apesar de a guerra ainda se encontrar longe de terminada. Bleso era tio de
Sejano, factor determinante para que ele conseguisse o prestigioso proconsulado para
África e, talvez, para que obtivesse um exército maior. Tácito (Ann. 4.23) refere que a
recusa em depreciar os seus feitos evitou que houvesse qualquer iniciativa para manter
a legião extra na província. Embora as preocupações de ordem política tenham afectado
o processo de tomada de decisões, passando até por cima das considerações
estritamente militares neste caso concreto, tal não significa que as últimas fossem
ignoradas.
Em regra, os imperadores superintendiam os movimentos das legiões e, em menor
grau, das unidades auxiliares, pelo menos quando estas eram enviadas de uma
província para outra. Eles também tinham algum cuidado na nomeação dos oficiais, se
bem que não seja claro até onde, descendo a estrutura hierárquica, este interesse se
estenderia. Havia certos tipos de mecanismos para transferir centuriões entre legiões
estacionadas em províncias distantes, mas não sabemos ao certo como isto se
processava, ou qual a dose de cuidado envolvida nestas nomeações.
Dispomos de exemplos documentados da escolha de generais para o comando em
conflitos importantes, tendo por base critérios como a competência e a lealdade desses
homens. Tibério aconselhou o Senado (Tácito, Ann. 12.8, 14-29; Hist. 4.8; Díon Cássio,
Hist. rom. 69.13, 2) a ter em conta a necessidade de que, ao escolher-se um procônsul
para África (a única província senatorial dotada de uma guarnição legionária), ele
possuísse talento militar, no contexto da repressão da revolta de Tacfarinas (Tácito,
Ann. 2.32, 3.35)637.
No entanto, certas tentativas ensaiadas por historiadores modernos, a fim de discernir
a existência de um sistema através do qual os senadores seriam avaliados de acordo
com a sua aptidão, antes de receberem comandos relevantes, ou de determinadas
legiões que obtinham oficiais mais experientes, por causa de problemas associados à
sua statio, não conseguiram revelar-se totalmente convincentes638.
A verdade é que o patronato ditou a maior parte das nomeações dos militares romanos,
como sucedia, aliás, em múltiplos outros aspectos no mundo romano. A capacidade
efectiva de um indíviduo podia ser levada em linha de conta, mas jamais era o único,
nem o factor mais importante. Também é incontestável que o imperador, através da
sua tomada de decisões, determinava as actividades dos seus exércitos nas províncias.
O alcance dos mandata de um governador – que consistiam em listas de instruções e
ordens entregues a cada titular -, não é, em absoluto, conhecido, mas este género de
documento deveria deixar bem claro onde e em que circunstâncias o exército da
província estaria autorizado a avançar em campanha 639.
637
Tibério indigitou Mânio Lépido, que declinou a nomeação, alegando problemas de saúde, e, depois, Júnio Bleso.
638
Contraste-se E. Birley («Promotions and transfers in the Roman army: senatorial and equestrian officers, in E. Birley,
The Roman Army Papers, 1929-1986, Mavors 4, Amesterdão, 1988, pp. 93-114), (1988 c) com a opinião mais plausível
de J. B. Campbell («Who were the ‘viri militares?, JRS 65 [1975], pp. 11-31). E. Dabrowa (‘Legio X Fretensis’: A
Prosopographical Study of its Officers, I-III AD, Historia Einzelschriften 66, Estugarda, 1993) procurou demonstrar
que os oficiais da Xª legião teriam sido especialmente escolhidos pela sua competência, mas os seus argumentos não
parecem muito consistentes. Veja-se, a propósito, a recensão de B. Isaac, «Review of Dabrowa», SCI 14 (1995), pp. 169-
171.
244
Bastante antes, a lex maiestas de Sula restringiu igualmente um governador de travar
uma guerra fora da sua província sem a permissão do Senado, mas depois, e ainda ao
longo da República, os senadores mais influentes lograram escapar à punição prevista
para as infracções a tal norma. Mas esta situação já era mais difícil de suceder durante a
época imperial: Gneu Calpúrnio Pisão viu-se acusado, no reinado de Tibério, por
regressar à Síria depois de ser removido do seu cargo640. Em 47 d. C., Corbulão, a seguir
à sua vitória sobre Gannascus, invadiu o território dos Chauci; quando recebeu a
ordem para retirar de Cláudio, Corbulão terá exclamado: «Que felizes eram os
comandantes romanos antigamente!», no momento em que começou a retroceder para
a margem ocidental do Reno (Tácito, Ann. 11.19-20). Não fica claro como é que Cláudio
sabia das acções dos seus generais, mas é possível que os próprios despachos de
Corbulão tenham informado o imperador das suas iniciativas e intenções 641.
Quando os imperadores projectavam uma nova conquista de grande magnitude, tal
requeria um conjunto de preparativos a longo-prazo e a utilização de homens e
materiais provenientes de mais de uma província. Sob o ponto de vista político, era
insensato conferir aos governadores uma liberdade excessiva para desencadearem
ofensivas agressivas, uma vez que convinha evitar que os mesmos pudessem emergir
como rivais. A maior parte das principais guerras de conquista que ocorreram sob o
Principado eram, no mínimo, presididas pelo imperador, que se certificava que só ele
seria o detentor da glória suprema dessas operações expansionistas.
Porém, muitos dos informes em que os imperadores se baseavam para tomar decisões
estavam exarados nos relatórios enviados pelos governadores, pelo que, provavelmente,
estes, às vezes, distorceriam deliberadamente a conjuntura para, deste modo, encorajar
uma anexação642. Por mais passivos que os imperadores possam haver sido em diversos
aspectos, os estudiosos modernos admitem, em geral que eles decidiam,
ocasionalmente, de maneira activa, conquistar novas províncias.
639
D. S. Potter, «Emperors, their borders and their neighbours: the scope of imperial mandata», in D. L. Kennedy (ed.),
The Roman Army in the East, Ann Arbor, 1996, pp. 49-66.
640
Ibidem, p. 49.
641
Ibidem, p. 52.
642
Por exemplo, de Comagena: Flávio Josefo, B. J., VII, 219-229, e comentários em B. Isaac (The Limits of Empire. The
Roman Army in the East, Oxford, 2ª edição revista,1992, pp. 22, 39-40)
643
E. g., C. R. Whittaker, «Where are the frontiers now?», pp. 28-30.
245
período Júlio-Cláudio, o exército ficou desdobrado basicamente da mesma maneira
como acontecera durante a etapa da conquista, fazendo-se extenso uso de reis e
estados-clientes ou vassalos; na segunda fase, as fronteiras cristalizaram, vendo-se o
exército distribuído em bases de diversos tamanhos ao longo do perímetro das
províncias, e a finalidade seria a de derrotar qualquer investida, antes ou pouco depois
de os invasores penetrarem no império; finalmente, num terceiro estádio, no século III
d. C., desenvolver-se-ia um sistema de «defesa em profundidade», que permitia
incursões inimigas nas províncias, optando os Romanos por derrotar os invasores ao
defender todas as cidades e bens vitais. Este sistema, a funcionar de tal modo,
resultaria bem menos satisfatório. O certo é que Luttwak não chegou a explorar
adequadamente os problemas militares que se fizeram sentir durante a Antiguidade
Tardia, apenas aflorando alguns deles apenas de maneira superficial.
Nas três fases congeminadas por este autor, o exército romano foi descrito como
manifestando um comportamento idêntico em todas as províncias fronteiriças do
império. Construíram-se instalações militares, como fortes, fortalezas, fronteiras
lineares ou pontes e estradas de comunicação, de forma lógica, para assim apoiar as
tropas na sua tarefa. Quando o livro de E. N. Luttwak deu à estampa, um considerável
número de académicos aderiu ao seu ideário, e alguns historiadores, nomeadamente A.
Ferril e E. Wheeler, vieram até a refinar e a defender acerrimamente o modelo de
Luttwak644.
Porém, outros estudiosos, como J. C. Mann 645, mostraram-se renitentes e críticos em
relação a Luttwak, ou pelo menos, diante das suposições por detrás dos trabalhos que o
último utilizou para formular o seu modelo. O ataque mais significativo, todavia,
apareceu com a obra de B. Isaac, The Limits of Empire, que se centrou sobre o papel do
exército romano no Oriente helenístico: ele afirmou que os Romanos raramente
enfrentaram sérias ameaças por parte dos seus vizinhos Partos e Persas, ou dos
nómadas do deserto. Não obstante, certas regiões das províncias orientais mantiveram
uma forte resistência à dominação romana durante séculos, o que obrigava que à
presença de efectivos significativos do exército, posicionados como forças de ocupação.
A oposição variava desde o banditismo até à revolta aberta, o que compelia os Romanos
a colocarem destacamentos de soldados nas principais cidades e, em alguns casos, até
em pequenas comunidades, bem como ao longo de estradas.
B. Isaac alertou contra a persistência da ideia preconcebida de que haveria uma razão
estratégica lógica a presidir à localização de cada forte ou base erigidos pelo exército
romano, salientando que muitos outros factores terão facilmente desempenhado um
papel concreto nessas decisões, e que uma vez construído, um forte podia permanecer
no mesmo sítio já muito depois de olvidado o motivo inicial para a sua localização.
Isaac não descobriu provas da existência de fronteiras cientificamente planificadas no
Oriente, e duvidou mesmo que a mentalidade romana fosse capaz de criar tais
elementos. A missão primeira do exército sob o Principado consistiu em controlar as
províncias orientais, mais do que defendê-las de inimigos externos. Com efeito, longe
de enfrentar graves ameaças externas, a ideologia romana continuou a caracterizar-se
pela sua vertente expansionista, visando a criação de um eventual império mundial.
Neste sentido, os Romanos é que provocaram e desencadearam a maior parte dos
conflitos armados contra a Pártia e a Pérsia, e sucessivos imperadores sonharam
empreender as conquistas orientais de Alexandre-o-Grande, em busca de glória 646.
A abordagem de B. Isaac mereceu considerável atenção e elogiosas críticas por parte de
vários dos seus confrades. Se bem que ele apenas tenha lidado com a parte oriental do
império, outros historiadores começaram a pensar se as suas ideias não se poderiam
aplicar igualmente ao Ocidente. Num caso específico, Isaac foi até acusado de não ser
644
A. Ferril, «The Grand Strategy of the Roman Empire», in P. Kennedy (ed.), Grand Strategy in War and Peace, New
Haven, 1991, pp. 71-86; idem, Roman Imperial Grand Strategy, Lanham, Md, 1991 b; E. L. Wheeler, «Rethinking the
upper Euphrates frontier: where was the western border of Armenia?», Limes 15 (1991), pp. 505-511; idem,
«Methodological limits and the mirage of Roman strategy», Journal of Military History 57 (1993), pp. 7-41, 215-240.
645
J. C. Mann, «Power, force and the frontiers of the empire», JRS 69 (1979), pp. 175-183.
646
B. Isaac, The Limits of Empire, pp. 372-418.
246
suficientemente radical, por um autor que sustentou a teoria de que a guerra levada a
cabo pelos Romanos talvez fosse ainda menos lógica e mais desordenada 647.
Curiosamente, a literatura antiga comporta elementos que servem como argumentos
de defesa a favor ou contra os dois pontos de vista: alguns escritores, como Estrabão e
Aélio Aristides, discorreram sobre os Romanos como já sendo donos da melhor parte
do mundo e desdenhando conquistar o resto, ou comparando o exército romano a uma
muralha em torno das províncias648. Outros autores sustentaram que mais
expansionismo era tanto possível como desejável, criticando certos imperadores que
mostraram menos agressividade ou que abandonaram territórios conquistados 649.
Aparentemente, não terá havido um consenso cabal a respeito deste assunto 650.
Lembremos igualmente que, tal como sob a República, o aumento do poder romano
não significava necessariamente a ocupação física de novas províncias. Roma pode
haver permanecido ideologicamente inclinada para mais expansão territorial, mas as
conquistas, embora ocorrendo, foram, de longe, mais raras do que sucedeu nos dois
séculos antes de 14 d.C.
Alguns imperadores quiseram ou precisaram (por diversos motivos) de empreender
grandes conquistas, mas a maioria não acrescentou novas províncias ao império.
Factores de ordem política, o temor de que generais muito exitosos se tornassem rivais,
bem como a relutância de muitos soberanos em passarem um considerável número de
anos a supervisionar campanhas no estrangeiro, tudo isto constituiu um conjunto de
elementos que, amiúde, desencorajaram os actos expansionistas 651. Se bem que Luttwak
tenha sugerido que o império cessou de se expandir quando deparou com povos contra
os quais o exército romano não conseguiria vencer com facilidade, ou que o sistema
romano não poderia absorver de imediato, o historiador parece não levar em linha de
conta a extraordinária flexibilidade das forças armadas romanas. Os Romanos já
tinham conquistado e subjugado uma variegada série de sociedades e não existem
razões concretas para acreditarmos que os Germanos ou os Partos fossem tão
diferentes dos demais povos, a ponto de o exército romano não lograr derrotá-los. No
entanto, outra coisa é se os recursos estariam sempre disponíveis para tais empresas,
tanto em homens como em materiais, além de haver, também, determinação para
concretizá-los.
B. Isaac teve razão quando sublinhou o papel desempenhado pelo exército romano no
controlo das comunidades ocupadas: as legiões na Síria encontravam-se habitualmente
estacionadas em cidades e, no Egipto, as tropas ficavam aboletadas perto de
Alexandria, para controlar a população desta grande cidade 652. Muito provavelmente, os
soldados romanos seriam chamados a intervir, para impedir a eclosão de tumultos
entre comunidades rivais ou de gente pertencente a diferentes secções no seio da
mesma sociedade, sobretudo se recorressem à violência, agindo contra a dominação
romana. Grande parte dos testemunhos textuais mais elucidativos quanto a uma
resistência de longa-duração procede da Judeia; contudo, é assaz difícil determinarmos
se devemos encarar os Judeus como um caso típico ou excepcional a este respeito.
Destaquemos outro ponto referido pelo historiador israelita - a localização de uma
guarnição não indica necessariamente o que a mesma estaria a fazer. As provas da
presença de tropas romanas numa cidade ou noutro tipo de localidade de menores
dimensões, e longe das fronteiras, não significam automaticamente uma indicação
objectiva da existência de uma resistência urbana. De acordo com a mesma lógica,
então, a presença de elevada quantidade de instalações militares em redor de
Aldershot, na Inglaterra do século passado, afigurar-se-ia uma evidência de grande
647
P. Freeman, «The annexation of Armenia and imperial Grand Strategy», in D. L. Kennedy, The Roman Army in the
East, pp. 114-115.
648
Estrabão, IV, 5, 32; Aristides, Or., 82; Apuleio, Pract., 7.
649
Para mais pormenores, B. Isaac, The Limits of Empire, pp. 24-26.
650
G. Woolf, «Roman peace», in J. W. Rich e G. Shipley (eds.), War and Society in the Roman World, Londres/Nova
Iorque, 1993, pp. 189-191.
651
J. B. Campbell, The Emperor and the Roman Army, 31 BC-AD 235, Oxford, 1984.
652
Veja-se igualmente R. Alston, Soldier and Society in Roman Egypt, Londres/Nova Iorque, 1995, pp. 74-79
247
agitação na região, ou da proximidade de uma ameaça externa, o que não corresponde
à verdade.
As unidades militares podiam estar aquarteladas nas principais cidades porque, desta
forma, se situavam perto de importantes encruzilhadas viárias, tornando-as mais
facilmente móveis e operacionais. Além disso, seria bem menos difícil aprovisionar e
aquartelar as mesmas nos centros urbanos, o que decerto agradaria tanto aos oficiais
como aos simples soldados. As capacidades administrativas e técnicas das legiões eram
preciosas para o funcionamento das províncias. A distinção entre policiamento e
ocupação é complexa de discernir com nitidez e depende, em larga medida, de um
ponto de vista político. Posto isto, as unidades romanas podiam encontrar-se
estacionadas nas cidades por algum ou por todos estes motivos.
No entanto, Isaac admitiu que, às vezes, pairaram ameaças externas sobre o exército
romano no Oriente, mesmo estando o autor inclinado a acreditar que elas não
representavam a sua preocupação mais relevante (efectivamente, tanto Isaac como
Luttwak mostraram-se mais flexíveis na interpretação que fizeram dos testemunhos
antigos do que muitos dos seus apoiantes ou críticos sugeriram). É inegável, também,
que, deixando de parte a Síria, o Egipto e algumas outras províncias orientais, a maior
parte das unidades romanas estava aboletada perto dos confins do império. Os
soldados podem não ter sido uma presença tão pouco familiar no interior de províncias
povoadas como em tempos se supôs, e nem as guarnições dos fortes seriam tão
estáticas como tradicionalmente também se acreditou. Mas isto não altera o facto de
que grande parte das bases militares romanas sob o Principado se situava perto das
fronteiras exteriores das províncias. Em certos casos, as fortificações do exército
ficaram, aparentemente, afastadas das áreas com maior número de habitantes civis 653.
Independentemente da concepção que os Romanos teriam de uma «fronteira», da sua
ideologia ser agressiva ou defensiva, o precisamos explicar é por que motivo (ou
motivos) uma forte presença militar se considerava necessária nessas zonas por longos
períodos. Algumas das actividades empreendidas pelo exército em tais regiões
continuam a desconcertar os académicos: não existe unanimidade quanto às fronteiras
monumentais lineares, como as muralhas no Norte de Inglaterra ou entre o Reno e o
Danúbio, na Alemanha, acerca da sua finalidade e como funcionavam elas realmente.
Quase tão intrigantes são os casos de soldados romanos repartidos em destacamentos
muito pequenos, frequentemente contando com menos de dez homens, estando de
serviço em torres de vigia, construídas em linhas seguindo o traçado das estradas ou
nas cristas de colinas654. Estes dispositivos parecem fazer pouco sentido, já que o
principal objectivo do exército romano radicava na defesa das províncias, logo qualquer
ataque de forte envergadura certamente destruiria estas fracas defesas.
Nem a visão do império romano, sob o Principado, como essencialmente defensivo,
nem a ideia de que o mesmo era agressivo e ainda almejava expandir-se mais explicam
devidamente o que o exército verdadeiramente fazia. S. P. Mattern 655 sugeriu que a
distinção entre as atitudes «defensiva» e «ofensiva» é, pura e simplesmente,
anacrónica, e que deveríamos perspectivar as relações externas romanas mais em
termos de conceitos tais como a honra e o poder. O tema do livro desta historiadora
versa fundamentalmente a ideologia do império, mas ela não explanou de facto como é
que o exército operava ou se as suas actividades seriam eficazes ou não. No entanto, a
mudança de ênfase foi assaz profícua, uma vez que se torna importante compreender
como os Romanos concebiam as suas relações com outros povos, e é neste quadro que
se deve tentar perceber o que as suas forças armadas estavam realmente a levar a cabo.
653
S. Pigott, «Native economies and the Roman occupation of north Britain, in I. A. Richmond (ed.), Roman and Native
in North Britain, Edimburgo, 1958, pp. 1-27.
654
Por exemplo: B. Isaac, The Limits of Empire, pp. 136, 200-206, 252; R. Alston, Soldier and Society in Roman Egypt,
pp. 81-83, 85, 87; M. C. Bishop, «Praesidium: social, military and logistical aspects of the Roman army’s provincial
distribution during the early Principate», in A. K. Goldsworthy e I. Haynes (eds.), The Roman Army as a Community,
JRS Suppl. 34, Portsmouth, RI, 1999, p. 113.
655
Rome and the Enemy: Imperial Strategy in the Principate, Berkeley/Los Angeles, 1999, pp. 162-210.
248
Permanece em aberto a questão se os Romanos desenvolveram ou não algo que se
possa razoavelmente cunhar de «grande estratégia». À semelhança de muitos outros
rótulos, observa-se a tendência para que cada estudioso que se envolva no debate
formule a sua própria definição para tal expressão, procurando confirmar ou refutar se
os Romanos teriam ou não esse conceito. A ideia da «grande estratégia» foi, como
vimos, criada no século XX, e muitas das definições empregues em obras modernas
sobre estratégia pressupõem a existência de instituições e concepções totalmente
alheias ao império romano.
Para a maior parte dos estados-nações da actualidade, a noção ideal dos «negócios
estrangeiros» consiste na coexistência pacífica com os seus vizinhos. Considera-se que
cada estado tem de se autogovernar à sua própria maneira e de acordo com as suas
respectivas leis. No mundo moderno, encara-se a guerra, pelo menos em teoria, como
uma anomalia que destrói a situação natural e desejável da permanência da paz.
Todavia, em muitas sociedades do mundo antigo o contrário é que se entendia como
verdadeiro, normal, a paz significando apenas uma interrupção das hostilidades
internacionais656.
Os Romanos tendiam a pensar na paz como o resultado de uma derrota total infligida a
um inimigo, daí o verbo «pacificar» (pacare) ser um eufemismo para «derrotar» 657.
Consequentemente, os Romanos jamais aspirariam a manter uma coexistência pacífica
com as outras nações, sobretudo com os seus antigos inimigos.Há que, em certa
medida, correlacionar a nossa compreensão da ideologia romana com a realidade dos
dispositivos militares implantados nas zonas fronteiriças, muitas das quais estiveram
constantemente ocupadas durante séculos. Assim, há que ter em conta a disposição do
exército nessas áreas e tentar reconstituir o que estaria ele a fazer nas mesmas. Neste
sentido, cabe olhar para os limites do império romano a partir das duas direcções.
249
monumental, Adriano rompeu com a política expansionista de Trajano e renunciou,
pela primeira vez, à ideia de um império sem fim, a qual prevalecera no núcleo do
discurso oficial desde o período augustano. Antonino-o-Pio entendeu, por seu lado,
empurrar esta linha de defesa ainda mais para norte, a partir de 143 d. C., ao mandar
erguer uma nova muralha com 60 km de comprimento 659, entre o Forth e o Clyde, mas
da década de 160 em diante ela foi abandonada, voltando a tornar-se operacional a
Muralha de Adriano.
No continente europeu, o dispositivo militar assentou sobretudo nas ripae ao longo do
Reno e do Danúbio, ficando as legiões estacionadas em Noviomagus/Nijmegen660,
Vetera/Xanten661, Novaesium/Neuss662, Bonna/Bona e em Mogontiacum/Mainz663.
Mas os dois rios ofereciam menos protecção nos seus cursos superiores. Foi por esta
razão que Domiciano quis avançar até às margens do Neckar, a leste. As campanhas
contra os Chatti, entre 83 e 85, permitiram a anexação da região dos Campos
Decumatos (que corresponde actualmente à Floresta Negra)664. Estes foram protegidos
por uma paliçada de madeira sobre uma elevação de terra, entre a Germânia Superior e
a Récia, estendendo-se ao longo de 382 km (entre as cidades hodiernas de Coblença e
Estugarda). O dispositivo viu-se reforçado por um fosso à frente e outro atrás, torres e
fortins dispostos em intervalos regulares e uma rede viária.
Entre finais do século I e durante o II d. C., a partir de Castra Regina (actual
Ratisbona), na Récia, e até à Mésia (Moesia), implantaram-se acampamentos
legionários ao longo do Danúbio: em Lauriacum665 (Lorch), Vindobona (Viena),
Carnuntum666 (Bad Deutsch Altenburg-Petronell, entre Viena e Brastilava), Brigetio
(Szöny), Aquincum667 (perto de Budapeste), Singidunum (Belgrado), Viminacium
(Pozarevac), Oescus668, depois Novae (Svishtov), Durostrorum (actual cidade de
Silístria), Troesmis (Iglitza, nas proximidades do delta), e em Nicopolis ad Istrum, um
pouco mais recuada. Desde as grandes campanhas de Trajano, a Dácia representava
uma excepção face a este dispositivo linear e, das três legiões que haviam garantido a
anexação, lá se conservou uma, a XIIIª Gemina, para lá do Danúbio, em Alba
Julia/Apulum, até ao reinado de Marco Aurélio, altura em que se transferiu a legio V
Macedonica de Troesmis para Potaissa.
Na defesa das províncias orientais, salientou-se, pela sua utilidade e eficácia, uma rede
viária que desempenhou um papel muito mais importante do que as fortificações, nos
confins das regiões desérticas ou montanhosas. Só o Alto Vale do Eufrates 669 constituía
uma ripa em relação aos Partos, no mesmo sentido que se entendia na Europa. A
Anatólia670 ficou assim ligada tanto às províncias balcânicas como à Síria. A anexação
659
Sobre a Muralha de Antonino: W. S. Hanson e G. S. Maxwell, Rome’s North West Frontier: the Antonine Wall,
Edimburgo, 1986; N. Fields, Rome’s Northern Frontier AD 70-235: Beyond Hadrian’s Wall, Oxford, 2005, pp. 36-58;
para uma visão mais abrangente, que engloba uma análise tanto sobre a Muralha de Adriano como a construída por
Antonino, consulte-se D. C. A. Shotter, The Roman Frontier in Britain: Hadrian’s Wall, the Antonine Wall and Roman
Policy in the North, Preston, 1996;
660
J. E. Bogaers, «Romeins Nijmegen», Numaga 12 (1965), p. 10ss; J. E. Bogaers e J. K. Haalebos, «Die Nijmegener
Legionslager seit 70 nach Christus», Studien zu den militärgrenzen Roms,Colónia/Bona, vol. II, 1977, pp. 93-108.
661
H. Lehner, Das Römerlager Vetera bei Xanten, 1926; idem, «Vetera, die Erbegnisse der Ausgrabungen des Bonner
Provinzial-Museums bis 1929», Römisch-Germanische Forschungen 4 (1930), pp. 40ss.
662
H. von Petrikovits, Novaesium, Das römische Neuss, 1957; idem, «Die Ausgrabungen in Neuss», BJ 161 (1961), pp.
449-485.
663
H. von Petrikovits, «Mogontiacum – Das römische Mainz», MZ 58 (1983), p. 27ss.
664
B. W. Jones, The Emperor Domitian, pp. 126-159.
665
W. A. Jenny e H. Vetters, Forschungen in Lauriacum, Band I, 1953.
666
E. Swoboda, Carnuntum: Römische Forschungen in Niederösterreich, Band 1, 1964.
667
V. Kuzsinszky, Aquincum. Ausgrabungen und Funde, Budapeste, 1934; S. K. Póczy, «Die Töpferwerkstätten von
Aquincum», Acta Arch. Acad. Scient. Hungaricae 7, fac. 1-4 (1958); S. Visy, Der pannonische Limes in Ungarn,
Budapeste, 1988, pp. 80-87.
668
A. Frova, «The Danubian limes in Bulgaria and excavations at Oescus», in E. Birley (ed.), The Congress of Roman
Frontier Studies, 1949, Durham, 1952, pp. 23-30.
669
R. K. McElderry, «The Legions of the Euphrates Frontier», Class. Q. 3 (1909), p. 4ss; R. E. M. Wheeler, «The Roman
frontier in Mesopotamia», in E. Birley (ed.), The Congress of Roman Frontier Studies, pp. 112-129.
670
S. Mitchell (ed.), Arms and Frontiers in Roman and Byzantine Anatolia, BAR Int. Serv. 165, Oxford, 1983.
250
da Arábia671, em 106 d. C., traduziu-se na construção, entre 111 e 115, da Via Nova
Traiana, que unia a Síria ao mar Vermelho. A controlar a Anatólia encontravam-se três
legiões estacionadas em Melitene e Satala, na Capadócia, em Samosata, na Comagena,
havendo igualmente destacamentos daquelas e de auxiliares presentes nas províncias
interiores. A Síria, província-chave, contava com quatro legiões acantonadas em
Zeugma672, Laodiceia, em Raphanea e Cyrrhus. A guarnição da última foi transferida a
seguir para Jerusalém, depois da Guerra Judaica de 66-70 d. C. Quanto à nova
província da Judeia, recebeu uma legião suplementar em Capareotna, em 123.
O Egipto, inicialmente ocupado por três legiões sob Augusto 673 após a sua anexação,
perdeu uma sob o principado de Tibério para, mais tarde, ganhar outra durante o
reinado de Trajano, que aí concentrou tropas com vista à anexação da Arábia,
acolhendo então a IIIª legião Cyrenaica, que passou do Egipto para Bostra. Em 135 d.
C., a revolta judaica de Bar Kochba levou à desaparição de uma das legiões «egípcias»,
a XXII Deiotariana. No país nilótico restou só uma, a II Traiana, aboletada em
Nicópolis, nos arredores de Alexandria. Seja como for, as unidades auxiliares vigiavam
as rotas que ligavam o Vale do Nilo aos portos do mar Vermelho, através do deserto.
As províncias africanas possuíam um dispositivo militar bastante semelhante: elas
apenas tinham uma legião: a III Augusta, que se deslocou para sudoeste, à medida que
Roma foi progredindo ao longo da rota entre Cartago e o maciço do Aurès (Seguia bent
el-Krass), transitando de Ammaedara (actual cidade de Haidra) para Theveste
(Tebessa), fixando-se por fim em Lambaesis, entre 115 e 120 d. C674. Para controlar
melhor o Aurès, utilizaram-se guarnições auxiliares, algumas das quais ocuparam
postos avançados em pleno deserto. A oeste, na Mauritânia Cesareia, a rede viária
servia para estruturar regularmente as implantações militares compostas por fortes
guarnecidos por auxilia, que balizavam a Praetentura, a grande artéria orientada de
leste para oeste, ao longo do uadi Chelif, reforçada a sul por uma Nova Praetentura sob
a égide de Septímio Severo, que ia de Tarmount, no Norte do Chott el-Hodna, até à
actual Tlemcem e Marnia675.
Em contrapartida, na extremidade ocidental, a Mauritânia Tingitana possuía
guarnições auxiliares, principalmente em torno de Volubilis676. A missão destas tropas
consistia em proteger o Estreito de Gibraltar de incursões dos mauri rumo à Bética
(Baetica), na Península Ibérica. A extrema dispersão das forças militares por uma tão
671
O. Petit, «Une politique extérieur dynamique – Trajan étend l’Empire en Orient; L’Arabie, l’Arménie et la
Mésopotamie deviennent romaines», Le règne de Trajan ou l’Apogée de l’Empire/Histoire Antique, hors-série nº 13
(avril-juin 2007), pp. 42-47.
672
Em Zeugma, esteve aboletada, entre outras, a legio III Scythica: cf. J. Wagner, «Legion III Scythica in Zeugma am
Euphrat», in Studien zu den militärgrenzen Roms, 1978, pp. 517-539.
673
M. P. Speidel, «Augustus deployment of his legions in Egypt», Cahiers d’Égipte (1980), pp. 120-124; H. Devijver,
«The Roman Army in Egypt», Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II (1974), pp. 452-492.
674
R. Cagnat, Les deux camps de la légion IIIe Auguste à Lambese d’après les fouilles récentes, Paris, 1908.
675
Y. Le Bohec, L’armée romaine, p. 186; idem, «Frontières et limites militaires de la Maurétanie Césarienne sous le
Haut-Empire», in Mélanges P. Salama. A defesa da Mauritânia Cesariana foi confiada a tropas auxiliares: N. Benseddik,
Les troupes auxiliaires de l’armée romaine en Maurétanie Césarienne, 1982.
676
M. Euzenn «Le limes de Volubilis», Studien zu den Militärgrenzen Roms, Colónia/Graz, 1967, pp. 194-199.
251
vasta extensão conferia um papel de primeiro plano às alas de cavalaria dos auxilia. O
clima e a configuração do terreno tornavam inútil a construção de uma muralha ou de
um fosso contínuos. Os arqueólogos trouxeram à tona uma grande diversidade de
elementos de vigilância e defesa, empregues neste sector: paliçadas, fossos, torres de
vigia, a partir das quais se transmitiam sinais 677 luminosos ou até se recorria a painéis
de madeira articulada ou se efectuavam gestos codificados com archotes, análogos ao
telégrafo Chappe678. Tendo em conta a variedade das paisagens e o carácter mais ou
menos ameaçador das populações vizinhas, aquilo a que chamamos limes assumiu, na
realidade, formas muito distintas. Muralhas e fossos contínuos eram excepções à regra,
desempenhando as vias de comunicação um papel essencial por toda a parte.
252
agressividade em todos os tipos de campanhas, em geral tomando os seus comandantes
romanos a iniciativa e, invariavelmente, desencadeando ofensivas. Se não derrotasse o
antagonista em batalha campal, fosse por opção ou por não se envolver em
confrontação aberta, então o exército romano escolhia como alvos atacar comunidades,
praças-fortes e recursos agrícolas.
Um pequeno exército, ainda que altamente eficaz, não se afigurava apropriado para
uma defesa estática de extensas fronteiras, mesmo que aspirasse a sê-lo. Os Romanos
não dispunham de efectivos para guarnecer todas as localidades ou posições
importantes, além de que esta não representava uma utilização adequada para soldados
bem treinados. No período em apreço, na realidade poucos fortes romanos eram
defensivos no mesmo sentido que o foram, mais tarde, os castelos medievais. As suas
fortificações revelavam-se modestas, mas forneciam bases seguras e sítios onde residia
um elevado número de tropas, destinando-se a operar como forças móveis de
campanha.
Durante séculos, muitas províncias romanas estiveram bordejadas por povos para os
quais os raides eram uma componente normal da sua vida e uma fonte de prestígio
aristocrático. Por várias razões, os Romanos não anexaram as terras de muitos povos. A
prosperidade que inquestionavelmente se desenvolveu nas províncias serviu de
chamariz e de incentivo adicional para a realização de incursões e pilhagem, enquanto,
por outro lado, a presença militar romana restringiu o livre trânsito de tribos que
sofriam a pressão de outras. Atrás dissemos quão difícil era interceptar todos os raides,
mesmo quando estes bandos de salteadores batiam em retirada, já que exigia
comunicações e reacções rápidas por parte dos oficiais a nível local e alguma sorte em
apanhar tais grupos.
Os exércitos estavam mais indicados para efectuar expedições punitivas em proporções
por vezes maciças, que assestavam rudes golpes sobre as comunidades julgadas
responsáveis por essas actividades de saque. Através destas operações esmagadoras,
concretizadas ou anunciadas como ameaça, as tribos podiam ver-se coagidas a
submeter-se.
É indiscutível que o império romano não promoveu um modelo de coexistência
pacífica com os seus vizinhos: pelo contrário, buscou sempre impor-se por meio de uma
dominação belicosa, o que podia atingir através de vários meios. O poder romano foi-se
dilatando com base na força militar e numa diplomacia activa bem para além dos
limites do império. Nenhum romano alguma vez duvidou do direito que lhe assistia ao
agir desta maneira, e as acções romanas estavam desprovidas de conceitos ou
preocupações face aos direitos de outras étnias e raças. Paulatinamente, o império
romano foi-se estendendo, incluindo muitos povos considerados subordinados à
autoridade romana, mas cujos territórios não conheceram uma ocupação física.
O exército romano estava mais vocacionado para acções móveis: por vezes montava
redes de fortificações como bases sólidas a partir das quais efectuava as suas ofensivas.
Um dos elementos mais peculiares da Muralha de Adriano é no número quase
excessivo de portões que continha 680. Desde a sua criação, ela nunca serviu de barreira
para as acções frontais do exército. No entanto, a solidez da Muralha de Adriano
também podia obedecer ao propósito de controlar os movimentos populacionais, ao
mesmo tempo que se regulava o comércio, tornando mais fácil localizar e interceptar
pequenos bandos de salteadores. Por fim, a parte mais importante de qualquer sistema,
tanto de uma barreira linear, como de uma série de fortes, fortins e torres, não se
encontrava nas próprias estruturas materiais, mas nos homens que as guarneciam.
Grande parte das acções bélicas desencadeadas na orla periférica do império romano
caracterizou-se pela sua escala reduzida. Mas não existia uma divisão nítida entre
ameaças de «baixa» e «alta intensidade», já que uma delas facilmente se poderia
transformar na outra. Por este motivo, o exército tinha de procurar fazer face a todas as
modalidades de guerra, desde a intercepção de grupos compostos por uns quantos
guerreiros saqueadores até à organização de ataques de elevada envergadura contra
680
Breeze e Dobson, 1987, pp. 60-61.
253
tribos vizinhas. Tratava-se de uma luta constante, já que a memória do poder romano
entre os povos tribais tinha pouca duração, e quaisquer fissuras ou fragilidades na
fachada da maiestas romana significavam um «convite» para que os antagonistas
efectuassem investidas com o intuito de vingar antigas afrontas. Em certos períodos, as
incursões aumentaram a tal ponto que as províncias romanas se viram seriamente
afectadas e, se persistisse incapacidade na resolução deste problema, isto repercutia-se
negativamente na própria figura do imperador (Tácito, Ann. 4.74; Díon Cássio, Hist.
rom. 67.6.1-9.6).
Tais situações foram comparativamente raras até ao século III; para pôr termo às
mesmas, havia que levar a cabo operações militares de considerável amplitude. Os
ataques direccionados contra a Mésia por Decébalo e a subsequente humilhação de
Domiciano tiveram por corolário a conquista da Dácia sob Trajano. A contínua busca
pela vitória, tão própria dos Romanos, conduzia, por vezes, a uma empresa bélica
verdadeiramente decisiva. Quando os desaires eram menos graves, os problemas
podiam resolver-se normalmente com a derrota de uma tribo, aceitando-se a sua
rendição, mas não ocupando o seu território num regime de permanência.
Os povos que habitavam nas regiões para lá das fronteiras, na Europa, em África e no
Oriente, encontravam-se vagamente organizadas em tribos. O poder de cada grupo e
dos respectivos chefes flutuava grandemente no decurso do tempo. Nenhum deles
apresentou uma ameaça concertada e sólida ao império, mas não deixavam de causar
danos a nível local. Cabe interrogarmo-nos se, nestas circunstâncias, se revestiria de
utilidade prática uma «grande estratégia» para os imperadores romanos. Muitos dos
problemas eram tão pontuais e reduzidos que se resolviam mais facilmente in situ. Um
imperador não precisaria de saber em detalhe que actividades realizavam centenas ou
milhares de reizetes e chefes ou cabecilhas de bandos de bandidos, além de que não
dispunha de tempo (mesmo que tivesse tal intenção) de tomar decisões específicas
sobre todos eles; apenas centrava a sua atenção nos que fossem mais poderosos.
O princeps controlava a distribuição global das forças do exército, sendo ele quem
decidia quando se transferiam tropas de uma província para outra, e quais as grandes
campanhas a desencadear fora das províncias. Para além disto, e da preocupação de
evitar a deslocação de unidades para uma determinada operação quando podia gerar
problemas noutras zonas, torna-se difícil perceber como qualquer forma de «grande
estratégia» teria capacidade de lidar com tantas situações locais, que estavam em
constante mudança. Os Romanos não viviam num mundo constituído por um número
relativamente pequeno de estados rivais poderosos, com políticas claras e próprias, mas
num ambiente de longe bem menos organizado e coerente. Neste sentido, o debate
sobre a «grande estratégia» talvez nem seja profícuo nem esclarecedor.
254
CAPÍTULO VII: Recrutamento e carreira militar
VII.1.1 A probatio
681
Sobre o recrutamento no exército imperial romano, consultem-se, entre outros estudos: G. Forni, Il reclutamento
delle legioni da Augusto a Diocleziano, Milão/Roma, 1953; J. F. Gilliam, «Enrolment in the Roman imperial army», Eos
48 (1957), pp. 163-172; J. C. Mann, «The raising of new legions during the principate», Hermes 91 (1963), pp. 483-489;
R. W. Davies, «Joining the Roman army», BJ 169 (1969), pp. 208-232; P. A. Brunt, Italian Manpower, Oxford, 1971, pp.
509-512; idem, «Conscrition and volunteering in the Roman imperial army», SCI 1(1974), pp. 90-115; Y. Le Bohec,
L’armée romaine, pp 71-107.
255
encontra-se na correspondência trocada entre Plínio-o-Moço e Trajano (Cartas, 10.29-
30): estas instruções (mandata) eram provavelmente redigidas segundo um modelo
formular estereotipado, pelo procurador a mandatis. Só se solicitava a intervenção
pessoal do imperador quando fosse preciso arbitrar casos litigiosos.
Nas províncias do populus romanus, era, pois, o procônsul que se encarregava do
dilectus. Em situações mais prementes, se fosse necessário recorrer à conscrição, ele
recebia, eventualmente, a assistência de um membro da classe senatorial (investido de
uma missão extraordinária), qualificado como legatus ad dilectum. Mas o procônsul
podia também assumir, ele próprio, tal título, que acumulava por vezes com a função de
legatus ad census accipiendos, isto é, a responsabilidade pelo recenseamento.
Mas o recrutamento não tardou a limitar-se às províncias imperiais (salvo a Africa
Proconsularis), vendo-se sobretudo alimentado pelo alistamento de voluntários.
Quando se aplicava à conscrição nestas províncias, o legado de Augusto tinha o apoio
de funcionários equestres subalternos, chamados dilectatores. Nas províncias mais
pequenas, como as procuratorianas, não era raro que um indivíduo acumulasse as
funções de governador e de dilectator. As maiores, por seu turno, eram divididas em
distritos, atribuídos a distintos dilectatores de maneira a facilitar as operações do
dilectus. A tarefa exercida pelo dilectator implicava um inquérito prévio, para avaliar o
número de potenciais recrutas mobilizáveis, tomar em consideração as necessidades de
mão-de-obra em actividades locais e examinar os casos de homens dispensados de
serviço militar.
Confiava-se este rastreio (inquisitio) a funcionários imperiais, dependentes do
dilectator. A inquisitio supunha que os funcionários que dela estivessem encarregados
agissem num quadro bastante restrito, certamente limitado a uma cidade. Mas, para
cumprirem a sua missão adequadamente, eles consultavam decerto os registos do
censo. À semelhança da tarefa dos conquisitores no fim da República, e à dos missi ad
dilectum iuniorum ad dilectum na Itália imperial, a inquisitio requeria provavelmente
a colaboração das instituições municipais.
Estas subdivisões territoriais sugerem que, tal como sucedia nos derradeiros tempos
da época republicana, os responsáveis pelo dilectus se deslocariam até aos locais onde
arrolariam recrutas, e não o contrário. Como estes voluntários não respondiam mais a
uma convocatória feita com base nas listas dos censores, cabia aos primeiros provarem
a sua identidade e condição social. Ora alguns talvez se sentissem tentados a cometer
fraudes, de maneira a serem arrolados num corpo de tropas privilegiado, ao qual não
podiam aceder. Consequentemente, os escravos podiam tentar tornar-se legionários
para escaparem à condição servil, sendo mantidos pelo Estado: a correspondência de
Plínio-o-Moço com Trajano oferece um exemplo deste caso. É neste contexto que cabe
256
situar a ocorrência de duas etapas sucessivas, que correspondem ao que actualmente
chamamos inspecção e incorporação: a primeira, conhecida como probatio, consistia
em verificar as aptidões físicas e o estatuto jurídico dos voluntários; a segunda, a
signatio, terminava com a inserção dos recrutas nas fileiras da primeira unidade para a
qual haviam sido adstritos.
A escolta conduzida por um tribuno militar, mencionada numa inscrição de Cirene
(AE 1951, 88: antes de 119 d. C.), acompanhava provavelmente um legatus ad dilectum
no seu périplo pelas principais cidades da província. A importância desta escolta não
causa estranheza, dado que as diferentes etapas do recrutamento exigiam a
participação de um conjunto de indivíduos, decerto numeroso, e davam lugar à
elaboração de vários documentos. Com efeito, a probatio era um exame aprofundado
no qual se tinha especialmente em conta a idade, a altura e a visão dos mancebos, se
nos ativermos a Vegécio.
O recrutamento principiava oficialmente com o registo do nome de nascimento do
candidato, o do seu pai, o apelido (cognomen)682 se o tivesse, a tribo (o distrito
eleitoral) a que pertencia, a localidade onde nascera e/ou residia e a data do
alistamento683. Se nos basearmos nas fontes epigráficas, os mancebos ingressavam no
exército com idades compreendidas entre os 17 e os 20 anos 684, embora, segundo a
tradição, seriam mobilizáveis os homens situados na faixa etária compreendida entre os
17 e os 46 anos (Aulo Gélio, Noctes Atticae, 10.28.1); provavelmente, a idade média de
alistamento seria de 20 anos, mas sabe-se de jovens com apenas 13 ou 14 anos e, no
outro extremo etário, conhecem-se homens com 36 anos685.
Quase todos os legionários declaravam ser originários (origo) de uma cidade ou de
uma vila, mas é provável que poucos procedessem verdadeiramente dos centros
urbanos (embora académicos como J.-M. Carrié, defendam que muitos mancebos eram
oriundos de cidades e não de pagi rurais). Praticamente todas as cidades eram centros
de comércio agro-pecuário e, nas suas imediações, havia zonas campos e pastagens a
elas ligadas. No entanto, algumas regiões do Império não estavam urbanizadas e, em
muitos casos, as originis, assentes por escrito na altura do alistamento, eram falsas,
concedidas juntamente com a cidadania romana.
Durante a República, os camponeses constituíram a espinha dorsal da militia de
cidadãos, e ao longo da época imperial (até ao período tardio) os campos continuaram a
682
No caso de cidadãos romanos, podia constar por escrito os tria nomina, se bem que por vezes fossem registados
apenas duo nomina.
683
K. Stauner, Das offizielle Schriftwesen des römischen Heeres von Augustus bis Gallienus (27 v. Chr.-268 n. Chr.),
Bona, 2004, p. 36-39.
684
W. Scheidel, «Inschriftenstatistik und die Frage des Rekrutierungsalters römischer Soldaten», Chiron 22 (1992), pp.
281-297.R. W. Davies, ao alicerçar-se igualmente em fontes antigas, refere que a média etária se situava entre os 17 e os
23 anos: cf. Service in the Roman Army, Edimburgo, 1989, p. 7. Veja-se, também, G. Wesch-Klein, «Recruits and
Veterans» in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army, p. 439.
685
W. Scheidel, Measuring Age, Sex and Death in the Roman Empire, Ann Arbor, 1996, p. 99ss.
257
ser um viveiro preferencial para extracção de recrutas. Os soldados nados e criados no
meio rústico eram mais apreciados pela sua robustez e resistência e também por mais
dificilmente se deixarem afectar pelas distrações mais sórdidas da vida urbana
(Vegécio, Epit. de rei mil. 1.3). Tácito salienta, a propósito, que o motim das legiões do
Reno em 14 d. C. se viu exacerbado devido à presença de «recrutas citadinos» vindos da
capital numa leva recente, habituados à licenciosidade e avessos a grandes esforços,
que «começaram a influenciar as mentes simples do resto das tropas» (Tácito, Ann.
1.31).
Uma das fontes mais explícitas sobre o recrutamento (embora não contenha muitos
detalhes) é um documento relativamente tardio: as Actas do mártir Maximiliano/Acta
Maximiliani686. Este foi um conscrito oriundo de Theveste, que se viu condenado à
morte pelo procônsul de África, em 295 d. C., por se haver recusado a ser incorporado
no exército, alegando para isso a sua fé cristã. No momento em que começa a narrativa,
Maximiliano já tinha sido sujeito à inquisitio, fase preliminar da probatio, que
permitira verificar que ele reunia todas as condições jurídicas e morais para se tornar
soldado. Por esta razão é que no início do texto Maximiliano aparece qualificado como
probabilis e bonus tiro:
«Sob o consulado de Tuscus e de Anullinus, no quarto dia antes dos idos de Março, em Theveste, no
forum, apareceu Fabius Pictor com Maximilianus. Deu-se a palavra a Pompeianus, advogado, que disse:
“Fabius Pictor, temonarius, apresenta-se com Valerianus Quintianus, praepositus imperial, e com o
conscrito Maximilianus, filho de Victor. Como este conscrito pode ser bom para o serviço, solicito que o
avaliem”. O procônsul Díon perguntou ao conscrito: “Como te chamas?». Maximilanius respondeu: “Para
que queres saber o meu nome? Não me é permitido servir porque sou cristão”. O procônsul disse: “Que o
ponham em posição para ser medido!». […] Maximilianus retorquiu: “Não posso servir, não posso praticar
o mal. Sou cristão”. O procônsul afirmou: “Que se proceda à sua medição”. Ao fazê-lo o empregado do
officium proclamou: “Tem cinco pés e dez polegadas”. Díon dirigiu-se ao empregado do officium: “Que ele
seja inscrito”. Resistindo, Maximilianus replicou: “Não quero, não posso servir!”. Díon disse: “Sê soldado
ou então és condenado à morte”. Ao que Maximilianus respondeu: “Não serei soldado. Manda cortar-me a
cabeça. Eu não sirvo o mundo, sirvo o meu Deus». O procônsul perguntou-lhe: “Quem te meteu isso na
cabeça?”, Maximilianus: “A minha consciência e Aquele que me chamou”. Díon virou-se para Victor, pai
do conscrito: “Aconselha o teu filho”; ele respondeu: “Ele sabe bem, por si próprio, o que deve fazer”. Então
Díon disse a Maximilianus: “Sê soldado e recebe a bula de chumbo, o signaculum”. Resposta: “Não aceito
o signaculum. Já tenho o signum de Cristo meu Deus”. Díon ameaçou-o: ”Vou-te enviar imediatamente
para junto do teu Cristo”. Resposta: “É isso que eu desejo, fá-lo agora. Será a minha glória”. Então Díon
ordenou ao empregado do officium: “Inscrevam-no!”. Maximilianus protestou: ”Não aceito o signaculum
do mundo, não é permitido usar o chumbo pendurado à volta do pescoço, depois do signum benéfico do
meu Senhor Jesus Cristo, filho do Deus vivente, que tu desconheces, mas que sofreu pela nossa salvação, e
que Deus entregou como expiação dos nossos pecados. É a ele que todos servimos, nós os cristãos. É ele
quem seguimos, pois que é para nós o guia da vida, o autor da salvação”. Díon voltou a afirmar: “Sê
soldado e recebe o signaculum, senão terás uma morte terrível!”. Maximiliano replicou: “Não vou morrer,
o meu nome já está escrito junto do meu Deus. Não posso ser soldado”. Díon: “Pensa na tua juventude, sê
soldado!”. Maximilianus: “O meu serviço é ao pé do meu Deus. Não posso servir o mundo. Já te disse, sou
cristão!”O procônsul declarou: «No comitatus sagrado dos nossos senhores Diocleciano e Maximiano,
Constâncio e Maximiano Galero, há soldados cristãos, e eles servem”. Maximiliano disse: “Eles sabem o
que devem fazer. Eu sou cristão, não posso fazer o mal”. Díon – “Os que servem que mal fazem eles?”,
respondendo Maximilianus: ”Sabes o que eles fazem”. O procônsul Díon afirmou: “Sê soldado. Se
desprezas o serviço militar, terás uma má morte!”. Maximilianus – “Eu não morrerei. Se partir deste
mundo, a minha alma viverá com Cristo nosso Senhor”. Então Díon ordenou: ”Risquem o nome dele!”.
Uma vez riscado o nome, Díon proclamou: “Como, por indisciplina, recusaste o serviço militar, serás
castigado de acordo com uma sentença legal. Servirá de exemplo para os outros”. Ele leu em voz alta o
686
M. A. Musurillo, The Acts of the Christian Martyrs, Oxford, 1972, 17; versão do texto mais abreviada: cf. B. Campbell,
The Roman Army 31 BC-AD 337. A Sourcebook, Londres, 2ª edição, 1996, doc. nº 5, p. 12.
258
veredicto escrito na tabuinha: «Maximilianus, por indisciplina, ao recusar-se prestar o serviço militar, é
condenado a perecer pelo gládio [ad gladium]”».
As etapas do recrutamento, até à sua interrupção, quando Maximiliano declarou ser
objector de consciência, não mostram grandes alterações em relação ao que
conhecemos sobre o dilectus sob o Alto Império, afora a presença do temonarius, que
se explica devido ao reforço da ligação entre o recrutamento e o fisco a partir do século
III d. C., bem como a alusão ao sacer comitatus, expressão que servia para designar o
exército que acompanhava o imperador nesse período. Vemos o governador de uma
província senatorial a proceder ao arrolamento de um recruta, a fim de prover ao
supplementum anual. Além disso, a altura de Maximiliano corresponde aos critérios
exigidos para alguém ingressar nas legiões, aspecto que Vegécio abordou (Epit. rei
milit. I, 5): aproximadamente 1, 62 m.
Segundo Vegécio, a estatura ideal de um legionário era de 6 pés romanos, equivalente
a 1,77 m. O mesmo autor acrescenta que, para poderem pertencer à primeira coorte de
uma legião, os homens deviam medir, pelo menos, 5 pés romanos e 10 polegadas (1,72
m)687. Todavia, na prática, a situação era diferente. Reportemo-nos à Vª legião Italica
criada por Nero, que se tornou conhecida por dois motivos: ser composta por recrutas
italianos e por estes terem 6 pés de altura (ou mais; Suetónio, Nero, 19). Ora isto
sugere, a contrario, que se aceitariam com certa regularidade indivíduos com menor
tamanho nas outras legiões 688. Através do exame forense das ossadas de um soldado
que morreu durante a fatídica erupção do Vesúvio em Herculano (cidade vizinha de
Pompeia),689 em 79 d. C., verificou-se que ele tinha 1,69 m de altura; em contrapartida,
os restos mortais de outro militar, achados em Velsen (Holanda) revelaram um homem
bem grande, medindo cerca de 1,90 m: muito provavelmente corresponderia a um
soldado de origem frísia690; numa sepultura dupla exumada em Canterbury, datando de
cerca de 200, encontraram-se os esqueletos de um legionário que morreu por volta dos
30 anos e com a altura de 1,73 m, ao passo que o outro teria 20 e era maior, com 1,81
m691.
Mais tarde, com base em testemunhos textuais do século IV, observa-se que nas
unidades de elite do exército romano ingressavam mancebos com 1,65 m, o que leva a
supor que essa altura significaria o limite máximo na população do meio rural de onde
687
Ep. rei mil. 1.5.
688
Certos académicos entenderam que no recrutamento o exército pretendia mancebos que tivessem elevados requisitos
físicos e psicológicos: G. R. Watson, The Roman Soldier, Londres, 1969, pp. 37-53; R. W. Davies, Service in the Roman
Army, pp. 3-30. No entanto, outros consideraram que as unidades não poderiam mostrar-se tão selectivas na obtenção
dos seus recursos humanos: A. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 29.
689
R. D’Amato, «From Herculaneum’s ashes», Ancient Warfare, vol. III.2 (April/May 2009), pp. 42-47: descobriu-se o
esqueleto deste homem em 7 de Agosto de 1982, no areal defronte das infra-estruturas das arcadas das Termae
Suburbanae; tal indivíduo era, na realidade, um faber navalis, um carpinteiro pertencente à frota de Misenum, a
Classis Praetoria Misenatis.
690
R. Cowan, Roman Legionary, 58 BC- AD 69, p. 10.
691
As ossadas do último soldado, mais bem conservadas que as do outro, indicaram que era um homem particularmente
robusto. Aparentemente, os dois milites terão sido assasinados: cf. P. A. Benett et al., Excavations at Canterbury Castle,
vol. I, Maidstone, 1982, p. 191
259
se extraíam os recrutas. As exigências quanto à altura também variavam consoante os
períodos históricos. Seria, provavelmente, a razão pela qual um cidadão romano se
alistava numa coorte auxiliar, em vez de numa legião, afora o facto de o serviço militar
na primeira se considerar como menos duro.
O estatuto jurídico determinava a afectação dos recrutas nos diferentes corpos do
exército. O serviço nas legiões, como referimos, estava reservado aos cidadãos, ao passo
que as unidades de auxiliares estavam abertas aos peregrini. Na realidade, numa
situação de extrema gravidade, os peregrinos podiam ver-se igualmente admitidos nas
legiões, recebendo a cidadania romana logo na altura do arrolamento. No que toca às
modalidades de recrutamento na marinha de guerra, estamos apenas confinados a
meras conjecturas; até a própria questão do estatuto jurídico dos recrutas tem sido
muito discutida: o recurso aos escravos e aos libertos, longe de constituir um fenómeno
sistemático, como anteriormente se pensou, continuou a ser excepcional e limitado ao
período imediatamente posterior às guerras civis. A seguir, os peregrini formavam a
maioria dos efectivos. Mas, aparentemente, no decurso dos primeiros dois séculos da
nossa era, os cidadãos terão começado a tornar-se mais numerosos nas equipagens.
Posto isto, é muito provável que o recrutamento em cada um destes três corpos de
tropas necessitasse de uma deslocação especial do governador e do seu officium: seria,
em princípio, mais simples aproveitar uma mesma viagem pela província para tratar de
assuntos diversos, de carácter civil e militar, de entre os últimos figurando o dilectus,
respeitante a todas as componentes do exército ao mesmo tempo. É, aliás, o que as
Actas do mártir Maximiliano deixam entrever: com efeito, os historiadores tentaram
apurar se tal narrativa se deveria identificar com um processo ou uma sessão de
probatio. O facto de a primeira parcela do texto reproduzir, de maneira bastante
fidedigna, um processo verbal oficial, extraído dos arquivos proconsulares significa um
dos argumentos esgrimidos pelos apologistas da primeira interpretação. Para outros
autores, todavia, a passagem que evoca a medição da altura de Maximiliano, bem como
o uso de diversos termos técnicos (também atestados em Vegécio), advogam a favor da
outra hipótese.
No entanto, como observou P. Cosme,692 não devemos estabelecer uma diferenciação
forçosamente tão compartimentada entre as duas interpretações. Não resta a menor
dúvida que seria no mesmo périplo pelas principais cidades da sua província, onde
teriam lugar as suas audiências e sessões, que um governador lidaria com o
recrutamento de soldados e apreciaria a situação dos refractários, afora resolver outros
assuntos. Compreende-se melhor, assim, a sua presença no forum, acompanhado por
outros personagens que não estariam relacionados concretamente com Maximiliano.
692
L’armée romaine: VIIe s. av. J.-C.-Ve s. ap. J.-C, p. 107.
260
Independentemente de qual fosse o corpo de tropas, não parece que houvesse datas
fixas para proceder ao recrutamento. No entanto, para cada soldado, contava o seu
número de anos de serviço a partir do dia 1 de Março, no seguimento da data do
arrolamento.
Dependendo do grau de romanização e da localização geográfica, certas províncias (e
no interior de cada uma, determinadas regiões) forneceriam mais legionários e outras
mais auxiliares ou marinheiros. Com a difusão progressiva do direito de cidade nas
províncias, o recrutamento de peregrini para os auxilia tendeu a limitar-se às zonas
mais periféricas do Império. Assim se percebe por que motivo as fontes da época
imperial não distinguem vários tipos de dilectus, já que a repartição pelos diferentes
ramos do serviço militar (militiae) se realizava num mesmo âmbito: a probatio, que
permitia a cada recruta (tiro), fosse qual fosse a sua condição jurídica, encontrar um
lugar no exército. Esta ideia queda sugerida por um pedido de incorporação descoberto
num papiro, datando de 113-117, o que nos mostra a possibilidade de os recrutas
solicitarem a sua admissão nas forças armadas romanas (P. Théod. inv. 31; ChLA, XLII,
1212): um cidadão, Marcus Rutilius Lupus dirigiu-se ao prefeito do Egipto para
conseguir ser incorporado nos auxiliares. Outra fonte confirma igualmente tal realidade
– numa carta, Claudius Terentianus693, soldado da marinha, em princípios do século II
(P. Mich. VIII, 468; ChLA, XLII, 1217), pede para ser transferido para os auxilia.
Só os escravos eram excluídos do serviço militar. A correspondência epistolar entre
Trajano e Plínio-o-Moço (Plínio-o-Moço, Cartas, X, 29-30) comprova-o694: caso
existissem escravos que fossem admitidos, por meio de fraude, deveria aplicar-se a
pena de morte sobre os próprios recrutas, se estes se tivessem apresentado como
voluntários. Se fosse no contexto de uma conscrição, os sancionados passavam a ser os
convocados que tivessem enviado escravos como seus substitutos ou, ainda, o
praepositus da inquisitio:
«Sempronius Caelianus, um jovem distinto, enviou-me dois escravos, encontrados entre os recrutas;
adiei a execução para te consultar, tu, o fundador e o sustentáculo da disciplina militar, acerca da natureza
da pena a aplicar. Para mim, as dúvidas radicam [por um lado] no facto de eles já terem prestado
juramento [e por outro] ainda não estavam distribuídos pelos corpos das tropas [ita nondum distributi in
numeros erant]. Senhor, peço-te que me escreve quanto à norma que deverei então seguir, tanto mais que
se trata de dar um exemplo».
«[Resposta de Trajano] Sempronius Caelianus cumpriu as minhas instruções ao mandar-te os homens
que deviam ser objecto de um processo, para averiguar se mereceriam a pena capital. Mas importa saber se
eles se apresentaram como voluntários ou enquanto substitutos. Se eles foram arrolados, o recrutamento
está em falta; se foram dados como substitutos, os culpados são os que os forneceram; se [os escravos]
vieram por sua própria iniciativa, com plena consciência da sua condição social, neste caso é preciso
condená-los à morte. E pouco interessa que não tenham sido ainda incorporados nos corpos. A partir do
dia em que se viram reconhecidos como aptos, eles deviam ter feito uma declaração exacta sobre a sua
origem».
693
R. W. Davies, «The enlistment of Claudius Terentianus», Bull. American Soc. of Papyrologists 10 (1973), pp. 21-25.
694
Dominic Moreau, «Un recrutement illégal d’esclaves dans l’armée romaine en Bithynie-Pont à l’époque de Trajan»,
Cornucopia. Société des Études Anciennes du Québec, 7 (Hiver 2002), pp. 41-51.
261
Esta troca de missivas corrobora vários aspectos: a utilização dos mandata para
designar as instruções oficiais do imperador sobre o dilectus, bem como a prática da
inquisitio nas províncias senatoriais, a possibilidade de um mancebo recorrer a um
substituto, a diferenciação entre as duas etapas do recrutamento e, por fim, a ausência
de distinção entre a probatio de legionários e a dos auxiliares. A proibição de ingressar
no exército estendia-se a uma série de profissões, consideradas infames, e que
Vegécio695 enumera, assim como indivíduos culpados por cometerem delitos e outros
conhecidos pelo seu mau génio (Epit. de rei mil. I, 7):
«Convém ainda prestar atenção aos ofícios de onde se devem obter soldados, ou daqueles que os
excluem. Para mim, desejaria que se afastassem dos acampamentos os pescadores, os passarinheiros, os
pasteleiros ou gente de cozinha, os tecelões e, em geral, todos os que exercem profissões próprias das
mulheres. Pelo contrário, far-se-á bem em preferir [para soldados] os ferreiros, os carpinteiros, os
talhantes e os caçadores de feras…».
Todo este processo muito selectivo podia conduzir à necessidade do recurso à
conscrição, embora houvesse todo o interesse que o alistamento fosse voluntário. A
tomada em consideração destes critérios, mais morais do que jurídicos, mostra bem o
valor do papel que desempenhava o encarregado da inquisitio. Com efeito, lança luz
sobre os limites da documentação oficial, que o praepositus seria levado a empregar ao
levar a cabo a sua missão: afigura-se difícil acreditar que todas as informações
estivessem consignadas na mesma documentação. Era fundamental que o praepositus
tivesse conhecimentos pessoais sobre os homens mobilizáveis no seu distrito.
Quanto às cartas de recomendação (litterae commendaticiae), serviam igualmente
para colmatar as lacunas dos registos do censo e as falhas de memória dos agentes
recrutadores. Desde os últimos tempos da República, assinalam-se menções às cartas
de recomendação na correspondência epistolar de Cícero. Mas, à semelhança das cartas
de Plínio-o-Moço, trata-se, em regra, de referências a nomeações para postos de
comando.
Sobre a probatio dos simples soldados, as fontes papirológicas assumem inestimável
importância. Mas, graças à descoberta dos documentos militares de Vindolanda696,
dispomos de testemunhos idênticos aos encontrados no Egipto. O candidato ao
recrutamento que carecesse de contactos ou «padrinhos» podia escrever uma petição
destinada ao governador.
A utilidade das cartas de recomendação fez-se sentir com particular acuidade no
Egipto697, por causa da multiplicidade dos estatutos jurídicos, que deviam a população
695
No entanto, é possível que Vegécio, escrevendo numa época já tardia, tenha idealizado a imagem e o rigor selectivo do
recrutamento no exército romano.
696
Que corresponde à actual Chesterholm, Inglaterra: no depósito de resíduos e de objectos do antigo forte de tropas
auxiliares de Vindolanda, em de 1973, achou-se uma série de tabuinhas, muitas escritas a tinta sobre um suporte de
madeira, datando do período que vai de 85 a 105 d. C., anteriores à Muralha de Adriano. Trata-se de um acervo muito
rico e esclarecedor sobre o quotidiano de uma pequena guarnição. Para consultar destas fontes, há que aceder às
colectâneas de A. K. Bowman e de J. D. Thomas, todas com o mesmo título: The Vindolanda Writing-Tablets, volumes.
I (1983), II (1994 e III (2003). Foram publicadas em Londres, sob a chancela do British Museum.
697
A este respeito, consulte-se R. Alston, Soldier and Society in Roman Egypt, Nova Iorque, 1995, pp. 135-137 (alguns
documentos também se reportam à prática de subornos (p. 136).
262
em categorias bem diferentes. Para além dos escravos, os Egípcios auctótones, por
norma, estavam proibidos de entrar no exército romano, apenas podendo ingressar
como marinheiros na frota de Misenum. Consequentemente, no país nilótico, a
distribuição dos recrutas por cada corpo de recrutas requeria medidas de controlo
ainda mais específicas do que noutras regiões, fenómeno que captamos mediante as
fontes papirológicas. Foi assim que um soldado da legio III Cyrenaica se viu coagido a
garantir, sob juramento, que era um homem livre e cidadão romano (P. Fay. Barns 2;
CPL 102). Aparentemente, o critério da idade assumia menor relevância. Ademais, as
pesquisas empreendidas nos últimos anos vieram a demonstrar a dificuldade no
apuramento de uma média etária no contexto do recrutamento. Por fim, os recrutas
deviam possuir noções elementares de latim; para uma parte dos contingentes, talvez
até se exigisse um certo nível de instrução.
A probatio findava com uma matricula, que se traduzia na atribuição a cada recruta
de uma pequena placa de chumbo onde se indicava o seu nome – o signaculum – que o
soldado usava dentro de uma bolsa, pendurada ao pescoço por um cordão. De acordo
com as citadas Actas do mártir Maximiliano, no fim do século III d. C., o signaculum
ainda não fora substituído por uma tatuagem. Contudo, esta selecção preliminar não
fazia dos tirones soldados por inteiro. O indivíduo que superasse a primeira etapa do
recrutamento era designado simplesmente como probatus ou lectus tiro. O probatus só
se convertia num verdadeiro miles depois ter estado submetido a um treino diário
durante quatro meses, no mínimo.
Como se depreende, na segunda fase do recrutamento testava-se a resistência do
mancebo, bem como a sua bravura, além das suas faculdades intelectuais e o seu grau
de instrução. Naturalmente que, para receber esta formação inicial, o tiro teria de se
encontrar adstrito a uma unidade. Neste momento, ele obtinha um adiantamento do
soldo, chamado viaticum698, que servia para cobrir as despesas da sua viagem rumo à
base militar para a qual fora destinado; se tivesse de efectuar uma longa marcha,
obtinha ainda dinheiro para os cravos (clavarium) das sandálias (caligae).
A sua afectação era determinada pelo «gabinete» do governador que procedeu ao
arrolamento, enviando uma carta ao comandante da unidade escolhida, informando-o
da chegada de recrutas. Estes, mal chegassem à unidade de destino, eram registados
nos arquivos da mesma: por exemplo, entre Janeiro e Maio de 156 d. C., a cohors I
Augusta Praetoria Lusitanorum equitata recebeu nove recrutas, todos aparentemente
voluntários, aprovados pelo prefeito do Egipto Sempronius Liberalis; sete ingressaram
698
Este «subsídio de viagem» ascendia, geralmente, a 75 denários ou, então, a três moedas de ouro ( aurei): Cf. S. Perea
Yébenes, «Viaticum militare», in A. Akerraz, P. Ruggeri, A. Siraj e C. Vismara (eds.), L’Africa romana. Mobilità delle
persone e dei popoli, dinamiche migratorie, emigrazioni ed immigrazioni nelle province occidentali dell’Impero
romano, Roma, Carocci editore, 2006, pp. 741-754.
263
nas centúrias de infantaria, o oitavo foi colocado na turma do decurião Artemidorus e o
nono, como dromedarius (condutor de camelo) na turma de Salvianus699.
VII.1.2. A signatio
A partida dos recrutas rumo às suas unidades de destino tinha de ser cuidadosamente
enquadrada, para evitar deserções. Para o efeito, era assaz útil haver elementos
informativos que facilitassem a identificação dos probati pelo comandante da
guarnição que os iria acolher, que obviamente não os conhecia. De facto,
contrariamente ao dilectus republicano, descrito por Políbio e por Tito Lívio, na época
imperial, já não eram mais os cônsules e os tribunos militares que efectuavam o
arrolamento e a incorporação dos recrutas. Graças à documentação achada na Síria e
no Egipto, sabemos que tais cartas não consistiam apenas numa enumeração dos
nomes dos probati: a cada nome adicionava-se uma espécie de ficha sinalética,
referente a cada recruta.
O primeiro exemplo conhecido, e que se encontra também em melhor estado de
conservação, é um papiro de Oxyrhynchus, datando do começo de Fevereiro de 103 d.
C., no qual se copiou uma missiva escrita pelo prefeito do Egipto para o prefeito da
cohors III (auxiliar) Ituraeorum, anunciando-lhe a afectação de seis novos recrutas,
que o último teria de formar (P. Oxy. VII700, 1022; ChLA, III, 215):
«Cópia. Caius Minucius Italus saúda o seu caro Celsianus. Ordeno que os seis recrutas que aceitei
[tirones sexs probatos a me] sejam incorporados na coorte que tu comandas, a partir de 19 de Fevereiro.
Junto a esta carta os seus nomes e os seus sinais [de identificação física] ... Caius Veturius Gemellus, 21
anos de idade, nenhum sinal particular; Caius Longinus Priscus, 22 anos, uma cicatriz no sobrolho
esquerdo; Caius Iulius Maximus, 25 anos, nenhum sinal particular; … Lucius Secundus, 20 anos, nenhum
sinal particular; Caius Iulius Saturninus, 23 anos, uma cicatriz na mão esquerda; Marcus Antonius Valens,
22 anos, uma cicatriz no lado direito da testa. [segunda-mão] Recebido a 24 de Fevereiro, no sexto ano do
nosso imperador Trajano por Priscus, ordenança. Avidius Arrianus, cornicularius da IIIª coorte
Ituraeorum, certificou-se que o original desta missiva se conserva nos arquivos da coorte».
699
P. Southern, The Roman Army: An Institutional History, p. 133.
700
R. O. Fink, Roman Military Records on Papyrus, Case Western Reserve University, 1971, nº 87; B. Campbell, The
Roman Army 31 BC-AD 337, nº 9, p. 13.
264
«relatórios matinais») e, depois, no pridianum, que correspondia a um inventário
anual ou bienal. O último género de documento devia o seu nome ao facto de ser
consignado nas vésperas das calendas de Setembro, no Egipto (BGU, II, 696; ChLA X,
411, de 31 de Agosto de 156 d.C.). Os sinais identificativos apareciam também nas
«cadernetas» militares dos soldados701, englobando apreciações de ordem disciplinar.
Nas unidades, a formação militar e o treino 702 dos recrutas ficavam a cargo de
instrutores, conhecidos por diversas designações: campidoctor, doctor armorum,
doctor cohortis, exercitator, magister campi. Compreendendo simultaneamente
exercícios de simulação de combate, a participação em obras edificatórias e treino no
terreno (Vegécio, Epit. rei milit. I, 8), este processo permitia uma adequada avaliação
dos recrutas, cujos resultados se viam anotados no seu ficheiro, através de notas que
lhes eram atribuídas. Segundo um parágrafo das Etimologias de Isidoro de Sevilha, sob
a epígrafe De notis militaribus («Das anotações militares», Etimologias, I, 24), é
possível que a letra l, abreviatura de λειφθες, com o significado de «insuficiente»,
servisse para sancionar um soldado que não tivesse cumprido os requisitos da sua
formação inicial. Por outro lado, quando se pretendia indicar a falta de jeito ou
inexperiência, utilizava-se a letra lambda, ao passo que para apontar um óbito se
escrevia um theta nigrum no início da linha. Existiam ainda anotações específicas
concernentes ao pagamento dos soldos:
«Havia, também, nos pequenos registos contendo os nomes dos soldados, uma anotação particular que
os Antigos empregavam para assinalar o número de militares vivos e o dos tombados em combate. A
anotação T, tau, colocada no começo da linha, designava um soldado vivo; em contrapartida, apunha-se o
theta ao nome de um morto. Daí o traço, sinal de morte, que a letra comporta no meio. Sobre ela Pérsio
afirmou. “É capaz de apanhar pela astúcia o negro theta”. Quando, por outro lado, queriam indicar a
inexperiência, utilizavam a letra Lambda, do mesmo modo que indicavam a morte ao apôr um Theta no
início da linha. Havia, igualmente, anotações particulares a respeito da atribuição dos stipendia»703.
A interpretação deste trecho gerou uma viva controvérsia académica, protagonizada
por G. R. Watson e J. F. Gilliam 704. A questão consiste em saber se devemos associar
este fragmento literário ao contexto da avaliação dos recrutas. Tudo depende da
maneira como se interpretam as abreviaturas mencionadas por Isidoro: θ, τ e λ. O θ
parece não levantar problemas, já que se trata muito provavelmente da abreviatura
para θάνατος (thanatos) que servia para designar os soldados mortos nos registos
referentes às baixas, que compreenderiam já, sem dúvida, à semelhança dos
doctumentos actuais, as categorias «mortos», «feridos» e «desaparecidos». Porém, as
701
P. Cosme, «Le livret militaire du soldat romain», Cahiers du centre Gustave Glotz, 4 (1993), pp. 67-80.
702
Para uma boa descrição sobre o treino e a instrução militar, veja-se G. R. Watson, The Roman Soldier, pp. 54-72.
Estudaremos este aspecto pormenorizadamente no Capítulo VII.
703
In breviculis quoque, quibus militum nomina continebantur, propria nota erat apud veterers, qua inspiceretur
quanti ex militibus superessent quantique in bello cedidissent. T Tau nota in capçite versiculi posita superstitem
designabat. Θ Theta vero ad uniuscuiusque defuncti nomen apponebatur. Unde et habet per medium telum, id est
mortiis signum. De qua Persius ait (IV, 13): ‘Et potis est nigrum vitio praefigere theta’. Cum autem imperitiam
significare vellent, Lambda littera usi sunt, sicut mortem significabant, cum ponebant Theta ad caput. In
stipendiorum quoque largitione propriae erant notae.
704
G. R. Watson, «Theta nigrum», Journal of Roman Studies XLII (1952), pp. 56-62; J. F. Gilliam, «Notae militaires
chez Isidore, I 24», Hommages à Léon Hermann, Latomus, XLIV (1960), p. 408ss; G. R. Watson, «Isidore I, 24»,
Historia II (1962), pp. 379-383.
265
letras τ e λ são dificilmente interpretáveis. J. F. Gilliam refutou a restituição inicial feita
por G. R. Watson do τ (τρωθεις ou τετρωμές (ferido mas vivo705) e do λ (λείπωυ ou
έλλείπωυ (em falta, desaparecido), e até λποστρατιώτης ou λιποτάκτης (desertor) -
ao mostrar que tais abreviaturas não poderiam dizer respeito a um registo de baixas, na
medida em que Isidoro se refere a um papel nominativo (in breviculis quoque, quibus
militum nomina continebantur).
Ao apoiar-se num excerto de Turrânio Rufino, sacerdote de Aquileia, adversário de São
Jerónimo, contido na Apologia adversus Hyeronymum (II, 36), anterior em mais de
dois séculos ao texto de Isidoro e que só menciona as abreviaturas θ e τ, J. F. Gilliam
entendeu que só estas se relacionariam com um contexto castrense. Quanto às
considerações de Isidoro sobre o sentido de λ, elas constituiriam somente uma
digressão costumeira por parte deste autor, para quem as abreviaturas militares terão
feito pensar num uso corrente de λ para abreviar a palavra λεσζιάξειυ («viver no
deboche»). Encontrar-se-ia um vestígio disto em Aristófanes ou na Antologia Palatina;
caberia então adoptar as lições inpuritiam ou impueritiam apresentadas em certos
manuscritos das Etimologias, que Gilliam reteve706.
Todavia, G. R. Watson duvidou que a alegada divagação de Isidoro pudesse distanciar-
se neste ponto do contexto militar, uma vez que aparece no fim do capítulo para evocar
o pagamento do soldo; assim, seria de ver nela um significado independente das duas
primeiras notae: ao abreviar λειΦθέίς ela representaria antes uma má nota dada a um
recruta que manifestasse falta de jeito e incompetência durante o período de treino
inicial. Este capítulo de Isidoro, juntamente com os testemunhos de Vegécio e dos
papiros, parece então confirmar a existência, referida por Apiano, de anotações
disciplinares integradas numa autêntica «caderneta» militar individual que encerrava
um «retrato» físico e moral de cada recruta707.
***
Os tirones que superassem a última etapa eram inscritos no rol da unidade, após
participarem num desfile. A fórmula oficial in numeros referri qualificava esta segunda
fase do recrutamento, a signatio, ao mesmo tempo arrolamento e incorporação, que
705
Restituição também adoptada por J. M. Carrier, «O soldado», in A. Giardina (dir.), O homem romano, p. 161.
706
No entanto, J. F. Gilliam e G. R. Watson rejeitaram uma terceira interpretação proposta por J. H. Oliver: «Disability
in the Roman Army Lists», Rheinisches Museum C (1957), pp. 242-244. Segundo Oliver, imperitiam resultaria de uma
má leitura de um copista do termo ineptiam aplicado a um soldado tornado inapto para o serviço milita devido a
ferimentos sofridos. De acordo com esta hipótese, λ serviria para abreviar o étimo λωζηθεις – fisicamente apto- mas
nenhum manuscrito corrobora tal facto.
707
P. Cosme, «Le livret militaire du soldat romain», p. 71.
266
tornava o probatus num signatus in numeros relatus, habilitado a prestar juramento e
a receber o seu primeiro soldo. Eis o que nos diz Vegécio (Epit. rei milit. II, 5):
«Depois de cuidadosamente seleccionados, para deles fazer soldados, com jovens de compleição robusta
e boa vontade, a seguir a uma série de exercícios diários durante quatro meses, forma-se uma legião, sob os
auspícios do princeps. Começa-se por fazer marcas indeléveis na mão dos novos arrolados, e presta-se o
juramento, à medida que se registam os seus nomes no rol da legião».
***
Nas fontes literárias escritas (note-se) por membros da elite, o soldado surge quase
sempre como um indivíduo marginalizado e miserável: Tácito, por exemplo, fala de
homens necessitados e indigentes, que formavam a escória da sociedade e eram
incorporados nas forças militares às carradas (Ann. 4.4). Para a elite, o mundo duro da
gente comum e pobre só poderia pintar-se com pinceladas de desdém. Nas obras
literárias antigas, praticamente não se dá conta do legionário enquanto ser bem
personalizado: costuma aparecer como parte de uma massa, «do exército», de «uma
legião», ou de qualquer outro agrupamento. Só a título excepcional e, geralmente, em
relatos fictícios, se apresenta o soldado mais individualizado. Quando os escritores da
elite se dignavam pensar no militar de infantaria, tendiam a destacar os seus esforços
heróicos, mas, no fundo, estava invariavelmente presente a imagem do soldado como
alguém perigoso, ignorante, de baixa estirpe e movido por instintos primários.
Na realidade, porém, muitos soldados eram jovens que haviam sido criados no seio
das suas famílias, que aprenderam ofícios, se bem que estes praticamente se limitassem
à agricultura, e que ao decidirem ingressar no exército, estavam dispostos a começar
uma nova vida. Por costume, as mulheres casavam bastante cedo, ainda durante a
adolescência, mas já os homens o mesmo faziam mais velhos, a partir dos vinte e
muitos: assim, seriam poucos os recrutas que já tivessem esposa e filhos.
A simplicitas (simplicidade) e a imperitia (ignorância) entendiam-se como qualidades
positivas. Obviamente que o exército não procurava idiotas, mas indivíduos que, de
preferência, tivessem poucas ideias próprias e que estivessem atreitos a serem
moldados, caso fosse conveniente. Havia, claro está, excepções. Até quanto aos simples
soldados, era conveniente e útil que possuíssem um certo grau de alfabetização. Como
vimos, os que soubessem ler e escrever bem como contar reuniam mais possibilidades
de acederem a postos administrativos dentro das legiões e de se verem promovidos
(Vegécio, Epit. rei milit. 2.19).
Tanto autores antigos como estudiosos modernos acentuaram a ideia da dureza do
serviço militar, mas há que matizar tal imagem. Uma vez descartada qualquer
comparação entre as condições de vida do mundo greco-romano e as do mundo
ocidental a partir de 1800, fica mais ou menos claro que, segundo os padrões da
267
Antiguidade, o soldado gozava de uma existência que se pode qualificar de «razoável».
Mesmo que um camponês trocasse o seu fatigante labor numa propriedade pela de
militar, na última ele trabalharia em melhores condições do que se tivesse optado por
não abandonar a agricultura, dado que a vida de soldado mitigava, em larga medida, os
aspectos mais adversos da sua anterior profissão.
Assim, geralmente não haveria falta de recrutas, embora isto dependesse dos períodos
históricos e das regiões onde se efectuassem os arrolamentos. Numa carta descoberta
no Egipto (datando de começos do século III d. C.), Isis, ao escrever à sua mãe, refere
que «se Aion quer ser soldado, basta-lhe apenas apresentar-se, já que toda a gente se
está a alistar» (BGU 7.1680). O atractivo do serviço militar, durante a época imperial,
reflectido nestas palavras radicava, essencialmente, no elevado grau de segurança social
que os soldados usufruíam e, em especial, no facto de os milites receberem uma
remuneração regular durante um largo período de tempo. O indivíduo que, depois de
passar com êxito o teste de aptidão, a probatio, via-se inserido na lista (matrix) de uma
determinada unidade, e teria de cumprir, dependendo do ramo das forças armadas a
que estava adstrito, 16 a cerca de 30 anos de serviço militar. No decurso deste espaço
temporal, ele sofria restrições na liberdade individual, mas beneficiava de um soldo
regular, de alojamento, comida e acesso a tratamentos médicos; além de tudo isto,
podia receber tanto recompensas financeiras como privilégios legais quando fosse
licenciado honrosamente do exército (honesta missio). A pior contrapartida para
alguém que se alistasse como voluntário era a de perecer numa guerra, mas para
muitos jovens tal perspectiva encarava-se como uma possibilidade relativamente
remota. Não esqueçamos que a época imperial conheceu longos períodos de paz e
apenas uma reduzida parte do império romano lutava habitualmente contra inimigos
armados.
Quando um rapaz decidia seguir o ofício de soldado contava, em geral, com a anuência
da sua família, sobretudo se o pai tivesse sido militar. Os que haviam nascido e crescido
perto de um forte já se encontravam aclimatados com a vivência e as actividades
próprias dos milites. Um progenitor que sentisse profundo orgulho por abraçar a
carreira das armas imaginava, não raramente, o mesmo género de percurso para um ou
mais dos seus filhos. Subsistiram provas documentadas para tais expectativas, como,
por exemplo, os cognomina quase iguais de M. Aurelius Militio e do seu filho Aurelius
Militaris (CIL III.5955). Chegou até nós, igualmente, o comovente monumento
funerário que um cornucen da Legio II Adiutrix erigiu para o seu filho, que morreu aos
4 anos: na lápide fica explícita a tremenda vontade que o militar acalentara de que a
criança tivesse seguido as suas pisadas; num relevo, o miúdo é representado na pedra
exibindo o cingulum militare e a pegar num rolo de papiro, vendo-se sobre este o
indicador da sua mão direita, como se estivesse a prestar um juramento (CIL
III.15159)708.
Ainda que alguns pais se pudessem opor, a maioria talvez concordasse com estes
progenitores judeus, que surgem numa história narrada no Talmude, mostrando o seu
desejo de que o filho se alistasse:
708
G. Wesch-Klein, «Recruits and Veterans», p. 436.
268
«Um homem chegou para alistar um jovem. O pai disse: Olha para o meu filho, um grande rapaz, um
herói, vê como é alto! A mãe também afirmou: Olha para o nosso filho, é muito alto. O outro respondeu:
Aos vossos olhos ele é um herói e é alto. Não sei. Vejamos se é alto. Mediram-no então e verificou-se que
era demasiado baixo e foi posto de parte» (Agaddat Genesis, 40.4).
Hoje em dia há quem considere ponto assente não ser habitual os pais quererem que
os filhos se alistassem no exército. Porém, não há motivos para presumir que a atitude
destes pais judeus reflicta uma situação anómala ou peculiar. Sendo este o caso, a fonte
aproveitaria a ocasião para nos informar disso. Ora o que acontece é precisamente o
contrário – esta menção casual mostra nitidamente que o serviço militar significava
uma perspectiva que os pais desejavam para os seus filhos. Tanto os primeiros como os
últimos tinham consciência de que a vida civil só augurava uma vida sombria, e que o
exército representava exactamente o oposto, traduzindo-se numa luminosa alternativa
no meio daquela obscuridade.
Além disso, considerável número de jovens sentia a tentação de servir no exército. Mas
nem todos, como é lógico, elegiam esta opção: para alguns, deixar uma quinta ou um
negócio podia trazer desvantagens, uma vez que enveredar pela carreira das armas
implicava trocar o conhecido pelo desconhecido, abandonar a estabilidade e o apoio da
família por uma nova vida num meio totalmente diferente. Neste sentido, em certos
casos, a família de um candidato a recruta talvez manifestasse viva oposição à sua
incorporação no exército romano. Numa carta encontrada no Egipto (escrita entre 41 e
67 d. C.), uma mulher repreende directamente o marido, Sarapion, por incentivar o
filho de ambos a alistar-se:
«Quanto ao meu filho Sarapas, não dormiu ao pé de mim todo este tempo, pois foi para o acampamento,
ingressando no exército. Não lhe deste um bom conselho ao dizer-lhe que se unisse ao exército. Porque
quando o instei para que não se alistasse, ele disse-me: “O meu pai disse-me para ir para o exército”»
(BGU IV.1097)709.
Aqui não se tratava só do factor emocional e afectivo da perda de um filho; também
estava em causa a dificuldade, em termos práticos, da perda a curto-prazo de mão-de-
obra na casa e, a longo-prazo, a falta de apoio de um filho durante a velhice dos pais.
Podia suceder que o jovem fosse destinado para uma unidade militar longe do seu lugar
de origem, mas nem sempre, principalmente nas fases mais avançadas do Império.
Contudo, é inegável que se gerava uma separação física do filho em relação à sua
família, a qual tão cedo não teria noticías dele por causa da lentidão com que se
processava a entrega da correspondência. Diversas missivas achadas no Egipto
mostram que alguns soldados, mesmo destacados em zonas remotas, continuavam a
manter os seus laços familiares. Certamente que o afastamento do local onde nascera e
fora criado seria, pelo menos no início, complicado para o soldado, ou até durante todo
o seu tempo de serviço. Apion, um egípcio que foi adstrito para a frota romana de
Misenum, expressou bem esta situação, apesar de não corresponder a um legionário:
«Apion para Epimachos, seu pai e senhor, muitas saudações. Antes de tudo, peço que tenhas saúde e
que, estando com forças, sejas feliz com a minha irmã, sua filha,e o meu irmão. Dou graças ao senhor
Serapis porque, correndo eu perigo no mar, me salvou mesmo a tempo. Quando cheguei a Misenum, recebi
de César como viaticum três moedas de ouro e estou bem. Peço-te, meu senhor e pai, que me escrevas uma
cartita, primeiro informando-me da tua saúde, segundo, sobre as dos meus irmãos, e terceiro, para beijar a
tua mão, porque me educaste bem e por isso acredito que depressa irei progredir. Os meus melhores votos
a Capiton, ao meu irmão e à minha irmã, a Serenila e aos meus amigos. Envio-te um retrato meu por meio
709
B. H.Olsson, Papyrusbreiefe aus der frühesten Römerzeit, Upsala, 1925, nº 38; R. S. Bagnall e R. Cribiore, Women’s
letters from ancient Egypt. 300 BC-AD 800, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 2006, p. 307 (tradução e
fotografia do documento).Desconhece-se a procedência desta missiva: actualmente conserva-se no Staatliche Museen
(Papyrussammlung), de Berlim (P. 11050). Para comentários sobre esta carta (além de uma série de outras), cf. S. Perea
Yébenes, «Ejército y soldados romanos en cartas de mujeres sobre asuntos familiares, militares y civiles, en papiros de
Egipto de los siglos I-IV», in J. J. Palao Vicente (ed.), Militares y civiles en la Antigua Roma: dos mundos diferentes,
dos mundos unidos, Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, 2010, pp. 203-204
269
de Euctemon. O meu nome de soldado é Antonis [Antonius] Maximus710. Peço que tenhas saúde» (BGU II,
423, linhas 8-10 711).
Os vínculos psicológicos com a família impediam que desta se alistasse mais de um
mancebo. No entanto, as recompensas que um soldado poderia obter eram, pelo menos
em teoria, enormes, pelo que muitos rapazes deixavam as suas famílias em busca de
uma nova vida. Num mundo assolado pelo desemprego crónico, pela escassez de
alimentos durante os derradeiros meses do Inverno e pelas catástrofes naturais (que
invariavelmente transtornavam o próprio ritmo vital), o exército sobressaía como o
único «emprego» a tempo inteiro, que oferecia um salário regular. Artemidoro de
Daldis alude a esta realidade na sua interpretação de um sonho, atrás já referido:
«Enveredar pela carreira de soldado vaticina negócios e emprego para os desempregados e necessitados,
porque um soldado jamais está desempregado nem passa por dificuldades» (Oneirocritica, 2.31).
As seguintes palavras, cinzeladas na estela funerária de um marinheiro, salvo da
pobreza ao alistar-se no exército, seriam indiscutivelmente subscritas por muitos dos
legionários:
«Lucius Trebius, filho de Titus, pai [dedicou este monumento]. Eu, Lucius Trebius Rusus, filho de
Lucius, nasci na mais absoluta miséria. Depois, servi como marinheiro junto do imperador ao longo de 17
anos. Recebi uma honesta missio» (CIL V.5938 = ILS, 2905, Augusta Bagiennorum, Itália).
Ser-se soldado consistia verdadeiramente numa profissão, assim encarada tanto pelos
militares como pelo mundo civil. Na Primeira Carta aos Coríntios, quando Paulo dá
exemplos de gente que trabalha e merece ser paga pelo esforço inclui os soldados:
«Quem é que vai para a guerra à sua própria custa? Quem é que planta uma vinha e não come do seu
fruto? Ou quem é que anda a guardar um rebanho e não se alimenta do leite desse rebanho? (I Cor 9,7)
Para um miles, as expectativas de benefícios materiais eram numerosas: em primeiro
lugar estava o soldo; ele ganhava por dia aproximadamente o mesmo do que um bom
trabalhador civil, mas o primeiro mantinha-se em actividade todo o ano, enquanto o
último ficava amiúde sem emprego, facto usual na Antiguidade, já que a maior parte
das tarefas efectuavam-se a um ritmo sazonal.
710
A mudança do nome mostra que o recruta não era cidadão romano.
711
Documento igualmente publicado nas seguintes colectâneas: L. Mitteis e U. Wilcken, Grunzüge und Chrestomathie
der Papyruskunde, I, Leipzig/Berlim, 1912, nº 480; A. S. Hunt e C. C. Edgard (eds.), Select Papyri: Non-Literary
Papyri, Cambridge/MA, 1932, nº 112; B. Campbell: The Roman Army […] A Sourcebook, nº 10, p. 13.
270
Actualmente, os estudiosos do exército romano ainda discutem se haveria sempre
suficiente número de voluntários que evitassem a necessidade do recurso à conscrição:
alguns, como A. K. Goldsworthy 712, sugeriram que a conscrição apenas se aplicava em
situações de emergência, designadamente quando se faziam os preparativos para
grandes campanhas; outros, como P. A. Brunt713 e, em menor medida, J. B. Campbell 714,
sustentaram que, em diversas ocasiões, os voluntários eram escassos, e que o serviço
militar obrigatório, ou pelo menos, o direito de Roma o impor, permaneceu a norma
por todo o Império. Com efeito, julgamos que o princípio da conscrição 715 se manteve
quase sempre presente, aplicando-se sobretudo em momentos de crise. Num grafito
rabiscado por um tal C. Nonius, de Sulmo (na Itália Central), achado numa das paredes
do templo de Hercules Quirinis, perto da sua cidade-natal, deparamos, aparentemente,
com um testemunho de um conscrito: Nonius promete ao deus sacrificar um javali e
um vitelo, se regressar do exército são e salvo716:
C(aius) Nonius L(uci) f(ilius) Serg(ia) [---]/ e munici[p]io Sulmone p[romisit] miles Herc[u]li Curino
sei salv[us e]/ castris rediset vot[a-]/ verem et vitul[um]/ et votis dam[natus]/ [a]dest.
Todavia, nada indica que os conscritos servissem em condições diferentes do que os
voluntários, ou que fossem menos eficientes. Ainda assim, a administração do exército,
a nível provincial, registava cuidadosamente as circunstâncias em que um recruta era
incorporado nas forças armadas, facto que se confirma num documento recentemente
descoberto, inserido numa placa fragmentária de bronze717. A secção que se conservou
do texto latino refere-se ao licenciamento honroso (honesta missio) em 240 d. C. de um
soldado da legio XX, recrutado como [dil]ectarius ex provincia Th[racia]718. É pouco
clara a exacta natureza do texto, mas neste utiliza-se nitidamente terminologia militar.
O termo dilectarius relaciona-se com o recrutamento por meio do dilectus719.
Na realidade, o número de voluntários apenas se revelou suficiente ao longo da
primeira metade do século III d. C., entre o reinado de Septímio Severo (que melhorou
a condição dos militares) e as invasões bem como as usurpações que se sucederam a
partir de meados deste século. Os casos do uso da conscrição nem sempre são
facilmente determináveis, na medida em que, sob o Império, o termo dilectus se
empregava tanto para designar a convocação de voluntários como os recrutamentos
realizados mediante coacção.
Pelo menos desde o reinado de Trajano, a obrigação de servir era atenuada pela
possibilidade de um indivíduo se fazer substituir. Os registos do censo conservaram,
pois, a sua utilidade militar, já que permitiam à administração imperial avaliar o
potencial dos homens disponíveis que viviam nas regiões italianas e nas diferentes
províncias, a fim de escolher melhor aqueles cujo contributo era solicitada. Além disso,
a consulta desta documentação era invariavelmente indispensável para se verificar o
estatuto jurídico dos recrutas.
712
The Complete Roman Army, Londres, 2003, pp. 76-77.
713
«Conscription and Volunteering in the Roman Imperial Army», Scripta Classica Israelica, 1 (1974), pp. 90-115. Este
artigo foi reeditado numa obra do mesmo autor, intitulada Roman Imperial Themes, 1990, pp. 188-214, incluindo uma
adenda (pp. 512-515).
714
War and Society in Imperial Rome 31BC-AD 284, Londres/Nova Iorque, 2002, pp. 25-26.
715
Com efeito, ao contrário do que muitas vezes se presume, a conscrição continuou a ser um importante método de
arrolamento na época imperial. A este respeito, cf. W. Eck, «Friedenssicherung und Krieg in der römischen
Kaiserzeit.Wie ergänzt man das römische Heer?», in A. Eich (ed.), Die Verwaltung der kaiserzeitlichen römischen
Armee. Studien für Hartmut Wolff, Estugarda, 2010, pp. 87-110; M. A. Speidel, «Being a Soldier in the Roman Imperial
Army – Expectations and Responses», in C. Wolff (ed.), Le métier de soldat dans le monde romain. Actes du cinquiéme
congrès de Lyon organisé les 23-25 septembre 2010 par l’Université Jean Moulin 3, Paris, Diff. De Boccard, 2012, p.
177.
716
AE 1981, 283 =Supp. It IV 7.
717
AE 2006, 1866 = Zs. Mráv e A. Szabó, «Fragment einer bronzener Urkunde neuen Typs über die Entlassung eines
Legionssoldaten vom Jahre 240 n. Chr.», ZPE 169 (2009), pp. 255-268.
718
Não há dúvida que [dil]ectarius é a restauração correcta. Cf. AE 2006, 1866. Para o contexto, vejam-se: G. Alföldy,
Römische Heergeschichte. Beiträge 1962-1985, Amesterdão, 1987, pp. 368-376; M. A. Speidel, Heer und Herrschaft im
Römischen Reich der Hohen Kaiserzeit, p. 333ss.
719
Cf. também CIL VIII 14603 = ILS 2305 (Simitthus): L(ucius) Flaminius D(ecimi) f(ilius) Arn(ensi)/ mil(es) leg(ionis)
III Aug(ustae)/ 7 (centuria) Iuli Longi dilecto/lectus ab M(arco) Silano […].
271
Para exercer as suas prerrogativas em matéria de recrutamento, o princeps teria de
dispor em Roma, em primeiro lugar, de uma lista dos efectivos das unidades dos
diferentes corpos do exército que estivesse regularmente actualizada, por meio dos
relatórios fornecidos pelos governadores. Só a consulta dessa lista permitiria ao
imperador averiguar quantos homens teria de recrutar, em função do número daqueles
que eram desmobilizados, das baixas e das ameaças internas e externas. Apreendemos,
aliás, indirectamente, a existência deste inventário das formas armadas romanas
através de um trecho de Suetónio (Augusto, 101):
«[Augusto] havia feito o seu testamento sob o consulado de L. Planco e C. Sílio, três dias antes das nonas
de Abril [3 de Abril], um ano e quatro meses antes da sua morte, acrescentando-lhe dois codicilos, escritos
em parte pelo seu punho e em parte pelos seus libertos Políbio e Hilarion. Este testamento, depositado no
colégio das Vestais, o apresentaram estas mesmas em três rolos [de pergaminho] igualmente selados.
Todos estes documentos foram abertos e lidos no Senado […] Quanto aos três rolos [de pergaminho]
continham: o primeiro, as instruções relativas ao seu funeral, o segundo, o resumo da obra que
empreendera, resumo que ele pediu para gravar sobre tábuas de bronze, diante do seu Mausoléu; o terceiro
era uma exposição da situação de todo o império, mostrando quantos soldados havia sob as insígnias,
quanto dinheiro no tesouro do imperador, quanto nas arcas do Estado e que tributos e impostos ainda se
deviam […]»;
Como também de uma passagem de Tácito (Ann.1.11.3-4):
«Quando Tibério fez com que trouxessem e lessem uma memória. Nesta se encontravam os recursos
públicos, o número de cidadãos e dos aliados sob as armas, a lista das frotas, dos treinos, das províncias, a
exposição da situação dos impostos directos ou indirectos, das despesas necessárias e das liberalidades.
Augusto escrevera todos estes detalhes com a sua mão [… ]»;
E, ainda, de um trecho de Díon Cássio (Hist. rom., 56.33):
«Além disso, quatro volumes foram trazidos e lidos por Druso. No primeiro, Augusto havia consignado as
prescrições referentes ao seu funeral; no segundo, o resumo da sua vida, o qual ele queria que fosse
gravado em placas de bronze colocadas defronte do seu santuário. No terceiro, incluía a situação dos
exércitos, a das receitas e das despesas públicas, o estado das finanças e outras instruções deste género,
úteis para a governação do império; o quarto volume encerrava recomendações para Tibério e para o
público».
272
No reinado de Domiciano, os arquivos de todos os «gabinetes» imperiais não foram
mais conservadas em separado pelos arquivistas respectivos de cada um deles (os
scriniarii). De facto, estes cargos foram suprimidos e substituídos por um «gabinete»
suplementar, que receberia o conjunto documental dos arquivos imperiais que,
inicialmente, se chamou a commentaris e, mais tarde, a memoria, no século II.
Topograficamente, este reagrupamento conduziu ao depósito de todos os documentos
num ou em vários edifícios, denominados pela expressão genérica de Tabularium
principis, que provavelmente se localizavam no Palatino, talvez na biblioteca do templo
de Apolo.
Vários autores antigos, que escreveram em diferentes momentos históricos e
apresentaram a ordem de batalha do exército romano nas suas obras, tiveram decerto a
oportunidade de consultar tais arquivos: veja-se o caso bem particular de Suetónio, que
exerceu os cargos de procurator a studiis e ab epistulis no reinado de Adriano. Não
admira, portanto, que a expressão milites sub signis, que Suetónio utiliza nos seus
escritos, se ateste também na documentos papirológicos (P. Thè. inv. 31): essas palavras
referem-se a soldados recrutados, sob o Principado, por um determinado número de
anos sem interrupções, ao passo que os registos do censo republicano apenas se
reportavam, na sua origem, aos homens simplesmente aptos a servir no exército.
Assim, o conceito do soldado «sob as insígnias» aparece correlacionado com o
«nascimento» do exército permanente imperial. Noutras obras antigas, captam-se
vestígios das actualizações sucessivas desse inventário das forças militares, levadas a
cabo pela administração imperial. Tácito (Ann. 4.4,3 e 5, 1-4) faz menção à actualização
desse corpus informativo, feita a mando de Tibério, em 23 d. C.:
«Tibério fez então uma breve enumeração das legiões e das províncias que elas tinham de defender.
Creio, também eu, dever expor esta questão, ao indicar quais eram na altura as forças militares de Roma,
que reis eram seus aliados e como o Império era menos dilatado do que hoje em dia. A Itália, num e noutro
mar [Tirreno e Adriático], estava protegida por duas frotas, com base em Misenum e Ravenna, e o litoral
da Gália, o mais próximo, pelos navios com esporões que Augusto se apoderou aquando da vitória em
Actium, e que enviou para a localidade de Forum Iulii [Fréjus] com bons remadores. Mas as principais
forças encontravam-se no Reno, servindo de reserva comum contra os Germanos e os Gauleses, com um
efectivo de oito legiões. As Hispânias, recentemente submetidas, estavam ocupadas por três. Sobre os
Mouros reinava Juba, que os recebeu como presente do povo romano. O resto de África era guardado por
duas legiões, o Egipto por igual número; para além disso, das fronteiras da Síria ao rio Eufrates, o enorme
território desta região dependia de quatro legiões, com os povos vizinhos, Hiberianos e Albanianos, e
outros reis que a nossa grandeza protege contra as potências estrangeiras. A Trácia era governada por
Rhoemetalces e os filhos de Cotys, a margem do Danúbio controlada por duas legiões na Panónia e duas na
Mésia; também estavam posicionadas na Dalmácia, cuja localização geográfica punha as tropas na
retaguarda das precedentes e bastante perto de Itália, em caso de uma súbita ameaça exigir o envio de um
contingente de socorro, embora Roma tivesse a sua própria guarnição: três coortes urbanas e nove
pretorianas, recrutadas geralmente na Etrúria, na Úmbria ou no antigo Lácio, bem como nas colónias
romanas fundadas em tempos mais recuados. Consoante as necessidades das províncias, por estas se
repartiram os trirremes aliadas, as alas e as coortes auxiliares, que não contavam com menos efectivos;
mas seria arriscado entrar em pormenores, já que, segundo as circunstâncias, elas se movimentavam de
um sítio para outro, aumentando e, por vezes, diminuindo em número».
No discurso que Flávio Josefo colocou na boca de Herodes Agripa, quando este se
dirigiu aos Judeus para os dissuadir de se insurgirem contra Roma, em 66 d. C., a
conquista da Britânia (43) foi levada em linha de conta, na imagem que apresentou do
poderio militar romano (B. J. II, 366-370, 373, 375, 377-378, 383 e 387). Díon Cássio,
por seu turno, reunia condições para distinguir a ordem de batalha das legiões sob os
Severos da que remontava ao Principado de Augusto e, num trecho, o autor grego chega
mesmo a precisar as datas de criação de novas unidades após esse período (História
romana, 55.23-24):
«Mantiveram-se, então, 23 legiões ou, de acordo com alguns historiadores, 25. Destas antigas legiões só
restam actualmente dezanove. São elas: a II Augusta, cujos aquartelamentos de Inverno se situam na
Britânia Superior; três Terceiras, a saber: a Gallica, na Fenícia; a Cyrenaica, na Arábia e a Augusta na
Numídia; a IV Scythica, na Síria; a V Macedonica, na Dácia; as duas Sextas, de que uma, a Victrix, se
encontra na Britânia Inferior, e a outra, a Ferrata, na Judeia; uma VII na Mésia Superior: é a que se chama
precisamente Claudia; a VIII Augusta, na Germânia Superior; as duas Décimas, a saber: a Gemina, na
Panónia Superior, e a que está na Judeia; a XI Claudia, na Mésia Inferior [as duas legiões receberam este
nome de Cláudio, por se terem recusado a combater contra ele durante a revolta de Camilo]; a XII
273
Fulminata, na Capadócia; a XIII Apollinaris, na Capadócia; a XX, a que se chama Valeria e Victrix, na
Britânia Superior. Esta legião, em meu entender, assim como a que ostenta o número de XXII, e cujos
quartéis de Inverno se localizam na Germânia Superior (no entanto, não há unanimidade entre os
historiadores em dar à mesma o cognome de Valeria e ela não o utiliza hoje em dia), foi conservada por
Augusto depois de lhe ter sido entregue. Eis o que subsiste das legiões deste princeps; quanto ao resto,
fundiu-se uma parte, fosse por ele ou pelos imperadores subsequentes, nas demais legiões, o que de acordo
com a opinião comum lhes valeu o nome de Gemina. Como fui levado a discorrer sobre as legiões, vou
dizer como o remanescente das mesmas que actualmente existem se viram formadas pelos seguintes
imperadores, a fim de que aquele que deseje obter informações possa tomar conhecimento disto mais
facilmente, ao deparar com estes detalhes num único sítio. Nero criou a legião I Italica, cujos quarteis de
Inverno se situam na Mésia Inferior; Galba, a I Adiutrix, na Panónia Inferior, bem como a VII, que está na
Hispânia; Vespasiano, a X Adiutrix, na Panónia Superior, a IV Flauia na Mésia Superior e a XVI Flavia, na
Síria; Domiciano, a I Minervia, na Germânia Inferior; Trajano, a II, que está no Egipto, e a XXX, na
Germânia, legiões às quais deu o seu nome; Marco Aurélio, a II, na Nórica, e a III, na Récia, sendo ambas
as legiões denominadas Italica; por fim, Severo, formou as Parthicae, a I e a III que estão na Mesopotâmia,
e a II, em Itália».
Nos documentos da administração central, não restam dúvidas de que todas as legiões
do exército foram classificadas segundo a ordem geográfica da sua província de
guarnição, como o atesta uma inscrição romana repertoriando as legiões sob a égide
Septímio Severo (CIL VI 3492; ILS 2288):
NOMINA LEG
II AVG II ADIVT IIII SCYTH
VI VICTR IIII FLAV XVI FLAV
XX VICTR VII CLAVD VI FERRA
VIII AVG I ITALIC X FRETE
XXII PRIM V. MACED III CYREN
I MINER XI CLAVD II. TRAIAN
XXX VLP XIII GEM III AVG
I ADIVT XII FULM VII GEM
X GEM XV APOL II ITALIC
XIIII GEM III GALL III ITALIC
I PARTH II PARTH III PARTH
720
Para o que se segue, fundamentámo-nos no extenso artigo de E. Ritterling, «Legio», Real Encyclopädie der
Klassischen Altertumswissenschaft,12, 1924/1925, cols. 1362-1365.
274
1º) No fim do Principado de Augusto, até à véspera da sublevação
panóniana de 6 d. C.:
PROVÍNCIAS LEGIÕES
Hispânia Ulterior II Augusta e V Alaudae
PROVÍNCIAS LEGIÕES
Roma I Adiutrix
PROVÍNCIAS LEGIÕES
275
Britânia II Augusta, IX Hispana, XX Valeria Victrix
Judeia X Fretensis
PROVÍNCIAS LEGIÕES
Judeia X Fretensis
Estas listas com os numerais e os nomes das legiões, além da indicação das províncias
onde as mesmas se encontravam de guarnição, sugerem que, desde o principado de
Augusto, o imperador estaria em condições para reflectir circunstanciadamente sobre o
276
recrutamento no exército. Sob os Júlio-Cláudios, parece ter existido o objectivo de
manter uma certa proporção de Italianos e de cidadãos das províncias mais
romanizadas em cada legião, assim preservando o seu carácter original, limitando o
mais possível as deslocações de homens sobre distâncias demasiado longas. Mas
devemos relativizar a natureza voluntarista desta política de recrutamento racional e
equilibrado: de facto, ela depressa necessitou de tomar em consideração uma eventual
diminuição demográfica na península itálica, a renitência cada vez mais forte,
manifestada pelos Italianos e pelos cidadãos das províncias mais romanizadas, em
seguir o ofício das armas, como também o fenómeno da difusão da cidadania romana
no conjunto do Império. Com efeito, no Ocidente, a proporção de Italianos nas legiões
viu-se reduzida, sobretudo a partir do reinado de Vespasiano. O fim do século I d. C.
assistiu à extinção progressiva do recrutamento de indivíduos oriundos de Itália. Os
cidadãos da península foram gradualmente substituídos pelos provinciais mais
romanizados, provenientes da Narbonensis, da Hispânia ou de África.
Trajano procurou fomentar o recrutamento de Italianos ao conceder aos proprietários
fundiários da península empréstimos cujos juros permitiam contribuir para a educação
de crianças livres mas pobres. A finalidade militar deste sistema financeiro, chamado
alimenta721, queda sublinhada pelas vantagens que os rapazes beneficiavam e,
igualmente, sugerida pela alegoria da Itália associada às crianças e à representação de
um legionário equipado. Não obstante os resultados desta política demográfica terem
sido escassos722, a Itália continuou a ser solicitada quando se criavam novas legiões. É
certo que quando estas se formavam significaram excepções durante o Alto Império,
ocorrendo no âmbito de planos de conquista ou de guerras defensivas. Foi desta
maneira que se constituíram as legiões XVIª e XXIIª Primigeniae, provavelmente por
Calígula em 39 d. C., quando projectou conquistar a Britânia. Nero, por seu lado, criou
a legio I Italica, com vista à expedição que o imperador pretendia enviar para o
Cáucaso, em 66-67, e depois a legio I Adiutrix, na qual mandou arrolar os marinheiros
da frota de Misenum723.
A política expansionista de Domiciano nos Campos Decumatos conduziu à criação da
legio I Minervia, em 83 d. C., enquanto a de Trajano, na Dácia, se saldou na formação
das legiões XXX Ulpia Victrix e II Traiana, em 101. Por outro lado, quando Marco
Aurélio criou as legiões II e III Italicae, por volta de 165 d. C., foi por necessitar de
defender a Itália das incursões germânicas. No que respeita às três legiões Parthicae de
Septímio Severo, constituíram fruto das guerras civis e da conquista da Mesopotâmia
em 197-198.
No século II, as legiões recrutaram um número cada vez maior de homens nas
províncias em que se encontravam acantonadas: trata-se, portanto, de recrutamento
efectuado a nível regional. Os provinciais representaram, indiscutivelmente, cerca de
1/3 dos recrutas entre os principados de Augusto e de Calígula, passando a mais de
metade sob os reinados de Cláudio e de Nero, e subindo para mais de ¾ no período
Flávio e sob a égide de Trajano.
Deste modo, as comunidades cívicas da Hispânia e de África 724 cedo se tornaram
suficientes para assegurar homens para o recrutamento das legiões que nelas estavam
aboletadas, obtendo-se, de permeio, alguns reforços na Narbonensis. Os recrutas de
África que não permanecessem na sua zona de origem eram amiúde enviados para
cumprir o serviço militar no Egipto. Em contrapartida, as legiões estacionadas na
Britânia, na Germânia e no Illyricum mobilizaram durante largo tempo indivíduos na
Narbonensis, na Hispânia ou na Macedónia. A partir de finais do século II, a maioria
dos recrutas procedia das cercanias imediatas dos locais onde se encontravam as
721
P. Veyne, «Les Alimenta de Trajan», in Les Empereurs romains d’Espagne, Paris, 1965; C. González Roman,
«Trajano, optimus princeps: a propósito de los Alimenta», in J. González (coord.), Trajano, Óptimo Principe. De Itálica
a la corte de los Césares, Sevilha, 2003; G. Bravo, «Los Alimenta. Roma asiste a sus niños», La Aventura de la História,
nº 178 2011, pp. 49-52.
722
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, p. 85.
723
J. C. Mann, «The raising of new legions during the principate», Hermes 91 (1963), pp. 483-489.
724
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, pp. 88-89.
277
guarnições, havendo uma crescente proporção de filhos de soldados, «nascidos em
acampamentos» (que mais vale chamar castris do que ex castris)725.
Em certos casos, os filhos nascidos fora do matrimónio no decurso do serviço militar
podiam ser legitimados no momento da desmobilização dos seus progenitores. É
provável que este origo castris também se atribuísse aos peregrini, ao receberem a
cidadania romana aquando da sua incorporação.
As investigações de G. Forni726 e Y. Le Bohec727, centradas nas listas de legionários
desmobilizados, serviram para se conseguir reconstituir a evolução do recrutamento da
legio III Augusta até ao período dos Severos inclusive, já que, pondo de parte tais
fontes, escasseiam os testemunhos epigráficos. Os legionários começaram a ser
recrutados em Itália, nas Gálias e, em menor grau, na pertica de Cartago e no território
de Cirta, no início do século I. Em meados do último, os efectivos recrutaram-se
essencialmente no Oriente (Bitínia e Síria-Palestina) e muito pouco em África.
O reinado de Adriano significou um ponto de viragem, uma vez que diversas fontes
mostram que, neste período, 93% das suas tropas provinham do Magrebe: a par das
regiões da pertica de Cartago (13,75%) e do território de Cirta (7,4%), Lambaesis
(40%), Theveste e Thamugadi (Timgad) forneceram numerosos recrutas, cifrando-se
em 8,3% para o Sul da África Proconsular e 20,75% para o resto desta província. Esta
evolução atesta uma crescente participação de filhos de veteranos no recrutamento de
efectivos para a legião: no princípio do século III d. C., os castris tornaram-se
maioritários, fenómeno que se observa neste trecho da inscrição do CIL VIII, 18068,
datando do período severiano:
«[…] a dedicatória sendo feita por Quintus Ani[cius Faustus] legado dos Augustos [pro praetor, vir
clarissimus, cônsul], pelos veteranos da [III legião] Augusta Pia Vingadora, que começaram o seu serviço
militar sob o segundo consulado de Cneus Claudius Severus e de Tiberius Claudius Pompeianus [173]
……… Lucius Calliu[…] CL[…]; Caius Nervillius Seranus, de Cita; Marcus Aurelius Fatalis, de Theveste;
Marcus Iulius Quintulus, de Cirta; Marcus Cingonius Verus, de Cirta; Marcus Flavius Urbanus, de Cirta;
Caius Iulius Saturninus, do Acampamento [Castra]; pela VII coorte: Tiberius Claudius Castus, de Cirta;
Quintus Memmius Avitus, do Acampamento; Caius Attius Rogatus, do Acampamento; Quintus Cerellius
Silvanus, do Acampamento; Marcus Cattius Faustinus, de Cirta; Caius Sertorius Victor, de Cartago;
Marcus Munatius Messor, do Acampamento; Caius Iulius Siliquarius, de Cirta; Caius Iulius Honoratus,
de Cirta; Marcus Granius Clemens, do Acampamento; Marcus Cassius Rufus […] Caius Aufidius
Far[..]uleus […]; Marcus Aurelius Cittinus […]; Quintus Clodius Clarus, de Cirta; Marcus Ulpius
Saturninus, de Cartago; Marcus Nuerius Optatus, de Ba[gai?]; Caius Cornelius Sat[urninus], de Cirta;
Marcus Nuerius Da[tus], de Cirta; Titus Aelius Creticus, do Acampamento; Quintus Aurelius Rufus, do
Acampamento; Caius Vinicius Donatus, do Acampamento; Caius Vitalis Cupidus, de Hadrumete; Caius
Iulius Arabus, de Cuicul; Quintus Germinius Saturninus, de Cirta; Marcus Atinius Felix, de Thamugati;
Publius Publicius Orestinus, do Acampamento, cornicularius do tribuno; Caius Caecilius Meridianus, do
Acampamento; Quintus Sallustius Felix, de Cirta; Caius Iulius Victor, de Cirta; Marcus Terentius
Gemellus, de Cirta; Caius Germinius Vetustinus, de Cartago, beneficiarius do tribuno; Sextus Vettius
Victorinus, do Acampamento; pela oitava coorte [etc.]».
Porém, urge rejeitar a teoria, ainda aceite por vários historiadores, de que o
recrutamento a nível local apenas se consumou e generalizou a partir do tempo de
Adriano. Na realidade, o processo de arrolamento no hinterland das bases militares
romanas já fora estabelecido na primeira metade do século I da nossa era, como
demonstrou K. Kraft, numa obra publicada em 1951 728. Assim, com o principado
adriânico, assistiu-se, isso sim, a um aumento das levas de recrutas em várias zonas
concretas do território imperial.
No século III, as províncias danubianas e balcânicas forneceram a maioria dos
legionários. No Oriente, o recrutamento local apareceu mais cedo, desde os últimos
tempos do século I. Os recrutas procediam, na sua maior parte, do interior da Anatólia
e da Síria. No Egipto, a Legio II Traiana recebeu um supplementum sob a forma de um
destacamento da IIIª legião Augusta, vinda de África em 131-132.
725
A. Mócsy, «Die origo castris und die Canabae», AArchHung 13 (1965), pp. 425-431.
726
«Estrazione etnica e sociale dei soldati delle legioni nei primi tre secoli dell’impero», Aufstieg und Niedergang der
römische Welt, II.1 (1974), pp. 339-391.
727
La Troisième légion Auguste, Paris, 1989.
728
Zur Rekrutierung von Alen und Kohorten an Rhein und Donau, Berna, 1951, p. 139. Recentemente, G. Wesch-Klein
subscreveu esta opinião (cf. «Recruits and Veterans», p. 437.
278
Transitemos para a questão da origem social dos soldados, que continua a ser objecto
de debates académicos: Vegécio (Epit. rei milit., I, 7) insistiu na tónica da superior
qualidade dos recrutas rurais, enquanto Tácito explicou os motins de 14 d. C.,
sublinhando o mau feitio dos recrutas citadinos. No entanto, os autores antigos, quase
sempre pertencentes às camadas superiores da sociedade romana, sentiam ao mesmo
tempo desprezo e receio face aos homens de uma extracção social inferior à deles,
oriundos, na sua maioria, dos limites do mundo romano. Assim, a elite letrada
contribuiu para forjar a reputação de rusticidade dos militares. Mas cabe não esquecer
que Vegécio advertiu igualmente para a necessidade de recrutar homens que
soubessem ler, escrever e contar.
Não há muito, vários historiadores (entre os quais J.-M. Carrié 729) alertaram para os
estereótipos contidos na literatura antiga. Na realidade, o recrutamento dos soldados se
efectuou no seio daquilo a que P. Veyne qualificou de «plebe média», ou seja, um
estrato social modesto mas não forçosamente miserável. É certo que os habitantes
rurais constituíam o grosso da população no Império, mas o facto de muitos deles
cumprirem um serviço militar durante 20-25 anos representou um inegável elemento
de aculturação a um modo de vida urbana, à romana, como o testemunham termas e
anfiteatros perto dos acampamentos militares.
Por seu turno, as tabuinhas descobertas no forte da antiga Vindolanda730 (actual
Chesterholm, Northumberland, Inglaterra) permitem que constatemos o domínio do
latim por parte dos efectivos de uma guarnição auxiliar na Britânia, na viragem do
século I para o II. Assim, a instituição militar favoreceu nitidamente o enraizamento
das tradições romanas nas fronteiras do Império.
Quanto aos auxilia, conservaram o essencial do seu carácter étnico apenas no do
período Júlio-Cláudio. A reunião de combatentes em contingentes ao serviço do
exército romano constituía um meio mais ou menos eficaz para evitar que membros de
povos recentemente subjugados se rebelassem. Esta foi uma das razões que levou os
Romanos a incorporar soldados dos grupos étnicos que estavam sob o seu controlo: os
nomes de numerosas coortes e unidades de cavalaria (alae) reflectem as zonas onde as
mesmas foram criadas - as cohortes Asturum, Breucorum, Dalmatarum, Thracum,
Vindelicorum, ou as alae Hispanorum, Illyricorum, Ituraerorum, Noricorum e
Pannoniorum. Porém, contrastando com as suas designações, a composição étnica
destes contingentes depressa veio a mudar, dado que se recrutavam homens para
preencher as fileiras do castra da unidade em causa, da província em que a última se
achava estacionada, de outras circunscrições provinciais e, ainda, do sítio de onde
procedia originariamente a coorte ou a ala. Até ao reinado de Vespasiano, organizaram-
se levas de numerosas unidades montadas nas Gálias e na Península Ibérica, regiões
afamadas pela qualidade dos seus cavaleiros. A seguir, as províncias alpinas,
danubianas e balcânicas passaram a fornecer homens para as tropas auxiliares,
achando-se estas num regime de maior mobilidade do que as legiões 731.
Diversas fontes epigráficas do século I da nossa era atestam a presença de elementos
tribais étnicos nas unidades de auxiliares: veja-se, por exemplo, a inscrição de uma
estela funerária descoberta em Colchester (Camulodunum), dedicada a Longinus, da
ala I Thracum; no texto diz-se que ele era filho de Sdapezematygus; embora certos
autores questionaram o facto de Sdapezematygus corresponder realmente a um nome
trácio em versão latinizada, não há dúvida que Longinus proveio do distrito de Serdica
(actual Sófia), o que aponta fortemente para uma origem trácia (RIB.201); no tempo de
Trajano, a ala I Thracum ainda estaria aboletada na Britânia, aparecendo citada num
diploma achado em Malpas (Cheshire, Inglaterra/ILS 2001). Mantiveram-se muitas
vezes as denominações étnicas das unidades, apesar de posteriormente não reflectirem
as «nacionalidades» dos seus efectivos.
729
«O soldado», in A. Giardina (dir.), O Homem Romano, Lisboa, 1992, pp. 109-110
730
A. K. Bowman, Life and Letters on the Roman Frontier, Vindolanda and its People, 2ª edição (a primeira data de
1994), Londres, 2003; A. Birley, Garrison Life at Vindolanda: A Band of Brothers, Gloucestershire, 2002.
731
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, pp. 97-103.
279
Havia unidades que, ao empregarem métodos especiais de combate e na arte de
cavalgar, preferiam recrutar indivíduos que estivessem já familiarizados com as
técnicas e as habilidades requeridas: assim, a Cohors I Aurelia Antoniniana miliaria
Hemesenorum Sagittaria equitata civium Romanorum, parcialmente composta por
archeiros montados, quando esteve aboletada na Panónia Inferior, em Intercisa (desde
aproximadamente 175 até meados do século III), arrolou mancebos tanto da sua terra-
natal, a Síria, como outros que tivessem nascido e crescido na área do seu
acampamento732.
Por último, do reinado de Vespasiano em diante, o número de cidadãos incorporados
nos auxilia veio a aumentar regularmente, ao ponto de igualar o dos peregrini a partir
do tempo de Adriano.
732
K. Kraft, Zur Rekrutierung von Alen und Kohorten an Rhein und Donau, p. 50, 176; B. Lörincz, Die römischen
Hilfstruppen in Pannonien während der Prinzipats zeit, Teil 1: Die Inschriften, Viena, 2001, pp. 35-36, 247-266.
733
J. F. Gilliam, «Milites Caligati», Transactions and Proceedings of the American Philological Association, 77 (1946),
pp. 183-191. Estudo que foi reeditado na colectânea de artigos do mesmo autor, Roman Army Papers, Mavors, vol. 2,
Amesterdão, 1986, pp. 43-51.
734
A. Perez, «Means of control: standards and music in Iron Age Europe», Ancient Warfare, III.6 (2010), pp. 14-18; P.
McDonnell-Staff, «Musical instruments of war: The Development of Roman brass instruments», ibidem, pp. 20-21.
735
D. B. Campbell, «Eagles, Flags and Little Boars: The Cult of the Standards in the Roman Army», Ancient Warfare,
III.6 (2010), pp. 34-39.
280
Através dos trabalhos de A. von Domaszewski 736 e, mais recentemente, de D. J.
Breeze737 e M. Clauss738, sabemos que todas as afectações observáveis nas fontes não
correspondiam necessariamente a outros tantos postos diferentes. De facto, cumpre
não confundir grau, função e afectação temporária. Pelo contrário, distintos percursos
podiam levar um tiro ao centurionato ou a um escalão imediatamente inferior. Numa
primeira fase, os tirones que se especializavam em determinadas tarefas eram
designados como discentes. Mas este vocábulo revela-se ambíguo, já que também
servia para qualificar os instrutores. Antes de se tornar centurião, um soldado podia
conhecer quatro a seis afectações diferentes, cada uma tendo uma duração que ia de
três a cinco anos.
Esta hierarquia estava relacionada com a atribuição de isenção de corveias ou de
outras tarefas impostas aos militares e alicerçava-se igualmente numa escala de soldos.
Aparentemente, ela ficou definitivamente estabelecida no século II d. C., na qual se
distinguiam três ou mesmo quatro escalões básicos: em primeiro lugar, diferenciavam-
se os soldados isentos das corveias, os immunes, dos outros, os munifices (Digesta, L,
6, 7); entre os isentos, os sesquiplicarii e os duplicarii739 recebiam, respectivamente,
uma vez e meia e o dobro do montante do soldo-base, formando a categoria dos
principales740, que Vegécio definiu nos seguintes termos (Epitoma de rei militaris, II,
7):
«Depois de haver exposto a antiga disposição da legião, vejamos como […] ela é composta por soldados
principais ou, para me servir do próprio termo, os nomes e os títulos dos principes […] Os aquiliferi
[porta-águias] e imaginiferi [os porta-imagens] são os que levam as águias e as imagens do imperador; os
optiones são os tenentes de oficiais mais graduados, que se lhes associam por uma espécie de adopção para
fazerem o seu serviço, em caso de doença ou de ausência; os porta-insígnias são os que levavam as
insígnias aos quais, presentemente, se chama draconarii. Denominam-se tesserarii os que são portadores
das senhas ou de ordens para as casernas: os que combatem à cabeça das legiões possuem ainda o nome de
campigeni, porque eles fazem nascer, por assim dizer, no campo, a disciplina e o valor, pelo exemplo que
dão. De meta designam-se os metatores, os que precedem o exército para marcarem a localização do
acampamento, os beneficiarii sendo os que ascendem a este posto mediante o favor dos tribunos; de liber,
chama-se librarii aos que registam todos os pormenores que dizem respeito à legião; a partir de tuba,
cornu e bucina designam-se os que se servem destes diferentes instrumentos, tubicines, cornicines,
bucinatores. Aos soldados hábeis na esgrima e que têm duas rações dá-se o nome de armaturae duplares,
e aos que só possuem uma armaturae simplares; mensores são os que medem o espaço destinado a
montar as tendas em cada caserna, podendo eles arranjar também alojamento nas cidades. Eis os
principais soldados que gozam de todas as prerrogativas associadas aos seus graus. Quanto aos outros, são
qualificados de munifices, porque se vêem obrigados a realizar todo o tipo de trabalhos no exército».
No entanto, este autor tardio confundiu principales e immunes, englobando-os na
designação abrangente de principes. Na primeira metade do século I d. C., certos
principales usufruíam, talvez, de um triplo soldo (AE 1976, 495), mas posteriormente
não se encontram mais atestações destes triplicarii. Na opinião de David J. Breeze, o
conjunto dos immunes representava uma proporção sensivelmente equivalente dos
efectivos em todos os corpos de tropas: cerca de 21% nas legiões (na razão de 1100
postos para cerca de 5 000 homens, dos quais 480 principales, ou seja, um pouco
menos de 10%), um homem em cada seis no pretório, um em cada cinco nas coortes
auxiliares, e um em cada seis ou sete entre os vigiles.
A afectação de soldados para tarefas administrativas só se desenvolveu à custa de uma
redução do número de combatentes operacionais. Os detentores destes postos estavam
dispensados das múltiplas corveias que os simples soldados tinham de levar a cabo
habitualmente, mas não ficavam isentos do combater. Além disso, a correspondência
736
Die Rangordnung des römischen Heeres, 3ª edição editada por B. Dobson, Colónia, 1981 (a 1ª data de 1908).
737
Consulte-se a tese para a obtenção do grau académico PhD de D. J. Breeze, The immunes and principales of the
Roman Army, University College, Durham, 1970 (esp. pp. 6-171), bem como dois artigos do mesmo autor: «Pay grades
and Ranks below the centurionate», JRS 61(1971), pp. 130-135; «The organization of the career structure of the
immunes and principales of the Roman army», BJ 174 (1974), pp. 245-292; «The career structure below the
centurionate during the principate», ANRW, II.1 (1975), PP. 435-451.
738
Untersuchungen zu den principales des römischen Heeres, Bochum, 1973.
739
E. Sanders, «Zu Rangordnung des römischen Heeres: Der Duplicarius», Historia 8 (1959), pp. 239-247.
740
Observem-se os comentários ainda válidos de A. von Domaszewski, Die Rangordnung des römischen Heeres, pp. xi-
xvi, 28-50.
281
de Plínio-o-Moço com Trajano (Cartas, X, 21-22), mostra que o imperador tinha de
lutar contra a existência de determinados abusos:
«Senhor, Gavius Bassus, prefeito da Costa Pontica, veio ver-me com a maior das deferências e solicitude,
e permaneceu comigo vários dias, sendo, tanto quanto me pude dar conta, um homem distinto e
merecedor da tua benevolência. Notifiquei-o que, segundo as tuas ordens, nas coortes que tu me deste o
comando, ele deveria contentar-se com 10 beneficiarii, dois cavaleiros e um só centurião. Ele respondeu-
me que este efectivo não lhe era suficiente, e que te iria escrever. Foi por esta razão que não julguei dever
chamar imediatamente os homens, para que ele tenha mais do que esse efectivo»;
«[Resposta de Trajano] Gavius Bassus também me escreveu, dizendo que o efectivo da escolta que eu
estabelecera para ele nas minhas instruções não lhe era suficiente. Para que tomes conhecimento da
resposta que lhe dei, junto envio cópia da mesma. Importa muito averiguar se é mesmo nercessário, ou se
os interessados pretendem abusar do seu direito. Quanto a nós, devemos apenas ter em conta a
necessidade e, se possível, velar para que os soldados não fiquem afastados das insígnias».
Certas funções exercidas pelos immunes requeriam o domínio da escrita. Os recrutas
suficientemente instruídos eram incentivados a evidenciarem os seus conhecimentos a
fim de acederem a um posto que os dispensava das corveias demasiado pesadas e
extenuantes. Mas estas promoções à mercê da boa vontade dos centuriões e dos
tribunos militares, que recomendavam os seus candidati, favoreciam o fenómeno da
corrupção, frequentemente denunciado. As cartas de recomendação, atrás referidas,
desempenhavam também um papel relativamente significativo: no P. Mich. VIII, 466,
conservou-se uma carta do soldado Iulius Apollinaris, na qual conta ao seu pai como
conseguiu não ser enviado para talhar pedras, ao obter o cargo de librarius741 (guarda-
livros, contabilista), possivelmente na IIIª legião Cyrenaica (linhas 18-32):
«Estou bem. Desde que Sarapis me conduziu até aqui em segurança, enquanto os outros talham pedras
durante todo o dia e fazem outras coisas, eu, até agora, não sofri nenhuma destas provações; mas, na
verdade, pedi a Claudius Severus, o governador, que me fizesse librarius no seu próprio estado-maior, e
ele disse-me: “Não há vagas mas, entretanto, vou-te nomear librarius na legião, com perspectivas de
promoção. Com esta afectação, passei do governador, comandante da legião, ao cornicularius».
Um soldado que soubesse ler, escrever e contar tinha boas possibilidades de começar a
sua carreira militar através desta função de secretário, utilizado simultaneamente na
contabilidade e nos escritos. Noutra missiva (P. Mich. VIII, 465, l. 13-17), destinada à
sua mãe, o mesmo Apollinaris gaba-se de ser já um principalis, quando, na realidade, o
posto de librarius lhe conferia somente a isenção de participar em corveias:
«Agradeço a Sarapis e à Boa Fortuna, agora que todos passam o dia a talhar pedras, eu não o ter de fazer,
enquanto principalis».
No entanto, por esta altura, ainda não se fixara definitivamente a hierarquia entre os
diversos postos. Repare-se que o grau de immunis podia corresponder a outras
actividades: em matéria de música militar, cada legião talvez compreendesse 39
tubicines, cujas trombetas transmitiam sinais sonoros ao conjunto dos legionários, 36
cornicines, que se dirigiam especialmente aos porta-insígnias, bem como bucinatores,
que parecem haver tocado tanto o cornu como a tuba, mas cujo papel específico ainda
suscita dúvidas entre os estudiosos; a artilharia, por seu turno, era confiada aos
ballistarii (que manejavam as ballistae, que todas as coortes dispunham). Não sabemos
ao certo se os venatores (caçadores) estavam encarregados de fornecer carne aos
soldados durante as campanhas, ou da captura de animais selvagens para os
espectáculos no anfiteatro (as chamadas venationes).
Ao ver-se promovido a tesserarius (militar que estava incumbido da transmissão das
tesserae/tabuinhas contendo as senhas ou palavras-passe para cada centúria), um
librarius podia aceder, a seguir, a um primeiro grau de principalis, passando a receber
um soldo de sesquiplicarius. Recentemente, descobriram-se algumas dessas senhas em
ostraca do forte de Mons Claudianus742, (Egipto). Havia muitas responsabilidades que
recaíam nos ombros dos sesquiplicarii: o custos armorum zelava pelo arsenal, o optio
valetudinarii pela enfermaria, o optio carceris, pela prisão. Quanto ao optio equitum,
comandava cavaleiros. O optio, se quisermos empregar uma linguagem mais actual,
significava um «chefe de serviço» ou «adjunto» de um centurião.
741
G. R. Watson, «Immunis librarius», in M. G. Jarret e B. Dobson (eds.), Britain and Rome: Essays Presented to Eric
Birley, Kendal, 1965, pp. 45-55.
742
J. Bingen et al., Mons Claudianus. Ostraca Graeca et Latina, vols.I-III, Cairo, 1992, 1992, 2000.
282
Um tesserarius que ascendesse a signifer entrava na categoria dos duplicarii. O
signifer era o portador da insígnia de um manípulo de tropas de infantaria, enquanto o
vexillarius arvorava o estandarte das unidades de cavalaria. Neste contexto, o signifer
afigurava-se inferior, em prestígio, ao imaginifer, que ostentava a efígie do imperador
e, sobretudo, ao aquilifer, o portador da águia legionária. Assim, no seio de um mesmo
grau hierárquico, certas funções eram julgadas mais honrosas do que outras, como se
atesta pela utilização dos títulos de magister ou de curator.
Para além dos serviços comuns a todas as unidades, cada oficial dispunha do seu
estado-maior, o officium. Esta prática remonta, aparentemente, aos últimos tempos da
República, altura em que se conhece a existência dos beneficiarii, ligados à pessoa dos
oficiais, aos quais haviam sido recomendados e que se viam encarregados de uma
missão específica (Júlio César, Bell. Civ. I, 75): consistia, amiúde, em guardar uma
statio, que tanto podia corresponder a uma estação de muda da posta imperial, a
vehiculatio, mais tarde chamada cursus publicus, como a um corpo que exercesse
funções de policiamento local.
No Alto-Império, os beneficiarii, que foram meticulosamente compulsados por J.
Ott743 e J. Nélis-Clément744, acediam à categoria dos sesquiplicarii, quando não
estivessem ligados a um tribuno, e à dos duplicarii quando se encontrassem vinculados
a um legado. Do praepositus, investido do comando de um numerus, ao legatus de
legião, cada graduado tinha um officium, constituído por immunes de graus variáveis,
em maior ou menor número, consoante a sua categoria hierárquica. Passou, então, a
ser uma forma corrente para se arranjar funcionários e destacar soldados para os
«gabinetes» das administrações provinciais e romanas.
O exército romano englobava perto de 400 000 homens, escolhidos em função das
suas capacidades físicas mas, igualmente, tendo em conta certas aptidões intelectuais, à
disposição do imperador. As competências que os militares poderiam adquirir no
estado-maior da sua guarnição respectiva faziam de alguns deles indivíduos apreciados
nos diferentes sectores da administração imperial. Em princípio, os governadores
provinciais empregariam uma centena de militares nos seus «gabinetes», igualmente
chamados officia. Nestes, em conjunção com os librarii, trabalhavam os exacti
(arquivistas).
A guarda pessoal dos legados era assegurada pelos singulares, recrutados entre os
cavaleiros auxiliares, enquanto os stratores lhes estavam associados como estribeiros.
Quanto aos quaestionarii, serviam como agentes da justiça. Muito se tem debatido
acerca do estatuto e do papel dos frumentarii: mais do que soldados adstritos ao
aprovisionamento de trigo, a sua designação talvez advenha das rações gratuitas de
trigo de que terão usufruído desde a época republicana. Sob o Império, eles serviriam
essencialmente como correios e agentes policiais. Garantiam, entre outras coisas, as
ligações entre as províncias e Roma, onde estavam aboletados numa caserna situada no
Mons Caelius (Castra Peregrina/Peregrinorum). Os speculatores745, originariamente
batedores que levavam a cabo missões de reconhecimento e recolha de informações em
território hostil, vieram a converter-se em guardas de corpo e, mais tarde, passaram a
exercer funções de estafetas, de polícias e, até, de assassinos ou algozes.
Os commentarienses (também designados a commentariis) supervisionavam o
arquivamento da correspondência e dos processos judiciais. No topo desta hierarquia,
recebendo um soldo de duplicarius, estavam os cornicularii que dirigiam os
«gabinetes», consistindo geralmente em antigos optiones. A sua denominação devia-se
às insígnias em forma de corno que ornamentavam os seus elmos. Era, aliás, ao posto
de cornicularius, no officium do prefeito do Egipto que o referido librarius Apollinaris
da IIIª legião Cyrenaica pretendia chegar. No officium de um governador provincial, os
cornicularii estavam sob as ordens de um centurio princeps officii, coadjuvado por um
743
Die Beneficiarier. Untersuchungen zu ihrer Stellung innerhalb der Rangordnung des römischen Heeres und zu
ihrer Funktion, Estugarda, 1995.
744
Les beneficiarii: militaires et adminstrateurs au service de l’Empire (Ier s. a. C.- VIe s. p. C.), Bordéus, 2000.
745
283
optio praetorii. Durante a primeira metade do século III, teve lugar uma especialização
progressiva das carreiras, havendo alguns principales a exercer funções mais
administrativas, ao passo que outros se destinaram sobretudo a missões militares.
Embora os immunes representassem por vezes 20% em certas unidades, o acesso aos
postos superiores dos principales revelava-se cada vez mais selectivo, na medida em
que os centuriões representavam apenas 1% dos efectivos legionários: somente 1% a 2%
dos officiales poderiam alimentar expectativas concretas de se tornarem cornicularii.
A promoção ao centurionato 746 emanava teoricamente do imperador e do procurador
ab epistulis, mas, na prática, os governadores provinciais, investidos do comando das
tropas, assim como os legados de legião, podiam certamente influir na escolha dos
candidatos. Estes eram os principales mais meritórios e competentes. A um optio
susceptível de de se converter em centurião chamava-se optio spei ou optio ad spem
ordinis. No entanto, desde finais do século II d. C., eram os cornicularii que mais
possibilidades reuniam para ascenderem a centuriões, sobretudo se procedessem das
coortes pretorianas, mas não em exclusivo.
Na guarnição de Roma, os centuriões eram prioritariamente escolhidos entre os
principales do praetorium ou entre os centuriões das legiões mais competentes.
Começavam a sua carreira entre os vigiles, transitando para as coortes urbanas até
que, por fim, regressavam ao pretório. Quanto aos principales legionários que
atingissem os postos menos prestigiosos da oficialidade subalterna, podiam ser
promovidos a centuriões ou a decuriões nas tropas auxiliares.
Muitas vezes, o posto de beneficiarius com soldo de duplicarius representava um final
de carreira honroso para um principalis que não tivesse logrado ascender a centurião.
Se nos basearmos em J. Nélis-Clément747, menos de 1,5 % dos beneficiarii obtinham
uma promoção acima desse posto. Alguns militares continuavam no exército para além
do tempo legal de serviço com o título de retentus, sendo o de evocatus Augusti o que
mais especialmente se reservava aos pretorianos e aos soldados da coorte urbana de
Lugdunum (Lyon), que ainda se encontrassem sob as insígnias no terminus do tempo
regulamentar. Assim, eles podiam ajudar os seus camaradas com a sua experiência,
exercendo a função de instrutores ou dirigindo certos serviços das suas unidades graças
a conhecimentos acumulados numa área específica.
O primipilato significava o zénite na carreira de um centurião. É certo que ainda hoje
vários historiadores discutem a questão se todos os antigos primipilares748 ingressavam
automaticamente na segunda ordem social mais importante, a equestre, do Estado
romano. Seja como for, sabemos que lhes foram atribuídas diversas funções equestres,
tanto no seio das forças armadas como fora delas. Com efeito, no fim de um primeiro
primipilato, o antigo centurião podia acabar a sua carreira como praefectus
castrorum/prefeito de acampamento (que, a partir do século II, passou a designar-se
como prefeito de legião) ou, então, prosseguir em actividade na guarnição de Roma
enquanto tribuno, primeiro nos vigiles, a seguir nos urbaniciani e, por último, no
pretório. Este percurso podia ser coroado por um segundo primipilato. Um primus
pilus tinha igualmente a oportunidade de encetar uma carreira como procurador, caso
fosse promovido directamente à categoria de centenarius, usufruindo um emolumento
anual de 100 000 sestércios. Mas, ao terminar um segundo primipilato, os centuriões
746
E. Birley, «Promotions and Transfers in the Roman Army II: the Centurionate», in Carnuntum Jahrbuch (1963-
1964), pp. 21-33. Para uma investigação circunstanciada, de cariz prosopográfico, sobre as carreiras de centuriões desde
o reinado de Augusto até ao século IIId. C., aconselhamos a leitura da tese para obtenção do grau PhD de J. Robert,
Studies in the legionary centurionate, Durham University, Durham, 1992: os capítulos I a V abordam as trajectórias de
uma série de centuriões ao longo da dinastia Júlio-Cláudia, dos Flávios, dos Antoninos e durante vários reinados já no
século III (cf. pp. 4-224; conclusões: pp. 225-228). Também de interesse se reveste o pequeno livro de R. D’Amato,
Roman Centurions 31 BC-AD 500. The Classical and Late Empire, Oxford, 2012, pp. 11-14.
747
748
Sobre os primipilares, remetemos para os trabalhos de B. Dobson, «The Significance of the Centurion and Primipilis
in the Roman Army», Aufstieg und Niedergang der römischen Welt,. II.1 (1974), pp. 392-434; Die Primipilares.
Entwicklung und Bedeutung. Laufbahnen und Persönlichkeiten eine römischen Offizierranges, Bona/Colónia,
1978;«The Primipilares in Army and Society», in G. Alfoldy, B. Dobson e W. Eck (eds), Gedenkschrift E. Birley,
Estugarda, 2000, pp. 139-152.
284
reuniam condições para aceder às procuratelas ducenárias e, com um bocado de sorte,
podiam chegar às grandes prefeituras.
Para os que pertencessem ao ordo equestre, o posto de centurião ex equite romano
terá sido a sua principal motivação para abraçarem a carreira das armas, que deste
modo podiam obter o emblemático cepo de vinha (vitis)749, já que as milícias equestres
ofereciam limitado número de postos disponíveis no exército, processo que culminava,
numa primeira fase, somente nas procuratelas sexagenárias. Consequentemente, a par
das elites municipais, o exército romano contribuiu para a renovação da ordem
equestre. Entre os reinados de Adriano e Cómodo, do mesmo saiu cerca de 20% dos
procuradores ducenarii.
749
Sobre a vitis o seu simbolismo militar e social, veja-se P. Cosme, «Le cep de vigne du centurion, signe d’appartenance
à une élite?», in M. Cébeillac-Gervasoni e L. Lamoine (eds.), Actes du Colloque Les élites et leurs facettes. Les élites
locales dans le monde hellénistique et romain, Roma/Clermont-Ferrand, 2003, pp. 339-348.
750
Études sur le combat, 1903, p. 16 e 79.
751
«Heeresreglement», Classical Philology XXXI, 1946, p. 217ss.; «Rekrutenausbildung», ibidem, XLI (1948), p.
148ss; XLIII, 1948, pp. 157-173; «Heeresdiziplin», Klio XXVIII (1934), p. 297ss.
752
«The training Grounds of Roman cavalry», Archaeological Journal CXXV (1968), pp. 73-100; e Aufstieg und
Niedergang der römischen Welt, II.I,(1974), pp. 299-338.
753
Untersuchungen zur militärischen Ausbildung im republikanischen und Kaiserzeitlichen Rom, Wehr-wiss. Forsch.
Abt. Militärgesch. Stud, 35, Boppard-am-Rhein, 1991.
285
De facto, há que não negligenciar a vertente do exercício 754, que explica, em grande
parte, os êxitos obtidos pelo exército romano. Sob a óptica dos Antigos, a arte da guerra
entendia-se realmente como uma ciência, uma «disciplina», que se ensinava e
aprendia, à semelhança das matemáticas ou da literatura. Em latim, para se designar
esta actividade, há dois vocábulos, exercitium e exercitatio. No Thesaurus linguae
latinae, uma extensão compilação onde se inventariaram todas as referências aos
autores conhecidos, cada um destes dois termos ocupa quatro colunas compactas 755:
isto mostra bem a importância do assunto e torna ainda mais surpreendente a falta de
curiosidade dos modernos em explorá-lo. Não resta a menor dúvida que os Romanos
atribuíam um enorme valor ao treino. Varrão (De ling. lat. V, 87: exercitus quod
exercitando fit melior), nas suas pesquisas etimológicas, não hesitou em inverter aquilo
que nos parece a ordem normal, afirmando que o substantivo «exército» (exercitus)
derivava do verbo «exercer» (exercito). Cícero, por seu turno, confirmou esta teoria:
«Vês […] qual é, entre nós, o sentido da palavra “exército” […]; [e] que dizer do treino
das legiões? […] Alinhai um soldado corajoso mas não treinado e ele terá o ar de uma
mulher» (Disp. Tusc., 2.16.37).
Sem tencionarmos aqui apresentar uma lista exaustiva dos textos literários ou
epigráficos que se referem a esta questão, podemos, ainda assim, citar alguns autores
que fizeram mais do que aludir somente a tal actividade. Onosandro (IX-X), em
meados do século I da nossa era, lembra aos generais os seus deveres na matéria. Pouco
depois, um oficial judeu que foi vencido por Vespasiano e por Tito, Flávio Josefo (Bell.
Iud. II, 20,7 [577]; III, 5, 1 [72-75]), explana o seu desaire ao salientar a eficácia que tal
prática conferia às legiões. Quanto a Tácito, discorreu amiúde sobre o exercício nos
seus escritos.
Mas é no reinado de Adriano que encontramos mais informações sobre este assunto.
O próprio imperador dava grande relevância ao exercício (Díon Cássio, Hist. rom. 69.9;
Hist. August. Adriano, 10.2, e 26.2). A sua atitude permitiu-lhe certificar-se da
obediência dos quadros do exército, o qual terá criticado o princeps por uma clara
ausência de ardor ofensivo ou, até, por um certo «pacifismo».
O certo é que Adriano se deslocou pessoalmente ao Norte de África, com o intento
manifesto de presidir às manobras do exército, e nos discursos proferidos nos meses de
Junho e Julho de 128, que se celebrizaram, 756 ele mostra o interesse que nutria pelo
exercitatio: primeiramente, o imperador dirigiu-se aos soldados da cohors II
Hispanorum, durante a segunda quinzena de Junho, antes do discurso que proferiu, no
dia 1 de Julho, diante da IIIªa legião Augusta, em Lambaesis; a seguir, Adriano fez
uma adlocutio em Zarai, no dia 7, e, entre 8 de 14 de Julho, outras duas, diante da ala I
Pannoniarum e da cohors VI Commagenorum, entre 8 e 14 de Julho.
As inscrições achadas em Lambese 757 (Líbia), a partir de 1851, representam o único
testemunho epigráfico transcrevendo os textos dos discursos que Adriano proferiu às
tropas do seu exército de África. Contrariamente às adlocutiones inseridas nas obras
históricas antigas, que foram quase sempre reescritas pelos seus autores, aqui pode-se
ler as palavras que Adriano realmente proferiu às suas tropas. Embora o exercito do
Alto Império se caracterizasse por uma hierarquia fundamentada no estatuto jurídico
dos soldados, os discursos do princeps sublinharam mais a distinção entre os soldados
de infantaria e de cavalaria do que na diferenciação entre legionários e auxiliares, isto
porque neles se colocou em primeiro plano as questões de técnica militar. De facto,
Adriano não esperava o mesmo em relação aos infantes e cavaleiros. Nas suas palavras,
ele insistiu muito nos trabalhos empreendidos pelos infantes, possivelmente
legionários, que punham à prova as suas capacidades de adaptação ao terreno.
754
Y. Le Bohec, «Le pseudo “camp des auxiliaries” à Lambèse», Cahiers du groupe de recherches sur l’armée romaine
et les provinces, I (1977), pp. 71-85, est. XLV-XLVII.
755
Thesaurus linguae latinae, V, 2, 1938, cols. 1379-1383.
756
Cf. M. Le Glay, Akten des 11. Internationalen Limeskongresses, Budapeste, 1977, pp. 545-558.
757
Y. Le Bohec (ed.), Les discours d’Hadrien à l’armée d’Afrique. Exercitatio, Paris, 2003; M. A. Speidel, Emperor
Hadrian’s speeches to the African Army – a new Text, Mogúncia (Mainz), 2006.
286
A construção de um acampamento ou de um forte supunha esforços contínuos e
regulares. Na altura em que Adriano visitou o seu exército em África, este tinha acabo
de participar em grandes obras: a IIIª legião Augusta só se encontrava instalada em
Lambaesis desde 115-120; edificara-se um primeiro acampamento no ano 81, com 148
m por 120, certamente para acolher uma coorte destacada da referida legião, então em
Theveste. Um outro, chamado «Grande Acampamento» foi construído entre 115 e 120,
para albergar toda a legião, o que implicou uma área bem maior, medindo 420 m por
500.
Para além do conhecido interesse de Adriano pela arte equestre, o treino dos
cavaleiros diferia do dos infantes, na medida em que a cavalaria requeria um nível
superior de tecnicidade. Muitos estudiosos modernos repisaram o facto de que a
ausência de estribos teria limitado grandemente a eficácia das tropas montadas da
Antiguidade. Na realidade, porém, tudo indica que os cavaleiros eram bem capazes de
realizar cargas (contra inimigos que também estavam desprovidos de estribos). No
entanto, o cavaleiro tinha de ser ajudado para subir para o dorso do equídeo, uma vez
que tinha um pesado equipamento rondando os 20 kg, mesmo com montadas que,
apesar de pequenas, eram robustas. Este treino mais longo que os cavaleiros recebiam
dispensava-os de certas corveias que incumbiam aos soldados apeados. Por esta razão,
Adriano terá insistido mais no acondicionamento psicológico dos infantes mediante a
frugalidade, a rapidez e a energia.
A relevância dos efectivos de cavalaria em África e o lugar essencial que ela ocupou
nos discursos adriânicos são explicáveis pela própria natureza do terreno: o baixo
número de tropas (c. 12 000 homens) comparativamente ao espaço a controlar exigia
missões de reconhecimento e vigilância a cavalo. Quanto a Marcus Calventius Viator,
então tribuno dos equites singulares Augusti, talvez tenha acompanhado o imperador
na jornada africana, e se tal aconteceu, aconselhou o princeps no recrutamento dos
melhores cavaleiros auxiliares.
Igualmente no Norte de África, os óstracos de Bu Njem/Gholaia 758 revelam o papel
preponderante do exercício na vida dos soldados, embora neste caso as fontes se
relacionem com uma guarnição com efectivos muito reduzidos. Os quintanarii citados
no relatório diário contido no ostracon nº 22 correspondiam a militares que se estavam
a treinar, sendo assim designados em função da frequência com que se entregavam ao
exercício - 5 dias -, perfazendo 29 homens num total de 57.
Um dos generais de Adriano, Arriano (Périplo do Ponto Euxino), ao efectuar uma
viagem de inspecção às guarnições estabelecidas em torno do mar Negro, mandou que
os soldados praticassem constantemente exercício. E um tribuno, comandando uma
unidade auxiliar de 1 000 batavos, estacionada na Panónia Inferior, gabou-se de haver
atravessado a nado o Danúbio, à cabeça dos seus homens (transportando estes os seus
equipamentos); na inscrição, ele teve o cuidado de precisar que Adriano arbitrou esta
façanha759. Ainda poderíamos citar igualmente uma passagem pouco conhecida de
Frontão (Princ. hist., VIII-IX- introdução à guerra pártica de Lúcio Vero).
Na realidade, a fonte que se reveste de maior interesse neste domínio continua a ser
Vegécio (I e II, passim), que, embora escrevendo no século IV, fornece dados úteis
sobre as épocas anteriores; ele menciona os autores de que se serviu: Catão-o-Antigo
primeiramente, depois três grandes imperadores (Augusto, Trajano e Adriano) e, por
fim, Tarruntieno Paterno e Cornélio Celso. A questão que agora se coloca é de saber por
que motivos o exercício assumiu uma importância tão grande. Para esta pergunta
avançaremos com várias respostas.
758
Entre 1967 e 1976, descobriram-se 146 óstracos, escritos em latim em meados do século III d. C., nos principia do
fortim de Bu Njem, na Líbia: a maior parte destes fragmentos de cerâmica foi achada numa zona exterior à muralha da
base militar; encontraram-se outros num entulho e no subsolo de uma estrutura edificatória que servia como «gabinete»
administrativo. Para o estudo deste valioso acervo documental, consulte-se a monografia de R. Marichal, Les ostraca de
Bu Njem, Tripoli, 1992.
759
CIL III 3676.
287
Funções militares e políticas do exercício
760
G. Goetz, Corpus gloss. lat., II, 51, 2.
761
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, p. 113.
288
Os oficiais deviam participar no exercício. Para se compreender o alcance desta
obrigação, cabe explicar o que era a virtus, palavra que frequentemente se traduz de
maneira incorrecta por «coragem». A virtus significava aquilo que caracterizava a
essência do homem (vir-tus; vir deu origem a «viril»), isto é, servir o Estado sob os
seus dois aspectos complementares, o serviço civil (a ocupação dos cargos da
magistratura) e o serviço militar (postos de comando); para se fazer carreira, era
preciso demonstrar que se possuía esta qualidade: assim, um nobre romano deveria
exercer a questura, a edilidade, o tribunato da plebe, a pretura e o consulado, mas não
só: ele teria de provar igualmente as suas capacidades no exército.
A relevância dada ao exercício atesta-se ao longo da história romana, evidenciando-se
desde os tempos republicanos. Plutarco (Vida de Pompeio, 12.4-5) conta que Pompeio,
que se encontrava no Oriente, resolveu dedicar-se à equitação durante o cerco de Petra;
quando, a dada altura, chegaram mensageiros com lanças adornadas com louros, viu-se
de imediato que eram portadores de boas notícias; no entanto, o imperator fê-los
esperar, continuando com as suas evoluções equestres, lembrando desta forma que o
exercício estava acima de toda e qualquer outra exigência; foi, então, necessário que os
seus soldados insistissem junto dele para que Pompeio interrompesse a sua actividade,
altura em que lhe comunicaram o suicídio de Mitridates e, consequentemente, que
obtivera uma vitória. Décadas mais tarde, Tibério quis mostrar a Augusto que este
erradamente lhe atribuía ambições excessivas: ora, para provar que não aspirava ao
Império, retirou-se para Rodes, onde deixou de praticar os seus treinos (Suetónio,
Tibério, 13.1); com tal atitude, procurou indicar que renunciava à virtus, pelo que se
tornava politicamente inofensivo.
No decurso do conflito civil de 68-69, Vitélio negligenciou a preparação das suas
tropas: aos olhos de Tácito (Hist. 36.1) era uma falta irreparável, que o conduziu, por
fim, ao mais absoluto fracasso. Trajano, pelo contrário, dedicou toda a atenção a estas
práticas, misturando-se até com os seus homens para dar o exemplo, o que lhe valeu
elogios (Plínio-o-Moço, Pan. XIII, 1). Adriano, o seu sucessor, ao qual atrás nos
reportámos, velou cuidadosamente pelo exercício, no intento de apaziguar a
inquietação dos senadores e dos membros da ordem equestre, que o viam como um
imperador demasiado prudente e quase «pacifista».
Já no século III, Severo Alexandre recebeu, desde tenra idade, uma educação
esmerada visando a púrpura (História Augusta, Severo Alexandre, 3.1): uma das
componentes que mais se valorizou foi a sua preparação militar. Citemos, ainda,
Maximino-o-Trácio, que terá subido ao trono imperial sobretudo (a acreditarmos em
Herodiano, 7.1.6) porque antes se revelara um exímio instrutor de recrutas.
Podia utilizar-se o exercício de maneira diferente, mas sempre obedecendo a
objectivos políticos. Após a batalha de Actium, em que derrotou as forças coligadas de
Marco António e de Cleópatra, Augusto pretendeu difundir a ideia de que o tempo da
paz havia chegado definitivamente, o que consistia, na realidade, em propaganda
política. Para manifestar esta pretensão, ele cessou de fazer os seus treinos (Suetónio,
Augusto, 83.1). Noutras circunstâncias, Tibério serviu-se igualmente desta «arma»: ao
procurar atemorizar os senadores e torná-los dóceis em relação aos seus projectos,
convidou-os a assistir às manobras da guarda pretoriana (Díon Cássio, Hist. rom.
57.24). Posto isto, ao longo de todo o Alto Império, a prática do exercício teve uma
dupla finalidade – política e militar. Eis o momento oportuno para analisarmos as
realidades que se escondiam por detrás de tal vocábulo.
Aspectos genéricos. O estabelecimento da estratégia definida pelo comando, a
aplicação das tácticas nos campos de batalha e a castrametação mostram que havia,
claramente, uma ciência militar762, da qual também fazia parte o exercício (Tácito, An.
2.55.6; 3.33.3; CIL VIII, nº 2535 = 18042; Vegécio, Epit. rei mil. I e II, passim); ela era
posta em acção pelos oficiais, com a assistência de alguns graduados que possuíam
conhecimentos técnicos específicos (por exemplo, o metator, que participava na
construção do acampamento). Como os Romanos tinham um espírito demarcadamente
762
M. Rambaud, Mél. R. Schilling, 1983, pp. 515-524 (a propósito de Júlio César).
289
jurídico, este ensino viu-se codificado; Flávio Josefo é muito assertivo quanto a este
ponto (B. J. V, 3, 4 [123-126]), e não há razões para duvidarmos dele. Com efeito,
redigiram-se regulamentos. Quanto ao treino, Adriano promulgou um certo número de
medidas legais, que ainda se mantinham em vigor no começo do século III (Díon
Cássio, Hist. rom. 69.9)763.
Engendrada e desenvolvida desde os tempos primevos da história romana, a cultura
militar veio a receber uma formulação jurídica sob Septímio Severo. Outras regras
houve que se conservaram por mais tempo: a compilação de leis reunida por Justiniano
lembra um ponto de direito permanente (Justiniano, Inst. IV, 3, 4): se um homem é
ferido por um soldado que se entrega ao exercício, num terreno de manobra (campus),
o agressor não sofre qualquer punição e é desculpado; em contrapartida, se o acidente
ocorre noutro local, imputa-se a responsabilidade ao militar, podendo o caso dar
origem a um processo judicial. Um grande princeps (ou que aspirasse a sê-lo),
independentemente do período em que vivesse, desejava que a prática do exercício
tivesse um carácter quotidiano (Flávio Josefo, B. J. III, 5, 1 [73]; História Augusta,
Maxim. 10.4).
As actividades. O étimo «exercício» abrangia actividades diversificadas. É possível
agrupá-las em duas rubricas básicas, umas efectuando-se a nível individual e outras
não. Na primeira, o objectivo era o de assegurar ao soldado romano ter superioridade
sobre o bárbaro, mesmo em combate singular e com mãos nuas. Aqui, uma vez mais,
cumpre distinguir as acções puramente físicas das que apresentavam uma natureza
militar. Os recrutas começavam, pois, por fazer ginástica (Arriano, Périplo, III, 1: G.
Goetz, Corpus gloss. latin. II, 64, 30, etc.).
Como em todos os exércitos do mundo, os tirones recebiam, antes de mais, um
treino764 incidindo na marcha, efectuando um percurso diário de cinco horas: 20 milhas
romanas (29, 44 km) em passo de marcha (5,9 km por hora), ou então 24 milhas (35,
328 km) em passo acelerado (7,1 km por hora), com o seu equipamento ou, ainda,
carregados com pesos suplementares (Frontino, Strat. IV, 1, 1; Tácito, Ann. 2.55.6;
3.33.3; 11.18.2; Aulo Gélio, Noctes Atticae, 6.3.52; Vegécio, Ep. rei mil. I, 9 e II, 33).
Levavam, então, a cabo uma espécie de «cursos de assalto» que consistiam em superar
uma série de obstáculos com todas o seu armamento e outros apetrechos. Todos os
meses realizavam (o mesmo sucedendo com os legionários já adestrados) três marchas
de cerca de 28 km cada uma, 765 carregando com um equipamento que pesaria quase 30
kg, equivalente a um saco cheio de carvão. Isto assim se fazia porque, em caso de perigo
ou de extrema urgência, era provável que tivessem de percorrer distâncias superiores a
38 km num só dia e, depois, construir um acampamento ao cair da noite, pelo que se
afigurava essencial que todos os soldados estivessem bem treinados. As primeiras vozes
de comando com as quais o recruta certamente se familizaria seriam, entre outras,
Signa inferre! («Marche!»), Certo gradu («A passo!»), Incitato gradu! («Passo
acelerado!»), Agmen torquere ad dextram ou sinistram! («Direita volver!» ou
«Esquerda volver!»).
Os tirones treinavam-se igualmente na corrida, no salto em altura e em comprimento
e em novas caminhadas, que cumpriam impreterivelmente, no fim das quais a ordem
Signa statuere! (Alto!) seria obviamente acolhida com um grande suspiro de alívio.
Quando as circunstâncias o permitiam (ou seja, fora de zonas desérticas e perto de
cursos de água), praticavam a natação (Porfirião, Horat. carm. I, 8, 8; III, 7, 25 e 12, 2).
Atrás mencionámos o caso dos mil batavos que, acompanhando o seu oficial,
atravessaram o Danúbio, transportando com eles o equipamento (mas esta proeza é
apresentada como verdadeiramente excepcional).
Já em boa forma física, o recruta passava às actividades mais profissionais, mais
militares e, essencialmente, ao manejo das armas (Flávio Josefo, B. J. III, 5, 1 [73];
Vegécio, Ep. rei mil. I, 26; II, 33). Ele aprendia a esgrima, servindo-se de um escudo de
763
J. Vendrand-Voyer, Normes civiques et métier militaire à Rome sous le Principat, Clermont-Ferrand, 1983, p. 313ss.
764
Para uma visão circunstanciada sobre o treino e a instrução militar, G. R. Watson, The Roman Soldier, pp. 54-72.
765
J. Wilkes, El ejército romano, Madrid, 1990, p. 11.
290
vime e de um gládio de madeira, a chamada rudes (cada um deles pesando o dobro da
arma real, para desenvolver a massa muscular), exercitando-se contra um poste de
madeira, o palus, que media seis pés de altura (1,77 m) (Juvenal, VI, 247; Vegécio,
Epitoma, I, 11, e II, 23), antepassado da quintana. O recruta treinava-se no palus de
manhã e à tarde, sob a supervisão de um instrutor. Vegécio oferece-nos uma certa ideia
de como este género de exercício se desenrolava de acordo com ordens específicas
(dictata):
«[O instruendo] imaginava que estava agora a atacar o rosto do adversário, a seguir ameaçando os seus
flancos, por vezes golpeando os joelhos e as pernas. Ele recuava, avançava e investia contra o oponente
imaginário. Ele aplicava toda a espécie de ataques, todas as técnicas de combate. E nesta prática, tinha de
usar de precaução, a fim de que o recruta infligisse ferimentos no seu adversário sem que, todavia, ficasse
exposto a um golpe vibrado pelo último».
Na seguinte etapa, chamada armatura, procurava-se aprimorar os instruendos nos
estilos de combate, batendo-se eles dois a dois com armas de madeira de peso normal,
mas embotadas. Eles habituavam-se igualmente a lançar o pilum contra o poste, com
uma arma de peso duplo (Plínio-o-Moço, Paneg. XIII, 1-2; Arriano, Périplo, III, 1;
Vegécio, Epit. rei mil. I, 14), além de outros tipos de dardos, bem como a disparar
flechas, e a atirar pedras. Assim, o soldado devia saber utilizar a funda e o arco. Cabe
ressalvar que esta importante parte da formação era comum não só às casernas do
exército, mas também às «escolas» (ludi) dos gladiadores. No conjunto destas
actividades individuais, a equitação ocupava o último lugar, embora não deixasse de ser
relevante: com efeito, ela não dizia respeito só aos simples cavaleiros, mas também aos
oficiais (Plutarco, Vida de Pompeio, 41.4-5; Suetónio, Augusto, 83.1; e Tibério, 13.1;
Vegécio, Epit. rei mil. I, 18).
Ao adquirir suficiente força e destreza no manuseamento do gládio, do escudo e do
pilum, o soldado passava a um segundo grau ou modalidade de exercícios. Tratava-se
de garantir aos Romanos a sua superioridade sobre o inimigo, através da constituição
de unidades articuladas; consequentemente, os legionários realizavam actividades
colectivas. Primeiramente aprendiam a cavar e tapar novamente trincheiras ou valas e a
montar acampamentos. Submetiam-se a exercícios quase intermináveis de manobras,
porque um legionário tinha de saber perfeitamente o seu lugar nas fileiras e como se
movimentar mecanicamente, sem hesitar, a fim de passar de uma formação de combate
para outra. Só desta maneira a coesão e a disciplina se tornavam automáticas,
mantendo-se os soldados firmes, mesmo sob os golpes do inimigo. Devia haver
também, como em todos os exércitos, muito Legio expedita («Em guarda!»). A
instrução era completada (após quatro longos e extenuantes meses) por grandes
manobras (ambulaturae) no terreno, com armas, bagagens e cavalaria.
Aprendiam a marchar em linhas paralelas, a transformar as colunas em filas dispostas
em formação de batalha, a cerrar as linhas ou a separá-las enquanto avançassem, e
também a organizar quadrados e semicírculos. Havia igualmente manobras cerimoniais
e outras destinadas ao render da guarda, mas conhecemos mal quais seriam
exactamente as palavras que se empregavam para transmitir as ordens. O que não
levanta dúvidas é que tais manobras, repetidas constantemente, precisavam de se
empreender mecanicamente, sem hesitações, aspecto de primacial relevância no
contexto das guerras e das campanhas.
Além de tudo isto, punham-nos a trabalhar em obras públicas (aspecto já focado num
dos capítulos precedentes), em virtude do princípio, segundo o qual carregar pedras
ajudava a fortalecer o corpo. Assim, os soldados forneciam ao imperador uma mão-de-
obra qualificada a baixo preço, o que permitia ao último manifestar o seu evergetismo,
isto é, a sua generosidade, igualmente implicando reduzidos custos. Em determinados
casos, o exército colocou apenas alguns técnicos à disposição dos civis: no principado
de Antonino-o-Pio, a cidade de Saldae (actual Bejaia, ex-Bougie), no Mauritânia
Cesariana, quis oferecer a si própria um aqueduto; como a comunidade cívica não
encontrou um engenheiro competente, acabou por se dirigir ao governador para obter
alguém que superintendesse a construção, o qual obteve do legado da legio III Augusta
um librator o veterano chamado Nonius Datus (CIL VIII, 2728 = 18122; ILS 5795). Os
291
arqueólogos descobriram as canalizações desse aqueduto, medindo 21 km de
comprimento, o que exigiu a edificação de um túnel com 428 m, situado a 86 m de
altura766.
As obras públicas pautaram-se pela sua diversidade (Tácito, Ann. 11.18.2; 16.3.2;
Suetónio, Augusto, 18.2; História Augusta, Probo, IX, 3-4). Por vezes, os soldados
efectuavam terraplenagens ou limpavam fossos. Também erigiam monumentos
destinados a exibir a prodigalidade do soberano. Alguns destes edifícios, como os arcos,
apresentavam basicamente um interesse decorativo e simbólico, enquanto outros
serviam para aumentar a satisfação ou o conforto dos habitantes de uma cidade
(teatros, anfiteatros, termas, circos). Havia ainda outros que tinham uma função
económica mais significativa: é provável, mas não garantido, que os militares
operassem nas minas e nas pedreiras, mas não se sabe ao certo se a actividade dos
mesmos se limitaria só à vigilância dos obreiros, quase todos condenados a trabalhos
forçados.
Além do mais, podiam construir mercados ou até cidades inteiras. Em 100 d. C., a
mando de Trajano, fundou-se Thamugadi (Timgad), cidade localizada a norte do
Aurés, centro urbano que terá sido inteiramente realizada por mão-de-obra militar.
Thamugadi767 construiu-se sobre solo virgem; o núcleo primitivo desenhava um
quadrado com 350 m de lado, delimitado por um recinto amuralhado provido de
quatro portas e com ângulos arredondados. Ruas perpendiculares demarcavam
quarteirões (insulae) de configuração regular. Ao contrário do que alguns estudiosos
supuseram, esta planimetria não reproduz o de uma fortaleza: Thamugadi consistia,
pelo contrário, numa colónia criada para valorizar economicamente a parte meridional
das Altas Planícies do Constantinense. Salta bem à vista que os soldados eram capazes
de construir outras coisas afora acampamentos ou fortes, contribuindo também para
erguer templos e santuários.
Mas não assimilemos o exército romano a uma espécie de grande «empresa de obras
públicas» ao serviço de colectividades locais. As obras em que as tropas participavam
eram, acima de tudo, destinadas a satisfazer as suas próprias necessidades: veja-se, por
exemplo, o caso das termas que se erigiram em Bu Njem para utilização exclusiva dos
soldados acantonados «nestas colinas sempre arenosas onde sopra caprichosamente o
vento do sul, para que os corpos possam repousar das chamas ardentes do sol, ao
nadarem tranquilamente», de acordo com os versos do centurião Quintus Avidius
Quintianus768. Algo de similar acontecia com os anfiteatros erigidos perto de fortalezas,
como a de Aquincum, na Panónia, ou em Isca Silorum (Caerleon), na Britânia.
Os altos mandos confiavam também aos soldados a organização de todos os elementos
dos seus diferentes sistemas defensivos. Várias destas tarefas possuíam também
implicações económicas muito positivas: era preciso traçar estradas, estabelecer
marcos de delimitação entre tribos, efectuar operações de cadastragem ou de
centuriação. Estes empreendimentos obedeciam sobretudo a motivos de ordem militar,
já que se pretendia facilitar as movimentações das tropas e aperfeiçoar as modalidades
de vigilância de potenciais antagonistas. Todos estes trabalhos faziam parte integrante
do «exercício», e saber levá-los a cabo de maneira bem-sucedida manifestava que as
tropas eram detentoras de «disciplina». Frontino (Strat. IV, 2, 1) enfatizou a ideia de
que os legionários teriam de mostrar a sua capacidade em construírem pontes muito
mais rapidamente do que os bárbaros. Esta rapidez e este alto nível de tecnicidade
visavam revelar a inferioridade dos inimigos, o que incluía uma componente
psicológica, tentando desencorajá-los a todo o custo.
Buscava-se, de igual modo, sedentarizar os semi-nómadas, que sempre haviam
representado uma fonte de problemas e atritos. A pacificação dos indígenas, o
desenvolvimento da agricultura e a instalação de uma boa rede viária acarretavam
lucros a toda uma província. Por fim, cabia aos soldados de infantaria, protegidos por
766
CIL VIII, 2728 = 18122; Y. Le Bohec, La IIIe Légion Auguste, p. 378.
767
Cf. J. Lassus, Timgad, 1969.
768
J. N. Adams, «The poets of Bu Njem: Language, culture, and the centurionate», JRS 89 (1999), pp. 109-134.
292
unidades de cavaleiros, erigir torres, fortes, terrenos para a prática do exercício e as
defesas lineares769. Pseudo-Higino ainda foi mais longe: recomendava que se escavasse
um fosso à volta do acampamento de marcha, mesmo quando o exército se encontrava
em território aliado «para o bem da disciplina» (XLIX: causa disciplinae).
A participação de soldados nestas diferentes missões atesta-se num tipo de fontes
amplamente disseminadas por todo o Império, os chamados «tijolos carimbados» 770. A
oficina que havia dentro de um acampamento ou de uma fortaleza, em latim fabrica,
servia, efectivamente, como tijolaria. Antes de se cozer a argila, imprimia-se uma
marca, ao jeito de um selo ou carimbo: nessa legenda, indicava-se, por meio de
abreviaturas, o nome da unidade em questão, e, por vezes, o do responsável pelo
fabrico, do comandante ou do magister fabricae. Em Mirebeau, na Côte-d’Or (França),
achou-se um tijolo contendo uma inscrição relativamente longa e mais explícita do que
o usual771:
LEG. VIII AVG. LAPPIO LEG. = Leg[io] VIII Aug[usta], Lappio leg[ato Augusti propraetore].
Com base nesta legenda, depreendeu-se que a VIIIª legião Augusta, que se encontrava
normalmente estacionada em Argentoratum (Estrasburgo), teria enviado um
destacamento a mais de 200 km de distância das suas bases (ou talvez, o que parece
mais crível, se tenha deslocado a Mirebeau, aqui ficando por algum tempo), o qual
construiu algum género de edificação, pelo menos aparentemente um acampamento e
um campus de treino. Por outro lado, conhece-se bem o legado imperial Aulus Bucius
Lappius Maximus, que exerceu vários postos e cargos sob os Flávios. Em determinados
casos, dada a plasticidade do adobe, marcavam-se nos tijolos nomes diferentes de cada
vez772: os produtos obtidos desta forma serviriam para aludir à localização de um
aposento, ao sítio onde um soldado depunha as suas armas, entre outras informações.
Contrariamente à ginástica e à esgrima, estes trabalhos habituavam os homens a agir
colectivamente. Aqui se toca no essencial: o maior propósito, de facto, radicava em
ensinar os soldados a manobrar adequadamente no seio de unidades organizadas: cada
um devia saber qual o seu lugar numa formação de combate, além de onde, quando e
como se movimentaria sem afectar a coesão da sua centúria (Onosandro, X, 1-6; Flávio
Josefo, B. J. III, 5, 1 [74-75]; Plínio-o-Moço, Paneg. XIII; Tácito, Hist. 2.55.6; Vegécio,
Epit. rei mil. I, 11-13, e III, passim; História Augusta, Max. VI, 2).
Os oficiais também procediam a simulacros de batalhas campais, envolvendo infantes
contra infantes, ou infantes contra cavaleiros. A própria marinha não escapava a este
imperativo: periodicamente, agrupavam-se e preparavam-se as galés para a guerra de
esquadras.
O enquadramento do exercício. Revestindo-se esta actividade de suma
importância, ela não se confiava aleatoriamente a qualquer um. Os quadros teriam de
controlar regularmente o nível de preparação das tropas. Todas as manhãs, realizava-se
uma inspecção; cada centurião era responsável pela sua unidade; um tribuno, por seu
lado, chefiaria duas coortes, e o legado, uma legião. Ora todo este processo originava
uma série de relatórios. Subsistiram também testemunhos documentais de verificações
excepcionais. Por vezes, era um general que efectuava um périplo pelas guarnições de
um sector: durante o reinado de Adriano, Arriano levou a cabo uma dessas fiscalizações
em diversos locais em torno do mar Negro. Nesta ocasião, ele certamente examinava as
condições em que estavam as fortificações, contabilizava as reservas de víveres e
verificava as listas dos efectivos. Lembremos, a propósito, que o próprio Adriano se
deslocou pessoalmente à Panónia e, igualmente em 128, ao Norte de África, fazendo o
imperador estas viagens com o intuito expresso de se certificar que o campus (terreno
de manobra) era frequentado assiduamente pelos milites.
Outras circunstâncias, também irregulares, permitiam activar medidas de controlo
suplementares: num papiro (que estudaremos no subsequente capítulo) descoberto em
769
CIL VIII, 2532 = 18042, Bl.
770
J. Fitz, Oikumene, I, 1976, pp. 215-224, e Acta Arch. Slov, XXVIII, 1977, pp. 393-397; Y. Le Bohec, Epigraphica,
XLIII, 1981, pp. 127-160.
771
AE 1973, 359.
772
AE 1975,729.
293
Dura Europos, vê-se que era costume uma parada acompanhar a altura em que se
pagavam os soldos.
Situados abaixo dos quadros superiores (legado-tribunos), havia certos graduados
especializados na formação militar dos recrutas, alguns tendo o posto de centuriões.
Normalmente, a presidir a esta actividade, estava um evocatus condecorado, isto
quando a unidade tivesse um. Era ele que exercia a função de instrutor principal. O
imperador Trajano, por exemplo, não desdenhava entregar-se a esta actividade, o que
nos diz muito da importância da missão. Quando um princeps incapaz ou um legado
negligente abandonava tal papel a um indivíduo que não estivesse à altura da tarefa,
«um pequeno mestre grego», segundo a expressão escarnecedora de Plínio-o-Moço
(Pan. XIII, 5), logo as pessoas mais sérias murmuravam. Pior ainda se a mulher de um
general intervinha em tão séria matéria, como o fez Plancina, esposa de Pisão, na altura
em que este servia como comandante no Oriente, então dava-se um verdadeiro
escândalo (Tácito, Ann. 2.55.6; 3. 33.3: recorde-se que a sociedade romana se
caracterizava por uma certa misoginia.
O terreno para o exercício, o campus, ficava ao cuidado de um graduado portador do
título de campidoctor773, e de um seu subordinado, o doctor cohortis; o radical doct-
mostra nitidamente que tais indivíduos tinham aprendido uma ciência, na qual se
tornaram proficientes. Ao serem homens versados nesse domínio, deviam transmitir o
melhor do seu saber. As responsabilidades de um campidoctor permitiam que
dispusesse de um adjunto, que o secundava e possivelmente o sucederia na função de
instrutor, o optio campi. Havia outras actividades que requeriam a intervenção de
competências particulares: a esgrima estava dependente do talento e da vocação
didáctica de um doctor armorum; aqui, também, o título de doctor não se empregou
por mero acaso.
A existência de um discens armaturarum, «formador de instrutores» revela, em certa
medida, o facto de tal arte necessitar de uma aprendizagem e de um aperfeiçoamento
constantes. Quanto à cavalaria e às suas evoluções, requeriam igualmente a presença de
instrutores competentes, o exercitator e o magister campi. Posto isto, concluímos que
havia toda uma hierarquia que se destinava a ministrar uma adequada e rigorosa
preparação militar, tanto para os tirones, como para os soldados que já tivessem
passado pela recruta.
Os locais. Nos primórdios da história de Roma, os soldados preparavam-se para a
guerra no Campo de Marte (Campus Martius). À medida que aumentaram as
conquistas, e com a integração de jovens habitando em regiões cada vez mais distantes
da Urbs, afigurou-se essencial encontrar novas soluções e organizar a instrução militar
tanto nas cidades de recrutamento como junto dos acampamentos. Sob o Alto-Império,
escolherem-se locais diferentes, em função do programa que se desejava fazer executar.
Desde logo, logicamente, parte do treino efectuava-se ao ar livre, em plena natureza,
nomeadamente as marchas e outras manobras. Em segundo lugar, os soldados
utilizavam recintos/edifícios que não tinham sido primariamente concebidos para esse
fim, haja em vista os anfiteatros. A arqueologia trouxe à tona vestígios de arenas nas
proximidades de fortes; alguns especialistas explicaram este fenómeno, sublinhando o
gosto que militares nutriam pelos espectáculos violentos. Mas cabe adicionar outro
factor: o treino dos milites aproximava-se da gladiatura em vários aspectos e a prática
da esgrima podia decorrer perfeitamente nos anfiteatros que, noutras alturas, eram
palco dos munera, eventos que envolviam caçadas (venationes), execuções de
condenados e, ao longo da tarde, duelos de gladiadores.
Porém, e este facto evidencia também a relevância do exercício para os Romanos,
construíram-se estruturas específicas: sabemos da existência de basílicas projectadas
para o treino dos militares (basilicae exercitatoriae)774. Em geral, uma basílica ou
«pórtico real» era constituída por uma vasta sala protegida por um tecto; a sua planta,
773
R. Cowan, Roman Legionary AD 69-161, Oxford, 2013, pp. 16-18 («Campidoctores»).
774
A este respeito, todavia, nada prova que a inscrição CIL III, 6025 (ILS, 2615) se reporte a uma basilica exercitatoria,
embora nela se evoque uma basílica edificada em 140, em Syene (Egipto) pela Iª Coorte dos Cilícios.
294
assaz simples, traduzia-se num rectângulo dotado de uma porta, separado em três
naves por uma colunata dupla e englobando, às vezes, uma ábside (compartimento em
forma de semicírculo) numa das suas extremidades. Frequentemente, os Romanos
utilizaram estes monumentos para se abrigar da chuva ou do calor estival.
Descobriram-se várias basilicas exercitatoriae na Britânia: na fortaleza de Exeter, em
Inchtuthil (Escócia),775 num forte datando do período Flaviano, em Netherby776 (222 d.
C.) e em Lanchester777 (sob a égide de Gordiano III, no século III). Com base numa
fonte epigráfica, existia também uma basílica deste género em Potaissa, na Dácia
(actual Turda, Roménia)778.
Algumas delas terão sido construídas no próprio interior dos acampamentos, e outras
no exterior, mas não temos a certeza: a pedra com a inscrição achada na Britânia
remontando ao reinado de Gordiano III, exumou-se «a leste do forte de Lanchester»;
no entanto, ela pode haver sido mudada de local. Os historiadores entendem
acertadamente que estas basílicas consistiam em «salas de armas» onde se praticava
sobretudo a esgrima; ainda assim, a de Netherby, acima mencionada, albergava
também um picadeiro, uma vez que aparece qualificada como baselica [sic] equestris
exercitatoria.
Seja como for, o terreno de manobra por excelência correspondia, como dissemos, ao
campus. M. Rostovtzeff, ao estabelecer uma analogia com a basilica exercitatoria,
inventou a expressão de campus exercitatorius, que depressa outros estudiosos
também adoptaram. Mas, bem vistas as coisas, trata-se de um pleonasmo. É certo que
campus se pode ter significados diferentes (Thesaurus linguae latinae, III, 1912, col.
212ss): globalmente, designa uma planura; por derivação aplica-se a um lugar público,
a um campo de batalha ou a um recinto para exercício. Caso se empregue o vocábulo
num contexto militar (Plínio-o-Moço, Pan. XIII, 1 – meditatio campestres; Hist.
Augusta, Max. 3.1; Justiniano, Inst. IV, 3, 4), só a última interpretação é aceitável. A
este respeito, um trecho do manual de Justiniano mostra indiscutivelmente que era o
sítio normal para o desenrolar do treino das tropas. Os arqueólogos que têm
prospeccionado a topografia de Roma acreditam que o campus das coortes pretorianas
e urbanae se localizaria a oeste da caserna construída durante o principado de Tibério.
Como praticamente nada se encontrou neste lugar, eles supõem que tal terreno para
actividades desportivas devia consistir num recinto em terra batida.
O único campus que se conhece relativamente bem, o de Lambaesis (est. X, 13), foi
estudado em pormenor graças às escavações aí feitas 779. Além disso, no discurso que o
imperador Adriano pronunciou em 128, neste mesmo sítio, afirma-se que se trata de
um campus (CIL VIII, nº 2532 = 18042). Este apresenta a forma de um quadrado com
200 m de lado, cingido por um muro de alvenaria tendo uma espessura de 60 cm, no
qual se rasgavam duas entradas; os ângulos são arredondados e catorze semi-luas
flanqueiam a área: as últimas talvez servissem de bebedoiros para cavalos ou de lavabos
para os soldados, já que foram descobertos restos de cimento hidráulico. Depois de
múltiplas sondagens, concluiu-se que nada se erigiu no seu interior, excepto um
elemento: no centro do recinto havia uma tribuna (tribunale), a partir da qual os
oficiais podiam observar as evoluções desenvolvidas pelas tropas de infantaria ou de
cavalaria e transmitir-lhes ordens. Este conjunto de maçonaria (composto por um
pedestal de base quadrangular com 4, 55 m de lado e 2 de altura) foi transformado em
monumento comemorativo evocando a visita de Adriano em 128: na estrutura, fixaram-
se placas onde se gravou o texto dos discursos do imperador e também se ergueu uma
775
Journal of Roman Studies, L (1960), p. 213.
776
R. G. Colingwood e R. P. Wright (eds.), The Roman Inscriptions of Britain, I, Inscriptions on Stone, Oxford, 1965, nº
978 (ILS, 2619).
777
Ibidem, nº 1091 (ILS, 2620; CIL, VII, 445).
778
AE 1971, 364. O texto data também do reinado de Gordiano III.
779
Inicialmente, os arqueólogos pensaram que se trataria de um espaço destinado às tropas auxiliares, mas, não muito
depois, vieram a descobrir que era um campus.
295
coluna para abrilhantá-la,780 com 1,85 m de diâmetro e 9,25 m de altura, provavelmente
sobrepujada por uma estátua do imperador.
Em redor, um espaço lajeado bastante estreito cedia rapidamente o lugar à terra
argilosa. Ao socorremo-nos da documentação epigráfica, topamos com outros terrenos
para exercício, mas não há a mínima dúvida de que cada forte romano possuiria um.
Todavia, estes recintos, em razão da sua ligeireza e perecibilidade (solos de terra e
muros pouco espessos), desapareceram ou escaparam à atenção dos investigadores. As
inscrições mencionam um campus em Theveste (Tebessa), igualmente no Norte de
África, pertencente ao período Flávio 781, bem como outros três no Oriente. No ano 183,
em Palmira, um decurião de numerus, a mando do centurião, comandante da unidade,
e do legado, fez construir, empregando os seus homens, um novo campus com a sua
respectiva tribuna782.
Em Dura Europos, por volta de 208-209, uma coorte erigiu um templo, após ter
ampliado a superfície do campus783. Mais tarde, em 288, em Colybrassos, na Cilícia,
uma legião arrasou uma colina para dispor de um espaço apropriado para a prática de
exercício784.
O corpus epigráfico ajuda-nos a definir algumas características típicas de um campus:
primeiramente, era preciso que ele estivesse instalado num terreno plano; depois,
podia ver-se aumentado se, por exemplo, a unidade que o utilizasse recebesse mais
efectivos. Salientemos também que um forte podia ter vários recintos para treino: em
Palmira, os soldados criaram, em determinado momento, «um novo campus», o que
pressupõe a existência de outro mais antigo. Por último, o campus estava sob a
protecção de certas divindades. Em contrapartida, ainda não se descortinaram os
elementos caracterizadores e originais de eventuais terrenos de exercício para a
cavalaria785.
Estes espaços, amplos e desimpedidos, serviam para outras finalidades, nem sempre
em estreita relação com a instrução militar, designadamente para a organização de
desfiles. Também representavam o cenário ideal para reuniões. É sobejamente sabido
que a civilização romana atribuía grande importância ao verbo, e os militares não
escapavam à regra: o momento em que um imperador se dirigia em voz alta às suas
tropas, a chamada cerimónia do adlocutio, tinha toda a pertinência que ocorresse no
terreno para a prática do exercício; chegaram até nós moedas ostentando a legenda
ADLOCVTIO, como as cunhadas no reinado de Adriano entre os anos de 134 e 138 786;
refira-se ainda que são numerosos os textos literários que descrevem este género de
celebração (por exemplo, o discurso de Adriano em Lambaesis; Herodiano, II, 10, 1; VI,
9, 3; VII, 8, 3), o qual se encontra igualmente representado nos relevos da famosa
Coluna de Trajano e da Coluna Aureliana. Finalmente, era para o campus que
confluíam os soldados numa altura delicada, quando tencionavam debater algum
assunto premente (História Augusta, Probo, X, 4).
780
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, pp. 120-121.
781
S. Gsell et al (eds.), Inscriptions Latines de l’Algérie, I, Argel, 1922, nº 3596; Y. Le Bohec, La IIIe Légion Auguste, p.
362.
782
AE 1933, 214; Y. Le Bohec, «Le pseudo “camp des auxiliaires à Lambèse», Cahiers du groupe de recherches sur
L’armée romaine et les provinces, I (1977), p. 78.
783
AE 1931, 113.
784
AE 1972, 636.
785
R. W. Davies, «The training Grounds of Roman cavalry», Archaeological Journal, CXXV (1968), pp. 73-100.
786
H. Mattingly e E. A. Sydenham, The Roman Imperial Coinage, II, 1926, p. 331ss, e p. 436, nº 739.
296
Quando estudamos as vertentes do exercício e da disciplina, damo-nos conta que a
situação dependia do carácter e da atitude de cada oficial e, sobretudo, de cada
imperador. Aqui apenas afloramos os tipos de comportamento que demonstraram os
soberanos face ao treino e, por extensão, aos soldados. Dado que o Império era uma
monarquia militar, e que o seu poder dependia do apoio ou da boa vontade do exército,
encontraremos nas seguintes linhas as principais clivagens cronológicas da história em
geral.
Assim, não causa estranheza constatar que o período dos Júlio-Cláudios começou bem
e acabou mal. Augusto passou por bom general (Suetónio, Augusto, 24.2, e 25. 1) e
Tibério ainda mais, de acordo com Tácito (Ann. 1.4.3 e 12.5; comentário que ganha
mais valor se nos lembrarmos da pouca simpatia que tal autor alimentava por esse
princeps). Quanto a Cláudio (Aurélio Victor, De Caes. IV, 2), outrora objecto de
múltiplas críticas negativas, não teve direito a elogios; no entanto, ele esforçou-se para
quer a disciplina reinasse nos acampamentos, além de saber rodear-se de oficiais
enérgicos como Corbulão (Corbulo; Tácito, Ann. 11.19). Pelo contrário, Nero revelou-se
incapaz de manter a ordem no seio das forças armadas (Tácito, Hist. 1. 5.3).
Os historiadores da Antiguidade acentuaram muito a tónica da disciplina em relação à
crise de 68-69: Nero, demasiado medíocre, não reunia condições para se manter no
trono imperial. Galba, que o sucedeu, mostrou-se tão estritamente severo que isto
significou a causa da sua perdição (Tácito, Hist. 1.5.3; Suetónio, Galba, 6.3; Díon
Cássio, Hist. rom. 64.3). No que respeita a Vitélio, também fracassou rotundamente,
mas devido à sua ignorância excessiva das realidades militares e à sua frouxidão
(Tácito, Hist. 3.56.3: Vitélio era um ignarus militiae). Cerialis (Tácito, Hist. 5.21.5), por
seu turno, representa um caso digno de interesse: ele descurou a disciplina por pensar
que não precisava dela, já que beneficiava da protecção particular da deusa Fortuna.
Mas este auxílio revelou-se insuficiente: a Fortuna nada pôde fazer sem a Disciplina,
outra divindade, e a empresa resultou num fracasso, para grande vergonha deste
general.
Depois do período atribulado e sangrento de 68-69 d. C., assiste-se ao retorno da
ordem no Império em geral e do controlo do exército em particular, o que foi obra do
enérgico Vespasiano (Suetónio, Vespasiano, 8.3-5). No entanto, sob os Flávios, veio a
repetir-se, em certa medida, o que acontecera na dinastia Júlio-Cláudia: a dinastia, que
ascendera ao poder supremo graças a uma figura provida de autoridade, acabou por
soçobrar devido à fraqueza do seu derradeiro representante, Domiciano; este (Plínio-o-
Moço, Paneg. IV, 2), de facto, não pôde ou não tencionou manter a disciplina, além de
não se esforçar por vigiar a prática do exercício. Esta insuficiência, que culminou no seu
desaire e subsequente assassinato, serviu para que Plínio-o-Moço traçasse um
grandiloquente retrato antitético de Trajano (Pan. IX, 3; XIII; XVIII; ponto de vista
partilhado por Frontão, Princ. hist. VIII-IX), o imperador-soldado e o verdadeiro
fundador da dinastia Antonina, se pusermos de parte o fugaz Nerva.
A personalidade de Adriano presta-se a mais discussões: é certo, como atrás se disse,
ele tinha ocupado vários cargos militares antes de se tornar imperador e já nesta
qualidade, evidenciou muito interesse pelo treino dos seus soldados; enviou, inclusive,
Arriano numa viagem de inspecção às guarnições romanas aboletadas em redor do
Ponto, e o próprio imperador, como vimos, assistiu a manobras no Norte de África.
Contudo, Frontão (Princ. hist. VIII-IX) criticou-o pelas suas lacunas no domínio da
disciplina: não há dúvida que Adriano foi mais filósofo do que propriamente
imperador. Também se pode pensar que, à sua política militar (quando cotejada com a
de Trajano) faltava dinamismo, parecendo ter uma postura excessivamente defensiva:
de facto, o imperador terá patenteado, pelo menos aos olhos de alguns dos seus
generais, um lamentável desconhecimento da «disciplina», a arte do combate, que
compreendia igualmente uma estratégia razoável, logo ofensiva.
Mais tarde, durante a guerra civil que eclodiu em 193, vemos reaparecer a importância
da autoridade, o que lembra a crise de 68-69. Pertinax tinha a fama de autoritário
(História Augusta, Pertinax, III, 10), e Pescénio Níger ainda seria mais (Hist. Aug.
Pescénio Niger, VII, 7 e X). No que respeita a Septímio Severo, levanta um problema
297
idêntico ao de Adriano: por um lado, reconhece-se que ele exigiu a obediência dos
soldados (Aurélio Victor, De Caes. XX, 21; História Augusta, Pesc. Ni. III, 9-12), e
Herodiano salienta que ele se preocupou com que se praticasse o exercício com
regularidade (II, 10, 8). Porém, o mesmo autor acusa-o de ter enfraquecido a disciplina
(III, 8, 5). Na realidade, esta censura mergulha as suas raízes na política de reformas
posta em prática pelo imperador «africano»: este aumentou os soldos, autorizou os
milites a viverem com as suas mulheres e os graduados a poderem formar collegia. Foi,
acima de tudo, este conjunto de novidades que assustou diversos membros da elite
dirigente. Septímio Severo viu-se admoestado pelas suas liberalidades, ao passo que de
Adriano se disse ser um princeps dotado de certo «pacifismo».
De entre os sucessores imediatos de Septímio, avulta, em primeiro lugar, a figura do
efémero Macrino (Herodiano, IV, 14, 7), que demonstrou ser mais fiel à tradição ao
afirmar que os Romanos obtinham a sua superioridade graças à disciplina. Depois
apareceu Severo Alexandre (Aurélio Victor, De Caes. XXIV, 3; História Augusta,
Severo Alexandre, LII-LIV e LXIV, 3), o último representante da dinastia, que se
mostrou enérgico, talvez demasiado na opinião das suas tropas. A seguir à morte deste
imperador, manifestou-se, em quase toda a sua gravidade, uma profunda crise da qual
se poderiam ter identificado as premissas cerca de cinquenta anos antes: o Império foi
atacado simultaneamente pelos Germanos, a norte, e pelos Persas, a leste. Avultam
algumas grandes personalidades numa série de soberanos rapidamente eliminados (o
Império era então «uma monarquia absoluta temperada pelo assassinato»). Aqueles
que se destacam, deveram a sua autoridade ao facto de permanecerem um pouco mais
de tempo no trono do que os restantes. Cabe evocar Maximino-o-Trácio: acima
referimos que ele ganhou notoriedade pelo seu talento enquanto instrutor de campus.
Acresce que passava por ser demasiado severo (Hist. Aug. Maximino, VIII, 7). No
«lote» dos imperadores que lograram manter-se um pouco mais no poder, não
obstante a tormenta conjuntural, Galieno chegou mesmo a ser qualificado de cruel para
com os soldados (Hist. Aug. Galieno, XVIII, 1): é certo que este julgamente foi
veiculado pela História Augusta, que revelou desprezo por este soberano, o qual se
invectivou pela sua política, julgada erradamente, hostil em relação ao Senado.
No conjunto de imperadores que reinaram ao longo da segunda metade do século III,
aparecem vários a que se deu o nome colectivo de «Ilíricos» 787 por causa da sua origem
geográfica, e que deixaram para a posteridade uma forte reputação como militares
eficazes e dinâmicos, ainda que incultos. Destes, os que ficaram conhecidos com oficiais
de valor, sobressaem Cláudio II (Hist. Aug. Cláudio, XI, 6ss), Aureliano (Hist. Aug.
Aureliano, VI, 2; VII, 3ss; VIII) e Probo (Aurélio Victor, De Caes. XXXVII, 2), que,
aparentemente, velaram escrupulosamente pelo respeito da disciplina e pela prática
regular do exercício.
Recentemente, diversos estudiosos concluiram que se deve matizar certos juízos
emitidos pelos autores antigos. A este respeito, haveria todo o interesse que apareçam
novos contributos sobre esta questão, que ajudem a melhor tomar em consideração as
«paixões» de cada escritor.
O exercício e as divindades788
787
A este respeito, consultem-se: E. Frézouls e H. Jouffroy (eds.), Les empereurs illyriens, Estrasburgo, 1998; G. Brizzi,
«Anchora su Illyriciani e “Soldatenkaiser”: qualche ulteriore proposta per une messa a fuoco del problema», in G. Urso
(ed.), Dall’Adriatico al Danubio, Pisa, 2004, pp. 319-342.
788
Noutro capítulo, desenvolveremos mais aspectos sobre a vertente religiosa no seio do exército romano.
298
Se, por um lado, os imperadores desempenhavam o seu papel na prática do exercício,
os deuses, por outro, não podiam ficar indiferentes a estas actividades 789, o que
constitui fenómeno bem normal, ao tratar-se da história romana.Cumpre, desde já,
distinguir três pólos sagrados em direcção aos quais se dirigia a veneração dos
soldados. Em primeiro lugar estava a Disciplina: os Romanos tinham o hábito (à
semelhança de outras civilizações, durante a Antiguidade Pré-Clássica) de divinizar
conceitos abstractos (a Fortuna, a Honra, etc.); não admira, portanto, a existência desse
culto. Já houve especialistas que se reportaram aos laços que uniam a noção da
«disciplina» ao treino. Erigiram-se, inclusive, altares nos acampamentos (ARA
DISCIPLINAE»790), e este costume, que remonta às próprias origens históricas de
Roma, gozou então de grande longevidade.
Debrucemo-nos um pouco sobre o grupo das divindades ligadas ao campus, chamadas
campestres791. Importa, todavia, chamar à atenção para um aspecto, que escapou a bom
número de epigrafistas: este adjectivo pode também aplicar-se às potências «da
planície», neste caso não tendo assim qualquer carácter militar: é provável que tais
cultos fossem celebrados em determinadas regiões do Império. Consequentemente,
afigura-se relevante conhecer o local exacto de que procederam as inscrições que as
mencionam; o significado deste adjectivo variaria, consoante o facto de o documento
ter sido descoberto num forte, num campus ou em plena natureza. Assim, os
Campestres792 da Germânia e as Matres Campestres da Britânia793 talvez englobassem
as mesmas realidades.
Numa inscrição descoberta em Espanha atesta-se um Mars Campester, que não
suscita qualquer ambiguidade794:
«Consagração ao Mars Campester. Titus Aurelius Decimus, centurião da legio VII Gemina Felix,
praepositus da guarda de corpo [equites singulares] e, ao mesmo tempo, campidoctor, [mandou erguer
este monumento] pela saúde [pro salute] do imperador Marcus Aurelius Commodus Augustus, e pela
saúde da guarda de corpo. Dedicatória feita nas calendas de Março, sob o consulado de Mamertinus e de
Rufus [1 de Março de 182]».
Da mesma forma, honrava-se Némesis, a deusa que castigava os orgulhosos, cujo culto
aparece referido numa inscrição de Roma795:
«À santa Nemesis do campus, pela saúde dos nossos dois senhores, os imperadores. Publius Aelius
Pacatus, filho de Publius, inscrito na tribo Aelia e originário de Scupi [cidade da antiga Mésia, actual
Uskub], avisado num sonho fez, de bom grado, colocar [esta dedicatória] que ele havia prometera quando
era doctor de uma coorte, agora campidoctor na Iª Coorte Pretoriana piedosa e vingadora».
Sabemos igualmente que havia potências protectoras dos homens e dos bens, e mais
exactamente de cada um de entre eles em particular, às quais se chamavam «Génios»
(genii loci). Para todas estas entidades apotropaicas se levavam a cabo rituais
específicos. Anualmente, realizava-se uma procissão, que partia da tribuna do campus;
no Egipto, ao que parece, sacrificavam-se-lhes gazelas. No terreno para o exercício de
Dura Europos, ter-se-á construído um templo para os génios, o que não constituía uma
novidade, já que o mesmo se fizera em Roma, ao edificar-se um santuário no campus
das coortes pretorianas e urbanae796.
Para concluir, não olvidemos o grupo dos deuses associados: quando os antigos
celebravam certo culto, dirigiam-se, evidentemente, a uma divindade concreta, na
ocasião representando a principal, mas tinham o cuidado, para assim se sentirem mais
confiantes quanto às respostas para as suas súplicas, de apelar a outras potências, que
desempenhavam o papel de reforçar a acção da primeira que fora invocada (por
exemplo, associava-se a Demeter a sua filha Perséfone). Nos campos de treino,
789
Veja-se I. A. Richmond, Bull. John Rylands Lib., XLV, 1962, pp. 185-197.
790
ILS 3810, p. e.
791
G. L. Irby-Massie, «The Roman army and the cult of the Campestres», ZPE 113 (1996), pp. 293-300.
792
ILS 2604.
793
R. G. Collingwood e R. P. Wright (The Roman Inscriptions of Britain, I, 1965, nº 1334) referem-se às mesmas como «
three Mother Goddesses of the Parade-Ground».
794
CIL, II 4083.
795
CIL VI 533.
796
Y. Le Bohec, L’armée romaine, p. 125.
299
venerava-se especialmente Júpiter, simultaneamente protector da Urbs e do exército.
Nas fontes epigráficas, colhemos também menções ao «Marte militar» e a uma
abstracção divinizada, a Victoria Augusta. Posto isto, enquadrado e vigiado por
graduados, num plano mais elevado e transcendente, o exercício via-se protegido pelos
deuses.
Consideramos pertinente repisar um ponto atrás realçado: a importância do exercício
passou despercebida a muitos historiadores. No entanto, era esse treino o elemento que
explicava, em larga medida, os êxitos do exército romano. Os antigos tinham plena
consciência disto: consideravam que um patrício não poderia fazer uma carreira se não
se entregasse frequentemente a tal prática física, e que um imperador não reunia
condições para exercer o poder supremo se não velasse para que os terrenos de
manobras não fossem assiduamente frequentados. O exercício, a castrametação, as
tácticas, a estratégia, todas estas componentes formavam uma disciplina, uma ciência
(Díon Cássio, Hist. rom. 69.3;77.13), progressivamente elaborada desde a génese de
Roma, e que recebeu uma forma jurídica no início do século III d. C., tornando-se então
codificada. A palavra «disciplina» comportava duas realidades distintas na sua
aparência mas, na realidade, próximas uma da outra: designava, primeiramente, um
domínio de conhecimentos e, só depois, a obediência. Ora a aquisição desta cultura
militar supunha a existência de uma política de recrutamento que se fundamentasse na
qualidade da instrução e dos homens arrolados.
Generalidades
O ofício militar compreendia diversos aspectos que estavam longe de ser agradáveis: a
fadiga das marchas, as corveias, a penúria dos aprovisionamentos em certas ocasiões, a
dureza do comando e as inclemências climatéricas 797. Além do mais, nos postos mais
expostos havia sempre o receio de o inimigo atacar na altura em que se procedia à
rendição das tropas de guarnição 798.
As primeiras ocupações do miles no seu serviço eram as corveias - munia, munera,
stationes, vigiliae, diurna nocturnaque munia, ou labores et vigiliae – tarefas que
preenchiam o dia e a noite799. Um relógio de água (cf. infra) permitia repartir em quatro
etapas o serviço de guarda pela noite fora, que durava das 6 horas da tarde às 6 da
madrugada. As sentinelas eram avisadas da mudança de turno pelos toques da tuba
(25)800. Elas recebiam a palavra-senha ou signum de um oficial subalterno, o
tesserarius (26)801. Vejamos alguns exemplos: Aequanimitas/«Igualdade de alma», sob
Antonino-o-Pio 802(27) e Laboremus/«Trabalhemos» no tempo de Septímio Severo
797
Tácito, Hist. 1.23.2; 2.80.5; Y. Le Bohec, L’Armée romaine sous le Haute Empire, pp. 63-66.
798
H. Cuvigny (ed.), Didymoi: une garnison romaine dans le désert oriental d’Égypte. II – Les fouilles de l’Ifao, Cairo,
IFAO, 2012, pp. 23-24.
799
Tácito, Hist. 1.31.4; 2.69.5; IDEM, Ann. 11.18.3. Martin Kemkes e Jörg Scheuerbrandt, Zwischen Patrouille und
Parade. Die römische Reiterei am Limes, Gesellschat für Vor- und Frühgeschichte in Württemberg und Hohenzollern
mit Unterstützung des Württenbergischen Landesmuseums Sttutgart und der Stadt Aalen, Estugarda, 1997; Pierre
Streit, L’Armée romaine, Paris, Infolio, 2012, pp. 77-78.
800
801
802
300
(28)803; Nero, que não receava cair no ridículo ou, então, pretendia manifestar o seu
bizarro cinismo, escolheu certa vez para signum Optima mater/«A melhor das mães»,
em referência à sua progenitora, a qual mandou matar. Noutro momento histórico, no
reinado de Pertinax, a palavra-passe adoptada foi Militemus/«Militemos» 804(30).
Estas senhas, que se utilizavam nos acampamentos e nos fortes, também existiam em
combate, pelo que todos as conheciam 805(31). Nas instalações militares, havia guardas
junto às portas e diante da capela das insígnias em regime de permanência (excubiae
para a noite) 806(32).
Ao recear um golpe de Estado, Nero mandou posicionar guardas nas muralhas de
Roma, defronte do Tibre e do mar, consistindo em tropas de cavalaria e infantaria,
sobretudo de origem germânica e recrutas 807(33).
Em todos os acampamentos ou fortes instalava-se, por norma, uma statio (equivalente
a um «posto de polícia»), sob o comando de um tribuno 808(34). No palácio, era o
imperador quem dava a palavra de ordem, recebendo, ao mesmo tempo, uma tabuinha
com a lista dos efectivos. Uma coorte velava pela integridade física do princeps; estas
tropas envergavam togas, apresentando-se vestidos à civil, sem elmo, mas munidos do
gládio e do pilum 809(35).
As actividades de uma unidade eram consignadas em múltiplos relatórios, matinais,
mensais e nos pridiana, mais espaçados 810(36). O chefe supremo transmitia a palavra-
passe para o dia e uma série de ordens, procedendo à distribuição das corveias pelos
seus homens: recolha de lenha, de água, forragens, víveres 811 (41), tarefas de limpeza
(incluindo as latrinas), a entrega de correio oficial 812 (42) e obras de terraplanagem,
entre outras tarefas. Os soldados realizavam ainda outras missões: garantiam o
policiamento dos espectáculos: em Roma, uma coorte do pretório vigiava e mantinha a
ordem pública nos jogos, sobretudo os munera que se desenrolavam no Anfiteatro
Flávio, a partir de 80 d. C. (ano em que o anfiteatro foi inaugurado); em Praeneste
(actual Palestrina, Itália), havia uma guarnição (presidium) que controlava os
gladiadores alojados no ludus desta cidade813(44). Para além de efectuarem serviços de
correio (empregando-se para o efeito simples soldados ou frumentarii e, até, um antigo
primus pilus814(45)), os milites escoltavam frequentemente importantes
individualidades: por exemplo, ao regressar viúva do Oriente (o seu marido, Germânico
falecera há pouco), Agripina teve direito a beneficiar da protecção de duas coortes do
pretório durante a viagem 815(46).
A respeito das corveias, existe um ponto que talvez surpreenda os leitores menos
familiarizados com a realidade militar romana: embora o exército estivesse submetido
a um elevado nível de disciplina, sabe-se, paradoxalmente, que diversos soldados,
quando tinham suficiente esperteza para ganhar algum dinheiro extra, compravam as
isenções ao subornarem os seus centuriões; o número de tropas dispensadas podia
atingir ¼ dos efectivos 816(47). Do mesmo modo, era prática corrente solicitar-se
permissões para gozar de uma licença (commeatus). Os arqueólogos descobriram uma
803
804
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301
grande quantidade de documentos deste género 817(48), mas desconhecemos se as
respostas seriam sempre favoráveis. Assim, deparamos com a presença corrente da
corrupção, tanto nas legiões como nas unidades de auxilia.
A maior parte do tempo, a vida no exército traduzia-se numa rotina que consistia em
dormir, comer, corveias e treino. Era crucial que as legiões operassem eficazmente
como unidades e obedecesse incondicionalmente aos mandos. Uma das maneiras para
atingir tais objectivos radicava em exercícios constantes. Os recrutas estavam obrigados
a treinar-se duas vezes por dia, os veteranos apenas uma.
O quartel proporcionava-lhes um lugar onde viver. Os soldados viviam juntos nas suas
unidades. Cada caserna dispunha de uma habitação maior do que as restantes, com
uma antecâmara para o centurião, e entre oito e dez compartimentos para um
contubernium de oito homens. Cada contubernium dividia-se, por sua vez, numa
antesala e num dormitório. É sabido que um centurião podia ter a sua esposa (e
presumivelmente os filhos) com ele no acampamento; se bem que se captem indícios de
que alguns soldados também o faziam, a norma habitual era que os fortes apenas
albergassem homens; neste sentido, as mulheres e as famílias residiam geralmente nas
imediações da base militar.
O sentimento de camaradagem inerente à vida comunitária via-se potenciado pelo
facto de a unidade preparar a sua própria comida e os seus membros tomarem as
refeições em conjunto. Não havia algo que se equiparasse a um refeitório, nem tão
quanto uma cozinha principal, à excepção, talvez, dos fornos onde se cozia o pão
(abordamos a alimentação militar noutro capítulo).
À semelhança do resto dos Romanos, os soldados gostavam igualmente de se reunir
para fazer vida social. A unidade básica, a centúria, formava um grupo natural, coeso,
tanto a nível básico (a unidade de oito indivíduos) como num sentido mais amplo (a
centúria em si mesma). Nos exércitos que se delocavam com certa regularidade ou
viviam em acampamento temporários, a mobilidade implicava um desenvolvimento
mais lento das redes sociais. No entanto, a partir do século I d. C., no período dos
imperadores flávios, o exército tornou-se, como dissemos, cada vez mais sedentário. As
legiões passaram a ficar aboletadas em instalações permanentes. Nestas, vieram a
surgir «associações» (collegia) de diversos géneros, compostas por soldados e oficiais.
Isto não causa qualquer estranheza, visto que os Romanos tinham o costume de se
reunir numa espécie de confrarias cujos membros compartilhavam interesses em
comum, fossem de ordem religiosa, profissional, geográfica ou comercial. As
autoridades militares manifestaram uma atitude ambivalente perante tais corporações,
tal como sucedia com as autoridades civis face aos grupos organizados que se
constituíam nas cidades. Existia quase sempre a suspeita de que, durante as reuniões,
se maquinavam actividades anti-sociais e mesmo perversas. Marciano, jurista do século
III, assinalou que os simples soldados não podiam fazer parte de associações deste tipo:
«Por ordem do imperador, se decreta que os governadores das províncias não autorizem as associações
fraternais em geral e, em particular, não permitam aos soldados formar associações no acampamento»
(Digesta, 47.22.1 pr.).
Se nos lembrarmos da tradicional desconfiança nutrida pelas autoridades em relação
aos grupos organizados, parece-nos que este aviso reflecte uma proibição que já vinha
de longe e não algo recentemente estipulado. Provavelmente, a reiteração da proibição
indica que os collegia já estariam amplamente disseminados entre os milites, apesar de
formalmente interditas. A conclusão mais simples que se pode extrair é que as
817
302
associações de soldados se desenvolveram no exército à medida que o exército se
sedentarizou depois dos Flávios; que o alto comando não apreciava a sua existência,
mas elas continuaram de toda a forma, não obstante sucessivos intentos para as
suprimir, como se constata no excerto do Digesta acima citado.
Contudo, em certa medida, o próprio exército era a «associação» por excelência do
miles gregarius. Para este, as termas eram locais de ócio e descontracção fora do
quartel. Cada forte tinha os seus banhos; algumas vezes, situavam-se no interior do
mesmo, mas o mais usual era que se localizassem no exterior. Além dos benefícios
higiénicos do banho, o ambiente social reproduzia a importância das termas na vida
civil. Os soldados podiam frequentá-las assiduamente, conversar com os camaradas e
relaxar, funcionando como um meio de se desconectarem da rotina militar.
Afora os recursos da sua base e das associações, os soldados tinham igualmente acesso
aos assentamentos (alguns transformando-se progressivamente em autênticas cidades)
que se criavam perto de cada fortaleza de legionários e de auxiliares. Estes canabae e
vici possuíam muitas funções relevantes, mas, na vida de um miles, as principais
atracções eram as tabernas e os lupanares (frequentemente juntando-se num só
espaço). Nestes aglomerados, era possível que um soldado, tecnicamente proibido de
contrair matrimónio, tivesse uma mulher como «esposa» ou simplesmente amante
(focaria), e filhos (cf. infra). Por vezes, além de um agregado familiar, até podia ser
proprietário de um ou dois escravos. Não fica claro com que regularidade havia
contacto entre as tropas e as suas companheiras: talvez os soldados pudessem sair dos
castra durante as festividades, mas não existia um dia livre estabelecido oficilmente,
nem uma permissão habitual para viver no exterior. Seja como for, a amplitude dos
canabae e dos vici mostra que eram muito frequentados, ocupando uma parte
significativa da existência do soldado, tivesse ou não «família», servindo para mitigar o
que parecia ser, no papel, uma vida totalmente isolada no forte.
Também podia romper com a rotina se fosse enviado com um destacamento para
exercer funções de policiamento numa cidade ou numa zona rural, comprar ou adquirir
víveres e outros produtos para a sua unidade, ou realizar, como referimos, uma missão
especial, escoltando, por exemplo, um dignitário por terras hostis. Estes serviços
ofereciam oportunidades para interactuar com as populações civis e, muitas vezes,
explorá-las.
***
Uma vez no exército, um homem tinha a possibilidade de aprender um ofício, já que a
maldição dos exércitos de todas as épocas era o tempo livre e o caso romano não
representava uma excepção, tudo se fazendo para manter os soldados ocupados (cf.
infra). Observemos um exemplo, o de Lucius Marius Vitalis, que foi incorporado na
guarda pretoriana com 17 anos e, apesar de já saber ler e escrever, ele tencionava
aprender um ofício:
«Eu, Lucius Marius Vitalis, filho de Lucius, vivi 17 anos e 55 dias. Tive êxito nos estudos e convenci os
meus pais de que devia aprender uma profissão. Havia abandonado Roma com a guarda pretoriana do
imperador Adriano quando, enquanto trabalhava duramente, as parcas me apanharam e levaram da minha
nova profissão para este lugar. Maria Marchis, minha mãe, erigiu este monumento em honra do seu
maravilhoso e infortunado filho» (CIL VI.8991= ILS 7741, Roma).
Parte do atractivo do exército radicava na aprendizagem de novos talentos e
competências; o soldado podia aspirar às promoções, obtendo uma patente mais
elevada, uma remuneração superior e ver-se eximido das corveias diárias. Dispomos de
abundantes inscrições alusivas a carreiras militares, tanto breves como extensas,
indicando subidas na escala hierárquica e transferências de uma unidade para outra em
todo o comprimento e largura do império. Como noutro capítulo afirmámos, alguns
indivíduos eram recrutados e podiam passar directamente para postos mais altos,
tornando-se centuriões; noutras situações, os soldados iam singrando ao longo do
tempo de serviço. Em algumas ocasiões, porém, a morte impedia estas perspectivas tão
almejadas:
«[…] um ajudante da centúria de Lucillus Ingenuus, que esperava ascender a centurião e morreu num
naufrágio, aqui jaz enterrado» (ILS 2441, Chester, Inglaterra).
303
Mas, como facilmente se infere, as promoções não se conseguiam só por mérito
pessoal. Geralmente, um soldado tinha de arranjar cartas de recomendação e subornar
a pessoa certa. De facto, os subornos eram uma prática muito difundida, como o atesta
uma carta de Claudius Terentianus:
«Rogo-te, pai, que me escrevas de imediato sobre a tua saúde, dizendo-me que te encontras bem. Estou
ansioso por saber coisas de casa. Se Deus quiser, espero viver frugalmente e ser transferido para uma
coorte. Contudo, aqui nada se consegue sem dinheiro e as cartas de recomendação não têm utilidade se um
indivíduo não se mexer» (P. Mich. 468, linhas 31-41, Karanis, Egipto, século II)818.
As promoções representavam uma vertente especialmente importante do próprio
atractivo da vida militar. Aos olhos do mundo civil, um soldado lograva melhorar a sua
posição de uma maneira impossível para quem não se alistava. Artemidoro de Daldis dá
conta disto, já que escreveu que sonhar que se era soldado augurava que se era «bem
considerado» (Oneirocritica, 2.31). Este facto era reconhecido pela lei, uma vez que os
milites estavam isentos dos cada vez mais onerosos deveres locais que se exigiam aos
civis ao longo da evolução histórica da época imperial. Mais: o soldado também
adquiria prestígio por ser o representante local do poder imperial, e porque só ele se
apresentava equipado profissionalmente com armas de qualidade e adestrado para as
utilizar eficazmente. O distintivo da sua posição era o cinturão do gladius; o seu traje e
equipamento anunciava a sua categoria e função.
Logicamente que esta posição de poder e privilégio, se por um lado infundia respeito e
inveja, provocava, por outro, hostilidade. Assim, os civis podiam, simultaneamente,
odiar os soldados e temê-los. A literatura da elite e a popular reportam-se amiúde à
atitude autoritária dos milites e à mescla de ressentimento e medo que eles causavam
na população civil. Com efeito, muitos soldados aproveitavam-se do seu poder para
intimidar, extorquir e aterrorizar a seu bel-prazer. A este respeito, uma passagem da
Historia Augusta talvez seja excessivamente optimista:
«Um soldado não deve causar temor desde que apareça vestido correctamente, bem armado, que calce
botas resistentes e tenha alguma coisa na sua bolsa » (Severo Alexandre, 52).
Por seu turno, o jurista Ulpiano supôs que a soldadesca trataria, inevitavelmente, de
roubar a população civil. Abusava-se do costume de proceder indiscriminadamente a
requisições. Registaram-se tentativas de pôr cobro a estes casos, mas revelaram-se
quase sempre ineficazes, ainda que bem-intencionadas. Observemos um exemplo,
procedente do Egipto:
«Marcus Petronius Mamertinus, prefeito do Egipto, declara: fui informado de que muitos dos soldados,
quando viajam pelo país, requisitam sem certificado barcas, animais e pessoas mais do que lhes
corresponde, apropriando-se por vezes de tudo pela força, e noutras mediante ordem expressa do oficial do
comando, como favor ou deferência. Por causa disto, as pessoas privadas vêem-se submetidas à arrogância
e aos abusos, sendo o exército criticado pela sua avarícia e injustiça. Eu, portanto, ordenou ao mando e aos
secretários reais que não proporcionem absolutamente a ninguém autorização para viajar sem um
certificado, tanto pelo rio como por terra; bem entendido que castigarei severamente quem, após este
édito, seja surpreendido dando ou recebendo alguma das coisas mencionadas […]» (PSI 44)819.
O alojamento forçado (que se assinala na carta 10.77-78 de Plínio-o-Moço para
Trajano) consistia numa forma de abuso corrente, bem como a chantagem, a extorsão e
outros métodos para arrancar dinheiro dos civis para uso pessoal. Quando os soldados
perguntaram a João Baptista o que deveriam fazer para ser bons, ele retorquiu: «Não
abuseis da gente, não fazei falsas denúncias e contentai-vos com o que vos pagam»
(Lucas 3, 14). No Egipto, temos conhecimento de um homem que a anotou subornos,
818
B. Campbell, The Roman Army 31 BC- AD 337. A Sourcebook, nº 43, p. 33. Esta missiva faz parte de um arquivo
papirológico (P. Mich. VIII.467-481), que inclui a correspondência, tanto em grego como em latim, entre um soldado,
Claudius Terentianus, e o seu pai, Claudius Tiberianus, também militar de profissão (speculator) que, a certa altura, se
tornou um veterano (P. Mich. 475). Inicialmente, Terentianus cumpriu o serviço militar na frota de Alexandria, mas
alimentava o desejo de ser transferido para uma coorte auxiliar. Os seus esforços foram amplamente recompensados,
uma vez que mais tarde se intitula numa carta como legionário (P. Mich. 476). Com efeito, as promoções e
transferências nas diferentes unidades e corpos do exército obtinham-se amiúde através de um patrono influente, que
enviava uma carta de recomendação ao oficial ou comandante que pudesse facilitar o processo. Esta prática era
generalizada, como se vê, por exemplo, numa carta fragmentária do acervo de Vindolanda, em que um homem escreveu
a Crispinus, provavelmente membro da administração do governador provincial : «… então, arranja-me amigos, para
que, por meio da tua amabilidade, eu posssa desfrutar de um agradável período de serviço militar» (cf. A. K. Bowman e
J. D. Thomas, Vindolanda: The Latin Writing-Tablets, Londres, 1983, nº 37).
819
B. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, nº 293, pp. 176-177.
304
envolvendo substanciais quantias de dinheiro, nos livros de contabilidade, rotulando-os
de «gastos de empresa»…
O exemplo literário mais gráfico e sugestivo de um miles abusando da sua autoridade
talvez seja o contido na obra de Apuleio, O Asno de Ouro (9.39-42). A história é
basicamente esta: um jardineiro seguia por uma estrada na Tessália, montado em
Lúcio, o homem transformado em jumento que protagoniza o texto; um soldado, que
viajava sozinho em sentido contrário, encontrou a certa altura com eles. O legionário
vê-se, desde logo, caracterizado pelo seu traje (habitus), porte (habitudo) e pelo seu
comportamente extremamente arrogante (superbo atque adrogant sermone),
dirigindo-se ao jardineiro em latim, a língua oficial do exército, ainda que a acção se
desenrolasse numa zona onde se falava o grego, e bloqueou-lhe o caminho. Acto
contínuo, exigiu o seu direito de requisitar o transporte e apropriou-se da azémola para
carregá-la com equipamento militar. O soldado sentiu-se ofendido ao ver que o civil
buscava, a todo o custo, passar à força, não lhe respondendo em latim; mostrou. Então,
a sua insolência inata (familiarem insoletiam) e recorreu à violência, batendo no
jardineiro e atirando-o ao solo. O grego reconheceu claramente a desigualdade de
forças e tentou aplacar a ira do miles, manifestando obediência (subplicue) e dando a
entender, por gestos, que não percebia latim. O soldado repetiu que requisitava o asno
por razões de Estado e começou a conduzi-lo rumo ao seu forte. O jardineiro voltou a
suplicar, rogando-lhe que fosse mais amável. Tudo em vão. Com efeito, isto apenas
serviu para aumentar a agressividade do legionário, que se dispôs a matá-lo,
golpeando-o uma vez mais. Mas o jardineiro enfrentou o soldado e deu-lhe uma forte
pancada, deixando-o ferido e semi-inconsciente, apressando-se a partir para a cidade
mais próxima. Entretanto, o soldado recuperou os sentidos e conseguiu a ajuda dos
seus camaradas, os quais, por sua vez, convocaram os magistrados civis da cidade,
exigindo-lhes que descobrissem o jardineiro e o executassem por ter atacado um
soldado. Os funcionários, com medo dos superiores militares, procedem à detenção do
jardineiro, colocando-o na prisão, para depois ser executado sumariamente. No fim da
história, o soldado ficou impune, não obstante a sua inaudita violência contra o
jardineiro; carregou Lúcio com o seu equipamento, exibindo-o ostensivamente para
aterrorizar qualquer um que com ele se cruzasse no caminho (propter terrendos
miseros viatores), e rumou para a cidade seguinte, onde irrompeu na residência de um
magistrado, alojando-se na mesma em vez que hospedar-se numa pousada.
Desta narrativa extraímos elementos típicos e recorrentes do comportamento abusivo
da soldadesca para com os civis: uma soberba contra a qual muitas vezes não havia
escapatória possível, alojamento forçado nas suas casas, requisições não autorizadas,
violência perante a qual não existia defesa eficaz, e manipulação do sistema judicial
civil em seu benefício.
Num episódio do Satiricon de Petrónio (82), encontramos um caso similar: Encólpio,
abandonado pelo seu amante Giton, pegou na espada e saiu em busca de vingança:
«Enquanto ia a toda a pressa apareceu um soldado, uma espécie de larápio ou rufião, que me disse: “Eh,
camarada soldado, qual é a tua legião? Quem é o teu centurião?”. Quando menti ousadamente acerca da
minha centúria e legião, ele perguntou. ”Homem, os soldados do teu exército anda por aí com calçado
elegante?”. O meu semblante e as minhas tremuras acusaram-me. “Entrega-me a tua espada ou será pior
para ti!”. Despojado, fiquei sem espada e sem vingança».
Para um soldado, pertencer ao exército alimentava um sentimento de superioridade
sobre a população civil e uma sensação de poder que podia, simultaneamente, justificar
ou desculpar qualquer excesso. Ora para isto, não havia outro controlo para além do
auto-domínio, que resultava extremamente ineficaz, e os infrutíferos protestos dos
funcionários romanos:
«O governador de uma província deve certificar-se que as pessoas de escassos recursos não sejam
tratadas injustamente ao privá-las da sua única lucerna ou de um pequeno móvel para uso de outros com o
pretexto da chegada de oficiais ou soldados. O governador da província deve assegurar que não se autorize
qualquer acto que favoreça pessoas que reclamem vantagens injustas em virtude da sua pertença à
categoria militar» (Digesta, 1.18.6.5-6).
A arrogância descrita por Apuleio fazia parte do facto de ser soldado: ao pertencer a
um grupo isoldado, apenas responsável antes os seus oficiais superiores, que
305
provavelmente eram cúmplices, o soldado frequentemente ter-se-á aproveitado da sua
posição de poder num mundo em que o exercício do poder constituía o único modo de
fazer as coisas. Para um miles, isto era, indiscutivelmente, uma vertente positiva da sua
profissão.
Apesar de não constar dos escritos de Apuleio e de Petrónio, o suborno era uma prática
habitual no exército, por exemplo, quando um miles pagava uma quantia ao seu
centurião para se ver dispensado de várias corveias. Mas o fenómeno também ocorria
nas relações entre soldados e civis. No Evangelho de S. Mateus, no relato da Páscua da
Ressurreição, alude-se a soldados que foram subornados:
«Enquanto as mulheres iam a caminho, alguns soldados que tinham estado de guarda ao túmulo voltaram
para a cidade e foram contar aos chefes dos sacerdotes o que tinha acontecido. Então os chefes dos
sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e resolveram dar uma grande soma de dinheiro aos
soldados e recomendar-lhes: “Dizei que os discípulos dele vieram de noite e roubaram o corpo [de Jesus
Cristo], enquanto vós dormieis. Se o governador chegar a saber do assunto nós o convenceremos e faremos
com que vós não tereis de sofrer com isso”. Os soldados aceitaram o dinheiro e fizeram como lhes foi dito.
Foi assim que este boato se espalhou entre os judeus, e continua até hoje» (Mateus, 28: 11-15).
Não será errado depreender, a partir deste testemunho e de outros, que os soldados
considerariam que aceitar subornos fazia parte dos seus privilégios, constituindo um
complemento da sua remuneração.
306
epitáfios dos monumentos funerários militares, a maioria deles preferiria, talvez,
mulheres romanizadas. Vejamos dois exemplos:
«Aqui jaz Lucius Plotidius Vitalis, filho de Lucius, da tribo lemoniana, soldado na Legio XV Apollinaris.
Viveu 50 anos e serviu 23. Annia Maxima erigiu este monumento em honra do seu amado esposo (AE
1954.119, Bad-Deutsch Altenburg/Petronell, Áustria);
«Aos deuses manes. Aurelius Victor, soldado da Legio I Italica, viveu 36 anos e serviu nas fileiras durante
18. Valeria Marcia, sua esposa, e Valeria Bessa, sua filha, herdeiras, ergueram este monumento em honra
do seu benemérito esposo e pai» (CIL III.13751 a, Kherson, Ucrânia).
Outras fontes epigráficas mostram que muitas das mulheres eram libertas, pelo que,
nestes casos, o relacionamento principiaria com uma moça escrava:
«Gaius Petronius, filho de Gaius, viveu 73 anos e serviu durante 26 na cavalaria Gemelliana. Aqui jaz.
Urbana, sua liberta e esposa, erigiu este monumento (ILS 9138, Walbersdorf, Áustria).
Sobreviveram igualmente numerosas inscrições mencionando um soldado no activo,
juntamente com a esposa e família:
«Aos deuses manes. Dedicado a Marcus Aurelius Rufinianus, nosso filho, que viveu 10 anos. Também a
nossa filha, Aurelia Rufina, ainda viva. Marcus Aurelius Rufinus, soldado da Legio I Auxilia, e sua esposa
Ulpia Firmina, seus pais, erigiram este monumento em honra dos filhos e na sua própria» (Die römischen
Inschriften Ungarns, 5.1200, Dunaújvaros, Hungría).
Deduzimos, então, que os soldados estabeleciam abertamente uniões com mulheres e
destas tinham filhos, não obstante os impedimentos existentes na lei a este respeito.
Ora esta transparência não seria possível se a legislação anti-matrimonial tivesse sido
aplicada de maneira estrita. Assim, o propósito de Augusto de criar uma família militar
em detrimento da civil no exército colidiu com o impulso cultural mais arraigado entre
a população civil, o da propagação da família. Porém, ao contrário do que muitos
académicos ainda referem, Septímio Severo não revogou a proibição do casamento,
mas autorizou que os milites pudessem viver com as suas mulheres, o que não é a
mesma coisa. Progressivamente, a interdição foi-se dissipando e, em princípios do
século III, os soldados já passariam a contrair matrimónio sem quaisquer problemas.
O que faziam os milites gregarii face às relações heterossexuais? Fica claro que não
existia intento algum de obrigar ou fomentar o celibato entre os legionários. O sexo
com mulheres fazia parte da sua virilidade, e ser viril representava um elemento
fundamental para um soldado. As violações (prática perfeitamente tolerada pelos
oficiais quando ocorria no contexto de uma guerra) se entendiam como um ataque
equivalente à aniquilação de varões inimigos, e não um acto «sexual». Mas isto não se
deve confundir com o facto de os soldados procurarem formas de satisfazer as suas
pulsões sexuais. Dispunham de duas maneiras acessíveis e não violentas para o fazer, as
quais não teriam, necessariamente, repercussões a longo-prazo: as prostitutas e as
escravas que, usualmente, desempenhavam os dois papéis ao mesmo tempo. Os
mencionados canabae situados nas proximidades dos fortes militares albergavam
meretrizes.
Quanto às escravas, teriam de satisfazer os seus amos, por muito que lhes custasse , e,
com efeito, sabemos de muitos soldados que tiveram escravas durante o seu serviço
activo. Um veteranus da frota de Misenum até foi dono de duas escravas; no seu
testamento, pede a manumissão para ambas, ao mesmo tempo que as institui como
herdeiras universais, em igualdade de direitos, tal como a filha nascida de uma delas
(BGU 1, 326 = FIRA 32, 50). Entrevemos situação idêntica na dedicatória da lápide de
um pretoriano, feita por uma mulher que inicialmente fora sua escrava e depois sua
companheira (CIL VI.32678)
Com as raparigas das localidades perto das bases militares podia desenvolver-se outro
género de relacionamento. Um soldado podia manter uma relação com uma moça
numa habitação, que lhe proporcionava prazer sexual e efectuava tarefas domésticas. A
este tipo de mulheres chamava-se hospita ou, mais vulgarmente, focariae. Uma destas
aparece nomeada num epitáfio, atestando a sua relação com um soldado da marinha:
«Marcus Aurelius Vitalis foi um soldado da Panónia que serviu durante 27 anos na frota pretoriana em
Ravenna. Valeria Faustina, sua focaria e herdeira, ergueu este monumento em honra de uma pessoa
excelente» (CIL XI.39 = ILS 2904, Ravena, Itália).
307
O vocábulo focaria, típico da linguagem militar, já não era entendido no sentido
originário de «ajudante de cozinha», mas servia antes para designar aquela que, fora do
forte, nos canabae, «preparava o rancho» do soldado. Nos testamentos militares,
admite-se que parte dos depósitos obrigatórios do miles seja deixada à focaria que, de
outro modo, não teria qualquer direito à herança (P. Wisconsin 14; BGU 2, 600; P.
Princ. 57); havendo filhos, estes usavam o nome dela até o pai terminar o serviço
militar (P. Oxy. 3.475 = Sel. Pap. 337).
Posto isto, muitos soldados possuíam relacionamentos que correspondiam a uma
espécie de matrimónios informais destas uniões resultavam frequentemente filhos. Por
conseguinte, um soldado não estava condenado a conviver apenas com prostitutas,
ainda que estas abundassem nos assentamentos localizados junto das bases militares.
Além de tudo isto, o corpus das fontes papirológicas transmite-nos, por vezes, a
imagem de soldados que viviam quase como «burgueses», providos de um núcleo
familiar estável, estando eles muitas vezes ligados a filhas ou irmãs de companheiros de
armas, e as fontes epigráficas confirmam um desejo generalizado de possuir uma vida
familiar semelhante à dos civis. Porém, há que usar de precaução quanto à referida
ideia de os soldados usufruirem de uma existência «aburguesada», na medida em que
não podemos extrapolar, a partir somente de algumas fontes, que a maioria dos milites
tinha uma vida desafogada. Na realidade, o simples soldado estava longe de ser rico 820.
Basta reparar nos muitos recibos que se encontraram entre os documentos privados
procedentes da Britânia, do Egipto e da Líbia: eles provam que, frequentemente, os
militares se encontravam endividados 821. Ora, tendo em conta este facto, bem como o
montante do soldo do grosso das tropas, é caso para nos interrogarmos com que
dinheiro e de que forma os soldados conseguiam adquirir pessoal servil 822.
Abordemos outro assunto, mais controverso, o da homossexualidade no exército
imperial romano, fenómeno que só há alguns anos começou a ser compulsado. Noutros
estudos, alude-se aos castigos aparentemente severos da pederastia no exército
republicano, notícias que se colhem nas fontes literárias da elite acerca da cultura
militar, fortemente marcada pela tónica conferida aos conceitos de «honra« e
«virilidade». No melhor dos casos, essas punições violentas, embora raramente
aplicadas, revelam que já sob a República havia práticas homossexuais. Porém, no que
respeita ao exército do Alto-Império, as obras literárias praticamente não se reportam
às mesmas. Mas o certo é que determinados indícios permitem que avancemos um
pouco mais nesta matéria.
As relações com pessoal servil masculino e prostitutos, ainda que vistas com desagrado
pela elite conservadora e não sem certa hipocrisia, eram amplamente aceites e tidas
como factos normais. Como os simples soldados, e especialmente os centuriões e o
resto dos oficiais, tinham escravos, não admira que também no exército ocorressem
estas situações. No Pseudolo de Plauto (1180-1181), o escravo de um miles é alvo de
comentários:
«Durante a noite, quando o comandante ia fazer a guarda e tu com ele, a sua espada enfiava-se na tua
bainha?».
Por seu turno, no epigrama 1.31, entre outros, Marcial discorre sobre as relações
sexuais de um centurião, Aulus Pudens, e o seu jovem escravo, Encolpius. Do mesmo
modo, os contactos com prostitutos encaravam-se como usuais. Consequentemente,
parece muito improvável que soldados acostumados a recorrer a escravos ou
prostitutos para aliviar as suas necessidades sexuais não tolerassem intimidades por
parte de um camarada ou que algum que se mostrasse disposto.
A única coisa que poderia reprimir as relações homossexuais entre membros de um
mesmo grupo social (neste caso os soldados) seria a crença social, partilhada tanto pela
820
Sobre a importância do dinheiro para os soldados, veja-se A. Groslambert, «Les soldats et l’argent sur les tabelettes
de Vindolanda», in C. Wolff (ed.), Le Métier de soldat, pp. 247-274.
821
Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine, du Ier au IIIe siècle de notre ère», Latomus 327 (2010), p. 199, 201,
202, 204; H. Cuvigny (ed.), Didymoi: une garnison romaine…, pp. 124-128, 137-155, 168.
822
Afora os exemplos referidos no texto, temos notícia de um homem da XIII Gemina que comprou uma escrava
cretense em 160 d. C.: P. Girard, Textes de droit romain, Paris, A. Rousseau, 1918, pp. 845-846.
308
elite como pela classe popular, segundo a qual o parceiro passivo ou «receptivo» se via
estigmatizado como efeminado, o que significava precisamente o oposto do que devia
ser um homem, masculino. Na cultura militar, ser masculino e não efeminado
afigurava-se essencial. Assim, um soldado podia resistir a uma relação homossexual
devido ao seu pano de fundo cultural negativo. Aparentemente, este tabu fazia-se sentir
no exército de meados e finais da República, período em que surgem testemunhos da
elite condenando os horrores da homossexualidade no seio do exército. A partir de
então, desaparecem relatos de episódios deste género. De facto, ao longo da época
imperial não encontramos descrições de oficiais aliciando soldados subordinados, nem
menções a leis ou normas regulamentando as práticas homossexuais entre militares. O
porquê desta ausência foi explicado de distintas maneiras. Contudo, um incidente
histórico faculta-nos uma pista: quando dois soldados foram acusados de fazer parte da
conspiração urdida por Saturninus para assassinar o imperador Domiciano, eles
defenderam-se, alegando que não podiam pertencer a uma trama dada a sua conhecida
condição de penetratum/«penetrados» (homossexuais passivos), o que os
marginalizava ao ponto de que ninguém os incluir numa conjura (Suetónio, Domiciano,
10).
Ora isto mostra que os soldados sabiam que alguns dos seus camaradas adoptavam um
papel passivo nas suas relações com outros homens e marginalizavam-nos mas pouco
mais acontecia. Se bem que a dita pressão social podia surtir certo efeito, pelo menos
levando a que os soldados buscassem ocultar as suas tendências, não restam dúvidas
que a homossexualidade persistiu. No entanto, na maioria dos casos, enquanto um
miles mantivesse uma aparência exterior masculina ou se, por alguma razão, era
considerado «efeminado» pelos seus camaradas, demonstrasse constantemente a sua
capacidade actuante como homem nos treinos, nas corveias e na guerra, a única
consequência seria a de ter de suportar comentários jocosos por parte dos que o
rodeavam.
823
Tácito, Ann. 1.69; 2.55.6; 3.33.3; 12.37.7; 14.7.2; IDEM, Hist. 3.77.6; Plutarco, Otão, VI.6.
824
Plutarco, Galba, XII.2.
825
Suetónio, Augusto, 24.2.
826
Tácito, Ann. 3.33-34.
309
Para os elementos femininos da plebe a lei era bem mais estrita: aquela que entrasse
num forte estava a cometer uma infracção. Além disso, em termos oficiais, qualquer
civil, independentemente do seu sexo, não podia aceder a instalações militares 827.
Todavia, recentemente, vários arqueólogos descobriram indícios que parecem apontar
para a existência de mulheres nos castra828. Embora este assunto não seja mencionado
explicitamente nas fontes antigas, é possível que algumas mulheres tivessem permissão
para realizar tarefas domésticas ou, simplesmente, exercer a mais antiga profissão do
mundo. Com efeito, há pouco encontrou-se e analisou-se o teor de um documento
procedente do Egipto: nele se observa que um conjunto de soldados escreveu a um
conductor, pedindo-lhe expressamente para lhes enviasse uma jovem prostituta(que
eles já muito apreciavam), a qual depois faria, de acordo com o próprio documento,
uma «digressão» por outras guarnições 829. Seja como for, e com base apenas neste caso,
cabe não generalizar este género de prática, entendendo-a como um fenómeno
extensivo a todas as bases do exército.
827
IDEM, Hist. 1.48.5; 2.88.3.
828
J. K. Evans, War, Women and Children in Ancient Rome, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1991; C. Van Driel-
Murray, «Women in forts?», Jahresbericht/Gesellschaft Pro Vindonissa (1997), pp. 55-61; M. A. Speidel, «Frauen und
Kinder bei römischen Her», ibidem, pp. 53-54; U. Brandl (ed.), Frauen und römisches Militär, BAR Intern. S. 1759,
Oxford, 2008.
829
H. Cuvigny (ed.), Didymoi: une garnison romaine…, pp. 24-28.
830
J. E. Lendon, Empire of Honour, Oxford, 1997, p. 247.
310
garantir o bem-estar e a saúde dos seus soldados, velando também para que estivessem
apropriadamente equipados e sob controlo. Sem este, as tropas perdiam a sua
eficiência e podiam até revelar-se perigosas para o Estado. Nesta matéria, o imperador
e os seus subordinados agiram como muitos outros comandantes de forças armadas ao
longo da história humana. Consequentemente, o que se reveste de interesse não é o
facto de serem precisos constrangimentos, mas antes como estes se estabeleciam e
mantinham.
O controlo exercido nos círculos militares romanos não consistia só na imposição de
uma severa disciplina através do medo infundido pela vitis do centurião ou pela virga
do decurião: o controlo assegurava-se igualmente pelas muralhas e portões,
componentes imprescindíveis para a vigilância dos movimentos dos soldados e para
evitar as deserções, não se cingindo apenas a elementos destinados à protecção da
própria guarnição. Esta ideia da necessidade de manter os soldados relutantes no
interior dos acampamentos assinala-se claramente no tratado De Munitionibus
Castrorum. Nesta obra, o autor exorta os comandantes a utilizarem as suas tropas mais
fiáveis como uma «muralha de corpos» para «segurarem» os contingentes compósitos
do exército em campanha intramuros.
Todavia, numa análise mais atenta, verificamos que havia outros meios de controlo, e
que a documentação desempenhava, a este respeito, um papel crucial. Com efeito,
como vimos, tudo era meticulosamente registado, desde a maneira como os soldados, a
nível individual, se comportavam e cumpriam (ou não) os seus deveres, até as missões
que envolviam destacamentos. Existiam, portanto, abundantes provas textuais
disponíveis para averiguar se determinado miles seria merecedor de uma promoção ou,
pelo contrário, estaria sujeito a um castigo por insubordinação ou desobediência; havia,
de igual modo, dados que serviriam de critérios para conceder uma licença a um
soldado ou mostrar quais os homens que teriam mais tendência a desertar. Mas não
sabemos se este acervo era sempre consultado para a tomada de decisões.
Até o volumoso corpus documental gerado pelo exército pode ser inadequado se a
nossa atenção não incidir na gestão do tempo. Este funcionava em dois sentidos: em
primeiro lugar, existia uma rotina estruturada. A ênfase conferida em actividades
repetitivas podia justificar-se como uma forma de inculcar valores e destreza, além de
que se tratava de um processo que minimizava o perigo da eclosão de desordens ou
motins numa grande comunidade armada; em segundo lugar, encontrava-se aquilo que
K. Verdery estudou num contexto moderno, a «estatização» do tempo, isto é, os meios
informais mediante os quais as autoridades dominam o que vulgsarmente se pode
considerar como «tempo livre»831. Inventavam-se tarefas para manter os homens
ocupados e fatigados, contribuindo para diminuir o tempo para que os soldados
urdissem maquinações, conspirassem e se rebelassem. Se bem que se concedessem
licenças e houve alturas para se frequentar as termas, a divisão do trabalho e o lazer
(negotium e otium) ao longo do ano eram bastante distintas para um soldado
comparativamente aos de um civil.
O dia de um miles via-se estruturado pelo ressoar das trombetas. Flávio Josefo oferece
uma imagem da rotina diária do exército em campanha em finais do século I na Judeia,
salientando que «A hora para a ceia e para o pequeno-almoço não obedece ao critério
individual: todos tomam as refeições em conjunto. As horas para dormir, para os
turnos das sentinelas e para a alvorada são anunciadas pelo som da trombeta (BJ 3.86).
Privar o soldado do toque das trombetas equivalia, assim, a desorientá-lo. A narração
de Tácito sobre a progressão dos exércitos da Germânia rumo a Itália, que vieram
apoiar as pretensões de Vitélio, deixa isto bem explícito (Tácito, Hist. 2.29): ocorreu um
episódio algo insólito, em que um prefeito de acampamento conseguiu neutralizar o
motim das suas forças em parte por ordenar aos trombeteiros que permanecessem em
silêncio. Além disso, a instrução de que os oficiais deviam suspender a realização das
rondas deixou as tropas sediciosas confusas, ficando mais atreitas a retornar ao
conforto que a autoridade lhes oferecia. Embora captemos indícios neste relato que
831
K. Verdery, What Was Socialism and What Comes Next?, Princeton, 1996, pp. 39-57.
311
apontam para a inserção de um artifício literário, o cenário é suficientemente plausível.
A trombeta ajudava a definir a comunidade militar. O seu som chegava não só até aos
soldados, entregues aos seus deveres, mas também àqueles cujas vidas estavam
interligadas ao exército e a sua rotina – as famílias à espera da chegada ou da partida
de um pai ou filho, os comerciantes pressentindo momentos oportunos para fazer
negócios, os taberneiros aguardando pela aparição de clientes - todos terão aprendido a
reconhecer o significado do ritmo diário.
Teoricamente, pelo menos, o dia do soldado estaria integralmente ocupado por
deveres essenciais - treinos, patrulhas, piquetes, obras de construção, missões de
guarda, escoltas a cobradores de impostos, transporte de víveres – e por outros, ainda,
«inventados para manter os soldados atarefados» (a frase procede de Tácito, Ann. 1.35,
surgindo repetida em Vegécio, Ep. rei mil. 3.4). Sabemos que se realçou este ponto, não
apenas porque os autores romanos nos contam isto, mas igualmente por corresponder
a uma preocupação familiar para aqueles que tivessem comandado unidades de
combate. Mas conseguir estabelecer um devido equilíbrio das actividades, mantendo
simultaneamente os soldados em forma e controlados não era fácil. O conhecito relato
das tropas transferidas da Síria para o exército em campanha chefiado por Corbulão
representa um caso elucidativo: Tácito referiu-se a soldados que, depois de uma longa
paz, mostraram renitência em cumprir os seus deveres num acampamento romano. É
sabido que o exército incluiu veteranos que nunca haviam servido num piquete ou
numa vigília – a tal ponto que encaravam as muralhas e os fossos como objectos
invulgares – e que nem utilizavam elmos e couraças, guerreiros polidos e prósperos que
cumpriram grande parte do tempo de serviço nas cidades (Ann. 13.35). Apesar de tal
narração, que descreve acontecimentos ocorridos por volta de 56 d.C., lembrar velhos e
gastos estereótipos respeitantes aos soldados sírios, é possível que encerre um fundo de
verdade832.
Os que imaginaram os exércitos de Roma como modelos de perfeição, funcionando
com a regularidade exacta de um relógio, não só ignoraram o espectro da eficiência
militar atestado pelos autores antigos, mas igualmente falharam em reconhecer que um
bom moral e uma disciplina efectiva nas unidades militares tinham um preço – uma
eterna vigilância. Ademais, não existem razões para presumir que o padrão da
liderança no enquadramento das forças armadas romanas fosse uniformemente
elevado833.
Havia muito que se adoptara um meio para verificar as condições em que os soldados
e o seu equipamento se encontravam: a parada. Pouco se sabe, em concreto, que forma
assumiriam estas paradas, mas, no dia-a-dia, seriam conduzidas tendo por unidade-
base a centúria, um contingente de cavalaria ou um destacamento. De acordo com a
mencionada passagem de Flávio Josefo, vemos que os milites se apresentavam aos seus
centuriões. Eles talvez o fizessem alinhados em formatura, em amplos terrenos
concebidos para tal efeito, capazes de albergar uma unidade inteira, mas a verdade é
que não dispomos de testemunhos explícitos sobre isto. Flávio Josefo estabelece um
paralelo entre os soldados aguardando pelos centuriões e os movimentos dos clientes
visitando os seus patronos (BJ, 3.87). É provável que algumas destas reuniões tivessem
realmente lugar nos espaços entre os blocos das casernas. Curiosamente, os textos
renuntium de Vindolanda (relatórios diários), compostos poucas décadas após os
acontecimentos descritos pelo historiador judeu, foram escritos e apresentados pelo
optio, o adjunto do centurião, o que sugere que as inspecções diárias se efectuavam ao
nível de postos ou estações de serviço (e. g., Tab. Vind. III.574). Assim, não existia,
necessariamente, uma única parada «regimental» todos os dias.
O grau de atenção conferido à limpeza do vestuário dependeria das circunstâncias
específicas de uma parada. Temos conhecimento de que se esperava que os centuriões e
decuriões possuissem registos actualizados das armas perdidas e garantissem que o
832
E. L. Wheeler, «The laxity of Syrian legions», in D. Kennedy (ed.), The Roman Army in the East, Porstmouth/RI,
1996, pp. 229-276.
833
I. Haynes, «Marking time: temporality, routine and cohesion in Rome’s armies», p. 115.
312
armamento das tropas estivesse em bom estado de conservação. Os textos renuntium
confirmam especificamente que os soldados estavam et impedimenta, isto é, «com o
seu equipamento»834 . As representações plásticas de militares produzidas a partir do
século II também os figuram muitas vezes a envergarem túnicas brancas. Ora estas
exigiam uma limpeza regular para terem bom aspecto, pelo que simbolizavam, em certa
medida, a riqueza e o poder relativos do soldado na sociedade à escala provincial 835.
Para determinadas paradas era preciso, então, trabalho preparatório, o que tinha o
mérito de manter as tropas ocupadas, mas, na realidade, parte dessa tarefa poderia
muito bem recair nas suas famílias, serviçais e escravos. É de suspeitar, em particular,
que os calones que estavam ao serviço dos soldados de cavalaria deviam tratar
sobretudo da manutenção das selas e arreios das montadas. Se, como parece possível,
os seus deveres se estendiam igualmente ao cuidar do próprio equipamento militar ou
da recolha de lenha, fica-nos a impressão de que um cavaleiro desfrutaria de mais
tempo de lazer do que os seus camaradas de infantaria.
As inspecções diárias eram, sem dúvida, essenciais para mais coisas do que somente a
verificação do estado do equipamento. Documentos do século II, achados em Dura
Europos, aludem a enfermidades que afectaram homens pertencentes à cohors XX
Palmyrenorum. A necessidade de conhecer o número de soldados não operacionais,
que constituíam os grupos indiferenciadamente reunidos, na gíria militar britânica, sob
o rótulo de «doentes, aleijados e indolentes» era um aspecto que ocupava um
significativo lugar nos registos castrenses, à semelhança do que sucede nos exércitos
actuais. Documentos como o denominado «Hunt’s Pridianum», produzido pela cohors
I Hispanorum equitata veterana no século II, mostra que a indicação dos soldados
doentes e inaptos para o serviço era um elemento habitual nos relatórios anuais, o qual
permitia às altas autoridades apurarem com exactidão os efectivos nos seus exércitos
(P. Lond. 2851 = Fink 1971, nº 63).
No seio das próprias unidades, efectuavam-se relatórios mais periódicos que se
reportavam a problemas que cedo poderiam conduzir a uma diminuição dos soldados
no activo: numa tabuinha de finais do século I, de Vindolanda, discrimina-se o número
de doentes (15), feridos (6) e dos que padeciam de inflamações nos olhos (10) no dia em
questão, 18 de Maio (Tab. Vind. II, 154, xxii-xxiv). A atenção dispensada às oftalmites,
problema muito comum no mundo antigo, é digna de nota (Horácio, Sat. 1.7.3, sobre
este fenómeno em Roma). Logicamente que tais inflamações oculares preocupavam o
comando num ambiente fechado como um acampamento ou forte, já que elas podiam
ser altamente contagiosas836. Aos soldados forneciam-se pomadas (unguentos) para os
olhos, além de outros tratamentos mais recentes na medicina de então. Em
contrapartida, a massa dos camponeses não beneficiaria destes cuidados, pelo que
recorreria a «remédios» locais. Posto isto, as avaliações regulares dos soldados,
acompanhadas por copiosa documentação, ajudavam a que se pudessem tomar
medidas céleres para impedir o desenvolvimento e a propagação de enfermidades
virulentas.
Esta preocupação oficial pela saúde dos militares também se observa na nomeação de
médicos. Embora os arqueólogos experimentem dificuldades na identificação de certas
estruturas como correspondendo a hospitais ou enfermarias nos castra, preservaram-
se amplas evidências quanto à presença de médicos profissionais adstritos a unidades
de legionários e auxiliares. Houve quem tenha sugerido que as formas de medicina que
estes indíduos praticavam muito dependeriam das origens da unidade em causa, 837 mas
é algo que nos parece improvável. Na realidade, e situando-nos apenas no contexto dos
auxilia, as fontes primárias provam que os médicos militares prestavam assistência a
834
A. K. Bowman e J. D. Thomas, The Vindolanda Writing Tablets. Tabulae Vindolandenses II, Londres, 1994, p. 75.
835
S. T. James, «The community of soldiers: a major identity and centre of power in the Roman Empire», in P. Baker, C.
Forcey, S. Jundi e R. Witcher (eds.), TRACK 98: Proceedings of the Eighth Annual Theoretical Roman Archaeology
Conference, Oxford, 1999, p. 19.
836
L. Allason-Jones, «Health care in the Roman North», Britannia 30 (1999), p. 137.
837
P. A. Baker, «Medicine, material culture and military identity», in G. Davies, A. Gardner e K. Lockyear (eds.), TRAC
2000: Proceedings of the Tenth Annual Theoretical Roman Archaeology Conference, Oxford, 2001, p. 55.
313
unidades de procedências muito diversas. Alguns medici estavam activamente
envolvidos na discussão com a comunidade médica mais alargada a respeito da
adopção dos melhores métodos de tratamento. Atesta-se claramente este intercâmbio
entre as comunidades militares e civis: por exemplo, um medicus na ala Indiana
permaneceu por algum tempo na Germânia e, a seguir, viu-se transferido para a ala III
Asturum em África, antes de, finalmente, passar a atender pacientes civis em Itália
(CIL II 11.3087 = ILS 2542). As ideias postas em prática pelos médicos no serviço
militar podiam conhecer uma aplicação mais generalizada na esfera civil838.
Neste sentido, os relatórios médicos de Dura Europos e de Vindolanda reflectem o
significado para o indivíduo enquanto parte integrante do sistema militar. A sua saúde
inspirava muitos mais cuidados para as autoridades do que os simples habitantes
provinciais. Se bem que esta preocupação se apresentasse como sinal do zelo imperial
pelo bem-estar do soldado, a mesma obedecia a considerações pragmáticas e não a
razões de ordem humanitária. Também se velava pelo tratamento dos cavalos das
unidades militares, visto que os serviços médicos incluíam veterinários. Homens como
Gaius Aufidius, médico especializado em equídeos (hippiatros, que exerceu o seu ofício
na cohors I Thebaeorum equitata, no Egipto), deve ter trabalhado com os seus colegas
profissionais. Afinal, os «Homens e montadas eram igualmente bens imperiais» 839.
Um óstraco do século II, descoberto em Mons Claudianus, ilustra as circunstâncias
mais mundanas da doença e da saúde no ambiente militar, sublinhando o cuidado em
averiguar o paradeiro dos soldados (O. Claud. 384): enviado por um curator, Valens, a
um decurião, o emissor adverte que um miles ausente do presidium desde as 17 00, que
estava doente, não reunia condições para cumprir os deveres que lhe tinham sido
atribuídos. O que mais salta à vista neste documento é a referência a uma hora concreta
do dia: este pormenor, afora demonstrar a rapidez com que se transmitiam as
informações, patenteia a dependência do exército em relação ao relógio. Até o ressoar
da trombeta tinha de ser medida de acordo com alguma unidade de tempo. Sabemos
que os relógios acabaram até por ser introduzidos em assentamentos relativamente
pequenos nas províncias, mas a sua importância para a rotina militar revestia-se de
especial significado. Nos fortes e fortalezas do império, o relógio «regimental» estava
bem à mostra; o mais frequente era encontrar-se nos muros dos próprios principia.
Uma inscrição de 218, descoberta no forte romano de Remagen, na Germânia Inferior,
lembra, no seu tom, os actos de evergetismo assinaláveis em muitas cidades romanas
(CIL XIII.7800): nela se declara que Petronius Athenodorus, comandante da cohors I
Flavia, mandou consertar o relógio de sol às suas expensas, dado que o último já não
indicava as horas correctamente. Justifica-se que perguntemos: estariam os seus
predecessores rotineiramente atrasados, entregues à lassidão ou disporiam de outros
relógios a funcionar no interior do forte?
O controlo do tempo, ao longo das horas a coberto da escuridão, requeria a cooptação
de outro elemento da antiga tecnologia, o relógio de água (clepsydra), para marcar a
passagem da noite840. Aventou-se a hipótese de que um fragmento de liga de cobre,
achado em Vindolanda, pertenceria a um relógio de água anafórico, embora segundo
outra explicação talvez consistisse numa parcela de um calendário perpétuo. Os papiros
do Egipto e da Síria mostram que os soldados, e por vezes os civis, se serviam dos
relógios dividindo este tempo em quatro períodos ou turnos, o que só se conseguia
fazer com o recurso às clepsydrae. De entre os documentos recuperados em Mons
Claudianus (no Deserto Oriental do Egipto), aparecem escalas de serviços para a
guarda, elaboradas para homens que trabalhavam com o exército, mas aparentemente
sendo civis; cada documento contém uma lista de 8 indivíduos por noite e apontam-se
expressamente os numerais indicando quatro turnos 841. Isto revela que os civis que
838
E. g., Pedanius Dioscorides 1.4; R. W. Davies, «The Roman military medical service», Saalburg Jahrbuch 27 (1970),
pp. 84-104.
839
I. Haynes, «Marking time…», p. 117.
840
A. Johnson, Roman Forts of the First and Second Centuries AD in Britain and the German Provinces, Londres,
1983, p. 105.
314
operavam na proximidade do exército também teriam de se habituar a estes sistemas
de ordenamento do tempo.
Para a organização de actividades durante períodos de tempo mais longos, o exército
precisava de utilizar calendários. Na «Casa E4» em Dura Europos, na Síria, é possível
vermos como isto funcionava ao nível das casernas. Numa das paredes do que parece
ter correspondido ao aposento de um oficial, os arqueólogos encontraram vestígios de
um calendário latino842. Com as suas imagens esquemáticas de sete cabeças divinas,
recorda outro calendário idêntico ornamentado por sete divindades romanas, na razão
de uma para cada dia da semana, que se achou no outro extremo do mundo romano,
em Rottweil (Alemanha)843. O que cabe realçar é que os documentos de Dura Europos
provam que se adoptaram vários sistemas de calendários distintos, mas no caso acima
mencionado o oficial responsável impôs que as vidas dos seus homens (e a sua)
decorressem de acordo com um sistema de dias com nomes latinos. Esta nomeação não
deixa de ser significativa, dado que a semana com sete dias tem origens pré-romanas, e
os nomes mais antigos conhecidos atribuídos a estes dias remontam aos Babilónios.
Estamos longe de saber quando é que se generalizou verdadeiramente a semana de
sete dias no império, e até que ponto este fenómeno esteve associado ao exército
romano. No entanto, subsistem indícios de que a semana com sete dias já seria
utilizada pelo exército romano em períodos mais recuados, como sugere o chamado
«Modius Claytonensis», uma unidade de medida que se descobriu perto do forte de
Carvoran, na Muralha de Adriano (RIB 2415.56): o carácter oficial deste vaso de bronze
atesta-se por uma inscrição com títulos imperiais, que permitem datá-lo de c. 90-91.
Como se verificou que a medida continha, na realidade, 17,5 sextarii (perto de 20
pintos [unidade valendo 56,825 cl]), e não os 16 sextarii típicos de um modius, houve
quem tenha defendido que se tratava de um artifício romano, com o propósito de
extrair mais cereais aos desafortunados Bretões do que a quantidade que estariam
obrigados a pagar. Porém, Mann844 demonstrou que não se justifica tal explicação: este
historiador avançou com outra proposta mais credível; a medida seria ideal para
proceder à distribuição de cereais durante sete dias, com uma média de 2,5 sextarii de
grão por dia, valor muito próximo da quantidade que Políbio escreveu que os soldados
de infantaria recebiam para o mesmo período de tempo. Esta interpretação faz todo o
sentido, além de que também ajuda a perceber por que razão os títulos do imperador
surgem no vaso de bronze: era uma garantia simbólica de que os milites recebiam as
rações que necessitavam e, igualmente, uma maneira de lembrar que, tal como a
moeda, o pão diário provinha do próprio princeps845.
Independentemente de se ter adoptado ou não um padrão regular da semana nos
fortes romanos, é altamente provável que se empregassem ciclos de treino baseados em
subdivisões de um mês em muitos castra. Vegécio advogava a realização de marchas de
dez em dez dias, ideia que o autor colheu em obras anteriores dedicadas a assuntos
militares. Também cumpre referir que Avídio Cássio, conhecido comandante
(assassinado em 175), estipulou que todos os soldados deviam exercitar-se com armas
pelo menos uma vez por semana (Hist. Augusta, Avidius Cassius 6.3)e, no século III,
Maximino-o-Trácio pôs, alegadamente, os seus recrutas a efectuar pugnas simuladas de
cinco em cinco dias (Hist. Augusta, Duo Maximi, 6.2), embora estes dois relatos não
mereçam grande credibilidade. Estas sessões de treino podiam, decerto, apontar-se nos
calendários, como o de Dura Europos E4, mas a sua existência não nos ajuda
necessariamente a compreender como se encaixariam na estrutura temporal mais
dilatada usada para a administração militar.
841
A. Bülow-Jacobsen, «Lists of Vigiles (309-356)», in J. Bingen, A. Bülow-Jacobsen, W. E. H. Cockle, H. Cuvigny e L.
Rubinstein, Mons Claudianus. Ostraca graeca et latina II. Claud. 191 à 416, Cairo, 1997, p. 165; O. Claud. 335, 336,
356.
842
M. I. Rostovtzeff, A. R. Bellinger, C. Hopkins e C. B. Welles, The Excavations at Dura-Europos: Preliminary Report
of the 6th Season of Work (1932-33), New Haven, 1936, pp. 40-42, nº 622.
843
P. Goessler,«Ein gallorömischer Steckkalender aus Rottweil», Germania 12 ( 1928), pp. 1-9.
844
J. C. Mann, «A Note on the “Modius Claytonensis”», AA 5th serv. 12 (1984), pp. 242-243.
845
I. Haynes, «Marking time […]», p. 119.
315
Porém, não resta dúvida alguma é quanto à maneira como o tempo regulado se
empregava para manter os soldados em boa forma física, ocupados e sob controlo.
Fazendo eco das fontes que consultou, Vegécio (Ep. rei mil. 3.2) afirmou que desta
maneira se evitava que os soldados se amotinassem, acrescentando que os exercícios
militares diários eram «bem mais benéficos do que a medicina». Assim, uma vez mais,
todo o sistema reforçava-se a si próprio, assegurando que, pelo menos em teoria, os
exércitos de Roma permaneciam activos e fiéis. Note-se que em algumas unidades (ou
talvez todas), até dos serviçais dos soldados se esperava que adquirissem alguns
talentos marciais, incluindo a natação (Vegécio, Ep. rei mil., 1.10). Ora isto conduziria a
que também eles participassem nos programas de treino nos castra.
Muito já se escreveu acerca da importância das hierarquias enquanto instrumento
para a preservação da ordem nas forças armadas de Roma. Mais recentemente, vários
estudiosos exploraram o papel que as instalações militares desempenharam como
espaços organizados para manter o controlo sobre os milites. Todavia, estas duas
facetas dependiam do uso e da gestão do tempo, a fim de de garantir que os homens se
encontrariam ocupados e devidamente dirigidos, na medida em que o colapso da rotina
rapidamente podia ocasionar o colapso da ordem militar. Na opinião de Ian Haynes,
«O reconhecimento [deste facto] ditou as decisões e as actividades de muitos
comandantes ao longo dos tempos, mas a sagaz combinação de relógios, calendários e
documentos foi uma inovação que muito ajuda a explicar o êxito duradouro dos
exércitos de Roma»846.
«Que grande coragem se revela? O gládio [está vermelho de matar inimigos] e gasto com o massacre. A
[lança, através da qual os ferozes] bárbaros são trespassados e tombam, completa [o troféu]» 847.
846
Ibidem, p. 119.
847
ILS, 939, texto inscrito num monument erigido no Monte Eryk, na Sicília.
848
J. Keegan, A History of Warfare, Londres, 1993, p. 267.
849
B. J. Campbell, «Teach yourself how to be a general», JRS 77 (1987), pp. 13-29.
316
certas situações, e os soldados não aparecem tratados enquanto verdadeiros
indivíduos850. Saliente-se igualmente que tais textos foram redigidos sob o ponto de
vista dos autores pertencentes à elite dirigente, que não se interessava em relação à vida
do soldado raso, assim como ignorava e desprezava usualmente as camadas sociais
inferiores851. Ainda assim, subsistiram alguns testemunhos directos em relação aos
sentimentos daqueles que enfrentavam os Romanos em combate852.
Em certos casos, as récitas das batalhas são emotivas e retóricas, embora se deva
conseguir distinguir entre o embelezamento de um relato factual e uma construção
literária apenas fruto da imaginação do autor. Houve quem tenha sustentado que a
tradição narrativa romana, mais do que a grega, veio a persistir na literatura europeia
ulterior e na história militar, na qual amiúde se simplifica a caracterização e as
motivações dos legionários, mostrando-os basicamente como uma espécie de
«autómatos» obedientes853.
Seja como for, agiríamos irreflectidamente se excluíssemos por completo as antigas
narrativas de batalhas ao elaborar uma abordagem sobre a natureza da guerra. Se
pegarmos nos elementos individuais contidos nas descrições de diferentes autores
concernentes a distintos períodos históricos, é possível ensaiarmos uma tentativa de
reconstituição moderna do que «devia ser» uma antiga batalha.
As narrativas de outrora proporcionam um contributo significativo, quanto mais não
seja porque alguns dos autores foram personagens destacadas na vida e na
administração romanas: Tácito, por exemplo, ocupou um cargo elevado e possuía no
seu sogro, Agrícola, um excelente filão informativo sobre factos e aspectos de carácter
militar; Díon Cássio, por seu turno, comandou tropas, pelo menos quando foi
governador da Panónia, se bem que não em serviço activo, ao passo que Flávio Josefo
exerceu a função de comandante das forças judaicas na Galileia, durante a revolta anti-
romana de 66 d. C. Escritores com estes antecedentes expressaram aquilo que os seus
contemporâneos mais esclarecidos pensavam acerca da natureza e psicologia das
batalhas na Roma imperial. Neste sentido, é importante verificarmos como eles
definiram o fenómeno bélico e relataram os episódios que reputaram de mais
marcantes. Na realidade, isto faz parte integrante do complexo meio cultural e
intelectual daquele género de homens que, na sociedade antiga, chefiaram soldados nas
batalhas. Citemos, a propósito, um trecho de B. J. Campbell:
«Considero as narrativas de batalhas um valioso testemunho, [mas] a serem utilizadas cautelosamente
com outro material disponível para se recriar, realisticamente, a experiência do soldado em batalha,
embora a linha divisória entre facto e embelezamento literário possa, por vezes, diluir-se» 854.
Fundamentando-nos nestas fontes, podemos também compreender melhor como o
exército operava, já que a natureza de uma batalha depende parcialmente do tipo de
850
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome 31 BC-AD 284, p. 47.
851
Cf. infra.
852
Na sua obra The Roman Army at War (pp. 39-68) A. Goldsworthy aborda a natureza do comportamento bélico dos
Germanos, Gauleses e dos Partos, que lutaram contra os Romanos neste período, mas as informações que utilizou
derivam, em larga medida, das fontes romanas.
853
Haja em vista, por exemplo, John Keegan, The Face of Battle, Londres, 1976, pp. 61-68. Julgamos que a crítica de
Keegan sobre os Commentarii de Bello Gallico (2.25) não é correcta (a mesma passagem da obra cesariana foi citada,
aliás, pelo mesmo historiador no livro A History of Warfare, p. 269, caracterizando-a como uma «descrição gráfica da
realidade da guerra praticada pelo legionário). O episódio relatado constitui, verdade se diga, um caso excepcional da
intervenção pessoal de César num momento de crise bem séria, e ele tentou explicar o que aconteceu quando muitos
centuriões haviam perecido, o que conduziu a que a linha de batalha começasse a ceder e cada vez mais soldados se
foram afastando da acção. Na realidade, Júlio César não sugere que os legionários eram títeres, mas apenas que se
mantiveram os suficientes em posição para aguentar a linha de combate. O cotejo com a narração da batalha de
Tucídides não se reveste de utilidade, na medida em que trata de uma modalidade diferente de refrega (com hóplitas),
além de serem igualmente distintos aspectos como a experiência e o carácter das tropas e o papel desempenhado pelo
comandante.
854
War and Society in Imperial Rome, p. 48. A. Woodman (cf. «Self-imitation and the substance of history», in D. West
e A. Woodman [eds.] Creative Imitation and Latin Literature, Cambridge, 1979, pp. 143-155) argumentou que Tácito,
na sua descrição da descoberta do local onde Varo e as suas legiões sofreram uma devastadadora derrota ( Anais, I, 61-
62), inventou detalhes extraídos de uma passagem das Histórias, relativa à cena após a batalha de Cremona. Neste caso,
porém, não nos parece que as semelhanças tangenciais entre trechos com assuntos idênticos correspondam
efectivamente a uma «substantive imitation».
317
unidades envolvidas e na sua disposição em combate, e apreciarmos os factores
explicativos subjacentes aos êxitos militares obrados por Roma 855.
No século II da nossa era, o exército romano compreendia 170 000-180 000 legionários
e, talvez, uns 220 000 auxilia856. Mas nenhuma província dispunha de mais de três
legiões aboletadas em simultâneo; a este respeito, salientemos que a Britânia tinha um
dos maiores exércitos provinciais, com um total combinado de uns 50 000 legionários e
tropas auxiliares. As legiões actuavam, essencialmente, como infantaria pesada. Quanto
aos auxilia, forneciam a cavalaria, diversos especialistas no arremesso de projectéis
(designadamente archeiros) e, também, infantaria, em geral provida de um
equipamento mais ligeiro. No exército da República, a cavalaria revelou-se, amiúde, um
ponto fraco: por exemplo, as derrotas romanas sofridas às mãos de Aníbal deveram-se
em larga medida ao facto de os Cartagineses serem significativamente superiores nesta
arma. Parte do problema radicava nas despesas e na dificuldade de os Romanos
manterem grandes quantidades de equídeos em Itália. Note-se que na fase inicial da
República a constituição apenas provia 1800 cavalos custeados pelo Estado.
Não admira, portanto, que Roma tenha recrutado a cavalaria dos seus aliados itálicos,
mas a experiência ensinou os empreendedores comandantes romanos a buscar
contingentes de forças montadas mais eficientes noutras paragens. Os Númidas
tornaram-se populares e Júlio César serviu-se especialmente de unidades de cavalaria
gaulesa e germânica, muitas vezes estando as mesmas sob a liderança directa de
«príncipes» nativos.
Na época imperial, estas tropas viram-se progressivamente incorporadas na estrutura
formal do exército, repartidas em alae e equipadas com lança, espada e escudo 857.
Ocasionalmente ainda se empregou outro género de cavaleiros, como, por exemplo, os
já mencionados mauri sob o comando de Lúsio Quieto (Lusius Quietus), que serviu
Trajano e mais tarde se tornou cônsul e governador da Judeia 858. É muito difícil
determinarmos os efectivos globais da cavalaria no seio do exército romano, visto que
se afigura impossível rastrearmos todas as unidades de auxilia ao serviço de Roma em
determinado momento histórico.
Porém, sabemos que havia alae de cavalaria estacionadas em todas as províncias
guarnecidas com legionários e, na Mauretania Caesariensis, que não tinha legionários,
havia forças substanciais de cavalaria, ascendendo aproximadamente a 4 000 homens.
No século II d. C., o exército englobaria possivelmente uns 50 000 cavaleiros 859.
Os pretorianos, a guarda de corpo do imperador, totalizavam 10 000 homens,
agrupados em coortes, e havia um destacamento especial que acompanhava
habitualmente o princeps em campanha. No entanto, apesar de estarem equipados
como infantaria pesada de elite, captamos poucos indícios de que eles produzissem
algum impacto táctico específico no campo de batalha. Por último, como já tivemos a
855
Sobre a experiência do exército romano em combate, veja-se A. Goldsworthy, The Roman Army at War: o autor
conferiu especial ênfase aos soldados a nível individual, e às maneiras como eles reagiam face á pressão e nervosismo
durante uma contenda. Remetemos igualmente para dois artigos: A. D. Lee, «Morale and the Roman experience of
battle», in A. B. Lloyd (ed.), Battle in Antiquity, Londres/Swansea, 1996, pp. 199-217; e o já varias vezes aqui citado de
P. Sabin, «The face of Roman Battle», JRS 90 (2000), pp. 1-17.
856
Em 14 d. C. havia 25 legiões e, no século II, 33. Sobre os auxilia, cf. P. A. Holder, Studies in the Auxilia of the Roman
Army from Augustus to Trajan, Oxford, 1980.
857
As cohortes equitatae não combatiam, aparentemente, como um grupo táctico compósito.
858
Díon Cássio, 68.32.
859
A este respeito: G. L Cheesman, The Auxilia of the Roman Imperial Army, Oxford, 1914 (obra reimpressa em 1971),
«Appendix 1»; P. A. Holder, Studies in the Auxilia of the Roman Army, pp. 7-13; D. B. Saddington, «The development of
the roman auxiliary forces from Augustus to Trajan», in Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II.3, (1975), pp.
176-201.
318
oportunidade de constatar, cada legião possuía um conjunto de máquinas de assédio 860,
as quais se viam reforçadas, durante as expedições, por outros engenhos construídos
nos próprios locais de operações.
A estrutura do exército permitia atingir os típicos objectivos de guerra perseguidos
pelos Romanos, nomeadamente o de atrair consideráveis forças inimigas a um local
onde se livraria batalha, vencê-las e, tornar qualquer resistência adicional inexistente,
ao cercar e conquistar as as suas praças-fortes ou cidades. Em geral, os Romanos não
utilizavam a diplomacia para recrutar aliados militares para as suas guerras. Eles não
encaravam os outros povos como tendo suficiente categoria e capacidade bélica.
Contudo, os Romanos exigiam a diversos povos estrangeiros, por meio de cláusulas
incluídas nos acordos de paz, o fornecimento de tropas. Quando Marco Aurélio
negociou com os Iazigues, estes foram obrigados a ceder 8 000 homens de cavalaria,
alguns dos quais foram imediatamente enviados para a Britânia 861. Porém, como
adiante pormenorizaremos, no Baixo-Império tornou-se cada vez mais comum os
Romanos empregarem bárbaros, mesmo tratando-se de antigos inimigos, para
combater nas suas fileiras. Estes indivíduos, que presumivelmente adoptavam os seus
próprios métodos de combate, vieram então a estabelecer-se no império 862.
Em quase todos os períodos, os imperadores esperavam dos reis «amigos»,
teoricamente independentes mas dentro da órbita da influência romana, que
facultassem tropas, quando necessário, para participarem em campanhas 863: um dos
melhores casos ilustrativos teve lugar no início do Principado, com a criação, por
Augusto (por volta de 25 a. C.) da legio XII Deiotariana, cujos efectivos procederam do
exército do rei Deiotarus da Galácia, que o princeps mandou equipar e treinar com
base no modelo romano864. Situando-se num nível mais limitado, quando, em 25 a. C.
Augusto ordenou a invasão da Arábia, as forças comandadas por Aelius Gallus, prefeito
do Egipto, compreenderam, para além dos legionários e dos auxilia, 500 homens do rei
Herodes e 1000 de Obodos, soberano dos Nabateus 865.
De modo similar, aproximadamente em 135 d. C., quando Arriano, governador da
Capadócia, organizou a resistência armada face à invasão dos Alani, as suas tropas,
afora incluírem soldados regulares romanos, também comportaram contingentes
aliados oriundos da Arménia Inferior e de Trapezus, bem como lanceiros de Colchis e
de Rhizion866. É, aliás, possível que os Romanos tenham recorrido a este tipo de apoio
militar em muitas mais ocasiões do que as conhecemos, só que faltam provas
documentadas a este respeito. Todavia, é pouco provável que tal apoio alguma vez se
revelasse decisivo na concretização dos objectivos do exército romano. Os Romanos
fiavam-se, acima tudo, nos seus próprios recursos militares.
Como anteriormente vimos, o então Octávio e depois Augusto ganhou finalmente o
controlo do mundo romano em 31 a. C., mediante a vitória na batalha naval de Actium.
Acto contínuo, ele criou a primeira marinha de Roma, que teve como bases Misenum e
Ravenna, as quais protegiam as linhas costeiras ocidentais e orientais de Itália.
Subsequentemente estabeleceram-se mais esquadras em rios e junto de zonas
litorâneas em que os Romanos estiveram militarmente activos, sobretudo na Germânia,
Britânia, no Danúbio e no mar Pontico. Estas forças totalizaram 30 000 homens,
recrutados entre os não-cidadãos nas províncias. As frotas transportavam usualmente
oficiais e dignitários, assim como víveres para o exército.
860
Vegécio, Ep. de rei mil. 2.25.
861
Díon Cássio, 71.16.2.
862
A. H. M. Jones, The Later Roman Empire 284-602, Oxford, 1964, pp. 619-623; G. E. M. de Ste Croix, The Class
Struggle in the Ancient Greek World, Londres, 1981, pp. 509-518.
863
Para este aspecto em geral, consulte-se D. C. Braund, Rome and the Friendly King. The Character of the Client
Kingship, Londres/Camberra/Nova Iorque, 1984.
864
Bell. Alex., 34.4.
865
Estrabão, 16.4.23 (780).
866
Ectaxis, 7: tradução em B. J. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, nº 153. Não fica claro que uso os
Romanos fariam das milícias locais, que se afiguravam frequentemente de duvidosa qualidade e pouco fiáveis.
319
A marinha ajudou eficazmente na supressão da pirataria e servia, igualmente, como
meio de transporte de tropas867: por exemplo, em 66 d. C., Céstio Galo enviou um
destacamento dos seus soldados a bordo de um navio, para tomar de surpresa a cidade
costeira de Jopa868. Por vezes, os meios navais actuavam como parte integrante de
operações combinadas, haja em vista o episódio em que Germânico desencadeou uma
campanha contra as tribos germânicas para lá do Reno, mandando alguns dos seus
efectivos através do mar do Norte e depois pelo rio Sem acima. Mas a operação não
significou um êxito total, devido às más condições meteorológicas e a tempestades 869.
As campanhas contra a Pártia, que habitualmente implicavam um ataque sobre a
capital inimiga de Ctesifonte, eram esporadicamente apoiadas por acções navais no
Eufrates ou no Tigre, com os navios servindo aparentemente como veículos de
transporte de soldados e como «cargueiros» de provisões 870. Normalmente, a marinha
romana não se encontrava a encabeçar a linha da frente das operações bélicas (salvo
nas expedições de 55 e 54 a. C. de César à Britânia, na invasão desta, em 43 d. C., sob
Cláudio, em que assumiu claro protagonismo no transporte dos soldados e das
provisões, ou ainda no atribulado «ano dos quatro imperadores», em 69), nem fazia
parte da estratégia, nem contribuía para vitórias decisivas. Nos primeiros três séculos
da nossa era, não se colhe registo de qualquer batalha naval significativa, nem tão
quanto algum relato descrevendo como era a vida no mar a bordo de uma galé de
combate. O controlo da área mediterrânica pelos Romanos dependia do poder do seu
exército e da sua dominação do território junto às suas faixas litorais. Ainda assim, há
que não subestimar o papel e a função que as forças navais desempenharam em vários
conflitos.
Quanto à experiência dos soldados em combate (cf. infra), ela dependia da natureza da
guerra. As tropas romanas participavam, em regra, em campanhas externas, isto é,
num género de guerra tradicional contra povos militarmente inferiores fora do império
ou na sua periferia, com o objectivo de os punir ou subjugar. No Ocidente, os Romanos
defrontavam frequentemente hordas tribais que efectuavam, em muitas ocasiões, uma
só investida, impetuosa e temerária, ou então, no Oriente, lutando contra as bem mais
evoluídas unidades de cavaleiros e de arqueiros partos. Esperava-se que o exército
romano vencesse tais batalhas, embora em certas alturas as contendas podiam suscitar
problemas em termos tácticos.
Pelo contrário, as guerras civis colocavam exércitos romanos treinados pelejando uns
contra os outros, estando eles providos do mesmo tipo de armas e utilizando as mesmas
tácticas e estratagemas. Nestas conflagrações, é muito possível que se registasse maior
número de baixas, além de uma destruição e de uma devastação numa amplitude
superior, no seio do próprio império. Assinale-se também que estes conflitos também
faziam levantar uma questionável dimensão moral e, talvez, problemas de motivação.
Tácito ilustra tal facto com um episódio ocorrido nas guerras civis em Itália (68-69 d.
C.): um filho matou involuntariamente o próprio pai, reconhecendo-se um ao outro
quando o primeiro buscava a sua vítima semi-consciente. Quando outros soldados
repararam no que havia sucedido, «ao longo das linhas de batalha correu uma torrente
de estupefacção e de indignação, e os homens amaldiçoaram esta guerra como a mais
cruel de todas. No entanto, isto não os impediu de matarem e roubarem parentes,
conhecidos e irmãos»871.
O exército romano também porfiou em guerras intestinas na qualidade de força virtual
de ocupação, no contexto das quais sufocou revoltas locais, eliminou bandidos, levou a
cabo actividades policiais e, em alguns casos, consolidou zonas recentemente
conquistadas. Em determinadas partes do mundo romano, terá sido efectivamente
867
Para uma visão global: C. G. Starr, The Roman Imperial Navy 31 BC-AD 324, Cambridge, 1960; idem, The Influence
of Sea Power on Ancient History, Oxford, 1989, pp. 67-81.
868
F. Josefo, B. J. 2.507-508.
869
Tácito, Ann. 1.60, 63, 2.5-6, 23-25.
870
E. g, a campanha de Trajano em 116 d. C. (Díon Cássio, 68.26).
871
Tácito, Histórias, 3.25.
320
complexo distinguir entre um estado de paz e a própria paz. Na Judeia, por exemplo,
grassou uma violência endémica e uma resistência ideológica em relação ao jugo
romano, e as sublevações judaicas de 66 a 70, de 115 a 117 e de 132 a 135 assumiram
contornos de uma guerra em larga escala 872.
Tácticas de combate
As tácticas ditavam como se desenrolaria uma refrega, pelo que ajudavam a modar a
experiência dos soldados a nível individual. As tácticas romanas tendiam a ser
relativamente simples, baseadas na estrutura do exército, nass práticas militares
tradicionais e num leque restrito de manobras e estratagemas, em que as proezas dos
antigos generais exerciam uma importante influência 873. Cada legião continha
nominalmente 5240 homens e seria provavelmente desnecessário para os Romanos
empregarem uma formação maior, já que a maior parte das guerras contra inimigos
estrangeiros se realizaram com exércitos relativamente pequenos. A subdivisão da
legião em 10 coortes874 aliava a flexibilidade à força, uma vez que as coortes podiam
operar autonomamente e, se necessário, mudarem de posições no campo de batalha;
também eram rapidamente manobradas, a fim de se concentrar todo o poderio da
legião num ponto particular. Os estandartes legionários serviam como importantes
pontos de reunião e de referência visual.
Os comandantes dispunham, como atrás dissemos, a legião normalmente em duas ou,
mais correntemente, três linhas (triplex acies), uma por detrás da outra; a terceira
linha tinha amiúde a função de uma espécie de reserva táctica. Aparentemente, na
primeira linha posicionavam-se quatro coortes, e, em cada uma das outras duas, três
coortes. Uma coorte de 480 homens, caso estivesse repartida em três fileiras, ocuparia
uma área de aproximadamente 146 x 6,4 m. A principal coorte provavelmente teria o
dobro do tamanho das demais, preenchendo um espaço de cerca de 247 x 6,4 m 875.
Afigura-se altamente improvável que uma legião avançasse numa linha de batalha
contínua. As coortes dispunham, em princípio, de espaços entre elas, pelo menos até ao
momento de entrar em contacto directo com o inimigo. Então, os espaços seriam
preenchidos pelas coortes na segunda fila, completando a linha da frente, ou por cada
coorte na primeira fileira estendendo a sua frente, o que permitia mais espaço aos
soldados para se servirem das suas armas.
Para decidir desdobrar a legião numa frente de combate em profundidade, um
comandante precisava de tomar em consideração o número e a disposição das forças
inimigas. Como os legionários romanos eram homens especialmente treinados a
manusear o gládio, importava pôr em acção muitos deles para lutarem contra o
antagonista. Ora isto significaria uma formação com pouca profundidade sobre uma
frente alargada. Mas, frequentemente, revelou-se difícil manter as tropas em devida
ordem, ao marcharem ao longo de uma vasta frente, em especial em terreno
acidentado. Caso se empregasse uma formação estreita e mais profunda, limitar-se-ia o
número de soldados em contacto com o inimigo876.
872
Para uma perspectiva abrangente, vejam-se: B. Isaac, The Limits of Empire. The Roman Army in the East, pp. 77-89;
R. Alston, Soldier and Society in Roman Egypt, Londres/Nova Iorque, 1995, pp. 74-79.
873
J. B. Campbell, «Teach yourself how to be a general», pp. 13-29; A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 141-
145.
874
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 36.
875
Ibidem, p. 51.
876
A. Goldsworthy, The Roman Army at War, p. 138. Neste tipo de formação, duas centúrias (cada uma com 80
homens) podiam ficar alinhadas lado-a-lado, posicionando-se as restantes quatro centúrias nas duas fileiras mais atrás.
M. P. Speidel (Roman Army Studies II = Mavors. Roman Army Researches VIII, Estugarda, 1992, pp. 20-22) sugeriu
que cada centúria formava uma linha com quatro filas de profundidade e se colocava uma atrás de outra, produzindo
321
Como anteriormente também vimos, a infantaria auxiliar, a cavalaria e os combatentes
especialistas viam-se agrupados em coortes substanciais ou alae, unidades com 480 ou,
ocasionalmente, 800 homens, que se podiam movimentar da mesma forma que as
coortes de legionários877.
Normalmente, os soldados romanos estavam organizados numa ordem de batalha que
compreendia a infantaria legionária e auxiliar no centro, ao passo que a cavalaria se
encontrava nos flancos para proteger as tropas apeadas e repelir as forças adversas. No
que respeita às reservas de infantaria ou de cavalaria, podiam ser encarregadas de agir
como uma força de emboscada ou de torneamento, ou ainda para rechaçar arremetidas
do oponente. O terreno e as fortificações ofereciam maior protecção, mas os
comandantes geralmente optavam por prosseguir com a ofensiva e a infantaria, por
norma, é que decidia o desfecho da contenda878.
Em 60 d. C., Suetónio Paulino atraiu Boudica (nas fontes latinas chamada Boadicea) e
os rebeldes britânicos a livrar batalha, adoptando a formação clássica acima descrita,
com toda a sua infantaria no centro e a cavalaria nas duas alas 879. Germânico, por seu
lado, aplicou imaginativamente tal género de formação em 16 d.C., durante a sua
expedição ao longo do Reno contra os Cherusci, uma tribo germânica: ele conseguiu
dispersar a furiosa carga do inimigo por meio de um ataque da cavalaria no flanco, de
uma incursão, por outro contingente montado, na retaguarda dos Cherusci, e de uma
arremetida frontal da infantaria880.
Bastante depois, na batalha de Issus em 194 d. C., em plena guerra civil, Cornélio
Anulino, comandante das forças de Septímio Severo, colocou a sua infantaria ligeira e
os archeiros atrás da linha composta pelos legionários, para que os primeiros
disparassem as setas, numa «barragem» concertada, por cima das cabeças dos
legionários; despachou, também, uma força de cavalaria para desencadear um ataque-
surpresa na retaguarda do inimigo. Contudo, de novo foi o choque da infantaria que
decidiu o prélio881.
O comandante estava pessoalmente a cargo das tácticas utilizadas no campo de batalha;
muitas vezes, ele ocupava uma posição atrás da principal linha de combate, onde podia
ser visto por algumas das suas tropas, pelo menos, e facilmente contactado pelos
mensageiros882. Alternativamente, ele podia cavalgar em torno de diferentes zonas do
campo de batalha e tomar medidas a partir da sua própria observação ou com base em
conselhos dados por oficiais in situ883.
Em regra, o comandante auscultava os seus oficiais num conselho de guerra e, nesta
reunião, certificar-se-ia que havia uma eficaz cadeia de comando a funcionar no
decurso de um confronto884. Arriano, por exemplo, organizou a sua linha de batalha
contra os Alani, a fim de que Valens, legado da legio XV Apollinaris, pudesse comandar
globalmente a ala direita, enquanto os tribunos da XII Fulminata (na ausência do
legado) chefiariam o flanco esquerdo. Existiam, igualmente, comandantes
subordinados de cavalaria e de tropas ligeiras885.
uma largura composta por vinte fileiras e uma profundidade de 24 na unidade. No entanto, numa batalha campal, tal
profundidade seria excessiva, já que limitava insensatamente o número de soldados que defrontariam o inimigo em
corpo a corpo.
877
A. Goldsworthy (The Roman Army at War, p. 140) estimou que o comprimento da vanguarda de uma legião em
ordem de batalha, com três coortes de 480 homens e uma de 800 na linha da frente, seria de aproximadamente 1125 m
(tendo em conta os intervalos entre as coortes).
878
A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 137-139, 176-183.
879
Tácito, Anais, XIV, 34; Díon Cássio (628.2-3) pensou que a esmagadora superioridade numérica do inimigo é que
obrigou Paulino a certificar-se que as três partes do seu exército podiam combater autonomamente.
880
Tácito, Anais, II, 16-17.
881
Díon Cássio, 75.7.
882
Na batalha de Mons Graupius, Agrícola mandou embora o seu cavalo e permaneceu à frente dos estandartes, mesmo
por detrás da principal linha de batalha das tropas auxiliares (Tácito, Agricola, 35.4).
883
A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 150-163.
884
Onasander, Arte do General, 25.2. Recorde-se que este autor estava a escrever no século I da nossa era.
885
Arriano, Ectaxis, 14-24. Tradução em B. J. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, pp. 97-98. Consulte-se,
igualmente, A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 131-133, 140-141.
322
A maior parte das batalhas principiava, como diversas vezes referimos, por uma
saraivada de dardos e de outros projectéis, com o intento expresso de romper e
fragmentar a formação do adversário. Depois, a infantaria desembainhava os gládios e
avançava para o corpo a corpo, altura em que o confronto degenerava numa série de
combates singulares886.
Na realidade, havia poucas oportunidades para se mudar este tipo de táctica.
Ocasionalmente, todavia, os comandantes punham em acção aquilo que podemos
designar como «artilharia de campo», ou seja, um conjunto de pequenas catapultas
portáteis (que lançavam virotões e flechas de grandes dimensões) puxadas por mulas,
as quais operavam com base no mesmo princípio que as máquinas de assédio 887. Na
segunda batalha travada em Bedriacum, durante a guerra civil de 69 d. C., as forças de
Vitélio conseguiram concentrar a sua artilharia (incluindo catapultas de considerável
tamanho) num sítio elevado, com uma visão sobre a terra a descoberto e os vinhedos
em redor. Tácito descreve-nos esta cena:
«Os seus disparos foram inicialmente esporádicos, e os tiros atingiram as estacas das vinhas, sem ferirem
o inimigo. A legio XVI tinha uma enorme peça de campanha, que arremessava pedras maciças. Estas
estavam agora a ceifar os efectivos da linha da frente adversa e teriam infligido uma maior derrota, não
fosse um acto de heroismo por parte de dois soldados».
Estes lograram infiltrar-se nas fileiras do oponente, utilizando escudos de legionários
inimigos tombados em combate para dissimularem a sua identidade, e cortaram as
cordas que accionavam o engenho. Foram, quase de imediato, mortos, mas a catapulta
ficou inutilizada888.
Não obstante a natureza um tanto conservadora das tácticas romanas, os comandantes
demonstraram flexibilidade, ao terem a capacidade de adaptar e desenvolver os seus
métodos face a novos ou invulgares tipos de guerra. Em 22 d. C., Bleso, governador de
África, teve de lidar com Tacfarinas, que até aí realizara uma campanha de guerrilha
bem-sucedida, servindo-se de pequenos grupos de soldados que agiam mediante
ataques consecutivos e súbitas retiradas. Bleso resolveu, então, dividir o seu exército
em pequenas formações autónomas, sob as ordens de oficiais experientes, as quais
eram altamente móveis e se tornaram especializadas em combater no deserto.
Construiram-se fortes para cercar o inimigo e as tropas mantiveram-se em constante
prontidão para actuar, com o objectivo de atormentar Tacfarinas ao longo do
Inverno889.
Contra os Partos, os Romanos enfrentaram uma ameaça mais persistente, já que eles
empregavam arqueiros montados e formidáveis forças de cavalaria, algumas delas
couraçadas. Inicialmente, os comandantes romanos recorreram a um dispositivo que
consistia num quadrado oco defensivo, com o trem das bagagens no meio, mas tal
formação viu-se esmagada na batalha de Carras, em 53 a. C. Doravante, os Romanos
passaram a usar archeiros e fundibulários para manter a cavalaria inimiga à distância, e
também desenvolveram a adopção do testudo («tartaruga») em batalhas campais890:
neste caso, a primeira fila de legionários ficava ajoelhada, com os escudos colocados à
sua frente, enquanto as seguintes linhas os colocavam sobre as suas cabeças,
constituindo uma barreira ao jeito de um telhado.
Em 135, Arriano, ao defender a Capadócia dos Alani, que possuíam cavaleiros
couraçados, dispôs os seus legionários numa formação defensiva semelhante à falange
grega, na qual os que se encontravam nas primeiras fileiras eram portadores de longas
lanças de contacto. Ele apoiou este dispositivo com significativas forças de cavalaria e
uma «barragem» concentrada composta por homens arremessando projécteis, dando
assim início ao combate. Aqui vemos a importância de uma formação defensiva
886
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 56.
887
Máquinas que aparecem representadas nos relevos da Coluna de Trajano: cf. I. A. Richmond, Trajan’s Army on
Trajans Column (2ª edição, editada por M. Hassall), Londres, 1982, p. 17, est. 3; F. A. Lepper e S. Frere, Trajan’s
Column, Gloucester, 1988, cena XL, est. XXXI.
888
Tácito, Histórias, III, 23 (tradução de K. Wellesley, Penguin, 1964, p. 159).
889
Tácito, Anais, III, 73.
890
J. C. N. Coulston, «Roman, Parthian and Sassanid tactical developments», in D. Freeman e D. Kennedy (eds.), The
Defence of the Roman and Byzantine East, Oxford, 1986, pp. 59-75.
323
quadrangular enquanto meio para resistir a um ataque inimigo. Até aos tempos
modernos, este género de formação assumiu grande impacto psicológico para os
soldados, devido à impressão que causava de força e de segurança, além do acrescido
grau de proximidade entre os camaradas891.
Claro que através de cuidadosas medidas antes da batalha e de tácticas sólidas e
eficazes durante a mesma, um general buscaria manter o moral elevado e incutir
confiança, a qual, por sua vez, se instilava pelo treino e pela vida na comunidade
militar. Os escritores que se centraram nos estratagemas militares enfatizaram
frequentemente a importância do talento do general em compreender bem a psicologia
da guerra. Fazia parte da preparação táctica para uma refrega enganar o inimigo,
levando-o a pensar que a sua situação era ainda pior do que realmente acontecia, e
montar o ardil «clássico» de o convencer que as forças adversas eram mais numerosas
do que os efectivos autênticos892.
Assim, um general romano podia notabilizar-se não tanto pela aplicação de tácticas
inovadoras, mas, acima de tudo, pelos seus meticulosos preparativos antes do combate
e pela adequada organização das unidades do seu exército 893. Ademais, em tudo isto, ao
mostrar um comportamento determinado, auto-confiança e valor (virtus), ele reunia
condições para exibir uma forte liderança moral, encorajando os seus homens,
aumentando o grau de combatividade dos mesmos, afastando o medo das suas mentes
e valorizando, ao mesmo tempo, a sua capacidade empreendedora.
Onasander, no seu manual consagrado ao generalato, resume desta forma as
qualidades requeridas a um chefe militar:
«Como a aparência dos comandantes tem um efeito correspondente nos espíritos dos comandados, se o
general mostra bom semblante e parece satisfeito, o exército também se vê encorajado, ao acreditar que
não existe perigo. Mas, se ele parece assustado e apreensivo, as mentes dos soldados deixam-se influenciar
pelo seu comportamento, convencendo-se que está prestes a ocorrer um desastre» 894.
A experiência da batalha
324
germânicos, cujas expressões faciais e olhar feroz não seriam suportáveis em combate.
O dictator resolveu convocar uma reunião para dissipar o medo nos seus homens 897.
Em 53 a. C., quando os Partos avançaram em direcção aos Romanos em Carras, os
primeiros fizeram rufar, simultaneamente em diversos pontos do campo de batalha,
tambores898 providos de sinos de bronze, o que provocou um som aterrador:
«Aparentemente, eles [os Partos] verificaram que, de todos os nossos sentidos, o da audição é o que tem
o efeito mais perturbador, rapidamente agita as nossas emoções e destrói eficazmente o nosso
discernimento»899.
Estes exemplos mostram o importantíssimo papel desempenhado pelos olhos e pelos
ouvidos nos vetustos campos de confronto, além de que sublinham o poder da vertente
psicológica na guerra900.
Quem combatesse nas fileiras do exército romano passava, obviamente, por uma
intensa e árdua experiência pessoal, envolvendo choques corpo a corpo, em que os
soldados empregavam a força muscular e armas cortantes para infligir ferimentos bem
visíveis, que gerassem abundante efusão de sangue. O pilum, não será demais repetir,
constituía a arma tradicional dos legionários, tendo uma comprida haste de ferro (com
cerca de 60 mm), dotada de uma ponta acerada com forma piramidal. Como vimos
anteriormente, este tipo de dardo fora concebido para se quebrar ou torcer aquando do
seu impacto no alvo, a fim de que não pudesse ser reutilizado pelo antagonista e
lançado de volta. Qualquer escudo em que se cravasse um pilum ficava, quase de
imediato, inutilizável. Como o seu peso se concentrava atrás da sua ponta, o pilum
tinha força mais do que suficiente para penetrar um escudo, uma armadura, e a sua
longa cabeça conseguia atingir o corpo do soldado inimigo 901. No entanto, se
arremessado a uma distância de 30 m, o poder de penetração era claramente menor.
Depois de atirarem os pila, os legionários seguiam para o corpo a corpo, empunhando
um gládio de dois gumes, cuja lâmina media entre 40 e 55 cm de comprimento, e uma
ponta bem aguçada e de secção triangular, que variava entre os 9,6 e os 20 cm de
comprimento. Este tipo de espada destinava-se a assestar cutiladas e, sobretudo,
desferir estocadas. É provável que o legionário, encolhido por detrás do scutum e com a
perna esquerda avançada, ao efectuar um brusco movimento de percussão com o
escudo (visando o peito ou o rosto do seu oponente), desse, ao mesmo tempo, um passo
em frente, deslocando o seu peso sobre a perna direita 902. Se bem que este modus
operandi se aplicasse essencialmente ao combate singular, o soldado tinha de se
certificar se os seus camaradas, à sua esquerda e à sua direita,estariam a executar
manobras idênticas, para assim manter o inimigo ocupado.
Consequentemente, essa modalidade de combate requeria uma ordem de batalha
disciplinada. Se um miles eliminasse o seu adversário, em princípio progredia para o
seu espaço na linha da contenda, o que poderia concorrer para começar a romper a
formação do antagonista ou permitir atacá-lo em ambos os flancos.
De acordo com Vegécio, o espaço atribuído a cada legionário para lutar numa linha de
batalha ocupava 90 cm de comprimento e uns 2 m de profundidade, incluindo os 30 cm
preenchidos pelo próprio homem. Isto dava-lhe a possibilidade de recuar e arremessar
o seu pilum, sem atingir o camarada situado atrás dele e, igualmente utilizar o gládio
897
Bell. Gall., I, 39.
898
A respeito dos tambores, importa frisar que o exército romano nunca fez uso deles, ao contrário do que se vê em
diversos filmes e séries televisivas (por exemplo Roma, produzida pela cadeia HBO).
899
Plutarco, Crassus, 23.
900
Sobre o moral dos soldados, A. Goldsworthy, The Roman Army at War, cap. 6.
901
M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment, pp. 48-50. Através de testes efectuados no âmbito da
«arqueologia experimental», verificou-se que um pilum, quando arremessado a uma distância de 5 m do alvo, consegue
perfurar 30 mm de madeira de pinho ou 20 mm de contraplacado: M. Junkelmann, Die Legionen des Augustus. Den
römische Soldat im archäologischen Experiment, Mainz/Mogúncia, 1986, pp. 188-189.
902
A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 217-218. Nas fontes iconográficas observam-se os soldados a
desferirem vários géneros de golpes, tanto estocadas como cutiladas. P. Sabin (cf. «The Face of the Roman Battle», JRS
90, 2000, pp. 10-17) referiu, com acerto, que os confrontos corpo a corpo com espada não podiam, forçosamente, durar
muito tempo, devido ao tremendo esforço físico que implicavam. Muito provavelmente, o contacto directo com o
inimigo revelar-se-ia esporádico e, à medida que as linhas de batalha se separavam, avançavam, num processo rotativo,
tropas «frescas», que antes se encontravam na linha mais atrás.
325
com certa liberdade de movimentos903. Contudo, apesar da existência desse espaço
separador, os soldados deveriam estar suficientemente perto uns dos outros nas
fileiras, já que desta forma se sentiam mais confiantes e protegidos com o seu apoio. Os
legionários posicionados na segunda fila, logo atrás da linha principal de ataque,
podiam lançar os seus dardos por cima das cabeças dos seus camaradas que estavam na
vanguarda (no entanto, julgamos que existiriam outros métodos no que respeita ao
arremesso dos pila, conforme veremos num apêndice b deste capítulo).
Para proteger a cabeça, os legionários, a partir dos primeiros tempos do Principado,
passaram a cingir elmos habitualmente de ferro, com um amplo cobre-nuca e
paragnátides para defender as faces. Posteriormente foram-se introduzindo alterações
na configuração dos cascos, no claro intento de proteger melhor a parte frontal do
capacete, através da adição de uma barra transversal e de um cobre-nuca ainda
maior904.
Aparentemente em finais do reinado de Augusto905 (e não somente desde meados do
século I d. C., como diversos estudiosos sustentaram durante algum tempo), os
legionários começaram a envergar um primeiro tipo de armadura de placas metálicas
articuladas (a que convencionalmente se chamou lorica segmentata, expressão,
todavia, que os próprios Romanos nunca empregaram), provida de correias de couro,
que cobria o torso, as costas e os ombros do combatente (pesando cerca de 9 kg), que
permitia uma razoável liberdade de movimentos tanto dos braços como das pernas 906.
Mas, paralelamente, os legionários também empregavam a cota de malha.
A mais importante peça de defesa era o escudo 907, rectangular e oblongo (em forma de
tijolo), medindo aproximadamente 125 cm de comprimento por 60 de largura, feito de
madeira e couro, muitas vezes possuindo uma cercadura de ferro e uma protuberância
(o umbo, igualmente de ferro) no centro da sua superfície exterior, servindo para
proteger a pega no interior do scutum. Este pesava uns 7,5 kg, podendo ser usado em
combate por períodos relativamente longos e era facilmente transportável durante as
marchas908.
Em relação ao equipamento das tropas auxiliares, reflectiu, pelo menos inicialmente, os
diferentes estilos de combate dos povos recrutados pelo exército romano, mas depois
tornou-se mais padronizado, embora estejamos longe da sustentar que eles tivessem
uma espécie de «uniforme imutável» e claramente diferenciador do armamento dos
legionários (que também conheceu muitas variantes), ideia preconcebida que foi aceite
por muitos historiadores em face da distinção tipológica plasmada nos relevos da
Coluna de Trajano, que traduz mais imagens estereotipadas do que propriamente a
realidade. Normalmente, os auxilia serviam-se de um escudo plano e arredondado, de
um gládio e de venábulos, guarnecendo o corpo com cotas de malha (lorica hamata) ou
escamas metálicas (lorica squamata), mas captam-se indícios de algumas destas tropas
empregarem ocasionalmente a lorica segmentata, pelo que esta não deve ser
considerada como um elemento exclusivo dos legionários 909. Nos auxilia, as tropas
903
Vegécio, Epitoma de rei militaris, 3.15. A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 179-180.
904
No apêndice a do presente capítulo, consagramos uma secção ao equipamento militar da época imperial, contendo
dados mais pormenorizados sobre a tipologia dos objectos bélicos.
905
Com efeito, em recentes descobertas arqueológicas feitas em Kalkriese (perto de Osnabrück, Alemanha), no local onde
foram massacradas as três legiões comandadas por Varão, exumaram-se vestígios que apontam para a utilização da
lorica segmentata no tempo augustano, embora, talvez, ainda de forma incipiente, generalizando-se mais este género de
armadura sob a égide de Tibério. Para mais dados sobre as escavações e achados efectuados nesse local, consultem-se: F.
Berger, Kalkriese 1: Die römischen Fundmünze, Mainz am Rhein, 1996; W. Schlüter e R. Wiegels (eds.), Rom,
Germanien und die Ausgrabungen von Kalkriese, Osnabrück, 1999.
906
M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment, pp. 92-93.
907
Que também desempenhava importante papel enquanto arma ofensiva, mediante movimentos de percussão,
utilizando os legionários o escudo para vibrar fortes pancadas sobre os antagonistas.
908
Ibidem, pp. 85-87. Para uma visão sucinta sobre as mudanças operadas no equipamento militar romano, de finais do
século II ao III, consulte-se o artigo de J. C. Coulston, «How to arm a Roman Soldier», in M. Austin, J. Harries e C.
Smith (eds.), Modus Operandi. Essays in Honour of G. Rickman, pp. 177-178.
909
M. C. Coulston e J. N. C. Coulston sustentaram que os auxilia raramente utilizariam a lorica segmentata (Roman
Military Equipment, pp. 206-209). Para os métodos de combate empregues pelos auxilia, observem-se os comentários
de A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 19-20
326
especialistas, como os arqueiros (geralmente de origem oriental), mercê da sua
pontaria certeira, causavam ferimentos penetrantes com as suas flechas, ao passo que o
impacto de uma pedra (ou uma bola de chumbo) atirada por um fundibulário, mesmo
numa cabeça protegida por um casco, podia deixar um homem atordoado ou
fisicamente abalado910.
Tácito explica habilmente as vantagens das armas e das modalidades de combate
romanas, contrastando-as com as utilizadas pelos povos estrangeiros, nos conselhos
que Germânico deu às suas tropas, antes de pelejarem com os Germanos em 16 d. C.:
«Os enormes escudos e as longas lanças não são tão manejáveis no meio de troncos e vegetação como os
dardos, os gládios e a armadura [bem ajustada ao corpo]. Deveis assestar repetidos golpes e visar, com a
ponta das espadas, os seus rostos. Os Germanos não usam couraças nem elmos, e mesmo os seus escudos
não são reforçados por ferro ou couro, apenas consistindo em peças de vime entrelaçado ou em frágeis
camadas de madeira pintada. Só a fila da frente tem alguns géneros de lanças. As restantes só possuem
clavas [algumas rematadas por metal]. Fisicamente, eles parecem duros e são bons para investidas breves.
Mas eles não suportam ser feridos. Desistem de porfiar e fogem, sem qualquer tipo de vergonha, ignorando
os seus chefes»911.
Apesar de se registar um aumento dos efectivos e da importância da cavalaria no
exército romano da época imperial, colhem-se escassas referências textuais a acções
levadas a cabo por tropas montadas nos campos de batalha. No entanto, Arriano, que
comandou soldados quando foi governador da Capadócia, descreve exercícios de treino
de cavalaria num tratado militar (Ars Tactica)912. Esta obra ajuda-nos a ver como, pelo
menos em teoria, os cavaleiros actuavam numa refrega. Os ditos exercícios haviam sido
concebidos principalmente para testar a pontaria dos soldados no arremesso dos
dardos:
«Saber montar bem a cavalo é especialmente necessário para se ser capaz de arremessar dardos sobre
aqueles que investem e, ao mesmo tempo, oferecer a protecção do escudo ao [camarada] que se encontra
do lado direito. Quando avançar em paralelo, o cavaleiro tem de se virar para a direita, a fim de proceder
ao lançamento […]»913.
Mais à frente, Arriano descreve mais manobras:
«Eles avançam primeiramente com as lanças niveladas, no estilo defensivo, depois como se estivessem a
perseguir um inimigo em debandada. Outros, como se lutassem contra outro antagonista, quando os seus
cavalos se voltam, colocam os escudos sobre as cabeças e posicionam as lanças como se recebessem um
assalto inimigo […] Também desembainham as suas espadas e efectuam uma variegada série de golpes,
especialmente calculados para levar de vencida um oponente em fuga, para matar um homem já caído, ou
para empreender alguma manobra bem-sucedida através de uma rápida movimentação a partir dos
flancos»914.
Em Lambaesis, Adriano, ao dirigir-se à primeira ala dos Panonianos, elogiou, num
discurso, as suas tropas:
«Vós fizestes tudo em ordem. Preenchestes a planície com os vossos exercícios, lançastes os dardos com
um certo nível de estilo, embora estivésseis a utilizar projécteis bastante pequenos e rígidos» 915.
A cavalaria era mais eficaz como força de ataque. A cavalaria pesada (couraçada)
produzia um efeito de choque, enquanto a ligeira poderia tentar vencer o inimigo pelo
cansaço, através de frequentes investidas. Adoptavam-se diversas formações: as tropas
montadas dispunham-se habitualmente de maneira a que as linhas tivessem mais
extensão do que profundidade. Mas uma formação profunda ou, por vezes, em cunha,
910
Quanto ao alcance de uma flecha disparada por um arco compósito, cf. A. Goldsworthy, The Roman Army, p. 184. A
respeito dos fundibulários, ibidem, p. 186. Veja-se igualmente Celso, Da Medicina, 7.55.
911
Discurso que Tácito colocou na boca de Germânico (Anais, II, 14).
912
A. Hyland, Training the Roman Cavalry. From Arrian’s Ars Tactica, Stroud, 1993; K. R. Dixon e P. Southern, The
Roman Cavalry, pp. 113-134. O Strategikon ou Manual sobre estratégia militar, habitualmente considerado como
tendo sido escrito pelo próprio imperador bizantino Maurício, no século VI, contém algumas breves ordens de comando
em latim para a cavalaria (3.5), as quais talvez remontem aos tempos romanos. Consulte-se a tradução para língua
inglesa desta obra: G. T. Dennis, Maurice’s Strategikon. Handbook of Byzantine Military Strategy, Filadélfia, 1984, p.
39. Observe-se, também, M. Dahm, «The Strategikon of Maurice», Ancient Warfare III.4 (Aug/Sept 2009), pp. 50-53
913
Ars Tactica, 37.
914
Ibidem, 43. Aparentemente, os soldados de cavalaria estavam equipados com lança e espada: cf. R. Tomlin in A.
Goldsworthy e I. Haynes (eds.), The Roman Army as a Community, Portsmouth, RI, 1999, p. 136.
915
ILS 2487; B. J. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, p. 19. Adriano também aconselhou uma outra unidade
de cavalaria para ter cuidado quando investisse em perseguição do inimigo.
327
também se empregava para romper a linha adversa 916. Quando a cavalaria carregava
sobre a infantaria, esperava-se que a última perdesse a sua coesão, assustando-se com a
imagem impressionante dos corcéis em pleno galope, arremessando dardos e os
archeiros disparando flechas.
Embora fosse difícil fazer com que os cavalos arremetessem contra uma linha imóvel,
se os soldados romanos conseguissem aproximar-se o suficiente, podiam assestar
golpes com as espadas sobre as cabeças e os ombros dos inimigos, mas, ao mesmo
tempo, ficavam vulneráveis a ferimentos nas pernas e podiam perder os seus ginetes.
Bem diferente seria um confronto contra congéneres inimigos. Não era usual que duas
linhas de cavalaria carregassem a toda a velocidade, uma contra a outra, já que o
impacto podia imobilizar ambos os lados. Assim, uma refrega envolvendo forças de
cavaleiros resultaria amiúde numa mêlée, servindo-se de espadas e escudos num
espaço restrito. Por isto é que os cavaleiros dispunham de armaduras defensivas,
utilizando elmos com um cobre-nuca ainda maior do que o assinalável nos cascos de
infantaria, e protecções junto das orelhas, elementos que se conceberam para aguentar
golpes vindos de diferentes direcções917.
Flávio Josefo descreve um recontro entre um contingente de cavalaria romana e
inimigos apeados: estes, Judeus, que estavam a tentar tomar de assalto a cidade de
Ascalon, viram-se rechaçados por uma só unidade de tropas montadas. Os Judeus eram
inexperientes e avançaram caoticamente, enquanto os Romanos se dispuseram em
fileiras bem ordenadas e disciplinadas, que agiram logo mal o seu comandante deu o
sinal para entrarem em acção. Desbarataram o inimigo, que fugiu desnorteado para a
planura, o tipo de terreno ideal para a realização de manobras de cavalaria. A certa
altura, os Judeus, encurralados, foram chacinados, muitos perecendo trespassados por
dardos918.
Possivelmente desde o século II da nossa era, os Romanos terão principado a empregar
uma cavalaria relativamente pesada, cujo papel maior radicava em intimidar o
antagonista, por meio da antevisão do choque que resultaria da sua carga. Sob Trajano,
apareceu a ala I Ulpia contariorum milliaria, constituída por mil lanceiros a cavalo.
Estes estariam equipados com uma lança comprida (gr. kontos, lat. contus), que se
agarrava com as duas mãos, colocando-a de um dos lados do pescoço do cavalo 919. No
reinado de Adriano, por seu turno, surgiu, pela primeira vez, uma ala cataphracta, na
qual tanto o cavaleiro como a montada se apresentavam couraçados. O valor deste
género de cavalaria consistiria, decerto, no impacto visual da sua lenta e firme
progressão (seria extenuante obrigar os cavalos a avançarem num ritmo superior ao
simples trote), bem como na capacidade que teria em atingir a certa distância o inimigo
com as suas longas lanças. Mas a cavalaria couraçada tinham uma flexibilidade
limitada, já que tanto os homens como os animais se fatigavam rapidamente, sobretudo
no período estival, sob o efeito ofuscante do sol e do calor, tornando-se as armaduras
assaz incómodas porque pesadas e feitas com peças de metal.
As batalhas, mesmo travadas com a tecnologia não muito evoluída do mundo antigo,
traduziam-se em ocasiões marcadas por grande barulho. Em combate, cada um dos
beligerantes tentava manter a sua coragem e minar a do inimigo, ao fazer o máximo
ruído possível. Como vimos, os Partos serviam-se de tambores, enquanto algumas
tribos germânicas lançavam um brado de guerra chamado barritus, cujo clamor os
guerreiros amplificavam ao colocar os escudos à frente das suas bocas 920. Quanto aos
916
Segundo A. Goldsworthy, um cavaleiro necessitaria de um espaço com 1 m de comprimento por 4 de profundidade (cf.
The Roman Army at War, pp. 182-183). Consultem-se igualmente: A. Hyland, Training the Roman Cavalry, pp. 78-88;
K. Dixon e P. Southern, The Roman Cavalry, pp. 137-147. No mundo antigo, como é sobejamente sabido, os cavaleiros
não dispunham de estribos, mas investigações relativamente recentes vieram a demonstrar que as selas romanas foram
concebidas a fim de proporcionar ao cavaleiro o máximo apoio e estabilidade possível (K. Dixon e P. Southern, op. cit.,
pp. 70-74).
917
Bishop e Coulston, Roman Military Equipment, pp. 93-95, A. Golsdworthy, The Roman Army at War, pp. 237-244.
918
F. Josefo, Bell. Iud., 3.16-18.
919
J. W. Eadie, «The development of Roman mailed cavalry», JRS, 57 (1967), pp. 161-173; M. P. Speidel, «Catrafactarii,
Clibanarii and the rise of the later Roman mailed cavalry», Epigraphica Anatolica 4 (1984), pp. 151-156.
920
Tácito, Germania, 3.
328
comandantes romanos, tinham o hábito de se certificar que a peleja começaria por
meio de um vibrante grito bélico dado pelos seus soldados em uníssono, quando o
oponente se aproximava.
Este aspecto era importante na psicologia de uma batalha. Eis, a propósito, quais
foram as ordens finais de Arriano para a refrega contra os Alani:
«Quando as tropas estiveram dispostas desta maneira, deve imperar o silêncio até que o inimigo fique ao
alcance das armas. Quando ele se aproximar mais, todos devem soltar um enorme e feroz brado de
guerra»921.
Em diversos estudos recentes, nomeadamente os de A. K. Goldsworthy 922 e J. B.
Campbell923, apresenta-se geralmente a imagem dos soldados romanos marcharem
mudos924 até ao momento da carga, como, referiu Díon Cássio, no contexto da derrota
de Boudica:
«Os exércitos aproximaram-se, os bárbaros com muita gritaria misturada com ameaçadores cânticos de
batalha, mas os Romanos mantiveram-se em silêncio e em ordem até que chegaram à distância do
arremesso de um dardo do inimigo» 925.
Porém, num exame mais atento das fontes, Ross Cowan 926 concluiu que as tropas
romanas gritavam e lançavam brados de guerra antes e durante as contendas, pelo que
o «avanço silencioso» que se capta em alguns escritos antigos corresponde mais a um
ideal e a um expediente literário para estabelecer um contraste mais flagrante entre o
ruído produzido por massas desordenadas de inimigos e a disciplina e o alto grau de
profissionalismo do miles romano.
Frequentemente, uma trombeta (cornu) marcava o começo das hostilidades. No calor
do prélio e no meio da sua confusão, os melhores sinais eram transmitidos por estes
instrumentos de sopro, tocados pelos cornicen e pelos tubicen, que tinham por função
levar os soldados romanos a prestar atenção aos seus estandartes (que, por sua vez,
também davam ordens às tropas, através da maneira como eram agitados) 927. Além
disso, eles contribuíam igualmente para aumentar ainda mais o estridor no campo de
batalha, desconcertando ou atemorizando o inimigo.
Várias vezes afirmámos que uma contenda principiava com o silvo de dardos, flechas e
de outros projécteis, a que se seguia o som do impacto dos mesmos nos escudos e nos
corpos dos adversários. Depois sobrevinha o estrondo causado pelo choque do metal,
quando os combatentes utilizavam as espadas e os escudos no corpo a corpo. Não
tardaria muito a que se ouvissem os gritos de dor lancinantes dos feridos e os gemidos
dos moribundos.
Naturalmente que os milites que se encontravam pela primeira vez em porfia, no seu
«baptismo de sangue», se sentiam aterrados face aos sons horrendos captados pelos
seus ouvidos e pela carnificina observada pelos seus olhos. Segundo um relato anónimo
da vitória de Júlio César na guerra civil na Hispânia:
«Então, quando o clamor dos gemidos, mesclados com o retinir das espadas, entrava nos seus ouvidos,
os soldados inexperientes ficavam paralisados de terror» 928.
923
924
Sobre o característico e intimidatório silêncio dos legionários na sua marcha em direcção ao inimigo, bem como a
respeito de outros aspectos sobre as batalhas, consulte-se R. Cowan, «The Clashing of Weapons and Silent Advances in
Roman Battles», Historia 56 (2007), pp. 114-117. Tratava-se de um meio eficaz para atemorizar os antagonistas,
igualmente empregue muito mais tarde, em princípios do século XIX, pelas forças britânicas contra a Grande Armée de
Napoleão.
925
Díon Cássio, 62.12.1-2.
926
927
Bell. Afr., 82. Tácito, Anais, I, 68. César (Bell. Civ., 392) realçou que os bons comandantes deviam encorajar, e não
restringir, o ardor dos seus homens pelo combate; aconselhava a prática do antigo costume de fazer ressoar as trombetas
e que as tropas gritassem quando principiava o contacto directo com o inimigo, o que simultaneamente aterrorizava o
último e galvanizava os soldados romanos.
928
Bell. Hisp., 31.6.
329
regiões do Sul mediterrânico, durante o Verão e padecendo os efeitos da canícula e da
poeira, o esforço físico seria muito grande e tornar-se-ia quase insustentável pelejar em
tais condições. No caso específico das campanhas de Roma contra a Pártia, as moscas
constituíam outro elemento perturbador, a adicionar-se a todos os demais.
Algumas batalhas podiam durar um dia ou, então, recomeçavam na manhã seguinte,
como sucedeu nos confrontos feridos junto do rio Medway, no decurso da conquista da
Britânia929. No entanto, actualmente é um facto sobejamente sabido que um homem
provido de armas só conseguiria lutar eficazmente ao longo de uns 15 ou 20 minutos, já
que depois necessitaria de de descansar para recuperar as suas forças 930. Na já aqui
mencionada segunda batalha de Bedriacum, em 69 d. C., que se arrastou pela noite
dentro, os legionários de ambos os lados retiraram-se aparentemente da linha de
combate e até se sentaram por algum tempo, chegando mesmo a trocar palavras com os
seus oponentes931. Nas refregas, deveria ser relativamente frequente existirem pausas,
servindo estas para remover os feridos, ao mesmo tempo que avançavam para a liça
tropas frescas.
Os generais mais competentes e engenhosos procuravam fazer o melhor uso possível
das condições atmosféricas, como, por exemplo, tentando ofuscar o inimigo através da
luz do sol ou, pelo contrário, levar a que o antagonista apanhasse com uma forte bátega
ou uma saraivada de granizo. Na batalha de Issus, em 194, no contexto da guerra civil
entre Septímio Severo e Pescénio Níger, as forças do primeiro verificaram que uma
violenta tempestade ocorrida nas suas costas ajudou a vencer os adversários, que se
encontravam mesmo à frente dela, pensando que até o céu estava contra eles 932.
Durante a segunda batalha de Bedriacum, a lua iluminou as tropas de Vitélio, ficando
eles expostos e tornando-se alvos mais fáceis: ao mesmo tempo, como o luminar se
situava por detrás dos soldados flavianos, fez com que se alongassem as suas sombras,
o que conduziu a que os artilheiros inimigos efectuassem tiros demasiado curtos 933.
Noutro cenário geográfico, os legionários que pelejavam sob o comando de Cecina na
Germânia, no ano 15, depararam com condições nada favoráveis, operando em zonas
pantanosas e sofrendo muito com o frio e a humidade; ao terem bastante dificuldade
para se mover em solo firme, experimentaram sérios problemas em arremessar os seus
pila, uma vez que praticamente estavam mergulhados na água. 934
A incapacidade patenteada nas fontes literárias antigas na descrição de uma visão
objectiva e nítida das batalhas no tempo dos Romanos reflecte, parcialmente, o facto de
as contendas serem amiúde episódios confusos e sangrentos, até mesmo quando os
combates envolviam efectivos relativamente pequenos nas fileiras participando
directamente no corpo a corpo. As tropas que se posicionavam mais atrás iam
progredindo e, ao fazê-lo, exerciam sobre os seus camaradas da vanguarda.
No tipo de combate desenvolvido pela falange grega, quando um dos lados cedia e batia
em retirada, era difícil para as tropas inseridas nesse género de formação, que se
moviam com lentidão, perseguir rapidamente o inimigo, já que corriam o risco de as
linhas se fragmentarem. Pelo contrário, o comandante de um exército romano podia
destacar, com celeridade, coortes para agirem de forma autónoma, além de que
também dispunha de reservas, contingentes com armamento ligeiro e a cavalaria, os
quais logravam perseguir implacavelmente os inimigos em debandada: por exemplo, na
batalha de Mons Graupius, em 84 d. C., travada na Caledónia (actual Escócia), quando
os Bretões, já derrotados, se refugiaram nas zonas arborizadas, Agrícola ordenou às
suas tropas que cercassem os inimigos como se fossem caçadores a levar a cabo uma
batida:
929
Díon Cássio, 60.20. César alude a uma batalha contra tribos alpinas que durou seis horas ininterruptas (Bell. Gall.,
III, 5).
930
Para mais informes sobre a duração das batalhas, A. Goldsworthy (The Roman Army at War, p. 22); veja-se,
igualmente, P. Sabin, «The Face of the Roman Battle», pp. 11-17.
931
Díon Cássio, 65.12-13.
932
Ibidem, 75.7.6.
933
Tácito, Hist. 3.23.
934
Tácito, Ann., 1.64.
330
«Ele mandou coortes de infantaria, tanto fortes como ligeiramente armadas, para esquadrinhar os
bosques formando um cordão, e onde a vegetação era mais densa actuaria a cavalaria desmontada e nos
sítios com menos matagal a cavalaria montada para o mesmo fazer. Os Bretões debandaram quando viram
as nossas tropas a mover perseguição de maneira ordenada e dispostas em sólidas fileiras» 935.
935
Tácito, Agricola, 37.
331
Estamos perante uma das melhores narrações conhecidas de uma batalha, escrita por
um autor com experiência militar936. Flávio Josefo937 descreveu cuidadosamente as
diferentes unidades envolvidas e os problemas concretos que a cavalaria teve de lidar
nesta refrega, ao encontrar-se num terreno muito acidentado e defrontando a Judeus
munidos de armamento ligeiro. Josefo explicou ainda a motivação e as decisões de
Galo, reportando-se à aplicação de medidas correctas sob o ponto de vista militar
(incluindo até um estratagema clássico para dissimular uma retirada), antes de se
instalar o pânico entre as tropas romanas. Ele evoca também, sugestivamente, as
características do terreno, das armas, do estrépito e da confusão que reinaram nos
combates, oferecendo um convincente retrato psicológico de uma batalha em que uma
legião se demonstrou incapaz de empregar as suas técnicas e talento ao enfrentar o
inimigo. Josefo registou ainda, meticulosamente, o número de baixas sofridas pelos
Romanos e os nomes dos oficiais superiores que sucumbiram.
Debrucemo-nos agora sobre um caso totalmente distinto: em Setembro de 83 d. C. 938,
Agrícola atraiu as tribos das Terras Altas caledónias (hoje escocesas) para livrar
batalha, ao ameaçar as zonas povoadas e férteis que bordejavam o Moray Firth, tendo
realizado esporádicas incursões por via marítima939. Os Bretões reuniram-se sob a
liderança de um tal Calgacus, concentrando-se numa eminência, com as primeiras
fileiras posicionadas na planície e as restantes escalonadas ao longo da encosta de uma
colina. Refira-se ainda que, na planura, também estavam carros de combate. Agrícola
colocou 8 000 homens da infantaria auxiliar no centro da sua ordem de batalha,
dispondo de 3 000 cavaleiros a proteger os flancos. Quanto às legiões, formaram uma
linha defronte da muralha do acampamento romana, prontas a intervir se necessário.
Agrícola dispunha igualmente de 4 alae de cavalaria enquanto forças de reserva para
actuarem em caso de emergência. Eis o relato de Tácito:
«A batalha principiou com uma troca de projécteis, e os Bretões exibiram tanto bravura como habilidade
ao desviarem os dardos dos nossos soldados com as suas espadas enormes, ou a deflecti-los com os seus
pequenos escudos, enquanto eles próprios lançaram uma saraivada [de misseis] contra nós. Então,
Agrícola ordenou às quatro coortes dos Batavos e às duas dos Tungrianos para entrarem no corpo-a-corpo,
combatendo com a ponta do gládio. Isto era uma manobra muito praticada [e familiar] para os soldados
veteranos, mas bem difícil para os inimigos, que se encontravam armados com os seus pequenos escudos e
as suas espadas compridas. As espadas bretãs são desprovidas de pontas para assestar estocadas, daí não
se revelarem apropriadas para o corpo-a-corpo. Os Batavos começaram a desferir uma série de golpes
consecutivos, batendo com as bossas dos seus escudos e espetando as lâminas nos rostos dos seus
antagonistas. Eles aniquilaram os guerreiros na planície e encetaram o avanço pela colina acima. Isto levou
a que o resto das nossas unidades esmagasse os seus oponentes mais próximos, massacrando-os. Muitos
Bretões foram deixados para trás, moribundos ou até sem estarem feridos, por causa da velocidade da
nossa vitoriosa investida. Entretanto, os nossos esquadrões de cavalaria, depois de desbaratarem os carros
de combate, mergulharam na batalha da infantaria. Com a sua carga, infundiram mais terror, mas as
compactas filas do inimigo e o terreno acidentado fizeram com que tivessem de suspender a progressão. A
batalha parecia agora apenas uma refrega de cavalaria, enquanto a nossa infantaria, lutando por uma
936
F. Josefo, Bell. Iud. II, 542-555 (tradução de B. J. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, pp. 95-97).
Reveste-se de interesse o artigo de M. Gichon, «Cestius Gallus’ Campaign in Judaea», Palestine Exploration Quarterly
113 (1981), pp. 39-62. A. Goldsworthy (The Roman Army at War, pp. 84-90) apresenta várias razões explicativas para a
retirada de Céstio Galo: este dispunha apenas de tropas que haviam sido apressadamente mobilizadas; inicialmente
julgou que iria obter uma vitória célere mas, quando o seu primeiro assalto fracassou, Céstio constatou não ter tropas
suficientes para montar um cerco prolongado. Além disso, ele já sofrera um revés, quando rumava para Jerusalém,
ocorrendo um súbito ataque judeu que rompeu as linhas romanas; a legio XII Fulminata chegou até a perder a sua águia
(F. Josefo, Bell. Iud., II, 517-519; Suetónio, Vespasiano, 4.5).
937
Para informações sobre as actividades militares de F. Josefo durante a revolta judaica, veja-se T. Rajak, Josephus. The
Historian and his Society, Londres, 1983, pp. 144-173.
938
K. Strobel, «Nochmals zur Datierung der Schlacht am Mons Graupius», Historia 36 (1987), pp. 198-212.
939
Tácito, Agricola, 35-37. Ainda hoje não se sabe exactamente em que local se travou esta batalha: não obstante, os
historiadores aventaram várias hipóteses, designadamente situar o campo da refrega nas encostas de Bennachie, perto
de Inverurie, em Aberdeenshire, como o fez K. St. Joseph («The camp at Durno, Aberdeenshire, and the site of Mons
Graupius», Britannia 9 [1978], pp. 271-287). Segundo A. R. Burn («In search of a battlefield: Agricola’s last battle»,
Proc. Soc. Antiq. Scotland 87 [1952-1953], pp. 127-133), R. M. Ogilvie and I. A. Richmond (Cornelii Taciti de Vita
Agricolae, Oxford, 1967, p. 65, 252), Mons Graupius corresponderia a Knock Hill, mais a norte de Bennachie.
Aparentemente, o primeiro sítio referido tende a ser aceite por vários estudiosos, mesmo na falta de provas
arqueológicas cabais. W. S. Hanson escreveu, a propósito disto «Taking a broader historical perspective, however, the
precise location of the battle is an irrelevance: only if took place in the extreme north or the extreme south would its
discovery have any effect on our interpretation of Agricola’s campaigns»: cf. Agricola and the Conquest of the North,
Londres, 1987, p. 137.
332
posição na encosta, apanhava encontrões dos flancos dos cavalos 940. E os carros, com os seus cavalos em
pânico, despojados dos aurigas, penetraram muitas vezes nas alas ou na frente.
«Os Bretões que se postaram no topo da colina, ainda não haviam participado no combate e, ao não se
acharem sob pressão, notaram, com desdém, a pequenez dos nossos efectivos. Começaram, pois, a descer
lentamente e a rodear a retaguarda das nossas tropas vitoriosas. Mas Agrícola tinha-se precavido
precisamente com a eventualidade da ocorrência deste movimento, e pôs no caminho da acometida
adversa as 4 alae de cavalaria, que ele mantivera para uma emergência. Consequentemente, eles viram-se
esmagados e dispersos […] Assim, as tácticas dos Bretões viraram-se contra eles próprios. Os esquadrões
romanos de cavalaria, sob as ordens do general, efectuaram um torneamento em relação à frente da
batalha e abateram-se sobre o inimigo na retaguarda. Depois seguiu-se um impressionante e medonho
espectáculo a céu aberto. As nossas tropas moveram perseguição, fizeram prisioneiros e depois mataram-
nos quando apareceram mais inimigos. Entre estes, cada homem seguiu a sua inclinação: alguns grupos,
embora totalmente armados, fugiram de números mais pequenos, ao passo que certos homens, até
desarmados, investiram e encontraram a morte. Jaziam, espalhados por toda a parte, armas, corpos e
membros cortados, e a terra estava manchada de sangue».
No rescaldo da contenda, enquanto os Romanos se entregavam ao saque, os Bretões
vaguearam pelo campo, tentando recuperar os seus feridos e chamando, aos gritos, os
sobreviventes. Muitos deles abandonaram as suas casas e incendiaram-nas. Já não
restava mais uma resistência concertada. Pela manhã do dia seguinte, no palco da
batalha reinava o silêncio e o inimigo dispersara numa debandada indiscriminada 941.
Se bem que Tácito estivesse mais interessado na componente psicológica do que nos
detalhes da batalha, o seu relato é útil, não havendo qualquer dúvida que o próprio
Agrícola, seu sogro, lhe terá fornecido dados concretos em primeira mão sobre os
aspectos mais cruciais do prélio 942. Pelo cálamo de Tácito, vemos como o general se
apresentou no campo de batalha, adaptou as suas tácticas e deu ordens para a
intervenção da reserva, além de conduzir a perseguição do antagonista. Observamos
igualmente como a infantaria e a cavalaria tinham tarefas específicas a levar a cabo, em
função da natureza do terreno e da evolução da refrega, afora surgirem exarados alguns
pormenores sobre os métodos de combate e a destreza dos veteranos, que sabiam
utilizar os gládios num espaço restrito, golpeando o rosto do inimigo, ao mesmo tempo
que se serviam do escudo como elemento de percussão e arma ofensiva. O ataque da
cavalaria da reserva significou o ponto de viragem da batalha, e quando as filas bretãs
se romperam, as suas forças desintegraram-se face à implacável e bem organizada
perseguição empreendida pelos Romanos. Se, de facto, os números que Tácito apontou
quanto às baixas corresponderem à realidade dos factos, então é bem possível que a
terra estivesse «manchada de sangue».
Terminemos esta alínea, dizendo que estes relatos se centraram na psicologia existente
em combate e no drama bem humano da coragem e do medo. Em regra, a maioria dos
autores antigos descreve os confrontos corpo a corpo tendo lugar em amontoados
dispersos, salientando que a sorte das armas muito dependia da valentia e do espírito
de iniciativa de pequenos grupos ou, mesmo, de actos a nível individual, bem como da
solidez das técnicas de porfia e do talento dos veteranos. Sob a óptica romana, a
liderança pessoal do comandante, a utilização dos procedimentos militares básicos e o
desdobramento organizado das unidades de cavalaria e infantaria, que estariam
incumbidas de missões concretas, tudo isto se entendia como primacial para obter uma
vitória.
Baixas
940
A tradução desta frase baseia-se na interpretação de R. M. Ogilvie e I. A. Richmond, Cornelii Taciti, De Vita
Agricolae, pp. 276-277.
941
Agricola, 38.
942
Existem diversas abordagens sobre a batalha de Mons Graupius: W. S. Hanson, Agricola and the Conquest of the
North, pp. 137-139 (obra que incide não apenas neste prélio, mas igualmente nas seis campanhas conduzidas por
Agrícola); G. S. Maxwell, A Battle Lost. Romans and Caledonians at Mons Graupius, Edimburgo, 1990; F. Bey,
«Agricola et la conquête de l’Écosse», Prétorien (9 janvier/Mars 2009), pp. 31-38 D. B. Campbell, Mons Graupius AD
83: Rome’s battle at the edge of the world, Oxford, 2010, pp. 57-83. Para além dos Caledónios propriamente ditos,
também porfiaram ao lado deles guerreiros dos Taixali e dos Vacomagi.
333
De acordo com Estrabão, numa batalha travada durante a invasão romana da Arábia,
no reinado de Augusto, os Árabes terão perdido 10 000 homens e os Romanos somente
dois943. Naturalmente que tendemos a ser cépticos quanto à enorme disparidade entre
estes números, em parte pelo facto de a transmissão de cifras nos textos antigos estar
amiúde sujeita a erros e, também, porque as baixas sofridas em combate eram
manipuladas com certa frequência pelos escritores, no propósito de mais fazer
sobressair a magnitude de uma vitória romana ou, no outro extremo, de atenuar os
nocivos efeitos de uma derrota944.
Por seu lado, Apiano, ao escrever sobre as guerras civis do fim da República, mas
aparentemente estando a reportar-se ao seu próprio tempo (século III d. C.), afirmou
que uma aclamação como imperator exigia que tivessem sido mortos 10 000 soldados
inimigos pelo menos945. Esta asserção pode revestir-se de utilidade, já que muitas vezes
sabemos o número de aclamações que os imperadores receberam, mas é muito
improvável que esta «regra», mesmo que indicada com todo o rigor, tenha sido
escrupulosamente observada pelos principes.
Em determinados casos, sabemos poder contar com maior grau de fiabilidade nas
fontes consultadas: Flávio Josefo, nomeado pelos Judeus para o comando na Galileia,
narra um desastroso ataque judeu contra a guarnição romana aboletada em Ascalon,
onde 10 000 judeus, incluindo dois generais, pereceram, ao passo que as tropas
romanas sofreram poucas baixas; num segundo assalto, perderam 8 000 homens 946.
Josefo refere ainda que, durante a retirada de Céstio Galo de Jerusalém, em 66, ele
perdeu 5 300 soldados de infantaria e 480 de cavalaria947.
Tácito, por seu lado, registou as baixas ocorridas na batalha de Mons Graupius,
apontando a morte de 10 000 caledónios e de apenas 360 romanos, o que representa
menos de 3% das forças utilizadas por Agrícola na contenda 948. Ele reunia todas as
possibilidades de aceder a números de confiança a partir do seu sogro, Agrícola, mas o
facto é que 10 000 parece um valor demasiado redondo. Na realidade, Tácito
raramente apresentava o número de baixas em relação aos Romanos e, no seu
detalhado relato da derrota infligida a Boudicca por Suetónio Paulino, talvez se tenha
baseado em dados mesmo genuínos: morreram 80 000 bretões e 400 romanos (afora
bastantes feridos). Ora isto significa 8% das forças romanas, mas as perdas bretãs
afiguram-se credíveis, na medida em que o inimigo foi totalmente esmagado 949.
Díon Cássio, numa passagem algo obscura, comenta a amplitude das baixas romanas
na batalha de Issus (em que Septímio Severo venceu Pescénio Níger), dizendo que
morreram 20 000 homens950. No entanto, este número equivaleria aos efectivos de três
ou quatro legiões, pelo que somos levados a crer que se trata de uma asserção
hiperbólica951. Noutro contexto, o mesmo escritor está certamente errado quando
afirma ter havido 50 000 baixas romanas na campanha conduzida por Severo na
943
Estrabão, XVI, 4.24 (782).
944
J. B. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 68.
945
Bell. Civ. 2.44.
946
B. J. III, 19,25.
947
Ibidem, II, 555.
948
Agricola, 37. Participaram activamente na batalha 8 000 soldados de infantaria auxiliar e 5 000 de cavalaria. As
legiões, embora presentes no local, não intervieram.
949
Tácito, Ann. 14.37. Tácito cita simplesmente as baixas da refrega «de acordo com um relatório». Durante a rebelião
encabeçada por Boudicca, Tácito afirma ter havido 70 000 mortos entre os civis. Repare-se que no decurso de uma
revolta menor da tribo dos Frisii, em 29 d. C., pereceram mais de 900 soldados romanos, além de outros 400, que,
encurralados, decidiram suicidar-se (Anais, IV, 73).
950
75.8.
951
Herodiano referiu que, nos relatos da Guerra civil, os «historiadores coevos apresentam variações no número total de
prisioneiros e de mortos em cada um dos lados, a fim de se adequarem aos seus propósitos» (3.7.6).
334
Caledónia, assim como também não tem razão ao referir que na primeira batalha de
Cremona, em 69 d. C., sucumbiram 40 000 soldados em cada um dos lados 952.
Mediante o recurso a outros testemunhos, pisamos «terreno mais firme»: a tremenda
derrota de Quintílio Varão em Teutoburgo conduziu à destruição de três legiões, de seis
coortes de infantaria auxiliar e de 3 alae de cavalaria, o que implicou a perda de
aproximadamente mais de 20 000 homens953. Após o reinado de Augusto, perderam-se
quatro outras legiões em serviço activo: a V Alaudae, a IX Hispana, a XXI Rapax e a
XXII Deiotariana desapareceram das listas do exército romano, pelo que se pode
presumir que terão sido aniquiladas, embora não consigamos dizer quando nem onde,
ao certo, é que tal aconteceu em cada um dos casos. O conjunto destas legiões
ascenderia a uma perda de mais de 20 000 homens954.
Relativamente à legio IX Hispana, esta participou, em 43 d. C., na invasão da Britânia
ordenada por Cláudio, e em 61 desempenhou um papel proeminente na repressão da
revolta encabeçada pela «rainha» Boudica, que teve lugar sob a égide de Nero. No ano
71, a legião viu-se transferida para uma guarnição em York (Inglaterra), cujo fortim,
situado na ponte de Healam, recentemente foi localizado pelos arqueólogos (em
2011)955. Em 120, a Hispana foi substituída pela VI, deixando-se de saber o seu
paradeiro: durante algum tempo, vários estudiosos chegaram a pensar que ela
desapareceu ao lutar contra os Escotos. Todavia, a partir de 1970, acharam-se
inscrições mostrando que a IX foi transladada para Noviomagus (Nijmegen, Holanda),
aqui permanecendo até 131, altura em que partiu rumo ao Oriente. Deste ano em
diante, a IX Hispana deixa, definitivamente, de constar em fontes coevas. Segundo D.
B. Campbell956 e R. Cowan957, é possível que tenha sido enviada para a Judeia e
conhecido o seu fim, na repressão da revolta de Bar Kochba (132- 135).
Alternativamente, a IX Hispana também pode ter sido destruída na derrota que os
Partos infligiram aos Romanos em Elegeia, em 161.
Os Romanos erigiram monumentos em honra das guerras em que estiveram
envolvidos, geralmente para celebrarem vitórias e a destruição dos seus inimigos. Mas
construíram igualmente memoriais lembrando os camaradas tombados em combate:
Germânico, por exemplo, mandou inumar os restos mortais dos soldados que
tombaram na Clades Variana e edificou, propositadamente para o efeito, um
montículo funerário958. Neste âmbito, o monumento mais conhecido que os Romanos
fizeram foi o evocativo das operações bélicas na Dácia, o Tropaeum Traiani situado em
Adamklissi (ou Adamclisi), na planície do Dobrudja, no Sul da actual Roménia. Na
realidade, existem nessa zona três monumentos, incluindo um mausoléu e um altar,
onde se exararam os nomes dos 3 800 legionários e auxiliares que morreram no que
terá sido uma substancial derrota romana: «Em memória dos homens corajosos que
deram as suas vidas pelo Estado»959. Esta é a única enumeração precisa de detalhada
que se conhece de baixas sofridas por tropas romanas. Trajano mandou erigir ainda
mais um monumento, estabelecendo um conjunto de ritos mortuários anuais em honra
dos soldados que pereceram em batalha contra os Dácios, provavelmente em Tapae960.
952
Caledónia (actual Escócia): 76.13.2. Cremona: 64.103. Noutra passagem, Herodiano afirma que 50 000 pessoas
morreram no saque de Cremona e na segunda batalha travada junto desta localidade (65.15.2). Outro número redondo
que levanta suspeição diz respeito às 50 000 mortes alegadamente ocorridas durante o assalto flaviano sobre Roma
(65.19.3)
953
J. B. Campbell, War and Society in Imperial Rome, cap. 1, n. 45.
954
«Legion», in S. Hornblower e A. Spawforth (eds.), The Oxford Classical Dictionary, 3ª edição, 1998.
955
Cf. «Hallan el fuerte de la Légion IX en Inglaterra», Historia National Geographic, 86 (Abril 2011), p. 10.
956
«The Fate of the Ninth: The Curious Disappearance of Legio VIIII Hispana», Ancient Warfare 4.5 2010, pp. 48-53.
957
Roman Legionary AD 69-161, Oxford, 2013, p. 10.
958
Tácito, Ann. 1.62. A linguagem emotiva de Tácito expressa o significado deste evento para a sua audiência.
959
ILS, 907; I. A. Richmond (Adamklissi», PBSR, 35, 1967, pp. 29-39) entendeu que o altar dataria do reinado de
Domiciano; o terceiro monumento é um troféu (Tropaeum); cf. F. A. Lepper e S. S. Frere, Trajan’s Column, Gloucester,
1988, pp. 295-304.
960
Díon Cássio, 68.8. Alguns estudiosos identificaram esse monumento com o Tropaeum em Adamklissi.
335
Habitualmente enterravam-se os mortos no sítio onde se havia livrado uma refrega, e
os Romanos consideravam vergonhoso deixar os soldados insepultos 961. Quando isto
sucedia, geralmente constituía um sinal de uma violenta derrota romana ou resultado
de comportamentos anómalos em períodos marcados por guerras civis 962.
É impossível determinar assertivamente que proporção de legionários sucumbiam em
combate, o mesmo se passando também com os que perdiam a vida por causa de
enfermidades, bem como as baixas sofridas pelos auxilia. Ao descrever a disposição das
forças de Agrícola na batalha de Mons Graupius, Tácito refere que os auxiliares se
encontravam à frente das legiões e «haveria maior glória na vitória se esta não custasse
a perda de sangue romano»963. Esta frase traduz um floreado retórico a fim de enfatizar
o suposto carácter romano dos legionários, em contraposição com os auxilia, que não
eram cidadãos. Mas se Agrícola estava a seguir uma prática militar já estabelecida, cabe
então supor que as tropas auxiliares sofreram uma percentagem relativamente elevada
de baixas na dita batalha.
É claro que os comandantes competentes tinham, entre as suas prioridades, a de não
sacrificar desnecessária nem inutilmente as vidas dos seus soldados. Assim, o futuro
imperador Tibério mantinha um excelente relacionamento com as tropas sob o seu
comando, o que se devia, pelo menos em parte, aos cuidados e à preocupação que
dispensava em relação ao seu exército964.
Os Romanos mostravam-se verdadeiramente implacáveis na concretização dos seus
objectivos bélicos: realizavam campanhas e expedições militares com o intento
pragmático de destruírem por completo a capacidade de oposição e resistência dos
antagonistas. Não há dúvida que, até finais do século III da nossa era, as actividades
guerreiras dos Romanos provocaram uma enorme quantidade de mortes e sofrimento,
embora, a este respeito, só possamos adivinhar a amplitude de tudo isto.
No entanto, o relato de Díon Cássio, acerca de revolta judaica de 132-135, talvez não
ande longe da verdade:
«Cinquenta das suas [dos Judeus] praças-fortes mais importantes e 985 das suas localidades mais
conhecidas foram totalmente destruídas. Em incursões e em batalhas, pereceram 580 000 homens, e o
número daqueles que morreram devido à fome, à doença e ao fogo foi para além do imaginável.
Consequentemente, quase toda a Judeia ficou despovoada […] Muitos Romanos também morreram nesta
guerra»965.
Não há muito, descobriu-se uma curiosa inscrição rupestre, no Sul da Jordânia, em que
se lê:
«Os Romanos vencem sempre. Eu, Lauricius, escrevo isto, Zeno»966.
961
Apiano, Bell. Civ., 1.43.
962
Tácito, Hist. 2.45, 70; Suetónio, Vitélio, 10.3; Díon Cássio, Hist. rom. 65.1.3 (sobre os mortos deixados insepultos
após a batalha de Cremona). Tácito, Ann. 4.73 (depois de um prélio contra os Frisii, um comandante romano não
enterrou os seus soldados mortos).
963
Agricola, 35.
964
Veleio Patérculo, II, 104. 4. Para vários exemplos que tiveram lugar durante a República, veja-se A. Goldsworthy, The
Roman Army at War, p. 167.
965
69.14.
966
G. D. B. Jones, «From Brittunculi to Wounded Knee: a study in the development of ideas», in D. J. Mattingly (ed.),
Dialogues in Roman Imperialism. Power, Discourse and Discrepant Experience in the Roman Empire, Portsmouth, RI,
336
Quem quer que tenha gravado estas palavras, fosse um Romano a gabar-se ou um
auctótone ressentido, estava convencido da inevitabilidade da vitória romana. Com
efeito, a despeito de derrotas esporádicas, o exército romano levou a cabo, em termos
globais, campanhas bélicas bem-sucedidas para dilatar e proteger o império ao longo de
trezentos anos.
É relativamente fácil avançar com razões explicativas para o êxito dos «filhos de Marte»
na guerra, aludindo aos seus consideráveis recursos, à sua organização, à mão-de-obra
disponível, à disciplina, às armas, à liderança e, mesmo, a uma superioridade resultante
de muito treino, de uma alimentação salutar e regular, bem como de razoáveis
condições sanitárias. Estes factores terão concorrido para o sucesso dos Romanos, mas
nem sempre demonstraram ser suficientes 967. Assim, por exemplo, eles não
conseguiram estar à altura dos potenciais recursos humanos que tinham as tribos
situadas para lá do Reno e do Danúbio. Tácito notou que os Germanos não só possuíam
boa compleição física, como também os Chatti, em particular, dominavam até uma
qualidade tipicamente romana, a da disciplina no campo de batalha 968.
Quanto ao comando, para diversos historiadores actuais, a maioria dos altos oficiais
compunha-se, em regra, de indivíduos sem grande instrução militar formal, embora os
centuriões pudessem fornecer elementos tão imprescindíveis como a consistência e a
experiência na condução das tropas969. No entanto, cabe relativizar esta visão 970: com
efeito, quase todos os oficiais superiores numa legião eram homens qualificados pelo
seu nascimento ou pela riqueza, mais do que pela sua experiência marcial; posto isto,
não causa estranheza que os estudiosos frequentemente os rotulem de «amadores»,
mas o emprego deste vocábulo afigura-se enganador e os próprios Romanos nem
conseguiriam compreender tal noção: na realidade, os hábitos do comando e da
supervisão da administração seriam inculcados, desde a mais tenra idade neste género
de indivíduos que haviam crescido em mansões ou villae onde tinham dezenas, senão
mesmo, centenas de escravos, e cujas famílias possuíam extensas propriedades
fundiárias nas zonas rurais.
Muito do trabalho requerido na chefia de uma legião, em especial em tempo de paz,
pouco diferia das funções, deveres ou responsabilidades dos magistrados ou
funcionários estatais em Roma e nas restantes cidades do império. Aliás,
tradicionalmente, sob a República, os homens que os oficiais comandavam nas legiões
consistiam, muitas vezes, nos mesmos que eram seus clientes e para os quais
discursavam nas assembleias da Urbs. Esta situação veio a mudar no começo do
Principado, mas o ethos continuou a prevalecer: o que se requeria basicamente de um
oficial era auto-confiança e habilidade de impor respeito através de uma postura e um
carácter inatos.
A partir de finais do século III e princípios do IV da nossa era, os membros da ordem
equestre passaram a assumir a maior parte das responsabilidades militares, até aí
confiadas a senadores, o que levou à emergência de um ethos mais profissional, mas ao
mesmo tempo foi nesta fase que começou a dissipar-se a superioridade romana em
combate. Ainda que as tropas romanas estivessem mais bem armadas e protegidas do
que os seus inimigos, elas não dispunham de qualquer género de superioridade
esmagadora, como aconteceria se tivessem armas de fogo.
Além disso, o império não tomou iniciativas estratégicas ou diplomáticas de vulto que
garantissem uma total segurança. O território imperial consistia numa série de
províncias com base no Mediterrâneo, e o seu governo central lidava com problemas
militares concretos num regime ad hoc em diferentes zonas, sendo o espaço físico
controlado pelos Césares vulnerável a ataques que se realizassem simultaneamente em
várias frentes.
1997, p. 185.
967
A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 246-247.
968
Tácito, Ann. III, 20-21.
969
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 41.
970
N.B. Rankov (cf. «Military Forces», p. 39).
337
Até 300 d.C., o principal desenvolvimento táctico nas forças romanas consubstanciou-
se na criação de uma cavalaria mais forte (se bem que não seja claro até que ponto isto
tenha exercido um impacto significativo em combate) e no «exército de campanha», o
qual, em teoria, podia acompanhar o imperador numa expedição para uma
determinada região assolada por sérios problemas. No que respeita à disciplina, esta foi
usualmente bastante eficaz e, por vezes, viu-se rigorosamente imposta, haja em vista o
que sucedeu, no Norte de África, em 20 d. C., quando uma coorte legionária virou
costas e abandonou o seu comandante; o governador provincial aplicou, então, o
castigo tradicional, a decimatio, através do qual um em cada dez homens foi espancado
até à morte971. No entanto, tudo leva a crer que a disciplina não se aplicaria de uma
maneira uniforme e sistemática, afirmando-se mais duramente no decurso de
campanhas972.
De todos os factores acima mencionados, havia um mais importante que jogava a favor
de Roma: o exército romano era constituído por forças profissionais e permanentes,
dotado de um pragmatismo inexorável e dos recursos materiais necessários para
desgastar e vencer qualquer oposição numa campanha prolongada. Os inimigos que
não lograssem manter-se em campanha por bastante tempo podiam ser forçados a
livrar uma rápida batalha 973. Os soldados romanos tinham confiança na sua
superioridade e na vitória, uma vez que faziam parte de um exército cujo palmarés de
êxitos bélicos quedou demonstrado durante gerações a fio. Eles tinham, ademais, o
estímulo psicológico de geralmente tomar a iniciativa do ataque, facto perceptível pelas
tácticas ofensivas amiúde adoptadas pelos comandantes romanos, o que confirma, em
certa medida, a ideia da superioridade «inata» romana.
Mas tudo isto se escorava num conjunto de preparativos estritamente profissionais e
meticulosos, antes da realização de cada campanha, o que se assinala por meio das
missões de exploração e reconhecimento, pela utilização de colunas de marcha
dispostas de acordo com o terreno (prevendo a eventualidade de iminentes investidas
do antagonista), bem como por técnicas de acampamento temporário ou permanente
rigorosamente empregues974. Se as operações bélicas corressem mal, a coragem quase
rotineira do soldado romano, como salientou o experiente oficial Veleio Patérculo, bem
como a sua obediência à prática militar e a lealdade para com os seus camaradas,
podiam conduzir à vitória, mesmo até em casos em que lhe faltasse o comandante.
Numa situação perigosa durante a guerra desenrolada na Panónia, quando diversos
oficiais superiores e centuriões ficaram feridos e o exército se viu sob grande pressão,
«as legiões, soltando gritos de encorajamento uma para a outra, investiram sobre o
inimigo e, não satisfeitos em repeli-lo, ao arremeterem penetraram na linha de batalha
do último e averbaram uma vitória quando tudo parecia perdido» 975.
971
Tácito, Ann. II, 20-21.
972
J. B. Campbell, War and Society, p. 39.
973
Problemas experimentados pelos Germanos e outros povos ao combaterem os Romanos: A. Goldsworthy, The
Roman Army at War, pp. 73-74.
974
Quanto às operações de reconhecimento em território hostil e de recolha de informações, veja-se N. J. E. Austin e N.
B. Rankov, Exploratio. Military and Political Intelligence in the Roman World from the Second Punic War to the Battle
of Adrianople, Londres/Nova Iorque, 1995. Acerca dos acampamentos: L. Keppie, The Making of the Roman Army, pp.
36-38; A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 111-113. Relativamente ás colunas em marcha, Flávio Josefo
deixou-nos uma excelente descrição de como Vespasiano marchou rumo à Galileia (B. Iud., III, 115-126): em primeiro
lugar avançavam tropas auxiliares com armamento ligeiro e archeiros que serviam como batedores e lidavam com
ataques repentinos; a seguir, encontravam-se unidades de infantaria legionária (fortemente armadas) e um contingente
de cavaleiros, secundados por dez homens de cada centúria para descobrir e delimitar o local para o acampamento, além
de soldados munidos de apetrechos para desimpedir o caminho; mais atrás vinham as bagagens de Vespasiano e dos
seus oficiais, escoltadas pela cavalaria, depois o próprio general e a sua guarda pessoal, as unidades montadas das
legiões, o trem das máquinas de assédio, os legados, prefeitos e tribunos (protegidos por tropas escolhidas); depois,
estavam os aquiliferi e demais porta-estandartes, acompanhados de trombeteiros; a seguir marchava cada uma das
legiões, em filas de seis homens, enquadrada por um centurião que velava pela ordem durante a progressão; atrás das
mesmas, vinham serviçais, animais de tiro, as unidades apeadas de auxilia e, por fim, uma retaguarda composta de
infantaria ligeira e pesada, bem como de um destacamento de cavaleiros auxiliares – a este respeito, consulte-se P.
Connolly, Greece and Rome at War, p. 238. Observe-se igualmente o relato de F. Josefo da coluna de Tito em marcha
em direcção a Jerusalém (Bell. Iud., V, 47-50). Para o dispositivo concebido por Arriano, na marcha contra os Alani, cf.
Ectaxis, 1-11; B. J. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, pp. 92-93; A. Goldsworthy, op. cit., pp. 105-111.
338
Mal as legiões derrotassem o antagonista em batalha, o desfecho era violento e
implacável. Como não havia normas definidas para terminar uma contenda, quando a
oposição se desintegrava os Romanos dispunham livremente dos materiais, do povo
vencido e da sua terra, caso assim pretendessem 976. Por exemplo, no reinado de
Augusto, Marco Crasso perseguiu a tribo trácia dos Bastarnae praticamente até à sua
total aniquilação, enquanto a revolta dos Panonianos, em 6 d. C. foi jugulada com
extrema ferocidade977. A seguir ao efémero motim do ano 14, Germânico conduziu as
legiões através do Reno para se redimirem:
«[Elas] devastaram a região a ferro e fogo, ao longo de 50 milhas. Não se mostrou piedade em função da
idade ou do sexo. Foram arrasados edifícios, tanto religiosos como seculares» 978.
No ano seguinte, Germânico avançou inesperadamente contra os Chatti:
«Mulheres, crianças e velhos indefesos foram imediatamente capturados ou massacrados».
Depois, em 16 d. C., também sob o comando de Germânico, as tropas romanas
chacinaram os Cherusci:
«Os restantes foram indiscriminadamente massacrados. Muitos tentaram atravessar o Weser a nado,
vendo-se bombardeados por dardos, arrastados pela corrente ou esmagados pela pressão dos fugitivos e
pelo colapso das margens do rio. Alguns, vergonhosamente, buscaram escapar subindo para as árvores.
Quando eles se esconderam por entre as ramagens, os arqueiros divertiram-se ao abatê-los. Outros, por
seu turno, caíram, ao derrubarem-se as árvores. Foi uma grande vitória e tivemos poucas baixas. A
matança do inimigo prosseguiu desde o meio-dia até ao crepúsculo, e os seus cadáveres e armas ficaram
espalhados ao longo de cerca de 10 milhas» 979.
Durante o principado de Domiciano, quando os Nasamones, uma tribo númida, se
rebelaram, o governador da Numídia obliterou-os, pura e simplesmente, incluindo os
não combatentes. O imperador terá comentado:
«Proibi que os Nasamones existam»980.
Uma derrota em combate contra os Romanos era invariavelmente acompanhada pelo
extermínio ou deportação dos homens em idade militar, haja em vista o que Tibério e
Druso fizeram na Récia, em 15 d. C.:
«Como a região tinha uma grande população e parecia provável que se revoltasse, eles deportaram a
maioria dos homens em idade militar, deixando apenas alguma gente para povoar a terra, mas não a
suficiente para iniciar uma insurreição»981.
Analogamente, na Panónia, Tibério escravizou e deportou todos os homens em idade
militar, devastando toda a área982. Por seu lado, o governador da Mésia, Pláutio Silvano
Aeliano celebrou, de entre as suas proezas obradas sob a égide de Nero, o facto de haver
«trazido mais de 100 000 transnubianos para o pagamento de impostos, juntamente
com as suas mulheres, líderes ou reis»983.
Ocasionalmente, os Romanos mutilavam antagonistas. O historiador Floro (século II d.
C.) desprezava os povos estrangeiros e considerava que os inimigos selvagens só
podiam ser «domesticados» através dos seus próprios métodos. Referindo-se à guerra
contra os Trácios, ele comenta que «os cativos foram selvaticamente tratados por meio
975
2.112.6. Naturalmente que a tradição e as próprias lendas marciais estavam, muitas vezes, distanciadas da realidade.
Os Romanos gostavam de pensar que as suas tropas lutariam sempre até ao fim e, de facto, elas assim o fizeram com
bastante frequência (Tácito, Ann. 4.73; F. Josefo, B. J. VI, 185-188. No entanto, também se registaram situações
(raramente objecto de narrações) em que certas unidades se renderam face ao inimigo ou até debandaram
ignominiosamente (e.g. Tácito, Ann. 15.,16; Hist. 4.60).
976
Havia, ainda assim, a possibilidade de se entabularem contactos diplomáticos: repare-se que a Primeira Guerra Dácia,
por exemplo, findou com a ratificação formal de um tratado de paz. Para esta vertente em geral, consulte-se B. J.
Campbell, «Diplomacy in the Roman world (c. 500 BC-AD 235)», Diplomacy and Statecraft 12.1 (2001), pp. 1-22.
977
Díon Cássio, Hist. rom. 51.23-24.
978
Díon Cássio, Hist. rom. 55.29-30; Veleio Patérculo, II, 115. Salientemos, também, que os Cântabros/Cantabri e os
Ástures/Asturi, na Hispânia, se viram submetidos à custa de enormes baixas (Díon Cássio, Hist. rom. 54.5, 11).
979
Tácito, Ann.1.51.
980
Ibidem, 1.56.
981
Ibidem, 2.17-18. Cabe advertir igualmente para o extermínio dos Bretões depois da derrota de Boudica: «Os Romanos
não pouparam sequer as mulheres. Os animais das bagagens também, perfurados por armas, juntaram-se às pilhas de
mortos» (ibidem, 14.37).
982
Díon Cássio, Hist. rom. 67.4.6.
983
E. M. Smallwood, Documents Illustrating the Principates of Gaius Claudius and Nero, Cambridge, 1967, nº 228;
para a tradução em ingles, cf. D. C. Braund, Augustus to Nero. A Sourcebook on Roman History 31 BC-AD 68,
Londres/Sydney, 1985, nº 401.
339
do fogo e do gládio, mas os bárbaros pensavam que nada era mais terrível que deixá-los
com vida e as suas mãos decepadas e forçados a sobreviver ao seu castigo» 984.
Os líderes de povos que se opusessem aos Romanos e não morressem nem se
suicidassem (como o fez Decébalo, rei da Dácia) durante uma campanha, estavam
muitas vezes condenados a partirem rumo a Roma, onde participavam nos cortejos
triunfais dos imperadores, depois vendo-se cerimonialmente executados. Vejamos um
exemplo:
«O cortejo triunfal [de Vespasiano e Tito] chegou ao seu termo junto do Templo de Júpiter Capitolino,
onde parou. Era um antigo costume aí esperar até que se anunciasse a morte do general do inimigo. Este
homem era Simão, filho de Gioras, que participara na procissão com os prisioneiros; então, colocou-se uma
corda à volta do seu pescoço e ele foi açoitado pela escolta à medida que o arrastaram até ao local perto do
fórum onde a lei romana determina que os condenados à morte pela sua vilania sejam executados. Quando
se anunciou que Simão estava morto, houve um clamor de aprovação e eles começaram os sacrifícios» 985.
340
defendeu a cidade contra as forças sitiantes de Vespasiano: os Judeus abrigados na
cidade tiveram de enfrentar três legiões romanas, apoiadas por tropas auxiliares e por
160 catapultas. Vespasiano recorreu a uma barragem de artilharia para afastar os
defensores das muralhas e impedi-los de atirar pedregulhos, o que permitiu a
construção de uma rampa. Josefo descreve como uma pedra arremessada por uma das
catapultas arrancou literalmente a cabeça de um homem, fazendo-a voar ao longo de
550 m. Os sitiados tentaram aumentar o tamanho das suas muralhas, mas em vão.
Quando a rampa atingiu suficiente altura, os Romanos fizeram subir um aríete,
começando a bater com ele de encontro a uma porção das muralhas. Os defensores
procuraram amortecer as pancadas, pendurando sacos de palha em frente do aríete,
mas os sitiadores resolveram utilizar foices na extremidade de varas compridas, para
assim cortar as cordas que sustentavam os sacos.
A certa altura, os Judeus lograram despedaçar a cabeça do aríete com uma grande
pedra e deitaram fogo à sua armação. Os legionários e os auxilia não foram capazes de
apagar as chamas, mas não deixaram de tentar salvar o aríete. Mais tarde, ao fim da
tarde, o aríete estava de novo operacional e retomaram-se os movimentos de percussão,
que continuaram pela noite dentro. Pouco antes de amanhecer, ruiu uma parte das
muralhas e, ao romper do dia, no meio de um clamoroso ressoar das trombetas e de
brados de guerra trovejantes, os legionários atacaram, mas foram repelidos. Vespasiano
mudou então a táctica do assalto e mandou erigir três torres revestidas de ferro, a partir
das quais se podia dirigir uma barragem constante contra os defensores da cidade.
Alteou-se a rampa até ultrapassar a altura das fortificações.
Ao alvorecer, após 47 dias de assédio, os Romanos conseguiram abrir uma brecha e
colocaram pranchas de madeira para aceder ao interior. Enquanto os Judeus se
encontravam assoberbados pelo assalto generalizado sobre as muralhas, os legionários,
utilizando a característica formação da «tartaruga» (testudo), através da qual punham
os escudos por cima das suas cabeças, construindo uma espécie de «telhado»,
penetraram pela brecha, embora os inimigos tenham despejado azeite a ferver sobre
eles, além de azeite líquido na passagem de acesso, para a tornar escorregadia 989. Eis o
que aconteceu a seguir:
«Naquele dia os Romanos massacraram toda a gente que encontraram. Nos dias subsequentes, andaram
à procura de esconderijos e vingaram-se sobre os que se haviam refugiado em abóbadas subterrâneas e
cavernas. Não pouparam ninguém, não ligando à idade, exceptuando crianças e mulheres. Reuniram-se
1200 prisioneiros e o número total de mortos, tanto durante a conquista final como nos combates
anteriores, estimou-se em 40 000. Vespasiano ordenou que a cidade fosse completamente arrasada e se
incendiassem todos os fortes»990.
Embora Flávio Josefo possa ter exagerado um pouco no que toca ao impacto dos
estragos provocados pelas catapultas romanas, o seu relato não deixa de constituir um
bom indicador do pânico que estes engenhos de guerra geravam entre gente não
familiarizada com os mesmos.
É indiscutível que os Romanos não tinham escrúpulos ao lidar com povos que se
revelassem obstinados ao resistir-lhes. Frontino, um distinto senador que exerceu
vários postos de comando militar e foi governador da Britânia (73/4-77), na sua
colecção de estratagemas militares, cita diversos métodos para pôr termo a uma guerra
depois de se livrar uma batalha vitoriosa. Os três exemplos que ele evoca mostram que
a utilização de cabeças decapitadas de inimigos perseguia o intento de intimidar os
sobreviventes que persistiam em resistir: assim, Frontino descreve como o famoso
general Domício Corbulão (Domitius Corbulo), ao sitiar Tigranocerta, na Arménia,
conseguiu «persuadir os defensores da cidadela a claudicarem:
«[ele] executou Vadandus, um dos nobres que capturara, mandou lançar a sua cabeça por meio de uma
catapulta, enviando-a para o interior das fortificações adversas. Aconteceu que ela caiu precisamente no
989
F. Josefo, B. J. III, 141-339, esp. 271-278.
990
Ibidem, 336-338. F. Josefo e quarenta das pessoas mais notáveis e influentes esconderam-se num subterrâneo:
quando foram descobertos, Josefo tentou render-se, mas os companheiros não deixaram. Explicou-lhes que era vontade
de Deus que ele sobrevivesse, mas os outros não ligaram às suas palavras, os quais, pouco depois, decidiram suicidar-se.
Josefo foi o único a ficar vivo: rendeu-se aos Romanos e, em paga por ter traído o seu povo, foi poupado.
341
meio de uma reunião de conselho que os bárbaros tinham organizado, e a visão da mesma [a cabeça], como
se de um mau presságio se tratasse, aterrorizou-os tanto que se renderam apressadamente» 991.
Naturalmente que os Romanos recorriam a outros meios para infundir o terror,
designamente em muitos recontros de pequena escala, dos quais raramente temos
conhecimento pelas fontes antigas. Quando os habitantes da cidade de Uspe, na actual
Crimeia, propuseram capitular, «os vitoriosos Romanos rejeitaram isto porque era
cruel chacinar homens que se haviam rendido e difícil de arranjar guardas para vigiar
tanta gente (aproximadamente 10 000 pessoas). Era melhor que perdessem as suas
vidas na própria guerra. Assim, os soldados, que escalaram as muralhas através de
escadas, receberam a ordem para os matar»992.
A eliminação meticulosa e sistemática perpetrada pelas tropas romanas dos inimigos
que buscavam abrigo dentro de praças-fortes contribuía para causar uma impressão de
um enorme poder aniquilador irrefreável, e, no caso de Uspe, surtiu um efeito
psicológico fortíssimo sobre os povos vizinhos: «A destruição de Uspe provocou terror
nos outros. Armas, fortificações, montanhas e obstáculos, rios e cidades, tudo foi
igualmente vencido»993. De facto, as consequências a nível económico e social de se ser
derrotado por Roma podiam ser incalculáveis, ideia que se vê expressa por Flávio
Josefo quando condena a futilidade da revolta judaica de 66 d. C., num discurso
colocado na boca do rei Agripa II:
«Ireis fechar os olhos ao império romano e não reconheceis a vossa própria fraqueza? Não aconteceu já
que as nossas tropas foram muitas vezes derrotadas até por povos vizinhos, ao passso que o seu exército [o
romano] é invencível em todo o mundo?»994.
Em 70 da nossa era, os Judeus assistiram, impotentes, à destruição da sua capital
histórica e do grande templo, ficando em Jerusalém uma legião aboletada em regime de
permanência. O dinheiro anteriormente fornecido pelos Judeus para a manutenção do
templo passou a ser arrecadado por um tesouro especial romano 995.
O elo final na cadeia do êxito bélico romano radicava numa organização eficaz do
aprovisionamento e da logística, componentes essenciais, como vimos, para apoiar um
exército em campanha. Tomando em consideração as limitações tecnológicas do
mundo antigo, os Romanos parecem haver estado, de longe, bem mais à frente dos
povos contra os quais lutaram. A este respeito, Tácito, embora reconhecendo que as
forças partas possuíam certas qualidades, criticou-as pela sua falta de capacidade em
montar assédios e pelos seus fracos serviços de abastecimento militar 996.
Apesar de não terem sobrevivido muitos testemunhos específicos ilustrativos de como
os Romanos organizavam a logística no decurso das suas campanhas, dispomos de
suficiente documentação que nos fornece uma visão de conjunto bastante
esclarecedora997. Se bem que o exército pudesse transportar todos os seus víveres e
equipamento, isto revelava-se assaz incómodo e retardava a sua marcha. Assim,
utilizava amiúde depósitos de aprovisionamento e colunas de víveres (que eram
vulneráveis e necessitavam de escoltas para as proteger). Ambas as opções implicavam
o emprego de grande quantidade de vagões, carroças e de animais de tracção. Embora
transportasse alimentos e forragens, um exército romano podia subsistir na região
onde se encontrasse, desde que fosse na altura certa do ano, recorrendo a contingentes
encarregados de recolher comida998. Para que as forças militares romanas fossem
regularmente abastecidas, afigurava-se imprescindível a existência de uma rede
impressionante de estradas, que garantia a fluidez do trânsito das provisões destinadas
991
Strat. II, 9.2-3, 5.
992
Tácito, Anais, XII, 17.
993
Ibidem.
994
B. J. II, 362. Quanto à atitude de Flávio Josefo em relação à guerra, vejam-se: T. Rajak, Josephus. The Historian and
his Society, pp. 78-103; M. Goodman, The Ruling Class of Judaea. The Origins of the Jewish Revolt against Rome AD
66-70, Cambridge, 1987, pp. 5-25.
995
B. M. Levick, Vespasian, Londres/Nova Iorque, 1999, p. 101.
996
Ann. 11.9, 12.50.
997
Vertente que exploramos no capítulo seguinte.
998
Sobre esta matéria, remetemos para duas monografias já citadas:J. Roth, The Logistics of the Roman Army at War
(264 BC-AD 235).
342
às mais diversas unidades999. Além disso, a dominação romana do Mediterrâneo e dos
principais rios da Europa permitia que o transporte se efectuasse através das frotas
imperiais1000.
O imperador tentava manter, a todo o custo, os seus soldados relativamente
confortáveis e satisfeitos, enquanto, por outro lado, os últimos provocavam destruições
maciças e enormes privações aos inimigos de Roma. Os princeps, ao fazer isto, não só
se preocupava em mantê-los abastecidas como também acantonados em fortes
permanentes, velando pelas suas condições de vida materiais. Tibério, por exemplo,
numa altura em que ainda não era imperador, esforçou-se por agradar os seus oficiais,
no intento de tornar as campanhas militares mais toleráveis, e para o efeito cedeu-lhes
o seu médico pessoal, a liteira, a cozinha e as suas instalações de banhos privados 1001.
Como veremos mais detidamente no próximo capítulo, para um miles gregarius, afora
a alimentação e o vestuário, beneficiar de eficientes cuidados médicos era algo que
assumia grande importância psicológica. Tradicionalmente era fundamental que os
Romanos tratassem dos soldados feridos e doentes, aspectos que tomaram em séria
consideração.
Um bom comandante partilhava as adversidades com os seus homens e passaria à
ignominiosa condição de infame se abandonasse os seus feridos. Tácito, a propósito,
critica veementemente Cesénio Peto (Caesennius Paetus), tanto por se ter rendido aos
Partos em Rhandeia, como por bater em retirada de uma maneira vergonhosa:
«Num dia, Paetus marchou 40 milhas, abandonando os feridos ao longo do caminho. Esta fuga,
provocada pelo pânico, não foi menos desonrosa do que debandar do campo de batalha» 1002.
Por último, se um miles ficasse estropiado ou inválido por causa de ferimentos ou de
algum género de enfermidade, tinha o direito de dispor de uma pensão de aposentação
proporcional ao grau da sua invalidez e tendo em conta os anos que servira no
exército1003. Assim, tanto quanto possível, os soldados viam-se protegidos contra a
pobreza, e vale a pena salientar que este tipo de medidas não constituiu prática comum
em diversos exércitos do mundo até tempos comparativamente recentes.
Mas os militares de todas as idades tinham, forçosamente, de enfrentar a morte em
combate. Na inscrição da estela funerária de Marcus Caelius, oriundo de Bononia
(actual Bolonha, Itália), deparamos com uma história concreta de tragédia pessoal e,
também, de compaixão e de lembrança: Caelius, que ocupou o posto de centurião,
perdeu a vida na tremenda derrota sofrida pelas três legiões de Varo em 9 d. C.; nunca
se chegou a identificar o seu corpo, pelo que os restos mortais foram possivelmente,
inumados no próprio local da batalha pelas tropas do exército de Germânico, em 15 d.
C. O seu cenotáfio, erigido pelo seu irmão no acampamento militar situado perto de
Vetera (Xanten, Alemanha), inclui uma representação esculpida em baixo-relevo de
Caelius com o seu traje militar, exibindo a típica vitis centurial e as suas condecorações
(torques e phalerae), fixas à couraça, por actos de bravura (FIG. )1004:
M(arco) Caelio T(iti) f(ilio) Lem(onia tribu) Bom(onia)/(centurioni) leg(ionis) XIIX ann(orum) LIII
s(emissis)/[ced]cidit bello Variano ossa/[in]ferre licebit P(ublius) Caelius T(iti) f(ilius)/Lem(onia tribu)
frater fecit.
«Marcus Caelius, filho de Titus, da tribo Lemonia, de Bononia, centurião da legio XVIII, com 53 anos e
meio de idade, pereceu na Guerra Variana. Concedeu-se autorização para depositar os seus ossos dentro
[do monumento]. Publius Caelius, filho de Titus […], seu irmão, isto fez»1005.
999
R. Chevalier, Roman Roads, edição revista, Londres, 1989, cap. 3.
1000
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome, pp. 49-50.
1001
Veleio Patérculo, II, 114.
1002
Ann. 15.16.
1003
B. J. Campbell, The Emperor and the Roman Army, 31 BC-AD 235, pp. 311-314.
1004
A ladear a figura do centurião encontram-se os bustos dos libertos do defunto, M. Caelius M. I. Privatus e M.
Caelius M. I. Thiaminus.
1005
CIL XIII 8648 = ILS, 2244. Para um estudo minucioso deste monumento, veja-se H.-J. Schalles e S. Willer, Marcus
Caelius: Tod in der Varusschlacht, Darmstadt, 2009. As palavras bello Variano gravadas no epitáfio constituem a única
referência epigráfica conhecida às campanhas de P. Quinctilius Varus a leste do Reno.
343
CAPÍTULO 8: Soldos, aprovisionamento e logística. A burocratização
militar. Cuidados médicos. O papel do exército na manutenção da
ordem e da justiça
Os soldos
344
Como referimos, Augusto redefiniu o estatuto do soldado, mas sem subir o nível do
salário que fora estabelecido por Júlio César. Os soldos mantiveram-se inalterados até
ao reinado de Domiciano, que os aumentou em 1/3, por volta de 83 d. C. Assim, o
montante da remuneração-base do legionário passou de 225 para 300 denários por ano
(Suetónio, Domiciano, 7; Díon Cássio, Hist. rom. 67.3,5). Mais bem pagos, os
cavaleiros legionários e auxiliares auferiram de 7/6 desse valor, ao passo que os
infantes auxiliares receberam 5/6. Este aumento representou mais que uma mera
reactualização remuneratória depois da Guerra das Gálias: veio a servir para oficializar,
também, o crescente peso político do exército no Império, bem manifesto aquando das
guerras civis de 68-69 d. C.
Por outro lado, as coortes pretorianas eram, de longe, as tropas com melhores soldos:
se nos fundamentarmos nos donativa de Augusto à guarnição de Roma, podemos
calcular o montante dos soldos anuais dos pretorianos e dos urbaniciani em 750 e 375
denários, respectivamente, em 14 d. C. Os primeiros receberam possivelmente 1000
denários anuais por altura da medida decretada por Domiciano.
Em finais do século II e princípios do III, houve mais dois aumentos nos soldos: sob o
reinado de Septímio Severo, por volta de 197, e, depois, no do seu filho Caracala,
provavelmente em 2121006. Tem-se discutido muito a importância destes dois factos, já
que os testemunhos de Díon Cássio (Hist. rom. 75.2, 5; 77.24, 1), da História Augusta
(Vida de Septímio Severo, 12) e de Herodiano (História, III, 8, 4; IV, 4, 7) não
fornecem pormenores sobre a matéria. Com base sobretudo em J. Jahn e M. A. Speidel,
o fundador da dinastia terá aumentado o valor anual do soldo-base dos legionários para
2 400 sestércios (cada stipendium ascendendo a 800 sestércios, o que representaria
uma subida de 100%), e o seu filho elevou-o para 3 600 sestércios (cifrando-se o
stipendium em 1200, o que correspondeu a um aumento de 50%). Aparentemente, os
soldos mantiveram-se estáveis ao longo do século III, se nos ativermos aos papiros de
Panópolis (Egipto), que remontam ao reinado de Diocleciano.
É possível que Septímio Severo e, depois, Caracala, tenham aproveitado estas
sucessivas subidas dos montantes dos soldos para alinharem progressivamente as
remunerações dos auxilia em relação às dos legionários 1007. Assim, ambos os
imperadores tomaram em consideração a diminuição da diferença de estatuto entre
estes dois corpos de tropas, bem como as dificuldades que se registavam no
recrutamento de auxiliares desde a difusão da concessão da cidadania romana.
Mas Septímio Severo terá realmente enriquecido os soldados, além de recomendar aos
seus filhos, no seu leito de morte, que se preocupassem apenas com os militares, como
nos conta Díon Cássio (Hist. rom. 76.15, 2)? Na realidade, o aumento dos soldos serviu
para compensar, e mesmo assim a custo, os efeitos da inflação. Foi o motivo pelo qual
Septímio Severo também distribuiu os donativa, através dos despojos obtidos nas
guerras contra os Partos. Díon Cássio e Herodiano reflectem, lembremos, o ponto de
vista das elites do Império, que experimentavam ao mesmo tempo desprezo e temor
face aos soldados, encarando-os quase como bárbaros, na medida em que muitos deles
eram recrutados entre as populações dos confins do território imperial. Neste sentido,
estes autores taxaram de «demagógica» uma política cujo objectivo consistia em tornar
o ofício das armas ainda atractivo. Com efeito, desde o reinado de Marco Aurélio, as
guerras, mais frequentes e habitualmente mais defensivas, diminuíram o número de
vocações.
1006
R. Develin, «The army pay rises under Severus and Caracalla and the question of the annona militaris», Latomus
(1971); J. Jahn, «Zur Entwiclung römischer Soldzahlungen von Augustus bis auf Diokletian», Studien zu den
Fundmünzen der Antike 2 (1984); M. A. Speidel, «Roman Army Pay Scales», JRS 82 (1992), p. 88, «Table I», 97ss; B. J.
Campbell, The Roman Army … A Sourcebook, pp. 20-21, «Table I».
1007
M. P. Speidel, «The pay of the auxilia», JRS 63 (1973), pp. 141-147. No tempo de Septímio Severo, nos auxilia, um
infante (miles cohortis) recebia anualmente 2000 sestércios, e um cavaleiro (eques cohortis) 2 400; sob a égide
Caracala, os primeiros passaram a auferir de 3000 sestércios e os últimos 3600 por ano.
345
O montante das remunerações dos oficiais não se comparava de modo algum ao dos
simples soldados e dos graduados que recebiam uma vez e meia, o dobro ou o triplo do
montante-base. Ao examinarmos as estimativas de B. Dobson e M. A. Speidel, um
centurião auxiliar e um decurião terão recebido o quíntuplo, um centurião legionário
quinze vezes mais e um primus pilus sessenta vezes mais no começo do Império. No
entanto, estes soldos não foram, talvez, aumentados dentro das mesmas proporções
que o salário-base do simples legionário ao longo do tempo.
Na época imperial, os oficiais equestres e senatoriais recebiam igualmente um
emolumento, que se pode avaliar indirectamente: o denominado «Mármore de
Thorigny» (CIL XIII, 3162), menciona uma soma de 25 000 sestércios em ouro, o que
corresponderia a metade ou, até, à totalidade da remuneração do tribuno semestris
(nomeado para um período de seis meses) Titus Sennius Sollemnis. De qualquer modo,
este valor devia ser inferior às remunerações do primeiro escalão dos procuradores
equestres: 60 000 sestércios. Quanto aos oficiais senatoriais, recebiam possivelmente
mais do que os da ordem equestre, mas menos do que os procônsules das províncias de
África e Ásia que, segundo Díon Cássio, usufruíam de 1 milhão de sestércios no início
do século III (Hist. rom. 88.22, 5).
A análise da documentação papirológica sugere que o viaticum pago aos recrutas se
elevaria a 75 denários no século II: equivalia, portanto, a 1/3 do soldo anual de um
legionário, montante que, ao que parece, seria o mesmo para todos os corpos de tropas.
Ele representava, de facto, um subsídio contingente para os tirones, cujos anos de
serviço se contabilizavam normalmente a partir de 1 de Março, a seguir ao seu
arrolamento. Este pecúlio permitia-lhes cobrir todas as despesas antes de 1 de Maio do
mesmo ano. Com efeito, o soldo era pago em três ocasiões – 1 de Janeiro, 1 de Maio e 1
de Setembro. Se a viagem do recruta fosse longa, o viaticum não bastava para suprir a
todos os custos com o equipamento. Por esta razão é que, no princípio do século II, o
marinheiro Claudius Terentianus, recrutado primeiramente para a frota de Alexandria
e, depois, transferido para uma coorte auxiliar, escreveu a seu pai, Claudius Tiberianus,
pedindo que lhe enviasse vestuário e parte do seu equipamento, para evitar ter de
adquiri-los novamente (P. Mich. 467, 468).
Em meados do mesmo século, um cavaleiro da Ala Veterana Gallica pediu
emprestados 50 denários para o pagamento das suas armas, comprometendo-se a
devolvê-los na altura em que receberia o seu primeiro stipendium, que só poderia ter
lugar nas calendas de Janeiro, de Maio ou de Setembro, após a sua probatio (P. Fouad
45). O pagamento do stipendium em datas fixas ocorria durante uma cerimónia
peculiar, que Flávio Josefo descreveu, ao narrar o assédio de Jerusalém em 70 da nossa
era (B. J. V, 349-351).
Por vezes, um oficial superior transportava consigo os fundos necessários para o
pagamento das tropas, aquando de viagens de inspecção das guarnições militares: foi o
que sucedeu, por exemplo, com Arriano, legado da Capadócia, cujo relatório
apresentado ao imperador da sua visita às unidades estacionadas junto ao mar Negro é
conhecido como Périplo do Ponto-Euxino (VI, 1-2; X, 3). De facto, em teoria, cabia ao
tesouro imperial a manutenção do exército, mas na prática, geralmente não era preciso
enviar a partir de Roma a totalidade do numerário necessário, até porque isto envolvia
grandes distâncias a percorrer e demasiados gastos.
Na realidade, nas províncias imperiais onde se concentrava a maior parte das unidades
do exército, existia uma arca destinada a recolher o produto das receitas fiscais, gerida
por um procurador imperial (Estrabão, Geografia, III, 4, 20). Este, alternativamente,
também podia deslocar-se para distribuir o stipendium pelas tropas acantonadas na
província em que exercia funções. Mas o mais usual era o envio de um destacamento
com a missão específica de levantar o dinheiro dos soldos nas repartições do
procurador e o transportar até ao local de aquartelamento de uma unidade.
346
Os papiros de Dura Europos1008 permitem reconstituir a organização material implícita
ao pagamento do soldo, uma vez que contêm registos dessas missões, obedecendo a
uma ordem cronológica, nas listas dos efectivos da XXª coorte auxiliar Palmyrenorum:
numa primeira etapa, um contingente com uns trinta homens apresentava uma
estimativa das necessidades da unidade em numerário ao procurador (P. Dura, 95;
ChLA, VII, 350, 1 e 2); depois, levava-se o dinheiro da estrutura administrativa do
procurador até ao acantonamento das tropas. Uma escolta, composta por infantes e
cavaleiros, assegurava a protecção desse grupo de soldados no seu percurso; depois da
entrega do stipendium, um número mais reduzido de militares dirigia-se à sede do
procurador, fornecendo-lhe a lista do pagamento dos soldos para verificação
(documento provavelmente arquivado num «gabinete»). Para esta tarefa, o P. Dura 95
só menciona quatro homens, o que não causa estranheza, visto que não carecia de
protecção especial, nem do recurso a animais de carga.
Aprovisionamento e logística1009
À semelhança do pagamento dos soldos pelas arcas do fisco que estivessem localizadas
mais perto do local de aboletamento das tropas, a organização do aprovisionamento
militar foi também concebida de molde a limitar, o mais possível, a transferência de
capitais para regiões muito distantes: assim, em cada stipendium descontavam-se as
quantias destinadas à alimentação e ao equipamento dos soldados. Posto isto, os
militares não dispunham da totalidade dos seus stipendia. Ademais, retinha-se metade
dos donativa que os mesmos recebessem do imperador no santuário das insígnias da
respectiva unidade, o qual se situava no centro dos principia do acampamento: este
dinheiro aí se mantinha até ao licenciamento de um soldado, dando-se-lhe o nome de
seposita. Em caso de morte, esse numerário era atribuído aos seus herdeiros.
Por outro lado, os militares podiam depositar igualmente uma parcela do seu viaticum
e do seu stipendium, a que se chamava deposita. As rações e a organização destas
poupanças, forçadas ou encorajadas, foram objecto de comentários por parte de
Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 20):
«Os Antigos haviam estabelecido sabiamente que metade dos donativa distribuídos pelas tropas se
depositasse nas insígnias, por medo de que os soldados viessem a dissipar tudo em deboche e outras
despesas tolas. A maioria dos homens, sobretudo os pobres, vai gastando à medida que recebe; assim, é
para o próprio bem dos soldados que se coloca este dinheiro sob sequestro. Mantidos à custa do Estado,
pouco a pouco, eles fazem da metade dos donativa um fundo para as suas necessidades, e não pensa, de
maneira alguma, em desertar; prendem-se mais às insígnias, defendem-nas com acrescido ardor,
animados que estão por esta tendência do coração humano, que nos torna tão cuidadosos em relação
aquilo que nos permite subsistir. Os donativa eram divididos em dez bolsas, uma para cada coorte: cada
legião punha ainda um undécimo para a sepultura comum; e se um soldado falecesse, daí se retirava
dinheiro para custear o seu funeral».
1008
A respeito deste rico corpus documental, consultem-se: C. B. Welles et al., (eds.), Excavations at Dura Europos:
Final Report V, Part I: The Parchments and Papyri, New Haven, 1959. Para uma análise e uma interpretação rigorosas
sobre os papiros descobertos em Dura Europos, consulte-se a tese para a obtenção do grau de PhD de J. Austin, Writers
and Writing in the Roman Army at Dura Europos, College of Arts and Law, University of Birmingham, 2010: no
capítulo 1, Austin tece comentários esclarecedores sobre a Cohors XX Palmyrenorum e a vida no forte (pp. 33-45), no 2,
intiulado «Writing in the Camp», são abordados os diversos usos da escrita e o seu papel na administração quotidiana
(pp. 47-60), e no 5, um exame meticuloso e critico sobre o conteúdo dos papiros (pp. 62-77).
1009
Para este assunto existem diversos estudos: J. P. Adams, Logistics of the Roman Imperial Army. Major Campaigns
in the First Three Centuries AD, dissertação defendida na Universidade de Yale, em 1976; idem, «Supplying the Roman
army: O. Petr. 245», ZPE 109 (1995), pp. 119-124; D. J. Breeze, «Supllying the army», in G. Alföldy et al. (eds.), Kaiser,
Heer und Gesellschaft in der römischen Kaiserzeit. Gedenkschrift für Eric Birley, Estugarda, 2000, pp. 59-64; P.
Erdkamp, «The corn supply of the Roman armies during the principate (27 BC-235 AD)», in The Roman Army and the
Economy, Amsterdão, 2002, pp. 47-69; P. Herz, «Zur Logistik des römischen Heeres von der mittleren Republik bis
zum Ende der hohen Kaiserzeit (241 v. Chr-235 n. Chr.): Forschungen und Tendenzen», Militärgeschichtliche
Zeitschrift 63 (2004), pp. 115-151; J. Roth, «Logistics and the legion», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), Les légions de
Rome sous le Haut Empire, Lyon, 2000, pp. 707-710.
347
A documentação papirológica (por exemplo, o P. Columbia, inv. 325) corrobora este
testemunho. Com efeito, determinados recibos e relatórios de contas de soldados
aludem a esses depósitos (PST, IX, 1063; ChLA, III, 208). Os P. Berl. 6866, P. Aberd.
133 e P. Reinach 2222 aos mesmos se referem sob a rúbrica lorictitis ou loricem.
Segundo Roy W. Davies1010, tal como o tesouro imperial deposto junto da estátua
couraçada de César no Palatino, ou talvez no seu forum, os dois vocábulos reportavam-
se às efígies couraçadas dos imperadores, que se encontravam no mesmo santuário que
as insígnias, local onde os soldados também prestavam o culto imperial. Este recinto,
repleto de símbolos, escolhido para albergar os seposita e os deposita servia para
designar os signiferi, ou seja, aqueles que se responsabilizavam pelas insígnias de cada
manípulo (signa) e as guardavam.
Ao longo do século I e no início do II d. C., todas as despesas respeitantes ao
aprovisionamento militar faziam-se mediante retenções na fonte: o soldado recebia o
seu equipamento e a sua comida do exército, o qual, por sua vez, lhe entregava um
stipendium reduzido em função dos descontos. Em todas as unidades,
independentemente de qual fosse o corpo de tropas (legiões, auxilia, frotas ou a
guarnição de Roma), afigurava-se, pois, imprescindível a existência de elementos
contabilísticos detalhados que comportasse o montante que cada soldado recebia. Os
papiros latinos Genebra 1 (81 d. C.) e 4 (cerca de 84 d. C.) mostram esta realidade: o
anverso do primeiro discrimina as contas individuais de dois soldados de infantaria,
certamente auxiliares, no espaço de um ano, enquanto o segundo papiro, assaz
mutilado, conserva aparentes vestígios da conta de um legionário.
Nestas fontes, depois de se indicar a recepção do stipendium aparecem habitualmente
quatro rúbricas: foi o enunciado destas no primeiro papiro que permitiu restituí-las no
segundo; consistiam em deduções feitas no soldo, referentes a artigos diversos -
faenaria/«feno», in victum/«víveres», caligas fascias/«sandálias e correias», in
[vesti]torium, in vestimentis, ou in vesti[tu]m/«vestuário».
Não sabemos ao certo se o feno, pago pelas tropas de infantaria, serviria para forragem
dos animais utilizados nas equipagens do trem ou, então, para fazer a enxerga em que
os soldados dormiam. No entanto, se nos basearmos no teor do P. Yadin 722, o
desconto realizado no soldo de um cavaleiro para alimentar a sua montada era
geralmente chamado hordiaria («para a cevada»).
À primeira vista, o que causa mais estranheza é a ausência de descontos idênticos no
que concerne ao fornecimento de armas nestes documentos. Na realidade, a retenção
nos soldos para tais gastos ocorria uma primeira vez por altura da incorporação do
recruta, e só excepcionalmente se renovava, na medida em que os militares não teriam,
forçosamente, necessidade de mudar de armas durante o seu tempo de serviço. Apenas
se atesta uma dedução de numerário para este efeito noutra fonte contabilística (P.
Faium, 105; ChLA, III, 208, datando entre 120 e 140 d. C.), embora não consigamos
apurar se o soldado em causa, Dyonisius de seu nome, decerto cavaleiro auxiliar da ala
Veterana Gallica, corresponderia a um recruta ou, então, se não o era e precisasse de
substituir uma arma já danificada. Neste caso, o desconto feito na remuneração serviria
como uma caução, dado que os soldados, como anteriormente se disse, não eram
proprietários das armas que utilizavam: pelo contrário, deviam devolvê-las quando
terminassem o serviço militar.
Gravados em elmos, gládios e noutras peças do equipamento militar, descobriram-se
também os nomes de cinco utilizadores sucessivos. À semelhança dos seposita e dos
deposita, a caução em troca das armas era entregue aos signiferi, como se constata ao
examinar o mesmo papiro do Faium. Assim, quando fosse desmobilizado, Dionysius
poderia recuperar a soma de 103 denários que ele depositara, ao restituir o seu
equipamento. Estes dados numéricos proporcionam, então, indicações preciosas sobre
o valor da panóplia de um soldado romano sob o Alto-Império 1011. A importância
referida representava quase o equivalente a um ano de soldo de um tropa auxiliar de
1010
Cf. «Ratio and opinio in Roman Military Documents», Historia 16 (1967), pp. 115-118.
1011
P. Cosme, L’armée romaine, pp. 135-136.
348
infantaria. É certo que Dionysius terá provavelmente servido na cavalaria, visto que
pertenceu a uma turma, pelo que o seu equipamento seria um pouco mais dispendioso
que o de um infante. De qualquer modo, e mesmo que esta ordem de grandeza se
afigure aproximativa, uma tal soma não era, de forma alguma, uma ninharia.
Consequentemente percebe-se o interesse que os veteranos tinham em devolver as
armas e o exército, por seu turno, em recuperá-las. Em caso de morte, o dinheiro podia
até destinar-se aos herdeiros dos militares defuntos.
Nas suas Historiae (2.67), Tácito descreve os pretorianos entregando as «suas» armas
aos tribunos das coortes. Verdade se diga que, deixar estes veteranos peritos em
técnicas de combate e habituados a matar, com todo o seu armamento, representaria
uma ameaça para a segurança interna do Império: basta atentar na legislação
respeitante aos desertores, plenamente ilustrativa quanto a este facto.
No entanto, havia excepções, designadamente entre determinados grupos de auxiliares
germânicos e bretões, cujos costumes ancestrais previam a inumação dos guerreiros
com as suas armas. Encontraram-se algumas destas sepulturas. Neste caso, os defuntos
(ou os seus herdeiros) terão renunciado à recuperação do valor da caução, depositada
aquando do arrolamento, ficando ele proprietário dessas armas. Ao todo, as deduções
no soldo poderiam representar entre 2/3 e 3/4 do montante anual.
No seu conhecido livro L’armée romaine et l’organisation des provinces ibériques
d’Auguste à l’invasion de 409 (Bordéus, 1982), P. Le Roux tentou avaliar quais eram as
necessidades dos soldados no que respeita ao aprovisionamento, tanto em termos
quantitativos como em qualitativos. Os estudos mais recentes têm vindo a sublinhar
um facto – a alimentação dos militares era mais variegada do que anteriormente se
supunha, embora os cereais nela ocupassem um lugar essencial 1012. Os últimos, para
além de salutares, podiam ser armazenados com facilidade por longos períodos sem se
estragarem: o que os soldados mais consumiam era o trigo, ainda que por vezes se
recorresse à cevada, designadamente para alimentar tropas submetidas a castigos
devidos a infracções. O trigo era moído e preparava-se sob a forma de papas ou então
cozia-se, dele se obtendo pão ou bolachas (que se comiam habitualmente no decurso
das campanhas).
Quanto ao consumo de carne, designadamente, de toucinho, estava longe de ser
irrisório. Também se consumiam legumes secos (favas e lentilhas) e até frescos,
conforme se verifica no teor dos ostraca descobertos no Egipto, no forte de Krokodilo,
decifrados por H. Cuvigny1013). Nos dias de festividades, a alimentação 1014 via-se
melhorada com peixe, mariscos (sobretudo no caso de guarnições situadas na faixa
litoral ou perto de rios), peças de caça, frutos e artigos de pastelaria. Calculou-se que
um simples soldado consumiria 393 kg de trigo por ano, o que corresponderia à
produção de uma superficie agrícola de 4 323 hectares para uma legião, e de 378
hectares para uma coorte quingenaria. Quanto às necessidades em azeite, talvez
equivalessem a uma ânfora por ano. Afigura-se mais arriscado fazer uma estimativa do
consumo de vinho, na medida em que os militares bebiam mais frequentemente a
posca, mistura de água com vinagre.
Com base na descoberta de marcos que delimitavam os prata legionis, especialmente
na Hispânia e na Dalmácia, alguns investigadores aventaram a hipótese de os soldados
explorarem, directa ou indirectamente, as terras por sua própria conta. Contudo,
actualmente, a maioria dos historiadores refuta a veracidade de uma ideia extraída de
uma passagem da Vida de Severo Alexandre (58), na História Augusta, segundo a qual
teria podido servir no exército romano uma espécie de camponeses-soldados. Quando
muito, no quadro da repartição habitual das missões no seio de uma guarnição, certos
1012
Sobre a dieta militar, bem como os requisitos nutritivos dos alimentos, as rações e as quantidades, consultem-se: R.
W. Davies, «The Roman militar diet», Britannia 2 (1971), pp. 122-142; idem, Service in the Roman Army, Edimburgo,
1989, pp. 187-206, 283-290; L. Foxhall e H. A. Forbes, «Sitometreia: The role of grain as a staple food in classical
antiquity», Chiron 12 (1982), pp. 41-90; P. Erdkamp, Hunger and the Sword, pp. 27-45; J. Roth, The Logistics of the
Roman Army at War, pp. 7-59.
1013
Ostraca de Krokodilô. La correspondance militaire et sa circulation, Cairo, 2005.
1014
Refira-se que a comida era invariavelmente condimentada com sal.
349
militares talvez se vissem temporariamente afectos a tarefas agro-pastorais, - como os
pecuarii, que se encarregavam do gado, e os destacamentos reunidos para se proceder à
ceifa (CIL VIII, 4322; ILS, 2484).
No seu trabalho sobre o territorium legionis, F. Bérard1015 demonstrou que não existia
um regime de propriedade particular para o exército: este recebia, simplesmente, o
usufruto de terras públicas que, por sua vez, se podiam dividir em várias parcelas,
nestas se obtendo a madeira, a água e as forragens necessárias. Além disso, o exército
tinha a possibilidade de erigir termas e explorar pedreiras nessas mesmas zonas. Seja
como for, hoje em dia os historiadores tendem a relativizar cada vez mais a alegada
auto-suficiência que as guarnições romanas possuiriam. É certo que este ideal autárcico
inspirou muito o tratado de Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 11).
O exército só deve ter gozado de certa autonomia no abastecimento das armas, já que
em tempo de paz, se reutilizavam os materiais dos utensílios bélicos danificados para
fabricar outros nas oficinas1016 dos acampamentos e fortes, quando as unidades
militares se encontrassem em regiões desprovidas de recursos minerais ou de tradições
metalúrgicas. Durante largo tempo, as armas achadas no subsolo de recintos militares
foram interpretadas basicamente como perdas involuntárias e acidentais por parte dos
soldados. Se, por um lado, tal explicação é plausível em relação a peças mais pequenas
do equipamento, como os anéis de cotas de malha, ela parece bem improvável para os
objectos mais volumosos e importantes como um gládio ou uma espada. Um exame
atento mostra que tais peças se encontravam danificadas ou defeituosas, razão pela
qual terão sido descartadas pelos seus utilizadores; ademais, estas peças foram
descobertas nos estratos arqueológicos que comportam maior quantidade de resíduos,
escórias e detritos metálicos. É de supor que tais armas, consideradas inutilizáveis, se
colocavam em montes de entulho intencionalmente, podendo, em alguns casos,
recuperar o seu metal para o fabrico de novos utensílios bélicos.
Em alguns locais onde foram implantadas bases militares romanas, a massa metálica
que os arqueólogos encontraram, destinada à reciclagem, atinge proporções
verdadeiramente impressionantes. É relativamente frequente a mesma haver sido
acumulada em valas que, de seguida, foram cobertas. Este fenómeno aparece
caracteristicamente em acampamentos ou fortalezas que as unidades do exército
romano abandonaram, sendo o material destruído metodicamente para evitar que
caíssem nas mãos do inimigo. Antes de partirem, os responsáveis pela oficina da
guarnição levavam com eles o máximo possível de reservas metálicas, mas, como é
lógico, viam-se obrigados a deixar para trás uma parcela in situ, já que representariam
um peso adicional muito incómodo para tropas em marcha.
Em regra, os historiadores modernos preferiram explorar o tópico dos circuitos
comerciais induzidos pelo abastecimento do exército em detrimento de outros aspectos.
Ademais, mesmo no tocante ao armamento, atesta-se também a existência de artífices
civis através da aposição das suas marcas de manufactura nos gládios ou nas bainhas,
enquanto nas fabricae dos acampamentos ou fortes militares, uma determinada
distribuição de tarefas não permitia a entrega de armas para reparação a um artesão
particular.
A presença de militares recebendo soldos regulares produzia, com efeito, um impacto
económico apreciável sobre a região onde eles estavam acantonados, como bem o
demonstrou M. Reddé1017 quanto à Gália num artigo recente, tanto mais que eles
beneficiavam de isenção de impostos, facto corroborado pelas tarifas descobertas em
fontes epigráficas do Norte de África, mais propriamente em Zarai (CIL VIII,
4508=18643) e em Lambaesis (AE, 1914, 234; CIL, VIII, 18352), o que significava um
incentivo suplementar para o consumo.
1015
«Territorium legionis: camps militaires et agglomérations civiles aux premiers siècles de l’Empire», Cahiers du
Centre Gustave Glotz 3 (1993), pp. 75-105.
1016
M. C. Bishop, «The military fabrica and the production of arms in the early principate», in M. C. Bishop (ed.), The
Production and Distribution of Roman Military Equipment, BAR S275, Oxford, 1985, pp. 1-42.
1017
«Vt eo terrore commeatus Gallia aduentantes interciperentur (Tácito, Hist., V, 23). La Gaule intérieure et le
ravitaillement de l’armée du Rhin», Revue des etudes Anciennes 113 (2011), pp. 489-509.
350
Neste sentido, não admira que se desenvolvessem aglomerações civis na vizinhança dos
acampamentos, fortalezas ou dos fortins. Elas surgem na documentação epigráfica das
províncias renanas e danubianas, rotuladas de canabae e vici (atrás mencionadas):
tradicionalmente, o primeiro vocábulo estava mais associado às legiões, e o segundo
aos auxilia. Contudo, deve relativizar-se esta distinção demasiado compartimentada, já
que o étimo canabae possuiria, quiçá, um significado menos oficial e jurídico do que o
de vicus. Embora não possuíssem o estatuto de cidades, estes assentamentos
comportavam instituições civis, «quase municipais» segundo F. Bérard. Evidencia-se
tal facto igualmente fora do contexto das regiões do Reno e do Danúbio, haja em vista o
caso da Tripolitânia, objecto de estudo por parte de R. Rebuffat 1018, na área circundante
do acampamento romano de Bu Njem, onde havia um aglomerado que ocuparia uma
quinzena de hectares (ainda que as palavras vicus e canabae não apareçam aí
consignadas).
Conhecemos inegavelmente melhor como o Estado provia os soldados de comida e de
equipamento sob o Alto Império do que na época republicana. Efectivamente, a
natureza das fontes, antes do século I d. C., não nos permite apurar ao certo se as
requisições impostas aos civis sempre seriam reembolsadas. Em papiros já da nossa
era, observam-se recibos de requisições e, num deles, alude-se a um reembolso: em 161,
uma egípcia entregou, por intermédio do seu irmão, um recibo a um decurião
concernente à aquisição de dois dromedários (P. Gen. 35); em 130, um cavaleiro da ala
Veterana Gallica acusa a recepção de forragens destinadas às montadas do conjunto da
sua turma, entregues contra pagamento (P. Lond. 482); em 199, foi todo o nomo de
Arsinoe que recebeu dinheiro do fisco imperial pelos fornecimentos que prestou ao
exército. Esta modalidade de aquisição forçada pelo Estado, a chamada coemptio, era
por vezes aplicada na obtenção de peças de vestuário. Também se descobriram
vestígios desta prática noutras paragens do território imperial, mas lamentavelmente,
os documentos são quase ininteligíveis, por haverem sofrido muito com os efeitos da
usura do tempo.
Normalmente, a organização do aprovisionamento militar alto-imperial, bem como o
pagamento do soldo, faziam parte das atribuições dos procuradores financeiros que
representavam o imperador nas províncias. Assim, eles recebiam instruções detalhadas
do princeps a respeito de tal assunto. Como testemunho, dispomos de uma carta de
Domiciano para um seu procurador, Claudius Athenodorus, que foi gravada em Hama,
na Síria, na qual se regulamenta a utilização da vehiculatio e o recurso às requisições
(IGLS, V, 1998, l. 1-5, 17-30):
«Extracto das ordens do Imperador Domiciano César, filho de Augusto, Augusto, para o procurador
Claudius Athenodorus […] Ordeno-te, então, que te certifiques também que ninguém requisite animais de
carga se não tiver uma autorização por mim entregue; pois que é muito injusto que a influência pessoal ou
o estatuto de qualquer um que seja permita que se efectuem as requisições, as quais ninguém, salvo eu
próprio, tem o direito de autorizar. Assim, que nada aconteça que provoque obstáculos à minha ordem e
comprometa esta medida assaz útil para as cidades – uma vez que é justo acudir às províncias exauridas
que, com dificuldade, provêm às suas necessidades; que pessoa alguma oprima, de maneira contrária à
minha vontade, e que ninguém requisite um cocheiro se não dispuser da minha permissão […] se os
camponeses são incomodados, as terras não serão cultivadas».
Certos géneros consumidos pelos soldados eram ocasionalmente procedentes de
regiões distantes, em especial produtos mediterrânicos como o azeite e o vinho, para as
guarnições na Britânia, no Reno e no Danúbio. Nestas regiões bastante arborizadas, as
tropas não encontrariam decerto trigo em suficiente quantidade, além do facto de a
densidade populacional nas primeiras ser reduzida, pelo menos no início do Império.
Assim se percebe que muitos acampamentos e fortes se instalassem na proximidade de
rios, para facilitar o seu abastecimento. No entanto, a presença militar serviu para
estimular o desenvolvimento agrícola em províncias como a Britânia e a leste da Gália
Bélgica.
Relativamente à questão da remonta, importa frisar que as unidades de cavalaria
também não gozavam de autonomia. De facto, a necessidade de seleccionar cavalos de
1018
«L’armée romaine à Gholaia», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer, und Gesellschaft in der
römischen Kaiserzeit: Gedenkschrift für Eric Birley, Estugarda, 2000, pp. 227-259.
351
qualidade surge sublinhada por todos os autores antigos que se interessaram pelo papel
militar da cavalaria1019. Para se arranjarem as montadas, por vezes era preciso trazê-las
de bem longe, de zonas conhecidas por terem bons equídeos, como, por exemplo, a
Capadócia. Na escolha dos mesmos empregavam-se métodos que lembram os aplicados
na selecção dos recrutas.
É possível recriar, nas suas grandes linhas, este processo através dos arquivos da
cohors XX Palmyrenorum, estacionada em Dura Europos, o que também dava lugar a
troca de missivas entre comandantes de unidades e governadores provinciais. O
comandante da unidade solicitaria primeiramente ao governador a substituição de
alguns cavalos, proporcionando pormenores identificativos sobre estes. Não
sobreviveram cartas sobre esta matéria, mas no exemplar que melhor se preservou das
respostas dadas pelo governador de Coele-Síria constatamos que as montadas eram
simplesmente atribuídas a cavaleiros concretos e descritos por sinais particulares,
desde a idade, a cor, cicatrizes, manchas, etc (P. Dura 56, ChLA VII, 311, 16 de Março-
17 de Agosto de 208 d. C.).
Esta primeira afectação dos cavalos, aprovada pelos serviços do governador tinha,
ademais, o nome de probatio, como a dos tirones1020. Ela incluiria quase de certeza um
exame básico veterinário. Depois, tal como os recrutas, os cavalos viam-se submetidos
a um treino intensivo, evocado por Tácito (Germ. 6), por Díon Cássio (Hist. rom.49.30)
e por Vegécio (Epitoma de rei militaris, I, 10; II, 23), e ao qual Arriano consagrou toda
a sua Tactica (4). Só após este adestramento é que o exército adquiria definitivamente
os cavalos. Nesse momento, então, eram registados (signati) nas listas da unidade, por
baixo dos nomes dos cavaleiros a quem haviam sido atribuídos. Em consonância com o
mesmo princípio aplicável ao abastecimento das armas, os cavaleiros tinham de pagar
uma caução que, segundo julgamos, seria fixada (aestimatus) pelo procurador
financeiro da província em causa. Note-se que estes elementos estão exarados num
documento que provavelmente consistiu num justificativo enviado ao governador (P.
Dura, 97; ChLa, VII, 352, em 251 d. C.). À semelhança do recrutamento de homens,
vários responsáveis controlavam o processo de selecção dos cavalos: O comandante da
unidade, o governador da província e o procurador financeiro do imperador.
Mas sucedia também que as provisões militares, bem como a entrega das montadas,
eram, pura e simplesmente assimiladas a um imposto em espécie. Estas requisições
gratuitas, que podiam estender-se ao próprio alojamento dos soldados (hospitium),
vieram a tornar-se sistemáticas em tempo de guerra e desenvolveram-se sobretudo nas
campanhas militares do século III d. C. Elas podiam ser confiadas pelo imperador (bem
como a logística de uma campanha) a encarregados de missões extraordinárias, os
praepositi annonae (ou copiarum) expeditionis: correspondiam geralmente a oficiais
do ordo equestre que chefiavam as tropas encarregadas de proteger os comboios de
aprovisionamento.
Ao estudar a carreira de um dos praepositi designados por Domiciano, Plotius Grypus,
pertencente ao ordo senatorial, F. Bérard1021 colocou sérias reservas quanto à existência
de um verdadeiro serviço central de intendência militar, que outros autores
entenderam que esse imperador, ou Trajano, teria criado. Porém, os prefeitos do
pretório teriam possivelmente certas responsabilidades neste domínio específico, e
quando o imperador partia em campanha, via-se acompanhado de um séquito de
amigos e conselheiros, os comites, cujo albergamento estava previsto na planta dos
acampamentos (Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 10).
1019
R. W. Davies, «The supply of animals to the Roman army and the remount system», Latomus 28 (1969), pp. 429-
459.
1020
K. Dixon e P. Southern, The Roman Cavalry, from the First to the Third Century AD, Londres, 1992, pp. 78-86; N.
Fields, Roman Auxiliary Cavalryman AD 14-193, Oxford, 2006, p. 24.
1021
«La carriere de Plotius Grypus et le ravitaillement de l’armée impériale en campagne, Mélanges de l’École Française
de Rome-Antiquité, 96 (1984-1), pp. 259-324.
352
A burocratização militar1022: o desenvolvimento dos usos da escrita
353
das guarnições deixou de ser, sob o Império, assegurada por um magistrado assistido
pela sua familia pessoal: a tarefa passou a recair num soldado que desse mostras de ser
muito competente, ostentando ele também, ao que parece, o título de quaestor (CIL,
III, 798; 1369; 1396; ILAlg, II, 6877; AE, 1912, 5; 1950, 16; 1967, 371).
Segundo uma inscrição descoberta em 1965, perto de Filipos (Philippi), na Macedónia
(AE 1969-1970, 583), em que se descreve a carreira de um soldado da cavalaria
legionária, Tiberius Claudius Maximus, havia provavelmente nas legiões um quaestor
suplementar, adstrito à gestão dos fundos reservados para a manutenção das unidades
montadas. Foi, aliás, a contabilidade do quaestor equitum da legio II Gallica que
Plínio-o-Moço deve ter estado incumbido de controlar durante o exercício do seu
tribunato militar semestral (Plínio-o-Moço, Cartas, VII, 31).
Nos acampamentos de legionários da época republicana, ao lado do questor estava um
jovem pertencente à ordem equestre em começo de carreira, que dirigia os serviços
«técnicos (oficinas, engenharia militar, equipagens e até a enfermaria) e era qualificado
de praefectus fabrum1026. Esta prefeitura dos operários, que não se deve confundir com
a direcção de um collegium profissional de ferreiros ou de artífices metalúrgicos num
contexto municipal, subsistiu durante o Império, ainda que levante muitos pontos de
interrogação aos estudiosos. Aparentemente, os prefeitos dos artífices desempenharam
cada vez mais o papel de ajudantes-de-campo dos comandantes das legiões, bem como
dos magistrados ou promagistrados que os empregavam em missões de confiança. B.
Dobson1027 e S. Demougin examinaram os prefeitos dos artífices que Cláudio nomeou
aquando dos seus consulados e da sua expedição de conquista da Britânia em 43 d. C. O
que se conclui é que os laços entre as oficinas (fabricae) dos acampamentos ou dos
fortes e o praefectus fabrum (título que se tornou acrescidamente honorífico, até
desaparecer no início do século III) deixaram de ser tão estreitos com o decorrer do
tempo.
O exemplo do referido P. Dura 60 B ilustra a importância da correspondência epistolar
na logística militar romana. Além disso, o serviço de correios (cursus publicus1028)
concebido por Augusto destinou-se, acima de tudo, à transmissão de despachos
militares. Esta tarefa foi primeiramente garantida por iuvenes a cavalo, agrupados em
collegia nas cidades de Itália e das províncias, que, de etapa em etapa, se iam
revezando. Depois, Augusto optou por recorrer a um único correio para cada missão
(Suetónio, Vida de Augusto, 49). O último viajava então numa carroça puxada por
mulas, substituindo os animais nas mutationes previstas para o efeito (estando elas
separadas umas das outras em intervalos de cerca de 15 km) e pernoitando em
pousadas, as denominadas mansiones (situadas entre cada 30 a 36 km). Estas
mutationes, mansiones e stabuli eram mantidas pelas cidades da península itálica e das
províncias. Quanto aos veículos, estavam sob a alçada de um prefeito (praefectus
vehiculorum), geralmente da ordem equestre, cujo primeiro titular conhecido remonta
ao reinado de Nero.
O conjunto dos serviços postais encontrava-se nas mãos dos prefeitos do pretório (mais
tarde sob a alçada do magister officiorum) e do próprio imperador. Importa frisar que
o prefeito dos veículos não dirigia a posta imperial: em princípio, ele talvez se achasse
adstrito à organização do abastecimento militar por via terrestre e à requisição das
carroças necessárias1029. Para se ter acesso a estas, assim como às mutationes e às
mansiones, era preciso dispor de um diploma imperial: neste, a indicação do dia e da
hora da expedição permitia controlar a velocidade de entrega do correio (tarefa levada a
1026
E. Sander, «Der praefectus fabrum und die Legionsfabriken», BJ 162 (1962), pp. 139-161.
1027
«The Praefectus Fabrum in the Early Principate», in Britain and Rome, 1966, pp. 61-84.
1028
Para esta matéria, remetemos para a obra (antiga mas profícua) de H. G. Pflaum, Essai sur le cursus publicus, Paris,
1940, e para um estudo bem mais recente de P. Stoffel, Über die Staattspost, die Ochsengespanne und die requieserten
Ochsengespanne, P. Lang, série III, vol. 5950, Berna-Frankfurt, 1994.
1029
S. Crogiez-Pétrequin, «Poste (Cursus publicus): Empire romain», in J. Leclant (dir.), Dictionnaire de l’Antiquité, p.
1780. Em termos concretos, o papel do praefectus vehiculorum seria bastante limitado, consistindo essencialmente em
supervisionar os transportes e velar pelo bom funcionamento do «parque» dos veículos, não tendo autoridade sobre os
mensageiros, nem a possibilidade de obter as permissões postais ou de organizar as requisições.
354
cabo por um tabellarius ou um veredarius1030) à chegada. Através da correspondência
trocada entre Plínio-o-Moço e Trajano (Cartas, X, 45-46), depreende-se que todos os
governadores provinciais teriam anualmente ao seu dispor uma certa quantidade de
diplomas em branco, que se poderiam utilizar em função das circunstâncias.
Desde 1976, ano em que se publicou o texto de um édito de Sextus Sotidius Strabo
Libuscidianus, legado da Galácia (documento que remonta aos anos 14-15 da nossa era,
achado inserido numa inscrição em Sagalassos, cf. SEG, XXVI, 1976-1977, nº 1392),
passámos a conhecer com maior precisão a prática da vehiculatio: tratava-se,
essencialmente, de senadores e cavaleiros que exerciam funções ao serviço do
imperador, assim como de militares a partir do posto de centurião. Os correios
empregues consistiam, usualmente, em soldados escolhidos entre os immunes,
portadores do título de speculatores e, mais tarde, de frumentarii.
No que concerne aos despachos militares, o cursus publicus previa mesmo um
encaminhamento mais rápido das más notícias («cartas escritas à pluma») do que das
boas, traduzindo-se o ritmo de velocidade média em 70 a 80 km por dia, isto se nos
ativermos a Juvenal (IV, 148-149) e a Estácio (Silvae, V, 1, 85-93). Era, pois, normal
que o exército contribuísse para o funcionamento deste serviço, guardando as estradas
utilizadas pelos veículos do cursus publicus e, mais em especial, dos principais
cruzamentos da rede viária. Através de duas cartas do procurador imperial de Coele-
Síria, Aurelius Rufinus, dirigidas ao tribuno da XXª coorte auxiliar Palmyrenorum,
chamado Iustillus, sabemos que os soldados de Dura Europos estavam possivelmente
destacados numa estação do cursus publicus, identificada pela presença de muleteiros,
em Appadana (P. Dura 64, ChLA VI, 319).
Para levarem a bom termo as missões, os correios da vehiculatio teriam provavelmente
listas onde se enumeravam as postas (estações de muda de cavalos e outros solípedes) e
as etapas; terá sido a partir de tais listas, compiladas e reutilizadas sobretudo desde o
Baixo-Império, que nasceram os itinerários puramente textuais, de que o mais célebre é
o Itinerário de Antonino, além de outros figurativos, como o «escudo» de Dura
Europos (que cabe mais assimilar a um périplo), e mais tarde, a chamada «Tábua de
Peutinger». Estas fontes tardias atestam os laços que existiam entre o exército e a posta
imperial, na medida em que nelas se indica ainda a localização de certas guarnições.
Em Roma, o pórtico de Agripa, no Campo de Marte, onde estava exposta uma
representação alegórica do mundo conhecido, terá sido possivelmente o sítio escolhido
para sede da vehiculatio, o catabulum.
O que se tinha de manter na mais absoluto sigilo eram as informações transmitidas
pelos correios, não as rotas que utilizavam. Prova disso mesmo é o facto de o imperador
depressa se preocupar em monopolizar a recepção dos despachos militares, em
detrimento do Senado, como se observa pelo comportamento de Agripa após a sua
vitória sobre os Cântabros, em 19 d. C. (Díon Cássio, Hist. rom. 54.11).
Independentemente das suas dimensões, a administração de uma guarnição requeria a
presença e a actividade de «gabinetes», chamados tabularia. Com base nas inscrições e
nos vestígios arqueológicos do acampamento da legio III Augusta, em Lambaesis, uma
legião contaria com, pelo menos, três estruturas administrativas, situadas junto do
quartel-general, os principia. O tabularium principis, erigido por volta de 99 d. C. e
restaurado em 253 (CIL VIII, 1872; ILS, 2446), devia o seu nome ao centurião princeps
prior, que ocupava o escalão imediatamente inferior ao do primipilato, na hierarquia
dos centuriões (Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 20; Vegécio, Epitoma de
rei militaris, II, 8). Havia, também, um tabularium legionis (AE 1898, 108-109) e um
tabularium equitum (AE 1957, 85).
Se, por um lado, as denominações de tabularium equitum e de quaestor equitum,
parecem suficientemente explícitas, por outro, é mais difícil distinguir as atribuições
respectivas do tabularium legionis e do tabularium principis. No entanto, um exame
do pessoal associado aos dois tabularia fornece um elemento para a resposta: as duas
inscrições a eles referentes comportam, com efeito, uma lista dos graduados que
1030
Podendo tratar-se, consoante os períodos históricos, de soldados, escravos ou libertos.
355
ajudaram na construção dos edifícios; segundo estas listas, o tabularium legionis
corresponderia basicamente a uma espécie de «secretaria» da unidade, ligado a um
depósito de arquivos. À cabeça dos subscritores vemos um cornicularius, que, como
anteriormente vimos, era o principalis com categoria mais elevada; a seguir, aparece o
actarius ou actuarius, responsável pela organização do serviço diário e pela redacção
de todos os documentos que aí se encontravam reunidos. As suas competências e
atribuições, que gradualmente abrangeram o aprovisionamento, conferiam-lhe um
poder significativo (Aurélio Victor, Livro dos Césares, XXXIII, 13).
No fim da lista, surgem os librarii e os exacti, isto é, os arquivistas e os que realizavam
a contabilidade e assentavam por escrito uma série de elementos, consistiam nos
subordinados dos actarii. No século III, é provável que nas guarnições legionárias o
primus pilus tenha igualmente desempenhado o seu papel no abastecimento militar, ao
converter-se no encarregado do encaminhamento dos géneros alimentícios (Codex
Iustinianus, VII, 73, 1 e XII, 63, 1). De facto, quando o primipilato passou a ser um grau
da administração provincial no fim do mesmo século, o pastus primipili designava a
missão de transporte de víveres que se destinavam ao exército, tarefa superintendida
por estes funcionários civis. Tal expressão conservou, talvez, a lembrança das antigas
tarefas do primeiro centurião da primeira coorte.
Por seu turno, na segunda lista, onde constam os subscritores que financiaram a
construção do tabularium principis, a qual data do reinado de Septímio Severo, o
conteúdo revela-se menos explícito: tratava-se de optiones dos centuriões da primeira
coorte. Quanto ao restauro do edifício, feito após a reconstituição da legião em 253 d.
C., ele implicou, para além dos optiones, o centurião princeps, dois librarii (que lhe
estavam associados) e adiutores (adjuntos de grau inferior). Tanto os optiones como os
adiutores não tinham funções bem definidas: podiam, efectivamente, levar a cabo
diversos tipos de tarefas. Pela referência, na dita lista, a todos os optiones dos
centuriões da primeira coorte, talvez seja de depreender que o tabularium principis
lidaria com assuntos mais importantes do que o tabularium legionis, dirigido por um
cornicularius. As actividades deste «gabinete» estariam, pois, ligadas às competências
particulares do primus pilus.
Estes serviços administrativos e os estados-maiores existiam em todos os corpos de
tropas, embora eles registassem certamente mais complexidade ao nível das legiões. A
descoberta dos arquivos da cohors XX Palmyrenorum veio a lançar luz sobre a
existência e o funcionamento de um officium (do tribuno) e de um tabularium de uma
unidade auxiliar aboletada em Dura Europos, documentos que remontam à primeira
metade do século III da nossa era. Estas duas estruturas administrativas situavam-se
em divisões do pátio do templo de Artemisa Azzanothkona, o qual servia de quartel-
general para esta coorte auxiliar. A partir de 212, construiu-se mais um tabularium,
que serviria para as vexillationes de legiões que também ocupavam a cidade, nos seus
respectivos principia. No recinto do templo de Artemisa, encontraram-se paredes
cobertas de manchas de tinta, prova de que nelas se limparam tanto os dedos como os
cálamos.
Por seu turno, os óstracos de Gholaia/Bu Njem (Líbia), redigidos entre 253 e 259, são
ilustrativos de um contingente militar ainda mais reduzido, visto que este
acampamento na Tripolitânia apenas albergava um numerus não identificado e uma
vexillatio de cavalaria auxiliar, destacada de uma coorte chamada VIII Fida. No
entanto, a descoberta de um verdadeiro scriptorium, nos principia de Bu Njem,
permitiu avaliar a importância da utilização da escrita no exército romano, mesmo
numa guarnição modesta, em que tal tarefa era confiada a um único librarius,
coadjuvado por alguns adjuntos. Num compartimento, descobriu-se um atril com
inclinação dupla, rodeada por bancos dispostos junto das paredes 1031. Aparentemente,
essa estante serviria simplesmente de suporte para colocar documentos, cujo teor era
lido em voz alta, enquanto os bancos permitiam aos indivíduos escreverem sentados,
1031
R. Rebuffat, «Le camp romain de Gholaia», Lybian Studies XX (1989), pp. 155-167; Y. Le Bohec, L’armée romaine,
p. 169.
356
pondo o óstraco na palma da mão esquerda, e, com a direita, escrevendo sobre a face
exterior do suporte, revestido de engobo (massa terrosa empregue na cerâmica)
utilizando um pequeno junco de com a ponta quebrada, e não um cálamo, que só era
manuseado ao consignar sobre folhas de papiro.
Geralmente, os documentos redigidos nos tabularia dos acampamentos não se
conservavam por muito tempo, sobretudo os que Vegécio (Ep. rei mil. II, 19) rotulou de
breves, consistindo em quadros de serviço, listas de turnos de guarda, de corveias, de
tarefas e autorizações:
«Todo o tipo de actividade militar, pública particular, bem como o pagamento do soldo, é assente por
escrito dia-a-dia, quase mais minuciosamente do que os relatórios quotidianos de víveres e do
policiamento na cidade. O serviço de guarda de um acampamento, tanto em tempo de guerra como em paz
[…] também se indica nas tabuinhas, apontando-se os nomes dos soldados, à medida que chegam os seus
turnos, a fim de que ninguém fique sobrecarregado injustamente, ou isento do seu dever por favor. Exara-
se igualmente a data e a duração das licenças que constam dos registos».
O facto de se escreverem diariamente estas listas, amiúde de forma descuidada, e
sempre no reverso de um documento anterior, manifesta bem o seu carácter efémero.
Encontraram-se algumas deles em certos papiros de Dura Europos. É também o caso
do papiro latino de Genebra nº 1 (ChLA, I, 7), atrás citado a propósito dos descontos
efectuados sobre os soldos. Este documento, inicialmente contabilístico, foi reutilizado
no anverso para redigir um estado nominativo das missões exteriores realizadas por
quatro soldados e, depois, no reverso, incluindo a apresentação de um quadro de
serviço, com base na lista de militares disponíveis para as corveias.
Mas até os documentos assimiláveis à categoria dos matriculae referidos por Vegécio
não eram verdadeiramente arquivados. Em Dura Europos, consistiam em róis onde
constavam, classificados por centúrias de infantaria e turmae de cavalaria, os nomes de
todos os homens da unidade, precedidos pelas respectivas datas de incorporação e
seguidas pela sua afectação: à cabeça, apareciam os dos centuriões ou dos decuriões,
bem como dos seus optiones, depois os dos duplicarii e dos sesquiplicarii e, por fim, os
dos simples soldados, por ordem decrescente de antiguidade. É certo que a indicação
da afectação ou da disponibilidade, mediante uma barra horizontal para os simples
soldados, ou um sinal angular no caso dos graduados, provavelmente devia prescrever
ao fim de uns dez dias. Consequentemente, os papiros que serviam de suporte para os
documentos eram reutilizados em espaços de tempo bastante curtos: assim, as duas
listas que melhor se conservaram de uma unidade do exército romano foram escritas
no reverso uma da outra, com três anos de intervalo (P. Dura, 100-101; ChLA, VIII,
355-356).
Ao basearem-se neste género de documentos para uso interno, os exacti redigiam
outros de carácter mais oficial, que tinham valor probatório para o cálculo e para o
pagamento dos soldos, haja em vista os chamados acta diurna, nos quais se registavam
diariamente os efectivos de uma unidade: calculava-se o efectivo líquido (numerus
purus), que correspondia a determinada quantidade de remunerações-base, antes de se
precisar o número de graduados e de cavaleiros que beneficiavam de suplementos. A
seguir, nos acta diurna, mencionava-se a palavra de ordem do dia, eventuais
movimentações do pessoal militar (nomeadamente a chegada de recrutas) e, por
último, surgia um resumo do relatório da manhã, que Flávio Josefo descreveu (B. J. III,
87-88):
«Ao nascer do dia, os homens reúnem-se para saudar os seus centuriões respectivos, estes os seus
tribunos e, com os últimos, todos os oficiais vão saudar o general-chefe. O que está ao seu lado dá-lhes,
conforme o regulamento, a senha e as outras instruções a serem transmitidas aos seus subordinados. Eles
fazem o mesmo no campo de batalha: realizam rapidamente as mudanças de direcção rumo ao local
pretendido, e nas suas ofensivas, bem como nas suas retiradas, deslocam-se passo a passo, mantendo-se
agrupados».
Todos os meses se mudavam os rolos de papiro, mas eles eram somente preservados
enquanto as contas do ano em curso não estivessem apuradas. O estado geral da
unidade que então se apresentava sintetizava os informes contidos nos acta diurna do
ano transacto. Assim, o reverso dos acta diurna reempregava-se num prazo variando
entre um a três anos (P. Dura, 82-91, ChLA, VII, 337-346). Não admira, portanto, que
os documentos redigidos nos «gabinetes» de uma unidade só muito raramente eram
357
arquivados. Com efeito, os arqueólogos encontraram-nos, não ao descobrirem os
tabularia e os officia, onde em teoria estariam conservados, mas nas reservas onde os
papiros usados (ainda aproveitáveis) foram armazenados ou, então, em montes de
detritos e entulho, para onde se deitava fora o material definitivamente inutilizável.
Por outro lado, em Bu Njem, onde o aprovisionamento de papiro era mais difícil do que
em Dura Europus, para escrever recorria-se, como vimos, a simples fragmentos de
ânforas, os óstracos, como suportes para documentos cuja validade era temporalmente
limitada. Pelas mesmas razões, em Vindolanda e em Vindonissa, empregaram-se
tabuinhas de madeira revestidas por uma camada de cera.
Pelo contrário, os denominados pridiana eram, em princípio, objecto de adequado
arquivamento: tratava-se de listas de efectivos que se elaboravam «nas vésperas das
calendas», possivelmente anuais (no caso do Egipto bienais, já que aí o ano terminava
no fim do mês de Agosto, de acordo com o calendário local). Estes documentos,
destinados à administração central romana, mais especificamente ao «gabinete»
chamado a rationibus, apresentavam o balanço das baixas (mortos e feridos), das
transferências e das promoções de soldados, assim como dados sobre os destacamentos
existentes tanto no interior como no exterior da província em questão. Deles também
se efectuavam cópias, que ficavam nas mãos dos governadores provinciais.
Lamentavelmente, não se conhece um só que apareça explicitamente designado como
pridianum (P. Berl. inv. 14097; ChLA, X, 411); refira-se, a propósito, que a identificação
de um documento semelhante ao modelo do pridianum não reuniu consenso entre os
estudiosos (P. Lond., 2851; ChLA, III, 219). Além disso, a falta de exemplares impede
que se possa avaliar por quanto tempo se conservariam os pridiani, face à eventual
reutilização dos papiros que lhes terão servido de suporte.
Apesar de tudo, graças à documentação de Dura Europos, foi possível deparar com a
constituição de arquivos numa unidade do exército romano, sob o Império. Ao
fundamentarmo-nos neste acervo, verificamos que apenas a correspondência era
realmente preservada intacta. De facto, os originais das cartas recebidas pela unidade
eram colados uns aos outros, formando, em cada semestre, um rolo qualificado de liber
epistularum acceptarum.
Havia, ademais, rolos específicos, «catalogados» em função da identidade dos
correspondentes ou do assunto das missivas. Esta classificação de acordo com critérios
cronológicos ou temáticos obrigava, então, a voltar a copiar aqueles que teriam de
figurar concomitantemente em vários libri: foi o que sucedeu, por exemplo, com as
epistulae equorum, que se acharam numa fonte fragmentária muito deteriorada (P.
Dura, 130; ChLA, IX, 384, datando entre 215-245 d. C.); o facto de o nome de Geta
haver sido riscado na carta do governador da Síria - recebida a 16 de Março de 208 -,
por causa da sua damnatio memoriae, prova que ela ainda foi consultada quatro anos
mais tarde (P. Dura, 56; ChLA, 311).
358
sanitárias, de uma dieta alimentar equilibrada e adequada assistência médica. Note-se
que cada importante estrutura militar, em regra uma fortaleza, dispunha de um
complexo para banhos, o que oferecia um espaço apropriado tanto para fazer exercícios
menos estruturados e relaxar como para manter certos hábitos higiénicos. Além disso,
as latrinas nos recintos militares, ao estarem providas de cisternas de água, eliminavam
os excrementos, havendo a precaução de os depositar num rio ou num lago afastados
do sítio onde se recolhia a água para consumo da legião. Observemos, a propósito, um
trecho de Vegécio:
«Agora chamarei à atenção para algo que importa ter em mente a todo o custo: como proteger a saúde do
exército […] O exército não deve servir-se de água insalubre ou barrenta, já que beber água em más
condições é como ingerir veneno, fazendo adoecer aqueles que a utilizam. Assim, quando um soldado fica
enfermo, todos os oficiais, desde o grau mais alto até ao mais baixo da legião, devem fazer todo o possível
para que ele recupere através de uma dieta e de cuidados médicos adequados. Pois que será mau que os
soldados enfrentem, afora as exigências da guerra, as doenças. Assinale-se que numa coisa os especialistas
estão de acordo: o exercício diário faz mais pela saúde dos soldados do que aquilo que possam fazer os
médicos» (Epitoma rei militaris, III, 2).
Embora estas precauções nem sempre tenham sido adoptadas no plano prático, não
resta a menor dúvida que os soldados se encontravam mais bem alimentados e viviam
num ambiente claramente mais limpo, arejado e equipado do que o grosso da
população civil.
Conforme se viu numa das precedentes alíneas, a alimentação dos militares era simples
mas o mais saudável possível, caracterizando-se pela sua variedade e elevado nível
nutritivo.
Os soldados gozavam de bons cuidados médicos, muito superiores aos que tinha a
maior parte da população (à excepção das camadas da elite dirigente da sociedade, que
dispunham de dinheiro para pagar os honorários de um prático). No exército, tomava-
se muito a sério a perda de soldados por causa de ferimentos ou doenças. A medicina
no mundo romano derivava, quase por completo, dos Gregos, mas no domínio da
medicina militar os Romanos desenvolveram e aperfeiçoaram as teorias e as práticas
helénicas. Em especial, eles aprenderam a saber como tratar de ferimentos, mas sem
negligenciar a cura de enfermidades, construindo hospitais nos recintos militares,
sobretudo nas fortalezas legionárias.
Estes complexos estavam dotados de pessoal especializado e sabemos que vários
médicos acompanhavam as suas unidades durante as campanhas. Pseudo-Higino
menciona a presença de uma tenda para um hospital (valetudinarium) na sua obra
dedicada à construção dos acampamentos (De munitionibus castrorum, IV, 35),
recomendando que a mesma devia localizar-se num sítio onde os soldados em
convalescência pudessem usufruir de tranquilidade e sossego.
O pessoal mais habitual era composto, logicamente, pelos medici, documentalmente
atestados em todos os tipos de unidades, incluindo as legiões, as coortes auxiliares e
alae, as coortes urbanas, a guarda pretoriana, os vigiles e os equites singulares. O título
medicus englobava uma série de funções e estatutos hierárquicos diferentes 1032: alguns
seriam possivelmente simples soldados, pertencentes à categoria dos immunes, que
estavam dispensados dos deveres de faxina e corveias, mas outros corresponderiam a
membros da oficialidade, talvez detentores de uma condição prestigiosa. Em algumas
inscrições aparecem nomeados medici ordinarii, como, por exemplo, Caius Papirius
Aelianus em Lambaesis, que viveu até à aos 85 anos o que, per se, representaria uma
boa recomendação para um médico (ILS 2432). Numa fonte posterior, descoberta no
forte romano de Niederbieber (Alemanha), um tal Processus dedicou uma inscrição à
família imperial, autoproclamando-se medicus hordinarius [sic] (ILS 9182).
É provável que diversos medicii ordinarii fossem centuriões, mas nenhum documento
o confirma, pelo que se trata de uma teoria contestada. Alguns estudiosos sugeriram
que ordinarius significaria simplesmente que os médicos serviriam nas fileiras. Numa
1032
I. A. Richmond, «The Roman Army Medical Service», The University of Durham Medical Gazette (June 1952); R. W.
Davies, The medici of the Roman armed forces», Epigraphische Studien 8 (1969), pp. 83-99; idem, «The Roman
military medical service», Saalburg Jahrbuch 27 (1970), pp. 84-104; idem, «Some more military medici»,
Epigraphische Studien 9 (1972), pp. 1-11; D. B. Campbell, «Evidence for medics amongst the milites», Ancient Warfare
IV.4 (2013), pp. 46-51.
359
monumental fonte epigráfica de Roma, onde figura uma lista dos oficiais e soldados da
Vª coorte dos vigiles, observam-se os nomes de quatro medici: Caius Runnius Hilaris,
Caius Iulius Hermes, Quintus Fabius Pollux e Sextus Lutatius Ecarpus; estes surgem
consignados logo a seguir à enumeração dos centuriões e dos oficiais subalternos, como
os cornicularii, mas antes dos soldados de cada centúria (com o nome do centurião à
cabeça). A posição dos nomes dos medici imediatamente depois dos oficiais parece
conferir alguma crebibilidade à teoria de que os médicos se encontrariam neste escalão
hierárquico. Nas frotas da marinha romana, alguns (ou quiçá todos) medici
pertenceriam à categoria dos duplicarii, como se atesta numa inscrição de Puteoli (RIB
2315; veja-se igualmente CIL X, 3441, de Misenum).
Vários dos médicos que surgem na documentação epigráfica têm nomes gregos ou
orientais latinizados: Quintus Marcius Artemidorus, dos equites singulares Augusti,
em Roma (ILS 2193ª), Marcus Mucius Hegetor, da cohors XXXII Voluntariorum (ILS
2601) ou ainda Marcus Rubrius Zosimus, da cohors IIII (IV) Aquitanorum. Outro,
possivelmente oriundo do Oriente grego, foi Marcus Ulpius Telesphorus, medicus da
ala Indiana, mas o seu nome foi reconstituído apenas com base nas poucas letras
legíveis na inscrição (ILS 2542). Estes homens terão principado a sua carreira como
médicos civis, depois alistando-se no exército. No entanto, não sabemos como e onde
recebiam formação. Ainda assim, conhece-se a existência de professores ou discentes
em contextos médicos. Ora, em face destes escassos indícios, talvez o exército treinasse
o seu próprio pessoal médico, escolhendo os candidatos que fossem incorporados
recentemente ou que evidenciassem aptidão para tal trabalho.
Havia outros elementos que faziam parte do pessoal médico, como os optiones
valetudinarii e os capsarii, também assinaláveis nas fontes epigráficas. De acordo com
a citada lista de Tarrutieno (Digesta, L, 67), os optiones valetudinarii pertenciam à
categoria dos immunes, e as suas funções, caso os seus títulos se devam interpretar
literalmente, consistiam em tarefas realizadas no hospital, mas não se afigura ao certo
quais eram. Na realidade, talvez fossem assistentes administrativos, e não indivíduos
que participassem activamente na prestação de cuidados médicos e em actos cirúrgicos.
Em Lambaesis encontraram-se duas inscrições que aludem a optiones da IIIª legião
Augusta, aparecendo o nome de um deles, Lucius Caecilius Urbanus (ILS 2437; 2438).
Por seu turno, a lápide de Caius Luccius Sabinus, de Beneventum (Itália) mostra que,
na sua diversificada carreira ele terá começado como optio valetudinarii e depois
prosseguiu, ocupando uma série de outros postos; assim, das duas uma, ou não era um
especialista médico ou então não pretendeu manter-se nesta função.
Quanto aos capsarii, também referidos nas inscrições juntamente com os medici e os
optiones valetudinarii, deviam ser os responsáveis pelo tratamento de ferimentos,
dado que o vocábulo capsarius deriva de capsa, uma caixa onde se guardavam
ligaduras. Contudo, alguns autores modernos sustentaram que tal caixa se destinaria a
guardar rolos de pergaminho, pelo que os capsarii representariam elementos
administrativos. No entanto, o soldado representado numa cena da famosa Coluna de
Trajano a pôr ligaduras na perna de um camarada ferido é usualmente interpretado
como se tratando de um capsarius. Numa inscrição de Carnuntum, no Danúbio (ILS
9095), alude-se aos capsarii pertencentes à XIV legião Gemina; noutra fonte, um tal
Aelius Munatius é qualificado como capsarius da cohors milliaria Hemesenorum (ILS,
9169). Ainda noutro documento epigráfico, procedente da fortaleza tardia romana
situada em Niderbieber, associa os capsarii do numerus Diviti ensium Gordianorum ao
atrás referido medicus hordinarius (sic) chamado Processus (ILS 9182).
Através das prospecções arqueológicas, exumaram-se vestígios materiais de hospitais
nas fortalezas legionárias localizadas ao pé do Reno, em Vetera (actual Xanten) e em
Novaesium (Neuss), e em Inchtuthil1033, na Escócia. Por outro lado, captam-se provas
epigráficas quanto à existência de um valetudinarium na base militar de Lambaesis, no
1033
J. Wilkes, El ejército romano, p. 20: planta e alçado do valetudinarium da fortaleza de Inchtuthil. Hospitais como
este tinham alguns cubículos, que podiam alojar cerca de oito doentes. Em muitas bases militares havia um quirófano,
isto é, uma sala destinada especial,ente para intervenções cirúrgicas, mas no caso de Inchtuthil, utilizava-se para este
propósito um grande vestíbulo situado perto da porta principal.
360
Norte de África. Na Sérvia, em Stojnik, uma inscrição datando de 179 d. C. refere-se
expressamente ao hospital da cohors Aurelia equitata civium Romanorum. Nos fortes
de Housesteads e de Wallsend, que fizeram parte do sistema defensivo da Muralha de
Adriano, os arqueólogos localizaram hospitais de unidades auxiliares: em Housesteads,
atesta-se um medicus ordinarius, Anicius Ingenuus, que faleceu só com 25 anos, cuja
lápide se revela invulgar devido à inclusão de uma lebre figurada em relevo no topo do
monumento (RIB, 1618); quanto ao hospital de Wallsend, terá sido acrescentado ao
forte por volta de 180 ignoramos se a estrutura de madeira que o precedeu se destinaria
também à mesma função.
Os hospitais consistiam normalmente em edifícios dotados de um pátio e que tinham
cubículos que davam para a área central a céu aberto, a fim de que houvesse luz e
arejamento; por vezes existia uma varanda correndo a toda a volta do pátio. Porém,
nem todas as estruturas deste tipo planimétrico eram necessariamente centros
hospitalares: com efeito, algumas podiam corresponder a fabricae que dispusessem
igualmente de um pátio central e de pequenos compartimentos estabelecidos em seu
redor.
Em campanha, as tarefas dos medici englobavam o tratamento dos soldados que
ficassem doentes, mas os cuidados dispensados aos ferimentos sofridos em combate
encontram-se muito mais documentados. Um dos melhores tratados conhecidos é o de
Aulo Cornélio Celso, De Medicina, que foi escrito no começo do século I da nossa era e
se baseou fortemente em manuais gregos. Nele, o autor discorre sobre doenças,
farmacologia, bem como a respeito de métodos terapêuticos e cirúrgicos. Note-se,
todavia, que algumas das práticas por ele recomendadas até poderiam contribuir para
aumentar a taxa da mortalidade, em vez de a reduzir, até porque os Romanos não
compreendiam plenamente o fenómeno do contágio e a eficácia do isolamento dos
pacientes.
No entanto, na abordagem que Celso fez sobre os ferimentos, verifica-se que talvez
possuísse experiência pessoal neste domínio ou, então, adquiriu conhecimentos junto
de alguém que tenha exercido a medicina nos teatros de operações bélicas. Na
realidade, ele foi mais um enciclopedista do que um oficial médico em actividade no
exército, embora pouco saibamos sobre a sua vida. Ao redigir a sua obra sob a égide do
imperador Tibério, ainda assim ele pode haver ter presenciado muitas batalhas e
recontros travados na Germânia e na Panónia durante o reinado de Augusto, o
fundador do Principado.
Celso descreve pormenorizadamente como remover vários tipos de projécteis do corpo,
aconselhando que, se a arma não tivesse penetrado profundamente e atravessado um
grande vaso sanguíneo, ela devia ser puxada através do orifício por onde entrara. Mas
se a distância que a arma que precisava de ser extraída se afigurasse superior à que
restava, então o melhor seria forçá-la a ir de uma ponta à outra do corpo, cortando-se a
carne no lado oposto com um escalpelo (bisturi). Isto não era prescrito para armas mais
volumosas, já que poderia criar dois ferimentos de grandes dimensões em vez de um só.
Para estes casos, Celso mostra como utilizar o cyathiscus diocleiano, assim designado
por causa do nome do seu inventor, Diócles: este instrumento possuía uma
extremidade curva provida de um buraco, o qual devia inserir-se junto da armas
alojada na carne, até o dito orifício pudesse apanhar a ponta da arma e, depois,
remover tanto a última como o utensílio (De Medicina, 7, 5.3-4). Celso desenvolve
também comentários sobre como estancar hemorragias de feridas e as maneiras para se
prevenir a inflamação; caso os procedimentos não surtissem o efeito desejado, tinha
que se proceder à amputação de membros, matéria à qual Celso reservou várias
parcelas do seu tratado (De Medicina, 7.26.21-24; 7.33.1-2). Celso estava igualmente a
par das lesões que as bolas de chumbo arremessadas pelos fundibulários podiam
provocar: se elas se achassem simplesmente alojadas na carne, urgia extraí-las por
meio de um fórceps; todavia, a situação era bem mais complicada se uma dessas bolas
estivesse cravada num osso ou numa articulação. Por vezes, era necessário efectuar um
corte à volta do sítio onde se encontrava o projéctil enfiado num osso, através de uma
361
incisão em forma de V; se a bala estava presa em articulações, o único meio para a
remover consistia em separar ligeiramente as últimas.
Em vários locais onde houve fortalezas legionárias, acharam-se instrumentos médico-
cirúrgicos romanos: em Neuss, encontraram-se agulhas, escalpelos, sondas e espátulas;
na base de Aquincum (na actual Hungria), recuperaram-se tesouras e fórceps, além de
talas para as pernas e um ganho para lancetar 1034.
No que respeita à farmacologia, caracterizava-se sobretudo pela utilização de ervas. De
facto, acharam-se plantas medicinais em instalações militares, em particular na
fortaleza de Neuss (antiga Novaesium), onde se distinguiram cinco variedades
diferentes. Houve quem tenha sugerido que os pátios dos hospitais talvez acolhessem
jardins onde se plantariam certos tipos de erva.
Não resta a menor dúvida que uma das melhores maneiras para garantir boas
condições de saúde radicava na higiene. Consequentemente, existiam, ligados a cada
forte ou fortaleza, termas, que os militares usavam regularmente, servindo também
para espaços de convívio e relaxamento. Nestes edifícios, os arqueólogos depararam
frequentemente com a presença de altares consagrados à deusa Fortuna. Quanto aos
soldados doentes e feridos, é possível que dispussem de instalações próprias de banhos,
como parece sugerir o valetudinarium do forte de Inchtuthil, que continha uma sala
para esse efeito.
Havia igualmente cozinhas nos recintos hospitalares, onde se preparariam, decerto,
refeições especiais. Celso alerta para a importância da dieta no tratamento dos
enfermos, e enumera os alimentos considerados mais facilmente digeríveis (De
Medicina, 2.24.1-3). Refira-se, a propósito, que no hospital de Novaesium/Neuss se
encontraram restos de ovos, ervilhas, lentilhas e de marisco, os quais constam da lista
feita pelo tratadista. Os Romanos tinham igualmente noção da importância do tempo
suficiente para a convalescença no processo da recuperação: num papiro do Egipto,
observa-se que alguns legionários da XII Deiotariana foram enviados para junto do
mar, a fim de usufruírem de um período de convalescência.
Para concluir, acresce que o étimo de medicus também servia para designar os
veterinários que cuidavam dos cavalos e das mulas do exército, os quais aparecem
ocasionalmente nas fontes com o título de medicus veterinarius1035: por exemplo, a
estela funerária de Quartianus, medicus veterinarius, que serviu na primeira coorte
pretoriana em Roma (ILS 9071). Eles surgem alternativamente qualificados como
mulomedicus, termo recorrente na Ars Mulomedicinae de Vegécio; numa lápide
descoberta em França, vê-se um mulomedicus autóctone pegando numa hipposandal,
que se empregava ao jeito de cataplasmas.
1034
Aparentemente, os instrumentos medicos seriam esterilizados em pequenos fogões que se encontraram neste género
de edifícios. Saliente-se, todavia, que ao tempo, ainda não se sabia o que eram as bactérias, embora se adoptassem
diversas medidas para combater as infecções.
1035
R. E. Walker, «Roman veterinary medicine», in J. M. C. Toynbee, Animals in Roman Life and Art, Londres, 1973,
pp. 303-343
362
Trajano. Assim, os soldados de certas guarnições provinciais encontravam-se
relativamente pouco expostos. Mas eles estavam também incumbidos de velar pelo
respeito à ordem romana. Na Urbs, como vimos, esta missão recaía nos corpos de
tropas previstos para o efeito. No resto do território imperial, cada governador de
província tinha ao seu dispor, pelo menos, uns 30 «beneficiários» do consular
(beneficiarius consulares): estes graduados, inferiores aos centuriões, encontravam-se
afectos ao seu serviço, ainda que se mantivessem inscritos nas listas de efectivos das
legiões.
A principal tarefa atribuída aos beneficiarii consistia na sua colocação, durante seis
meses ou mais, à cabeça de um posto, chamado statio, ocupado por alguns soldados (os
stationarii1036), situado ao longo de uma estrada ou perto de uma via navegável,
usualmente nas imediações de uma cidade. Eram tais stationes que concorriam para o
devido funcionamento da posta imperial (vehiculatio).
Nas regiões em que subsistiam populações que viviam fora de um quadro cívico,
algumas das quais podendo ser nómadas ou semi-nómadas, como acontecia em África,
elas viam-se controladas por oficiais da ordem equestre que exibiam o título de
praefectus gentis. Em Itália e em todas as províncias, os soldados também eram
chamados a intervir enquanto forças policiais, combatendo, entre outras coisas, o
banditismo que, em determinadas zonas, constituía um fenómeno endémico. Ainda que
menos frequentes do que as corveias, as missões de manutenção da ordem aparecem
bastantes vezes referidas nas fontes antigas, afigurando-se indispensáveis num Estado
que não dispunha de uma força especificamente policial (103749 bohec). Na literatura,
com efeito, colhem-se diversas menções a bandoleiros e outros malfeitores (Apuleio, As
Metamorfoses, livro IV; Flávio Josefo; Heliodoro, Filóstrato…) 1038 (50), assim como em
inscrições. Um dos textos mais conhecidos e comentados relata as desventuras de
Nonius Datus, um oficial subalterno do exército romano de África que foi atacado,
roubado e abandonado quase morto 1039(51). Existe outra fonte epigráfica que se tornou
famosa, nela se descrevendo detalhadamente aquilo a que os estudiosos chamaram o
caso do saltus Burunitanus 1040(52): colonos, camponeses livres e rendeiros
constataram que o procurador que recebia os seus pagamentos para o proprietário, na
ocorrência o imperador, abusava do seu poder e recusava-se a respeitar
escrupulosamente a legislação vigente. A certa altura, para os calar, ele enviou soldados
para prenderem esses cidadãos romanos, os quais se viram acorrentados e chicoteados.
Mas os últimos não desistiram, pelo que endereçaram uma missiva a Cómodo, que lhes
deu razão (afinal, este imperador não terá sido sempre tão perverso como afirmaram os
senadores), sendo então feita justiça.
Tanto em Itália como nas províncias, havia uma rede de stationes: vigiavam as grandes
cidades onde as desordens aconteciam com alguma regularidade, como na Urbs, onde
os soldados dispersaram uma manifestação 1041 (54), e as estradas, para combaterem o
desenvolvimento e propagação do banditismo (por exemplo, na Judeia 1042) (56). Um
antigo soldado do pretório tornou-se chefe de um bando de marginais; para as
autoridades o vencerem, foi preciso recorrer às equipagens de três birremes
comandadas por um questor e a tropas de infantaria sob as ordens de um tribuno (57).
Porém, ressalvemos que os termos «bandido» e «banditismo» também se empregavam
para aludir aos inimigos numa guerra civil ou mesmo externa (assim se designavam os
habitantes de Jerusalém).
1036
Sobre este assunto: Maria Fedrica Petraccia, Gli stationarii in età imperiale, Roma, 2001; para uma abordagem mais
breve, da mesma autora, veja-se «statio, stationarii: Late Empire», in Y. Le Bohec (ed.), The Encyclopedia of the
Roman Army, Londres, John Wiley & Sons, 2015.
1037
1038
1039
1040
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1042
363
Os stationarii moviam caça igualmente aos escravos em fuga1043 (59) e vigiavam os
desterrados, como Octávia, primeiramente enviada para a Campânia e depois para uma
ilha, ou Séneca. Eles garantiam também a segurança das zonas mineiras, como as
existentes no País de Gales, no Noroeste da Península Ibérica e na Sardenha, a mesma
função exercendo nas pedreiras de mármore de Chemtu, em África 1044(62). Além de
tudo isto, havia centuriões, ajudados por escravos imperiais, que velavam pelos bens
que o princeps havia herdado em diversas regiões1045 (63): foi, aliás, por terem
cumprido a sua missão com particular brutalidade que alguns destes oficiais
subalternos provocaram a revolta de Boudicca, na Britânia 1046(64).
Ao exercerem esta actividade de manutenção da ordem, era habitual os militares
cometerem várias espécies de abusos, facto que certos autores antigos se mostraram
quase sempre prontos a denunciar, convencidos que estavam que havia uma profunda
incompatibilidade entre o soldado e a cidade, quadro, por excelência, da vida civilizada.
Numa monografia subordinada ao tema das relações entre as elites locais e os exércitos,
B. Rossignol1047 mostra como Apuleio pôs em cena essas transgressões num episódio 1048
narrado na sua obra O Asno de Ouro: observa-se o caso de um militar, forçosamente
intemperante, que abusa do hospitium, ao instalar-se no local onde residia um
magistrado. Mais à frente, veremos que o soldado e o malfeitor podiam igualmente
confundir-se na figura do desertor.
A documentação papirológica do Egipto, em especial a descoberta no Oásis do Faium,
alude muitas vezes a inquéritos e detenções levados a cabo por beneficiarii e por
centuriões1049. Existem também testemunhos referentes às perseguições movidas contra
os cristãos, aspecto que H. Ménard explorou na sua obra Maintien de l’ordre à Rome
(IIe-IVe siècle ap. J.-C). No entanto, não se deve depreender que os militares estavam
investidos de competências judiciais: na realidade, o seu papel ter-se-á limitado à
recepção de queixas, às buscas dos culpados e à escolta destes até ao tribunal, após um
primeiro interrogatório. Nestas tarefas, os soldados utilizavam o fustis, ou seja, um
bastão (que aparece representado em algumas estelas funerárias e é evocado pelos
autores antigos), que distinguia as operações de manutenção da ordem das bélicas, em
que obviamente se recorria às armas.
É certo que nas fontes mencionadas topamos também com soldados actuando na
qualidade de auxiliares da justiça, designados quaestionarius ou a questionibus,
termos que, consoante as situações, se podem traduzir por «inquiridor» ou até
«verdugo». Mas no presente caso, eram graduados, adstritos ao officium de um
governador provincial ou dos prefeitos do pretório, que ajudavam na gestão
administrativa e judicial do Império.
Com efeito, atrás salientámos que o exército romano representou uma máquina
administrativa essencial no Império que ele próprio havia permitido conquistar. A este
respeito, P. Le Roux sublinhou que, depois da passagem do exército conquistador para
o exército permanente na Península Ibérica, se desenvolveram as funções
administrativas exteriores aos corpos das tropas, ainda que exercidas por militares. Ao
longo do período Júlio-Cláudio, tais actividades limitavam-se ainda a missões
temporárias que, gradualmente, se converteram em cargos bem definidos. Assim, os
immunes eram destacados para os officia dos governadores provinciais e dos prefeitos
do pretório, nos quais também trabalhavam escravos públicos e libertos. A composição
destas repartições administrativas, dirigidas pelos cornicularii, foi estudada por A. von
Domaszewski, em princípios do século XX (em Die Rangordnung des römischen
1043
1044
1045
1046
1047
«Élites locales et armées: quelques problèmes», in M. Cébeillac-Gervasoni e L. Lamoine (eds)., Actes du Colloque
Les élites et leurs facettes. Les élites locales dans le monde hellénistique et romain, Roma/Clermont-Ferrand, 2003, pp.
349-380.
1048
Que noutro capítulo desenvolvemos com algum pormenor.
1049
A este respeito, veja-se R. S. Bagnall, «Army and police in upper Egypt», JARCE 14 (1977), pp. 67-86.
364
Heeres) e, mais recentemente, em 1997, por H. Haensch (Capita provinciarum.
Statthltersitze und Provinzialverwaltung in der römischen Kaiserzeit).
365
O direito militar romano1050 foi objecto de formulação ao longo do século I a. C. e do I
da nossa era e, depois de receber especial atenção durante o reinado de Adriano, o seu
desenvolvimento prosseguiu nos séculos II e III. Exceptuando a descrição de Políbio da
disciplina militar romana e dos castigos aplicados sob a República, as fontes
respeitantes às normas militares datam do Baixo-Império. Elas englobam sentenças e
opiniões jurídicas compiladas a partir de documentação do século II em diante, só que
perspectivadas de acordo com os pontos de vista existentes no decurso dos séculos V e
VI, pelo que não é possível, para os estudiosos modernos, reconstituir o corpus legal
militar de qualquer período do Império. O Codex Theodosianus, do século V, consiste
numa compilação de normas civis e militares, bem como de decisões legais, enquanto o
Digesta de Justiniano comporta um leque mais alargado de pareceres de
jurisconsultos, nele havendo o cuidado de identificar os seus autores originais.
Descobriu-se outra colectânea, esta exclusivamente concernente às leis militares, na
obra de Rufo ou Rúfio (Ruffus, Rufius), que talvez corresponda a Sexto Rúfio Festo, que
foi governador provincial durante o reinado de Valentiniano II. No entanto, certos
autores, como C. E. Brand1051, supuseram que ele seria antes um oficial pertencente ao
estado-maior do imperador Maurício.
Salientemos que os soldados gozavam de uma posição privilegiada em termos legais:
estavam isentos da tortura e da condenação aos trabalhos forçados nas minas, e nos
tribunais civis o satirista Juvenal queixa-se que os militares se viam favorecidos, não
estando sujeitos a atrasos no desenrolar dos processos, nem às frustrações
experimentadas pela gente comum. De facto, o miles gozava de privilégios especiais
diante da lei. Na sua vida privada, ele podia redigir o seu testemunho sem ter em conta
a vontade paterna. Nas relações interpessoais, a essência desses benefícios radicava no
facto de ele sempre se ver favorecido pelas circunstâncias em processos judiciais. Só os
tribunais militares tinham jurisdição sobre os soldados e sobre qualquer acto levado a
cabo pelos últimos durante o seu serviço. Se um civil apresentasse uma queixa contra
um soldado, este era julgado no meio militar, por um tribunal formado por centuriões.
Além disso, um civil que pretendesse acusar um soldado de algum crime, tinha
forçosamente que o seguir; nenhum soldado podia ser julgado in absentia. Tão pouco
existia forma de convocá-lo para um lugar distante para prestar depoimento. Se ele
estivesse ausente, a cumprir as suas funções militares, não era possível torná-lo objecto
de uma demanda. Pelo contrário, se um soldado apresentasse queixa contra um civil, o
julgamento tinha lugar em âmbito não militar; um processo que envolvesse um soldado
tinha prioridade sobre uma série de outros, e em geral decorria numa data estabelecida
pelo mesmo.
Posto isto, não admira que vários homens vissem no exército uma maneira de evitar os
problemas legais que tivessem na sua vida civil: era mais fácil apresentar uma demanda
ou defender-se de uma queixa caso o indivíduo em questão desfrutasse de privilégios
militares Um jurista do século III d. C. faz referência a este género de artimanha:
«Nem todo aquele que é incorporado no exército, por causa de um julgamento pendente, deve ser
afastado do serviço, mas apenas os que o fazem tendo em mente o julgamento e com a finalidade de ganhar
vantagem em relação ao seu adversário, graças aos privilégios militares. Uma pessoa que se alista enquanto
está envolvida num litígio, deve ser cuidadosamente examinada: no entanto, se renunciar ao julgamento,
cabe aplicar-se-lhe a indulgência» (Árrio Menandro, Sobre a competência militar 1 = Digesta, 49.16.4.8).
Na realidade, não era raro alguns recorrerem a tal tipo de tramóias: fazer uso da
posição privilegiada dos soldados significava um meio muito tentador para alguém ter
êxito perante a lei.
Naturalmente que os soldados estavam submetidos à disciplina militar, em relação à
qual sentiam grande orgulho. Qualquer coisa que pusesse em causa a disciplina militar,
ou ameaçasse a segurança de uma unidade, de um acampamento, de um forte ou do
exército em geral, classificava-se usualmente como um crime. A lista das ofensas
incluía a traição, a maquinação de conjuras (juntamente com outros soldados) contra
1050
Para esta matéria, vejam-se: E. Sander, «Das Recht des römischen Soldaten», Rheinisches Museum 101 (1958), p.
152ss; J. M. Blanch Nougués, «Una visión histórica y jurídica sobre el ejército romano», Anuario Jurídico y Económico
Escurialense, XLIV (2011), pp. 29-48.
1051
Roman Military Law, Austin, 1968.
366
os comandantes, o incitamento à violência, a insubordinação, agressões a oficiais, a
fuga dos campos de batalha, o abandono das fortificações, a simulação de doença para
evitar combater, o fornecimento de informações ao inimigo, etc. Os julgamentos dos
soldados acusados destes e de outros crimes tinham lugar no acampamento ou no forte:
um oficial, geralmente com o posto de tribuno, recebia a incumbência de investigar o
caso, ao passo que outro graduado pronunciava o veredicto.
Durante a República, os Romanos criaram um conjunto de recompensas e castigos que
serviu para manter os soldados dentro da mais estrita disciplina e, ao mesmo tempo, os
levava a obter reconhecimento dos seus oficiais e camaradas. Políbio enfatizou a grande
importância que os Romanos, sob a República, atribuíram às honras militares e à
obediência. Inicialmente, as punições adoptadas no exército romano primaram pela
sua brutalidade. Os que fossem considerados culpados por certas ofensas viam-se
espancados com bastões até à morte, pena a que se dava a designação de fustuarium: o
soldado que mostrava negligência e adormecesse, quando estava de guarda no turno da
noite num acampamento, punha em perigo todo o exército, daí que merecesse a pena
capital; esta também se aplicava aos que roubassem bens de outros soldados, aos que
prestassem falsos testemunhos, estivessem envolvidos em relações homossexuais e,
igualmente, alguém que já tivesse sofrido três castigos por infracções menores.
Um sentimento de honra profundamente arreigado assegurava, em princípio, que a
maioria dos soldados permanecesse nos seus postos, preferindo a morte à desonra; se
os militares perdessem as suas armas ou os escudos, Políbio conta que muitos deles
lutavam selvaticamente para os reaver, ou então pereciam nesse esforço, em vez de
sofrerem a ignomínia que estava associada ao deitar fora as armas ou desertar do
campo de batalha. Se um conjunto de unidades decidisse fugir, cerca de um décimo dos
homens era escolhido à sorte (a decimatio), ao passo que os restantes recebiam rações
de cevada em lugar de trigo.
No exército imperial manteve-se em vigor muitas destas medidas mas, aparentemente,
os regulamentos impunham-se de forma mais rigorosa em tempo de paz do que em
paz, Rufo recomenda que os soldados que cometem ofensas quando embriagados não
deviam ser punidos com a pena capital, mas antes transferidos para outra unidade.
Tácito (Ann. 13.35) dá a entender que os castigados por uma primeira infracção e os
recrutas geralmente seriam tratados com alguma brandura pelos seus comandantes,
embora estes tivessem em conta a gravidade dos seus crimes.
As punições dependiam do posto ocupado pelo militar, do seu comportamento bem
como da sua «folha de serviço», elementos que eram bem conhecidos pelos oficiais. Por
exemplo, segundo Apiano (Guerras Civis, III, 7), quando Marco António quis
identificar os desordeiros entre as suas tropas, os oficiais entregaram-lhe uma lista
desses homens com base nos seus registos. Ocasionalmente puniam-se coortes ou
unidades inteiras: as legiões que sobreviveram à batalha de Canas foram enviadas para
a Sicília, onde ficaram a viver em tendas durante vários anos, até que Cipião-o-Africano
as levou consigo para o Norte de África, aqui se redimindo ao obrarem actos de valor.
367
guerra1052: os munifices e immunes só podiam receber anéis de ouro, colares
(torques1053), braceletes (armillae1054) e phalerae1055 (sing. phalera), consistindo as
últimas em placas circulares gravadas que se fixavam sobre a couraça, nas quais havia
representações de cenas mitológicas. Estas condecorações também se atribuíam aos
centuriões, embora estes, como os evocati e os oficiais superiores, podiam aspirar a
outras – desde uma lança honorífica (hasta pura1056), um estandarte (vexilla) ou uma
coroa (corona).
Tal como sucedera durante a República, a coroa cívica (corona civica)1057, feita com
folhas de carvalho, recompensava aquele que salvara a vida de um cidadão
romano.Quanto à corona muralis ou vallaris1058, atribuía-se ao primeiro que lograsse
atingir o recinto fortificado inimigo. No tocante à coroa naval (corona navalis ou
classica)1059, em que se mesclavam figurações de folhas de loureiro e de esporões de
navios, simbolizava uma proeza bélica ocorrida num contexto marítimo, lacustre ou
fluvial. Por fim, a coroa de ouro (na realidade de cobre dourado) só era concedida em
circunstâncias excepcionais.
Se, por um lado, os soldados1060 e os centuriões1061 apenas eram recompensados quando
se tinham notabilizado nos campos de batalha, por outro, os legados, tribunos e
prefeitos recebiam condecorações sempre que participassem numa campanha, em
função do seu estatuto1062. No entanto, o mérito particular de determinados oficiais
podia ser premiado através da concessão de honras suplementares, em consonância
com os seus graus. Muito presentes na epigrafia militar até ao reinado de Caracala, as
condecorações tenderam ulteriormente a desaparecer das inscrições, se bem que
continuassem a ser evocadas pelos autores antigos, pelo menos até Amiano Marcelino,
na segunda metade do século IV d. C.
Concediam-se, igualmente, condecorações colectivas, abrangendo unidades inteiras.
Assim se percebe que as coortes pretorianas recebessem coroas de ouro, uma legião
simples coroas, ao passo que uma coorte legionária só poderia aspirar a obter uma
phalera. Todas estas condecorações se ostentavam nas respectivas insígnias. Quanto às
unidades dos auxilia, obtinham torques,1063 que apareciam depois na titulatura das
unidades em questão. A partir do reinado de Trajano, as tropas auxiliares vieram a ser
recompensadas pela sua bravura ou eficiência, recebendo colectivamente a cidadania
romana. Elas seriam, doravante, portadoras do título oficial civium romanorum, que,
nas inscrições, surge por meio das iniciais C.R. (CIL III, 5775, 6748 e 11931-11932; CIL
XI, 5669). Não se confunda estas unidades com as cohortes voluntariorum e as
cohortes ingenuorum, constituídas por cidadãos romanos, sob comando de tribunos
equestres e criadas no fim do principado de Augusto, talvez na altura em que eclodiu a
sublevação da Panónia, em 6 d. C., e pouco antes da derrota de Varo no ano 9 (Veleio
Patérculo, História romana, II, 111 e 113; Suetónio, Vida de Augusto, 25).
1052
Sobre este assunto, o melhor estudo continua a ser o de V. A. Maxfield, The Dona Militaria of the Roman Army, tese
que a autora apresentou à Universidade de Durham (Inglaterra) para a obtenção do grau académico de PhD, em 1972.
Consultámos este texto e não o intitulado The Military Decorations of the Roman Army (Londres, 1981), que consiste,
essencialmente na publicação da tese de V. Maxfield com algumas adaptações.
1053
V. M. Maxfield, The Dona Militaria of the Roman Army (cap. 1- «Types of Military Decoration»), pp. 15-16.
1054
Ibidem, pp. 16-17
1055
Ibidem, pp. 17-19.
1056
Ibidem, pp. 14-15.
1057
Ibidem, pp. 7-10.
1058
Ibidem, pp. 3-6.
1059
Ibidem, pp. 1-2.
1060
Ibidem (cap. 7 - «The Dona of the Milites, Immunes and Principales»), pp. 94-106.
1061
Ibidem (cap.. 5 - «The Dona of the Centurion and Primipilaris»), pp. 71-87.
1062
Ibidem (cf. cap. 2 e 3-, pp. 27-38, pp. 39-50.
1063
Ibidem (cap. 8 - «Alae and Cohortes Torquatae and Armillatae»), pp. 107-122.
368
Punições reservadas aos desertores
Para as defecções, logicamente que estavam previstas sanções, tanto individuais como
colectivas1064. A luta contra a deserção sempre constituiu uma preocupação para o alto
comando romano. O termo desertor, como em português, designava o soldado que se
afastava do acampamento ou do exército em marcha sem permissão. Este afastamento
era mesmo medido de forma bastante precisa: tornava-se repreensível desde que o
legionário se encontrasse fora do alcance dos sinais dos sinais sonoros da música
militar (Isidoro de Sevilha, Origines, IX, 3, 39). Logicamente, se alguém desertasse e
decidisse bandear-se para o inimigo, a situação ainda tinha mais agravantes. Repare-se
que na terminologia militar latina se distingue o desertor do defector ou do transfuga –
vocábulos que se traduzem por trânsfuga, que designa simultaneamente um desertor e
um traidor (proditor).
A partir do exame das fontes antigas, constatamos que um soldado se sentia mais
tentado a desertar em dois momentos concretos da sua carreira: um deles situava-se
nos dias ou semanas subsequentes ao seu arrolamento, altura em que ainda era
encarado como um simples tiro. Conservaram-se numerosos testemunhos (tardios,
mas não só) sobre as rigorosas precauções que se tomavam para impedir que os
recrutas, quando viajavam rumo às suas unidades, fugissem. Desde a época
republicana, afora uma lista de justificações específicas, todas as ausências se
assimilavam a uma deserção (Políbio, Hist. 3.61; 6.33 e 9.6; Tito Lívio, Ab Urb. cond.
22.38), que significava um nefas, isto é, uma ofensa contra os deuses e a Cidade devido
à violação do juramento de obediência. Sob o Império, no término do dilectus, o
probatus era identificado ao mesmo tempo pelo signaculum (mais tarde por uma
tatuagem a partir do fim do século III) e pela breve ficha sinalética, que seguia
juntamente com a carta enviada pelo governador ao comandante da unidade em que o
futuro soldado iria ser integrado.
Estavam, de igual modo, previstas sanções especialmente severas contra os desertores
que se faziam arrolar noutra unidade, depois de abandonarem a primeira para onde
haviam sido adstritos (Digesta, XLIX, 16, 4 (9)), decerto com o objectivo de receberem
um novo viaticum.
Havia ainda outro «género» de indivíduos especialmente atreitos a desertar, os quais
representavam uma ameaça para os civis e para o próprio poder imperial: muitas vezes,
consistiam em militares experientes, já perto de se verem licenciados e que, por vários
motivos, preferiam a deserção ao estatuto de veteranos. O soldado de carreira, formado
durante toda a sua vida no ofício das armas e treinado para usar da violência e para
matar, perfilava-se basicamente como um «assassino profissional», mas, com relativa
facilidade, era passível de se tornar num marginal. De facto, os facínoras e salteadores
eram, amiúde, veterani que haviam tido problemas em adaptar-se a uma nova
existência fora das fileiras ou, então, desertores. O hábito da prática de violência e de se
abastecer junto das populações podia transformar o exército numa espécie de «escola
do crime», afastando assim os soldados da vida civil.
Num considerável número de disposições legais 1065, verifica-se que certos militares
optavam por não se aposentar, vendo mais perspectivas de lucrar ao enveredar pelo
banditismo, onde a perícia e experiência no uso das armas se afigurava especialmente
1064
Sobre este assunto, durante a República, veja-se C. Wolff, Déserteurs et transfuges dans l’armée romaine à l’époque
republicaine, Nápoles, 2009; para a época imperial, consultem-se: M. Vallejo Girvés, «Sobre la persecución y el castigo
de los desertores en el ejército de Roma», Polis. Revista de ideas y formas politicas de la Antigüedad clásica/Alcalá de
Henares, 5 (1993), p. 241ss; P. Cosme, «Le châtiment des déserteurs dans l’armée romaine», Revue historique de droit
français et étranger, 81/3 (2003), pp. 287-307.
1065
M. Vallejo Girvés, «La legislación sobre los desertores en el contexto político-militar de finales del siglo IV e
principios del V d. C.», Latomus, 55 (1996), p. 31ss. Para uma curiosa abordagem sobre a deserção e as suas causas
através do exame do Codex Theodosianus, consulte-se J. L. Cañizar Palacios, «Posibles causas de deserción en el ejército
romano vistas a través del “Codex Theodosianus”: problematica bajo Constantino y problematica a partir de la segunda
mitad del s. IV d. C.», Studia Historica. Historia Antigua/Salamanca, 16 (1998), pp. 217-223.
369
útil. Em alguns códigos legais observamos alusões aos que escolheram tornar-se
bandidos, «por pura preguiça» (Codex Iustinianus, XII, 46; Codex Theodosianus, VII,
20, 7). Assim, muitos soldados decidiam seguir a pior via, talvez fartos da dureza da
disciplina militar, por falta de jeito ou de vontade para serem agricultores, ou ainda por
não possuírem dinheiro suficiente para investirem em negócios dignos.
A isto cabe acrescentar as tropas derrotadas no fim das guerras civis e que nem sempre
logravam ficar totalmente reincorporadas nos exércitos vitoriosos. Em alturas dessas,
tinha lugar, habitualmente, uma proliferação de soldados errantes que buscavam
refúgio nas montanhas, em florestas ou em zonas pantanosas, onde o controlo e a
vigilância das autoridades dificilmente se exerciam. Depois de se verem tratados como
malfeitores pelos seus camaradas vencedores, abraçavam a vida do crime. Não faltam
exemplos de episódios de desertores-salteadores, transmitidas pela tradição histórica e
literária da Antiguidade.
Contam-se diversos episódios entre os auxilia. Sem remontar ao famoso Espártaco, de
origem trácia (que se evadiu com um grupo de companheiros de um ludus gladiatório
em Cápua e veio a constituir uma ameaça às próprias forças armadas romanas em
Itália, durante três anos), podemos citar o africano Tacfarinas, que reuniu contra Roma
Númidas, Mauri, Musulames, Cinitienses e Garamantes (161); Gannascus, um
Canninefate (povo germânico), que se tornou pirata (162); uma coorte de Usipeti
(igualmente Germanos), que foi enviada para a Britânia em 82, rebelou-se; os soldados
eliminaram os seus oficiais e lançaram-se ao mar, mas o barco naufragou, uns sendo
mortos e outros reduzidos à escravidão pelos Bretões (163).
Um dos casos mais conhecidos é o de Júlio Materno (Iulius Maternus), que principiou
a sua carreira como soldado profissional; de acordo com Herodiano (Hist. rom. I, 10),
ele terá servido no exército romano na Gália, na segunda metade do século II da nossa
era, antes de desertar no início da década de 180. A sua deserção teve lugar no
seguimento de múltiplas e graves atitudes de insubordinação e indisciplina. Materno
terá ainda convencido outros soldados a fazer o mesmo. Então, à cabeça de um bando
de salteadores, começou a atacar os campos e a pilhar as aldeias 1066. Mais tarde, o seu
grupo veio a transformar-se num pequeno exército, aderindo a este camponeses
arruinados e outros tantos. Os últimos «alistaram-se» sobretudo por Materno prometer
que todos teriam um quinhão igual nos despojos obtidos, no que ia contra os princípios
vigentes no exército regular, em que a recompensa dependia do grau do soldado na
hierarquia. Materno e os seus sequazes tomaram de assalto várias cidades, nestas
soltando os indivíduos que se encontravam nas prisões. As depredações e rapinas
parecem haver assolado grande parte da Gália e dos Campos Decumatos e, quiçá, a
Península Ibérica.
Herodiano não adianta se Materno era um legionário ou um auxiliar, um cidadão ou
um peregrinus. Alguns historiadores supuseram que ele talvez fosse oriundo de uma
das regiões em que cometeu os seus crimes. No entanto, estudos mais recentes tendem
a considerar este personagem mais como um estereótipo literário do que propriamente
um indivíduo que realmente existiu. Note-se que Herodiano inseriu esta narrativa na
sua História para levantar a questão da legitimidade e da fragilidade do poder de
Marco Aurélio. Não é certamente por mero acaso que os três governadores intimados
por Cómodo para resolver os problemas provocados por Materno correspondam aos
três futuros protagonistas das guerras civis de 193 a 197 - Septímio Severo, Pescénio
Níger e Clódio Albino. Quando o mesmo autor evoca uma tentativa de Maternus de se
deslocar até Roma com o expresso propósito de assassinar Cómodo, facilmente se
percebe que a figura do desertor foi aqui posta em cena para evidenciar a precariedade
da posição do imperador. Mas, perante estes factos, será de duvidar da historicidade
dos problemas causados por desertores?
No decurso das guerras danubianas, Marco Aurélio recorreu a uma conscrição de
carácter muito coercivo, em razão das dificuldades militares que se faziam sentir nesse
período. Assim, escravos, gladiadores, salteadores oriundos da Dalmácia e da Dardânia,
1066
J. B. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 82.
370
bem como Germanos, foram recrutados pelo exército romano. Neste sentido, os
desertores que se reuniram em torno de Materno poderiam corresponder a uma
referência aos indivíduos mobilizados em tal ocasião.
Sob esta óptica, os roubos e os ataques aos quais tais homens se entregaram
representariam uma espécie de exutório expressando o ressentimento de haverem sido
arrolados à força. Com efeito, neste momento histórico, ingressaram no exército
mancebos seleccionados à pressa, contra a sua própria vontade e suportando com
muita dificuldade a férrea disciplina militar (cf. infra). Algum tempo volvido, Díon
Cássio admoestou Septímio Severo por gerar um recrudescimento da criminalidade na
península itálica, ao vedar aos italianos o acesso às coortes pretorianas (Hist. rom.
76.10).Os delitos cometidos por Bulla Felix, cabecilha de um bando, que aparentemente
significa também um estereótipo literário, terão servido para ilustrar tal fenómeno.
Estas quadrilhas de desertores formavam como que um «espelho invertido» do exército
regular romano. Por outro lado, ficamos impressionados com a leitura de fragmentos
de obras de jurisconsultos de finais do século II e princípios do III, citados no Digesta
(XLIX, 16, 5 (8); 6 (9) e 14), e pela quantidade de textos em que se estabelece uma
conexão bastante estreita entre deserção e banditismo. Não admira, pois, que as
deserções grupais, potencialmente mais perigosas do que as individuais, fossem
brutalmente reprimidas.
Por idênticos motivos, criaram-se normas particularmente severos contra aqueles que
oferecessem asilo aos desertores: os que o fizessem, chamados occultatores, corriam o
risco de ver confiscada metade dos seus bens, isto se tivessem uma elevada condição
social, ao passo que para os outros, não pertencentes às classes privilegiadas, a sorte
afigurava-se bem mais sombria – condenados a trabalhos forçados ou, até, a morrerem
na fogueira. Durante esta época, parece haver uma correlação entre uma relativa
rarefacção dos motins e o desenvolvimento da deserção no Império romano. Seja como
for, em função das circunstâncias, o descontentamento dos soldados podia assumir
uma ou outra forma.
No entanto, castigar os desertores de forma demasiado drástica ou implacável
implicava a eventualidade de exaurir as fontes de recrutamento, bem como a de
eliminar militares experientes cuja formação e treino haviam representado um
investimento oneroso para o Estado, desde a instauração de um exército permanente e
profissional por Augusto. Na viragem do século II para o III da nossa era, a severidade
habitual dos antigos regulamentos viu-se, muitas vezes, suavizada por várias
diferenciações e medidas, como se assinala no De re militari de Árrio Menandro
(Digesta, XLIX, 16, 3). Nos textos jurídicos, aparecem termos como emansor ou
infrequens (Digesta, XLIX, 16, 3), que se podem traduzir respectivamente como
«retardatário» e «pouco assíduo», sendo a falta de um emansor encarada como menos
grave do que a de um desertor.
Era a duração da ausência que marcava a principal diferença entre as duas situações. A
resolução dos diferentes casos era levada a cabo com muito cuidado. Em geral,
desculpava-se um recruta, devido aos seus poucos conhecimentos dos regulamentos
militares. No tempo que demorava a realizar-se a viagem – por terra ou por mar – do
recruta, rumo à unidade para que fora destinado, previa-se que houvesse alguns dias de
atraso em relação à data estipulada para a chegada. No caso de um soldado que partisse
a tempo mas que se visse retido por doença, capturado por inimigos ou salteadores, ele
não sofria qualquer tipo de punição. Eram também levados em linha de conta o número
de anos de serviço, o posto ocupado, assim como o local e a afectação da qual o militar
em causa se tinha afastado, além do comportamento evidenciado ao longo do tempo
que já servira, o facto de desertar sozinho ou acompanhado, ou se ele regressava
espontaneamente à sua base ou, pelo contrário, para esta fora reconduzido à força. Na
realidade, a legislação romana contra os desertores parece ter sido aplicada sobretudo
em situações em que se registasse uma tendência para a proliferação das deserções.
A própria definição jurídica do desertor e do emansor suscitava a questão da relação
entre estes delitos e a permissão legítima (Digesta, XLIX, 16, 14). Neste sentido, é de
nos interrogarmos quanto aos meios que a administração disporia para controlar
371
eficazmente as deslocações dos soldados que tivessem sido autorizados a fazê-lo, a fim
de que não se vissem confundidos com eventuais desertores. Os que usufruíssem de
uma licença estariam decerto providos de salvos-condutos; no entanto, tudo leva a
supor que os últimos deviam dar lugar a fraudes e, mesmo, ao tráfico de documentos
falsos.
Durante a época imperial (ou talvez antes), no entender de G. Wesch-Klein 1067, os
pedidos de autorização de licença (commeatus) seriam primeiramente redigidos por
escrito e enviados às autoridades competentes. As justificações alegadas pelos
requerentes relacionavam-se com problemas de saúde, assuntos familiares ou com a
necessidade que teriam alguns soldados de gerir os seus bens. Se fosse concedida a
permissão, o interessado recebia um salvo-conduto. Para M. Speidel 1068, um óstraco do
Egipto (O. Florida) corresponde possivelmente a um exemplar deste género de
documento. Tal autorização de ausência era então consignada nos registos militares,
onde igualmente se forneciam pormenores sobre a duração da licença e o tempo que
demoraria a viagem de ida e de regresso (Vegécio, Epitoma, II, 19).
A expressão liber commeatus (referida por Amiano Marcelino, História, XXVII, 8, 10),
devia reportar-se à dispensa da obrigação de se ficar em regime de permanência no
acampamento ou no forte. Os soldados também se ausentavam durante períodos mais
ou menos prolongados sem possuírem autorização, o que só acontecia através da
cumplicidade de oficiais, que faziam vista grossa desde recebessem algo em troca, isto
é, subornos. Nestes casos, eles não parecem haver sido tratados como desertores. Seja
como for, desde o reinado de Constantino, pelo menos, a fim de evitar abusos e actos
ilícitos, reservou-se o direito da concessão de autorizações a um número mais reduzido
de oficiais superiores. Quaisquer infracções a esta regra eram puníveis com a
deportação e de confiscação de bens em tempo de guerra, e com a pena de morte em
tempo de guerra (Codex Theodosianus, VIII, 12, 1).
Já no exército arcaico romano, o imperium incluía o direito de julgar e punir os
soldados. Este regime manteve-se em vigor sob o Império. Na época republicana, o
juramento (sacramentum) prestado na altura da incorporação, colocava o cidadão-
soldado à inteira disposição do comandante-chefe, detentor do imperium, que estava
efectivamente investido de um poder de coerção depois de tomados os auspícios de
partida no Capitólio. O poder que advinha do imperium era simbolizado, como atrás
referimos, pelos machados e feixes de varas (fasces) transportados pelos lictores.
Nos tempos mais recuados, o condenado à morte era açoitado antes de decapitado. A
partir do voto da lex Valeria, em 300 a. C., só se acrescentavam os machados aos feixes
de varas quando o detentor do imperium ultrapassava o primeiro marco miliar depois
do pomerium da Urbs, uma maneira de se marcar bem a a distinção entre o imperium
domi – que se exercia no interior da Cidade – e o imperium militiae, que se levava a
cabo no exterior. Mas caso se tivessem tomado os auspícios de partida, o general via os
machados adicionados desde a sua saída do pomerium. Apenas o dictator usufruía, em
todo o lado, do privilégio de conservar sempre os machados e os feixes de varas, na
medida em que o seu poder de coerção não se encontrava submetido à provocatio ad
populum.
Aparentemente, as leges Porciae não concederam, pelo menos sem restrições, o direito
de apelo (provocatio ad populum) aos cidadãos que estavam sob as insígnias quando
eram condenados. Seja como for, após 300 a. C., há indícios de que o comandante-
chefe preferia muitas vezes remeter tais assuntos a Roma, assim evitando usar do
direito de coerção derivado do seu imperium militiae. Por outro lado, os tribunos da
plebe tentavam, se possível, não minar a autoridade do detentor do imperium. Mas a
justiça não era feita somente pelo comandante-chefe: este gozava da possibilidade de
delegar parcialmente a sua autoridade disciplinar nos seus oficiais subordinados. Os
delitos militares tanto podiam ser punidos através de uma decisão imediata do
1067
«Commeatus id est tempus, quo ire, redire quis possit: Zur Gewährung von Urlaub im römischen Heer», in G.
Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer, und Gesellschaft in der römischen Kaiserzeit: Gedenkschrift für Eric
Birley, Estugarda, 2000, pp. 493-507.
1068
«Furlough in the Roman army», YCS 28 (1985), pp. 283-293.
372
comandante-chefe, sem existir de permeio a formalidade da instauração de um
processo (Dionísio de Halicarnasso, Ant. rom. XI, 43 e XI, 27) como através de um
julgamento por um tribunal constituído para o efeito (Ibidem, XI, 27).
A delegação da autoridade nos tribunos militares é algo que se atesta em todas as
épocas (Lívio, Ab Urb. cond. 28.24, 10; Políbio, Hist. 6.37, 1 e 7; Digesta, XLIX, 16, 12
(2); Vegécio, Epit. rei mil. II, 9). Com base na terminologia empregue por Políbio, os
tribunos militares reunidos em conselho (em grego boulé) formavam um tribunal
marcial, talvez presidido pelo comandante-chefe.
Na época imperial, o ius gladii (direito de aplicar a pena de morte) dos governadores
provinciais permitia que estes pudessem julgar sem apelo soldados que estivessem sob
a sua autoridade (Díon Cássio, Hist. rom. 52.22, 2-5; 53.13, 6-7; Tácito, An. 3.21;
Digesta, I, 18, 6 (8). O mesmo direito também podia ser conferido aos legados de legião
ou a outro comandante do exército ou da frota que não fosse governador de província,
tendo a possibilidade de aplicar sanções individuais ou colectivas (Tácito, Ann. 1.29 e
44).
Assim, os soldados podiam ser flagelados (castigatio fustium), multados (pecuniaria
multa), submetidos a corveias (munerum indictio) degradados, transferidos para outro
corpo de tropas com menos prestígio, expulsos do exército, (cf. infra; Digesta, XLIX,
16, 3 [1]) ou, por fim, condenados à morte (Tácito, Ann. 13.35).
O encarceramento não representava uma pena per se, mas um meio de manter um
soldado sob estreita vigilância antes do seu julgamento e execução da sentença.
Consequentemente, nos campamentos e fortificações, havia quase sempre uma prisão,
confiada à guarda de um optio (ILS 9060; CIL VI, 531; IX, 1617; XIII, 1833), assistido
por clavicularii (carcereiros, literalmente «porta-chaves»). Importa não confundir este
optio carceris com o optio custodiarum, o responsável pela prisão sob a alçada do
governador na capital de província (CIL III, 15191; XIII, 6739).
Quanto aos transfugas, foram menos numerosos do que os «simples» desertores, já
que, para além de abandonarem as fileiras, se convertiam em traidores. Em 58, as
forças comandadas por Corbulão, que combateram na Síria, perderam soldados que se
passaram para os Partos1069 (167). Na guerra civil de 68-69, um substancial número de
tropas de Otão bandearam-se para o exército de Vitélio 1070(168); Civilis, por seu turno,
foi considerado um trânsfuga 1071(169). Mas não faltam mais exemplos: alguns milites
resolveram juntar-se aos Dácios 1072(170), outros aos Quadi, sob Marco Aurélio1073 (171),
outros ainda refugiaram-se na mesma tribo no tempo de Cómodo 1074(172). Sabemos
que Mitridates, rei do Bósforo, acolheu desertores romanos 1075(173). No conflito civil
que se seguiu à morte de Nero, foram trânsfugas que ensinaram aos Bretões técnicas de
assédio, o que causou diversas dificuldades aos seus compatriotas 1076(174). Mas o pior
caso, praticamente olvidado pelos historiadores, teve lugar em 197 ( 1077175): no decurso
de um episódio da guerra civil, Pescénio Níger foi vencido; os sobreviventes do seu
exército dispersaram-se, vários resolvendo entrar ao serviço dos Partos; mostraram aos
últimos como confeccionar armas de qualidade e como pelejar à maneira romana. Mais
tarde, no século III, os legionários vieram a sofrer grandemente por causa dos
conhecimentos que os Partos adquiriram com os trânsfugas1078.
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Y. Le Bohec, La guerre romaine, p. 146.
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Punições colectivas
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Augusto, embora desmobilizando «com ignomínia» esta legião, concedeu a gratificação de reforma aos soldados que
a reclamaram com demasiada insistência, mas sem incluir os commoda e o praemium do licenciamento.
1081
374
Outras modalidades punitivas
A indisciplina e os motins
Nas fontes antigas, captam-se diversos elementos desconcertantes 1083 (131). O exército
romano do Oriente ganhou má reputação, o que actualmente alguns estudiosos têm
tentado negar, mas provavelmente em vão. Os soldados viviam nas cidades, bebiam em
excesso, não praticavam exercício, careciam de equipamentos e faltava-lhes experiência
de combate. Diante dos Partos, eles começaram a debandar, sendo necessária a energia
de um general como Lúcio Vero para os restabelecer na ordem 1084 (132). Turbulenta, a
legio XX (Valeria), da Britânia, era difícil de comandar; Agrícola, todavia, soube
mantê-la obediente e operacional1085 (133). A indolência e a indisciplina caminhavam de
mãos dadas, principalmente sob a égide de «maus» imperadores como Vitélio,
Domiciano e Elagábalo, e mesmo no tempo dos bons soberanos, como Nerva 1086 (134).
Frequentemente, os soldados abusaram dos privilégios que tinham, sobretudo a partir
da crise do século III, período em que o pagamento dos salários se tornaram cada vez
menos regulares ou, até, inexistentes. Foi assim que o Estado lhes reconheceu o direito
de fazer requisições (alojamento e comida). Em 238, os habitantes de Skaptopara
queixaram-se do comportamento das tropas a Gordiano III (135); por seu turno, os que
viviam em Aragueni, na Frígia, o mesmo fizeram junto de Filipe-o-Árabe, salientando
os desmandos e vexações que estavam a sofrer por parte da soldadesca. Em cada um
1082
S. E. Phang, Roman Military Service: Ideologies of Discipline in the Late Republic and Early Principate, Nova
Iorque, 2008.
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375
dos casos o imperador deu-lhes razão; mas- cabe perguntar-, por duas comunidades
civis satisfeitas, quantas o não terão sido?
No entanto, os piores males (recorrentes) eram a deserção, que já explorámos, e o
motim. Este podia eclodir em duas circunstâncias: no primeiro caso, ele correspondia à
tradição romana de um exército composto por cidadãos, que elegiam os seus oficiais e
não se sentiam verdadeiramente obrigados a manifestar uma obediência cega.
Situações diversas, por exemplo, materiais, serviam para deflagrar uma revolta. Esta,
além disso, suscitava uma questão jurídica, visto que implicava o desrespeito pelo
juramento, afora o problema militar propriamente dito. No segundo caso, a sedição era
provocada por um oficial superior ambicioso que almejasse o desencadear de uma
guerra civil, como sucedeu no conflito que opôs César aos «pompeienses» 1087 (137). Os
motins encabeçados por oficiais degeneravam normalmente em guerras civis 1088(138),
mas revelam-se difíceis de analisar para nós. O general sublevado via-se perante duas
eventualidades: ou o seu golpe de Estado fracassava, tornando-se ele um insubmisso
ad aeternum (o mesmo acontecendo aos seus soldados), ou tinha êxito, podendo
chegar ao trono e convertendo-se num imperador legítimo, e os seus homens passando
a ser fiéis sustentáculos da ordem romana.
Os motins de soldados que se revestem de maior interesse para o historiador – em
latim seditiones ou discordiae1089 (139) – ocorreram na Germânia e na Panónia, em 14
d. C., pouco após o falecimento de Augusto. Os militares estacionados na Germânia
apresentaram um «catálogo» de reivindicações que não fica aquém dos elaborados
pelos sindicatos no século XX 1090(140): exigiram a redução da idade para o
licenciamento, o aumento dos salários e uma substancial melhoria das condições de
trabalho, em concreto uma menor severidade por parte dos centuriões 1091(141); para
forçarem a satisfação das suas exigências, eles fizeram greve, interrompendo o
cumprimento do serviço, principalmente do exércício.
Quanto à seditio na Panónia (em Emona) foi despoletada por motivos idênticos, um
dos quais se relacionava com a corrupção e brutalidade dos centuriões e oficiais
superiores - um dos amotinados, chamado Percennius, queixou-se que, com o dinheiro
do seu soldo, tinha de «comprar roupas, armas e tendas [e] subornar o violento
centurião» para obter a dispensa de certas corveias. Os seus camaradas mataram o
centurião Lucilius, conhecido pela expressão Cedo alteram («Tragam-me outro), por
causa do seu hábito constante de inculcar a disciplina ao infligir fortíssimas bastonadas
no corpo dos legionários, a tal ponto que frequentemente a sua vitis se partia e ele
mandava que lhe arranjassem outra (Tácito, Ann. 1.20). Assim, a revolta das legiões
panonianas traduziu-se em reivindicações análogas às tropas da Germânia, com apenas
algumas adições 1092(143): queriam uma subida no montante do praemium, aquando da
desmobilização, que se pagaria em dinheiro e não em lotes de terra. Em suma, eles
arrogaram-se ao direito de receber a remuneração de 1 denário por dia, «pensão» de
reforma definitiva depois de 16 anos nas fileiras, e um serviço menos duro.
Na guerra civil de 68-69, colhemos referências a várias seditiones: certa vez, os
soldados acusaram um legado de incorrer em traição e partiram para o combate sem
terem ordem para fazer 1093(144); noutro episódio, pretorianos que haviam sido
expulsos pediram para se verem reintegrados 1094(145). É notável que Vespasiano,
embora ganhando o poder suprema na guerra civil, não tenha deparado com oposição
(discordia) 1095(146). Em finais do século II, Septímio Severo, ainda que extremamente
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rigoroso, não chegou a enfrentar uma revolta, basicamente porque a guerra fora
encarniçada e longa 1096(147). Em contrapartida, já no século III, Severo Alexandre teve
de lidar com muitos motins, o último dos quais causando-lhe a morte 1097(148).
Mas, a par dos motins, havia igualmente contra-motins. As rebeliões de 14 d. C.
mostram os métodos que os oficiais empregavam nestas circunstâncias. Em geral, o
restabelecimento da ordem efectuava-se em cinco etapas: a) o imperador Tibério
escolheu figuras prestigiosas, membros da sua família, para voltar a impor a disciplina,
Germânico na Germânia 1098(149) e Druso na Panónia. Em 68, pelo contrário, os
sediciosos foram abandonados à sua sorte: nenhuma ronda nocturna, nenhum apelo, o
que gerou pânico entre as tropas 1099(150); b) Os enviados do imperador falaram com os
soldados 1100(151) (de facto, o verbo desempenhou um papel crucial na civilização
romana); c) eles fizeram algumas concessões 1101(152); d) procedeu-se ao castigo de
vários dos agitadores 1102(153). Em 68-69, atesta-se o mesmo género de punição
selectiva, aplicada: em todo um exército somente dois homens foram castigados. Em
14, uma série de insurrectos pereceu sob os golpes assestados por soldados fiéis
1103
(155); e) Germânico conduziu as suas tropas numa expedição contra os Germanos 1104
(156); e)bis –a situação mais particular e inesperada, quando os deuses socorreram
Druso, ao ocasionar um eclipse lunar: os soldados, que desconheciam as leis da
astronomia, ao contrário do seu comandante, viram no fenómeno uma expressão clara
do descontentamento divino, pelo que pouco depois retomaram o serviço militar
1105
(157).
***
Como se viu, para manter a disciplina existiam punições que podiam atingir uma vasta
escala, algumas caracterizando-se por uma inaudita severidade. Porém, o juiz devia
saber pesar as vantagens da dureza e da clemência 1106(176). A dureza variava em função
do nível hierárquico do culpado; no século II, o poder central decidiu que os
honestiores (senadores, membros da ordem equestre e a elite dos notáveis) deviam ser
castigados de modo menos extremo do que os humiliores (simples cidadãos e
peregrini) 1107(177). No caso dos primeiros, a utilização abusiva das insígnias militares
para assustar um particular era punida com o exílio, mas no dos últimos, a pena era a
morte 1108(178). Pelo contrário, a clemência permitia a reintegração de desertores que,
por vezes, se revelavam úteis.
Os oficiais raramente eram sentenciados com a pena capital: normalmente, as suas
carreiras viam-se suspensas e, nas situações mais graves, eram expulsos do exército
(179)1109. Por uma infracção desconhecida, um tribuno de coorte ficou proibido de viver
em Itália durante dois anos 1110(180). Um membro do ordo equestre, que cortou os
polegares dos seus dois filhos para evitar que cumprissem o serviço militar, foi vendido
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como escravo e confiscaram-se todos os seus bens 1111(181). Ignoramos que medidas terá
tomado Severo Alexandre, que ameaçou os oficiais corruptos 1112(182), ou Gordiano III,
que não quis que os cargos de comando no exército fossem vendidos pelos seus
eunucos 1113(183).
Em matéria disciplinar, os centuriões eram assimilados aos humiliores, ou quase; em
caso de crime ou delito, eles arriscavam-se a sofrer a pena de morte, mas esta poucas
vezes se aplicou 1114(184): no tempo de Augusto, temos conhecimento de um centurião
executado por haver abandonado o seu posto 1115(185); bastante mais tarde, há registo
de que Clódio Albino proferiu a sentença da crucificação, algo infame, habitualmente
reservada aos peregrinos e aos escravos 1116(186).
Existiam sanções menos graves e não definitivas, como o desterro 1117(187) ou um dia
inteiro de pé diante do praetorium, estando o soldado vestido com uma túnica,
segurando, durante todo esse tempo, uma vara, um torrão de terra ou um tijolo numa
das mãos 1118(188); também se empregava o látego para homens que fugissem durante
uma porfia 1119(189). Plínio-o-Moço conta-nos uma história de sexo 1120(190): a esposa de
um tribuno enganava-o com um centurião; este foi banido e a dama castigada de
acordo com uma lei augustana – perdeu metade do seu dote e 1/3 dos restantes bens,
sendo enviada para uma ilha e obrigada a vestir-se como uma cortesã.
Já referimos que para os milites gregarii, as punições eram frequentes e variegadas
(197)1121, algumas terríveis. A pena de morte assumia diferentes formas – crucificação, a
fogueira ou o afogamento 1122(198). Macrino teve uma ideia bizarramente original, a de
amarrar os condenados aos mortos 1123(199). Logicamente que os desertores e os
trânsfugas eram castigados com grande rigor, mas nem sempre condenados à pena
capital (havia que não desencorajar sistematicamente o regresso desses homens às
fileiras) 1124(201). Podiam decepar-lhes as mãos ou partir-lhes as pernas, o que, ao
tempo, com a falta de cuidados de higiene, equivalia a uma morte lenta. Também
corriam o risco de ser vendidos como escravos, o que aconteceu, por exemplo, com um
soldado que maltratou uma idosa 1125(202).
Na Judeia, um soldado capturado pelo inimigo esteve para ser executado mas, como
lograra evadir-se, Tito contentou-se em expulsá-lo da legião 1126(209). Vitélio foi mais
longe na sua generosidade, a tal ponto que o acusaram de fraco, por suprimir a desonra
dos degradados, a mácula dos acusados e as punições dos condenados 1127(204). No
século III, Maximino-o-Trácio, pelo contrário, agiu de maneira particularmente dura
no âmbito disciplinar 1128(205).
Pelo que ficou exposto, observamos uma espantosa mescla de disciplina e indisciplina.
Para Y. Le Bohec, «O exército romano assemelhava-se mais ao Tsahal do que ao
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organizado pelo rei-sargento prussiano Frederico Guilherme I» 1129. Não é difícil explicar
este facto: os legionários não combatiam como escravos, nem enquanto súbditos, mas
na qualidade de cidadãos romanos, ou seja, de homens livres 1130(211). Este mesmo
aspecto serve igualmente para compreendermos os êxitos obrados pelo exército
romano e a sua eficácia.
1129
Cf. La guerre romaine, p. 149.
1130
379
nos anos de 1931-1932, em Dura Europos, nos arquivos da XXª coorte auxiliar
Palmyrenorum, descobriu-se um calendário religioso (Feriale Duranum1132) exarado
em latim sobre um papiro (P. Dura 54; CPL, 324; ChLA, VI, 309). Esta fonte data do
espaço temporal que vai de 223 a 227 d. C., mas a série de festividades que nela se faz
menção remonta, no seu conjunto, à política augustana de restauração religiosa.
Algumas delas atestam-se igualmente nos calendários epigráficos achados nas cidades
de Itália, pelo que não será descapido supor que as cerimónias celebradas pela dita
coorte auxiliar também tinham lugar nas restantes unidades do exército romano. Resta
saber se as prescrições religiosas contidas no calendário de Dura Europos seriam de
facto integralmente observadas pelos militares. Todavia, o estado em que se encontra o
papiro indica que foi muitas vezes enrolado e desenrolado, pelo que depreendemos que
o consultaram com muita regularidade.
Das quatro colunas que outrora compunham este documento, a derradeira desapareceu
quase por completo, sendo o período compreendido entre 19 de Março e o fim do mês
de Agosto o que melhor se preservou. As festas referidas no Feriale Duranum podem
repartir-se em três categorias: a das grandes festividades tradicionais romanas; a das
homenagens prestadas aos imperadores vivos e defuntos; e a das celebrações
militares1133.
No tocante às duas primeiras categorias, confirmou-se que se materializavam em
cerimónias realizadas simultaneamente em Dura Europos e em Roma – tal era o caso
da consagrada ao deus Marte, no primeiro dia do mês que tem o seu nome (Março) e a
12 de Maio, da dedicada a Minerva, em 19 de Março, por ocasião dos Quinquatrii, e o
dia de aniversário da fundação de Roma (dies natalis), 21 de Abril, que se passou a
celebrar desde o reinado de Adriano. Podemos ainda citar os Vestalia, a 9 de Junho, os
Neptunalia a 23 de Julho, e a festa de Salus, a 5 de Agosto. Em termos religiosos, o ano
terminava, tanto nos acampamentos como na Urbs, com os Saturnais (Saturnalia), em
17 de Dezembro.
Quanto às datas de aniversário de nascimento e de advento dos imperadores que
surgem indicadas no Feriale Duranum, coincidem, de igual modo, com as que
aparecem nas actas do colégio sacerdotal dos Frateres Arvali, na capital. Do mesmo
modo, formulavam-se os votos pela saúde (pro salute) do imperador e pela eternidade
do Império a 3 de Janeiro, tanto nas guarnições como em Roma.
Mas no papiro de Dura Europos observa-se ainda a existência de um autêntico
cerimonial militar que ritmava a vida nos acampamentos e fortalezas, de legionários e
auxiliares: no dia 7 de Janeiro, um evento solene marcava a altura do pagamento do
primeiro stipendium do ano, assim como o licenciamento dos soldados que haviam
cumprido o seu tempo de serviço regulamentar. Meses mais tarde, a 1 ou 7 de
Setembro, tinha lugar um ritual similar, aquando do terceiro stipendium. No que
respeita ao segundo pagamento, que ocorria em Maio, não dispomos de indicação
alguma. Contudo, dado que o Feriale Duranum nos revela também a realização de uma
cerimónia denominada ob Rosalias signorum supplicatio (que significa basicamente
«festa das rosas e das insígnias» 1134), que se celebrava a 10 e a 31 de Maio, é possível que
ela coincidisse com o segundo pagamento anual do soldo, como defendeu R. O. Fink,
embora outros estudiosos, designadamente J. F. Gilliam, não aceitem esta hipótese.
1131
Para uma visão abrangente, E. Birley, «The religion of the Roman army», The Roman Army Papers 1929-1986,
Amesterdão, pp. 397-432. Aconselhamos igualmente um artigo mais recente, de I. Haynes, «Religion in the Roman
army: Unifying aspects and regional trends», in H. Cancik e J. Rüpke (eds.), Römische Reichreligion und
Provinzialreligion, Tübingen, 1997, pp. 113-126. No entanto, um dos melhores estudos continua a ser o de H.
Ankersdorfer, Studien zur Religion des römischen Heeres von Augustus bis Diokletian, tese de doutoramento,
Constança, 1973.
1132
R. O. Fink, A. S. Hoey e W. F. Snyder, «The Feriale Duranum», Yale Classical Studies 7 (1940), pp. 1-222; J.
Helgeland, «Roman Army Religion», in Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, 2.2( 1978), pp. 1470-1505, com
uma transcrição e tradução para inglês do Feriale Duranum.
1133
Para uma visão breve mas sugestiva do Feriale Duranum, veja-se G. Webster, The Roman Imperial Army, pp. 276-
277.
1134
D. B. Campbell, «Eagles, Flags and Little boars: The cult of the Standards in the Roman Army», Ancient Warfare,
III.6 (2010), p. 39.
380
Outros testemunhos documentais indiciam que o calendário atestado em Dura
Europos seria igualmente seguido nas demais guarnições do Império: situado nas
imediações da Muralha de Adriano, o forte romano de Corbridge deixou numerosas
inscrições e esculturas alusivas às festas que constam do Feriale Duranum como, por
exemplo, a citada festa das rosas e das insígnias, evocada na Britânia num baixo-relevo.
Por seu lado, os papiros latinos de Genebra mostram duas deduções nos soldos que
ocorreram apenas uma vez por ano: a primeira sucedia em 1 de Janeiro, qualificada
pela fórmula saturnalicium K(astrense), que deveria corresponder à contribuição
financeira dos militares para a celebração dos Saturnais, no mês precedente; a segunda,
chamada de ad signa, efectuada a 1 de Maio, talvez se destinasse ao financiamento do
culto das insígnias das unidades. Ora isto confirma o laço que já havia sugerido o
papiro de Dura entre o pagamento do soldo e a festividade das rosas e das insígnias.
A epigrafia revela igualmente (CIL II, 2634, 5083; III 1019, 1646 e 15208; IV 227, 230 e
234; VIII 2529=18040, 2531, 10716 = 17623, 17621…) que os soldados prestavam culto
a divindades protectoras designadas genericamente como génios 1135. Y. Le Bohec
dividiu-as em dois géneros1136, consoante protegessem os lugares (o genius do
acampamento, do pretório, do recinto onde se efectuava o treino, dos celeiros, da
enfermaria) ou os homens (genius da legião, da coorte, da centúria, da ala).
Há mais fontes que completam os informes fornecidos pelo Feriale Duranum quanto à
existência de um cerimonial militar: uma passagem da História Eclesiástica (VII, 15, 1-
2) de Eusébio de Cesareia, relativa ao martírio do centurião Marino, por volta de
meados do século III, deixa entrever que a concessão do cepo de vinha aos centuriões, o
seu símbolo emblemático de autoridade, seria objecto de uma cerimónia, no decurso da
qual a promoção de Marino se viu contestada por um dos seus companheiros de armas.
De igual modo, uma inscrição procedente do Norte de África (CIL VIII, 2634) evoca a
deposição da vitis «junto da águia» por Sattonius Iucundus, primus pilus da IIIª legião
Augusta, no momento em que se aposentou.
Não há dúvida que muitas destas cerimónias contribuíam para fortalecer o espírito de
corpo e a lealdade do exército em relação ao seu chefe supremo, o imperador, tal como
o próprio juramento proferido pelos recrutas aquando da sua incorporação. Ressalve-se
que o sacramentum era anualmente renovado através de uma fórmula abreviada no dia
3 de Janeiro, ao mesmo tempo que se faziam os votos pela saúde do imperador 1137. Além
disso, na época imperial, a fraseologia privilegiava acima de tudo a fidelidade ao
princeps, e não tanto o tópico da defesa da Urbs, que sob a República se invocava.
À semelhança do calendário religioso, os ritos praticados pelo exército não diferiam dos
de Roma. De facto, eles englobavam sacrifícios de animais (machos para os deuses e
fêmeas para as deusas), bem como oferendas de vinho e incenso (supplicatio)1138. Note-
se, a propósito, que nos baixos-relevos das colunas de Trajano e de Marco Aurélio
surgem representadas cenas de imolações. Neste âmbito, observamos no calendário de
Dura Europos prescrições idênticas às consignadas nas actas dos Frateres Arvali –
oferecia-se um touro a Marte e ao genius do imperador, ao passo que para os divi se
sacrificavam de bois. Mas o Feriale Duranum apenas prevê supplicationes para os
divae, não implicando a imolação das vacas por meio das quais as imperatrizes eram
honradas.
Certos immunes exerciam funções religiosas: os victimarii, encarregados de matar os
animais sacrificados, os harúspices, incumbidos de lerem os presságios nas entranhas
dos últimos. Nas legiões, o aquilifer era responsável pela guarda da águia legionária,
1135
M. P. Speidel e A. Dimitrova-Milčeva, «The Cult of the Genii in the Roman Army and a new Military Deity», in
Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II.2, pp. 1542-1553.
1136
Y. Le Bohec, L’armée romaine sous le Haut-Empire, pp. 261-262
1137
B. J. Campbell, The Emperor and the Roman Army, pp. 19-32; J. Rüpke, Domi Militiae. Die religiöse Konstruktion
des Krieges in Rom, Estugarda, 1990, pp. 76-91; P. Herz, «Das römische Heer und der Roms Kaiserkult in Germanien»,
in W. Spickermann, H. Cancik e J. Rüpke (eds.), Religion in der germanischen Provinzen Roms, Tübingen, 2001, pp.
101-102.
1138
P. Herz, «Sacrifice and sacrificial ceremonies of the Roman army», in A. I. Baumgarten (ed.), Sacrifice in Religious
Experience, Leiden, 2002, pp. 81-100.
381
pertencendo ele forçosamente à centúria do primipilus. Numa estela funerária
descoberta em Apamea, figurou-se Felsonius Verus, aquilifer da IIª legião Parthica,
aparecendo munido de todos os atributos da sua função e posto.
Com efeito, em todas as bases militares havia um santuário (sacellum ou aedes
signorum) que albergava as insígnias, as efígies imperiais, assim como o tesouro da
guarnição; numa inscrição encontrada na Germânia Superior (AE 1989, 581), este
recinto é até chamado Capitolium. Os santuários localizavam-se invariavelmente no
centro das bases militares, por detrás dos principia (quartel-general), mas era diante
destes que o comandante-chefe tomava os auspícios.
1139
M. P. Speidel, The Religion of Iuppiter Dolichenus in the Roman Army, Leiden, 1978.
1140
F. Cumont, The Mysteries of Mithras, Nova Iorque, 1956; M. J. Vermaseren, Mithras, The Secret God, 1963. C. M.
Daniels, «The role of the Roman army in the spread and practice of Mithraism», in J. R. Hinnels (ed.), Mithraic Studies,
vol. II, Manchester, 1975, pp. 249-274.
1141
Descobriu-se um templo mitraico perto do forte de Carrawburgh (na Muralha de Adriano), cujos vestígios foram
minuciosamente examinados por I. A. Richmond e J. P. Gilliam, «The Temple of Mithras at Carrawburgh», AA. 4th ser.
29 (1959), pp. 1-92. Encontraram-se outros santuários em Segontium, Housesteads e Rudchester.
382
restantes pelo envolvimento pessoal do deus e pela sua violência: foi Mitra que forçou o
touro a deitar-se no solo antes de o esfaquear. Os fiéis teriam de passar por sete graus
de ritos iniciáticos, dos quais se conservaram os nomes, que, em parte, permitem
reconstituir tal progressão: «corvo», «noivo», «soldado», «persa», «heliódromo»,
«pai».
Os «corvos» situavam-se, então, na fronteira entre os iniciados e os não iniciados, à
semelhança da ave, que se acreditava ter o dom da palavra e se encontrava no limite
entre o mundo animal e o género humano. Se, por um lado, os três primeiros graus
correspondiam a etapas preparatórias, por outro as últimas três já implicavam uma
total adesão ao culto. O «leão» balizava a passagem entre estes dois níveis, e o «pai»
significava o ponto mais elevado da perfeição. Assim, o último era o verdadeiro
sacerdote de Mitra. A iniciação parece ter consistido em provas físicas e morais. Cada
escalão estava associado a um planeta, dado que se considerava que a alma do defunto
se elevava progressivamente acima da Terra, até à apogénese, o seu nascimento num
outro mundo, espiritual. Transpôs-se esta dimensão astronómica para a própria
planimetria dos mithrae: a orientação do santuário devia traduzir este percurso da
alma: o touro fora sacrificado a leste, à luz do sol, enquanto o Oeste permanecia na
penumbra. A popularidade que o culto de Mitra gozou entre as tropas não é difícil de
explanar, já que havia uma analogia entre os graus iniciáticos e a hierarquia dos postos
militares: o soldado aí encontraria, ao mesmo tempo, um eco da sua vivência
quotidiana e um incentivo para a ultrapassar as adversidades. Consequentemente, a
difusão do mitraísmo patenteava a mentalidade militar característica dos membros da
«plebe média» evocada por P. Veyne, que aspiravam a melhorar a sua sorte por meio
dos esforços pessoais.
Mitra também ganhou acólitos entre certos oficiais superiores, como o atesta a
iniciação de tribunos laticlavos em Aquincum ou a obtenção do título de pater para um
romano da ordem equestre, num mithraeum do Castra Peregrina em Roma. No
entanto, o mais usual era que os senadores e os cavaleiros se limitassem a efectuar
dedicatórias a Mitra enquanto exerciam o comando, não se iniciando no culto: veja-se o
caso dos oficiais que chefiaram a guarnição de Dura Europos, dois dos quais
ofereceram duas estátuas cultuais para o mithraeum. Em contrapartida, os centuriões
ocupavam frequentemente os graus superiores da iniciação mitraica. Quanto aos
imperadores, só começaram a conceder os seus favores a este deus no século IV.
Por outro lado, os mithrae descobertos no interior de bases militares não se
localizavam num sítio central comparável ao do santuário das insígnias. Em Dura
Europos, o mithraeum estabeleceu-se primeiro numa casa particular e, depois em
duas, incorporadas no acampamento da XXª coorte Palmyrenorum, onde, aliás, os se
encontraram incisos múltiplos grafitos. O culto consistia fundamentalmente numa
refeição ritual em que os devotos, reunidos, se deitavam sobre bancos. Quando o
número de fiéis de Mitra excedeu a capacidade de acolhimento da sala do banquete
(rondando umas vinte pessoas), foi necessário criar novos santuários. Os iniciados que
se encontravam no estádio do «corvo» serviam-se de pão, vinho e de espetadas de
carne. No entanto, várias pinturas e inscrições mostram que os archeiros palmirenses
acantonados em Dura Europos também frequentavam o templo consagrado ao deus
Baal.
O cristianismo
383
Apologeticum (XLII, 1-3), Tertuliano, que era filho de um centurião talvez adepto de
Mitra, defendeu os cristãos, sublinhando que eram tão bons quanto os pagãos.
Mas, em 211, certamente no momento do advento de Caracala e Geta, ocorreu um
episódio insólito: um soldado recusou-se a cingir uma coroa de louros quando se
distribuiu um donativum imperial em Lambaesis; como o indivíduo em causa replicou
face às injunções do tribuno, rejeitando as suas insígnias e invocando o facto de ser
cristão, foi de imediato arrojado para um calabouço. Tertuliano tratou de defender esse
homem vigorosamente no seu Tratado sobre a coroa, onde concluiu haver uma
inequívoca incontabilidade entre o cristianismo e a profissão militar, que obrigava o
soldado a participar nos cultos oficiais romanos (Tratado sobre a coroa, 13).
Apesar disso, no exército romano continuaram a militar cristãos, como o atesta a longa
carreira de Aurelius Gaius, sob a Tetrarquia, conhecida por uma inscrição descoberta
em Cotiaeum, na província da Ásia (AE 1981, 777): com efeito, ele não abandonou o
exército por querer respeitar as suas convicções religiosas, mas em consequência da sua
expulsão no contexto das perseguições tetrárquicas que principiaram em 303. Houve
estudiosos que se interrogaram se a legislação promulgada por Diocleciano contra os
cristãos não teria sido resultado do recrudescimento dos casos de objecção de
consciência no exército. Foi assim que, em 12 de Março de 295, um recruta de Theveste,
o jovem Maximiliano (cf. supra) justificou a sua recusa, diante do procônsul de África,
em ver-se incorporado nas forças armadas em razão da sua adesão ao cristianismo. Em
30 de Outubro de 298, um centurião chamado Marcellus foi executado em Tingi
(Tânger), na Mauritânia Tingitana, por se ter desfeito do seu cepo de vinha em público,
em nome da sua fé cristã, meses antes, no dia 21 de Julho.
É possível que a utilização de uma forma de conscrição mais coerciva, a partir da
Tetrarquia, tenha incitado um número crescente de recrutas a buscar no cristianismo
um meio para escaparem às suas obrigações militares, mesmo fora das províncias do
Norte de África (onde se desenvolveu, com Tertuliano, um cristianismo intransigente e
hostil por princípio ao ingresso de cristãos no exército). Por outro lado, temos
conhecimento de mártires militares no Egipto, na Mésia, nas Gálias e na Península
Ibérica. Os mártires pertencentes ao ofício das armas são especialmente numerosos, na
medida em que ocuparam um lugar privilegiado nas récitas hagiográficas. De facto, eles
representavam figuras protectoras por excelência e ofereciam uma boa possibilidade
para estabelecer paralelos entre a milícia de Cristo e a milícia do imperador.
A partir de 313, Constantino decidiu fazer do cristianismo – que até aí só podia ser
praticado a nível individual por certos militares – um culto oficial do exército romano,
mas tendo o imperador cuidado para não colidir frontalmente com os soldados que o
haviam alçado ao poder supremo, os quais, na sua maioria, continuavam ligados ao
paganismo. Com base na História Eclesiástica (I, 8) de Sozomeno, Constantino terá
criado os capelões militares: consistiam em clérigos ordenados pelos bispos de que
dependiam os lugares providos de guarnições. Testemunha-se a existência dos mesmos
através das fontes papirológicas (SB, XX, 15168, que faz menção a um presbyteros) e
epigráficas (IGLS, XXI, 4, 50).
Na opinião de R. Haensch1143, a instauração do culto cristão público no seio das forças
armadas não chegou a suscitar reacções demasiado hostis ou adversas, uma vez que os
soldados estavam habituados a participar em cerimónias colectivas religiosas, que não
coincidiriam necessariamente com as suas próprias crenças. O mesmo historiador
sugeriu também que o carisma de Constantino pode haver estimulado o exército a
aceitar a religião do imperador que o conduzira à vitória. Mas Constantino foi
provavelmente ainda mais longe, ao proibir os militares de sacrificarem animais em
honra das divindades pagãs, e a substituir as festividades oficiais dedicadas a deuses
específicos pelo Domingo, isto é, o dia do Sol (Eusébio de Cesareia, Vida de
Constantino, IV, 18-20; Codex Iustinianus, III, 12, 2) no calendário tradicional.
Os soldados cristãos assistiam à missa numa igreja ou numa tenda montada para o
efeito (Eusébio de Cesareia, Vida de Constantino, II, 12). Quanto aos outros, teriam de
1143
384
recitar uma prece redigida por Constantino e dirigida a uma divindade suprema, que
não se podia assimilar a qualquer outra. No que respeita ao culto das insígnias, que
muito ajudava para o fortalecimento do espírito de corpo em cada unidade, viu-se
substituído pelo do labarum, o estandarte sobre o qual estava representado o crisma.
Torna-se difícil avaliar a amplitude da progressão do cristianismo no exército romano.
Amiano Marcelino (Histórias, XXVII, 10, 1) conta-nos que os Alamanos (Alamanni) se
apoderaram de Mogontiacum (Mogúncia/Mainz) precisamente na altura em que a
guarnição romana celebrava uma festa cristã. Se nos ativermos ao Codex Theodosianus
(XVI, 10, 21), os pagãos não foram mais admitidos no exército a partir de 416 d. C. Por
seu turno, Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 5) precisa que, doravante, os recrutas
eram obrigados a prestar juramento sobre a Trindade, mas importa saber, ao certo,
quando é que este autor redigiu o tratado.
385
uns em relação aos outros num prélio. Quanto a commilito (pl. commilitones, «co-
militar»), seria quiçá o vocábulo mais abrangente, já que se aplicava tanto ao soldado
raso (miles) como ao general e até ao imperador. Commilito englobava então o conceito
de união no exército e de respeito pelos camaradas, independentemente do lugar que
cada um ocupava na hierarquia. No entanto, descobriu-se uma curiosa ocorrência deste
termo commilito numa urna funerária de um soldado augustano. A brevidade do texto
que nela se gravou realça a morte injusta de um soldado provocada por outro, no
mesmo exército, e a traição ao espírito de camaradagem:
«L. Hepenius L. f. ocisus ab comilitone [sic]»/ «Lucius Hepenius, filho de Lucius, morto por um
camarada».
A urna foi achada num túmulo em Asciano, a sudeste de Siena, e continha uma moeda
datando de 15 a. C., o que sugere que o militar perdeu a vida durante o reinado
augustano. Aventou-se a hipótese de Hepenius haver sido um pretoriano ou um
soldado das coortes urbanae que pereceu em Roma e cujas cinzas se entregaram à sua
família para a realização do seu funeral1145.
Passemos a outro vocábulo, manipularis ou commanipularis (soldado do mesmo
manípulo), que implica a noção de dependência entre os legionários, centúria a
centúria, a chave para se conseguir uma vitória e para sobreviver numa contenda. Mas
o termo mais comovente, habitualmente observável nas inscrições das lápides, é do de
frater («irmão»). Em muitas destas estelas funerárias, verificamos, através dos
diferentes nomes da família do defunto e do(s) herdeiro(s), que não eram verdadeiros
irmãos, pelo que o étimo servia para manifestar, com eloquência e simplicidade, os
laços fundamentais que uniam os homens de armas.
Se, em certa medida, podemos descrever a legião como uma «sociedade», o
contubernium significava a «família» do legionário. A fraternidade entre camaradas
por vezes expressava-se na atitude extrema do suicídio em massa: em 28 d. C.,
encurralados no complexo de uma villa, os soldados pertencentes a um contingente
auxiliar resolveram matar-se uns aos outros, assim evitando serem apanhados pelo
inimigo (Tácito, Anais, 4.73). Tempos antes, em 54 a. C., uma das legiões de Júlio César
e cinco outras coortes legionárias foram desbaratadas ao tentarem sair do território dos
Eburones; alguns legionários procuraram regressar ao seu acampamento de Inverno
abandonado e aqui repelir os assaltos dos Gauleses até ao cair da noite, mas, ao
constatarem que seriam derrotados, preferiram suicidar-se (Júlio César, Bell. Gall.
5.37). Apiano transmite-nos um pouco a ideia de como os soldados encaravam o
suicídio: conta que os milites da reputada legio Martia decidiam abdicar das suas vidas
quando a frota antagonista de Sexto Pompeio, em 42 a. C., incendiou e afundou os
navios de transporte dos primeiros (Apiano, G. civ., IV, 116).
Este recurso ao suicídio parece ter sido considerado como bastante honroso,
traduzindo-se numa maneira de retirar ao inimigo os louros de uma vitória total, além
que também significava um meio de manter a honra do exército acima de tudo.
Durante o assédio a Jerusalém, em 70 d. C., os Judeus emboscaram um grande número
de soldados romanos, ao atearem fogo ao pórtico onde os últimos estavam a lutar,
assim cortando-lhes a retirada. A Muitos dos legionários morreram queimados ou sob
os golpes do inimigo, mas Longinus escapou:
«Os Judeus, ao admirarem a proeza de Longinus e perante a incapacidade de o matarem, pediram-lhe
que descesse […] garantindo que poupariam a sua vida. O seu irmão, Cornelius […] implorou-lhe que não
desonrasse a sua própria reputação ou as armas romanas. Influenciado por essas palavras, ele [Longinus]
brandiu o seu gládio à vista de ambos os exércitos e matou-se» (Flávio Josefo, Bell. Iud., VI, 185-188).
Estes episódios mostram, acima de tudo, como os laços que mantinham coesa uma
unidade militar persistiam até em momentos de grande pressão e terror, optando um
soldado por morrer ao selar um pacto com os seus camaradas, em vez de se ver
capturado ou chacinado pelo antagonista. Até um suicídio motivado pela vergonha,
como sucedeu com um miles aparentemente cobarde evocado por Suetónio (Otão, 10),
se podia considerar, à luz da mentalidade romana, como uma atitude redentora,
significando a expressão suprema da camaradagem. Suetónio Leto (Laetus), pai do
1145
L. J. Keppie, Legions and Veterans: Roman Army Papers, 1971-2000, Mavors 12, Estugarda, 2000, p. 317.
386
biógrafo, serviu na qualidade de legado da XIIIª legião Gemina, durante a guerra civil
de 69 d. C. Ele contou ao filho um facto que teve lugar quando um mensageiro apareceu
para comunicar ao imperador Otão a derrota das suas forças perto de Cremona:
«Quando a guarnição [em Brixellum] o acusou de ser mentiroso, desertor e cobarde, o homem [o
mensageiro] caiu sobre a sua espada aos pés de Otão. Vendo isto, Otão, relatou o meu pai, disse em voz alta
que nunca mais iria arriscar as vidas de homens tão corajosos e meritórios» (Suetónio, Otão, 10).
Pouco depois, o próprio Otão matou-se, e alguns dos seus soldados mais leais fizeram o
mesmo, à volta da pira funerária do seu comandante.
Em tempo de guerra, o conceito e a prática da fraternidade ganhava proporções ainda
maiores, porfiando os soldados em socorro de outras unidades, bem como, obviamente,
pelos seus camaradas imediatos. Em 28 a. C., verificou-se um caso notável, quando, no
decurso de uma desastrosa batalha opondo contingentes de auxilia a hordas de Frisii, a
Vª legião desencadeou um contra-ataque e conseguiu libertar um considerável número
de tropas auxiliares. Contudo, outros 900 não puderam escapar e pelejaram até ao fim
(Tácito, Ann. 4.73). Veleio Patérculo compôs um epitáfio em honra das legiões XVII,
XVIII e XIX, esmagadas em Teutoburgo (9 d. C.), reportando-se à sua coesão enquanto
grupo na contenda: «elas foram as mais valorosas de todos os exércitos» (II, 119, 2).
387
CAPÍTULO 11 - A desmobilização e os veteranos
388
em Itália deixa de se atestar. Além disso, as referidas colónias contribuíram para
reforçar a defesa do Império, nas zonas recentemente conquistadas e ocupadas. Só a
partir do principado de Adriano é que as missiones agrariae começaram a rarear devido
ao aumento dos preços das terras. Por seu lado, desde o século I antes da nossa era, o
prolongamento da duração do serviço militar não permitiu mais aos veteranos
encetarem uma nova existência enquanto agricultores, ao saírem do exército: eles
preferiram, então, beneficiar do praemium em dinheiro.
Não obstante a ambiguidade da terminologia empregue por Díon Cássio (Hist. rom.
55.24.9), e a associação, por Suetónio, da gratificação da aposentação militar a outros
commoda militaria (Augusto, 49), o aerarium militare destinava-se exclusivamente ao
financiamento de tal prémio e não à manutenção do exército em geral, tarefa que
estava a cargo do fisco imperial. Tal tesouro militar foi, numa primeira fase,
alimentado por uma doação inicial de Augusto, com um montante ascendendo a 42
milhões e meio de denários (isto é, 170 milhões de sestércios), depois por um imposto
de 5% sobre as sucessões (o vigésimo das heranças), bem como por uma taxa de um
centésimo sobre as vendas realizadas em hasta pública.
No entanto, o produto da vicesima hereditatium e da centesima rerum venalium não
seriam suficientes para cobrir as despesas. Pelos mesmos motivos, as concessões de
lotes de terra não parecem ter ficado mais sob a alçada do tesouro militar, conforme
depreendemos pelos resultados das pesquisas de M. Corbier 1146. De finais do século II
a. C. em diante, as conquistas e as confiscações feitas ao longo das guerras civis
representaram um «reservatório» de terras regularmente renovado, destinando-se aos
veteranos dos imperatores vitoriosos. Ora esta fonte veio a esgotar-se sob o principado
de Augusto, com a pacificação do mundo romano. Foi por esta razão que ele, depois de
licenciar massivamente os pletóricos efectivos das forças armadas triunvirais, tentou
resolver o problema ao prolongar, em duas etapas, a duração do serviço militar, no
intuito de limitar o número de veteranos a recompensar. Mas até este artifício, que
mais tarde valeu a Tibério a acusação de especular com a morte dos seus soldados, não
permitiu ao tesouro militar libertar os recursos suficientes para comprar as terras
necessárias, para além daquilo que o ager publicus podia fornecer (Suetónio, Tibério, 48).
Tal como para a manutenção geral do exército, terá sido possivelmente o fisco (as
arcas que recebiam o produto dos impostos das províncias imperiais) que se viu
solicitado, e mesmo o patrimonium (o conjunto de bens pessoais do imperador), que
servia ainda mais para que o imperador ficasse na qualidade de deductor das colónias
de veteranos, de acordo com C. Moatti.
O processo de desmobilização veio, pois, a mudar sob o Alto-Império. Doravante, só
um determinado contingente de tropas era licenciado, provavelmente de dois em dois
anos1147: os legionários nos anos ímpares do nosso cômputo, os pretorianos e os
urbaniciani nos pares. Como se efectuava um supplementum todos os anos, os tirones
recrutados nos anos em que havia desmobilizações tinham, assim, menos doze meses
de serviço, o que podia incentivar os alistamentos voluntários. A partir de 216 d. C.,
pelo menos, o referido Feriale Duranum indica o mesmo dia de aposentação para todos
os corpos militares: 7 de Janeiro, talvez uma referência simbólica à data em que
Augusto se apossou dos seus primeiros fascia.
Com base nos estudos de M. Corbier e de J. C. Mann 1148 é possível quantificar os
efectivos dos contingentes desmobilizados. De dois em dois anos, licenciavam-se 150 a
1146
L’aerarium Saturni et l’aerarium militare. Administration et prosopographie sénatoriale, Roma, 1974; idem, «L’aerarium
militare sur le Capitole», Cahiers du groupe de recherche sur l’armée romaine et les provinces, 3 (1984), pp. 147-160.
1147
Embora frequentemente se tenha afirmado que as desmobilizações ocorriam anualmente. Como eventual prova de
que o licenciamento tinha um carácter bienal, cf. AE 1973, 553. Sobre este assunto: G. Wesch-Klein, «Recruits and
Veterans», p. 440.
1148
«Honesta Missio from the legions», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft in der
Römischen Kaiserzeit, pp. 153-161.
389
200 homens por legião (quando se tratava de legiões completas que não tivessem
sofrido baixas). Nestas condições e tomando em consideração a oscilação do número
das legiões (entre 25 e 30), o total dos legionários dispensados variaria entre 3000 e
7500. Nas coortes pretorianas, a média dos soldados «libertos» em cada uma passou de
30, no início do século I da nossa era, para 66 no começo do III, o que representou um
aumento de um total de menos de 300 para mais de 600 indivíduos. Nas coortes
urbanae, esta média numérica subiu de 18 para 60 por cada uma, e de uma cinquentena
para mais de 300 para o conjunto deste corpo militar ao longo do mesmo período.
Neste sentido, compreende-se que a quantidade de colónias estabelecidas sob o
Principado, bem como a superfície das terras disponíveis não permitiam acolher todos
os veteranos. A escolha que estes poderiam fazer, entre a missio agraria e a missio
nummaria devia, pois, situar-se num plano bastante teórico. Quando não existiam terras
suficientes para satisfazer todos os pedidos, os quadros de serviço e os comentários
exarados nas «cadernetas» militares constituíam, talvez, meios para seleccionar os
beneficiários. Nas outras unidades, aboletadas nas províncias, o imperador delegava os
seus poderes nos comandantes das primeiras que, por sua vez, confiavam este encargo
aos seus subordinados. Tácito, por exemplo, descreve os tribunos militares a
concederem o licenciamento aos legionários (Ann. 1.37.1). Nas coortes urbanae e
pretorianas, os tribunos desempenhavam também o mesmo papel, visto que foi aos
mesmos que os pretorianos desmobilizados pelo imperador Vitélio entregaram as suas
armas (Tácito, Hist. 2.67).
Para tal operação, efectuava-se uma lista de missiones, na qual haveria provavelmente
uma distinção entre os titulares da honesta missio, já repartidos entre os beneficiários de
lotes de terras, os que receberiam gratificações em numerário, e os soldados licenciados
desonrosamente (missio ignominiosa), privados de qualquer recompensa, além daqueles
desmobilizados antes de terminar o seu tempo de serviço, devido a ferimentos ou
doenças, recebendo uma soma de dinheiro proporcional ao número de anos em que
estiveram nas fileiras (missio causaria). A lista dos desmobilizados era, então, expedida
para Roma.
Sabe-se do caso de um miles acusado de deserção que logrou obter do imperador que
os seus anos de ausência do exército fossem levados em linha de conta no cálculo do
seu tempo de serviço, depois de ele haver provado a sua boa-fé, o que parece indicar
que possivelmente haveria uma espécie de direito de apelo face a uma decisão tomada
pelos tribunos (Papiniano, em Digesta, XLIX, 16, 15).
Temos conhecimento destas listas somente a partir de exemplares que se descobriram
nas guarnições. Os mais completos encontraram-se em Nicópolis, no Egipto (AE, 1955,
238; AE, 1969-1970, 633, em 157 d. C.) e em Lambaesis, na actual Líbia (CIL VIII, 18068,
em 198 d. C.). Dispomos igualmente de séries muito bem preservadas de dados de
veteranos do pretório (CIL VI, 32515, 32516; 32519; 3250; 3522, em 172 d. C.; 32638, por
volta de 193; 32639). Outras listas dizem respeito às coortes urbanae (CIL VI, 32521 e
32526), que foram afixadas nos santuários das suas casernas em Roma.
Nos latercula1149, só aparecem indicados os titulares da honesta missio: os seus nomes
estão ordenados por colunas, por coorte e por centúria, acompanhados pela
explicitação dos seus lugares de origem. Na realidade, estas inscrições possuíam uma
função honorífica, já que eram dedicadas pelos próprios veterani ao imperador às suas
próprias expensas, nelas lhe agradecendo por haverem recebido a honesta missio.
Quanto aos outros, não lhes assistia qualquer razão para constarem de tais listas.
A respeito das listas destinadas à chancelaria imperial, desempenhavam um evidente
papel contabilístico, pelo que deviam mencionar todos os soldados licenciados do
exército. Elas eram, em primeiro lugar, recebidas no «gabinete» do procurador ab
epistulis e depois, possivelmente, transmitidas ao procurador a rationibus, no tocante
1149
No singular laterculum, que significa «registo».
390
aos beneficiários da recepção de terras, bem como aos três prefeitos do aerarium
militare, quanto aos desmobilizados que recebessem o «prémio» em dinheiro. Na
opinião de C. Moatti, a concessão dos praemia militiae (gratificações do serviço militar)
levava à elaboração de uma constituição imperial, contendo uma lista dos beneficiários
e a sua repartição territorial (quando se tratava de veteranos que recebessem lotes de
terra), cujo texto era afixado em Roma, antes de ficar depositado nos arquivos.
Os governadores provinciais talvez pudessem emitir propostas de atribuições de
terras. Mas, em último recurso, só a administração central, perante as listas que recebia,
é que podia proceder à distribuição de missiones agrariae disponíveis pelos veteranos.
Depois, enviavam-se os anúncios das respectivas atribuições de terras unidade a
unidade, aos veteranos em causa que, por seu turno, se dirigiam aos seus lotes pelos
seus próprios meios.
Um tribuno da guarda pretoriana, Antonius Naso, que exerceu o cargo de pra[ep]ositus
supra[vetera]nos Romae mo[o]rantium [pluriu]m exercituum, esteve encarregado dos
veteranos de vários exércitos presentes em Roma (CIL III, 14387; ILS 9199, l. 16-18), no
começo do reinado de Vespasiano. Por esta altura, as circunstâncias eram muito
particulares, na medida em que era preciso vigiar de perto os veteranos dos diferentes
exércitos envolvidos nas guerras civis que deflagraram nos anos 68 e 69 d. C.
No entanto, o pagamento do prémio de aposentação aos veteranos que, à excepção dos
pretorianos e os urbaniciani, não se encontravam mais concentrados na Urbs para serem
desmobilizados, deve ter suscitado mais problemas do que a repartição dos mesmos
pelos lotes de terras, a qual, como vimos, se podia tratar por correio. Ora, os fundos do
tesouro militar estavam depositados em Roma. A existência de uma verdadeira arca,
instalada num local, é-nos confirmada por Tácito, que relata o episódio de um prefeito
a entregar as chaves da mesma a Sejano (Ann. 5.8.1).
Mas era nas províncias que a maioria dos beneficiários, os legionários, se encontrava
nas guarnições. Assim, para se efectuar o pagamento, a administração viu-se
confrontada com o seguinte dilema: convocar os veteranos a comparecer na capital,
solução da qual já referimos os inconvenientes que ocasionava (e que não se atesta na
época imperial), ou recorrer às transferências de fundos, o que implicava sempre
riscos, dado que se teriam de realizar viagens cobrindo longas distâncias entre Roma e
os acantonamentos das legiões. De facto, ao contrário do fisco imperial, o aerarium
militare não possuía, ao que se julga, uma rede de arcas romanas e provinciais, onde
pudesse estabelecer um processo de compensações.
Num artigo publicado nas actas do Colóquio subordinado às legiões romanas sob o
Alto-Império, centrado nas modalidades práticas do pagamento dos praemia de
aposentação aos legionários, P. Cosme1150, ao apoiar-se na narração de Tácito (Ann. 1.
16-49) sobre os motins que ocorreram na Panónia e na Germânia (aquando do
falecimento de Augusto), sugeriu existirem eventuais jogos de compensação entre o
tesouro militar, o fisco e os fundos depositados nos santuários dos acampamentos
legionários. Pretendendo satisfazer as aspirações dos soldados, Germânico começou
por declarar que eles receberiam as suas gratificações na altura em que regressassem
aos aquartelamentos de Inverno. Será, então, de imaginar que uma parte, pelo menos,
da soma necessária se conservaria nos últimos.
Sabemos da existência de soldados afectos ad anuam, que possivelmente estariam
encarregados de pagar os praemia aos veteranos: pelo menos é o que extrapolamos a
partir da interpretação de R. Marichal do conteúdo de certos óstracos descobertos em
Bu Njem1151. Sabemos igualmente que se incitavam os milites a depositar uma parcela
do seus soldos e dos donativa recebidos na capela das insígnias dos seus
acampamentos, a qual se encontrava, como atrás ficou dito, sob a guarda dos signiferi.
1150
1151
Deste autor, veja-se o artigo «Les ostraca du Bu Njem», CRAI (1979), pp. 436-452.
391
Os seus depósitos podiam atingir um nível bastante elevado, a ponto de conduzir a
que um legado ambicioso tivesse a veleidade de fomentar uma conjura, daí que
Domiciano resolvesse tentar limitar o montante de cada depósito individual (Suetónio,
Domiciano, 7).
Em algumas ocasiões, vários estudiosos presumiram que este entesouramento
improdutivo revelaria claramente um rudimentar pensamento económico. No entanto,
estas reservas monetárias serviriam, talvez parcialmente, para pagar o praemium dos
veteranos, sem ter de mandar vir de Roma a totalidade dos fundos necessários. Ao
depositarem até 20 ou 30% do montante dos seus soldos junto dos respectivos porta-
insígnias, os legionários em serviço terão assim contribuído para adiantar as somas que
agilizavam o financiamento da aposentação daqueles que se viam desmobilizados.
Também é de supor que se trataria de uma maneira, para as arcas provinciais do fisco
(às qual incumbia a manutenção das tropas aboletadas nos seus espaços geográficos),
de se avançar tal soma ao tesouro militar, sob a forma de soldos, donativa ou de outros
pagamentos, destinados às guarnições.
O aerarium militare, que não tinha cofres provinciais suficientemente «alimentados»,
poderia reembolsar a seguir o fisco imperial na própria cidade de Roma. O facto de se
efectuarem as missiones de dois em dois anos, ao passo que os supplementa tinham lugar
anualmente, devia-se à necessidade, possivelmente, de facilitar as operações de
compensações entre as diferentes arcas, já que o número dos recrutas ultrapassaria
sempre o dos veteranos licenciados. Em 14 d. C., os soldados amotinados recusaram
esperar pelo seu regresso aos quartéis de Inverno, e pagaram-se a si próprios, ao
apropriarem-se dos fundos destinados a cobrir os gastos da missão de Germânico. O
cortejo de legionários descrita pelo cálamo de Tácito pode interpretar-se assim como
uma paródia do pagamento normal das gratificações, uma vez que os militares
transportavam os cofres no meio das insígnias e das águias (Ann. 1.37.1-2).
É muito provável que os eventuais mecanismos de troca entre o fisco imperial e o
aerarium militare, para o pagamento do prémio da aposentação, podem também haver
sido favorecidos pela estabilidade do seu montante, enquanto o do soldo aumentou em
dois momentos concretos, nos reinados de Domiciano e de Septímio Severo. A última
subida do valor dos praemia data, segundo se pensa, do tempo de Caracala (Díon
Cássio, Hist. rom. 77.24.1): ascendeu a 5 000 denários para os legionários e talvez 8 250
para os pretorianos. Se bem que o montante do prémio representasse
aproximadamente catorze anos de soldos aquando da sua criação, no início do século
III, apenas corresponderia a uns sete ou oito anos (Díon Cássio, Hist. rom. 7.24.1, em
215 d. C.).
A criação do tesouro militar precedeu o estabelecimento definitivo do sistema fiscal,
remontando em princípio ao reinado de Cláudio, a acreditarmos nos argumentos
esgrimidos por M. Corbier. Mas não tardou que ele tivesse de colaborar com o aerarium
militare, fosse para beneficiar de transferências dos seus cofres provinciais, na altura do
pagamento do prémio aos veteranos, fosse para «desencalhar» o depósito na própria
Urbs, quando estivesse deficitário.
Consequentemente, as competências dos prefeitos do tesouro militar eram, sem
dúvida, limitadas face a esta crescente dependência da caixa de aposentações, e pelo
controlo da utilização apropriada das receitas do vigésimo das heranças e do centésimo
das vendas realizadas em hasta pública. A lógica da sua própria evolução, bem como
as dificuldades com que o aerarium militare deparou para conseguir levar a cabo
autonomamente a sua missão levaram, portanto, a que o mesmo viesse a ser absorvido
pelo fisco imperial em meados do século III. Com efeito, não encontramos vestígios da
existência de prefeitos do tesouro militar depois do ano 250.
392
O acesso ao casamento e à cidadania romana (civitas Romana)
1152
«Remarques sur l’octroi de la ciuitas et du conubium dans les diplômes militaires», Revue des Études Latines 55 (1977),
pp. 282-309.
1153
Para mais detalhes: J. C. Mann e M. M. Roxan, «Discharge certificates of the Roman army», Britannia 19 (1988), pp.
341-347.
393
A redacção destes documentos, que apareceram precisamente sob a égide de Cláudio
obedecia a uma fórmula, mas as suas variações permitem que acompanhemos a
evolução das vantagens concedidas aos soldados. Com efeito, como oportunamente se
verá, os diplomas militares foram descobertos em grande quantidade, ao passo que os
originais das constituições imperiais de que procederam não sobreviveram à voragem
temporal. Estas fontes viram-se reunidas por T. Mommsen no CIL III2, posteriormente
por H. Nesselhauf no CIL XIV, e por M. M. Roxan nos Roman Military Diplomas a partir
de 19541154. Após o falecimento desta investigadora, a tarefa de compilação prosseguiu
graças ao labor de P. Holder1155 e W. Eck. A fórmula básica englobava dez elementos
bem identificados: a titulatura imperial, a lista das unidades em questão, o nome da
província de guarnição, o do comandante do exército, uma evocação dos serviços
prestados, os privilégios concedidos enquanto recompensa, a data (dia, mês, ano), o
nome do beneficiário (por vezes acompanhado pelos da sua mulher e dos seus filhos),
o local onde estava afixada a constituição imperial em Roma e, por último, os nomes
das testemunhas.
O primeiro diploma militar que se conhece foi entregue a 11 de Dezembro de 52 d. C.,
em nome de Cláudio, aos marinheiros da frota de Misenum (CIL XVI, 1; ILS, 1986):
«Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus, sumo pontifex, no seu 12º mandato tribunício,
imperator 27 vezes, pai da pátria, censor, cônsul pela 5ª vez, aos trierarcas e aos remadores que
serviram na frota, que está em Misenum sob [o comando] de Tiberius Iulius Optatus, liberto de
Augusto, os quais foram licenciados com a honesta missio, cujos nomes se apresentam aqui
escritos em baixo: para eles próprios, para os seus filhos e descendentes, ele concedeu a
cidadania e o direito ao casamento legal com as mulheres que tinham no momento em que lhes
foi outorgada a cidadania ou, no caso de serem solteiros, aquelas com quem desposaram a
seguir, na condição de que cada um se case apenas com uma mulher. Em 11 de Dezembro, sob o
consulado de Faustus Cornelius Sulla Felix e de Lucius Salvidienus Rufus Salvianus. Para o soldado:
Sparticus, filho de Diuzenus, Dipscurtus de Bessa. Transcrito e autenticado, conforme à placa de
bronze que está afixada em Roma, no Capitólio, no Templo de Fides, à direita»
«[Testemunhas] Lucius Mestius Priscus, filho de Lucius, da tribo Aemilia, de Dyrrhachium, Lucius
Nutrius Venustus, de Dyrrhachium, Gaius Durrachinus Anthus, de Dyrrhachium, Gaius Sabinius
Nedymus, de Dyrrhachium, Gaius Cornelius Ampliatus, de Dyrrhachium, Titus Pomponius
Epaphroditus, de Dyrrhachium, Numerius Minius Hylas, de Thessalonice»1156.
Existem motivos para supor que os auxilia começaram também a receber diplomas na
mesma altura que os marinheiros, na medida em que a diferença de dois anos,
observável entre o documento transcrito e os primeiros diplomas conhecidos obtidos
pelos auxiliares, se deve, muito possivelmente, ao acaso das descobertas arqueológicas.
Capta-se uma primeira diferença entre os diplomas dos marinheiros e os dos auxilia:
até ao século II, os primeiros eram atribuídos «aos trierarcas e aos remadores que
serviram», enquanto os segundos se concederam «aos cavaleiros e aos infantes que
servem» até ao reinado de Vespasiano (CIL XVI, 1-3).
Daqui se depreende que os marinheiros teriam de esperar obrigatoriamente pelo
cumprimento dos seus 26 anos de serviço para aspirarem às vantagens atestadas pelos
seus diplomas; os auxilia, por seu turno, podiam obtê-los encontrando-se ainda nas
fileiras, fosse por haverem ultrapassado o seu tempo regulamentar de 25 anos, fosse
porque o imperador tomasse a decisão a eles respeitante achando-se eles no activo 1157.
A partir do principado de Vespasiano, o verbo militare pôde ser conjugado tanto no
1154
M. M. Roxan, Roman Military Diplomas I 1954-1977, Londres, 1978; idem, Roman Military Diplomas 2 1978-1984,
Londres, 1985.
1155
Roman Military Diplomas 5 2003-2005, Londres, 2006.
1156
E. M. Smallwood (ed.), Documents illustrating the Principates of Gaius Claudius and Nero, Cambridge, 1967, nº 295
(diploma, Stabiae, 52 d. C.); B. J. Campbell, The Roman Army 31 BC-AD 337. A Sourcebook, nº 322, p. 195.
1157
J. C. Mann, «The development of auxiliary and fleet diplomas», Epig. Stud. 9 (1972), pp. 233-241.
394
passado como no presente nos diplomas entregues aos auxilia. Assim, os seus
beneficiários englobavam tanto veteranos desmobilizados como soldados ainda em
actividade que se tivessem distinguido por um tempo de serviço particularmente longo
(CIL XVI 26; 34 e 164). Em contrapartida, desde o reinado de Trajano, tinha que se ser
preciso ter- obrigatoriamente veterano para receber o diploma militar, já que o verbo
militare apenas surge mencionado no passado (CIL XVI, 58; 59; 61-64).
Um recente achado revelou que o direito de cidadania romana podia até conceder-se
aos pais, irmãos e irmãs do veterano em causa: trata-se de um diploma que W. Eck e A.
Pangerl dataram de 121 d. C1158. No entanto, uma tal extensão de privilégios deveria ser
de carácter excepcional, uma vez que ocorreu outra importante mudança entre os anos
140 e 145. De facto, a partir deste período, os filhos e os demais descendentes dos
veterani auxiliares (salvo os centuriões e os decuriões) foram excluídos dos privilégios
outorgados, embora os veteranos da frota tenham continuado a beneficiar dos mesmos.
Torna-se difícil compreender as razões que conduziram a essas modificações,
cronologicamente situadas entre o final do principado de Trajano e o de Antonino-o-
Pio. Para W. Eck, que salientou que a exclusão não se aplicava aos filhos nascidos antes
do alistamento dos seus pais, Antonino pretenderia lembrar desta forma que os
soldados não tinham o direito de se casar durante o tempo em que estivessem a
cumprir o serviço militar. Além disso, o temor de um acesso demasiado rápido das
populações pouco romanizadas ao direito de cidade também deve haver
desempenhado o seu papel, bem como a vontade de não diminuir o potencial dos
recrutas auxiliares peregrini, que se viam impelidos a alistar-se com vista à obtenção da
cidadania romana. B. Rémy1159, biógrafo de Antonino-o-Pio, sublinhou que este reinado
não foi tão pacífico como muitos historiadores frequentemente ainda supõem, e que o
imperador talvez se preocupasse em manter esse potencial num nível que permitisse
enfrentar eventuais ameaças. Posto isto, os documentos aqui em apreço talvez nos
elucidem sobre a história militar em geral.
Se, por um lado, os primeiros diplomas de auxiliares e marinheiros parecem ter sido
quase coevos, por outro, só cerca de vinte anos mais tarde se atestam os diplomas
entregues aos pretorianos: o primeiro que se conhece data possivelmente de 72 d. C.
(CIL, XVI, 25; ILS, 1994, entre 72 e 79). Nesta situação, não nos podemos contentar em
invocar o acaso das descobertas. Assim, cabe buscar a explicação para este facto nas
perturbações que afectaram a composição das coortes pretorianas durante a crise de 68-
69. Efectivamente, cada um dos quatro imperadores que se sucederam entre a morte de
Nero e o advento de Vespasiano procedeu à depuração da guarda do seu predecessor,
substituindo-a pelo seu próprio pretório.
Foi por isto que Vespasiano se viu à cabeça de pletóricos efectivos de pretorianos no
activo ou já licenciados, dos quais uma significativa proporção saira das legiões (até de
unidades de auxilia), vindas das suas províncias de guarnição para a Urbs, a fim de
apoiarem a causa dos diferentes candidatos à púrpura imperial (Tácito, Hist. 2.93-94).
Ora era impossível transferir este acréscimo de homens para outros corpos de tropas
forçosamente menos prestigiosos, porque de outro modo haveria sérios riscos de gerar
graves descontentamentos. Galba fez, previamente, a cruel experiência (Suetónio,
Galba, 12). Vespasiano, por seu turno, resolveu desmobilizar parte dos pretorianos,
concedendo-lhes privilégios especiais que vieram a juntar-se às recompensas habituais,
sob a forma de lotes de terra ou de dinheiro (Tácito, Hist. 4.46).
Nesta categoria de soldados (de elite), não se colocava a questão da concessão da
civitas, visto que todos eles já eram cidadãos desde a altura da sua incorporação. Não
1158
«Neue Miltärdiplome für Truppen in Britannia, Pannonia superior, Pannonia inferior sowie in Thracia», REMA
1(2004), pp. 63-101.
1159
Antonin le Pieux, le siècle d’or de Rome. 138-161, Paris, 2005, capítulos II e III. Para uma visão sucinta, consulte-se o
artigo igualmente de B. Rémy, «La politique extérieure de l’empereur Antonin le Pieux (138-161)», Histoire Antique &
Medievale, nº 47, (jan.-fév. 2010), pp. 44-49.
395
obstante este facto, muitos dos pretorianos haviam estabelecido uniões ilegais com
peregrinas, no decurso da sua anterior carreira. Eles alimentariam, então, expectativas
em verem a sua situação regularizada, para que os seus filhos igualmente
beneficiassem da cidadania. Neste sentido, ao outorgar-lhes o conubium, Vespasiano
encontrou uma boa maneira para os fazer aceitar mais facilmente a desmobilização.
Mas, ao mesmo tempo, o imperador criou um precedente.
Doravante, a concessão de tal privilégio foi regularmente renovada sempre que se
licenciasse um contingente de pretorianos, embora tenha sido necessário aguardar pelo
advento de Septímio Severo, em 193, para que, de novo, a guarda pretoriana integrasse
legionários das províncias. O novo imperador entendeu castigar desta forma os
pretorianos por haverem vendido literalmente o poder supremo em leilão depois do
assassinato de Pertinax e, no outro extremo, recompensar os legionários que o
ajudaram a subir ao trono, oferecendo-lhes uma promoção de elevado prestígio. A
acentuada diminuição do número de diplomas militares obtidos pelos veteranos do
pretório que se verifica entre o período Flávio e o Severiano não se deveu, portanto, a
uma mera casualidade. Neste espaço de tempo, os italianos voltaram efectivamente a
tornar-se maioritários no pretório, justificando até uma suspensão do conubium após
168 e ao longo do reinado de Cómodo.
É certo que sobreviveu o texto de um discurso, proferido por Marco Aurélio no dia 6
de Janeiro de 168 e tendo como palco o Castra Pretoria, sem dúvida destinado aos
pretorianos que estivessem prestes a aposentar-se, no qual ainda se alude ao conubium,
apenas concedido aos veteranos da guarda (Fragmentos do Vaticano, 195). Mais tarde,
Septímio Severo restabeleceu a concessão do conubium para compensar a provável
manutenção da proibição do casamento durante o serviço militar somente para os
pretorianos e, principalmente, tendo em conta a origem provincial dos mesmos.
Em relação às coortes urbanae, o primeiro diploma que conhecemos de um veterano
remonta a 166 (CIL XVI, 124). Mas, na realidade, os urbaniciani devem ter beneficiado
do conubium no fim do seu tempo de serviço, nas mesmas circunstãncias que os
pretorianos. O que acontece é que eles tiveram ocasião de fazer valer ainda menos
frequentemente do que os pretorianos, na medida em que o seu recrutamento
continuou a assentar muito em mancebos da península itálica, mesmo em fases de
conflitos e depois do advento de Septímio Severo.
A questão dos diplomas entregues aos soldados dos numeri veio a ficar esclarecida a
partir do momento em que os estudiosos deixaram de considerar que este termo
corresponderia a um tipo específico de corpo de tropas, servindo, em vez disso, para
designar globalmente qualquer género de formação militar. Na maior parte dos casos,
os numeri mencionados nos diplomas consistem em vexillationes, isto é, destacamentos
de unidades de auxiliares pré-existentes. Apenas seis dos quinze documentos
conhecidos dizem respeito a soldados procedentes de unidades étnicas. Um diploma,
datando do reinado de Antonino-o-Pio, do qual infelizmente não se conseguiu
reconstituir as suas cláusulas, destinou-se a cavaleiros mauri (CIL XVI, 114). Os
restantes cinco, redigidos entre 120 e 126 d.C., tiveram como beneficiários archeiros
palmirenos, que apenas receberam o direito de cidadania a título pessoal, sem o
conubium (CIL XVI, 68). Esta restrição corrobora a natureza muito peculiar destas
unidades pouco romanizadas, que conservavam as suas próprias indumentárias e
técnicas de combate.
A outorga da cidadania a tais soldados não recompensava apenas os actos de bravura
excepcional que tivessem empreendido nos campos de batalha. Ela sancionava
principalmente um compromisso com uma determinada duração, difícil de apurar, ao
serviço de Roma, na sequência de um tratado concluído com o povo de origem dessas
tropas. De facto, como mostrou P. Le Roux, contrariamente ao tempo de serviço
396
exigido aos auxilia, esta duração de «contrato» diferia consoante as unidades étnicas em
questão.
Quanto aos equites singulares Augusti, tiveram de aguardar pelo reinado de Septímio
Severo (193-211) para beneficiarem do conubium e do direito de cidade, no fim do seu
serviço, isto se nos ativermos ao primeiro diploma conhecido a eles respeitante (CIL,
XVI, 144). Ora, desde 212, por iniciativa de Caracala, todos os habitantes livres do
Império passaram a ser cidadãos romanos.
Outros documentos
1160
E. Smallwood, Documents illustrating the Principates of Nerva, Trajan and Hadrian, Cambridge, 1966, nº 330 (papiro
redigido em Caesarea, Síria-Palestina, 150 d. C.).
397
obtidas pelos veteranos. Os que tivessem saído dos corpos de tropas mais prestigiosos,
em cujas primeiras filas estavam os pretorianos, gozavam simultaneamente de
vantagens materiais, em terra ou em dinheiro e privilégios jurídicos, na maior parte
das vezes simbólicos, verdade se diga.
No escalão imediatamente inferior, os legionários geralmente não poderiam aspirar a
mais do que benefícios materiais, mesmo quando algumas constituições imperiais lhes
concediam episodicamente o conubium com peregrinas, em circunstâncias particulares.
Mais abaixo estavam os auxilia e os marinheiros, que se tinham de contentar com uma
promoção do seu estatuto pessoal.
Assim, a entrega de um diploma militar não se achava ligada, de modo algum, a um
prestígio menor da arma em que o soldado tivesse servido. Ela dependia, acima de
tudo, do tipo de recompensa que o miles recebia no fim da sua carreira, já que tal
documento servia para que ele pudesse valer os privilégios jurídicos que o seu estatuto
de veterano lhe conferia. Convém também ter em conta o peso do costume, que levava
a administração romana a continuar a fornecer diplomas aos veteranos dos corpos de
tropas que começaram a recebê-los em determinadas circunstâncias, mas não aos
outros, para os quais simplesmente não se estabelecera uma tradição idêntica.
A melhor prova radica no facto de os únicos veteranos legionários a receberem
diplomas terem sido os da Iª e IIª legiões Adiutrices (Adiutrix, no singular): com efeito,
estas haviam sido inicialmente formadas com marinheiros recrutados para as frotas de
Misenum e de Ravenna, em 68 d. C. (Tácito, Hist. 1.6 e 3.50; Suetónio, Galba, 12; Plutarco,
Vida de Galba, 15). Os soldados incorporados nestas duas unidades, antes da sua
assimilação às outras legiões, foram rapidamente desmobilizados, os da primeira em 22
de Dezembro de 68, e os da segunda em 7 de Março de 70. Nestas duas datas, eles
receberam diplomas, na medida em que só obtinham a cidadania na altura do seu
licenciamento. Tais documentos apresentavam-se redigidos de acordo com um
formulário similar aos concedidos aos veteranos das frotas.
No presente caso, trata-se de legiões inteiras, formadas numa conjuntura particular, o
das guerras civis de 68-69. De forma idêntica, os 22 veteranos da Xª legião Fretensis
obtiveram, por fim, do governador da Judeia, não um verdadeiro diploma, mas um
certificado ou declaração a apresentar ao prefeito do Egipto. Isto não era estranho no
país nilótico, onde o número reduzido de cidadãos nos primeiros tempos que se
seguiram à criação da província terá muitas vezes constrangido as autoridades a
recrutarem Egípcios para as legiões da guarnição provincial, infringindo as normas
observadas no âmbito do arrolamento. Mas, para lhes ministrarem uma formação
militar inicial romana, era-lhes imposta uma passagem prévia pela marinha, o que não
incomodava esses homens, tanto mais que esta arma possuía um certo prestígio no
Egipto. Quanto à cidadania, apenas a recebiam uma vez cumprido o tempo de serviço,
enquanto legionários.
Compreende-se, portanto, a importância especial que assumiria, aos olhos dos
referidos veteranos, o direito ao casamento. Segundo W. Eck, os veterani da Xª legião
Fretensis foram possivelmente recrutados aquando da revolta judaica de Bar Kochba
(132-135), altura em que as autoridades romanas talvez arrolassem, a título
excepcional, peregrini para algumas das legiões que participaram na repressão do
movimento subversivo.
A necessidade desses documentos, os diplomas militares, para os legionários que não
tinham a condição de cidadãos, fez-se sentir especialmente no Egipto, cuja população
se encontrava repartida por uma série de categorias sociais e jurídicas muito
hierarquizadas1161. Ora sabe-se que esta situação complexa obrigava as autoridades a
proceder a operações de verificação do estatuto pessoal dos seus administrados,
1161
F. Mitthof, «Soldaten und Veteranen in der Gesellschaft des römischen Ägypten (1.-2. Jh. N. Chr.), in G. Alföldy, B.
Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer…, pp. 377-405.
398
conhecidas oficialmente pela designação de épicrisis: quando o prefeito do Egipto dava
as suas audiências, esses homens compareciam diante de um oficial delegado, que
recolhia os seus nomes e os documentos que apresentavam num registo, o tomos
épicriseôn. Depois, era possível solicitar uma cópia nominativa de tal declaração, vertida
para grego, por assim ser mais facilmente utilizável a nível local. Foram estras
traduções para a língua helénica que se conservaram, escritas sobre papiro. Em duas
declarações de épicrisis, aparece mencionada uma categoria particular de veteranos, os
chamados «veteranos sem bronze» (BGU, I, I, 113; CIL XVI, p. 143, nº 4, l. 1-5, datando
de 140 d. C.):
«Extracto do registo dos epicriseis de Gavius Avidius Heliodorus, antigo prefeito [….]: os
veteranos cujos nomes se seguem, que serviram nas alas, nas coortes e nas duas frotas de
Misenum e da Síria, que receberam a cidadania romana, juntamente com os seus filhos e
descendentes, e o direito ao casamento legal com as esposas que tinham no momento em que
lhes foi outorgada a cidadania ou, no caso dos celibatários, com aquelas que desposaram
depois, na condição de que cada um só case com uma mulher; assim como os outros veteranos
“sem bronze” […]».
Na sua colectânea Corpus Papyrorum Latinarum (Wiesbaden, 1958), R. Cavenaile,
entendeu que os «veteranos sem bronze» corresponderiam aos legionários de origem
peregrina, que não podiam obter um verdadeiro diploma, contentando-se só com uma
declaração textual, redigida numa tábua de madeira (eventualmente revestida com
uma camada de cera) ou num papiro. Esta interpretação foi afinada por S. Daris, nos
Documenti per la storia dell’esercito romano in Egitto (Milão, 1964), graças à descoberta da
cópia de um excerto de registo de épicrisis entregue a um veterano (P. Clermont-
Ganneau, com data de 159 d. C.). Eis o seu conteúdo:
«Marcus Antonius Pastor, que pretende residir actualmente em Syene, idade [em branco]; Marcus Valerius
Antonius Ammonianus, seu filho [em branco]. O dito Pastor apresentou um certificado de bronze selado,
cópia da estela de bronze, atestando que ele serviu e recebeu uma aposentação honrosa, a datar do 5º dia
antes das calendas de Janeiro, sob o consulado de Gaius Iulius Severus e de Titus Iunius Severus, da I ª
Cohors Augusta Praetoriana Lusitanorum, Prefeito Quintus Aelius Pudentillus […]».
Para S. Daris, a expressão «sem bronze» não pode reportar-se a um só corpo de tropas,
já que, nesse caso, a administração teria certamente empregue um termo mais
adequado. Demonstra, por outro lado, que os veteranos legionários, quando tivessem
sido recrutados segundo as regras em vigor, não estariam, ao que tudo indica, sujeitos
à épicrisis, dado que eles jamais figuram nas declarações e não poderiam apresentar um
documento que não lhes fora entregue. Cabe ver então nos «veteranos sem bronze»
todos aqueles que não tinham possibilidade de mostrar um diploma militar à épicrisis.
Nesta situação, além dos legionários peregrini e egípcios1162, conhecemos também
auxiliares: por exemplo, M. Lucretius Clemens, da II cohors Itureorum, que apresentou ao
prefeito da IIª legião Traiana Fortis uma carta do prefeito do Egipto, certificando que ele
terminara o seu tempo de serviço e fora licenciado (P. Mich., inv. nº 2930, SB, IV, 7362;
CIL XVI, p. 144, nº 8, 188 d. C.):
«Extracto do registo das épicriseis […]: épicrisis de Longaeus Rufus, antigo prefeito, por
procuração de Allius Hermolaus, tribuno da II legio Traiana Fortis, do 25 Epeiph ao 29 Thoth do 26º
ano do [nosso] senhor Aurelius Commodus Antoninus Caesar. Depois de outras [rúbricas], na
página 1: M. Lucretius Clemens, que deseja residir actualmente no nomo Arsinoita, idade [em
branco]. O veterano acima nomeado declarou ter servido na II cohors Itureorum, e apresentou
uma carta de Pactumeius Magnus, antigo prefeito, que atesta que depois de servir na coorte
acima referida, ele recebeu a sua aposentação honrosa em 31 de Dezembro, sob o consulado de
Aurelius Commodus Antoninus Pius e de Quintillus».
Citemos igualmente o caso de Lucius Cornelius Antas, veterano da ala Augusta, que, na
altura de se submeter à épicrisis, juntou ao seu diploma militar um documento
1162
Para um bom apanhado sobre esta matéria: P. Cosme, «Les véterans sans diplôme en Égypte», Cahiers du Centre
Gustave Glotz, XVIII (2007), pp. 55-65.
399
contabilizando os seus anos de serviço (P. Hamb. 31; CIL XVI, p. 143, nº 2, l. 5-20, 103 d.
C.):
«Lucius Cornelius Antas, querendo residir actualmente no nomo Arsinoita, [com a sua mulher]
e seus filhos, Heraklidés, idade [em branco], Crispina, idade [em branco] e Ammonarion, idade
[em branco]. O dito Antas, acima mencionado, apresentou um certificado de bronze, do qual se
consignou aqui uma cópia, atestando que ele se registou com a sua mulher e os seus filhos, da
seguinte maneira: Lucius Cornelius Antas, filho de Heraklidés, castris, duplicarius na ala Augusta, de
que Messius Iulianus é o prefeito, Antonia, irmã de Crispus, sua mulher, Heraklidés, seu filho,
Crispina, sua filha, Ammonarion, sua filha. Ele juntou também uma cópia dos arquivos [do
templo de Castor e Pollux, incluindo a declaração que serviu durante 26 anos e recebeu a sua
aposentação honrosa; ele apresentou três testemunhas para a sua identidade»1163.
Em face dos privilégios concedidos, o que mais contava não era o suporte do
documento exibido pelo veterano, mas a própria natureza do acto. Afora as suas
diferenças de forma e de suporte, todos estes documentos têm um ponto em comum, o
de não procederem de uma constituição imperial afixada em Roma, sendo eles
entregues por um governador provincial: num caso, o prefeito do Egipto, noutro, o
legado propretor da Judeia. Por seu lado, o texto ao qual os mesmos aludem era
afixado na capital da província: no pórtico do santuário do divino Augusto, em
Alexandria (a versão egípcia do templo do divino Augusto de Roma), no que respeita
aos documentos egípcios.
O papel desempenhado pelos governadores provinciais e a indicação dos diferentes
locais de afixação revelam a complexidade inerente aos procedimentos de
desmobilização das tropas, que, à semelhança do dilectus, punham em acção várias
instâncias administrativas, que, em cada etapa, deviam poder comunicar entre si.
Assim, o estudo deste processo talvez sirva para esclarecer a questão dos veteranos
«sem bronze». O facto de os legionários não receberem um diploma militar, de que os
auxilia os obtinham antes de cumprirem o seu tempo de serviço, mostra que estava em
causa um documento que atestava os privilégios jurídicos conferidos ao seu detentor, o
qual não se pode assimilar a um simples certificado de aposentação. Importa dizer que
também existiam estes certificados, dos quais sobreviveram alguns exemplares. O mais
divulgado consiste numa tábua de madeira revestida por uma camada de cera, que se
preserva no Museu Egípcio do Cairo («Tábua do Cairo», 29811; CIL XVI, p. 143, nº 1;
ILS 9060; CPL 113, com data de 4 de Janeiro de 122, Faium):
M’ Acilio A{va}viola et Pansa cos. / pridie Nonas Ianuarias /T. Haterius Nepos, praef. Aeg., / L.
Valerio Nostro, equiti / alae Vocontiorum turma / Gaviana emerito, hone/stam missionem dedit […]
«Sob o consulado de Marcus Acilius Avaviola e de Pansa, na véspera das nonas de Janeiro, Titus
Haterius Nepos, prefeito do Egipto, concedeu a aposentação honrosa a Lucius Valerius Noster,
cavaleiro que terminou o seu serviço na Ala dos Voconces, na turma de Gavius […]».
O formulário empregue é bastante mais simples que os dos diplomas militares
propriamente ditos: o nome do prefeito do Egipto, citado logo a seguir à data, precede
o do beneficiário e a designação da sua unidade. O texto finda com a referência à
honesta missio e, na parte inferior da tábua, através da subscriptio do prefeito1164. Este
género de documento era igualmente redigido fora do Egipto, sem obedecer, de
maneira tão rigorosa, a um modelo expositivo, como sucedia nos diplomas militares:
em 1964, em Han sur Lesse (Bélgica), descobriu-se uma placa de bronze que,
inicialmente, se supôs fazer parte de um diploma, mas, depois, se verificou
corresponder à subscriptio de uma tabula honesta missionis, ou seja, da «assinatura» de
um certificado de boa conduta (AE, 1980, 647, 19 de Janeiro de 108):
1163
Para comentários adicionais sobre M. Lucretius Clemens e L. Cornelius Antas: cf. «HONESTA MISSIO. Zu
Entlassungsurkunden und verwandten Texten», in M. A. Speidel, Heer und Herrschaft im Römischen Reich der Hohen
Kaiserzeit, Estugarda, 2009, pp. 340-341.
1164
«HONESTA MISSIO. Zu Entlassungsurkunden und verwandten Texten, in M. A. Speidel, Heer und Heerschaft…, p.
336
400
«Concedemos uma honesta missio; Claudius Livianus, prefeito do pretório, subscreveu [este
documento] em 19 de Janeiro, sob o consulado de Gallus e de Bradua».
As semelhanças com a «Tábua do Cairo» saltam à vista: com efeito, vemos, numa das
faces da peça de bronze, os mesmos elementos que no suporte de madeira, mas numa
ordem diferente, à excepção do nome do beneficiário, que não resistiu à usura do
tempo (provavelmente seria um pretoriano): em primeiro lugar, a menção à honesta
missio, secundada pelo nome do prefeito do pretório, terminando com a data; na outra
face, enumeram-se os nomes de sete testemunhas, garantindo a autenticidade do
documento.
Estes certificados de boa conduta eram entregues quando os interessados os
solicitavam. Mas eles emanavam do governador provincial e não do imperador. Uma
descoberta relativamente recente prova, aparentemente, que ao contrário dos diplomas
militares, também se poderiam entregar tabulae honestae missionis a legionários: num
dos suportes de madeira achados no forte legionário de Vindonissa (hodierna Windisch,
Suíça), aparece, efectivamente, o texto de um édito de Domiciano, de 91 d. C. (AE, 1991,
1261), pelo qual se concede a honesta missio aos soldados da XIª legião Claudia, que na
altura estava de guarnição na Germânia Superior. Verifica-se que este documento
destinado aos legionários difere dos outros certificados de aposentação até agora
conhecidos, na medida em que emana directamente do imperador, e não de um
governador provincial ou de um comandante de corpo:
«O imperador César, filho do divino Vespasiano, Domiciano Augusto Germânico, sumo
pontifex, no seu 11º mandato tribunício, aclamado imperator pela 21ª vez, cônsul pela 15ª vez,
censor perpétuo, pai da pátria, concedeu a aposentação honrosa aos soldados da XIª legião
Claudia Pia, Fidelis, incorporados na mesma sob os consulados de Caius Luccius Telesinus e de
Caius Suetonius Paullinus, de Lucius Iulius Rufus e de Fonteius Capito, sob o comando de Lucius
Iavolenus Priscus, legado de Augusto propretor, dos quais a seguir se apresentam os nomes […]
[Feito] sob o consulado de Quintus Valerius Vegetus Publius Metilius Nepos».
Para concluir esta alínea, prestemos um derradeiro esclarecimento sobre os veteranos
«sem bronze» referidos nas fontes papirológicas: talvez estivessem inseridos nesta
categoria os soldados cujo licenciamento fora deixado ao cuidado apenas do
governador de província, em razão do caso particular que eles representariam (por
exemplo, os marinheiros egípcios recrutados nas legiões). Seriam chamados «sem
bronze» porque os seus nomes não constariam indubitavelmente das tábuas de bronze
afixadas em Roma. Em contrapartida, a situação desses milites era regulamentada
mediante uma decisão do governador da província onde os mesmos haviam estado de
guarnição.
Os soldados aposentados, que estavam a criar bases para uma nova vida, em geral já
com uma idade relativamente avançada, viam-se gratificados por uma substancial
quantia em dinheiro, bem como passavam a usufruir de privilégios significativos.
Chamava-se praemium militiae à recompensa em numerário ou sob a forma de um lote
de terra, enquanto em relação às prerrogativas e privilégios concedidos a um veteranus
se dava a designação de emeritum (Suetónio, Augusto, 24, 2; Digesta, 49.16.5.7). A
concessão deste conjunto de privilégios representava, realmente, um importante
contributo para que um militar pudesse «construir» uma existência civil depois de
servir nas fileiras. Augusto atribuiu aos veteranos vantagens quase exorbitantes que,
401
anos depois, foram restingidas. De facto, o primeiro imperador de Roma, ainda no
rescaldo das guerras civis, outorgou uma imunidade fiscal total aos ex-militares,
extensiva aos seus filhos, esposas e pais. A partir dos Flávios, tal imunidade cingiu-se
aos familiares que vivessem com o veterano. Mais tarde, desde o reinado de Septímio
Severo, o património fundiário dos veterani passou a ser tributável. Assim, os
privilégios variaram ao longo do tempo. Mais: também dependiam do número de anos
de serviço, do posto e do ramo em que o soldado estivera nas forças armadas. Além
disso, as isenções legais atribuídas aos veteranos nem sempre foram permanentes,
frequentemente tendo validade apenas para determinado período.
Havia, igualmente, privilégios que apenas se outorgavam a ramos ou a categorias
específicas de soldados. Assim, Vespasiano concedeu aos pretorianos desmobilizados
imunidade no que respeita aos impostos sobre as parcelas de terra que tinham recebido
do fundador da dinastia dos Flávios e, também, sobre quaisquer bens de que fossem
proprietários até à altura da obtenção deste privilégio (CIL XVI 125).
Em 44 d. C., por determinação expressa de Cláudio, todos os soldados se viram
igualados à condição de homens casados, o que melhorou o estatuto dos veteranos:
agora, um veteranus, a par de um seu homólogo mais jovem, ganhava os benefícios
fiscais de um indivíduo casado (Díon Cássio, Hist. rom. 60.24.1). Na realidade porém,
não sabemos ao certo se um veterano usufruía deste estatuto para sempre ou se era
obrigado a casar-se dentro de um certo espaço de tempo para desta forma o manter.
Os veteranos estavam dispensados de levarem a cabo deveres municipais (munera
personalia e mixta) e de exercer cargos cívicos (Digesta, 49.18.2 e 49.18.5; Codex
Theodosianus, 7.20.2), mas não ficavam isentos das taxas locais (vectigalia e munera
patrimonii; Digesta, 49.18.2.4). Dentro desta categoria, outra série de privilégios
facilitava as suas vidas: os veteranos ficaram livres de efectuarem trabalhos pesados
por iniciativa de Augusto, o que também se aplicava aos seus parentes mais chegados
(mulheres, filhos e pais). Estes direitos foram confirmados por Domiciano (CIL XVI, p.
166, nº 12 = FIRA I (2ª edição), 76, l. 15ss.) e pelos imperadores subsequentes. Mais
tarde, Constantino-o-Grande e os seus sucessores confirmaram novamente isenções de
impostos sobre o comércio para os veteranos (Codex Theodosianus, 7.20.4, 13.1.2, 13.1.7).
No entanto, em 385 d. C., esta isenção fiscal limitava-se a transações até 15 solidi (Cod.
Theod. 13.1.14; 385).
O número de familiares de um veteranus que gozava dos privilégios atribuídos ao
último foi reduzindo com o tempo, embora desconheçamos os detalhes deste processo.
Em determinado momento do século III, o mais tardar, os descendentes de um
veterano já não tinham mais imunidade ou, então, se desta usufruíam era só
condicionalmente. A denominada tabula Brigetionensis diferencia as isenções do
imposto individual (capitatio) de acordo com o número de stipendia que o veterano
cumprira (AE 1937, 232 = FIRA I [2ª edição], 94): depois de terminado o período
completo de serviço (completis stipendis legitimis), quatro pessoas ficaram isentas,
enquanto, em contrapartida, com uma honesta missio após 20 anos nas fileiras, ou com
uma aposentação em resultado de ferimentos sofridos em combate, apenas foram
concedidas duas isenções, para um veterano e a sua mulher. Isto significa, ao mesmo
tempo, que era possível, como anteriormente ou mais tarde, obter um licenciamento
honroso volvidos 20 anos, mas o número de stipendia que se esperava que um soldado
atingisse situava-se acima dos 20.
Depreende-se, igualmente, que a atribuição dos privilégios diferia do ramo a que o
veterano tivesse pertencido nas forças armadas: é algo que se atesta num decreto de
Diocleciano e de Maximiano, que negaram a um soldado auxiliar a isenção de funções
políticas e serviços pessoais (honorum et munerum personalium vacatium), já que a mesma
só se concedia habitualmente a homens que tivessem sido desmobilizados prematura
mas honrosamente de uma vexillatio ou legião, findos 20 anos de serviço (Codex
402
Iustinianus 10.55.3). No dia 17 de Junho de 325, Constantino I estabeleceu novas normas
sobre as imunidades dos veteranos e do seu estatuto (Codex Theodosianus 7.20.4).
Doravante, um soldado que tivesse militado com os comitatenses ou os ripenses ficava
isento do pagamento do imposto individual, tanto para ele próprio como para a sua
esposa, depois de cumprido o tempo integral de serviço; caso fosse desmobilizado
honrosamente a seguir «apenas» a 20 anos de serviço, recebia a isenção só a título
pessoal. Esta disposição constituiu uma novidade para os ripenses: estes, até aí,
obtinham tais privilégios apenas uma vez completados 24 anos de serviço.
Os restantes veteranos recebiam uma única isenção relativamente a uma capitatio. Os
comitatenses que abandonassem o exército por razões de saúde tinham direito a uma
isenção fiscal para duas pessoas, enquanto os inválidos de guerra pertencentes aos
ripenses que tivessem entre 15 a 23 stipendia na altura do licenciamento recebiam
isenção só para eles, privilégio que poderia abranger outras pessoas, contanto que o
veterano acumulasse 24 anos de serviço.
1165
Cf. J. C. Mann, Legionary Recruitment and Veteran Settlement during the Principate, p. 32 e 58.
403
O édito de Constantino-o-Grande, em que se definiram novas regras para os vários
tipos de bónus dos veteranos, oferece-nos uma visão minimamente ilustrativa sobre as
circunstâncias já na Antiguidade Tardia: um veterano que desejasse montar um
negócio, recebia 100 folles isentos de impostos. Se pretendesse dedicar-se à agricultura,
obtinha um pedaço de terra, um par de bois, 100 modii (medida de capacidade) de
sementes, 25 folles para diversas aquisições e uma isenção de taxas vitalícia para o seu
lote (Cod. Theod. VII, 20, 3). Em 364, Valentiniano revogou a concessão da gratificação
em dinheiro: a partir de então, um antigo soldado da guarda de corpo (protector)
recebia quatro bois e 200 modii de sementes. Os outros milites, independentemente de
serem honrosamente aposentados no fim do seu tempo de serviço ou reformados por
motivos de saúde, tinham direito igualmente a dois bois e a 100 modii de grão (Cod.
Theod. VII, 20, 8).
Durante o Alto-Império, se um veterano obtinha uma gratificação superior a 3 000
denarii e a investisse, com uma taxa de juros anual de 6%, podia contar com 300 denarii
por ano ao longo de 14 anos, pelo que ganhava mais do que o mínimo requerido para a
sua subsistência. Com pagamentos anuais de 225 denarii, o montante total podia durar
24 anos, permitindo que um veterano gozasse de um resto de vida tranquilo e sem
privações1166.
Afora isto, é provável que um número não negligenciável de ex-militares conseguisse
acumular poupanças durante o tempo do seu serviço, a que se adicionavam, por vezes,
também proventos que advinham de rendas e de contratos de aluguer. Sabe-se que,
esporadicamente, veteranos ou as suas famílias aumentavam as suas fortunas por meio
de empréstimos privados de pequenas quantias de dinheiro acrescidas de juros 1167.
Os soldados e os veteranos também recebiam heranças, por vezes avultadas, das suas
respectivas famílias ou até de camaradas. C. Iulius Nepotianus desfrutou de um
respeitável e desafogado estilo de vida que, por certo, não seria possível apenas
tomando em consideração as suas poupanças militares: obteve a soma de 1200 dracmas
ao arrendar um jardim provido de palmeiras (P. Strasb. 3.336; 212-213 d. C.). O
veterano legionário L. Bellienus Gemellus representa outro caso de um indivíduo que
auferia de rendimentos fora do âmbito militar: exerceu a actividade de agiota ou
prestamista, em meados do século II d. C., tendo sido igualmente proprietário de
numerosas terras e explorações agrícolas na região de Arsinoe, no Egipto1168.
Analogamente, em finais do século II, Iulius Apolinaris, antigo soldado da Cohors I
Apamenorum, viveu o resto da sua existência na sua cidade-natal, também no país
nilótico, em Karanis, onde se destacou como um rico proprietário fundiário (BGU 1,
18=W.Chr. 398; 69 d. C.; BGU 1, 180 = W. Chr. 396; 172 d. C.); o mesmo homem aparece
repetidas vezes na qualidade de guardião, servindo como tutor da sua irmã, de um
cidadão romano (provavelmente seu parente) e dos filhos de outro veterano (BGU
1.168; 4.1032; 15.2461).
Uma vez aposentados, os veteranos tinham maneira de se dedicar a uma profissão,
caso aprendessem um ofício durante o tempo em que estiveram no exército,
continuando a exercê-lo na vida civil. Isto sucedia especialmente com militares que se
tivessem especializado como artífices ou adquirido razoáveis conhecimentos técnicos e
médicos. O veterano, por exemplo, que se fixou como construtor naval em
Mogontiacum (Germânia superior), junto ao Reno, aprendeu decerto esta arte no seio da
sua antiga unidade, que aí se encontrava de guarnição, a Legio XXII Primigenia pia
1166
L. Wierschowski, Heer und Wirtschaft. Das römische Heer der Prinzipatszeit als Wirtschaftsfaktor, Bona, 1984, p. 89, n. 305.
1167
P. Oxy. 12.1471 (81 d. C.; 38 dracmas); SB 1.7 (216d. C.; 72 dracmas; arrendatário: um veterano ou o seu filho); SB
1.4370 (229 d. C.; 900 dracmas); BGU 7.1657 (240 dracmas, trigo, centeio, sementes para vegetais; 231 d. C.; P. Yale 1.60
(6/5 a. C.; 102 dracmas).
1168
N. Hohlwein, «Le vétèran Lucius Bellienus Gemellus, gentleman-farmer au Fayoum», Études de Papyrologie 8 (1957),
pp. 69-91; F. Mitthof, «Soldaten und Veteranen in der Gesellschaft des römischen Ägyten (1.-2 Jh. N. Chr.)», in G.
Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft, p. 393ss.
404
fidelis, e lucrou com tal trabalho enquanto civil. Grosso modo, dispomos de parcos
testemunhos documentais sobre as ocupações profissionais dos veteranos, isto se
deixarmos de parte a agricultura. Apesar de tudo, sabemos de veterani que ganharam a
vida como comerciantes e diversos artigos, negociando em vestuário e na venda de
gládios (vestiarius, negociator gladiarius), construtores de embarcações (naupegus; acima
vimos um exemplo); encontramos referências a ex-militares que eram donos de prensas
de azeite, de tinturarias e tijolarias1169.
Não fica claro até que ponto os veteranos proprietários de quintas (villae rusticae),
oficinas, lojas e pequenos negócios realizariam as tarefas pessoalmente ou, se, em vez
disso, as confiassem a terceiros. O certo, porém, é que eles também alancavam com
pesados fardos: não só tinham de prover às suas próprias necessidades diárias como
também, possivelmente, das dos seus eventuais agregados familiares, além de
precisarem de adquirir provisões para a nova vida civil. Em 136, um antigo legionário
de Karanis arrendou uma habitação aparentemente com o objectivo de poder comprar
uma propriedade sem restrições (SB 6.936). Em 3 de Fevereiro de 154, Iulius Niger,
então com 47 anos de idade, que servira na Ala veterana Gallica, adquiriu uma casa e o
terreno em seu redor por 800 dracmas. A julgarmos pela data em que se efectuou a
compra, deduzimos que Niger fora recentemente desmobilizado (P. Mich. 6.428).
1169
Vestiarius: CIL V, 774; negotiator gladiarius: CIL XIII, 8877 + 13,4, p. 107; naupegus: CIL XIII, 11861; proprietário de uma
prensa de azeite: P. Fay.91; de uma tinturaria: P. Osl. 3.139; de uma oficina de fabrico de tijolos: CIL XIII, 64568; O. Paret,
«Der Privatziegler G. Longinius von Großbottwar», Germania 10 (1926), pp. 67-70; H.-P. Kuhnen, «Die Privatziegelei des
Gaius Longinius Speratus in Großbottwar, Kreis Ludwigsburg. Handel und Wandel im römischen
Südwestdeutschland», Fundberichte Baden-Würtemberg 19(1994), pp. 255-264.
405
origem, mas as recentes descobertas de diplomas militares do Danúbio e dos Balcãs
provam que, dos soldados auxiliares que haviam sido recrutados fora da província
onde estiveram acantonados, muitos voltavam aos sítios onde nasceram ou cresceram,
partindo especialmente em direcção da Trácia e da Mésia1170.
Os legionários também faziam o mesmo: em 170, um miles da Legio V Macedonica, que
viera ao mundo em Troesmis, a canabae desta legião (que mais tarde foi transferida para
a Dácia), tornou ao mesmo local depois de cumpridos 25 stipendia (CIL III 7505).
Noutros casos, não conseguimos explicar os motivos que presidiram à escolha de
determinado sítio por parte de um veterano. Resta-nos apenas especular quanto ao que
induziu M. Aurelius Macenius, que nasceu na Capadócia e serviu em Bonna (Germânia
Inferior) como miles da Legio I Minervia, a retirar-se para Novae, na Mésia Inferior (AE
1987, 861).
406
de soldados que tivessem servido nas unidades de auxilia. É inquestionável que os
legionários, que tanto podiam ter nascido já com o estatuto de cidadãos ou obtê-lo a
dada altura, experimentavam acrescida familiaridade com as instituições municipais e
a administração romana do que os seus camaradas peregrini, homens livres mas sem a
civitas Romana.
Mas deve ter havido mais motivos. Dos antigos legionários que tomavam parte activa
na vida cívica, vários deles atingiram postos elevados durante o serviço militar. Isto
sugere que aqueles que eram desmobilizados como simples soldados fugiam aos
custos associados ao exercício de cargos municipais, visto que a isenção fiscal
(immunitas) aplicável aos veteranos não incluía as obrigações resultantes dessas
funções (Digesta 49.18.5; Codex Iustinianus 10.44.1-2). De facto, um veterano que se
tornasse membro do conselho de uma cidade perdia o benefício da sua imunidade;
assim, caso assumisse tal dever, ele teria negociar antecipadamente uma situação
especial com a comunidade, aspecto, aliás, estipulado na legislação severiana (Digesta,
XLIX, 18, 5; Codex Iustinianus, X, 44, 1). Era normal, para os funcionários municipais,
pagarem uma taxa de entrada antes de ficarem empossados nos cargos (summa legitima
ou summa honoraria). Além disso, estavam previstas mais despesas em nome da cidade
e dos seus habitantes. Os veteranos das legiões lidariam mais facilmente com estas
obrigações do que os das tropas auxiliares.
Façamos uma referência igualmente aos antigos soldados típicos que, contrariamente
aos camaradas detentores de patentes mais altas, não tinham sido incumbidos de
tarefas e responsabilidades administrativas ao longo do tempo em que serviram nas
fileiras, daí que podiam alimentar dúvidas quanto ao desempenho de actividades deste
género. Não esqueçamos, também, que nas cidades cuja existência foi pautada por uma
vertente demarcadamente civil, e nas quais já havia uma elite municipal extensa e bem
estabelecida, a incorporação de veteranos na vida política seria encarada como algo
sem valor e de pouco interesse1173. No entanto, os conselhos (ordo decurionum) nas
cidades fundadas com o estatuto de colónias de veteranos comportaram certamente
alguns antigos militares ou os seus descendentes. Assim, os membros originais da ordo
seriam, na sua maioria, veteranos, mas, em breve, nela ingressariam civis, talvez
administradores e artífices (fixados aquando da fundação das colónias), descendentes
de libertos, novos cidadãos e, até, peregrinos.
Aparentemente, os filhos dos veteranos não alimentaram grande interesse por cargos
ou funções municipais. Nas comunidades situadas junto do Reno e do Danúbio,
apenas cerca de 1% de filhos ou netos de veterani terão efectivamente participado na
vida municipal, os quais muitas vezes se contentaram apenas em tomar assento como
decuriões nos conselhos1174.
Reportemo-nos também a outro fenómeno assinalável nos conselhos municipais
citadinos: em vários deles havia militares ainda no activo a exercerem funções: em
Madaure (ILAlg, I, 2130), na Úmbria, um jovem pretoriano chamado Caius Ancharius
Verus (CIL XI, 5217) ocupou o cargo de decurião de Fulginae e o de edil em Forum
Flaminii; verificam-se casos semelhantes nos Ligures Baebiani (CIL IX, 1459) ou em
Auximum, no Picenum (CIL, 5843).
Nos primeiros três séculos da nossa era, de acordo com os cálculos de L. Mrozewicz,
somente uns 5,8% dos veteranos conhecidos nas províncias do Reno e do Danúbio
desempenharam um papel activo na vida municipal1175. A maioria deles serviu nas
legiões, aproximadamente metade consistindo em simples milites gregarii e os restantes
1173
Quanto mais importante fosse a cidade em que o veteran se estabelecesse, menos oportunidades concretas ele teria
de participar na vida municipal, na qual se envolveriam, quando muito, militares mais graduados como os centuriões.
Para uma abordagem particularmente invulgar, consulte-se o artigo de B. Rossignol, «Élites locales et armées: quelques
problèmes», in M. Cébeillac-Gervasoni e L. Lamoine (eds.), Actes du Colloque Les Élites locales et leurs facettes. Les élites
locales dans la monde hellénistique et romain, Roma/Clermond-Ferrand, 2003, pp. 349-380.
1174
G. Wesch-Klein, «Recruits and Veterans», p. 448.
407
tendo saído do exército com postos mais elevados. As inscrições que documentam as
actividades municipais dos veteranos nessa área datam, quase todas, do período
situado entre os reinados de Antonino-o-Pio e de Severo Alexandre. Repare-se que,
precisamente neste espaço de tempo se verificou um recrudescimento na produção de
inscrições, além de um aumento do dinamismo social e uma crescente urbanização das
regiões mencionadas. De entre os veterani sobressai C. Sertorius Tertullus, soldado da
Legio XVI, que veio a ocupar o cargo de curator civium Romanorum Mogontiaci (CIL V
5747); citemos outro caso, o de T. Florius Saturninus, que também enveredeou pela vida
política em Mogontiacum, enquanto membro do conselho da cidade (ordo civium
Romanorum Mogontiaci), depois de terminar o serviço militar com o posto de signifer da
Legio XXII Primigenia piae fidelis Alexandrinae (CIL XIII 6769).
Outras províncias, que não as do Reno e do Danúbio, oferecem basicamente a mesma
imagem. No Egipto, os veteranos atestam-se raramente na vida municipal. Até no
Norte de África, uma das províncias mais antigas do império, os veteranos parecem ter
exercido honoráveis cargos cívicos mas com certas reticências ou hesitações.
Porém, as funções de carácter religioso despertavam aparentemente mais o interesse
dos veteranos. A respeitável posição ocupada pelo flamen terá sido particularmente
estimada, embora o número de veteranos no cômputo total dos flâmines seja muito
reduzido. Como seria expectável, os que levaram a cabo as actividades de flâmines
correspondiam, em geral, em ex-militares pertencentes à oficialidade intermédia ou
superior. Os veteranos participavam de bom grado na vida religiosa da sua localidade,
como membros ou doadores de sociedades de culto. Com efeito, numerosos
monumentos dedicados por veteranos enfatizam a sua estreita conexão com os deuses
estatais romanos, bem como com divindades de origem oriental, locais e outras, ainda,
assimiladas a entidades divinas romanas. Assim, um tal C. Caesellius Vitalis, veterano
da Legio I Italica, nessa ocasião estabelecido em Novae, ofereceu um altar com mais de
um metro de altura em honra de Iupiter Optimus Maximus e Iuno Regina (AE 1998, 1136).
Os veteranos agradeciam, amiúde, aos deuses e deusas o facto de terem logrado gozar
de uma aposentação afortunada ou, então, cumpriam os votos feitos na altura em que
se alistaram no exército.
O grau de integração dos veteranos no seu ambiente social dependia muito deles
próprios, da sua saúde e da vontade que tivessem de entabular e manter contactos
pessoais; da sua capacidade de interagir na vida social e económica e de se inserirem
nesse meio étnico, cultural e social específico. Isto bem pode ter sido a principal razão
pela qual os veteranos preferiam regressar às suas terras-natais ou ao local onde
cumpriram o serviço militar. Mas, mesmo assim, não dispunham de grande protecção
contra as agruras e padecimentos do envelhecimento. O veterano C. Iulius Apolinaris,
atrás referido, que decidiu voltar ao sítio que o viu nascer, diz-nos, nas suas próprias
palavras, que estava na recta final da sua existência, já idoso e sozinho, o qual,
acrescentamos nós, dificilmente deixou para trás familiares ou amigos (BGU 1.180 =
WChr. 396, 22ss.)
Inválidos e mortos
1175
L. Mrozewicz, «Die Veteranen in den Munizipalräten an Rhein un Donau zur hohen Kaiserzeit (I-III Jh.)», Eos 77
(1989), pp. 65-80; R. Ardevan, «Veteranen und städtische Dekurionen im römischen Dakien», Eos 77 (1989), pp. 81-90; K.
Królczyk, «Veteranen in den Donauprovinzen des römischen Kaiserreiches (1.-3 Jh. N. Chr.)», Eos 86 (1999), pp. 165-170.
408
Uma causaria missio não bastava, per se, para se obter automaticamente as imunidades
concedidas aos veteranos que recebessem uma aposenção honrosa. Os soldados que se
vissem prematuramente reformados por razões de saúde podiam, quando muito,
aceder a tais privilégios caso tivessem cumprido o tempo suficiente de serviço (Codex
Iustinianus, V, 65, 1). Foi o que aconteceu, no Egipto, a um veterano da Legio II Adiutrix
inapto para continuar no ofício das armas, que logrou obter um diploma militar (CIL
XVI, 10, linhas 1-7, 7 de Março de 70 d. C.).
Se pusermos à margem os ferimentos e outras lesões traumáticas sofridas no campo
de batalha ou em acidentes vários (por exemplo, em actividades edificatórias), não é
fácil apurarmos que problemas de saúde concretos afectavam os soldados ao longo das
suas carreiras. O vigile Marcus Aurelius Mucianus1176, quando precisou de declarar a sua
condição militar, mostrou-se discreto quanto aos motivos específicos que levaram à sua
causaria missio, obrigando-o a ser «desvinculado do seu juramento» por falta de
condições físicas. Nos óstracos de Bu Njem, descobriram-se listas contendo referências
a soldados a receber tratamento médico no valetudinarium (hospital/enfermaria) do
acampamento local: porém, ao fundamentarmo-nos nestas fontes pontuais, torna-se
deveras complexo extrairmos conclusões de ordem geral, até porque, na base militar
em questão, os seus efectivos eram muito reduzidos e flutuantes. Apesar de tudo, R.
Marichal observou que os doentos seriam, aparentemente, em maior número nos
meses de Maio e Setembro, ou seja, no começo e no fim do Verão na Tripolitânia; o
mesmo historiador, ao examinar os registos com os nomes dos soldados, verificou que
cada um deles ficava no hospital apenas o tempo estritamente necessário para
recuperar de afecções correntes, à excepção de dois militares que no primeiro ficaram
por sofrerem de enfermidades de longa duração.
Em contrapartida, dispomos de mais informações sobre os milites que pereceram em
serviço antes de atingirem o estatuto de veteranos, factos que se extraem do teor dos
seus epitáfios. Nestes monumentos funerários, atestam-se, igualmente, as aspirações e
os valores característicos do mundo militar.Os riscos inerentes à sua profissão levaram,
logicamente, a que os soldados se preocupassem em usufruir de sepultura e funeral
condignos. Foi certamente por causa disto que surgiram os collegia (embora estes
também tivessem outras finalidades), os quais o imperador Septímio Severo autorizou,
talvez em 198, que existissem legalmente, já que antes os militares estavam proibidos
de se reunir em organismos associativos (Digesta, XLVII, 22, 1). Inicialmente, as únicas
associações autorizadas diziam respeito aos veteranos, que, desta maneira, se podiam
reagrupar ao deixar o exército e obter fundos destinados a custear exéquias e sepulcros
para cada um dos seus membros. Mas, na realidade, esta extensão da vida associativa
deveria interessar somente aos militares que tivessem alcançado, pelo menos, o grau de
principales. Em determinados locais, os arqueólogos encontraram vestígios de salas,
chamadas scholae, onde os commilitones se juntavam nos fortes, bem como o texto de um
regulamento, exumado em Lambaesis, respeitante à Legio III Augusta (CIL, VIII, 2554).
Os moldes organizativos de um collegium eram semelhantes aos das próprias
unidades militares: dispunham de uma arca, onde se guardavam as quotas dos
aderentes, a qual era gerida por um tesoureiro, o questor. Para além de fazerem face às
despesas relativamente à erecção de lápides e de inumações, estes collegia forneceriam,
em princípio, uma espécie de suplemento para as gratificações recebidas pelas tropas
licenciadas e, ainda, desempenhariam o seu papel na celebração do culto imperial.
1176
S. Demougin e X. Loriot, «Les détachements du vigile M. Aurelius Mucianus», in G. Paci (ed.), Actes de la XIIIe
Rencontre franco-italienne sur l’epigraphie du monde romain, Roma, 2005.
409
O imperador e os seus milites: laços simbolizados pela afixação das constituições em
Roma
1177
«Loci constitutionum fixarum, Epigraphica, 46 (1984), pp. 91-115.
1178
«L’aerarium militare sur le Capitole», Cahiers de Recherches sur l’armée romaine et les provinces, 3 1984, pp. 157-160.
410
corresponderiam aos arcos erigidos em memória de Germânico e de Druso-o-Moço,
mas desconhecemos ao certo onde se situariam. Importa salientar que, mais tarde, se
associaram às vitórias de Domiciano, proclamado Germanicus em 84 d. C. (CIL, XVI, 32
[17 de Fevereiro de 86, 33 [13 de Maio de 86).
A partir de 27 de Outubro do ano 90 da nossa era, os textos gravados das constituições
imperiais vieram a conhecer o seu local definitivo: doravante, ficariam afixados num
pórtico, rodeando uma estátua de Minerva, num nível inferior ao do Palatino (CIL,
XVI, 36; ILS, 1998). Este sítio estabelecia um vínculo estreito entre o fundador do
Principado e uma divindade guerreira, pela qual Domiciano manifestou uma
particular devoção (Suetónio, Domiciano, 15).
Destaquemos outro aspecto relevante: a transferência das tábuas de bronze do
Capitólio para o Palatino inscreveria a transformação do exército do povo romano em
exército imperial na própria topografia da capital.
Estes esclarecimentos topográficos, sobre a afixação dos textos originais dos diplomas
militares, permitem, segundo julgamos, resolver a questão da localização do aerarium
militare, com base na descoberta de um diploma datado de 17 de Junho de 65,
publicado por S. Dušanic em 19781179 (AE, 1978, 658, linhas 25-28). Anteriormente, M.
Corbier acreditou poder identificar o tesouro militar com o templo da Concórdia. Mas
a inscrição do ano 65 reporta-se a um original afixado no Capitólio, defronte do
aerarium militare, no pedestal dos Claudii Marcelli. É certo que no Forum, o templo da
Concórdia se encontrava ao pé do Capitólio, e a expressão in Capitolio poder-se-ia
entender num sentido mais lato.
Mas as efígies dos Claudii Marcelli deviam situar-se na esplanada do Capitólio.
Consequentemente, S. Dušanic preferiu localizar o tesouro militar no templo de Ops, o
que, aliás, se apoia num precedente histórico: de facto, foi neste santuário que Júlio
César depôs um verdadeiro tesouro de guerra, destinado a financiar a guerra que ele
preparava contra os Partos (Veleio Patérculo, História romana, II, 60).
Todavia, M. Corbier realçou que se compreende mal por que razão um mesmo edifício
seria designado de diferentes maneiras num mesmo corpus documental (por exemplo,
CIL, XVI, 3 e 29; ILS, 1996 e AE, 1978, 658). Tal objecção também se aplicou ao templo
da Fides, que, à semelhança do outro santuário, teria bons motivos para acolher o
tesouro militar. Posto isto, os dois elementos que dispomos para a localização do
aerarium militare parecem, então, irremediavelmente contraditórios: por um lado, o
termo aerarium sugere mais a noção de um depósito num santuário: por outro, como
todos os templos do Capitólio que podem haver sido empregues para esta finalidade
aparecem citados nos diplomas, a sua utilização revela-se incompatível com a ideia do
aerarium militare enquanto um edifício distinto e específico, o que se presume também
da passagem atrás mencionada de Tácito (Anais, V, 8, 1), concernente ao financiamento
do praemium da desmobilização.
Na realidade, a solução para esta contradição talvez permita resolver outra questão
bastante controversa, a existência de um primeiro templo dedicado a Marte Ultor, no
Capitólio. A fazer fé num trecho de Díon Cássio (História romana, LIV, 8, 3) e de
representações esculpidas em moedas cunhadas em Roma, na Hispânia e na Ásia,
alguns historiadores e arqueólogos admitiram a hipótese de Augusto ter fundado um
templo consagrado a Marte Ultor no Capitólio, em 19 a. C., onde ficariam guardadas as
insígnias das legiões de Crasso e de Marco António devolvidas pelos Partos um ano
antes1180.
Efectivamente, o carácter inédito da restituição de insígnias romanas por parte de um
inimigo incitaria a supor a construção de um novo monumento, decerto associado ao
1179
«A Military Diploma of AD 65», Germania 562 (1978), pp. 461-475.
1180
Veja-se, a propósito, C. Bustany, «Auguste, les temples de Mars Ultor et les enseignes de Crassus», Rivista Storica
dell’Antichità 24 (1994), pp. 93-98.
411
templo de Júpiter Feretrius, em vez de as imaginar no referido santuário, colocadas
num mesmo plano que os despojos opimos. No entanto, é incontestável que o templo do
Capitólio ficara privado da maior parte das suas atribuições devido à inauguração do
dedicado a Marte Ultor, no Forum de Augusto, em 2 a. C., que a partir daí albergaria as
insígnias devolvidas pelos Partos1181.
M. Bonnefond1182 parece ter demonstrado que este facto se inseriria num processo
deliberado de desapossessão do Capitólio em proveito do Forum de Augusto. Assim,
não seria concebível que tal edifício (que nas figurações monetárias tinha a forma de
um tholos) se utilizasse em seguida para acolher o aerarium militare? Esta identificação
possuiria o mérito de situar a criação desta instituição sob o patronato de uma
divindade protectora dos soldados. Ademais, ela serviria para explicar a ausência de
qualquer referência religiosa nas alusões posteriores ao tesouro militar, cujo local era
conhecido e designada apenas desta maneira, já que o culto de Marte Ultor fora
transferido do Capitólio para o Forum de Augusto.
Preâmbulo
1181
J. Rich, «Augustus’s Parthian honours, the temple of Mars Ultor and the arch in the Forum Romanum», PBSR 66
(1998), pp. 71-128.
1182
«Transferts de fonctions et mutation idéologique: le Capitole et le Forum d’Auguste», in C. Pietri (ed.), L’Vrbs:
espace urbain et histoire (Ier siècle av. J.-C.-IIIe siècle ap. J.-C), Roma, 1987, pp. 251-278.
412
Para o estudo do exército romano desde o fim do século II até ao V d. C., dispomos de
fontes desiguais: a documentação é bastante rica para o período dos Severos, a tal
ponto que determinadas características das forças armadas que se conhecem neste
momento histórico podem parecer inovações quando, na realidade, talvez já existissem
anteriormente. Os dados fornecidos pelas inscrições descobertas no aquartelamento de
Inverno da legio II Parthica, em Apameia, junto ao Orontes (Síria) atestam
especialmente esse fenómeno.
Pelo contrário, o século III revela-se muito menos fácil de apreender: com efeito, entre
o fim da narrativa da obra de Herodiano (que termina com o reinado de Gordiano III,
em 238) e o começo da que foi redigida por Amiano Marcelino, cujos livros principiam
a partir de 353, carecemos de fontes textuais circunstanciadas e fiáveis para se proceder
a um exame verdadeiramente aprofundado deste período.
Para além disso, os documentos que sobreviveram à voragem do tempo são, muitas
vezes, polémicos, no sentido em que reflectem explicitamente a oposição entre autores
pagãos e cristãos. Assim, as medidas militares implementadas por Diocleciano e
Constantino foram objecto de julgamentos ou comentários diametralmente diferentes
por parte de Zósimo, alto funcionário pagão durante o reinado de Anastásio I (491-
518), autor da História Nova, escrita em grego, e de Lactâncio, contemporâneo de
Diocleciano e de Constantino, que, n’A morte dos perseguidores, descreveu os
tormentos que sofreram os imperadores instigadores de perseguições movidas contra
os cristãos. Quanto às fontes epigráficas, são relativamente raras, à excepção de
algumas procedentes de certas regiões do império que se mantiveram prósperas, como
aconteceu com o Norte de África. Assim, os historiadores modernos precisaram de se
socorrer de outros géneros de documentação, nomeadamente a numismática e a
papirológica, bem como dos achados arqueológicos. Na viragem do século IV para o V,
a Notitia Dignitatum (Notícia das Dignidades), que significa uma espécie de repertório
dos postos militares e dos cargos civis do império, proporciona uma lista dos comandos
militares, mas há dúvidas sobre os efectivos reais do exército que corresponderiam a
toda essa hierarquia de graus consignada em tal fonte.
Embora o reinado de Antonino-o-Pio não tenha sido tão pacífico como anteriormente
se supôs, o de Marco Aurélio significou uma incontestável ruptura na história das
relações do Império romano com o mundo exterior. Desde as migrações dos Cimbros e
Teutões, vencidos por Mário no fim do século III a. C., e após as deslocações dos Suevos
(Suebi) de Ariovisto que Júlio César combateu em 58 antes da nossa era, o mundo
germânico parecia encontrar-se relativamente estabilizado. Mais ainda do que o poder
das legiões, esta «paragem» das movimentações de populações de grande envergadura
junto das suas fronteiras permitiu ao Império romano usufruir de um pouco mais de
150 anos de pax romana.
Tais fluxos migratórios haviam seguido uma orientação no sentido norte-este e sul-
oeste, envolvendo povos que partiram da Escandinávia meridional, os quais chocaram
contra os Celtas, ao mesmo tempo que ficaram marcados pela sua influência. A génese
deste fenómeno radica provavelmente num complexo conjunto de factores climáticos,
demográficos e até culturais. Houve quem tenha evocado um acentuado arrefecimento
afectando a Escandinávia a partir do século VI a. C., mas em termos concretos, o seu
impacto permanece discutível.
Existem, igualmente, dificuldades em verificar, por meio da arqueologia, a hipótese de
um sobrepovoamento dessa região durante o mesmo período. Alguns estudiosos
sustentaram que talvez existissem ritos que obrigassem as gerações mais jovens de
guerreiros a lançar-se à conquista de novos territórios, o que a ser verdade lembraria
413
práticas levadas a cabo por determinados povos itálicos. O certo é que foram estas
migrações, rumo a oeste e a sul que Mário e, posteriormente, Júlio César se viram
obrigados a confrontar entre finais do século II e meados do século I a. C. Elas levaram
ao estabelecimento de tribos muito fragmentadas, vivendo ao pé do limes. Foi, aliás,
nesta altura que historiadores antigos como Possidónio de Rodes, em 90 a. C., ou o
próprio César, mais tarde, começaram a designar a globalidade destas populações sob o
termo genérico de Germanos. Para César, bem como para Augusto, tratava-se de
explicar também o porquê da suspensão do expansionismo romano sobre o Reno,
quando de uma e de outra parte deste rio viviam tribos bastante marcadas pela cultura
céltica.
Mesmo após o abrandamento do ritmo desses movimentos populacionais de grande
amplitude, os Germanos continuaram submetidos a constantes misturas, o que
dificulta sobremaneira a individualização de grupos específicos, bem como o
acompanhamento da evolução deles até ao século III d. C. Assim, as distinções de
carácter topográfico ou étnico que Júlio César apresenta nos seus Commentarii de
Bello Gallico não coincidem forçosamente com as expostas por Veleio Patérculo,
Estrabão, Plínio-o-Antigo, Tácito ou por Ptolemeu, no século II. Ocorreram,
presumivelmente, alianças que se fizeram e desfizeram em torno de algumas linhas
aristocráticas que reclamavam ancestrais míticos comuns.
Actualmente, para os seus critérios classificativos, os investigadores apoiam-se acima
de tudo na arqueologia e na linguística. Consequentemente, os povos bárbaros são
distinguidos uns dos outros de acordo com critérios mais culturais do que étnicos.
Acredita-se consensualmente que eles se terão distribuído por três grandes regiões:
Germanos do Norte ou Germanos do mar, Anglos, Cimbros e Jutes, situados na
Escandinávia e na Jutlândia; Germanos do Oeste ou da floresta, instalados entre o
Reno, o Danúbio e o Elba; Germanos do Leste ou da estepe, Bastarnos (Bastarni),
Skiros, Costoboci, Godos, Vândalos (Vandali), Burgúndios (Burgundi) e Gepidi,
localizados para além do Elba.
Os primeiros a entrarem em contacto com o Império romano foram os Germanos
ocidentais. Nestes se reconhecem três conjuntos principais: o mais próximo do limes, o
conjunto dito Reno-Weser, que englobava os Batavos (Batavi), os Chamavi, os
Sigambri, os Bructeri, os Tubanti, os Usipeti, os Tencteri, os Chatti e os Cherusci; no
espaço geográfico entre a Frísia e a Jutlândia, sob a designação de Germanos do mar do
Norte, estavam reunidos os Frísios (Frisii), os Chauci e os Saxões (Saxones); por
último, os Germanos entre o Elba e a Boémia, neles sobressaindo os Semnones, os
Hermunduri, os Marcomanni, os Quadi, os Suevos e os Lombardos (Langobardi).
A partir do primeiro quartel do século II, recomeçaram as migrações na Germânia
oriental, seguindo, numa primeira fase, a mesma direcção que o do movimento que já
havia sido conduzido os Bastarni, os Skiros e, depois, os Costoboci à Ucrânia e ao mar
Negro, no século III a. C. Os Vândalos subiram pelo vale do Oder, fixando-se na Silésia,
Galícia e na Eslováquia. A seguir, os Godos, sem dúvida empurrados das costas do
Báltico pela acção conjugada da fome e do sobrepovoamento, avançaram para os vales
do Vístula e do Dniestr. Os Burgúndios, por seu turno, dirigiram-se para oeste, rumo
aos vales do Meno e do Reno, ao passo que os Gepidi chegaram ao território que, hoje
em dia, corresponde, grosso modo, à Hungria.
Estes povos, sobretudo os Godos, revelaram-se geralmente mais poderosos e coesos do
que os Germanos ocidentais, nomeadamente por causa das riquezas que obtinham do
comércio do âmbar. De facto, os Godos ascenderam à categoria de uma potência
militar, ao criarem confederações que englobavam os diversos povos com que
contactavam. Mas os Germanos orientais também repeliram algumas das populações
que se atravessaram no seu caminho: as últimas consistiam, em parte, em nómadas das
estepes que se estendiam a leste dos Cárpatos, usualmente de origem iraniana (de entre
os Sármatas, que haviam absorvido os Citas, sobressaíam os Roxolanos (Roxolani),
entre o Don e o Dniepr, e os Iazigues (Iaziges), no curso inferior do Tisza e do Danúbio,
já mesclados com os Bastarni).
414
Por outro lado, o contra-golpe destas migrações fez-se sentir mais no Oeste do que nas
zonas ocupadas pelos Germanos ocidentais, registando-se um aumento da sua
densidade demográfica. Os Germanos do mar do Norte progrediram para os vales do
Sem e do Weser, as tribos que estavam junto ao Elbe atingiram a Boémia e a Morávia, e
as do Reno e do Weser seguiram tanto em direcção a Hesse e às Turíngia como para as
regiões confinantes com o Império romano.
Assim, a pressão intensificou-se acentuadamente no Reno, nos Campos Decumatos e,
principalmente, no Danúbio. Não admira, portanto, que, a partir de 166 d. C., as
fronteiras romanas tenham sido invadidas. Os Chatti penetraram na Gália Bélgica, os
Chauci dedicaram-se à pirataria na embocadura do Reno, ao passo que os Quadi e os
Marcomanni se estabeleceram no Nórico e, a seguir, em Venécia; entretanto, os Carpi
chegaram à Dácia, os Sármatas Iazigues transpuseram o Danúbio, ao passo que os
Costoboci e os Bastarni alcançaram a Acaia e a Ásia.
Ante este panorama, a estratégia imperial demonstrou estar claramente inadaptada, no
que respeita aos meios militares e à situação que então se vivia para lá das suas
fronteiras. Com efeito, no Oriente, o exército romano envolveu-se em quatro anos de
campanhas bem sofridas contra os Partos (162-166 d. C.), acabando por regressar com
as suas tropas contaminadas por uma epidemia que se propagou por quase todo o
Império. Depois de haver dedicado grande parte do seu reinado a rechaçar as incursões
germânicas, Marco Aurélio terá possivelmente pensado em resolver a questão bárbara
através da criação de duas novas províncias para lá do Danúbio. Se de facto este plano
existiu, o certo é que veio a ser abandonado pelo seu filho e sucessor, Cómodo e, por
vezes, mediante o pagamento de subsídios, a situação pareceu estabilizar até ao reinado
de Caracala.
No tempo de Septímio Severo (193-211), ainda foi Roma a tomar a iniciativa da maior
parte dos conflitos armados em que o Império se viu implicado. As duas guerras
párticas empreenderam-se, assim, em larga medida porque o imperador buscou fazer
olvidar, nos campos de batalha em solo estrangeiro, o sangue que derramara durante as
guerras civis, e lograr adquirir desta maneira um prestígio militar de que carecia; note-
se que ele formou três novas legiões ostentando o título de Parthica em Itália, processo
que terá principiado em 196 ou mesmo antes, em 193. Este expansionismo manifestou-
se igualmente no Norte de África: uma nova via, a Nova Praetentura, veio reforçar a já
existente no Sul da Mauritânia Cesareia, ao mesmo tempo que se estabeleceram postos
avançados na orla do deserto, tais como Castellum Dimmidi (a cerca de 400 km a sul
de Lambaesis) em 198, e Bu Njem, na Tripolitânia, em 201.
Na Britânia, em 208, Septímio Severo podia ainda imaginar subjugar pela força os
povos instalados para lá da Muralha de Antonino (isto é, na Caledónia, actual Escócia),
já que o Norte da velha Albion, claramente menos extenso que a «Germânia Livre»
(Germania libera), parecia reunir condições para uma espécie de guerra de extermínio.
Mas depois da morte do imperador (em Eburacum/York), as primeiras dificuldades
fizeram com que o seu filho e sucessor tivesse de recuar, assim como muito antes
Augusto abandonou a ideia de uma expansão até ao Elba, no seguimento do estrondoso
desaire de Varo, em 9 d. C. No entanto, quando Caracala conduziu a sua expedição
oriental em 214, ele não estava a ripostar à ameaça dos Partos, na medida em que a
dinastia Arsácida já se achava bastante enfraquecida; na realidade, Caracala tentava
seguir as pisadas de Alexandre-o-Grande, almejando ganhar a fama de conquistador. A
busca pela glória militar não constituía uma novidade em Roma, uma vez que o tema da
vitória bélica representava uma das dimensões essenciais do carisma dos imperatores
republicanos e do poder imperial desde a fundação do Principado.
Mas o reinado de Caracala (211-217) também coincidiu com a emergência de um novo
fenómeno: a formação de vastas coligações de tribos germânicas. A liga dos Alamanos,
que se atesta em 213, por ocasião das refregas que valeram a Caracala o título de
Alamanicus, reunia, assim, as tribos que se fixaram nos altos vales do Elba e do Saale.
Lembremos que, sob o ponto de vista etimológico, «alamano» resulta da aglutinação de
dois vocábulos, «todos» e «homens». Para estes Germanos do Alto Danúbio, a maior
preocupação era a de resistirem às pressões exercidas por outros povos germânicos, à
415
medida que se apoderavam de mais terras. Quanto à liga Franca, foi criada por razões
análogas à anterior, algumas décadas depois, no curso inferior do Reno,
compreendendo, numa primeira fase, os Chamavi, os Chatti, os Sicambri e os Bructeri
e, numa segunda, os Usipeti e os Tencteri. Eles aparecem referidos pela primeira vez na
biografia de Aureliano da História Augusta (Vida de Aureliano, VII, 1-2), obra que data
de finais do século IV d. C. A nível etimológico, o vocábulo «Franco», tanto pode haver
derivado da expressão «homens livres» como evocar a reputação de bravura ou
ferocidade deste conjunto de povos.
Noutros casos, porém, os adversários novamente em contacto com o Império romano,
vieram a fundir-se com os anteriores ocupantes, submetidos à sua dominação e
introduziram formas de organização político-militar mais eficazes, o que os tornaria em
antagonistas temíveis e imprevisíveis. Pelo contrário, os povos contra os quais o
Império combateu até ao reinado de Marco Aurélio, eram mais conhecidos dos
Romanos e mais limitados nos seus meios de acção. Aparentemente, o poder imperial e
as elites do Império não se terão apercebido da extensão e da gravidade dessas
ameaças, com uma amplitude inédita. Uma das melhores provas disso está no facto de
os Romanos tardarem a adaptar a sua terminologia face aos seus novos inimigos, para
além dos Alamanos que surgem nas fontes escritas desde o reinado de Caracala. Assim,
em geral, os autores antigos não conseguiram diferenciar, antes de um certo tempo, as
populações recentemente chegadas às fronteiras do Império das que as tinham
precedido. Godos, Vândalos e, depois, até Hunos, continuaram frequentemente a ser
rotulados de Citas. A primeira atestação de «Godo» remonta ao epíteto de Gothicus
Maximus - «O supremo vencedor dos Godos» - ostentado pelo imperador Cláudio II,
em 269 d. C., quando, na realidade, as incursões deste povo na Ásia Menor e nos Balcãs
já tinham principado desde 238.
É certo que Plínio-o-Velho já menciona os Gutones, na sua História Natural, no século
I da nossa era, mas os Romanos do século III mostraram-se incapazes de estabelecer
uma aproximação entre os primeiros e os Godos. Ora, esta atitude é reveladora tanto de
uma concepção «estaticista» dos seres e das coisas, como de uma espécie de complexo
de superioridade cultural, os dois aspectos estando muito enraizados nas mentalidades
greco-romanas. Ademais, a visão augustana de um império que atingira os limites do
mundo conhecido e útil acabou por contaminar os próprios conhecimentos geográficos
do seu tempo.
Ressalvemos que, durante muitas décadas, para os Romanos os objectivos que levavam
os Germanos a fazer a guerra permaneceram difíceis de apreender. De facto, no século
III, não se tratava geralmente de verdadeiras conquistas territoriais, mas antes de
incursões depredatórias a grande distância, destinadas a obter a maior quantidade
possível de despojos e cativos. A inscrição descoberta em Augsburgo, em 1992, gravada
sobre um altar dedicado à Vitória (AE, 1993, 1231), reporta-se, assim, a vários milhares
de prisioneiros italianos que foram arrebatados aos Jutungos, na sua viagem de
regresso, pelo governador da Récia Marcus Simplicinius Genialis, em Abril de 260.
Esta fonte evidencia a capacidade que os bárbaros tinham de operar muito longe das
suas bases, conseguindo avançar até ao próprio coração do Império e, por extensão,
patenteia a clara inadaptação do sistema defensivo das fronteiras. Acresce que o
carácter muito instável ou volúvel das organizações políticas dos bárbaros, que tanto se
fragmentavam como se confederavam, muitas vezes obstava a que o poder imperial
lograsse identificar interlocutores fiáveis e representativos com os quais pudesse
entabular negociações de paz.
416
A partir do reinado de Severo Alexandre (222-235) 1183, o Império romano viu-se
confrontado com uma crise militar tão grave quanto a que Marco Aurélio teve de lidar.
De facto, aos «empurrões» consecutivos ocasionados pelos povos germânicos na
Europa, ajuntou-se uma brusca degradação da conjuntura no Oriente: neste, o Império
não foi realmente ameaçado antes de meados do reinado de Severo Alexandre. No
entanto, a desmesurada ambição de Caracala colocou o seu sucessor em «maus
lençóis», quando o rei parto, Artaban V, se aproveitou da desordem provocada no
exército romano, a seguir ao assassinato do filho de Septímio Severo, para retomar as
ofensivas. Contudo, Macrino logrou firmar uma paz, tentando apresentar este facto ao
Senado e à opinião pública como se de um êxito diplomático romano se tratasse.
Em 224, o reino parto foi palco de grande agitação devido à revolta encabeçada por
Ardashir, o qual pertencia a uma dinastia sacerdotal persa oriunda da região de
Persépolis, a vetusta capital aqueménida. No decurso de 226-227, Ardashir aniquilou
Artaban V, o derradeiro rei dos reis arsácidas, e fez de Ctesifonte a capital da nova
dinastia, chamada sassânida, por causa do nome do seu avô, Sassan. Desde o ano de
230, Ardashir desencadeou uma tripla ofensiva sobre a Arménia, a Mesopotâmia e a
Síria: tais investidas podem não ter significado uma vontade deliberada de reconstituir
o Império Aqueménida, mas os Romanos assim as interpretaram.
O dispositivo militar romano patenteou então a sua incapacidade para resistir por
muito tempo aos assaltos levados a cabo em simultâneo contra diversos sectores
fronteiriços, tanto no Oriente como na Europa. Efectivamente, a repartição dos
soldados (cujos efectivos eram, como se viu, relativamente limitados) ao longo de
fronteiras muito extensas impedia que se pudessem realizar concentrações massivas de
tropas num ou em dois pontos concretos. Até ao reinado de Marco Aurélio, os perigos
que surgiam numa determinada fronteira foram quase sempre removidos através da
reunião de contingentes que procediam de regiões vizinhas que não se encontravam
ameaçadas. Um imperador como Trajano até se pôde dar ao luxo de desguarnecer
durante bastante tempo certas zonas fronteiriças quando tomou a iniciativa de lançar
ofensivas para lá do Danúbio e do Eufrates.
Pelo contrário, entre 65 e 180 d. C., e depois, sobretudo a partir da década de 30 do
século III, o exército romano viu-se obrigado a empreender operações bélicas de vulto
em frentes distantes simultaneamente, o que conduzia a movimentações incessantes,
implicando marchas cobrindo milhares de quilómetros. Calculou-se que as forças que
Severo Alexandre reuniu em Antioquia ascenderiam a mais de 1/3 do potencial militar
do Império, as quais se destinavam a fazer frente a Ardashir: correspondiam às onze
legiões estacionadas nas províncias orientais, acompanhadas por tropas auxiliares em
número equivalente, por destacamentos de legiões acantonadas no Reno e no Danúbio,
bem como pela IIª legião Parthica e pelas coortes pretorianas. O desfecho desta
campanha revelou-se muito incerto, quando chegaram a Antioquia as notícias da
invasão dos Campos Decumatos pelos Alamanos e de incursões dos Carpi e dos
Iazyges no curso inferior do Danúbio, em 232-233.
O imperador percorreu a rota de Itália e depois a Gália, a qual atravessou para alcançar
Mogontiacum no início de 235, à cabeça de destacamentos das legiões renanas e
danubianas (que aliás haviam reclamado o regresso às suas bases), além de forças
escolhidas, desta feita, no Oriente, para lutar contra os bárbaros no Ocidente. Entre
230 e 235, os legionários da IIª Parthica terão marchado uns 4 000 km para chegarem
a Antioquia e, a seguir, outros 5 000 para atingirem o Reno! Isto fez-se por via
terrestre, já que, afora não se poder navegar por mar excepto no período entre Abril a
Outubro, era impossível arranjar uma frota que embarcasse todos os soldados,
equipamentos e provisões necessários para uma longa travessia.
Assim, estaria fora de cogitação deslocar tropas por via naval, salvo para passar os
estreitos ou curtos braços de mar. Segundo Vegécio (Epitoma de rei militaris, I, 9), um
infante romano percorria em média 30 a 36 km por dia. Ora, se tivermos em conta o
1183
L. De Blois, «The Onset of Crisis: the Reign of the Emperor Severus Alexander», in P. Freeman et al. (eds.), Limes
XVIII. Proceedings of the XVIIIth International Congress of Roman Frontier Studies held in Amman, Jordan
(September 2000), BAR Intern. S. 1084, vol. I, Oxford, 2002, pp. 13-17.
417
tempo de descanso necessário entre as diversas etapas, estas marchas forçadas entre as
frentes orientais e setentrionais durariam entre quatro e cinco meses, que causariam
baixas no seio das tropas, em proporções descontínuas mas certamente consideráveis.
418
Novas modalidades de formações e de combate
«Os exércitos imperiais de campanha». O recurso às vexillationes
1184
Sobre as vexillationes legionárias, consulte-se a tese de doutoramento de Ross Cowan, Aspects of the Severan Field
Army. The Pretorian Guard, Legio II Parthica and Legionary Vexillations, AD 193-238, Universidade de Glasgow,
Glasgow, 2002, pp. 135-155 (cap. 5).
419
das forças armadas. Além disso, os italianos foram também chamados às fileiras
quando Septímio Severo criou as três legiões Párticas. Afora as 10 coortes pretorianas,
reservadas para os legionários com mais mérito, que passaram de 500 para 1000
homens, as quatro coortes urbanae subiram de 500 para 1500, e as sete coortes de
vigiles de 3500 para 7000.
O acentuado aumento dos efectivos da guarnição de Roma, que de 11 500 se elevaram a
23 000 homens, aos quais cabe ainda adicionar os 6 000 da IIª legião Parthica
(acantonada no Albano e chefiada por um prefeito equestre) 1185 levou a que
determinados estudiosos considerassem tal dispositivo como uma prefiguração do
exército móvel, organizado sobre moldes permanentes nos decénios subsequentes.
Esta reserva militar posicionada no coração do Império fora congeminada com vista a
poder intervir rapidamente em qualquer sector ameaçado das fronteiras setentrionais
do Império. Esta interpretação merece maior credibilidade do que a hipótese, segundo
a qual, Septímio Severo teria deliberadamente decidido submeter a península itálica
antes de partir para defrontar Pescénio Níger. Díon Cássio criticou o imperador com
argumentos moralizantes, acusando-o de ter empurrado a juventude de Itália para a
gladiatura para o banditismo, ao mesmo tempo que acentuou a ideia de uma
«barbarização» do exército (Hist. rom. 75.2.5).
O controlo da Itália não justificava por si só um tal desenvolvimento da presença
militar no seu solo. Não obstante, cabe interrogarmo-nos sobre a eficácia real deste
exército estacionado em Roma e nas suas cercanias, ficando a dois meses de marcha em
relação ao limes germânico. Neste caso, julgamos talvez preferível falar de uma
«reserva», e não tanto de um «exército móvel» ou de um «exército de campanha».
Mais do que a guarnição no âmago de Itália, foram os corpos expedicionários, as
vexillationes, que desempenharam verdadeiramente o papel de exército de campanha,
à semelhança da praetentura Italiae et Alpium de Marco Aurélio.
Quanto ao «exército imperial de campanha» de Severo Alexandre, formou-se em 231-
232, combateu na Guerra Persa, acompanhou o imperador até ao Reno, em 233-234 e,
em 235, apoiou a proclamação de Maximino. Saliente-se que idênticos exércitos se
organizaram no tempo dos predecessores de Maximino (Gordiano III, Filipe-o-Árabe e
Décio).
O período em que reinaram Valeriano e Galieno constituiu um importante passo para a
definição das estruturas do exército tardo-romano. De facto, surgiram diversos
exércitos imperiais de campanha duradouros e organizados: por exemplo, o exército de
campanha de Valeriano em 253-260, e o de Galieno, em 254-268, desde 260 um
exército estacionado no Norte de Itália, contra a ameaça de uma invasão por parte de
Póstumo, e outro no Oriente, a partir de 262, sob as ordens de Odenato, «vice-rei» da
metade oriental do império, e nos anos 256-258, mais um exército de campanha
comandado pelo Caesar Valeriano Junior, no Danúbio (Sirmium/Viminacium), que
terá fornecido ajuda para a usurpação de Ingenuus, em 259. Após o assassinato de
Galieno, em 268, o seu exército de campanha converteu-se no centro do poder militar
de Cláudio II e, mais tarde, de Aureliano. Consequentemente, o uso do exército de
campanha continuou no decurso dos reinados dos sucessores de Valeriano e Galieno,
ininterruptamente, o que veio a proporcionar os fundamentos para o ulterior
desenvolvimento durante a Tetrarquia.
As vexillationes legionárias foram conduzidas por Valeriano até ao Reno em 255-256,
procedentes do Oriente, e por Galieno, do Danúbio. Da Britânia e da Germânia também
se reuniram vexillationes de legiões, juntamente com outras compostas de auxiliares,
rumo ao Oriente, integrando o exército de Valeriano em 258; as tropas que restaram
foram lideradas pelos Macriani contra Galieno em 261, depois ficando aboletadas em
Sirmium (ILS 546). Estas vexillationes eram unidades que dispunham do seu próprio
método de recrutamento, cujos efectivos se aumentavam em várias ocasiões para
possuirem considerável força bélica.
1185
Para uma abordagem judiciosa sobre a legio II Parthica, veja-se R. Cowan, Aspects of the Severan Field Army…, pp.
78-109 (cap. 3).
420
É bem possível que as vexillationes não compreendessem sub-unidades especiais para
o treino dos recrutas, nem tivessem os serviços administrativos, uma importante
componente de uma guarnição legionária normal. Consequentemente, as vexillationes
representavam unidades de um novo tipo de agrupamentos com menos efectivos, mas
nem por isso deixaram de ser chamadas legio, não se estabelecendo uma diferenciação
nítida com as legiones propriamente ditas. Subsistem provas de que se criou um
sistema específico de recrutamento e instrução militar para os exércitos de campanha,
independente das unidades-matrizes das vexillationes. Em 235, Maximino, um alto
oficial equestre que gozava de muita popularidade no exército de campanha de Severo
Alexandre, foi comandante do corpo de recrutas das forças imperiais no Reno, onde
numerosos tirones receberam treino para ocuparem as vagas existentes nas
vexillationes e nas legiões. A seguir à sua insurreição bem-sucedida, tornando-se
imperador, Maximino-o-Trácio organizou corpos especiais de adestramento para os
jovens das cidades de Itália, recrutados em duas levas, a Iuventus Nova Italica Sua, do
dilectus prior e posterior (cf. InscrAg. 2892 a, b, 2893 a, b).
Os exércitos de campanha do século III e da Tetrarquia estiveram sempre ligados aos
imperadores, aos Augusti e aos Caesares. Os exércitos de campanha regionais, como
aconteceu em meados do século IV (Gália, Ilíria e Oriente) não existiram
verdadeiramente como organismos adicionais aos exércitos imperiais de campanha:
foram apenas temporariamente organizados para fazer face a conflitos junto às
fronteiras ou participar em guerras civis.
O exército imperial de campanha tornou-se o núcleo do poder dos principes, e o seu
conjunto de oficiais correspondia à elite militar do império mas, igualmente, uma
potencial ameaça para os imperadores. Alguém que comandasse um exército de
campanha podia, efectivamente, tornar-se um usurpador, detendo a poderosa
influência de um capax imperii. Como exemplos, temos os casos de Póstumo, em 260,
e de Auréolo, chefe do exército de campanha estacionado em Mediolanum (268). A
existência do denominado «Império Gaulês» de Póstumo e seus sucessores obrigou à
necessidade de um exército permanente na Itália Setentrional até 274, para assim
bloquear tal ameaça contra o imperador «central». Aquileia, por seu lado, era o
segundo local mais importante de guarnição para os contingentes desse exército de
campanha que protegia Itália e Roma contra incursões bárbaras e ataques no contexto
de conflitos intestinos.
Maximiano, Diocleciano, Constâncio I e Galério travaram as suas guerras e
conduziram as expedições com exércitos de campanha formados dentro da tradição de
finais do século III, consistindo em unidades de guarda (infantaria e cavalaria), legiões-
vexillatio, além de corpos de cavaleiros e «brigadas». Adicionalmente, constituiram-se,
cada vez mais, unidades étnicas sobretudo de indivíduos de origem germânica. As
vexillationes legionárias não foram reincorporadas nas suas unidades de raíz por
Diocleciano, contrariamente ao que amiúde se disse, mas desenvolveram-se antes em
conjuntos separados de tropas.
421
A expressão sacer comitatus 1186, aplicável ao exército imperial de campanha, já se
empregava nos últimos anos da dinastia dos Severos: ela atesta-se no epitáfio da estela
de um aquilifer da Legio XXX Ulpia Victrix, em Ancyra (actual Ancara, Turquia), no
reinado de Caracala ou no de Elagábalo (CIL III 6764), e aparece também no tratado
De re militari do jurista Aemilius Macer, sob Severo Alexandre (Digesta, 49.16.13.3). O
referido monumento funerário mostra igualmente que a águia legionária acompanhava
uma grande vexillatio de combate, representando, pois, toda a legião. Com efeito,
registou-se uma tendência para a separação entre as legiões e as suas vexillationes nos
exércitos de campanha. É aliás neste contexto que cabe inserir o deaparecimento da
função proeminente do primipilato, que perdeu o seu papel na organização da
vexillatio do exército de campanha1187.
O reforço da cavalaria
1186
O vocábulo comitatus deriva de comes. Sob o Alto-Império, chamavam-se comites aos conselheiros que o princeps
escolhia livremente, os seus «companheiros» (analogamente, um governador tinha o seu conjunto de «amigos»-
colaboradores). Inicialmente seleccionados entre os senadores,, desde o reinado de Cómodo, podiam ser também
membros da ordem equestre e, cada vez mais frequentemente, juristas. Além disso, as deslocações do imperador
ocasionavam nomeações suplementares. A partir do século III, comitatus adquiriu um significado militar, designando as
unidades de elite destacadas para acompanhar o imperador nas suas campanhas, o núcleo estável dos sucessivos corpos
expedicionários (assim, no P. Oxy. 43 R, certas tropas exibem o título de comites). A palavra abarca diversos graus de
extensão. Após Constantino, enquanto recuou o sentido estreito de séquito privilegiado do princeps e desapareceu o
significado de «exército móvel», formalmente recuperado pelas tropas ditas comitatenses, o comitatus passou a
reservar-se para uma utilização específica, reportando-se ao grupo de pessoas que acompanhavam o imperador nas suas
viagens ou residiam na sua capital temporária. Daqui derivou, por sua vez, outra acepção, comitatus enquanto lugar e
meio: o sacer comitatus, sede estável ou itinerante da corte imperial e dos órgãos do governo central.
Consequentemente, o comitatus reunia, à volta do imperador, o seu conselho ou consistório, o questor do palácio, o
«mestre dos ofícios» e o conjunto dos «gabinetes» palatinos colocados sob as suas ordens, os notários, os «condes»
financeiros e os seus serviços, os «senhores das milícias» centrais (praesentales), as unidades palacianas da guarda
imperial (scholae), protectores sob o comando do «conde dos domésticos». Para mais dados sobre este assunto: W.
Seston, «Du comitatus de Dioclétien aux comitantenses de Constantin», Historia 4 (1955), pp. 284-296; R. Scharf,
Comites und comitiva primi ordinis, Estugarda, Steiner, 1994; A. Winterling (ed.), Comitatus: Beiträge zur
Erforschung des spätantiken Kaiserhofes, Berlim, 1998.
1187
K. Strobel, «Strategy and Army Structure between Septimius Severus and Constantine the Great», in P. Erdkamp
(ed.), A Companion to the Roman Army, p. 271.
1188
Para esta matéria: O. Harl, «Die Kataphraktarier im römischen Heer. Panegyrik und Realität», JRGZ 43 (1996), p.
627. O conhecido grafito de Dura Europos mostra um cavaleiro parto pesadamente couraçado, e não um romano (O.
Harl, «Die Kataphaktarier […], p. 623ss.). Consultem-se também: M. P.. Speidel, Roman Army Studies II, Estugarda,
1992, pp. 406-413; S. James, The Excavations at Dura-Europos. Final Reports 7, Ann Arbor (tendo em conta as
correcções feitas por O. Harl no artigo acima citado). Clibanarii corresponde à designação persa para este género de
cavalaria, não se tratando de um tipo especial que se diferenciasse dos cataphractarii, um terminus technicus atestado
pela primeira vez no século III. Quanto à famosa armadura de um cavalo descoberta em Dura Europos, há que
considerá-la como um despojo que os Romanos arrebataram ao inimigo.
422
mais organizada.Os cataphractarii romanos possuíam armas especialmente compridas
(Heliodoros, Aith. 9.15), elmos, grandes escudos redondos e lanças (contus), um ou
dois cavalos adicionais, um outro equídeo para transporte de equipamento, além de
disporem de serviçais (um ou dois calones). No entanto, não se empregou qualquer
espécie de armadura para as montadas na cavalaria pesada romana. Na realidade, os
cataphractarii totalizavam um reduzido efectivo e a sua eficácia revelava-se mais
evidente em combates com armas combinadas, actuando principalmente em
conjugação com archeiros montados. No que toca aos últimos, também munidos de
armamento pesado, passaram a fazer parte dos exércitos romanos de campanha no
Oriente, sobretudo após a derrota sofrida em Palmira em 272; nas forças tardo-
romanas encontravam-se presentes os equites sagittarii clibanarii; antes, o exército
romano utilizou os famosos Palmirenos e outros arqueiros montados orientais.
Todavia, os cataphractarii não serviram apenas em unidades especiais: no Arco
triunfal de Galério e no de Constantino, a guarda do imperador – os Equites Singulares
Augusti – entretanto chamados protectores Augusti, surgem nos relevos armados
como cataphractarii. Por outro lado, em finais do século III, pequenos grupos de
catafractos foram inseridos noutras unidades da cavalaria, com o objectivo de agirem
no âmbito de armas combinadas: por exemplo, temos notícia de cataphractarii na Ala
II Dromedariorum no Egipto, em 300 d. C. (P. Panop. Beatty 2, l.27-31).
Durante o Alto-Império, os oficiais superiores e os subalternos lutavam na linha da
frente da cavalaria, comandando as três filas da turma; o mesmo terá sucedido do
século IV a 600, quando cada fileira da unidade de Maurikos (Maurício) tinha 10
homens de profundidade e era liderada por um oficial, um dekarches ou decanus.
Provavelmente desde o fim do século III em diante, eles apresentaram-se equipados
com armamento pesado; os duplicarii e os sesquipilicarii foram então designados
catafractari, e os decuriões envergaram igualmente a armadura dos catafractos. A ala
romana tardia também estava organizada em turmae na ordem de batalha, com filas de
10 homens sob as ordens de um decurio e dois catafractarii subalternos. Em princípio,
até ao século IV não se modificou a disposição característica da turma do Alto-Império:
30 cavaleiros, dois oficiais subalternos (duplicarius, sesquiplicarius) e o decurião, cada
um chefiando uma fileira de 10 soldados em combate ou em manobras, a primeira
dispondo de três cavalos de reserva, a segunda e a terceira de dois, que eram
conduzidos por serviçais (Fink 1971, nº 12; Pseudo-Higino, De muni. castr. 16).
A partir do conflito contra os Partos travado por Lúcio Vero e as guerras danubianas de
Marco Aurélio, a importância da cavalaria foi recrudescendo visivelmente. Atrás já nos
referimos às unidades de cavalaria formadas por Septímio Severo. Mas o Ektaxis de
Arriano contra os Alani mostra que os cavaleiros legionários e os Equites Singulares do
governador, com os seus centuriões e decuriões, e uma guarda escolhida de infantes
legionários (lanciarii), os protectores, compunham a escolta do general, a qual se usava
também como reserva táctica durante as batalhas (Arriano, Ek. 22-23). Septímio
Severo duplicou a guarda imperial montada, os Equites Singulares Augusti, e a
cavalaria pretoriana. Assim, os cavaleiros da guarda subiram para 4 400 homens. Note-
se que os archeiros montados fizeram sempre parte dos Equites Singulares Augusti.
Em finais do século III, os Equites Singulares Augusti que acompanhavam o imperador
no exército de campanha passaram a chamar-se protectores Domini nostri 1189. A
cavalaria pretoriana no exército de campanha encontrava-se separada da infantaria
pretoriana, e recebeu uma nova denominação – equites promoti Dom(i)nici. Estes dois
grupos de tropas tornaram-se, no exército tardo-romano, as unidades de maior
categoria no seio da cavalaria de elite.
A cavalaria legionária, igualmente separada e organizada em contingentes especiais,
adquiriu o mesmo título de equites promoti, indicando, portanto, que eram uma força
montada de elevada qualidade. Sob Diocleciano, criou-se um terceiro ramo de equites
promoti, as unidades dos equites promoti indiginae, equipadas e treinadas como
cavalaria pesada, mas cujos soldados eram recrutados na população local ou regional,
1189
K. Strobel, «Strategy and Army Structure…», p. 275.
423
consistindo, em parte, em archeiros dotados de armaduras. As unidades de cavalaria
legionária compreendiam homens muito bem adestrados e pesadamente armados
(equites loricati), que demonstraram a sua eficiência ao combaterem em formações. A
este respeito, o discurso de Adriano proferido em Lambaesis sublinhou o valor militar
dos equites legionis. Ao mesmo tempo, era entre os cavaleiros das legiões que procedia
um substancial número de futuros centuriões e decuriões (dekarches) das unidades
auxiliares montadas. Em campanha, eles serviam como a guarda especial do
comandante do exército. Na Guerra Judaica ou na campanha de Arriano contra os
Alani, os cavaleiros de todas as legiões formavam uma elite peculiar e um corpo de
reserva, acompanhando o general (F. Josefo, B.J. 5.47-49; Arriano, Ekt. 4-6; 22).
Repartidos em turmae, estes cavaleiros estavam dispostos em «brigadas» com os
Equites Singulares. Cada turma era enquadrada por um centurião, o seu comandante,
coadjuvado por um optio e um vexillarius como porta-estandarte. Cada fila de 10
soldados estava sob a chefia de um deles. Os centuriões e os principales da cavalaria
legionária receberam o qualificativo de supernumerarii, na medida em que não se
achavam incluídos no conjunto dos oficiais superiores e subalternos das dez coortes
legionárias. Como vimos, tradicionalmente, a cavalaria das legiões consistia em 120
homens distribuídos em 4 turmae, com 4 centuriões e 8 suboficiais comandando filas
de 8 homens. Em suma, 132 militares (soldados e oficiais). Estas tropas constavam das
listas das coortes legionárias, mas ficavam alojadas à parte dos contubernia das
centuriae1190.
Para a sua campanha contra os Partos, Caracala organizou um corpo especial de
cavaleiros legionários, os equites extraordinarii, colocando-os sob as ordens do
comandante equestre da Legio II Parthica, a legião que escoltava o imperador. Por
definição, tais tropas estavam fora da organização regular de uma legião. Neste sentido,
os equites extraordinarii devem encarar-se como cavaleiros adicionais servindo nas
legiões. Quanto ao aumento numérico da cavalaria legionária, parece-nos que se deve
atribuir aos reinados de Septímio Severo e de Caracala e não mais tarde, como vários
autores propuseram.
E. Ritterling formulou a teoria de que Galieno teria criado a cavalaria do exército
romano (Schlachten-reiterei), e que a sua Kavalleriereform separou o corpo de
cavaleiros dos exércitos provinciais e das suas unidades de origem, especialmente as
legiões1191. Considerou, também, que o efectivo de cavaleiros legionários apontado por
Vegécio serviria como prova para tal reforma. Hoje em dia, descartaram-se estas ideias.
Na realidade, durante o século III, sempre houve grandes contingentes de cavalaria
(constituídos por forças diversas) a escoltar os imperadores em campanha: para a sua
expedição contra os Partos, Caracala acrescentou cavaleiros foederati mauri, afamados
lançadores de dardos e especialistas em tácticas de combate em meio montanhoso
1190
Veja-se também Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 4 (não vexillarii das vexillationes legionárias). Ao
discutir o tamanho da legião imperial, J. Roth («The size and organization of the Roman imperial legion», Historia 43
[1994], pp. 346-362) sustentou que uma legião padrão possuiria 4 800 homens no século I, e que no século II passou a
ser maior (a primeira coorte com um efectivo duplo), totalizando 5 280 homens. A centuria aboletada numa caserna
albergava 80 soldados em 10 contubernia (Pseudo-Higino, De muni. castr. 1). Porém, Pseudo-Higino referiu que uma
coorte legionária tinha 600 milites (De muni. castr. 5), logo haveria 6 000 em cada legião. Ao contrário de Roth,
Pseudo-Higino não faz menção a calones ou escravos incluídos nesta cifra. Uma legião «expandida» comportava 54
centúrias de 80 infantes, quatro centúrias de 160 de 160 homens e a primeira centúria com 320, sob o comando do
primus pilus da primeira coorte. Cumpre acrescentar 60 (ou 59) centuriões e 60 (ou 59) optiones centuriarum e 132
equites (cavaleiros, suboficiais e centuriones supernumerarii), em suma 5 532 soldados e oficiais, além dos indivíduos
não aquartelados nas casernas das centuriae: os principales e officiales, o pessoal médico, alguns artífices e
«engenheiros». Septímio Severo completou a assimilação, não só dos centuriões, mas igualmente dos principales, à
categoria equestre. É impossível que estes militares com postos e remunerações elevados se encontrassem acantonados
juntamente com os simples soldados nas casernas. Ao todo, o efectivo de uma legião do século II ascenderia a cerca de 6
000 homens, cavaleiros, oficiais superiores e subalternos.
1191
E. Ritterling, «Zum römischen Heerwesen des ausgehenden 3.Jahrhunderts», in Festschrift O. Hirschfeld, Berlim,
1903, pp. 345-349; cf. C. Keyes, The Rise of Equites in the Third Century of the Roman Empire (1ª edição 1915), Ann
Arbor, 1985; L. De Blois, The Policy of the Emperor Gallienus, Leiden, 1976, pp. 26-30. Ao analisar atentamente as
fontes, B. Bleckmann (Die Reichkrise des III. Jahrhunderts in der spätantiken und byzantinischen
Geschichtsschreibung, Munique, 1992, pp. 226-237, 255-260) apresentou uma argumentação convincente. Num âmbito
mais global, consulte-se também K. Strobel, «Pseudophänomene der römischen Militär- und Provinzgeschichte am
Beispiel des “Falles” des obergeraminisch-rätischen Limes. Neue Ansätze zu einer Geschicchte der Jahrzehnte nach 253
n. Chr. An Rhein und oberer Donau», Roman Frontier Studies, XVII (Zalau, 1999), pp. 9-33.
424
(Díon Cássio, Hist. rom. 78 [79].32.1), além de outros foederati montados germânicos e
godos. Lembremos, a propósito, que os Mauri já haviam sido empregues por Trajano
em elevado número. Por seu turno, tropas étnicas de foederati mauritanos fizeram
parte integrante do exército de Alexandre Severo nas guerras persas e germânicas e,
mais tarde, escoltaram Maximino-o-Trácio até Itália, em 238 (Herodiano, 8.1.3;
Zósimo, 1.15.1; Zonaras, 126.7).
Quanto aos equites Dalmatae, constituíam uma força de cavaleiros de elite, que vieram
a desempenhar um papel activo no assassinato de Galieno em 68 e, depois, lutaram
exitosamente sob Cláudio II (Zósimo, 1.40.2; 1.43.2; Hist. Aug.Gall. 14.4.9). Zósimo
alude aos cavaleiros dálmatas e mauri nas tropas de Aureliano, aquando da batalha de
Emesa, contra a cavalaria superior de Palmira. Ironicamente, os Dálmatas, ao que se
julga, terão sido recrutados no reinado de Galieno, com o intento de fortalecer o seu
exército de campanha em 2601192.
Os palafreneiros da cavalaria dos exércitos de campanha devem ter sido numerosos,
afora o facto de também estarem bem treinados como cavaleiros. Em data
desconhecida, possivelmente enquanto medida ad hoc, alguns deles passaram a
pertencer a unidades de combate de diferentes tamanhos como stablesiani1193 (numeri,
cunei ou vexillationes stablesianorum), com o objectivo de reforçar a cavalaria pesada.
Não resta qualquer dúvida de que o núcleo de elite do exército de campanha de
Galieno radicava num grande corpo de cavalaria que escoltava o imperador ou actuava
na qualidade de força móvel de avanço (Zósimo, 1.40.1; Zonaras, 143.10-26, 143.14.21;
145.11-12).
Por volta de 256, Galieno terá concentrado no Reno vexillationes de tropas montadas
tanto das legiões e das alas de cavalaria auxiliares, como ainda os numeri, supletivos
mobilizados nos confins do Império que pelejavam de acordo com as suas próprias
tradições, não segundo as regras romanas. Ora, em meados do século III, os soldados
recrutados por Severo Alexandre ainda estavam disponíveis, pelo menos os que
tivessem sobrevivido, na medida em que teriam de cumprir 25 anos de serviço. Não
restam grandes dúvidas que foram eles que Galieno mobilizou, já que seria impossível
criar de improviso uma força de cavalaria em condições. Uma vez constituído, um tal
exército só poderia ser eficaz após um longo período de formação militar e treino.
Acantonados em Milão a partir de 259, estes cavaleiros funcionariam como uma
reserva simultaneamente contra o «Império gaulês» e contra os Alamanos. Todavia,
não devemos considerar este exército como algo autónomo, quanto mais não seja
porque os diferentes destacamentos que o integravam jamais foram separados das suas
unidades de origem, apenas temporariamente.
Y. Le Bohec1194 enfatizou que tal estratégia se inscreve numa certa continuidade face às
concentrações de tropas organizadas por Augusto e, depois, por Trajano, nos seus
respectivos planos de conquista da Germânia e da Mesopotâmia. Por outro lado, o
exército de Galieno em Milão só compreendia unidades de cavalaria, desde a altura em
que as vexillationes de infantaria tinham completado o núcleo inicial, cujos efectivos
seriam provavelmente reduzidos. Além disso, este exército de campanha, ainda que
permitisse interceptar forças invasoras que rompessem as defesas do limes,
apresentava o inconveniente de propiciar as tentativas de usurpação por parte daquele
que assumia o seu comando: veja-se o caso de Auréolo que, depois de haver sido um
dos fiéis apoiantes de Galieno, acabou por se virar contra o último em 268. Assim, é
pouco provável que este género de formação militar se tenha mantido depois do
reinado de Aureliano.
Em 268, o que viria a ser o imperador Cláudio II comandava o corpo de cavalaria do
exército imperial de campanha, e Aureliano era o segundo na cadeia do mando, ambos
tendo desempenhado um papel determinante no assassinato de Galieno. Aureliano, que
1192
K. Strobel, «Strategy and Army Structure…», p. 276.
1193
M. P. Speidel, «Stablesiani. The raising of new cavalry units during the crisis of the Roman Empire», Chiron 4
(1974), pp. 541-546.
1194
L’Armée romaine dans la Tourmente. Une nouvelle approche de la “crise du IIIe siècle”, Paris, Éditions du Rocher,
2009, pp. 236-237.
425
se tornou comandante do corpo de cavalaria do exército de campanha de Cláudio II,
parece ter abolido este posto, o que acarretou certos riscos para a segurança do
imperador. O alto comando do núcleo móvel do exército de campanha, com o seu corpo
de cavalaria, as tropas de elite das forças armadas imperiais, fizeram dos seus oficiais
capax imperii.
Quanto às unidades de cavaleiros legionários, entre os anos 240 e 285 d. C., passaram
de 120 para 726 homens, distribuídos em 22 turmae cada um, sem ruptura de laços
com a legião de origem. Torna-se difícil atribuir esta medida a Galieno ou a Aureliano.
Os equites promoti correspondiam a legionários apeados que se viram promovidos na
cavalaria. Os historiadores modernos têm preconizado opiniões divergentes em relação
à importância que exerceu a cavalaria romana. Y. Le Bohec 1195, por exemplo, relativizou
o papel por ela desempenhado no período aqui em apreço. No entanto, entre o século II
e o IV, a proporção entre unidades de cavalaria e de infantaria mudou de 1/10 para 1/3.
Em 262, repare-se que as emissões monetárias (estudadas por L. Okamura 1196 e D. B.
Campbell1197) honraram pela primeira vez as tropas de cavalaria, em razão do papel
decisivo que manifestaram nos campos de batalha entre 253 e 261. Uma inscrição
achada em Grenoble, um pouco posterior (França; CIL, XII, 2228; ILS, 569) sublinha
igualmente a proeminência evidenciada pelos equites na ofensiva de Iulius Placidianus,
prefeito dos vigiles do imperador Cláudio II-o-Gótico (268-270) contra o «império
gaulês» dissidente.
M. P. Speidel1198, no artigo publicado no volume de homenagem a A. Birley, tentou
reconstituir a ordem de batalha da cavalaria romana; ao escorar-se em documentos
tardios, insistiu na tónica do envolvimento dos oficiais na primeira linha. Com efeito, o
reputado especialista advertiu para a existência de diversos elementos que mostram
ter-se registado uma taxa de mortalidade bastante elevada entre os oficiais subalternos
da cavalaria, e para o lugar ocupado, respectivamente pelos decuriões, duplicarii e
sesquiplicarii em combate, com base no número de montadas que lhes era atribuído.
De facto, os cavalos representavam alvos ideais para o inimigo, e os cavaleiros que
pelejavam na primeira linha tinham de mudar de montadas mais frequentemente do
que os demais: os escudeiros mantinham-se, portanto, na retaguarda, com cavalos
«sobresselentes». É, aliás, assim que por vezes eles foram representados nas estelas
funerárias, nomeadamente em Apameia.
Ora se os corcéis eram vulneráveis, facilmente se infere que os seus cavaleiros estariam
também muito expostos quando operavam na primeira linha. Speidel aventou ainda a
hipótese de o crescente número de recrutas de origem germânica incorporados no
exército romano, desde meados do século III reflectir um meio de reforçar com
efectivos este envolvimento dos oficiais na cavalaria na primeira linha, o que já se
atesta no século precedente através da inscrição que evoca a carreira de Marcus
Valerius Maximianus, que matou com as próprias mãos, na Germânia, Valaon, o chefe
dos Naristi (AE, 1956, 124).
O desenvolvimento da cavalaria exigiu, assim, oficiais competentes neste domínio
específico em número cada vez maior, a fim de suprirem as baixas sofridas em refregas.
As províncias da Europa Ocidental (da Récia à Britânia) constituíram um «viveiro»
acrescidamente importante para o recrutamento de oficiais equestres, o que se
confirmou graças às investigações de índole prosopográfica empreendidas por H.
Devijver1199. Mas a tendência para a promoção dos Ilíricos, detectável a partir do
período severiano, acentuou-se ainda mais entre os reinados de Galieno e Aureliano.
1195
Ibidem, pp. 236-237.
1196
«The flying columns of Emperor Gallienus: “legionary” coins and their hoards», in V. Maxfield e B. J. Dobson (eds.),
Roman Frontier Studies 1989: Proceedings of the XV International Congress of Roman Frontier Studies, Exeter, 1991,
pp. 387-391.
1197
«Coinage and cavalry: The sources for Gallienus and his equites», Ancient Warfare, II.6. (Dec/Jan., 2009), pp. 8-11
1198
«Who fought in the front?», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft in der
Römischen Kaiserzeit. Gedenkschrift E. Birley, pp. 473-482.
1199
Prosopographia militiarum equestrium quae fuerunt ab Augusto ad Gallienum, Lovaina, 1976-1980; IDEM, ,The
Equestrian Officers of the Roman Imperial Army, Mavors Roman Army Researches 6, Amesterdão, Gieben, 1989.
426
M. P. Speidel salientou uma evolução similar no âmbito do recrutamento dos equites
singulares Augusti (nos quais Maximino-o-Trácio talvez tenha servido) e dos seus
tribunos, facto bem documentado pelos monumentos funerários desses indivíduos.
Tais regiões eram, efectivamente, conhecidas pelo seu savoir-faire e pelas suas
tradições equestres.
427
e os baixos-relevos das lápides dos soldados da legio II Parthica revelam significativas
mudanças na estrutura das legiões no começo do século III: atesta-se a existência de
um instrutor na utilização das lanceae, o discens lanciarum, de outro para recrutas
portadores de piques, o discens phalangiarium, e de um lanciarius pertencente à
categoria de immunis; num dos monumentos funerários de Apameia representou-se
um milites munido de lancea. Nos derradeiros tempos do século III, no exército
imperial de campanha assinala-se a presença de unidades de lanciarii parcialmente
montadas, retiradas das legiões.
Diversos achados sugerem que a configuração dos escudos e, sobretudo, dos elmos foi
adaptada a novas modalidades de combate. Os elmos de legionários de finais do século
II, pertencentes aos tipos Niedermörmter e Niederbieber, foram concebidos para
soldados que porfiavam em formações cerradas, do género da falange, que
permaneciam em ordem unida mesmo quando brandiam as espadas. O modelo
Niedermörmter (equivalente ao «Imperial Itálico H» de H. R. Robinson) oferecia a
máxima protecção ao seu utilizador, mas permitia apenas um reduzido leque de
movimentos do corpo. Os combatentes teriam de ficar numa posição bastante direita
em formação compacta; o arremesso do pilum ou de dardos afigurava-se uma tarefa
difícil; quanto à espada, empregava-se em movimento descendente e directamente para
a frente. O tipo de casco Niederbieber proporcionava igualmente boa protecção, só
deixando a descoberto a boca, o nariz e os olhos através de uma abertura estreita em
forma de «T»; o seu guarda-nuca, contrariamente ao do Niedermörmter, dava
possibilidades para o soldado mexer com mais facilidade o corpo. Estes dois modelos
de elmos limitavam a capacidade da visão frontal 1203. Sexto Júlio Africano refere-se a
queixas por causa da imobilidade da cabeça que os capacetes coevos provocavam 1204.
O assunto muito debatido entre os estudiosos da disposição dos homens em combate
veio a ser parcialmente esclarecida graças aos símbolos gráficos dos seis graus de
centuriões existentes em cada coorte, achados em inscrições de Mogontiacum
(Mogúncia/Mainz; CIL, XIII, 6801) e de Lambaesis (CIL, VIII, 2568-2569a). De facto,
tais símbolos foram interpretados nesse sentido por M. P. Speidel 1205, J.C. Mann1206 e,
mais recentemente, por P. Faure 1207, considerando que os mesmos devem ter sido
concebidos nos officia militares em função da posição ocupada pelas centúrias no
campo de batalha. Consequentemente, testemunhariam uma certa continuidade face ao
dispositivo manipular republicano, ao colocar na primeira linha os manípulos de
hastati (phalangarii), na segunda os dos principes (lanciarii) e na terceira os dos pili
(sagittarii). Em cada manípulo, a centúria de posteriores seria posicionada à esquerda
dos priores. Frente ao inimigo, as dez coortes de uma legião estariam possivelmente
alinhadas por ordem decrescente de número, da esquerda para a direita. Contudo, no
seio desta triplex acies, que se manteve, substituiu-se progressivamente o gládio pela
espada comprida (spatha) e pela lança, privilegiando-se a coesão dos piqueiros
combatendo em filas cerradas, em detrimento do talento dos soldados na esgrima,
conforme destacou S. Janniard na comunicação apresentada no colóquio subordinado
ao tema L’armée romaine de Dioclétien à Valentinien Ier1208.
siècle», CRAI (1987), pp. 213-241; IDEM, «Apamea in Syria in the second and third centuries AD», JRS 58 (1988), pp.
97-104; W. van Rengen, «La IIe Légion Parthique à Apamée», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), Les légions de Rome sous
le Haut-Empire, vol. I, pp. 407-410.
1203
Para mais elementos descritivos sobre estes elmos: M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment,
pp. 145-147, figs. 103; R. Cowan, Imperial Roman Legionary AD 161-284, pp. 41-42; C. Koepfer, «Guarding the gates to
Italy: The Raetian army in the 3 rd century», Ancient Warfare (Dec/Jan 2009), p. 12- fotografia de um exemplar do tipo
Niederbieber descoberto em Rainau-Buch, actualmente conservado no Limesmuseum de Aalen (Alemanha); G. Barnett,
«Father and son invade Iraq: The Parthian wars of the first Severi», ibidem, p. 24 – fotografia de um casco de finais do
século II ou começos do III, do tipo Niedermörmter, achado na cidade epónima situada perto de Xanten (Alemanha), e
preservado no Rheinisches Landesmuseum de Bona.
1204
Kestroi, 1, 1, 50-52.78-80.
1205
«Centurial Signs and the Battle Order of the Legions», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, 154 (2005), pp.
286-292.
1206
«Roman Legionary Centurial Symbols», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, 115 (1997), pp. 295-298.
1207
L’aigle et le cep. Les centurions legionnaires dans l’Empire des Sévères, Bordéus, 2012.
428
No estado actual dos conhecimentos e da documentação conhecida, não é possível, elo
menos por enquanto, ir mais longe na tentativa da reconstituição das linhas de
combate. Mas, de qualquer modo, a disposição das tropas podia evidentemente variar
consoante o inimigo e a natureza do terreno onde se livrava a refrega. Terá este género
de formação mais compacta tornado inoperante a especificidade da primeira coorte,
dotada de cinco centúrias com efectivos duplos? Certas inscrições de Apameia
revelaram também a existência, sob a égide de Severo Alexandre, do posto de centurião
pilus posterior na Iª coorte da legio II Parthica (AE, 1993, 588), o qual não consta em
qualquer outra legião. Este facto fez reacender o debate acerca dos efectivos e do
número de centúrias da Iª coorte legionária.
No entanto, a inscrição do tabularium principis (ou seja, dependente do centurião
princeps da Iª coorte) da IIIª legião Augusta, em Lambaesis, que foi gravada durante o
reinado de Septímio Severo e retocada nos de Valeriano e de Galieno, apenas menciona
5 optiones para a Iª coorte, sem referência a um optio do pilus posterior. Cabe então
imaginar se a criação da IIª legião Parthica por Septímio Severo não terá funcionado
como um «laboratório» em que se testassem novas técnicas de combate. Ao tornarem
as centúrias de uma mesma linha de batalha mais intermutáveis do que anteriormente,
as transformações na organização interna das legiões foram particularmente profícuas
por facilitarem as transferências de tropas e a formação de vexillationes.
A carreira de Aurelius Gaius, sob a Tetrarquia, conhecida graças a uma fonte epigráfica
encontrada na Frígia (AE, 1981, 777), dá conta da importância assumida pelos
cavaleiros e pelos lanceiros no exército romano em finais do século III:
«Aurelius Gaius, o segundo deste nome, tendo servido na Iª legião Italica dos Mesíacos (?),
seleccionado para a VIIIª legião Augusta na Germânia [servindo] na Iª legião lovia Scythica na
Cítia e depois na Panónia. Enquanto recruta, servi como aprendiz de cavaleiro, a seguir como
cavaleiro lanceiro, optio de um centurião triarius, optio de um centurião ordinatus, optio de um
centurião princeps, optio dos comites do senhor da Iª legião lovia Scythica; viajei através do
Império, pela Ásia, Cária […], Lídia, Licaónia, Cilícia […] Síria, Fenícia, Arábia, Palestina,
Egipto, por Alexandria, pela Índia [isto é, a Etiópia], pela Mesopotâmia, Capadócia […] Galácia,
Bitínia, pela Trácia […], Mésia, Cárpia […] Sarmácia, quatro vezes por Vimiacium […] pela
Hispânia, Mauritânia […] depois de ter progredido […] cheguei à minha terra-natal, Pessinus,
onde fui criado e actualmente resido, no lugarejo de Cotiaeum […], com Macedonia [minha
filha?]; com os frutos do meu trabalho, erigi esta estela em memória de Jul[…] Arescusa, a
minha querida esposa, até à ressurreição. Saudações a todos».
Este testemunho mostra que Aurelius Gaius1209 seguiu a carreira «clássica» de um
legionário que foi integrado no corpo dos principales, aqueles oficiais subalternos que
ocupavam uma posição hierárquica imediatamente inferior à dos centuriões. Constata-
se que ele serviu como soldado de cavalaria (eques legionis e lanciarius) quando foi
recrutado na infantaria. As sucessivas afectações deste militar mostram tanto a
relevância que então possuía a cavalaria, como a ausência de uma separação nítida
entre infantes e cavaleiros nas legiões durante o período da Tetrarquia.Nesta inscrição,
destaquemos igualmente a referência ao grau de ordinatus de que foi detentor um
centurião, às ordens do qual esteve Aurelius Gaius como optio. No entender de S.
Janniard, o emprego dos termos ordinatus ou ordinarius1210, aparentemente
procedentes da gíria militar, remontaria à altura em que se registaram modificações
nas formações de combate, a partir do período Severiano; tais vocábulos serviriam para
designar os centuriões priores existentes nas duas primeiras linhas de batalha (hastati
e priores).
Como a reformulação do dispositivo de combate reforçou as responsabilidades destes
centuriões nas duas centúrias do seu manípulo, eles depressa terão sido qualificados de
1208
«Armati, scutati et la catégorization des troupes dans l’Antiquité Tardive», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), L’armée
romaine de Dioclétien à Valentinien Ier (Actes du Congrès de Lyon, 12-14 sept.; 2002), Paris, 2004, pp. 389-395.
1209
Veja-se, a propósito, T. Drew-Bear, «Les voyages d’Aurélius Gaius, soldat de Dioclétien», in La géographie
administrative et politique d’Alexandre à Mohamet (Actes du colloque de Strasbourg, 14-16 juin 1979), Leiden, 1981,
pp. 93-141.
1210
«Centuriones ordinarii et ducenarii dans l’armée romaine tardive IIIe-VIe siecle ap. J.-C»., in A. Lewin (ed.),
L’esercito romano tardo antico nel vicino Oriente. Da Diocleziano alla conquista araba, Oxford, 2012.
429
ducenarii. A atestação mais antiga que conhecemos deste título, ducenarius, consiste
num grafito encontrado no palácio do dux em Dura Europos, construído, o mais tardar,
sob o reinado de Elagábalo (217-222), e evacuado em 256, quando a cidade foi tomada
pelos Persas. Aproximadamente no mesmo momento histórico, começou-se a utilizar
igualmente o termo centenarius para identificar os outros centuriões.
As inscrições de Apameia, bem como os símbolos das centúrias atrás mencionados,
deixam entrever que as coortes legionárias compreenderiam sempre seis centúrias no
tempo severiano. Mais tarde, de acordo com Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 67),
o número de centúrias transitou de 60 para 50, enquanto os efectivos de cada coorte
subiram de 480 para 555 legionários. Esta antiqua legio, no dizer de Vegécio, seria
então posterior e poderia remontar à segunda metade do século III.
A premente necessidade de mobilizar o maior número de forças possível para a defesa
do Império não permitia, sem dúvida, utilizar os militares para outras funções sem ser
a guerra. A isto acrescentou-se, talvez, a dificuldade de se encontrar suficiente
quantidade de recrutas que tivessem as competências para levar a cabo tarefas
administrativas. A especialização das carreiras significava, pois, o lógico corolário desta
evolução que levou à criação de um corpo de funcionários civis, os officiales, que
gradualmente veio a substituir os principales nas administrações provinciais e centrais:
frequentemente, eram recrutados entre os notáveis municipais e beneficiavam de certos
privilégios, como se verifica pelo «álbum» de Thamugadi/Timgad de 363 d. C. (CIL,
VIII, 2403 e 17824; ILS, 6122 e AE, 1978, 891).
Mas esta transformação não se revelou sistemática. Com efeito, ainda havia soldados
em destacamentos a fazerem parte de determinados officia. Os últimos beneficiários
conhecidos por se encontrarem adstritos ao officium de um governador provincial
aparecem nomeados nos epitáfios descobertos em Salonae, na necrópole de
Manastirna (CIL, III, 8727 e 8754), fontes que datam do fim do século III ou do começo
do IV.
No entanto, a hierarquia militar funcionou como modelo para a burocracia civil,
organizada também como uma milícia, na medida em que alguns postos de oficiais
subalternos do Alto Império que caíram em desuso no exército romano do século IV,
continuaram a ser empregues para designar doravante officiales civis. Posto isto, na
documentação tardia, nem sempre é fácil distinguir os civis dos militares.
A metamorfose que sofreu o primipilato é bem representativa desta evolução:
aparentemente, as competências do primipilus em matéria de aprovisionamento terão
aumentado sob o reinado de Septímio Severo, que desta forma procurava tornar mais
eficaz a logística militar. Em cada legião, o primeiro centurião da primeira coorte
passou a ser responsável pelos fundos que financiavam o abastecimento e o
equipamento dos legionários. Para cumprir a sua missão (como demonstraram os
estudos de A. Mócsy1211 e P. Faure), ele dispunha de escravos, libertos (actores e
dispensatores), vendo-se assistido pelos signiferi, cujo papel no domínio da
contabilidade anteriormente já se referiu.
Mas na segunda metade do século III, o primipilus converteu-se num cargo puramente
civil, concedido a um officialis em final de carreira, que tinha por incumbência velar
pelo pastus primipili, ou seja, o encaminhamento dos víveres destinados aos soldados
entre a província em que exercia a sua função e as respectivas guarnições.
As fortificações
1211
«Das Lustrum Primipili und die Annona Militaris», Germania 44 1966, pp. 312-326
430
O recrudescimento das operações bélicas teve por consequência inevitável o aumento
de perdas humanas em combate, sobretudo na segunda metade do século III. Uma das
soluções para este problema consistiu em substituir os homens por pedras. Cabe ver
nela a aplicação de uma nova estratégia imperial? Neste sentido, o pagão Zósimo
(História nova, II, 34) louvou Diocleciano por haver restabelecido a paz no Império, ao
empreender uma política de grandes obras militares, da qual, mais tarde, Constantino,
seguiu uma direcção quase oposta.
As últimas pesquisas têm relativizado o testemunho de Zósimo, que foi aceite
praticamente ao pé da letra por historiadores como D. van Berchem, E. N. Luttwak ou
A. Ferril, que discorreram sobre a «defesa em profundidade» quando tentaram definir
a estratégia tetrárquica. Actualmente, não se pode considerar mais Diocleciano como o
único promotor de um plano global de fortificação sistemática das fronteiras do
Império romano.
M. Reddé 1212 mostrou como a interpretação das construções defensivas deste período
suscita problemas espinhosos: na realidade, elas não foram erigidas de acordo com
plantas tão estandartizadas quanto as observáveis durante o Alto Império; quando
muito, é possível destacar, por exemplo, a frequente utilização de torres salientes em
forma de «U» ou quadrangulares, bem como o aumento da altura das muralhas. A
adopção destas características visava responder ao avanço que se se fazia sentir na
artilharia. Contudo, a quantidade diminuta das inscrições, a grande diversidade das
configurações arquitectónicas aplicadas, das técnicas edificatórias e das superfícies
ocupadas dificultam sobremaneira o labor da classificação tipológica e da datação das
fortificações.
Ainda assim, actualmente estabeleceu-se um certo consenso no sentido de que as obras
de restauro ou erecção de fortalezas, anteriormente atribuídas apenas a Diocleciano 1213,
se devem reinserir num contexto cronológico mais alargado: ao que se julga, elas terão
principiado sob a égide de Probo (276-282) e só viriam a terminar durante os reinados
de Valentiniano e de Valente (Valens) 8364-378), embora não possamos negar a
importância dos esforços envidados neste domínio no período da Tetrarquia. Cabe
lembrar que as defesas da junção do Reno e do Danúbio na Récia e as da faixa costeira
da Britânia (litus saxonicum), estas últimas destinadas a suster os ataques dos Pictos,
Anglos e dos Saxões, começaram a ver-se reforçadas antes do advento de Diocleciano.
O dispositivo foi completado após a morte de Constantino, nomeadamente no litoral
gaulês – os vestígios da fortificação de Aleth, hoje em dia nas imediações de Saint-
Malo, parecem remontar ao reinado de Constâncio II (337-361). Em contrapartida, a
protecção do curso inferior do Danúbio terá sido planificada pelo próprio Diocleciano,
como o testemunham várias torres em «U» e as suas dedicatórias (CIL, III, 6151; AE,
1936, 10 e 1966, 357).
No Oriente, a Strata Diocletiana, uma estrada provida de fortins que ligava o alto vale
do Eufrates à província da Arábia, foi muitas vezes citada pelos estudiosos modernos
como um elemento particularmente ilustrativo da estratégia adoptada sob a Tetrarquia,
desde que se realizaram as prospecções aéreas de A. Poidebard 1214, na altura do
protectorado francês na Síria. Nos últimos anos, um reexame do conjunto desta rede
viária neste sector permitiu constatar que a mesma foi construída em várias etapas, e
que não obededeceria forçosamente ao propósito de servir de defesa contra eventuais
invasões sassânidas, mas sobretudo ao interesse de melhorar o sistema de
comunicações entre o Norte da Síria e o Sul da Arábia, ao mesmo tempo que se exercia
vigilância sobre as populações que viviam no interior do Império.
1212
«L’armée et ses fortifications pendant l’Antiquité tardive: la difficile interpretation des sources archéologiques», in
L’armée romaine de Dioclétien a Valentinien Ier, 2004, pp. 157-167; veja-se, também, uma obra colectiva em que M.
Reddé participou juntamente com R. Brulet, R. Fellmann, J. Kees Haalebos e S. Schnurbein, Les fortifications
militaires. Collection L’architecture de la Gaule romaine, Bordéus, 2007.
1213
M. Reddé, «Dioclétien et les fortifications militaires de l’Antiquité Tardive», Antiquité Tardive 3 (1975), pp. 9-124.
1214
La Trace de Rome dans le désert de Syrie. Le limes de Trajan à la conquête arabe. Recherches aériennes, 2 vols.,
Paris, 1934.
431
Quanto às fortificações no Norte de África sob o Baixo-Império, torna-se assaz difícil
datá-las com precisão, à excepção do centenarium de Aqua Viva, construído perto de
Hodna, que remonta a 303 (com base no texto da sua dedicatória; cf. AE, 1942, 81).
Por último, saliente-se que em diversas ocasiões se associaram a praças-fortes
construções que nada tiveram de militar; as que se localizaram no interior do Império
vieram, aliás, a alimentar a teoria já referida de uma «defesa em profundidade», que foi
posta em causa e até refutada por M. Reddé 1215 e J.-M. Carrié1216. A este respeito, basta
evocar o exemplo da quinta fortificada de Duch, no Egipto, que certos autores
identificaram erradamente como um acampamento militar, o mesmo sucedendo com
outras construções similares achadas na Tripolitânia.
Não obstante, a verdade é que a multiplicação de destacamentos militares, a
possibilidade doravante oferecida aos soldados de viverem com as suas famílias, a
busca de obras acarretando menor custo, assim como a formação de legiões com
efectivos reduzidos (aspecto que abordaremos oportunamente) conduziram à criação
de acantonamentos de dimensões muito mais diversificadas do que sob o Alto-Império.
Consequentemente, nem sempre é fácil distinguir os vestígios arqueológicos de um
acampamento dos de uma cidade ou de um lugarejo fortificados.
1215
Cf. artigos citados anteriores notas infrapaginais.
1216
«Les castra Dionysiados et l’évolution de l’architecture militaire tardive», MEFR(A), 86.2 (1974), pp. 819-850.
432
provavelmente mais provações ao longo das guerras conduzidas contra os Marcómanos
e com as epidemias que ocorreram no reinado de Marco Aurélio.
De facto, a duração do serviço militar era de tal modo longa que algumas tropas que se
encontravam sob as ordens do novo legado propraetor talvez tenham findado as suas
carreiras neste período.Como muitos soldados eram filhos de veteranos, as recordações
desta fase difícil e atribulada podem igualmente haver marcado grande parte dos
homens que estavam nas fileiras. Assim, a sua experiência panoniana conduziu
possivelmente Septímio Severo a tomar plena consciência da necessidade imperativa de
reforçar a adesão ao Império daqueles que o deviam defender, pelo que urgia melhor a
sorte dos mesmos. As novas modalidades de recrutamento dos pretorianos foram, pois,
motivadas pela vontade de oferecer perspectivas de carreira susceptíveis de atrair mais
recrutas para as legiões e, também, com o propósito de preencher o fosso que se abrira
entre pretorianos e legionários, causado pelas condições de serviço mais vantajosas de
que gozavam os primeiros. A partir de então, um legionário podia almejar aceder ao
pretório, ao passo que os pretorianos promovidos a um posto mais elevado nas legiões
– por exemplo, os centuriões do pretório que ascendessem ao primipilato – nelas
seriam mais bem aceites.
Como o aumento do montante dos soldos compensava muito a custo os efeitos da
inflação, houve que estabelecer outras disposições para melhorar a condição dos
militares. Desta maneira se percebe que Septímio Severo tenha procedido, em certas
ocasiões, as distribuições de carácter excepcional, de aurei, os donativa, graças aos
despojos obtidos nas guerras párticas. No entanto, não se deve entender a instauração
do sistema atestado a partir de Diocleciano, sob o nome de anona militar (annona
militaris), como uma decisão de substituir um imposto em moeda por uma operação
fiscal em espécies, tomada por Septímio Severo em 193 ou 198, como presumiu D. van
Berchem1217. Para este autor, a gratuidade das provisões militares teria igualmente
substituído o pagamento com moeda e as retenções na fonte.
Na realidade, os soldados continuaram a receber as suas remunerações em numerário
ao longo de todo o século III, como o provam os papiros de Dura Europos (P. Dura 82;
ChLA, VII, 338), nos quais se assinala o reembolso de certas requisições durante o
período Severiano, bem como os descobertos em Panópolis (P. Beatty Pan. 1 e 2), que
datam da estadia de Diocleciano no Egipto (298-300):
«Aurelius Isidoros, procurador da Tebaida Inferior, para Apollinarius, estratego, e para os
recebedores financeiros do nomo Panopolita, saúde. Tratai de pagar aos cavaleiros comandados
pelo decurião Besas, da Iª ala dos Iberos, que se encontram estacionados em Thmôos, como
soldo pelas calendas de Janeiro do felicíssimo consulado dos nossos senhores Constâncio e
Maximiano, nobilíssimos Césares, sete miríades de denários e três mil e quinhentos áticos; e,
por conta da anona que lhes é devida para quatro meses, das calendas de Setembro às vésperas
das calendas de Janeiro, sob os felicíssimos sétimo e sexto consulados dos nossos senhores
Diocleciano e Maximiano Augustos, duas miríades de denários e 7 100 áticos, perfazendo um
total de nove miríades de denários e de sete mil e cem áticos. Remetei estas somas para o
decurião Paniscus, opiniator, e dele obtei os habituais recibos aquando da inscrição nos
registos. Portai-vos bem, peço-vos, por muitos anos» (P. Beatty Panop. 2, 36-42, 30 de Janeiro
de 300 d. C.).
Sem a manutenção destes pagamentos, não se compreenderia os esforços envidados
pelo poder imperial para fazer continuar a circular a moeda, à custa de uma forte
depreciação devido à penúria do metal1218. No decurso do século III, o Estado procurou
adaptar a emissão da moeda à dispersão dos teatros das operações bélicas,
multiplicando e descentralizando as oficinas de cunhagem, que se foram aproximando
mais das fronteiras do Império. Isto conduziu à diminuição da quantidade de metal na
1217
«L’annone militaire dans l’Empire romain au IIIe siècle», Mémoires de la Société nationale des antiquaires de
France 10 (1937), pp. 117-202; IDEM, «L’annone militaire est-elle un mythe?», in Armées et fiscalité dans le monde
antique.Colloques nationaux du Centre national de la Recherche scientifique, nº 936, Paris, 1977, pp. 331-339. Veja-se
também, F. Mitthof, Annona militaris. Die Heersversorgung im spätantiken Ágypten. Ein Beitrag zur Reichs- und
Verwaltungsgeschichtedes Römischen Reiches im 3. bis 6 Jh. n. Chr., Florença, 2001, p. 31ss. (para uma descrição do
aprovisionamento básico das fronteiras e exércitos de campanha).
1218
A este respeito, consulte-se M. Crawford, «Finance Coinage and Money from the Severans to Constantine», ANRW
2.2 (1975), pp. 562-563
433
composição das rodelas monetárias, a tal ponto que os soldados tiveram de se
contentar com uma moeda de bilhão. Perfilhamos a opinião de M. Corbier 1219, no
sentido de que não se deve assimilar a anona militar a um imposto distinto criado por
Septímio Severo. É certo que esta fórmula se encontra mencionada pela primeira vez
nos óstracos de Pselcis, no Egipto, que remontam ao reinado de Marco Aurélio e ao de
Cómodo, mas ela aplicava-se apenas sobre parte dos impostos tradicionais, fundiários e
pessoais, que se cobravam em espécies, para prover às necessidades do exército, da
mesma forma que havia uma anona civil, destinada ao aprovisionamento de Roma e de
outras grandes cidades do Império.
Por outro lado, mesmo num período inflacionário, o Estado romano não teria qualquer
interesse em exigir por toda a parte só produtos em espécie, consistindo essencialmente
em alimentos perecíveis, que inevitavelmente se estragariam antes que a administração
imperial pudesse fazer uso dos mesmos, em razão dos custos e da lentidão dos
transportes. Esta modalidade de levantamento só poderia dizer respeito, por exemplo,
às regiões que tivessem fáceis comunicações com as guarnições ou com os grandes
aglomerados urbanos.
Pelas mesmas razões, por muito que os militares apreciassem ver as suas necessidades
em alimentação e em equipamento supridas por fornecimentos gratuitos, torna-se
dificilmente concebível imaginar que aceitassem a totalidade dos seus soldos apenas
desta forma. Com efeito, era preciso assegurar as suas despesas correntes, o que eles
faziam usando a moeda de bilhão, paga aquando do stipendium. Em 301, Diocleciano,
no prefácio do édito, deplora o facto de que «o soldado é por vezes privado das suas
gratificações e do seu soldo por haver efectuado uma única aquisição». Assim, não
havia maneira de este numerário desvalorizado ser mais poupado, sob a forma de
depósitos guardados no santuário das insígnias dos acampamentos ou fortes,
contrariamente ao que sucedera no Alto Império. J.-M. Carrié 1220 sugeriu que tal prática
não terá sobrevivido aparentemente às manipulações monetárias ocorridas durante o
século III: ela viu-se, então, substituída por donativa em boa moeda de ouro ou de
prata, distribuídos com maior regularidade, por ocasião de adventos, aniversários
imperiais ou de vitórias.
As reformas administrativas e fiscais de Diocleciano e de Constantino concorreram
igualmente para o desaparecimento da distinção entre províncias imperiais e
províncias do povo romano, bem como das procuratelas que tinham representado um
elemento crucial para a carreira dos membros da ordo equestre ao serviço dos
imperadores. Sob a denominação de aerarium principis, o tesouro imperial veio a ser
repartido por dois cofres: o das «Prodigalidades sagradas», que arrecadava as
amendas, controlava as oficinas e os monopólios imperiais, assim como as
distribuições, e o dos «Bens privados», que geria os bens do fisco, o património
imperial (que se achavam, portanto, misturados) e controlava as confiscações. Cada
uma das duas arcas era administrada em Roma por um alto funcionário, portador do
título de comes/«conde». Nas províncias, por seu turno, os procuradores foram
substituídos pelos rationales summarum, que estavam subordinados ao comes das
«Prodigalidades sagradas». Era normalmente este cofre que pagava os soldos, procedia
aos donativa e fornecia os equipamentos militares.
Quanto à origem da difusão do abastecimento gratuito e em espécie do exército, cabe
procurá-la – de acordo com os estudos mais recentes - na generalização da organização
logística vigente em tempo de guerra, existente desde o início da época imperial por
causa da crescente frequência das campanhas bélicas.
Os estudiosos modernos aludiram muitas vezes ao peso cada vez maior que significou
o aprovisionamento do exército por parte dos provinciais. A célebre inscrição de
Scaptotara (IGR, I, 674; AE, 1992, 1994), na Trácia, testemunha precisamente o peso
das requisições, que aliás, estiveram na raíz das queixas que os aldeãos apresentaram a
1219
«Dévaluations et évolutions des prix (Ier-IIIe siècles)», Revue Numismatique (1985), pp. 69-106.
1220
«L’esercito: transformazioni funzionali ed economie locali», in A. Giardina (dir.), Società romana e impero
tardoantico, vol. 1, Roma/Bari, 1986, pp. 449-488.
434
Gordiano III. Em 364, os habitantes de Leptis Magna o mesmo fizeram, apelando a
Valentiniano I, por causa das exacções do comes de África, Romanus, que, ao servir-se
do pretexto de combater os nómadas Austoriani, abusou do direito de hospitium,
exigindo o fornecimento de 4 000 camelos sob coacção (Amiano Marcelino, Histórias,
XXVIII, 6).
O Papiro Panópolis nº 1 (53-62), de 13 de Setembro de 298, refere-se, pela primeira
vez sob a designação de anona, às distribuições gratuitas de géneros alimentícios aos
soldados:
«Ao proedro. No que toca às anonas, que devem ser reunidas de acordo com as ordens, em
diversos locais antes da feliz visita tão aguardada do nosso senhor, o imperador Diocleciano, o
mais antigo Augusto, já te mandei, uma primeira vez, depois uma segunda, que se escolham
rapidamente os recebedores e os epimeletos dos produtos destinados aos soldados que irão
entrar na cidade, a fim de que nenhuma demora venha a retardar o cumprimento deste dever
muito piedoso».
Ao cotejar esta fonte com o Papiro Beatty Panop. 2, acima citado, verifica-se que no
começo do século IV, os soldados romanos recebiam simultaneamente um stipendium
em moeda e em rações alimentares gratuitas chamadas anonas. O Papiro Beatty
Panop. 2 mostra que as rações também se podiam eventualmente entregar em
dinheiro, sob a forma de uma gratificação paga por um graduado, o opiniator em grego
nos papiros de Panópolis, ou o opinator em latim no Codex Theodosianus ou nas cartas
de Santo Agostinho. Este vocábulo derivaria de opinio, que se reportava aos registos de
pagamento dos soldos atestados nas fontes papirológicas latinas, de meados do século
III d. C.: estes documentos eram levados ao officium do procurador imperial, uma vez
pagas as remunerações, para verificação e arquivamento (P. Dura, 94 e 95; ChLA, VII,
349 e 350, o primeiro datando de cerca de 240, e o último de 250-251).
Quanto às entregas em espécies, era tarefa que cabia aos optiones e aos actuarii, como
o sublinhou Aurélio Victor (Livro dos Césares, XXXIII, 13). O papel desempenhado
pelos últimos no aprovisionamento, já importante sob o Alto Império, parece ter
aumentado mais com o desenvolvimento das distribuições gratuitas em espécies, a tal
ponto que, doravante, os optiones, ficariam subordinados aos actuarii. Embora
soldados, ao contrário dos outros, podiam ver-se submetidos à tortura (Codex
Theodosianus, VIII, 3-5): de facto, a missão dos mesmos consistia também acusar a
recepção das remessas de géneros fornecidas pelos civis, na sua maioria curiales ou
funcionários imperiais.
O Papiro Beatty Panop. 1 foi, aliás, dirigido ao proedro, isto é, ao mais importante
magistrado municipal responsável pela arrecadação dos impostos em espécie e em
dinheiro devidos pela sua cidade. Quando o abastecimento das tropas requeria o
encaminhamento de comboios que teriam de percorrer longas distâncias, esta pesada
tarefa era confiada ao primipilus, um funcionário civil em fim de carreira, cujo cargo
testemunha, como anteriormente referimos, a evolução do primipilato desde o Alto
Império. A possibilidade, estipulada por lei, de estarem sujeitos a interrogatórios
constituía, para as autoridades, um elemento dissuasor, a fim de evitar que tanto os
optiones como os actuarii não lucrassem ilicitamente com as suas funções ao
desviarem os recursos postos à sua disposição, apresentando declarações falsas quando
entregassem os recibos. Se nos basearmos em Aurélio Victor, constatamos que as
malversações ou desfalques seriam relativamente comuns.
Se bem que os papiros de Panópolis representem, hoje em dia, o primeiro acervo
documental conhecido sobre o novo modo de retribuição das tropas, J.-M. Carrié
aventou a hipótese de que o estabelecimento da anona militar remontaria ao reinado de
Aureliano, na medida em que este imperador reformou e fomentou as distribuições
alimentares em Roma, numa altura em que os efeitos da depreciação monetária
começaram a fazer-se realmente sentir no poder de compra dos soldados. R. Duncan-
Jones estimou que esta anona militar se cifraria em 600 denários, isto apenas para o
fornecimento do azeite, ao qual se acrescentaram outros produtos no decurso do século
IV.
435
No que respeita às armas, passaram a ser produzidas em fabricae imperiais, que
aparecem mencionadas na Notitia Dignitatum (Oriente, XI, 18-39, e Ocidente, IX, 16-
38). No Oriente, elas seriam em número de quinze, e no Ocidente vinte: cada fabrica
estava sob a direcção de um tribuno ou de um praepositus de categoria perfectissimo,
significando uma unidade especializada na produção de uma limitada quantidade de
tipos de armas ou de máquinas de guerra. Não se deve exagerar a amplitude da ruptura
que a criação destes arsenais ocasionou no equipamento dos soldados, no sentido de
uma acrescida intervenção estatal na economia romana a partir da Tetrarquia.
Na realidade, certas fabricae foram instaladas sem solução de continuidade em locais
adjacentes a bases militares do Alto Império, como aconteceu, por exemplo, em
Lauriacum, no Noricum, ou em Carnuntum, na Panónia Superior. Presume-se que
estas fabricae terão substituído as anteriores oficinas militares, quando a reorganização
dos corpos de tropas não permitiu que elas funcionassem normalmente.
Tal como os múltiplos do montante dos soldos haviam servido de base para a
hierarquia dos postos sob o Alto Império, os da anona «fundaram» a hierarquia dos
graus do exército tardio. Assim, distinguia-se os soldados que dela recebiam uma, uma
e meia, duas, até oito. Com o expresso intuito de facilitar estas entregas em espécie,
aplicou-se uma lógica administrativa que associava as províncias desprovidas de
aquartelamentos às províncias dotadas de guarnições, as primeiras aprovisionando as
últimas. Neste sentido, as dedicatórias dos primipili de Oescus (AE, 1927, 45; 1975,
287-288), na Dácia Ripuaria, nova província criada para camuflar a evacuação da
Dácia, mostram os laços estabelecidos (na segunda metade do século IV) entre o
acampamento da Vª legião Macedonica, no Danúbio, e as províncias do Helesponto, da
Ásia e da Palestina, cuja acessibilidade ao mar facilitava o envio dos víveres rumo aos
Balcãs.
No entanto, J.-M. Carrié defendeu que terá sido principalmente entre os reinados de
Aureliano e de Constâncio II que aumentaram as distribuições gratuitas em espécies,
com vista a compensar os nocivos efeitos da desvalorização da moeda de bilhão.
Depois, com a estabilização do novo sistema monetário fundamentado no ouro por
Constantino, intensificou-se o recurso à conversão de uma entrega em espécie num
pagamento em dinheiro, o que já se atesta no Pap. Beatty Panop. 2. Contudo, os soldos
das tropas continuaram a ver-se materializados sob a forma de anonas até ao século VI
no Império romano do Oriente, como lembrou C. Zuckerman 1221. Com efeito, a taxa de
conversão variava consoante as províncias, a fim de permitir, em qualquer lugar, que os
soldados conseguissem prover à subsistência das suas respectivas famílias, mesmo que
modestamente, com uma só anona.
O sistema militar do Alto-Império fez com que os auxilia, na sua maioria estacionados
junto às fronteiras, se tornassem particularmente vulneráveis às agressões externas ao
longo de todo o século III. Não admira, portanto, que Diocleciano tenha decidido
recrutar novas unidades: recusando-se a utilizar mercenários bárbaros, o imperador
instaurou medidas de arrolamento mais coercivas. Elas testemunham uma dificuldade
cada vez maior em encontrar soldados em número suficiente, isto é, 30 000-40 000
homens por ano para o conjunto do exército, tendo o Império por esta altura uns 60
milhões de habitantes. O princípio da conscrição não fora abolido mas, em termos
concretos, os alistamentos de voluntários haviam permitido geralmente responder às
1221
«L’armée», in C. Morison (ed.), Le Monde byzantine, I: l’Empire romain d’Orient (330-641), Paris, 2004, pp. 143-
180.
436
necessidades do exército durante o Alto Império. Contudo, desde meados do século III
pelo menos, o recrudescimento da frequência das guerras defensivas conduziu a que o
serviço militar se afigurasse inevitavelmente menos atractivo e aumentou a taxa de
renovação de homens.
É neste contexto que se deve compreender a hereditariedade da condição militar,
estabelecida por uma série de leis de Diocleciano e Constantino (Codex Theodosianus,
VII, 22, 1-3 e 23,1), leis essas que converteram em obrigatório o arrolamento dos filhos
de soldados, retomando-se provavelmente as disposições anteriores de Probo e
oficializando uma tendência espontânea dos castris em enveredarem pela carreira das
armas. Desde o período Severiano, os últimos terão constituído cerca de metade dos
legionários. Na opinião de C. Zuckerman, este recrutamento hereditário esteve na
origem da distinção entre as unidades de seniores e de iuniores, a qual se assinala mais
tarde na Notitia Dignitatum. Os contingentes de iuniores teriam sido formados para
incorporar os filhos dos soldados que se encontravam nas fileiras dos seniores,
oferecendo aos primeiros basicamente as mesmas condições de serviço dos seus
progenitores. Todavia, de acordo com Y. Le Bohec, tais denominações resultariam antes
do fraccionamento de antigas unidades, com o objectivo de se criarem outras novas.
Mas a inovação mais significativa de Diocleciano radicou nos novos laços unindo o
recrutamento ao fisco, facto que se conhece pela designação de protostasia. Em virtude
deste sistema, os proprietários de terras tinham de fornecer um recruta ao exército ou,
então, pagar ao Estado um imposto de substituição, chamado aurum tironicum. O
capitulum correspondia à unidade mínima em termos fundiários que obrigava a
facultar um recruta. Numa primeira fase, as propriedades senatoriais viram-se
dispensadas de tal taxa, mas acabaram por perder este privilégio em 361. Segundo os
cálculos de J.-M. Carrié1222, um capitulum representaria uma superfície que teria entre
500 e 750 há na década de 70 do século IV. Aos contribuintes sujeitos a este imposto
qualicavam-se de capitularii ou, por vezes, temonarii, por analogia ao timão de um
atrelado. Os proprietários cujos bens não atingissem o montante suficiente deviam
associar-se num consortium, para que o conjunto das suas terras chegasse, assim, ao
valor de um capitulum. Neste caso, o étimo capitularius reportava-se ao dirigente do
consortium, o principal responsável, que apresentava os seus bens como garantia, pelas
prestações devidas pelos membros do capitulum.
De acordo com as referidas Actas do mártir Maximilianus, a presença, em Theveste,
de um temonarius, de seu nome Fabius Pictor, ao lado do procônsul de África,
enquanto este efectuava o interrogatório deste cristão que se negava a servir no
exército, atesta a existência da protostasia em 295. Trata-se, efectivamente, de uma das
primeiras menções textuais à instituição do temonarius.
Com a substituição da obrigação cívica do serviço militar (que remontava às próprias
origens da Urbs) pelo princípio da requisição reembolsada, o vocábulo dilectus perdeu
o seu significado original de leva de recrutas, passando a empregar-se a expressão
praebitio tironum. Ainda assim, o dilectus aparece por vezes utilizado como sinónimo
de probatio (Codex Theodosianus, VII, 13,3 e 10), já que os mancebos continuavam a
ser submetidos a um exame das suas aptidões físicas e intelectuais. O Codex
Theodosianus (X, 23, 2, em 362 d. C.) evoca também uma litúrgia denominada
prototypia, que impunha o fornecimento de soldados ao conjunto dos curiales de uma
cidade, que teria de recrutar homens e pagar-lhes uma gratificação aquando do
alistamento.
Para Diocleciano, os colonos registados nos domínios cujos proprietários eram
indemnizados pelo montante de 30 solidi, a nova moeda de ouro cunhada a partir do
começo do século IV, deviam consistir no grosso dos recrutas. No entanto, embora a
protostasia tenha sido concebida inicialmente como meio para reconstituir o exército
romano mediante as suas bases rurais tradicionais, a aplicação das mesma cedo revelou
as suas limitações, na medida em que os proprietários fundiários aproveitaram a
1222
«Le système de recrutement des armées romaines de Dioclétien aux Valentiniens», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.),
L’armée romaine de Dioclétien à Valentinien I. Actes du Congrès de Lyon, Lyon, 2004, pp. 371-387.
437
oportunidade para se desembaraçarem dos colonos que não os satisfizessem. Eles
podiam igualmente aliciar gente para se alistar, mas isto saía caro, porque os
voluntários solicitados tendiam a fazer-se pagar bem. Os capitularii perdiam, então, o
benefício da indemnização que lhes era atribuída.
Seja como for, desconhecemos com que ritmo e periodicidade se exigiam recrutas. Para
J.-M. Carrié, há que relativizar a frequência dos arrolamentos, que talvez ocorressem de
quatro em quatro anos (ou de cinco em cinco). Resta saber até que ponto a protostasia
terá permitido reconstituir ou, até, aumentar, os efectivos do exército. Lactâncio (A
morte dos perseguidores, 7) acusa Diocleciano de arruinar o Império, ao quadruplicar
o número de soldados sob as suas insígnias. Mas outros elementos informativos deixam
entrever que o mundo romano não deveria possuir os meios demográficos e financeiros
necessários para aumentar os efectivos militar numa escala tão maciça. É certo que J.-
M. Carrié salientou que o fundador da Tetrarquia se dera ao luxo de expulsar os
cristãos do exército, mas este episódio data de 298, num período em que a crise do
recrutamento, evidente sobretudo no início do seu reinado, talvez tivesse sido
parcialmente controlada.
No fim da dinastia Severiana, o exército romano teria 450 000-445 000 homens. Mais
tarde, na primeira metade do século VI, João-o-Lido, um retórico de Constantinopla,
funcionário da prefeitura do pretório e autor de vários tratados sobre as instituições
romanas, já matizava os propósitos polémicos de Lactâncio quanto aos efectivos do
exército romano sob a Tetrarquia, apontando a cifra de 435 266 homens (De mensibus,
I, 27), que, todavia, não teve possivelmente em conta a totalidade dos corpos de tropas,
atribuindo o autor a Constantino uma duplicação dos efectivos. Um outro historiador
bizantino da mesma altura, Agatías, sugeriu, para o século IV, um total de 645 000
homens (Sobre o reinado de Justiniano, V, 13, 7), o que aparenta ser excessivo.
Actualmente, os estudiosos são mais cautelosos em relação a este assunto, tentando
integrar nas suas estimativas eventuais distorções entre efectivos reais e efectivos
nominais: muitas unidades podiam permanecer incompletas, enquanto determinados
oficiais se sentiam tentados a forjar o número de tropas que estavam sob o seu
comando, no intuito de fazerem negociatas lucrativas com os soldos e as provisões. Por
outro lado, é arriscado tentar deduzir a partir da Notitia Dignitatum, as verdadeiras
dimensões do exército tetrárquico, visto que esta fonte data de aproximadamente cem
anos depois.
Consequentemente, na esteira de João-o-Lido, a maioria dos historiadores actuais
avalia geralmente as forças armadas de Diocleciano totalizando cerca de 435 000
homens, ou seja, um aumento modesto quando comparado com os efectivos existentes
sob o Alto-Império. Nessa estimativa, incluem-se as diferentes frotas, mas não os
numeri, que eram arrolados segundo regras diferentes das que vigoravam no resto do
exército.
Do período tetrárquico em diante, é complexo apurar se os contribuintes teriam a
liberdade de escolher entre o fornecimento de recrutas e um imposto de substituição,
designado, como atrás se disse, aurum tironicum, cujo princípio se assemelha ao
processo de conversão da anona militar. Porém, a partir do reinado de Constantino, a
legislação ofereceu indiscutivelmente tal possibilidade aos proprietários fundiários: ao
tempo, utilizava-se a expressão comparatio tironum. É certo que os recrutamentos em
massa que ele levou a cabo, com vista aos seus confrontos contra Maxêncio e, depois,
Licínio, diminuiram consideravelmente as suas necessidades em homens – os efectivos
do exército de Constantino podem ter ascendido a 570 000 soldados, isto é, traduzindo
um aumento de 25 a 33% desde o reinado de Diocleciano. Ao ficar como único detentor
do poder imperial em 324, Constantino aplicou-se, então, mais em diminuir as suas
forças militares para um nível que fosse compatível com os recursos do Império.
Porém, a obrigação de fornecimento de recrutas talvez tenha sido novamente imposta
em determinadas circunstâncias, como, por exemplo, em 375, na iminência do conflito
contra os Godos. Neste ano, uma lei de Valentiniano, Valente e de Graciano (Codex
Theodosianus, VII, 13, 7) tentou combater os abusos ocasionados pela busca de
substitutos. Os imperadores proibiram que se procurassem e arranjassem homens fora
438
dos capitula em questão, além de interditarem que se utilizassem os solidi apenas para
indemnizar os capitularii e pagar as despesas dos recrutas durante a viagem rumo à
unidade para a qual haviam sido destinados. Mas, escorando-nos uma vez mais em J.-
M. Carrié, este «ouro dos recrutas», arrecadado anualmente, acabou por representar
metade das receitas fiscais em ouro do orçamento imperial, o que permitiu cobrir a
maior parte dos gastos militares do Estado romano.
439
Isto correspondeu ao começo de um processo no corolário do qual o exército romano
se diferenciou cada vez menos dos seus antagonistas, na medida em que a necessidade
de uma gestão do recrutamento, do aprovisionamento e da desmobilização à escala do
Império se fez sentir em menor grau. A este respeito, invoca-se muitas vezes o barritus,
um grito de guerra certamente de origem germânica que os soldados romanos
passaram a bradar quando entravam em combate (Amiano Marcelino, História, XVI,
12, 13). Pode-se ainda citar a aparição de um novo género de insígnia, constituída por
uma manga cheia de ar e de cor púrpura, com a forma de um dragão ( draco)1223, que se
fixava no topo de uma lança, outro elemento tomado de empréstimo aos bárbaros
(Amiano Marcelino, Hist., XV, 5, 16; CIL V.8760; ILS, 2805).
A partir de finais do século III, para além dos sectores evacuados de maneira a
redistribuirem-se as tropas de guarnição, como sucedeu na Dácia, colocou-se o
problema da reconstrução e da defesa das regiões mais afectadas pelas guerras,
frequentemente esvaziadas de uma parte significativa das suas populações. Desde
princípios do século IV, contrariamente às intenções de Diocleciano, a aplicação da
protostasia contribuiu também para o recrutamento de indivíduos exteriores ao
Império no exército romano. Com efeito, os capitularii viram-se incitados a fornecerem
bárbaros que se lhes tinham sido atribuídos como colonos, enquanto os imperadores
utilizaram o produto do aurum tironicum a fim de aliciar igualmente os últimos, os
quais chegaram a ingressar, inclusive, em corpos de elite. Assim, não se tratava mais
apenas de populações que viviam na periferia do mundo romano.
Estes bárbaros, também, já representariam a maioria dos voluntários que se
apresentava para o recrutamento, que se sentiriam atraídos pelas perspectivas de uma
carreira e de uma remuneração regular (Panegíricos latinos, V, 8, 9, em 297 d. C.). Mas
cumpre advertir para o facto de que estes alistamentos voluntários supunham, à
partida, que os interessados tivessem atingido um certo grau de assimilação cultural,
para então poderem ser sujeitos às diferentes etapas dos procedimentos romanos do
recrutamento militar, que culminavam na incorporação dos homens em unidades do
exército imperial. Os escritos de Amiano Marcelino testemunham a existência de
possibilidades de promoção até aos postos mais elevados da oficialidade, no decurso do
século IV, acessíveis aos mais capazes de entre os bárbaros admitidos nas fleiras.
Mas o recurso aos bárbaros também podia assumir uma forma colectiva: atribuíam-se
os prisioneiros de guerra ou os que fossem considerados como deditoris (ou seja que se
haviam rendido) aos proprietários fundiários sob a designação de coloni inquilini, aos
quais se impunha que contribuíssem para o recrutamento militar, numa só ocasião ou
através de contingentes anuais. Era também o que sucedia com as tribos vencidas pelo
exército romano ou rechaçadas por outros bárbaros, os laeti esporadicamente
qualificados de gentiles, que recebiam autorização para se estabelecerem no interior do
Império, no território de certas cidades da Gália e de Itália, sob o controlo de um
prefeito romano desde a Tetrarquia. Estas terrae laeticae correspondiam muitas vezes
a agri deserti. Em contrapartida, os laeti, tal como os prisioneiros e os deditoris, teriam
de facultar determinados contingentes de mancebos que, aparentemente, estariam
ainda submetidos às estruturas romanas de recrutamento, enquadramento, de
abastecimento e de remuneração, mas que em geral não ficariam adstritos à defesa das
terras que foram concedidas a tais povos.
Em 334 d. C., 300 000 Sármatas viram-se assim repartidos por várias regiões: Trácia,
Cítia, Macedónia e Norte de Itália. Alguns povos bárbaros obtiveram o direito de
ocupar um sector fronteiriço, no seguimento da celebração de um tipo específico de
tratado celebrado com o imperador, o foedus, qualificando-se os beneficiários de
foederati, palavra que os historiadores actuais vertem em regra por «federados». Os
foederati deviam igualmente participar na defesa do Império, mas os homens que
forneciam mantinham-se enquadrados e geridos pelos seus próprios chefes, daí que o
imperador se limitasse em pagar-lhes um tributo para prover às necessidades dos seus
soldados, não exercendo qualquer outra forma de controlo.
1223
J. C. Coulston, «The “draco” standard», JRMES 2 (1991), pp. 101-114.
440
Fora da Europa, a rica documentação epigráfica do Norte de África revela-nos que os
governadores da Mauritânia Tingitana, já no século III, negociavam regularmente com
determinados líderes mouros, cujas tribos se encontravam estabelecidas na orla do
Império. Y. Modéran cunhou-os de «gentes do segundo círculo», para assim os
diferenciar simultaneamente daquelas que se situavam no interior do Império e das
tribos que viviam para lá das fronteiras do último. No entanto, embora alguns «altares
da paz» de Volubilis mencionem um tratado (foedus) celebrado com um rei dos
Baquates, neles não se explicita a exacta natureza dos compromissos que cada uma das
partes de obrigava a respeitar e a pôr em prática (IAM, II, 360, em 277 d. C.).
Exceptuando o Norte de África, não dispomos de elementos informativos que garantam
a existência deste género de tratados antes de meados do século IV: a alusão feita por
Jordanes (História dos Godos, 21) a 40 000 foederati godos fornecidos ao exército
romano, em consequência de um foedus concluído em 332, é, na realidade, talvez
exagerada e anacrónica, visto que se trata de um facto que que se coaduna mais com a
situação a seguir à batalha de Andrinopla.
Até ao fim do século IV, os foederati estiveram presentes em todas as fronteiras do
Império, mas em sectores limitados em termos de superfície: Germanos
(nomeadamente os Francos Sálios em 358) e Sármatas no Reno e no Danúbio, tribos
caucasianas e Sarracenos nos confins orientais, Nobadae e Blemi no Egipto, Mauri nas
imediações do Saara (Jordanes, Hist. dos Godos, 21). Certos estudiosos questionaram-
se se não seria a este tipo de formações militares que uma constituição mais tardia, de
Honório faria referência (reproduzida no Codex Theodosianus, VII, 15, 1), concernente
ao reforço do fossatum Africae e destinada ao vicarius de África, Gaudentius.
Com efeito, nessa fonte, o imperador evoca os gentiles, aos quais Roma concedera
terras, a fim de manter uma parte do dispositivo fronteiriço, em troca do
reconhecimento da sua autoridade. Consistiriam em tribos mauritanas, possivelmente
integradas no sistema militar romano, ainda que estando sob as ordens dos seus
próprios chefes.
As inovações de Galieno
Comecemos por dizer que se tem verificado uma certa propensão para fazer de Galieno
o autor da maior parte das transformações que ocorreram no exército romano no
século III. Os estudos de M. Christol mostraram que se deve inserir estas mutações
num fenómeno evolutivo de longa duração. Por volta de 258-260, o processo evolutivo
do título de protector sugere que a organização militar romana passou a assentar em
novas bases1224. Anteriormente, protector terá correspondido a uma função ou a um
posto inferior ao centurionato, assinalável em algumas inscrições do período Severiano
analisadas por M. P. Speidel (CIL, VI, 3238; 3261; 32854 e AE, 1979, 448). Este
graduado estaria, aparentemente, adstrito à guarda dos governadores provinciais e dos
prefeitos do pretório.
Posteriormente, o termo protector passou a reservar-se aos centuriões (AE, 1954, 135)
e aos tribunos militares angusticlavos (CIL, III, 3126) que exerciam o seu mando no
exército que acompanhava o imperador, o qual se designava então como comitatus. Sob
o Alto Império, aos amigos que formavam o séquito do princeps e que com este ficavam
nos acampamentos já eram qualificados de comites. O comitatus era habitualmente
1224
M. Christol, L’Empire romain du IIIe siecle, Paris, 1997, pp. 143-151.
441
constituído pelas coortes pretorianas, pelos equites singulares Augusti, pela legio II
Parthica, bem como por vexillationes legionárias e auxiliares.
Concedia-se o grau de protector tanto no pretório como nas legiões. Assim, verifica-se
que a identidade das funções assumidas no terreno registou a tendência de se sobrepor
ao estatuto jurídico das unidades, o qual significava o fundamento estruturante da
hierarquia entre os distintos corpos de tropas do exército do Alto Império.
Estas diferenças jurídicas ainda mais se esbateram quando a cidadania romana foi
outorgada por Caracala à maioria dos homens livres do Império, em 212 d. C., medida
que contribuiu inegavelmente para apagar a tradicional separação entre legionários e
auxilia. J.-M. Carrié encarou este facto como a primeira etapa no âmbito de uma
reforma do comando e de uma utilização mais racional dos soldados, na medida em que
as finanças imperiais impuseram limites ao aumento dos efectivos militares. Mas seria
preciso esperar pelo reinado de Constantino para que o poder imperial conseguisse
extrair todas as conclusões dessa evolução, ao remodelar por completo a organização
militar imperial.
A única medida concreta seguramente imputável a Galieno, o filho de Valeriano, foi a
decisão de privar os senadores de qualquer tipo de comando militar. Tal disposição
materializou-se, em princípio, num édito promulgado em 262, se bem que vários
historiadores modernos (por exemplo, Y. Le Bohec1225) até coloquem em dúvida a sua
existência. Galieno suprimiu o tribunato laticlavo e a legação de legião, de que, após
260, não conhecemos efectivamente mais titulares. Ora o mando das legiões andava de
«mãos dadas» com a governação das províncias imperiais pretorianas, que por esta
altura também se retirou aos senadores: observe-se o que aconteceu na Numídia, cujo
derradeiro legado de Augusto pro praetor documentado se chamava Caius Iulius
Sallustius Saturninus Fortunatianus (CIL, VIII, 2797; ILS, 2413).
Os princípios que até aí tinham regido a governação do Egipto e da Mesopotâmia
foram, assim, aplicados a uma crescente número de províncias, confiadas a
governadores equestres, denominados praesides. Note-se que a mudança de estatuto se
entendeu como transitória, precisando-se, na fraseologia oficial, que o cavaleiro em
quiestão era um simples agens vice praesides, por outras palavras, que se encontrava a
subsistir interninamente o governador. Quanto ao comando das legiões, passaram os
prefeitos a exercê-lo, igualmente escolhidos na ordem equestre. Naquelas províncias
imperiais em que apenas houvesse uma legião, esta era chefiada pelo praeses.
Voltando ao caso da Numídia, o primeiro praeses conhecido foi Tenaginus Probus
(CIL, VIII, 2571, 18057), cuja governação remonta a 267-268, o mais tardar. Estes
praesides equestres receberam o título de vir perfectissimus, que os elevava a uma
categoria superior à dos antigos procuradores na hierarquia das funções equestres. Nas
províncias imperais «presidiais», em que o praeses chefiava também a única legião que
guarnecia a circunscrição, não se modificou a prefeitura de legião. Por seu lado, o
prefeito de legião passou a chamar-se agens vice legati, o que significava que substituía
o legado.
Ao procurar explanar os motivos para tal evicção dos senadores pelos cavaleiros à
cabeça da maior parte das províncias, M. Christol sublinhou que os equestres que
ocuparam postos-chave no Império durante a segunda metade do século III não tinham
mais o mesmo «perfil» dos que, anteriormente, haviam exercido as procuratelas:
correspondiam a notáveis municipais oriundos de Itália ou das províncias mais
romanizadas, mas, principalmente, a soldados saídos directamente das fileiras, que se
viram promovidos mercê da sua experiência militar, num período em que numerosas
províncias fronteiriças se encontravam ameaçadas. Eles foram geralmente admitidos
no segundo ordo, em razão do seu talento, muitas vezes enquanto simples milites numa
primeira fase, e depois com o posto de centurião, que lhes dava acesso ao primipilato e
ao tribunato de uma coorte pretoriana. É certo que a promoção dos militares se viu
1225
«Gallien et l’encadrement senatorial de l’armée romaine», REMA 1 (2004), pp. 123-132; IDEM, L’Armée romaine
dans la tourmente, pp. 237-238.
442
favorecida pelas circunstâncias e pelas medidas tomadas por Septímio Severo, a fim de
facilitar o acesso dos principales ao centurionato.
Estes homens, de origem modesta, muitas vezes provenientes do Illyricum, não
tinham, assim, muito em comum com os cavaleiros que haviam ocupado os mais altos
cargos do Império do Império sob os reinados dos Antoninos e dos Severos, os quais
seguiram um percurso essencialmente civil. Estes membros da ordem equestre que não
tinham vindo do exército continuaram a ser empregues nos «gabinetes» da chancelaria
imperial, nesta passando a ficar excluídos os libertos.
Salientemos, além disso, que os «eminentíssimos» cavaleiros que tivessem atingido o
topo da carreira equestre, sempre traduzida na prefeitura do pretório, ambicionavam,
mais do que nunca, ingressar no Senado, fosse por adlectio, fosse por nomeação para
um consulado suffectus ou ordinarius. Com efeito, estas nomeações tornaram-se
correntes a partir do reinado de Galieno: basta citar o exemplo de Iulius Placidianus,
prefeito dos vigiles em 269, que passou a prefeito do pretório em 277 e, por fim, a
cônsul ordinarius em 273. Cumpre referir que o Senado continuava a ser fonte de um
importante prestígio. No que toca ao património fundiário dos senadores, ele até saiu
mais reforçado neste período marcado por dificuldades económicas.
Neste sentido, a decisão de Galieno parece ter sido motivada pelo estado de guerra
quase permanente que se vivia em certas regiões, o que, por seu lado, levou a que se
conferisse novamente à noção de província o sentido que ela tivera na época
republicana. À circunscrição geográfica precisamente delimitada substituiu-se, em
determinadas ocasiões, a missão a levar a cabo numa zona, não consistindo
forçosamente numa função administrativa específica. Mesmo antes de 262, tal missão
pode já ter sido incumbida a um cavaleiro, que utilizava frequentemente o título de dux
ou, por vezes, o de corrector: foi deste modo que o cavaleiro Marcus Cornelius
Octavianus, governador da Mauritânia Cesareia, se viu designado dux de África, da
Numídia e da Mauritânia, com o objectivo de combater os Mauri, entre 253 e 258 (CIL,
VIII, 21000). Também se conhece um corrector no Egipto, entre 256 e 258, mas esta
província conhece sempre governadores equestres, assim como um dux em África,
Numídia e Mauritânia.
Prisco, irmão de Filipe-o-Árabe, nomeado rector Orientis após haver ocupado cargos
interinos, representa um dos casos mais elucidativos destes governadores, que os
historiadores modernos costumam rotular de «vigários independentes», a fim de
melhor realçar o carácter transitório das suas funções. Podemos citar ainda o exemplo
de Marcus Simplicinius Genialis, o redactor da «Inscrição de Ausburgo», que se juntou
a Póstumo a seguir à sua vitória sobre os Jutunges. A partir de 265-266, os duces
receberam o estatuto de perfectissimus, tal como os praesides.
As posições ocupadas por estes personagens no aparelho estatal permitiram-lhes
aceder com certa facilidade ao poder imperial ou, pelo menos, de controlar a
transmissão do mesmo. Procedentes do estado-maior imperial, as figuras de Marciano,
Auréolo, Cláudio-o-Gótico e de Aureliano são as que melhor reflectem as significativas
mutações ocorridas nos meios dirigentes do Império. M. Christol e L. De Blois 1226, cada
qual à sua maneira, valorizaram o tópico do papel acrescidamente mais importante que
tais oficiais equestres desempenharam no Estado romano neste momento histórico, a
maioria dos quais anteriormente com o posto de centurião e oriundos das províncias
ilíricas. Eles tinham a seu favor uma experiência no terreno bem superior à dos
senadores, progressivamente mais desfazados da realidade militar e dos teatros de
operações bélicas, na medida em que apenas exerciam cargos de comando
intermitentes, entre o tribunato, no início das suas carreiras, e as legações de legiões a
partir da pretura.
L. De Blois sugeriu ainda que a promoção desses cavaleiros romanos teria contribuído
provavelmente para preencher o fosso que aos poucos se foi cavando entre os
legionários e os oficiais senatoriais. De facto, os soldados que compunham as fileiras
eram rapidamente recrutados a nível local, ao passo que os oficiais superiores
1226
The Policy of the Emperor Gallienus, Leiden, 1976, pp. 26-30.
443
continuavam a provir de Itália e das províncias mais romanizadas ou helenizadas. Os
oficiais equestres deviam encontrar-se certamente mais próximos dos legionários, já
que a geografia do recrutamento dos primeiros conheceu uma evolução muito mais
similar à dos soldados, como, aliás, o sugerem as pesquisas prosográficas de H.
Devijver1227. É algo que se observa particularmente nos antigos centuriões admitidos na
ordem equestre que, segundo M. Christol1228, formariam a maioria dos oficiais
equestres à cabeça das legiões desde o reinado de Galieno.
Porém, no primeiro número da Revue des Études Militaires Anciennes, em 2004, Y. Le
Bohec1229 refutou tal opinião, expressando sérias reservas quanto à própria existência
de um édito de Galieno em 262: de acordo com o eminente historiador francês, o
imperador terá simplesmente cessado (logo no começo da década de 60 do século III)
de prover os postos vacantes ao designar novos quadros militares senatoriais. Assim,
Galieno parece haver prosseguido a política adoptada pelos seus predecessores que, a
partir do fim do reinado de Septímio Severo, investiu os cavaleiros de comandos
militares extraordinários.
A verdade é que o desaparecimento dos oficiais pertencentes à classe senatorial
significou um fenómeno bastante progressivo, pelo que, aparentemente, não coincidiu
com uma decisão tão pontual como a promulgação de um édito: não temos registo de
mais tribunos laticlavos após 260, nem de legados de legiões a seguir à morte de
Galieno, em 268, mas, em contrapartida, atestam-se legados senatoriais nas províncias
imperiais consulares até ao período da Tetrarquia, conforme observou M. Christol no
seu Essai sur les carrières sénatoriales dans la 2e moitié du IIIe siècle ap. J.-C. Se o
édito foi efectivamente promulgado, ele apenas diria respeito à hierarquia interna da
legião, e não ao governo das províncias.
Para Y. Le Bohec, as razões de Galieno foram de natureza principalmente política – ao
excluir os senadores do exército, o imperador buscaria privá-los de meios para
tentarem usurpar o poder imperial, não estando, assim, em causa, a competência ou o
mérito dos mesmos. Bohec também salientou, a propósito, a inveja que Galieno teria
sentido relativamente aos senadores, baseando-se numa alusão de Aurélio Victor (Livro
dos Césares, 33-34). Mas, em termos concretos, é impossível apurarmos as motivações
psicológicas de Galieno. Além disso, se ele pretendeu realmente retirar aos senadores
todos os meios de acção político-militar, não se percebe então que os tenha mantido a
governar as províncias consulares.
Todavia, interrogamo-nos, igualmente, até que ponto as guerras terão diminuído o
grupo dos oficiais superiores. Embora a este respeito as fontes sejam escassas,
observamos, pela primeira vez, imperadores a perecerem em combate. A Trajano Décio,
que morreu no campo de batalha de Abrittus, em 251, e a Valeriano, capturado pelos
Persas em Edessa em 260, acrescente-se também Gordiano III: com efeito, a
descoberta em 1936, no sítio de Nags-i Rustem, perto de Persépolis, de uma inscrição
trilingue (em parto, persa e grego), gravada no ano de 270 para a glorificação do
soberano Shapur (ou Sapor), fonte que veio a ser divulgada desde as pesquisas de M. I.
Rostovsteff sob o título de Res gestae Divi Saporis, veio a desmentir a versão narrada
na História Augusta, segundo a qual o jovem imperador perdera a vida aquando de um
motim instigado pelos seus novos prefeitos do pretório.
O teor da inscrição, confirmado aliás por um dos baixos-relevos persas de Darab e de
Bishapur, sugere que Gordiano III terá falecido em consequência de ferimentos
sofridos numa queda de cavalo, durante a batalha de Mesiché, ganha por Shapur no
começo do mês de Março de 244. Num período que viu dois imperadores morrerem em
refregas e um terceiro feito prisioneiro no espaço de uma quinzena de anos, parece-nos
lícito supor que os oficiais senatoriais – que se cifrariam entre 60 e 70 e não mais,
segundo B. Dobson – pagaram também um tributo bem pesado, havendo considerável
1227
Prosopographia militiarum equestrium quae fuerunt ab Augusto ad Gallienum, Lovaina, 1976-1980; idem, The
Equestrian Officers of the Roman Imperial Army, Mavors Roman Army Researches 6, Amsterdão, 1989.
1228
Essai sur l’évolution des carrières sénatoriales dans la 2e moitié du IIIe siècle ap. J.-C, Paris, 1986.
1229
«Gallien et l’encadrement senatorial de l’armée romaine», pp. 123-132.
444
número de baixas entre eles, o que justificaria o facto de não lhes permitir prover todos
os postos vacantes. Mas frisemos que isto consiste somente numa conjectura, que
carece, por enquanto, de elementos probatórios.
Lembremos que os membros da ordem equestre que se encontravam à frente das
províncias ou das legiões eram ocasionalmente designados como agens vice praesidis
(exerciam a governação interina), o que nos leva a depreender que se entenderia esta
mudança de estatuto como algo temporário. Quanto aos prefeitos de legião, igualmente
escolhidos na classe equestre, dava-se-lhes o nome de agens vice legati, por terem que
desempenhar o papel de substitutos dos legados nas províncias imperiais consulares.
Não poderiam estes títulos haver surgido precisamente por causa do falecimento de
certos governadores ou de oficiais senatoriais? É pergunta cuja resposta se mantém em
suspenso…
Enquanto as guerras que marcaram o reinado de Marco Aurélio parecem ter facilitado
a admissão de numerosos oficiais equestres no Senado (haja em vista o caso de
Pertinax, que veio a ocupar a prefeitura da Urbs), sob a égide de Galieno, pelo
contrário, registou-se uma vontade de despojar os senadores do comando militar. Por
que motivo não se continuou a admitir tais oficiais no Senado, antes de lhes confiar a
chefia das legiões ou a governação das províncias? Não estariam os senadores dispostos
a aceitar como seus pares esses recém-chegados, cuja ascensão social fora, em geral,
extremamente rápida, e que muito possivelmente ainda careciam da humanitas, como
testemunha o desprezo da historiografia de inspiração senatorial em relação a
Maximino-o-Trácio?
Com efeito, ao examinarmos a documentação, constatamos que era mais tarde, no
desenrolar das suas carreiras, mais frequentemente após a prefeitura do pretório, que
alguns deles obtinham os «ornamentos» consulares e, até, o acesso à cúria.
O crescimento do exército romano sob a Tetrarquia terá sido bastante mais limitado do
que afirmou Lactâncio. É certo que Diocleciano parece haver somado 35 legiões às 34
existentes, mas, ao que se julga, o mesmo imperador tentou reduzir os efectivos das
legiões. As que já existiam mantiveram o número teórico de homens, traduzindo-se
cada uma em cerca de 6 000, distribuídos por 10 coortes, embora algumas unidades
estivessem incompletas após os numerosos conflitos armados em que participaram
desde meados do século precedente.
Numa primeira fase, Diocleciano criou legiões de acordo com o modelo tradicional. As
últimas deste tipo foram, talvez, as legiões IIª Herculia e a Iª Iovia, formadas
aproximadamente em 297, num contexto atribulado, marcado por revoltas no Egipto e
pela guerra contra os Persas, findando esta no ano seguinte mediante a paz de Nisibis, a
seguir às vitórias de Galero. No entanto, a partir deste período, as legiões viram-se
sistematicamente fraccionadas e repartidas por uma rede de praças-fortes. Numa
segunda etapa, Diocleciano reuniu, aparentemente, legiões com apenas 1000 homens
cada. É, aliás, o que sugerem as escavações arqueológicas efectuadas nos locais onde
houve acampamentos legionários do tempo da Tetrarquia – em Palmira, na Síria, em
El-Lejjun, na Arábia e em Lucsor, no Egipto. Mas estes testemunhos materiais revelam-
se difíceis de interpretar, na medida em que muitas vezes é quase impossível apurar se
tais bases militares foram especificamente projectadas para acolher o conjunto de uma
legião ou, então, só um destacamento.
O acampamento de El-Lejjun (4,6 ha), com base nos seus vestígios, terá efectivamente
albergado toda a IVª legião Martia, como o próprio topónimo árabe também deixa
entrever: ainda assim, as suas dimensões, limitando-se a 1/5 da superfície de um típico
445
acampamento legionário do Alto Império, não permitiam, sem dúvida, que recebesse
mais de 1000 soldados. Todavia, várias grandes fortalezas de legiões do Alto Império
continuaram a acolher guarnições com significativo número de homens: citemos os
casos de Eburacum (York), Argentoratum (Estrasburgo), Mogontiacum (Mainz), ou de
Bona (recinto ocupando mais de 29 ha) e de Aquincum (com 21,6 ha; Budapeste).
No Norte de África, os efectivos de cada legião não parece ter ultrapassado os 1000
soldados: uma delas ainda possuía a denominação de IIIª Augusta, mas é difícil
averiguarmos se as demais legiões resultaram do fraccionamento da mesma ou se, mais
provavelmente, consistiriam em novas tropas, reunidas em princípio por Maximiano
para combater os Mauritanos em 297-298.
Será que o fraccionamento das legiões e, depois, a redução dos seus efectivos, se
deveram realmente a uma nova estratégia original concebida por Diocleciano? A
associação de quatro imperadores (Tetrarquia) levou a que cada um deles ficasse
dotado de um exército expedicionário, chamado comitatus (termo empregue, por
exemplo, nas referidas Actas do mártir Maximilianus). Ao mesmo tempo que reforçava
as defesas fronteiriças, mediante a edificação de fortificações (como vimos), cada
tetrarca concentrou tropas nas imediações do seu local de residência preferencial:
Constâncio Cloro em Treverorum (Trier), Maximiano em Milão, Galero em Sirmium e
Diocleciano em Nicomédia (actual Izmit, Turquia).
A este respeito, Aurelius Gaius (atrás citado) representa um exemplo esclarecedor dos
soldados que serviram nestes exércitos que acompanharam os imperadores em
diferentes teatros de operações bélicas, onde intervieram. A carreira de Gaius, atrás
evocada através do teor de uma inscrição, fez-se em três legiões distintas entre 284 e
302, conduzindo-o do Danúbio ao Norte de África, e do Egipto à Mesopotâmia. Uma tal
mobilidade via-se recompensada, em geral, por melhores possibilidades de progressão
na hierarquia militar, como o atesta a promoção do soldado Gaius na cavalaria
legionária, mais tarde ascendendo ao posto de optio. Os papiros de Panópolis
testemunham de igual modo, os donativa de que beneficiaram as tropas que
marcharam com Diocleciano rumo ao Egipto, em 298-300.
Assim, Diocleciano não se preocupou unicamente com o reforço do dispositivo militar
fronteiriço. J.-M. Carrié ressalvou que esta interpretação da estratégia de Diocleciano
assenta numa compreensão incorrecta do vocábulo limes. Este (como tivemos o ensejo
de referir), a partir de meados do século III, não correspondia mais apenas a uma via
aberta em território hostil, nem tão quanto ao conjunto do sistema de protecção das
fronteiras do Império, no sentido em que diversos historiadores modernos o
entenderam, uma vez que tal étimo jamais comportou esse significado na Antiguidade.
De 250 em diante, o limes adquiriu igualmente uma acepção territorial abrangente,
reportando-se a um sector militar ou, até, a toda uma província fronteiriça num
contexto especificamente bélico, aplicando-se, por outro lado, a noção de provincia à
administração civil, quando esta passou a dissociar-se das responsabilidades militares.
A dedicatória do forte (centenarium) de Aqua Viva, na Numídia (AE, 1942-1943, 84)
alude a toda a cadeia de comando nas fronteiras no ano de 303, cujos titulares
pertenciam então à ordem equestre, incluindo o vicarius, cargo criado por Diocleciano
que se situava à cabeça de uma diocese, isto é, a um agrupamento de várias províncias:
«Sob o reinado dos nossos dois senhores Diocleciano e Maximiano, eternos Augustos, e de
Constâncio e Maximiano, bravíssimos Césares, príncipes da juventude, este centenarium, a que
se deu o nome de Aqua Viva, foi construído a partir das suas fundações a mando de Valerius
Alexander, perfectissimus, vicarius dos prefeitos do pretório, [praeses] da província da
Numídia, pelos cuidados de Valerius Ingenuus, chefe do sector do limes [praepositus limites], e
dedicado sob o consulado do nosso senhor Diocleciano e o sétimo do nosso senhor Maximiano».
Nesta inscrição, limes significa, claramente, «sector militar», sob o comando de um
praepositus.
Desde o reinado de Elagábalo, em Dura Europos há menção a um dux ripae,
subordinado ao governador da Síria, sediado num palácio que os arqueólogos
conseguiram localizar. Aqui, o vocábulo ripa deve entender-se com um sentido análogo
ao de limes: trata-se de uma província ou de um grupo de províncias fronteiriças
446
bordejadas por um rio, neste caso o Eufrates. A partir de começos do século IV, este
conjunto territorial militar ficava muitas vezes sob a autoridade de um dux. A
documentação epigráfica mostra que o último título não era mais exclusivamente
utilizado pelo comandante-chefe de um exercitus composto, por seu turno, por
vexillationes. Assim, os duces podiam estar afectos a circunscrições geográficas e não a
corpos expedicionários, sobretudo desde o fim da Tetrarquia.
Por fim, Diocleciano também se aplicou na restauração do poderio naval romano: as
incursões dos Godos no Ponto-Euxino e no mar Egeu, no decénio de 60 do século III
não haviam deparado com qualquer resistência. De facto, os Tetrarcas viram-se
confrontados com a dissidência de Caráusio na Britânia e, depois, pela de Alecto, o que
conduziu a que Constâncio Cloro tivesse de chefiar uma operação de desembarque. A
seguir, a Mancha permaneceu bastante afectada pela pirataria levada a cabo por
Francos e Saxões. Consequentemente, as acções de patrulhamento da marinha romana
serviram para completar e reforçar as defesas terrestres do litus saxonicum.
447
CAPÍTULO 13 - Do reinado de Constantino às Grandes
Invasões (séculos IV-V d. C.)
O peso conjuntural
448
prefeito e tratava da matrícula das coortes. A partir de 320, ele passou a exibir o título
de tribuno e de senhor dos offici, além de dirigir todos os gabinetes palatinos que
dependiam dos dois «condes» financeiros, ou seja, do conjunto da chancelaria
imperial. Afora as suas responsabilidades no conselho imperial e o facto de se achar à
cabeça das scholae palatinas, o «senhor dos offici» controlava também a posta imperial
e a actividade das fabricae.
Constantino viu-se obrigado a manter o exército que o acompanhava durante mais
tempo do que o normal, a fim de lograr consolidar o seu poder ainda mal firmado. Com
o objectivo expresso de recompensar estes soldados pela sua fidelidade, o imperador
concedeu-lhes determinados privilégios, que viriam a estar na origem do estatuto dos
comitatenses. É o que sugere o conteúdo de dois documentos muito importantes: a
«Tábua de Brigetio» (AE, 1937, 232) e um excerto do Codex Theodosianus (VII, 20, 4).
Na tábua de bronze de Brigetio, gravou-se o texto de um rescrito de Licínio, datando de
9 de Junho de 311, concernente aos privilégios fiscais dos soldados e dos veteranos do
Illyricum, promulgado em Serdica (Sófia) e depois afixado neste forte legionário
panoniano entre 10 e 31 de Dezembro do mesmo ano (AE, 1937, 232):
«Eis o que julgamos conveniente dar a conhecer à Tua Devoção: que os nossos soldados, pelo tempo do
seu serviço, sejam exonerados, em virtude da nossa decisão, dos cinco capita de entre os que figuram do
registo do censo e contando para as prestações correntes do imposto anonário. Que eles usufruam também
dos mesmos privilégios quando, depois de cumprirem os anos de serviço prescritos pela lei, eles obtiveram
a sua honesta missio. De igual modo, aqueles que a obtiveram após somente 20 anos de serviço, sejam
dispensados de dois capita que fazem parte dos encargos anonários, o deles e o de suas esposas. E se, por
acaso, um deles fica incapaz de servir por causa de um sofrimento sofrido em combate, mesmo que por
esta razão ele obteve a isenção dos seus bens antes de haver terminado os seus 20 anos de serviço, que
participe também no benefício do nosso presente, de maneira a que seja dispensado do seu caput e do da
sua esposa; que os soldados agradeçam, pois, pelos seus benefícios à Nossa Previdência, que vela por todos
os meios, não apenas pela tranquilidade mas igualmente pelas vantagens materiais do licenciamento dos
primeiros».
Enquanto a «Tábua de Brigetio» se refere a soldados (milites) e a veteranos (veterani),
sem pormenorizar a que corpos de tropas eles pertenciam, numa lei de Constantino
sobre o mesmo assunto, afixada em Antioquia, a 17 de Junho de 325, ou seja, depois da
derrota de Licínio em Chrysopolis (Scutari) em 324, recolhida no Codex Theodosianus
(VII, 20, 4), faz-se a distinção entre comitatenses, ripenses, alares e cohortales:
«O imperador Constantino para Máximo. Que os soldados comitatenses e ripenses e os protectores que
constem das listas do censo sejam todos dispensados do seu caput, assim como os do seu pai, mãe, sua
esposa, se os últimos ainda estiverem vivos. Se esta condição não for preenchida por uma dessas pessoas
ou pelas três, que obtenham então, pelos seus bens, um desagravamento igual ao que teriam recebido tais
pessoas se fossem vivas, a fim de que, todavia, obtenham o desagravamento dos bens verdadeiramente
próprios e não de bens estrangeiros por meio de um pacto fictício estabelecido com terceiros. Para os
veteranos eméritos, ordenamos a desobrigação do seu caput e o das suas esposas; para aqueles que só têm
a honesta missio, a desobrigação será apenas do seu próprio caput. Quanto aos demais veteranos,
independentemente dos corpos a que pertencerem, devem gozar só de um caput para eles e para as suas
esposas ao mesmo tempo. No que respeita ao veterano ripensis que, em virtude de uma lei anterior,
usufruía da isenção de um só caput ao receber a honesta missio depois de 24 anos de serviço, queremos
que dele usufrua ao fim de 20 anos, à semelhança dos comitatenses. O mesmo favor no caso de ele se
reformar antes de cumprir este tempo de serviço, já que os fracos e os débeis não estão inscritos nas listas
do censo. Quanto aos alares e aos cohortales, que gozem do desagravamento do seu próprio caput ao
longo do seu tempo de serviço, devendo os veteranos ter também uma suavização do mesmo
desagravamento. De entre os que obtiveram, em qualquer altura ou local, um diploma de desmobilização,
os que foram licenciados das unidades dos comitatenses por causa da idade ou de problemas de saúde,
gozarão, sobre o conjunto da sua base contributiva, do desagravamento de dois capita, o dele e o da sua
mulher; e os ripenses possuirão o mesmo privilégio sobre o conjunto das suas quotas, se puderem
demonstrar que se viram reformados por ferimentos sofridos em combate; assim, que desfrutem apenas da
exoneração do seu próprio caput se cessarem a sua actividade entre os 15 e os 20 anos de serviço; pois que
cabe que o ripensis seja dispensado além do caput da sua esposa, se abandonou o serviço ao cumprir os
seus 24 anos. Afixado em Antioquía, no 15º dia antes das calendas de Julho, sob o consulado de Paulinus e
de Iulianus».
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beneficiavam de exonerações fiscais mais significativas do que os alares e os
cohortales, ao passo que só os veteranos que tivessem servido como comitatenses
podiam usufruir da vantagem de uma isenção suplementar em caso de uma
aposentação antecipada, depois de 20 anos de serviço. Observamos, então, a definição
mais nítida dos contornos de uma nova hierarquia entre os diferentes corpos de tropas,
que teve em conta, a nível oficial, a evolução da estratégia imperial, iniciada durante a
segunda metade do século II d. C.
Comitatenses e limitanei
A distinção entre legiões, coortes e alas auxiliares não desapareceu, mas alguns destes
corpos militares receberam, doravante, o título de comitatenses, enquanto outros
foram qualificados de ripenses ou riparienses. Além disso, as vexillationes legionárias
podem haver sido promovidas a comitatenses, embora as suas legiões de origem não
acediam a tal estatuto privilegiado. Mais tarde, a Notitia Dignitatum identificou estes
destacamentos pelo número das suas unidades, eventualmente completado pelo seu
cognome e local original de guarnição. Quanto aos alares e cohortales, não aparecem
mais mencionados na legislação posterior: viram-se, por fim, assimilados aos ripenses,
sob a designação de cunei, que eram contingentes de cavalaria (lembre-se que o termo
cuneus significa igualmente uma formação de combate, objecto de estudo por parte de
S. Janniard.
Provavelmente no seguimento desta nova classificação é que os soldados de todas essas
unidades passaram a chamar-se limitanei, o que se atesta desde o ano 363 (Codex
Theodosianus, XII, 1, 56). Mas decerto que não foi ao desguarnecer os efectivos
militares estacionados junto das fronteiras que Constantino fundou o exército
comitatensis, como Zósimo; pelo contrário, determinados contingentes que
participaram nas campanhas de Constantino acabaram por ver o seu estatuto
intermédio alinhado no dos ripenses da lei de 325: J.-M. Carrié sugeriu que isto talvez
tenha acontecido aos cunei. Ulteriormente, integraram-se unidades limitaneae nos
comitatenses, mas receberam o título de pseudo-comitatenses.
Com as disposições legais a reforçarem progressivamente a posição privilegiada dos
comitatenses, os estudiosos modernos concluíram frequentemente que se teria
verificado uma inelutável deterioração do valor militar dos ripenses que, sob o nome de
limitanei, se converteriam numa espécie de «milícia campesina», tanto mais que os
critérios aplicados para os selecionar seriam menos exigentes. Em caso de agressões
externas, as regiões fronteiriças do Império ver-se-iam, assim, sacrificadas na falta de
uma defesa eficaz, além do tempo que os comitatenses acantonados, na sua maior
parte, nas cidades do interior do território imperial, demorariam a interceptar ou
repelir as forças invasoras. No entanto, os que advogaram esta teoria não entenderam a
palavra limes no sentido correcto, isto é, de província fronteiriça. Os ripenses (ou
riparienses), e depois os limitanei, definiam-se antes de mais como soldados às ordens
de duces regionais e não enquanto «camponeses-soldados», como amiúde se supôs,
sendo confundidos por vezes com os laeti. Estas tropas agrupavam unidades auxiliares
(alas e coortes), bem como as antigas legiões e representavam 2/3 dos efectivos totais
no século IV d. C. Embora pudessem estar em guarnições afastadas das fronteiras,
continuavam a residir em acampamentos.
As nomeações dos comandantes das unidades limitanei dependiam dos prefeitos do
pretório e dos duces, antes de serem apontadas por escrito pelo questor do palácio,
como se assinala nos papiros de Abinnaeus, candidato a uma prefeitura de ala em
Dyonisias, no Egipto, durante o reinado de Constâncio II (P. Abbin. 1). Com efeito, sob
a égide de Constantino, provavelmente antes de 329, o questor do princeps, magistrado
450
que representava o imperador no Senado no Alto-Império, transformou-se num
verdadeiro alto funcionário clarissimo, com o título de quaestor sacri palatii. Porta-voz
do imperador no conselho, ele redigia os discursos e as cartas do primeiro, preparava os
textos legais (de que conservava cópias), respondia às súplicas dirigidas ao soberano e,
pelo menos no Oriente, dispunha do laterculum minus, ou seja, o registo dos prefeitos
das alas e dos tribunos das coortes auxiliares aboletadas nas fronteiras. Contudo, estes
oficiais podiam transitar dos limitanei para os comitatenses.
Relativamente aos comitatenses, os seus efectivos ultrapassavam, de longe, os dos
comitatus anteriores, com os quais não se devem confundir. Sob este ponto de vista,
era principalmente o exército qualificado de «palatino» que constituía um
prolongamento dos comitatus tetrárquicos. J.-M. Carrié, por seu turno, viu nos
comitatenses mais pontos de contacto com os exércitos clientelares do fim da
República, cumulados de favores pelos imperatores, que se defrontaram no decurso
das guerras civis. Tais soldados também gozaram de vantagens em matéria de donativa,
da anona, de equipamento e de remonta de cavalos. A seguir da vitória de Constantino
sobre Licínio, as tropas comitatenses passaram a ficar sob o comando de dois magistri
militiae nomeados pelo imperador: um magister peditum, para a infantaria, e um
magister equitum para a cavalaria, subordinado ao primeiro.
As diferenças entre os limitanei e os comitatenses radicavam, pois, mais no seu
respectivo comando do que na sua implantação geográfica. Esta reforma teve lugar
possivelmente após a derrota de Licínio em 324, no contexto da incorporação maciça
de recrutas bárbaros, alguns dos quais se amotinaram. Os titulares dos postos de
comando eram, originariamente, talvez do ordo equestre. Mas as suas funções
permitiam-lhes, a seguir, pertencer ao Senado alargado, concebido por Constantino.
Este, com efeito, foi o criador de uma nova aristocracia imperial, saída da fusão das
duas ordens superiores romanas.
Desde a Tetrarquia, a multiplicação das províncias e o estabelecimento de novas
estruturas administrativas obrigaram a um claro aumento do pessoal, tanto para cargos
subalternos como para as mais altas funções públicas. Até ao reinado de Constantino, a
maior parte das últimas continuaram a ser exercidas por cavaleiros romanos, numa
espécie de continuidade do movimento que Galieno encetara. Porém, tornou-se cada
vez mais evidente uma contradição na alta sociedade romana, entre uma ordem
senatorial que preservava as suas riquezas fundiárias e uma eminente posição social, ao
mesmo tempo que se viu quase totalmente privada de responsabilidades políticas, e
uma ordem equestre que detinha o essencial do poder, pelo menos no caso dos
cavaleiros procedentes do exército, mas cujos membros que passavam a ser senadores
se encontravam, de imediato, excluídos do governo do Império. No entanto, a
estabilização das fronteiras do Império levou a que Constatino conseguisse resolver
esta situação paradoxal: verifica-se, a partir do seu reinado, uma inversão da relação
numérica entre cavaleiros romanos civis e os que haviam saído do exército, um
fenómeno contrário à tendência que se desenvolvera desde o principado de Galieno.
Até aos primeiros anos do século IV, os membros da classe equestre que ascendessem a
prefeitos do pretório provinham usualmente da categoria dos «perfeitíssimos»,
podendo tornar-se «claríssimos» se viessem a tornar-se cônsules. Ora, parece que
Maxêncio terá designado um senador para a prefeitura, Rufus Volusianus, que foi
enviado justamente para combater o usurpador Domício Alexandre, no Norte de África,
em 310. Desde 312, ou talvez somente desde 314, Constantino nomeou apenas
«claríssimos» para tal cargo, a tal ponto que caiu em desuso a categoria de
«eminentíssimo». O mesmo aconteceu com os prefeitos da anona e dos vigiles, cujos
derradeiros titulares equestres conhecidos se observam em fontes datando dos anos
312 e 314, ao passo que os primeiros titulares «claríssimos» se atestam em 328 e 330. O
mesmo processo afectou a governação das províncias: os últimos vicarii equestres que
se captam na documentação remontam a 325, enquanto os derradeiros praesides
equestres terão desaparecido um pouco antes. Foram geralmente substituídos por
«claríssimos» portadores do título de consularis (apesar de o epíteto praeses se haver
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mantido ainda por algum tempo) que, todavia, não tinham precedência sobre os
procônsules.
Quanto aos magistri militiae, dispunham de assento no consistório e no Senado, entre
os consulares com o estatuto de patrício e, depois, com o título de illustris a partir de
312. Com a extinção das famílias aristocráticas, o patriciado converteu-se numa
dignidade transitória, conferindo um prestígio excepcional a senadores que obtivessem
precedência sobre todos os dignitários.
Indubitavelmente a partir de 325, Constantino, que desejava dotar a sua nova capital
de um Senado, aumentou consideravelmente o número de senadores, que subiu de 600
para 2 000. Foi então necessário acolher no Senado não apenas cavaleiros romanos,
mas também a elite dos curiais. Actualmente, os historiadores continuam a discutir
qual terá sido o grau de rapidez desta absorção da ordem equestre pela ordem
senatorial, já que, aparentemente, a primeira subsistiu nas províncias geridas por
governadores pertencentes à categoria «perfeitíssima», como aconteceu no Norte de
África, mais especificamente na Mauritânia Sitifiana e na Tripolitânia, onde o título de
«perfeitíssimo», ostentado por um tal Flavius Lucretius Florentinus Rusticus (AE,
1963, 144), ainda se encontra, na transição do século IV para o V.
Mas o culminar deste processo não oferece dúvidas: o título de «perfeitíssimo»,
também empregue por alguns chefes militares, só foi concedido, a título provisório, a
curiais que atingissem o tpo das suas carreiras municipais e que, ao cumprirem todas as
suas obrigações para com as suas cidades, ganhavam o epíteto de honorati. Quanto ao
título de vir egregius, não era mais apenas atribuído aos detentores de cargos públicos
pertencentes à ordem equestre, mas igualmente aos mais ricos notáveis municipais. Os
que não haviam sido admitidos no Senado por Constantino continuaram, então, a
utilizar o título até à sua morte; o mesmo jamais voltou a ser conferido pelo imperador,
embora não tenha constituído objecto de uma supressão formal. Encontra-se a última
referência à ordem equestre em 326.
Esta evolução manifestou, simultaneamente, o retorno dos senadores à direcção dos
assuntos do Império e o desaparecimento da distinção tradicional entre a carreira
equestre e a carreira senatorial (que remontava ao começo do Principado). Ela
confirmou também a manutenção da separação entre os poderes civis e os militares nas
províncias, iniciada através das reformas introduzidas por Galieno, visto que os
limitanei acantonados nas províncias permaneceram sob a chefia de duces. Em certas
dioceses, um comes podia receber a tarefa de supervisionar a actuação de vários duces.
Estando às ordens dos «senhores das milícias», atribuiu-se igualmente aos comites o
comando das tropas comitatenses nos principais centros políticos, administrativos ou
económicos de uma diocese.
Efectivamente, Constantino fez do título de comes uma dignidade, que geralmente se
verte por «conde», que não correspondia a uma função específica. Este título era
atribuído a todos os que beneficiassem do privilégio de contactar diariamente com a
pessoa do imperador e assim venerar a púrpura. Entre 325 e 330, diferenciavam-se três
categorias hierárquicas de «condes»: na primeira, estavam aqueles que assistiam ao
conselho imperial, ou seja, os condes do consistório e os altos funcionários palatinos,
que passaram a exibir tal título a partir de 320. Assim, existia um comes stabuli, que
superintendia a distribuição de montadas pelos cavaleiros.
No que respeita ao papel desempenhado pelos comites nas dioceses, pode-se pegar no
exemplo do «conde» de África, que residia em Cartago mas cujas competências
também se estendiam a Bizacena, à Numídia e à Mauritânia Sitifiana, enquanto os
«duques» comandavam os limitanei das guarnições da Mauritânia Cesareia e da
Tripolitânia. Como acontecia na Europa, os bárbaros tinham a possibilidade de se
verem promovidos a «senhores das milícias» desde o reinado de Constâncio II,
havendo mauri designados «condes» de África, à semelhança do príncipe Gildo.
Na realidade, a presença dos comitatenses nas guarnições urbanae não era apenas
motivada por questões de natureza política como o sugeriu Zósimo (História Nova, II,
34), que acusou Constantino de arruinar desta maneira o Império e de corromper os
soldados. A instalação de tropas nas cidades apresentava também o interesse de
452
facilitar o seu aprovisionamento, ao aproximá-las dos locais mais importantes de
produção. Além disso, no Oriente designadamente, esta prática era moeda corrente
desde o Alto Império. Investigações recentes tentaram situar tais implantações
militares de forma mais precisa.
No século IV, como antes, o dispositivo militar diferia muito de uma região para outra,
mas determinadas regiões fronteiriças tinham sido demasiado afectadas para
conseguirem manter tropas com efectivos excessivamente grandes. A partir de então,
ao basear-se no facto de os comitatenses serem demasiado numerosos para ficarem
concentrados num só sítio, J.-M. Carrié defendeu a ideia que o alojamento e o
abastecimento das tropas terão favorecido a emergência de futuras grandes metrópoles
como Londres, Paris, Colónia, Genebra, Milão, Tessalónica e o Cairo. Mas esta
categoria de soldados também podia participar nas operações bélicas junto às
fronteiras. Seja como for, a defesa das cidades tornou-se verdadeiramente uma
prioridade durante o século IV, no conjunto do mundo romano: confrontado com
guerras habitualmente defensivas, o Império procurou, acima de tudo, proteger o seu
território das agressões externas e das revoltas intestinas.
Nesta conjuntura, a cidade, centro de acumulação de riquezas e ponto de apoio militar,
passou a constituir um significativo elemento estratégico. A guerra, que praticamente
desaparecera do horizonte quotidiano dos citadinos do século II, transformou-se então
no cerne das suas preocupações. O desenvolvimento atrás constatado da cavalaria e a
crescente importância da poliocértica prefiguravam já certas formas características da
arte da guerra dos tempos medievais.
453
altura empregues de maneira informal: eles terão substituído os de centurião e de
ordinarius (ou ordinatus) nos novos contingentes militares criados pelo imperador.
Mas os dois últimos postos mantiveram-se em uso no resto do exército. À semelhança
do centurionato, os novos graus também foram hierarquizados:
Centenarius (duas anonas e meia);
Centenarius protector;
Ducenarius (três anonas e meia);
Senator (quatro anonas);
Primicerius (incumbido de verificar as listas dos efectivos das unidades; cinco
anonas).
Quanto aos oficiais superiores, o posto de prefeito de ala e de coorte, ainda atestado
sob Constâncio II, acabou por desaparecer, vendo-se substituído pelo de tribuno.
Porém, nos papiros de Abinnaeus, estes dois graus parecem confundir-se.
As grandes invasões
454
Enquanto Valentiniano I e, depois, o seu filho Graciano (a seguir à morte do primeiro
em 375), combateram os Alamanos no Reno e os Sármatas no Danúbio, Valente, por
seu lado, achava-se sobretudo absorvido pelos preparativos de uma nova campanha
contra os Persas. Eis então que os Godos, cujos «reinos» haviam sido devastados pelas
investidas dos Hunos, lhe pediram asilo. Em 376, celebrou-se um acordo que parecia
convir a ambas as partes, já que os Godos receberam a autorização para se instalarem,
na qualidade de foederati, na Trácia, em troca do fornecimento de contingentes
militares que Valente contava utilizar contra os Persas.
Mas as malversações perpetradas pelo comes da Trácia, Lupicinius (que ironicamente
estava encarregado de aplicar o tratado), conduziram a um conflito armado entre
Godos e Romanos no fim de 377. Valente cometeu o erro de enfrentar o inimigo sem
esperar pelos reforços enviados do Ocidente por Graciano. A 9 de Agosto de 378, perto
de Andrinopla, o exército do Oriente, que compreendia cerca de 7 000 infantes e 3 000
cavaleiros, foi esmagado pelos Godos, que provavelmente contariam com 10 000
homens de infantaria e 5 000 de cavalaria (para uma população total de mais de 100
000 indivíduos). As baixas sofridas pelos Romanos devem ter atingido 2/3 dos
efectivos e o próprio comando saiu desta batalha particularmente enfrequecido, uma
vez que o próprio Valente pereceu, bem como 35 tribunos: Amiano Marcelino
comparou a derrota de Andrinopla à de Canas, contra Aníbal, em 216 a. C. (Histórias,
XXXI, 13, 14, 19). Consequentemente, o recurso aos bárbaros tornou-se imprescindível
para se refazer as forças imperiais dizimadas.
A partir deste momento histórico, os Godos converteram-se num elemento político-
militar da maior relevância para as duas partes do Império romano. Os historiadores
designaram com o nome de Visigodos todos os que então ficaram estabelecidos no
Império, essencialmente nas províncias danubianas, para assim os distinguir dos
Ostrogodos, que estavam sob a dominação dos Hunos.
Em 379, Graciano confiou o Oriente a Teodósio, filho de um antigo oficial de
Valentiniano I, que servira na Britânia e em Africa, antes de ser executado. O novo
imperador tentou, em primeiro lugar, travar pela força a invasão gótica. Mas as pesadas
baixas registadas em Andrinopla obrigaram-no a recrutar bárbaros. Alguns êxitos
bélicos levaram à conclusão de um tratado, em 3 de Outubro de 382. Através deste
convénio, os Godos foram autorizados a a instalar-se na Panónia, na Mésia e na Trácia,
assumindo o compromisso de, em contrapartida, facultarem contingentes militares,
embora preservando estes as suas tradicionais estruturas tribais: Os soldados godos
passaram, então, a gozar de subsídios e víveres do imperador, mas continuaram sob a
liderança do seu próprio chefe. Anteriormente, este estatuto de foederatus já fora
concedido, mas jamais para uma população tão numerosa e dotada de uma identidade
cultural e religiosa tão forte. Na sua maioria, os godos tinham-se convertido ao
arianismo, e um dos seus bispos, Ulfila, ficou para a posteridade como o primeiro
tradutor da Bíblia em língua gótica.
Igualmente pela primeira vez, estes foederati estabeleceram-se no núcleo das
províncias romanas e não na periferia das mesmas. Segundo P. Richardot, os bárbaros
terão formado cerca de metade dos efectivos do exército romano desde o último quartel
do século IV, a tal ponto que os vocábulos «soldados», «bárbaros» e «Godos» se
tornaram, amiúde, em sinónimos. Efectivamente, estes «federados» godos viriam a
constituir um poderoso fermento de agitação no Império.
Teodósio serviu-se dos Godos para lutar contra os usurpadores que eliminaram a
dinastia Valentiniana no Ocidente. A seguir à morte de Graciano, aniquilado pelas suas
tropas em Lugdunum (383), Teodósio veio em auxílio de Valentiniano II, ameaçado
pelo usurpador Máximo, que foi derrotado em Poteouio (actual Ptuj) e depois
executado em Agosto de 388. No entanto, quatro anos mais tarde, Valentiniano II
acabou assassinado em Viena, e o seu magister militum, o franco Arbogasto, mandou
proclamar o retórico Eugénio com o imperador. Teodósio decidiu intervir novamente,
logrando obter uma vitória decisiva sobre os seus adversários no Riacho Frio, entre
Émona (Ljubljana) e Aquileia, no dia 6 de Setembro de 394. Ao basearmo-nos nos
455
cálculos de C. Zuckerman, nesta campanha terão sucumbido uns 10 000 foederati
godos.
Certos contemporâneos até tentaram persuadir o vencedor a dimuir desta forma a
presença dos Godos no Império (Orósio, Contra os Pagãos, VII, 35, 19), expôndo-os
deliberadamente na primeira linha de combate. Mas os últimos não eram tolos e, após
as duas primeiras revoltas em 387-388, as relações entre o poder imperial e os
foederati não tardaram a deteriorar-se logo a seguir ao falecimento de Teodósio I em
Milão, em 17 de Janeiro de 395. Com o seu deaparecimento, selou-se a cisão definitiva
entre as duas partes do Império romano, que haviam estado temporariamente reunidas
na refrega livrada no Riacho Frio. Neste caso, pode-se falar de uma separação bem real,
ao contrário do período da Tetrarquia, em que se estabelecera uma repartição das
tarefas entre os Augustos, mantendo-se os Césares solidários num império indiviso.
Os dois filhos de Teodósio, os novos e jovens imperadores, Honório no Ocidente (com
10 anos de idade), e Arcádio no Oriente (com 17 anos) rapidamente entraram em
conflito um contra o outro, impelidos pelos seus respectivos dignitários e séquitos. As
questões relacionadas com as fronteiras representaram, de facto, um pomo de discórdia
recorrente entre os dois impérios a partir de 395. Este problema fazia-se sentir com
particular acuidade no Illyricum: os Romanos chamavam assim ao conjunto composto
pelas dioceses da Panónia, da Dácia e da Macedónia (ou seja, a maior parte das
províncias danubianas e balcânicas) que pertencia à prefeitura do pretório, de Itália,
África e do Illyricum, desde as reformas de Constantino. Só a diocese da Trácia tinha
ficado definitivamente ligada à prefeitura do pretório do Oriente, no momento da
fundação de Constantinopla.
Ora era no Illyricum que se situava a fronteira linguística entre o grego e o latim, mais
precisamente entre as dioceses da Macedónia e da Dácia. Em alturas de urgência
militar, as dioceses da Dácia e da Macedónia chegaram a ser atribuídas ao imperador
que reinava em Constantinopla. Assim, Teodósio resolvera aumentar o número dos
magistri das milícias, a fim de adaptar o dispositivo bélico à necessidade de combater
em várias frentes e à crescente regionalização dos comitatenses, já induzida pela
repartição das tropas entre Valentiniano e Valente, na impossibilidade de as concentrar
todas num mesmo local.
Na parte oriental do Império, houve sempre um magister peditum e um magister
equitum em Constantinopla, ambos qualificados como praesentales, visto que tinham
assento no consistório e desempenhavam o papel de chefes de estado-maior do
imperador. Mas, doravante, o Oriente, a Trácia e o Illyricum viram-se dotados de
tropas comitatenses, sob as ordens de um magister equitum que, no século V, adquiriu
o título de magister militum. O controlo do Illyricum e do seu exército tornou-se então
numa fonte de constantes conflitos entre os impérios do Oriente e do Ocidente.
No Ocidente, com a morte de Teodósio, na prática o poder era exercido por Estilicão,
de origem vândala, que ostentava o título honorífico de magister utriusque militiae,
isto é, «mestre das duas milícias». Os magistri militiae nunca excederam o número de
três, a Gália sendo atribuída por Estilicão a um magister equitum, para além de dois
«mestres de milícias» praesentales. Exceptuando Estilicão, a maioria destes magistri
militiae era de origem franca. Apioando-se na presença, em Itália, das tropas orientais
que Teodósio trouxera para pelejar no Riacho Frio, Estilicão recusou-se a ceder as
dioceses da Dácia e da Macedónia à pars orientalis, reclamadas por Rufino, prefeito do
pretório do Oriente. Foi nesta conjuntura que eclodiu uma nova rebelião dos foederati
godos encabeçada por Alarico, rei dos mesmos desde 394. Os actos sediciosos
devastaram a Trácia, chegando a ameaçar directamente Constantinopla.
Estilicão tentou reprimir a insurreição pela força das armas na Tessália, no Verão de
395, mas a sua iniciativa pouco durou, já que Arcádio lhe exigiu que regressasse com as
tropas orientais que ainda se encontravam sob o seu mando. Estes efectivos passaram a
ficar às ordens do godo Gainas, entretanto promovido a magister militum: isto fez com
que se reconhecesse a soberania de Arcádio sobre as dioceses em disputa. Alarico pôde
então invadir a Grécia, saqueando Atenas, e depois prosseguiu com as depredações no
Peloponeso e no Épiro.
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Porém, em 397, Estilicão agiu de novo contra os foederati Godos, desta feita no mar,
talvez alimentando a expectativa de recuperar as dioceses perdidas, mas em vão.
Depois do assassinato de Rufino a mando de Gainas, o novo prefeito do pretório do
Oriente, Eutrópio, preferiu negociar pessoalmente com Alarico, nomeando-o magister
militum per Illyricum. Ao tempo, tornou-se comum que um bárbaro lograsse aceder a
estas funções, à semelhança dos exemplos de Estilicão e de Gainas. No entanto, os
indivíduos indigitados correspondiam frequentemente a germanos perfeitamente
integrados na aristocracia romana (repare-se que Honório se casou com a filha de
Estilicão). Mas, pela primeira vez, um rei foederatus viu-se investido do comando de
tropas comitatenses, actuando na charneira entre os dois impérios.
Esta «germanização» do alto comando militar suscitou, todavia, reticências e oposições
nos meios dirigentes. Elas manifestaram-se incontestavelmente em Constantinopla,
por meio da eliminação de Gainas e do massacre dos seus acólitos em 400. Ao inteirar-
se desta notícia, Alarico resolveu afastar-se, rumando a Itália, em 401, na esperança de
aí negociar com Estilicão boas condições para se instalar. Na altura em que Honório
abandonou Milão, demasiado exposto aos invasores, por Ravena, onde estaria
protegido pelos pântanos do delta do Pó, Estilicão começou por repelir os Visigodos em
Verona e em Pollentia em 402, forçando-os a seguir para leste. Não obstante, a seguir a
estas operações militares, Estilicão entabulou conversações com Alarico, imaginando,
certamente, que poderia utilizá-lo contra Arcádio, confirmando-o no seu posto de
magister militum no Illyricum, em 404 ou 405. Celebrou-se então um acordo que
previa, entre outras coisas, a promessa de um pagamento de 4 000 libras de ouro ao
chefe dos foederati. O certo é que a tentação de recorrer aos bárbaros para os «ajustes
de contas» entre as duas cortes imperiais, acompanhada por uma nova vaga de
movimentos migratórios, acabou por se revelar fatal para o Ocidente romano.
457
regularmente actualizado, para utilização dos diferentes serviços administrativos
imperiais; com a proliferação dos últimos, a partir da Tetrarquia proliferaram as cópias
em circulação. O repertório que se conservou até hoje destinar-se-ia, mais em
particular, à entrega de cartas de nomeação para postos de comando.
No entanto, haveria, decerto, um exemplar mais adaptado para o cálculo dos efectivos
militares, mantido em dia pelo primicério dos notários, que recebia periodicamente
listas enviadas pelos comandantes das unidades. Note-se que, desde o reinado de
Constâncio II, o primeiro primicério dos notários dirigia o secretariado do conselho
imperial, o chamado consistório. Mas a schola dos notários foi indubitavelmente criada
por Constantino, com vista à elaboração das actas das sessões do consistório, estando a
primeira sob a direcção do primicério, que tinha à sua guarda o laterculum maius, a
lista dos principais funcionários, sendo provavelmente ele também que procederia
regularmente a um balanço dos recursos existentes no Império.
Para C. Zuckerman, a Notitia Dignitatum terá sido redigida em 401. Na medida em
que chegou até nós a versão ocidental do documento, a Notitia mostra indícios de
actualizações sucessivas dos informes referentes ao Império romano do Ocidente, no
início do século V. Quanto ao Oriente, pelo contrário, não se detectam quaisquer
alterações. Ainda assim, como determinadas unidades militares se viram transferidas
do Oriente para o Ocidente no período em que se efectuaram as diferentes
actualizações, elas aparecem duas vezes mencionadas na Notitia Dignitatum.
Afora tais aspectos, este documento limita-se a enumerar os nomes das unidades e os
graus hierárquicos dos seus respectivos comandantes, não indicando os efectivos
envolvidos. Estaremos nós perante uma mera estimativa, com valores nominais? A ser
verdade, isto implicaria necessariamente uma clivagem bastante significativa em
relação ao estado real das forças armadas imperiais. Efectivamente, dispomos de outras
duas fontes (que oferecem uma visão muito mais pessimista do exército romano na
transição do século IV para o V) que lançam certa suspeição sobre a fiabilidade da
Notitia: referimo-nos a dois tratados versando a arte militar, género literário
extremamente apreciado desde a época helenística; o primeiro, Epitoma de rei
militaris, escrito por Vegécio, advoga um retorno às tradições e ao modelo de uma
antiqua legio, que actualmente, os especialistas ainda se esforçam por identificar; o
segundo, anónimo, sugere o desenvolvimento do recurso às máquinas de guerra –
conhecido como De rebus bellicis, o texto foi possivelmente composto antes da derrota
de Andrinopla.
Vegécio (Epitoma rei militaris, II, 3) deplora, em particular, a mediocridade dos
«gabinetes» militares do seu tempo, pela sua incapacidade em organizar, em boa e
devida ordem, as listas dos efectivos das legiões, ameaçando o nível desejável de
operacionalidade das forças armadas:
«Não se teve o cuidado de meter novos soldados no lugar daqueles que se retiraram, já aposentados,
uma vez cumprido o seu tempo de serviço; mostrou-se ainda negligência na desmobilização de homens por
causa de enfermidades ou de doença. Tudo isto provocou um vazio tão grande nas tropas que, se não
houver atenção em recrutá-las anualmente e até mensalmente, o exército mais numeroso depressa ficará
exaurido».
Zósimo compartilhou a opinião de Vegécio (História Nova, IV, 30-31), mas ele não era,
em absoluto, mais favorável a Teodósio que a Constantino. J.-M. Carrié defendeu que,
na altura da redacção da Notitia Dignitatum, se terá registado uma diminuição dos
efectivos militares no Ocidente, ao passo que C. Zuckerman calculou que as forças dos
dois impérios se elevariam a uns 500 000 soldados, destes cabendo para o Oriente
pouco mais de metade.
Para além dos pontos de vista amiúde polémicos expressos pelos autores antigos, salta
à vista a incapacidade do exército romano em rechaçar os perigos que ameaçavam o
Império no Ocidente ao longo de todo o século V. A invasão de 406, na Britânia, levou à
usurpação de Constantino III, que a seguir tentou apoderar-se da Gália com o apoio dos
Francos Ripuários. Quatro anos depois, o poder imperial, que havia abandonado a
Muralha de Adriano desde finais do século IV, evacuou definitivamente a ilha.
458
No mesmo ano de 410, Alarico tomou Roma em 24 de Agosto e capturou Gala Placídia,
a própria irmã de Honório, que veio a desposar Ataúlfo, cunhado do líder dos foederati
godos. Apesar de gerar considerável impacto, este episódio não teve consequências de
vulto: Alarico perdeu a vida em Cosenza, no fim de 410, após o naufrágio dos navios
que ele reunira em Rhegium (actual Regio di Calabria) com o objectivo de se lançar na
conquista das províncias africanas, na esperança de que as mesmas fornecessem o
aprovisionamento tão necessário para as suas tropas. Pouco depois, Honório nomeou
como magister utriusque militiae um ilírio, Flávio Constâncio, que, em 411, logrou
eliminar o usurpador Constantino III.
Ao pretender, em simultâneo, libertar a Itália da presença dos Visigodos e a Península
Ibérica da dos Vândalos, Alanos e Suevos, Honório selou o destino das Gálias e do
Norte de África. Segundo os termos de um acordo firmado em 412 com Ataúlfo, que
sucedera a Alarico, os Visigodos voltaram-se para o sul da Gália, de onde passaram à
Hispânia, onde defrontaram os outros bárbaros que a ocupavam.
Depois do assassinato de Ataúlfo, resultado do enorme descontentamento atiçado por
um período de fome em 415, o novo rei dos Visigodos, Vália, ao chegar à parte
meridional da península, também congeminou o plano de desembarcar em África. No
entanto, uma violenta tempestade dispersou a frota que ele havia organizado. Um novo
tratado, celebrado em 417, libertou Gala Placidia em troca do estabelecimento dos
Visigodos num terço das terras da Aquitânia, na qualidade de «federados»: doravante,
eles assegurariam a defesa do Sudoeste da Gália por conta do Império. Os foederati aí
constituiriam um verdadeiro reino, que foi aumentando incessantemente. Com efeito,
eles também souberam tirar partido os problemas que assolaram o Ocidente com a
morte de Honório, em 423.
O advento de Valentiniano III, jovem sobrinho de Honório e filho de Gala Placidia (que
entretanto voltou a casar, depressa, ficando viúva do magister militum Constâncio,
falecido em 421) foi vivamente contestado pelo primicério dos notários, João. A irmã do
imperador defunto viu-se então compelida a pedir auxílio ao imperador do Oriente,
Teodósio II, filho e sucessor de Arcádio. Quanto ao usurpador, ele enviou o tribuno
Flávio Aécio (Flavius Aetius) para obter reforços junto dos Hunos. Estes nómadas, que
se encontravam na Panónia, mantinham boas relações com os impérios do Oriente e do
Ocidente, os quais tencionavam poder usá-los para manter os Godos em respeito.
Precedido pelos reforços orientais, Aécio, à cabeça de 60 000 Hunos, acabou por ficar
ao serviço de Valentiniano III, depois de receber o posto de «mestre das milícias» da
Gália, em sequência da eliminação do primicério João, em 424-425. No que respeita ao
comando militar supremo do Ocidente, ele estava nas mãos de Félix, magister
utriusque militiae.
Entretanto, os Vândalos, após cinco anos de lutas contra os Visigodos, foram
novamente obrigados a recuar, desta vez na mais meridional das províncias ibéricas, a
Bética (à qual deram, note-se, o seu nome tribal, originando o termo de Andaluzia).
Achando-se confinado a um território de escassos recursos, Genserico, rei dos Vândalos
desde 428, almejou encontrar, para lá das «Colunas de Hércules» (actual estreito de
Gibraltar), uma existência mais tranquila e próspera, que ajudasse a olvidar as
provações experimentadas pelo seu povo. De acordo com Procópio, autor de uma
História da guerra dos Vândalos, Genserico teria sido chamado ao Norte de África
pelo comes Bonifácio, então comandante-chefe do exército dessa região e que, havia
pouco, entrara em dissidência face ao poder central. Ele, que governava uma província
altamente estratégica, como dera um apoio decisivo a Gala Placídia e ao seu filho,
esperava, como recompensa, uma promoção a «mestre das milícias»; no entanto, ficou
amargamente decepcionado ao ver aquela que exercia uma autêntica regência do
Ocidente designar Aécio como magister equitum das Gálias em 425. Não admira, pois,
que Bonifácio se tenha recusado a obedecer à carta de chamamento que a imperatriz
lhe enviou em 427. Ao aperceber-se da atitude claramente sediciosa do «conde» de
África, Gala Placídia ordenou a um godo ao serviço do Império, Sigisvulto, à frente de
um contingente de tropas, que suprimisse Bonifácio.
459
Na realidade, bem vistas as coisas, os Vândalos não precisariam que lhes fosse
sugerido que rumassem para o «celeiro» de trigo do Império do Ocidente. Se tal tivesse
realmente acontecido, Bonifácio depressa tomaria consciência do seu erro, ao saber que
cerca de 80 000 Vândalos e Alanos haviam partido das «Colunas de Hércules» em
Maio de 429. Eles desembarcaram em solo africano com mulheres, crianças e velhos;
estimou-se que, no máximo, entre toda esta gente existiriam uns 15 000 guerreiros.
Não é tarefa fácil avaliar quantos efectivos teria o exército de África para os enfrentar,
mas provavelmente seriam numericamente superiores. Se nos escorarmos nos corpos
de tropas enumerados na Notitia Dignitatum, talvez houvesse perto de 30 000 homens
sob as insígnias romanas em África.
Nestas condições, como se pode explicar que a invasão dos Vândalos parece ter
representado apenas um simples «passeio militar» até Hipona, a qual o comes
Bonifácio converteu num reduto fortificado? Decerto que o dispositivo militar romano
se apoiava, em determinados sectores, num conjunto de paliçadas e fossos, à
semelhança do fossatum, acerca do qual a constituição de Honório, já referida (Codex
Theodosianus, VII, 15, 1), ainda recomendava a sua manutenção, no princípio do século
V. Mas o fossatum tinha sobretudo a aparência de uma rede viária munida de fortins e
torres de vigia, destinando-se a controlar os movimentos de populações nómadas ou
transumantes nos confins do deserto, e não para barrar o caminho a um invasor
proveniente do norte. Lembremos também que essas missões de vigilância levavam a
uma grande dispersão e a um elevado grau de mobilidade do exército romano, embora
não preparava os seus soldados para pelejarem contra forças aguerridas e endurecidas
por anos de conflitos num vasto palco geográfico, entre o Reno e o Mediterrâneo.
Vencido junto às muralhas de Hipona, Bonifácio retirou-se com o que restava dos seus
homens para o interior da cidade, onde suportou um assédio que se arrastou por onze
longos meses, entre Maio ou Junho de 430 e Agosto de 431, até que, por fim, os
Vândalos se apoderaram da localidade.
Numa situação tão perigosa como esta, a partida do comes de África para Ravena
mostra-nos a inconsequência de um governo imperial que se perdia nas intrigas
cortesãs. Galvanizado com as suas façanhas bélicas contra os Jutunges no Naricum e
na Récia, Aécio mandou assassinar Félix, em Maio de 430, e apossou-se do seu lugar à
cabeça das forças armadas romanas no Ocidente. Gala Placídia tentou então neutralizar
a crescente influência de Aécio, apoiando-se em Bonifácio (que, recorde-se, tempos
antes ela buscou eliminar), que o promoveu ao posto de magister utriusque militiae em
432. Desta vez, Gala Placídia agiu em sentido inverso, ao servir-se de Bonifácio para
combater Aécio, que entretanto se refugiou entre os Hunos. Os dois generais acabaram
por se defrontar no campo de batalha de Rimini, no Outono de 432, do qual Bonifácio
saiu mortalmente ferido. Assim, à frente de contingentes de Hunos, Aécio conseguiu
impor a sua reintegração a Gala Placídia, em 433. A partir daí, sem rivais à sua altura,
ele preocupu-se com o destino de África, que o comes Aspar havia abandonado, em
434, rumando a Constantinopla.
Por esta razão é que se concluiu, a 11 de Fevereiro de 435, a convenção de Hipona,
através da qual se concedeu aos Vândalos o estatuto de foederati no território da
Mauritânia Sitifiana e na Numídia, entre Calama e Sitifis (correspondente às hodiernas
cidades de Gelma e Setif). Por meio deste tratado, o poder imperial pensou ter salvado
o que considerava essencial: Cartago, a África Proconsular e a Bizacena, a metrópole e
as mais ricas terras cerealíferas de África. Mas não estava a contar com a avidez de
Genserico, animado por uma conquista tão fácil: quatro anos depois, lançou os seus
guerreiros ao assalto de Cartago, que foi tomada em 19 de Outubro de 439. Desta
maneira, privado das suas províncias mais férteis, o Império romano do Ocidente já se
encontrava condenado…
Quanto aos Hunos, foram empregues por Aécio na Gália, entre 425 e 439, para repelir
as investidas dos Visigodos, em Itália para robustecer as suas aspirações políticas.
Sempre com o objectivo de combater os Visigodos, Aécio estabeleceu os Alanos, na
qualidade de «federados» em redor de Orleães em 422, e os Burgúndios em Sapaudia
(entre Lyon e Genebra) em 443. Ressalve-se que outros burgúndios já haviam obtido tal
460
estatuto do magister militum Constâncio, na província da «Germânia Segunda», assim
como os Francos Ripuários na mesma e também na «Germânia Primeira» desde 428.
Aécio obtivera o auxílio de Rua, rei dos Hunos, ao ceder-lhe as províncias de Valéria,
Savia e a maior parte da «Panónia Segunda». Nos anos de 425-430, o reino huno já
representava uma potência temível, no qual uma aristocracia de cavaleiros nómadas
dominava os povos sedentários que os haviam precedido na diocese da Panónia
(Ostrogodos, Hérulos, Skiros…). Esta potência saiu ainda mais reforçada mediante os
contactos entabulados tanto com Aécio como com Teodósio II. Lembremos que a corte
de Constantinopla pagava, efectivamente, um tributo a Rua para assim o afastar da
Trácia. O sobrinho e sucessor do último, Átila, conseguiu receber a tripilicação do
montante do tributo em 447. Por aqui se vê que o império romano do Oriente sacrificou
o do Ocidente para garantir, assim, a sua segurança.
Ao pedir ajuda a Átila contra o seu irmão Valentiniano III, a princesa Honória ofereceu
ao soberano dos Hunos o pretexto que lhe faltava para se voltar para o Ocidente. Foi
em vão que o imperador lhe propôs o posto de «mestre das milícias». Na realidade, só
através de uma coligação de todos os demais foederati (incluindo os Visigodos),
reunida por Aécio, é que este logrou vencer Átila nos Campos Catalaunicos (entre as
actuais cidades de Troyes e Châlons, em França), em 20 de Julho de 451, apesar de
sofrer pesadas baixas. O «mestre das milícias» apresentou-se no campo de batalha com
uns 40 ou 50 000 homens, opondo-se às forças de Átila que teriam idênticos efectivos.
No entanto, a parte das tropas que ainda representava o exército regular romano, no
meio dos contingentes de «federados» reunidos por Aécio, era provavelmente
numericamente escassa. Assim, para conter e eliminar o perigo bárbaro nas Gálias, ao
poder imperial restou apenas a alternativa de pôr os foederati a combaterem uns
contra os outros.
Ainda que, por um lado, a morte de Átila tenha oferecido um certo alivio em 453, por
outro, o exército imperial do Ocidente veio a perder o seu último comandante de valor,
Aécio que, em 454, foi assassinado a mando de Valentiniano III. O imperador terá
querido desembaraçar-se da incómoda tutela de um «generalíssimo» que supôs não lhe
ser mais útil. Mas, pouco depois, mataram Valentiniano, talvez em jeito de represália:
este facto inquietou Genserico, que havia pouco obtivera a mão da filha do imperador
defunto para o seu próprio filho. Ora, como a princesa se viu forçada a casar com o
novo imperador, Petrónio Máximo, o rei dos Vândalos decidiu saquear Roma em Junho
de 455, antes de se apossar das Baleares, da Córsega e da Sardenha.
Ocorreram então dois desaires, um em 460 e outro em 467, que demonstraram a
incapacidade das frotas romanas do Oriente e do Ocidente em anular a dominação dos
Vândalos no Mediterrâneo ocidental. Após a extinção da dinastia Teodosiana, os
imperadores do Ocidente passaram a ser designados como «mestres da milícia» pela
corte de Constantinopla e, até, pelos chefes foederati bárbaros: isto sucedeu com Avito,
antigo prefeito do pretório das Gálias, que contou com o apoio do rei visigodo
Teodorico II. A seguir o poder militar ficou nas mãos do novo «mestre das milícias»,
Ricímero, um suevo, que derrubou do trono o sucessor de Avito, Majorieno, que
ocupara o cargo de comes domesticarum. Com efeito, ele viu no último um indivíduo
insubmisso, já que havia tentado, com Egídio, «mestre das milícias» das Gálias,
rechaçar os Burgúndios, entre 458 e 460. Substituiu-o por Líbio Severo, com a morte
do qual Leão I, imperador do Oriente, conseguiu impor, entre 467 e 472, o seu
candidato, Antémio, que faleceu pouco depois de subir ao poder Olíbrio.
Mais tarde, o posto de «mestre das milícias» coube ao burgúndio Gondebaldo,
sobrinho do defunto, que, por sua vez, jogou como «fazedor de imperadores» ao
proclamar o comes domesticarum Glicero, que não gozou de reconhecimento em
Constantinopla. Entretanto, um parente de Leão I, Júlio Nepos, aclamado pelas tropas
da Dalmácia em 474, foi rapidamente contestado pelas de Itália, cujo comandante,
Oreste, alçou ao poder supremo o seu próprio filho, Rómulo, cognominado Augústulo
(475-476): muito jovem e desprovido de meios financeiros capazes de satisfazer as
exigências dos soldados que ainda lhe restavam, depressa se viu destronado pelo chefe
skiro Odoacro, em 23 de Agosto de 476, o qual preferiu negociar com o Senado romano
461
o título de rei em Itália, em lugar de proclamar um novo imperador fantoche no
Ocidente. Enviaram-se então as insígnias imperiais ao imperador do Oriente, Zenão I,
que se negou a aceitar tal facto, continuando a considerar Júlio Nepos como o único
soberano legítimo. Cumpre referir que ainda persistia um enclave romano na Gália,
entre o Loire e o Somme, sob o controlo de Siágrio, filho de Egídio, mas acabou
derrotado por Clóvis, na batalha de Soissons em 486. Quanto a Rómulo Augústulo,
usufruiu de dias tranquilos na villa de Lúculo, na baía de Nápoles.
Em muitos aspectos, tanto o início como o fim da história militar da Roma antiga foram
marcados por figuras de condottieri, etruscos nos séculos VII-VI antes da nossa era, e
germânicos no século V d. C. É muito complexo determinar a composição e os efectivos
das forças militares que os últimos comandaram: Ricímero dispunha, provavelmente,
de pouco mais de 6 000 homens para defender a península itálica. Majorieno parece ter
reunido maior número de soldados, mas em ambos os casos os foederati germânicos e
hunos eram largamente maioritários nas fileiras. Estes exércitos, verdade se diga, em
quase nada diferiram dos que surgiram com a decomposição do Império do Ocidente,
para defenderem os reinos bárbaros. Além disso, os seus chefes não desdenharam,
esporadicamente, algumas insígnias do comando romano, designadamente a couraça e
o paludamentum.
Actualmente, julga-se que um dos factores que mais concorreu para o desaparecimento
do exército romano no Ocidente radicou na falta de recursos que mais concorreu para o
desaparecimento do exército romano no Ocidente. A perda do Norte de África
significou, neste contexto, um golpe mortal. De acordo com C. Zuckerman, a única
tentativa de reconquista das ilhas do Mediterrâneo ocidental aos Vândalos, em 468,
custou indubitavelmente ao tesouro imperial mais de um ano de receitas.
Aparentemente, é um texto hagiográfico que testemunha da maneira mais vivaz e
eloquente o impasse financeiro em que mergulhou o Império: trata-se da Vida de São
Severino (20), de Eugípio, na qual se evoca a suspensão de um procedimento
administrativo essencial para o funcionamento do exército regular romano, o
pagamento do soldo, certamente na altura em que Rómulo Augústulo foi deposto por
Odoacro. Na narrativa, o autor alude a uma guarnição estacionada em Bataua (actual
Passau), no Noricum, que se encontra privada de soldos:
«Nesta mesma época – ainda existia o Império romano – os soldados afectos à guarda da fronteira, num
grande número de cidades, eram remunerados a partir dos fundos públicos; quando terminou este hábito,
as unidades militares desapareceram ao mesmo tempo que a fronteira; só restava um corpo de tropas
aboletado em Bataua. Certos soldados desta unidade partiram rumo a Itália, a fim de obterem o último
soldo destinado aos seus camaradas; no entanto, durante a viagem, foram mortos pelos bárbaros, sem que
ninguém disto tivesse conhecimento».
O relato de Eugípio sugere que existiriam soldados que receberiam as suas pagas, de
acordo com as regras da administração imperial até à desaparição do Império no
Ocidente, embora o seu número fosse cada vez menor. Ao lermos o trecho acima citado,
ficamos com a impressão de que a missão levada a cabo por um punhado de militares
se revestiria de um carácter excepcional e que, usualmente, os soldados seriam
remunerados sem precisarem de se deslocar – como acontecia no Alto-Império – mas
torna-se difícil irmos para além de uma mera impressão, sem incorrermos no risco de
especular demasiado.
462
cuja criação remonta a pouco depois da sublevação da Panónia em 6 d. C. e da
estrondosa derrota de Varo no ano 9. Tal unidade aparece situada, pela Notitia
Dignitatum (Oriente, XXXVII, 33), nas imediações de Gaze, onde a sua presença ainda
se atesta em princípios do século VII. Com base na Notitia, 1/3 das guarnições orientais
(mais de 100 unidades) encontrava-se junto ao curso inferior do Danúbio. Frente aos
Sassânidas, umas 60 unidades vigiavam os cursos superiores do Tigre e do Eufrates, ao
passo que outras 100 estavam repartidas pela Síria, Fenícia, Árábia e pela Palestina, até
aos confins do deserto. No que toca ao Egipto, ao longo do Nilo, desde o Delta até à
Primeira Catarata, haveria 75 contingentes militares aboletados.
É no Império do Oriente que salta mais à vista a gradual perda de eficácia dos
limitanei: ao ignorarem as mudanças de afectação ou as transferências, estes soldados
integraram-se na sociedade civil, a tal ponto que descuraram os seus deveres militares.
Assim, a partir dos anos 40 do século IV, os papiros de Abinnaeus testemunham um
fortíssimo absentismo na guarnição de Dyonisias aquando das sementeiras e colheitas
no fértil Faium; mal pagos, os limitanei viam nas actividades agrícolas um
indispensável complemento de rendimentos, na medida em que muitos deles haviam
herdado dos seus progenitores o estatuto militar e, igualmente, lotes fundiários que
cada um (ou os seus respectivos pais) recebera ao terminar a carreira das armas. Neste
caso, é totalmente pertinente falar em soldados-camponeses. Esta crescente confusão
entre a condição militar e a condição civil tornou sem sentido a definição de um
estatuto jurídico do veterano, que desapareceu no decurso do século V.
Quanto ao desenvolvimento da cavalaria, ela relacionou-se principalmente com os
comitatenses: na sua maioria, consistiam em cavaleiros couraçados equipados de arco,
espada e lança que souberam assimilar as técnicas de combate características dos seus
inimigos godos, alanos, persas ou avaros. Mas ao ser mais eficiente, este exército
montado revelou-se também mais oneroso. Tal acréscimo de custos explica o facto de o
poder imperial haver negligenciado cada vez mais as guarnições de limitanei, não
obstante as boas intenções anunciadas por Teodósio II na sua IV Novella, em 438.
Enquanto grande parte da marinha de guerra se achava no Ocidente na altura em que
se redigiu a Notitia Dignitatum, à excepção da frota do Danúbio, o Império romano do
Oriente muniu-se de uma força naval para enfrentar a ameaça dos Vândalos em
meados do século V: constituída por galés com apenas uma bancada de remadores
(dromones) teve, possivelmente desde este período, o seu porto de matrícula no Corno
Dourado, desempenhando, mais tarde, um papel determinante no dispositivo militar
bizantino.
463
CAPÍTULO VII – Acções de conquista, de supressão de revoltas e
expedições punitivas. Exame de alguns casos concretos
464
dominação romana. As estruturas militares documentadas para este período são,
basicamente, acampamentos de marcha, localizados nas zonas onde os conflitos entre
Roma e as tribos nativas, ou entre vários exércitos romanos, se revelou mais virulenta,
designadamente a área planaltica soriana ou algumas parcelas da Lusitânia 1234.
A Guerra Cântabro-ásture, que Augusto desencadeou desde 29 a. C., prolongando-se
até 19 a. C. significou o último conjunto de confrontos de vulto ocorridos na Hispânia,
visando a incorporação dos territórios nortenhos da Península Ibérica. Se, por um lado,
no que respeita à tácticas militares houve uma continuidade no papel atribuído ao
exército romano do período tardo-republicano, por outro, estas contendas peninsulares
inauguraram uma estratégia inovadora no âmbito do esquema do Estado concebido
pelo princeps. A própria concepção do exército mudou desde os tempos republicanos,
tornando-se o mesmo um eficiente instrumento nas mãos do imperador. Este teve de
arranjar novas missões para manter o exército afastado, o mais possível, da cena
política e, simultaneamente, garantir a segurança das pessoas que viviam no interior do
império. O exército era responsável pela protecção das fronteiras do império, ao longo
das quais diferentes corpos estavam aboletados. Ao mesmo tempo, esta política
implicava a obrigação de procurar um limes estrategicamente mais segura, tarefa que
conduzia à realização de diversas campanhas para proteger as zonas mais vulneráveis
do império, expostas a ameaças externas, como o Norte de Itália, as regiões
setentrionais da Gália, a costa da Dalmácia, as possessões africanas ou as províncias
ibéricas1235. O exército desempenhou igualmente papéis que complementavam ou até
substituíam as autoridades civis em regiões recém-conquistadas ou com especial
interesse estratégico.
Não se sabe ao certo como estavam distribuídas as tropas nas fronteiras, distribuição
que, como Orósio referiu (Hist. 6.19.14), fora decidida por Augusto em Brindisium (30
a. C.). Todavia, sob o ponto de vista geoestratégico, o Norte da Hispânia era
indiscutivelmente crucial para os planos de Augusto, dado que se tratava de um
território independente dentro dos limites geográficos do império. Certamente foi um
dos motivos mais relevantes para Augusto inaugurar a sua nova política militar de
fronteiras naturais estáveis neste território, com o denominado bellum Cantabricum et
Asturum. Mas houve outras razões.
Desde que Octaviano tomou posse da Iberia e até às campanhas definitivas contra
Cântabros (Cantabri) e Ástures (Astures), as Hispaniae foram governadas como uma
única província por procônsules indigitados pelo jovem César 1236, celebrando, quase
todos eles, triunfos ex Hispania no fim dos seus mandatos1237. Estes reconhecimentos
solenes não serviam apenas para satisfazer o ego dos comandantes 1238; eram, em vez
disso, consequência de uma política ofensiva que, no âmbito da guerras civis,
correspondia à necessidade de Octaviano reforçar a sua posição no Ocidente
romano1239. Sabemos que em 39 a. C. C. Domício Calvino terá combatido os Cerretani
nos Pirenéus (Dião Cássio, 48.42, Veleio Patérculo, 2.78.3), campanha que se pode
relacionar com os esforços para controlar certas regiões montanhosas que, ao jeito de
«bolsas» ou enclaves independentes, subistiam entre diferentes territórios romanos 1240.
1234
A. Morillo Cerdán,«Conquista y defensa del territorio en la Hispania republicana: los estabelecimientos militares
temporales», in A. Morillo Cerdán, F. Cadiou e D. Hourcade (eds.), Defensa y territorio en Hispania de los Escipiones a
Augusto. Espacios urbanos y rurales, municipales y provinciales, Madrid, 2003, p. 73.
1235
J. M. Roldán, Hispania y el ejército romano, Salamanca, 1974, p. 55.
1236
R. Syme, «The Conquest of North-West Spain», in A. Viñayo González (ed.), Legio VII Gemina, Diputación
Provincial, Léon, 1970, pp. 85-86; López-Barja, 2000, p. 34.
1237
A. Tranoy, La Galice romaine. Recherches sur le Nord-Ouest de la Péninsule Ibérique dans l’Antiquité, Paris,
CNRS, 1981, p. 133.
1238
C. Amela Valverde, «Triunfos en Hispania a finales de la República (36-27 a. C.)», Iberia, 9 (2006), pp. 49-61.
1239
D. Kienast, Augustus: Prinzeps und Monarch, Darmstadt, WBG, 1999, pp. 42-58. Tomemos em consideração as
campanhas empreendidas na Aquitânia (38 a. C.; Apiano, B. Civ. 5.92; Dião Cássio, 53.49.2), a guerra contra os Salassi
(35-34 a.C., Apiano, 3.17; Dião Cássio, 49.38.3) ou as operações bélicas na Ilíria do próprio Octaviano (35-33 a. C.;
Apiano, 3.16.18-27; Dião Cássio, 49.35-38).
1240
C. Amela Valverde, «Cn. Domicio Calvino y los Cerretanos», Hispania Antiqua, 35 (2011), pp. 43-65; K. Larrañaga,
El hecho colonial romano en área circumpirenaica occidental, Universidad del País Vasco, Vitoria-Gasteiz, 2007, pp.
75-83. Alguns testemunhos arqueológicos talvez apontem para a existência, na zona pirenaica, de praesidia ou turres
465
Lamentavelmente, sobre as acções militares conduzidas por Caio Norbano Flaco (34
a. C.), Lúcio Márcio Filipo (33 a. C.) ou de Ápio Cláudio Pulcro (32 a. C.), não dispomos
de outro registo documental afora os Fasti Triumphales, e tão pouco são concludentes
os vestígios arqueológicos na área cantábrica oriental 1241. No entanto, Dião Cássio
oferece sucintos informes (5.20.5) acerca da campanha levada a cabo por Tito Estatílio
Tauro contra Ástures, Cântabros e Vaceus (Vaccei), em 29 a. C. Supôs-se que as
operações militares se teriam desenrolado no território do último povo referido, em
plena meseta norte,1242 e que o acampamento romano de Villalazán (Zamora) talvez
tenha sido construído nessa altura 1243, apesar de faltarem elementos materiais que
confirmem esta hipótese1244.
Juntamente com as acções que teriam motivado a concessão do triunfo a Caio Calvísio
Sabino (28 a. C.) e a Sexto Apuleio (26 a. C.), a campanha dirigida por Tauro é
considerada como uma manobra prévia à ofensiva definitiva contra os Cântabros e
Ástures1245. Então, esta última guerra, afora significar o lógico corolário de uma política
militar desenvolvida na Península Ibérica na década anterior, também corresponderia
ao reforço de uma estratégia ofensiva nas províncias romanas após o fim das guerras
civis (Veleio Patérculo, 2.90.1). Quanto à presença de Augusto no teatro de operações,
cabe não olvidar que o princeps, na qualidade de membro da elite senatorial tardo-
republicana, ansiava que o seu nome ficasse associado à vitória e à glória militares 1246.
Esta avidez via-se ainda mais acicatada por dois factos: nem na sua juventude ele havia
gozado de boa consideração como comandante, nem tão quanto a maneira como
ganhara o poder em Roma, depois de um conflito civil, podiam contribuir para mudar
esta frágil reputação1247. Havia que satisfazer várias expectativas: todos os grandes
dirigentes republicanos ganharam crédito e fama em Roma como conquistadores e
Octaviano, até aí, só saira vitorioso em contendas contra romanos 1248.
Foi precisamente em 27 a. C. (quando o Senado lhe concedeu o título de Augustus,
um consulado vitalício e a governação das três províncias militares mais importantes, a
Gália, a Hispânia e a Síria), concidindo com a primeira crise do novo regime político
romanos, de algum modo associados com estes acontecimentos: J. Morera Camprubí, J. Oller Guzmán et al., «El
Castellot de Bolvir (La Cerdanya): ocupacións ceretana, iberoromana i altmedieval. Campanyes de 2012 i 2013», in
Dotzenes Jornades d’Arqueologia de les Comarques de Girona, Besalú, Museu d’Arqueologia de Catalunya, 2014, pp.
159-167; J. Padró e J. Piedrafita, «Les étapes du contrôle des Pyrénées par Rome», Latomus, 46 (1987), pp. 360-361.
1241
Datou-se o conhecido campo de batalha de Andagoste (Álava. Cf. J. A. Ocharán Larrondo e M. Unzueta Portilla,
«Andagoste (Cuartango, Álava): Un nuevo escenario de las guerras de conquista en el norte de Hispania», in Á. Morillo
Cerdán (ed.), Arqueología Militar Romana en Hispania, Madrid, CSIC, Madrid, 2002, pp. 311-325; M. Unzueta Portilla
e J. A. Ocharán Larrondo, «Aproximación a la conquista romana del Cantabrico Oriental: el campo de batalla de
Andagoste (Cuartango, Álava)», in M. P. García-Bellido (ed.), Los campamentos romanos en Hispania (27 a. C.-192 d.
C.). El abastecimiento de moneda, Vol. II, Madrid, CSIC, 2006, pp. 473-490) da década de 30 a. C.. Porém, mais
recentemente, A. Martínez Velasco (Campamentos romanos de campaña en el extremo oriental del Cantábrico», , in Á.
Morillo Cerdán, N. Hanel e E. Martín Hernández [eds.], Limes XX. Estudios sobre la frontera romana, vol. I, Madrid,
CSIC, 2009, pp. 367-370) sugeriu que este sítio não se relaciona tanto com o processo de conquista desta região,
submetida desde o tempo sertoriano, mas antes com uma desconhecida contenda intestina romana.
1242
L. Pérez Vilatela, «Geopolítica de las tierras zamoranas bajo la República Romana», Studia Zamoranensia, 10
(1989), pp. 13-14.
1243
S. Carretero Vaquero, «El cuadrante noroeste peninsular en época romana: los efectivos militares y sus
estabelecimientos», Brigetio, 3 (1993), pp. 47-72, p. 55; IDEM, «El ejército romano del noroeste peninsular», Gladius,
19 (1999), pp. 146
1244
J. M. Costa García, Arqueología de los asentamientos militares romanos en la Hispania altoimperial (27 a. C.-ca.
280 d. C.), USC, Santiago de Compostela (tese de doutoramento inédita), 467-477.
1245
A. Tranoy, La Galice romaine. Recherches…, p. 134; J. González-Echegaray, «Las guerras cántabtras en las fuentes»,
in M. Almagro Gorbea, Mª J. Blázquez Martínez et al. (eds.), Las guerras cántabras, Madrid, Fundación Marcelino
Botín, 1999, pp. 158-161, C. Amela Valverde, «Triunfos en Hispania…», pp. 56-57. Ademais, coincidiriam com as
operações chefiadas por Marco Valério Messala Corvino na região aquitana, em 29-28 a.C. (Apiano, B. Civ. 4.38; Álbio
Tíbulo, Poemas, 1.7; C. Amela Valverde, «Cn. Domicio Calvino…»,, pp. 53-55.
1246
G. Woolf, «Roman Peace», in J. Rich e G. Shipley (eds.), War and Society…, pp. 182-183, W. Eck, The Age of
Augustus, Malden, Blackwell Publishing, 2007, pp. 123-124. Tanto a construção do forum de Augusto como a elaboração
das Res Gestae Divi Augusti reflectem perfeitamente este aspecto: P. López-Barja de Quiroga, «Augusto, monarquía y
revolución», in M. Campagno, J. Gallego e C. García Mac Gaw (eds.), El Estado en el Mediterráneo antiguo, PEFSCEA,
Buenos Aires, 2011, pp. 381-382.
1247
E. S. Gruen, «The Imperial Policy of Augustus», in K. A. Raaflaub, M. Toher e G. W. Bowersock (eds.), Between
Republic and Empire: Interpretations of Augustus and His Principate, Berkeley, University of California Press, 1990,
pp. 409-414.
1248
J. M. Costa García, «Las campañas augusteas en el noroeste peninsular…», p. 97.
466
instaurado por Augusto – verdadeira autocracia militar sob a máscara das tradições
republicanas – que o princeps achou oportuno deslocar-se às Gálias e às Hispânias
para fazer uso do seu imperium proconsulare e mostrar-se de novo como comandante
militar1249. Na Urbs, pensava-se que tomaria o caminho da Britânia, para onde Júlio
César já enviara duas expedições exploratórias, mas o destino foi outro. Depois de
passar pela Gália, Augusto seguiu em direcção a Tarraco (actual Tarragona). Aqui
assumiria os consulados dos dois anos subsequentes, 26 e 25 a. C., com o expresso
propósito de finalizar a conquista da Península Ibérica.
Numa óptica estritamente militar, as campanhas augustanas na Hispânia dividem-se
em duas fases: primeira, a Guerra Cântabro-ásture propriamente dita e os anos
subsequentes (29-19/15 a. C.); e segunda, o processo de estabilização, aquilo a que
Morillo1250 rotulou de «paz armada» (19-15 a. C.-14 d. C.). A ascensão de Tibério ao
poder levou a uma reorganização militar do Norte peninsular. No entanto, afora estes
dois estádios, cumpre evocar os precedentes da conquista dos últimos povos livres da
Hispânia, que cronologicamente se situam entre o período de Júlio César e o início da
Guerra Cântabro-ásture.
Dediquemos vários comentários à assimilação da periferia setentrional ibérica por
parte de César, através da conquista e da integração da Galiza e da parte oriental da
Cantábria. Gallaecia e Callaecia são os nomes empregues pelos autores antigos que
descreveram a região que se estendia até ao extremo noroeste da Hispânia, território
assim designado por causa dos seus habitantes, os Callaeci. O nome pode ter surgido a
partir de um pequeno grupo étnico localizado a nordeste do Porto, entre o Douro e o
Lima (Plínio-o-Velho, Hist. Nat. 3.28). Posteriormente, este grupo deu o seu nome a
toda a região entre o Douro e o mar Cantábrico. Os Gallaeci, restringidos a leste pelos
Ástures e o Douro, moldaram a sua fronteira meridional com os Lusitanos. Os Gallaeci
do sul viram-se subjugados entre 138-136 a. C. por D. Júnio Bruto (Apiano, Ib. 73-75;
Tito Lívio, Per. 56), que até ganhou a alcunha de Galaicus por causa da sua vitória.
Quanto à conquista do Norte da Gallaecia (actual Galiza), ocorreu provavelmente após
a campanha conduzida por Júlio César em 61 a. C.
Conquanto a historiografia tradicional mostre a participação dos Gallaeci na Guerra
Cântabro-ásture como um lugar-comum, o silêncio das fontes clássicas, juntamente
com os elementos recentemente fornecidos pela arqueologia, confirma que o território
dos Gallaeci não esteve directamente envolvido no dito conflito. Esta zona aparece
mencionada uma única vez nas fontes antigas no contexto da Guerra Cântabra: uma
passagem de Orósio, que alude ao cerco e conquista do Monte Medúlio (Mons
Medullius) no Minio flumini inminentem, localizado, segundo o autor, «nos lugares
mais extremos da Gallaecia» (Hist. 6.21.6-8). Por outro lado, a arqueologia corrobora a
presença de vestígios romanos tardo-republicanos e augustanos entre os Gallaeci que
se situavam mais a sul e a oeste1251: trata-se de sinais apontando para uma assimilação
inicial de padrões culturais romanos.
Todavia, face à proximidade do palco da Guerra Cântabro-ásture, a parcela oriental
dos Gallaeci esteve provavelmente intimamente associada à conquista e submissão dos
Ástures, em especial dos habitantes das áreas montanhosas que bordejavam ambos os
povos e os que habitavam na costa (Transmontani), região que seria a retaguarda e a
base ocidental da ofensiva romana no oeste contra o território dos Ástures 1252.
Estreitamente conectada com esta questão, há a considerar a eventual existência de um
forte romano em Lucus Augusti, actual Lugo. As escavações que aqui se efectuaram nos
últimos anos sugerem uma fase inicial de carácter militar, o que A. Schulten já
defendera1253. Tal hipótese fundamenta-se sobretudo no estabelecimento de um edifício
1249
D. Kienast, Augustus: Prinzeps…, pp. 99-100; W. Eck, The Age of Augustus, p. 61.
1250
A. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia: el ejército romano durante el período augusteo y julio-claudio en la
región septentrional de la península ibérica», in A. MorilloCerdán (coord.), Arqueología Militar Romana en Hispania,
Anejos de Gladius, Madrid, 2002, p. 77.
1251
J. M. Naveiro, El comercio antiguo en el NW peninsular, Monografías urgentes 5, Corunha, 1991.
1252
A. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia…», p. 71.
1253
A. Schulten, Los Cántabros y Astures y su guerra contra Roma, Madrid, 1943, p. 177.
467
destinado à cunhagem de moedas, nas quais o seu reverso ostenta uma caetra, o escudo
típico dos Gallaeci1254, moneta militaris que se produziu entre 27 e 23 a. C., no tempo
da Guerra Cântabro-ásture. Acresce que as prospecções arqueológicas vieram a revelar
o nome da unidade militar estacionada nesse sítio – Legio VI Victrix, cuja abreviatura
parece surgir gravada num silhar reutilizado 1255. Este forte terá sobrevivido cerca de dez
anos, sendo remodelado para balizar a segunda vinda de Augusto à Península, entre 16
e 13 a. C1256. Mas este recinto militar levanta questões para as quais ainda não se
encontraram respostas, sobretudo no âmbito cronológico. Com efeito, não se
detectaram estruturas construtivas documentadas pertencentes ao dito forte, além de
que a arqueologia não trouxe à tona vestígios materiais remontando a tais datas 1257.
Ainda assim, um forte neste local desempenharia certamente um papel táctico muito
importante, envolvendo os Ástures, que seriam atacados não só pelo leste, aspecto que
as fontes ilustram, como também pelo lado oposto das montanhas. Isto foi,
provavelmente, uma das maiores tarefas que coube à coluna ocidental do exército
romano, comandado por P. Carísio, legatus da Lusitânia.
A conquista e a assimilação dos nativos que viviam junto ao mar Cantábrio oriental
evidenciam um padrão bastante similar ao caso dos Gallaeci, povos cuja integração
principiou no começo do século I a. C. Face à mudez das fontes literárias a este respeito,
presume-se que o exército romano não desempenhou um papel de vulto nesta zona.
A recente descoberta de uma instalação militar romana, datando de c. 40-30 a. C., em
Andagoste (Cuartango, Álava), perto da fronteira entre o País Basco e a Cantábria, 1258 é
uma das provas mais concludentes de que Roma levou a cabo movimentações militares
tácticas na parte setentrional da Península, antes da Guerra Cântabro-ásture. Estas
manobras obedeceram, talvez, ao intento de facilitar a conquista dos núcleos indígenas
mais hostis (Cantabri e Astures), esmagando de permeio a resistência oferecida pelas
tribos dos Autrigoni e Caristi, vizinhos orientais dos Cântabros. Estas comunidades
terão ficado, em geral, sob controlo romano no tempo das Guerras Sertorianas (Tito
Lívio, 91). Na génese deve ter estado a subjugação dos Aquitanianos por Júlio César em
56 a. C. Este processo findou pouco antes antes do bellum Cantabricum, quando
Messala Corvino foi incumbido por Augusto de submeter os Tarbelii (29-27 a. C.), povo
que habitava no extremo sudoeste da Aquitânia (Tib I.7.9). Na parte leste da Cantábria,
não colhemos evidências de qualquer acção empreendida por Júlio César, como no caso
dos Gallaeci (61 a. C.). Mas talvez Júlio César tenha sido o autor do plano estratégico
que Augusto aplicou para a conquista dos territórios nortenhos 1259.
Nas diferentes fases da guerra participaram sete legiões 1260. Nas campanhas dos anos
26-25 a. C. estiveram envolvidas seis - I Augusta, II Augusta, V Alaudae, VI Victrix, X
Gemina e VIIII (IX) Hispana -, às quais se juntou a IIII (IV) Macedonica aquando da
campanha dirigida por Agripa, em 19 a. C. Quanto à VIIII Hispana, existem provas
concretas que permitem rastrear a sua presença em solo ibérico 1261.
Aos factores estratégicos, políticos e propagandísticos, acrescentaram-se outros: o
interesse pela exploração mineralífera, designadamente dos depósitos auríferos
1254
S. Ferrer, «El posible origen campamental de Lucus Augusti a la luz de las monedas de la caetra y su problematica»,
in A. Rodríguez Colmenero (coord.), Lucus Augusti I. El amanecer de una ciudad, Corunha, 1996, pp. 425-446.
1255
A. Rodriguez Colmenero (coord.), Lucus Augusti…, p. 286, n. 108.
1256
Ibidem, pp. 288-292.
1257
A. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia…», p. 76.
1258
M. Unzueta Portilla e J. A. Ochara n Larrondo, «Aproximación a la conquista romana del Cantábrico oriental: el
campamento y/o campo de batalla de Andagoste (Cuartango, Álava)», Regio Cantabrorum (Santander, 1999), pp. 125-
142.
1259
A. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia…», p. 74.
1260
R. Syme,«Some notes on the legions under Augustus», JRS 23 (1933), pp. 15, 22-23, A. Schulten, Los Cántabros y
Astures y su guerra…, p. 202; A. García y Bellido, El “Exercitus Hispanicus” desde Augusto a Vespasiano», Archivio
Español Arq. 34 (1961), pp. 116-128; J. M. Roldán, Hispania y el ejército romano…, pp. 188-209; P. Le Roux, L’Armée
romaine et l’organisation des provinces ibériques d’Auguste à l’invasion de 409, Paris, 1982, p. 61.
1261
A. MorilloCerdán, «Hispania en la estrategia militar del Alto Imperio: movimientos de tropas en el arco atlántico a
través de los testimonios arqueológicos», in C. Fernández Ochoa e P. García Díaz (eds.), III Coloquio Internacional de
Arqueología en Gijón: Unidad y diversidad en el Arco Atlántico en época romana, BAR Int. Series 1371, Oxford,2005,
pp. 23-24.
468
regionais1262, necessários para a manutenção da política monetária estabelecida por
Augusto relativamente ao novo aureus1263. No que concerne às tácticas adoptadas para
a conquista do território dos Cântabros e Ástures, decerto que não diferiram muito das
de Júlio César na Gália ou do próprio Augusto, anos depois, na Germânia ou na
Panónia e Dalmácia. Em 1996, Á. Morillo Cerdán 1264 advertiu para a ausência de bases
militares romanas que remontassem seguramente ao período do conflito cântabro-
ásture, mas hoje em dia esta ideia já não é válida. Durante anos a fio, a falta de
investigações empreendidas sistematicamente foi responsável por esta aparente
inexistência de documentação1265.
Mas há, igualmente, mais razões, como a dificuldade em recolher vestígios materiais
do exército romano em campanha: as tropas, por norma, deslocavam-se rapidamente
de um local para outro, consoante os objectivos e as prioridades do conflito. Por isso é
que a maior parte dos acampamentos era de carácter temporário, vendo-se ocupados
por curtos espaços de tempo e construídos com terra e madeira, estruturas que
deixaram poucas marcas visíveis no terreno. Os seus bens materiais também seriam
limitados e geralmente transportáveis1266. Seria bem difícil abastecer o exército romano
com provisões nas suas expedições contra as tribos setentrionais, devido à topografia
do território e à sua distância em relação aos mais relevantes centros de produção e às
rotas de comunicação marítimas1267. Consequentemente, a possibilidade de documentar
tanto as estruturas construtivas como materiais é bastante limitada.
Por outro lado, alguns dos principais acampamentos, como o de Herrera de Pisuerga,
jazem sob as cidades actuais que alteraram sobremaneira as evidências arqueológicas,
tornando espinhosa a tarefa de extrair dados concretos. Ademais, não olvidemos que o
clima e as características geográficas do Norte da Hispânia – com terrenos rochosos e
consideráveis oscilações termais – obstam à preservação e identificação dos
acampamentos de marcha temporários1268. Ainda assim, registaram-se progressos
muito relevantes nos últimos anos. Em 1996, identificou-se o primeiro acampamento
de marcha intimamente ligado à Guerra Cântabro-ásture 1269, e, mais tarde, tem-se
vindo a descobrir um crescente número de estabelecimentos militares e povoados
indígenas testemunhando operações de assédio. A maior parte deles situa-se na actual
região da Cantábria. Cildá, El Cantón, El Campo de las Cercas, El Chincho e La Poza 1270.
Outros, como o de La Muela e o de La Loma, localizam-se a norte da região de Castela e
1262
Os Romanos também pretendiam explorar as minas de ferro e controlar a produção e a comercialização do estanho
1263
Mª P. García-Bellido, «Labores mineras militares en Hispania. Exploitación y control», in A. Morillo Cerdán
(coord.), Arqueología Militar Romana…, 2002, p. 24.
1264
«Los campamentos romanos de la Meseta Norte y el Noroeste:¿ un limes sin frontera?», in C. Fernández Ochoa
(coord.), Les Finisterres Atlánticos en la Antigüedad (época prerromana y romana), Madrid, 1996, p. 72.
1265
E. Gutiérrez Cuenca e J. A. Hierro Gárate, «La guerra cantábrica: de ficción historiográfica a realidad arqueológica»,
Nivel Cero 9 (, 2001), p. 82.
1266
Á. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia…», pp. 71-72.
1267
Á. Morillo Cerdán, «Abastecimiento y producción local en los campamentos romanos de la región septentrional de la
peninsula ibérica», in A. Morillo Cerdán (ed.), Arqueología Militar Romana en Hispania. Producción y abastecimiento
en el ámbito militar, Léon, 2006, pp. 37-38.
1268
A. Morillo Cerdán e V. García Marcos, «Twenty years of Roman Military Archaeology in Spain», in P. Freeman, J.
Bennett, Z. T. Fiema e B. Hoffmann (eds.), Limes XVIII. Proceedings of the XVIIIth International Congress of Roman
Frontier Studies, BAR Int. Series 1084 (II), Oxford, 2002, p. 780.
1269
E. Peralta, «Los castros cántabros y los campamentos romanos de Toranzo y de Iguña. Prospecciones y sondeos
(1996-97)», in Las Guerras Cántabras, Santander, 1999, pp. 201-276.
1270
E. Peralta, «El asedio romano del castro de La Espina del Gallego (Cantabria) y el problema de Aracelium»,
Complutum 10 (1999) pp. 195-212; IDEM, Los cántabros antes de Roma, RAH 5, Madrid, 2000, pp. 273-282; IDEM,
«Die augusteische Belagerung von La Espina del Gallego (Kantabrien, Spanien)», Germania 79.1 (2001), pp. 21-42;
IDEM, «Los castra aestiva del bellum Cantabricum: novedades arqueológicas», in L. Hernández Guerra, L. Sagredo
San Eustaquio e J. M. Solana Sainz (eds.), I Congreso Internacional de Historia Antigua, Valladolid,2001 pp. 173-182;
IDEM, «Los campamentos de las Guerras Cántabras de Iguña, Toranzo y Buelna (Cantabria)», in A. Morillo Cerdán
(ed.), Arqueología Militar Romana…2002, pp. 327-338; M. García Alonso, «El campamento romano de “El Cincho” (La
Población de Yuso). Un nuevo yacimiento de las guerras cántabras», Sautuola, VIII (2002), pp. 99-106; IDEM, «El
campamento romano de El Cincho (La Población de Yuso). Resultados arqueológicos de la campaña del año 2001»,
Sautuola, IX (2003), pp. 109-139; IDEM, «El campamento romano de campaña de El Cincho (Cantabria)», in A. Morillo
Cerdán (ed.), Arqueología Militar Romana em Hispania. Producción y abastecimiento…2006, pp. 549-566; J. J.
Cepeda, «Los Campamentos romanos de La Poza (Cantabria)», in A. Morillo Cerdán (ed.), Arqueología Militar
Romana…, 2006, pp. 683-690.
469
León (Fig. )1271. Graças a estas descobertas, a nossa visão global da estratégia da
conquista do território dos Cantabri e dos Astures ganhar contornos mais nítidos e está
a mudar rapidamente.
Actualmente, é possível fazer abordagens mais rigorosas sobre os Cantabri em 26 a.
C1272. Apesar de nos escaparem muitos pormenores – as bases militares mencionadas
nas fontes ainda não foram identificadas com exactidão-, parece que os maiores
esforços bélicos do exército romano incidiram na área do Campoo e nos vales centrais
da Cantábria (especialmente nas montanhas entre os vales de Besaya e Luena-
Toranzo). As legiões romanas que combateram nesta região devem ter viajado pelo
Ebro acima ou, então, subiram, através do vale Pisuerga, para passar a Cordilheira
Cantábrica. As pesquisas de E. Peralta Labrador sugerem que se verificou também
intervenção militar romana em zonas como Alto Carrión, começando a partir do
coração das planícies centrais.
Às vezes, as posições que os indígenas ocuparam obrigaram as tropas invasoras a
efectuar verdadeiros operações de assédio, como aconteceu em La Loma ou La Espina
del Gállego. Nesta estratégia de controlo desenvolvida por Augusto nos territórios
situadas para lá das montanhas, o modus operandi das unidades militares romanas
parece ter consistido em avançar até aos pontos mais elevados das eminências,
penetrando em território inimigo e descendo rapidamente em direcção à faixa costeira.
Estas elevações conferiam uma vantagem táctica ao exército romano: punham quase
sempre o antagonista – cujos povoados se localizavam nessas montanhas - numa
situação de inferioridade. Além disso, ao marcharem pelas alturas, os contingentes
romanos tinham garantido o controlo visual sobre a área em redor.
Neste sentido, o provável acampamento de El Castichu de la Carisa (Lena, Astúrias),
provido de agger e fossae duplex1273, é um outro exemplo, desta feita em território
asturiano, o qual talvez tenha sido implantado por ocasião da campanha de 25 a. C. Por
seu lado, a campanha de 19 a. C. conduzida por Agripa – que quebrou definitivamente a
resistência cântabra – é menos claramente documentada no contexto arqueológico.
Afigura-se necessário derramar nova luz sobre múltiplas questões sobre a diacronia
estratigráfica nos acampamentos romanos mais recentemente atestados, a fim de se
interpretar todo o processo de maneira mais objectiva e consistente. Importa dispor de
critérios fiáveis para distinguir três géneros de estruturas militares: os da campanha de
26 a. C., os de 19 a. C. e os acampamentos ou fortes posteriores construídos para
controlar e vigiar o território recém-conquistado. Mais: ainda é preciso identificarem-
se as unidades romanas envolvidas em cada um dos períodos, o que se revela tarefa
complexa.
Relativamente às técnicas de castrametação, os acampamentos augustanos não
diferem muito do padrão republicano: são usualmente poligonais, ainda que sem uma
planta regular, feitos de terra e madeira, em norma com o agger do tipo fossae duplex e
acessos em forma de clavicula e tituli. As suas dimensões oscilam entre os 18 e os 25
hectares nos acampamentos legionários, e entre 5 e 6 hectares nos aboletamentos dos
auxilia. Estas diferenças na planimetria e na área ocupada, ainda não ajustadas às
medidas «canónicas» da época imperial, parecem demonstrar que a Guerra Cântabro-
ásture foi um palco de experiências bastante produtivo, revestindo-se de grande
importância para a evolução das técnicas da castrametação romana. Não muito depois,
os progressos alcançados nestes sistemas construtivos vieram a aplicar-se no limes
setentrional do império1274.
Passemos a outro ponto - o «retrato» que as antigas fontes literárias apresentam do
inimigo. Elas oferecem uma imagem sumamente belicosa e agressiva dos povos do
1271
E. Peralta, «Los castra aestiva del bellum Cantabricum…», pp. 174-178; IDEM, «Los campamentos de las Guerras
Cántabras de Iguña, Toranzo y Buelna…», pp. 227-230; IDEM, «La revisión de las guerras cántabras: novedades
arqueológicas en el norte de Castilla», in A. Morillo Cerdán (ed.), Arqueología Militar Romana… 2006, pp. 524-543.
1272
Á. Morillo Cerdán, «The Augustean Spanish experience: the origin of limes system?», in A. Morillo Cerdán, N. Hanel
e E. Martín (eds.), XX Congreso Internacional de Estudios sobre la Frontera Romana, Madrid, 2009, pp. 239-252.
1273
J. Camino, R. Estrada e Y. Viniegra, La Carisa. Ástures y romanos frente a frente, Oviedo, 2005.
1274
Á. Morillo, «Conquista y defensa del territorio en la Hispania republicana…», pp. 72-73.
470
Norte peninsular, em particular dos Cântabros (Floro, Epit. 2.33.47, Dião Cássio, Hist.
rom. 51.20.5, Orósio, 6.21.3), o que se encaixa na perfeição na construção de um
discurso tendente à justificação de uma alteridade, de uma visão estereotipada e
distorcida do bárbaro contraposto aos valores do mundo civilizado 1275. A violência
intercomunitária e os conflitos de «baixa intensidade» entre os indígenas não
inquietavam os Romanos; pelo contrário, viam nestes fenómenos motivos para se
regozijarem (Tácito, Germania, 33.2; Agricola, 12.2). De acordo com os teóricos do
«imperialismo defensivo»1276, só havia uma resposta militar quando tais acções
violentas se projectavam para o exterior, ameaçando os interesses do poder romano.
Não obstante as fontes transmitirem este discurso legitimista, os Romanos, enquanto
potência imperialista, não concebiam as suas relações com o resto do mundo em
termos de paridade1277, além de que uma «guerra justa» não teria de ser
necessariamente defensiva1278.
Ao enfatizarem a selvajaria dos indígenas (Estrabão, Geog. 3.3.8) os autores antigos
justificavam, de algum modo, a conquista dos mesmos como um facto natural: os
melhores deviam governar sobre os piores porque a dita dominação beneficiava os
dominados (Floro, Epit. 2.33.59-60; Estrabão, Geog. 3.3.8, Veleio Patérculo, Hist. rom.
2.90.4). Nos escritos de Estrabão (Geog. 3.3.5,8), as actividades guerreiras dos
nortenhos peninsulares inserem-se na leisteia, isto é, no bandoleirismo que, mesmo se
podendo entender num sentido mais abrangente e não tão pejorativo como o actual,
contrastava profundamente com o ideal da guerra greco-romano 1279. Ora sob esta
fórmula do banditismo assinala-se uma nova apologia da intervenção militar 1280, já que
um dos grandes contributos de Roma seria a devolução do equilíbrio e da estabilidade à
região, por meio da subjugação de «montanheses» cujos usos e costumes foram
simplificados, exagerados e caricaturados nas fontes literárias.
Para o fenómeno do «bandoleirismo, não há uma explicação simples 1281, como
diversos foram, também, os factores a contribuir para a aparição de certos
comportamentos, atitudes e dinâmicas que entrariam em rota de colisão com a vontade
do Estado romano em controlar o território, desafiando o seu exércício monopolístico
da violência. Mas neste género de discurso, em certa medida «pré-fabricado», quiçá
vislumbremos traços de uma complexa realidade sociocultural 1282. As razias permitiam
aos guerreiros obter e acumular riqueza material – gado e bens móveis -, o melhor meio
para alcançar prestígio e alto estatuto social 1283. A guerra nestas sociedades podia não
ser uma actividade que se ligasse necessariamente com factores conjunturais (carestias,
1275
D. Plácido Suárez, «Estrabón III: el territorio hispano, la geografía grega y el imperialismo romano», Habis 18/19
(1987), pp. 243-256; D. Montero Barrientos, «El determinismo geográfico, la geografía económica y el imperialismo en
la obra de Estrabón», Studia Historica. Historia Antigua, 13/14 (1995), pp. 311-330, I. González-Ballesteros, «El
estereotipo del bárbaro y la imagen de la civilización en el occidente romano en la Geografía de Estrabón», Espacio,
tiempo y forma. Serie II, 22 (2009), pp. 249-260.
1276
J. Rich, «Fear, Greed, and Glory: The Causes of Roman War Making…», pp. 38-44; G. Hinojo Andrés, «El discurso
del imperialismo romano: hoy como ayer», Jueces para la democracia, 48 (2003), pp. 3-8; H. Sidebottom, «Roman
Imperialism: The Changed Outward Trajectory…», pp. 315-320.
1277
G. Woolf, «Roman peace», , pp. 178-185.
1278
P. López-Barja de Quiroga, «Sobre la guerra justa», pp. 61-75.
1279
H. Sidebottom, Ancient Warfare, Oxford, Oxford University Press, 2004. Fora dos conflitos formalmente regulados,
«almost all other categories of warfare were lumped together under the rubric of banditry or latrocinium» (B. D. Shaw,
«Bandits in the Roman Empire», Past & Present, 105[1984], pp. 6-8).
1280
D. Plácido Suárez, «Estrabón III: el territorio hispano…»; M. Vallejo Girvés, «El recurso de Roma al bandidaje
hispano», Espacio, tiempo y forma. Serie II, 7 (1994), pp. 165-173.
1281
E. Gozalbes Cravioto, «Algunos modelos de interpretación del bandoleirismo en la Antigüedad», in S. Castillo e P.
Oliver Olmo (eds.), Las figuras del desorden: heterodoxos, proscritos y marginados, Madrid, Siglo XXI, 2006, pp. 1-17;
W. Riess, «The Roman Bandit (latro) as Criminal and Outsider», in M. Peachin (ed.), The Oxford Handbook of Social
Relations in the Roman World, Oxford, 2011, Oxford University Press, pp. 155-170.
1282
M. V. García-Quintela, La organización socio-politica de los Populi del Noroeste de la Península Ibérica. Un
estudio de antropología histórica comparada, Santiago de Compostela, CSIC-XUGA-IEGPS, 2002; IDEM, «La
organización social y política de los galaico-lusitanos», in F. J. González García (ed.), Los pueblos de la Galicia céltica,
Madrid, Akal, 2007, pp. 323-376; E. Sanchéz Moreno, «”Ex pastore latro, ex latrone dux…”Medioambiente, guerra y
poder en el occidente romano», in T. Ñaco del Hoyo e I. Arrayás-Morales (eds.), War and Territory in the Roman
World, Oxford, Archeopress, 2006, pp. 55-79.
1283
E. Peralta Labrador, Los cántabros antes de Roma…, pp. 180-184.
471
incapacidade para a exploração da terra), mas significar um verdadeiro fenómeno de
carácter estrutural,1284 cujas manifestações se agudizaram face à presença romana 1285.
Se bem que a maneira de combater dos nativos durante a ofensiva romana reflicta a
sua concepção da guerra na sua globalidade 1286, ignoramos que capacidade, ao certo,
estas comunidades tinham para reagir concretamente à invasão. Nos últimos decénios,
uma série de estudos arqueológicos contribuiu notavelmente para a definição das
paisagens da época pré-romana no Norte peninsular, 1287 fornecendo um panorama
muito mais vívido e dinâmico das sociedades do Ferro II. Nem Cantabri nem Astures
formariam povos uniformes, sendo compostos por vários grupos humanos que não só
estavam imersos nas suas próprias dinâmicas locais, como também possuíam um
diferente grau de hierarquização social1288, pelo que a guerra contra Roma não deve ter
sido encarado de igual modo por uns e outros. Enquanto nas regiões meridionais a
proximidade da presença romana concorreu para a aparição de sociedades mais
estratificadas, cuja expressão física na paisagem seriam os oppida1289, em muitas outras
áreas montanhosas as comunidades formaram «sociedades contra o estado» 1290 ou
«comunidades rurais profundas»1291.
As populações indígenas não eram simples agentes passivos no processo de conquista
e assimilação1292. Esta vertente relaciona-se com a liderança nos povos em apreço. O
desenvolvimento de chefaturas chocava abertamente com as estruturas sociais nativas
mais tradicionais, que mostraram renitência, ou mesmo hostilidade, à ideia da
concentração do poder real num indivíduo1293. Assim, o líder, tanto enquanto caudilho
na guerra como na sua condição de primeiro entre iguais durante os tempos de paz,
gozava de uma posição frágil que podia culminar com um final violento 1294.
Embora uma forte liderança pudesse constituir uma oposição mais sólida às ameaças
externas, tal conferia igualmente a possibilidade de uma potência estrangeira obter
interlocutores válidos para o diálogo político 1295. Pelo contrário, as comunidades mais
isoladas, autárquicas ou pouco hierarquizadas, não ofereceriam grande resistência
armada mas o seu controlo e assimilação depois de conquistadas relevalar-se-iam
muito mais difíceis para o poder romano. Note-se que as antigas fontes literárias não
aludem à existência de líderes entre Ástures e Cântabros durante o conflito 1296. Todavia,
1284
L. H. Keeley, War before civilization, Nova Iorque/Oxford, Oxford University Press, 1996; R. Clastres, Arqueología
de la violencia: la guerra en las sociedades primitivas, Buenos Aires, FCE,2004 (a 1ª edição data de 1977); F. J.
González García, «La guerra en la Gallaecia antigua: del guerrero tribal al soldado imperial», Sémata, 19 (2007), pp. 21-
64.
1285
E. Gozalbes Cravioto, «Algunos modelos de interpretación del bandoleirismo…», pp. 1-17; G. Vives Ferrer, «El
fenómeno del bandoleirismo como sublevación contra Roma: el caso de Hispania en época republicana», Antesteria, 4
(2015), pp. 187-197.
1286
E. Peralta Labrador, Los cántabros antes de Roma…, pp. 200-211.
1287
Além do estudo de Peralta Labrador, citado na nota precedente, e da tese de Marín, igualmente já mencionada, veja-
se A. González-Ruibal, «Galaicos. Poder y comunidad en el Noroeste de la Península Ibérica 81200 a. C.-50 d. C.)»,
Brigantium, 18-19 (2007), pp. 17-69.
1288
D. González-Álvarez, «De la cultura castreña al mosaico castreño: una aproximación en términos sociales a la
variabilidad de las formas de poblamiento de las comunidades castreñas del noroeste peninsular y orla cantábrica»,
Estrat Critic, 5/1 (2012), pp. 213-226
1289
F. J. González-García, «From cultural contact to conquest: Rome and the creation of a tribal zone in the
Northwestern Iberian Peninsula», Greece and Rome, 58/2 (2011), pp. 184-194, A. González-Ruibal, «The politics of
identity: ethnicity and the economy of power in Iron Age northern Iberia», in G. Cifani e S. Stoddart (eds.), Landscape,
ethnicity and identity in the archaic Mediterranean area, Oxford, Oxbow Books, 2012, pp. 245-266.
1290
R. Clastres, La sociedad contra el Estado, Bilbau, Virus Editorial, 2010.
1291
C. Marín Suárez e D. González Álvarez, «La romanización del occidente catábrico: de la violencia física a la violencia
simbólica», Férvedes 7 (2011), pp. 197-206.
1292
G. Woolf, «Beyond Romans and Natives», World Archaeology, 28 (1997), pp. 339-350; A. Moreno e T. Aguilera
Durán, «Bárbaros y vencidos, los otros en la conquista de Hispania…», pp. 234-237.
1293
E. A. Thompson, The Early Germans, Oxford, Oxford University Press, 1965.
1294
S. L. Dyson, «Native revolts in the Roman Empire», Historia, 20, 273 (1971), pp. 239-274, F. J. González García, «El
noroeste de la península ibérica en la edad del hierro: ¿una sociedad pacífica?», Cuadernos de Estudios Gallegos, 119
(2006), pp. 131-155.
1295
Wells, 1999.
1296
Contudo, perdemos o relato mais pormenorizado das guerras, da autoria de Tito Lívio. As escassas referências que se
poderiam entender neste sentido talvez pertençam, na realidade, a outro período histórico, inscrevendo-se no âmbito
472
as inscrições mencionam principes entre Cântabros e Ástures (AE 1997, 875; AE 1946,
121) indiciam que talvez antes da conquista houvesse algum tipo de chefia. Mas não
sabemos se consistia num fenómeno generalizado, nem tão quanto como se articularia
a liderança em cada caso específico1297.
das epopeias (o guerreiro cântabro Laro, mencionado por Sílio Itálico, Pun. 16.46-67), ou então resultando de uma
leitura forçada dos textos antigos: Corocotta, personagem não isento de simbolismo (B. D. Shaw, «Bandits in the Roman
Empire»…, pp. 44-48), foi, para A. Schulten (Fontes Hispaniae Antiquae, vol. V, p. 198; IDEM, Los Cántabros y
Ástures y su guerra…, pp. 182-183), um chefe cântabro, baseando-se o autor alemão apenas numa passagem de Dião
Cássio (56.43.3). Cf. E. Gozalbes Cravioto, «Algunos modelos de interpretación del bandoleirismo…», pp. 4-5; M.
Cisneros Cuchillos, F. Marco Simón et al., «La situación de los pueblos cántabros antes de la conquista romana», in J. R.
Aja Sánchez, M. Cisneros Cuchillos e J. L. Ramírez Sádaba (eds.), Los cántabros en la Antigüedad. La historia frente al
mito, Santander, Universidad de Cantabria, 2008, pp. 58-63. No entanto, a ausência de nomes próprios talvez seja fruto
da construção de uma alteridade, que deformaria as características específicas destes povos para os encaixar num perfil
preconcebido.
1297
J. M. Costa García, «Las campañas augusteas en el Noroeste peninsular: acción militar y propaganda», p. 99.
1298
M. L. Serna Gancedo, A. Martínez Velasco e V. Fernández Acebo (eds.), Castros y castra en Cantabria:
fortificaciones desde los orígenes de la Edad del Hierro a las guerras con Roma. Catálogo, revisión y puesta al día,
Santander, Acento, 2010, E. Peralta Labrador, «Campamentos romanos en Cantabria», Castillos de España, 161-162-
163 (2011), pp. 23-26; A. Menéndez Blanco, J. I. Jiménez Chaparro et al.«La conquista romana del Occidente
Cantábrico: novedades arqueológicas», in N. Ferreira Bicho e A. Faustino Carvalho (eds.), Actas das IV Jornadas de
Jovens em Investigação Arqueológica (Faro, 11 a 14 de Maio de 2011), vol. II, Faro, Universidade do Algarve, 2012, pp.
339-346.
1299
E. Peralta Labrador, «Los campamentos romanos de campaña (castra aestiva): evidencias científicas y carencias
académicas», Nivel Cero, 10 (2002), pp. 49-87; Á. Morillo e Martín, 2005; Morillo, 2008, Menéndez et al., 2013.
1300
J. Costa García («Las campañas augusteas…», pp. 99-100) pronunciou-se nos seguintes termos. «…estas luces han
formado también algunas sombras, pues quizá la vorágine de nuevos datos y métodos arqueológicos há restado espacio
en la primera línea de la investigación a la reflexión histórica de fondo»
1301
Á. Morillo Cerdán, «Arqueología de la conquista del Norte peninsular. Nuevas interpretaciones sobre las campañas
26-25 a. C.», in F. Cadiou e M. N. Caballero (eds.), La guerre et ses traces. Conflits et sociétés en Hispanie à l’époque de
la cônquete romaine (III-Ier s. a. C.), Bordéus, Ausonius, 2014, pp. 133-148.
1302
Que significaram, em larga medida, o objectivo essencial das abordagens mais tradicionais sobre este conflito: D.
Magie, «Augustus’ War in Spain (26-25 B.C.)», Classical Philology, 15 (4/1920), pp. 323-339; R. Syme, «The Spanish
War of Augustus (26-25 B. C.)», American Journal of Philology, 55 (1934), pp. 293-317; IDEM, «The Conquest of
North-West Spain», in A. Viñayo González (ed.), Legio VII Gemina… 1970, pp. 79-107; A. Schulten, Los Cántabros y
Ástures…; W. Schmitthenner, «Augustus’ spanischer Feldzug un der Kampf um den Prinzipat», Historia, 11 (1962), pp.
29-85; A. Brancati, Augusto e la guerra di Spagna, Urbino, Argalia, 1963.
1303
F. Didierjean, «Camps militaires romains et archéologie aérienne: methodologie et données nouvelles», Saldvie, 8
(2008), pp. 109-112, IDEM, Á. Morillo Cerdán e C. Petit-Aupert, «Traces des guerres, traces de paix armée: l’apport de
quatre campagnes de prospection aérienne dans le nord de l’Espagne», in F. Cadiou e M. N. Caballero (eds.), La guerre
et ses traces…, pp. 152-156.
473
escabroso1304. Durante a campanha do ano 26, Augusto terá estabelecido o seu quartel-
general em Segisama, a partir de onde se realizou uma ofensiva rumo ao norte em
forma de tridente, com três colunas de tropas para assim abarcar, no seu avanço, toda a
extensão da zona. Mas as operações dirigidas pelo princeps redundaram num fracasso,
evitando os Cântabros livrar batalhas e fustigando os ataques dos soldados romanos,
não conseguindo estes averbar vitórias efectivas. A frondosidade dos bosques levou a
que os auctótones efectuassem escaramuças e emboscadas, mas a arqueologia
demonstrou, como referimos, que a linha de progressão dos Romanos, do interior à
faixa costeira, seguiu pelo alto das montanhas e não pelos vales, onde as legiões
ficariam mais expostas e vulneráveis.
O imperador sentiu-se frustrado com estas refregas inconclusivas. Dião fala de
«fadiga e preocupações», acrescentando que Augusto se retirou, adoentado, para
Tarraco. A acreditarmos em Suetónio, deu-se um episódio que o marcou
profundamente: «Durante uma marcha nocturna na sua expedição contra os
Cântabros, caiu um raio, roçando a sua liteira, e matou o escravo que o precedia para
iluminá-lo». É um tanto extemporâneo imaginar Augusto envolvido em acções
militares e a deslocar-se numa liteira, mas isto talvez se devesse ao facto de já se achar
enfermo. Suetónio completa o retrato das atribulações imperiais, relatando que na
campanha de 26 a. C. Augusto começou a manifestar achaques que nunca mais o
abandonariam até ao fim da sua vida. Ocorreu ainda outra situação que encolerizou o
imperador, protagonizada pelo já aqui mencionado «bandido» Corocotta: o mito que se
criou, sem bases probatórias, associa este indivíduo aos Cântabros; Augusto prometeu
pagar 250 000 sestércios – uma fortuna- a quem o capturasse e o próprio Corocotta
apareceu para reclamar a dita quantia. O imperador teve de se conter e, magnânimo,
admitiu que caíra na armadilha que montara e pagou-lhe, deixando-o ir embora.
Na campanha de 25 a. C., o mando ficou nas mãos de Antistio, um general
experiente, mas os acontecimentos precipitaram-se. O aprovisionamento de cereais
tornou-se um problema grave para os Romanos: conta-nos o geógrafo e historiador
Estrabão que uma praga de ratazanas pôs seriamente em perigo o abastecimento e até
se ofereceram recompensas pela eliminação dos vorazes roedores. Como se isto não
bastasse, era particularmente complicado obter víveres na região, tarefa que os nativos
tentavam sempre dificultar ao máximo (Estrabão, Geog 3.4.18). A partir da Aquitânia,
em terras gaulesas, chegaram mantimentos via maris, a bordo de uma frota (Floro,
2.33.49; Orósio, 6.21.4) e, na mesma ocasião, desembarcaram soldados na retaguarda
costeira, no Portus Blendium (Suances) e no Portus Victoriae, na baía de Santander. Os
Cântabros porfiaram em cenários sucessivos que ainda não se identificaram com
precisão: nas muralhas de Bergida ou Attica, no monte Vindius, «onde acreditavam
que mais depressa subiriam as ondas do oceano do que as armas romanas», e no monte
Medullius, em cujo sopé as tropas romanas «cavaram um fosso contínuo de 15 milhas».
As legiões arremeteram e os Cântabros, sitiados, preferiram o suicídio, «com fogo e
ferro», à rendição; numa espécie de banquete derradeiro, acompanhado por elementos
rituais, imolaram-se «com um veneno que ali se extrai habitualmente do teixo».
Antistio conseguiu bater o inimigo nos montes Vindius e Medullius.
Como demonstra o cerco do castro de La Loma 1305 ou os acampamentos de assalto de
El Castillejo em torno do Monte Bernorio 1306 e de La Poza I à volta de Las Rabas 1307,
alguns dos grandes oppida do piemonte cantábrico eram os principais alvos da ofensiva
romana (Fig. 2).
1304
Deparamos com idêntico procedimento nas acções militares romanas contra os Salassi (25 a. C.; Dião Cássio,
53.25.3), ou durante a invasão da Récia (15 a. C.; Dião Cássio, 54.22.4)
1305
E. Peralta Labrador, «La revisión de las guerras cántabras….», , pp. 524-535.
1306
IDEM, «Los campamentos romanos de campaña (castra aestiva)…», p. 176; J. F. Torres Martínez, A. Serna
Gancedo e S. D. Domínguez Solera, «El ataque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio (Villarén, Palencia) y el
estabelecimiento del castellum romano», Habis, 42 (2001), pp. 127-149.
1307
J. J. Cepeda Ocampo, «Los campamentos romanos de La Poza (Cantabria)», in Á. Morillo Cerdán (ed.), Arqueología
militar romana en Hispania II: Producción y abastecimiento…, pp. 683-690; P. Á. Fernández Veja, R. Bolado del
Castillo et al., «El castro de las Rabas (Cervatos, Cantabria) y las Guerras Cántabras: resultados de las intervenciones
arqueológicas de 2009 y 2010», Munibe, 63 (2012), pp. 213-253.
474
Na frente ásture, a tomada de Lancia pode inserir-se nesta mesma fase das
operações. No entanto, o assalto foi precedido por uma acção bélica singular, a única
que escapa ao discurso estereotipado que apresenta os povos nortenhos como
«guerrilheiros» e escaramuçadores, contrapondo-se à férrea disciplina da infantaria
dos latinos: os Ástures arremeteram ousadadamente contra os três acampamentos de
onde partiam as colunas de tropas romanas (Floro, 2.33.54-56; Orósio, 6.21.9).Esta
iniciativa reflecte capacidade de mobilização, própria de comunidades hierarquizadas,
pelo que talvez só tenham participado na acção as comunidades ástures meridionais.
Assim parece indicar o facto de os Romanos rechaçarem o ataque graças à intervenção
dos Brigaecini, gentes cismontanas (situadas aquém dos montes)1308 (Ptolomeu, Geog.
2.6.29) que, ao avisarem o general Carísio, traíram os seus vizinhos. Contudo, a
defecção, fosse resultado de querelas regionais ou de uma afortunada aposta política,
manifesta o elevado grau de autonomia das diferentes comunidades que integravam
estes povos. Os ástures acabaram por se refugiar em Lancia, que rapidamente foi
expugnada pelos romanos.
Apesar de um primeiro avanço quase demolidor, o curso da guerra sofreu oscilações,
uma vez alcançadas as montanhas. Frente a um inimigo que evitava travar batalhas
campais e buscava aproveitar o terreno em seu próprio benefício (Dião Cássio, 53.25.5-
6), os Romanos tinham de articular uma ofensiva que pressionasse os nativos em
diversos pontos, impedindo a sua concentração e auxílio mútuo. Resultantes da
progressão romana pelas alturas são os recintos militares como os de El Cincho 1309 e
Campo de las Cercas,1310 na frente cântabra, ou os de Llagüezos 1311 e Monte
Curriechos1312 na frente ásture, que atestam um esforço para adoptar os modelos
teóricos da castrametação à peculiar orografia da região. No entanto, ao ter de se
conquistarem as posições inimigas uma a uma, o ímpeto ofensivo via-se muitas vezes
refreado, haja em vista o que sucedeu no decurso do impressionante cerco ao castro de
La Espina del Gállego, onde uma coluna romana, provavelmente compreendendo
vários milhares de soldados se deteve por algum tempo defronte de um povoado
indígena1313 (Fig. 3).
As operações militares romanas, que requeriam alto nível de coordenação e enorme
esforço logístico, foram constantemente afectadas pelas tácticas de guerrilha dos povos
indígenas (fenómeno que, como se disse, não foi exclusivo ou típico da Península
Ibérica, assinalando-se o mesmo na actuação de uma série de outros antagonistas de
Roma). A formidável resistência oferecida pelas pequenas comunidades montanhesas,
em inferioridade numérica e muito menos evoluídas sob o ponto de vista tecnológico do
que os Romanos, apenas se entende se tivermos em conta «os próprios rasgos culturais
e identitários destes grupos indígenas»1314. Mas a conquista seria inevitável: das duas
uma, ou os nativos resistiam até ao fim nos seus redutos, ao assédio das tropas
romanas ou combatiam em campo aberto, onde sucumbiriam às superiores tácticas dos
«filhos de Marte».
Os episódios de inaudita violência que marcaram o conflito não devem ocultar o facto
de que, para os Romanos, o verdadeiro objectivo não era geralmente o extermínio do
inimigo, mas a sua subjugação. A clemência evidenciada por Carísio, ao impedir que
Lancia fosse incendiada pelos seus próprios soldados (Floro, Epit. 2.33.57-58; Orósio,
6.21.10) coaduna-se com os princípios que legitimavam a dominação romana,
1308
D. Martino, «La ciudad romana de Brigaecium. Un ejemplo paradigmático para las ciudades romanas de la meseta
norte», in L. Hernández Guerra, L. Sagredo San Eustaquio e J. M. Solana Sáinz (eds.), Ier Congreso Internacional de
Historia Antigua…, pp. 325-328.
1309
M. García-Alonso, «El campamento romano de “El Cincho” (La poblacion de Yuso)…»,pp. 109-140.
1310
E. Peralta Labrador, «Los castra aestiva del Bellum Cantabricum…, , p. 181.
1311
E. Martín Hernández e J. Camino Mayor, «El Picu Llagüezos, un nuevo campamento romano en la vía Carisa»,
Excavaciones Arqueológicas en Ásturias, 2007-2012 (2013), pp. 267-276.
1312
J. Camino Mayor, R. Estrada García e Y. Viniegra Pacheco, «La Carisa: un teatro del “bellum Asturicum” », in Á.
Morillo Cerdán (ed.), Arqueología militar romana en Hispania II…, pp. 566-580.
1313
E. Peralta, Labrador, «Los castros cántabros y los campamentos romanos de Toranzo y de Iguña…», pp. 201-276.
1314
C. Marín Suárez e D. González Álvarez, «La romanización del occidente cantábrico: de la violencia física a la
violencia simbólica»…, p. 200.
475
tornando-a uma realidade moralmente aceitável 1315. Uma cidade podia ser conquistada
e perder a sua independência, mas, para destruir a própria expressão da comunidade
política, tinha de haver um motivo bem forte.
Tito Lívio, num conhecido trecho, afirma que um «inimigo não se considerava
pacificado até que rendesse todo o divino e o humano, entregasse reféns, lhes tirassem
as armas e se impusessem guarnições às suas cidades» (28.34.7). Se nos ativermos a
Floro (2.33.52, 59-60), Augusto expressou-se em termos análogos no fim da guerra
cântabro-ásture. Fosse por meio de atitudes repressivas – escravidão- ou através de
soluções de compromisso com certas comunidades locais – fazendo-se reféns-, os
Romanos tentavam evitar assim qualquer reacendimento das hostilidades 1316. Todavia,
a solução que abalava com as próprias estruturas das sociedades indígenas e alterava
por completo a paisagem precedente era a ordem para se abandonarem as montanhas e
passar a viver nas planícies1317. Esta decisão prendia-se certamente à vontade do poder
romano em explorar o território conquistado o mais depressa possível 1318. Como incolae
peregrini, ou residentes não cidadãos, os nativos podiam actuar na qualidade de
arrendatários das suas antigas terras mediante o pagamento de um imposto
(vectigal)1319. A necessidade de fazer face ao tributo promovia um sistema de exploração
fundiária que permitia a produção de um excedente. Ademais, como mostra o
denominado «Bronze de Bembibre» (15 a. C.), a repartição das terras e a aplicação das
cargas tributárias podiam servir como uma ferramenta política para premiar ou
castigar o comportamento de certos colectivos humanos1320.
Segundo Estrabão (Geog 3.3.8), no principado de Augusto ou no de Tibério já havia
cântabros a servir no exército imperial. Não resta a menor dúvida que esta
possibilidade fornecia um modo de vida honroso aos indivíduos e grupos mais
belicosos das comunidades indígenas 1321. O ritmo de criação destas unidades auxiliares
na Hispânia foi bastante intenso nos primeiros tempos da dinastia Júlio-Cláudia, mas
diminuiu partir dos Flávios1322. Pelo menos 45% dos auxilia recrutados provinham do
Norte e Noroeste peninsulares 1323. Contudo, seriam os galaicos (com doze cohortes de
infantaria, duas mistas e uma ala de cavalaria) e os ástures (sete cohortes, duas mistas
e quatro alae) que mais contribuiram para o esforço bélico romano, dado que apenas se
atestam duas coortes compostas por cântabros em toda a história da época
1315
P. López-Barja de Quiroga, «Sobre la guerra justa»…, pp. 65-67.
1316
Com efeito, era usual que, depois da conquista das regiões montanhosas, os varões adultos fossem escravizados (Dião
Cássio, 53.25.4; Estrabão, Geog. 4.6.7), deportados ou reinstalados (Dião, 54.22.5). Quando os prisioneiros se viam
privados da sua liberdade e transformados em mercadorias, os lucros com a sua venda imediata a particulares revertiam
directamente no erário militar (K. R. Bradley, «On captives under the Principate», Phoenix, 58 [2004], pp. 298-318). Os
incidentes ocorridos em 19 a. C. (Dião Cássio, 54.11.2) mostram que terá sido este o destino de muitos cântabros.
1317
Nas palavras de Floro entrevê-se a fundação de Asturica Augusta (actual Astorga, Léon) como capital dos ástures
cismontanos. A arqueologia demonstrou que grandes oppida como o de La Ulaña (M. Cisneros Cuchillos e P. López
Noriega«El castro de La Ulaña (Humada, Burgos): primeros resultados de la actuación arqueológica», Caesaraugusta,
78 [2007], pp. 295-308) foram abandonados em finais do século I a. C., sem implicar uma destruição violenta.
1318
Na obra de Estrabão, «conquista e exploração aparecem como dois elementos substanciais do mesmo processo» (cf.
D. Plácido Suárez, «Estrabón III: el territorio hispano….», p. 257).
1319
A. Orejas, I. Sastre Prats et al., «El Edicto de Augusto del Bierzo y la primera organización romana del noroeste
peninsular» in F. Sánchez Palencia e J. Mangas (eds.), El edicto del Bierzo: Augusto y el Noroeste de Hispania,
Ponferrada, Fundación de las Médulas, 2000, pp. 75-90.
1320
J. M. Costa García, «Las campãnas augusteas en el Noroeste peninsular…», p. 103. Consultem-se, também: E.
García-Fernández, «Inmunitas y adtributio», in F. J. Sánchez-Palencia e J. Mangas (eds.), El edicto del Bierzo…, pp.
113-122; P. López-Barja de Quiroga, «Provincia y restituo en el Bronze de El Bierzo», Archivo Español de Arqueología,
83 (2010), pp. 177-180.
1321
D. B. Saddingtom, «Recruitment patterns and ethnic identities in Roman auxiliary regiments», in W. S. Hanson
(ed.), The Army and Frontiers of Rome. Papers Offered to David J. Breeze on the Occasion of his Sixty-Fifth Birthday
and his Retirement from Historic Scotland, Portsmouth, SPRS, pp. 83-892009; I. Haynes, Blood of the Provinces. The
Roman Auxilia and the Making of Provincial Society from Augustus to the Severans, Oxford, Oxford University Press,
2013.
1322
P. A. Holder, Studies in the Auxilia of the Roman Army from Augustus to Trajan, Oxford, Archaeopress, 1980, p.
113.
1323
J. M. Costa García, Arqueología de los asentamientos militares romanos en la Hispania altoimperial…, pp. 669-
671.
476
imperial1324.Provavelmente, isto reflecte o desigual potencial demográfico destes povos
bem como os diferentes efeitos da guerra que se fizeram sentir nos seus territórios.
A guerra deflagrou novamente em 24 a. C. e mais réplicas tiveram lugar em 22 e 19 a.
C. (Dión Cássio, 53.29, 54.5,11.2-5)1325. Desconhecemos se estas revoltas envolveram a
totalidade dos territórios invadidos nas campanhas anteriores ou se, pelo contrário,
apenas esteve implicada uma parte dos cântabros e dos ástures – presumivelmente a
mais nortenha. As causas da insurreição foram ocasionadas pelas políticas aplicadas
por Roma. A ilustrar esta questão está a emboscada que, no ano 24, depois de Augusto
partir da Hispânia, os cântabros fizeram às tropas do governador Lúcio Emílio (Dião
Cássio, 53.29), quando estas se preparavam para ir buscar os cereais e outros bens que
os primeiros prometeram fornecer. Estas recolecções, que serviam para que as forças
de ocupação subsistissem, representaram a primeira modalidade de tributação imposta
aos nativos1326. Mas tais formas de pagamento constituíam fonte constante de abusos
por parte dos agentes do poder romano 1327. Imediatamente após a cilada de 24 a. C., as
legiões devastaram o território e amputaram as mãos dos revoltosos. Dois anos mais
tarde, a pressão fiscal de Carísio exercida sobre os ástures originou outra sublevação,
na qual os cântabros também participaram. A resposta romana não se fez esperar e o
legado imperial Caio Fúrnio venceu os cântabros, já muito debilitados pelas
precedentes campanhas. O desfecho foi implacável. «Dos cântabros não se fizeram
muitos prisioneiros, pois quando desesperaram pela perda da liberdade, não quiseram
mais suportar a vida, incendiando as suas muralhas, uns degolando-se, outros
perecendo no meio das chamas, outros ainda ingerindo um veneno de comum acordo,
de maneira que a maioria deles, os mais belicosos, morreu». Fúrnio ajudou depois
Carísio a vencer os ástures.
A implantação de guarnições em território conquistado era, como vimos, uma prática
habitual do exército romano1328. A nível arqueológico, no Noroeste peninsular, estas
bases atestam-se em Monte Bernorio 1329, La Espina del Gállego 1330 (anteriores povoados
fortificados auctótones), em Cildá1331 (um antigo acampamento), La Muela 1332 ou El
Pedrón1333 (ex novo). Estes praesidia tornaram-se objecto da fúria dos habitantes
1324
J. Spaul, Ala 2. The auxiliary cavalry units of the pre-Diocletianic Imperial Roman Army, Andover, Nectoreca
Press, 1994; IDEM, Cohors 2. The Evidence for and a short history of the auxiliary infantry units of the Imperial
Roman Army, Oxford, Archaeopress, 2000.
1325
Os incidentes de 24 a. C. talvez se devam entender como um epílogo das campanhas de 26-25 a. C., mas já os
levantamentos de 22 e 19 encaixam-se, em certa medida, no modelo de revoltas nativas formulado por S. L. Dyson
(«Native revolts in the Roman Empire», Historia, 20, 2/3 [1971], pp. 239-274, ; «Native Revolt Patterns in the Roman
Empire», ANRW, II.3 [1975], pp. 1138-175): ocorriam durante o processo de pacificação inicial do território, antes de as
estruturas da sociedade nativa ficarem totalmente desarticuladas, apanhando as forças ocupantes desprevenidas. Tais
sublevações relacionar-se-iam com a aceleração do processo de controlo administrativo e financeiro por parte das
autoridades romanas.
1326
P. Erdkamp, «The Corn Supply of the Roman Armies during the Principate (27 BC-235 AD), in P. Erdkamp (ed.),
The Roman Army and the Economy, Amesterdão, J. C. Gieben, 2002, pp. 55-60.
1327
A tributação foi, claramente, um dos principais motivos para as revoltas que eclodiram na Ilíria (Dião Cássio,
54.36.2-3, 55.29.1 e 56.16.3) e na Germânia (ibidem, 56.18.4) durante o principado augustano. Mais tarde, sob a égide
de Nero, por detrás da sublevação de Boudica (61 d.C.), rastreiam-se igualmente razões de ordem económica (Dião,
62.2.1), somadas à falta de tacto e comportamento brutal manifestados pelos administradores, soldados e veteranos
romanos (Tácito, Ann. 14.31), atitudes que anos depois o governador Agrícola repreenderia vivamente (Tácito, Agricola,
14.31). No caso dos Batavos, como não eram tributários de Roma, a sua insurreição relacionou-se com os abusos
existerntes no sistema de recrutamento das tropas auxiliares (Tácito, Hist. 4.14).
1328
M. C. Bishop, «Praesidium: social, military and logistical aspects of the Roman army’s provincial distribution during
the early principate», in A. Goldsworthy e I. Haynes (eds.), The Roman Army as a Community, Society for the
Promotion of Roman Studies, Porstmouth, 1999, pp. 111-119.
1329
J. F. Torres Martínez et al., «El ataque y destrucción del oppidum de Monte Bernorio…», , pp. 137-143.
1330
E. Peralta Labrador, «Campamentos romanos en Cantabria», Castillos de España…, pp. 27-31.
1331
IDEM, «La conquista romana de Campoo: arqueología de las guerras cántabras», Cuadernos de Campoo, 36
(2004), p. 38.
1332
IDEM, «Los castra aestiva del Bellum Cantabricum…», pp. 177-178; IDEM, «La revisión de las guerras cántabras:
novedades arqueológicas en el norte de Castilla», pp. 539-540.
1333
R. Bolado del Castillo, P. Á. Fernández Veja e J. Callejo Gómez, «El recinto fortificado de El Pedrón (Cervatos,
Cantabria), los campamentos de LA Poza (Campoo de Enmedio, Cantabria) y el castro de Las Rabas (Cervatos,
Cantabria): un nuevo escenario de las Guerras Cántabras», Kobie, 29 ( 2010), pp. 92-93; Fernández et al., 2012.
477
locais, como nos narram as fontes literárias (Dião, 54.5.3 e 54.11.2) e a arqueologia
parece testemunhar1334.
Mas não é fácil reconstituir as operações militares nos anos referidos alicerçando-nos
apenas nos dados arqueológicos disponíveis. Muitos dos velhos acampamentos e
castella (Monte Curriechos1335 e La Poza I1336) contam com reocupações datando deste
período, o que indicia a aparente reactivação de antigas vias de penetração e
abastecimento. À medida que a guerra se foi enquistando, com a finalidade de limitar a
capacidade combativa dos povos nortenhos, os Romanos perpetraram os actos mais
brutais de repressão. A par da destruição dos povoados onde os indígenas se
refugiavam, procedeu-se à escravização, execução e mutilação de cativos, sobretudo dos
indivíduos do sexo masculino (Dión, 53.29.2; 54.11.5). Estrabão alude a cântabros
condenados à morte por crucificação (Geog. 3.4.18). Nestas circunstâncias tão
dramáticas, não causa estranheza que diversos membros dessas comunidades
assumissem comportamentos suicidas (Dião, 54.5.2; 54.11.4; Estrabão, Geog. 3.4.17).
Por seu lado, os soldados romanos acusavam um claro desgaste após sucessivos anos
de combate e de tensão quase permanente num meio hostil e inóspito. Em 19 a. C.,
conforme referimos, cântabros e ástures rebelaram-se mais uma vez: o levantamento
começou quando os cântabros, vendidos como escravos na Gália, assassinaram os seus
donos e fugiram e voltaram para a Península; assaltaram as guarnições romanas, o que
obrigou os oficiais romanos a castigar os soldados de algumas legiões pela sua cobardia.
Antes de cumprira missão de sufocar a rebelião dos cântabros nesse mesmo ano, Marco
Vipsânio Agripa (que viera da Sicília), braço-direito de Augusto e então considerado o
melhor general romano, teve de reforçar a disciplina, chegando até a punir uma legião
inteira (Dião, 54.11.3,5). Após exterminar «os inimigos em idade militar», alcançou a
vitória, mas à custa de bastantes baixas, Agripa ordenou que se desarmassem os
escassos sobreviventes rebeldes, sendo tranferidos para as planuras. No rescaldo dos
combates, Agripa iniciou um censo completo das populações da Hispânia, o que viria a
facilitar as tarefas fiscais. Em 16 a. C. sobreveio uma nova revolta mas depressa foi
sufocada (Dião, 54.20.3). Posteriormente, no reinado de Nero, ocorreu outra, mas
igualmente sem grandes consequências [encaixe].
O fim da guerra propriamente dita e a partida da maioria das tropas que lutara
contra as tribos do Norte peninsular, rumo às fronteiras da Europa Setentrional,
inauguraram uma nova etapa (19/15 a. C.-14 d. C.) na relação entre o exército romano e
a Hispânia, a qual P. Le Roux cunhou de «exército experimental» 1337 e A. Morillo
qualificou como «paz armada» 1338. Foi a partir de então que se estabeleceram os
fundamentos da política militar de ocupação do território hispânico, a qual se integrava
no Estado criado por Augusto, vindo este a aplicar a mesma nas áreas fronteiriças
setentrionais do império de uma maneira mais pragmática e aperfeiçoada. As legiões
que intervieram nas campanhas contra Cântabros e Ástures foram as que realmente
continuaram a desenvolver esta política: por exemplo, as I e II Augusta ou a V Alaudae
encontravam-se na Germânia poucos anos depois 1339. A sua base radicou na
constituição de um exercitus Hispanicus, adstrito à província Tarraconensis, que
sofreria uma evolução no primeiros tempos da época imperial, reduzindo-se
gradualmente o número dos seus oficiais e diversificando-se as suas funções,
abrangendo tarefas não militares. Observa-se a adopção de uma estratégia militar a
1334
E. Peralta Labrador, «La revisión de las guerras cántabras: novedades arqueológicas en el norte de Castilla»…, pp.
541-543, M. PóoGutierrez, M. L. Serna Gancedo e A. Martínez Velasco, «Castro y castellum de la Espina del Gallego», in
M. L. Serna Gancedo, A. Martínez Velasco e V. Fernández Acebo (eds.), Castros y castra en Cantabria:
fortificaciones… , pp. 294-295.
1335
J. Camino Mayor , Y, Vinegra Pacheco et al. «El campamento y la vía de las Carisa…», pp. 78-79.
1336
J. J. Cepeda Ocampo, J. M. Iglesias Gil et al., «La ciudad de Iuliobriga y los campamentos romanos de La Poza
(Cantabria)», in Á. Morillo Cerdán e E. Martín Hernández (eds.), Limes XX. Estudios sobre la frontera romana…, vol. I,
p. 635.
1337
P. Le Roux, L’Armée Romaine et l’organization des provinces ibériques…, p. 83.
1338
Á. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia: el ejército romano…», p. 77.
1339
Mª P. García-Bellido, «La moneda y los campamentos militares»…, pp. 251-260.
478
longo-prazo, com objectivos que transcendiam a simples repressão inicial dos povos
indígenas, tornando-se o exército uma eficiente ferramenta nas mãos do Estado.
Iniciou-se uma nova etapa após a submissão dos Cantabri e dos Astures e, ao longo
de vários anos, as tropas romanas controlaram e vigiaram estreitamente o território,
evitando possíveis revoltas. Esta etapa revelou-se muito mais importante para o
estabelecimento romano no Norte e Noroeste da Península Ibérica. Entre 19 e 15 a.C.,
as tropas na Hispânia ficaram reduzidas a três legiões. Numa passagem, Estrabão
mostra como foram distribuídas as unidades militares: um legatus comandaria duas
legiões na área dos Ástures, enquanto outro chefiava uma única legião em território
cântabro.O autor antigo alude inequivocamente ao que ocorreu no começo do reinado
de Tibério. Noutro trecho, Estrabão acrescenta que a ideia original desta distribuição
remontava a Augusto (3.3.8). A mesma informação se colhe, mas sem grande detalhe,
em Tácito, quando se reporta ao 23 d. C. (Ann. 4.3.1). Ainda subsistem dúvidas sobre
quando se pôs em prática este método de redistribuição das tropas. Tanto pode ter
acontecido nos anos imediatamente seguintes à guerra peninsular, como já na fase
mais tardia do principado augustano. A maioria dos historiadores 1340 inclinou-se para a
primeira hipótese. A análise e a interpretação dos vestígios arqueológicos parecem
apontar para uma consolidação das principais instalações militares nesse momento
histórico, razão que levou Morillo a aceitar também a primeira possibilidade 1341.
As legiões VI Victrix e X Gemina encontravam-se aboletadas numa zona das tribos
ástures, e a IIII Macedonia na fronteira sul da Cantábria. Desde esta altura (19-15 a.
C.), construiram-se fortalezas legionárias permanentes. As bases militares da Legio IIII
Macedonica em Herrera de Pisuerga (Palência), perto do limes meridional dos
Cantabri, e as da Legio X Gemina em Astorga e da VI Victrix em León, na área
asturiana, são os primeiros castra legionários arqueologicamente atestados. Salvo
Herrera de Pisuerga, acampamento que teve origem na campanha em 19 a. C. dirigida
por Agripa, os de Astorga e León ainda não existiam durante a Guerra Cântabro-ásture.
Os dois últimos ocupavam posições muito estratégicas, numa perspectiva geográfica e
topográfica, situando-se junto da comunicação natural das estradas que uniam a parte
noroeste do plateau central ibérico às regiões costeiras da Galiza e do Cantábrico.
Formavam uma linha protectora de estruturas militares a sul da Cordilheira Cantábrica
e a leste das montanhas de León, aquilo que Morillo designou como «limes sem uma
fronteira»1342. Isto não significava propriamente uma política de fronteiras, mas uma
faixa de território fronteiriço controlada e administrada pelos Romanos, onde se
concentravam as principais tarefas e as bases militares. Importa entender a rede de
acampamentos, fortes, vias de comunicação e de obras infra-estruturais estabelecida no
território do Norte ibérico como um limes na sua acepção mais abrangente, modelo
imperfeito que, anos depois, foi adoptado e aperfeiçoado nas fronteiras setentrionais do
império1343.
Actualmente, os elementos menos conhecidos deste dispositivo militar são os grandes
acampamentos. Estes ocupariam uma superfície de aproximadamente 20 hectares, mas
as plantas não se discernem com clareza, já que as suas marcas de delimitação
desapareceram por causa de ulteriores assentamentos civis e militares que se ergueram
sobre os primeiros. A fortaleza da Legio IIII Macedonia, em Herrera de Pisuerga, terá
sido construída por volta de 20/15 a. C.A unidade manteve-se aqui até 39 d. C., ano em
que partiu para Mogontiacum (Mainz, Alemanha)1344. Entre 15 a. C. e 15 da nossa era, o
1340
R. Syme, «The conquest of North-West Spain»…, pp. 104-105, Roldán, 1974, p. 183; P. Le Roux, L’Armée Romaine
et l’organisation…, p. 98.
1341
Á. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia: el ejército romano…», pp. 78-79.
1342
Á. Morillo Cerdán, «The Roman occupation in the north of Hispania: war, military deployment and cultural
integration», in G. Moosbauer e R. Wiegels (eds.), Fines imperii – imperium sine fine?, p. 18.
1343
IDEM, «Los campamentos romanos de la Meseta Norte y el Noroeste…», p. 81; IDEM, «Conquista y estrategia. El
ejército romano…, pp. 80-81.
1344
C. Pérez González, Cerámica romana de Herrera de Pisuerga (Palencia, España): la terra sigillata, Santiago do
Chile, 1989, p. 218; E. Morillo Cerdán,«La legio IIII Macedonica en la península ibérica. El campamento de Herrera de
Pisuerga (Palencia)», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), Les legions de Rome sous le Haut-Empire, vol. II, Lyon, 2000, p.
617.
479
acampamento da Legio X Gemina situava-se em Astorga1345. Quanto ao acantonamento
da Legio VI Victrix, a primeira fase da sua ocupação em León (León I) deve datar de
começos do século I ou, então, de uns anos antes 1346. Os acampamentos legionários do
tempo augustano e dos Júlio-Cláudios estiveram acompanhados por um número
indeterminado de fortins para tropas auxiliares, dos quais apenas se identificaram os
de Valdemeda e La Poza, o último localizando-se junto de Iuliobriga: consistem em
estruturas com planimetria regular, tendo uma área de praticamente 5 hectares.
No início do principado de Tibério, a despeito de se registar uma continuidade da
política augustana, operou-se uma radical reorganização militar 1347: esta transformação
assinala-se na remodelação interior dos acampamentos da Legio IIII Macedonica em
Herrera de Pisuerga1348 e da Legio VI Victrix em León1349. Nos dois casos, as estruturas,
de carácter temporário, viram-se substituídas por outras mais resistentes e duradouras,
mostrando a vontade de consolidar a presença militar nesses locais. Uma das
consequências mais óbvias das mudanças operadas na vida militar foi, sem dúvida, o
abandono da fortaleza de Astorga pela Legio X Gemina, que passou a ficar aboletada na
sua nova base em Rosinos de Vidriales, por volta de 15 d. C 1350. No que respeita a
Asturica Augusta, a capital do conventus Asturum e a primeira cidade civil importante
no Norte peninsular, foi construída sobre o velho castra aí existente.
A redifinição da estratégia militar romana na Hispânia coincidiu com a estabilização
da presença das tropas ao longo da fronteira renano-danubiana, após a derrota de Varo
em 9 d. C., mas tendemos a interpretar este fenómeno como algo sobretudo interno. O
desenvolvimento gradual do povoamento romano da região nortenha da Península
Ibérica implicou também uma reorganização das funções que Augusto atribuira ao
exercitus Hispanicus. De entre elas, sobressai o papel do exército na exploração
aurífera em larga escala e em tarefas especificamente militares 1351. O desdobramento do
exército da Hispânia, ao longo da encosta sul da Cordilheira da Cantábria e a leste das
montanhas de León permaneceu essencialmente inalterado até ao fim do reinado de
Nero e, em menor grau, no decurso do resto da época imperial.
As colónias de veteranos, concebidas como partes integrantes de Roma mesmo em
zonas remotas do império, contribuiram para o desenvolvimento com novos recrutas,
tornando-se centros difusores do modo de vida romano, acelerando assim o processo
da romanização1352. Para além de antigos centros urbanos como Italica (Santiponce,
Sevilha), que remonta a finais da Guerra Púnica, ou as colónias cesarianas como Urso
(Osuna), Augusto, depois do conflito cântabro-ásture, pôs termo à política colonial,
mediante a fundação de Emerita Augusta (Mérida) com veteranos das legiões V
Alaudae e X Gemina; em Caesaraugusta (Zaragoça), por seu turno, fixaram-se
1345
M.ª L. González Fernández, «Consideraciones sobre el origen militar de Asturica Augusta», in C. Fernández Ochoa
(coor), Congreso Internacional sobre los Finisterres…, pp. 85-89; E. Morillo Cerdán, Lucernas romanas en la región
septentrional de la peninsula ibérica. Contribución al conocimiento de la implantación romana en Hispania,
Monographies d’Instrumentum 8, Montagnac, 1999, p. 35.
1346
V. García Marcos,«Novedades acerca de los campamentos romanos de León», in Á. Morillo Cerdán (coord.),
Arqueología Militar Romana… 2002, pp. 167-212; V. García Marcos e Á. Morillo Cerdán, «The legionary fortress of VI
Victrix at León», in E. Morillo Cerdán (coord.), Arqueología Militar Romana…2002, pp. 167-212; E. Morillo Cerdán,
«Abastecimiento y producción local en los campamentosd romanos de la región septentrional de la peninsula ibérica»,
in Á. Morillo Cerdán (ed.) Arqueología Militar Romana en Hispania. Producción y abastecimiento…2006, pp. 33-74 ;
IDEM,«The Roman Army in Spain», in E. Morillo Cerdán e J. Aurrecoechea (eds.), The Roman Army in Hispania. An
archaeological guide, León, 2006, pp. 85-106.
1347
Á. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia…», pp. 83-86; A. MorilloCerdán e M. Gómes Barreiro, «Las acuñaciones
de Tiberio en Turiaso. Novedades arqueológicas en los campamentos de la legio VI Victrix en León», in XII Congreso
Nacional de Numismática, Madrid, 2006, pp. 375-392.
1348
C. Pérez González, Asentamientos militares de Herrera de Pisuerga», in C. Fernández Ochoa (coord.), Coloquio
Internacional sobre los Finisterres atlánticos…, p. 91.
1349
V. García Marcos, «Novedades acerca de los campamentos romanos de León», in E. Morillo Cerdán (coord.),
Arqueología Militar Romana… 2002, p. 178.
1350
Á. Morillo Cerdán, «Conquista y estrategia…», p. 84.
1351
Ibidem, p. 83.
1352
A. García y Bellido, «Del carácter militar activo de las colonias romanas de la Lusitania y regiones inmediatas»,
Trab. Antr. e Etn. 17 (1959), pp. 299-304; A. Jiménez de Furundarena e L. Sagredo San Eustaquio, «Los veteranos en la
Hispania romana: contribución a la romanización del territorio», in Á. Morillo Cerdán (coord.), Arqueología Militar
Romana…2002, pp. 555-564.
480
soldados das IIII Macedonica, VI Victrix e X Gemina, surgindo também assentamentos
como Acci (Guadix, Granada) e Tucci (Martos, Jaén).1353 No entanto, o exército
aboletado em acampamentos permanentes na encosta sul da Cordilheira Cantábrica
desempenhou um activo papel no desenvolvimento regional urbano. A importância do
elemento militar cristalizou-se por meio de duas formas: primeira - alguns
aquartelamentos mais antigos acabaram por se transformar em centros civis, à
semelhança do que sucedeu em muitas outras provincias imperiais; segunda – os
estabelecimentos civis, designadamente os cannabae e vici, emergiram juntamente
com a implantação dos castra e dos castella.
O exame das fontes literárias e arqueológicas mostra um cenário em que o carácter
excepcional do conflito cântabro-ásture não residiu nas causas que o motivaram, nem
na legitimação da intervenção armada mediante a construção de uma imagem
estereotipada do inimigo, nem na própria forma como se desenrolaram os combates.
Para os Romanos não havia um antes e um depois nestas campanhas de acordo com a
sua maneira de fazer ou conceber a guerra, nem tão quanto na forma como as suas
elites apreendiam e se relacionavam com o mundo em seu redor. Para vários
historiadores modernos, como José Manuel Costa García, neste conflito avulta a
«componente propagandística»1354, que dá a impressão de o impregnar totalmente, uma
vez que não deixava de ser a manifestação expressiva do nascimento de um regime que
se caracterizou por fazer um uso inovador da simbologia e da linguagem política
tradicionais. Pensemos simplesmente no facto de que as portas do templo de Jano, que
pela segunda vez em toda a história de Roma se tinham fechado apenas uns anos antes
(29 a. C.)1355, foram novamente abertas1356 por ocasião do começo destas campanhas
peninsulares, vendo-se encerradas com o fim das operações em 25 a. C., 1357 sem dúvida
numa atitude precipitada.
Apesar de se inserir nos parâmetros da política ofensiva dos primeiros tempos da
época imperial, o simbolismo que as fontes literárias conferiram à Guerra Cântabro-
ásture é algo que salta bem à vista 1358. A conquista destes povos entendia-se como
corolário lógico do processo encetado na Iberia séculos antes1359, uma façanha própria
de quem pretendia exibir-se como o general que culminaria a gloriosa tradição das
armas romanas (Augusto, Res Gestae, 26.27)1360. Expressão material deste triunfo seria
a erecção de monumentos comemorativos, como as Arae Sestianae (c. 19 a. C.; Plínio-
o-Velho, Hist. Nat. 4.111; Ptolomeu, Geog. 2.6.3; Pompon.3.13), que entroncavam na
tradição greco-latina de levantar marcos simbólicos anunciando a submissão dos
habitantes nos confins da Terra,1361 ou no troféu de Saint-Bertrand-de-Comminges (13-
10 a. C.)1362, que se junta a outros recordatórios apresentando Augusto na qualidade de
conquistador imperial e pacificador das províncias ocidentais 1363.
1353
J. M. Abascal e U. Espinosa, La ciudad hispano-romana. Privilegio y poder, Logroño, 1989.
1354
«Las campañas augusteas en el Noroeste peninsular…», p. 105.
1355
Tito Lívio, 1.19.2; Plutarco, Vit. Num. 20.2, Dião Cássio, 51.20.4.
1356
Orósio, 6.21.
1357
Augusto, Res Gestae, 15; Dião, 53.27.
1358
E. S. Gruen, «The Imperial Policy of Augustus», in K. A. Raaflaub, M. Toher e G. W. Bowersock (eds.), Between
Republic and Empire…, pp. 399-401; M. Salinas de Frías, «La guerra de los cántabros y astures, la etnografía de España
y la propaganda de Augusto», in M. J. Hidalgo de la Vega, D. R. Pérez Sánchez e M. J. Gervás (eds.), «Romanización» y
«Reconquista» en la Península Ibérica: nuevas perspectivas, Salamanca, Universidad de Salamanca, 1998, pp. 155-170.
1359
Veleio Patérculo, 2.90; Estrabão, Geog. 6.4.2; Floro, 1.33.5. Veja-se D. Plácido Suárez, «Estrabón III: el territorio
hispano…»,, pp. 243-256.
1360
P. López-Barja de Quiroga, «Augusto, monarquía y revolución», in M. Campagno, J. Gallego e C. García Mac Gaw
(eds.), El Estado en el Mediterráneo antigo…, pp. 371-390.
1361
A. Grüner, «Die ältare des L. Sestius Quirinalis bei Kap Finisterre. Zur geopolitischen Konstruktion des Römischen
Herrschaftsraum», Madrider Mitteilungen, 46 (2005), pp. 247-266.
1362
G.-C.Picard, «Sur la composition et la date des trophées de Saint-Bertrand-de-Comminges (Lugdunum
Convenarum)», Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres (1942), pp. 8-17.
1363
Haja em vista os troféus de La Turbie (7-6 a. C.) pela vitória alcançada nos Alpes, e de Gardun (posterior a 9 d. C.),
que evoca a submissão dos Panónios e Dálmatas, monumentos a que nos reportaremos noutras alíneas deste capítulo.
Em menor escala, poder-se-ia considerar no mesmo sentido outras manifestações monumentais (D. Polito,«Augustan
triumphal iconography and the Cantabrian Wars: Some remarks on round shields andspearheads depicted on
481
Há outros aspectos que atestam a invulgaridade deste conflito. A notável envergadura
no desenvolvimento das acções bélicas, bem como o número de tropas envolvidas 1364,
ou a mobilização de alguns dos melhores generais de então 1365, demonstram que o
objectivo inicial das campanhas era a obtenção de uma célere e esmagadora vitória, que
pudesse amortizar, o mais depressa possível, a nível político, no contexto da primeira
grande crise do principado augustano. Isto explicaria o elevado grau de ansiedade,
frustração e cansaço que o imperador patenteou, quando, na frente cântabra, se
começaram a suceder vários reveses. Cabe perguntar se não foi esta sofreguidão e
pressa um dos motivos que provocaram uma falsa conclusão da guerra e o seu ulterior
acirramento através de novas revoltas. Esta situação de urgência pode ter levado, de
igual modo, a uma avaliação incorrecta da capacidade combativa, de resistência e
adaptação ao conflito das diferentes comunidades indígenas.
Até 17-16 a. C, Roma parecia mais ou menos disposta a aceitar o Reno como limite
setentrional das suas ambições imperiais 1366. O acontecimento que provavelmente os
levou a repensar a sua política na fronteira renana foi a chamada clades
Lolliana/«desastre Loliano»: em fins do ano 17 ou começos de 16, quando Marco Lólio
(Lollius) era o propraetor da Gallia Comata1367, três tribos germânicas –Sicambros
(Sugambri), Usípetes e Tencteros (Tencteri) – reuniram alguns romanos que estavam
nas suas terras, possivelmente mercadores, crucificando-os. Desconhece-se o que
causou este acto de profunda hostilidade, mas a verdade é que um significativo número
de guerreiros (pertencentes às referidas tribos) atravessou o Reno, efectuando uma
série de incursões na Gália romana. «Foram os Sicambros, que vivem perto do Rhenus,
que começaram a guerra», escreveu Estrabão (Geog. 7.1.4). Este autor identificou Melo
– Maelo na Res Gestae de augustana – como o seu líder e principal responsável 1368.
monuments from the Iberian Peninsula and Italy», Archivo Español de Arqueología, 85 [ 2012], pp. 141-148) ou
plásticas, como a Gemma Augusta (M. Salinas de Frías, «La guerra de los cántabros y astures, la etnografía de España y
la propaganda de Augusto», in M. Hidalgo de la Vega et al. [eds.], «Romanización» y «Reconquista»…, pp. 158-160.
1364
W. Eck, The Age of Augustus…, p. 127.
1365
J. González-Echegaray, «Las guerras cántasbras en las fuentes», in M. Almagro Gorbea et al. (eds.), Las guerras
cántabras…, pp. 159-161.
1366
No entanto, outros estudiosos sustentam que, desde o tempo de Júlio César, os Romanos estariam simplesmente à
espera de uma oportunidade para expandir o seu controlo à região para lá do Reno.
1367
Comata significa «cabeluda». Em 51 a. C., quando Júlio César abandonou o comando das operações militares, a
fronteira da Gallia Comata situava-se ao longo do Reno. Tratava-se certamente de uma conveniente fronteira
administrativa, mas fica claro que de modo algum representava uma fronteira entre os Gauleses célticos e as nationes
germânicas. Os Helvécios (Helvetii), por exemplo, tinham originariamente vivido junto do Reno antes de emigrarem
para a província romana, provocando a intervenção de César. Outras tribos, como os Eburones belgas, no Nordeste da
Gália, mudaram-se antes: significavam um povo «gaulês» de extracção germânica. E quando Octaviano recebeu a
herança da Gália em 40 a. C., as revoltas subsequentes que foram suprimidas pelos seus governadores envolveram
usualmente a colaboração entre as «nações« belgas e os seus antigos primos germânicos do outro lado do Reno. Assim,
este rio não representava uma barreira cultural. O próprio Augusto reconheceu este facto na maneira como tratou a
longa faixa de terra junto à margem esquerda do Reno. Em princípio pertencente à província da Gallia Belgica, tal área
consistia numa zona militar, dividindo-se em Germania Superior e Germania Inferior. Para além de oferecerem ajuda
às tribos gaulesas através do envio de bandos de guerreiros, os Germanos realizaram incursões bastante frequentes às
ricas terras gaulesas, e alguns destes ataques atingiram considerável envergadura. Ora, para garantirem a paz e a
estabilidade da Gália, bem como para reagirem aos raides e à violência perpetrada contra os seus cidadãos, as legiões,
sob a égide de Augusto, organizaram expedições punitivas em território germãnico.
1368
A. K. Goldsworthy opinou que Estrabão, ao mencionar os Sicambros líderados pelo «rei« Melo como sendo os
provocaram a guerra de Augusto contra os Germanos, se referiria a um incidente posterior (Augusto…, n. 3, p. 561),
mas não carreia argumentos que justifiquem a sua asserção.
482
Marco Lólio teve de reagir, organizando as suas tropas para lidar com a ameaça, (à
semelhança do que Júlio César, Agripa e outros haviam feito no passado na mesma
região), só que o legado não possuía a perícia dos seus antecessores e a sua acção
militar não correu bem: a cavalaria auxiliar que avançava à frente do exército caiu
numa emboscada, sendo derrotada. Os germanos perseguiram os cavaleiros em
debandada e toda a massa se abateu sobre a força principal romana, que foi
surpreendida e muito afectada. A V Alaudae fragmentou-se e perdeu a sua sagrada
águia estandarte; durante algum tempo, a maioria dos legionários esteve em fuga, antes
de se lograr restaurar a ordem nas fileiras e acabar por rechaçar o inimigo. Lólio e o seu
exército sobreviveram aon revés e as baixas não terão sido muito elevadas. Ao referir-se
a este episódio, Suetónio afirmou que o sucedido fora «mais infame do que sério», mas
encarou o acontecimento como uma das duas graves derrotas sofridas pelos exércitos
de Augusto após as guerras civis. Ora, segundo A. K. Goldsworthy, como «Lólio era seu
legado e os soldados eram igualmente seus […] a derrota era tanto deles como do
princeps [..] O Imperator César Augusto liderava o Estado porque as suas vitórias
tinham proporcionado paz e prosperidade»1369. Neste sentido, qualquer revés era
prejudicial e, após o tão aclamado regresso dos estandartes da Pártia e da Ilíria, a perda
de outra águia constituía um enorme embaraço.
Quando se inteirou do sucedido, Augusto esteve quase a partir para a Gália, onde
assumiria pessoalmente o controlo da situação, mas foi persuadido a adiar a viagem até
à Primavera de 16 a. C. No entanto, a campanha romana terminou antes de o princeps
lá chegar. Lólio, numa atitude retaliatória, logrou reunir uma força maior e mais bem
preparada para invadir as zonas tribais.Ora isto compeliu os Germanos a enviarem
emissários com o objectivo de obter a paz, que veio a ser devidamente concedida de
acordo com os termos romanos. Quanto à águia, a sua perda deve ter sido temporária,
recuperando-se o estandarte talvez após o primeiro confronto1370.
Por natureza, Augusto era conservador e prudente, quase nada inclinado a agir por
impulsos ou tomar atitudes arriscadas, preferindo agir só depois de planear
meticulosamente os seus objectivos1371. Ao longo de mais de trinta anos, beneficiou da
profícua assistência do já referido Marco Vipsânio Agripa, seu grande amigo e genro,
um ano mais novo que o princeps. Agripa encontrava-se numa missão diplomática na
Síria, enquanto Augusto estava na Gallia Comata, mas não restam grandes dúvidas de
que o primeiro terá ajudado a definir, em larga medida, uma estratégia para a
Germânia. Agripa ocupara o cargo de propraetor daquela região gaulesa em duas
ocasiões (Primavera de 39 a. C.- Outono de 38 a. C.; Junho de 20 a. C.- Primavera de 18
a. C.). Aí ele estabeleceu cidades e criou a primeira rede viária a partir da sua capital,
Lugdunum (Lyon). Agripa foi, inegavelmente, um soberbo estratega e táctico,
correspondendo ao cérebro que esteve por detrás das vitórias no mar, em Actium, e em
terra, contra Ástures e Cântabros na Hispânia, como vimos. Como ele era uma pessoa
viajada e conhecia lugares-chave em primeira mão, Augusto incumbiu-o de produzir
um mapa do mundo (Orbis Terrarum), servindo-se de uma equipa de gregos para o
elaborar, nele colocando Roma no centro do orbe. Através deste esforço cartográfico,
pretendia-se ter uma visão o mais completa possível do mundo conhecido e tentar
avaliar até que ponto o que se situava para lá deste era desconhecido. Mas isto de pouco
serviu: os Gregos e os Romanos tinham só uma vaga noção das terras que se situavam
longe do Mediterrâneo, não estando certamente cientes da imensidão da Europa
Central e das estepes para lá dela. É possível que Augusto acreditasse poder conquistar
toda a Europa até ao oceano, que, ao tempo, se pensava circundar os três continentes
conhecidos, mas estas possibilidades pertenciam ao futuro. Por enquanto, as ambições
do princeps eram mais comedidas: aumentaria o imperium de Roma, punindo os povos
que tinham atacado as províncias, impedindo que os mesmos o voltassem a fazer.
1369
Augusto…, p. 340.
1370
Dião Cássio, Hist. rom. 54.20.4-6; Suetónio, Augusto, 23.1
1371
Para um aprofundamento sobre a política germânica de Augusto: C. Wells, The German Policy of Augustus, Oxford,
1972; K. Christ, «Zu augusteischen Germanenpolitik», Chiron 7 (1977), pp. 149-205; J. Deininger, «Germaniam pacare.
Zur neureren Diskussion über die Strategie des Augustus gegenüber Germanien», Chiron 30 (2000), pp. 749-773.
483
Em termos concretos, pouco se sabia sobre os antagonistas germânicos e as terras
onde viviam. A Magna Germania não era um único país, mas uma amálgama de
nações, tribos e clãs. Se nos alicerçarmos nos Commentarii de bello Gallico de Júlio
César, os Romanos apenas conheceriam umas oito tribos e os seus nomes. Estes
denominados «Germanos» (que estavam longe de se designarem a si próprios desta
maneira) achavam-se reunidos em torno do Reno (Rhenus) e do Danúbio (Ister,
Danuvius) e acreditavam descender da comunidade céltica que os académicos
modernos qualificaram de Cultura La Tène, tal como as tribos na Gallia Comata (ou
Celtica). Os que habitavam as áreas mais a norte e a leste compartilhavam uma
tradição linguística e cultural comum, diferente da dos Celtas, como os Queruscos
(Cherusci) e os Caucos (Chauci). Outros, ainda, representavam uma mistura dos dois
«grupos» precedentes, possuindo características célticas e germânicas, como os
Batavos (Batavi) e os Belgas (Belgae1372). Observadores romanos, nomeadamente o
geógrafo Estrabão, salientaram que «povos diferentes em tempos diferentes podiam
causar uma ruptura, primeiro tornando-se poderosos, depois sendo derrubados, e, a
seguir, de novo se rebelando, atraiçoando tanto os reféns que haviam entregue como os
seus testemunhos de boa-fé» (Geog. 7.1.1). Os Suevos (Suebi) representavam a natio
mais temida pelas tribos que se localizavam mais perto do Reno e a sua migração
exerceu pressão sobre as outras comunidades tribais, obrigando-as a deslocar-se para
novas paragens.
O Reno-Danúbio não era propriamente uma fronteira impenetrável. Assim como
mercadores romanos a atravessavam para trocar artigos manufacturados por âmbar,
peles, cavalos e ferro, os Germanos cruzavam frequentemente ambos os rios em barcos
para realizarem raides de pilhagem nas terras mais a sul. Os Cimbros e os Teutões,
provenientes da actual Dinamarca e do Norte da Alemanha, chegavam a fazer incursões
até à península itálica, como vimos, até que foram derrotados por Caio Mário em
Aquae Sextiae (Aix-en-Provence) em 102 a. C. e, um ano depois, em Vercellae. O
primeiro romano célebre a franquear o Reno foi Júlio César, primeiro em 55 s. C. e
novamente em 53 a. C., ganhando renome por construir uma ponte no espaço de
apenas duas semanas, marchando sobre a mesma com o seu exército, depois de os
Úbios (Ubii) permitirem que se passasse para a margem direita. Agripa, que saibamos,
foi o segundo romano de alto estatuto a cruzar o Reno. Atacada pelos Suevos na sua
retaguarda em 38 a. C., a nação úbia pediu asilo a Agripa, que foi concedido, para
transitarem para a margem esquerda do rio, onde se fundou uma nova povoação,
Oppidum Ubiorum, no território deixado vago a seguir ao extermínio dos Eburones
perpetrado por Júlio César. Aventou-se a hipótese de que o primeiro forte, cunhado
pelos arqueólogos de «Neuss A» (Novaesium), se erigiu com o propósito de reunir
informações de carácter militar na região para Agripa, localizando-se ele no fim de uma
longa estrada a partir de Lugdunum.
Na Gália, onde esteve três anos, Augusto examinou circunstanciadamente a situação
na região. Ele compreendeu que a estabilidade do extremo ocidental do império se
conectava estreitamente com as intenções dos povos através do Reno, como, aliás, o
raide chefiado por Maelo demonstrara. Augusto trouxe consigo o seu enteado mais
velho, o futuro imperador Tibério1373, nomeando-o propraetor em substituição de Lólio.
Tibério já tinha manifestado uma tendência ou vocação natural pela vida militar
quando esteve como tribuno na Hispânia, além de talento diplomático, na ocasião em
que negociou com o rei da Pártia para conseguir reaver os estandartes legionários
perdidos na batalha de Carras. Sob a sua direcção, a Gallia Comata foi reorganizada em
três províncias (Tres Galliae) – Aquitania, Belgica e Lugdunensis (correspondem à
1372
Para um aprofundamento deste assunto, consulte-se M. Carroll, Roman, Celts and Germans: The German Provinces
of Rome, Stroud, 2001.
1373
Filho de Lívia Drusila e de Tibério Cláudio Nero, ambos membros do distinto clã patrício dos Cláudios. O velho
Tibério lutou contra Octaviano na guerra civil e, em 40 a. C., viu-se forçado a fugir para a Grécia. No ano seguinte,
regressou a Itália, e depois divorciou-se de Lívia, que a seguir se casou com Octaviano.
484
região que actualmente compreende a França, a Bélgica, o Luxemburgo e a Alemanha a
oeste do Reno, englobando uma área superior a 777 0000 km2)1374.
Por esta altura, não havia sinais de resistência entre as tribos da própria Gália, se
bem que a sua conquista ainda fizesse parte da memória dos vivos. A Aquitânia era uma
excepção, mas quando se subjugou totalmente o Norte da Hispânia, não havia povos
independentes do outro lado dos Pirenéus prontos a saquear ou a ajudar as tribos
gaulesas. Porém, as regiões situadas mais perto dos Alpes e da extensa fronteira com as
tribos germânicas encontravam-se expostas a ataques provenientes do exterior do
império romano.Se os Romanos pura e simplesmente os ignorassem e não oferecessem
protecção, então alguns nobres gauleses poderiam questionar-se se a aliança com Roma
valeria mesmo a pena e optar por procurar apoio entre os líderes germânicos. César
Augusto precisava de descobrir uma solução de carácter mais permanente para este
problema.
Quando Augusto abandonou Lugdunum em 13 a. C., é quase certo que já se gizara
um plano para a invasão da Magna Germania, estabelecendo–se os objectivos básicos,
a estratégia da operação bélica e os recursos necessários para a sua execução. A meta
inicial parece ter sido a fixação do novo limite do império no rio Weser (Visurgis). Para
esta empresa urgia concentrar muitas forças militares. Neste momento específico,
temos escassos dados sobre a organização do exército romano nas províncias gaulesas.
Em 20 a. C., quando Agripa cruzou o Reno pela segunda vez, vinha acompanhado pela
Legio V Alaudae e, possivelmente, parte ou a totalidade da VIIII (IX) Hispana. Embora
subsistam dúvidas, é provável que as legiões XVII, XVIII e XIX também se achassem
aboletadas nas Tres Galliae. Depois de terminar a guerra contra os Ástures e
Cântabros, em 19 a. C., puderam ser enviadas mais unidades militares da Hispânia.
A primeira etapa na conquista da Germânia visou a subjugação da região central
europeia alpina1375: À primeira vista, pode parecer uma estranha prioridade: contudo,
para a movimentação de tropas de leste para oeste através das províncias gaulesas, o
único trajecto disponível para os Romanos, sem terem de entrar em território hostil,
era por meio da estrada costeira na Narbonensis. Ao anexar os Alpes e a terra acima do
Reno e do Danúbio, o exército romano podia iniciar a campanha com maior facilidade.
Começar pela região dos Alpes era, em certa medida, preferível, já que a mesma estava
quase cercada por províncias romanas, embora não deixasse de ser uma tarefa
complicada.Os povos que viviam nos vales mais altos eram pouco organizados, com
várias comunidades diferentes cujos líderes só controlavam áreas bastante reduzidas.
As duras condições de vida produziam guerreiros resistentes e ferozes, que saqueavam
os vales mais desenvolvidos e extorquiam portagens aos mercadores, por vezes, aos
próprios exércitos romanos que circulavam pelos desfiladeiros. Nos últimos tempos,
havia relatos de atrocidades, o que sugeria que algumas das comunidades, pelo menos,
tinham começado a odiar os Romanos. Correu o rumor que, numa recente série de
ataques, haviam trucidado todos os homens romanos capturados e chacinado todas as
grávidas que os seus adivinhos acreditassem estar a gerar filhos varões 1376.
Talvez na primeira fase da expeditio, o lígure Cótio (Cottius), filho de Dono (Donnus)
foi abordado no seu reino alpino no sentido de dar a sua anuência e proporcionar uma
passagem segura para as tropas romanas e o seu material. Para liderar a campanha,
Augusto escolheu o seu enteado mais novo, Druso (Nero Claudio Drusus), que então
estava a exercer a função de praetor. De acordo com todas as fontes literárias antigas,
ele era um jovem impetuoso, carismático e com atraente aparência (atributos que o seu
irmão Tibério não tinha), mas faltava-lhe experiência em assuntos militares 1377.
1374
J. F. Drinkwater, Roman Gaul: The Three Provinces 50 BC-AD 260, Londres, 1983.
1375
P. Lindsay Powell, «Bella Germaniae: The German Wars of Drusus the Elder and Tiberius», in J. Oorthuys (ed.), The
Varian Disaster The battle of the Teutoburg forest/Ancient Warfare, (Special Issue 2009), p. 11.
1376
Dião Cássio , Hist. rom. 54.20.1-2, 22.1-2; Floro 22.22; Estrabão, Geog 4.6.7-8. Anteriormente Augusto já organizara
campanhas nos Alpes, mas com escassos resultados práticos.
1377
Remetemos o leitor para a biografia de P. Lindsay Powell, titulada Eager for Glory. The Untold Story of Drusus the
Elder, conqueror of Germania, Barnsley, Pen & Sword, 2013.
485
Com 23 anos de idade, Druso foi assim posto à prova pelo princeps para mostrar o
seu valor. Na Primavera de 15 a. C., ele avançou para os Alpes desde Itália, com várias
colunas em direcção ao vale do Inn, obtendo rápidas vitórias sobre os Récios (Raeti) e
os Vindélicos (Vindelici). Entretanto, Tibério foi ao encontro do irmão, marchando
para leste, com legiões das Tres Galliae: uma delas era a XX, tendo-se descoberto uma
prova da sua presença na Récia, um projéctil de catapulta com o seu nome gravado
numa breve inscrição, em Döttenbichl, (nas proximidades de Oberammergau, Baviera).
Ao actuarem concertadamente, Druso e Tibério1378, realizaram uma ofensiva em maior
escala no dia 1 de Agosto (o 15ª aniversário da vitória de Augusto no Egipto), através de
uma manobra em tenaz. No final do ano, a quase totalidade dos Alpes estava sob
dominação romana e as poucos zonas que restavam não tardaram a ser controladas. Os
dois irmãos conseguiram submeter a Récia e o Nórico ao jugo romano, em apenas uma
só estação de campanha.
Para celebrar estes êxitos, foi erigido um espectacular monumento vitorioso 1379 nos
Alpes Marítimos, em La Turbie 1380, onde consta uma lista dos 44 povos derrotados.
Muitos dos nomes registados practicamente não surgem noutras fontes antigas,
reflectindo a sociedade pouco estruturada da região, mas também parece ter havido
povos que não resistiram e aceitaram o domínio romano. Em princípio, não se
travaram grandes batalhas1381 no Nórico, mas alguns dos Récios e dos Vindélicos
ofereceram encarniçada resistência, embora, naturalmente, não pudessem fazer frente
aos enormíssimos recursos dos Romanos. O célebre Horácio dedicou dois poemas,
exaltando as vitórias de Druso e Tibério. Augusto, por seu turno, vangloriou-se das
razões legítimas que levaram a combater todos esses povos, mas tal era apenas algo em
que os Romanos gostavam de acreditar 1382. Para assegurar estes sucessos nos Alpes,
construiu-se um forte em Augusta Vindelicum (actual Augsburgo) e ficou uma
vexillatio da Legio XIX aquartelada em Dangstetten (Baden-Wurttemberg), entre os
anos 15 e 8 a. C. O controlo das rotas alpinas melhorou imenso as comunicações entre a
Itália e a Ilíria, no Sul, e a Gália, no Norte, transformando o império romano numa
unidade mais coesa1383.
Ao manifestar vocação e talento para chefiar um exército, Druso foi então nomeado
legatus augusti pro praetore, assumindo a governação das Tres Galliae, a qual até aí
estivera nas mãos de Tibério. Este, por sua vez, continuou em actividade, seguindo para
leste, com o objectivo de travar a guerra na Ilíria e na Panónia. Não parece restarem
dúvidas de que Augusto centrava a sua atenção em conquistas tanto junto ao Reno
como nos Balcãs em grande escala, esperando glórias claras, e as vitórias alcançadas
serviriam para cumprir a promessa de paz através do uso da força (celebrada na Ara
Pacis) e justificar a sua supervisão das províncias que enfrentavam problemas
militares. Sem qualquer outra conflagração a perturbá-lo, e beneficiando de uma
1378
Sobre as operações bélicas nos Alpes, veja-se: W. Zanier, «Der römische Alpenfeldzug unter Tiberius und Drusus im
Jahre 15 v. Chr. Übersicht zu den historisch und archâologischen Quellen», in R. Aβkamp e T. Esch (eds.), IMPERIUM –
Varus und seine Zeit. Beiträge zum internationalen Kolloquium des LWL – Römersmuseums am 28. und 29. April
2008 in Münster, Münster, Aschendorff Verlag, 2010, pp. 73-96; S. Martin-Kilder, «Römer und gentes Alpinae im
Konflikt – archäologische und historische Zeugnisse des 1.Jahrhunderts v. Chr.», in G. Moosbauer e R. Wiegels (org.),
Fines imperii – imperium sine fine? Römische Okkupations und Grenzpolitik in frühen Principat. Beiträge zum
Kongress […] in Osnabrück von 14. bis 18 September 2009, Rahden/Westf., 2011, pp. 27-61.
1379
Assim rivalizando com um troféu similar erigido por Pompeio nos Pirenéus.
1380
J. Formigé, «La dédicace du Trophée des Alpes (La Turbie)», Gallia 13 (1955), pp. 101-102.
1381
Na realidade, os confrontos ocorridos nesta campanha traduziram-se quase sempre em escaramuças e assaltos a
aldeias muralhadas.
1382
Dião Cássio, Hist. rom. 54.22.2-5; Veleio Patérculo 2.95.1-2; Estrabão, Geog. 4.6.9; Horácio, Odes 4.4 e 14; Res
Gestae, 26; C. Wells, The German Policy of Augustus…, pp. 59-89; G. Alföldy, Noricum, 1974, pp. 52-61.
1383
A. K. Goldsworthy (Augusto…, p. 346), a respeito deste controlo das rotas alpinas, salientou que: «De certa forma,
parece surpreendente que os Romanos tenham demorado tanto tempo a consegui-lo, mas foi necessária a confiança e o
controlo de um César Augusto para dedicar recursos substanciais a uma soturna série de campanhas que envolviam
confrontos difíceis e pouco gloriosos, além de escassos proveitos em termos de saque ou de escravos. No passado, fora
simplesmente mais fácil e mais económico subornar as tribos alpinas. Mas tal como conquistara as montanhas do Norte
de Hispânia, Augusto estava disposto a empreender tarefas difíceis mas úteis – e igualmente disposto a celebrar os seus
feitos»
486
liberdade de acção incomparável a outros líderes romanos do passado, Augusto decidiu
aumentar o território romano nas regiões mencionadas 1384.
Nos dois anos seguintes (14-13 a. C.), Druso, certamente rodeado por um conjunto de
oficiais competentes, supervisionou a construção de uma série de infra-estruturas
militares e a reunião de tropas (provavelmente oito legiões apoiadas por efectivos
substanciais de unidades auxiliares) e de todo o material necessário com vista à invasão
da Magna Germania. Estabeleceu-se uma rede de fortalezas ao longo do Reno, em
Castra Vetera (Xanten), Novaesium (Neuss) e Mogontiacum (Mogúncia/Mainz)1385.
Outra base situava-se em Batavodurum (mais tarde recebeu outro nome, Noviomagus,
depois da revolta batava de 69-70 d. C. 1386) correspondendo à hodierna colina de
Hunerberg, nas imediações de Nijmegen (Holanda), no rio Waal: de acordo com as
escavações arqueológicas, terá sido construída entre 19 e 16 a. C., abrangendo uma área
com 42 hectares, feita de terra, turfa e madeira (provavelmente albergaria duas legiões
completas e unidades auxiliares) 1387. Tal como a maior parte dos fortes edificados neste
período, fosse no Reno, a leste deste rio ou na Hispânia, este não seguiu propriamente a
exacta planimetria rectangular tão familiar nos castra dos exércitos romanos dos
séculos I e II d. C. Com efeito, as legiões augustanas exploraram as vantagens de certas
posições naturais, construindo muitas vezes as suas estruturas em terrenos elevados,
com taludes defensivos que acompanhavam grosseiramente os seus contornos, daí se
produzindo formas com seis, sete ou mesmo oito lados. Entre estas bases outras se
ergueram, de menores dimensões: no planalto de Kops, perto de Huneberg, criou-se
um fortim triangular (3,5 hectares)1388, dotado de um parapeito de terra e madeira, com
3 metros de largura, e um duplo fosso seguindo os contornos da colina; são talvez da
mesma altura outras fortificações, como Asciburgium (Moers Asberg), Bonna (Bona)
e, talvez, Castellum apud Confluentes (Coblença/Koblenz), Bingium (Bingen am
Rhein) e Espira/Speyer, todas interligadas por estradas militares 1389.
Construiu-se também uma «frota», ou melhor, vários esquadrões de barcaças e
navios de transporte, com a ajuda dos Batavos locais pró-romanos. De facto, W. J. H.
Willems salientou que no já mencionado planalto de Kops, não longe de Nijmegen era
uma zona com uma densa floresta de carvalhos e bétulas, mas no período augustano, a
última desapareceu. É muito possível que se tenham abatido as árvores para fazer os
meios de transporte das tropas e as barcaças. Druso também mandou escavar um canal
(fossa Drusiana). Tem havido um considerável debate quanto à localização precisa do
canal. Alguns investigadores sustentaram que o seu curso era idêntico ao do rio Vecht,
ligando Traiectum (actual Utrecht) ao antigo lago/Lacus Flevo (Ijsselmeer)1390. Esta
teoria foi consensualmente aceite pelos arqueólogos, até ao momento em que se
confirmou o sítio onde Druso mandou fazer um molhe ou represa em Carvium
(Herwen) para regular o fluxo de água entre os rios e o mar interior, um pouco a leste
da bifurcação do Reno e do Gelderse Ijssel. Em começos da década de 80 do século
passsado, vários estudiosos propuseram que o referido canal corresponderia ao forte
1384
C. Wells, The German Policy of Augustus…, pp. 246-250; J. Rich, «Augustus, War and Peace», in J. Edmondson
(ed.), Augustus…, 2009, pp. 137-167, esp. 149-162.
1385
Sobre Novaesium e Mogontiacum, consulte-se Duncan B. Campbell, «Secrets from the soil: The archaeology of
Augustus’ military bases», in J. Oorthuys (ed.), The Varian Disaster, pp. 20-21. Em Neuss, no sítio arqueológico da
famosa fortaleza legionária pertencente ao reinado de Cláudio, descobriram-se vestígios de fossos defensivos e peças de
cerãmica em terra sigillata que sugerem que no tempo de Augusto já era uma base militar. Quanto a Mogontiacum, o
seu forte, sobranceiro ao Reno, constituía um dos melhores pontos de partida para a invasão da Germânia.
1386
A fortaleza aí construída no tempo de Vespasiano era excepcionalmente pequena, com 16,5 ha.
1387
P. Franzen, «The Augustan legionary fortress at Nijmegen. Legionary and auxiliary soldiers», in A. Morillo Cerdán,
N. Hanel e E. Martín (eds.), Limes XX: Estudios sobre la frontera romana. Roman Frontier Studies. Anejos de Gladius
13, vol. 1 Madrid, 2009, pp. 1257-1269.
1388
Para Duncan B. Campbell, «…the site belongs firmly to the campaigns of Drusus»: cf. «Secrets from the soil: The
archaeology of Augustus’ military bases», p. 19
1389
Embora se tenha encontrado alguns elementos materiais que indiciam uma ocupação anterior, Bonna e Castellum
apud Confluentes parecem mais fortes dos reinados de Tibério e de Cláudio, do que bases ilustrativas do expansionismo
augustano. Mas cabe não excluir a hipótese de ambos os locais já estarem guarnecidos por tropas sob Augusto.
1390
J. N. Poelman, «De gracht van Drusus?», Westerheem 30 (1981), pp. 20-23; W. J. Willems, «Over een fossa, een
castra en een tabula», ibidem, pp. 168-171.
487
romano descoberto nas proximidades de Arnhem-Meinerswijk. No entanto, alguns
autores refutaram esta interpretação.
Num artigo publicado em 1995, Kerst Huisman, depois de reexaminar as evidências
arqueológicas, defendeu a ideia que Suetónio estaria a aludir aos canais de Druso
(Cláudio, 1), sugerindo que existiria um segundo canal a conectar o Lago Flevo com o
mar de Wadden. Ora isto faz sentido, porque se existisse apenas um canal, a marinha
romana ver-se-ia forçada a deixar o Lago Flevo, no Oeste, em Flevum, e teria de
efectuar um perigoso desvio para o mar alto 1391. Todo este investimento revela um
grande rigor nos preparativos da campanha romana. Este conjunto de dispositivos
sugere a eventual intervenção do génio de Agripa: lembremos que ele fora o artífice das
vitórias navais de Actium (Áccio), Mylae e Náuloco, bem como promotor da construção
de grandes edifícios e obras públicas, como o Panteão, além de superintender as
reparações na Aqua Marcia e melhorar a rede de abastecimento de água em Roma.
Os meses do Inverno de 13-12 a. C. conheceram nova vaga de assaltos de guerreiros
germânicos às províncias romanas, mas a investida foi rechaçada por Druso. Este, na
Primavera, lançou a primeira de uma série de expedições contra as tribos que viviam a
leste do Reno. O exército atravessou o Reno e penetrou nos territórios dos Sicambros,
Tencteros e dos Usipetes. As operações obedeceram a um duplo propósito: punir as
ditas tribos e, ao mesmo tempo, procurar incapacitá-las as por forma a não causarem
problemas enquanto os Romanos actuassem noutra zona. Após esta missão de
neutralização, principiou uma audaciosa campanha anfíbia: cerca de mil barcos
levando a bordo quatro legiões navegaram pelo Reno através da Fossa, rumo ao Lago
Flevo. Embora a principal intenção consistisse no envio de tropas para internamento
na Germânia, a viagem serviu igualmente para explorar e avaliar a extensão desta
região.
Durante este processo, atingiram-se resultados estrategicamente proveitosos: os
Batavos provaram a sua lealdade; foram concluídos com os Cananafates e os Frísios
(Frisii), mediante os quais as duas tribos se comprometeram a pagar tributos, fornecer
homens e víveres (com efeito, os Frísios, desde esse momento, facultaram batedores e
guerreiros que acompanharam o exército de Druso. Os Romanos não recorriam, claro
está, só à força das armas para alcançarem os seus fins: a diplomacia desempenhava
um papel nada negligenciável no âmbito da estratégia militar da Urbs.
A frota retomou a viagem, navegando para o mar de Wadden, derrotando de permeio
a resistência oferecida por uma comunidade tribal em Burchania (Borkum ou Bant),
antes de chegar em segurança ao estuário do rio Amisia (Ems). Parte dos navios
seguiram pelo Ems (com 371 km de comprimento), ficando muitos na foz fluvial,
enquanto outros podem ter efectuado um percurso ao longo da costa para explorar o
Weser (Visurgis). Os Caucos (Chauci) locais bateram-se em terra contra os Romanos,
mas depressa procuraram um acordo de paz. Noutro ponto mais a jusante do Ems, a
frota viu-se atacada pelos Bructeros, que foram repelidos. Como a estação de campanha
se avizinhava do fim, Druso resolveu voltar para trás. Mas no regresso, junto da faixa
litorânea holandesa, vários barcos encalharam 1392 porque a maré recuara mais do que se
esperava, mas os Frísios ajudaram a libertá-los, pelo que a força expedicionária romana
tornou ao Reno para invernar. Atentemos a um trecho de Dião Cássio (Hist. rom.
54.32.2-3):
«A seguir Druso atravessou para a terra dos Usipetes, continuando pela ilha dos Batavos e
daqui marchou ao longo do rio em direcção ao território dos Sicambros, muito do qual ele
devastou. Depois, navegou pelo Reno abaixo até ao oceano, ele conseguiu a aliança dos Frísios e,
ao cruzar o lago, invadiu o país dos Caucos, onde esteve em perigo, já que os seus navios ficaram
encalhados por causa da maré-baixa do oceano. Ele foi socorrido nesta ocasião pelos Frísios, que
tinham integrado a sua expedição com a sua infantaria, e retirou, uma vez que agora era
Inverno».
1391
K. Huisman, «De Drususgrachten: een nieuwe hypotese», Westerheem 44 (1995), pp. 188-194. Quanto à Fossa
Drusiana, P. Lindsay Powell seguiu a teoria tradicional, não a hipótese mais recente aventada por K. Huisman: « Bella
Germaniae: The German Wars of Drusus the Elder and Tiberius», pp. 13-14.
1392
Décadas antes, Júlio César, durante as suas duas expedições à Britânia, também subestimou a as marés marítimas.
488
O saldo foi positivo: Druso firmou tratados com novos aliados e ganhara uma melhor
compreensão da geografia política e física da Germânia. Mas para obter resultados
tangíveis, foi necessário atacadas «pátrias» tribais, queimaram-se aldeias e quintas,
arrebatou-se gado e destruiram-se colheitas. Confrontados com tais demonstrações de
força, que mostravam bem qual o preço a pagar por aqueles que resistissem a Roma,
várias tribos se juntaram aos Frísios, pretendendo formar alianças 1393. É possível que
Agripa, mesmo longe do teatro de operações, estivesse ao corrente destes factos e os
fosse acompanhando com interesse, mas antes do fim de 12 a. C., ele faleceu aos 51
anos. Augusto ficou naturalmente destroçado com a perda do seu grande amigo e
colaborador. Doravante, o princeps apoiar-se-ia se exclusivamente nos seus dois
enteados para transformar em realidade a sua estratégia militar.
Druso regressou a Roma no final do ano 12 a. C. para uma breve visita. O jovem foi
eleito pretor, recebendo o cargo prestigiante de pretor urbano, e pouco depois voltou à
fronteira do Reno para continuar a guerra. No início da Primavera de 11 a. C., com 27
anos de idade, Druso centrou a sua atenção nas terras interiores. Desde Castra Vetera,
no início da Primavera, ele decidiu atacar, desta vez liderando pessoalmente uma das
colunas que avançavam por terra; o seu exército cruzou o Reno e progrediu através do
curso sinuoso do Lippe (com 220 km de comprimento). Por esta altura, algumas das
tribos que tinham capitulado havia pouco terão resolvido apostar de novo no confronto.
Floro (Epit. 2.30.24) conta que os Sicambros, os Queruscos e os Suevos capturaram e
crucificaram vinte centuriões. A razão mais provável para a sua presença seria a
actividade diplomática enquanto representantes de Roma, ou então poderiam estar a
tratar do recrutamento de homens para servirem nas coortes auxiliares, aspecto
contemplado nos tratados firmados com os povos locais.
Com o apoio logístico de navios transportando mantimentos, as tropas entraram em
terras habitadas por Sicambros e Queruscos. Porém, como muitas vezes sucedia, os
Romanos beneficiaram nesta ocasião da existência de rivalidades e desentendimentos
tribais: Druso avançou rapidamente, porque os Sicambros tinham partido para
guerrear os seus vizinhos Catos, por estes não lhes terem prestado auxílio no ano
precedente, e recusando-se a fomar uma aliança contra Roma. E enquanto isto se
passava, o jovem enérgico do clã dos Cláudios atacou com prontidão e devastou a
«pátria» dos Sicambros1394. Aproveitou ainda para erguer fortes1395 em Fürstenberg1396,
Holsterhausen, Beckinghausen1397 e Oberaden1398, onde as escavações arqueológicas
1393
Na Panónia, Tibério recorreu a métodos idênticos e obteve o mesmo grau de êxito (Dião Cássio, Hist. rom. 54.32.1-
3)
1394
Dião Cássio, Hist. rom. 54.33.1-2. Para uma tentativa de reconstituição detalhada das operações levadas a cabo por
Druso nesse ano, veja-se P. Lindsay Powell, Eager for Glory. The Untold Story of Drusus…, pp. 81-92.
1395
Para úteis elementos informativos sobre os acampamentos militares romanos e os aglomerados civis na Germânia,
entre o Reno e o Elba, veja-se T. Fischer, «Römische Militärlager und zivile Siedlung in Germanien zwischen Rhein und
Elbe zur Zeit Marbods (von der Drusus Offensive 12/9 v.Chr. bis zu der Aufgabe der römischen Eroberungspläne 17 n.
Chr.). Eine aktueller Überblick», in V. Salač e J. Bemmann (eds.), Mitteleuropa zur Zeit Marbods. Tagung Roztoky u
Křivoklátu 4.-8.12.2006. Anlässlich des 2000 jährigen Jubiläums des römischen Feldzuges gegen Marbod,
Praga/Bona, 2009, pp. 485-519.
1396
Construído num terreno elevado, localizando-se a 50 km a montante de Nijmegen, perto da actual Xanten,
destinava-se a controlar e explorar o rio Lippe, que desagua, a partir de leste, no Reno precisamente neste ponto. D. B.
Campbell, «Secrets from the soil: The archaeology of Augustus’ military bases»…, p. 19.
1397
A 2,5 km a oeste de Oberaden, havia uma pequena base em Beckinghausen, mesmo junto à margem do Lippe. Este
forte tinha a forma de uma oval alongada, com uma área de 1,6 há. Três fossos localizavam-se defronte de um parapeito
com torres em cada 30 m, mas só dispunha de uma entrada, localizada no extremo ocidental. É praticamente garantido
que o forte de Beckinghausen e a fortaleza de Oberaden eram simbióticos. Os legionários da guarnição de
Beckinghausen encontravam-se num local onde receberiam provisões por meio do rio, que depois se transportariam
para a fortaleza de Oberaden.
1398
Nijmegen, Xanten e Mogúncia/Mainz terão representado as principais bases estabelecidas para apoiar
adequadamente as campanhas empreendidas por Druso. Grosso modo, a arqueologia parece coadunar-se com a
narrativa de Dião Cássio, embora a ausência de provas seguramente datadas que permitam confirmá-la seja frustrante.
Dião relata que a segunda campanha de Druso se centrou no Lippe, que permitiu a penetração no coração do território
dos Sicambros. É possivelmente aqui que se deve procurar a mais antiga fortaleza romana para lá do Reno. Com efeito,
junto ao Lippe, erigiu-se uma fortaleza enorme (56 ha) e de planta oblonga numa colina em Oberaden, próximo da
cidade moderna de Dortmund. As escavações efectuadas nos primeiros anos do século XX revelaram a presença de
quatro acessos na estrutura militar e mediram o seu perimetro, 2,7 km. Um fosso com 5 m de largura por 3 de
profundidade situava-se à frente de um talude com 3 m de largura feito de terra e madeira, reforçado por torres em cada
489
trouxeram à tona várias parcelas estruturais, bem como abundante quantidade de
peças de equipamento militar romano, remontando a este período 1399. Construíu-se
igualmente uma ponte sobre o Lippe e, depois, as tropas prosseguiram com a
expedição. Vejamos, a propósito, uma passagem de Dião Cássio (Hist. rom. 54.33.1-2):
«Mal chegou a Primavera, Druso partiu de novo para a guerra, atravessou o Reno e subjugou
os Usipetes. Ele construiu uma ponte sobre o Lupia [rio Lippe], penetrou no território dos
Sicambros, e avançou através do mesmo para o país dos Queruscos, até ao Visurgis [Weser]».
O episódio do antagonismo entre Sicambros e Catos serve para lembrar que a região
a leste do Reno era povoada por comunidades diferentes e, por vezes, mutuamente
hostis. Como se disse, os Romanos chamavam-lhes genericamente «Germanos», mas é
alatamente improvável que os habitantes dessa área se reconhecessem na designação.
Júlio César havia classificado os Germanos e os Gauleses como claramente distintos, se
bem que ele admitisse haver certa indeterminação relativamente aos povos germânicos
já instalados na Gália. Mas a diferenciação era-lhe útil, na medida em que ajudava a
apresentar os Germanos como uma ameaça à Gália e tornava lógica a paragem da
conquista do Reno. Tanto Júlio César como outros autores da Antiguidade oferecem
um retrato sombrio da Germânia e dos seus povos, mostrando-os como mais primitivos
e, por vezes, mais ferozes que os habitantes da Gália. Para eles, a Germânia significava
uma terra repleta de pântanos e densas florestas, tendo poucos caminhos definidos,
sem significativos centros urbanos e templos, com uma população seminómada que se
dedicava à pecuária e caçava nas zonas arborizadas, mas não se entregava à agricultura.
No abalizado parecer de A. K. Goldsworthy, «Muitos destes velhos estereótipos de
barbarismo têm origem no retrato homérico dos monstruosos Ciclopes da Odisseia,
que ajudou a alimentar esta imagem de povos destituídos de qualquer traço
civilizacional, logo, imprevisíveis e perigosos»1400.
No entanto, os testemunhos arqueológicos desmentiram ideias preconcebidas, apesar
de não deixarem de suscitar problemas a nível interpretativo. Antes de Júlio César
chegar à Gália, uma extensa área da Germânia Central assemelhava-se bastante às
terras a oeste do Reno, compreendendo povoações de considerável tamanho situada no
topo de colinas, havendo sinais de indústria, comércio e de uma organização idênticos
aos dos oppida gauleses.Existiam muitos contactos entre estas zonas e,
independendentemente da sua relação política, as afinidades culturais parecem ter
sido, de facto, grandes. Elas pertencem à Cultura de La Tène. Durante a primeira
metade do século I a. C., tais povoados na Germânia Central foram quase todos
abandonados ou viram-se drasticamente diminuídos, tanto nas suas dimensões como
na sua sofisticação. Num caso, pelo menos, há vestígios de uma destruição violenta e
sangrenta da povoação, ao mesmo tempo que se verifica um significativo aumento do
armamento. Mas esta destruição não foi provocada pelos Romanos, que ainda não
tinham alcançado estas terras, embora seja possível que uma das suas causas radique
no efeito do impacto produzido pelo Império romano, quer pela mudança dos padrões
comerciais, quer pela acção militar.
Certamente que os Romanos que não tinham consciência do que estava a acontecer
tão longe do seu Império, pelo que presumiram que a situação que encontraram, ao
alcançarem estas paragens, seria normal, e que os povos locais se tinham comportado
sempre daquela maneira. As referidas povoações germânicas e as sociedades que nelas
habitavam já teriam provavelmente colapsado antes de César alcançar a Gália.
Desconhecemos como isso sucedeu e as provas materiais achadas são passíveis de se
interpretar como efeitos de perturbações internas que desembocaram em destrutivas
lutas pelo poder ou no afluxo de novos povos mais agressivos.
25 m. Os arqueólogos calcularam que pelo menos cortaram umas 25 000 árvores nas vizinhanças para elaborar as
defesas. Tal como as fortalezas do Reno, esta era uma base de carácter permanente, destinada a estar ocupada todo o
ano.
1399
C. Wells, «What’s New along the Lippe: Recent work in North Germany», Britannia 29 (1998), pp. 457-464.
1400
Augusto…, p. 373.
490
Nos registos arqueológicos, as migrações são normalmente dificilmente de detectar,
mas as repetidas menções a grandes grupos a movimentarem-se em demanda de novas
terras devem reflectir, nem que seja apenas parcialmente, a verdade. As tribos e outros
tipos de grupos não são facilmente discerníveis no contexto arqueológico, revestindo-se
de uma complexidade que nos escapa, com comunidades recém-formadas e pouco
duradouras a misturarem-se com antigos laços de parentesco. O exame linguistíco dos
nomes sobreviventes baseados em idiomas ulteriores celtas e germânicos aponta para a
existência de diferenças substanciais nesse momento histórico, mas não ajuda no
estabelecimento de identidades étnicas e culturais de povos concretos. Não admira,
portanto, que os Romanos não compreendessem inteiramente as relações mantidas
entre os vários grupos identificados como os Sicambros, Queruscos, Catos, Caucos ou
os Suevos, além de que estes se encontravam sujeitos a rápidas mudanças, em função
da queda e da ascensão de líderes diferentes.
Os estratos mais elevados das sociedades tribais eram muito permeáveis a situações
instáveis e a mutações rápidas, o que justifica a percepção romana de uma população
em constante movimento. Nos níveis inferiores, a situação já seria diferente. As grandes
povoações haviam desaparecido, mas na maior parte das regiões a leste do Reno, as
quintas e as aldeias permaneceram ocupadas durante longos períodos, abrangendo
várias gerações. A população total devia ser numerosa, embora não houvesse grandes
centros urbanos. A agricultura estava fortemente disseminada, apesar de só produzir o
suficiente para alimentar os habitantes locais; quanto aos excedentes, dispunha-se só
do necessário para acautelar eventuais más colheitas. Numa escala temporal mais
alargada, as estruturas sociais e políticas das tribos eram bastante fluidas, havendo
populações consideráveis efectuando deslocações periódicas. Mas, durante décadas,
alguns grupos tribais fixaram-se em determinadas terras, tendo líderes manifestamente
reconhecidos. Consequentemente, pelo menos por algum tempo, os Romanos podiam
tentar identificar as tribos e descobrir onde se localizavam as suas «pátrias» e
respectivos chefes1401.
Houve, claramente, muitas coisas que escaparam ao entendimento dos Romanos,
pelo que, inevitavelmente, cometeram erros. Seja como for, Druso e os seus oficiais
vieram a adquirir progressivamente mais conhecimentos sobre os povos contra os quais
lutavam. A falta de boas estradas dificultava a movimentação das tropas e do comboio
dos mantimentos. Além disso, a inexistência de grandes comunidades implicava
problemas em encontrar armazenamentos substanciais de comida e forragens. Durante
a conquista da Gália, Júlio César deslocava-se frequentemente a um dos oppida, onde
exigia ou tirava, simplesmente, os víveres necessários para o seu exército. Na
Germânia, pelo contrário, tornava-se muito mais complicado visitar centenas de
pequenos povoados para obter provisões, o que fez com que as legiões se vissem
obrigadas a transportar quase tudo o que precisavam. Em várias alturas, construiram
pontes sobre rios e passagens através de zonas pantanosas, o que era um processo
moroso. Como vimos, Druso e os seus homens seguiram quase sempre os cursos
fluviais, já que facilitavam o transporte de provisões em barcaças. A dificuldade das
movimentações terrestres também explica optar-se pela navegação, contornando a
costa do mar do Norte1402.
As colunas internaram-se, como jamais antes acontecera, no território germânico,
antes de ficarem quase sem mantimentos. A ambição e a busca pela glória de Druso –
que tencionava seguir em frente - podiam ter colocado os Romanos em apuros, se os
seus generais o não persuadissem de retroceder, preocupados que estavam com a
escassez das provisões e o início do Outono. Ainda assim, restou o tempo para edificar
um forte nos montes Taunus, que seria provavelmente guarnecido por uma unidade
incumbida da missão de reunir informações, preparando-se o cenário para a campanha
do ano seguinte.
1401
Sobre todos estes aspectos, M. Todd, The Early Germans, Oxford, 1992, pp. 17-47; P. Wells, The Barbarians Speak.
How the Conquered Peoples Shaped Roman Europe, Princeton, 1999, pp. 3-93.
1402
J. Roth, The Logistics of the Roman Army at War…, pp. 117-155.
491
Porém, na torna-viagem, o exército caiu uma emboscada dos Queruscos, num local
chamado Arbalo. Se nos ativermos a Dião Cássio, os bárbaros estiveram muito perto de
vencer os Romanos, mas não fizeram uso da sua vantagem por sentirem desprezo por
eles, «como se já tivessem sido capturados e só fosse preciso um golpe para rematá-los»
(Hist. rom. 54.32). Ao marchar em território hostil, o exército romano devia estender-
se por uma série de quilómetros, encontrando-se o seu trem de bagagens sob vigilância.
A cilada ocorreu numa altura em que os homens de Druso deviam estar extenuados
face às exigências da campanha.
Façamos um breve parentesis e discorramos um pouco sobre modus operandi bélico
dos Germanos: os chefes das tribos mantinham grupos de guerreiros que se dedicavam
em exclusivo ao combate, mas a verdade é que não eram muito numerosos. Os exércitos
de uma tribo ou de uma aliança de tribos dependia, em termos numéricos, de cada
membro tribal livre que tivesse capacidade para se equipar com as armas necessárias e
que manifestasse vontade para porfiar. Ora isto fazia com que um tal exército
demorasse algum tempo a reunir-se. Porém, este facto significava que o exército
romano corria mais riscos de deparar com séria resistência quando retirava do que nos
ataques iniciais. No caso em apreço, diversos guerreiros sicambros tinham regressado
da acção retaliatória contra os Catos, juntando-se aos bandos que se estavam a reunir
para lutar contra o inimigo invasor que destruira as suas terras.
Acontecia que a coluna romana era volumosa e progredia lentamente, com o seu
comboio de abastecimento. Assim, a sua rota afigurava-se previsível. Os guerreiros
germânicos estavam simultaneamente furiosos e confiantes, já que encaravam em geral
uma retirada do antagonista como uma fuga precipitada. Então, a coluna de Druso caiu
numa série de outras emboscadas. A custo, as tropas romanas iam marchando, ao
mesmo tempo que combatiam. Mas mesmo quando repeliam os atacantes bárbaros,
não tinham condições para persegui-los e infligir-lhes baixas de vulto, nem se dar ao
luxo de parar e manobrar contra o elusivo inimigo. Cada êxito, por pequeno que fosse,
galvanizava os guerreiros tribais, inspirando outros a pelejar ao seu lado. Esta sucessão
de arremetidas culminou numa emboscada em maior escala, que encurralou as forças
romanas num pequeno desfiladeiro, ficando em apuros, enfrentando a eventualidade
de se verem aniquilados.
No entanto, a «inépcia básica» 1403 do exército tribal veio a salvar a coluna romana: os
guerreiros germânicos não traziam comida suficiente para longas campanhas, o que os
compelia a lutar sem perder muito tempo, para depois retornarem a casa. Ademais, não
existia um único líder que conseguisse controlar todo o exército, mas diversos chefes
com variáveis graus de influência. Por seu turno, cada guerreiro reservava-se o direito
de decidir quando e como lutava. Numa altura em que os soldados romanos estavam
aparentemente à sua mercê, em vez de aguardarem e os deixarem morrer à fome ou
combater em clara desvantagem, os Germanos reuniram vários grupos e avançaram
para massacrar o inimigo e desfrutar do espólio que retirariam do seu trem de carga.
Mas pugnas deste género favoreciam os legionários: por fim, Druso e os seus homens
tiveram a oportunidade de atacar os seus oponentes; os Romanos chacinaram os
guerreiros, até aí exultantes, cujo excesso de confiança veio a degenerar numa
debandada1404.
Adicionemos outro detalhe que possivelmente conduziu a uma transformação na
protecção corporal das tropas romanas: os guerreiros germânicos porfiavam tanto
apeados como a cavalo (embora este só fosse utilizado por membros das elites tribais) e
as suas armas preferidas eram a lança comprida e outra mais leve, a framea (um tipo
de lança, de tamanho variável, que se empregava como projéctil arrojadiço ou ou haste
de contacto no corpo a corpo1405). Estas armas eram especialmente perigosas para os
soldados romanos que envergassem a cota de malha habitual (lorica hamata). Se bem
1403
A. K. Goldsworthy, Augusto…, p. 376.
1404
Dião Cássio, Hist. rom. 54.33.2-4. Para uma análise objectiva sobre os exércitos germânicos, o seu modo de
combater e as suas limitações, vejam-se A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War…, pp. 42-53; M. P. Speidel,
Ancient Germanic Warriors, Londres/Nova Iorque, 2004; M. J. Taylor, «Hit and run: The Germanic warrior in the 1st
Century AD», in J, Oorthuys (ed.), The Varian Disaster, pp. 43-47.
492
que a malha oferecesse boa protecção contra as cutiladas assestadas pelas compridas
espadas dos Gauleses, a ponta aguçada da framea tinha a capacidade de perfurar tais
protecções para o torso feitas de anéis de bronze ou ferro entrelaçados e pregados com
rebites. É plausível que se tenha concebido a couraça de placas metálicas articuladas
(que os historiadores modernos rotularam de lorica segmentata, mas próprios
Romanos jamais adoptaram esta expressão) para conferir acrescida protecção contra as
armas e os estilos de combate germânicos; com efeito, descobriram-se os vestígios
materiais mais antigos deste tipo de loriga no sítio arqueológico de Dangstetten 1406 (c. 9
a. C.), e, em Kalkriese, recuperaram-se outros fragmentos, cronologicamente
posteriores1407. Mesmo que não especialmente inventada para este teatro de operações,
o certo é que a lorica segmentata já se usava entre os soldados romanos que estavam a
servir na Germânia1408.
Druso voltou, então, com o seu fatigado exército para o Reno, sendo depois aclamado
pelas tropas como imperator (no sentido de comandante vitorioso). Numa tentativa
para assegurar alguns ganhos geoestratégicos, deixaram-se guarnições em Oberaden e
Haltern – seria a primeira vez que tropas romanas passariam o Inverno na margem
direita do Reno. A campanha foi declarada um sucesso, tal como a liderada por Tibério
junto ao Danúbio. César Augusto viu ser-lhe atribuído um triunfo que, como
habitualmente, preferiu não celebrar, enquanto os seus enteados receberam a honra de
uma ovação combinada com os símbolos de um triunfo (ornamenta triumphalia). Os
dois irmãos regressaram a Roma no Outono. Mas a notícia de um ataque dácio que
transpôs o Danúbio veio a interromper a celebração do ritual funerário da irmã do
princeps, Octávia, que falecera havia pouco, e em 10 a. C. retomaram-se as guerras.
Augusto e Lívia acompanharam Druso e a sua família até Lugdunum, onde mais tarde,
no mesmo ano, Antónia deu à luz Cláudio (o futuro imperador), o segundo filho do
casal. Quanto a Tibério, passou o ano em campanha nos Balcãs, apoiado por um
exército cujo comandante também havia recebido as insígnias de um triunfo.
Em 10 a. C., Druso seguiu de novo para a Germânia a partir de Mogontiacum, através
do Meno, esperando alcançar a seguir o Elba. Ao seguir este trajecto, a certa altura,
defrontou os Catos. Estes tinham finalmente constituído uma aliança com os Sicambros
e as forças combinadas destas duas tribos bateram-se com os Romanos perto de
Mattium (nas imediações da actual Kassel), a capital dos Catos, nos montes Taunus. O
confronto foi renhido, oferecendo os soldados romanos viva réplica aos inimigos, tendo
avançado até ao Weser. Suetónio escreveu que Druso ansiava desesperadamente por
ganhar os spolia opima, a tal ponto que chegou a perseguir «reis» germânicos no
campo de batalha, na esperança de os encurralar e eliminar em combate singular.
Entretanto, o Inverno aproximava-se e o corpo expedicionário teve de retornar às suas
bases mais a sul.
Em mês Janeiro de 9 a. C., Druso tornou-se cônsul, uma semana antes de completar
29 anos. Foi neste ano que marchou de Mogontiacum, determinado a alcançar o Elba.
No Verão, o exército chegou por fim a este rio. Druso teria atravessado o Elba e
penetrado no território dos Suebi, se não ocorresse um fenómeno sobrenatural: Dião
Cássio relata como Druso recebeu, na sua tenda, a visita inesperada e assustadora de
um mulher gigantesca, uma espécie de personificação da Germânia, que lhe exigiu que
partisse de imediato, avisando-o ao mesmo tempo que os seus dias estavam contados.
Druso teria ficado tão perturbado com este alegado «encontro» que resolveu não cruzar
o rio, mas ainda ordenou que se erguesse um tropaeum (talvez em Poppenburg, nas
imediações de Hildesheim). Depois, como a estação militar já estava avançada,
1405
Sobre as armas utilizadas pelos guerreiros germânicos (incluindo as framea), vejam-se: M. J. Taylor, «Hit and Run:
The Germanic warrior in the 1st Century AD», The Varian Disaster, p. 43; C. Koepfer, «Arming the warrior:
Archaeological evidence», ibidem, pp. 48-51; W. Adler, Studien zur germanischen Bewaffnung, Bona, 1993; I.
Lebedynsky, Armes et guerriers barbares au temps des grandes invasions, Paris, 2001, p. 61, 164-167.
1406
G. Fingerlin, Dangstetten: Katalog der Funde (dois vols.), Forschungen und Berichte zur Vor- und Frühgeschichte
von Baden-Württemberg, nº 22 e nº 69, Estugarda, 1986 e 1998.
1407
Aos quais nos reportamos noutra alínea deste capítulo.
1408
P. Lindsay Powel, «Bella Germaniae…», pp.14-15.
493
retrocedeu com as suas tropas para o Reno, deixando algumas guarnições na Germânia.
Ao longo das quatro campanhas que descrevemos, as terras entre o Reno e o Elba
haviam sido invadidas e a maioria dos seus povos reconhecera a soberania romana.
Ainda não se afigurava claro quão permanente seria esta situação, mas os feitos
militares, per se, tiveram o seu mérito1409.
No entanto, no trajecto de retorno à Gália para invernar, algures entre o Saale (Salas)
e o Weser, Druso sofreu um grave acidente, ao cair do seu cavalo e ficando com uma
perna muito estropiada1410. Quando lhe comunicaram o sucedido, o seu irmão viajou a
partir de Ticinum (Pavia), percorrendo milhares de milhas, chegando ainda a tempo de
ouvir as derradeiras palavras de Druso. Este, cerca de trinta dias após a queda, no
seguimento do ferimento que não cicatrizou, veio a falecer aos 29 anos, num local que,
de acordo com Suetónio, os soldados chamavam Castra Scelerata («Forte Maldito»,
que, para J. Martin Regel, ficaria no sítio de Schellerten, Alemanha). Tibério certificou-
se de que o corpo era embalsamado e transportou-o para Roma, no meio de um enorme
cerimonial. Os primeiros a carregar Druso foram os tribunos e os centuriões das suas
legiões (Dião Cássio, Hist. rom. 55.2). Mais tarde, tal tarefa coube aos cidadão mais
notáveis das colónias e cidades romanas.
O luto reflectiu, paradoxal e singularmente, a popularidade de Druso: Séneca, anos
depois, escreveu que o ambiente quase equivalia ao de um triunfo, assinalando a morte
do garboso e jovem herói. As cerimónias culminaram num funeral público em Roma.
Colocou-se o seu cadáver no Forum, fazendo-se duas orações fúnebres, uma proferida
por Tibério e a outra por César Augusto. Após a sua cremação, as cinzas de Druso foram
depositadas no mausoléu do princeps Augusto e construiu-se um arco em sua honra na
capital. Postumamente, Druso recebeu o título de Germanicus (no sentido de
«conquistador da Germânia»), também se atribuíu aos seus filhos, tornado-se o seu
primogénito precisamente conhecido como Germânico.
Augusto receava que a morte de Druso conduzisse a uma nova insurreição das tribos
germânicas contra Roma. Assim, no ano 8 a. C., o princeps enviou Tibério de volta à
Germânia, com a firme resolução de completar a missão que o seu irmão encetara. O
futuro imperador, a par de efectuar uma demonstração de força, recorrer também à
diplomacia. Quando souberam que Tibério cruzara o Reno e estava a mobilizar as suas
forças militares, as nationes da Renânia enviaram emissários ao seu encontro para lhe
pedir a paz. Inicialmente, os Sicambros estiveram ausentes das negociações. Augusto
comunicou a Tibério que só aceitasse celebrar um acordo com os Germanos, caso os
Sicambros também participassem. Por fim, estes apareceram, talvez pressionados pelos
povos vizinhos, e foram logo presos. Este acto constituiu uma quebra do acordo pré-
estabelecido e, ao mesmo tempo, um erro de cálculo. Os cativos foram separados e
deportados para comunidades diferentes na condição de reféns, mas todos eles
acabaram por se suicidar. Nesta altura, os seus companheiros tribais optaram por uma
atitude de contenção e não declararam guerra aberta, mas a referida atitude traiçoeira
dos Romanos concorreu para recrudescer o ódio e a desconfiança no futuro. Na sua Res
Gestae (32), Augusto declarou que Maelo fora um dos reis que «me enviou súplicas».
As condições impostas aos Sicambros diferiam das apresentadas às demais «nações»:
tal como os Úbios antes deles, os Sicambros vieram instalar-se ao longo do Reno – um
relata menciona 40 000 - , nas vizinhanças de Castra Vetera, onde passaram a ser
chamados Cibernos (Ciberni) ou Cugernos (Cugerni).
Sobreviveram parcos e vagos informes sobre as operações bélicas do ano 8 a. C., e
mediante certos indícios, é possível que se tenham resumido mais a exibições de força
do que a verdadeiros confrontos. Nesta campanha, esteve presente Caio César, o filho
mais velho de Augusto, contando somente 12 anos de idade. Talvez a perda de Agripa e
de Druso levasse Augusto a proporcionar ao filho, mais cedo que que o usual, alguma
experiência da vida em campanha. Não obstante os modestos resultados das operações
bélicas, Tibério recebeu um triunfo, o primeiro, note-se, atribuído em mais de uma
1409
C. Wells, The German Policy of Augustus…, pp. 163-211.
1410
Dião Cássio, Hist. rom. 54.36.3;55.1.5; Suetónio, Cláudio, 1.2-3, Tito Lívio, Pers. 142.
494
década a alguém que não o próprio princeps. Pouco tempo depois, Tibério anunciou
inesperadamente que tencionava retirar-se da vida pública, alegando que se encontrava
saturado após anos de enormes esforços, decisão que César Augusto nada apreciou.
Não há dúvida que Tibério devia estar cansado: afinal de contas, tinha passado oito dos
últimos dez anos em guerras. Assim, ele afastou-se da pressão, das responsabilidades e,
pelo menos a curto-prazo, de qualquer hipótese de retomar a sua carreira.
C. M. Wells, na sua obra de referência titulada The German Policy of Augustus,
afirmou que o princeps não tencionava que o rio Elba constituísse a fronteira final. De
facto, a guerra de conquista continuou: em 1 d. C., Lúcio Domício Aenobarbo (cônsul
em 16 a. C. e casado com Antónia Maior, pertencendo, assim, à família alargada do
princeps), o primeiro governador da Germânia nomeado por Augusto, atravessou
efectivamente o Elba e combateu os Hermunduros (Hermunduri), que, derrotados, se
viram deslocados para Bohaemium (actual Boémia), região onde já se encontravam,
não há muito, os Marcomanos (Marcomanni). Dión nota que Aenobarbo não
encontrou oposição entre os membros deste povo, liderado por Marobóduo, e até
estabeleceu um «pacto de amizade», mediante o qual foi cedida uma parcela da Boémia
para os Hermunduros (Hist. rom. 55.10). O governador também mandou levantar um
altar a Augusto no Reno, estrutura que deu à capital dos Úbios o seu novo nome, Ara
Ubiorum (Colónia).Tentou, igualmente, resolver a questão pendente dos reféns
romanos mantidos cativos pelos Queruscos, mas o envolvimento de outras tribos no
processo como intermediários fez com que as conversações redundassem num fracasso.
Em 4 a. C., Tibério regressou uma vez mais à Germânia e ao longo da subsequente
década permaneceu em serviço activo. Antes de o ano findar, ele voltou a Roma, aqui
passando os meses de Inverno. Na Primavera de 5 a.C. partiu novamente para o teatro
de operações, partilhando o comando com Caio Sentio Saturnino (antigo cônsul em 19
a. C., muito experiente, que fora legado sob as ordens de Druso), onde conduziria uma
campanha que conduziria as tropas romanas até, pelo menos, o rio Elba. As legiões
assumiram novas posições dianteiras ao longo do Lippe, designadamente em Anreppen
(Aliso?) e Markbreit am Rhein, na actual Baviera. Organizou-se uma nova expedição
anfíbia, mediante o envio de uma frota a partir do mar do Norte até ao Elba: parte dos
navios desceu pelo rio (1 091 km de comprimento), enquanto os restantes subiram até à
costa da Dinamarca. Fez-se, igualmente, uma invasão terrestre, contra chefes e tribos
no seio da área que já estava sob influência romana; quase ao mesmo tempo, os
Queruscos, Catos e outros povos, após oferecerem resistência, propuseram a paz aos
Romanos1411. Mas certas comunidades locais aceitaram e, até apreciariam a dominação
romana1412. Através de prospecções arqueológicas, descobriram-se vestígios de uma
cidade de estilo romano em Lahnau-Waldgirmes 1413, estabelecida por volta da viragem
do século I d. C., situando-se relativamente perto de um forte que se utilizou durante as
guerras de conquista, e acharam-se indícios da existência de outros aglomerados
idênticos. Mas o modus vivendi urbano, tão caracteristicamente romano, não atraía
ainda a maioria dos povos da região.
Os Romanos planearam uma campanha de grande magnitude para o ano 6 a. C., que
não visava só a consolidação da sua presença nas áreas já controladas, mas também a
conquista de novos territórios. O principal obstáculo que restava para completar a
conquista do território compreendido entre o Elba, o Reno e o Danúbio era o rei
Marobóduo, líder dos Marcomanos, que pertenciam a um amplo subgrupo de povos
germânicos chamados Suevos, conhecidos por usarem o cabelo amarrado num nó no
alto ou num dos lados da cabeça, o «nó suevo». Marobóduo era um indivíduo arguto,
tinha carisma e possuía experiência como chefe militar; conseguiu criar para si uma
1411
No entanto, a situação manteve-se frágil, instável e precária, estalando revoltas entre tribos que supoastamente
estavam sob a alçada de Roma. Não obstante alguns fiascos diplomáticos, parecia que a Germania Libera acabaria, mais
cedo ou mais tarde, por se submeter a Roma. Mas os acontecimentos ulteriores mostrariam que isto se tratava de uma
ilusão.
1412
Dião Cássio, Hist. rom. 55.13.1a, 29.5-7; Veleio Patérculo, 2.104; 2-107.3.
1413
Para mais dados sobres as descobertas neste sítio, veja-se R. Wolters, Die Schlacht im Teutoburger Wald, 2008, pp.
65-69.
495
espécie de «império» que englobava o seu próprio povo e uma série de outros grupos
tribais, o que lhe permitia controlar grande parte da actual Boémia e a Eslováquia, no
Norte do Alto Danúbio1414. Podemos atribuir os informes sobre a glória e o poder dos
Marcomanos (praecipua Marcomanorum gloria viresque: Tácito, Germania, 42) ao
período em que o chamado «império« de Marobóduo existiu –nas duas primeiras
décadas do século I d. C. Esta aliança tribal foi mais ditada pelo poder, mediante a
submissão dos magnatas de diversos povos, do que pela economia. No entanto, é
possível presumir o «funcionamento« de duas formas de poder coercivo, a diplomacia e
mesmo a guerra (locis finitimos omnis aut bello domuit aut condicionibus iuris sui
fecit: Veleio Patérculo, 2.108).
Na realidade, pouco sabemos da estrutura interna do «império» e da sua extensão
geográfica, bem como do hinterland económico1415. Estrabão (VII, 1.3) descreveu a
amplitude geográfica do «império» de Marobóduo, referindo que este reinava sobre
seis tribos: os Lugii, Zumi, Godos (?), Mugilones, Sibini e os Semnones. Porém, J.
Dobiáš sugeriu que, além destes povos, os Langobardi e os Quados pertenceriam, de
igual modo, à aliança tribal de Marobóduo 1416. A fronteira setentrional seria
provavelmente balizada pelo Danúbio, e a setentrional pelo Mare Suebicum (mar
Báltico). Mas umdos problemas que se coloca consiste em determinar até onde, ao
certo o «império» se estendia a oeste e a leste: a expressão de Tácito, hic Suebiae finis
(Germ. 46) indicia que a fronteira oriental se situaria algures no rio Vístula, até onde a
tribo dos Lugii haviam chegado1417. Para J. Dobiáš, a fronteira ocidental localizava-se no
rio Elba1418.
No entanto, como explicar a posição do significativo território localizado na margem
esquerda do Elba oriental, que foi habitado pelos Hermunduri (também suevos), aos
quais os Marcomanos cederam parte da zona? Consequentemente, a extensão do
«império» de Marobóduo só pode ser objecto de estimativas, o mesmo sucedendo em
relação ao número de habitantes. Para o território da Boémia, os cálculos dos
estudiosos baseiam-se habitualmente no número de combatentes no exército de
Marobóduo: se os guerreiros constituíam ¼ dos habitantes, então terão vivido nessa
área aproximadamente 300 000 pessoas.
Marobóduo estava familiarizado com os usos e os costumes dos romanos, visto que
passara alguns anos da sua juventude na Urbs, como refém, e retornou à sua «pátria»
com a ajuda dos Romanos. Veleio definiu Marobóduo como sendo «um bárbaro na
raça, mas não na inteligência» e referiu-se ao seu exército como excepcionalmente
grande, havendo muitos guerreiros mantidos em permanência às custas do rei:
compreenderia cerca de 70 000 infantes e 4 000 cavaleiros (Veleio Patérculo, 2.109.2),
a maioria deles marcomanos ou suevos. Referiu ainda que as suas tropas possuíam um
treino militar e disciplina similares às romanas - Corpus suum custodientium
imperium, perpetuis exercitiis paene Romanae disciplinae formam redactum (Veleio
Patérculo, Hist. rom. 2.109.1); asserção certamente exagerada), mas Marobóduo era,
indiscutivelmente, um líder tribal muito poderoso. As suas terras bordejavam as
províncias na Germânia, Nórico e Panónia e, ainda que o soberano tenha acolhido
refugiados dessas províncias, tudo leva a crer que não perpetrou qualquer acto
agressivo contra os Romanos 1419. A única coisa que se poderia dizer era que os
1414
P. Kehne, «Das Reich der Markomannen und seine auswärtigen Beziehungen unter König Marbod (Maroboduus) ca.
3 v. – 18 n. Chr.», in V. Salač e J. Bemmann (org.), Mitteleuropa zur Zeit Marbods, pp. 53-66; E. Droberjar,
«Contributions to the History and Archaeology of the Maroboduus Empire», ibidem, pp. 81-106.
1415
H. Preidel, «Das Markomannenreich König Marbods als Personalverband», Časopis Moravskévo muzea 57 (1972),
pp. 115-122; consultem-se ainda os seguintes verbetes de P. Kehne, «Marbod», Reallexikon der Germanischen
Altertumskunde, Band 19, Berlim/Nova Iorque, 2001, pp. 258-262; «Markomanen: -§ Historisches», ibidem, pp. 290-
302; «Marcomannis», ibidem, pp. 321-324.
1416
Dějini českolovenského území před vystoupením Slovanú, Praga, 1964, pp. 95-96, 121-128.
1417
J. Kolendo, «Mapa etniczana środkowoewropej spego Barbaricum. Swebia i Lugiowie w Germanii Tacita», in P.
Kaczanowski e M. Parczewski (eds.), Archeologia o początach Slowian, Cracóvia, 2005, p. 107.
1418
Dějini českolovenského…, p. 96.
1419
G. Dobesch, «Politik zwischen Marbod un Rom», in V. Salač e J. Bemmann (eds.), Mittleuropa zur Zeit Marbods…,
pp. pp. 7-52.
496
emissários de Marobóduo por vezes se comportavam com apropriada subserviência,
mas noutras ocasiões falavam «como se representassem um igual» 1420.
O «orgulho» exibido por um líder bárbaro constituía motivo ou pretexto mais do que
suficiente para os Romanos fazerem uma demonstração do seu poderio. O medo e as
desconfianças mútuas provocaram uma situação tensa, pelo que Marobóduo aumentou
as suas forças como medida preventiva, o que o fez parecer uma ameaça ainda maior.
As forças romanas, muito consideráveis, concentraram-se com base nas tropas
estacionadas na Germânia. Parte delas ficaram sob o comando de C. Sentio Saturnino
(que recebeu as ornamenta trumphalia pela sua actuação durante a expedição
empreendida no ano anterior), que avançaria a partir do Norte contra Marobóduo;
Tibério, por seu turno, marcharia desde o Sudeste, chefiando outra extensa coluna, com
efectivos das legiões do Danúbio. Provavelmente participaram na empresa
destacamentos de doze legiões – VIII Augusta (vinda da Panónia), XVI Apollinaris e
XX (ambas da Ilíria), XXI Rapax (da Récia) e XVI Gallica (da Germânia), mais uma
unidade desconhecida. Pelo Elba progrediriam as legiões I Germanica, V Alaudae, bem
como as XVII, XVIII e XIX 1421.
A ofensiva desencadeou-se na Primavera de 6 a. C., com os dois exércitos (o de
Tibério marchando de Carnuntum e o de Saturnino de Mogontiacum) a internarem-se
no território das tribos que habitavam o espaço entre as províncias romanas e o reino
de Marobóduo. Porém, não houve confrontos e o líder dos Marcomanos, posicionou-se
na retagurada até as colunas romanas estarem quase unidas e a poucos dias de marcha
das suas próprias forças. Precisamente nesta altura, antes de Marobóduo se ver
obrigado a combater ou submeter-se a Roma, chegaram notícias de revoltas sérias nas
províncias romanas dos Balcãs e deu-se então uma reviravolta: Tibério ofereceu a
Marobóduo termos para a restauração da paz, o que o último aceitou de bom grado.
Depois, os exércitos romanos retiraram-se para tratar de suprimir a sublevação na
Panónia e na Ilíria,1422 guerra que durou três anos, envolvendo muito derramamento de
sangue e avultados gastos .
Para concluir, sublinhemos que, apesar de Druso e Tibério conseguirem alguns êxitos,
mediante a subjugação de várias tribos e a criação de uma rede de fortificações, o plano
de conquista da Germânia não se concretizou verdadeiramente, além de que as
expedições dos dois irmãos, segundo vários historiadores, podem ter assumido menor
amplitude do que as fontes literárias dão a entender: P. Kehne, por exemplo, viu nestas
operações um conjunto de «ofensivas limitadas», 1423 desprovidas de carácter decisivo.
Ainda assim, os Romanos iniciaram o seu processo de pacificação, através de uma
política de urbanização, da introdução da jurisprudência romana e de uma moeda
comum, a par de incentivos ao comércio, do recrutamento no exército, além da
arrecadação de impostos para custear tudo isto. Por esta altura, os Romanos já tinham
uma noção mais concreta da extensão da Magna Germania. Ao escrever nos anos 80 e
90 do século I d. C., Tácito menciona quarenta tribos pelos seus nomes, o que
representa um número cinco vezes maior daquele conhecido por Júlio César (mais
tarde, na década de 30 do século II, Ptolomeu lista 69 tribos). Os Romanos depressa
fundaram aglomerados civis, embora em menor número do que noutras províncias do
império. A já mencionada descoberta de uma cidade em Waldgirmes, no Vale de Lahn,
1420
Veleio Patérculo, 2.108.1-109.4 para uma descrição global dos Marcomanos e dos Suevos, consultem-se: Tácito,
Germania, 38-41 e Estrabão, Geog. 7.1.3
1421
Contudo, vários estudiosos salientaram haver problemas para a compreensão desta campanha, alegando, entre
outras coisas, o facto de não se trem encontrado vestígios arqueológicos de acampamentos de marcha (e. g. S.
Droberjar, «Problems of the Roman military campaign against the empire of Maroboduus in the year 6 A.D.», in J.
Bouzek et al. (eds.), Gentes, reges und Rom. Auseinandersetzung – Anerkennung – Anpassung. Festschrift für J. Tejral
zum 65. Geburtstag, Brno, 2000, pp. 21-42). P. Kehne ainda foi mais radical, afirmando que as fontes textuais
respeitantes a estes eventos são mais ficção literária do que relatos históricos fiáveis: cf «Vojenské podmanĕní
Marobudovy říše plánované na rok 6 po Kr. Augustem a Tiberiemi válla bez boje», Archeologické rozhledy 58 (2006),
pp. 447-467.
1422
Veleio Patérculo 2.109.4-110.2 Dião Cássio, Hist. rom. 55.28.6.
1423
P. Kehne, «Limitierte Offensiven. Drusus, Tiberius und die Germanienpolitik im Dienst des augusteischen
Prinzipats», in J. Spielvogel (ed.), Res publica reperta. Zur Verfassung und Gesellschaft der römischen Republik und
des frühen Prinzipats. Festschrift Jochen Bleicken, Estugarda, 2002, pp. 297-321.
497
incluindo um forum e uma basílica, testemunha tal facto. De igual modo, e baseando-
nos em Tácito, foram construídas estradas na província, tarefa geralmente confiada ao
exército.
Por último, que dizer de outros protagonistas inimigos atrás referidos? O chefe dos
Sicambros, Maelo, que despoletara o conflito, não aparece mais nas fontes históricas.
Quanto ao seu irmão e ao sobrinho, respectivamente Baetorix e Deutorix, foram
exibidos (se nos ativermos a Estrabão) num triunfo posterior do filho de Druso,
Germânico. Cottius, por seu lado, viu-se indigitado praefectus de uma dúzia de tribos
por Augusto, na sua região alpina, adoptando o nome romano de M. Júlio Cótio. Este
honrou o princeps com um arco triunfal na sua capital, Segusium, que ainda hoje se
conserva de pé.
1424
G. Bandelli, «Aquileia colonia latina dal senatus consultum del 183 a. C. al supplementum del 169 a. C.», in G.
Cuscito (ed.), Aquileia dalle origini alla costituzione del ducato longobardo. Storia – amministrazione – società,
Trieste, 2003, pp. 49-78; C. Zaccaria, «Romani e non Romani nell’Italia nordorientale: la mediazone epigrafica», in G.
Cuscito (ed.), Aspetti e problemi della romanizzazione, Trieste, 2009, pp. 71-108.
1425
Desfiladeiro de Ocra: Estrabão, 7.5.2C314; J. Horvat e A. Bavdek, Okra. Vrata med Sredzemljem in Srednjo Evropo
(«A porta entre o Mediterrâneo e a Europa Central», Ljubljana, 2009; Nauportus:, J. Horvat, Nauportus (Vrhnika),
Ljubljana, 1990; B. Mušič e J.Horvat, «Nauportus – an Early Roman trading post at Dolge njive in Vrhnika. The results
of geophysical prospecting using a variety of independent methods», Arheološki vestnik 58 (2007), pp. 219-270.
1426
Afora uma série de outros povos menores.
1427
M. Šašel Kos, «Mit geballter Macht. Die augusteischen Militäroffensiven im Illyricum», in H. Kenzler et al. (eds.),
Jahre Varusschalcht. Imperium, Haltern am See/ Estugarda, 2009, pp. 180-187 .
1428
Talvez correspondessem aos Taurici nóricos mencionados por Estrabão (4.6.12C208), ou aos Ambisontes (?) que
viviam no vale de Aesontius (Soča/Isonzo): J. Šašel «Cohors I Montanorum», Studien zu den Militärgrenzen Roms III.
Forschungen und Berichte zur Vor- und Frühgeschichte in Baden-Württemberg 20 (1986), pp. 782-786 (artigo
reeditado na colectânea Opera Selecta, Ljubljana, 1992, pp. 48-482). Sobre os Ambisontes (?) no território de Iuvavum,
consulte-se P. Höglinger, «Zum Problem der spätlatènezeitlichen-früh-römischen Siedlungskontinuität auf
Höhensiedlungen des oberen Salzach- und Saalachtales im Pinzgau, Land Salzburg», in C.-M. Hüssen, W. Irlinger e W.
Zaner (eds.), Spätlatènezeit und frühe römische Kaiserzeit zwischen Alpenrand und Donau. Akten des Kolloquiums in
Ingolstadt am 11. und 12. Oktober 2001, Bona, 2004, pp. 187-198..
1429
R. Göble, Typologie und Chronologie der keltischen Münzprägung in Noricum, Viena, 1973; P. Kos, Keltski novci
Slovenije/Keltische Münzen Sloweniens, Ljubljana, 1977, p. 20.
498
(Magdalesberg), uma vexillatio da Legio VIII Augusta e um destacamento da cohors
Montanorum prima (ambos pertencentes à parte panónia do exército da Ilíria) 1430.
À luz do recente debate em torno de um excerto da História romana de Veleio
Patérculo (que foi oficial de Tibério), de acordo com a qual Tibério submeteu a «Raetia
e os Vindelici, os Norici e a Panónia, bem como os Scordisci», acrescentando-as como
«novas províncias» ao Estado romano 1431, pode-se dizer que depois das campanhas
alpinas em 15 a. C. e da subsequente Guerra Panónica, todas estas terras ficaram, de
uma maneira ou outra, sob dominação romana. No entanto, contrariamente à ideia de
que estas regiões se converteram em províncias no início do reinado de Tibério 1432, a
asserção de Veleio talvez aponte para o envolvimento augustano a seguir às vitórias
militares de Tibério1433. Estas províncias estiveram primeiramente sob supervisão
militar, e só mais tarde nelas se instalaram governadores, no Nórico já no reinado de
Cláudio; ainda se pode considerar C. Bébio Atico (Baebius Atticus) como sendo o
primeiro procurador presidial1434.
A Guerra Panónica, conduzida por Tibério, durou dois anos, de 12 a 11 a. C. 1435,
embora se documente a supressão de várias revoltas nas partes panónias e dálmatas da
Ilíria entre os anos 14 e 8 a. C 1436. Por esta altura, já se conquistara quase toda a Ilíria.
Dião Cássio é a melhor autoridade para este conflito fracamente atestado, mesmo que o
seu relato se afigure pequeno e desprovido de pormenores 1437. Ele refere que os
Panónios «se rebelaram de novo» em 14 a. C., provavelmente aludindo à sua incursão
na Histria, acompanhados pelos Nóricos dois anos antes. Parece que ao tempo o
procônsul da Ilíria era M. Vinicio, já que, segundo os relatos de Veleio e Floro, ele lutou
contra eles1438.
A situação na Panónia, que confinava ameaçadoramente com a Itália, tornou-se tão
precária que exigiu a presença de um experiente líder militar. Um ano mais tarde, o
comando foi assumido por M. Vipsânio Agripa, então considerado o melhor general
romano, que infundiu tamanho terror entre os Panónios que estes reconheceram a
autoridade romana sem haver mais combates. Mas, depois da morte de Agripa, em 12 a.
C., voltaram a sublevar-se e o conflito prosseguiu com Tibério à frente das tropas
romanas. Dião, ao reportar-se a 12 a. C., escreveu que Tibério esmagou a rebelião e
conquistou a maior parte do território com a ajuda dos aliados Scordisci, um
importante povo celta que vivia na ampla região situada em torno da confluência do
Sava e do Danúbio (Fig. 2). Tibério retirou todas as armas dos Panónios e vendeu,
como escravos, a maioria dos seus jovens no estrangeiro. Pelas suas vitórias, viu-se
agraciado com as honras triunfais, ainda que o Senado tenha votado a favor de um
triunfo para ele (Dião Cássio, 54.31.2-4).
1430
Cf. J. Šašel, «Cohors I Montanorum»,pp.782-786; G. Piccotini, «Virunum l’ancienne: le site du Magdalensberg», in
M. Reddé et al. (eds.), La naissance de la ville dans l’Antiquité, Paris, 2003, pp. 171-194.
1431
Veleio Patérculo, 2.39.3.
1432
H. Braunert, «Omnium provinciarum populi Romani…fines auxi. Ein Enwurf», Chiron 7 (1977), pp. 207-217; R.
Rollinger,«Raetiam autem Vindelicos ac Noricos Pannoniamque et Scordiscos novas imperio nostro subiunxit
provincias. Oder. Wann wurde Raetien (einschlieβlich Noricums und Pannoniens) als römische Provinz eingerichtet?»,
in P. W. Haider e R. Rollinger (eds.), Althistorische Studien im Spannungsfeld zwischen Universal – und
Wissenschaftsgeschichte. Festschrift für Franz Hampl zum 90. Geburtstag am 8. Dezember 2000, Estugarda, 2001, pp.
267-315.
1433
H. Graβl,«Der Prozess der Provinzialisierung im Ostalpen und Donauram im Bild der neueren Forschung», in C.
Franek et al. (eds.), Festschrift für Erwin Pochmarski, Graz, 2008, pp. 343-348.
1434
Veja-se E. Weber, «Die Anfänge der Provinz Noricum», in J. Piso (ed.), Die Römischen Provinzen. Begriff und
Gründung, Cluj-Napoca, 2008, pp. 225-235. Para opiniões diferentes: C. Zaccaria, «Iulium Carnicum. Un centro alpino
tra Italia e Norico (I sec. a. C.-I sec. d. C.)», in G. Bandelli e F. Fontana (eds.), Iulium Carnicum: centro alpino tra Italia
e Norico dalla protohistoria all’età imperiale. Atti del Convegno, Arta Terme – Cividale, 29-30 settembre 1995, Roma,
2001, pp. 146-148; F. Mainardis, Iulium Carnicum. Storia ed epigrafia, Trieste, 2008, pp. 138-139.
1435
A. Domič Kunič «Bellum Pannonicum (12-11 BC). The final stage of the conquest of southern Pannonia» (em croata,
com um resumo em inglês), Vjesnik Arheološkog muzeja, Zagreb, 39 (2006), pp. 59-164.
1436
M. Šašel Kos, Zgodovinska podoba prostora med Akvilejo, Jadranom in Sirmijem pri Kasiju Dionu in Herodijanu
(«Esboço histórico da região entre Aquileia, o Adriático e Sirmium em Dião Cássio e Herodiano», Ljubljana, 1986, p.
154ss.
1437
Dião Cássio, 54.28.1-2;31.2-4; 34.3-4; 36.2;55.2.4.
1438
Veleio 2.96.2; Floro, 2.24. J. Fitz, Die Verwaltung Pannoniens in der Römerzeit I, Budapeste, 1993, pp. 44-46.
499
Para o ano 11 a. C., Dión diz que Tibério conquistou os Delmatae, que entretanto se
rebelaram contra a autoridade romana, pelo que teve de combater ambos os povos,
Delmatae e Panónios, marchando, quase literalmente, de um campo de batalha para
outro. Após a derrota dos Delmatae, a Dalmácia ficou sob a supervisão de Augusto,
uma vez que necessitava de uma guranição militar, tanto por causa da instável situação
do país como pela proximidade dos perigosos Panónios (Dião Cássio, Hist. rom.
54.34.3-4). Em relação ao ano seguinte (10 a. C.), Dión Cássio escreveu que os Dácios
atravessaram o Danúbio gelado e saquearam a Panónia, enquanto os Delmatae se
recusaram a pagar os tributos. Tibério regressou então da Gália para lidar com estes
problemas (Hist. rom. 54.36.2). Em 9 a. C. continuaram a eclodir revoltas em ambas as
partes da Ilíria, e e no ano 8 os Panónios tiveram que ser subjugados por Sexto Apuleio
(Appuleius)1439.
A maior parte da Panónia foi conquistada talvez durante o bellum pannonicum, se
bem que os seus povos não apareçam mencionados especificamente pelos seus nomes.
Os vizinhos imediatos dos aliados de Tibério, os Scordisci, eram os Breuci e os
Amantini; consequentemente, eles figurariam certamente entre os povos
conquistados ; os últimos encontravam-se estabelecidos na região de Sirmium e
Bassianae. Há uma fonte epigráfica que ajuda a clarificar alguns aspectos sobre esta
questão, um cenotáfio feito para um rapaz com dez anos de idade pertencente aos
Amantini (monumento funerário descoberto na pequena localidade de Putinci, na
Syrmia oriental) que se afogou no rio em Emona, onde havia sido feito refém 1440. A
inscrição representa um testemunho único que confirma a prática romana de se
fazerem reféns, que se atesta nos escritos de Apiano e outros historiadores antigos.
Emona era a última cidade italiana no caminho para a Panónia; que fazia parte da Itália
é facto garantido por uma inscrição fronteiriça recentemente achada 1441. O rapaz
chamava-se [S]cemaes, da gens Undia (talvez Scenas ou Sceuas; os nomes podem estar
corrompidos) e era, sem dúvida, de uma família de classe alta, procedente da segunda
centuria, o que pode significar uma referência ao número de reféns ou a algum género
de divisão tribal entre os Amantini1442.
A Ilíria, então o nome da província indivisa, estendia-se até ao Danúbio, o que por
Augusto enfatizou na sua Res gestae: «Submeti à dominação romana, através de
Tibério Nero que era meu enteado e legado, certas tribos panónias que não haviam sido
alcançadas por um exército romano antes do meu reinado, assim se dilatando a
fronteira da Ilíria até ao Danúbio» 1443. Todavia, nem toda a área da posterior Panónia se
viu submetida durante a Guerra Panónica, não sendo claro como devemos interpretar
as famosas palavras – protulique fine Illyrici ad ripam fluminis Danuvii. Como e
quando os Romanos atingiram o Danúbio e em que parte deste rio tal sucedeu? Apiano
já tinha mencionado que Octaviano mandou que se construissem navios no rio Savus
no decurso da sua Guerra Ilírica: ele tencionava utilizá-los na campanha que planeou
contra os Dácios, para transportarem as provisões do seu exército até ao Danúbio 1444.
No conjunto das acções de Octaviano, que foram em larga medida também
diplomáticas, não é impossível supor que um destacamento de Octaviano tenha
alcançado o Danúbio, como, aliás, ele próprio terá afirmado antes de travar a batalha
naval de Actium (Dião, 50.24.4). Neste contexto, cabe provavelmente compreender «o
Danúbio» como se reportando ao curso fluvial perto de Sirmium.
Na sua Res Gestae, Augusto estaria a reportar-se aos povos panónios, dos quais os
Andizetes eram os que viviam no extremo mais setentrional, e não à população céltica
1439
Cassiodoro, MGH, Chron. Min. I 135. Veja-se J. Fitz, Die Verwaltung Pannoniens in der Römerzeit I…, p. 57.
1440
CIL III 3324; M. Šašel Kos, «The Ljubljanica in ancient sources», in P. Turk, J. Istenič, T. Knific e T. Nabergoj (eds.),
The Ljubljanica – a River and its Past, Ljubljana, 2009, p. 93.
1441
M. Šašel Kos «The boundary stone between Aquileia and Emona», Arheološki vestnik 53 (2002), pp. 373-382.
1442
S. Dušanic, Bassianae and Its Territory», Archaeologia Iugoslavica 8 (1967), p. 67.
1443
Mon. Ancyr. 30; E. Tóth, «…protulique fines Illyrici ad ripam fluminis Danuvii», Arheološki vestnik 28 (1977), pp.
278-287.
1444
Apiano, Illyr. 22.65-66; M. Šašel Kos, Appian and Illyricum (Situla 43), Ljubljana, 2005, p. 440.
500
da ulterior Panónia, que habitava a norte do rio Dravus 1445. Algumas destas
comunidades célticas podem ter estado dependentes do reino nórico, pelo que não se
revelaram hostis para com os Romanos; a maior parte das suas zonas foram
pacificamente anexadas. A fronteira romana na Panónia deslocou-se gradualmente,
incluindo novas conquistas, mas é possível que todo o curso do Danúbio tenha ficado
efectivamente nas mãos dos Romanos só desde o reinado de Cláudio. Ocorreram mais
etapas no desenvolvimento do limes: em primeiro lugar, revestia-se de suma
importância criar uma forte linha militar ao longo do Alto Sava, a fim de capturar
Segesta/Siscia e anexar o seu território. Relativamente ao Baixo Drava e à maior parte
do Danúbio, não se conquistaram antes das operações bélicas empreendidas por
Tibério. O acampamento legionário em Siscia, datando do tempo de Octaviano, foi
muito anterior aos localizados em Poetovio e Sirmium1446.
A revolta dos Panónios e dos Dálmatas 1447 alastrou rapidamente às regiões que os
Romanos consideravam já pacificadas. E, à semelhança de muitas outras insurreições,
esta eclodiu com a ascensão de uma nova geração de homens que nunca fora vencida
pelos Romanos. Na ocasião em que se procedeu ao recrutamento de auxilia na Ilíria,
para servirem no conflito contra Marobóduo, os guerreiros das tribos locais terão
constatado que possuíam grandes recursos humanos e aperceberam-se da sua força.
Além disso, os tributos cobrados às populações provinciais – sob a forma de mão-de-
obra, gado, colheitas para alimentar os militares romanos, ou simplesmente dinheiro –
pesaram bastante na sobrevivência dos povos, principalmente quando os responsáveis
pela cobrança dos impostos se pautavam pela incompetência e pela corrupção.
Um dos principais catalisadores do descontentamento foi quando os auctótones se
deram conta da real extensão do recrutamento efectuado na região pelas forças
romanas para a planeada conquista da Boémia 1448. Relembremos que, à luz da doutrina
militar romana, havia que reagir com a maior celeridade possível face a quaisquer
sinais de rebelião, contra-atacando com as tropas disponíveis, rapidamente reunidas.
Se os Romanos se mantivessem de braços cruzados, os sediciosos poderiam interpretar
isto como fraqueza, encorajando outros povos a rebelar-se. No entanto, estes contra-
ataques comportavam riscos, já que frequentemente os contingentes enviados para
suprimir levantamentos eram demasiado fracos para enfrentarem uma tenaz
resistência. Uma derrota romana, mesmo que de reduzidas proporções, incentivava os
insurrectos e a sua causa podia ganhar mais aderentes 1449.
É difícil recriarmos a sequência dos acontecimentos por causa das fontes literárias
disponíveis –as narrativas de Veleio Patérculo e de Dión Cássio – que comportam
versões divergentes em diversos aspectos. Mas salta à vista que a repressão da revolta
foi bem difícil e extenuante, sofrendo as tropas romanas alguns reveses, quase todos de
pequenas dimensões, à excepção de um que foi mais grave, que se traduziu no massacre
1445
J. Fitz, «Zur vorrömischen Geschichte der späteren Pannnonien», Alba Regia 27 (1998), pp. 7-9; IDEM, Die
Verwaltung Pannoniens in der Römerzeit I, pp. 13-14.
1446
O de Poetovio foi construído pouco depois de 15 a. C.: J. Horvarth et al., «Poetovio. Development and Topography»,
in M. Šašel Kos e P. Scherrer (eds)., The Autonomous Towns in Noricum und Pannonia/ Die autonomen Städte in
Noricum und Pannonien – Pannonia (Situla 41), Ljubljana, 2003, p. 156). Sirmium: em 6 d. C., atesta-se um forte
romano (M. Mircovič,«Sirmium», in M. Šašel Kos, P. Scherrer et al. [eds.], The Autonomous Towns of Noricum and
Pannonia II, Ljubljana, 2004, p. 14).
1447
M. Šašel Kos, «The Roman conquest of Dalmatia and Pannonia under Augustus – some of the latest research
results», in G. Moosbauer e R. Wiegels (org.), Fines imperii – imperium sine fine?..., pp. 108-117, esp. 110-112.
1448
P. Kováács, «Some Notes on the Division of Illyricum», in J. Piso (ed.), Die Römischen Provinzen, pp. 237-248; M.
Šašel Kos, «Pannonia or Lower Illyricum?», Tyche 25 (2010), pp. 123-130.
1449
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War…, pp. 79-95.
501
de uma força de legionários veteranos1450.Esta revolta, para ser controlada, exigiu toda
atenção de Tibério e de boa parte do exército. Os combates travaram-se em larga escala
e exigiram tremendos esforços1451. De acordo com Veleio Patérculo, que participou
pessoalmente neste conflito, ao trazer novos recrutas de Roma para Tibério, os
insurrectos totalizavam 800 000, incluindo 200 000 infantes e 9 000 cavaleiros 1452.
Aparentemente, os chefes deste exército planearam, com parte dos seus efectivos,
atacar a Itália, que estava ligada ao seu território pelas zonas fronteiriças de Nauportus
e Tergeste; algumas forças invadiram a Macedónia, ao passo que o remanescente dos
guerreiros se destinava a defender as suas próprias terras 1453. Os seus líderes, tanto Bato
como Pinnes, gozavam de grande autoridade: os seus homens eram disciplinados,
muitos tendo servido no passado como auxilia no exército romano (deste conhecendo a
sua organização e maneira de actuar); alguns compreendiam bem o latim e estavam
familiarizados com a cultura romana1454.
A rebelião começou verdadeiramente quando os nativos atacaram cidadãos romanos,
matando mercadores e veteranos (que se tinham estabelecido a alguma distância das
guarnições romanas); pouco depois, os sublevados ocuparam várias parcelas da
Macedónia, causando grandes danos1455.
No seu relato, Veleio menciona, em primeiro lugar, a vitória de M. Valério Messala
Messalino, praepositus da Ilíria, que comandava metade da Legio XX, depois de cair
numa emboscada do inimigo; a seguir, narra as batalhas travadas perto de Mons
Claudius (actuais Montes Požeška, a nordeste de Siscia), das quais saiu praticamente
derrotado o exército que viera das províncias transmarítimas, líderado por A. Cecina
Severo e M. Pláutio Silvano, que compreendia cinco legiões, tropas auxiliares e um
destacamento de cavaleiros fornecido pelo rei trácio Rhoemetalces.
Por pouco tempo, todo o exército romano se concentrou num acampamento em
Siscia, englobando dez legiões, mais de setenta coortes de infantaria auxiliar, dez alae
de cavalaria auxiliar e para cima de 10 000 veteranos (incluindo não só os soldados que
estavam prestes a terminar o seu tempo de serviço, mas igualmente homens chamados
de novo às fileiras), afora os contingentes do rei trácio e de outros líderes estrangeiros
aliados de Roma.Tibério viu-se à frente do maior exército romano reunido desde as
guerras civis, representando mais 1/3 de todas as forças armadas romanas. Ademais,
ele deu-se conta de que um tal efectivo era excessivamente grande para abastecer e
controlar de maneira eficaz, razão pela qual resolveu dividir o exército em vários corpos
operacionais de campanha1456. Tibério regressou a Siscia no começo do Inverno de 7 d.
C.. No Verão do ano seguinte, a Panónia capitulou e os revoltosos depuseram as armas
junto ao rio Bathinus (Bosna). M. Emílio Lépido foi incumbido de comandar o quartel
de Inverno em Siscia1457.
Apoiando-nos novamente na sequência factual proporcionada por Veleio Patérculo,
no início do Verão de 9 d. C., Lépido juntou-se a Tibério na Dalmácia, mas, durante a
viagem, atravessou regiões ainda não afectadas pela guerra, onde se viu obrigado a
1450
Veleio Patérculo, 2.110.2.2-6. Também, Dião Cássio, Hist. rom. 55.29.1-30.6.
1451
Dião Cássio, Hist. rom. 55.29.1-32.4, 34.4-7, 56.11.1.-17; Veleio Patérculo, 2.110.1-116.5.
1452
Veleio Patérculo, 2.110.3. No entanto, Apiano referiu que, no tempo da Guerra Ilírica de Octaviano, os Panónios
teriam cerca de 100 000 homens aptos para combater (Illyr. 22.63), o que nos parece uma cifra mais próxima da
realidade. Cf. D.Džino, «Velleius Paterculus and the Pannonii: Making up the numbers», Godišnjak 35, Centar za
bakanološka ispitivanja 33 (2006), pp. 145-159.
1453
D. Dzino (Illyricum in Roman Politics – 229 BC-AD 68, Cambridge, 2010, p. 147) não deu crédito a este plano que,
todavia, é parcialmente corroborado pela estratégia e acções romanas subsequentes e, também, de forma indirecta, pelo
relato de Dião Cássio.
1454
Veleio Patérculo, 2.110.5: este dá a entender que eram muitos os sublevados que sabiam latim, mas provavelmente
reduzir-se-iam apenas a uns quantos. G. Alföldy, «La Pannonia e l’Impero romano», in G. Hajnóczi (ed.), La Pannonia e
l’Imperio romano. Atti del convegno internazionale (Roma, 13-16 gennaio 1994), Milão,1995, p. 26.
1455
Veleio Patérculo, 2.110.
1456
C. M. Wells, The German Policy of Augustus…, p. 237ss; R. Seager, Tiberius, Londres, 1972, p. 388s; B. Levick,
Tiberius the Politician, Londres/Nova Iorque, 1999, p. 39.
1457
Veleio Patérculo, 2.111-114. Vejam-se, a propósito, os comentários de I. Radman-Livaja e M. Dizdar,
«Archaeological Traces of the Pannonian Revolt 6-9 AD: Evidence and Conjectures», in R. Asskamp e T. Esch (eds.),
Imperium – Varus und seine Zeit, Münster, 2010, pp. 47-58.
502
lutar contra um inimigo que parecia vir de todos os lados. Germânico, filho de Druso e
sobrinho de Tibério, e C. Víbio Póstumo, praepositus da Dalmácia, segundo Veleio,
também teriam combatido com sucesso na parte dálmata da Ilíria. O estio foi palco do
fim do conflito, com os Perustae, Desidiates e Delmatae vendo-se decisivamente
derrotados (Veleio Patérculo, 2. 115-117). Pouco depois, chegou a notícia da catástrofe
militar sofrida por Varo em Teutoburgo, na Germânia.
Detenhamo-nos agora no relato de Dión Cássio que, apesar de fragmentário em
várias secções, contém mais pormenores, parcialmente diferente mas também
complementar. Porém, só é possível conjugar os dados de Veleio e Dião de uma forma
hipotética1458. Dião reporta-se ao ataque dos Breuci chefiados por Bato contra Sirmium,
que se deve ter transformado numa importante fortaleza após a Guerra Panónica; a
guarnição foi socorrida por Cecina Severo, comandante do exército da Mésia.
Entretanto, outro líder rebelde, também chamado Bato, que pertencia aos Delmatae,
que ficara ferido na infrutífera tentativa de conquista de Salonae, veio devastar a costa
até Apollonia, onde venceu os Romanos. Numa acção concertada, os dois Batos
apoderaram-se do monte Alma (actual Fruška gora, a norte da antiga Sirmium), mas
desta feita o o soberano trácio Rhoemetalces infligiu-lhes uma derrota1459, cujo
contingente fora enviado na dianteira das forças de Cecina Severo. Este não conseguiu
subjugá-los e, ao regressar à Mésia, verificou que fora invadida pelos Dácios e
Sármatas.
No ano seguinte, 7 d. C., Germânico, filho de Druso, conduziu reforços para a Ilíria,
tendo sido nesta altura que começou a dar provas como militar. Se nos ativermos a
Dião, o jovem conquistou os Maezaei, mas o seu papel no teatro de operações deve ter
sido provavelmente ainda pequeno; outros contingentes de recrutas foram enviados
para a região sob comandos separados, um dos quais por Veleio Patérculo, que atrás
referimos. Tibério supervisionou todos estes contingentes, deslocando-se para a frente
de batalha no ano precedente. Os ataques a províncias próximas levados a cabo por
povos vizinhos, obrigou-o a desviar algumas das forças romanas destinadas à sufocação
da revolta. Isto mostra, em certa medida, a sorte que tiveram os Romanos quando
Marobóduo resolveu ser mais vantajoso manter a paz do que lutar, explorando uma
fraqueza momentânea. Doravante, o rei dos Marcomanos «pemaneceu um fiel aliado
de Roma, reforçando no processo a sua própria posição» 1460.
No mesmo ano, Severo marchou da Mésia em direcção aos Pântanos Volceanos,
onde sofreu uma investida das forças combinadas dos dois Batos; no entanto, acabou
por vencê-los. Não tardou que os Panónios começassem a padecer de enfermidades e a
passar fome, a tal ponto que quiseram negociar a paz com os Romanos em 8 d. C. Neste
ponto, há uma lacuna no texto de Dião Cássio. A narrativa recomeça com Bato, o
breucano a trair outro chefe, Pinnes, e a assumir a liderança de toda a sua tribo (os
Breucos). Porém, foi sol de pouca dura: o seu homónimo dos Delmatae armou-lhe uma
cilada, matando-o. A situação estava a revelar-se cada vez mais difícil para os
sublevados, e diversos outros povos da Panónia também se renderam (Dião Cássio,
55.34.3-7).
O relato de Dión sobre as acções militares na Dalmácia em 9 d. C. contém bastantes
mais informes que o de Veleio, findando com a conquista de Arbuba por Germânico, a
queda de uma fortificação natural situada no tipo de uma colina não longe de Salonae,
e a capitulação formal de Bato e de Sceuas, seu filho. Foi neste momento que Bato
supostamente proferiu um longo discurso em defesa do seu povo e, quando interpelado
sobre os motivos da revolta, ele respondeu: «A culpa é inteiramente vossa, Romanos,
pois enviais lobos em vez de cães-pastores para guardar o vosso rebanho» 1461.
1458
Nas abordagens modernas, a rebelião é habitualmente descrita por meio de uma narrativa combinada: consultem-se
Šašel Kos, Zgodovinska podoba prostora med Akvilejo, pp. 180-182; D. Dzino, Illyricum in Roman Politics, p. 142ss.
No entanto, nos escritos de alguns historiadores, várias hipóteses já figuram na qualidade de factos, o que é enganador.
1459
Segundo Dião, Rhoemetalces também teria logrado travar a invasão da Macedónia pelos insurrectos: cf. 55.28.7-
31.2.
1460
A. K. Goldsworthy, Augusto…, p. 447.
503
Poucos são os testemunhos arqueológicos directamente ligados às campanhas de
Tibério na Panónia, sobretudo porque se torna bastante difícil definir as armas
romanas ou celtas num contexto cronológico preciso. Num local entre Osijek e Valpovo,
no antigo território de Mursa (a região dos Andizetes), onde devia existir um
acampamento de tropas auxiliares após a Guerra Panónica de Tibério, descobriu-se um
depósito,1462 que possuía principalmente moedas de finais da República (século I a. C.),
mas tinha outras cunhadas no tempo augustano, entre 19-2 a. C., que foram certamente
escondidas aquando da rebelião. Em Vinkovci, antiga Cibalae, encontraram-se armas:
uma espada, duas compridas lanças com estreita ponta metálica, outra pequena e mais
uma, cónica, que pertenceu talvez a um guerreiro indígena celta ou mesmo a um
soldado auxiliar1463. Por seu lado, ao pé do rio Sava, nas proximidades de Marsona
(Slavonski Brod), os arqueólogos recuperaram um elmo romano do tipo Weisenau,
datando de começos do século I da nossa era, achando-se outros cascos em Siscia
(Sisak)1464.
Quando a revolta estalou no ano 6, calcula-se que haveria cinco legiões estacionadas
na Ilíria: IX Hispana, XII e XIV Gemina, XV Apollinaris e XX. Aquileia manteve o seu
papel estratégico enquanto importante base militar, administrativa e logística durante a
Guerra Panónica e a grande rebelião. As tropas romanas estiveram temporariamente
aboletadas no interior ou em redor desta cidade, especialmente a Legio XX, antes de
ser transferida para Burnum, na Dalmácia, sob Augusto.1465. Emona nunca albergou um
acampamento da XV Apollinaris1466, visto que neste momento a cidade era, quase
certamente, uma colónia romana, fundada no começo do principado augustano, talvez
pouco depois da batalha de Actium. Contudo, estiveram provisoriamente acantonadas
legiões ou destacamentos das mesmas dentro ou nas imediações de Emona; esta
também parece ter assumido um significativo papel logístico 1467. Quanto à IX Hispania
encontrava-se possivelmente instalada em Siscia, onde Octaviano já havia deixado
mais de duas legiões em 34 a. C., e onde, igualmente, se localizaria o acampamento de
Verão (castra aestiva) das três legiões panónias em 14 d. C., após a morte de
Augusto1468.
A bacia de Emona situava-se na fronteira mais distante com a parte panónia da Ilíria,
pelo tinha de ser protegida. As evidências arqueológicas indicam que Nauportus estava
fortificada no tempo augustano. Recentes escavações e novas descobertas também
confirmaram o papel logístico assumido por Emona durante a Guerra Panónica de
Tibério1469. Um acampamento datando deste período ficava junto ao rio Ljubljanica,
que, além de ligar Nauportus a Emona, podia (ao desaguar no Sava) servia para
transportar mantimentos e tropas directamente de Nauportus para Segestica/Siscia1470.
Exumou-se abundante quantidade de objectos no Ljublijanica, como um medalhão com
1461
Dião Cássio, 56.11-17.2. Embora fictício, o discurso diz-nos muito sobre a organização romana da província e o uso
de uma desmedida brutalidade após a Guerra Panónica.
1462
S. Filipovič, «Colonia Aelia Mursa», in M. Šašel e P. Scherrer (eds.), The Autonomous Towns in Noricum and
Pannonia, Pannonia II, , p. 157.
1463
M. Dizdar/I. Raman-Lijava, «Nalaz naoružanja iz Vrtne ulice u Vinkovcima kao prilog poznavanja romanizacije
istočne Slavonije» («Equipamento guerreiro da Rua Vrtna, em Vinkovci, enquanto contributo para a compreensão do
processo da Romanização inicial na Eslavónia Oriental»), Prilozi Instituta za arheologiju u Zagreb 21 (2004), pp. 37-53.
1464
I. Radman-Lijava, Militaria Sisciensia (Musei Arch. Zagrabiensis Catalogi et Monographiae 1), Zagreb, 2004, pp.
17-18.
1465
J. Wilkes, Dalmatia, Londres, 1969, pp. 92-93.
1466
Se nos ativermos às fontes epigráficas, numismáticas e outras de natureza arqueológica, Emona jamais terá
comportado uma fortaleza legionária em regime de permanência: M. Šašel Kos, «The 15th Legion at Emona – Some
Thoughts», ZPE 109 (1995), pp. 227-244; A. Gaspari, “Apud horridas gentis…” Začetki rimskega mesta Colonia Iulia
Emona («O começo da cidade romana de Colonia Iulia Emona»), Ljubljana, 2010, p. 113ss
1467
A. Gaspari, ”Apud horridas gentis…”, p. 113ss., 141ss.
1468
J. Šašel, Opera selecta, Ljubljana, 1992, pp. 615-616).
1469
A. Miškec, «The Augustan conquest of southeastern Alpine and western Pannonian areas: coins and hoards»,
Arheološki vestnik 60 (2009), pp. 283-296.
1470
J. Istenič, «The early military route along the River Ljubljanica (Slovenia)», in A. Morillo Cerdán, N. Hanel e E.
Martin (eds.), Limes XX. Actas del XX Congreso Internacional de Estudios sobre la Frontera Romana (Anejos de
Gladius 13), Léon, 2009, pp. 51-61.
504
o retrato de Augusto que talvez tenha pertencido a um soldado que lutou na Guerra
Panónica1471. Recentemente, descobriram-se mais acampamentos romanos em Sv. Urh
e Čatež, perto de Brežice, assim como em Obrežje (Fig. 5), os três situando-se ao longo
do rio Sava1472. De acordo com as moedas encontradas nas escavações, a última base
mencionada foi, em princípio, construído durante o período da grande sublevação 1473,
localizando-se na actual fronteira entre a Eslovénia e a Croácia.
A Legio XX esteve acantonada em Burnum (Šuplja Crka, no rio Krka), tendo sido
levada para esse local por M. Emílio Lépido a partir da Baixa Ilíria (Panónia) em 9 d. C.,
na grande marcha que empreendeu rumo à Dalmácia no último ano da rebelião. Não há
muito, sugeriu-se que a fortaleza nativa em Puljane defronte de Burnum (usualmente
encarada como a Burnum pré-romana) correspondesse a Arduba, que, segundo Dião
Cássio, Germânico conquistou1474. Dentro em breve, no mesmo ano, a legião teve de
deixar a Ilíria seguindo para a Germânia, depois da derrota de Varo, sendo substituída
pela Legio XI. Actualmente, continuam a realizar-se-se prospecções arqueológicas no
sítio do acampamento da Legio VII, em Tilurium (Gardun, próximo de Trilj), onde se
encontrou um tropaeum comemorando a vitória romana na Ilíria em 9 d. C. 1475; antes
dessa legião, é provável que lá tenha estado aquartelada a IX Hispana. Tilurium
localiza-se perto de uma importante ponte para a travessia do rio Cetina, Pons Tiluri,
na estrada que ligava Salonae à capital dos Delmatae, Delminium, na planura de
Duvanjsko.
Todas as guerras na Ilíria haviam findado, assim como o efémero motim das legiões
panónias em 14 d. C. (objecto de estudo noutro capítulo). A urbanização e a criação de
províncias andaram quase sempre mãos dadas. A faixa costeira viu-se urbanizada sob
Júlio César e Augusto. A Ilíria tornou-se uma província romana o mais tardar durante o
principado augustano. Depois da revolta, foi dividida em Illyricum Superior e
Illyricum Inferior1476. Relativamente ao Nórico, conheceu um processo de urbanização
sob a égide do imperador Cláudio, ao mesmo tempo que a sua organização numa
província1477. Algo de similar ocorreu na Panónia, (anterior Illyricum Superior), mas
uma geração depois, no tempo de Vespasiano1478.
Ainda em 9 d. C., Tibério regressou finalmente a Roma, sendo-lhe atribuído um bem
merecido triunfo pelo esmagamento da rebelião nos Balcãs. Como general, cumpriu a
sua missão e, nas derradeiras fases do conflito, não empregou só a força mas recorreu à
conciliação. Um dos líderes rebeldes mais importantes, pelo menos, foi poupado,
fenómeno muito raro no rescaldo de uma acção repressiva de uma sedição. A partir daí,
as regiões tornaram-se mais estáveis, convertendo-se gradualmente em áreas prósperas
do império romano. Porém, dentro em breve, este clima de paz foi bruscamente
interrompido por uma terrível catástrofe na Germânia, que analisamos na seguinte
alínea.
1471
J. Istenič, «A uniface medallion with a portrait of Augustus from the River Ljubljanica (Slovenia)», Germania, 81/1
(2003), pp. 263-276; IDEM, «The Ljubljanica and the Roman army», in P. Turk, J. Istenič e T. Nabergoj (eds.), The
Ljubljanica – a River and its Past, Ljubljana, 2009, pp. 86-91.
1472
P. Mason, «The Roman Fort at Obrežje and Augustan Military Activity in the Sava Valley in Slovenia», in J.-S.
Kühlborn (ed.), Rom auf dem Weg nach Germanien: Geostrategie, Vormarschtrassen und Logistik, Mainz, 2008, pp.
187-198.
1473
A. Miškec, «The Augustan conquest of southeastern Alpine and western Pannonian areas: coins and hoards», pp.
283-296.
1474
D. Periša, «Je li delmatsko područje presjekao rimski limes? («Havia um limes romano no território dálmata?»),
Archaeologia Adriatica, 2.2 (2008), pp. 507-517, esp. 513.
1475
N. Cambi, «Gardunski tropej« («Troféu de Gardun [Dalmácia]»), in La région de la Cetina depuis la préhistoire
jusqu’à l’arrivée des Turcs, Split,1984, pp. 77-92; IDEM, «Urbanisierung», in M. Sanader (ed.), Kroatien in der Antike
(Zaberns Bilbände zur Archäologie/Sonderbände der Antiken Welt), Mainz, 2007, p. 99, fig. 89.
1476
P. Kováács, «Some Notes on the Division of Illyricum», in J. Piso (ed.), Die Römischen Provinzen…, pp. 237-248.
1477
E. Weber, «Die Anfänge der Provinz Noricum», in J. Piso (ed.), Die Römischen Provinzen…, pp. 225-235.
1478
J. Šašel, «Die regionale Gliederung in Pannonien», in G. Gottlieb (ed.), Raumordnung im Römischen Reich. Zur
regionalen Gliderung in den gallischen Provinzen, in Rätien, Noricum und Pannonien, Munique, 1989
505
4. A fatídica campanha de 9 d. C. na Germânia: A Clades Variana
Na Germânia, sensivelmente por esta altura, o líder rebelde mais proeminente era
Armínio, «príncipe» dos Queruscos1479, serviu no exército romano, chefiando um
contingente de tropas auxiliares 1480 (guerreiros da sua tribo) durante a supressão da
revolta na Panónia, o mesmo fazendo Flávo, seu irmão mais novo, que também
ingressou nas forças militares romanas. Embora não subsistam provas concretas, é
possível que ambos tenham vivido algum tempo na Urbs na condição de reféns, ficando
alojados no complexo de Augusto no Palatino e recebendo uma educação romana na
companhia das crianças da família do princeps. Não há dúvida que os dois eram
fluentes na língua latina, o que pode ter ajudado no processo de concessão de cidadania
romana. Armínio terá permanecido no exército romano por algum tempo, e é quase
garantido que interveio nas campanhas na Germânia e na Ilíria durante a grande
revolta. Pouco depois, adquiriu o estatuto equestre e, em 7 d. C., voltou à sua pátria,
convertendo-se num dos principais líderes dos Queruscos. Além disso, auferia 400 000
sestércios, o montante mínimo para pertencer ao ordo equester, o que significava uma
fortuna na nova província da Germânia. Armínio, com provas dadas enquanto aliado,
acostumado ao modus vivendi da elite romana e abastado, tornou-se convidado
assíduo à mesa de Públio Quintílio Varo, o legatus imperial da Germânia1481.
Não se pode dizer que a família de Varo gozasse de uma imaculada reputação
militar, na medida em que tanto o seu pai como o seu avô escolheram o lado errado
durante as guerras civis, acabando os dois por cometer suicídio. Apesar disso, Quintílio
Varo1482 era um indivíduo com experiência e anos antes, quando exerceu o cargo de
governador da Síria (cf. infra), reprimiu severamente uma revolta na Judeia, em 4 a. C.
A sua nomeação para o comando germânico coadunava-se com a propensão que
Augusto manifestou para escolher, membros da sua família alargada: note-se que Varo
desposou primeiro uma das filhas de Marco Agripa e, depois, casou-se com Cláudia
Pulcra, sobrinha-neta de Augusto1483. O princeps via-o, portanto, como alguém leal e
digno de confiança. No ano 7 d. C., recebeu o comando da Germânia, que abarcava a
fronteira do Reno e a respectiva província ainda em desenvolvimento, estendendo-se
até ao rio Elba. Tinha como missão manter a estabilidade na região enquanto as forças
romanas enfrentavam os rebeldes Panónios e Dálmatas. Varo tinha sob as suas ordens
cinco legiões e um considerável efectivo de tropas auxiliares, ainda que estas devessem
1479
H. Ritter Schaumburg, Der Cherusker: Arminius im Kampf mit der römischen Weltmacht, Munique/Berlim, 1988.
Nado por volta de 18-15 a. C., Armínio pertencia à família real dos Queruscos, cujo território se localizava a leste do
Reno, perto do rio Weser. No entanto, muitos outros nobres tinham igualmente sangue real e os parentescos não se
afiguravam muito importantes nas fluidas estruturas sociais e políticas das tribos. Assim, a ascenência régia não
garantia automaticamente a supremacia. Segimero, o pai de Armínio, era, nesse sentido, apenas um dos homens
influentes que lutavam pelo poder no seio do seu povo. Provavelmente, ele terá combatido os Romanos nos conflitos
ocorridos nos derradeiros anos do século I antes da nossa era. O certo é que acabou por se submeter ao invasor, talvez
porque Segimero visse numa hipotética aliança com Roma uma forma de se destacar face aos seus rivais locais e deste
facto retirar proveito, tal como aconteceu com muitos outros líderes.
1480
O nome oficial romano do querusco era Gaius Iulius Arminius, pertencendo este à enorme clientela de indígenas
romanizados que, por todo o império, ostentava o gentilício do imperador.
1481
Quanto a Armínio e aos seus primeiros tempos de vida: Veleio Patérculo 2. 118.1-3, Tácito, Ann. 2.9-10, 88; D.
Timpe, Arminius – Studien, Heidelberg, C. Winter, 1970 (este autor considerou Armínio cabecilha de um motim no
exército romano, só depois se tornando responsável pela resistência germânica); P. Wells, The Battle that Stopped
Rome: Emperor Augustus, Arminius, and the Slaughter of the Legions in the Teutoburg forest, Londres, 2003, pp. 105-
110; A. Murdoch, Rome’s Greatest Defeat. Massacre in the Teutoburg Forest, Stroud, 2006, pp. 83-86.
1482
Para mais informes sobre Varo: W. John, «Publius Quinctilius Varus», Realencyclopädie der Altertumwissenschaft,
XXIV, Estugarda, Alfred Drunckenmüller Verlag, 1963, cols.-907-984; W. Eck, «P. Quinctilius Varus, seine senatorische
Laufbahn und sein Handeln in Germanien: Normalität oder aristokratische Unfähigkeit?», in R. Aβkamp e T. Ech (eds.),
IMPERIUM – Varus und seine Zeit, pp. 13-28; P. Wells, The Battle that Stopped Rome…, pp. 80-86, A. Murdoch,
Rome’s Greatest Defeat: Massacre in the Teutoburg Forest…, pp. 49-74.
1483
Com 50 anos de idade, Varo, que antes de ser legado da Síria, ocupara o cargo de procônsul em África, foi colega
consular de Tibério em 13 a. C.
506
encontrar-se diminuídas por causa do envio de destacamentos para a Ilíria. Havia
muitos oficiais competentes e ambiciosos que desejavam participar na grande
conflagração que se travava nos Balcãs, na mira de ganhar glória, promoções e outras
recompensas. O facto de Augusto não o ter enviado para esse teatro de operações deixa
entrever que embora o considerasse capaz, não era excepcionalmente dotado, pelo
menos em termos de comando militar» 1484. Com efeito, mesmo por ocasião da
repressão da revolta na Judeia, em 4 a. C., Varo jamais terá participado numa batalha.
À primeira vista, a situação na Germânia parecia tranquila, principalmente porque os
nobres locais como Armínio davam a impressão de aceitar de bom grado a dominação
romana. O pai do último faleceu aparentemente por esta altura, mas o seu tio era,
também, um convidado frequente à mesa de Varo, assim como Segestes, outro
aristocrata dos Queruscos, cujo filho mais novo exercia a função sacerdotal no recém-
instituído culto de Roma e César Augusto, sedeado na capital cívica da tribo dos Úbios,
fundada por Agripa (38 a. C.), correspondente à hodierna Colónia. Dois anos antes, em
5 d. C., tivera lugar o último conflito regional em larga escala e, a partir de então, a paz
na Germânia apenas sofreu breves interrupções, com a eclosão de esporádicos focos
sediciosos de limitado alcance contra Roma e confrontos intertribais (um fenómeno
usual e recorrente). Sob a égide de Varo, os líderes germânicos passaram a tentar
resolver os seus litígios através do julgamento do legado, em lugar de se confrontarem.
Por sua vez, as comunidades romanas recentemente fundadas começaram a expandir-
se, situando-se amiúde nas proximidades de bases militares romanas.
Posteriormente, houve quem tenha criticado Varo por lidar com a província como se
já estivesse totalmente romanizada e pacificada, quando ainda não se ultrapassara a
fase de conquista, além de nutrir desprezo pelos seus habitantes, encarando os
Germanos como «humanos só na forma e na fala, e, ainda que não se subjugando pela
espada, submeter-se-iam à lei»1485. Várias das medidas que o legado tomou não foram
sensatas nem eficientes em termos de execução. Varo impôs às tribos um imposto
regular, quando no passado elas só terão estado sujeitas à obrigação da entrega de
cabeças de gado ou de parte do produto das colheitas, depois da sua submissão no
seguimento de um conflito com Roma. Não temos meios para averiguar se tal
tributação foi ou não muito onerosa, mas o problema é que era uma coisa nova,
interpretando os Germanos que isto constituía um sinal de que não eram aliados mas
antes súbditos de Roma. Outro factor piorou ainda mais a situação - a corrupção, que
sempre havia sido um problema frequente na já longa história da administração
provincial romana: a este respeito, Veleio Patérculo afirmou, sem peias, que Varo era
uma criatura gananciosa e que, quando estivera na Síria, fora «como homem pobre
para uma província rica e partira como um homem rico de uma província pobre» 1486.
Não admira que fosse crescendo uma mescla de ressentimento e o ódio contra a
dominação romana devido à tributação e, à semelhança do que ocorrera na Panónia,
este antagonismo ganhou particular intensidade entre os jovens guerreiros que nunca
haviam lutado contra as legiões. Concomitantemente, os Germanos começaram a
alimentar menos temor em relação aos Romanos, sobretudo quando desistiram de
lançar uma ofensiva contra Marobóduo, numa altura em que «os filhos de Marte»
estavam envolvidos na difícil tarefa da supressão da rebelião na Ilíria. Alguns
indivíduos que haviam prosperado mediante a colaboração com Roma não demoraram
a questionar-se se isto consistiria na melhor estratégia para os tempos vindouros.
Um deles foi precisamente Armínio que, em dado momento, resolveu abdicar da sua
nova cidadania e sublevar-se contra o Império. Ignoramos que motivos específicos
terão conduzido a esta sua decisão, embora um deles foi certamente a revolta pela
perda da independência da sua tribo e dos demais povos germânicos, combinado com o
descontentamento pela maneira como a potência conquistadora os tratava. Não
obstante ter sido feito cidadão e eques romano, Armínio talvez sentisse aversão pelo
1484
A. K. Goldsworthy, Augusto…, p. 452.
1485
Ibidem, p. 453.
1486
Veleio Patérculo 2.117.2-4.
507
facto de muitos Romanos demonstrarem uma clara atitude condescendente para com
os Germanos. Mas Armínio pode simplesmente ter agido movido pela ambição: se bem
que lucrando bastante ao privar com os Romanos, além de se converter num dos
homens mais poderosos da sua tribo, talvez julgasse não haver grandes perspectivas
para uma ascensão ainda maior, caso apenas optasse por se manter fiel à Urbs.
Diversos episódios recentes sugeriam que Roma não era invencível e o líder que
recuperasse a liberdade da sua própria tribo e das restantes adquiriria um tremendo
prestígio, abrindo caminho para uma forma de poder mais forte e permanente.
Ademais, Armínio devia ansiar tornar-se um líder renomado como Marobóduo. É
sabido que não há incompatibilidade entre a ambição pessoal e o desejo de liberdade;
acontecimentos subsequentes sugerem realmente que guerreiro querusco almejava
governar1487.
No entanto, Armínio agiu com toda a precaução, congeminando o plano da rebelião
dentro do mais absoluto sigilo. Ao longo da Primavera e do Verão de 9 d. C., Varo
efectuou um périplo pela província entre o Reno e o Elba, conduzindo três das suas
legiões, a XVII, a XVIII e a XIX, e contando com o apoio de seis cortes de infantaria
auxiliar e três alae de cavalaria. Tratava-se de uma exibição do poderio romano e não
propriamente uma campanha, não esperando Varo deparar com encarniçada
resistência. Sobrevieram, todavia, perturbações locais, pelo que o legado despachou
pequenos destacamentos a uma série de aldeias e outras comunidades que afirmavam
sentir-se ameaçadas e solicitavam protecção: no entanto, isto consistiu num
estratagema maquinado por Armínio, para assim dispersar as forças romanas. À
medida que prosseguia o seu trajecto, Varo reuniu-se com nobres de várias zonas,
escutando as suas petições e arbitrando as suas disputas, actuando como qualquer
governador romano. Quando o Verão estava prestes a terminar, o legado e as suas
tropas preparavam-se para regressar para os quartéis de Inverno perto do Reno. Mas
eis que receberam notícias de uma revolta em curso mais a leste. Da mesma maneira
como fizera em 4 a. C., reagiu de acordo com o padrão característico romano – liderou
o seu exército e avançou sem demora contra os rebeldes e, uma vez mais, a oposição
dissipou-se assim que as legiões surgiram1488.
Em Setembro, com o problema aparentemente resolvido, Varo encetou a marcha de
retorno para ocidente, só que fazendo-o mais tarde do que estava previsto e
encontrando-se mais longe do que supunha. As suas provisões já deveriam estar a
acabar, daí que fosse impreterivelmente necessário apressar-se para voltar aos hiberna
no Reno, mas na ocasião não se considerou isto um problema sério, visto que não era
expectável enfrentar mais distúrbios. Como as suas unidades se achavam bastante
incompletas, a coluna encabeçada por Varo englobaria, no máximo, 10 000 a 15 000
soldados. Na mesma seguiam igualmente milhares de escravos, incluindo os que
pertenciam ao exército (servindo como palafreneiros, muleteiros e afins), assim como
mais pessoal de condição servil e assistentes libertos1489 dos oficiais.
Segundo A. K. Goldsworthy, «O exército de Varo estava a viajar com algum estilo –
sabemos que pelo menos um dos oficiais levava na respectiva bagagem um sofá
ornamentado entalhado a marfim»1490, avançando devagar com uma elevada
quantidade de mulas de carga e carroças. A acompanhar as tropas seguiam igualmente
muitos civis: desde mercadores que forneciam os soldados até um significativo número
de familiares dos milites (mulheres e crianças). Augusto havia proibido, como vimos,
que os soldados se casassem. Este medida tinha certamente a ver com a renitência em
alimentar famílias ou pagar a viúvas e órfãos, assim como traduzia o desejo de manter
1487
Sobre este assunto, mas numa abordagem mais genérica, veja-se S. Dyson, «Native Revolt Patterns in the Roman
Empire, Aufstieg und Niedergang der römischen Welt 2.3 (1975), pp.38-175.
1488
Quanto ao exército, Veleio Patérculo 2.117.1. Para a sublevação, Dión Cássio, 56.18.5-19.4.
1489
A este respeito, observe-se a inclusão dos libertos no cenotáfio do centurião Marco Célio 8( CIL XIII 8648 = ILS
2244). Mais adiante, debruçamo-nos sobre este monumento funerário.
1490
Augusto…, p. 455. Dión Cássio, 56.20.1-2. Sobre o «sofá», W. Schlüter, «The Battle of the Teutoburg Forest
archaeological research at Kalkriese near Osnabrück«, in J. Creighton e R. Wilson ( eds.), Roman Germany. Studies in
Cultural Interaction. Journal of Roman Archaeology, Supplementary Series 32 (1999), pp. 148-149
508
as legiões suficientemente móveis para serem transferidas com rapidez de uma ponta à
outra do Império. Mas, na dúvida em relação à data da reforma augustana, alguns
soldados talvez ainda se encontrassem a servir nas fileiras na companhia das suas
esposas, uma vez que podiam ter casado antes da interdição. Outros, por seu turno,
ignoravam-na, mantendo relacionamentos e criando famílias, não obstante ser ilegal,
um fenómeno que as próprias autoridades fechavam muitas vezes os olhos 1491.
Naquela parte da Germânia, não havia estradas romanas largas adequadamente
pavimentadas, pelo que a longa coluna de Varo estendia-se por uns 15 km ou mais,
serpenteando por antigos trilhos através de florestas, campos cultivados, prados e
pântanos. Não restavam alternativas para esta trajectória. Os guias locais que Armínio
e outros chefes tribais facultaram iam conduzindo os Romanos e a coluna progredia
lentamente, sem beneficiar de condições mínimas de segurança, e com o legado
excessivamente confiante, persuadido que estava em território amigo, pensando
somente em chegar ao Reno antes que as chuvas outonais alagassem o dito trilho. Com
efeito, Varo não receava deparar com alguma ameaça, nem tão quanto alimentou
suspeições: parecia confiar cegamente nos batedores fornecidos pelos Queruscos e as
restantes tribos, pressupondo que os mesmos logo o avisariam caso surgisse um
problema grave. Curiosamente, quando Segestes advertiu repentinamente Varo de que
Armínio se encontrava a maquinar uma sublevação, o legado não lhe prestou atenção,
imaginando que se tratava apenas de uma tentativa de um chefe ambicioso para
desacreditar outro. Quando confrontado com tais acusações, Armínio defendeu-se
dizendo que tudo isso era mentira. Afinal de contas, ele era cidadão romano e um
equestre que dera provas de manifesta lealdade. A este respeito, note-se que a maioria
dos Romanos, à semelhança de quase todos os líderes da maior parte das potências
imperiais, dificilmente acreditava «que alguém rejeitasse as óbvias vantagens de se
juntar aos seus conquistadores e usufruir dos benefícios da sua “superior” cultura e do
seu domínio»1492.
Pouco depois, Armínio abandonou a coluna, anunciando a Varo que ia buscar mais
auxiliares, guias ou qualquer outro género de ajuda, mas, na realidade, foi juntar-se ao
exército de guerreiros que se reunia para atacar os Romanos. Nos dias subsequentes,
pequenos contingentes tribais começaram a fustigar as secções mais vulneráveis da
coluna, batendo velozmente em retirada antes de as tropas romanas lograrem organizar
algum tipo de defesa1493.
Desde o Renascimento que se buscou descobrir a localização geográfica concreta
desta emboscada. A partir dos anos 80 do século XX, foi o major Tony Clunn,
arqueólogo amador, de serviço na guarnição militar britânica em Osnabrück, quem deu
o primeiro passo neste sentido, apoiado pelo académico alemão W. Schlüter, e chegou
até a escrever uma espécie de diário das suas investigações, acompanhado de uma
narração dramática da campanha de 9 d. C. 1494: o palco do conflito, o saltus
Teutoburgiensis, situa-se no lugarejo de Kalkriese, próximo de Osnabrück (Alemanha),
onde se descobriram e identificaram as macabras evidências do que correspondeu ao
derradeira grande refrega travada pelo exército romano. A partir de 1987, fizeram-se
prospecções mais sistemáticas, envolvendo detecção de metais e escavações
arqueológicas1495, que trouxeram à tona uma «paisagem de conflito», o sítio da
1491
Dião Cássio, 56.20. 1-2. Já focámos esta questão. Veja-se, a propósito, B. Campbell, «The marriage of soldiers under
the Empire», JRS 68 (1978), pp. 153-166.
1492
A. K. Goldsworthy, Augusto…, p. 456. Veleio Patérculo 2.118.4; Dião Cássio, 56.19.2-3; Tácito, Ann. 1.58.
1493
Para mais elementos informativos sobre a Clades Variana: R. Wiegels, Die Varusschlacht. Wendepunkt des
Geschichte?, Estugarda, Theis Verlag, 2007; C. Lockhart, The Lost Legions of Augustus, Western Oregon University,
Monmouth, 2007; M. McNally, Teutoburg Forest AD 9: The destruction of Varus and his legions, Oxford, 2011, pp. 32-
85 (descrição da campanha e do seu fatal desenlace); Y. Le Bohec, La «Bataille» du Teutoburg, 2ª edição, Clermont-
Ferrand, 2013; A. R. Esteban Ribas, «El desastre de Varo en Germania«, Historia Rei Militaris, pp. 58-69; V. G. Mantas,
«Uma batalha há dois mil anos: Teutoburgo», Boletim de Estudos Clássicos. Associação Portuguesa de Estudos
Clássicos, Instituto de Estudos Clássicos, Coimbra, 52 (Dezembro 2009), pp. 67-77.
1494
T. Clunn, In Quest of the Lost Legions: The Varusschlacht, Londres, 1999 (livro reeditado em 2009).
1495
G. Franzius, «Die römischen Funde aus Kalkriese», in W. Schlüter (ed.), Kalkriese. Römer in Osnabrücker Land.
Archäologische Forschungen zur Varusschlacht, Bramsche/Rache, 1993, pp. 107-197.
509
emboscada decisiva que coroou uma série de ataques realizados ao longo de uns 30 km
(o que mostra quão meticuloso fora o plano ideado por Armínio) definida por grupos
dispersos e concentrações de objectos metálicos, ossadas humanas e animais, vestígios
de defesas lineares em terra, e a topografia local.
O local fica num ponto onde se afunilavam as comunicações entre os antigos
pântanos a norte e o Kalkrieser Berg a sul, área que, em 9 d. C., tinha uma floresta
mais cerrada do que hoje em dia1496. É indubitável que Armínio escolhera bem o sítio
para a emboscada, uma passagem estreita como ponto natural de estrangulamento da
coluna, onde o trilho avançava por um prado flanqueado, de um lado, por um bosque, e
do outro, por terrenos pantanosos. Os Germanos ainda mais fizeram para retardar as
tropas romanas, derrubando árvores, escavando uma vala (para obstar a que o inimigo
se virasse para outro caminho e conseguisse evitar a cilada) e fechando a passagem do
lado oposto ao erguerem uma rampa com aproximadamente 500 m de comprimento no
declive entre o arvoredo. Construiu-se esta barreira com bocados de turfa e terra, o que
parece ter-se inspirado nas habituais fortificações de campanha erigidas pelas legiões.
Armínio certificou-se que Varo iria seguir por tal trajecto e os preparativos para a
emboscada demoraram dias ou até semanas. As circunstâncias estavam a revelar-se
adversas para os Romanos, agravando-se quando uma chuva intensa começou a cair,
acompanhada por fortes rajadas de vento, o que atrasou ainda mais a coluna e o trilho
converteu-se num lamaçal. Tudo isto dificultava também o manuseamento do
equipamento militar. Varo não soube lidar com a situação: primeiramente, mandou
que se incendiasse boa parte do comboio de abastecimento, medida que serviu para
aumentar o nervosismo entre os seus homens. Entretanto, as investidas germânicas
prosseguiam, desgastando a coluna e não tardou que o desespero alastrasse.
Quando as forças romanas se acercaram da passagem estreita, intensificaram-se os
ataques1497: a espécie de «parede» erigida pelos Germanos compreendia várias portas
falsas que facilitavam as surtidas contra o inimigo, pudendo os guerreiros arremeter e
depressa recuar para a segurança da paliçada: esta, ainda que só se elevasse a cerca de
1, 50 m, impedia o ímpeto de uma carga e oferecia aos combatentes que luitavam a
partir da estrutura uma vantagem significativa em termos de altura. Encurralados na
exígua passagem e sofrendo ataques a partir de várias direcções, os Romanos tentaram,
a todo o custo, formar uma linha defensiva ordenada.
É provável que um comandante excepcionalmente sagaz e competente lograsse fazer
passar as suas tropas, conferindo certa ordem ao caos que então se vivia e montando a
seguir um ataque concertado contra os rebeldes. No entanto, Varo não era a pessoa
indicada para agir desta forma, cedo perdendo o controlo dos acontecimentos. Um seu
oficial resolveu avançar a cavalaria sem autorização para o efeito, mas em vão, já que as
tropas montadas se viram cercadas e foram massacradas numa outra passagem. O
próprio legado foi ferido e, pouco depois, suicidou-se, o mesmo fazendo outros oficiais
de topo. Atrás referimos que o seu pai também pusera termo à vida depois da batalha
de Filipos: se bem que a nobreza romana admirasse o suicídio quando se estava no lado
perdedor de uma guerra civil, já considerava o acto inaceitável para um comandante
que encabeçava um exército contra um inimigo estrangeiro. Se um comandante se
matava, quase não restava incentivo para os seus homens continuarem a bater-se. E
alguns, incluindo oficiais seniores, vieram a render-se ao passo que outros fugiram,
sendo eliminados pelos Germanos sem oferecerem resistência. Mas vários não
1496
G. Moosbauer e S. Wilbers-Rost, «Kalkriese und die Varusschlacht: Multidisziplinäre Forschungen zu einem
militärischen Konflict» in S. Burmeister e H. Derks (eds.), 2000 Jahre Varusschlacht: Konflict, Estugarda, 2009,, pp.
56-67, A. Rost, «Das Schlachtfeld von Kalkriese: Eine archäologie Quelle für die Konflict forschung», ibidem, pp. 68-76;
A. Rost, «The Battle between Romans and Germans in Kalkriese: Interpreting the Archaeological Remains from an
ancient battlefield», in A. Morillo Cerdán, N. Hanel e E. Martín (eds.), Limes XX: Estudios sobre la frontera romana.
Roman Frontier Studies. Anejos de Gladius…, pp. 1339-1345; S. Wilbers-Rost, «The site of the Varus Battle at Kalkriese.
Recent Results from Archaeological Research», ibidem, pp. 1347-1352.
1497
Para mais dados sobre a desenrolar da Clades Variana, remetemos o leitor para dois artigos: A. Murdoch,
«Arminius’ masterstroke. The campaign of AD 9», The Varian Disaster. The Battle of the Teutoburg Forest/Ancient
Warfare (Special Issue 2009), pp. 53-61; J. Oorthuys, «Looking for Varus. The quest for the Teutoburg forest», ibidem,
pp. 70-73.
510
quiseram desistir, combatendo e procurando furar a barreira e escapar à emboscada. A
dado momento, certas parcelas da rampa ruiram durante a pugna.
As evidências de Kalkriese incluem moedas romanas augustanas, algumas cunhadas
por Varo, nenhuma delas datando após o ano 9. As ossadas humanas foram exumadas
em valas ou depressões pouco profundas, misturadas com os restos mortais de alguns
cavalos e mais mulas1498. Certos artefactos estavam colocados junto dos esqueletos, e os
crânios exibem diversas lesões. A amplitude das evidências materiais demonstra
cabalmente a presença de tropas romanas no local no tempo de Augusto (com a
recuperação de uma série de peças de equipamento militar 1499), e é quase garantido que
os objectos recuperados em Kalkriese, pela maneira como se apresentavam espalhados,
cobrindo uma distância de cerca de 10 km, mostram resíduos da «paisagem de
conflito» da derrota de Varo. Em termos globais, a distribuição dos achados parece
indicar que os soldados romanos tentaram contornar o pântano, circundando os
contrafortes montanhosos, e que o amontoado de carroças, mulas de carga e soldados
feridos ainda concorreram para aumentar mais a confusão e o pânico.
Muitos dos pequenos destacamentos dispersos pela província, conheceram o mesmo
funesto destino dos milites em Kalkriese. Houve, porém, alguns que escaparam à
morte, à tortura ou à escravidão, ao alcançarem o Reno, onde as duas legiões
sobreviventes esperavam ser atacadas a qualquer instante. A derrota de P. Quintílio
Varo significou um dos mais devastadores reveses militares para os Romanos, ficando
ao nível das batalhas de Canas (216 a. C.), Carras (53 a. C.), Edessa (260 d. C.) e
Adrianopla (378d. C.).
Dispomos de quatro fontes literárias que se referem ao desastre de Varo, todas, salvo
uma, escritas muito depois de 9 d. C. Veleio Patérculo foi um contemporâneo que
aludiu obliquamente ao episódio, deixando-nos um retrato bastante esclarecedor do
comandante (2.117-119): Q. Varo era «um homem de brando carácter e calmo
temperamento, em certa medida de compreensão lenta como o era a mover o corpo, e
mais acostumado ao ócio do acampamento do que ao verdadeiro serviço militar».
Aparentemente, Varo terá acreditado que os líderes germanos eram amigáveis e
aceitariam sem grandes problemas os impostos que sobre estes iriam recair, bem como
a jurisdição legal, o que não aconteceu, sendo estes dois aspectos importantes factores
para que o inimigo se rebelasse contra Roma. O mesmo Veleio também nos fornece o
detalhe de um dos legados de Varo tentar fugir, em vão, com a cavalaria em direcção ao
Reno, abandonando a infantaria. Já em finais do século I, Floro salientou a confiança
excessiva de Varo, subestimando o comportamento do inimigo e entendendo que a sua
campanha se resolveria sem grande dificuldade (2.30). O historiador de origem grega,
de finais do século II e começos do III, Dión Cássio, é o único a oferecer uma descrição
directa dos eventos (56.18-22): de novo se reportou ao facto de Varo pretender impor
os ditames de Roma a nível jurídico e económico, juntamente com a arrecadação dos
impostos, ignorando a crescente hostilidade dos chefes germanos.
Os textos oferecem uma imagem globalmente coerente. Este exército muito pesado,
devido a uma grande quantidade de supranumerários e de bagagens, teve, desde o
início, um comandante fraco e vacilante. Sem uma forte liderança no topo, as tropas
romanos tiveram de se arrastar, marchando num terreno difícil e padecendo com os
efeitos de um tempo opressivo. Dias marcados por muita chuva, más condições para
montar acampamento e a deterioração progressiva do equipamento militar ainda fez
subir mais o nível de ansiedade e tensão. O descartar das bagagens redundantes pode
ter correspondido a um intento de impor alguma ordem, mas com um sucesso assaz
limitado, quanto mais não fosse porque neste processo se perderam víveres e armas de
1498
A. Panhorst, Looting of Bones in the Teutoburg Forest, Nordestedt, 2010. Descobriu-se o esqueleto de uma mula
com o badalo de pescoço repleto de erva fresca para abafar o som, o que sugere uma tentativa de atacar em silêncio a
meio da noite; também se encontraram os restos mortais de outra mula que, ao transpor a rampa, caiu e partiu o
pescoço: cf. S. Wilbers-Rost e A. Rost, «Bones and Equipment of Horses and Mules on the Ancient Battlefield of
Kalkriese», Archaeologia Baltica 11 ( ), pp. 222-228..
1499
C. Koepfer, «The legionary’s equipment: Archaeological evidence», The Varian Disaster. The Battle of the
Teutoburg forest…, pp. 37-41; A. Rost e S. Wilbers-Rost, «Weapons at the battlefield of Kalkriese», Gladius XXX (2010),
pp. 118-135.
511
reserva. Além disso, a decisão de abandonar os feridos para trás serviu para quebrar
decisivamente a moral.
A acumulação de factores como a exaustão, a fome e o frio, ao longo de quatro dias de
marcha, e o subsequente combate em condições tão adversas conduziram a uma crise
de comando e de controlo. Inicialmente, os bárbaros agiram cautelosamente, mas a
fraqueza cada vez mais evidente dos Romanos encorajou os ataques germânicos,
fazendo afluir ao local da emboscada mais guerreiros. Para os Romanos, o seu
isolamento face a bases seguras e a falta de reforços conjugou-se com a preocupação
pela segurança dos civis que seguiam na coluna (lembremos que entre eles havia
familiares dos próprios soldados). O cenário que se lhes oferecia era assustadoramente
previsível: as tentativas de fuga afiguravam-se inúteis, crescendo tanto nas tropas como
nos civis o pavor de morrer lentamente, serem torturados, mutilados ou ficarem
reduzidos à escravidão: com efeito, os esforços para escapar redundaram no mais
absoluto fracasso. Muitos dos prisioneiros romanos não tardaram a juntar-se aos seus
camaradas que sucumbiram na pugna, sacrificados pelos exultantes guerreiros
germânicos, assim agradecendo o apoio dos deuses pela vitória. Outros foram levados
como escravos e, nos anos seguintes, alguns conseguiram evadir-se ou ser resgatados,
descrevendo os tormentos que padeceram em cativeiro. Quando Varo e alguns dos seus
oficiais se suicidaram, as formações militares desintegraram-se por completo e a
disciplina desapareceu pura e simplesmente. Alguns soldados, desnorteados,
debandaram e até se livraram das armas, ficando, assim, sem possibilidades de se
defender. Outros puseram termo à vida, enquanto meio cultural dignificante para evitar
a tortura e a desonra. Por último, outros reuniram-se em magotes dispersos, lutando
até tombarem. Certos indícios apontam para que vários pequenos grupos terão
mantido certa coesão no meio do desespero e ofereceram rija luta contra o inimigo,
cientes que nada mais tinham a perder.
Varo foi precipitada e ineficazmente cremado, mas pouco depois exumaram-se e
profanaram-se os seus restos mortais. O inimigo capturou as três águias legionárias,
além de outros estandartes, muitas couraças, armas e uma série de outros elementos.
Distribuiram-se os troféus pelas tribos, alguns até sendo enviados a outras para as
encorajar a aderir à rebelião. Marobóduo veio a receber a cabeça de Varo, mas o
soberano dos Marcomanos optou por manter a paz com Roma, cremando o legado com
todo o cuidado e inumando-o de maneira respeitosa1500.
Neste episódio, a transição da estabilidade táctica para a desintegração foi um
elemento crucial1501, mas verdade se diga que a iniciativa nunca esteve do lado das
forças de Varo, impedida por constrangimentos como o terreno e a própria natureza
disfuncional e desordenada da coluna. Isto contrastava com a conhecida prática
romana de organizar marchas com os exércitos devidamente ordenados 1502. A fadiga
teve presumivelmente um papel-chave, roubando aos Romanos a vontade e o ânimo de
se baterem1503.
A clades Variana significou um rotundo fracasso da inteligência militar romana em
diferentes níveis: o projecto de Augusto para tentar incorporar a Germânia no império
baseou-se num conhecimento geopolítico insuficiente. O facto de que uma emboscada
bastasse para arrebatar a Germânia aos romanos sugere igualmente que o seu controlo
não era particularmente firme. Além disso, havia demasiados germanos que podiam
oferecer tenaz resistência, e os movimentos migratórios de populações a partir de
Nordeste faziam quase impossível acabar com eles antes de conseguir que a província
se tornasse segura. Por muito que os Romanos tenham feito de Varo o bode expiatório
do desastre, tratou-se, na realidade (como afirmou Rose M. Sheldon), de um falhanço
sistémico, causado por três factores: em primeiro lugar, uma compreensão inadequada
1500
Tácito, Ann. 1.57-8, 71 Veleio Patérculo 2.119.5.
1501
J. Coulston, «Courage and Cowardice in the Roman Imperial Army», War in History, 20 (1/2013), p. 30.
1502
A. K. Golsdworthy, The Roman Army at War…, pp. 105-111; C. M. Gilliver, The Roman Art of War, Londres, 1999,
pp. 32-62.
1503
J. Keegan, The Face of Battle, Londres, 1976, pp. 134-137.
512
dos problemas estratégicos que a Germânia colocava e uma má avaliação dos perigos
que uma expansão territorial excessiva implicariam; em segundo, informações escassas
sobre as tribos germânicas situadas ao longo da rota que tomou o exército romano; e,
por último, uma contra-espionagem nula contra os elementos desleais no seio das
tropas auxiliares, que não soube detectar a ameaça que supunham e o grau da sua
desafeição ou hostilidade. A combinação destas três vertentes ocasionou um fiasco total
em termos de inteligência militar1504.
Varo não utilizou os seus recursos de inteligência para efectuar um reconhecimento
táctico circunstanciado, antes preferindo confiar nos auxilia germanos, que se
encontravam na sua própria terra, para tal tarefa. Se ele tivesse recorrido aos seus
exploratores e speculatores romanos, é provável que estes tivessem descoberto indícios
ou mesmo provas manifestas da preparação da emboscada. Varo, aparentemente, não
entendia coisa alguma sobre contra-inteligência, porque nem sequer lhe ocorreu
manter vigiados os germanos que serviam no seu exército. Como se viu, embora
Segestes, sogro de Armínio, tenha avisado Varo contra uma iminente conjura, o último
ignorou a advertência e não se esforçou para confirmar se havia alguma verdade no que
lhe fora dito, continuando obstinadamente a acreditar em Armínio. Tácito (Ann. 2.46)
descreve Varo como «um general ignorante do engano». Nenhum comandante se podia
permitir a um tal luxo.
Seja no mundo antigo como no moderno, paga-se um preço muito alto caso se falhe
na detecção de uma ameaça letal e, apesar de Augusto haver estabelecido um dos
melhores sistemas de inteligência castrense, também sofreu a pior das derrotas. O
exército romano fora restruturado e afinado mediante as guerras de conquista. Augusto
dotou o Império de bons recursos e meios de inteligência que permitiam obter informes
sobre os inimigos e transmiti-los, por exemplo, directamente de um campo de batalha
para a Urbs. Era um sistema que serviria Roma durante o resto do século I e nos
seguintes mas que, como todos os sistemas, tinha as suas fragilidades, e uma eficiente
espionagem militar jamais se pode fundamentar somente na confiança. Por culpa da
negativa de Varo em utilizar tais serviços especializados, desapareceram três das
melhores legiões e o sonho imperial de Roma na Germânia veio a dissipar-se.
O desastre no saltus Teutoburgiensis assestou um tremendo golpe no já idoso
Augusto, a tal ponto que se conta que deixou crescer o cabelo e a barba, durante meses,
em claro sinal de luto, vagueando pelo seu palácio e batendo com a cabeça nas paredes,
ao mesmo tempo que gritava: «Quintílio Varo, devolve as minhas legiões!» (Quinctili
Vare, legiones redde!). No entanto, embora o princeps tenha ficado muito consternado
(talvez sentindo mais raiva do que propriamente desespero – Dión Cássio refere que o
princeps rasgou as roupas num gesto de frustração), Na realidade, Augusto não se
comportou de forma tão desvairada: pelo contrário, procurou manter o sangue-frio, ao
mesmo tempo que reflectiu sobre as medidas que ia tomar. O filho adoptivo de Júlio
César aumentou as patrulhas nas catorze regiões da Urbs, prevenindo eventuais
distúrbios e, principalmente, revoltas de escravos de origem bárbara.
Quanto aos germanos que serviam como guardas de corpo e escoltas montadas de
Augusto, mesmo não representando uma ameaça, foram expulsos de Roma de uma
maneira ostensivamente pública. Ao mesmo tempo, Augusto resolveu prolongar a
duração dos mandatos dos seus governadores provinciais, por forma a assegurar a
estabilidade e a supervisão de homens experientes por todo o império.
Por algum tempo, o exército ficou reduzido a 25 legiões, e os numerais XVII, XVII e
XIX não mais se usaram, porque considerados altamente nefastos 1505. Augusto ordenou
um novo recrutamento, só que, como já se antevia, o número de recrutas revelou-se
ainda mais baixo do que em 6 d. C.. Introduziu-se então o recrutamento obrigatório de
cidadãos escolhidos por sorteio, não obstante a sua extrema impopularidade. Alguns
homens tentaram evitá-lo e um punhado chegou mesmo a ser executado, para servir de
1504
Cf. Rose M. Sheldon, «Inteligencia militar en la Roma del siglo I d. C.», Desperta Ferro, Número Especial, La
Legión romana (III)…, p. 38.
1505
Suetónio, Augusto, 23.2. Veja-se, também, L. Keppie, The Making of the Roman Army…, pp. 163-169.
513
aviso aos demais. Aumentou-se também o tempo de serviço e, simultaneamente, foram
de novo convocados para as fileiras mais soldados veteranos. Além disso, criaram-se
unidades especiais compostas por escravos comprados e libertos 1506.
Entretanto, Tibério foi logo enviado para a fronteira do Reno, transferindo-se todos
os efectivos disponíveis de outras províncias para reforçar o seu exército: além do
remanescente das forças de Varo (XVI Gallica e XIII Gemina), no ano 11, Tibério
passou a dispor da V Alaudae e XXI Rapax, no grande acampamento de Castra Vetera
(Xanten, Holanda), das I Germanica e XX Valeria (em Colónia) e das II Augusta e XIV
Gemina em Mogontiacum, reunindo-se sob o comando de Tibério 8 legiões e, pelo
menos, um quantitativo idêntico em tropas auxiliares, nas duas províncias da
Germânia, a Superior e a Inferior, localizadas ao longo do Reno 1507. A invasão germana
que se esperava e temia não chegou a concretizar-se: ao que se julga, os guerreiros de
Armínio terão adoptado as práticas tradicionais existentes nos chamados exércitos
tribais, dispersando para os seus lugares de origem, onde exibiram, por certo, a sua
parte do saque e desfrutaram da sua glória. A maioria dos pequenos destacamentos
espalhados por Varo na região tinham-se perdido. No entanto, quando uma horda de
guerreiros investiu contra o forte de Aliso (correspondendo, em princípio, ao sítio
arqueológico alemão de Haltern), os seus ataques foram repelidos: depois de
defenderem energicamente o castra, as tropas da guarnição e um considerável número
de civis abandonaram o local a coberto da escuridão, fugindo para a fronteira do Reno.
Mantiveram-se todos os pontos de travessia do rio.
Em relação às duas legiões sobreviventes de Varo - XVI Gallica e XIII Gemina - e
alguns contingentes de auxilia, mantiveram-se intactas e os seus comandantes tudo
fizeram para estabelecer um dispositivo defensivo seguro e consistente 1508. A província
entre o Reno e o Elba estava perdida, mostrando as escavações arqueológicas que todas
as guarnições e assentamentos civis terão sido repentinamente abandonados.
Provavelmente, Tibério começou a internar-se no território germânico, efectuando
expedições punitivas menores contra o inimigo, recuperando o controlo dos eixos de
penetração tradicional rumo ao leste, ao longo da costa do mar do Norte e dos vales dos
rios Lippe e Main. A aura da invencibilidade romana foi seriamente abalada pela
derrota de Varo. Consequentemente, para a restaurar, seguiram-se anos de duras
campanhas.
Em 11 da nossa era, a Tibério juntou-se Germânico 1509 (filho do carismático e popular
Druso). Aos 22 anos de idade, como vimos, Germânico começou por adquirir
experiência sob o comando do seu tio (e pai adoptivo), na revolta da Panónia. Em 13 d.
C., Tibério foi chamado a Roma por Augusto, já muito debilitado, para assisti-lo e
assegurar que a sucessão decorreria sem perturbações, após o seu falecimento. Assim,
Germânico substituiu-o no comando supremo da fronteira do Reno. De seguida,
abordamos as operações bélicas realizadas na Germânia.
A clades Variana foi considerada uma das refregas decisivas para a história do
Ocidente: depois desta emboscada e derrota de tremendas proporções, Roma nunca
mais voltou a ocupar de maneira permanente os territórios a leste do Reno. Refreou-se,
portanto, o expansionismo romano e criaram-se, em certa medida, as bases de uma
divisão europeia que perdura até à actualidade. Naquele momento, logo a seguir ao
1506
Dião Cássio 56.23.1-4; Suetónio, Augusto, 23.1-2.
1507
Estas tropas ficaram distribuídas entre a costa do mar do Norte, na foz do Reno, e em Vindonissa, já sobre o
Danúbio.
1508
Dião Cássio, 56.22.2a-4; Veleio Patérculo 2.120.1-6; P. Wells, The Battle that Stopped Rome…, pp. 200-212; A.
Murdoch, Rome’s Greatest Defeat…, pp. 121-128.
1509
Quando o pai morreu, Germânico tinha seis anos. O seu nome viria a ser singularmente apropriado, dado que, em
adulto, acabaria por ganhar muito prestígio em campanhas na Germânia.
514
desastre, a situação aparentava ser gravíssima: temia-se a possibilidade de hordas de
guerreiros germanos atacarem e transbordarem a linha de fortes construídos ao longo
do curso médio e inferior do Reno, até então quase desguarnecidos. Se tal ocorresse,
assolariam, como uma violenta inundação, a Gália romanizada e, para os espíritos mais
alarmistas, até poderiam chegar até Itália. Esta ideia reavivava velhos terrores entre os
romanos que, durante a República, foram, em várias ocasiões, vítimas da fúria
incontrolável dos bárbaros.
Não restam dúvidas de que o impacto psicológico inicial foi terrível, e a acumulação
de prodígios, ou fenómenos insólitos, que para muitos romanos eram perfeitamente
válidos, aumentou ainda mais o medo: «O templo de Marte no campo do seu nome,
viu-se ferido por um raio (…) as abelhas montaram os seus panais nos altares dos
acampamentos militares (…) uma estátua de Victoria, que estava na província da
Germânia e olhava para o território inimigo, girou sobre o seu pedestal e voltou-se em
direcção a Itália» (Dión Cássio, 56.24).
Era efectivamente muito séria a perda de três legiões num exército profissional de
contava só com 28 para defender todo o império. Dión Cássio explica, ademais, que
«não restavam cidadãos em idade militar dignos de menção, e as tropas auxiliares que
eram de algum valor tinham sofrido muito…» (56.23.1). Esta falta de recursos humanos
treinados pode parecer surpreendente num Estado do tamanho da Roma imperial, mas
já havia muito que os cidadãos romanos, os únicos elegíveis para fazerem parte das
legiões, haviam abandonado o vetusto dever cívico a favor de um exército
»mercenário», profissional e remunerado, para o qual logicamente não abundariam
voluntários em momentos de verdadeiro perigo.
Urgia, então, tomar medidas: o Império devia cobrir a fronteira primeiro e, depois,
contra-atacar, a fim de demonstar aos Germanos (e outros muitos povos que se
aproximavam, ávidos, às fronteiras do Danúbio e da Ásia) que Roma era invencível,
embora pudesse sofrer reveses momentâneos. Se de facto a teve, a comoção sentida por
Augusto foi passageira, dado que de imediato começou a tomar medidas práticas. De
acordo com Suetónio, mandou colocar guardas na Urbs para prevenir a eclosão de
tumultos, prolongou o mandato dos governadores provinciais já experientes, e fez votos
de uns jogos, julga-se que sinceramente, a Júpiter Optimus Maximus. A isto, Dión
Cássio acrescenta outras medidas mais enérgicas, em especial o recrutamento de
libertos e cidadãos indolentes – punindo com a despossessão e, inclusive, com a morte,
os que fuguissem – e o realistamento de veteranos, indubitavelmente a medida mais
eficaz a curto-prazo. Mais: por precaução, como atrás escrevemos, afastou de Roma os
membros da Guarda Pretoriana de origem gaulesa e germânica. As províncias da Gália
e Hispânia, afora Itália, tiveram de contribuir com cavalos, remessas de armas e ouro.
O comando no terreno das operações transitou para o filho do grande Druso, Júlio
César Claudiano Germânico, historiograficamente conhecido só por Germânico, a que
já aludimos, jovem também dotado de grande valor militar. A sua missão era tripla:
restaurar o prestígio de Roma, castigar/neutralizar Armínio e, em princípio, recuperar
o controlo da Germânia. Para o efeito, dispunha da ajuda do veterano Aulo Cecina,
comandando cada um oito legiões, na prática repartidas em dois exércitos, um do Baixo
Reno e outro menor, na zona de Mogontiacum, além de parte de duas legiões muito
mais a sul, até Vindonissa, na conjunção do Reno e do Danúbio.
Aparentemente, no seu leito de morte, Augusto teria aconselhado Tibério a
suspender a expansão na Germânia (como relatam Tácito e Dión Cássio) e talvez seja a
esta luz que caiba avaliar o que aconteceu entre os anos 14 e 16. Germânico teve de
adiar os seus planos quando eclodiu no exército um sério motim, cujas causas se
relacionavam com as medidas de emergência tomadas para reparar o desastre de Varo.
Assumiram papel importante a disciplina férrea e os problemas com os soldos, mas
sobretudo o realistamento de veteranos já esgotados, a incorporação de recrutas
indolentes e, ainda, o prolongamento do serviço militar daqueles que, depois de
passarem trinta anos nas fileiras, já deviam estar a gozar do merecido licenciamento:
«Alguns, tomando a mão de Germânico, como se fossem beijá-la, metiam os seus dedos
nas bocas deles, para que tocassem nas suas gengivas e dentes…» (Tácito, Ann. 1.33).
515
Sufocou-se a rebelião através de uma mescla de violência, persuasão e promessa de
rever os períodos de serviço militar. Deste episódio, sobreviveram cenas nas fontes
providas de certa veracidade: Germânico, num discurso eloquente, desembainhou a
espada e ameaçou suicidar-se se as tropas continuassem a pressioná-lo a faltar aos seus
juramentos. Então, «…alguns… animavam-no a mergulhar a espada. Até um soldado
chamado Calusidio lhe ofereceu a sua, acrescentando que estava mais afiada…». Este
brutal sentido de humor é um elemento característico de veteranos curtidos de todas as
épocas.
Germânico aproveitou para canalizar a ira e o descontentamento das tropas para uma
campanha de amplitude limitada, no ano 14, com o objectivo de neutralizar os Marsi,
um dos povos germânicos que haviam lutado em Teutoburgo: a operação, desenrolada
ao longo doLippe, foi uma expedição marcada por massacres e saques em larga escala,
que cumpriu os seus propósitos. No regresso, quando os germanos trataram de
emboscar Germânico, este arengou às suas tropas, afirmando energicamente aos seus
homens que «aquele era o momento esperado para apagar a mácula da sedição».
Após a pausa de actividades bélicas durante o Inverno, no Primavera de 15 d. C.,
Germânico lançou uma ofensiva de maior amplitude, consistindo numa espécie de
«exorcismo moral militar» (segundo F. Quesada Sanz1510)
516
No ano 50 (para alguns autores em 49), os Romanos estabeleceram uma colónia de
veteranos em Camulodunum, a antiga capital trinovante, aqui erigindo um templo
dedicado a Cláudio e administrado por seviri, constituindo um símbolo flagrante do
governo ocupante estrangeiro (ad hoc templum divo Claudio constitutum quasi arx
aeternae dominationis aspiciebatur: Tácito, Ann. 14.31). Ostório Escápulo, o
governador provincial, faleceu em 51 ou 52, mas antes, ainda, eliminou o insurrecto
Carataco (Tácito, Hist. 3.45). Ao seu sucessor deixou o problema em aberto de manter à
distância os Silures, que viviam numa zona que hoje em dia se situa no País de Gales.
Dídio Galo, o governador seguinte da Britânia, que fora cônsul em 39 d. C., trazia como
«credencial» o facto de haver sido o obreiro de uma exitosa expedição no reino cliente
da Crimeia. Tácito, no seu desejo de elevar o mais possível o seu sogro Agrícola, acusou
Galo de confiar as questões da província aos seus legados legionários, optando por uma
vida fácil e desocupada (Tácito, Ann. 12.40), mas, na realidade, mal chegou à ilha
tratou de resolver o assunto espinhoso dos Silures. Ademais, viu-se assoberbado com o
levantamento dos Brigantes, sob a liderança de Venútio, que se insurgiram contra
Cartimandua, a qual o governador romano não hesitou em ajudar 1514.
Em 54 d. C., Cláudio morreu e Dídio Galo manteve-se como governador durante mais
três anos. Com a defunção do imperador, o seu liberto imperial Narciso, que tinha
favorecido a empresa britânica, caiu em desgraça, e presume-se que por esta altura se
registasse um afrouxamento nas medidas de controlo em relação ao que se ia
desenrolando naquele território insular. Com efeito, somos informados que Nero, em
determinada ocasião do seu reinado, terá pensado em abandonar a Britânia, mas não o
fez para evitar manchar a única glória militar de Cláudio (Suetónio, Nero, 18).
Desconhecemos se a atitude do imperador se relacionou com a situação existente no
fim do mandato de Dídio Galo ou à revolta encabeçada por Boudica 1515. Seja como for,
no ano 57 Nero decidiu completar a conquista do Sul da Britânia e, em 58, as suas
tropas marcharam contra os Silures. Neste contexto, por volta de 57, procedeu-se a
uma revisão das taxas impostas pelos Romanos aos nativos num dos censos
quinquenais, tarefa de que ficou incumbido o procurador Deciano Cato, sedeado em
Camulodunum, levar a cabo.
No mandato de Quinto Verânio, sucessor de Dídio Galo, realizaram-se mais algumas
investidas em território silure. A acreditarmos nas palavras de Tácito, Verânio, no seu
leito de morte, disse que se conseguisse viver mais dois anos subjugaria a província
(Ann. 14.29)1516.
No começo de 58 d. C., Suetónio Paulino foi nomeado governador da Britânia: tinha
grande reputação militar já que, como legado pretoriano, fora o primeiro romano a
atravessar o Atlas mauritano no início do reinado de Cláudio, vinte anos antes (também
foi cônsul no ano 43). Durante os seus primeiros dois anos de governação, continuou
and Emperors from Julius Caesar to Agricola, Londres, 1996; de G. de la Bédoyère, Defying Rome: The Rebels of
Roman Britain, Stroud, Tempus, 2003. Para a campanha de Cláudio, vejam-se: B. Dobson e J. C. Mann, «The Roman
Army in Britain and Britons in the Roman Army», Britannia, 4 (1973), pp. 191-205; S. S. Frere e M. Fulford, «The
Roman Invasion of AD 43», Britannia, 32 (2001), pp. 45-55; P. Laederich, Les limites de l’empire: Les stratégies de
l’impérialisme romain dans l’oeuvre de Tacite, Paris, 2001.
1514
S. Ross, «Interpreting the Brigantian Revolt», Ancient World, 35 (2004), pp. 93-116; G. de la Bedoyère, (Defying
Rome: The Rebels…) ocupou-se, entre outros personagens, de Carataco, Venutio e da própria Boudica.
1515
M. J. Aldhouse-Green (Boudicca Britannia: Rebel, War-Leader and Queen, Harlow, Pearson Education, 2006, p.
116) considera como um dado adquirido que teria sido a sublevação que fez com que Nero pensasse em abandonar a
Britãnia,
1516
Quinto Verânio, nado por volta de 12 a. C., era filho de Q. Verânio, que havia acompanhado Germânico até ao Oriente
e, em 18 d. C., governara a nova província da Capadócia. Onasandro dedicou o seu tratado versando o generalato a
Verânio filho (que contou com o apoio de Tibério e Cláudio). Graças ao teor da inscrição grega de Ciana, na Lícia ( IGR
III 703), conhecemos as etapas do seu cursus honorum: triumvir monetalis (neste período cargo reservado sobretudo
aos patrícios, embora ele não o fosse), tribuno da Legio IIII Scythica (estacionada na Mésia), questor de Tibério e
Calígula (37 d. C.), tribuno da plebe (41), governador da Lícia e Panfília, ao longo de cinco anos, envolvendo-se em
acções bélicas, pretor (42 d. C., cinco anos após a sua questura), mando legionário, cônsul honorário em 49 d. C. (com 37
anos de idade) e a seguir julga-se que deteve um cargo consular (magna severitatis fama). Uma filha sua desposou L.
Calpúrnio Pisão Frugio Liciniano, escolhido por Galba para o suceder: cf. A. E. Gordon, Quintus Veranius, Consul A.D.
49. A Study Based upon His Recently Identified Sepulchral Inscription, Los Angeles, 1952; E. Birley, «Britain under
Nero: the significance of Q. Veranius», in IDEM, Roman Britain and the Roman Army: Collected Papers, Kendal,1953,
pp. 1-9.
517
com a política agressiva do seu antecessor; em 59, efectuou um ataque à ilha de Mona
(Anglesey, no Norte de Gales), chefiando duas legiões, a XIIII Gemina e a XX
acompanhadas por tropas auxiliares 1517, para combater os Deceangli (conta-se que
Paulino empreendeu esta empresa, por sentir inveja de Domício Córbulo, seu rival, que
reconquistara a Arménia). Segundo Tácito, Mona era muito povoada e representava
«um santuário para fugitivos» e «uma fonte de força para os rebeldes» (Ann. 14.29;
Agr. 14.4)1518. Acresce que a ilha parecia ser um ponto de abastecimento de cereais para
os Ordovices e de cobre para os Romanos e, embora diversos autores a tenham
relacionado constantemente com os druidas, não se captam referências explícitas nas
fontes antigas; Frere acreditou que a presença dos mesmos se descortina nos elementos
achados em Llyn Cerrig Bach (Anglesey)1519.
As causas da rebelião. No fim da campanha claudiana, Roma recebeu a submissão de
onze «reis» britânicos, entre os quais figurava o dos Icenos/Iceni, Prasutago (talvez
correspondendo ao Esuprasto das moedas). Os Icenos eram um populus britânico que
ocupava as terras actualmente pertencentes a Norfolk (East Anglia), no Sudeste de
Inglaterra. César, nos Commentarii, alude aos Ceni Magni (BG 5.21), reportando-se
talvez aos Icenos1520. Se bem que já submetidos a Roma, em 47 d. C., no tempo do
governador Ostório Escápula, os Romanos proibiram aos Icenos o uso e porte de armas
(excepto os utensílios para a caça), gerando uma sublevação, em que também se
envolveram os Coritanos/Coritani e Catuvelaunos. Chegou mesmo a registar-se um
ataque contra uma unidade auxiliar romana. Não obstante este e outros incidentes,
Prasutago reteve a sua posição, provavelmente porque os revoltosos deviam fazer parte
da facção mais belicosa dos Icenos, agindo sem o conhecimento, nem a anuência do seu
rex. Posteriormente, Ostório Escápula chefiou uma campanha contra os Deceanglos do
Norte de Gales e, também, sufocou uma insurreição dos Brigantes do Norte de
Inglaterra.
No ano 60, Prasutago morreu, após uma vida pautada por longa opulência (longa
opulentia clarus: Tácito, Ann. 14.31.1). Ele tivera a precaução de nomear para herdeiros
do seu reino as suas duas filhas e o imperador Nero (Tácito, Ann. 14.31), pensando que,
desta maneira, asseguraria o futuro do seu território e não como, por exemplo, fizera
Átalo III de Pérgamo em 133 a. C., que deixou tudo para os Romanos. No entanto,
Roma decidiu que, uma vez falecido o soberano cliente, tinha todo o direito a
incorporar os seus domínios e assim fez, não agindo em conformidade com a
Rechtpolitik (mediante os seus pactos de clientela), mas segundo a Realpolitik romana,
que nesta vertente não suscitava quaisquer dúvidas1521.
No caso específico dos Icenos, o problema residiu sobretudo no modo concreto como
os Romanos se comportaram:
«Foi como se Roma tivesse recebido todo o país de presente. Todos os chefes foram
desprovidos das suas propriedades ancestrais e os familiares do rei escravizados […] enquanto
os centuriões saquearam o reino, os seus escravos rapinavam a residência régia como de um
saque de guerra se tratasse» (Tácito, Ann. 14.31).
1517
É muito possível que o contingente de infantaria dos auxilia incluisse algumas coortes de batavos (lembremos que na
Britânia, atribuiram oito cohortes de batavos à Legio XIIII Gemina e, mais tarde, no ano 67, estiveram para rumar com
a mesma até ao Caucaso, numa expedição planeada por Nero mas que jamais se concretizou (Tácito, Hist. 1.64, 59.1,
66.2, 2.27.2, 4.12.3, 15.1). Também se supõe que o contingente montado dos auxilia contasse com a ala dos batavos,
«uma força escolhida de cavalaria especialmente treinada para operações anfíbias (Tácito, Hist. 4.12.4). Cf. N. Fields,
Boudicca’s Rebellion AD 60-61: The Britons rise up against Rome, Oxford, Osprey, 2011, p. 55.
1518
S. S. Frere considerou que na ilha existiriam «refugiados políticos» (cf. Britannia: A History of Roman Britain,
Londres, Routledge and Kegan Paul, 1991, p. 70).
1519
Ibidem, p. 70. Sobre o material descoberto em Llyn Cerrig Bach, veja-se Ph. MacDonald, Llyn Cerrig Bach. A Study
of the Copper Alloy Artefacts from the Insular La Tène Assemblage, Cardiff, 2007.
1520
Sobre os Icenos, consulte-se H. R. Mossop e D. F. Allen, «The Elusive Icenian Legend», Britannia, 10 (1979), pp.
258-259.
1521
Encontramos outro paralelo no derradeiro rei gálata, Amintas, que morreu em 25 a. C. e o seu território logo se
tornou uma província. Contudo, o episódio ainda mais ilustrativo é o da anexação da Mauritânia no principado de
Calígula: o imperador mandou executar o monarca Ptolomeu, que então se deslocara a Roma (Suetónio), e a seguir
integrou este reino no império, o que alguns interpretaram como uma resposta romana face à existência de problemas
internos ou de rebeldia nessa área, constituindo, portanto, um meio de garantir a segurança do país e das províncias
limitrofes (A. Gowing, «Tacitus and the Client Kings», TAPhA 120 [1990], pp. 315-331).
518
Os factores que levaram Boudica a rebelar-se produziram interpretações diversas
entre os autores antigos e, ainda hoje, continuam a alimentar debates no seio da
comunidade académica. Tácito acusa o procurador Deciano Cato de ser o principal
instigador, com a sua cruenta actuação no método como arrecadou os impostos e
outros bens. L. A. du Toit, contudo, analisou o tratamento que Tácito dispensou aos
governadores da Britânia e advertiu para os «maus tratos» que Suetónio Paulino e
Deciano Cato receberam, quando comparados com a visão laudatória que apresenta de
Agrícola, seu sogro1522. Dión Cássio apresenta outras causas para a rebelião: por um
lado, a confiscação efectuada por D. Cato do dinheiro que Cláudio outorgara a
relevantes figuras britânicas (até os mortos tiveram de pagar impostos: 62.3.4-5), por
outro, a exigência feita por Séneca – o célebre senador-filósofo estóico, que possuía
uma grande fortuna e era, ao tempo, juntamente com Afrânio Burro, o prefeito do
pretório, conselheiro de Nero -, para que os Bretões devolvessem os 40 milhões de
sestércios que ele lhes emprestara (Dião Cássio, 72.2.1)1523.
Tácito refere-se a um terceiro motivo, as atrocidades perpetradas contra a rainha
viúva Boudica e a sua família (aspecto que R. Hunt 1524 não há muito enfatizou), que
ocorreram na ausência de Suetónio Paulino, ocupado a lutar contra os Deceanglos de
Gales.
Depreende-se que tanto a casa real como muitos nobres icenos (praecipui) pediram
dinheiro emprestado aos Romanos, vivendo luxuosamente mas acabaram por ficar a
dever um montante astronómico ao império, deixando os seus súbditos e descendentes
obrigados à liquidação dessa dívida, a qual Boudica, viúva do rei e rainha em exercício,
não reunia meios para pagá-la, piorando por conseguinte a situação. De acordo com
esta visão dos acontecimentos, Roma entendeu que as terras dos Icenos passariam a ser
sua propriedade, desta forma se saldando a dívida. Consequentemente, Deciano Cato
recebera ordens para reclamar e obter a considerável quantia que Prasutago devia, em
especial, a Séneca. Entrevê-se que Deciano Cato foi demasiado longe nas suas
demandas, ao ponto de atingir verdadeiramente o ânimo e a dignidade dos Icenos:
«O reino e a casa real foram igualmente tomados como prémios de guerra, um por oficiais
romanos, a outra por escravos romanos. Para começar, chicotearam a sua vúva Boudica e
violaram as suas filhas. Os chefes icenos foram privados das suas propriedades, como se
tivessem dado o paí inteiro aos Romanos. Os próprios parentes do rei foram tratados como
escravos» (Tácito, Ann. 14.29).
Certos estudiosos pensaram que os estupros, que no direito romano não implicavam
a pena de morte, tivesse um significado que transcendesse os actos de violência sexual
em si mesmos, pois provavelmente impossibilitariam às filhas de Boudica de contrair
matrimónio, o que esgotaria a linha hereditária. O que fica claro é que os factos
narrados pelas fontes, mostrando o prepotente e selvático comportamento dos
Romanos relativamente a Boudica e à sua família, exaltam no leitor sentimentos de
protecção maternal e vingança, e dão como resultado a justificação da violência
britânica devido à sua identidade como mãe1525.
Centremo-nos, então, na revolta de Boudica, episódio relativamente bem conhecido.
Às fontes literárias (Tácito nos Annales e em Agricola, Suetónio na Vita Neronis e Dião
Cássio mediante o epítome de Xifilino da sua Hist. romana, autores pertencentes à elite
senatorial romana) juntam-se os elementos facultados pela arqueologia 1526. Assim, foi
possível realizar várias abordagens e formular distintas interpretações sobre os factos
1522
L. A. du Toit, «Tacitus and the Rebellion of Boudicca», Acta Classica, 20 (1977), pp. 149-158.
1523
Volvido cerca de um ano, tanto Séneca como Burro desapareceram da cena política neroniana. Sobre a dissidência
política durante o reinado de Nero, veja-se V. Rudic, Political Dissidence under Nero. The prince of Dissimulation,
Londres, 1993.
1524
R. Hunt, Queen Boudicca’s Battle of Britain, Staplehurst, Spellmount, 2003.
1525
F. Fernández Palacios e P. Fernández Uriel, «Un caso de animus belligerendi en la conquista de Britannia: Nerón
contra Boudica, reina de los icenos», in G. Bravo e R. González Salinero (eds.), Conquistadores y conquistados:
relaciones de domínio en el mundo romano, Actas del XI Coloquio de la Asociación Interdisciplinar de Estudios
Romanos, Madrid/Salamanca, Signifer Libros, 2014, p. 154.
1526
A este respeito, veja-se B. Hoffmann, The Roman Invasion of Britain: Archaeology versus History, Barnsley, 2013.
519
que ocorreram em 61 d. C.1527, dezassete anos depois do começo da dominação efectiva
romana na Britânia1528. Os historiadores têm discutido bastante acerca dos populi que
intervieram activamente na revolta. Ogilvie e Richmond sustentaram que nesta se
envolveram os Icenos, Trinovantes, Coritanos, Cornovos/Cornovii, Durotriges,
Brigantes e, com certas reservas, dos Catuvelanos. Já Laderich cita como participantes
na sublevação só os Icenos, Trinovantes e Coritanos 1529.
Tácito nasceu em 56 d. C., isto é, cinco anos antes da rebelião de Boudica; foi cônsul e
governador da Ásia e terá redigido a sua narração do episódio por volta de 110 d. C..
Refere que os rebeldes atacaram e saquearam três cidades (Camulodunum, Londinium
e Verulamium), ao passo que Dião só cita duas (62.1.1)1530. Graças à arqueologia,
sabemos que talvez tenham sido arrasadas três cidades, mas a onda destrutiva atingiu
muitos outros aglomerados, como Chelmsford e Calleva Atrevatum (actual Silchester,
perto de Reading).
O primeiro objectivo visado por Boudica foi Camulodunum (hoje Colchester), outrora
o principal centro político dos Trinovantes, naquela altura colónia romana 1531. Foi uma
boa escolha. Os Trinovantes possuíam os seus próprios motivos para se insurgir, já que
os veteranos do exército romano se fixaram na sua antiga capital e expulsaram a gente
local das suas habitações e terrenos (neste momento já agricaptivi), tratando os
auctótones como prisioneiros e escravos. O templo de Cláudio, localizado na parte mais
nobre do centro urbano, era particularmente ofensivo para os indígenas. A certa altura,
a guarnição de Camulodunum pediu ajuda para conter as hordas rebeldes, mas o
procurador Deciano Cato enviou somente uma contingente de 200 tropas auxiliares, o
que, claro está, de nada serviu para enfrentar os insurgentes. A cidade viu-se destruída
e transformada em pasto de chamas, refugiando-se os seus últimos defensores romanos
no templo ao culto imperial, onde resistiram durante dois dias.
A única tentativa mais séria para socorrer a guarnição foi empreendida por Quinto
Petílio Cereal (Quintus Petilius Cerialis), legatus legionis da VIIII [IX] Hispana (futuro
governador da Britânia em 71, o primeiro sob o reinado de Vespasiano), que, à cabeça
de uma vexillatio da Legio IX (com cerca de 2 000 homens 1532), caiu numa emboscada
num bosque situado nas imediações da cidade (Tácito, Ann. 14.32.2). Após encarniçada
porfia, teve de abandonar o seu propósito, sofrendo muitas baixas. Entretanto, Deciano
Cato, ao aperceber-se do rumo que tomavam os acontecimentos e, eventualmente, por
se sentir responsável pela sublevação, abandonou a Britânia e partiu para a Gália.
A conquista de Camulodunum e a seguinte vitória contra os soldados comandados
por Petílio Cereal galvanizaram os revoltosos, que prosseguiram o seu avanço, desta vez
arremetendo sobre Londinium 1533(Londres): os seus habitantes, cujo número se estima
que se aproximava dos 10 000, apelaram em desespero ao procurador Suetónio Paulino
para que os ajudasse, o qual, inteirado da rebelião nas terras galesas onde esteve em
campanha (Tácito, Ann. 14.30), se apressou a dirigir-se a Londinium com a Legio XIV e
1527
K. Carroll, «The Date of Boudicca’s Revolt1», Britannia, 10 (979), pp. 197-202. Tácito refere com grande precisão
que a revolta ocorreu durante o consulado de Cesénio Peto (Caesennius Paetus) e Petrónio Turpiliano (Petronius
Turpilianus), em 61 d. C. (Ann. 14.29.1). No entanto, é relativamente comum ver autores a situar a rebelião no ano 60,
como, por exemplo, M. J. Aldhouse-Green (Boudicca Britannia…, p. 121), entre outros.
1528
D. P. Orsi, «Sulla Rivolta di “Boudicca”», Annali della Facoltà di Lettere e Filosdofia di Bari, 16 (1973), pp. 173-195,
P. Sealey, The Boudiccan Revolt against Rome, Princes Risborough, Shire, 1997. Sobre Tácito e Dião Cássio enquanto
fontes para a insurreição de Boudica, consulte-se J. C. Overbeck, Tacitus and Dio on Boudicca’s Rebellion», American
Journal of Philology, 90 (1969), pp. 129-145. N. Reed («The Sources for Tacitus and Dio for the Boudiccan Revolt»,
Latomus, 33 [1974], pp. 926-933), por seu turno, procurou descobrir as fontes em que estes dois autores beberam
inspiração. Neste sentido, é possível que Tácito tenha recorrido às Memorias de Suetónio Paulino, isto se as mesmas
realmente existiram. Cf. Plínio-o-Velho, NH, 5.1.14.
1529
R. M. Ogilvie e I. Richmond, De Vita Agricolae, Oxford, 1967; P. Laederich, Les limites de l’empire. Les stratégies de
l’impérialisme romain….
1530
Suetónio (Nero, 39), Eutrópio (7.14) e Orósio (7.7) apresentam a mesma cifra que Dião Cássio.
1531
Cf. R. J. A. Wilson, «Urban Defences and Civic Status in Early Roman Britain», in Romanitas. Essays on Roman
Archaeology in Honour of Sheppard Frere on the Occasion of His Ninetieth Birthday, Oxford, 2006, pp. 1-47.
1532
N. Fields, Boudicca’s Rebellion AD 60-61: The Britons rise up against Rome…, p. 51.
1533
Era uma cidade comercialmente muito dinâmica, conforme assinalou o próprio Tácito. Cf. J. Morris, Londinium:
London in the Roman Empire, Londres, 1982, pp. 107-108.
520
parte da Legio XX, ao mesmo tempo que enviou a cavalaria à frente com ordens para
que a Legio II se deslocasse para Exeter1534. Finalmente, quando Paulino chegou a
Londinium (o que sucedeu cerca de duas semanas depois, a não ser que se adiantasse
com uma pequena força), compreendeu que a seguir à derrota da Legio IX, dispunha de
insuficientes efectivos para defender a cidade mais populosa da Britânia, que foi
abandonada à sua triste sorte. Ironicamente, Paulino teria de agir desta forma se
acalentasse a esperança de salvar a província. Nas proximidades de Londinium,
Verulamium (St Albans) caiu igualmente nas mãos dos revoltosos. Eis o que relata
Tácito:
«Nunca antes a Britânia fora um território tão incómodo como perigoso. Os veteranos foram
mortos, as colónias queimadas, os exércitos isolados. Tivemos de lutar pelas nossas próprias
vidas antes que pudéssemos pensar na vitória» (Ann. 14.33).
Tácito diz-nos que os insurrectos deixaram um rasto de morte e devastação, não
pensando em mais coisa alguma: evitando fortes e outras instalações militares
romanas, mas não cidades amuralhadas, avançaram em direcção aos lugares que
oferecessem mais perspectivas de fartos saques e tivessem fracos dispositivos
defensivos. Calcula-se que houve uns 70 000 mortos, entre romanos e provinciais, o
que manifesta inequivocamente o profundo desejo de vingança que movia os rebeldes
bretões:
«Eles degolaram, enforcaram e crucificaram, como se desta maneira saciassem a sua sede de
vingança» (Tácito, Agricola, 15).
E também:
«Boudica não estava interessada em fazer prisioneiros, nem em pedir resgates por eles, nem
em praticar qualquer outro comércio de guerrra. O inimigo foi vítima de matanças, patíbulos,
fogo e crucificações por homens que cobravam a vingança […] antes que sobre estes se abatasse
o justo castigo» (Tácito, Ann. 12.31-32).
Dión Cássio apresenta uma descrição mais gráfica das atrocidades cometidas:
«Aqueles que foram levados como cativos viram-se sujeitos a todas as formas conhecidas de
atrocidade. A pior e mais bestial atrocidade cometida pelos seus captores foi a seguinte:
despiram as mulheres mais nobres e distintas, cortaram-lhes os seios e coseram-lhes as bocas
[…]; depois, empalaram as mulheres numas estacas pontiagudas, que lhes atravessaram todo o
corpo. Tudo isto fizeram, juntamente com sacrifícios, banquetes e comportamentos imorais, não
só em todos os locais sagrados mas em particular na alameda de Andraste. Este era o seu nome
para Vitória, e contemplavam-na com a mais excepcional reverência» (Hist. rom. 62.7)1535.
Entrementes, Suetónio Paulino organizou as suas tropas, perfazendo perto de 10 000
homens ao todo, e prepararou-se para defrontar o inimigo num sítio que lhe conferisse
vantagens em termos tácticos. Retirou-se por Watling Street com a Legio XIV, parte da
XX e com os auxilia das guarnições mais próximas. Quanto à Legio II, sob o comando
temporário de Poénio Póstumo, praefectus castrorum, negou-se a abandonar a sua
posição no Sudoeste da ilha.
A priori, os Romanos pareciam estar em apuros: os rebeldes eram em muito maior
número, não obstante os exageros dos autores greco-latinos (segundo Tácito, os bretões
seriam 100 000; Dião Cássio aponta uma cifra ainda mais hiperbólica – 230 000), mas
Suetónio Paulino escolheu bem o palco para a batalha decisiva: um loca onde havia um
desfiladeiro estreito, rodeado por encostas arborizadas e protegido na retaguarda por
uma floresta com densa vegetação rasteira. Nesta posição, o governador não temia ser
atacado nos flancos (impedindo que o inimigo fizesse manobras de envolvimento) ou
pela retaguarda1536. Assim, esta condicionante topográfica servia para atenuar a
vantagem numérica dos antagonistas. Tácito revela-se invulgarmente preciso na
descrição do terreno onde se livrou a refrega; não obstante estes pormenores, que
certamente obteve do seu sogro Agrícola, testemunha ocular, que estava então ao
serviço de Suetónio Paulino ocupando o posto de tribuno (Agricola, 5.1), Tácito não
oferece pistas sobre a localização concreta do campo de batalha.
1534
Sobre as unidades envolvidas, vejam-se B. Dobson e J. C. Mann, «The Roman Army in Britain…».
1535
P. Matyszak, Los enemigos de Roma: de Aníbal a Atila el Huno, Madrid, 2005, p. 176.
1536
N. Fields, Boudicca’s Rebellion AD 60-61: The Britons rise up against Rome…, p. 67.
521
O governador romano queria atrair Boudica o mais possível para oeste, dando tempo
para que os seus homens pudessem recuperar as forças, além de juntar reforços e
reunir provisões. Paulino não terá avançado muito para lá de Watling Street, sobretudo
porque ainda aguardava a chegada de uma vexillatio da Legio II Augusta, procedente
do sudoeste. G. Webster, ao basear-se nas pesquisas de Oswald e Scott, entendeu que o
sítio mais provável onde se desenrolou a refrega terá sido Mancetter (Warwickshire;
MAPA ). Segundo este autor1537, o «desfiladeiro estreito» de Tácito (Ann. 14.34.2)
corresponderia a um dos vários vales do rio Anker, provavelmente o mais próximo de
White Farm, a norte de Hartshill; actualmente, a floresta que protegia a retaguarda
romana reduz-se a um pequeno bosque, no planalto situado a sudoeste do referido rio.
Por sua vez, os Bretões liderados por Boudica concentraram-se numa planície, talvez
na área localizada entre Atterton, Whiterley e Fenny Drayton, ocupando uma área de
aproximadamente 5 km2. Inicialmente, os rebeldes formaram uma linha imprecisa, em
meia-lua, rematada pelos seus carros de combate, onde estavam mulheres e crianças,
expectantes ante uma possível grande vitória. Quanto aos romanos, dispuseram-se na
clássica linha dupla (duplex acies). No centro da formação encontravam-se os
legionários, flanqueados pelas tropas auxiliares de infantaria, à direita, e, pelas alae de
cavalaria à esquerda. Mais atrás, estavam posicionados de archeiros e fundibulários,
com a missão de fustigar, no seu avanço as forças inimigas (Dião acrescenta que
Paulino organizou os seus homens em três «divisões»).
Antes da peleja, Boudica fez uma arenga aos seus guerreiros (Tácito, Ann. 14.35;
Dión, 62.3-6). A este respeito, recordemos outros «discursos» britânicos, como
Carataco falando em Roma aos romanos ou Calgaco, que liderou uma coligação na
Caledónia (cf. infra) no tempo de Agrícola, e discorreu sobre a invasão
romana1538.Suetónio Paulino também se dirigiu aos seus soldados.Tácito situa os
discursos de Boudica e Paulino imediatamente antes da confrontação final, enquanto
Dión Cássio apresenta a alocução da rainha dos Icenos logo no início da rebelião
(segundo o mesmo autor, Paulino profere três breves discursos, 62.9-11). Na versão de
Dión, Boudica, nas suas palavras, enfatizou os saques e pilhagens cometidas pelos
romanos e no valor inestimável da liberdade 1539. Suetónio Paulino, por sua vez, proferiu
as seguintes palavras aos seus homens, discurso que Tácito reproduziu, parecendo bem
mais autêntico que os apresentados por Dião:
«Ignorai a algazarra que fazem estes selvagens. Há mais mulheres do que homens nas suas
fileiras. Não são soldados – nem sequer estão apropriadamente equipados. Já os vencemos
antes e quando virem as nossas armas e sentirem a nossa determinação, depressão se irão
abaixo. Arrojai os pila e depois avançai: derrubai-os com os vossos escudos e acabai com eles
com as vossas espadas. Esquecei o saque. Pensai só em vencer e tereis o vosso quinhão» (Ann.
14.36.3)
E eis que se feriu a batalha. À distância, diversos carros de combate exibiram-se, os
aurigas conduzindo os cavalos a toda a brida, comportamento típico entre os Bretões.
No seu relato, Dião sublinha o contraste entre o ruidoso avanço dos bárbaros e a
silênciosa linha romana:
«Logo a seguir, os exércitos aproximaram-se um do outro, os bárbaros no meio de muita
gritaria misturada com ameaçadores cânticos de guerra, ao passo que os Romanos se
mantiveram em silêncio e em ordem, até ficarem dentro do alcance dos dardos [akóntion] do
inimigo. Então, quando os seus opositores ainda estavam a investir contra eles […] os Romanos
precipitaram-se para a frente, depois do sinal dado, e carregaram a toda a velocidade e quando
ocorreu o choque, facilmente penetraram nas linhas adversas» (62.12.1-2).
1537
Boudica: The British Revolt Against Rome AD 60, Londres, Routledge, 1993 (reedição), pp. 97, 111-112. Alguns
historiadores, evitando ser demasiado específicos quanto ao local da batalha, afirmam que esta ocorreu algures entre
Londinium e Viroconium (Wroxester).
1538
C. M. Bulst, «The Revolt of Queen Boudicca in A.D. 60», Historia, 10/4 (1961), pp. 496-509; J. N. Adams, «The
Vocabulary of the Speeches in Tacitus’Historical Works», Bulletin of the Institute of Classical Studies of the University
of London, 20 (1973), pp. 124-144; E. Adler, Valorizing the Barbarians: Enemy Speeches in Roman Historiography,
Austin, 2011.
1539
E. Adler, «Boudicca’s Speeches in Tacitus and Cassius Dio», Project Muse Scholarly on Line (2008), pp. 172-195.
Sobre o conceito de liberdade, vejam-se: Wirszubski, 1950; Roberts, 1988.
522
Antes de carregarem, os legionários arremessaram os seus pila e deram meia-volta,
cedendo o lugar à segunda fila que, na dianteira, também procedeu ao lançamento dos
dardos; as duas descargas infligiram baixas entre os bárbaros. Um avanço lento, firme e
silencioso podia revelar-se mais intimidador do que uma arremetida barulhenta e
célere. Era certamente mais difícil de proceder desta maneira e talvez só possível
empregando tropas com alto nível de treino e disciplina. Efectivamente, tornava-se
assaz incómodo lidar com o medo, suportando passivamente a situação. Face à
crescente aproximação do inimigo, havia que esperar, com sangue-frio, mas um
soldado, instintivamente, tendia a reagir, nem que fosse gritando. A pressa de pôr fim à
expectativa e o impasse faziam com que se acelerasse o passo. Em certo sentido, um
andamento rápido, acompanhado por estrondosos brados de guerra no início de uma
acometida tanto constituía sinónimo de medo como um meio de assustar o inimigo.
Contudo, já um avanço mais lento e silencioso sugeria imperturbabilidade e fleuma,
mesmo que se resumisse a uma mera fachada, e atemorizava mais. Na passagem citada
de Dión, observa-se que os bretões, ao arremeterem desordenadamente, depararam
com os romanos a seguir a passo. A impetuosa carga dos rebeldes falhou, ao não causar
uma impressão visível nas tropas romanas, e provavelmente os primeiros terão
começado a esmorecer, pelo que a sua investida abrandou.
A carga romana depressa desbaratou a linha da frente dos bretões, talvez até antes de
a atingir directamente1540. As tropas romanas marcharam em formação de cunha, pelo
que as legiões facilmente romperam as filas inimigas. Por seu turno, os carros
britânicos arremeteram contra os arqueiros romanos, mas sem beneficiarem da
protecção dos escudos, cedo se viram crivados de flechas e dardos. Finalmente, a carga
da infantaria provocou a debandada dos bretões, que experimentaram dificuldades na
fuga por causa dos seus próprios carros e animais mortos a barrarem o caminho. O
prélio resultou num massacre e numa estrondosa vitória romana. Nas fontes antigas,
estimou-se que os insurrectos insulares sofreram perto de 80 000 baixas, e os
Romanos apenas perderam 400 homens, mais um número ligeiramente superior de
feridos, cifras que soam a falso. Lembremo-nos de outros exageros numéricos, como os
10 000 caledónios que pereceram na batalha de Mons Graupius, ao passo que os
romanos tiveram só 360 vítimas mortais 1541.
Depois da derrota, o que aconteceu a Boudica, a pessoa que, segundo Dião, conseguiu
que, num determinado momento, toda a ilha se perdesse e, o que era mais vergonhoso,
tudo por causa dela, uma mulher? Se nos basearmos em Tácito, suicidou-se ao ingerir
veneno (Tácito, 14.37: Boudicca vitam veneno finivit), enquanto Dião refere que a
rainha ficou enferma, sendo inumada no meio de grandes honras mas no mais absoluto
sigilo (62.12). Sobre a identidade e personalidade de Boudica pouco se sabe 1542. É
provável, no entanto, que descendesse de uma «casa real», como indicam Tácito e Dião,
embora o primeiro autor, na sua obra Agricola (16.1), apresenta Boudica simplesmente
como uma mulher pertencente à realeza. Em princípio, teria cerca de 30 anos quando o
seu marido e rei iceno, Prasutago, faleceu1543.
A descrição da aparência física que nos chegou de Boudica deve-se ao cálamo de Dión
Cássio (62.3.4). Não era só uma viúva consorte, mas também uma pessoa com forte
personalidade forte, destacando-se pela sua capacidade de liderança. Também se
notabilizava como guerreira, conduzindo um carro de guerra acompanhada pelas suas
filhas e, no dia da batalha, após discursar aos seus homens, pôs-se à frente do seu
exército (Tácito, 14.35)1544.
1540
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War…, p. 197.
1541
P. Fry, Rebellion against Rome: Boudicca’s Uprising against the Roman Occuptation Forces in A.D. 61, Lavenham
(Suffolk), 1982.
1542
N. Reed, «The Sources for Tacitus and Dio for the Boudiccan Revolt»….
1543
J. N. Adams, «The Vocabulary of the Speeches….», pp. 124-128; Jackson, 1979, E. Adler, «Boudicca’s Speeches…»,
pp. 172-195.
1544
A. Fraser, Boadicea ‘s Chariot: the Warrior Queen, Londres, 1988,R. Hunt, Queen Boudicca’s Battle of Britain…; V.
Collingdrige, Boudica: The Life of Britain’s legendary Warrior Queen, Woodstock, 2005.
523
A acreditar no relato de Dión, as bretãs não só eram iguais aos homens como também
demonstravam a mesmas bravura em combate. Nas fontes literárias conta-se, por
exemplo, que entre as pessoas que estavam a defender Mona na altura da ofensiva de
Suetónio Paulino, se encontravam umas mulheres vestidas de negro e de aspecto feroz,
que até assustaram os soldados romanos. Além disso, Boudica não foi a única mulher
detentora de grande poder político. No entender de alguns estudiosos, a posição
eminente ocupada pela deusa Brigantia, invocada como Caelestis Brigantia em
Corbridge (RIB 401), o que podia reflectir-se no elevado estatuto alcançado pelas
mulheres na sociedade céltica da Britânia 1545. Urge relativizar esta visão; porém,
aparentemente, entre os Brigantes uma mulher poderia mandar, ter propriedades,
divorciar-se, chefiar exércitos e ser aceite como alguém a ter em conta. Tácito menciona
a sua contemporânea Cartimandua e ainda outra «generala» cujo nome omite, que
conduziu os Brigantes contra um forte romano e uma colónia entre 71 e 83 d. C.
(Agricola, 31); quiçá fosse alguma sucessora da própria Cartimandua 1546.
Assim, a capacidade interventiva feminina não era um fenómeno excepcional, pelo
menos em certas comunidades celtas. Tácito comenta que os Bretões não faziam
distinção de género entre os seus líderes (Agricola, 16.1). Por seu lado, Plutarco (Sobre
as virtudes da mulher, 30) conta que as mulheres intervinham activamente nas
assembleias. Outros textos literários contém exemplos concretos sobre a participação
dinâmica das mulheres entre os Celtas (Políbio, Hist. rom. 22.21; Diodoro de Sicília,
Bibl. Hist., 5.32: Amiano Marcelino, 15.12). Nestas fontes, enfatizam-se a força, valentia
e a preparação marcial das mulheres, que lutavam com destemor no campo de batalha,
mostrando-se cruéis para com o inimigo, além de irascíveis e sanguinárias. Amiano
Marcelino, em particular, reporta-se à coragem, ao carácter indómito e ao grande vigor
físico das mulheres gaulesas, que eram tão formidáveis na guerra como os seus
maridos.
A Boudica, mulher de carácter, carismática e guerreira contrapõe-se a já citada
rainha Cartimandua, que chefiou os Brigantes desde a altura em que estes se
submeteram a Cláudio, permanecendo a última leal a Roma até 69 d. C., ano que que
foi destronada numa revolta encabeçada por Venutio, seu esposo1547.
O final. Tanto os populi hostis como aqueles que se tinham mostrado neutrais foram
perseguidos e sofreram represálias depois de eliminado o perigo representado pelo
exército de Boudica (a devastação do oppidum situado em South Cadbury, em
Somerset, pode ter correspondido a um desses actos retaliatórios). Entretanto, da
Germânia chegaram 2 000 legionários (oito coortes) e 2 alae. Tácito apressa-se a
desculpabilizar Suetónio Paulino dos excessos perpetrados pelas duas tropas. Em todo
o caso, não foram poucas as calamidades que se abateram sobre os Bretões, que, ao
descuidarem as suas colheitas de cereais, vieram a passar por um período marcado por
fortes privações e por uma grande fome. Volvido algum tempo, um ramo dos Icenos
estabeleceu-se aparentemente em Venta Icenorum (Caistor-by-Norwich). Sobre a parte
romana da Britânia, Tácito descreve um ambiente sombrio: as autoridades romanas
tentaram sair dessa espinhosa situação ao reconstruirem as civitates peregrinae nos
1545
G. Irby-Massie, Military Religion in Roman Britain, Lovaina, 1999, p. 173. Sobre as figuras femininas, veja-se: J.
Crawford, «Cartimandua, Boudicca, and Rebellion: British Queens and Roman Colonial Views», in T. L. Hunt e M. R.
Lessard (eds.), Women and the colonial gaze, Nova Iorque, 2002, pp. 17-28.
1546
Sobre os Brigantes: W. S. Hanson e D. B. Campbell, «The Brigantes. From Clientage to Conquest»…, pp. 73-89; para
a análise dos elementos arqueológicos, M. Giles, A Forged Glamour: Landscape, Identity and Material Culture in the
Iron Age, Oxford, 2012. Relativamente à sua derradeira revolta, veja-se S. Ross, «Interpreting the Brigantian Revolt»,
Ancient World, 35/1 (2004), pp. 93-116.
1547
Foi a última rainha dos Brigantes (c. 43-69). Ajudou a que os Romanos apanhassem Carataco à traição(Tácito, Hist
3.45). Veja-se, por exemplo, N. Howarth, Cartimandua: Queen of the Brigantes, Stroud, 2008. Sobre os Brigantes: K.
Branigann, Rome and the Brigantes: the Impact of Rome on Northern England, Sheffield, 1980, Hartley, 1988, p.
547ss. Tácito estabelece um contraste entre a figura como mãe de Boudica e a de Cartimandua, comentando
depreciativamente a sua conduta e as suas relações enquanto esposa, referindo-se ao temperamento adúltero, luxurioso
e selvagem da rainha» (Ann. 12.26.1; Hist. 3.45.1-21). A este respeito: I. A. Richmond, «Queen Cartimandua», JRS, 44
(1954), pp. 43-52; C. de Filippis, «Libido reginae et saevitia. Osservazione sulla figura di Cartimandua in Tacito»,
Rivista di Storia Antica, 8 (1978), pp. 51-62; D. Braund, «Observations on Cartimandua», Britannia, 15 (1984), pp. 1-6;
P. Keegan, «Boudica, Cartimandua, Messalina and Agrippina the Younger: Independent Women of Power and the
Gendered Rhetoric of Roman History», Ancient History, 34/2 (2004), pp. 99-148.
524
subsequentes dez anos; a arqueologia confirma que várias localidades importantes já
estavam a funcionar activamente três anos após a revolta de Boudica.
Entretanto, em Roma, parece que se aprendeu a lição. O novo procurador da
província foi C. Júlio Alpino Classiciano (RIB 12), seguramente um celta e membro da
nova aristocracia provincial que estava integrado na administração imperial, sendo ele
oriundo talvez da região de Treverorum, na Gália; Classiciano chegou a animar os
bretões subjugados a resistir às exacções, acalentando a esperança que o governador
Suetónio Paulino fosse substituído por outro mais benevolente. Classiciano enviou um
relatório negativo sobre Paulino para a Urbs. Nesta, uma comissão dirigida pelo liberto
Policlito (Tácito, Ann. 14.38-39) examinou o caso e, apesar de Paulino ter sido
imediatamente removido do seu cargo, mal surgiu uma oportunidade, viu-se afastado
da província. O governador seguinte, Petrónio Turpiliano, que havia sido cônsul no ano
em que eclodira a revolta, ocupou o posto durante dois anos, aproveitou para melhorar
as condições de vida dos nativos e procurou administrar a Britânia com justiça,
evitando recorrer a medidas drásticas ou violentas, como represálias ou actos
vingativos. Basicamente, Turpiliano actuou com vista a prevenir a eclosão de mais
sublevações.
A Legio XIV, pelo seu comportamento na repressão da insurreição encabeçada por
Boudica, recebeu os títulos honrosos de Martia e Victrix, e a Legio XX, por motivos
similares, o de Victrix. Suetónio Paulino, o terror dos Bretões, veio a ser, de acordo com
certos historiadores modernos, premiado por Nero cinco anos mais tarde, através de
um segundo consulado (embora talvez tenha sido atribuído ao seu filho), e destacou-se
ainda, como figura destacada no famoso e sangrento «Ano dos Quatro Imperadores»
(69 d. C.), optando por apoiar Otão.
A Turpiliano sucedeu Trebélio Máximo, que governou a Britânia entre 63 e 69,
iniciando uma romanização efectiva. Quando, em 74, Júlio Frontino desembarcou na
ilha, a sua governação impulsionou novamente a política neroniana da conquista do Sul
da Britânia (País de Gales). Por outro lado, o corolário dos ímpetos ofensivos romanos
teve lugar a partir de 78 d. C., com a incursão, desta feita no Norte insular, conduzida
pelo governador Agricola (sogro de Tácito, que participou na sufocação da rebelião de
Boudica como tribuno militar) na Caledónia. Para concluir a presdente alínea, resta
ainda nomear um indivíduo relevante para a história romana, que se tornaria
imperador em 79 d. C.: Tito Flávio, o mais velho dos filhos de Vespasiano, que na altura
da revolta de 61, ocupou o posto de tribunus legionus e pode eventualmente ter sido
um elemento-chave na derrota de Boudica: nesse momento histórico, Tito contaria com
22 anos de idade e, apesar de bastante jovem, deixou uma profunda marca na
província; Suetónio conta que lhe foram dedicadas muitas estátuas, e não menor
número de bustos e inscrições na Britânia (Suetónio, 4.1).
525
Herodes-o-Grande, isto provocou imediatamente uma rebelião, que, não tendo a
guarnição local capacidade para a suprimir, foi depois brutalmente jugulada pelo então
legado da Síria, Varo1548.
Céstio Galo formou o exército de campanha em Antioquia: as principais unidades
eram a Legio XII Fulminata, vexillationes de 2000 homens de cada uma das outras
legiões sírias (talvez a III Gallica, a IV Scythica e a VI Ferrata1549), quatro alae e seis
coortes. Os reinos aliados também forneceram forças de apoio, perfazendo 14 000
homens, de acordo com Flávio Josefo. Além disso, viu as suas fileiras engrossadas por
mais indivíduos, inexperientes e sendo essencialmente voluntários oriundos das
cidades por onde o exército romano passou. O efectivo total do exército seria de
aproximadamente 30 000 homens1550. Desconhecemos exactamente quanto tempo
levou a que se mobilizasse e reunisse o conjunto destas forças. Uma coisa é certa: o
primeiro combate da rebelião teve lugar em Maio e a guarnição romana de Jerusalém
foi aniquilada em Setembro. Galo, por seu turno, chegou diante da grande cidade em
meados de Novembro.
Os Judeus não possuíam um exército unificado para defrontar os Romanos numa
batalha em campo aberto. As suas forças consistiam em pequenos grupos altamente
motivados, fiéis aos seus líderes, contando com o entusiasmo e ajuda, em graus
variáveis, da populaça no seu todo. Terá parecido a Galo que não seria necessário mais
do que uma exibição de força para esmagar a sublevação. Rumando para sul desde
Antioquia, alcançou Ptolemais; mandou incendiar e pilhar a cidade abandonada de
Sebulon, que se situava na fronteira setentrional da Galileia. Já depois de Galo
prosseguir a sua marcha, muitos saqueadores que ficaram para trás (uns 2 000, de
acordo com Josefo) foram chacinados pelos Judeus (BJ 2.50). Galo avançou para
Cesareia e despachou um contingente de cavalaria para devastar a área em torno da
vizinha Narbata. Outra vexillatio viajou por mar com o objectivo de tomar Joppa.
Refira-se, aliás, que o exército principal, ao deslocar-se para Ptolemais e, depois,
Cesareia, também tenha sido transportado de barco. Estas tropas não depararam com
uma efectiva oposição. Para a Galileia foi enviada uma vexillatio sob Cesénio Galo
(Caesennius Gallus), legado da Legio XII, onde recebeu bom acolhimento na cidade de
Séforis (Sepphoris); muitos rebeldes que se achavam nesta zona fugiram, mas outros
tentaram manter-se numa forte posição em Asamon, acabando por ser derrotados (BJ
2.511-512).
Ao não encontrar uma resistência concertada, a vexillatio da Galileia juntou-se de
novo a Céstio Galo. O exército marchou então pelo interior de Cesareia até Antipátris,
rumando a seguir para Lydda, onde entrou na estrada principal que ia de Joppa a
Jerusalém. Durante o percurso, reprimiram-se com especial brutalidade alguns focos
sediciosos: Lydda e a cidade vizinha de Aphek foram incendiadas. Ao continuarem o
caminho em direcção a Jerusalém, os Romanos subiram o desfiladeiro em Beth-Horon,
acampando perto do topo, em Gabaon, a cerca de 8-9 km da cidade. Aí foram atacados
no Sabbat e quase sofreram um desastre, caso não chegassem as reservas. Ao mesmo
tempo, os Judeus arremeteram contra o trem de bagagens do exército e capturaram
muitos dos animais de carga (BJ 2.511-512). Os insurrectos tinham cercado as tropas de
Galo, embora ainda representassem uma reduzida ameaça para as mesmas. Já defronte
de Jerusalém, Galo levou a cabo vários tentativas de conquista ao longo de seis dias,
terminando num ataque sobre a Muralha do Templo. Josefo conta-nos que ele esteve
1548
Varo: F. Josefo, BJ 2.39-79
1549
Não sabemos ao certo que legiões se encontravam nesta altura na Síria, na medida em que não temos a certeza
quando é que todas as tropas aí colocadas para a campanha na Arménia foram retiradas. Remetemos o leitor para o
estudo de M. Gichon, «Cestius Gallus’ Campaign in Judaea», PEQ 113 (1981), pp. 39-62. Embora este artigo seja bom em
vários aspectos, muitas das conclusões do autor, em especial a sua cronologia assaz pormenorizada, assentam em
demasiadas conjecturas. Como antigo militar que foi, algumas das ideias do autor mostram-se excessivamente
modernas. Para uma visão objectiva e equilibrada, consulte-se A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War…, pp.85-
87.Colhem-se igualmente dados pertinentes na recente obra de Si Sheppard, The Jewish Revolt AD 66-74, Oxford,
Osprey, 2013, pp. 6-17. Sobre a Primeira Revolta Judaica: A. M. Berlin e J. A. Overman (eds.), The First Jewish Revolt:
Archaeology, History, and Ideology, Londres, Routledge, 2002.
1550
H. Olshanetsky, «The Jewish Revolt and the Struggle in Rome. Contender from the East», Ancient Rome in
Turmoil: the Year of the Four Emperors / Ancient Warfare X.6 (Mar-Apr. 2017), p. 22.
526
perto de ter êxito (BJ 2.540), mas, inesperadamente, Galo decidiu retirar-se da cidade,
o que lhe valeu pesadas baixas durante esse processo. Como H. Olshanetsky referiu,
tendo ele centenas de máquinas de guerra e engenhos de assédio, não se percebe por
que razões desistiu ele de expugnar a cidade1551. A retirada levou a que os Judeus
concluissem que acontecera um milagre, logo tratava-se de um sinal divino, indicando
que a vitéria a eles pertenceria; assim, resolveram perseguir as tropas romanas, o que
cedo transformou a retirada ordenada numa debandada. Note-se que a perseguição se
viu interrompida mais pela vasta quantidade de despojos arrebatados do que por
alguma acção romana. Sobre este episódio dispomos do precioso testemunho de Flávio
Josefo, que deixou uma narração particularmente objectiva, pormenorizada e realista:
«[…] no dia seguinte, ao prosseguir com a sua retirada, Céstio ainda atiçou mais os inimigos
que, ao alcançarem a retaguarda, mataram muitos homens, uma vez que o caminho estava
cercado de ambos os lados, por valas, e encheram os flancos com lanças. Os soldados da
retaguarda não se atreveram a virar para os que se encontravam sobre as suas costas, já que
imaginavam tratar-se de uma multidão infinita; nem tão pouco tentaram resistir à força contra
aqueles que, pelos flancos, os desgastavam e feriam, porque eles [os Romanos] estavam
pesadamente armados e temiam romper a ordem da formação, e porque repararam também que
os Judeus possuíam equipamento ligeiro e conseguiam correr com facilidade, daí sofrerem
muitos males sem lograr ripostar contra o inimigo. Assim, ao longo de todo o caminho, viram-se
fustigados, atingidos ou arrancados das fileiras, tombando no solo. Depois de muitos terem
perecidos, incluindo Prisco, comandante da Legio VI, Longino, um tribuno, e um prefeito de ala
chamado Emílio Jucundo, o exército chegou penosamente a Gabaon, o local do seu anterior
acampamento, onde abandonou grande parte das suas bagagens […] Céstio, com o propósito de
apressar a retirada, ordenou que se deixassem para trás todas as coisas que retardassem a
movimentação do exército: foram então abatidas as mulas, os asnos e outras bestas de carga,
salvo as que transportavam munições e peças de artilharia, por se precisar destas e haver o
receio de que os Judeus as capturassem e utilizassem contra os Romanos. Em seguida, Céstio
conduziu o exército rumo a Beth-Horon»;
«Em campo aberto, os Judeus efectuaram menos ataques, mas, quando os Romanos estavam a
atravessar, apertados, o estreito desfiladeiro […] alguns Judeus puseram-se à frente e
impediram-nos de subir, enquanto outros empurraram a retaguarda pela ravina abaixo, e o
corpo principal, posicionado acima da parte mais estreita da estrada, crivou a coluna [romana]
de projécteis. Nestas circunstâncias, até a infantaria tinha dificuldade em defender-se e a
cavalaria estava numa situação ainda mais perigosa e precária, na medida em que, sob o
bombardeamento dos projécteis, não conseguia avançar ordenadamente pela estrada abaixo,
sendo impossível que as montadas carregassem sobre o inimigo por uma encosta íngreme
acima. De ambos os lados havia penhascos e ribanceiras, pelos quais muitos caíram e morreram.
Como ninguém descobria uma maneira para escapar ou se defender, eles viram-se reduzidos,
impotentes, a lamentos e gemidos de desespero, a que os Judeus respondiam com brados de
guerra e gritos, num misto de satisfação e raiva. Céstio e todo o seu exército teriam quase
certamente sido esmagadaos se não caísse a noite, durante a qual os Romanos aproveitaram
para avançar em direcção a Beth-Horon, enquanto os Judeus que os haviam cercado estavam à
espera que eles aparecessem. Nesta altura, Céstio desistiu de acalentar a esperança de continuar
abertamente a marcha e planeou a fuga. Ao escolher cerca de 400 dos seus soldados mais
valentes, mandou que se colocassem nos telhados das casas, com ordens para transmitir em voz
alta as palavras de senha das sentinelas do acampamento, a fim de convencer os Judeus de que
o todo o exército ainda ali se encontrava. Ele próprio [Céstio], com o grosso do exército,
marchou silenciosamente ao longo de três milhas e meia. Ao amanhecer, quando os Judeus se
deram conta que o aquartelamento romano estava vazio, arremeteram contra os 400 homens
que os tinham enganado, matando-os rapidamente […] depois partindo no encalço de Céstio.
Este já havia ganho considerável avanço em relação ao inimigo; ao longo da noite e após o raiar
do sol, ao apressarem o ritmo da sua retirada aconteceu que, em resultado de um pânico
terrível, [os Romanos] abandonaram a sua artilharia e catapultas, além da maior parte das
outras máquinas de guerra, as quais os Judeus se apossaram, utilizando-as contra os homens
que tinham sido deixados para trás […] [Os Judeus] sofreram poucas baixas, ao passo que os
Romanos e os seus aliados perderam 5 300 homens de infantaria e 480 de cavalaria» (BJ 2.542-
555).
1551
Cf. «The Jewish Revolt and the Struggle in Rome…», p. 22.
527
Estamos perante um dos melhores relatos conhecidos de uma refrega, escrito por um
autor com formação e experiência militar 1552. Flávio Josefo descreveu quais foram as
diferentes unidades envolvidas e os problemas específicos com que a cavalaria teve de
lidar, encontrando-se num terreno muito acidentado e enfrentando os Judeus munidos
de equipamento ligeiro. Josefo dedicou também vários comentários sobre a motivação
e as decisões de Galo, reportando-se à aplicação de medidas correctas sob o ponto de
vista militar (incluindo até um estratagema clássico para ocultar uma retirada), antes
de o pânico se alojar nas tropas romanas. Evocou, de igual modo, as características do
terreno, as armas, o estrépito e a confusão que imperaram nos confrontos, oferecendo
um convincente retrato psicológico de um prélio em que uma legião se mostrou incapaz
de adoptar as suas técnicas de combate e a sua perícia contra o adversário. Por último,
o autor registou o número de baixas sofridas pelos Romanos e os nomes dos seus
oficiais superiores que perderam a vida. A campanha redundou, pois, num autêntico
fracasso, perdendo os Romanos 5 780 homens e muito material, incluindo elevado
número de engenhos de assédio.
Após esta descrição sumária, passemos a alguns comentários: a razão para a súbita
retirada de Galo diante de Jerusalém, não obstante Josefo afirmar que ele se encontrou
prestes a a ser bem sucedido, deixou frequentemente vários estudiosos perplexos 1553.
Um dos motivos pode ter-se relacionado com o facto de os Romanos não perceberem
que os líderes judeus estavam bem mais firmes nos seus propósitos do que se
imaginava. No entanto, dois factores parecem ter influenciado Galo: primeiro, nem
todo o seu exército provou ser digno de confiança. A sua maior unidade, a XII
Fulminata veio a perder a sua aquila nesta campanha (Suetónio, Vespasiano, 5),
durante a retirada ou, talvez, no decurso do ataque que os Judeus efectuaram no
exterior de Jerusalém, no Sabbat (BJ 2.517). Recorde-se que a XII Fulminata esteve,
anos antes (62 d. C.), envolvida no débâcle de Lúcio Cesénio Peto (Caesennius Paetus)
na Arménia, onde foi derrotada pelos Partos (Tácito, Ann. 15.10). É possível que a
unidade não se tivesse refeito deste revés, ou então que os abusos ou um fraco comando
que conduziram ao mesmo não se achariam devidamente resolvidos no início da
Primeira Guerra Judaica. A. K. Goldsworthy salientou, e bem, que «Jamais podemos
partir do princípio de que as unidades do exército romano eram, uniformemente, de
alta qualidade»1554.
A isto somavam-se os contingentes de voluntários irregulares que se recrutaram em
diversas cidades hostis aos Judeus: acontece que estes homens, na sua maioria, teriam
reduzido ou até nenhum treino militar, revelando-se mais atreitos a saquear do que a
combater (BJ 2.502-6). A sua única utilidade radicaria em fazer com que o exército de
Céstio Galo parecesse maior. O uso destas tropas realça a fraca preparação da
guarnição da Síria e, possivelmente, de muitos exércitos provinciais para a participação
imediata em conflitos armados em larga escala; segundo, afloremos a questão do
aprovisionamento. Josefo oferece poucos informes acerca da organização logística do
exército de Céstio Galo. Pode ter sido abastecido via maris, quando esteve em Cesareia,
1552
Para mais detalhes, veja-se T. Rajak, Josephus.The Historian and his Society, Londres, 1983, pp. 144-173. Com
efeito, o principal relato literário antigo sobre a Primeira Guerra Judaica é da sua autoria, uma vez que se encontrava
também numa posição privilegiada para descrever o conflito, Josefo ocupara inicialmente o posto de general, nomeado
pelos rebeldes e lutado contra os Romanos; era ele quem estava a comandar a cidadela de Jotapata, cercada por
Vespasiano. A certa altura, o futuro imperador aceitou a rendição de Josefo, que se escondera numa gruta com um
grupo de seguidores, tendo todos eles decidido suicidar-se em vez de se entregarem. Mas Josefo convenceu os seus
companheiros a tirar à sorte quem deveria matar os outros; ficou combinado que ele e mais um seriam os últimos a pôr
cobro à vida, mas ambos resolveram que a atitude mais razoável seria capitular. Josefo foi conduzido à presença de
Vespasiano, a quem declarou com lisonja que se tornaria um dia imperador, palavras que mais tarde levariam à
libertação de Josefo e a um trastamento de favor quando a «profecia» se cumpriu. O historiador judeu esteve no quartel-
general de Tito durante as operações de assédio a Jerusalém e, por isso mesmo, oferece-nos uma detalhada descrição do
exército romano em campanha, sob o Principado. Ele redigiu a sua obra sobre a Rebelião Judaica em Roma, sob o
patronato de Vespasiano e Tito. Na mesma, Josefo revela-se extremamente hostil para com os líderes da insurreição,
mas ao mesmo tempo descreve com certa satisafação os actos heróicos de muitos dos combatentes judeus e os reveses
que infligiram aos Romanos. Mais do que em qualquer outro conflito, afora as guerras civis, é possível estudar a Revolta
Judaica sob a perspectiva de ambos os lados beligerantes, não simplesmente do ponto de vista dos vencedores romanos.
1553
Como, por exemplo, S. G. F. Brandon, «The Defeat of Cestius Gallus in AD 66», History Today 20 (1970), pp. 38-46.
1554
The Roman Army at War…, p. 87.
528
mas a verdade é que não há qualquer indicação sobre esta eventualidade. Mas fica claro
que Galo só deve ter levado uma reduzida quantidade de água e comida com o seu trem
de bagagens na marcha a partir dessa localidade rumo a Jerusalém. Uma vez chegado
ao destino, os bandos de sublevados que estavam nas imediações tornaram
extremamente difícil a obtenção de mantimentos. A referida captura de elevado
número de animais de carga pelos Judeus representou uma significativa perda
relativamente às provisões disponíveis1555. Ao tomarmos em consideração estes dois
factores, parece questionável que o exército de Galo estivesse nas condições ideais para
montar o cerco de uma cidade como Jerusalém. Um Júlio César talvez arriscasse e
vencesse ou, então, poderia sofrer uma derrota ainda mais estrondosa.
Lembremos que o exército romano só compreendia uma legião completa, juntamente
com várias vexillationes. Provavelmente, muitas unidades deviam possuir efectivos
substancialmente diminuídos em tempo de paz, apenas conseguindo contribuir com
uma escassa proporção das suas tropas numa campanha que se tivesse de organizar em
determinada altura, sem demora. Ademais, as funções de policiamento exercidas pelo
exército nas províncias orientais levavam igualmente a que múltiplos destacamentos de
pequeno tamanho se vissem dispersos por várias zonas, aspecto que B. Isaac realçou 1556.
Quiçá não fosse possível nem desejável fazer regressar estes destacamentos às
unidades-mães em momentos de crise. Outro aspecto que limitou as dimensões do
exército de Galo relacionou-se com o número de animais de tracção e para o transporte
das bagagens disponível para formar o seu trem de abastecimento 1557.
Ambos os factores restringiram certamente o tamanho da força que ia partir em
campanha dentro em breve. O exército que Galo conduziu contra Jerusalém não estava
preparado para uma guerra em grande escala e prolongada, ao contrário do exército
comandado por Tito, quatro anos mais tarde. As unidades sob o mando de Galo tinham
(importa repetir) efectivos incompletos, soldados inexperientes e sem uma sólida
moral. O seu sistema de aprovisionamento não reunia condições adequadas para
manter as tropas no teatro de operações numa campanha de longa-duração.
A marcha sobre Jerusalém não foi propriamente uma operação militar de vulto para
assediar a cidade, mas antes numa exibição do poder de Roma: tratou-se de um bluff,
com a intenção expressa de persuadir os rebeldes e os potenciais sediciosos de que
Roma era invencível.No começo de uma rebelião, se os Romanos manifestassem
inactividade e falta de capacidade de reacção, os revoltosos poderiam interpretar este
comportamento como um sinal de fraqueza. Ora se os últimos estivessem a somar
alguns sucessos, havia toda a probabilidade de mais gente aderir ao levantamento. Em
66 d. C., ao longo da sublevação, ao que se julga, só uma proporção relativamente
pequena esteve envolvida de maneira activa contra Roma. A massa do povo não se
encontrava comprometida com alguma causa, mas devia sentir-se inclinada a juntar-se
ao lado que parecesse o mais forte1558. Consequentemente, quanto mais tempo os
Romanos demorassem a actuar antes de suprimir a revolta, mais numerosos se podiam
tornar os rebeldes.
A mobilização de um exército bem preparado e abastecido, suficientemente poderoso
para travar uma guerra em larga escala, se necessário, era algo que requeria bastante
tempo, o que deixava espaço para que uma rebelião ganhasse mais solidez e
consistência. Assim, uma reacção célere dos Romanos, ao enviarem tropas,
independentemente de quais fossem, podia lograr suprimir a rebelião numa fase ainda
incipiente, ao intimidar os revoltosos com uma demonstração de força, mas sem
implicar poucos confrontos concretos.
Foi isto, aliás, que parece ter sucedido, em circunstâncias semelhantes, na Judeia em
4 a. C. (BJ 2.39-79): nos distúrbios que se seguiram à morte de Herodes-o-Grande, o
prefeito romano Sabino viu-se sitiado em Jerusalém; a legião sob o seu comando
1555
Veja-se B. Bar-Kochva, «Seron and Cestius Gallus at Beith Horon», PEQ 108 (1976), pp. 13-21, esp. 18.
1556
The Limits of Empire…, pp. 101-160.
1557
A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War…, p. 88.
1558
C. E. Callwell, Small Wars…, pp. 71-83.
529
atacou os rebeldes mas não conseguiu pôr termo ao cerco. Mal esta notícia foi
comunicada a Varo, o governador da Síria, este não tardou em mobilizar as suas duas
legiões e quatro alae, além de convocar as tropas aliadas1559. Depois, seguindo
essencialmente pelo mesmo itinerário que Galo mais tarde utilizou, marchou sobre
Jerusalém. Quando o seu exército se aproximou, os rebeldes dispersaram, mas 2 000
foram capturados e executados. Pouco depois, Varo recebeu um relatório aludindo a
uma concentração de 10 000 insurrectos em Idumeia, e ele, sem mais delongas,
avançou rapidamente para defrontá-los, os quais de imediato se renderam. Ao deixar a
mesma legião de guarnição em Jerusalém, Varo retornou então a Antioquia. A
campanha desenrolou-se em ritmo acelerado e envolveu poucos combates. A velocidade
com que Varo regressou a Antioquia sugere que o exército não estava logisticamente
apetrechado para uma longa campanha. Neste caso, a exibição do poder romano bastou
para quebrar a vontade do inimigo em lutar. Porém, se Varo tivesse deparado com uma
resistência tenaz, o seu exército talvez não fosse capaz de lidar com a mesma. O
comandante romano necessitaria de estabelecer um equilíbrio entre agir com rapidez
antes de a revolta crescer e atacar com suficiente força para a esmagar de uma
assentada.
Céstio Galo, por diversos motivos, não conseguiu atingir tal equilíbrio e foi derrotado.
Como vimos, em 9 d. C., Varo reagiu de novo a uma revolta na Germânia, ao marchar
imediata e imprudentemente contra o inimigo, mas nesta expedição comandou um
exército que não estava minimamente preparado para a guerra 1560. O desastre que daí
resultou foi, portanto, muito maior do que o sofrido por Céstio Galo.
Em 66, a Judeia não era uma província recém-conquistada, e Josefo refere-se amiúde
às dificuldades dos rebeldes em arranjar equipamento militar (BJ 2.576,583). Os
Judeus nunca conseguiram reunir um exército de campanha capaz de enfrentar os
Romanos, sendo as suas tropas especialmente vulneráveis à disciplinada cavalaria
romana num combate campal (BJ 3.12.28). Fora das suas numerosas praças-fortes, as
suas tácticas eram, pois, geralmente as típicas da guerrilha. Como os Judeus eram
incapazes de empreender uma grande acção ofensiva, a iniciativa passava para os
Romanos depois dos acontecimentos que haviam despoletado uma revolta. A resposta
romana consistia em reunir um exército sem demora e marchar pela Judeia, buscando
um choque significativo com os revoltosos, situação em que se podiam explorar as
vantagens da sua organização, disciplina e equipamento. Embora as áreas por onde
passava en route fossem brevemente investigadas, o exército marchava directamente
sobre a cabeça da rebelião e do país. Se Jerusalém caísse depressa, há razões para
acreditar que a revolta entraria em colapso e tudo o que restaria seria fazer face a uns
quantos bandos de fanáticos.
530
de frases e trechos extraídos da sua obra Agricola 1562 para que se lance luz sobre
vertentes que interessam particularmente para a nossa abordagem. O Agricola
começou a ser redigido por Tácito por volta do ano 97 d. C., pelo que se trata de uma
das suas primeiras obras, para muitos estudiosos, consiste num texto inclassificável,
uma vez que se questionam se é história biográfica ou uma oração de cariz funerário.
Basicamente, consideramos que nos situamos ante uma biografia histórica laudatória e,
acima de tudo, um texto revelador de pietas. Assim, cabe usar de cautela ao lidarmos
com as sofisticadas «armas» retóricas de Tácito quando, por exemplo, escreveu: «O que
os meus predecessores trataram, substituindo com a sua eloquência a falta de dados
fidedignos, eu fundamentar-me-ei na autenticidade dos factos« (Agr. 10.1), já que,
como alguém afirmou, o estilo de Tácito é precisamente uma das suas ferramentas
históricas.
A «autenticidade dos factos» não mereceu tantos cuidados ao autor no Agricola - e,
ademais, para maior infortúnio, as parcelas relevantes das suas Historiae não
chegaram aos nossos dias1563 - que menciona apenas catorze localidades e
agrupamentos humanos específicos da Britânia: cinco referências reportam-se aos
populi 1564(Ordovices, Silures, Brigantes, Boresti e os habitantes da Caledónia), quatro
a ilhas (Mona/Anglesey, Thule, Orcades e Hibernia/Irlanda), três a rios (Clota,
Bodotria e Taus), uma a um porto (Portus Trucculensis) e outra à colina Mons
Graupius1565.
Os guerreiros do líder caledónio Calgacus enfrentaram uma força regular romana
que agia de acordo com os seguintes parâmetros, que anteriormente já referimos:
primeiro, derrotar o inimigo de qualquer modo, normalmente sendo o último recurso
travar batalha em campo aberto1566; segundo, uma vez conseguida a derrota ou a
capitulação do antagonista (com os correspondentes acordos e tomada de reféns),
construíam-se fortes, caso se tencionasse concretizar uma anexação definitiva. Estes
objectivos atingiam-se, de acordo com Tácito, mediante uma jurisdicção castrense que
era «expedita, algo tosca» e actuava «correntemente de maneira sumária», deixando de
parte as astúcios do foro, dando lugar para supor que «aos génios militares lhes falta
sagacidade» (Agr. 9.2). Os habitantes do Norte da Britânia encaravam-nos, mesmo
antes da chegada de Agrícola para assumir o mando provincial, como «gente frouxa e
cobarde [que] lhes apanhava as casas, roubava os seus filhos, lhes impunha levas, como
se unicamente pela sua pátria não soubessem morrer». Tácito diz não saber com
exactidão se os primitivos habitantes bretões eram indígenas ou imigrantes – para o
autor, a Britânia era a maior das ilhas conhecidas pelos Romanos -, mas a respeito dos
que viviam na Caledónia, não duvidou em atribuir-lhes uma origem germânica, por
causa dos seus cabelos louros e forte compleição física (Agr. 11.1-2).
Ao longo do século I d. C., a Britânia fora um cenário recorrente para promover a
carreira de romanos ambiciosos: assim, por exemplo, o próprio imperador Cláudio
logrou ganhar reputação (até aí quase nula) na Britânia (Suetónio, Divus Claudius,
17.1), e Vespasiano obteve prestígio militar na ilha, sob o reinado de Cláudio, ao
comandar a legio II Augusta, antes de se tornar princeps1567. Agrícola, nado em 40 da
nossa era, havia sido tribunus laticlavus com 19 anos de idade (58-61 d. C.), numa das
legiões que serviu na Britânia no tempo do governador Suetónio Paulino, aí se
1562
Para o texto em latim, baseámo-nos H. Turneaux, Cornelii Taciti de Vita Agricolae, Oxford, 1898.
1563
H. Mattingly assinalou o seguinte: «Writing for the special purpose of biography, he [Tácito} clearly omits much
that must have figured in his Historiae»: cf. Tacitus on Britain and Germany, Harmondsworth, 1954 (1ª edição 1948),
p. 17.
1564
À semelhança do que se verifica na literatura histórica da Hispânia, na da Britânia alguns autores continuam a
empregar o termo tribu incorrectamente, para se reportarem aos grandes agrupamentos humanos. Cf. D. J. Breeze,
«Why Did the Romans Fail to Conquer Scotland?», Proceedings of the Society of Antiquaries of Scotland, 118 (1988), p.
13.
1565
O porto, o Mons Graupius e o populus dos Boresti são os que mais dúvidas suscitam quanto à sua localização exacta.
1566
Segundo o ideal que Tácito oferece, «[na] batalha, o mais valoroso é quem arrebata os despojos», e se há mais
«ímpeto nos amparados pela fortuna», existe «mais firmeza nos abandonados por ela».
1567
E. Birley recolheu exemplos de militares de elevado estatuto que foram enviados para governar a Britânia no
decurso dos séculos I e II d. C.: cf. The Fasti of Roman Britain, Oxford, 1981, pp. 390-395.
531
encontrando quando, no ano 60, eclodiu a revolta encabeçada por Boudicca1568. Neste
momento histórico, nas palavras de Tácito, a Britânia achava-se numa situação
extremamente crítica e convulsa, já que a violência campeava por quase todo o lado:
«veteranos mortos à punhalada, colónias incendiadas [o incêndio de Colchester],
unidades desbaratadas [o desastre da legio IX]». Antes tais circunstâncias, os romanos
lutavam «pela sobrevivência, embora depois o tenham feito pela vitória».
Consequentemente, Agrícola «aprendeu os primeiros rudimentos da vida militar na
Britânia», numa fase assaz complicada e periclitante. Aproveitou a oportunidade,
adquirindo «técnica, experiência e estímulos» que propiciaram que no seu ânimo se
alojasse bem fundo o «desejo da glória militar». Neste sentido, não era de estranhar
que Tácito afirme que Agrícola tinha um instinto especial para escolher os sítios
apropriados para a construção de acampamentos e fortes (Agr. 22.2). Imediatamente
antes do seu mandato como governador provincial na Britânia, Agrícola pôs-se do lado
de Vespasiano na guerra civil de 68-69, e liderou, a mando de Muciano, a legio XX na
primeira parte do ano 70.
Sob as ordens do governador Vétio Bolano, soube «reprimir a sua própria energia e
ardor para não se exceder», uma vez que Bolano governava «com mais suavidade do
que costumava ser habitual numa província tão indómita» (Agr. 8.1) e, com a legio XX
Valeria Victrix (provavelmente em Wroxeter), participou nas campanhas chefiadas por
Petílio Cereal (Petilius Cerealis) contra os Brigantes. As virtudes mavórticas de
Agrícola não tardaram a revelar-se (Agr. 8.2). Por último, cabe ter em conta que,
previamente á sua nomeação para a Britânia, Agrícola já havia sido governador da
Aquitânia, onde actuara de maneira eficaz, considerando ele «insignificante vencer e
vergonhoso ser vencido». Agrícola tornou-se cônsul e pontifex com 36 ou 37 anos (76-
77 d. C.).
Quanto aos indígenas, os bretões baseavam a sua força militar na infantaria. No
entanto, como nos diz Tácito, eles também pelejavam a partir de carros de guerra (na
batalha do Mons Graupius estes aparecem, como adiante se verá), sendo o nobre o
auriga e avançando os seus clientes à frente, em atitude de combate. Tácito também
conta que noutra época eles obedeciam a reis, mas que durante o mandato de Agrícola
se viram arrastados por ambições facciosas, cada qual pretendendo disputar a primazia
e subjugar os demais, mas acabando por sair todos vencidos (Agr. 12.1-2). No que toca
aos recursos naturais, o biógrafo romano afirma que o solo era fértil e as colheitas
tinham uma maturação tardia, crescendo com rapidez devido à humidade. Havia ouro,
prata e outros metais1569.
Os auctótones, uma vez submetidos, acatavam docilmente as levas, os impostos e
demais imposições derivadas da ocupação romana, desde que não sofressem maus
tratos. Em geral, admitiam a obediência, mas não a escravidão (Agr. 13.1); quando o
legado se ausentava, «os bretões comentavam entre si os males da sua escravidão;
comparavam as respectivas humilhações e irritavam-se ao comentá-las», já que «o
legado usava de violência contra as suas pessoas e o procurador extorquia os seus
bens», sendo tão desastrosa «para os súbditos a discórdia entre os governantes como a
concórdia dos seus esbirros» (Agr. 15.1-2). Como se isto não bastasse, os centuriões do
governador e os libertos ao serviço do procurador (chamados, com despeito, «servos«
por Tácito) uniam a violência às injúrias: «Nada se podia subtrair à sua avidez e
capricho» (Agr. 15.2-3). Quando os bárbaros aprendiam a condescender com os vícios
sedutores, o soldado, acostumado às campanhas, degenerava com a inactividade.
Pouco antes da chegada de Agrícola como governador, os Ordovices («combatentes
do martelo»), que residiam noNoroeste de Gales, destroçaram quase por completo uma
unidade de cavalaria romana (Tácito, Ann. 12.37). Agrícola reagiu, aniquilando
praticamente todo o populus («conforme foram os primeiros resultados, os outros ver-
se-iam submetidos pelo terror», tal era o raciocínio de Agrícola: Agr. 18.3), genocídio
1568
E. Birley, «Britain under the Flavians, Agricola and its Predecessors», Durham University Journal, 7 (1945-46), pp.
79-84.
1569
Os outros metais, que Tácito não indica, eram o estanho, o chumbo, o ferro e o cobre. O oceano Atlântico, por seu
turno, dava pérolas (Agr. 12.5-6)
532
escassamente documentado a nível arqueológico, e dirigindo-se em seguida rumo a
Mona, ilha de druidas, cobre e cereais (e portanto, fonte de tributos). Resolveu atacar
de súbito e obteve a rendição dos indígenas. Com este começo, Agrícola ganhou fama
(Agr. 18.5).
Ao conhecer relativamente bens os sentimentos das gentes da província, e sabendo
que as armas eram pouco úteis se secundadas por injustiças, Tácito afirma que o
governador decidiu suprimir as eventuais causas da guerra, principiando por ele e os
seus, não delegando assuntos públicos a libertos ou escravos, perdoando as infracções
menores e castigando severamente as graves. Nem sempre exigia a punição. As mais
das vezes, conformava-se mais com o arrependimento dos infractores (Agr. 19.1-3);
tratava de suavizar as exacções de trigo e do tributo com equidade nas cargas fiscais,
abolindo a prática de expedientes para obter lucro, o que os auctótones toleravam mais
penosamente do que o próprio tributo, na medida em que os bretões subjugados se
viam amiúde coagidos, através de burlas e outros esquemas fraudulentos, a comprar
até o seu próprio trigo (Agr. 19.4).
Se bem que Agrícola não desse tréguas e saqueasse os territórios com incursões-
surpresa, quando aterrorizava e submetia o inimigo, tentava mostrar as vantagens da
paz. Desta forma, muitos populi que haviam lidado com Roma de igual para igual
entregaram reféns, depuseram a sua ira e ficaram rodeados de guarnições e castra
(Agr. 20. 1-3).
Agrícola incentivava usualmente os seus milites, estimulando a sua auto-estima, em
vez de exercer coacção, ademais, iniciava os filhos dos chefes locais nas artes liberais.
Preferia o talento natural dos bretões às técnicas aprendidas dos gauleses. Assim, os
que antes repudiavam a língua latina, deixavam-se agora seduzir pela sua eloquência,
pelo vestuário (haja em vista a toga) e pelos encantos dos vícios, dos banhos e
banquetes, a tal ponto que Tácito concluiu:
«Eles, ingénuos, chamavam civilização ao que constituía um factor da sua escravidão» (Agr.
21.1-2).
A primeira campanha de Agrícola 1570, enquanto governador, sucintamente atrás
mencionada, ainda que se desenrolando longe das terras caledónias, estabeleceu as
pautas que norteariam a sua actuação nos anos seguintes. A segunda campanha
realizou-se possivelmente contra os mais nortenhos dos Brigantes 1571; ao mesmo tempo,
o governador dedicou-se também a consolidar conquistas anteriores 1572.
***
533
diplomas não facultam uma cobertura integral para o exército da província. Por
exemplo, uma tal ala Augusta inumou dois dos seus soldados em Lancaster (RIB 606,
inscrição que se perdeu; e Britannia 37, 2006, 469ss.), provavelmente durante o
período Flávio; se os indivíduos foram desmobilizados das fileiras sob Trajano, eles
devem ter surgido mencionados num diferente diploma, até hoje não encontrado. De
igual modo, a ala II Asturum, que desaparece do «mapa» no espaço temporal entre a
sua presença na Panónia e a sua aparição na Britânia durante o reinado de Adriano,
pode muito bem haver desembarcado na ilha com P. Cereal em 71 d. C.
Algumas destas unidades de cavalaria viram-se recompensadas pela sua meritória
conduta. Os soldados da ala Vettonum, que se compunha de homens recrutados
originariamente entre os Vettones, no Centro da Hispânia, obtiveram a concessão em
bloco da cidadania romana, decerto pela sua bravura no decurso dos primeiros anos da
invasão da Britânia (o militar objecto de comemoração em Bath, Lucius Vitellius
Tancinus, parece que tomou o seu nome romano de L. Vitellius, o colega do imperador
Cláudio no cargo de censor em 48 d. C.; RIB 159). As tropas da ala Petriana foram
agraciadas com a mesma recompensa, mas antes de chegarem à Britânia. É de crer que
constituiram um dos «regimentos» que acompanharam P. Cereal em 71; a ala
Sebasiana foi outra.
A ala Classiana também recebeu a cidadania: formada em princípio na Gália, mais
tarde auto-intitulou-se ala Gallorum et Thracum Classiana, sem dúvida para sublinhar
as suas origens gaulesas depois de um influxo de recrutas trácios. Estas três unidades
tiveram o direito de adicionar as letras c.R. a seguir à sua denominação, assim
indicando que cada uma era uma ala civium Romanorum (ala de cidadãos romanos).
Em determinado momento, a ala Classiana adquiriu igualmente os títulos honoríficos
invicta bis torquata/«invencível, duas vezes condecorada» (CIL 11, 6033), mas
desconhecemos as ocasiões em que recebeu as duas condecorações.
A infantaria era sempre mais numerosa do que a cavalaria. Os três diplomas mais
antigos trajânicos oferecem de novo uma ideia mais ou menos razoável do exército de
Agrícola, contanto que usemos de certa cautela. Isto porque , não obstante a maioria
das unidades nomeadas pudesse já estar há muito estabelecidas na província, uma das
coortes referidas no chamado diploma Malpas, de 103 d. C. (cohors I Alpinorum) foi
transferida para a Britânia poucos anos antes. O mesmo talvez se aplique a uma
segunda unidade (cohors II Thracum equitata), se o seu nome foi de facto
correctamente restaurado no diploma alemão de 98 d. C. Ademais, há uma eventual
possibilidade de nomes de unidades duplicados, para os «regimentos» formados em
quantidade nas regiões de recrutamento, como a Trácia e a Península Ibérica: é bem
possível, por exemplo, que existisse em simultâneo uma segunda cohors II Asturum
equitata na Germânia Inferior, mas tal não foi o caso da cohors II Thracum1573.
Coloca-se mais um problema, para todos aqueles que tentem calcular o tamanho do
exército de Agrícola, dado que talvez algumas coortes dispusessem de duplo efectivo,
inovação que ocorreu no período Flávio. Por fim, à semelhança das alae, não colhemos
grandes notícias de várias unidades: em particular, apesar de a cohors IIII
Delmatarum surgir num dos nossos diplomas, nada sabemos sobre a história anterior
das cohortes I e II Delmatarum, que aparecem subsequentemente na Britânia e aqui
poderiam também estar aquarteladas (pelo contrário, a cohors III Delmatarum
encontrava-se estacionada na Germânia).
Podemos avançar com a estimativa de que o exército de Agrícola englobaria 20
coortes: cohors II Asturum (equitata), cohors I Baetasiorum, cohors III
Bracaraugustanorum, cohors I Celtiberorum, cohors I Cugernorum, cohors IIII (IV)
Delmatarum, cohors I Frisiavonum, cohors I Hispana (equitata), cohors I Lingonum
(equitata), cohors II Lingonum (equitata), cohors I Morinorum, cohors I Nerviorum,
cohors II Nerviorum, cohors II Pannoniorum, cohors I Tungrorum, cohors II
Tungrorum (equitata), cohors I Vangionum (equitata), cohors I fida Vardullorum
(equitata) e cohors II Vasconum.
1573
D. B. Campbell, Mons Graupius. Rome’s battle at the edge of the world, Oxford, 2010, p. 18.
534
Novamente, tal como as alae, não dispomos de firmes evidências quanto à presença
destas unidades na Britânia no momento histórico em questão. No entanto, parece
garantido que a cohors I Hispanorum enterrou um dos seus soldados, chamado
Ammonius, no forte de Ardoch (RIB 2213), por volta desta altura. E há um caso
circunstancial do envolvimento da cohors II Asturum na batalha de Mons Graupius
(como adiante veremos). Além disso, Tácito menciona especificamente a presença de
duas coortes de tungros no exército de Agrícola, que correspondem certamente às duas
cohortes Tungrorum dos diplomas outorgados no tempo de Trajano; um efeito, uma
delas deixou testemunhos materiais da sua posterior ocupação da fortificação em
Vindolanda. Tácito também se refere a quatro coortes batavas (Agr. 36), pelo que cabe
acrescentar as cohortes I e II Batavorum, que se atestam pela primeira vez na Panónia,
em 98 d. C., mas que terão estado acantonadas na Britânia cerca de uma década antes,
juntamente com as cohortes III e VIIII Batavorum, ambas tendo deixado registos
escritos descobertos em Vindolanda.
No terceiro ano, coincidindo com a 15ª aclamação imperial de Tito (ano 79), Agrícola
avançou talvez até ao rio Tay1574. Tácito refere que nenhum dos fortes implantados por
Agrícola foi expugnado por ataques inimigos ou abandonado por meio de capitulação
ou fuga da guarnição, isto porque em caso de assédio, as tropas romanas dispunham de
víveres mais do que suficientes. Desta maneira, os antagonistas tornavam-se presas da
raiva ou do desespero, ao não poderem efectuar ao seu gosto as típicas arremetidas
invernais de rapina. Em circunstâncias pautadas por alta tensão, Agrícola devia ser
especialmente rigoroso: Tácito escreve que alguns o consideravam muito duro nas suas
reprimentas, acrescentando que ele se mostrava amável para com os bons e desabrido
em relação aos maus, chegando mesmo a enfurecer-se abertamente (Agr. 22).
Na quarta campanha, Agrícola velou pela manutenção do território conquistado.
Escrevendo anos depois dos factos relatados, Tácito nota que se o valor do exército e a
glória do nome romano lhe tivessem permitido, Agrícola ter-se-ia detido na linha
Clyde-Forth (Agr. 23), onde, décadas mais tarde, se ergueria a Muralha de Antonino
(antes havia apenas várias guarnições). Nesta quarta campanha, Gneu Júlio Agrícola
chegou pelo leste até ao rio Tay. Em regra, presume-se que o avanço pelas terras baixas
escocesas se produziu sem haver necessidade de haver sérios confrontos armados,
graças à disposição de vários populi indígenas, como o dos Votadini e, em menor grau,
os Selgovae1575.
No quinto Verão, depois de numerosos recontros a seguir à passagem com os navios
a território de conflito, Roma submeteu povos desconhecidos e colocou guarnições na
zona que dava para a Hibernia (actual Irlanda), onde Agrícola, aliás, acolheu um dos
seus «reis» na sequência de uma revolta intestina, retendo-o, sob uma aparência de
amizade, para quando a ocasião chegasse (Agr. 24). Desde 80 a 82 d. C., Agrícola
aplicou-se a consolidar a dominação do território recém-conquistado, estabelecendo
fortes no Sudoeste da Caledónia. Além disso, mais a norte da linha Forth-Clyde,
mandou erguer vários castra junto às saídas dos desfiladeiros montanhosos do Sul de
Perthshire1576, com o objectivo bastante claro, ainda que debatido actualmente, de
completar a ocupação da totalidade do solo caledónio na principal das ilhas britânicas.
Com efeito, Agrícola progrediu para norte do rio Tay, acompanhado, ao longo da faixa
costeira, pela frota de apoio, e nesta altura verificou-se uma reacção hostil dos
1574
Outros estudiosos sustentaram que o rio em questão seria o Tyne ou o Teith. Em qualquer dos casos, torna-se difícil
admitir que Tito quisesse deter-se na linha do Forth-Clyde, como defendeu D. J. Breeze («Why Did the Romans Fail…»,
p. 16).
1575
G. Ritchie e A. Ritchie, Scotland. Archaeology and Early History, Edimburgo, 1999 (2ª edição), p. 121.
1576
De acordo com os arqueólogos, a denominada Gask Frontier foi construída nos anos 70 da nossa era, mais do que
em meados da década de 80, vendo-se depois abandonada em 86 d. C. Veja-se, a propósito, D. J. Wooliscroft, The
Roman Frontier on the Gask Ridge, Perth & Kinross. An Interim Report on the Roman Gask Project, BAR 335, Oxford,
2002.
535
caledónios. Entretanto, em 13 de Setembro de 81, Tito faleceu e ascendeu ao trono
imperial o seu irmão Domiciano.
A sexta campanha levou-se a cabo em torno dos povos situados para lá do Forth (os
Vacomagi e os Taexali)1577. A invasão da Caledónia envolveu, num cálculo moderado,
cerca de 42.500 efectivos do exército romano. Os auctótones dos locais entre o Tay e o
Forth ficaram, então, numa situação assaz incómoda, devido às oscilações das alianças
internas1578. O governador receava que os povos para lá do Forth provocassem uma
rebelião generalizada, pelo que resolveu contar com a estreita colaboração da frota a
acompanhar a sua expedição terrestre, a primeira explorando os portos desde
provavelmente Cramond, perto da actual Edimburgo (capital da Escócia). Tácito relata
que, pela boca dos prisioneiros, a frota deixava os bretões muito consternados.
Sentindo-se acossados, os povos da Caledónia prepararam-se para a guerra, vindo a
atacar diversos fortes romanos localizados a norte do Forth: movimentavam-se em
várias colunas e, por esta razão, Agrícola organizou as suas tropas em três corpos
distintos1579. Ao inteirarem-se das actividades dos invasores, os caledónios investiram, a
coberto da noite, com muitos guerreiros, sobre a legio IX (que fora derrotada durante a
revolta de Boudica; Agr. 26). Depois de instantes marcados pela surpresa e confusão,
travou-se uma renhidas porfia no acampamento romano (quiçá situado no local
chamado Victoria nas fontes clássicas); Agrícola ordenou que os ginetes e os infantes
mais velozes caíssem sobre a retaguarda e que todos desatassem a gritar com a máxima
intensidade. A sorte darefrega mudou então de lado, e se os pântanos e os bosques não
tivessem protegido os fugitivos caledónios, este episódio talvez culminasse , segundo
Tácito, com a vitória definitiva. Os milites, galvanizados pelo triunfo, estavam prontos
a avançar até aos confins setentrionais da Britânia, enquanto os bretões acreditaram
que haviam saído vencidos não pela coragem, mas pela astúcia do comandante inimigo
– adulação evidente de Tácito ao seu sogro -, daí que continuassem orgulhosamente a
armar os seus jovens, ao mesmo tempo que levavam as suas mulheres e crianças para
sítios abrigados e seguros; por fim, mediante assembleias e sacrifícios, ratificaram uma
coligação dos populi.
A sétima campanha na Caledónia principiou com a morte de um filho de Agrícola,
que nascera no ano anterior. Tácito assinala que para a tristeza um dos remédios era a
guerra (Agr. 29.1) e foi por este via que o governador seguiu: em 83 d. C. ocorreu o
choque decisivo entre indígenas e romanos na batalha do Mons Graupius1580, que se crê
que situava em algum ponto não mais para lá do fiorde do Moray, onde Agrícola obteve
uma esmagadora vitória militar, de tal modo que o governou considerou derrotados os
caledónios. Quinze anos mais tarde, Tácito afirmou que a Britânia fora então
definitivamente conquistada, Agrícola pondo termo ao seu longo mandato de sete anos.
Como é que se desenrolou o prélio? Agrícola optou por enviar à frente a frota, para que
efectuasse actos de pilhagem indiscriminada, assim causando pavor e desordem entre
os indígenas, e, em simultâneo, ordenou ao exército que marchasse até às vizinhanças
do Mons Graupius (o nome original talvez fosse na realidade Craupius). Se nos
ativermos uma vez mais a Tácito, os bretões aguardavam pela desforra ou, no outro
extremo, muito mais funesto, a escravidão, «convencidos, finalmente que deviam
rechaçar o perigo comum com a união» (Agr. 29.3)1581. As forças de todos os populi
envolvidos chegaram a acordo por meio de embaixadas e pactos, acabando por reunir
mais de 30 000 homens armados, incluindo, a par dos jovens, velhos que ainda se
mantinham fortes e vigorosos. Cada populus acudiu, arvorando os seus emblemas
1577
Noutras ocasiões, aparecem qualificados genericamente como Caledoniam incolentes, Caledoniam habitantum ou
apenas Britani.
1578
Especialmente delicada terá sido a posição em que se encontrariam os Venicones, que viviam na península de Fife,
bem como os Dumnonii.
1579
Estas forças caberiam num acampamento temporário com uns 47 hectares.
1580
Para a data da batalha, que alimentou discussões entre os académicos, veja-se, entre outros, W. S. Hanson, Agricola
and the Conquest of the North…, pp. 40-45.
1581
Noutra parte da sua obra, Tácito escreveu que «nada nos resulta mais útil, face às nações poderosas, que estas não
velem pelos seus interesses comuns; é muito rara a união de dois ou três populi para rechaçar um perigo comum».
536
distintivos e, entre todos, destacava-se Calgacus, por causa do seu valor e linhagem,
que chefiaria o conjunto dos caledónios.
A seguir, na narração de Tácito, ambos os líderes em contenda proferiram arengas às
suas tropas. O discurso de Calgacus, antes de se ferir a batalha, afigura-se
desproporcionadamente extenso (Agr. 30-32), o qual se viu respondido pelos seus
homens com «rugidos, cânticos e gritos destemperados», ao passo que a alocução de
Agrícola foi mais breve mas não deixou de provocar uma grande explosão de
entuisiasmo nos seus soldados.
Nas letras romanas, colhem-se exemplos de mais discursos deste género, como o
pronunciado por Catilina aos seus acólitos, antes da batalha de Pistóia. Alguns autores
modernos também comentaram que o discurso de Agrícola engloba elementos de
outros presentes em Tito Lívio. Contudo, por se tratar do próprio Tácito, torna-se mais
ilustrativo para fazermos uma ideia da ficção contida nas arengas a análise da
intervenção oral do imperador Cláudio no Senado (Ann. 11.24), se a cotejarmos com a
tábua de bronze de Lugdunum (CIL XIII, 168), onde está exarado o teor do dito
discurso. Em qualquer caso, a ficção de Tácito derivou de relatos em primeira mão e em
vários documentos, o que permite suspeitar que os conteúdos reflectem a perspectiva
romana acerca dos sentimentos dos indígenas, e não uma mera construção ficcional
sem base alguma. Neste contexto, Tácito depositou nas palavras ditas por Calgacus a
impressão que os eruditos romanos tinham dos pensamentos dos guerreiros inimigos
que se consideravam como «os últimos habitantes da terra e da liberdade» (Agr. 30.3).
Para Calgacus não restava outra solução afora o recurso às armas, já que a soberba dos
romanos, saqueadores do mundo, não se evitava através da obediência e da submissão:
«A roubar, assassinar e assaltar chamam com falso nome império, e paz ao semear a
desolação» (Agr. 30.4).
Segundo Tácito, Calgacus tinha plena consciência de que a Britânia comprava e
sustentava diariamente a sua própria servidão; o escritor romano apresenta a imagem
do chefe caledónio enquanto repositório da derradeira esperança da liberdade, alguém
que percebera quão prejudiciais e nocivas eram as querelas e discórdias internas.
Calgacus, acrescentou ainda Tácito, até chegou a imaginar que encontraria ajuda nas
próprias fileiras inimigas. O chefe auctótone terminou o seu discurso, ordenando aos
seus homens que, ao entrarem em combate, pensassem nos seus antepassados e
descendentes.
Agrícola, por seu lado, começou a arenga asseverando que a Britânia já se encontrava
descoberta e quase totalmente submetida e que não seria pouco glorioso para os seus
soldados atingir o próprio limite das terras e da natureza. Depois, conferiu fraco valor
aos antagonistas, lembrando que pouco antes haviam sido derrotados praticamente só
com gritos, e que se distinguiam dos restantes bretões por serem mais rápidos a fugir.
Aproveitou ainda para dizer que os bretões mais audazes e corajosos havia muito que já
tinham perecido em batalha. Por fim, o governador exortou as tropas a pôr termo a
uma grande jornada de cinquenta anos de conflitos.
Estava prestes a ocorrer o momento do choque decisivo. G. Maxwell 1582 sublinhou as
grandes semelhanças entre o relato de Tácito, ao descrever os movimentos do inimigo
na batalha do Mons Graupius, e a narração feita por Salústio da contenda contra o
rebelde Jugurta. Na realidade, ainda se poderiam aduzir mais exemplos neste sentido.
Seja como for, parece não haver dúvida de que Agrícola dispôs as tropas auxiliares de
infantaria (8 000 homens) no centro e, pelo menos, uns 3 000 cavaleiros nas duas
alas1583, constituindo-se uma frente de batalha com aproximadamente 3,5 km de
comprimento. Por seu lado, as legiões, que contavam com cercade 10 000-12 000
efectivos, posicionaram-se na retaguarda, diante da paliçada do acampamento, «o que
suporia uma honra, em caso de vitória, ao consegui-la sem (derramar) sangue romano»
(Agr. 35.2; cf. infra). Ao todo, portanto, as forças romanas teriam uns 27 000 homens.
1582
Cf. A Battle Lost. Romans and Caledonians at Mons Graupius, Edimburgo, 1990.
1583
Com efeito, podem até ter ascendido a 5 000.
537
Quanto aos indígenas, segundo Tácito, somavam 30 000 indivíduos, número que
parece indubitavelmente hiperbólico e não corresponde decerto à realidade.
O comentário a respeito da preservação do sangue romano significa, com toda a
probabilidade, a própria interpretação que Tácito fez da estratégia e das tácticas de
Agrícola1584. Com efeito, nada, na história militar ao tempo, sugere que algum general
romano tenha pensado nesses termos. Os auxilia, à semelhança dos legionários,
constituíam uma parcela com valor no seio do exército romano; tanto uns como outros
tinham os seus pontos fortes específicos, bem como as suas fraquezas. Tácito quiçá
buscasse, ingenuamente, conferir mais grandeza ao feito bélico do seu sogro mas, em
vez disso, com as suas palavras, iniciou um debate que até hoje continua a ser abordado
pelos estudiosos. Os académicos das anteriores gerações equivocaram-se ao
caracterizar os auxilia como «relativamente baratos e substituíveis», uma espécie de
antigo equivalente da «carne para canhão». Contudo, afora a asserção de Tácito, não há
razões para acreditar que os« regimentos» de tropas auxiliares fossem tão
desvalorizados1585. Décadas atrás, diversos autores sentiram-se confusos e perplexos
quanto ao porquê de Agrícola ter optado por apresentar toda a sua linha de batalha
unicamente composta por tais unidades. Afinal de contas, lembremos que as grandes
refregas dos derradeiros tempos da República haviam sido decididas pelas legiões.
O primeiro aspecto a ressalvar, que amiúde é deixado de parte, é que Agrícola podia
confiar claramente na eficácia dos seus «regimentos» de auxilia. De facto, Tácito,
linhas adiante na sua obra, reporta-se ao treino destes e ao seu longo serviço militar
(Agr. 36.7). Como acima dissemos, cada ramo da máquina militar romana tinha os seus
pontos fortes. Consequentemente, urge salientar que, de modo algum, os auxiliares se
encararam como mais adequados para a tarefa em apreço. Isto, igualmente, causou
desconcerto entre os estudiosos que inicialmente entendiam, erradamente, que os
auxilia eram «infantaria ligeira», contrastando com a «infantaria pesada das legiões».
Na realidade, depois de uma série de anos de exames rigorosos e especializados das
armas e armaduras do exército romano, ficou demonstrado que muitos soldados
auxiliares estavam providos de equipamento tão «pesado» quanto o dos legionários.
Certamente que as legiões parecem ter conservado a sua panóplia distintiva,
compreendendo, basicamente, a chamada lorica segmentata, o escudo rectangular e
oblongo (scutum) e o característico pilum. A infantaria auxiliar, tal como aparece
representada nos relevos da famosa Coluna de Trajano (evocativa das campanhas do
Optimus Princeps na Dácia), onde aliás assume certo protagonismo nas cenas de
combate, enverga a denominada lorica hamata (cota de malha), que os técnicos da
arqueologia experimental entendem, consensualmente, não diferir muito do peso da
armadura feita com placas metálicas articuladas. Ademais, aparecem nas cenas da dita
1584
A asserção de Tácito pode significar tão-só um floreado retórico a fim de realçar o carácter supostamente romano
dos legionários em contraste com os auxilia, que não eram cidadãos; se Agrícola seguiu uma prática militar já
estabelecida, o que parece haver sido o caso, possivelmente as tropas auxiliares sofreram uma percentagem
relativamente elevada de baixas na refrega (Cf. B. Campbell, War and Society in Imperial Rome…, p. 70). De facto,
parece ter sido bastante corrente, nos finais do século I, formar a primeira linha de infantaria com soldados auxiliares,
ao passo que as legiões constituíam as segundas e seguintes linhas. Isto tinha a sua lógica, devido à maior organização
das legiões, englobando dez coortes sob o mando do legado e destinadas a operar em conjunto, ao contrário do que
acontecia com as coortes dos auxilia, que eram todas unidades autónomas. Assim, os legionários afirmavam-se mais
eficazes enquanto tropas de reserva, que se envolveriam quando a linha de batalha carecesse de reforços. Em certos
casos, a batalha podia ser ganha pelos auxiliares, sem necessidade de se recorrer a reservas. Afora o exemplo de Mons
Graupius, é possível mas não garantido, que o mesmo tenha ocorrido na contenda de Tapae, em 101 contra os Dácios,
como aparentam indicar os relevos da Coluna de Trajano (A. Goldsworthy, Generais Romanos…, p. 412)
1585
Catherine M. Gilliver, «Mons Graupius and the role of auxiliaries in Battle», Greece and Rome 43.1 (1996), pp. 54-
67; idem, The Roman Art of War, Stroud, 1999, p. 113: «Tacitus’ claim that Agricola used the auxiliaries in this way at
Mons Graupius in order to gain a victory without the loss of any Roman blood has been accepted by many historians and
has encouraged them to argue that the auxiliary troops in general were low-grade, expendable foreign troops. This,
however, is not the case at all; the auxiliary infantry was a vital part of the army of the imperial period and provided
reliable and versatile troops, as can be seen from the very use of them in the front line of battle»; idem,«Chapter 4 –
Battle», in P. Sabin, H. van Wees e M. Whtitby (eds.), The Cambridge History of Greek and Roman Warfare, Volume
II Rome from the Late Republic to the Late Empire... 128; D. B. Campbell, Mons Graupius AD 83: Rome’s battle at the
edge of the world…, p. 74. Para A. Goldsworthy (Generais Romanos.., p. 412), «Alguns comentadores sugeriram que a
utilização de auxiliares para travar os combates, enquanto os legionários permanecem em reserva, reflecte o desejo
romano de obter as vitórias, sem perda de sangue de cidadãos. Tácito elogia Agrícola por ter ganho a batalha de Monte
Gráupio deste modo, mas, na realidade, tal sentimento raramente é expresso nas nossas fontes».
538
coluna, elmos idênticos aos dos legionários, munidos de escudos planos e ovais. Os
auxilia em Mons Graupius não foram escolhidos com base no critério do peso. Tácito
deixa bem claro que uma elevada proporção da linha de batalha, possivelmente 3 000
dos 8 000 homens de infantaria, eram Batavos(4 coortes), recrutados nas terras
pantanosas do delta do Reno, e Tungros (2 coortes), seus vizinhos, além de um número
não especificado de Bretões recrutados entre as tribos do sul da ilha 1586. Foram tais
homens que partiram na vanguarda do ataque de Agrícola contra Anglesey, em 77 d. C.,
operação em que manifestaram a sua reconhecidade capacidade para atravessar rios.
Presentemente, o pequeno rio Urie, em Durno, não se assemelha aos Menai Straits,
pelo que não foi este habilidade específica que Agrícola precisou. Trata-se de assunto ao
qual voltaremos.
Os Caledónios, também, estavam a preparar-se para a batalha, numa formação que
tirava plena vantagem da topografia de Bennachie, sem dúvida acompanhados pelo
som dos cornos de guerra. A linha dos Bretões encontrava-se situado em terreno
elevado, tanto para infundir temor, de tal modo que as suas fileiras da frente estavam
na planície, enquanto os restantes se posicionavam escalonados ao longo da colina,
como se fosse uma formação em curva. Os aurigas, com os seus carros de combate,
ocupavam o meio da planura, fazendo ruído ao deslocarem-se de um lado para o outro
(Agr. 35.3).
Como, aliás, J. K. St Joseph observou, «a face setentrional de Bennachie forma uma
grande anfiteatro diante do acampamento em Durno»1587, com uma frente curva de 3,5
km. Os Caledónios concentraram-se naa encosta ao jeito de uma acies convexa, fitando
a planície em baixo, onde os carros, munidos de grandes foices laterais circulavam,
andante para a frente e para trás, no expresso intento de intimidar as linhas romanas.
Existiam, indubitavelmente, muitas dúzias de veículos puxados por cavalos, a ponto de
preencher a planície. Cada um deles manobra autonomamente, pois o seu chefe, que o
conduzia, tentava a todo o custo exibir a sua mestria, sendo a principal táctica avançar
talvez ao longo das filas da frente, onde as rodas dotadas de gadanhas podiam causar
sérios danos ao inimigo.
O classicista Stan Wolfson até encontrou um paralelo na poesia de Sílio Itálico, que
deve ter assistido a uma leitura do Agrícola de Tácito em Roma, mesmo na altura em
que terminava o seu grande épico Punica. Numa passagem, observa-se um episódio
que consistiu decerto numa alusão evocativa da batalha de Mons Graupius.
De acordo com Tácito, «Neste momento, Agrícola temia que os antagonistas,
numericamente superiores, pudessem atacar a frente e os flancos romanos ao mesmo
tempo. Decidiu, pois, abrir as suas fileiras, embora a linha fosse bastante extenrsa e
muitos pediram-lhe que fizesse avançar as legiões. Mas, com optimismo expectante e
firmeza diante das dificuldades, ele mandou que lhe levassem o seu cavalo e, apeado,
assumiu a sua posição de mando, à frente dos estandartes (vexilla)». Tácito não
menciona explicitamente como lidaram as tropas romanas contra os carros caledónios,
mas o facto de Agrícola ordenar a abertura das filas dá-nos uma pista quanto às suas
tácticas. O emprego de carros de combate com foices latarais lembra-nos a conhecida
batalha travada por Alexandre-o- Grande em Gaugamela (331 a. C.) contra os Persas,
onde Dario recorreu a 200 destes veículos. O historiador Arriano relata como «os
Macedónios tinham ordens, onde quer que os carros atacassem, para romper a
1586
A identificação destas unidades não se afigura clara. Atestam-se duas coortes batavas (cohortes I e VIII Batavorum)
em fontesepigráficas descobertas na Britânia, uma no final do século I da nossa era, e a outra no início do século II: cf. P.
Holder, The Roman army in Britain, Londres, 1982, p. 114; no entanto, outras terão sido transferidas para o Danúbio,
onde a cohors II Batavorum, por exemplo, integrou o conjunto das forças romanas cujos mortes se viram depois
comemorados no conhecido monumento de Adamklissi (Roménia); ademais, a lista também comporta dois recrutas
bretões (E. Birley, Roman Britain and the Roman army, Kendal, 1953, p. 21). Por outro lado, as cohortes I e II
Tungrorum milliariae, a última parcialmente a cavalo, ainda faziam parte da guarnição da Britânia no século IV (D. J.
Breeze e B. Dobson, «A view of Roman Scotland in 1975», Glasgow Archaeological Journal 4 [1976], p. 251). Quanto às
tropas bretãs, deviam encontrar-se na sua própria coorte étnica, uma cohors Brittonum, as quais aparecem mencionadas
a actuar noutros palcos geográficos, mas mais provavelmente foram recutadas em unidades previamente estabelecidas
(B. Dobson e J. C. Mann, «The Roman army in Britain and Britons in the Roman army», Britannia 4 [1973], pp. 198-
199)
1587
Cf. «The camp at Durno, Aberdeenshire, and the site of Mons Graupius», Britannia 9 (1978), pp. 271-287.
539
formação e deixá-los passar (Anab. 3.14; cf. Curt. Hist. Alex. 4.15.14-17): desta maneira,
encurralavam os inimigos, sendo mais fácéis de se neutralizar.
Ao dilatar a sua linha de vanguarda, Agrícola considerou possível resolver o problema
dos covinni. Isto, por seu turno, terásido um dos motivos que ditou a escolha do
governador dos auxilia para a sua linha de batalha.
No que respeita às legiões, estavam em ordem unida, apresentando uma muralha de
escudos através dos quais se podiam assestar estocadas com os gládios. Os auxiliares,
por outro lado, eram mais naturalmente «tropas de ordem aberta», que podiam
responder com flexibilidade aos problemas suscitados pelos carros adversos.
Enquanto Agrícola ocupou a sua posição, acompanhado pela sua guarda pessoal de
infantaria (pedites singulares), na dianteira da linha dos legionários, as suas tropas
auxiliares entraram em combate. Ao colocar-se na retaguarda, Agrícola seguia os
preceitos de Onasander, que escreveu um capítulo sobre «como o próprio general não
deve entrar na batalha» (Onas., Strat. 33).
A batalha em si mesma principiou com a tradicional chuva de projécteis. Se estes não
eram as habituais lanças dos auxiliares (hastae), que serviam essencialmente para
contacto directo, alternativamente talvez consistissem em dardos mais leves que os
arqueológos têm descoberto amiúde em escavações. Eles atingiam uma distância
superior aos 30 m.
«Então, Agrícola exortou as quatro coortes batavas e as duas tungras a lutarem no corpo-a-
corpo com a ponta da espada. Eles tinham-se treinado para o efeito durante o seu longo serviço
militar, ao passo que para o inimigo se afigurava estranho, com os seus pequenos escudos e
espadas compridas; estas, ao não disporem de ponta, não se encontravam concebidas para o
corpo-a-corpo.Consequentemente, os soldados batavos desferiram golpes indiscriminadamente,
batendo com as bossas dos seus escudos e assestando estocadas nos rostos dos adversários.
Quando eles derrubaram os que estavam na planura, começararm a empurrar a sua linha de
batalha pela encosta da colina acima. As outras coortes, desejando emular as suas homólogas,
avançaram para atacar e os inimigos mais próximos tombaram. Na pressa de averbar a vitória,
um bom número [de inimigos] ficaram para trás, tanto mortos, feridos e como alguns
indemnes» (Agr. 36.1-2).
É indiscutível que Agrícola depositava muita confiança nas tropas batavas e tungras.
Independentemente de estas arremessarem ou não as suas lanças, o certo é que os
auxilia desembainharam o gladius e lançaram-se sobre as fileiras compactas dos
Caledónios.Como vimos, os seus escudos, feitos de contraplacado e a sua orla de bronze
e a bossa de ferro, serviram de armas ofensivas, atingindo a face do oponentes ou
desequilibrando-os. Esta actividade frenética incentivou as demais coortes na linha e,
gradualmente, foram progredindo, passando por cima dos corpos que jaziam no solo.
Foi possivelmente durante esta fase da refrega que Aulus Attius, um dos jovens
prefeitos romanos, pereceu, quando se achava a transmitir ordens aos seus homens.
Tácito apenas nos conta que a sua busca pela glória e o seu fogoso cavalo o conduziram
precipitadamente para o meio do inimigo (Agr. 37.6).
«Entretanto, as forças de cavalaria [romanas] bateram em retirada e os aurigas (covinnarii)
envolveram-se na batalha travada pela infantaria. Mas, embora inicialmente tenha gerado
pânico, começaram a vacilar entre as fileiras cerradas do inimigo e por causa do terreno
acidentado. Tal modo de pelejar era muito desvantajoso para os nossos homens, ao manterem a
sua exausta linha de batalha por tanto tempo, enquanto iam recebendo violentos encontrões dos
flancos dos cavalos. E, amiúde, carros em fuga ou corcéis aterrorizados desprovidos do seu
condutor, como que guiadas pelo medo, avançavam contra eles de lado ou frontalmente» (Agr.
36.3)1588.
Não fica claro onde é que a cavalaria caledónia se posicionou, mas devia encontrar-se
presumivelmente no sopé da colina, talvez até entre os seus companheiros de
infantaria. Agora, havia sido obrigada a fugir: é provável que a falta de um comando
unitário concorresse para que os cavaleiros se desorganizassem. Mas a razão para
1588
Este trecho fundamenta-se na tradução apresentada por D. B. Campbell (Mons Graupius AD 83…, pp. 76-77), que
evidencia substanciais diferenças relativamente a outras versões textuais. Campbell alicerçou-se na perspicácia de Stan
Wolfson, tornando assim o latim mais intelígivel, num manuscrito que, nesta parte se encontra muito deteriorado.
540
debandarem não se afigura difícil de perceber, uma vez que Agrícola colocara 3 000
homens de cavalaria nos seus próprios flancos. Decerto que estes soldados montados
levaram de vencida os seus congéneres caledónios, conduzindo à sua fuga. Isto era,
afinal, uma das principais tarefas da cavalaria.
Entrementes, os carros caledónios, os covinni, dotados de foices laterais, foram mal
conduzidos. Os covinni, em particular, requeriam um terreno razoavelmente nivelado,
para evitar que as foices ficassem presas ou se enterrassem no solo. Infelizmente, a
planura sob Bennachie não era (nem hoje é), de modo algum regular. De igual modo,
com o intento de fazer uso da sua principal característica e tirar da mesma o máximo
partido, as rodas com lâminas deviam continuar a efectuar movimentos circulares.
Mas, nesta fase do prélio, não restam dúvidas que os carros caledónios se encontravam
em larga medida imobilizados, vendo-se mergulhados na mêlée da infantaria.
Durante todo este tempo, os Romanos haviam conseguido restringir, de maneira bem
sucedida, o combate às encostas inferiores, atraindo as vagas de inimigos que desciam
até eles, e evitando as zonas mais elevadas. Chegou então a altura, para os guerreiros
estacionados em tais encostas, que usufruíam de uma visão bastante ampla do campo
de batalhavamente, de se juntarem á liça. E, novamente, o relato de Tácito mostra uma
ressonância peculiar com a situação em Bennachie, dado que refere que essas forças se
achavam nos pontos mais altos montanhosos, de que Bennachie tem quatros.
«Os Bretões que ainda não tinham participado no combate, porque se encontravam situados
nos pontos mais elevados montanhosos e que, desocupados, olhavam para os nossos pequenos
efectivos com desprezo, começaram então gradualmente a descer e a avançar rumo à retaguarda
do lado vencedor. Mas Agrícola, que receava esta manobra, enviou quatro «regimentos» de
cavalaria, que até aí estavam de reserva para uma emergência, para enfrentar a chegada do
inimigo. E, quanto mais ferozmente este carregou, mais vigorosamente foram repelidos,
dispersando e pondo-se em fuga» (Agr. 37.1).
Fora precisamente para tal eventualidade que Agrícola mantivera uma reserva de
cavalaria. Estes quatro «esquadrões» viram-se incumbidos de contrariar a manobra de
flanqueamento ensaiada pelos Caledónios. Neste momento, a fina-flor dos combatentes
bretões provavelmente já havia perecido no campo de batalha, pelo que os restantes
consistiam em guerreiros mal equipados, alguns até sem armas. Os nobres e os seus
carros foram neutralizados, a cavalaria adversa havia muito que debandara, e a linha
dos auxilia continuava a massacrar os antagonistas, embora os batavos e tungros já
deveriam achar-se exaustos. Os adversários que afluíam ao local da peleja não
representavam qualquer desafio para os cavaleiros romanos, particularmente bem
equipados. Com base na imagem transmitida por Tácito, quase daria a ideia que os
Romanos praticavam desporto com os inimigos, não tardando a lançar-se em sua
perseguição, derrubando muitos e capturando alguns; executaram-nos sumariamente
quando outras vítimas apareciam à sua frente, assim repetindo-se o processo de
aniquilação.
Consequentemente, o estratagema concebido pelos Bretões saldou-se num rotundo
fracasso. Os «regimentos» de cavalaria arrancaram da frente da batalha a mando do
general e investiram contra os flancos da retaguarda dos Caledónios. Então, um
espectáculo funesto e terrífico preencheu a planura: as tropas romanas chacinavam e
capturavam à medida que iam surgindo mais guerreiros. Bandos de homens armados
fugiram diante de um oponente com um efectivo menor e indivíduos desprovisos de
armas avançaram, numa atitude inequívoca de desespero, expondo-se a uma morte
garantida. Por toda a parte, no palco do conflito, jaziam no solo empapado de sangue
armas, cadáveres e membros decepados e gente agonizante, gemendo ou gritando.
Mal os Caledónios encetaram a fuga, Agrícola ordenou que lhe trouxessem o seu
cavalo para também tomar parte activa nas operações de «limpeza». Desconhece-se o
destino de Calgacus: à semelhança dos nobres aurigas, talvez tenha perdido a vida
numa das primeiras fases da contenda. Atentemos de novo a Tácito:
«E por vezes, até entre os vencidos, havia fúria e coragem. Pois quando eles atingiram os
bosques, reunindo-se e conhecendo bem o terreno, começaram a cercar os primeiros
perseguidores mais incautos. Para que isto não continuasse, Agrícola […] deu ordens às
poderosas e expeditas coortes para agirem como um anel de caçadores (indaginis modo); onde a
541
floresta se revelava mais densa, alguns soldados de cavalaria desmontaram e, onde era menos
cerrada, o remanescente das tropas montadas passaria com toda a velocidade, já que de outra
maneira podiam registar-se baixas devido ao excesso de confiança» (Agr. 37.4).
Só o crepúsculo veio a pôr termo à luta. Centenas de bretões debandaram, não se
envolvendo sequer na batalha. Tácito afirma que morreram 10 000 inimigos, ao passo
que do lado romano apenas 360. A disparidade parece surpreendente. Certamente que
era usual inflacionar o número de baixas mortais do inimigo (em épocas ainda mais
recuadas, verifica-se o mesmo fenómeno em inscrições de vitórias militares em fontes
egípcias e assírias, por exemplo), no claro propósito de conferir acrescida importância à
vitória. Nos tempos da República, um general romano precisava de massacrar pelo
menos 5 000 antagonistas para poder qualificar-se à atribuição de um triunfo na Urbs;
agora, somente o imperador gozava de tal adulação institucionalizada. Porém, na
guerra praticada na Antiguidade ao que parece, os vencidos geralmente sofriam baixas
assaz desproporcionadas, sobretudo devido à tremenda eficiência da cavalaria romana
ao dar caça aos fugitivos. É possível que a cifra 360 tenha constado num relatório
mandado paraRoma, o que podia confirmar-se pelos registos exaustivamente
documentados que cada «regimento» compilava regularmente.
«Foi uma boa noite para os vencedores», escreve Tácito, «com júbilo e saque» (Agr.
38.1). Os campos de batalha sempre proporcionavam despojos aos ganhadores, mas o
processo de remexer os corpos que juncavam o solo estendia-se provavelmente ao
longo de dias. Onde quer que se investigaram os cenários de conflito romanos, só se
descobriram, em regra, alguma quantidade de artigos mundanos. As condecorações
militares e as armas ainda utilizáveis depressa conheceriam novos donos. Tácito
prossegue: «O dia seguinte mostrou a total amplitude da vitória». Por todo o lado se
instalou o silêncio da desolação» (Agr. 38.2). A conquista terminara.
É de supor que o acampamento romano em Durno se manteve ocupado durante dias
ou mesmo semanas, enquanto se «limpava» o campo de batalha e se «varria» a zona
em seu torno. O tamanho incomum do castra, claramente demasiado grande mesmo
para o exército de Agrícola, deveu-se quiçá ao facto de acomodar os serviços especiais
que só eram necessários após uma contenda: um recinto para o tratamento dos feridos;
uma área para a reparação de equipamento danificado; um local para os prisioneiros.
Tradicionalmente, era costume ergueu um troféu, indicando a posse do campo de
batalha e inumavam-se as tropas romanas tombadas em combate. Para estes soldados,
Tácito escreveu palavras lapidares, uma vez que «não seria inglório morrer no próprio
local onde o mundo e a natureza acabam» (Agr. 33.6).
O exército vitorioso dirigiu-se mais tarde rumo ao território dos Boresti (talvez não
tenha ultrapassado o correspondente a um dia de marcha a partir do campo de
batalha), ficou com reféns e Agrícola ordenou ao prefeito da frota, a qual precedia o
terror, para costear a Britânia: a mesma acabou por arribar no Portus Trucculensis. O
exército de terra, por seu turno, retirou-se gradualmente para os seus aquartelamentos
de Inverno, lentidão premeditada com o objectivo expresso de desmoralizar os novos
povos sob dominação romana.
Agrícola findou o seu mandato na Britânia e, nos dois anos seguintes, 84 e 85 d. C., o
novo governador indigitado prosseguiu com acções militares a norte do Mounth,
construindo a fortaleza legionária de Inchtuhill (Pinnata Castra)1589, sem dúvida a base
central a partir da qual se tentaria completar a conquista dos territórios não
subjugados. Todavia, a ofensiva terminou após duas temporadas, uma vez que o castra
referido foi abandonado por volta de 86-87, antes de a sua construção estar ultimada, e
as tropas, por seu lado, foram enviadas para o Reno e o Danúbio. É provável que os
reajustamentos geoestratégicos da chancelaria romana tenham frustado o sonho de
Agrícola, que deixou o cargo depois de um mandato invulgarmente longo, sem poder
concretizar verdadeiramente a conquista, ainda que em termos nominais, antes de
1589
Para um estudo meticuloso sobre esta fortificação, veja-se E. A. M. Shirley, The Construction of the Roman
Legionary Fortress at Inchtuthil, BAR 298, Oxford, 2000.
542
falecer em 93, verificando-se um retrocesso das tropas devido a necessidades que se
faziam sentir sobretudo na frente danubiana1590.
Procuremos agora avaliar que originalidade e mérito Agrícola terá manifestado
enquanto general. Sugerir, como alguns autores modernos fizeram 1591, que Agrícola
inventou uma nova táctica por haver obtido uma vitória ao empregar somente tropas
auxiliares não nos parece uma ideia fundamentada nem correcta. Se a intenção era
salvar os milites romanos à custa do sangue vertido pelos auxiliares estrangeiros e não
cidadãos, como Tácito afirma (Agr. 35), isto dificilmente se coaduna com a imagem de
Agrícola de um comandante humano e preocupado com o tratamento dispensado aos
provinciais. Na realidade, a táctica de planear uma batalha em várias fases e manter
tropas frescas em reserva constituíam procedimentos já com uma longa série de
precedentes1592. Mais especificamente, Cerealis também conservou os seus legionários
na segunda linha quando defrontou Civilis, em 70 d. C. (Tácito, Hist. 5.16). Agrícola
não se viu coagido a recorrer aos auxiliares, bem pelo contrário, tratando-se de uma
opção pessoal que reflecte a relativa fraqueza da oposição em Mons Graupius.Cerca de
vinte anos antes, Ostorius Scapula enfrentou e derrotou os rebeldes Iceni numa
refrega, só usando tropas auxiliares (Tácito, Ann. 12.30). Posto isto, Agrícola não
introduziu, aparentemente, novos princípios na prática da guerra.
O mesmo é válido no que concerne ao emprego da frota. Houve quem tenha
sustentado que ela se utilizou de um modo que, até aí, não conheceu precedentes, 1593
evidenciando, uma vez mais, o alegado génio inovador de Agrícola ao nível táctico. O
apoio naval para as campanhas na Escócia não foi, de maneira alguma, uma novidade.
Tornou-se procedimento corrente transportar soldados, provisões e engenhos bélicos
por mar ou por rio, e as frotas encontravam-se estabelecidas para tal objectivo em todas
as províncias fronteiriças no Ocidente do império. Os benefícios do reconhecimento
costeiro já eram sobejamente reconhecidos e usados nos primeiros estádios do avanço
romano na Germânia, como atrás vimos (Plínio-o-Velho, Hist. Nat. 2.167). Conforme
dissemos anteriormente, as operações combinadas entre uma frota e forças terrestres
atestam-se nas expedições conduzidas por Druso, Tibério e Germânico 1594. Conquanto a
chegada conjunta do exército e da marinha a locais remotos, bem para lá dos limites do
território controlado por Roma se destinasse usualmente a facilitar o fornecimento de
víveres e outros produtos ao primeiro, subsistiram testemunhos de operações
autónomas efectuadas pelas forças navais (Veleio Patérculo, 2.106).
Tácito atribuiu a Agrícola o mérito de ser o primeiro a determinar que a Britânia
constituía uma ilha, mediante a sua circumnavegação (Agr. 10), um dos poucos factos
subsequentemente notados por Dión Cássio (66.20). Mas a verdade é que já se sabia
que a Britânia era uma ilha: tanto o geógrafo Pompónio Mela como Plínio-o-Velho se
reportam à mesma enquanto tal, o primeiro escrevendo quarenta anos antes, sob o
reinado de Calígula, ambos os autores identificando as Orkneys e outros espaços
insulares ao largo da costa norte (Mela, 3.6.54; Plínio, Hist. Nat. 4.103). Agrícola,
quando muito, pode ter sido responsável pela primeira circumnavegação formal da
ilha, mas o certo é que o mesmo fez, acidentalmente, uma coorte de Usipetes/Usipi
após o seu motim. Tácito situa este episódio apenas um ano antes de a frota de
Agrícola efectuar o mesmo feito general em 83 d. C. (Agr. 28), ao passo que Díon o data
cerca de quatro anos antes (66.20).
Os exemplos das capacidades alegadamente excelentes de Agrícola como general são
surpreendentemente raros. A sua rápida reacção face à sublevação ocorrida em Gales,
1590
O seu genro, Tácito, expressou tal facto mediante a seguinte frase: perdomita Britannia et statim ommissa/
«Submetida, no fim, Britânia, mas no instante perdida [esquecida]» (Hist. 1.2.1). No começo do século III, o Septimio
Severo buscou conquistar novamente toda a Britânia, mas sem êxito (Dión Cássio, 70.13.1). A ofensiva propriamente
dita, levou-a a cabo o seu filho e futuro imperador Caracala, mas teve de se ver suspensa por causa da morte do
progenitor em Eburacum (York).
1591
I. A. Richmond, «Gnaeus Julius Agricola», Journal of Roman Studies 34 (1944), pp. 42-43; R. M. Ogilvie e I. A.
Richmond, Cornelii Taciti de Vita Agricolae, Oxford, 1967, p. 66.
1592
J. S. Rainbird,«Tactics at Mons Graupius», Classical Review 19 ( 1969), pp. 11-12.
1593
A. R. Burn,«Tacitus on Britain», in T. A. Dorey (ed.), Tacitus, Londres, 1969, p. 54.
1594
C. G. Starr, The Roman imperial navy 31 BC-AD 324, Nova Iorque, 1941, pp. 141-144.
543
logo no início do mandato como governador não deixa de se revelar louvável, mas a
despeito de Tácito procurar engrandecer tal iniciativa, esta ter-se-á resumido a pouco
mais do que um exercício de «limpeza» de limitada envergadura.
Provavelmente mais digno de realce foi a sua subsequente extensão da operação
militar contra Anglesey, onde o uso de tropas ligeiramente armadas, que atravessaram
a nado o Menai Strait, forneceu o benefício do efeito-surpresa (Agr. 18), embora,
novamente, as tropas invasoras depararam com pouca ou mesmo nenhuma oposição.
Outros episódios, porém, não manifestaram nada de impressionante. Ao dividir o seu
exército no fim da sua sexta camp anha, para evitar ver-se rodeado pelo inimigo, uma
precaução sensata, Agrícola, por outro lado, parece não ter tomado cuidado para
impedir a óbvia contra-medida, um ataque-relâmpago contra o ponto mais fraco: a
Legio IX foi particularmente afectada pela remoção de vexillationes que se destinavam
à Germânia antes de 83 d. C., para servirem na guerra de Domiciano contra os Catos;
destacamentos de nove legiões, incluindo as quatro unidades britânicas lá estavam sob
as ordens de um centurião sénior (I.L.S. 9200), mas havia outra adição, uma vexillatio
da IX Hispana, presente sob o mando do seu tribuno sénior (I.L.S. 1025). Ao
descobrirem esta potencial debilidade, os Caledónios juntaram-se para um ataque
nocturno contra a legião acampada. Depois de uma marcha forçada ao longo da
madrugada, Agrícola, com reforços, veio em seu socorro mesmo a tempo. Tácito
esforçou-se por descrever esta acção como um triunfo de Agrícola (Agr. 26), mas a
verdade é que tudo poderia ter redundado num desastre.
Quanto à Irlanda, destaca-se uma relevante perspectiva sobre o raciocínio militar de
Agrícola: encontrando-se esta no seu campo de visão durante a sua quinta campanha,
quando as forças de Agrícola estavam concentradas provavelmente em Galloway, o
governador parece ter considerado um alvo relativamente fácil, pois que, mais tarde, já
aposentado, ele continuou a afirmar que reunia condições para conquistar a Irlanda, ao
nesta colocar uma legião e um razoável complemento de auxiliares (Agr. 24). Mesmo
contando com a ajuda antecipada de um «príncipe» irlandês exilado, isto mostra que
Agrícola subestimou grandemente as forças que uma tal tarefa exigiria, e com a
Caledónia ainda não subjugada, significava um momento muito inoportuno para
realizar essa operação bélica. Contudo, esta sobrevalorização dopapel estratégico da
Irlanda não se deveu só a Agrícola, dado que os Romanos possuíam uma ideia errada,
distorcida, a nível geográfico, da posição que a ilha ocupava em relação à Britânia e à
Hispânia (Plínio-o-Velho, Hist. Nat. 4.102).
Conferiu-se também especial importância à apreciação que Agrícola terá feito sobre a
topografia da velha Albion, tanto no âmbito estratégico como no táctico, ou seja, na
determinação do padrão global da distribuição das tropas no terreno e na localização
rigorosa dos seus acampamentos. Tácito enalteceu particularmente o seu sogro pela
maneira como elegeu os sítios para os fortes e acampamentos: «Os peritos observaram
que nenhum general mostrou alguma vez mais olho face ao terreno do que Agrícola.
Nenhum dos seus fortes foi tomado de assalto, não capitulou, nem se viu abandonado»
(Agr. 22). Esta asserção levanta dúvidas e incertezas, já que tal encómio devia fazer
parte da descrição ideal e estereotipada das qualidades de um bom general 1595. Embora
Agrícola possa ter evidenciado interesse particular na localização dos fortes e dos
acampamentos, isto dificilmente seria possível em todos os casos: quando as suas
forças se viram divididas na sexta campanha, ele não podia estar obviamente em três
sítios distintos ao mesmo tempo, e o subsequente processo da construção de fortes
sofreria muitos atrasos se a presença pessoal do governador se afigurasse necessária
para aprovar cada local. Nas situações em que se conservam provas literárias da
construção de fortificações e acampamentos, a responsabilidade terá aparentemente
recaído num tribuno sénior (Políbio, 6.26 e 41) ou no praefectus castrorum, o terceiro
na cadeia de comando da legião (Tácito, Ann. 12.88; Vegécio, 2.10). No entanto, se
aceitarmos que Agrícola interveio na selecção dos sítios para a implantação dos fortes,
o que dizer acerca da suposta localização dos mesmos? Muitos, é certo, foram
1595
R. M. Ogilvie e I. A. Richmond, Cornelii Taciti de Vita Agricolae…, pp. 230-231.
544
extremamente bem situados, como aliás o testemunha a sua reutilização no período
Antonino, mas outros viram-se deslocados ou substituídos. Assim, descontando o efeito
provocado pelas diferentes exigências de ordem estratégica no século I face ao II, na
localização dos fortes ao longo do istmo Forth-Clyde, o exército romano não mais
regressou a lugares como Dalswinton, Easter Happrew, Barochan ou Elginhaugh nos
tempos dos Antoninos, erigindo fortes em sítios alternativos a alguns quilómetros de
distância, em cada caso, em Carzield, Lyne, Bishopton e Inveresk respectivamente 1596.
Analogamente, em Ardoch e Red House, Corbridge, as obras edificatórias foram
ulteriormente substituídas durante o período dos Flávios por fortes em locais
adjacentes.
Os eruditos modernos chegaram a exarcebar os elogios de Tácito quanto às proezas
de Agrícola, às vezes atingindo proporções inusitadas. Associaram-no frequentemente,
por exemplo, ao estabelecimento de locais que mais tarde vieram a ditar a linha seguida
pela Muralha Antonina, quase como se o governador imaginasse o que aconteceria no
futuro1597, algo que hoje em dia se reconhece não estar certo1598.
Agrícola foi igualmente encarado como inovador na planimetria de fortes e
acampamentos do período Flávio, em especial ao provê-los de muralhas viradas para
dentro junto às portas das fortificações 1599, e pela utilização da clavicula única munida
de um parapeito oblíquo nas entradas dos acampamentos temporários, o chamado
sistema Stracathro. Não há dúvida que Newstead e Milton, dois fortes que datam do
tempo de Agrícola, são efectivamente singulares na sua forma, mas, afora estes, é muito
raro descobrir outros similares, o que serve de argumento para refutar a teoria de uma
inovação emanada do governador, pois que a sua aplicação, mais disseminada, deve
remontar a um período anterior. Mais corrente é a presença de uma muralha simples
virada para o interior, como sucede em Elks Lack, Elghinaugh, Caermote, Oakwood,
Cardean, Borchastle e Strageath. Por vezes, este elemento caractéristico é observável
em fotografias aéreas tiradas de locais ainda por escavar, reflectindo-se no sistema do
fosso, a sua configuração evocada sugestivamente pelo termo descritivo de «bico de
papagaio», haja em vista o exemplo de Malling. Não obstante todos estes fortes
datarem indiscutivelmente do mandato de Agrícola, três ou talvez quatro (Caermote,
Bochastle, Malling e, provavelmente, Cardean), contudo, foram erigidos após esse
período, pelo que se torna difícil atribuir este elemento específico do design ao sogro de
Tácito.
Objecções idênticas suscitam outras pretensas inovações menores na planta das
fortificações, que remontam, grosso modo, ao tempo dos Flávios1600. A entrada dos
acampamentos do tipo Stracathro é típica na Escócia1601, e a sua datação da dinastia
flávia parece grantida. Se, por um lado, os exemplos mais setentrionais estão
possivelmente relacionados com as campanhas sob a égide de Agrícola, por outro os
adjacentes aos fortes nos Vales das Terras Altas/Highland Glens aparentam inserir-se
num contexto mais tardio. Ademais, o número muito limitado de tais acampamentos
milita de novo contra a hipótese de o seu desenho ter surgido em conexão directa com o
governador, mas, ao que vários aspectos sugerem, terão sido construídos por uma
determinada legião1602.
Tácito descreve sucintamente o método que Agrícola adoptou para controlar as tribos
que habitavam nas zonas montanhosas: praesidiis castellisque circumdatae/«Colocou-
se um anel de fortes guarnecidos à volta delas» (Agr. 20). Destas palavras resultou uma
tendência, por parte de vários académicos, de ver Agrícola como pioneiro no
1596
W. S. Hanson, Agricola and the Conquest of the North…, p. 178.
1597
R. M. Ogilvie e I. A. Richmond, Cornelii Taciti…, p.323-324.
1598
W. S. Hanson, «Agricola on the Forth-Clyde isthmus», Scottish Archeological Forum 12 (1980), pp. 55-68.
1599
M. J. Jones, Roman fort defences to 117, Oxford, 1975, p. 118.
1600
D. J. Breeze, «Agricola the builder», Scottish Archaeological Forum 12 (1980), pp. 18-19.
1601
M. Lenoir, «Lager mit claviculae», Mélanges de l’École Française de Rome: Antiquité 89 (1977), p. 702.
1602
D. J. Breeze, «Agricola the builder»…, pp. 17-18.
545
desenvolvimento de uma nova abordagem para tal matéria 1603. Se alguém realmente
merece o crédito pela invenção do sistema referido, em vez de encará-la como uma
evolução gradual no decurso de um período, foi, decerto, o predecessor de Agrícola,
Frontino, que avulta como o primeiro responsável pela sua aplicação no terreno
irregular do País de Gales. De idêntico modo, o processo de bloquear ou barrar os vales,
partindo do princípio que é esta a interpretação correcta da função exercida pela linha
de fortes das Terras Altas, também foi entendido como outra amostra da excelente
visão estratégica de Agrícola1604. Uma vez mais, verifica-se que o princípio conhece
paralelos em Gales1605 e, de qualquer maneira, parece altamente improvável que os
fortes na Caledónia tenham sido mesmo construídos a mando de Agrícola.
Elogio ainda maior se teceu quanto ao «génio administrativo» de Agrícola, ao
organizar o fornecimento de provisões para as suas forças de ocupação dispersas no
palco de operações1606. Certos autores mostraram-se atreitos a realçar duas tendências:
o fornecimento de materiais de construção para tantos fortes e o seu aprovisionamento
durante o Inverno; a bem da verdade, ambos os aspectos assentam numa
incompreensão geral da logística romana. Se, conforme sugeriu I. A. Richmond, a
edificação de fortes romanos com turfa e madeira requeria o fornecimento do último
material já cortado e seco, então é caso para dizer que a organização necessária para
tornar isto viável nas quantidades exigidas para o grande número de fortificações
erguidos no Norte da Britânia, sob o mandato de Agrícola, traduzir-se-ia numa tarefa
de consideráveis proporções1607. Todavia, um estudo posterior revelou que, sempre que
possível, as tropas romanas empregavam madeira local 1608. Ela existia abundantemente
e o seu grau de secura representava uma extravagância redundante, dado que os postes
seriam cravados no solo e depressa reganhariam a humidade previamente removida. O
mesmo se pode afirmar sobre o aprovisionamento dos fortes: buscava-se, em regra,
obter víveres in loco, sobretudo no que respeita à dieta básica de cereais 1609. Existiria
maior quantidade de grão do que anteriormente se supôs, já que se preservaram
evidências de que o cultivo em solo arável, no Norte de Inglaterra e na Escócia,
aumentora ao longo da Idade do Ferro pré-romano 1610. Tácito enfatiza muito a
importância dos víveres serem armazenados para o Inverno, a fim de que a guarnição
pudesse aguentar a pressão inimiga se sofresse um assédio, além de se não perder o
espaço físico ganho durante o Verão (Agr. 22). O escritor não menciona que esse
procedimento significasse um elemento exclusivo das fortificações sob Agrícola,
contrariamente ao que algumas autoridades modernas imaginaram 1611. Com efeito, os
testemunhos arqueológicos dessa política, a presença, no interior dos fortes, de
celeiros, facilmente identificáveis por se encontrarem artificialmente acima da linha do
solo, apresentam-se tão difundidos que se chega de imediato à conclusão tratar-se uma
prática comum erguer os referidos depósitos. Neste sentido, portanto, Agrícola não fez
mais do que seguir a normal rotina castrense.
Um dos maiores escolhos para Tácito, na sua tentativa de retratar o seu sogro como
um grande homem e um general de alto valor radicou no fracasso da sua carreira, que
não progrediu mais, depois de ser governador da Britânia.
1603
R. M. Ogilvie e I. A. Richmond, Cornelii Taciti…, pp. 56-57.
1604
T. A. Dorey, Tacitus, Londres, 1969, p. 7 (1-18).
1605
W. H. Manning, Report on the excavations at Usk 1965-1976: the fortress excavations 1968-1971, Cardiff, 1981 pp.
43-44.
1606
S. S. Frere, Britannia: a history of Roman Britain, 2ª edição, Londres, 1978, p. 135.
1607
Cornelii Taciti…, p.80.
1608
W. S. Hanson, «The organisation of the Roman military timber supply», Britannia 1978, pp. 293-305.
1609
W. H. Manning, «Economic influences on land use in the military areas of the Highland Zone during the Roman
period», in J. G. Evans, S. Limbrey e H. Cleere (eds.), The effect of man on the lansdcape of the Highland Zone,
Londres, 1975, pp. 112-116.
1610
E. g., D. Wilson, Air Photo interpretation for archaeologists, Londres, 1983, pp. 45-46.
1611
P. Salway, Roman Britain, Oxford, 1981, p. 144.
546
CAPÍTULO IX - O recrutamento militar
A probatio
547
podia também assumir, ele próprio, tal título, que acumulava por vezes com a função de
legatus ad census accipiendos, isto é, a responsabilidade pelo recenseamento.
Mas o recrutamento não tardou a limitar-se às províncias imperiais (salvo a Africa
Proconsularis), vendo-se sobretudo alimentado pelo alistamento de voluntários.
Quando se aplicava à conscrição nestas províncias, o legado de Augusto contava com o
apoio de funcionários equestres subalternos, chamados dilectatores. Nas províncias
mais pequenas, como as procuratorianas, não era raro que um indivíduo acumulasse as
funções de governador e de dilectator. As maiores, por seu turno, eram divididas em
distritos, atribuídos a distintos dilectatores de maneira a facilitar as operações do
dilectus. A tarefa exercida pelo dilectator implicava um inquérito prévio, para avaliar o
número de potenciais recrutas mobilizáveis, tomar em consideração as necessidades de
mão-de-obra em actividades locais e examinar os casos de homens dispensados de
serviço militar.
Confiava-se o rastreio (inquisitio) a funcionários imperiais, dependentes do dilectator.
A inquisitio supunha que os funcionários que dela estivessem encarregados agissem
num quadro bastante restrito, certamente limitado a uma cidade. Mas, para cumprirem
a sua missão adequadamente, eles consultavam, decerto, os registos do censo. À
semelhança da tarefa levada a cabo pelos conquisitores no fim da República, bem como
da dos missi ad dilectum iuniorum ad dilectum na Itália imperial, a inquisitio requeria
provavelmente a colaboração das instituições municipais.
Estas subdivisões territoriais sugerem que, tal como sucedia nos derradeiros tempos
da época republicana, os responsáveis pelo dilectus se deslocariam até aos locais onde
arrolariam recrutas, e não o contrário. Como estes voluntários não respondiam mais a
uma convocatória feita com base nas listas dos censores, cabia aos primeiros provarem
a sua identidade e condição social. Ora alguns talvez se sentissem tentados a cometer
fraudes, de maneira a serem arrolados num corpo de tropas privilegiado, ao qual, de
outra forma, não podiam aceder. Consequentemente, os escravos podiam tentar tornar-
se legionários para escaparem à condição servil, sendo mantidos pelo Estado: a
correspondência de Plínio-o-Moço com Trajano oferece um exemplo deste caso. É neste
contexto que cabe situar a ocorrência de duas etapas sucessivas, que correspondem ao
que actualmente chamamos inspecção e incorporação: a primeira, conhecida como
probatio, consistia em verificar as aptidões físicas e o estatuto jurídico dos voluntários;
a segunda, a signatio, terminava com a inserção dos recrutas nas fileiras da primeira
unidade para a qual haviam sido adstritos.
A escolta conduzida por um tribuno militar, mencionada numa inscrição de Cirene
(AE 1951, 88: antes de 119 d. C.), acompanhava provavelmente um legatus ad dilectum
no seu périplo pelas principais cidades da província. A importância desta escolta não
causa estranheza, dado que as diferentes etapas do recrutamento exigiam a
participação de um conjunto de indivíduos, decerto numeroso, e davam lugar à
elaboração de vários documentos. Com efeito, a probatio era um exame aprofundado
no qual se tinha especialmente em conta a idade, a altura e a visão dos mancebos, se
nos ativermos a Vegécio.
O recrutamento principiava oficialmente com o registo do nome de nascimento do
candidato, o do seu pai, o apelido (cognomen)1613 se o tivesse, a tribo (o distrito
eleitoral) a que pertencia, a localidade onde nascera e/ou residia e a data do
alistamento1614. Se nos basearmos nas fontes epigráficas, os mancebos ingressavam no
exército com idades compreendidas entre os 17-20 anos 1615, embora, segundo a
tradição, seriam mobilizáveis os homens situados na faixa etária compreendida entre os
1613
No caso de cidadãos romanos, podiam constar por escrito os tria nomina, se bem que por vezes fossem registados
apenas duo nomina.
1614
K. Stauner, Das offizielle Schriftwesen des römischen Heeres von Augustus bis Gallienus (27 v. Chr.-268 n. Chr.),
Bona, 2004, p. 36-39.
1615
W. Scheidel, «Inschriftenstatistik und die Frage des Rekrutierungsalters römischer Soldaten», Chiron 22 (1992), pp.
281-297.R. W. Davies, ao alicerçar-se igualmente em fontes antigas, refere que a média etária se situava entre os 17 e os
23 anos: cf. Service in the Roman Army, Edimburgo, 1989, p. 7. Veja-se, também, G. Wesch-Klein, «Recruits and
Veterans» in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army, p. 439.
548
17 e os 46 anos (Aulo Gélio, Noctes Atticae, 10.28.1); provavelmente, a idade média de
alistamento seria de 20 anos, mas sabe-se de jovens com apenas 13 ou 14 anos e, no
outro extremo etário, conhecem-se homens com 36 anos1616.
Quase todos os legionários declaravam ser originários (origo) de uma cidade ou de
uma vila, mas é provável que poucos procedessem verdadeiramente dos centros
urbanos (embora académicos como J.-M. Carrié, defendam que muitos mancebos eram
oriundos de cidades e não de pagi rurais). Praticamente todas as cidades eram centros
de comércio agro-pecuário e, nas suas imediações, havia zonas campos e pastagens a
elas ligadas. No entanto, algumas regiões do Império não estavam urbanizadas e, em
muitos casos, as originis, consignadas aquando do alistamento, eram falsas, concedidas
juntamente com a cidadania romana.
Durante a República, os camponeses constituíram a espinha dorsal da militia de
cidadãos, e ao longo da época imperial (até ao período tardio) os campos continuaram a
ser um viveiro preferencial para extracção de recrutas. Os soldados nados e criados no
meio rústico eram mais apreciados pela sua robustez e resistência e também por mais
dificilmente se deixarem afectar pelas distrações mais sórdidas da vida urbana
(Vegécio, Epit. de rei mil. 1.3). Tácito salienta, a propósito, que o motim das legiões do
Reno em 14 d. C. se viu exacerbado devido à presença de «recrutas citadinos» vindos da
capital numa leva recente, habituados à licenciosidade e avessos a grandes esforços,
que «começaram a influenciar as mentes simples do resto das tropas» (Tácito, Ann.
1.31).
Uma das fontes mais explícitas sobre o recrutamento (embora não contenha muitos
detalhes) é um documento relativamente tardio: as Actas do mártir Maximiliano/Acta
Maximiliani1617, respeitantes a um jovem cristão oriundo de Theveste, que se viu
condenado à morte pelo procônsul de África, em 295 d. C., por se recusar a ser
incorporado no exército, alegando para isso a sua fé. No momento em que começa a
narrativa, Maximiliano já tinha sido sujeito à inquisitio, fase preliminar da probatio,
que permitira verificar que ele reunia todas as condições jurídicas e morais para se
tornar soldado. Por esta razão é que no início do texto Maximiliano aparece qualificado
como probabilis e bonus tiro:
«Sob o consulado de Tuscus e de Anullinus, no quarto dia antes dos idos de Março, em
Theveste, no forum, apareceu Fabius Pictor com Maximilianus. Deu-se a palavra a
Pompeianus, advogado, que disse: “Fabius Pictor, temonarius, apresenta-se com Valerianus
Quintianus, praepositus imperial, e com o conscrito Maximilianus, filho de Victor. Como este
conscrito pode ser bom para o serviço, solicito que o avaliem”. O procônsul Díon perguntou ao
conscrito: “Como te chamas?». Maximilanius respondeu: “Para que queres saber o meu nome?
Não me é permitido servir porque sou cristão”. O procônsul disse: “Que o ponham em posição
para ser medido!». […] Maximilianus retorquiu: “Não posso servir, não posso praticar o mal.
Sou cristão”. O procônsul afirmou: “Que se proceda à sua medição”. Ao fazê-lo o empregado do
officium proclamou: “Tem cinco pés e dez polegadas”. Díon dirigiu-se ao empregado do
officium: “Que ele seja inscrito”. Resistindo, Maximilianus replicou: “Não quero, não posso
servir!”. Díon disse: “Sê soldado ou então és condenado à morte”. Ao que Maximilianus
respondeu: “Não serei soldado. Manda cortar-me a cabeça. Eu não sirvo o mundo, sirvo o meu
Deus». O procônsul perguntou-lhe: “Quem te meteu isso na cabeça?”, Maximilianus: “A minha
consciência e Aquele que me chamou”. Díon virou-se para Victor, pai do conscrito: “Aconselha o
teu filho”; ele respondeu: “Ele sabe bem, por si próprio, o que deve fazer”. Então Díon disse a
Maximilianus: “Sê soldado e recebe a bula de chumbo, o signaculum”. Resposta: “Não aceito o
signaculum. Já tenho o signum de Cristo meu Deus”. Díon ameaçou-o: ”Vou-te enviar
imediatamente para junto do teu Cristo”. Resposta: “É isso que eu desejo, fá-lo agora. Será a
minha glória”. Então Díon ordenou ao empregado do officium: “Inscrevam-no!”. Maximilianus
protestou: ”Não aceito o signaculum do mundo, não é permitido usar o chumbo pendurado à
volta do pescoço, depois do signum benéfico do meu Senhor Jesus Cristo, filho do Deus vivente,
que tu desconheces, mas que sofreu pela nossa salvação, e que Deus entregou como expiação
dos nossos pecados. É a ele que todos servimos, nós os cristãos. É ele quem seguimos, pois que é
para nós o guia da vida, o autor da salvação”. Díon voltou a afirmar: “Sê soldado e recebe o
1616
W. Scheidel, Measuring Age, Sex and Death in the Roman Empire, Ann Arbor, 1996, p. 99ss.
1617
M. A. Musurillo, The Acts of the Christian Martyrs, Oxford, 1972, 17; versão do texto mais abreviada: cf. B.
Campbell, The Roman Army 31 BC-AD 337. A Sourcebook, Londres, 2ª edição, 1996, doc. nº 5, p. 12.
549
signaculum, senão terás uma morte terrível!”. Maximiliano replicou: “Não vou morrer, o meu
nome já está escrito junto do meu Deus. Não posso ser soldado”. Díon: “Pensa na tua juventude,
sê soldado!”. Maximilianus: “O meu serviço é ao pé do meu Deus. Não posso servir o mundo. Já
te disse, sou cristão!”O procônsul declarou: «No comitatus sagrado dos nossos senhores
Diocleciano e Maximiano, Constâncio e Maximiano Galero, há soldados cristãos, e eles servem”.
Maximiliano disse: “Eles sabem o que devem fazer. Eu sou cristão, não posso fazer o mal”. Díon
– “Os que servem que mal fazem eles?”, respondendo Maximilianus: ”Sabes o que eles fazem”.
O procônsul Díon afirmou: “Sê soldado. Se desprezas o serviço militar, terás uma má morte!”.
Maximilianus – “Eu não morrerei. Se partir deste mundo, a minha alma viverá com Cristo
nosso Senhor”. Então Díon ordenou: ”Risquem o nome dele!”. Uma vez riscado o nome, Díon
proclamou: “Como, por indisciplina, recusaste o serviço militar, serás castigado de acordo com
uma sentença legal. Servirá de exemplo para os outros”. Ele leu em voz alta o veredicto escrito
na tabuinha: «Maximilianus, por indisciplina, ao recusar-se prestar o serviço militar, é
condenado a perecer pelo gládio [ad gladium]”».
As etapas do recrutamento, até à sua interrupção, no momento em Maximiliano
declara ser objector de consciência, não mostram grandes alterações em relação ao que
conhecemos sobre o dilectus sob o Alto Império, afora a presença do temonarius, que
se explica devido ao reforço da ligação entre o recrutamento e o fisco a partir do século
III d. C., bem como a alusão ao sacer comitatus, expressão que servia para designar o
exército que acompanhava o imperador nesse período. Vemos o governador de uma
província senatorial a proceder ao arrolamento de um recruta, a fim de prover ao
supplementum anual. Além disso, a estatura de Maximiliano corresponde aos critérios
exigidos para o ingresso nas legiões, aspecto que Vegécio abordou (Epit. rei milit. I, 5):
aproximadamente 1, 62 m.
Segundo Vegécio, a altura ideal de um legionário era de 6 pés romanos, equivalente a
1,77 m. O mesmo autor acrescenta que, para poderem pertencer à primeira coorte de
uma legião, os homens deviam medir, pelo menos, 5 pés romanos e 10 polegadas (1,72
m)1618. Todavia, na prática, a situação era diferente. Reportemo-nos à Legio V Italica
criada por Nero, que se tornou conhecida por dois motivos: ser composta por recrutas
italianos e por estes terem 6 pés de altura (ou mais; Suetónio, Nero, 19). Ora isto
sugere, a contrario, que se aceitariam com certa regularidade indivíduos com menor
tamanho nas outras legiões 1619. Através do exame forense das ossadas de um soldado
que morreu durante a fatídica erupção do Vesúvio em Herculano (cidade vizinha de
Pompeia),1620 em 79 d. C., verificou-se que ele tinha 1,69 m de altura; em contrapartida,
os restos mortais de outro militar, achados em Velsen (Holanda) revelaram um homem
bem grande, medindo cerca de 1,90 m: muito provavelmente corresponderia a um
soldado de origem frísia1621; numa sepultura dupla exumada em Canterbury, datando de
cerca de 200, encontraram-se os esqueletos de um legionário que morreu por volta dos
30 anos e com a altura de 1,73 m, ao passo que o outro teria 20 e era maior, com 1,81
m1622.
Mais tarde, com base em textos do século IV, observa-se que nas unidades de elite do
exército romano ingressavam mancebos com 1,65 m, o que leva a supor que essa altura
significaria o limite máximo na população do meio rural de onde se extraíam os
recrutas. As exigências quanto à altura também variavam consoante os períodos
históricos. Seria, provavelmente, a razão pela qual um cidadão romano se alistava
1618
Ep. rei mil. 1.5.
1619
Certos académicos entenderam que no recrutamento o exército pretendia mancebos que tivessem elevados
requisitos físicos e psicológicos: G. R. Watson, The Roman Soldier, Londres, 1969, pp. 37-53; R. W. Davies, Service in
the Roman Army, pp. 3-30. No entanto, outros consideraram que as unidades não poderiam mostrar-se tão selectivas
na obtenção dos seus recursos humanos: A. Goldsworthy, The Roman Army at War…, p. 29.
1620
R. D’Amato, «From Herculaneum’s ashes», Ancient Warfare, vol. III.2 (April/May 2009), pp. 42-47: descobriu-se o
esqueleto deste homem em 7 de Agosto de 1982, no areal defronte das infra-estruturas das arcadas das Termae
Suburbanae; tal indivíduo era, na realidade, um faber navalis, um carpinteiro pertencente à frota de Misenum, a
Classis Praetoria Misenatis.
1621
R. Cowan, Roman Legionary, 58 BC- AD 69…, p. 10.
1622
As ossadas do último soldado, em melhor estado de conservação do que as do outro, indicam que era um homem
particularmente robusto. Aparentemente, os dois milites terão sido assassinados: cf. P. A. Benett et al. (eds.),
Excavations at Canterbury Castle, I, Maidstone, 1982, p. 191
550
numa coorte auxiliar, em vez de numa legião, afora o facto de o serviço militar na
primeira se considerar como menos duro.
O estatuto jurídico determinava a afectação dos recrutas nos diferentes corpos do
exército. O serviço nas legiões, como referimos, estava reservado aos cidadãos, ao passo
que as unidades de auxiliares estavam abertas aos peregrini. Na realidade, numa
situação de extrema gravidade, os peregrinos podiam ver-se igualmente admitidos nas
legiões, recebendo a cidadania romana logo na altura do arrolamento. No que toca às
modalidades de recrutamento na marinha de guerra, estamos apenas confinados a
meras conjecturas; até a própria questão do estatuto jurídico dos recrutas tem sido
muito debatida: o recurso aos escravos e aos libertos, longe de constituir um fenómeno
sistemático, como anteriormente se pensou, continuou a ser excepcional e limitado ao
período imediatamente posterior às guerras civis. A seguir, os peregrini formavam a
maioria dos efectivos. Mas, aparentemente, no decurso dos primeiros dois séculos da
nossa era, os cidadãos terão começado a tornar-se mais numerosos nas equipagens.
Posto isto, é muito provável que o recrutamento em cada um destes três corpos de
tropas necessitasse de uma deslocação especial do governador e do seu officium: seria,
em princípio, mais simples aproveitar uma mesma viagem pela província para tratar de
assuntos diversos, de carácter civil e militar, de entre os últimos figurando o dilectus,
respeitante a todas as componentes do exército ao mesmo tempo. É, aliás, o que as
Actas do mártir Maximiliano deixam entrever: com efeito, os historiadores tentaram
apurar se tal narrativa se deveria identificar com um processo ou uma sessão de
probatio. O facto de a primeira parcela do texto reproduzir, de maneira bastante
fidedigna, um processo verbal oficial, extraído dos arquivos proconsulares significa um
dos argumentos esgrimidos pelos apologistas da primeira interpretação. Para outros
autores, todavia, a passagem que evoca a medição da altura de Maximiliano, bem como
o uso de diversos termos técnicos (também atestados em Vegécio), advogam a favor da
outra hipótese.
No entanto, P. Cosme opinou1623 que cabe não estabelecer uma diferenciação
necessariamente tão compartimentada entre as duas interpretações. Não resta a menor
dúvida que seria no mesmo périplo pelas principais cidades da sua província, onde
teriam lugar as suas audiências e sessões, que um governador lidaria com o
recrutamento de soldados e apreciaria a situação dos refractários, afora resolver outros
assuntos. Compreende-se melhor, assim, a sua presença no forum, acompanhado por
outros personagens que não estariam relacionados concretamente com Maximiliano.
Independentemente de qual fosse o corpo de tropas, não parece que houvesse datas
fixas para proceder ao recrutamento. No entanto, para cada soldado, contava o seu
número de anos de serviço a partir do dia 1 de Março, no seguimento da data do
arrolamento.
Consoante o grau de romanização e a localização geográfica, certas províncias (e no
interior de cada uma, determinadas regiões) forneceriam mais legionários e outras
mais auxiliares ou marinheiros. Com a difusão progressiva do direito de cidade nas
províncias, o recrutamento de peregrini para os auxilia tendeu a limitar-se às zonas
mais periféricas do Império. Assim se percebe por que motivo as fontes da época
imperial não distinguem vários tipos de dilectus, já que a repartição pelos diferentes
ramos do serviço militar (militiae) se realizava num mesmo âmbito: a probatio, que
permitia a cada recruta (tiro), fosse qual fosse a sua condição jurídica, encontrar um
lugar no exército. Esta ideia queda sugerida por um pedido de incorporação descoberto
num papiro, datando de 113-117, o que nos mostra a possibilidade de os recrutas
solicitarem a sua admissão nas forças armadas romanas (P. Théod. inv. 31; ChLA, XLII,
1212): um cidadão, Marcus Rutilius Lupus dirigiu-se ao prefeito do Egipto para
conseguir ser incorporado nos auxiliares. Outra fonte confirma igualmente tal realidade
– numa carta, Claudius Terentianus1624, soldado da marinha, em princípios do século II
(P. Mich. VIII, 468; ChLA, XLII, 1217), pede para ser transferido para os auxilia.
1623
L’armée romaine: VIIe s. av. J.-C.-Ve s. ap. J.-C, p. 107.
1624
R. W. Davies, «The enlistment of Claudius Terentianus», Bull. American Soc. of Papyrologists 10 (1973), pp. 21-25.
551
Só os escravos eram excluídos do serviço militar. A correspondência epistolar entre
Trajano e Plínio-o-Moço (Plínio-o-Moço, Epist. X, 29-30) comprova-o1625: caso
existissem escravos que fossem admitidos, por meio de fraude, deveria aplicar-se a
pena de morte sobre os próprios recrutas, se estes se tivessem apresentado como
voluntários. Se fosse no contexto de uma conscrição, os sancionados passavam a ser os
convocados que tivessem enviado escravos como seus substitutos ou, ainda, o
praepositus da inquisitio:
«Sempronius Caelianus, um jovem distinto, enviou-me dois escravos, encontrados entre os
recrutas; adiei a execução para te consultar, tu, o fundador e o sustentáculo da disciplina militar,
acerca da natureza da pena a aplicar. Para mim, as dúvidas radicam [por um lado] no facto de
eles já terem prestado juramento [e por outro] ainda não estavam distribuídos pelos corpos das
tropas [ita nondum distributi in numeros erant]. Senhor, peço-te que me escreve quanto à
norma que deverei então seguir, tanto mais que se trata de dar um exemplo».
«[Resposta de Trajano] Sempronius Caelianus cumpriu as minhas instruções ao mandar-te
os homens que deviam ser objecto de um processo, para averiguar se mereceriam a pena capital.
Mas importa saber se eles se apresentaram como voluntários ou enquanto substitutos. Se eles
foram arrolados, o recrutamento está em falta; se foram dados como substitutos, os culpados
são os que os forneceram; se [os escravos] vieram por sua própria iniciativa, com plena
consciência da sua condição social, neste caso é preciso condená-los à morte. E pouco interessa
que não tenham sido ainda incorporados nos corpos. A partir do dia em que se viram
reconhecidos como aptos, eles deviam ter feito uma declaração exacta sobre a sua origem».
Esta troca de missivas corrobora vários aspectos: a utilização dos mandata para
designar as instruções oficiais do imperador sobre o dilectus, bem como a prática da
inquisitio nas províncias senatoriais, a possibilidade de um mancebo recorrer a um
substituto, a diferenciação entre as duas etapas do recrutamento e, por fim, a ausência
de distinção entre a probatio de legionários e a dos auxiliares. A proibição de ingressar
no exército estendia-se a uma série de profissões, consideradas infames, e que
Vegécio1626 enumera, assim como indivíduos culpados por cometerem delitos e outros
conhecidos pelo seu mau génio (Epit. de rei mil. I, 7):
«Convém ainda prestar atenção aos ofícios de onde se devem obter soldados, ou daqueles que
os excluem. Para mim, desejaria que se afastassem dos acampamentos os pescadores, os
passarinheiros, os pasteleiros ou gente de cozinha, os tecelões e, em geral, todos os que exercem
profissões próprias das mulheres. Pelo contrário, far-se-á bem em preferir [para soldados] os
ferreiros, os carpinteiros, os talhantes e os caçadores de feras…».
Todo este processo muito selectivo poderia fazer com que as autoridades militares
tivessem de recorrer à conscrição, embora houvesse todo o interesse que o alistamento
fosse voluntário. A tomada em consideração destes critérios, mais morais do que
jurídicos, mostra bem o valor do papel que desempenhava o encarregado da inquisitio:
com efeito, lança alguma luz sobre os limites da documentação oficial, que o
praepositus seria levado a empregar ao cumprir a sua missão: é difícil acreditar que
todas as informações estivessem consignadas na mesma documentação. Era essencial
que o praepositus tivesseuma série de dados pessoais sobre os homens mobilizáveis no
seu distrito.
Quanto às cartas de recomendação (litterae commendaticiae), serviam igualmente
para colmatar as lacunas dos registos do censo e as falhas de memória dos agentes
recrutadores. Desde os últimos tempos da República, assinalam-se menções às cartas
de recomendação na correspondência epistolar de Cícero. Mas, à semelhança das cartas
de Plínio-o-Moço, trata-se, em regra, de referências a nomeações para postos de
comando.
Sobre a probatio dos simples soldados, as fontes papirológicas assumem inestimável
importância. Mas, graças à descoberta dos documentos militares de Vindolanda1627,
1625
Dominic Moreau, «Un recrutement illégal d’esclaves dans l’armée romaine en Bithynie-Pont à l’époque de Trajan»,
Cornucopia. Société des Études Anciennes du Québec, 7 (Hiver 2002), pp. 41-51.
1626
No entanto, é possível que Vegécio, escrevendo numa época já tardia, tenha idealizado a imagem e o rigor selectivo
do recrutamento no exército romano.
1627
Que corresponde à actual Chesterholm, Inglaterra: no depósito de resíduos e de objectos do antigo forte de tropas
auxiliares de Vindolanda, em de 1973, achou-se uma série de tabuinhas, muitas escritas a tinta sobre um suporte de
madeira, datando do período que vai de 85 a 105 d. C., anteriores à Muralha de Adriano. Trata-se de um acervo muito
552
dispomos de testemunhos idênticos aos encontrados no Egipto. O candidato ao
recrutamento que carecesse de contactos ou «padrinhos» podia escrever uma petição
destinada ao governador.
A utilidade das cartas de recomendação fez-se sentir com particular acuidade no
Egipto1628, por causa da multiplicidade dos estatutos jurídicos, que deviam a população
em categorias bem diferentes. Para além dos escravos, os Egípcios auctótones, por
norma, estavam proibidos de entrar no exército romano, apenas podendo ingressar
como marinheiros na frota de Misenum. Consequentemente, no país nilótico, a
distribuição dos recrutas por cada corpo de recrutas requeria medidas de controlo
ainda mais específicas do que noutras regiões, fenómeno que captamos mediante as
fontes papirológicas. Foi assim que um soldado da Legio III Cyrenaica se viu coagido a
garantir, sob juramento, que era um homem livre e cidadão romano (P. Fay. Barns 2;
CPL 102). Aparentemente, o critério da idade tinha menor relevância. Ademais, as
pesquisas empreendidas nos últimos anos vieram a demonstrar a dificuldade no
apuramento de uma média etária no contexto do recrutamento. Por fim, os recrutas
deviam possuir noções elementares de latim; para uma parte dos contingentes, talvez
até se exigisse um certo nível de instrução.
A probatio findava com uma matricula, que se traduzia na atribuição a cada recruta
de uma pequena placa de chumbo onde se indicava o seu nome – o signaculum – que o
soldado usava dentro de uma bolsa, pendurada ao pescoço por um cordão. De acordo
com as citadas Actas do mártir Maximiliano, no fim do século III d. C., o signaculum
ainda não fora substituído por uma tatuagem. Contudo, esta selecção preliminar não
fazia dos tirones soldados por inteiro. O indivíduo que superasse a primeira etapa do
recrutamento era designado simplesmente como probatus ou lectus tiro. O probatus só
se convertia num verdadeiro miles depois ter estado submetido a treinos diários
durante quatro meses, no mínimo.
Como se depreende, na segunda fase do recrutamento testava-se a resistência do
mancebo, bem como a sua bravura, além das suas faculdades intelectuais e o seu grau
de instrução. Naturalmente que, para receber esta formação inicial, o tiro teria de se
encontrar adstrito a uma unidade. Neste momento, ele obtinha um adiantamento do
soldo, chamado viaticum1629, que servia para cobrir as despesas da sua viagem rumo à
base militar para a qual fora destinado; se tivesse de efectuar uma longa marcha,
obtinha ainda dinheiro para os cravos (clavarium) das sandálias (caligae).
A sua afectação era determinada pelo «gabinete» do governador que procedeu ao
arrolamento, enviando uma carta ao comandante da unidade escolhida, informando-o
da chegada de recrutas. Estes, mal chegassem à unidade de destino, eram registados
nos arquivos da mesma: por exemplo, entre Janeiro e Maio de 156 d. C., a cohors I
Augusta Praetoria Lusitanorum equitata recebeu nove recrutas, todos aparentemente
voluntários, aprovados pelo prefeito do Egipto Sempronius Liberalis; sete ingressaram
nas centúrias de infantaria, o oitavo foi colocado na turma do decurião Artemidorus e o
nono, como dromedarius (condutor de camelo) na turma de Salvianus1630.
A signatio
rico e esclarecedor sobre o quotidiano de uma pequena guarnição. Para consultar destas fontes, há que aceder às
colectâneas de A. K. Bowman e de J. D. Thomas, todas com o mesmo título: The Vindolanda Writing-Tablets, volumes.
I (1983), II (1994 e III (2003). Foram publicadas em Londres, sob a chancela do British Museum.
1628
A este respeito, consulte-se R. Alston, Soldier and Society in Roman Egypt…, pp. 135-137 (alguns documentos
também se reportam à prática de subornos (p. 136).
1629
Este «subsídio de viagem» ascendia, geralmente, a 75 denários ou, então, a três moedas de ouro ( aurei): Cf. S. Perea
Yébenes, «Viaticum militare», in A. Akerraz, P. Ruggeri, A. Siraj e C. Vismara (eds.), L’Africa romana. Mobilità delle
persone e dei popoli, dinamiche migratorie, emigrazioni ed immigrazioni nelle province occidentali dell’Impero
romano, Roma, Carocci editore, 2006, pp. 741-754.
1630
P. Southern, The Roman Army: An Institutional History…, p. 133.
553
A partida dos recrutas para as suas unidades de destino tinha de ser cuidadosamente
enquadrada, a fim de evitar as deserções. Para o efeito, era assaz útil haver elementos
informativos que facilitassem a identificação dos probati pelo comandante da
guarnição que os ia acolher, que obviamente não os conhecia. De facto, contrariamente
ao dilectus republicano, descrito por Políbio e por Tito Lívio, na época imperial, já não
eram mais os cônsules e os tribunos militares que efectuavam o arrolamento e a
incorporação dos recrutas. Graças à documentação achada na Síria e no Egipto,
sabemos que tais cartas não consistiam apenas numa enumeração dos nomes dos
probati: a cada nome adicionava-se uma espécie de ficha sinalética, referente a cada
recruta. O primeiro exemplo conhecido, e que se encontra também em melhor estado
de conservação, é um papiro de Oxyrhynchus, datando do começo de Fevereiro de 103
d. C., no qual se copiou uma missiva escrita pelo prefeito do Egipto para o prefeito da
cohors III (auxiliar) Ituraeorum, anunciando-lhe a afectação de seis novos recrutas,
que o último teria de instruir (P. Oxy. VII1631, 1022; ChLA, III, 215):
«Cópia. Caius Minucius Italus saúda o seu caro Celsianus. Ordeno que os seis recrutas que
aceitei [tirones sexs probatos a me] sejam incorporados na coorte que tu comandas, a partir de
19 de Fevereiro. Junto a esta carta os seus nomes e os seus sinais [de identificação física] ...
Caius Veturius Gemellus, 21 anos de idade, nenhum sinal particular; Caius Longinus Priscus, 22
anos, uma cicatriz no sobrolho esquerdo; Caius Iulius Maximus, 25 anos, nenhum sinal
particular; … Lucius Secundus, 20 anos, nenhum sinal particular; Caius Iulius Saturninus, 23
anos, uma cicatriz na mão esquerda; Marcus Antonius Valens, 22 anos, uma cicatriz no lado
direito da testa. [segunda-mão] Recebido a 24 de Fevereiro, no sexto ano do nosso imperador
Trajano por Priscus, ordenança. Avidius Arrianus, cornicularius da IIIª coorte Ituraeorum,
certificou-se que o original desta missiva se conserva nos arquivos da coorte».
Vemos, pois, que se apontava a idade, bem como eventuais cicatrizes, marcas ou
particularidades visíveis no cabeça ou no resto do corpo dos soldados. O vocábulo
iconismus, presente no documento acima transcrito, reportava-se a particularidades
físicas que permitissem distinguir individualmente os recrutas. Certos soldados, mais
desafogados, encomendavam a feitura de «retratos», que depois ficavam anexos aos
seus processos. Estes dados eram em seguida exarados nos dois principais documentos
que se redigiam no âmbito da gestão do pessoal militar: em primeiro lugar, nos acta
diurna (expressão que se pode verter por «relatórios matinais») e, depois, no
pridianum, que correspondia a um inventário anual ou bienal. O último género de
documento devia o seu nome ao facto de ser consignado nas vésperas das calendas de
Setembro, no Egipto (BGU, II, 696; ChLA X, 411, de 31 de Agosto de 156 d.C.). Os sinais
identificativos apareciam também nas «cadernetas» militares dos soldados 1632,
englobando apreciações de ordem disciplinar.
Nas unidades, a formação militar e o treino1633 dos recrutas estavam a cargo de
instrutores - campidoctores, doctores armorum, doctores cohortis, exercitatores,
magistri campi. Compreendendo simultaneamente exercícios de simulação de
combate, a participação em obras edificatórias e treino no terreno (Vegécio, Epit. rei
milit. I, 8), este processo permitia uma adequada avaliação dos recrutas, cujos
resultados se viam registados no seu ficheiro, através de notas que lhes eram
atribuídas. Segundo um parágrafo das Etimologias de Isidoro de Sevilha, sob a epígrafe
De notis militaribus («Das anotações militares», Etimologias, I, 24), é possível que a
letra l, abreviatura de λειφθες, com o significado de «insuficiente», servisse para
sancionar um soldado que não tivesse cumprido os requisitos da sua formação inicial.
Por outro lado, quando se pretendia indicar a falta de jeito ou inexperiência, utilizava-
se a letra lambda, ao passo que para apontar um óbito se escrevia um theta nigrum no
início da linha. Existiam, também, anotações específicas sobre o pagamento dos soldos:
«Havia, também, nos pequenos registos contendo os nomes dos soldados, uma anotação
particular que os Antigos empregavam para assinalar o número de militares vivos e o dos
1631
R. O. Fink, Roman Military Records on Papyrus, Case Western Reserve University, 1971, nº 87; B. Campbell, The
Roman Army 31 BC-AD 337…, nº 9, p. 13.
1632
P. Cosme, «Le livret militaire du soldat romain», Cahiers du centre Gustave Glotz, 4 (1993), pp. 67-80.
1633
Para uma boa descrição sobre o treino e a instrução militar, veja-se G. R. Watson, The Roman Soldier, pp. 54-72.
Estudaremos este aspecto pormenorizadamente mais adiante.
554
tombados em combate. A anotação T, tau, colocada no começo da linha, designava um soldado
vivo; em contrapartida, apunha-se o theta ao nome de um morto. Daí o traço, sinal de morte,
que a letra comporta no meio. Sobre ela Pérsio afirmou. “É capaz de apanhar pela astúcia o
negro theta”. Quando, por outro lado, queriam indicar a inexperiência, utilizavam a letra
Lambda, do mesmo modo que indicavam a morte ao apôr um Theta no início da linha. Havia,
igualmente, anotações particulares a respeito da atribuição dos stipendia»1634.
A interpretação deste trecho gerou uma controvérsia académica, protagonizada por G.
R. Watson e J. F. Gilliam 1635. A questão consiste em saber se devemos associar este
fragmento literário ao contexto da avaliação dos recrutas. Tudo depende da maneira
como se interpretam as abreviaturas mencionadas por Isidoro: θ, τ e λ. O θ parece não
levantar problemas, já que se trata muito provavelmente da abreviatura para θάνατος
(thanatos) que servia para designar os soldados mortos nos registos referentes às
baixas, que compreenderiam já, sem dúvida, à semelhança dos doctumentos actuais, as
categorias «mortos», «feridos» e «desaparecidos». Porém, as letras τ e λ são
dificilmente interpretáveis. J. F. Gilliam refutou a restituição inicial feita por G. R.
Watson do τ (τρωθεις ou τετρωμές (ferido mas vivo1636) e do λ (λείπωυ ou έλλείπωυ
(em falta, desaparecido), e até λποστρατιώτης ou λιποτάκτης (desertor) - ao mostrar
que tais abreviaturas não poderiam dizer respeito a um registo de baixas, na medida em
que Isidoro se refere a um papel nominativo (in breviculis quoque, quibus militum
nomina continebantur).
Ao apoiar-se num excerto de Turrânio Rufino, sacerdote de Aquileia, adversário de
São Jerónimo, contido na Apologia adversus Hyeronymum (II, 36), anterior em mais
de dois séculos ao texto de Isidoro e que só menciona as abreviaturas θ e τ, J. F. Gilliam
entendeu que só estas se relacionariam com um contexto castrense. Quanto às
considerações de Isidoro sobre o sentido de λ, elas constituiriam somente uma
digressão costumeira por parte deste autor, para quem as abreviaturas militares terão
feito pensar num uso corrente de λ para abreviar a palavra λεσζιάξειυ («viver no
deboche»). Encontrar-se-ia um vestígio disto em Aristófanes ou na Antologia Palatina;
caberia então adoptar as lições inpuritiam ou impueritiam apresentadas em certos
manuscritos das Etimologias, que Gilliam reteve1637.
Todavia, G. R. Watson duvidou que, neste ponto, a suposta divagação de Isidoro
pudesse distanciar-se do contexto militar, uma vez que aparece no fim do capítulo para
evocar o pagamento do soldo; assim, seria de ver nela um significado independente das
duas primeiras notae: ao abreviar λειΦθέίς ela representaria antes uma má nota dada
a um recruta que manifestasse falta de jeito e incompetência durante o período de
treino inicial. Este capítulo de Isidoro, juntamente com os testemunhos de Vegécio e
dos papiros, parece então confirmar a existência, referida por Apiano, de anotações
disciplinares integradas numa autêntica «caderneta» militar individual que encerrava
um «retrato» físico e moral de cada recruta1638.
***
1634
In breviculis quoque, quibus militum nomina continebantur, propria nota erat apud veterers, qua inspiceretur
quanti ex militibus superessent quantique in bello cedidissent. T Tau nota in capçite versiculi posita superstitem
designabat. Θ Theta vero ad uniuscuiusque defuncti nomen apponebatur. Unde et habet per medium telum, id est
mortiis signum. De qua Persius ait (IV, 13): ‘Et potis est nigrum vitio praefigere theta’. Cum autem imperitiam
significare vellent, Lambda littera usi sunt, sicut mortem significabant, cum ponebant Theta ad caput. In
stipendiorum quoque largitione propriae erant notae.
1635
G. R. Watson, «Theta nigrum», Journal of Roman Studies XLII (1952), pp. 56-62; J. F. Gilliam, «Notae militaires
chez Isidore, I 24», Hommages à Léon Hermann, Latomus, XLIV (1960), p. 408ss; G. R. Watson, «Isidore I, 24»,
Historia II (1962), pp. 379-383.
1636
Restituição também adoptada por J. M. Carrié, «O soldado», in A. Giardina (dir.), O homem romano…, p. 161.
1637
No entanto, J. F. Gilliam e G. R. Watson rejeitaram uma terceira interpretação proposta por J. H. Oliver: «Disability
in the Roman Army Lists», Rheinisches Museum C (1957), pp. 242-244. Segundo Oliver, imperitiam resultaria de uma
má leitura de um copista do termo ineptiam aplicado a um soldado tornado inapto para o serviço milita devido a
ferimentos sofridos. De acordo com esta hipótese, λ serviria para abreviar o étimo λωζηθεις – fisicamente apto- mas
nenhum manuscrito corrobora tal facto.
1638
P. Cosme, «Le livret militaire du soldat romain», p. 71.
555
Os tirones que superassem a última etapa eram inscritos no rol da unidade, após
participarem num desfile. A fórmula oficial in numeros referri qualificava esta segunda
fase do recrutamento, a signatio, ao mesmo tempo arrolamento e incorporação, que
tornava o probatus num signatus in numeros relatus, habilitado a prestar juramento e
a receber o seu primeiro soldo. Eis o que nos diz Vegécio (Epit. rei milit. II, 5):
«Depois de cuidadosamente seleccionados, para deles fazer soldados, com jovens de
compleição robusta e boa vontade, a seguir a uma série de exercícios diários durante quatro
meses, forma-se uma legião, sob os auspícios do princeps. Começa-se por fazer marcas
indeléveis na mão dos novos arrolados, e presta-se o juramento, à medida que se registam os
seus nomes no rol da legião».
***
Nas fontes literárias escritas (note-se) por membros da elite, o soldado surge quase
sempre como um indivíduo marginalizado e miserável: Tácito, por exemplo, fala de
homens necessitados e indigentes, que formavam a escória da sociedade e eram
incorporados nas forças militares às carradas (Ann. 4.4). Para a elite, o mundo duro da
gente comum e pobre só poderia pintar-se com pinceladas de desdém. Nas obras
literárias antigas, praticamente não se dá conta do legionário enquanto ser bem
personalizado: costuma aparecer como parte de uma massa, «do exército», de «uma
legião», ou de qualquer outro agrupamento. Só a título excepcional e, geralmente, em
relatos fictícios, se apresenta o soldado mais individualizado. Quando os escritores da
elite se dignavam pensar no militar de infantaria, tendiam a destacar os seus esforços
heróicos, mas, no fundo, estava invariavelmente presente a imagem do soldado como
alguém perigoso, ignorante, de baixa estirpe e movido por instintos primários.
Na realidade, porém, muitos soldados eram jovens que haviam sido criados no seio
das suas famílias, que aprenderam ofícios, se bem que estes praticamente se limitassem
à agricultura, e que ao decidirem ingressar no exército, estavam dispostos a começar
uma nova vida. Por costume, as mulheres casavam bastante cedo, ainda durante a
adolescência, mas já os homens o mesmo faziam mais velhos, a partir dos vinte e
muitos: assim, seriam poucos os recrutas que já tivessem esposa e filhos.
Tanto a simplicitas (simplicidade) como a imperitia (ignorância) se viam como
atributos positivos. Obviamente que o exército não procurava idiotas, mas indivíduos
que, de preferência, tivessem poucas ideias próprias e que estivessem mais atreitos a
serem moldados, caso fosse conveniente. Havia, claro está, excepções. Até quanto aos
simples soldados, era conveniente e útil que possuíssem um certo grau de alfabetização.
Como vimos, os que soubessem ler e escrever bem como contar reuniam mais
possibilidades de acederem a postos administrativos dentro das legiões e de se verem
promovidos (Vegécio, Epit. rei milit. 2.19).
Autores antigos e estudiosos modernos acentuaram a ideia da dureza do serviço
militar, mas há que matizar tal imagem. Uma vez descartada qualquer comparação
entre as condições de vida do mundo greco-romano e as do mundo ocidental a partir de
1800, fica mais ou menos claro que, segundo os padrões da Antiguidade, o soldado
gozava de uma existência que se pode qualificar de «razoável». Mesmo que um
camponês trocasse o seu fatigante labor numa propriedade pela vida militar, na última
ele trabalharia em melhores condições do que se tivesse optado por não abandonar a
agricultura, dado que a vida de soldado mitigava, em larga medida, os aspectos mais
adversos da sua anterior profissão.
Assim, geralmente não haveria falta de recrutas, embora isto dependesse dos
períodos históricos e das regiões onde se efectuassem os arrolamentos. Numa carta
descoberta no Egipto (datando de começos do século III d. C.), Isis, ao escrever à sua
mãe, refere que «se Aion quer ser soldado, basta-lhe apenas apresentar-se, já que toda
a gente se está a alistar» (BGU 7.1680). O atractivo do serviço militar, durante a época
imperial, reflectido nestas palavras radicava, essencialmente, no elevado grau de
segurança social que os soldados usufruíam e, em especial, no facto de os milites
receberem uma remuneração regular durante um largo período de tempo. O indivíduo
556
que, depois de passar com êxito o teste de aptidão, a probatio, via-se inserido na lista
(matrix) de uma determinada unidade, e teria de cumprir, dependendo do ramo das
forças armadas a que estava adstrito, 16 a cerca de 30 anos de serviço militar. No
decurso deste espaço temporal, ele sofria restrições na liberdade individual, mas
beneficiava de um soldo regular, de alojamento, comida e acesso a tratamentos
médicos; além de tudo isto, podia receber tanto recompensas financeiras como
privilégios legais quando fosse licenciado honrosamente do exército (honesta missio). A
pior contrapartida para alguém que se alistasse como voluntário era a de perecer numa
guerra, mas para muitos jovens tal perspectiva encarava-se como uma possibilidade
relativamente remota. Não esqueçamos que a época imperial conheceu longos períodos
de paz e apenas uma reduzida parte do império romano lutava habitualmente contra
inimigos armados.
Quando um rapaz decidia seguir o ofício de soldado contava, em geral, com a
anuência da sua família, sobretudo se o pai tivesse sido militar. Os que haviam nascido
e crescido perto de um forte já se encontravam aclimatados com a vivência e as
actividades próprias dos milites. Um progenitor que sentisse profundo orgulho por
abraçar a carreira das armas imaginava, não raramente, o mesmo género de percurso
para um ou mais dos seus filhos. Subsistiram provas documentadas para tais
expectativas, como, por exemplo, os cognomina quase iguais de M. Aurelius Militio e
do seu filho Aurelius Militaris (CIL III.5955). Chegou até nós, igualmente, o comovente
monumento funerário que um cornucen da Legio II Adiutrix erigiu para o seu filho,
que morreu aos 4 anos: na lápide fica explícita a tremenda vontade que o militar
acalentara de que a criança tivesse seguido as suas pisadas; num relevo, o miúdo é
representado na pedra exibindo o cingulum militare e a pegar num rolo de papiro,
vendo-se sobre este o indicador da sua mão direita, como se prestasse um juramento
(CIL III.15159)1639.
Ainda que alguns pais se pudessem opor, a maioria talvez concordasse com estes
progenitores judeus, que surgem numa história narrada no Talmude, mostrando o seu
desejo de que o filho se alistasse:
«Um homem chegou para alistar um jovem. O pai disse: Olha para o meu filho, um grande
rapaz, um herói, vê como é alto! A mãe também afirmou: Olha para o nosso filho, é muito alto. O
outro respondeu: Aos vossos olhos ele é um herói e é alto. Não sei. Vejamos se é alto. Mediram-
no então e verificou-se que era demasiado baixo e foi posto de parte» (Agaddat Genesis, 40.4).
Hoje em dia, há quem considere ponto assente não ser habitual os pais quererem que
os filhos se alistassem no exército. Porém, não há motivos para presumir que a atitude
destes pais judeus reflicta uma situação anómala ou peculiar. Sendo este o caso, a fonte
aproveitaria a ocasião para nos informar disso. Ora o que acontece é precisamente o
contrário – esta menção casual mostra nitidamente que o serviço militar significava
uma perspectiva que os pais desejavam para os seus filhos. Tanto os primeiros como os
últimos tinham consciência de que a vida civil só augurava uma vida sombria, e que o
exército representava exactamente o oposto, traduzindo-se numa luminosa alternativa
no meio daquela obscuridade.
Além disso, um substancial número de jovens sentia a tentação de servir no exército.
Mas nem todos, como é lógico, elegiam esta opção: para alguns, deixar uma quinta ou
um negócio podia trazer desvantagens, uma vez que enveredar pela carreira das armas
implicava trocar o conhecido pelo desconhecido, abandonar a estabilidade e o apoio da
família por uma nova vida num meio totalmente diferente. Neste sentido, em certos
casos, a família de um candidato a recruta talvez manifestasse viva oposição à sua
incorporação no exército romano. Numa carta encontrada no Egipto (escrita entre 41 e
67 d. C.), uma mulher repreende directamente o marido, Sarapion, por incentivar o
filho de ambos a alistar-se:
«Quanto ao meu filho Sarapas, não dormiu ao pé de mim todo este tempo, pois foi para o
acampamento, ingressando no exército. Não lhe deste um bom conselho ao dizer-lhe que se
1639
G. Wesch-Klein, «Recruits and Veterans», p. 436.
557
unisse ao exército. Porque quando o instei para que não se alistasse, ele disse-me: “O meu pai
disse-me para ir para o exército”» (BGU IV.1097)1640.
Aqui não se tratava só do factor emocional e afectivo da perda de um filho; também
estava em causa a dificuldade, em termos práticos, da perda a curto-prazo de mão-de-
obra na casa e, a longo-prazo, a falta de apoio de um filho durante a velhice dos pais.
Podia suceder que o jovem fosse destinado para uma unidade militar longe do seu lugar
de origem, mas nem sempre, principalmente nas fases mais avançadas do Império.
Contudo, é inegável que se gerava uma separação física do filho em relação à sua
família, a qual tão cedo não teria noticías dele por causa da lentidão com que se
processava a entrega da correspondência. Diversas missivas achadas no Egipto
mostram que alguns soldados, mesmo destacados em zonas remotas, continuavam a
manter os seus laços familiares. Certamente que o afastamento do local onde nascera e
fora criado seria, pelo menos no início, complicado para o soldado, ou até durante todo
o seu tempo de serviço. Apion, um egípcio que foi adstrito para a frota romana de
Misenum, expressou bem esta situação, apesar de não corresponder a um legionário:
«Apion para Epimachos, seu pai e senhor, muitas saudações. Antes de tudo, peço que tenhas
saúde e que, estando com forças, sejas feliz com a minha irmã, sua filha,e o meu irmão. Dou
graças ao senhor Serapis porque, correndo eu perigo no mar, me salvou mesmo a tempo.
Quando cheguei a Misenum, recebi de César como viaticum três moedas de ouro e estou bem.
Peço-te, meu senhor e pai, que me escrevas uma cartita, primeiro informando-me da tua saúde,
segundo, sobre as dos meus irmãos, e terceiro, para beijar a tua mão, porque me educaste bem e
por isso acredito que depressa irei progredir. Os meus melhores votos a Capiton, ao meu irmão
e à minha irmã, a Serenila e aos meus amigos. Envio-te um retrato meu por meio de Euctemon.
O meu nome de soldado é Antonis [Antonius] Maximus1641. Peço que tenhas saúde» (BGU II,
423, linhas 8-10 1642).
Os vínculos psicológicos com a família impediam que desta se alistasse mais de um
mancebo. No entanto, as recompensas que um soldado poderia obter eram, pelo menos
em teoria, enormes, pelo que muitos rapazes deixavam as suas famílias em busca de
uma nova vida. Num mundo assolado pelo desemprego crónico, pela escassez de
alimentos durante os últimos meses do Inverno e pelas catástrofes naturais (que
invariavelmente transtornavam o próprio ritmo vital), o exército sobressaía como o
único «emprego» a tempo inteiro, que oferecia um salário regular.Artemidoro de
Daldis alude a esta realidade na sua interpretação de um sonho, que atrás referimos:
«Enveredar pela carreira de soldado vaticina negócios e emprego para os desempregados e
necessitados, porque um soldado nunca está desempregado nem passa por dificuldades»
(Oneirokritika, 2.31).
As seguintes palavras, cinzeladas na estela funerária de um marinheiro, salvo da
pobreza ao alistar-se no exército, seriam indiscutivelmente subscritas por muitos dos
legionários:
«Lucius Trebius, filho de Titus, pai [dedicou este monumento]. Eu, Lucius Trebius Rusus, filho
de Lucius, nasci na mais absoluta miséria. Depois, servi como marinheiro junto do imperador ao
longo de 17 anos. Recebi uma honesta missio» (CIL V.5938 = ILS, 2905, Augusta Bagiennorum,
Itália).
Ser-se soldado consistia verdadeiramente numa profissão, assim encarada tanto pelos
militares como pelo mundo civil. Na Primeira Carta aos Coríntios, quando Paulo dá
exemplos de gente que trabalha e merece ser paga pelo esforço inclui os soldados:
1640
B. H.Olsson, Papyrusbreiefe aus der frühesten Römerzeit, Upsala, 1925, nº 38; R. S. Bagnall e R. Cribiore, Women’s
letters from ancient Egypt. 300 BC-AD 800, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 2006, p. 307 (tradução e
fotografia do documento). Desconhece-se a procedência desta missiva: conserva-se no Staatliche Museen
(Papyrussammlung), de Berlim (P. 11050). Para comentários sobre esta carta (além de uma série de outras), cf. S. Perea
Yébenes, «Ejército y soldados romanos en cartas de mujeres sobre asuntos familiares, militares y civiles, en papiros de
Egipto de los siglos I-IV», in J. J. Palao Vicente (ed.), Militares y civiles en la Antigua Roma: dos mundos diferentes,
dos mundos unidos, Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, 2010, pp. 203-204
1641
A mudança do nome mostra que o recruta não era cidadão romano.
1642
Documento igualmente publicado nas seguintes colectâneas: L. Mitteis e U. Wilcken, Grunzüge und Chrestomathie
der Papyruskunde, I, Leipzig/Berlim, 1912, nº 480; A. S. Hunt e C. C. Edgard (eds.), Select Papyri: Non-Literary
Papyri, Cambridge/MA, 1932, nº 112; B. Campbell: The Roman Army […] A Sourcebook, nº 10, p. 13.
558
«Quem é que vai para a guerra à sua própria custa? Quem é que planta uma vinha e não come
do seu fruto? Ou quem é que anda a guardar um rebanho e não se alimenta do leite desse
rebanho? (I Cor 9,7)
Para um miles, as expectativas de benefícios materiais eram numerosas: em primeiro
lugar estava o soldo; ele ganhava por dia aproximadamente o mesmo do que um bom
trabalhador civil, mas o primeiro mantinha-se em actividade todo o ano, enquanto o
último ficava amiúde sem emprego, facto usual na Antiguidade, já que a maior parte
das tarefas efectuavam-se a um ritmo sazonal.
1643
The Complete Roman Army, Londres, 2003, pp. 76-77.
1644
«Conscription and Volunteering in the Roman Imperial Army», Scripta Classica Israelica, 1 (1974), pp. 90-115. Este
artigo foi reeditado numa obra do mesmo autor, intitulada Roman Imperial Themes, 1990, pp. 188-214, incluindo uma
adenda (pp. 512-515).
1645
War and Society in Imperial Rome 31BC-AD 284, Londres/Nova Iorque, 2002, pp. 25-26.
1646
Com efeito, ao contrário do que muitas vezes se presume, a conscrição continuou a ser um importante método de
arrolamento na época imperial. A este respeito, cf. W. Eck, «Friedenssicherung und Krieg in der römischen
Kaiserzeit.Wie ergänzt man das römische Heer?», in A. Eich (ed.), Die Verwaltung der kaiserzeitlichen römischen
Armee. Studien für Hartmut Wolff, Estugarda, 2010, pp. 87-110; M. A. Speidel, «Being a Soldier in the Roman Imperial
Army – Expectations and Responses», in C. Wolff (ed.), Le métier de soldat dans le monde romain. Actes du cinquiéme
congrès de Lyon organisé les 23-25 septembre 2010 par l’Université Jean Moulin 3, Paris, Diff. De Boccard, 2012, p.
177.
559
Nonius promete ao deus sacrificar um javali e um vitelo, se regressar do exército são e
salvo1647:
C(aius) Nonius L(uci) f(ilius) Serg(ia) [---]/ e munici[p]io Sulmone p[romisit] miles
Herc[u]li Curino sei salv[us e]/ castris rediset vot[a-]/ verem et vitul[um]/ et votis
dam[natus]/ [a]dest.
Todavia, nada indica que os conscritos servissem em condições diferentes do que os
voluntários, ou que fossem menos eficientes. Ainda assim, a administração do exército,
a nível provincial, registava cuidadosamente as circunstâncias em que um recruta era
incorporado nas forças armadas, facto que se confirma num documento recentemente
descoberto, inserido numa placa fragmentária de bronze 1648. A secção que se conservou
do texto latino refere-se ao licenciamento honroso (honesta missio) em 240 d. C. de um
soldado da Legio XX, recrutado como [dil]ectarius ex provincia Th[racia]1649. É pouco
clara a exacta natureza do texto, mas neste utiliza-se nitidamente terminologia militar.
O termo dilectarius relaciona-se com o recrutamento por meio do dilectus1650.
Na realidade, o número de voluntários apenas se revelou suficiente ao longo da
primeira metade do século III d. C., entre o reinado de Septímio Severo (que melhorou
a condição dos militares) e as invasões bem como as usurpações que se sucederam a
partir de meados deste século. Os casos do uso da conscrição nem sempre são
facilmente determináveis, na medida em que, sob o Império, o termo dilectus se
empregava tanto para designar a convocação de voluntários como os recrutamentos
realizados mediante coacção.
Pelo menos desde o reinado de Trajano, a obrigação de servir viu-se atenuada pela
possibilidade de um indivíduo se fazer substituir. Os registos do censo conservaram,
pois, a sua utilidade militar, já que permitiam à administração imperial avaliar o
potencial dos homens disponíveis que viviam nas regiões italianas e nas diferentes
províncias, a fim de escolher melhor aqueles cujo contributo era solicitada. Além disso,
a consulta desta documentação era invariavelmente indispensável para se verificar o
estatuto jurídico dos recrutas.
Para exercer as suas prerrogativas em matéria de recrutamento, o princeps teria de
dispor em Roma, em primeiro lugar, de uma lista dos efectivos das unidades dos
diferentes corpos do exército que estivesse regularmente actualizada, por meio dos
relatórios fornecidos pelos governadores. Só a consulta dessa lista permitiria ao
imperador averiguar quantos homens teria de recrutar, em função do número daqueles
que eram desmobilizados, das baixas e das ameaças internas e externas. Apreendemos,
aliás, indirectamente, a existência deste inventário das formas armadas romanas num
trecho de Suetónio (Augusto, 101):
«[Augusto] havia feito o seu testamento sob o consulado de L. Planco e C. Sílio, três dias antes
das nonas de Abril [3 de Abril], um ano e quatro meses antes da sua morte, acrescentando-lhe
dois codicilos, escritos em parte pelo seu punho e em parte pelos seus libertos Políbio e Hilarion.
Este testamento, depositado no colégio das Vestais, o apresentaram estas mesmas em três rolos
[de pergaminho] igualmente selados. Todos estes documentos foram abertos e lidos no Senado
[…] Quanto aos três rolos [de pergaminho] continham: o primeiro, as instruções relativas ao seu
funeral, o segundo, o resumo da obra que empreendera, resumo que ele pediu para gravar sobre
tábuas de bronze, diante do seu Mausoléu; o terceiro era uma exposição da situação de todo o
império, mostrando quantos soldados havia sob as insígnias, quanto dinheiro no tesouro do
imperador, quanto nas arcas do Estado e que tributos e impostos ainda se deviam […]»;
Como também de uma passagem de Tácito (Ann.1.11.3-4):
«Quando Tibério fez com que trouxessem e lessem uma memória. Nesta se encontravam os
recursos públicos, o número de cidadãos e dos aliados sob as armas, a lista das frotas, dos
treinos, das províncias, a exposição da situação dos impostos directos ou indirectos, das
1647
AE 1981, 283 =Supp. It IV 7.
1648
AE 2006, 1866 = Zs. Mráv e A. Szabó, «Fragment einer bronzener Urkunde neuen Typs über die Entlassung eines
Legionssoldaten vom Jahre 240 n. Chr.», ZPE 169 (2009), pp. 255-268.
1649
Não há dúvida que [dil]ectarius é a restauração correcta. Cf. AE 2006, 1866. Para o contexto, vejam-se: G. Alföldy,
Römische Heergeschichte. Beiträge 1962-1985, Amesterdão, 1987, pp. 368-376; M. A. Speidel, Heer und Herrschaft im
Römischen Reich der Hohen Kaiserzeit, p. 333ss.
1650
Cf. também CIL VIII 14603 = ILS 2305 (Simitthus): L(ucius) Flaminius D(ecimi) f(ilius) Arn(ensi)/ mil(es)
leg(ionis) III Aug(ustae)/ 7 (centuria) Iuli Longi dilecto/lectus ab M(arco) Silano […].
560
despesas necessárias e das liberalidades. Augusto escrevera todos estes detalhes com a sua mão
[… ]»;
E, ainda, de um trecho de Dión Cássio (Hist. rom. 56.33):
«Além disso, quatro volumes foram trazidos e lidos por Druso. No primeiro, Augusto havia
consignado as prescrições referentes ao seu funeral; no segundo, o resumo da sua vida, o qual
ele queria que fosse gravado em placas de bronze colocadas defronte do seu santuário. No
terceiro, incluía a situação dos exércitos, a das receitas e das despesas públicas, o estado das
finanças e outras instruções deste género, úteis para a governação do império; o quarto volume
encerrava recomendações para Tibério e para o público».
561
«nascimento» do exército permanente imperial. Noutras obras antigas, captam-se
vestígios das actualizações sucessivas desse inventário das forças militares, levadas a
cabo pela administração imperial. Tácito (Ann. 4.4,3; 5.1-4) faz menção à actualização
desse corpus informativo, feita a mando de Tibério, em 23 d. C.:
«Tibério fez então uma breve enumeração das legiões e das províncias que elas tinham de
defender. Creio, também eu, dever expor esta questão, ao indicar quais eram na altura as forças
militares de Roma, que reis eram seus aliados e como o Império era menos dilatado do que hoje
em dia. A Itália, num e noutro mar [Tirreno e Adriático], estava protegida por duas frotas, com
base em Misenum e Ravenna, e o litoral da Gália, o mais próximo, pelos navios com esporões
que Augusto se apoderou aquando da vitória em Actium, e que enviou para a localidade de
Forum Iulii [Fréjus] com bons remadores. Mas as principais forças encontravam-se no Reno,
servindo de reserva comum contra os Germanos e os Gauleses, com um efectivo de oito legiões.
As Hispânias, recentemente submetidas, estavam ocupadas por três. Sobre os Mouros reinava
Juba, que os recebeu como presente do povo romano. O resto de África era guardado por duas
legiões, o Egipto por igual número; para além disso, das fronteiras da Síria ao rio Eufrates, o
enorme território desta região dependia de quatro legiões, com os povos vizinhos, Hiberianos e
Albanianos, e outros reis que a nossa grandeza protege contra as potências estrangeiras. A
Trácia era governada por Rhoemetalces e os filhos de Cotys, a margem do Danúbio controlada
por duas legiões na Panónia e duas na Mésia; também estavam posicionadas na Dalmácia, cuja
localização geográfica punha as tropas na retaguarda das precedentes e bastante perto de Itália,
em caso de uma súbita ameaça exigir o envio de um contingente de socorro, embora Roma
tivesse a sua própria guarnição: três coortes urbanas e nove pretorianas, recrutadas geralmente
na Etrúria, na Úmbria ou no antigo Lácio, bem como nas colónias romanas fundadas em tempos
mais recuados. Consoante as necessidades das províncias, por estas se repartiram os trirremes
aliadas, as alas e as coortes auxiliares, que não contavam com menos efectivos; mas seria
arriscado entrar em pormenores, já que, segundo as circunstâncias, elas se movimentavam de
um sítio para outro, aumentando e, por vezes, diminuindo em número».
No discurso que Flávio Josefo colocou na boca de Herodes Agripa, quando este se
dirigiu aos Judeus para os dissuadir de se insurgirem contra Roma, em 66 d. C., a
conquista da Britânia (43) foi levada em linha de conta, na imagem que apresentou do
poderio militar romano (BJ II, 366-370, 373, 375, 377-378, 383 e 387). Dião Cássio, por
seu turno, reunia condições para distinguir a ordem de batalha das legiões sob os
Severos da que remontava ao Principado de Augusto e, num trecho, o autor grego chega
mesmo a precisar as datas de criação de novas unidades após esse período (História
romana, 55.23-24):
«Mantiveram-se, então, 23 legiões ou, de acordo com alguns historiadores, 25. Destas antigas
legiões só restam actualmente dezanove. São elas: a II Augusta, cujos aquartelamentos de
Inverno se situam na Britânia Superior; três Terceiras, a saber: a Gallica, na Fenícia; a
Cyrenaica, na Arábia e a Augusta na Numídia; a IV Scythica, na Síria; a V Macedonica, na
Dácia; as duas Sextas, de que uma, a Victrix, se encontra na Britânia Inferior, e a outra, a
Ferrata, na Judeia; uma VII na Mésia Superior: é a que se chama precisamente Claudia; a VIII
Augusta, na Germânia Superior; as duas Décimas, a saber: a Gemina, na Panónia Superior, e a
que está na Judeia; a XI Claudia, na Mésia Inferior [as duas legiões receberam este nome de
Cláudio, por se terem recusado a combater contra ele durante a revolta de Camilo]; a XII
Fulminata, na Capadócia; a XIII Apollinaris, na Capadócia; a XX, a que se chama Valeria e
Victrix, na Britânia Superior. Esta legião, em meu entender, assim como a que ostenta o número
de XXII, e cujos quartéis de Inverno se localizam na Germânia Superior (no entanto, não há
unanimidade entre os historiadores em dar à mesma o cognome de Valeria e ela não o utiliza
hoje em dia), foi conservada por Augusto depois de lhe ter sido entregue. Eis o que subsiste das
legiões deste princeps; quanto ao resto, fundiu-se uma parte, fosse por ele ou pelos imperadores
subsequentes, nas demais legiões, o que de acordo com a opinião comum lhes valeu o nome de
Gemina. Como fui levado a discorrer sobre as legiões, vou dizer como o remanescente das
mesmas que actualmente existem se viram formadas pelos seguintes imperadores, a fim de que
aquele que deseje obter informações possa tomar conhecimento disto mais facilmente, ao
deparar com estes detalhes num único sítio. Nero criou a legião I Italica, cujos quarteis de
Inverno se situam na Mésia Inferior; Galba, a I Adiutrix, na Panónia Inferior, bem como a VII,
que está na Hispânia; Vespasiano, a X Adiutrix, na Panónia Superior, a IV Flavia na Mésia
Superior e a XVI Flavia, na Síria; Domiciano, a I Minervia, na Germânia Inferior; Trajano, a II,
que está no Egipto, e a XXX, na Germânia, legiões às quais deu o seu nome; Marco Aurélio, a II,
562
na Nórica, e a III, na Récia, sendo ambas as legiões denominadas Italica; por fim, Severo,
formou as Parthicae, a I e a III que estão na Mesopotâmia, e a II, em Itália».
Nos documentos da administração central, não restam dúvidas de que todas as legiões
do exército foram classificadas segundo a ordem geográfica da sua província de
guarnição, como o atesta uma inscrição romana repertoriando as legiões sob a égide
Septímio Severo (CIL VI 3492; ILS 2288):
NOMINA LEG
563
Panónia VII Gemina Galbiana e XIII
Mésia (Moesia) III Gallica, VII Claudia Pia Fidelis e VIII
Síria IV Scythica, VI Ferrata e XII
Judeia V Macedonica, X Fretensis, XV Apollinaris
Egipto III Cyrenaica e XXII Deiotariana
África III Augusta
3º) Sob o reinado de Domiciano:
PROVÍNCIAS LEGIÕES
Britânia II Augusta, IX Hispana, XX Valeria Victrix
Germânia Sup. VIII, IX Claudia Pia fidelis, XIV, XXI
Germânia Inf. I Minervia, VI Victrix, X Gemina, XXII Primigenia
Dalmácia I Adiutrix (?)
Panónia XIII, XV Apollinaris
Mésia sup. IV Flavia, VII Claudia Pia Fidelis e II Adiutrix
Mésia inf. I Italica e V Macedonica
Capadócia XII Fulminata e XVI Flavia
Síria III Gallica, IV Scythica e VI Ferrata
Judeia X Fretensis
Egipto III Cyrenaica e XXII Deiotariana
África III Augusta
Hispânia Citerior VII Gemina
4º) Sob o reinado de Trajano
PROVÍNCIAS LEGIÕES
Britânia II Augusta, IX Hispana, XX Valeria Victrix
Germânia Sup. VIII Augusta e XXII Primigenia
Germânia Inf. I Minervia e VI Victrix
Panónia Sup. X Gemina, XIV, XV Apollinaris e XXX
Panónia Inf. II Adiutrix
Mésia Sup. IV Flavia e VII Claudia
Dácia I Adiutrix (?) e XIII
Mésia Inf. I Italica, V Macedonica e XI Claudia
Capadócia XII Fulminata, XVI Flavia
Síria III Gallica, IV Scythica e II Traiana
Arábia VI Ferrata (?)
Judeia X Fretensis
Egipto III Cyrenaica e XXII Deiotariana
África III Augusta
Hispânia Cit. VII Gemina
Estas listas com os numerais e os nomes das legiões, além da indicação das províncias
onde as mesmas se encontravam de guarnição, sugerem que, desde o principado de
Augusto, o imperador estaria em condições para reflectir circunstanciadamente sobre o
recrutamento no exército. Sob a dinastia Júlio-Cláudia, parece ter existido o objectivo
de manter uma certa proporção de Italianos e de cidadãos das províncias mais
564
romanizadas em cada legião, assim preservando o seu carácter original, limitando o
mais possível as deslocações de homens sobre distâncias demasiado longas. Mas
devemos relativizar a natureza voluntarista desta política de recrutamento racional e
equilibrado: de facto, ela depressa necessitou de tomar em consideração uma eventual
diminuição demográfica na península itálica, a renitência cada vez mais forte,
manifestada pelos Italianos e pelos cidadãos das províncias mais romanizadas, em
seguir o ofício das armas, como também o fenómeno da difusão da cidadania romana
no conjunto do Império. Com efeito, no Ocidente, a proporção de Italianos nas legiões
viu-se reduzida, sobretudo a partir do reinado de Vespasiano. O fim do século I d. C.
assistiu à extinção progressiva do recrutamento de indivíduos oriundos de Itália. Os
cidadãos da península foram gradualmente substituídos pelos provinciais mais
romanizados, provenientes da Narbonensis, da Hispânia ou de África.
Trajano procurou fomentar o recrutamento de Italianos ao conceder aos proprietários
fundiários da península empréstimos cujos juros permitiam contribuir para a educação
de crianças livres mas pobres. A finalidade militar deste sistema financeiro, chamado
alimenta1652, queda sublinhada pelas vantagens que os rapazes beneficiavam e,
igualmente, sugerida pela alegoria da Itália associada às crianças e à representação de
um legionário equipado. Não obstante os resultados desta política demográfica terem
sido escassos1653, a Itália continuou a ser solicitada quando se criavam novas legiões. É
certo que quando estas se formavam significaram excepções durante o Alto Império,
ocorrendo no âmbito de planos de conquista ou de guerras defensivas. Foi desta
maneira que se constituíram as legiões XVI e XXII Primigeniae, provavelmente por
Calígula em 39 d. C., quando projectou conquistar a Britânia. Nero, por seu lado, criou
a Legio I Italica, com vista à expedição que o imperador pretendia enviar para o
Cáucaso, em 66-67, e depois a legio I Adiutrix, na qual mandou arrolar os marinheiros
da frota de Misenum1654.
A política expansionista de Domiciano nos Agri Decumates conduziu à criação da
Legio I Minervia, em 83 d. C., enquanto a de Trajano, na Dácia, se saldou na formação
das legiões XXX Ulpia Victrix e II Traiana, em 101. Por outro lado, quando Marco
Aurélio criou as II e III Italicae, por volta de 165 d. C., foi por necessitar de defender a
Itália das incursões germânicas. No que respeita às três legiões Parthicae de Septímio
Severo, constituíram fruto das guerras civis e da conquista da Mesopotâmia em 197-
198.
No século II, as legiões recrutaram um número cada vez maior de homens nas
províncias em que estavam acantonadas: trata-se, portanto, de recrutamento efectuado
a nível regional. Os provinciais representaram, indiscutivelmente, cerca de 1/3 dos
recrutas entre os principados de Augusto e de Calígula, passando a mais de metade sob
os reinados de Cláudio e de Nero, e subindo para mais de ¾ no período Flávio e sob a
égide de Trajano.
Deste modo, as comunidades cívicas da Hispânia e de África 1655 cedo se tornaram
suficientes para assegurar homens para o recrutamento das legiões que nelas estavam
aboletadas, obtendo-se, de permeio, alguns reforços na Narbonense. Os recrutas de
África que não permanecessem na sua zona de origem eram amiúde enviados para
cumprir o serviço militar no Egipto. Em contrapartida, as legiões estacionadas na
Britânia, na Germânia e na Ilíria mobilizaram durante largo tempo indivíduos na
Narbonense, na Hispânia ou na Macedónia. A partir de finais do século II, a maioria
dos recrutas procedia das cercanias imediatas dos locais onde se encontravam as
1652
P. Veyne, «Les Alimenta de Trajan», in Les Empereurs romains d’Espagne, Paris, 1965; C. González Roman,
«Trajano, optimus princeps: a propósito de los Alimenta», in J. González (coord.), Trajano, Óptimo Principe. De Itálica
a la corte de los Césares, Sevilha, 2003; G. Bravo, «Los Alimenta. Roma asiste a sus niños», La Aventura de la História,
nº 178 2011, pp. 49-52.
1653
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, p. 85.
1654
J. C. Mann, «The raising of new legions during the principate», Hermes 91 (1963), pp. 483-489.
1655
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, pp. 88-89.
565
guarnições, havendo uma crescente proporção de filhos de soldados, «nascidos em
acampamentos» (que mais vale chamar castris do que ex castris)1656.
Em certos casos, os filhos nascidos fora do matrimónio no decurso do serviço militar
podiam ser legitimados no momento da desmobilização dos seus progenitores. É
provável que este origo castris também se atribuísse aos peregrini, ao receberem a
cidadania romana aquando da sua incorporação.
As investigações de G. Forni1657 e Y. Le Bohec1658, centradas nas listas de legionários
desmobilizados, serviram para se conseguir reconstituir a evolução do recrutamento da
Legio III Augusta até ao período dos Severos inclusive, já que, pondo de parte tais
fontes, escasseiam os testemunhos epigráficos. Os legionários começaram a ser
recrutados em Itália, nas Gálias e, em menor grau, na pertica de Cartago e no território
de Cirta, no início do século I. Em meados do último, os efectivos recrutaram-se
essencialmente no Oriente (Bitínia e Síria-Palestina) e muito pouco em África.
O reinado de Adriano significou um ponto de viragem, uma vez que diversas fontes
mostram que, neste período, 93% das suas tropas provinham do Magrebe: a par das
regiões da pertica de Cartago (13,75%) e do território de Cirta (7,4%), Lambaesis
(40%), Theveste e Thamugadi (Timgad) forneceram numerosos recrutas, cifrando-se
em 8,3% para o Sul da África Proconsular e 20,75% para o resto desta província. Esta
evolução atesta uma crescente participação de filhos de veteranos no recrutamento de
efectivos para a legião: no princípio do século III d. C., os castris tornaram-se
maioritários, fenómeno observável neste trecho da inscrição CIL VIII, 18068, que data
do período severiano:
«[…] a dedicatória sendo feita por Quintus Ani[cius Faustus] legado dos Augustos [pro
praetor, vir clarissimus, cônsul], pelos veteranos da [III legião] Augusta Pia Vingadora, que
começaram o seu serviço militar sob o segundo consulado de Cneus Claudius Severus e de
Tiberius Claudius Pompeianus [173] ……… Lucius Calliu[…] CL[…]; Caius Nervillius Seranus,
de Cita; Marcus Aurelius Fatalis, de Theveste; Marcus Iulius Quintulus, de Cirta; Marcus
Cingonius Verus, de Cirta; Marcus Flavius Urbanus, de Cirta; Caius Iulius Saturninus, do
Acampamento [Castra]; pela VII coorte: Tiberius Claudius Castus, de Cirta; Quintus Memmius
Avitus, do Acampamento; Caius Attius Rogatus, do Acampamento; Quintus Cerellius Silvanus,
do Acampamento; Marcus Cattius Faustinus, de Cirta; Caius Sertorius Victor, de Cartago;
Marcus Munatius Messor, do Acampamento; Caius Iulius Siliquarius, de Cirta; Caius Iulius
Honoratus, de Cirta; Marcus Granius Clemens, do Acampamento; Marcus Cassius Rufus […]
Caius Aufidius Far[..]uleus […]; Marcus Aurelius Cittinus […]; Quintus Clodius Clarus, de
Cirta; Marcus Ulpius Saturninus, de Cartago; Marcus Nuerius Optatus, de Ba[gai?]; Caius
Cornelius Sat[urninus], de Cirta; Marcus Nuerius Da[tus], de Cirta; Titus Aelius Creticus, do
Acampamento; Quintus Aurelius Rufus, do Acampamento; Caius Vinicius Donatus, do
Acampamento; Caius Vitalis Cupidus, de Hadrumete; Caius Iulius Arabus, de Cuicul; Quintus
Germinius Saturninus, de Cirta; Marcus Atinius Felix, de Thamugati; Publius Publicius
Orestinus, do Acampamento, cornicularius do tribuno; Caius Caecilius Meridianus, do
Acampamento; Quintus Sallustius Felix, de Cirta; Caius Iulius Victor, de Cirta; Marcus
Terentius Gemellus, de Cirta; Caius Germinius Vetustinus, de Cartago, beneficiarius do tribuno;
Sextus Vettius Victorinus, do Acampamento; pela oitava coorte [etc.]».
Porém, é de rejeitar a teoria, actualmente ainda aceite por vários historiadores, de que
o recrutamento a nível local apenas se consumou e generalizou a partir do tempo de
Adriano. Na realidade, o processo de arrolamento no hinterland das bases militares
romanas já fora estabelecido na primeira metade do século I da nossa era, como
demonstrou K. Kraft, numa obra publicada em 19511659. Assim, com o principado
adriânico, assistiu-se, isso sim, a um aumento das levas de recrutas em várias zonas
concretas do território imperial.
No século III, as províncias danubianas e balcânicas forneceram a maioria dos
legionários. No Oriente, o recrutamento local apareceu mais cedo, desde os últimos
1656
A. Mócsy, «Die origo castris und die Canabae», AArchHung 13 (1965), pp. 425-431.
1657
«Estrazione etnica e sociale dei soldati delle legioni nei primi tre secoli dell’impero», Aufstieg und Niedergang der
römische Welt, II.1 (1974), pp. 339-391.
1658
La Troisième légion Auguste, Paris, 1989.
1659
Zur Rekrutierung von Alen und Kohorten an Rhein und Donau, Berna, 1951, p. 139. Recentemente, G. Wesch-Klein
subscreveu esta opinião: cf. «Recruits and Veterans», p. 437.
566
tempos do século I. Os recrutas procediam, na sua maior parte, do interior da Anatólia
e da Síria. No Egipto, a Legio II Traiana recebeu um supplementum sob a forma de um
destacamento da III Augusta, vindo de África em 131-132.
Transitemos para a questão da origem social dos soldados, que continua a ser objecto
de debates académicos: Vegécio (Epit. rei milit. I, 7) insistiu na tónica da superior
qualidade dos recrutas rurais, enquanto Tácito explicou os motins de 14 d. C.,
sublinhando o mau feitio dos recrutas citadinos. No entanto, os autores antigos, quase
sempre pertencentes às camadas superiores da sociedade romana, sentiam ao mesmo
tempo desprezo e receio face aos homens de uma extracção social inferior à deles,
oriundos, na sua maioria, dos limites do mundo romano. Assim, a elite letrada
contribuiu para forjar a reputação de rusticidade dos militares. Mas cabe não esquecer
que Vegécio advertiu também para a necessidade de recrutar homens que soubessem
ler, escrever e contar.
Não há muito, vários historiadores (entre os quais J.-M. Carrié 1660) alertaram para os
estereótipos contidos na literatura antiga. Na realidade, o recrutamento dos soldados se
efectuou no seio daquilo a que P. Veyne qualificou de «plebe média», ou seja, um
estrato social modesto mas não forçosamente miserável. É certo que os habitantes
rurais constituíam o grosso da população no Império, mas o facto de muitos deles
cumprirem um serviço militar durante 20-25 anos representou um inegável elemento
de aculturação a um modo de vida urbana, à romana, como o testemunham termas e
anfiteatros perto dos acampamentos militares. Por seu turno, as tabuinhas encontradas
no forte de Vindolanda1661 (actual Chesterholm, Northumberland, Inglaterra) permitem
constatar o aparente domínio do latim por parte dos efectivos de uma guarnição
auxiliar na Britânia, na viragem do século I para o II d. C.. Assim, a instituição militar
favoreceu o enraizamento das tradições romanas nas fronteiras do Império.
No entanto, a publicação de mais documentação - desde as tabuinhas de madeira de
Vindonissa 1662(actual Windisch, Suíça) até os óstracos de Bu Njem (Líbia) 1663, Mons
Claudianus1664, Krokodilo1665 e Didymoi (Egipto)1666 – contribuiu para precisar e até
corrigir algumas certezas adquiridas sobre a real percentagem de indivíduos instruídos
no exército romano (1667 ); estas fontes acrescentaram-se aos papiros, que são
conhecidos há bastante tempo. Chegou-se à conclusão de que o nível de alfabetização
variava em função da região e do posto, bem como do nível social e cultural dos
indivíduos1668.
Muitos soldados deviam ter, pelo menos, uns rudimentos de latim, a única língua de
comando, sujeita logicamente a deformações1669; no Oriente, muitos eram bilingues
1660
«O soldado», in A. Giardina (dir.), O Homem Romano, Lisboa, 1992, pp. 109-110
1661
J. N. Adams, «The Language of the Vindolanda Writing Tablets», JRS 85 (1995), pp. 86-134; A. K. Bowman, Life
and Letters on the Roman Frontier, Vindolanda and its People, 2ª edição (a primeira data de 1994), Londres, 2003; A.
Birley, Garrison Life at Vindolanda: A Band of Brothers, Gloucestershire, 2002.
1662
M. A. Speidel (ed.), Die römischen Schreibtafeln von Vindonissa. Lateinische Texte des militärischen Alltags und
ihre geschichtliche Bedeutung, Brugg, 1996.
1663
R. Marichal, Les Ostraca de Bu Njem, Libya Antiqua, Suppl. 7, Tripoli, 1992.
1664
J. Bingen et al. (eds.), Mons Claudianus. Ostraca graeca et latina, 1e 2, Cairo, IFAO, 1992.
1665
H. Cuvigny (ed.), Ostraca de Krokodilô. La correspondance militaire et sa circulation. Praesidia du désert de
Bérénice, 2, Cairo, 2005.
1666
H. Cuvigny et al. 8eds.), Didymoi. Une garnison romaine dans le désert oriental d’Égypte, I- Les fouilles et le
matériel, FIFAO 64, Cairo, 2011; 2- Les textes. Praesidia du désert de Bérénice, Cairo, 2012.
1667
Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine, du Ier au IIIe siècle de notre ère», Col. Latomus, 327 (2o10), pp.
192-207.
1668
Nos acampamentos e fortes, colhemos notícias documentadas de que os oficiais se entregavam a leituras intelectuais
e à composição de poemas, o que não é surpreendente: Plínio-o-Moço, Ep., IX.25; O. Stoll, «”Offizier und Gentleman”:
der römische Offizier als Kultfunktionär», Klio 80 (1998), pp. 134-162; J. N. Adams, «The poets of Bu Njem: Language,
culture, and the centurionate», JRS 89 (1999), pp. 109-134. O problema radica mais na indagação do nível de instrução
dos simples soldados: M. A. Speidel, «Das römische Heer als Kulturträger», in R. Frei-Stolba e H. E. Herzog (eds.), La
Politique édilitaire dans les provinces de l’Empire romain, Berna/Berlim et al., 1995, pp. 187-209; J. Pearce,
«Archaelogy, writing Tabletin and Literacy in Roman Britain», Gallia 61 (2004); S. E. Phang, «Military documents,
Languages and Literacy», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman Army, pp. 286-305 (esp. 299-300).
1669
Y. Le Bohec, La Troisieme Légion Auguste, pp. 546-548; H. Petersmann, «Zu den neuen Vulgärlateinischen
Sprachdenkmälern aus dem römischen Britannien. Die Täfelchen von Vindolanda», in M. Iliescu e W. Marxgut (eds.),
567
(latim e grego) ou mesmo trilingues (com a língua local a juntar-se às outras duas) 1670.
No acampamento de Maximianon e suas imediações, verificou-se que os Egípcios e as
mulheres eram analfabetos, e que menos de 50% dos soldados sabiam ler e escrever.
Em caso de necessidade, o que era ignorante pedia ajuda a um camarada que tivesse
um pouco de instrução. Como afirmou Hélène Cuvigny, «o melhor está ao lado do
pior». Talvez caiba não ser excessivamente crítico. Há que ter em conta as finalidades
da escrita: não se tratava da mesma forma um memorando pessoal e um pedido de
promoção. Não é possível colocar no mesmo plano uma carta enviada pela esposa de
um oficial a uma amiga convidando-a para uma festa, e a troca de correspondência
entre escravos para efectuar aquisições de legumes. Reveste-se de interesse notar que
se acharam exercícios escolares em Bu Njem e no Mons Claudianus: os milites
analfabetos terão desejado aprender a ler e a escrever 1671 (ou viram-se compelidos para
fazê-lo por pressão dos seus mandos). E um deles, de serviço em Krokodilo, até chegou
a redigir uma espécie de ensaios erótico-báquicos, ainda que de sofrível qualidade.
Quanto aos auxilia, conservaram o essencial do seu carácter étnico apenas no período
dos Júlios-Cláudios. A reunião de combatentes em contingentes ao serviço do exército
romano constituía um meio mais ou menos eficaz para evitar que membros de povos
recentemente subjugados se rebelassem. Esta foi uma das razões que levou os Romanos
a incorporar soldados dos grupos étnicos que estavam sob o seu controlo: os nomes de
numerosas coortes e unidades de cavalaria (alae) reflectem as zonas onde as mesmas
foram criadas - as cohortes Asturum, Breucorum, Delmatarum, Thracum,
Vindelicorum, ou as alae Hispanorum, Illyricorum, Ituraerorum, Noricorum e
Pannoniorum.
Porém, contrastando com as suas designações, a composição étnica dos contingentes
depressa veio a mudar, dado que se recrutavam homens para preencher as fileiras do
castra da unidade em causa, da província em que a última se achava estacionada, de
outras circunscrições provinciais e, ainda, do sítio de onde procedia originariamente a
coorte ou a ala. Até ao reinado de Vespasiano, organizaram-se levas de numerosas
unidades montadas nas Gálias e na Península Ibérica, regiões afamadas pela qualidade
dos seus cavaleiros. A seguir, as províncias alpinas, danubianas e balcânicas passaram a
fornecer homens para as tropas auxiliares, encontrando-se estas num regime de maior
mobilidade do que as legiões1672.
Diversas fontes epigráficas do século I atestam a presença de elementos tribais étnicos
nas unidades de auxiliares: veja-se, por exemplo, a inscrição de uma estela funerária
descoberta em Colchester (Camulodunum), dedicada a Longinus, da ala I Thracum; no
texto diz-se que era filho de Sdapezematygus; embora certos autores tenham duvidado
que Sdapezematygus correspondesse a um nome trácio na sua versão latinizada, não
há dúvida que Longinus proveio do distrito de Serdica (actual Sófia), o que aponta
fortemente para uma origem trácia (RIB.201); no tempo de Trajano, a ala I Thracum
ainda estaria aboletada na Britânia, aparecendo citada num diploma achado em
Malpas (Cheshire, Inglaterra/ILS 2001). Mantiveram-se muitas vezes as denominações
étnicas das unidades, apesar de posteriormente não reflectirem as «nacionalidades»
dos seus efectivos.
Certas unidades, ao empregarem métodos especiais de combate e na arte de cavalgar,
preferiam recrutar indivíduos que já estivessem familiarizados com as técnicas e as
habilidades requeridas: assim, a Cohors I Aurelia Antoniniana miliaria Hemesenorum
Sagittaria equitata civium Romanorum, parcialmente composta por archeiros
montados, quando esteve aboletada na Panónia Inferior, em Intercisa (desde c. 175 até
Latin vulgaire-latin tardif, 3, Actes du IIIe colloque international sur le latin vulgaire et tardif, Tübingen, 1992, pp.
283-291; IDEM, «Der Einfluss des sermo militaris auf das Vulgärlatein: zur Geschichte von romanisch andar(e)»,
ibidem, pp. 529-537.
1670
Quanto ao soldado poliglota: Tácito, Hist. 3.33.5; E. E. Best, «The literate Roman Soldier», CJ 62 (1966), pp. 122-
127
1671
Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine…»,p. 202 e 204
1672
IDEM, L’Armée romaine…, pp. 97-103.
568
meados do século III), arrolou mancebos tanto da sua terra-natal, a Síria, como outros
que tivessem nascido e crescido na área do seu acampamento 1673.
Por último, do reinado de Vespasiano em diante, o número de cidadãos incorporados
nos auxilia veio a aumentar regularmente, ao ponto de igualar o dos peregrini a partir
do tempo de Adriano.
569
nas fontes correspondiam necessariamente a outros tantos postos diferentes. De facto,
cumpre não confundir grau, função e afectação temporária. Pelo contrário, distintos
percursos podiam levar um tiro ao centurionato ou a um escalão imediatamente
inferior. Numa primeira fase, os tirones que se especializavam em determinadas tarefas
eram designados como discentes. Mas este vocábulo revela-se ambíguo, já que também
servia para qualificar os instrutores. Antes de se tornar centurião, um soldado podia
conhecer quatro a seis afectações diferentes, cada uma tendo uma duração que ia de
três a cinco anos.
Esta hierarquia reflectia-se na atribuição de isenção de corveias ou de outras tarefas
impostas aos militares e traduzia-se igualmente na escala dos soldos. Ao que parece, ela
ficou definitivamente estabelecida no século II d. C., distinguindo-se três ou, até,
quatro escalões básicos: em primeiro lugar, diferenciavam-se os soldados isentos das
corveias, os immunes, dos outros, os munifices (Digesta, L, 6, 7); entre os isentos, os
sesquiplicarii e os duplicarii1681 recebiam, respectivamente, uma vez e meia e o dobro
do montante do soldo-base, formando a categoria dos principales1682, que Vegécio
definiu nos seguintes termos (Epitoma de rei militaris, II, 7):
«Depois de haver exposto a antiga disposição da legião, vejamos como […] ela é composta por
soldados principais ou, para me servir do próprio termo, os nomes e os títulos dos principes […]
Os aquiliferi [porta-águias] e imaginiferi [os porta-imagens] são os que levam as águias e as
imagens do imperador; os optiones são os tenentes de oficiais mais graduados, que se lhes
associam por uma espécie de adopção para fazerem o seu serviço, em caso de doença ou de
ausência; os porta-insígnias são os que levavam as insígnias aos quais, presentemente, se chama
draconarii. Denominam-se tesserarii os que são portadores das senhas ou de ordens para as
casernas: os que combatem à cabeça das legiões possuem ainda o nome de campigeni, porque
eles fazem nascer, por assim dizer, no campo, a disciplina e o valor, pelo exemplo que dão. De
meta designam-se os metatores, os que precedem o exército para marcarem a localização do
acampamento, os beneficiarii sendo os que ascendem a este posto mediante o favor dos
tribunos; de liber, chama-se librarii aos que registam todos os pormenores que dizem respeito à
legião; a partir de tuba, cornu e bucina designam-se os que se servem destes diferentes
instrumentos, tubicines, cornicines, bucinatores. Aos soldados hábeis na esgrima e que têm
duas rações dá-se o nome de armaturae duplares, e aos que só possuem uma armaturae
simplares; mensores são os que medem o espaço destinado a montar as tendas em cada
caserna, podendo eles arranjar também alojamento nas cidades. Eis os principais soldados que
gozam de todas as prerrogativas associadas aos seus graus. Quanto aos outros, são qualificados
de munifices, porque se vêem obrigados a realizar todo o tipo de trabalhos no exército».
No entanto, este autor tardio confundiu os principales e os immunes, englobando-os
na designação abrangente de principes. Na primeira metade do século I d. C., certos
principales usufruíam talvez de um triplo soldo (AE 1976, 495), mas posteriormente
não se encontram mais atestações destes triplicarii. Na opinião de David J. Breeze, o
conjunto dos immunes representava uma proporção sensivelmente equivalente dos
efectivos em todos os corpos de tropas: cerca de 21% nas legiões (na razão de 1100
postos para cerca de 5 000 homens, dos quais 480 principales, ou seja, um pouco
menos de 10%), um homem em cada seis no pretório, um em cada cinco nas coortes
auxiliares, e um em cada seis ou sete entre os vigiles.
Levanta-se uma questão incontornável: a especialização profissional aumentava
realmente as possibilidades de promoção no seio do exército 1683? E, em caso afirmativo,
quais seriam os benefícios de uma tal promoção? Não há dúvida que o exército imperial
romano era uma organização profissional com muitos especialistas entre os soldados
vulgares, tantos, na realidade, que até pode parecer difícil definirmos o miles comum.
Com efeito, cada soldado tinha um papel militar específico que lhe era atribuído,
determinado em função da unidade a que pertencia e pela posição ocupada na linha de
batalha, recebendo treino para o efeito. Os auxilia, em particular, eram muitas vezes
1681
E. Sanders, «Zu Rangordnung des römischen Heeres: Der Duplicarius», Historia 8 (1959), pp. 239-247.
1682
A. von Domaszewski, Die Rangordnung des römischen Heeres, pp. xi-xvi, 28-50.
1683
Para uma visão circunstanciada dos postos, carreiras, recrutamento, bem como da condição social e financeira dos
soldados e veteranos, consulte-se: G. Wesch-Klein, Soziale Aspekte des römischen Heerwesens in der Kaiserzeit, 1998;
consultem-se, também, os numerosos artigos contidos na obra colectiva editada por G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck,
Kaiser, Heer und Gesellschaft in der römischen Kaiserzeit. Gedenschrift für Eric Birley, 2000.
570
altamente especializados, muitos combatendo em unidades de infantaria ligeira, alguns
peritos na luta com diferentes géneros de lanças e dardos, outros, ainda, manuseando
machados, arcos, fundas, etc. De igual modo, as tropas montadas auxiliares também se
destacavam como especialistas, tanto porfiando em unidades de cavalaria ligeira como
na cavalaria pesada e, uma vez mais, providos de destreza adicional em certos tipos de
armas. Até os legionários eram frequentemente versados no uso de armas concretas.
No século III, a especialização no emprego de armas nas legiões era tal que se observa a
presença de lancearii, phalangarii, sagittarii, triarii, equites e outros, nas fontes
epigráficas1684.
Porém, estes especialistas mantinham-se na condição de meros soldados, já que a
habilidade no emprego de certas técnicas de combate não conduzia, per se, à promoção.
Capta-se apenas uma excepção a esta regra: o facto de um soldado de infantaria se
tornar cavaleiro significava, efectivamente, uma promoção, o que se conclui a partir do
estudo de uma série de carreiras de milites, e pela simples razão de que os cavaleiros
recebiam um salário mais alto1685. Também se entendia como uma promoção a
transferência para uma unidade de superior categoria, o que provavelmente implicava
instrução em novas técnicas de porfia 1686. Mas não há elementos informativos que
provem que a mestria nessas técnicas seria necessariamente requerida antes de uma
promoção ou de uma transferência. Neste nível, todos se encaravam como simples
milites. Ora, como todos os soldados vulgares, estivessem a servir nas coortes em Roma
ou nas legiões e nas unidades auxiliares das províncias (independentemente da sua
proficiência no manuseamento das armas) se podiam descrever pelos vocábulos
genéricos acima mencionados, não eram os verdadeiros especialistas do exército
romano.
Como vimos, em todas as unidades regulares havia certo número de soldados isentos
de executarem algumas das tarefas mais pesadas que a maioria tinha de levar a cabo. Se
bem que a palavra immunis talvez ainda não estivesse em uso para qualificar os
militares dispensados de corveias ao longo de todo o sérculo I d. C., o princípio,
enquanto tal, já existia. Anteriomente já nos reportámos ao trecho do jurista (de finais
do século II) Tarrutieno Paterno, onde define o étimo immunis e apresenta uma lista
dos soldados assim designados. No entanto, esta lista pode ver-se facilmente alargada,
na medida em que as fontes epigráficas e papirológicas mencionam vários outros
postos e funções que também se inscrevem sob o rótulo de immunis. A nível global, tais
funções eram sobretudo de carácter administrativo ou técnico. Ambos os domínios de
actividade, a administração bem como a construção de estruturas ou o fabrico de peças
ou objectos, revestiam-se de vital importância para o adequado funcionamento de
qualquer unidade militar romana. Quanto maior esta fosse, mais relevância assumiam
estas actividades.
Os immunes incumbidos de tarefas administrativas trabalhavam basicamente como
assistentes ou secretários. As áreas de construção e fabrico incluiam toda uma
diversidade de vertentes, desde a feitura de represas fluviais e estradas até à reparação
de elmos, gládios e outras armas, além do calçado. Em princípio, as legiões deveriam
ser capazes de resolver os problemas concernentes ao seu abastecimento (Vegécio, Epit.
rei mil. 2.11). Flávio Josefo reitera esta ideia com a asserção de que cada fortaleza
legionária dispunha de um «quarteirão» de artífices (BJ 3.52); Vegécio, por seu lado,
fornece-nos uma lista impressionante das actividades que os mesmos efectuavam (Epit.
rei mil. 2.11)1687.
A arqueologia e a epigrafia confirmam esta realidade. É óbvio que estas actividades
assumiam grande importância no interior ou nas proximidades dos acampamentos
1684
Para mais pormenores, remetemos o leitor para M. P. Speidel, The Framework of an Imperial Legion, 1992.
1685
M. A. Speidel, «Specialisation and Promotion in the Roman Imperial Army», in M. A. Speidel, Heer und Herrschaft
im Römischen Reich der Hohen Kaiserzeit, Estugarda, 2009, p. pp. 283-284.
1686
IDEM, «Sold und Wirtschaftlage der römische Soldaten» (I).
1687
Contudo, nem todos os tipos de construção mencionados por Vegécio seriam realizados por especialistas do exército.
Alguns ramos específicos, como a manufacturação de novas armas, estariam nas mãos de artífices civis antes do século
III.
571
militares permanentes. Mas muitos técnicos e artesãos também se revelavam
necessários em períodos de conflito armado, pelo que cada expedição militar de vulto
incluía considerável número destes indivíduos. A sua presença era imprescindível para
várias tarefas de contabilidade, para o estabelecimento dos castra, a activação e
manutenção de máquinas de guerra e outros engenhos úteis no contexto de operações
de assédio. As fortificações e a rampa de cerco romanas em Masada, por exemplo,
mostram bem como eram indispensáveis tais homens especializados.
Todavia, os arquitectos, agrimensores, artífices e outros técnicos das legiões nem
sempre operavam exclusivamente para as necessidades das suas unidades. Quando o
imperador ou um governador provincial assim desejasse, podiam enviar os técnicos
especialistas do exército para intervir em obras públicas 1688. Assim, como tivemos o
ensejo de afirmar, diversos contingentes de legionários construiram muitas estradas,
pontes, túneis, canais, aquedutos e vários tipos de edifícios públicos. No reinado de
Trajano, a colónia de Thamugadi (actual Timgad) foi criada de raíz inteiramente por
soldados da Legio III Augusta (CIL VIII, 17842 e 43).
Uma apreciável quantidade de documentos ilustra a função especializada de librator,
o que pode servir como case-study para as interrelações entre a especialização e a
promoção no exército romano1689. O librator era um agrimensor ou um nivelador que
figurava entre os immunes e se dedicava a medir e a calcular as diferenças de altura,
bem como elaborava planos para certas obras, como os aquedutos (AE 1973, 646 = AE
1942/43, 93). Assinalam-se libratores tanto nas legiões como nas coortes pretorianas
(CIL VI, 2454 = ILS 2060). Quando Plínio-o-Moço foi governador da Bitínia, pediu
repetidas vezes ao imperador Trajano para que lhe enviasse um librator (Epistulae,
10.41ss., 61ss.). O técnico que Plínio procurava tinha de ser competente e experiente,
uma vez que precisava dele para a construção de um canal e várias represas, entre um
lago perto de Nicomédia (Bitínia) e o mar. Um empresa como estas exigia mão-de-obra
qualificada, na medida em que, sendo as obras mal feitas, corria-se o risco de o lago ir
desaguar no mar. Plínio, que não possuía legiões sob o seu comando, estava convencido
de que não existia um especialista adequado para realizar tais obras na sua província e
com suficiente capacidade para completar a tarefa com êxito. Ele esperava que o
princeps lhe enviasse um técnico procedente da capital; no entanto, Trajano arranjou
um librator da Mésia Inferior – esta província tinha uma guarnição legionária, daí que
contasse com alguns destes especialistas.
Topamos com outro caso similar numa inscrição de Lambaesis, na província de África
(CIL VIII, 2728 = ILS 5795 = AE 1941, 117). O texto gravado no suporte pétreo consiste
na reprodução de um conjunto de cartas oficiais, acompanhadas por explicações
complementares. Destinava-se a comemorar para a posteridade os trabalhos
empreendidos por Nonius Datus, antigo legionário da III Augusta. Embora a inscrição
esteja incompleta, a história que se conta de Nonius pode reconstituir-se com relativa
facilidade: em 137, este librator recebeu a incumbência de fazer um plano preciso para
a construção de um túnel de água em Saldae, na vizinha província da Mauretania
Cesariensis. Após a aprovação do projecto pelo governador local, Nonius deu
instruções aos trabalhadores da zona para porem em prática o plano por si mesmos. Tal
como a Bitínia, a Mauretania Caesariensis dispunha somente de uma guarnição
auxiliar e, aparentemente, no quartel-general da sua legião em Lambaesis urgia que o
librator regressasse. Dez anos depois, os obreiros locais tiveram problemas: os dois
grupos, ao começarem trabalhar a partir de ambos os lados da montanha, para abrirem
o túnel desencontraram-se no interior da eminência, já que cavaram duas galerias ao
mesmo tempo; o comprimento das mesmas excedia o diâmetro da própria montanha.
Então, o governador da Mauretania solicitou ao legatus da III Augusta que voltasse a
enviar Nonius Datus. Este, entretanto, já completara o seu tempo de serviço militar
regulamentar mas continuava ligado ao exército como evocatus. Note-se, a propósito,
1688
Digesto, 1.16.7.1; R. MacMullen, Soldier and Civilian in the Later Roman Empire, p. 32ss.; R. Davies, Service in the
Roman Army, p. 64.
1689
M. A. Speidel, «Specialisation and promotion in the imperial roman Army», p. 442.
572
que a evocatio constituía uma distinção relativamente rara, que talvez implicasse
melhores condições de vida e uma remuneração mais alta 1690.
No entanto, pouco depois do retorno a Saldae, Datus adoeceu e teve de partir mais
uma vez. Tornou-se necessário um terceiro pedido para a presença do especialista em
Saldae. Por esta altura, Datus já era um veterano e voltou acompanhado por soldados
da frota e tropas auxiliares. Contudo, durante a viagem, ele e os seus camarados foram
atacados por bandoleiros e, na sequência dos confrontos, Dato sofreu ferimentos,
embora sem gravidade. Quando, por fim, chegaram a Saldae, Datus, já refeito das
lesões, aplicou-se nas obras e, para o efeito, fez uso da rivalidade entre os soldados da
frota e os auxilia. Em 152, o projecto estava terminado. Não resta qualquer dúvida que
Nonius Datus era, efectivamente, um homem muito competente e talentoso, e
especialistas deste calibre rareavam no Norte de África.
À semelhança de outros técnicos, também eram precisos libratores nas expedições
militares. Caracala, por exemplo, possuía um librator na sua expeditio pártica (facto
atestado noutra inscrição de Lambaesis (CIL VIII, 2564 = VIII, 18052): nesta fonte
consta uma lista de soldados e especialistas da Legio III Augusta que haviam
regressado a casa indemnes da campanha do ano 219. O librator Iulius Felix e todos os
demais intervenientes obtiveram generosas recompensas do jovem imperador
Elagábalo (var. Heliogábalo). Bastante antes, Trajano serviu-se igualmente destes
especialistas na sua expedição contra a Pártia (episódio relatado por Dião Cássio, Hist.
rom. 68.28.1). Ao longo da marcha sobre Ctesifonte, a capital parta, Trajano pretendeu
mandar construir um canal entre o Tigre e o Eufrates, para que a frota navegasse mais
facilmente corrente abaixo, mas, em determinado momento, teve de se abandonar tal
projecto sobretudo por causa das diferentes alturas dos dois rios. Os especialistas que
encetaram estas obras seriam, decerto, soldados da guarda pretoriana ou então das
legiões. Caso tivesse sido possível fazer esse canal, dentro do curto espaço de tempo
disponível durante a expedição, Trajano impressionaria indiscutivelmente os seus
contemporâneos com mais outra obra-prima da arquitectura romana, comparável, em
certa medida, à ponte que o princeps fizera erigir sobre o Danúbio, aquando da guerra
contra os Dácios.
Posto isto, é inegável que os libratores primavam pela sua capacidade técnica e
experiência. O mesmo se aplica aos muitos outros especialistas immunes. Mas o que se
oferece dizer acerca da posição dos últimos no seio do exército e das perspectivas que
tinham de ser promovidos? Curiosamente, ao tornar-se um immunis o soldado não
subia de posto, nem tão quanto auferia um salário superior 1691. Apesar de tudo, tratava-
se de um privilégio e, enquanto tal, era muito apreciado. Não causa, pois, estranheza
que a remoção deste privilégio (munerum indictio) significasse um castigo (Digesto,
49.16.3.1).
A immunitas em relação aos munera graviora era, com efeito, o primeiro aspecto
mais importante que distinguia e separava os detentores desta posição privilegiada dos
simples milites (CIL III, 7 449; CIL VIII, 2564 = VIII, 18052 = AE 1978, 889; P. Mich.
454 ii 3). A extensa lista de immunes especialistas exposta por Paterno pode dar a
impressão de que só existiriam uns quantos soldados para cumprirem as suas funções
normais, mas esta ideia não corresponde à realidade. Embora seja impossível saber
quantos soldados numa unidade estavam englobados na categoria dos immunes, os
poucos testemunhos que chegaram até hoje sugerem que talvez aproximadamente 10%
dos homens de uma legião gozavam deste estatuto (CIL VIII, 7449). Neste sentido, a
maioria dos soldados manter-se-ia no nível básico de miles gregarius ou munifex.
Em que é que consistia, de facto, o privilégio dos immunes? Esporadicamente, eles
trabalhavam lado-a-lado com os munifices; terá sido este o caso dos legionários da III
Augusta, ao participarem nas primeiras fases da construção da colónia de Thamugadi.
Um papiro latino do século II ou do III, procedente do Egipto, mostra que os immunes
1690
D. Breeze e B. Dobson, Roman Officers and Frontiers, 1993, p. 106; E. Birley, The Roman Army Papers 1929-1986,
1988, p. 326ss.
1691
M. A. Speidel, «Specialisation and Promotion in the Roman Imperial Army», p. 443.
573
se podiam utilizar juntamente com vários tipos diferentes de tropas e, até, civis, nas
fabricae das legiões1692. Este texto lista immunes, simples legionários, soldados das
coortes auxiliares e serviçais de militares. Dos que outrora estavam consignados no
documento completo, só se conservou o número de legionários, totalizando 100
homens. Além do mais, no papiro não se especificam as actividades dos diferentes
grupos empregues na fabrica. Porém, é de supor que os immunes, com as suas
competências especializadas, ocupassem posições de algum relevo.
Viajar também era parte inerente do privilégio usufruído pelos immunes. No entanto, a
história de Nonius Datus mostra que isto comportava riscos. Ademais, é improvável
que os immunes estivessem isentos da prática regular de exercícios e manobras, já que
a immunitas apenas dizia respeito aos munera graviora. Mesmo havendo limitações na
condição dos immunes, não é difícil perceber por que razão tal estatuto era tão
almejado, quando os trabalhos mais duros e desgastantes realizados pelos simples
soldados consistiam, por exemplo, em operar nas pedreiras do Próximo Oriente. Em
107 d. C., C. Iulius Apollinarius, soldado da Legio III Cyrenaica (cuja base se localizava
em Petra, na Arábia), escreveu uma carta ao seu pai – que fora porta-estandarte
legionário – gabando-se da sua condição de immunis, por estar dispensado de levar a
cabo as tarefas árduas e pesadas que a maioria dos seus camaradas milites gregarii
tinha de executar (P. Mich. VIII 466; documento que adiante transcrevemos e
comentamos)1693.
A afectação de immunes para tarefas administrativas desenvolveu-se à custa de uma
redução do efectivo de combatentes operacionais, embora os primeiros não estivessem
dispensados de combater. Os detentores destes postos estavam dispensados das
múltiplas corveias ou faxinas que os simples soldados usualmente tinham de levar a
cabo, mas não estavam dispensados de combater.
A correspondência de Plínio-o-Moço com Trajano (Epistulae, 10.21-22) mostra que o
imperador tinha muitas vezes que pôr cobro à existência de determinados abusos:
«Senhor, Gavius Bassus, prefeito da Costa Pontica, veio ver-me com a maior das deferências e
solicitude, e permaneceu comigo vários dias, sendo, tanto quanto me pude dar conta, um
homem distinto e merecedor da tua benevolência. Notifiquei-o que, segundo as tuas ordens, nas
coortes que tu me deste o comando, ele deveria contentar-se com 10 beneficiarii, dois cavaleiros
e um só centurião. Ele respondeu-me que este efectivo não lhe era suficiente, e que te iria
escrever. Foi por esta razão que não julguei dever chamar imediatamente os homens, para que
ele tenha mais do que esse efectivo»;
«[Resposta de Trajano] Gavius Bassus também me escreveu, dizendo que o efectivo da escolta
que eu estabelecera para ele nas minhas instruções não lhe era suficiente. Para que tomes
conhecimento da resposta que lhe dei, junto envio cópia da mesma. Importa muito averiguar se
é mesmo necessário, ou se os interessados pretendem abusar do seu direito. Quanto a nós,
devemos apenas ter em conta a necessidade e, se possível, velar para que os soldados não
fiquem afastados das insígnias».
Diversas funções exercidas pelos immunes requeriam o domínio da escrita. Os
recrutas suficientemente instruídos eram incentivados a evidenciarem os seus
conhecimentos a fim de acederem a funções que os isentava das corveias ou tarefas
demasiado pesadas e extenuantes. Mas para acederem a tais cargos administrativos, os
soldados estavam dependentes da receptividade ou boa vontade dos centuriões e dos
tribunos militares, que recomendavam os seus candidati, processo que contribuía para
o aumento da corrupção, fenómeno muitas vezes denunciado. As referidas cartas de
recomendação desempenhavam também um papel significativo: o P. Mich. VIII, 466,
conserva uma carta, atrás referida, do soldado Iulius Apollinarius, em que este informa
o seu pai como se livrou de ser destacado para talhar pedras, ao obter o cargo de
librarius1694 (guarda-livros, contabilista), na Legio III Cyrenaica (linhas 18-32):
1692
P. Berol. Inv. 6 101 = A. Bruckner e R. Marichal, Chartae Latinae Antiquiores 10 (1974), nº 409.
1693
K. Strobel, «Zu Fragen der frühen Geschichte der römischen Provinz Arabia und zu einigen Problemen des
Legionsdilokation im Osten des Imperium Romanum zu Beginn des 2. Jh. n. Chr.», Zeitschrift für Papyrologie und
Epigraphik 71 (1988), p. 257; R. Alston, Soldier and Society in Roman Egypt, p. 134ss.
1694
G. R. Watson, «Immunis librarius», in M. G. Jarret e B. Dobson (eds.), Britain and Rome: Essays Presented to Eric
Birley, Kendal, 1965, pp. 45-55.
574
«Estou bem. Desde que Sarapis me conduziu até aqui em segurança, enquanto os outros
talham pedras durante todo o dia e fazem outras coisas, eu, até agora, não sofri nenhuma destas
provações; mas, na verdade, pedi a Claudius Severus, o governador, que me fizesse librarius no
seu próprio estado-maior, e ele disse-me: “Não há vagas mas, entretanto, vou-te nomear
librarius na legião, com perspectivas de promoção. Com esta afectação, passei, através do
governador, comandante da legião, a cornicularius».
Enquanto librarius legionis e, depois, adiutor cornicularii, Apollinarius figurava
agora entre os immunes. Noutra missiva, datando do ano seguinte, destinada à sua
mãe, Apollinarius, que entretanto fora transferido para Bostra, observamos que um
soldado que soubesse ler, escrever e contar reunia boas possibilidades de iniciar a
carreira como secretário, utilizado simultaneamente na contabilidade e nos escritos; no
mesmo documento, o soldado gaba-se de já ser um principalis:
«Agradeço a Sarapis e à Boa Fortuna, agora que todos passam o dia a talhar pedras, eu não o
ter de fazer, enquanto principalis» (P. Mich. VIII, 465, l.13-17).
Em começos do século II d. C., o termo principalis1695 adquiriu um novo significado,
reportando-se a um soldado de estatuto mais elevado que recebia um salário e meio ou
um duplo. Seja como for, não fica claro com que sentido Apollinarius usou o étimo
principalis na sua segunda carta, na medida em que não afirma ter deixado de ser
librarius. Só numa terceira missiva, redigida dez anos mais tarde, é que verificamos
que Apollinarius subira à categoria de frumentarius legionis III Cyrenaicae (P. Mich.
VIII, 562). Consequentemente, Apollinarius terá sido promovido no espaço temporal
entre a sua primeira e segunda cartas, tornando-se um principalis. Porém, também
podia dar-se o caso de a diferença entre os termos immunis e principalis não estar
ainda devidamente formalizada, como depois veio a suceder 1696.
Efectivamente, por esta altura, há motivos para acreditar que ainda não se teria fixado
definitivamente a hierarquia entre os diversos postos. De qualquer modo, o
frumentarius situava-se acima do posto de librarius e, em tempos posteriores, pelo
menos, pertencia ao conjunto dos principales1697. O acervo epistolar de Apollinarius
também é revelador quanto a outros pontos: ele deveu claramente a sua posição como
librarius na III Cyrenaica ao facto saber ler e escrever. Cabe então perguntar se isto
constituía um talento de especialistas. Não resta a menor dúvida que a literacia era um
importante critério de promoção no exército romano, na medida em que a maior parte
das funções acima do simples soldado exigia a aptidão para ler e escrever 1698. Tal era o
caso, por exemplo, dos porta-estandartes, pois não só tinham de ser homens dignos de
confiança, como também alfabetizado, aos mesmos se confiando a responsabilidade de
guardar a «caixa de poupanças» dos seus camaradas (Vegécio, Epit. rei mil. 2.20).
O mesmo se aplicava a outras funções exercidas por immunes e principales, já que não
eram somente os postos administrativos que requeriam literacia. A maioria dos
especialistas militares com competências técnicas ou formação médica precisavam
igualmente de ler e escrever. O librator Nonius Datus, por exemplo, era obviamente
instruído e procedia também a cálculos. Não admira, portanto, que muitos soldados
aprendessem a ler e a escrever. Alguns, como o mencionado Apollinarius ou Apion,
recruta da frota romana de Misenum (BGU 423), já eram alfabetizados antes de
ingressarem nas fileiras do exército romano. O último, se bafejado pela sorte, reuniria
condições para se ver promovido no seio da classis. Entre os auxilia, a literacia assumia
igual relevância para eventualmente progredir na carreira. Contudo, nas legiões e nas
coortes da Urbs, a literacia ajudaria menos, dado que a capacidade para ler, escrever e
calcular estava, comparativamente, bastante mais disseminada entre os milites
gregarius 1699.
1695
Os principales tanto podiam corresponder a oficiais subalternos como superiores pertencentes ao estado-maior.
Exerciam funções nos distintos ramos da administração ou, então, eram suboficiais que exerciam tarefas nas suas
centúrias: D. Breeze e B. Dobson, Roman Officers and Frontiers, p. 11ss, 60ss; G. Wesch-Klein, Soziale Aspekte des
römischen Heerwesens in der Kaiserzeit…, p. 30ss.
1696
M. A. Speidel, «Specialisation and Promotion in the Roman Imperial Army», p. 445.
1697
D. Breeze e B. Dobson, Roman Officers and Frontiers, p. 34ss, 37 e 40ss.
1698
M. A. Speidel, Die römischen Schreibtafeln von Vindonissa, 1996, p. 57ss.
1699
IDEM, «Das römische Heer als Kulturträger», pp.
575
Seja como for, a literacia não garantia promoções automáticas, nem mesmo nas tropas
auxiliares, conforme se verifica pelo teor de várias cartas privadas. Ainda que ler e
escrever fossem pré-requisitos para singrar no exército romano, a literacia estava
suficientemente generalizada para se encarar como um talento especializado. No
entanto, a literacia significava essencialmente o domínio do latim, na medida em que a
maior parte dos documentos militares eram exarados nesta língua. Soldados com
outros idiomas maternos que ambicionassem promoções teriam necessariamente que
aprender o latim. No Oriente grego, em especial, o conhecimento do latim, falado e
escrito, era algo relativamente raro. Consequentemente, tanto Apollinaris como o
referido recruta da frota de Misenum tentaram valer-se da sua fluência na língua latina
para melhorar a sua situação.
Só um punhado de postos no seio da administração militar, fossem ocupados por
immunes ou por principales, requeriam especializações adicionais de natureza
burocrática. Afora a literacia e a capacidade de fazer contas, era sobretudo o grau de
experiência administrativa em geral, a honestidade, o patronato - e não em poucos
casos o suborno (P. Mich. VIII, 468) – que tornavam um soldado elegível para um
posto entre os principales.
No exército romano, os especialistas na plena acepção da palavra eram, portanto, os
immunes que tivessem aptidões técnicas concretas ou formação médica 1700. Os
libratores representam somente um exemplo desses milites com capacidades altamente
especializadas: havia muitos mais1701. Mas estes talentos ajudavam realmente os
homens a progredirem nas suas carreiras? Em bom número de obras, é habitual ver
escrito que o exército imperial romano oferecia à gente comum a possibilidade de
ascender a nível social através da promoção para postos mais elevados. No seu livro
sobre a interpretação dos sonhos, Artemidoro de Daldis explica o sonho de dar à luz
uma águia – que o autor salienta ter sido vulgar entre muitas mães do seu tempo
(Oneirokritika, 2.20); na opinião de Artemidoro, tal significava que nasceria um filho
com um grande futuro; se ele viesse ao mundo numa familia pobre, seria soldado e,
com sorte, podia tornar-se o primeiro homem das suas tropas (em grego
stratopedarches), o que equivalia ao prestigioso posto de primus pilus ou praefectus
castrorum.
Quase todos os milites almejavam atingir o centurionato legionário, assim como todos
os centuriões desejavam chegar, um dia, ao posto de primus pilus. Para alguns, ainda
que poucos, isso foi uma realidade e, com base na documentação antiga, colhem-se
exemplos de carreiras assombrosas, o que demonstra que um indivíduo podia começar
o seu trajecto nas fileiras das legiões e anos depois ganhar uma promoção para
centurião. Até conhecemos casos de carreiras que conduziram um recruta a primus
pilus. Outros ainda foram mais longe na hierarquia castrense1702.
Porém, durante grande parte dos primeiros três séculos da nossa era, um simples
soldado tinha reduzida esperança de se converter num immunis. Mas se ele já possuísse
algumas das competências requeridas e até certa experiência profissional ao entrar no
exército, as suas perspectivas já seriam bastante mais favoráveis. Vegécio refere que o
exército escolhia preferencialmente jovens com treino e experiência em determinadas
profissões, como caçadores de javalis e veados, carpinteiros, ferreiros, indivíduos que
soubessem construir carroças ou tivessem sido negociantes de mantimentos, em
detrimento dos outros recrutas. Em termos globais, de acordo com o mesmo autor, as
autoridades castrenses recrutavam mancebos física e mentalmente aptos (Ep. rei mil.
1.7).
1700
Sobre os medici no exército romano, consulte-se a monografia de J. Wilmanns, Der Sanitätdienst im Römischen
Reich, 1995. Noutro capítulo, desenvolvemos mais comentários sobre a medicina em contexto militar.
1701
K. Strobel, «Hanwerk im Heer – “Handwerk im zivilien Sektor”», Ktema 16 (1991), p. 19ss.
1702
G. Alföldy, «Das Heer in der Sozialstruktur des Römischen Kaiserreiches», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.),
Kaiser, Heer und Gesellschaft in der Römischen Kaiserzeit, p. 39ss; B. Dobson, Die Primipilares. Enwicklung und
Bedeutung. Laufbahnen und Persönlichkeiten eine römischen Offizierranges, Bona/Colónia, 1978, p. 40ss; AE 1985,
735.
576
Conquanto razoável número de soldados talvez soubesse ler e escrever antes de iniciar
o serviço militar, ignoramos se Nonius Datus, por exemplo, já viria munido de
conhecimentos como librator antes de ingressar no exército. Se assim foi, ele
provavelmente experimentou poucas dificuldades aquando da sua incorporação nas
forças armadas, reunindo condições para cedo passar à categoria de immunis. Todavia,
era igualmente possível aprender estes ofícios e melhorar a formação no próprio
exército. No caso dos libratores, sabemos que havia instrutores, como se atesta numa
inscrição do Norte de África (discens libratorum; AE 1942/43, 93 = AE 1973, 646).
Mas a perícia e a experiência não bastavam para se usufruir da immunitas em relação
às tarefas mais pesadas. Como se assinala na primeira carta de Iulius Apollinarius, o
número de soldados usufruindo deste privilégio era relativamente limitado.
Normalmente, o candidato precisava de esperar que uma posição ficasse vaga. Como já
salientámos, as cartas de recomendações e as «cunhas» assumiam muita utilidade e
eram usuais em certas partes do império. Novamente, o caso de Apollinarius é
ilustrativo a este respeito, já que ele contou de toda uma rede de camaradas e amigos
do seu pai a apoiá-lo.
São relativamente poucas as carreiras que se colhem na documentação antiga. Apesar
de tudo, é possível detectar determinadas tendências: uma vez alcançado o nível de
immunis, o percurso profissional do soldado dependia em larga medida da posição
específica que ocupava. Geralmente, os immunes que trabalhavam como assistentes e
secretários num dos numerosos «gabinetes» administrativos do exército tinham mais
perspectivas de subir na hierarquia. Raramente tinham a certeza de que iriam ser
promovidos, mas, tal como sucedeu com Apollinarius, aspiravam a converter-se em
principales. Os homens que exercessem funções no estado-maior reuniam mais
hipóteses de ganhar a simpatia dos seus superiores, bem como o seu apoio durante as
carreiras1703.
Para os especialistas técnicos, as possibilidades de receberem promoções eram
consideravelmente menores. Com base nos testemunhos conservados, só um punhado
deles seria promovido a principales ou atingia o centurionato. Pode haver mais do que
uma explicação para esta escassez documental: talvez os graus mais baixos de
especialistas não se entendessem dignos de menção em inscrições evocando carreiras;
no entanto, o mais provável é que esses especialistas carecessem do apoio dos oficiais
superiores, que os outros immunes recebiam durante o tempo em serviam como
oficiais subalternos ou suboficiais no estado-maior. Podemos até depreender que os
seus talentos e experiência eram de tal modo valiosos e profícuos que nem se colocava a
questão de ascenderem a outros postos. Nonius Datus jamais passou da sua função
especializada como librator. Muito provavelmente, deveu a sua evocatio às suas raras
competências e experiência e, mesmo já veteranus, o seu alto nível de especialização
levou a que viesse a participar numa nova missão enquanto librator1704.
Dos especialistas que sabemos terem sido promovidos a postos mais elevados, quase
todos serviram nas coortes pretorianas. T. Flavius Rufus é um desses casos: iniciou a
sua carreira como simples miles numa coorte urbana, mas a seguir foi transferido para
os pretorianos, tornando-se um architectus.Passou depois a tesserarius, antes de
ocupar várias funções como oficial do estado-maior. Finalmente, ele exerceu quatro
centurionatos legionários sucessivos (ILS 2082). Quanto a C. Aelius Aelianus teve um
começo semelhante - como librator ascendeu a tesserarius nas coortes pretorianas;
depois recebeu a evocatio mas, antes de obter uma nova promoção, faleceu (ILS 2060).
O último caso é o de T. Aelius Malcus (ILS 2090): viu-se promovido de tector equitum
praetorianorum aos postos de antistes e sacerdos do templo de Marte, no
acampamento da coorte pretoriana.
Estas parcas evidências não permitem que façamos generalizações. No entanto, é
quase certo que as melhores perspectivas de promoção para os especialistas das coortes
pretorianas estivessem associadas ao facto de tais tropas se encontrarem muito
1703
M. A. Speidel, «Carrière militaire et solde», pp. .
1704
IDEM, «Specialisation and promotion…», p. 448.
577
próximas do imperador, ou então porque também interviessem em mais acções
militares do que outras, assim beneficiando de uma situação mais vantajosa do que as
demais unidades. De qualquer modo, actos de bravura e outras proezas obradas em
campo de batalha podiam muitas vezes conduzir a recompensas e a promoções. Outra
explicação ppossível é que as coortes estacionadas na Urbs talvez tivessem acesso a um
maior número de recrutas com competências especializadas do que o exército nas
províncias imperiais, o que a ser verdade, facilitaria a substituição dos especialistas que
viessem a ocupar postos mais elevados.
A maioria dos especialistas, após cumprir o tempo de serviço, eram licenciados como
simples veteranos, recebendo aquando da desmobilização, o conjunto habitual de
privilégios que se atribuía aos militares. Aqueles a que se pedia que se mantivessem no
exército como evocati (haja em vista o caso de Nonius Datus) terão sido bastante
poucos. Para alguns, talvez mesmo para muitos, o ingressar nas forças armadas
romanas era, já por si, um passo que proporcionava vantagens, uma vez que podiam
gozar das benesses exclusivas dos militares. Quanto à ideia preconcebida segundo a
qual o alistamento no exército servia, para um simples soldado, como meio de ascensão
social, é algo que não conseguimos corroborar ou refutar 1705. Os milites do exército
romano formavam uma sociedade própria, à parte, e dificilmente se encontram provas
documentais fiáveis que permitam avaliar a sua condição social face a outro grupo
vagamente comparável pertencente à sociedade civil. Assim, é impossível saber se os
immunes especialistas eram vistos com maior apreço pelos civis do que os meros
gregarii.
Contudo, os immunes que participaram em projectos de obras públicas, como Nonius
Datus, ganharam, decerto, o respeito ou a consideração da comunidade civil local. Mas
Datus constitui, em princípio, uma excepção, já que a maioria dos immunes
especialistas talvez nunca tenha recebido tanta atenção como ele. A sua inscrição
funerária é, basicamente, uma celebração da atenção dispensada pelos governadores e
comandantes legionários a Datus, bem como das suas proezas profissionais. Para o
grosso dos seus camaradas, muito possivelmente só os seus commilitones apreciariam
as suas actividades técnicas.
***
1705
Ibidem, p. 449.
1706
J. Bingen et al.(eds.), Mons Claudianus. Ostraca Graeca et Latina, vols.I-III, Cairo, 1992, 1992, 2000.
578
Um tesserarius promovido a signifer entrava na categoria dos duplicarii. O signifer
era o portador da insígnia de um manípulo de tropas de infantaria, enquanto o
vexillarius arvorava o estandarte das unidades de cavalaria. Neste contexto, o signifer
afigurava-se inferior, em prestígio, ao imaginifer, que ostentava a efígie do imperador
e, sobretudo, ao aquilifer, o portador da águia legionária. Assim, no seio de um mesmo
grau hierárquico, certas funções eram julgadas mais honrosas do que outras, como se
atesta pela utilização dos títulos de magister ou de curator.
Além dos serviços comuns a todas as unidades, cada oficial dispunha do seu estado-
maior, o officium. Esta prática remonta, aparentemente, aos últimos tempos da
República, altura em que se conhece a existência dos beneficiarii, ligados à pessoa dos
oficiais, aos quais haviam sido recomendados e que se viam encarregados de uma
missão específica (Júlio César, Bell. Civ. I, 75): consistia, amiúde, em guardar uma
statio, que tanto podia corresponder a uma estação de muda da posta imperial, a
vehiculatio, mais tarde chamada cursus publicus, como a um corpo que exercesse
funções de patrulhamento/policiamento local.
No Alto-Império, os beneficiarii, que foram meticulosamente compulsados por J.
Otto1707 e J. Nélis-Clément1708, acediam à categoria dos sesquiplicarii, quando não
estivessem ligados a um tribuno, e à dos duplicarii quando se encontrassem vinculados
a um legado. Do praepositus, investido do comando de um numerus, ao legatus de
legião, cada graduado tinha um officium, constituído por immunes de graus variáveis,
em maior ou menor número, consoante a sua categoria hierárquica. Passou, então, a
ser uma forma corrente para se arranjar funcionários e destacar soldados para os
«gabinetes» das administrações provinciais e romanas.
O exército romano englobava perto de 400 000 homens, escolhidos em função das
suas capacidades físicas mas, igualmente, tendo em conta certas aptidões intelectuais, à
disposição do imperador. As competências que os militares poderiam adquirir no
estado-maior da sua guarnição faziam de alguns deles indivíduos apreciados nos
diferentes sectores da administração imperial. Em princípio, os governadores
provinciais empregariam uma centena de militares nos seus «gabinetes», chamados
officia. Nestes, juntamente com os librarii, trabalhavam os exacti (arquivistas).
A guarda pessoal dos legados era assegurada pelos singulares, recrutados entre os
cavaleiros auxiliares, enquanto os stratores lhes estavam associados como estribeiros.
Quanto aos quaestionarii, serviam como agentes da justiça. Muito se tem debatido
acerca do estatuto e do papel dos frumentarii: mais do que soldados adstritos ao
aprovisionamento de trigo, a sua designação talvez advenha das rações gratuitas de
trigo de que terão usufruído desde a época republicana. Sob o Império, eles serviriam
essencialmente como correios e agentes policiais. Garantiam, entre outras coisas, as
ligações entre as províncias e Roma, onde estavam aboletados numa caserna no Mons
Caelius (Castra Peregrina/Peregrinorum). Os speculatores1709, originariamente
batedores que efectuavam missões de reconhecimento e recolha de informações em
território hostil, vieram a converter-se em guardas de corpo e, mais tarde, exerceram
funções de estafetas, de polícias e, até, de executores ou algozes.
Os commentarienses (também designados somente a commentariis) supervisionavam
o arquivamento da correspondência e dos processos judiciais. No topo desta hierarquia,
e a receber o soldo de duplicarius, estavam os cornicularii que dirigiam os «gabinetes»,
consistindo geralmente em antigos optiones. A sua denominação devia-se às insígnias
em forma de corno que ornamentavam os seus elmos. Era, aliás, ao posto de
cornicularius, no officium do prefeito do Egipto que o referido librarius Apollinarius
da Legio III Cyrenaica tencionava aceder. No officium de um governador provincial, os
cornicularii estavam sob as ordens de um centurio princeps officii, coadjuvado por um
1707
Die Beneficiarier. Untersuchungen zu ihrer Stellung innerhalb der Rangordnung des römischen Heeres und zu
ihrer Funktion, Estugarda, 1995.
1708
Les Beneficiarii: militaires et administrateurs au service de l’Empire (Ier s. a. C.- VIe s. p. C.), Bordéus, 2000.
1709
G. Crimi, «Il mestiere degli speculatores: nuovi dati e ricerche dopo gli studi di Manfred Clauss», in C. Wolff (ed.),
Le Métier de soldat dans le monde romaine. Actes du cinquième congrès de Lyon organisé les 23-25 septembre 2010
par l’Université Jean Moulin Lyon 3, pp. 491-498.
579
optio praetorii. Durante a primeira metade do século III, teve lugar uma especialização
progressiva das carreiras, havendo principales a exercer funções mais administrativas,
ao passo que outros se destinaram sobretudo a missões militares.
Embora os immunes representassem uns 10% (em certos casos chegando aos 20%)
nas unidades, o acesso aos postos superiores dos principales revelava-se cada vez mais
selectivo, na medida em que os centuriões representavam apenas 1% dos efectivos
legionários: somente 1% a 2% dos officiales poderiam alimentar expectativas concretas
de se tornarem cornicularii.
580
com os de Tarrutieno Paterno, o jurista da dinastia Antonina que foi morto por ordem
do imperador Cómodo. É inegável que se registaram mudanças ao longo dos anos. Em
particular, os reinados de Cláudio e de Adriano foram vistos como períodos marcados
por reformas militares e, tal como em qualquer outra instituição, no exército
verificaram-se esporadicamente excepções.
Citemos Vegécio:
«Segundo os antigos costumes, o centurião-chefe [centurio primo pilo] era promovido a partir
do primus princeps, e não estava só encarregado apenas da águia, mas também chefiava 400
soldados na linha da frente. Aqui, a cabeça de toda a legião, por assim dizer, adquiria
recompensas e benefícios. Do mesmo modo, o primus hastatus liderava duas centúrias, que têm
200 homens, na segunda linha. Contudo, o princeps da primeira coorte comandava centúria e
meia, correspondendo a 150 homens. Sobre ele recaía a responsabilidade por quase tudo que se
tinha de organizar na legião. De igual forma, o secundus hastatus dirigia uma centúria e meia
[…] 150 homens. O triarius prior controlava 100 homens. Desta maneira, as dez centúrias da
primeira coorte encontravam-se sob as ordens de cinco centuriões. Os Antigos concediam-lhes
grandes vantagens e honras, pelo que os demais soldados, em toda a legião, se esforçavam o
máximo por conseguir obter tais recompensas. Existiam também centuriões que tomavam conta
de centúrias singulares» (Ep. rei mil. 2.8).
Em tempos, supôs-se que estes centuriões da primeira coorte correspondiam aos que,
noutros locais, são qualificados como primi ordines (literalmente, «primeiras filas»).
No entanto, mediante o laborioso exame das inscrições erguidas por estes homens,
constata-se que Vegécio lhes atribuiu os títulos errados 1711.
Debrucemo-nos sobre os primi ordines. O centurião-chefe era normalmente
designado primus pilus; imediatamente abaixo estava o princeps prior, por vezes
simplesmente conhecido como princeps. Na conhecida descrição do acampamento de
marcha da autoria do Pseudo-Higino1712, e provavelmente nas fortalezas legionárias
também, «os officia da primeira coorte, onde se reuniam e afixam as ordens diárias das
legiões, deviam localizar-se defronte da águia, na fila do legado (De Mun. cast. 20).
Seria neste sítio que o princeps cumpria os deveres organizativos que Vegécio refere.
Sobreviveu uma inscrição que alude à construção do tabularium principis («gabinete
dos registos do princeps) na fortaleza da Legio III Augusta em Lambaesis:
«Os optiones da primeira coorte edificaram o tabularium principis [juntamente] com estátuas
da família divina, usando aos seus próprios fundos: Quintus Sempronius Felix [optio do]
primus pilus; Publius Aelius Macrinus [optio do] princeps; Lucius Valerius Januarius [optio
do] hastatus; Gaius Julius Longinianus [optio do] princeps posterior; Gaius Antonius Silvanus
[optio do] hastatus posterior» (ILS 2446).
Dois pilares evocam o restauro do mesmo tabularium por um princeps chamado
Ulpius Antoninus, coadjuvado pelos cinco novos optiones da primeira coorte e dois
librarii. Um dos optiones nomeados, Marcus Aurelius Licinius, também aparece numa
inscrição edificatória procedente do forte de Gemellae, situado num oásis (perto de
Mekhadma, Argélia), datando de 22 de Outubro de 253 d. C.
Com base no texto epigráfico acima transcrito (e muitos outros), podemos observar os
títulos correctos para os primi ordines: primus pilus («centurião-chefe»), princeps
hastatus, princeps posterior («princeps da retaguarda») e hastatus posterior. Mas, às
vezes, parece que existiram mais do que cinco postos.
Tácito conta que, na segunda batalha de Cremona, em Outubro de 69 d. C., «a Legio
VII, levantada recentemente por Galba, foi a mais atingida; morreram seis centuriões
entre os primi ordines e perderam-se vários signa» (Hist. 3.22). Analogamente, num
monumento dedicado a Septímio Severo e à casa imperial, erguido pelos centuriões da
Legio XXII Primigenia em Mogontiacum, constam seis nomes sob a epígrafe cohors
prima (primeira coorte; CIL XIII 6801).
Também se sugeriu que, na versão dos primi ordines de Vegécio, com a sua estranha
distribuição de centúrias e meias-centúrias, o autor se reportasse, ainda que de modo
confuso, aos seus níveis remuneratórios: isto significaria, então, um salário quádruplo
para o primus pilus, um duplo para os princeps (que Vegécio baralhou com o hastatus)
1711
Ibidem, pp. 11-12.
1712
IDEM, «A camp in search of a campaign», Ancient Warfare, III.3 ( ), pp.
581
e soldo e meio para os dois postos seguintes, ao passo que o quinto homem receberia o
montante-padrão de uma centurião, que já era quinze vezes superior ao stipendium dos
legionários.
***
A promoção ao centurionato 1713 emanava teoricamente do imperador e do procurador
ab epistulis, mas, na prática, os governadores provinciais, investidos do comando das
tropas, assim como os legados de legião, podiam certamente influir na escolha dos
candidatos. Estes eram os principales mais meritórios e competentes. A um optio
susceptível de de se converter em centurião chamava-se optio spei ou optio ad spem
ordinis. No entanto, desde finais do século II d. C., eram os cornicularii que mais
possibilidades reuniam para ascenderem a centuriões, sobretudo se procedessem das
coortes pretorianas, mas não em exclusivo.
Na guarnição de Roma, os centuriões eram prioritariamente escolhidos entre os
principales do praetorium ou entre os centuriões das legiões mais competentes.
Começavam a sua carreira entre os vigiles, transitando para as coortes urbanas até
que, por fim, regressavam ao pretório. Quanto aos principales legionários que
atingissem os postos menos prestigiosos da oficialidade subalterna, podiam tornar-se
centuriões ou decuriões nas tropas auxiliares.
Muitas vezes, o posto de beneficiarius com soldo de duplicarius representava um final
de carreira honroso para um principalis que não tivesse logrado ascender a centurião.
Se nos basearmos em J. Nélis-Clément 1714, menos de 1,5 % dos beneficiarii obtinham
uma promoção acima desse posto. Alguns militares continuavam no exército para além
do tempo legal de serviço com o título de retentus, sendo o de evocatus Augusti o que
mais especialmente se reservava aos pretorianos e aos soldados da coorte urbana de
Lugdunum (Lyon), que ainda se encontrassem sob as insígnias no terminus do tempo
regulamentar. Assim, eles podiam ajudar os seus camaradas com a sua experiência,
exercendo a função de instrutores ou dirigindo certos serviços das suas unidades graças
a conhecimentos acumulados numa área específica.
O primipilato significava o zénite na carreira de um centurião. É certo que ainda hoje
vários historiadores debatem a questão se todos os antigos primipilares1715 ingressavam
automaticamente na segunda ordem social mais importante, a equestre, do Estado
romano. Seja como for, sabemos que lhes foram atribuídas diversas funções equestres,
tanto no seio das forças armadas como fora delas. Com efeito, no fim de um primeiro
primipilato, um antigo centurião podia terminar a carreira como praefectus
castrorum/prefeito de acampamento (que, desde o século II, se passou a designar
prefeito de legião) ou, então, continuar em funções na guarnição de Roma enquanto
tribuno, primeiro nos vigiles, a seguir nos urbaniciani e, por último, no pretório. Este
percurso podia culminar num segundo primipilato. Um primus pilus tinha igualmente
a oportunidade de encetar uma carreira como procurador, se fosse promovido
directamente à centenarius, usufruindo um emolumento anual de 100 000 sestércios.
Mas, ao terminar um segundo primipilato, os centuriões reuniam condições para
aceder às procuradorias ducenárias e, com um bocado de sorte, podiam chegar às
grandes prefeituras.
1713
E. Birley, «Promotions and Transfers in the Roman Army II: the Centurionate», in Carnuntum Jahrbuch (1965), pp.
21-33. Para uma investigação circunstanciada, de cariz prosopográfico, sobre as carreiras de centuriões desde o reinado
de Augusto até ao século III d. C., consulte-se J. Robert Summerly, Studies in the Legionary Centurionate, tese para a
obtenção do grau de PhD inédita, Durham University, Durham, 1992: os capítulos I a V abordam as trajectórias de uma
série de centuriões ao longo das dinastias Júlio-Cláudia, Flávia, Antonina e durante vários reinados já no século III (cf.
pp. 4-224; conclusões: pp. 225-228). Veja-se também: Graeme A. Ward, Centurions. The Practice of Roman Officership,
tese para obtenção do grau de PhD inédita, Faculty of the University of North Carolina, Chapel Hill, 2012, pp. 136-146;
R. D’Amato, Roman Centurions 31 BC-AD 500. The Classical and Late Empire, Oxford, 2012, pp. 11-14.
1714
Les Beneficiarii: militaires et administrateurs au service de l’Empire («Chapitre III – Les diverses types de
bénéficiaires: leurs aspirations et carrières»), p. 122.
1715
B. Dobson, «The Significance of the Centurion and Primipilis in the Roman Army», Aufstieg und Niedergang der
römischen Welt,. II.1 (1974), pp. 392-434; IDEM, Die Primipilares (monografia anteriormente citada em nota de
rodapé); IDEM, «The Primipilares in Army and Society», in G. Alfoldy, B. Dobson e W. Eck (eds), Gedenkschrift E.
Birley, Estugarda, 2000, pp. 139-152.
582
Para os pertencentes ao ordo equestre, o posto de centurião ex equite romano terá
sido a sua principal motivação para abraçarem a carreira das armas, que deste modo
podiam obter o emblemático cepo de vinha (vitis)1716, já que as milícias equestres
ofereciam limitado número de postos disponíveis no exército, processo que culminava,
numa primeira fase, somente nas procuradorias sexagenárias. Consequentemente, a
par das elites municipais, o exército romano contribuiu para a renovação da ordem
equestre. Entre os reinados de Adriano e Cómodo, do mesmo saiu cerca de 20% dos
procuradores ducenarii.
O sistema das carreiras militares ainda não estava inteiramente definido durante a
dinastia dos Júlio-Cláudios (14-68 d. C.). No entanto, o caso de Tiberius Julius Italicus
ilustra um dos primeiros exemplos do tipo de carreira que qualquer centurião aspirava
ter, com a sua típica sequência de postos:
Ti. Iulio Ti. f. Fal(erna) Italico, (centurioni) leg(ionis) VII Macedon(icae), (centurioni)
leg(ionis) XV Primigen(iae), (centurioni) leg(ionis) XIII Gem(inae), p(rimo) p(ilo)…
«Para Tiberius Iulius Italicus, filho de Tiberius, da tribo Falerniana, centurião da Legio VII
Macedonica, centurião da Legio XV Primigenia, centurião da Legio XIII Gemina, primus
pilus…» (CIL X.4 723)1717.
A conjunção da VII Macedonica e da XV Primigenia chamou, de imediato, à atenção
dos estudiosos para uma possível pista quanto à cronologia da carreira de Iulius
Italicus. A XV Primigenia era uma nova legião, criada provavelmente pelo imperador
Gaio Calígula, com vista ao seu projecto abortado de invasão da Britânia. De igual
modo, é sabido que a VII Macedonica foi rebaptizada como Claudia pia fidelis
(«Cláudia, leal e fiel»), por se manter leal a Cláudio durante a tentativa de um golpe de
Estado em 42 d. C. (revolta encabeçada por Camilo Escriboniano, governador da
Dalmácia, a qual surge narrada por Dião Cássio: Hist. rom. 60.15.1-4). Estes dois
acontecimentos parecem situar as primeiras etapas do centurionato de Iulius Italicus
nos derradeiros anos do reinado de Calígula 1718.
Mas o estudo das inscrições raramente se traduz num labor simples e linear. Os
registos epigráficos encerram muitas surpresas, como o facto de a Legio VII
Macedonica não ter adoptado logo, ao que se julga, os seus novos títulos. Mas a
referência à XV Primigenia oferece um ponto de partida, já que Iulius Italicus não
poderia ter exercido o seu centurionato nesta legião antes de 39 d. C., quando a unidade
ganhou existência.
A sua transferência subsequente, para a Legio XIII Gemina, também se reveste de
interesse. As legiões XIII e XV foram vizinhas na Germânia Superior, até à altura em
que os efeitos causados pela invasão da Britânia, sob a égide de Cláudio, levaram a
movimentações generalizadas de tropas legionárias ao longo do Reno e do Danúbio.
Afigura-se tentador imaginar que Italicus se visse transferido para a XIII Gemina por
volta de 45 d. C., pouco antes da sua deslocação para a Panónia e para a fortaleza de
Poetovio (actual Ptuj, Eslovénia). Porém, como iremos ver mais detalhadamente, os
centuriões percorriam frequentemente longas distâncias no decurso das suas carreiras,
quando integravam uma nova legião, e nada contradiz uma data mais tardia para a
transferência de Iulius Italicus (mais à frente observaremos um caso extremo, o das
viagens do centurião Petronius Fortunatus). O próprio Italicus provinha de Tilurium
(Gardun, Croácia), a fortaleza da Legio VII, ao transitar para a XV Primigenia, sendo
1716
Sobre a vitis o seu simbolismo militar e social, veja-se P. Cosme, «Le cep de vigne du centurion, signe d’appartenance
à une élite?», in M. Cébeillac-Gervasoni e L. Lamoine (eds.), Actes du Colloque Les élites et leurs facettes. Les élites
locales dans le monde hellénistique et romain, Roma/Clermont-Ferrand, 2003, pp. 339-348.
1717
B. Dobson, Die Primipilares…, nº 60; J. Roberts Summerly, Studies in the legionary centurionate, nº 829, p. 22.
1718
D. B. Campbell, «Backbone of the legions – Some centurions and their careers», p. 12.
583
ele possivelmente um dos homens experientes em torno dos quais a legião terá sido
formada.
Como a inscrição está fragmentária, não há certezas de como a carreira de Italicus
progrediu, excepto o facto de ele atingir o posto de primus pilus numa legião cujo nome
desconhecemos. Todas as fontes documentais sugerem que este posto era ocupado
somente durante um ano. A referida lista dos nomes dos centuriões de Lambaesis
regista dois homens com o grau de primus pilus, talvez porque um deles estaria prestes
a ceder o lugar ao seu substituto1719.
Suetónio informa-nos que Calígula ordenou o afastamento muitos destes oficiais
subalternos do exército por causa da sua idade relativamente avançada, alguns deles
estando já muito perto do seu licenciamento. Contrariamente aos demais centuriões, o
primus pilus tinha um prazo fixo a cumprir, que qualificava o indivíduo para a sua
gratificação aquando da desmobilização. E devia consistir num bónus considerável, na
medida em que, juntamente com o título honorífico de primipilaris («ex-centurião-
chefe»), tais homens adquiriam o estatuto social equestre. Além disso, Suetónio dá a
entender que, de acordo com uma medida destinada à redução das despesas, Calígula
baixou a gratificação do primus pilus para 600 000 sestércios. Ora numa altura em que
um simples legionário recebia um montante de licenciamento de 12 000 sestércios, a
quantia aparenta ser excessivamente grande (pelo que alguns historiadores duvidaram
da veracidade da asserção suetoniana). Mas os centuriões pertencentes ao escalão mais
baixo já auferia um salário quinze vezes superior ao de um miles, e o primus pilus o
quádruplo. É indubitável que havia interesse em manter o elevado estatuto dos
primipilares enquanto elite militar. E se eles ainda conseguissem gozar da saúde e
vigor, podiam aspirar a novos desafios numa carreira equestre, aspecto que mais à
frente discutiremos.
Globalmente, para se chegar a centurião, existiam três vias diferentes. Um simples
miles gregarius podia tentar alcançar o centurionato desde que passasse por uma série
de funções no seio da categoria dos principales; alguns conseguiam o seu intento mais
cedo do que os outros, mas normalmente não antes de permanecerem uma dúzia de
anos (ou mais) nas fileiras. Quanto aos indivíduos com estatuto equestre, podiam obter
uma comissão directa ao «puxar os cordelinhos» do patronato, contando com a ajuda,
por exemplo, de um governador provincial. No entanto, diversos militares preferiam
manter-se como centuriões durante largo tempo à perspectiva de competirem pelos
usuais postos equestres, que implicavam o comando de uma coorte ou de uma ala de
cavalaria por uns quantos anos. A terceira via conducente ao centurionato tinha a sua
génese nas fileiras da Guarda Pretoriana em Roma. A este respeito, a carreira de
Marcus Vettius Valens é particularmente elucidativa:
M. Vettio M. f. Ani(ensi) Valenti, mil(iti) coh(hortis) VIII pr(aetoriae), benef(iciario)
praef(ecti) pr(aetorio) donis donato bello Britan(nico) torquibus, armillis, phaleris, evoc(ato)
Aug(usti), corona aurea donat(o), (centurioni) coh(ortis) VI Vig(ilum), (centurioni)
stat(orum), (centurioni) coh(ortis) Urb(anae), (centurioni) c(o)ho(rtis) II pr(aetoriae),
exercitatori equit(um) speculatorum princip(i) praetori leg(ionis) XIII Gem(inae) ex
trec(enario), [p(rim)o p(ilo) leg(ionis) VI Victr(icis), donis donato ob res prosper(e) gest(as)
contra Astures, torq(uibus), phaler(iis), arm(illis), trib(uno) coh(ortis) V Vig(ilum), trib(uno)
coh(ortis) XII Urb(anae),… C. Luccio Telesino, C. Suetonio Paulino cos [66 d- C.].
«Para Marcus Vettius Valens 1720, filho de Marcus, da tribo Aniensiana, soldado da VIII coorte
pretoriana, beneficiarius do Prefeito Pretoriano, condecorado na Guerra Britânica com torques,
armillae e phalerae, evocatus do imperador, condecorado com uma coroa de ouro, centurião da
sexta coorte dos vigiles, centurião dos statores, centurião da XVI coorte urbana, centurião da II
coorte pretoriana, instrutor de cavalaria dos speculatores, princeps praetori da Legio XIII
Gemina, atingiu o grau de trecenarius, primus pilus da Legio VI Victrix, condecorado pelos
feitos exitosos contra os Ástures com torques, phalerae e armillae, tribuno da V coorte de
vigiles, tribuno da XII coorte urbana, tribuno da III coorte pretoriana, tribuno da Legio XIV
Gemina Marcia Victrix, procurator do imperador Nero César Augusto na província da
1719
Ibidem, p. 13.
1720
Oriundo de Ariminum, tendo sido incorporado entre os Aniensis, a tribo precisamente, de Ariminum.
584
Lusitânia, patrono da colónia. Dez speculatores erigiram isto enquanto amostra de respeito, no
ano em que Gaius Luccius Telesinus e Gaius Suetonius Paulinus foram cônsules [66 d. C.]»
(ILS, 2648)1721.
Alguns autores entenderam o caso de Vettius Valens como arquétipo de uma carreira
pretoriana, mas como realçou D. B. Campbell 1722, ele pode muito bem haver desfrutado
injustamente de várias vantagens, sobretudo se foi parente do médico pessoal de
Cláudio, com o mesmo nome. Não há dúvida que a sua carreira se revela invulgarmente
bem-sucedida. Valens terá ingressado na Guarda Pretoriana com uns 18 anos de idade,
juntamente com muitos dos seus pares, quiçá em 28 d. C., quando o infame Sejano
estava no auge do seu poder como prefeito pretoriano (para os eventos ocorridos nesse
ano, cf. Tácito, Ann. 4.68-75).Como guarda da VIII coorte pretoriana, Valens obteve,
eventualmente, o cargo de beneficiarius, assistente administrativo que devia, como se
infere, a sua promoção ao «favor» (beneficium) de um oficial superior.
No caso em foco, o oficial correspondeu a um prefeito pretoriano, possivelmente
Rufrius Pollio, que acompanhou o imperador Cláudio na viagem à Britânia em 43:
repare-se que Valens recebeu condecorações militares pela sua participação na «Guerra
Britânica». Ele já teria cumprido o tempo-limite de 16 anos na Guarda Pretoriana,
porque, no seu regresso à Urbs, esteve ao serviço do princeps como evocatus1723
(veterano «chamado de volta» ao serviço militar). Isto provavelmente ocorreu em 44 d.
C., quando o seu novo estatuto permitiu que as suas primeiras condecorações se vissem
abrilhantadas com a adição de uma corona aurea (coroa de ouro), decerto por ocasião
do triunfo de Cláudio nesse ano.
Confiavam-se funções especializadas ou tarefas particulares a muitos evocati, e alguns
subiram ao posto de centurião. Com efeito, Valens foi promovido, de um modo quase
anómalo, a uma série de centurionatos em Roma, uma «proeza» de longe mais
impressionante do que ocupar tais postos nas legiões. Além de uma coorte urbana, dos
vigiles e da Guarda Pretoriana, as funções exercidas por Valens incluíram a força de
segurança dos statores, e os correios do imperador (speculatores).
Integrado nas prestigiosas unidades da Urbs, Valens ascendeu ao enigmático posto de
princeps praetori na Legio XIII Gemina: devia tratar-se de uma cargo do estado-maior,
evidentemente com a categoria de centurião, vinculado ao legatus legionário da XIII
Gemina, cuja fortaleza se localizava em Poetovio, durante o principado de Cláudio (é,
aliás, bem possível, que tenha conhecido Tiberius Iulius Italicus). Na inscrição declara-
se, orgulhosamente, que nesta fase ele estava autorizado a adoptar o título honorífico
de trecenarius. Já ficou convincentemente demonstrado que este título peculiar se
aplicava a homens que tivessem passado pelos três graus do centurionato em Roma,
desde os vigiles, a coorte urbana até à Guarda Pretoriana, com ou sem os postos
adicionais de Valens. A próxima etapa seria, invariavelmente, nas legiões, para assim se
habilitar, à semelhança de Iulius Italicus, ao prestigioso centurionato principal.
Na Hispânia, enquanto primus pilus da Legio VI Victrix1724, Valens recebeu
condecorações de menor importância no rescaldo de um conflito contra os Ástures 1725.
A concessão de torques, armillae e phalerae a um homem que já os recebera, bem
como outras recompensas, quinze anos antes, foi, talvez, simplesmente, uma maneira
para rematar o seu último ano no centurionato. Mas Valens ainda não tinha acabado o
seu percurso profissional. Com uns 50 anos de idade, o seu novo status de primipilaris
1721
B. Dobson, Die Primipilares, nº 69; Pflaum, Les carrières procuratoriennes équestres sous le Haut-Empire
romaine, nº 32; B. Campbell, The Roman Army 31 BC-AD 337- A Sourcebook, nº 90, p. 51.
1722
«Backbone of the legions – Some centurions and their careers», p. 13.
1723
Esta inscrição mostra a carreira mais antiga conhecida de um evocatus que ascendeu aos centurionatos nas coorte de
Roma, antes de passar para o centurionato legionário: B. Dobson e D. J. Breeze, «The Rome cohorts and the legionary
centurionate», Epigraphische Studien 8 (1969), Dusseldorf, 1969, p. 115.
1724
L. Keppie sugeriu que a inscrição da carreira de Valens representaria o mais antigo registo de a Legio VI possuir o
cognomen Victrix: cf. The Making of the Roman Army, p. 207.
1725
V. Hope, The Military Decorations of the Roman Army, p. 202; J. Roberts Summerly, Studies in the legionary
centuriate, p. 13. Tratou-se de uma campanha de reduzida envergadura, que se desenrolou no começo do reinado de
Nero.
585
tornava-o elegível para os cobiçados tribunatos de Roma. Depois de um ano na Britânia
com a Legio XIV Gemina em Viroconium (Wroxester, Inglaterra), onde preencheu,
talvez, uma vaga, foi nomeado procurador-governador da Lusitânia. Valens atingiu,
pois, uma posição de topo, auferindo um salário de 200 000 sestércios, culminando
desta forma uma carreira que durou pertode quarenta anos ao serviço do imperador.
586
infra). A subida de posto teve lugar provavelmente quando Proculus recebeu as
condecorações militares: é quase garantido que isto aconteceu a seguir à conquista de
Jerusalém em 70 d. C. por Tito, a quem Vespasiano, seu pai, delegou o comando das
tropas e a prossecução da guerra.
No decurso do cerco a Jerusalém, não faltaram situações em que os centuriones de
Tito manifestaram a sua coragem. E por esta razão, em diversas alturas surgiram vagas
nas suas fileiras, como Flávio Josefo atesta:
«Juliano, um certo centurião da Bitínia, era o mais valente de todos, homem de não pequena
reputação, o qual observei antes desta guerra, pela sua experiência em combate, a sua força
física e a sua bravura. Ao ver os Romanos já a desistirem e a defender-se mal (ele tinha vindo
para ficar ao lado de Tito, na fortaleza Antónia), ele avançou sozinho e repeliu os Judeus, que
então dominavam, fugindo estes até ao canto do pátio interior do Templo. A multidão debandou
toda junta, ante a força e coragem deste homem. Correndo por entre a gente que se ia
dispersando, matou os que conseguiu apanhar. E nada oferecia uma visão mais extraordinária
para César, ou mais terrível para os outros, que isto. Mas ele foi perseguido pela Fortuna, à qual
os mortais não podem escapar. Ao ter sandálias cardadas, com a sola preenchida por muitos
cravos aguçados, tal como os demais soldados, ele escorregou quando corria sobre o pavimento
de pedra e, ao cair de costas, com o barulho provocado pela sua armadura, aqueles que estavam
a fugir viraram-se para trás. Entre os Romanos na Antónia, a apreensão cresceu, temendo pela
vida do homem, mas os Judeus cercaram-no e atingiram-no de todos os lados com espadas e
lanças. Ele bloqueou muitas armas com o seu escudo, mas apesar de tentar reerguer-se várias
vezes, era derrubado pela multidão dos atacantes. E, mesmo assim, assestou estocadas contra
muitos jazendo no solo; pois ele não era fácil de aniquilar, protegido como estava […] com o
elmo e a couraça, e por inclinar o pescoço [para se defender]. Mas foi-se abaixo quando todos os
outros membros já estavam estraçalhados, ninguém se atrevendo a ir salvá-lo» (BI, 6.81-88).
Finalmente, o talento da engenharia e a implacável persistência das legiões é que
«entregou» Jerusalém nas mãos dos Romanos. Depois, Josefo relata como Tito
organizou uma parada solene, durante a qual se proferiram os nomes dos corajosos e se
concederam condecorações. É muito possível que neste dia Lepidius Proculus tenha
recebido os dona militaria (corona, torques, armillae e phalerae1728), e ascendido de
escalão no centurionato, talvez ficando à cabeça de uma das coortes como pilus prior.
Enquanto Proculus se achava assoberbado na Judeia, os seus congéneres no Ocidente
do império estiveram envolvidos na guerra civil que se seguiu à morte de Nero. Mas em
70 d. C., já imperador em Roma, Vespasiano buscou assegurar a lealdade das forças
armadas à sua nova dinastia Flávia. Na Tarraconensis, as tropas da Legio VI Victrix
reberam ordens de marcha, assim terminando a associação secular desta unidade com
a Hispânia. Eram necessários reforços na Renânia para sufocar da Revolta Batava, e a
VI Victrix cedo teve uma nova base em Novaesium (actual Neuss), na Germânia
Inferior. A seguir, Proculus exerceu o centurionato na VI Victrix, sem dúvida, de acordo
com os desígnios de Vespasiano, que desejava certificar-se da fidelidade do exército, ao
espalhar os soldados que o apoiaram por várias zonas do território imperial. Os
veteranos condecorados da Guerra Judaica eram dignos de confiança e Proculus, entre
outros, teria muita utilidade numa unidade que ainda não se revelasse fiável ou que se
compusesse por tropas sem experiência em operações bélicas. Assim, ele partiu da
Judeia para a Germânia.
Durante a sua permanência na VI Legio, ganhou o respeito e a consideração dos
salineiros das comunidades tribais belgas dos Menapii e Morini, que viviam perto da
foz do Reno, as quais trataram de erigir os monumentos com inscrições em memória a
Proculus (CIL XI.391 corresponde ao mesmo texto que XI. 390, acima transcrito; a
única diferença reside no facto de a primeira inscrição ser erguida pela comunidade
moriniana - … salinatores civitatis Morinorum …). A derradeira linha de cada uma das
inscrições sugere que a filha de Proculus, Septimina, arranjou maneira de embarcar as
estelas da Germânia para Itália ou, então, mandou aí fazer cópias.
1728
V. Maxfield, The Military Decorations of the Roman Army, p. 190; E. Litterling, «Legio», in Real-Encyclopädie der
classischen Altertums Wissenschaft, XII, col. 1584. Observem-se também, os comentários de J. R. Summerly, Studies in
the legionary centurionate, pp. 24-25.
587
Mas antes de se produzirem tais monumentos, uma nova transferência levou Proculus
para a Panónia, bem como a Legio XV Apollinaris. Esta participara na Guerra Judaica,
juntamente com a V Macedonica e a X Fretensis. A X ficou na Judeia, como a sua nova
guarnição permanente, ao passo que a V e a XV retornaram às suas anteriores bases,
respectivamente em Oescus e Carnuntum (Bad Deutsch-Altenburg, na Áustria). No
resto do reinado de Vespasiano, o Danúbio esteve relativamente tranquilo e Proculus,
ao que parece, não interveio em mais acções bélicas. Em determinado momento, ele foi
promovido ao tão ansiado posto de primus pilus, deslocando-se depois para a Legio
XIII Gemina, que ainda estava aquartelada no hinterland panónio, em Poetovio. A
seguir a este ano de serviço, Proculus voltou à sua nativa Ariminum, já aposentado.
Quanto a Septimina, sua filha, apenas a conhecemos através das referidas inscrições;
no entanto, é provável que tivesse outra, «Lepidia Procula, filha de Proculus», objecto
de comemoração por parte do conselho da cidade, na sua qualidade de sacerdotisa da
divina Matilda Augusta (sobrinha de Trajano).
1729
J. Roberts Summerly, Studies in the legionary centurionate, nº 144, pp. 47-48.
1730
Com efeito, quase todos os estudiosos concordam que o imperador não nomeado deve corresponder a Domiciano,
mas já se torna mais complexo haver consenso quanto às datas do bellum Dacicum e do bellum Germanicum. Sabe-se
que Domiciano travou uma Guerra Germânica em 83-84, e um conflito contra os Dácios por volta de 86-88. Noutra
inscrição, concernente à carreira de A. Bucius Lappius Maximus, faz-se menção a um bellum Germanicum contra os
aliados de Saturnino, aproximadamente em 89, mas subsistem dúvidas-se que qualquer das legiões onde esteve Avitus
tenha participado nessas duas conflagrações. Ademais, temos notícia de um centurião, chamado L. Aconius Statura, que
foi condecorado ob bellum Germ. et Sarmatic. (IRT 545), que consiste, talvez na mesma guerra referida na estela de
Bruttius Praesens (bellum Marcomannicum: IGLS VI 2796 = ILS 9200; B. Dobson, Die Primipilares, nº 94) e no
monumento celebrativo de Velius Rufus (cuja carreira abordaremos mais à frente: bellum Marcomannicum Quadorum
Saramatarum), que aparentemente terminou em 92 d. C. A disposição dos elementos no texto de Avitus indicia que a
Guerra Dácica foi anterior à Germânica. Porém, não há certeza quanto à ordem de sucessão dos centurionatos. Tanto a
XV Apollinaris como a V Macedonica podem ter combatido na Guerra Dácica de c. 86-88. Todavia, o grande aumento
de efectivos na guarnição legionária da Mésia nesta altura (vindo a província a dividir-se em duas) sugere que as Mésia
Superior e a Mésia Inferior, mais do que a Panónia, foram as bases de operações para o conflito contra os Dácios. Talvez
os dona que Avitus ganhou pela Guerra Dácica tenham sido concedidos quando ele se encontrava na V Macedonica. Por
outro lado, a XV Apollinaris, em Carnuntum, reúne, em princípio, mais hipóteses do que a V Macedonica, em Oescus,
no envolvimento numa contenda contra os Germanos. Seja como for, tudo isto se resume praticamente a um conjunto
de conjecturas, já que Avitus pode ter sido condecorado tanto quando estava na XV Apollinaris como na V Macedonica.
588
governador provincial. Domiciano deslocou-se pessoalmente à Mésia, mas regressou a
Roma para o Inverno, recebendo várias aclamações imperiais.
Porém, as hostilidades continuaram e, no ano seguinte, o prefeito pretoriano Cornélio
Fusco morreu quando as forças romanas cruzaram o Danúbio, internando-se em
território dácio. Então, três legiões estacionaram na Mésia, todas na margem esquerda
do rio: a VII Claudia, em Viminacium (Kostolac, Sérvia), que aqui já se encontrava
desde o tempo de Nero, a I Italica, em Novae (Steklen-Svishtov, Bulgária) e a V
Macedonica, em Oescus. Em 86, o princeps resolveu dividir a Mésia em duas
províncias e ordenou que uma quarta legião, a IV Flavia, avançasse para Singidunum
(Belgrado, Sérvia). A guerra prosseguiu em 88, ano em que Tétio Juliano, o novo
governador, infligiu uma esmagadora derrota aos Dácios chefiados por Decébalo em
Tapae. O centurionato de Iulius Avitus da V Macedonica (o seu segundo posto) terá
ocorrido durante este conflito, e as condecorações atribuídas pela sua valentia.
No que toca à «Guerra Germânica», recuemos ao ano 83, mais especificamente ao
conflito contra os Catos, no fim do qual Domiciano se auto-proclamou Germanicus (na
acepção de «conquistador da Germânia»). Todavia, quando António Saturnino,
governador da Germânia Superior, se revoltou contra o imperador em 89, o primeiro
parece que contou com a ajuda dos mesmíssimos Catos que Domiciano vencera
anteriormente. Assim, quando o governador da outra Germânia, a Inferior, Lápio
Máximo, logrou jugular esta embaraçosa sublevação, viu-se ovacionado na qualidade
de confector belli Germanici («O que terminou com a Guerra Germânica»), expressão
que serviu para não fazer uma referência explícita a um motim.
Supostamente, Domiciano «celebrou um duplo triunfo após várias batalhas contra os
Catos e os Dácios» (Suetónio, Domiciano, 6.1), e foram estas conflagrações que na
inscrição em apreço se qualificam como «a Guerra Dácica e a Guerra Germânica». Mas
torna-se difícil perceber como esteve Julius Avitus envolvido no Reno quando se
encontrava com a V Macedonica.
Centremo-nos nas origens de Avitus: no texto faz-se menção à sua cidade-natal, Reii
Apollinaris (Riez, França): ele deve ter-se alistado numa das legiões da Britânia, das
Germânias ou da Panónia, já que todas elas obtinham recrutas na Gallia Narbonensis.
Possivelmente, terá procurado ingressar na Legio XV Apollinaris, por causa da
compartilhada reverência por Apolo. Até se pode visualizar o jovem Iulius Avitus a
chegar aos portões da fortaleza legionária de Carnuntum, em finais dos anos 50 d. C.
ou princípios da década de 60.
Muitos legionários esperavam vinte anos ou mais por uma oportunidade de ascender
ao centurionato, preparando o caminho através da ocupação de postos subordinados,
mas certas circunstâncias incomuns podia acelerar o processo. A Legio XV foi enviada
para o Oriente em 62 d. C., onde se manteve enquanto durou a Primeira Guerra
Judaica, só tornando a Carnuntum em 73 (neste ano fizeram-se obras de reconstrução
desta fortaleza). Houve, concerteza, um bom número de possibilidades para que
diversos milites progredissem rumo ao centurionato, num decénio tão fértil em
acontecimentos (cf. Lepidius Proculus, supra), e Iulius Avitus alcançou garantidamente
o centurionato por volta de 75 d. C.. Para um centurião aboletado em Carnuntum, uma
transferência a jusante, para a V Macedonica, na Mésia, não seria surpreendente. Com
efeito, a derrota inicial de Oppius Sabinus às mãos dos Dácios, em 85, gerou, sem
dúvida, vagas para centuriões em tal área.
Já vimos que os militares amiúde percorriam longas distâncias para continuar as suas
carreiras centuriais, daí que a última transferência para Satala (Sadak, Turquia) não é
particularmente invulgar. No período dos Flávios, a Legio XVI Flavia Firma esteve
acantonada nessa zona, exercendo funções de vigilância relativamente à Arménia.
Pouco depois, Avitus pôs de parte a sua vitis, perto do fim do reinado de Domiciano.
Quando se aposentou, já estaria na casa dos seus cinquenta e muitos. O seu epitáfio foi
gravado numa estela, na capital trácia de Perinthus (Marmara Ereglisi, Turquia), na
costa de Propontis, uma boa cidade para um ex-centurião desfrutar tranquilamente da
sua reforma.
589
Como facilmente se depreende, quando um homem se tornava centurião, tinha de
ocupar uma série de postos que usualmente implicavam transferências para outras
legiões. Havia alguma forma de promoção durante este processo, mas os detalhes
continuam a escapar aos investigadores modernos.Todos os centuriones abaixo do
nível dos primi ordines encontrar-se-iam, segundo se crê, no mesmo grau em termos
de salário, daí que tais transferências não aumentassem necessariamente a
remuneração. Por outro lado, eles talvez ganhassem um estatuto superior e vissem
reforçadas as suas possibilidades de obter uma posição entre os primi ordines, a
melhor das quais era, obviamente, a de primus pilus.
Além dos simples legionários que iam subindo a pulso na escala hierárquica,
ultrapassando várias etapas com vista a chegarem ao centurionato, existia uma via
alternativa a partir da Guarda Pretoriana, cujos veteranos estariam acima dos seus
congéneres legionários em termos de cultura e educação (cf. Vettius Valens, supra).
O terceiro «caminho» para ascender ao centurionato era a ordem equestre, em que os
filhos das famílias com este status social geralmente se tornavam conselheiros da
cidade e comandantes dos «regimentos» de tropas auxiliares da Urbs. Mas,
aparentemente, o longo serviço do centuriano atraía alguns, talvez os filhos mais novos,
que, entediados com a vida municipal ou por qualquer outra razão, buscavam uma
existência mais aventurosa. Tiberius Claudius Vitalis foi um deles1731:
TI. Claudius Ti. f. [G]a[l(eria)] Vitali ex equ[i]te R(omano) ordinem accepit in leg(ione) V
[Macedonica] successione promotus [ex] leg(ione) V Ma[c(edonica)] in leg(io) [I It]al(icam)
donis d(onatus) torquib(us) armill(is) phaler(is) corona val[l(ari)] bello Dacico, successione
promot(us) ex leg(ione) I Ital(ica) in leg(ionem) I Miner(viam), [it]er(um) donis d(onatus)
torquib(us) armil[l(is)] phaler(is) corona va[l(lari)] bello Dacico, successione promot(us) ex
leg(ione) I Miner(via) in Leg(ionem) XX Vict(ricem) item Prom(otus) in leg(ione) ead(em) item
promotus ex leg(ione) XX Vict(rice) in leg(ionem) IX [Hi]sp(anam), succ(essione) promot(us)
ex leg(ione) IX [Hi]sp(ana) in leg(ionem) VII Cl(audiam) p(iam) f(idelem), item successit in
leg(ione) ead(em) milit(avit) (centurio) in (cohorte) II pr(inceps) post(erior), annis XI vixit
annis XLI
«Para Tiberius Claudius Vitalis, filho de Tiberius, da tribo Galeriana, aceite, a partir da ordem
equestre, como centurião da Legio V Macedonica, promovido sucessivamente da V Macedonica
para a Legio I Italica, condecorado com torques, armillae, phalerae e uma corona vallaris na
Guerra Dácica, promovido a seguir da I Italica para a Legio I Minervia, de novo concedorado
com torques, armillae, phalerae e uma corona vallaris na Guerra Dácica, depois passando da I
Legio Minervia para a XX Legio Victrix, outra vez promovido no seio da mesma legião e
transitando da XX Victrix para a Legio IX Hispana, mais tarde promovido desta para a Legio
VII Claudia Pia Fidelis, voltou a singrar na mesma legião e ficou como centurião princeps
posterior na segunda coorte. Serviu durante 11 anos e viveu 41 anos» (ILS, 2656).
Claudius Vitalis exerceu funções em seis legiões diferentes, numa carreira que durou
somente onze anos, mas que, ainda assim, o levou a viajar pelo império. As duas
referências à «Guerra Dácica» situam-no incontestavelmente no reinado de Trajano. A
primeira legião em que Vitalis esteve, a V Macedonica, ainda se mantinha em Oescus,
pelo que a sua transferência para a I Italica fê-lo percorrer apenas cerca de 70 km a
jusante, para a fortaleza em Novae. Ele encontrava-se numa zona de risco, atreita a
choques com os Dácios, e ganhou de condecorações, incluindo a corona vallaris,
normalmente atribuída a alguém que se notabilizava no assalto a uma fortificação
inimiga. A sua próxima transferência foi para a Legio I Minervia, criada por Domiciano
em 82, provavelmente quando se preparava para o conflito contra os Catos. A legião
tinha o seu aquartelamento em Bonna (Bona, Alemanha). Nesta unidade, recebeu mais
condecorações, novamente por actos de valentia na luta contra os Dácios.
1731
E. M. Smallwood (ed.), Documents illustrating the Principates of Nerva, Trajan and Hadrian, Cambridge, 1966, nº
294; B. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, nº 85, p. 48; J. Roberts Summerly, Studies in the legionary
centurionate, nº 716, pp. 92-95.
590
Estas acções desenrolaram-se durante a primeira (101-102 d. C.) e a segunda (105-
106) expeditiones de Trajano à Dácia, nas quais se sabe que a I Minervia tomou parte.
Consequentemente, a transferência de Vitalis da I Italica para a I Minervia sucedeu
decerto quando as duas legiões estiveram em campanha na Dácia.
Depois de cessarem as hostilidades, Claudius Vitalis foi colocado na Legio XX Valeria
Victrix (na inscrição, como noutras fontes, abreviada para XX Victrix). Esta era uma
das legiões da Britânia, cuja fortaleza se situava em Deva (Chester, Inglaterra). Não era
de todo incomum haver transferências entre os exércitos do Reno e da Britânia
(captamos notícias de centuriões que realizaram viagens ainda mais longas para ocupar
novos postos). No entanto, vale a pena notar que, doravante, os governadores da
Germânia Inferior (onde estava a base da I Minervia) transitavam com frequência para
a Britânia ocupando o mesmo cargo, e é possível que vários deles aproveitassem para
levar subordinados que considerassem úteis e competentes. Um equestre tornado
centurião seria, talvez, um agradável companheiro de jornada para um governador da
ordem senatorial.
Vitalis obteve nova promoção na Legio XX, antes da sua transferência subsequente, a
150 km a norte de Eburacum (York, Inglaterra), onde se achava a fortaleza da Legio IX
Hispana. Como tivemos o ensejo de afirmar, desconhecemos o significado concreto de
uma promoção centurial no seio da mesma legião, mas supõe-se que existiria uma
hierarquia interna de centuriões, obedecendo, talvez, ao critério da antiguidade no
posto. A última transferência de Vitalis levou-o de volta à Mésia, mais propriamente à
Legio VII Claudia, estacionada na fortaleza de Viminacium, ao redor do ano 110, e não
é difícil descobrir porquê. As legiões do Danúbio prepararavam-se para a Guerra
Pártica de Trajano, havendo todo o interesse em que nela participassem centuriões
experientes e condecorados. A VII Claudia foi das legiões ocidentais que marchou para
o Oriente; dela se retirou uma vexillatio para reprimir uns tumultos na ilha de Chipre,
mas o grosso da unidade rumou à Mesopotâmia. De novo, Vitalis recebeu uma
promoção e, depois, faleceu com o grau de princeps posterior da segunda coorte na
referida legião (centurião que ocupava o quarto lugar em termos de antiguidade no
interior da cohors). Ao tratar-se de um oficial subalterno com estatuto equestre, não
chegou a experimentar dilações na sua carreira e é quase garantido que atingiria o
escalão dos primi ordines, se a morte o não tivesse levado tão cedo.
«Aos deuses manes. Lucius Valerius Proclus, filho de Lucius, soldado na Legio V Macedonica,
beneficiarius do legado, optio com a perspectiva do centurionato, centurião da mesma legião,
condecorado com torques, armillae e phalerae na Guerra Dácica, centurião da Legio I Italica,
centurião da Legio XI Claudia, centurião da XX Valeria Victrix, centurião da IX Hispana,
aposentado com honesta missio. Viveu 75 anos. Aqui jaz» (CIL III.12411 = ILS 2666 b = AE
1892, 106)1732.
No decurso de uma vida bastante longa, Valerius Proclus emergiu das fileiras dos
milites subindo ao posto de centurião, que exerceu em não menos do que cinco
legiões1733. Não restam grandes dúvidas que ele captou as boas graças do seu legatus
1732
J. Roberts Summerly, Studies in the legionary centurionate, nº 193, pp. 129-132.
1733
Eric Birley («Promotions and Transfers in the Roman army II: the Centurionate», Carnuntum Jahrb., [1965], p. 30)
associou a carreira de Valerius Proclus à de Claudius Vitalis, sustentando que ambas datariam do principado de
591
legionário, com o objectivo de mais facilmente progredir no exército. Com efeito, a
sociedade romana funcionava com base no patronato e nas suas redes clientelares. A
referência a um conflito com os Dácios situa Valerius Proclus no principado de
Trajano, com quase total certeza (alternativamente, poderiam corresponder a
confrontos travados durante os reinados de Domiciano e Cómodo, mas outros
elementos da inscrição não se encaixam tão bem nestas duas hipóteses 1734).
Aproximadamente em 100 d. C., na véspera da primeira expeditio dácica de Trajano, o
aristocrata senatorial Quintus Pompeius Falco comandava a Legio V Macedonica em
Oescus, sendo condecorado na «Guerra Dácica». É tentador sugerir que a carreira deste
senador possa ter estado conectada com o centurião Valerius Proclus 1735.
Alistando-se como miles gregarius, Proclus foi escolhido para beneficiarius do seu
legado, função administrativa que deveu a um «favor» (beneficium) por parte do seu
comandante. Os homens pertencentes a esta categoria já haviam alcançado o estatuto
privilegiado de principalis, possivelmente auferindo salário e meio. Gozando da
protecção do legado, Proclus ascendeu ao posto de optio, adjunto de centurião. Além
disso, como queda manifesto na inscrição, garantiu-se-lhe a promoção ao centurionato,
assim passando à frente de outros optiones, bem como signiferi e tesserarii que
perseguiam o mesmo objectivo.
Presume-se que Valerius Proclus acedeu ao posto de centurião em 105 d. C., ano em
que começou a segunda expeditio de Trajano contra a Dácia. A sua legião, a V
Macedonica, interveio activamente nas acções bélicas. Por esta altura, Proclus ganhou
condecorações militares, se bem que a ausência de uma coroa tenha levado vários
estudiosos a sustentarem que a recompensa fora concedida, não por Trajano, mas pelo
parcimonioso Domiciano, o que a ser verdade, nos obrigaria a recuar toda a cronologia
em cerca de vinte anos1736.
Para um centurião da V Macedonica, passar para a Legio I Italica, em Novae, nada
tinha de surpreendente (observa-se a mesma situação no caso de Tiberius Claudius
Vitalis, cf. supra). Mais tarde, exerceu funções na Legio XI Claudia, cuja fortaleza se
construiu em Durostorum (Silistra, Bulgária), após a Guerra Dácica, mantendo-se
então Proclus na Mésia Inferior. Mas importa advertir para um facto: entre os anos 115
e 117 d. C., esta província teve como governador o mesmo Pompeius Falco que chefiara
a V Macedonica quinze anos antes (que, entretanto, já governara a Judeia e exercera
Trajano. V. Maxfield (The Military Decorations of the Roman Army, p. 191) também estabeleceu uma conexão entre os
percursos profissionais destes dois homens com base nas semelhanças observáveis nas suas transferências legionárias.
Com efeito, tanto o centurionato de Proclus como o de Vitalis situam-se durante o reinado de Trajano, embora, na
opinião de alguns (como V. Maxfield), seja possível localizar Proclus no tempo de Domiciano. Apesar de se captarem
afinidades, ambas as carreiras podem não guardar relação, necessariamente, uma com a outra.
1734
D. B. Campbell, «Backbone of the legions – Some centurions and their careers», p. 19.
1735
Ao partir da premissa que Proclus ganhou os seus dona militaria numa das expeditiones dácicas de Trajano, é
efectivamente plausível descortinar uma ligação entre a carreira deste centurião e o senador Q. Pompeius Falco: este
ocupou o posto de legatus legionis da V Macedonica no decurso da expedição dácica de 101-102 d.C. e recebeu, como
dissemos, condecorações no fim da mesma; Falco foi governador da Mésia Inferior entre 115 e 118, antes de se ver
transferido para a Britânia; a sua presença na Ilha atesta-se numa inscrição gravada pouco antes de findar o seu
mandato como governador, em 17 de Julho de 122 (CIL.XVI,69)
1736
Foi o que V. Maxfield defendeu (The Military Decorations of the Roman Army, p. 192): a autora entendeu que
Proclus recebeu as condecorações na XI Claudia, antes de 106 aproximadamente; teria sido transferido para esta legião,
quando se encontrava acantonada em Vindonissa ou em Brigetio; Maxfield avançou com mais dois argumentos para
reforçar a datação da carreira de Proclus, ao sugerir que o imperador não nomeado e que atribuiu os dona fora
Domiciano, e que existiam outros dois centuriões domiciânicos que obtiveram o mesmo conjunto de dona que Proclus,
ao passo que sob Trajano todos os centuriões que especificaram as suas condecorações ganharam uma corona, um
torques, armillae e phalerae. Há, porém, outra «versão» possível para a carreira de Proclus: a sua transferência da I
Italica para a XI Claudia pode ter ocorrido após 106 d. C., e não antes; ademais, a omissão do nome do imperador que
concedeu os dona não implica forçosamente que se tratasse de Domiciano, conforme se verifica no caso de Caesius
Silvester (CIL XI.5696; B. Dobson, Die Primipilares, 128; J. Roberts Summerly, Studies in the legionary centurionate,
nº 804, pp. 84-85 ). Segundo D. J. Breeze ( «The organization and ranks below the centurionate» JRS 61 [1974], p. 273)
e G. Forni (Il reclutamento delle legioni da Augusto a Diocleziano, Milão/Roma, 1953, p. 47), Valerius Proclus terá
permanecido entre treze a vinte anos nas fileiras da V Macedonica antes do seu centurionato. Se ele ingressou no
exército tendo entre 17 e 23 anos de idade, então contaria entre 30 e 45 quando alcançou o grau de centurião.
Presumindo que recebeu as condecorações numa das expeditiones dácicas de Trajano, Proclus faleceu provavelmente
em finais dos anos 30 ou em começos dos 40 do século II (com 75 anos). Lembremos, a propósito, a inscrição de um
centurião cuja identidade se perdeu (CIL XI.2112), que morreu nos anos subsequentes à Guerra Judaica de Adriano; no
texto declara-se que ele foi condecorado numa guerra dácica por um princeps não nomeado, mas que correspondeu
certamente a Trajano.
592
um consulado, permitindo-lhe ocupar um cargo importante numa província como a
Mésia Inferior). Não custa admitir que, ao colocar Proclus na senda conducente ao
centurionato, ele tenha intervido outra vez a favor do seu protegido: a seguinte
transferência de Proclus foi para a Legio XX Valeria Victrix, coincidentemente ou não,
também o destino de Falco, quando se tornou governador da Britânia por volta de 118
d. C1737.
Finalmente, Proclus ocupou o posto de centurião na Legio IX [VIIII] Hispana. Se
tivéssemos mais certezas quanto à datação da sua carreira, isto confirmaria a presença
da IX Hispana na Britânia, no reinado de Adriano. A reconstituição que propomos é
mais ou menos verosímil, tomando também em consideração a eventualidade de um
patronato senatorial contribuir decisivamente na carreira de um centurião. Ao
aposentar-se, Proclus voltou para a sua estimada Mésia Inferior. A sua estela funerária
foi descoberta em Nedan, apenas a 40 km ao sul da fortaleza de Novae. Possivelmente
esta seria a localidade onde viera ao mundo, uma vez que as legiões da Mésia tendiam a
efectuar recrutamentos a nível local (a Mésia formava a linha divisória entre as
províncias ocidentais, cujas legiões tradicionalmente se alimentavam de mancebos
incorporados na Hispânia, Gália e Itália, e as províncias orientais, onde as legiões
arrolavam homens sobretudo na Ásia Menor e no Levante.
«[--- Petronius Fortunatus] serviu ao longo de 50 anos, quatro na Legio I Italica como
librarius, tesserarius, optio, signifer, eleito centurião pelo voto da mesma legião; foi centurião
na Legio I Italica, na Legio VI Ferrata, na Legia I Minervia, na Legio III Augusta, centurião da
Legio XXX Ulpia, da Legio VI Victrix, da Legio III Cyrenaica, da Legio XV Apollinaris,
centurião da Legio II Parthica, da Legio I Adiutrix; condecorado com as coronae murales e
vallares, torques e phalerae pela sua bravura na expedição pártica. Ele tinha 80 anos quando se
elaborou este monumento, para si próprio e para Claudia Marcia Capitolina, sua amada esposa,
com 65 anos na altura em que se terminou esta obra, e para o filho de ambos, Marcus Petronius
Fortunatus, que serviu durante 6 anos, como centurião da Legio XXII Primigenia e da Legio II
Augusta, vivendo 35 anos. Os seus pais, Fortunatus e Marcia, isto ergueram em memória do seu
amado filho» (CIL VIII.217 = ILS 2658)1738.
Numa carreira que se estendeu pelo espaço de cinquenta anos (e ultrapassando, pelo
menos, os oitenta anos de idade, certamente um prodígio ao tempo), Petronius
Fortunatus passou por treze legiões. De entre estas, a presença da II Parthica aponta
para começos do século III1739, já esta unidade só foi criada por Septímio Severo por
1737
Contudo, ressalvemos que embora os legados legionários e os governadores consulares pudessem levar centuriões
com eles quando eram transferidos para uma outra província, esta prática jamais aparece explicitamente referida nas
fontes antigas
1738
B. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, nº 86, pp. 48-49 (ainda que na inscrição se indique
expressamente o numeral L, este autor afirma que Petronius Fortunatus teve uma carreira que durou 46 anos, não
explicitando como fez tal cáculo ; J. Roberts Summerly, Studies in the legionary centurionate, nº 349, pp. 182-183.
1739
D. B. Campbell, «Backbone of the legions – Somecenturions and their careers», p. 20.
593
volta de 1971740. Ascendendo a partir das fileiras como simples miles, a sua primeira
promoção para librarius mostra que ele sabia ler e escrever, requisitos fundamentais,
como vimos, que um candidato a centurião precisaria de ter. Volvidos quatro anos,
subiu para os postos subalternos da categoria dos principales, onde pôde demonstrar
capacidade de liderança e tornar-se digno de confiança. Mais tarde, foi promovido
«pelo voto da sua legião», uma prática que Tácito viu com maus olhos quando, no
conturbado ano de 69, António Primo «mergulhou o exército no caos, ao permitir que
os legionários escolhessem centuriões para substituirem os tombados [em combate]»
(Hist. 3.49). Desconhecemos até que ponto este tipo de nomeação constituiu um
fenómeno pontual ou generalizado. Seja como for, temos notícia de outro centurião
nomeado por uma legião em AE 1976, 540.
Fortunatus talvez tenha nascido no Norte de África; há três argumentos que apontam
neste sentido: o monumento inscrito foi erigido em Cillium, na antiga Numídia (hoje
Al-Qasrayn, Tunísia), a maneira como se apresenta a parte final do texto e a própria
natureza do seu cognomen. No entanto, da I Italica, que estava aboletada em Novae,
na Mésia Inferior, não se encontraram fontes epigráficas ou de outro género atestando
outros recrutas incorporados nesta unidade provenientes de África. Resta, todavia, a
hipótese de não ser africano e se ter afeiçoado, pura e simplesmente, à localidade de
Cillium quando serviu na Legio III Augusta, estacionada em Lambaesis, desde o
reinado de Adriano em diante.
Apesar de subsistirem dúvidas, houve quem sugerisse que um destacamento da I
Italica participou na campanha mauritana do imperador Antonino Pio. O documento
CIL VIII.10474 quiçá signifique uma eventual prova para a presença desta legião em
Constantia, assim como a presente inscrição de Fortunatus.
Mas a quantidade de legiões em que Fortunatus exerceu funções dificulta uma análise
circunstanciada, na medida em que ele realizou uma série de movimentos peripatéticos
ao longo do território imperial.Com efeito, as transferências de Fortunatus são, de
longe, as mais numerosas que se colhem em carreiras de centuriões preservadas em
fontes epigráficas: ao exercer funções em treze legiões, transitou, consecutivamente, da
Mésia Inferior para a Síria-Palestina (conhecendo eventualmente a sua mulher, em
Jerusalém1741),Germânia Inferior, Panónia Superior, Britânia, Numídia, Síria, Germânia
Inferior, Britânia, Arábia, Capadócia, talvez, Albanum (em Itália) e para a Alta e Baixa
Panónias. Muito dificilmente se podem interpretar estas transferências sucessivas
como promoções, uma vez que Petronius Fortunatus não ascendeu ao escalão dos
primi ordines; na realidade, parece antes que as autoridades castrenses o utilizaram em
função das circunstâncias e necessidades. Não olvidemos que existiram muitos
centuriões tarimbados que não se destinaram a voos mais altos, contentando-se em
possuir o estatuto inerente ao seu posto.
Julgamos vislumbrar uma pista para a cronologia a partir das suas condecorações
militares. Em casos atrás estudados, observámos que vários centuriões as listaram a
par do posto específico que ocupavam à data da concessão das mesmas. Assim, embora
Fortunatus possa ter decidido simplesmente exarar os seus dona ao rematar a
descrição do seu trajecto profissional, parece mais crível que ele se visse condecorado
quando se encontrava na Legio I Adiutrix. Neste ponto discordamos de V. Maxfield1742,
segundo a qual Fortunatus teria ganho os seus dona no seguimento da campanha
pártica chefiada por Lúcio Vero (aprox. 162-166)1743.
A I Adiutrix gozava da reputação, à semelhança da sua a legião-«irmã», de efectuar
viagens cobrindo longas distâncias. Ainda que ambas possuíssem as suas bases na
Panónia, a I em Brigetio (actual Szöny, Hungria) e a II em Aquincum (Budapeste,
Hungria), elas foram chamadas para combaterem nos conflitos travados no Oriente,
1740
A datação proposta por D. J. Breeze e B. Dobson («The Rome cohorts and the legionary centurionate», Ep. Stud. 8
[1969], p. 112), situando a carreira de Petronius Fortunatus no principado de Trajano, é completamente despropositada.
1741
B. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, p. 49.
1742
The Military Decorations of the Roman Army, pp. 198-199.
1743
Ibidem, p. 199. Para V. Maxfield, durante este conflito Fortunatus serviu na VI Ferrata, na I Minervia (ou, ainda, na
III Gallica).
594
designadamente na Guerra Pártica conduzida por Caracala (214-216 d. C.). Ainda que
se limite a ser uma mera hipótese especulativa parece-nos que Fortunatus, como acima
dissemos, pode muito bem ter recebido as suas condecorações nesta expedito Parthica,
assim coroando a sua carreira e anunciando uma bem merecida aposentação.
A inscrição também contém dados sobre Marcus Petronius. Sendo o seu pai um
centurião condecorado e muito experiente, o jovem Fortunatus conseguiu ingressar no
exército já com a patente de centurião, embora o seu progenitor não tenha atingido o
posto de primus pilus, nem integrou a elite dos primipilares. O filho teve uma carreira
relativamente breve, interrompida pelo seu prematuro falecimento (não sabemos se em
combate ou por doença). Mas para aqueles centuriões que lograram enganar a morte,
as recompensas podiam ser numerosas e variegadas.
Observemos, por fim, o percurso existencial de Gaius Velius Rufus, com base numa
inscrição1744. Lembremos que os conhecimentos que temos das carreiras romanas,
desde as de simples legionários até às dos cônsules mais eminentes, derivam sobretudo
de inscrições, já que os Romanos possuíam um verdadeiro «hábito epigráfico», uma
predilecção por imortalizarem os seus feitos e êxitos em suportes pétreos. Este costume
cresceu ao longo do século I d. C. e atingiu um pico perto de finais do século II. Ora
datando perto do meio deste processo está precisamente o epitáfio erigido na cidade
romana de Heliópolis1745 (actual Baalbek, no Líbano), celebrando a carreira do
primipilaris Gaius Velius Rufus 1746(ILS 9 200 = AE 1903, 368).
Era usual que o herdeiro de um homem ficasse incumbido da sua comemoração,
através de um monumento evocativo. No caso de Rufus, tratou-se de Marcus Alfius
Olympiacus, aquilifer veterano da XV Apollinaris, uma legião panoniana que partiu
rumo ao Oriente durante o reinado de Nero e que participou na Primeira Guerra
Judaica (66-73), depois regressando à sua fortaleza em Carnuntum. Os «portadores
das águias» situavam-se à parte da hierarquia habitual dos oficiais legionários; tal
como os centuriões, eram soldados com um longo serviço militar, os quais só a morte
ou a aposentação os podiam remover dos seus postos, e cada um deles gozava de
grande respeito na qualidade de guardiões da aquila, dever que compartilhavam com o
primus pilus.
O epitáfio de Rufus, à semelhança dos de outros primipilares, não contém detalhes
sobre as primeiras etapas do seu percurso no exército. No entanto, facilmente se
imagina que que tenha exercido funções em várias legiões, atravessando o mundo
mediterrânico e acumulando anos de experiência e, num determinado momento, serviu
certamente ao lado de Olympiacus na XV Apollinaris. Com efeito, a altura em que
ambos se conheceram talvez remonte à Primeira Guerra Judaica, em que Rufus recebeu
as suas primeiras condecorações militares1747 (dona militaria) pela sua bravura. O seu
epitáfio explicita quais foram– torques, phalerae e armillae («respectivamente colares,
discos decorativos e braceletes) e uma coroa de ouro, a corona vallaris, o que se
afigurava um conjunto apropriado para um centurião (os simples legionários recebiam
menos e os primipilares almejavam mais). O serviço cumprido com distinção
contribuía obviamente para que um homem singrasse na escala hierárquica. Outro
centurião, igualmente condecorado no conflito contra os Judeus, Marcus Blossius
Pudens, veio a tombar no derradeiro obstáculo: «…ele pagou a sua dívida à natureza
1744
Para dois meticulosos estudos desta fonte, bem como sobre o seu protagonista, vejam-se D. Kennedy, «C. Velius
Rufus», Britannia 14 (1983), pp. 183-196; K. Strobel, «Zur Rekonstruktion der Laufbahn des C. Velius Rufus»,
Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 64 (1986), pp. 265-286. Também, D. B. Campbell, The Rise of Imperial
Rome, pp. 78-80.
1745
A inscrição encontra-se no Grande Pátio defronte do templo local consagrado a Júpiter Optimus Maximus
Heliopolitanus.
1746
O pai de Gaius Velius Rufus chamava-se Salvius, um nome osco, o que sugere que a sua família seria da Itália
Central.
1747
Dedicamos mais comentários às condecorações militares noutro capítulo.
595
[=faleceu] quase no dia em que se tornou primus pilus» (ILS 2641). Tinha 49 anos, a
idade normal, grosso modo, para os primipilares.
Olympiacus, após enumerar os pontos altos da carreira de Rufus, guardou o melhor
(ou, pelo menos, o elemento historicamente mais significativo) para o fim: durante os
anos subsequentes, ele permaneceu no exército como centurião e, em 73, foi enviado
numa missão diplomática especiala à Pártia, após o que Rufus escoltou Epífanes e
Calínico, os filhos do rei Antíoco, até ao imperador Vespasiano, juntamente com um
grande grupo de homens sujeitos ao pagamento do tributo (Hic missus in Parthiam
Epiphanen et Callinicum regis Antiochi filios ad imperator Vespasianum cum ampla
manu tributariorum reduxit). Embora a inscrição o não refira, sabemos que a seguir à
anexação de Comagena, em 72, o seu último soberano, Antíoco IV Epífanes, se rendeu a
Vespasiano, mas os seus filhos refugiaram-se na corte do monarca parto; Velius
conduziu as negociações com o rei parto Vologeses I, logrando obter a extradição dos
dois príncipes para Roma1748. Era relativamente habitual confiar este tipo de actividades
a centuriões legionários. Corbulão, por exemplo, comunicou com o rei parto
empregando como intermediário um dos centuriões que se achava na zona, pelo que
não admira que Vespasiano tenha actuado de modo idêntico.
O êxito nesta missão deve ter tornado Rufus num potencial beneficiário de futuras
recompensas, ainda que para estas ele seria, talvez, demasiado jovem. Depois disto, no
seu epitáfio alude-se laconicamente que foi primus pilus na XII Fulminata, estacionada
na Capadócia, e a seguir viu-se nomeado para comandante (tribunus) da XIII Coorte
Urbana (cargo prestigioso, equivalente aos usuais três tribunados na Urbs, estando a
referida unidade acantonada em Cartago) no começo do reinado de Domiciano. Foi,
sem dúvida, próximo do fim do exercício deste posto por Rufus que se registaram focos
de agitação nas vizinhas Mauretaniae: presumivelmente, o comandante da Legio III
Augusta não podia resolver essa situação, já que estava ocupado a exterminar os
Nasamones, o que ocorreu por volta de 85 d. C. Ademais, parece que foi enviado um
novo tribuno com a incumbência de levar a XIII Coorte Urbana para a frente do
Danúbio. Um centurião da coorte, Quintus Vilanius Nepos, viu-se condecorado «por
Domiciano pela Guerra Dácica e, novamente por ele pela Guerra Germânica, e outra
vez ainda com torques e armillae pela Guerra Dácica» (ILS 2127).
Com a legião africana indisponível, ao redor de 85-87, Rufus ficou à cabeça de uma
força compósita, chefiando « o exército africano e mauritano que suprimiu as nações
que vivem na Mauritânia» (duci exercitus Africi et Mauretanici ad nationes quae sunt
in Mauretania comprimendas). Nada mais sabemos acerca desta guerra, mas Rufus
ter-se-á saído bem neste seu primeiro comando independente, já que recebeu outro
conjunto de condecorações, desta vez mais condizentes com o seu estatuto de
primipilaris: hastae duae, vexilla duo (duas lanças de prata e dois estandartes) e uma
coroa de ouro, desta feita a corona muralis. A vitória na Mauritânia terá despertado a
atenção de Domiciano (ou do seu consilium) e, pouco depois, Rufus comandou um
grupo de combate legionário na frente do Danúbio, onde principara uma grande guerra
contra Decébalo. Após alguns desaires, os Romanos derrotaram o seu principal
inimigo1749 e foi então que se organizou uma expedição que atravessou o território da
Dácia para combater os Marcómanos, Quados e Sármatas (bello Marcommanorum
Quadorum Sarmatarum adversus quos expeditionem fecit per regnum Decebali regis
Dacorum), em que Rufus encabeçou uma vexillatio de oito ou nove legiões, ou seja, de
uma força composta por subunidades das mesmas; a inscrição menciona
«destacamentos de VIIII [sic] legiões: I Adiutrix, II Adiutrix, II Augusta, VIII Augusta,
IX Hispana, XIV Gemina, XX Victrix, XXI Rapax»1750), mas só aparecem discriminadas
oito. Os estudiosos formularam duas interpretações: ou omitiu-se a Legio XI Claudia
1748
Flávio Josefo relatou este episódio: BJ 7.219-243.
1749
No entanto, foi uma vitória efémera. Decébalo continuou a resistir a Roma, só vindo a ser definitivamente derrotado
por Trajano.
1750
Todas estas legiões procediam da Britânia e da Germânia Superior.
596
ou o numeral VIIII (=IX) está errado. Na falta de mais dados, é impossível apurar qual
das hipóteses corresponde à verdade.
Uma vez mais, Rufus esteve à altura da ocasião, sendo novamente condecorado com a
corona muralis, hastis duabus vexillis duobus». O número de legiões que participaram
ou mandaram vexillationes para esta campanha em 89 d. C. aponta para um
agravamento das hostilidades no Norte. Porém, os êxitos militares de Rufus
justificavam agora outro género de recompensa, uma carreira procuratorial: primeiro,
entre 90 e 93, ocupou o cargo de procurador-governador da Dalmácia e da Panónia
(para «assistir» os seus governadores consulares), o que mostra que Velius já não era
um simples cidadão romano, pertencendo agora à ordem equestre 1751. Por fim,
Domiciano indigitou-o para procurador-governador da Récia, província de fronteira
dotada de uma substancial guarnição de tropas auxiliares. Depois disto, se Rufus ainda
era vivo (não teria chegado aos 60 anos de idade), a sua carreira, tão estreitamente
ligada ao odiado Domiciano, parece ter esmorecido; pode-se aventar também a
hipótese de ele se retirar do serviço imperial 1752. Mas o seu amigo Olympiacus
certificou-se de que o que ele empreendera em vida continuaria a ecoar na eternidade,
nas ruínas de Baalbek.
1751
O célebre poeta Marcial refere-se a Velius Rufus no Epigrama 9.31.
1752
Domiciano foi assassinado em 96 e pode não significar uma mera coincidência o facto de não termos notícias de
qualquer promoção de Rufus ao longo dos reinados de Nerva e Trajano: talvez por ter estado estreitamente ligado a
Domiciano ele não fosse aceite pelo novo regime. Não há registo do ano do seu óbito, mas colhemos uma pista
intrigante: mais tarde, o imperador filósofo Marco Aurélio, ao pretender demonstrar que a fama neste mundo é apenas
um sonho, alude a um tal Velius Rufus, numa lista de pessoas que haviam alcançado grande notoriedade e depois se
retiraram para as suas propriedades fundiárias (Meditationes, 12.27.2)
597
CAPÍTULO VIII - O treino militar: papel e significado do exercício no
exército romano.
598
atribuíam enorme valor ao treino.Varrão (De ling. lat. V, 87: exercitus quod
exercitando fit melior), nas suas pesquisas etimológicas, não hesitou em inverter aquilo
que nos parece a ordem normal, afirmando que o substantivo «exército» (exercitus)
derivava do verbo «exercer» (exercito). Cícero, por seu turno, confirmou esta teoria:
«Vês […] qual é, entre nós, o sentido da palavra “exército” […]; [e] que dizer do treino
das legiões? […] Alinhai um soldado corajoso mas não treinado e ele terá o ar de uma
mulher» (Disp. Tusc., 2.16.37).
Sem aqui tencionarmos apresentar uma lista exaustiva dos textos literários ou
epigráficos referentes a esta questão, podemos, ainda assim, citar alguns autores que
fizeram mais do que aludir somente a tal actividade. Onasandro (IX-X), em meados do
século I da nossa era, lembra aos generais os seus deveres na matéria. Pouco depois,
um oficial judeu que foi vencido por Vespasiano e por Tito, Flávio Josefo (B J II, 20,7
[577]; III, 5, 1 [72-75]), explana o seu desaire ao salientar a eficácia que tal prática
conferia às legiões. Quanto a Tácito, discorreu amiúde sobre o exercício nos seus
escritos.
Mas no reinado de Adriano encontramos mais informações sobre este assunto. O
próprio imperador dava grande relevância ao exercício (Díon Cássio, Hist. rom. 69.9;
SHA, Adriano, 10.2, e 26.2). A sua atitude permitiu-lhe certificar-se da obediência dos
quadros do exército, o qual terá criticado o princeps por uma clara ausência de ardor
ofensivo ou, até, por um certo «pacifismo».
O certo é que Adriano se deslocou pessoalmente ao Norte de África, com o intento
manifesto de presidir às manobras do exército, e nos discursos proferidos nos meses de
Junho e Julho de 128, que se celebrizaram, 1759 ele mostra o interesse que nutria pelo
exercitatio: primeiramente, o imperador dirigiu-se aos soldados da cohors II
Hispanorum, durante a segunda quinzena de Junho, antes do discurso que proferiu, no
dia 1 de Julho, diante da Legio III Augusta, em Lambaesis; a seguir, Adriano fez uma
adlocutio em Zarai, no dia 7, e, entre 8 de 14 de Julho, outras duas, diante da ala I
Pannoniarum e da cohors VI Commagenorum, entre 8 e 14 de Julho.
As inscrições achadas em Lambese 1760 (Líbia), a partir de 1851, representam o único
testemunho epigráfico transcrevendo os textos dos discursos que Adriano proferiu às
tropas do seu exército de África. Contrariamente às adlocutiones inseridas nas obras
históricas antigas, que foram quase sempre reescritas pelos seus autores, aqui pode-se
ler as palavras que Adriano realmente proferiu às suas tropas. Embora o exercito do
Alto Império se caracterizasse por uma hierarquia fundamentada no estatuto jurídico
dos soldados, os discursos do princeps sublinharam mais a distinção entre os soldados
de infantaria e de cavalaria do que na diferenciação entre legionários e auxiliares, isto
porque neles se colocou em primeiro plano as questões de técnica militar. De facto,
Adriano não esperava o mesmo em relação aos infantes e cavaleiros. Nas suas palavras,
ele insistiu muito nos trabalhos empreendidos pelos infantes, possivelmente
legionários, que punham à prova as suas capacidades de adaptação ao terreno.
A construção de um acampamento ou de um forte supunha esforços contínuos e
regulares. Na altura em que Adriano visitou o seu exército em África, este tinha acabo
de participar em grandes obras: a IIIª legião Augusta só se encontrava instalada em
Lambaesis desde 115-120; edificara-se um primeiro acampamento no ano 81, com 148
m por 120, certamente para acolher uma coorte destacada da referida legião, então em
Theveste. Um outro, chamado «Grande Acampamento» foi construído entre 115 e 120,
para albergar toda a legião, o que implicou uma área bem maior, medindo 420 m por
500.
Para além do conhecido interesse de Adriano pela arte equestre, o treino dos
cavaleiros diferia do dos infantes, na medida em que a cavalaria requeria um nível
superior de tecnicidade. Muitos estudiosos modernos repisaram o facto de que a
ausência de estribos teria limitado grandemente a eficácia das tropas montadas da
1759
Cf. M. Le Glay, Akten des 11. Internationalen Limeskongresses, Budapeste, 1977, pp. 545-558.
1760
Y. Le Bohec (ed.), Les discours d’Hadrien à l’armée d’Afrique. Exercitatio, Paris, 2003; M. A. Speidel, Emperor
Hadrian’s speeches to the African Army – a new Text, Mogúncia (Mainz), 2006.
599
Antiguidade. Na realidade, porém, tudo indica que os cavaleiros eram bem capazes de
realizar cargas (contra inimigos que também estavam desprovidos de estribos). No
entanto, o cavaleiro tinha de ser ajudado para subir para o dorso do equídeo, uma vez
que tinha um pesado equipamento rondando os 20 kg, mesmo com montadas que,
apesar de pequenas, eram robustas. Este treino mais longo que os cavaleiros recebiam
dispensava-os de certas corveias que incumbiam aos soldados apeados. Por esta razão,
Adriano terá insistido mais no acondicionamento psicológico dos infantes mediante a
frugalidade, a rapidez e a energia.
A relevância dos efectivos de cavalaria em África e o lugar essencial que ela ocupou
nos discursos adriânicos são explicáveis pela própria natureza do terreno: o baixo
número de tropas (c. 12 000 homens) comparativamente ao espaço a controlar exigia
missões de reconhecimento e vigilância a cavalo. Quanto a Marcus Calventius Viator,
então tribuno dos equites singulares Augusti, talvez tenha acompanhado o imperador
na jornada africana, e se tal aconteceu, aconselhou o princeps no recrutamento dos
melhores cavaleiros auxiliares.
Igualmente no Norte de África, os óstracos de Bu Njem/Gholaia 1761 revelam o papel
preponderante do exercício na vida dos soldados, embora neste caso as fontes se
relacionem com uma guarnição com efectivos muito reduzidos. Os quintanarii citados
no relatório diário do ostracon nº 22 correspondiam a militares que se estavam a
treinar, sendo assim designados em função da frequência com que se entregavam ao
exercício - 5 dias -, perfazendo 29 homens num total de 57.
Um dos generais de Adriano, Arriano (Périplo do Ponto Euxino), ao efectuar uma
viagem de inspecção às guarnições estabelecidas em torno do mar Negro, mandou que
os soldados praticassem constantemente exercício. E um tribuno, comandando uma
unidade auxiliar de 1 000 batavos, estacionada na Panónia Inferior, gabou-se de haver
atravessado a nado o Danúbio, à cabeça dos seus homens (transportando estes os seus
equipamentos); na inscrição, ele teve o cuidado de precisar que Adriano arbitrou esta
façanha1762. Ainda poderíamos citar igualmente uma passagem pouco conhecida de
Frontão (Princ. hist., VIII-IX- introdução à guerra pártica de Lúcio Vero).
Na realidade, a fonte que se reveste de maior interesse neste domínio continua a ser
Vegécio (I e II, passim), que, embora escrevendo no século IV, fornece dados úteis
sobre as épocas anteriores; ele menciona os autores de que se serviu: Catão-o-Antigo
primeiramente, depois três grandes imperadores (Augusto, Trajano e Adriano) e, por
fim, Tarruntieno Paterno e Cornélio Celso. A questão que agora se coloca é de saber por
que motivos o exercício assumiu uma importância tão grande. Para esta pergunta
avançaremos com várias respostas.
600
adversário (Herodiano, 2.10.8), estando implícito a esta faceta uma componente
desportiva. Mas cabia também temperar o carácter dos milites: «Através dos seus
exercícios militares, os Romanos preparam não só corpos robustos mas igualmente
almas fortes», afirma Flávio Josefo (BJ 3.5.7 [102]). Tal prática permitia suportar
melhor os ferimentos sofridos em combate (Cícero, Disp. Tusc. 2.16.38) e não cair num
estado de desespero. Com efeito, o factor psicológico estava presente em múltiplas
ocasiões e desempenhava, amiúde, um papel determinante: quando os soldados se
mostravam capazes de executar as manobras na perfeição à frente do antagonista, este
podia correr o sério risco de ficar desencorajado e evitar a confrontação, optando por
fugir (Frontino, Strat. II, 16, 38).
Sublinhemos mais um ponto essencial: o exercício estava profundamente ligado à
disciplina (Flávio Josefo, BJ II, 20, 7 [577 e 580-581]; III, 5, 1 e 6-7; V, 1, 71; Tácito,
Hist. 2.77.7; 87, 2; 93, 1; 3.2.5; 5.21, 5; Tácito, Ann. 2.18-19; Suetónio, Galba, 6.2), a
qual era tão importante que se viu divinizada, erigindo-se altares em sua honra nos
acampamentos. Ela não correspondia somente a um comportamento pautado por uma
obediência cega às ordens transmitidas; na realidade, esta atitude até surgia como uma
consequência. Em disc-iplina assinala-se a raíz disc-o, -ere, verbo que significa
«aprender» (Frontino, Strat. 4.1; Plínio-o-Moço, Cartas, X, 29-30)1763; cada soldado
tinha de se formar no ofício militar, ao «aprender» todos os seus segredos.
Cumprir uma ordem, mesmo que parecesse absurda ou inusitada, respeitar os
superiores eram parte integrante dos imperativos da profissão e ensinava-se (Tácito,
Hist. 2.76.12; 93.1; 3. 42, 1: disciplina militiaque nostra), assim como a saber manejar
as armas ou a construir um baluarte; o soldado devidamente adestrado, ao saber o que
devia fazer automaticamente, mediante a repetição incessante de diversos movimentos
no campo de manobra, ganhava confiança em si mesmo e nos seus comandantes
(Frontino, Strat. 4.1-2, 5-6). O exército romano aplicava um princípio que, nos nossos
dias, continua a ser adoptado em numerosas academias militares: «estudar para
vencer», ainda que o nível de conhecimentos requeridos fosse bastante técnico e um
tanto rudimentar1764.
Uma passagem das Historiae de Tácito (4.71.6-9) mostra bem a eficácia desse treino.
Adequadamente exercitados e, logo, disciplinados, os soldados não hesitavam a
cumprir uma injunção através da qual ficassem expostos aos projectéis do inimigo, uma
vez que eles tinham consciência de que, para se conseguir uma brilhante vitória, tinha
de haver baixas. Não se podia enviar para combater homens que não tivessem recebido
uma sólida instrução. Caso contrário, tal equivalia a renunciar à superioridade tão
desejada pelos Romanos e ficar permeável à derrota: lutar nestas condições seria algo
verdadeiramente absurdo. Por seu lado, importava não descurar a regularidade da
prática do exercício, pois que sem este os soldados tendiam a ficar frouxos e indolentes,
o que facilmente conduziria à indisciplina e a actos de desobediência ou revolta (Dión
Cássio, Hist. rom. 80.4, e 88.3).
Os oficiais deviam participar nos exercícios. Para se compreender o alcance desta
obrigação, cabe explicar o que era a virtus, palavra que frequentemente se traduz de
maneira incorrecta por «coragem». A virtus significava aquilo que caracterizava a
essência do homem (vir-tus; vir deu origem a «viril»), isto é, servir o Estado sob os
seus dois aspectos complementares, o serviço civil (a ocupação dos cargos da
magistratura) e o serviço militar (postos de comando); para se fazer carreira, era
preciso demonstrar que se possuía esta qualidade: assim, um nobre romano deveria
exercer a questura, a edilidade, o tribunato da plebe, a pretura e o consulado, mas não
só: ele teria de provar igualmente as suas capacidades no exército.
A relevância do exercício atesta-se ao longo da história romana, evidenciando-se desde
os tempos republicanos. Plutarco (Pompeio, 12.4-5) conta que Pompeio, que se
encontrava no Oriente, resolveu dedicar-se à equitação durante o cerco de Petra;
quando, a dada altura, chegaram mensageiros com lanças adornadas com louros, viu-se
1763
G. Goetz, Corpus gloss. lat., II, 51, 2.
1764
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, p. 113.
601
de imediato que eram portadores de boas notícias; no entanto, o imperator fê-los
esperar, continuando com as suas evoluções equestres, lembrando desta forma que o
exercício estava acima de toda e qualquer outra exigência; foi, então, necessário que os
seus soldados insistissem junto dele para que Pompeio interrompesse a sua actividade,
altura em que lhe comunicaram o suicídio de Mitridates e, consequentemente, que
obtivera uma vitória. Décadas mais tarde, Tibério quis mostrar a Augusto que este
erradamente lhe atribuía ambições excessivas: ora, para provar que não aspirava ao
Império, retirou-se para Rodes, onde deixou de praticar os seus treinos (Suetónio,
Tibério, 13.1); com tal atitude, procurou indicar que renunciava à virtus, pelo que se
tornava politicamente inofensivo.
No decurso do conflito civil de 68-69, Vitélio negligenciou a preparação das suas
tropas: aos olhos de Tácito (Hist. 36.1) era uma falta irreparável, que o conduziu, por
fim, ao mais absoluto fracasso. Trajano, pelo contrário, dedicou toda a atenção a estas
práticas, misturando-se até com os seus homens para dar o exemplo, o que lhe valeu
elogios (Plínio-o-Moço, Pan. XIII, 1). Adriano, o seu sucessor, ao qual atrás nos
reportámos, velou cuidadosamente pelo exercício, no intento de apaziguar a
inquietação dos senadores e dos membros da ordem equestre, que o viam como um
imperador demasiado prudente e quase «pacifista».
Já no século III, Severo Alexandre recebeu, desde tenra idade, uma educação
esmerada visando a púrpura (História Augusta, Severo Alexandre, 3.1): uma das
componentes que mais se valorizou foi a sua preparação militar. Citemos, ainda,
Maximino-o-Trácio, que terá subido ao trono imperial sobretudo (a acreditarmos em
Herodiano, 7.1.6) porque antes se revelara um exímio instrutor de recrutas.
Podia utilizar-se o exercício de maneira diferente, mas sempre obedecendo a
objectivos políticos. Após a batalha de Actium, em que derrotou as forças coligadas de
Marco António e de Cleópatra, Augusto pretendeu difundir a ideia de que o tempo da
paz havia chegado definitivamente, o que consistia, na realidade, em propaganda
política. Para manifestar esta pretensão, ele cessou de fazer os seus treinos (Suetónio,
Augusto, 83.1). Noutras circunstâncias, Tibério serviu-se igualmente desta «arma»: ao
procurar atemorizar os senadores e torná-los dóceis em relação aos seus projectos,
convidou-os a assistir às manobras da guarda pretoriana (Díon Cássio, Hist. rom.
57.24). Posto isto, ao longo de todo o Alto Império, a prática do exercício teve uma
dupla finalidade – política e militar. Eis o momento oportuno para analisarmos as
realidades que se escondiam por detrás de tal vocábulo.
Aspectos genéricos. O estabelecimento da estratégia definida pelo comando, a
aplicação das tácticas nos campos de batalha e a castrametação mostram que havia,
claramente, uma ciência militar, da qual também fazia parte o exercício (Tácito, Ann.
2.55.6; 3.33.3; CIL VIII, nº 2535 = 18042; Vegécio, Epit. rei mil. I e II, passim); ela era
posta em acção pelos oficiais, com a assistência de alguns graduados que possuíam
conhecimentos técnicos específicos (por exemplo, o metator, que participava na
construção do acampamento). Como os Romanos tinham um espírito demarcadamente
jurídico, este ensino viu-se codificado; Flávio Josefo é muito assertivo quanto a este
ponto (BJ V, 3, 4 [123-126]), e não há razões para duvidarmos dele. Com efeito,
redigiram-se regulamentos. Quanto ao treino, Adriano promulgou um certo número de
medidas legais, que ainda se mantinham em vigor no começo do século III (Dião
Cássio, Hist. rom. 69.9)1765.
Engendrada e desenvolvida desde os tempos primevos da história romana, a cultura
militar veio a receber uma formulação jurídica sob Septímio Severo. Outras regras
houve que se conservaram por mais tempo: a compilação de leis reunida por Justiniano
lembra um ponto de direito permanente (Justiniano, Inst. IV, 3, 4): se um homem é
ferido por um soldado que se entrega ao exercício, num terreno de manobra (campus),
o agressor não sofre qualquer punição e é desculpado; em contrapartida, se o acidente
ocorre noutro local, imputa-se a responsabilidade ao militar, podendo o caso dar
origem a um processo judicial.Um grande princeps (ou que pretendesse sê-lo),
1765
J. Vendrand-Voyer, Normes civiques et métier militaire à Rome sous le Principat, Clermont-Ferrand, 1983, p. 313ss.
602
independentemente do período em que vivesse, desejava que a prática do exercício
tivesse um carácter quotidiano (Flávio Josefo, BJ III, 5, 1 [73]; História Augusta,
Maxim. 10.4).
As actividades. O étimo «exercício» abrangia actividades diversificadas. É possível
agrupá-las em duas rubricas básicas, umas efectuando-se a nível individual e outras
não. Na primeira, o objectivo era o de assegurar ao soldado romano ter superioridade
sobre o bárbaro, mesmo em combate singular e com mãos nuas. Aqui, uma vez mais,
cumpre distinguir as acções puramente físicas das que apresentavam uma natureza
militar. Os recrutas começavam, pois, por fazer ginástica (Arriano, Périplo, III, 1: G.
Goetz, Corpus gloss. latin. II, 64, 30, etc.).
Como em todos os exércitos do mundo, os tirones recebiam, antes de mais, um
treino1766 incidindo na marcha, efectuando um percurso diário de cinco horas: 20
milhas romanas (29, 44 km) em passo de marcha (5,9 km por hora), ou então 24 milhas
(35, 328 km) em passo acelerado (7,1 km por hora), com o seu equipamento ou, ainda,
carregados com pesos suplementares (Frontino, Strat. IV, 1, 1; Tácito, Ann. 2.55.6;
3.33.3; 11.18.2; Aulo Gélio, Noctes Atticae, 6.3.52; Vegécio, Ep. rei mil. I, 9 e II, 33).
Levavam, então, a cabo uma espécie de «cursos de assalto» que consistiam em superar
uma série de obstáculos com todas o seu armamento e outros apetrechos. Todos os
meses realizavam (o mesmo sucedendo com os legionários já adestrados) três marchas
de cerca de 28 km cada uma,1767 carregando com um equipamento que pesaria quase 30
kg, equivalente a um saco cheio de carvão. Isto assim se fazia porque, em caso de perigo
ou de extrema urgência, era provável que tivessem de percorrer distâncias superiores a
38 km num só dia e, depois, construir um acampamento ao cair da noite, pelo que se
afigurava essencial que todos os soldados estivessem bem treinados. As primeiras vozes
de comando com as quais o recruta certamente se familizaria seriam, entre outras,
Signa inferre! («Marche!»), Certo gradu («A passo!»), Incitato gradu! («Passo
acelerado!»), Agmen torquere ad dextram ou sinistram! («Direita volver!» ou
«Esquerda volver!»).
Os tirones treinavam-se igualmente na corrida, no salto em altura e em comprimento
e em novas caminhadas, que cumpriam impreterivelmente, no fim das quais a ordem
Signa statuere! (Alto!) seria obviamente acolhida com um grande suspiro de alívio.
Quando as circunstâncias o permitiam (ou seja, fora de zonas desérticas e perto de
cursos de água), praticavam a natação (Porfirião, Horat. carm. I, 8, 8; III, 7, 25 e 12, 2).
Atrás mencionámos o caso dos mil auxiliares batavos que, acompanhando o seu oficial,
atravessaram o Danúbio, transportando com eles o equipamento (mas esta proeza é
apresentada como verdadeiramente excepcional).
Já em boa forma física, o recruta passava às actividades mais profissionais, mais
militares e, essencialmente, ao manejo das armas (Flávio Josefo, B. J. III, 5, 1 [73];
Vegécio, Ep. rei mil. I, 26; II, 33). Ele aprendia a esgrima, servindo-se de um escudo de
vime e de um gládio de madeira, a chamada rudes (cada um deles pesando o dobro da
arma real, para desenvolver a massa muscular), exercitando-se contra um poste de
madeira, o palus, que media seis pés de altura (1,77 m) (Juvenal, VI, 247; Vegécio,
Epitoma, I, 11, e II, 23), antepassado da quintana. O recruta treinava-se no palus de
manhã e à tarde, sob a supervisão de um instrutor. Vegécio oferece-nos uma certa ideia
de como este género de exercício se desenrolava de acordo com ordens específicas
(dictata):
«[O instruendo] imaginava que estava agora a atacar o rosto do adversário, a seguir
ameaçando os seus flancos, por vezes golpeando os joelhos e as pernas. Ele recuava, avançava e
investia contra o oponente imaginário. Ele aplicava toda a espécie de ataques, todas as técnicas
de combate. E nesta prática, tinha de usar de precaução, a fim de que o recruta infligisse
ferimentos no seu adversário sem que, todavia, ficasse exposto a um golpe vibrado pelo último».
Na seguinte etapa, chamada armatura, procurava-se aprimorar os instruendos nos
estilos de combate, batendo-se eles dois a dois com armas de madeira de peso normal,
mas embotadas. Eles habituavam-se igualmente a lançar o pilum contra o poste, com
1766
Para uma visão circunstanciada sobre o treino e a instrução militar, G. R. Watson, The Roman Soldier, pp. 54-72.
1767
J. Wilkes, El ejército romano, Madrid, 1990, p. 11.
603
uma arma de peso duplo (Plínio-o-Moço, Paneg. XIII, 1-2; Arriano, Périplo, III, 1;
Vegécio, Epit. rei mil. I, 14), além de outros tipos de dardos, bem como a disparar
flechas, e a atirar pedras. Assim, o soldado devia saber utilizar a funda e o arco. Cabe
ressalvar que esta importante parte da formação era comum não só às casernas do
exército, mas também às «escolas» (ludi) dos gladiadores. No conjunto destas
actividades individuais, a equitação ocupava o último lugar, embora não deixasse de ser
relevante: com efeito, ela não dizia respeito só aos simples cavaleiros, mas também aos
oficiais (Plutarco, Vida de Pompeio, 41.4-5; Suetónio, Augusto, 83.1; e Tibério, 13.1;
Vegécio, Epit. rei mil. I, 18).
Ao adquirir suficiente força e destreza no manuseamento do gládio, do escudo e do
pilum, o soldado passava a um segundo grau ou modalidade de exercícios. Tratava-se
de garantir aos Romanos a sua superioridade sobre o inimigo, através da constituição
de unidades articuladas; consequentemente, os legionários realizavam actividades
colectivas. Primeiramente aprendiam a cavar e tapar novamente trincheiras ou valas e a
montar acampamentos. Submetiam-se a exercícios quase intermináveis de manobras,
porque um legionário tinha de saber perfeitamente o seu lugar nas fileiras e como se
movimentar mecanicamente, sem hesitar, a fim de passar de uma formação de combate
para outra. Só desta maneira a coesão e a disciplina se tornavam automáticas,
mantendo-se os soldados firmes, mesmo sob os golpes do inimigo. Devia haver
também, como em todos os exércitos, muito Legio expedita («Em guarda!»). A
instrução era completada (após quatro longos e extenuantes meses) por grandes
manobras (ambulaturae) no terreno, com armas, bagagens e cavalaria.
Aprendiam a marchar em linhas paralelas, a transformar as colunas em filas dispostas
em formação de batalha, a cerrar as linhas ou a separá-las enquanto avançassem, e
também a organizar quadrados e semicírculos. Havia igualmente manobras cerimoniais
e outras destinadas ao render da guarda, mas conhecemos mal quais seriam
exactamente as palavras que se empregavam para transmitir as ordens. O que não
levanta dúvidas é que tais manobras, repetidas constantemente, precisavam de se
empreender mecanicamente, sem hesitações, aspecto de primacial relevância no
contexto das guerras e das campanhas.
Além de tudo isto, punham-nos a trabalhar em obras públicas (aspecto já focado nos
capítulos precedentes), em virtude do princípio, segundo o qual carregar pedras
ajudava a fortalecer o corpo. Assim, os soldados forneciam ao imperador uma mão-de-
obra qualificada a baixo preço, o que permitia ao último manifestar o seu evergetismo,
isto é, a sua generosidade, igualmente implicando reduzidos custos. Em determinados
casos, o exército colocou apenas alguns técnicos à disposição dos civis: no principado
de Antonino-o-Pio, a cidade de Saldae (actual Bejaia, ex-Bougie), no Mauritânia
Cesariana, quis oferecer a si própria um aqueduto; como a comunidade cívica não
encontrou um engenheiro competente, acabou por se dirigir ao governador para obter
alguém que superintendesse a construção, o qual obteve do legado da legio III Augusta
o aqui já várias vezes mencionado librator Nonius Datus (CIL VIII, 2728 = 18122; ILS
5795). Os arqueólogos descobriram as canalizações desse aqueduto, medindo 21 km de
comprimento, o que exigiu a edificação de um túnel com 428 m, situado a 86 m de
altura1768.
As obras públicas pautaram-se pela sua diversidade (Tácito, Ann. 11.18.2; 16.3.2;
Suetónio, Augusto, 18.2; História Augusta, Probo, IX, 3-4). Por vezes, os soldados
efectuavam terraplenagens ou limpavam fossos. Também erigiam monumentos
destinados a exibir a prodigalidade do soberano. Alguns destes edifícios, como os arcos,
apresentavam basicamente um interesse decorativo e simbólico, enquanto outros
serviam para aumentar a satisfação ou o conforto dos habitantes de uma cidade
(teatros, anfiteatros, termas, circos). Havia ainda outros que tinham uma função
económica mais significativa: é provável, mas não garantido, que os militares
operassem nas minas e nas pedreiras, mas não se sabe ao certo se a actividade dos
1768
CIL VIII, 2728 = 18122; Y. Le Bohec, La IIIe Légion Auguste, p. 378.
604
mesmos se limitaria só à vigilância dos obreiros, quase todos condenados a trabalhos
forçados.
Além do mais, podiam construir mercados ou até cidades inteiras. Em 100 d. C., a
mando de Trajano, fundou-se Thamugadi (Timgad), cidade localizada a norte do
Aurés, centro urbano que terá sido inteiramente realizada por mão-de-obra militar.
Thamugadi1769 construiu-se sobre solo virgem; o núcleo primitivo desenhava um
quadrado com 350 m de lado, delimitado por um recinto amuralhado provido de
quatro portas e com ângulos arredondados. Ruas perpendiculares demarcavam
quarteirões (insulae) de configuração regular. Ao contrário do que alguns estudiosos
supuseram, esta planimetria não reproduz o de uma fortaleza: Thamugadi consistia,
pelo contrário, numa colónia criada para valorizar economicamente a parte meridional
das Altas Planícies do Constantinense. Salta bem à vista que os soldados eram capazes
de construir outras coisas afora acampamentos ou fortes, contribuindo também para
erguer templos e santuários.
Mas não assimilemos o exército romano a uma espécie de grande «empresa de obras
públicas» ao serviço de colectividades locais. As obras em que as tropas participavam
eram, acima de tudo, destinadas a satisfazer as suas próprias necessidades: veja-se, por
exemplo, o caso das termas que se erigiram em Bu Njem para utilização exclusiva dos
soldados acantonados «nestas colinas sempre arenosas onde sopra caprichosamente o
vento do sul, para que os corpos possam repousar das chamas ardentes do sol, ao
nadarem tranquilamente», de acordo com os versos do centurião Quintus Avidius
Quintianus1770. Algo de similar acontecia com os anfiteatros erigidos perto de fortalezas,
como a de Aquincum, na Panónia, ou em Isca Silorum (Caerleon), na Britânia.
Os altos mandos confiavam também aos soldados a organização de todos os elementos
dos seus diferentes sistemas defensivos. Várias destas tarefas possuíam também
implicações económicas muito positivas: era preciso traçar estradas, estabelecer
marcos de delimitação entre tribos, efectuar operações de cadastragem ou de
centuriação. Estes empreendimentos obedeciam sobretudo a motivos de ordem militar,
já que se pretendia facilitar as movimentações das tropas e aperfeiçoar as modalidades
de vigilância de potenciais antagonistas. Todos estes trabalhos faziam parte integrante
do «exercício», e saber levá-los a cabo de maneira bem-sucedida manifestava que as
tropas eram detentoras de «disciplina». Frontino (Strat. IV, 2, 1) enfatizou a ideia de
que os legionários teriam de mostrar a sua capacidade em construírem pontes muito
mais rapidamente do que os bárbaros. Esta rapidez e este alto nível de tecnicidade
visavam revelar a inferioridade dos inimigos, o que incluía uma componente
psicológica, tentando desencorajá-los a todo o custo.
Buscava-se, de igual modo, sedentarizar os semi-nómadas, que sempre haviam
representado uma fonte de problemas e atritos. A pacificação dos indígenas, o
desenvolvimento da agricultura e a instalação de uma boa rede viária acarretavam
lucros a toda uma província. Por fim, cabia aos soldados de infantaria, protegidos por
unidades de cavaleiros, erigir torres, fortes, terrenos para a prática do exercício e as
defesas lineares1771. Pseudo-Higino ainda foi mais longe: recomendava que se escavasse
um fosso à volta do acampamento de marcha, mesmo quando o exército se encontrava
em território aliado «para o bem da disciplina» (XLIX: causa disciplinae).
A participação de soldados nestas diferentes missões atesta-se num tipo de fontes
amplamente disseminadas por todo o Império, os chamados «tijolos carimbados» 1772. A
oficina que havia dentro de um acampamento ou de uma fortaleza, em latim fabrica,
servia, efectivamente, como tijolaria. Antes de se cozer a argila, imprimia-se uma
marca, ao jeito de um selo ou carimbo: nessa legenda, indicava-se, por meio de
abreviaturas, o nome da unidade em questão, e, por vezes, o do responsável pelo
1769
Cf. J. Lassus, Timgad, 1969.
1770
J. N. Adams, «The poets of Bu Njem: Language, culture, and the centurionate», JRS 89 (1999), pp. 109-134.
1771
CIL VIII, 2532 = 18042, Bl.
1772
J. Fitz, Oikumene, I, 1976, pp. 215-224, e Acta Arch. Slov, XXVIII, 1977, pp. 393-397; Y. Le Bohec, Epigraphica,
XLIII, 1981, pp. 127-160.
605
fabrico, do comandante ou do magister fabricae. Em Mirebeau, na Côte-d’Or (França),
achou-se um tijolo contendo uma inscrição relativamente longa e mais explícita do que
o usual1773:
LEG. VIII AVG. LAPPIO LEG. = Leg[io] VIII Aug[usta], Lappio leg[ato Augusti propraetore].
Com base nesta legenda, depreendeu-se que a VIIIª legião Augusta, que se encontrava
normalmente estacionada em Argentoratum (Estrasburgo), teria enviado um
destacamento a mais de 200 km de distância das suas bases (ou talvez, o que parece
mais crível, se tenha deslocado a Mirebeau, aqui ficando por algum tempo), o qual
construiu algum género de edificação, pelo menos aparentemente um acampamento e
um campus de treino. Por outro lado, conhece-se bem o legado imperial Aulus Bucius
Lappius Maximus, que exerceu vários postos e cargos sob os Flávios. Em determinados
casos, dada a plasticidade do adobe, marcavam-se nos tijolos nomes diferentes de cada
vez1774: os produtos obtidos desta forma serviriam para aludir à localização de um
aposento, ao sítio onde um soldado depunha as suas armas, entre outras informações.
Contrariamente à ginástica e à esgrima, estes trabalhos habituavam os homens a agir
colectivamente. Aqui se toca no essencial: o maior propósito, de facto, radicava em
ensinar os soldados a manobrar adequadamente no seio de unidades organizadas: cada
um devia saber qual o seu lugar numa formação de combate, além de onde, quando e
como se movimentaria sem afectar a coesão da sua centúria (Onosandro, X, 1-6; Flávio
Josefo, BJ III, 5, 1 [74-75]; Plínio-o-Moço, Paneg. XIII; Tácito, Hist. 2.55.6; Vegécio,
Epit. rei mil. I, 11-13, e III, passim; História Augusta, Max. VI, 2).
Os oficiais também procediam a simulacros de batalhas campais, envolvendo infantes
contra infantes, ou infantes contra cavaleiros. A própria marinha não escapava a este
imperativo: periodicamente, agrupavam-se e preparavam-se as galés para a guerra de
esquadras.
O enquadramento do exercício. Revestindo-se esta actividade de suma
importância, ela não se confiava aleatoriamente a qualquer um. Os quadros teriam de
controlar regularmente o nível de preparação das tropas. Todas as manhãs, realizava-se
uma inspecção; cada centurião era responsável pela sua unidade; um tribuno, por seu
lado, chefiaria duas coortes, e o legado, uma legião. Ora todo este processo originava
uma série de relatórios. Subsistiram também testemunhos documentais de verificações
excepcionais. Por vezes, era um general que efectuava um périplo pelas guarnições de
um sector: durante o reinado de Adriano, Arriano levou a cabo uma dessas fiscalizações
em diversos locais em torno do mar Negro. Nesta ocasião, ele certamente examinava as
condições em que estavam as fortificações, contabilizava as reservas de víveres e
verificava as listas dos efectivos. Lembremos, a propósito, que o próprio Adriano se
deslocou pessoalmente à Panónia e, igualmente em 128, ao Norte de África, fazendo o
imperador estas viagens com o intuito expresso de se certificar que o campus (terreno
de manobra) era frequentado assiduamente pelos milites.
Noutras circunstâncias, também irregulares, aplicavam-se medidas de controlo
suplementares: num papiro (que estudaremos no subsequente capítulo) descoberto em
Dura Europos, vê-se que era costume uma parada acompanhar a altura em que se
pagavam os soldos.
Situados abaixo dos quadros superiores (legado-tribunos), havia certos graduados
especializados na formação militar dos recrutas, alguns tendo o posto de centuriões.
Normalmente, a presidir a esta actividade, estava um evocatus condecorado, isto
quando a unidade tivesse um. Era ele que exercia a função de instrutor principal. O
imperador Trajano, por exemplo, não desdenhava entregar-se a esta actividade, o que
nos diz muito da importância da missão. Quando um princeps incapaz ou um legado
negligente abandonava tal papel a um indivíduo que não estivesse à altura da tarefa,
«um pequeno mestre grego», segundo a expressão escarnecedora de Plínio-o-Moço
(Pan. XIII, 5), logo as pessoas mais sérias murmuravam. Pior ainda se a mulher de um
general intervinha em tão séria matéria, como o fez Plancina, esposa de Pisão, na altura
1773
AE 1973, 359.
1774
AE 1975,729.
606
em que este servia como comandante no Oriente, então dava-se um verdadeiro
escândalo (Tácito, Ann. 2.55.6; 3. 33.3: recorde-se que a sociedade romana se
caracterizava por uma certa misoginia.
O terreno para o exercício, o campus, ficava ao cuidado de um graduado portador do
título de campidoctor1775, e de um seu subordinado, o doctor cohortis; o radical doct-
mostra nitidamente que tais indivíduos tinham aprendido uma ciência, na qual se
tornaram proficientes. Ao serem homens versados nesse domínio, deviam transmitir o
melhor do seu saber. As responsabilidades de um campidoctor permitiam que
dispusesse de um adjunto, que o secundava e possivelmente o sucederia na função de
instrutor, o optio campi. Havia outras actividades que requeriam a intervenção de
competências particulares: a esgrima estava dependente do talento e da vocação
didáctica de um doctor armorum; aqui, também, o título de doctor não se empregou
por mero acaso.
A existência de um discens armaturarum, «formador de instrutores» revela, em certa
medida, o facto de tal arte necessitar de uma aprendizagem e de um aperfeiçoamento
constantes. Quanto à cavalaria e às suas evoluções, requeriam igualmente a presença de
instrutores competentes, o exercitator e o magister campi. Posto isto, concluímos que
havia toda uma hierarquia que se destinava a ministrar uma adequada e rigorosa
preparação militar, tanto para os tirones, como para os soldados que já tivessem
passado pela recruta.
Os locais. Nos primórdios da história de Roma, os soldados preparavam-se para a
guerra no Campo de Marte (Campus Martius). À medida que aumentaram as
conquistas, e com a integração de jovens habitando em regiões cada vez mais distantes
da Urbs, afigurou-se essencial encontrar novas soluções e organizar a instrução militar
tanto nas cidades de recrutamento como junto dos acampamentos. Sob o Alto Império,
escolherem-se locais diferentes, em função do programa que se desejava fazer executar.
Desde logo, logicamente, parte do treino efectuava-se ao ar livre, em plena natureza,
nomeadamente as marchas e outras manobras. Em segundo lugar, os soldados
utilizavam recintos/edifícios que não tinham sido primariamente concebidos para esse
fim, haja em vista os anfiteatros. A arqueologia trouxe à tona vestígios de arenas nas
proximidades de fortes; alguns especialistas explicaram este fenómeno, sublinhando o
gosto que militares nutriam pelos espectáculos violentos. Mas cabe adicionar outro
factor: o treino dos milites aproximava-se da gladiatura em vários aspectos e a prática
da esgrima podia decorrer perfeitamente nos anfiteatros que, noutras alturas, eram
palco dos munera, eventos que envolviam caçadas (venationes), execuções de
condenados e, ao longo da tarde, duelos de gladiadores.
Porém, e este facto evidencia também a relevância do exercício para os Romanos,
construíram-se estruturas específicas: sabemos da existência de basílicas projectadas
para o treino dos militares (basilicae exercitatoriae)1776. Em geral, uma basílica ou
«pórtico real» era constituída por uma vasta sala protegida por um tecto; a sua planta,
assaz simples, traduzia-se num rectângulo dotado de uma porta, separado em três
naves por uma colunata dupla e englobando, às vezes, uma ábside (compartimento em
forma de semicírculo) numa das suas extremidades. Frequentemente, os Romanos
utilizaram estes monumentos para se abrigar da chuva ou do calor estival.
Descobriram-se várias basilicas exercitatoriae na Britânia: na fortaleza de Exeter, em
Inchtuthil (Escócia),1777 num forte datando do período Flaviano, em Netherby1778 (222 d.
C.) e em Lanchester1779 (sob a égide de Gordiano III, no século III). Com base numa
1775
R. Cowan, Roman Legionary AD 69-161, Oxford, 2013, pp. 16-18 («Campidoctores»).
1776
A este respeito, todavia, nada prova que a inscrição CIL III, 6025 (ILS, 2615) se reporte a uma basilica exercitatoria,
embora nela se evoque uma basílica edificada em 140, em Syene (Egipto) pela Iª Coorte dos Cilícios.
1777
Journal of Roman Studies, L (1960), p. 213.
1778
R. G. Colingwood e R. P. Wright (eds.), The Roman Inscriptions of Britain, I, Inscriptions on Stone, Oxford, 1965, nº
978 (ILS, 2619).
1779
Ibidem, nº 1091 (ILS, 2620; CIL, VII, 445).
607
fonte epigráfica, existia também uma basílica deste género em Potaissa, na Dácia
(actual Turda, Roménia)1780.
Algumas delas terão sido construídas no próprio interior dos acampamentos, e outras
no exterior, mas não temos a certeza: a pedra com a inscrição achada na Britânia
remontando ao reinado de Gordiano III, exumou-se «a leste do forte de Lanchester»;
no entanto, ela pode haver sido mudada de local. Os historiadores entendem
acertadamente que estas basílicas consistiam em «salas de armas» onde se praticava
sobretudo a esgrima; ainda assim, a de Netherby, acima mencionada, albergava
também um picadeiro, uma vez que aparece qualificada como baselica [sic] equestris
exercitatoria.
Seja como for, o terreno de manobra por excelência correspondia, como dissemos, ao
campus. M. Rostovtzeff, ao estabelecer uma analogia com a basilica exercitatoria,
inventou a expressão de campus exercitatorius, que depressa outros estudiosos
também adoptaram. Mas, bem vistas as coisas, trata-se de um pleonasmo. É certo que
campus se pode ter significados diferentes (Thesaurus linguae latinae, III, 1912, col.
212ss): globalmente, designa uma planura; por derivação aplica-se a um lugar público,
a um campo de batalha ou a um recinto para exercício. Caso se empregue o vocábulo
num contexto militar (Plínio-o-Moço, Pan. XIII, 1 – meditatio campestres; Hist.
Augusta, Max. 3.1; Justiniano, Inst. IV, 3, 4), só a última interpretação é aceitável. A
este respeito, um trecho do manual de Justiniano mostra indiscutivelmente que era o
sítio normal para o desenrolar do treino das tropas. Os arqueólogos que têm
prospeccionado a topografia de Roma acreditam que o campus das coortes pretorianas
e urbanae se localizaria a oeste da caserna construída durante o principado de Tibério.
Como praticamente nada se encontrou neste lugar, eles supõem que tal terreno para
actividades desportivas devia consistir num recinto em terra batida.
O único campus que se conhece relativamente bem, o de Lambaesis (est. X, 13), foi
estudado em pormenor graças às escavações aí feitas 1781. Além disso, no discurso que o
imperador Adriano pronunciou em 128, neste mesmo sítio, afirma-se que se trata de
um campus (CIL VIII, nº 2532 = 18042). Este apresenta a forma de um quadrado com
200 m de lado, cingido por um muro de alvenaria tendo uma espessura de 60 cm, no
qual se rasgavam duas entradas; os ângulos são arredondados e catorze semi-luas
flanqueiam a área: as últimas talvez servissem de bebedoiros para cavalos ou de lavabos
para os soldados, já que foram descobertos restos de cimento hidráulico. Depois de
múltiplas sondagens, concluiu-se que nada se erigiu no seu interior, excepto um
elemento: no centro do recinto havia uma tribuna (tribunale), a partir da qual os
oficiais podiam observar as evoluções desenvolvidas pelas tropas de infantaria ou de
cavalaria e transmitir-lhes ordens. Este conjunto de maçonaria (composto por um
pedestal de base quadrangular com 4, 55 m de lado e 2 de altura) foi transformado em
monumento comemorativo evocando a visita de Adriano em 128: na estrutura, fixaram-
se placas onde se gravou o texto dos discursos do imperador e também se ergueu uma
coluna para abrilhantá-la,1782 com 1,85 m de diâmetro e 9,25 m de altura,
provavelmente sobrepujada por uma estátua do imperador.
Em redor, um espaço lajeado bastante estreito cedia rapidamente o lugar à terra
argilosa. Ao socorremo-nos da documentação epigráfica, topamos com outros terrenos
para exercício, mas não há a mínima dúvida de que cada forte romano possuiria um.
Todavia, estes recintos, em razão da sua ligeireza e perecibilidade (solos de terra e
muros pouco espessos), desapareceram ou escaparam à atenção dos investigadores. As
inscrições mencionam um campus em Theveste (Tebessa), igualmente no Norte de
África, pertencente ao período Flávio1783, bem como outros três no Oriente. No ano 183,
em Palmira, um decurião de numerus, a mando do centurião, comandante da unidade,
1780
AE 1971, 364. O texto data também do reinado de Gordiano III.
1781
Inicialmente, os arqueólogos pensaram que se trataria de um espaço destinado às tropas auxiliares, mas, não muito
depois, vieram a descobrir que era um campus.
1782
Y. Le Bohec, L’Armée romaine, pp. 120-121.
1783
S. Gsell et al (eds.), Inscriptions Latines de l’Algérie, I, Argel, 1922, nº 3596; Y. Le Bohec, La IIIe Légion Auguste, p.
362.
608
e do legado, fez construir, empregando os seus homens, um novo campus com a sua
respectiva tribuna1784.
Em Dura Europos, por volta de 208-209, uma coorte erigiu um templo, após ter
ampliado a superfície do campus1785. Mais tarde, em 288, em Colybrassos, na Cilícia,
uma legião arrasou uma colina para dispor de um espaço apropriado para a prática de
exercício1786.
O corpus epigráfico ajuda-nos a definir algumas características típicas de um campus:
primeiramente, era preciso que ele estivesse instalado num terreno plano; depois,
podia ver-se aumentado se, por exemplo, a unidade que o utilizasse recebesse mais
efectivos. Salientemos também que um forte podia ter vários recintos para treino: em
Palmira, os soldados criaram, em determinado momento, «um novo campus», o que
pressupõe a existência de outro mais antigo. Por último, o campus estava sob a
protecção de certas divindades. Em contrapartida, ainda não se descortinaram os
elementos caracterizadores e originais de eventuais terrenos de exercício para a
cavalaria1787.
Estes espaços, amplos e desimpedidos, serviam para outras finalidades, nem sempre
em estreita relação com a instrução militar, designadamente para a organização de
desfiles. Também representavam o cenário ideal para reuniões. É sobejamente sabido
que a civilização romana atribuía grande importância ao verbo, e os militares não
escapavam à regra: o momento em que um imperador se dirigia em voz alta às suas
tropas, a chamada cerimónia do adlocutio, tinha toda a pertinência que ocorresse no
terreno para a prática do exercício; chegaram até nós moedas ostentando a legenda
ADLOCVTIO, como as cunhadas no reinado de Adriano entre os anos de 134 e 138 1788;
refira-se ainda que são numerosos os textos literários que descrevem este género de
celebração (por exemplo, o discurso de Adriano em Lambaesis; Herodiano, II, 10, 1; VI,
9, 3; VII, 8, 3), o qual se encontra igualmente representado nos relevos da famosa
Coluna de Trajano e da Coluna Aureliana. Finalmente, era para o campus que
confluíam os soldados numa altura delicada, quando tencionavam debater algum
assunto premente (História Augusta, Probo, X, 4).
609
enérgicos como Córbulo (Tácito, Ann. 11.19). Pelo contrário, Nero revelou-se incapaz de
manter a ordem no seio das forças armadas (Tácito, Hist. 1. 5.3).
Os historiadores da Antiguidade acentuaram muito a tónica da disciplina em relação à
crise de 68-69: Nero, demasiado medíocre, não reunia condições para se manter no
trono imperial. Galba, que o sucedeu, mostrou-se tão estritamente severo que isto
significou a causa da sua perdição (Tácito, Hist. 1.5.3; Suetónio, Galba, 6.3; Díon
Cássio, Hist. rom. 64.3). No que respeita a Vitélio, também fracassou rotundamente,
mas devido à sua ignorância excessiva das realidades militares e à sua frouxidão
(Tácito, Hist. 3.56.3: Vitélio era um ignarus militiae). Cerialis (Tácito, Hist. 5.21.5), por
seu turno, representa um caso digno de interesse: ele descurou a disciplina por pensar
que não precisava dela, já que beneficiava da protecção particular da deusa Fortuna.
Mas este auxílio revelou-se insuficiente: a Fortuna nada pôde fazer sem a Disciplina,
outra divindade, e a empresa resultou num fracasso, para grande vergonha deste
general.
Depois do período atribulado e sangrento de 68-69 d. C., assiste-se ao retorno da
ordem no Império em geral e do controlo do exército em particular, o que foi obra do
enérgico Vespasiano (Suetónio, Vespasiano, 8.3-5). No entanto, sob os Flávios, veio a
repetir-se, em certa medida, o que acontecera na dinastia Júlio-Cláudia: a dinastia, que
ascendera ao poder supremo graças a uma figura provida de autoridade, acabou por
soçobrar devido à fraqueza do seu derradeiro representante, Domiciano; este (Plínio-o-
Moço, Paneg. IV, 2), de facto, não pôde ou não tencionou manter a disciplina, além de
não se esforçar por vigiar a prática do exercício. Esta insuficiência, que culminou no seu
desaire e subsequente assassinato, serviu para que Plínio-o-Moço traçasse um
grandiloquente retrato antitético de Trajano (Pan. IX, 3; XIII; XVIII; ponto de vista
partilhado por Frontão, Princ. hist. VIII-IX), o imperador-soldado e o verdadeiro
fundador da dinastia Antonina, se pusermos de parte o fugaz Nerva.
A personalidade de Adriano presta-se a mais discussões: é certo, como atrás se disse,
ele tinha ocupado vários cargos militares antes de se tornar imperador e já nesta
qualidade, evidenciou muito interesse pelo treino dos seus soldados; enviou, inclusive,
Arriano numa viagem de inspecção às guarnições romanas aboletadas em redor do
Ponto, e o próprio imperador, como vimos, assistiu a manobras no Norte de África.
Contudo, Frontão (Princ. hist. VIII-IX) criticou-o pelas suas lacunas no domínio da
disciplina: não há dúvida que Adriano foi mais filósofo do que propriamente
imperador. Também se pode pensar que, à sua política militar (quando cotejada com a
desenvolvida por Trajano) faltava dinamismo, parecendo ter uma postura
excessivamente defensiva: de facto, o imperador terá patenteado, pelo menos aos olhos
de alguns dos seus generais, um lamentável desconhecimento da «disciplina», a arte do
combate, que compreendia igualmente uma estratégia razoável, logo ofensiva.
Mais tarde, durante a guerra civil que eclodiu em 193, vemos reaparecer a importância
da autoridade, o que lembra a crise de 68-69. Pertinax tinha a fama de autoritário
(História Augusta, Pertinax, III, 10), e Pescénio Níger ainda seria mais (Hist. Aug.
Pescénio Niger, VII, 7 e X). No que respeita a Septímio Severo, levanta um problema
idêntico ao de Adriano: por um lado, reconhece-se que ele exigiu a obediência dos
soldados (Aurélio Victor, De Caes. XX, 21; História Augusta, Pesc. Ni. III, 9-12), e
Herodiano salienta que ele se preocupou com que se praticasse o exercício com
regularidade (II, 10, 8). Porém, o mesmo autor acusa-o de ter enfraquecido a disciplina
(III, 8, 5). Na realidade, esta censura mergulha as suas raízes na política de reformas
posta em prática pelo imperador «africano»: este aumentou os soldos, autorizou os
milites a viverem com as suas mulheres e os graduados a poderem formar collegia. Foi,
acima de tudo, este conjunto de novidades que assustou diversos membros da elite
dirigente. Septímio Severo viu-se admoestado pelas suas liberalidades, ao passo que de
Adriano se disse ser um princeps dotado de certo «pacifismo».
De entre os sucessores imediatos de Septímio, avulta, em primeiro lugar, a figura do
efémero Macrino (Herodiano, IV, 14, 7), que demonstrou ser mais fiel à tradição ao
afirmar que os Romanos obtinham a sua superioridade graças à disciplina. Depois
apareceu Severo Alexandre (Aurélio Victor, De Caes. XXIV, 3; História Augusta,
610
Severo Alexandre, LII-LIV e LXIV, 3), o último representante da dinastia, que se
mostrou enérgico, talvez demasiado na opinião das suas tropas. A seguir à morte deste
imperador, manifestou-se, em quase toda a sua gravidade, uma profunda crise da qual
se poderiam ter identificado as premissas uns cinquenta anos antes: o Império foi
atacado simultaneamente pelos Germanos, a norte, e pelos Persas, a leste. Avultam
algumas grandes personalidades numa série de soberanos rapidamente eliminados (o
Império era então «uma monarquia absoluta temperada pelo assassinato»). Aqueles
que se destacam, deveram a sua autoridade ao facto de permanecerem um pouco mais
de tempo no trono do que os restantes. Cabe evocar Maximino-o-Trácio: acima
referimos que ele ganhou notoriedade pelo seu talento enquanto instrutor de campus.
Acresce que passava por ser demasiado severo (Hist. Aug. Maximino, VIII, 7). No
«lote» dos imperadores que lograram manter-se um pouco mais no poder, não
obstante a tormenta conjuntural, Galieno chegou mesmo a ser qualificado de cruel para
com os soldados (Hist. Aug. Galieno, XVIII, 1): é certo que este julgamente foi
veiculado pela História Augusta, que revelou desprezo por este soberano, o qual se
invectivou pela sua política, julgada erradamente, hostil em relação ao Senado.
No conjunto de imperadores que reinaram ao longo da segunda metade do século III,
aparecem vários a que se deu o nome colectivo de «Ilíricos» 1789 por causa da sua origem
geográfica, e que deixaram para a posteridade uma forte reputação como militares
eficazes e dinâmicos, ainda que incultos. Destes, os que ficaram conhecidos com oficiais
de valor, sobressaem Cláudio II (Hist. Aug. Cláudio, XI, 6ss), Aureliano (Hist. Aug.
Aureliano, VI, 2; VII, 3ss; VIII) e Probo (Aurélio Victor, De Caes. XXXVII, 2), que,
aparentemente, velaram escrupulosamente pelo respeito da disciplina e pela prática
regular do exercício.
Recentemente, diversos estudiosos concluiram que se deve matizar certos juízos
emitidos pelos autores antigos. A este respeito, haveria todo o interesse que apareçam
novos contributos sobre esta questão, que ajudem a melhor tomar em consideração as
«paixões» de cada escritor.
O exercício e as divindades1790
611
bom número de epigrafistas: este adjectivo pode também aplicar-se às potências «da
planície», neste caso não tendo assim qualquer carácter militar: é provável que tais
cultos fossem celebrados em determinadas regiões do Império. Consequentemente,
afigura-se relevante conhecer o local exacto de que procederam as inscrições que as
mencionam; o significado deste adjectivo variaria, consoante o facto de o documento
ter sido descoberto num forte, num campus ou em plena natureza. Assim, os
Campestres1794 da Germânia e as Matres Campestres da Britânia1795 talvez englobassem
as mesmas realidades.
Numa inscrição encontrada em Espanha atesta-se um Mars Campester, que não
suscita qualquer ambiguidade1796:
«Consagração ao Mars Campester. Titus Aurelius Decimus, centurião da legio VII Gemina
Felix, praepositus da guarda de corpo [equites singulares] e, ao mesmo tempo, campidoctor,
[mandou erguer este monumento] pela saúde [pro salute] do imperador Marcus Aurelius
Commodus Augustus, e pela saúde da guarda de corpo. Dedicatória feita nas calendas de Março,
sob o consulado de Mamertinus e de Rufus [1 de Março de 182]».
Da mesma forma, honrava-se Némesis, a deusa que castigava os orgulhosos, cujo culto
aparece referido numa inscrição de Roma1797:
«À santa Nemesis do campus, pela saúde dos nossos dois senhores, os imperadores. Publius
Aelius Pacatus, filho de Publius, inscrito na tribo Aelia e originário de Scupi [cidade da antiga
Mésia, actual Uskub], avisado num sonho fez, de bom grado, colocar [esta dedicatória] que ele
havia prometera quando era doctor de uma coorte, agora campidoctor na Iª Coorte Pretoriana
piedosa e vingadora».
Sabemos igualmente que havia potências protectoras dos homens e dos bens, e mais
exactamente de cada um de entre eles em particular, às quais se chamavam «Génios»
(genii loci). Para todas estas entidades apotropaicas se levavam a cabo rituais
específicos. Tratava-se de seres divinos muito peculiares e próprios da cultura romana
(em certa medida comparáveis ao daimon grego), presentes em cada objecto, pessoa ou
lugar. Também (o que é particularmente fascinante), as comunidades humanas
possuíam um, o que converte o génio na única divindade que podia ser gerada pelos
humanos, através do simples facto de se associar entre si. Deste modo, a associação de
várias pessoas para a constituição de uma unidade (uma família ou um núcleo militar
de qualquer tipo, como a centúria, a coorte ou toda uma legião) bastava para ocasionar
o nascimento de uma divindade, um génio específico dessa comunidade: ele incarnava
a faceta transcendente da última e, portanto, a vitalidade do génio traduzia-se na da
própria comunidade1798. Anualmente, realizava-se uma procissão, que partia da tribuna
do campus; no Egipto, ao que parece, sacrificavam a estas entidades gazelas. No
terreno para o exercício de Dura Europos, ter-se-á construído um templo para os
génios, o que não constituía uma novidade, já que o mesmo se fizera em Roma, ao
edificar-se um santuário no campus das coortes pretorianas e urbanae1799.
Para concluir, não olvidemos o grupo dos deuses associados: quando os antigos
celebravam certo culto, dirigiam-se, evidentemente, a uma divindade concreta, na
ocasião representando a principal, mas tinham o cuidado, para assim se sentirem mais
confiantes quanto às respostas para as suas súplicas, de apelar a outras potências, que
desempenhavam o papel de reforçar a acção da primeira que fora invocada (por
exemplo, associava-se a Demeter a sua filha Perséfone). Nos campos de treino,
venerava-se especialmente Júpiter, simultaneamente protector da Urbs e do exército.
Nas fontes epigráficas, colhemos também menções ao «Marte militar» e a uma
abstracção divinizada, a Victoria Augusta. Posto isto, enquadrado e vigiado por
1794
ILS 2604.
1795
R. G. Collingwood e R. P. Wright (The Roman Inscriptions of Britain, I, 1965, nº 1334) referem-se às mesmas como
« three Mother Goddesses of the Parade-Ground».
1796
CIL, II 4083.
1797
CIL VI 533.
1798
P. Herz, «La religión en el ejército del Principado», Desperta Ferro, Número Especial X (…) La légión romana (III)
…, p. 55.
1799
Y. Le Bohec, L’armée romaine, p. 125.
612
graduados, num plano mais elevado e transcendente, o exercício via-se protegido pelos
deuses.
Consideramos pertinente repisar um ponto atrás realçado: a importância do exercício
passou despercebida a muitos historiadores. No entanto, era esse treino o elemento que
explicava, em larga medida, os êxitos do exército romano. Os antigos tinham plena
consciência disto: consideravam que um patrício não poderia fazer uma carreira se não
se entregasse frequentemente a tal prática física, e que um imperador não reunia
condições para exercer o poder supremo se não velasse para que os terrenos de
manobras não fossem assiduamente frequentados. O exercício, a castrametação, as
tácticas, a estratégia, todas estas componentes formavam uma disciplina, uma ciência
(Dión Cássio, Hist. rom. 69.3;77.13), progressivamente elaborada desde a génese de
Roma, e que recebeu uma forma jurídica no início do século III d. C., tornando-se então
codificada. A palavra «disciplina» comportava duas realidades distintas na sua
aparência mas, na realidade, próximas uma da outra: designava, primeiramente, um
domínio de conhecimentos e, só depois, a obediência. Ora a aquisição desta cultura
militar supunha a existência de uma política de recrutamento que se fundamentasse na
qualidade da instrução e dos homens arrolados.
613
CAPÍTULO IX: Fragmentos da vida quotidiana no exército romano
Generalidades
O ofício militar compreendia diversos aspectos que estavam longe de ser agradáveis: a
fadiga das marchas, as corveias, a penúria dos aprovisionamentos em certas ocasiões, a
dureza do comando e as inclemências climatéricas 1800. Além do mais, nos postos mais
expostos havia sempre o receio de o inimigo atacar na altura em que se procedia à
rendição das tropas de guarnição 1801.
As primeiras ocupações do miles no seu serviço eram as corveias - munia, munera,
stationes, vigiliae, diurna nocturnaque munia, ou labores et vigiliae – tarefas que
preenchiam o dia e a noite 1802. Um relógio de água (cf. infra) permitia repartir em
quatro etapas o serviço de guarda pela noite fora, que durava das 6 horas da tarde às 6
da madrugada. As sentinelas eram avisadas da mudança de turno pelos toques da tuba
1803
. Elas recebiam a palavra-senha ou signum de um oficial subalterno, o
tesserarius1804. Vejamos alguns exemplos: Aequanimitas/«Igualdade de alma», sob
Antonino-o-Pio27 e Laboremus/«Trabalhemos» no tempo de Septímio Severo 1805;
Nero, que não receava cair no ridículo ou, então, pretendia manifestar o seu bizarro
cinismo, escolheu certa vez para signum Optima mater/«A melhor das mães», em
referência à sua progenitora, a qual mandou matar. Noutro momento histórico, no
reinado de Pertinax, a palavra de ordem adoptada foi Militemus/«Militemos»1806. Estas
senhas, utilizadas nos acampamentos e nos fortes, também se empregavam em
combate, pelo que todos as conheciam 1807. Nas instalações militares, havia guardas
1800
Tácito, Hist. 1.23.2; 2.80.5; Y. Le Bohec, L’Armée romaine sous le Haute Empire, pp. 63-66.
1801
H. Cuvigny (ed.), Didymoi: une garnison romaine dans le désert oriental d’Égypte. II – Les fouilles de l’Ifao, Cairo,
IFAO, 2012, pp. 23-24.
1802
Tácito, Hist. 1.31.4; 2.69.5; IDEM, Ann. 11.18.3. Martin Kemkes e Jörg Scheuerbrandt, Zwischen Patrouille und
Parade. Die römische Reiterei am Limes, Gesellschat für Vor- und Frühgeschichte in Württemberg und Hohenzollern
mit Unterstützung des Württenbergischen Landesmuseums Sttutgart und der Stadt Aalen, Estugarda, 1997; Pierre
Streit, L’Armée romaine, Paris, Infolio, 2012, pp. 77-78.
1803
Frontino, Str. 1.1.9 Vegécio, Ep. rei mil. 3.8.
1804
Documento procedente de Krokodilo: cf. Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine, du Ier au IIIe siècle de
notre ère», Latomus, 327 (2010), p. 203.
1805
Historia Augusta/SHA, Ant. P., 12.6; Marcus Aur. 7.3.
1806
Historia Augusta/SHA, Sept. Sev. 23.4.
1807
Historia Augusta/SHA, Pert. 5.7; Sept. Sev. 23.4.
614
junto às portas e diante da capela das insígnias em regime de permanência (excubiae
para a noite)1808.
Ao recear um golpe de Estado, Nero mandou posicionar guardas nas muralhas de
Roma, defronte do Tibre e do mar, consistindo em tropas de cavalaria e infantaria,
sobretudo de origem germânica e recrutas 1809.
Em todos os acampamentos e fortes instalava-se, por norma, uma statio (equivalente
a um «posto de polícia»), sob o comando de um tribuno 1810. No palácio, era o imperador
quem dava a palavra de ordem, recebendo, ao mesmo tempo, uma tabuinha com a lista
dos efectivos. Uma coorte velava pela integridade física do princeps; estas tropas
envergavam togas, apresentando-se vestidos à civil, sem elmo, mas munidos do gládio e
do pilum 1811.
As actividades de uma unidade eram consignadas em múltiplos relatórios, matinais,
mensais e nos pridiana, mais espaçados 1812. O chefe supremo transmitia a palavra-
passe para o dia e uma série de ordens, procedendo à distribuição das corveias pelos
seus homens: recolha de lenha, de água, forragens, víveres 1813, tarefas de limpeza
(incluindo as latrinas), a entrega de correio oficial 1814 e obras de terraplanagem, entre
outras tarefas. Os soldados realizavam ainda outras missões: garantiam o policiamento
dos espectáculos: em Roma, uma coorte do pretório vigiava e mantinha a ordem
pública nos jogos, sobretudo os munera que se desenrolavam no Anfiteatro Flávio, a
partir de 80 d. C. (ano em que o anfiteatro foi inaugurado); em Praeneste (actual
Palestrina, Itália), havia uma guarnição (presidium) que controlava os gladiadores
alojados no ludus desta cidade1815. Para além de efectuarem serviços de correio
(empregando-se para o efeito simples soldados ou frumentarii e, mesmo, um antigo
primus pilus1816, os milites escoltavam frequentemente importantes individualidades:
por exemplo, ao regressar viúva do Oriente (o seu marido, Germânico falecera há
pouco), Agripina teve direito a beneficiar da protecção de duas coortes do pretório
durante a viagem 1817.
A respeito das corveias, existe um ponto que talvez surpreenda os leitores menos
familiarizados com a realidade militar romana: embora o exército estivesse submetido
a um elevado nível de disciplina, sabe-se, paradoxalmente, que diversos soldados,
quando tinham suficiente esperteza para ganhar algum dinheiro extra, compravam as
isenções ao subornarem os seus centuriões; o número de tropas dispensadas podia
atingir ¼ dos efectivos1818. Do mesmo modo, era prática corrente solicitar-se
permissões para gozar de uma licença (commeatus). Os arqueólogos descobriram
muitos documentos deste género1819, mas desconhecemos se as respostas seriam
sempre favoráveis. Assim, deparamos com a presença corrente da corrupção, tanto nas
legiões como nas unidades de auxilia.
1808
Tácito, Hist. 2.44.6; IDEM, Ann. 1.25.1; 28.5; 32.6; 15.57.5; 58.1.
1809
IDEM, Ann. 15.57.5; 58.1.
1810
IDEM, Hist. 1.28.1.
1811
Ibidem, 1.38.4; Ann. 1.7.4; Apiano, BC 5.46.192.
1812
Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine…», p. 199 (papiro), 203 (óstracos).
1813
F. Josefo, Bell. Iud. 3.5.2 (85); Tácito, Ann. 1.35.1
1814
Herodiano, 7.6.5.
1815
Tácito, Ann. 13.24.1 (Roma); 15.46.1 (Praeneste).
1816
Tácito, Hist. 3.70.1; IDEM, Ann. 4.41.3.
1817
IDEM, Ann. 3.2.1-2.
1818
IDEM, Hist. 1.46.3-6, 58.1; Ann. 1.17.6; 32.6; 35.1.
1819
Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine…», pp. 201-202; H. Cuvigny, Didymoi…, pp. 23-24, 117-121.
615
A maior parte do tempo, a vida no exército traduzia-se numa rotina que consistia em
dormir, comer, corveias e treino. Era crucial que as legiões operassem eficazmente
como unidades e obedecesse incondicionalmente aos mandos. Uma das maneiras para
atingir tais objectivos radicava em exercícios constantes. Os recrutas estavam obrigados
a treinar-se duas vezes por dia, os veteranos apenas uma.
O quartel proporcionava-lhes um lugar onde viver. Os soldados viviam juntos nas suas
unidades. Cada caserna dispunha de uma habitação maior do que as restantes, com
uma antecâmara para o centurião, e entre oito e dez compartimentos para um
contubernium de oito homens. Cada contubernium dividia-se, por sua vez, numa
antesala e num dormitório. É sabido que um centurião podia ter a sua esposa (e
presumivelmente os filhos) com ele no acampamento; se bem que se captem indícios de
que alguns soldados também o faziam, a norma habitual era que os fortes apenas
albergassem homens; neste sentido, as mulheres e as famílias residiam geralmente nas
imediações da base militar.
O sentimento de camaradagem inerente à vida comunitária via-se potenciado pelo
facto de a unidade preparar a sua própria comida e os seus membros tomarem as
refeições em conjunto. Não havia algo que se equiparasse a um refeitório, nem tão
quanto uma cozinha principal, à excepção, talvez, dos fornos onde se cozia o pão
(abordamos a alimentação militar noutro capítulo).
À semelhança do resto dos Romanos, os soldados gostavam igualmente de se reunir
para fazer vida social. A unidade básica, a centúria, formava um grupo natural, coeso,
tanto a nível básico (a unidade de oito indivíduos) como num sentido mais amplo (a
centúria em si mesma). Nos exércitos que se delocavam com certa regularidade ou
viviam em acampamento temporários, a mobilidade implicava um desenvolvimento
mais lento das redes sociais. No entanto, a partir do século I d. C., no período dos
imperadores flávios, o exército tornou-se, como dissemos, cada vez mais sedentário. As
legiões passaram a ficar aboletadas em instalações permanentes. Nestas, vieram a
surgir «associações» (collegia) de diversos géneros, compostas por soldados e oficiais.
Isto não causa qualquer estranheza, visto que os Romanos tinham o costume de se
reunir numa espécie de confrarias cujos membros compartilhavam interesses em
comum, fossem de ordem religiosa, profissional, geográfica ou comercial. As
autoridades militares manifestaram uma atitude ambivalente perante tais corporações,
tal como sucedia com as autoridades civis face aos grupos organizados que se
constituíam nas cidades. Existia quase sempre a suspeita de que, durante as reuniões,
se maquinavam actividades anti-sociais e mesmo perversas. Marciano, jurista do século
III, assinalou que os simples soldados não podiam fazer parte de associações deste tipo:
«Por ordem do imperador, se decreta que os governadores das províncias não autorizem as
associações fraternais em geral e, em particular, não permitam aos soldados formar associações
no acampamento» (Digesta, 47.22.1 pr.).
Se nos recordarmos da tradicional desconfiança nutrida pelas autoridades em relação
aos grupos organizados, parece-nos que este aviso reflecte uma proibição que já vinha
de longe e não uma disposição recentemente estipulada. Provavelmente, a reiteração da
proibição indica que os collegia já estariam amplamente disseminados entre os milites,
apesar de formalmente interditas. A conclusão mais simples que se pode extrair é que
as associações de soldados se desenvolveram no exército à medida que o exército se
sedentarizou depois dos Flávios; que o alto comando não apreciava a sua existência,
mas elas continuaram de toda a forma, não obstante sucessivos intentos para as
suprimir, como se constata no excerto do Digesta acima citado.
Contudo, em certa medida, o próprio exército era a «associação» por excelência do
miles gregarius. Para este, as termas eram locais de ócio e descontracção fora do
quartel. Cada forte tinha os seus banhos; algumas vezes, situavam-se no interior do
mesmo, mas o mais usual era que se localizassem no exterior. Além dos benefícios
higiénicos do banho, o ambiente social reproduzia a importância das termas na vida
civil. Os soldados podiam frequentá-las assiduamente, conversar com os camaradas e
relaxar, funcionando como um meio de se desconectarem da rotina militar.
616
Afora os recursos da sua base e das associações, os soldados tinham igualmente acesso
aos assentamentos (alguns transformando-se progressivamente em autênticas cidades)
que se criavam perto de cada fortaleza de legionários e de auxiliares. Estes canabae e
vici possuíam muitas funções relevantes, mas, na vida de um miles, as principais
atracções eram as tabernas e os lupanares (frequentemente juntando-se num só
espaço). Nestes aglomerados, era possível que um soldado, tecnicamente proibido de
contrair matrimónio, tivesse uma mulher como «esposa» ou simplesmente amante
(focaria), e filhos (cf. infra). Por vezes, além de um agregado familiar, até podia ser
proprietário de um ou dois escravos. Não fica claro com que regularidade havia
contacto entre as tropas e as suas companheiras: talvez os soldados pudessem sair dos
castra durante as festividades, mas não existia um dia livre estabelecido oficialmente,
nem uma permissão habitual para viver no exterior. Seja como for, a amplitude dos
canabae e dos vici mostra que eram muito frequentados, ocupando uma parte
significativa da existência do soldado, tivesse ou não «família», servindo para mitigar o
que parecia ser, no papel, uma vida totalmente isolada no forte.
Também podia romper com a rotina se fosse enviado com um destacamento para
exercer funções de policiamento numa cidade ou numa zona rural, comprar ou adquirir
víveres e outros produtos para a sua unidade, ou realizar, como referimos, uma missão
especial, escoltando, por exemplo, um dignitário por terras hostis. Estes serviços
ofereciam oportunidades para interactuar com as populações civis e, muitas vezes,
explorá-las.
***
Uma vez no exército, um homem tinha a possibilidade de aprender um ofício, já que a
maldição dos exércitos de todas as épocas era o tempo livre e o caso romano não
representava uma excepção, tudo se fazendo para manter os soldados ocupados (cf.
infra). Observemos um exemplo, o de Lucius Marius Vitalis, que foi incorporado na
guarda pretoriana com 17 anos e, apesar de já saber ler e escrever, ele tencionava
aprender um ofício:
«Eu, Lucius Marius Vitalis, filho de Lucius, vivi 17 anos e 55 dias. Tive êxito nos estudos e
convenci os meus pais de que devia aprender uma profissão. Havia abandonado Roma com a
guarda pretoriana do imperador Adriano quando, enquanto trabalhava duramente, as parcas
me apanharam e levaram da minha nova profissão para este lugar. Maria Marchis, minha mãe,
erigiu este monumento em honra do seu maravilhoso e infortunado filho» (CIL VI.8991= ILS
7741, Roma).
Parte do atractivo do exército radicava na aprendizagem de novos talentos e
competências; o soldado podia aspirar às promoções, obtendo uma patente mais
elevada, uma remuneração superior e ver-se eximido das corveias diárias. Dispomos de
inscrições alusivas a carreiras militares, tanto breves como extensas, indicando subidas
na escala hierárquica e transferências de uma unidade para outra em todo o
comprimento e largura do império. Como noutro capítulo afirmámos, alguns
indivíduos eram recrutados e podiam passar directamente para postos mais altos,
tornando-se centuriões; noutras situações, os soldados iam singrando ao longo do
tempo de serviço. Em algumas ocasiões, porém, a morte impedia estas perspectivas tão
almejadas:
«[…] um ajudante da centúria de Lucillus Ingenuus, que esperava ascender a centurião e
morreu num naufrágio, aqui jaz enterrado» (ILS 2441, Chester, Inglaterra).
Mas, como atrás dissemos, as promoções não se conseguiam só por mérito pessoal.
Geralmente, um soldado tinha de arranjar cartas de recomendação e subornar a pessoa
certa. De facto, os subornos eram uma prática muito corrente, como o atesta uma carta
de Claudius Terentianus:
«Rogo-te, pai, que me escrevas de imediato sobre a tua saúde, dizendo-me que te encontras
bem. Estou ansioso por saber coisas de casa. Se Deus quiser, espero viver frugalmente e ser
transferido para uma coorte. Contudo, aqui nada se consegue sem dinheiro e as cartas de
617
recomendação não têm utilidade se um indivíduo não se mexer» (P. Mich. 468, linhas 31-41,
Karanis, Egipto, século II)1820.
As promoções representavam uma vertente especialmente importante do próprio
atractivo da vida militar. Aos olhos do mundo civil, um soldado lograva melhorar a sua
posição de uma maneira impossível para quem não se alistava. Artemidoro de Daldis dá
conta disto, já que escreveu que sonhar que se era soldado augurava que se era «bem
considerado» (Oneirokritika, 2.31). Este facto era reconhecido pela lei, uma vez que os
milites estavam isentos dos cada vez mais onerosos deveres locais que se exigiam aos
civis ao longo da evolução histórica da época imperial. Mais: o soldado também
adquiria prestígio por ser o representante local do poder imperial, e porque só ele se
apresentava equipado profissionalmente com armas de qualidade e adestrado para as
utilizar eficazmente. O distintivo da sua posição era o cinturão do gladius; o seu traje e
equipamento anunciava a sua categoria e função.
Logicamente que esta posição de poder e privilégio tanto infundia respeito e inveja
como provocava hostilidade. Assim, os civis podiam, simultaneamente, odiar os
soldados e temê-los. A literatura da elite e a popular reportam-se amiúde à atitude
autoritária dos milites e à mescla de ressentimento e medo que eles causavam na
população civil. Com efeito, muitos soldados aproveitavam-se do seu poder para
intimidar, extorquir e aterrorizar a seu bel-prazer. A este respeito, uma passagem da
Historia Augusta talvez seja excessivamente optimista:
«Um soldado não deve causar temor desde que apareça vestido correctamente, bem armado,
que calce botas resistentes e tenha alguma coisa na sua bolsa » (Severo Alexandre, 52).
Por seu turno, o jurista Ulpiano realçou que a soldadesca trataria, inevitavelmente, de
roubar a população civil. Abusava-se do costume de proceder indiscriminadamente a
requisições. Registaram-se tentativas de pôr cobro a estes casos, mas revelaram-se
quase sempre ineficazes, ainda que bem-intencionadas. Observemos um exemplo,
procedente do Egipto:
«Marcus Petronius Mamertinus, prefeito do Egipto, declara: fui informado de que muitos dos
soldados, quando viajam pelo país, requisitam sem certificado barcas, animais e pessoas mais
do que lhes corresponde, apropriando-se por vezes de tudo pela força, e noutras mediante
ordem expressa do oficial do comando, como favor ou deferência. Por causa disto, as pessoas
privadas vêem-se submetidas à arrogância e aos abusos, sendo o exército criticado pela sua
avarícia e injustiça. Eu, portanto, ordenou ao mando e aos secretários reais que não
proporcionem absolutamente a ninguém autorização para viajar sem um certificado, tanto pelo
rio como por terra; bem entendido que castigarei severamente quem, após este édito, seja
surpreendido dando ou recebendo alguma das coisas mencionadas […]» (PSI 44)1821.
O alojamento forçado (que se assinala na carta 10.77-78 de Plínio-o-Moço para
Trajano) consistia numa forma de abuso corrente, bem como a chantagem, a extorsão e
outros métodos para arrancar dinheiro dos civis para uso pessoal. Quando os soldados
perguntaram a João Baptista o que deveriam fazer para ser bons, ele retorquiu: «Não
abuseis da gente, não fazei falsas denúncias e contentai-vos com o que vos pagam»
(Lucas 3, 14). No Egipto, temos conhecimento de um homem que a anotou subornos,
envolvendo substanciais quantias de dinheiro, nos livros de contabilidade, rotulando-os
de «gastos de empresa»…
O exemplo literário mais gráfico e sugestivo de um miles abusando da sua autoridade
talvez seja o contido na obra de Apuleio, O Asno de Ouro (9.39-42). A história é
1820
B. Campbell, The Roman Army 31 BC- AD 337. A Sourcebook, nº 43, p. 33. Esta missiva faz parte de um arquivo
papirológico (P. Mich. VIII.467-481), que inclui a correspondência, tanto em grego como em latim, entre um soldado,
Claudius Terentianus, e o seu pai, Claudius Tiberianus, também militar de profissão (speculator) que, a certa altura, se
tornou um veterano (P. Mich. 475). Inicialmente, Terentianus cumpriu o serviço militar na frota de Alexandria, mas
alimentava o desejo de ser transferido para uma coorte auxiliar. Os seus esforços foram amplamente recompensados,
uma vez que mais tarde se intitula numa carta como legionário (P. Mich. 476). Com efeito, as promoções e
transferências nas diferentes unidades e corpos do exército obtinham-se amiúde através de um patrono influente, que
enviava uma carta de recomendação ao oficial ou comandante que pudesse facilitar o processo. Esta prática era
generalizada, como se vê, por exemplo, numa carta fragmentária do acervo de Vindolanda, em que um homem escreveu
a Crispinus, provavelmente membro da administração do governador provincial : «… então, arranja-me amigos, para
que, por meio da tua amabilidade, eu posssa desfrutar de um agradável período de serviço militar» (cf. A. K. Bowman e
J. D. Thomas, Vindolanda: The Latin Writing-Tablets, Londres, 1983, nº 37).
1821
B. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, nº 293, pp. 176-177.
618
basicamente esta: um jardineiro seguia por uma estrada na Tessália, montado em
Lúcio, o homem transformado em jumento que protagoniza o texto; um soldado, que
viajava sozinho em sentido contrário, encontrou a certa altura com eles. O legionário
vê-se, desde logo, caracterizado pelo seu traje (habitus), porte (habitudo) e pelo seu
comportamente extremamente arrogante (superbo atque adrogant sermone),
dirigindo-se ao jardineiro em latim, a língua oficial do exército, ainda que a acção se
desenrolasse numa zona onde se falava o grego, e bloqueou-lhe o caminho. Acto
contínuo, exigiu o seu direito de requisitar o transporte e apropriou-se da azémola para
carregá-la com equipamento militar. O soldado sentiu-se ofendido ao ver que o civil
buscava, a todo o custo, passar à força, não lhe respondendo em latim; mostrou. Então,
a sua insolência inata (familiarem insoletiam) e recorreu à violência, batendo no
jardineiro e atirando-o ao solo. O grego reconheceu claramente a desigualdade de
forças e tentou aplacar a ira do miles, manifestando obediência (subplicue) e dando a
entender, por gestos, que não percebia latim. O soldado repetiu que requisitava o asno
por razões de Estado e começou a conduzi-lo rumo ao seu forte. O jardineiro voltou a
suplicar, rogando-lhe que fosse mais amável. Tudo em vão. Com efeito, isto apenas
serviu para aumentar a agressividade do legionário, que se dispôs a matá-lo,
golpeando-o uma vez mais. Mas o jardineiro enfrentou o soldado e deu-lhe uma forte
pancada, deixando-o ferido e semi-inconsciente, apressando-se a partir para a cidade
mais próxima. Entretanto, o soldado recuperou os sentidos e conseguiu a ajuda dos
seus camaradas, os quais, por sua vez, convocaram os magistrados civis da cidade,
exigindo-lhes que descobrissem o jardineiro e o executassem por ter atacado um
soldado. Os funcionários, com medo dos superiores militares, procedem à detenção do
jardineiro, colocando-o na prisão, para depois ser executado sumariamente. No fim da
história, o soldado ficou impune, não obstante a sua inaudita violência contra o
jardineiro; carregou Lúcio com o seu equipamento, exibindo-o ostensivamente para
aterrorizar qualquer um que com ele se cruzasse no caminho (propter terrendos
miseros viatores), e rumou para a cidade seguinte, onde irrompeu na residência de um
magistrado, alojando-se na mesma em vez que hospedar-se numa pousada.
Desta narrativa extraímos elementos típicos e recorrentes do comportamento abusivo
da soldadesca para com os civis: uma soberba contra a qual muitas vezes não havia
escapatória possível, alojamento forçado nas suas casas, requisições não autorizadas,
violência perante a qual não existia defesa eficaz, e manipulação do sistema judicial
civil em seu benefício.
Num episódio do Satyricon de Petrónio (82), encontramos um caso similar: Encólpio,
abandonado pelo seu amante Giton, pegou na espada e saiu em busca de vingança:
«Enquanto ia a toda a pressa apareceu um soldado, uma espécie de larápio ou rufião, que me
disse: “Eh, camarada soldado, qual é a tua legião? Quem é o teu centurião?”. Quando menti
ousadamente acerca da minha centúria e legião, ele perguntou. ”Homem, os soldados do teu
exército anda por aí com calçado elegante?”. O meu semblante e as minhas tremuras acusaram-
me. “Entrega-me a tua espada ou será pior para ti!”. Despojado, fiquei sem espada e sem
vingança».
Para um soldado, pertencer ao exército conferia-lhe um sentimento de superioridade
sobre a população civil e uma sensação de poder que podia, simultaneamente, justificar
ou desculpar qualquer excesso. Ora para isto, não havia outro controlo para além do
auto-domínio, que resultava extremamente ineficaz, e os infrutíferos protestos dos
funcionários romanos:
«O governador de uma província deve certificar-se que as pessoas de escassos recursos não
sejam tratadas injustamente ao privá-las da sua única lucerna ou de um pequeno móvel para uso
de outros com o pretexto da chegada de oficiais ou soldados. O governador da província deve
assegurar que não se autorize qualquer acto que favoreça pessoas que reclamem vantagens
injustas em virtude da sua pertença à categoria militar» (Digesta, 1.18.6.5-6).
A arrogância descrita por Apuleio fazia parte do facto de ser soldado: ao pertencer a
um grupo isoldado, apenas responsável antes os seus oficiais superiores, que
provavelmente eram cúmplices, o soldado frequentemente ter-se-á aproveitado da sua
posição de poder num mundo em que o exercício do poder constituía o único modo de
619
fazer as coisas. Para um miles, isto era, indiscutivelmente, uma vertente positiva da sua
profissão.
Apesar de não constar dos escritos de Apuleio e de Petrónio, o suborno era uma prática
habitual no exército, por exemplo, quando um miles pagava uma quantia ao seu
centurião para se ver dispensado de várias corveias. Mas o fenómeno também ocorria
nas relações entre soldados e civis. No Evangelho de S. Mateus, no relato da Páscua da
Ressurreição, alude-se a soldados que foram subornados:
«Enquanto as mulheres iam a caminho, alguns soldados que tinham estado de guarda ao
túmulo voltaram para a cidade e foram contar aos chefes dos sacerdotes o que tinha acontecido.
Então os chefes dos sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e resolveram dar uma
grande soma de dinheiro aos soldados e recomendar-lhes: “Dizei que os discípulos dele vieram
de noite e roubaram o corpo [de Jesus Cristo], enquanto vós dormieis. Se o governador chegar a
saber do assunto nós o convenceremos e faremos com que vós não tereis de sofrer com isso”. Os
soldados aceitaram o dinheiro e fizeram como lhes foi dito. Foi assim que este boato se espalhou
entre os judeus, e continua até hoje» (Mateus, 28: 11-15).
Não será errado depreender, a partir deste testemunho e de outros, que os soldados
considerariam que aceitar subornos fazia parte dos seus privilégios, constituindo um
complemento da sua remuneração.
620
epitáfios dos monumentos funerários militares, a maioria deles preferiria, talvez,
mulheres romanizadas. Vejamos dois exemplos:
«Aqui jaz Lucius Plotidius Vitalis, filho de Lucius, da tribo lemoniana, soldado na Legio XV
Apollinaris. Viveu 50 anos e serviu 23. Annia Maxima erigiu este monumento em honra do seu
amado esposo (AE 1954.119, Bad-Deutsch Altenburg/Petronell, Áustria);
«Aos deuses manes. Aurelius Victor, soldado da Legio I Italica, viveu 36 anos e serviu nas
fileiras durante 18. Valeria Marcia, sua esposa, e Valeria Bessa, sua filha, herdeiras, ergueram
este monumento em honra do seu benemérito esposo e pai» (CIL III.13751 a, Kherson, Ucrânia).
Outras fontes epigráficas mostram que muitas das mulheres eram libertas, pelo que,
nestes casos, o relacionamento principiaria com uma moça escrava:
«Gaius Petronius, filho de Gaius, viveu 73 anos e serviu durante 26 na cavalaria Gemelliana.
Aqui jaz. Urbana, sua liberta e esposa, erigiu este monumento (ILS 9138, Walbersdorf, Áustria).
621
este tipo de mulheres chamava-se hospita ou, mais vulgarmente, focariae. Uma destas
aparece nomeada num epitáfio, atestando a sua relação com um soldado da marinha:
«Marcus Aurelius Vitalis foi um soldado da Panónia que serviu durante 27 anos na frota
pretoriana em Ravenna. Valeria Faustina, sua focaria e herdeira, ergueu este monumento em
honra de uma pessoa excelente» (CIL XI.39 = ILS 2904, Ravena, Itália).
O vocábulo focaria, típico da linguagem militar, já não era entendido no sentido
originário de «ajudante de cozinha», mas servia antes para designar aquela que, fora do
forte, nos canabae, «preparava o rancho» do soldado. Nos testamentos militares,
admite-se que parte dos depósitos obrigatórios do miles seja deixada à focaria que, de
outro modo, não teria qualquer direito à herança (P. Wisconsin 14; BGU 2, 600; P.
Princ. 57); havendo filhos, estes usavam o nome dela até o pai terminar o serviço
militar (P. Oxy. 3.475 = Sel. Pap. 337).
Posto isto, muitos soldados possuíam relacionamentos que correspondiam a uma
espécie de matrimónios informais; destas uniões resultavam frequentemente filhos. Por
conseguinte, um soldado não estava condenado a conviver só com prostitutas, ainda
que estas abundassem nos assentamentos localizados junto das bases militares.
Além de tudo isto, o corpus das fontes papirológicas transmite-nos, por vezes, a
imagem de soldados que viviam quase como «burgueses», providos de um núcleo
familiar estável, estando eles muitas vezes ligados a filhas ou irmãs de companheiros de
armas, e as fontes epigráficas confirmam um desejo generalizado de possuir uma vida
familiar semelhante à dos civis. Porém, há que usar de precaução quanto à referida
ideia de os soldados usufruirem de uma existência «aburguesada», na medida em que
não podemos extrapolar, a partir somente de algumas fontes, que a maioria dos milites
tinha uma vida desafogada. Na realidade, o simples soldado estava longe de ser rico 1822.
Basta reparar nos muitos recibos que se encontraram entre os documentos privados
procedentes da Britânia, do Egipto e da Líbia: eles provam que, frequentemente, os
militares se encontravam endividados 1823. Ora, tendo em conta este facto, bem como o
montante do soldo do grosso das tropas, é caso para nos interrogarmos com que
dinheiro e de que forma os soldados conseguiam adquirir pessoal servil 1824.
Abordemos outro assunto, mais controverso, o da homossexualidade no exército
imperial romano, fenómeno que só há alguns anos começou a ser compulsado. Noutros
estudos, alude-se aos castigos aparentemente severos da pederastia no exército
republicano, notícias que se colhem nas fontes literárias da elite acerca da cultura
militar, fortemente marcada pela tónica conferida aos conceitos de «honra« e
«virilidade». No melhor dos casos, essas punições violentas, embora raramente
aplicadas, revelam que já sob a República havia práticas homossexuais. Porém, no que
respeita ao exército do Alto-Império, as obras literárias praticamente não se reportam
às mesmas. Mas o certo é que determinados indícios permitem que avancemos um
pouco mais nesta matéria.
As relações com pessoal servil masculino e prostitutos, ainda que vistas com desagrado
pela elite conservadora e não sem certa hipocrisia, eram amplamente aceites e tidas
como factos normais. Como os simples soldados, e especialmente os centuriões e o
resto dos oficiais, tinham escravos, não admira que também no exército ocorressem
estas situações. No Pseudolo de Plauto (1180-1181), o escravo de um miles é alvo de
comentários:
«Durante a noite, quando o comandante ia fazer a guarda e tu com ele, a sua espada enfiava-se
na tua bainha?».
Por seu turno, no epigrama 1.31, entre outros, Marcial discorre sobre as relações
sexuais de um centurião, Aulus Pudens, e o seu jovem escravo, Encolpius. Do mesmo
modo, os contactos com prostitutos encaravam-se como usuais. Consequentemente,
1822
Sobre a importância do dinheiro para os soldados, veja-se A. Groslambert, «Les soldats et l’argent sur les tablettes
de Vindolanda», in C. Wolff (ed.), Le Métier de soldat, pp. 247-274.
1823
Y. Le Bohec, «L’écrit au sein de l’armée romaine….», p. 199, 201, 202, 204; H. Cuvigny (ed.), Didymoi: une garnison
romaine…, pp. 124-128, 137-155, 168.
1824
Afora os exemplos referidos no texto, temos notícia de um homem da XIII Gemina que comprou uma escrava
cretense em 160 d. C.: P. Girard, Textes de droit romain, Paris, A. Rousseau, 1918, pp. 845-846.
622
parece improvável que soldados acostumados a recorrer a escravos ou prostitutos para
aliviar as suas necessidades sexuais não tolerassem intimidades por parte de um
camarada ou que algum que se mostrasse disposto.
A única coisa que poderia reprimir as relações homossexuais entre membros de um
mesmo grupo social (neste caso os soldados) seria a crença social, partilhada tanto pela
elite como pela classe popular, segundo a qual o parceiro passivo ou «receptivo» se via
estigmatizado como efeminado, o que significava precisamente o oposto do que devia
ser um homem, masculino. Na cultura militar, ser masculino e não efeminado
afigurava-se essencial.
Assim, um soldado podia resistir a uma relação homossexual devido ao seu pano de
fundo cultural negativo. Aparentemente, este tabu fazia-se sentir no exército de meados
e finais da República, período em que surgem testemunhos da elite condenando os
horrores da homossexualidade no seio do exército. A partir de então, desaparecem
relatos de episódios deste género. De facto, ao longo da época imperial não
encontramos descrições de oficiais aliciando soldados subordinados, nem menções a
leis ou normas regulamentando as práticas homossexuais entre militares. O porquê
desta ausência foi explicado de distintas maneiras. Contudo, um incidente histórico
faculta-nos uma pista: quando dois soldados foram acusados de fazer parte da
conspiração urdida por Saturninus para assassinar o imperador Domiciano, eles
defenderam-se, alegando que não podiam pertencer a uma trama dada a sua conhecida
condição de penetratum/«penetrados» (homossexuais passivos), o que os
marginalizava ao ponto de que ninguém os incluir numa conjura (Suetónio, Domiciano,
10).
Ora isto mostra que os soldados sabiam que alguns dos seus camaradas adoptavam um
papel passivo nas relações sexuais com outros homens e marginalizavam-nos mas
pouco mais acontecia. Se bem que a dita pressão social podia surtir certo efeito, pelo
menos levando a que os soldados buscassem ocultar as suas tendências, não restam
dúvidas que a homossexualidade persistiu. No entanto, na maioria dos casos, enquanto
um miles mantivesse uma aparência exterior masculina ou se, por alguma razão, era
considerado «efeminado» pelos seus camaradas, demonstrasse constantemente a sua
capacidade actuante como homem nos treinos, nas corveias e na guerra, a única
consequência seria a de ter de suportar comentários jocosos por parte dos que o
rodeavam.
623
Senado a este respeito, ficando decidido que, a partir de então, as mulheres dos oficiais
podiam acompanhar os seus conjuges, quando estes eram destacados para comandar
bases militares, e nestas ficarem a viver1828.
Para os elementos femininos da plebe a lei era bem mais estrita: aquela que entrasse
num forte estava a cometer uma infracção. Além disso, em termos oficiais, qualquer
civil, independentemente do seu sexo, não podia aceder a instalações militares 1829.
Todavia, recentemente, vários arqueólogos descobriram indícios que parecem apontar
para a existência de mulheres nos castra1830. Embora este assunto não seja mencionado
explicitamente nas fontes antigas, é possível que algumas mulheres tivessem permissão
para realizar tarefas domésticas ou, simplesmente, exercer a mais antiga profissão do
mundo. Com efeito, há pouco encontrou-se e analisou-se o teor de um documento
procedente do Egipto: nele se observa que um conjunto de soldados escreveu a um
conductor, pedindo expressamente que lhes enviasse uma jovem prostituta (que eles já
muito apreciavam), a qual depois faria, de acordo com o próprio documento, uma
«digressão» por outras guarnições1831. Seja como for, e com base apenas neste caso,
cabe não generalizar este género de prática, entendendo-a como um fenómeno
extensivo a todas as bases do exército.
1828
Tácito, Ann. 3.33-34.
1829
IDEM, Hist. 1.48.5; 2.88.3.
1830
J. K. Evans, War, Women and Children in Ancient Rome, Londres/Nova Iorque, Routledge, 1991; C. Van Driel-
Murray, «Women in forts?», Jahresbericht/Gesellschaft Pro Vindonissa (1997), pp. 55-61; M. A. Speidel, «Frauen und
Kinder bei römischen Her», ibidem, pp. 53-54; U. Brandl (ed.), Frauen und römisches Militär, BAR Intern. S. 1759,
Oxford, 2008.
1831
H. Cuvigny (ed.), Didymoi: une garnison romaine…, pp. 24-28.
1832
J. E. Lendon, Empire of Honour, Oxford, 1997, p. 247.
624
garantir o bem-estar e a saúde dos seus soldados, velando também para que estivessem
apropriadamente equipados e sob controlo. Sem este, as tropas perdiam a sua
eficiência e podiam até revelar-se perigosas para o Estado. Nesta matéria, o imperador
e os seus subordinados agiram como muitos outros comandantes de tropas ao longo da
história humana. Consequentemente, o que se reveste de interesse não é o facto de
serem precisos constrangimentos, mas antes como estes se estabeleciam e mantinham.
O controlo exercido nos círculos militares romanos não consistia só na imposição de
uma severa disciplina através do medo infundido pela vitis do centurião ou pela virga
do decurião: o controlo assegurava-se igualmente pelas muralhas e portões,
componentes imprescindíveis para a vigilância dos movimentos dos soldados e para
evitar as deserções, não se cingindo apenas a elementos destinados à protecção da
própria guarnição. Esta ideia da necessidade de manter os soldados relutantes no
interior dos acampamentos assinala-se claramente no tratado De Munitionibus
Castrorum. Nesta obra, o autor exorta os comandantes a usarem as suas tropas mais
fiáveis como uma «muralha de corpos» para «segurarem» os contingentes compósitos
do exército em campanha intramuros.
Todavia, numa análise mais atenta, verificamos que havia outros meios de controlo, e
que a documentação desempenhava, a este respeito, um papel crucial. Com efeito,
como vimos, tudo era meticulosamente registado, desde a maneira como os soldados, a
nível individual, se comportavam e cumpriam (ou não) os seus deveres, até as missões
que envolviam destacamentos. Existiam, portanto, abundantes provas textuais
disponíveis para averiguar se determinado miles seria merecedor de uma promoção ou,
pelo contrário, estaria sujeito a um castigo por insubordinação ou desobediência; havia,
de igual modo, dados que serviriam de critérios para conceder uma licença a um
soldado ou mostrar quais os homens que teriam mais tendência a desertar. Mas não
sabemos se este acervo era sempre consultado para a tomada de decisões.
Até o volumoso corpus documental gerado pelo exército pode ser inadequado se a
nossa atenção não incidir na gestão do tempo. Este funcionava em dois sentidos: em
primeiro lugar, existia uma rotina estruturada. A ênfase conferida em actividades
repetitivas podia justificar-se como uma forma de inculcar valores e destreza, além de
que se tratava de um processo que minimizava o perigo da eclosão de desordens ou
motins numa grande comunidade armada; em segundo lugar, encontrava-se aquilo que
K. Verdery estudou num contexto moderno, a «estatização» do tempo, isto é, os meios
informais mediante os quais as autoridades dominam o que vulgsarmente se pode
considerar como «tempo livre» 1833. Inventavam-se tarefas para manter os homens
ocupados e fatigados, contribuindo para diminuir o tempo para que os soldados
urdissem maquinações, conspirassem e se rebelassem. Se bem que se concedessem
licenças e houve alturas para se frequentar as termas, a divisão do trabalho e o lazer
(negotium e otium) ao longo do ano eram bastante distintas para um soldado
comparativamente aos de um civil.
O dia de um miles via-se estruturado pelo ressoar das trombetas. Flávio Josefo oferece
uma imagem da rotina diária do exército em campanha em finais do século I na Judeia,
salientando que «A hora para a ceia e para o pequeno-almoço não obedece ao critério
individual: todos tomam as refeições em conjunto. As horas para dormir, para os
turnos das sentinelas e para a alvorada são anunciadas pelo som da trombeta (BJ 3.86).
Privar o soldado do toque das trombetas equivalia, assim, a desorientá-lo. A narração
de Tácito sobre a progressão dos exércitos da Germânia rumo a Itália, que vieram
apoiar as pretensões de Vitélio, deixa isto bem explícito (Tácito, Hist. 2.29): ocorreu um
episódio algo insólito, em que um prefeito de acampamento conseguiu neutralizar o
motim das suas forças em parte por ordenar aos trombeteiros que permanecessem em
silêncio. Além disso, a instrução de que os oficiais deviam suspender a realização das
rondas deixou as tropas sediciosas confusas, ficando mais atreitas a retornar ao
conforto que a autoridade lhes oferecia. Embora captemos indícios neste relato que
apontam para a inserção de um artifício literário, o cenário é suficientemente plausível.
1833
K. Verdery, What Was Socialism and What Comes Next?, Princeton, 1996, pp. 39-57.
625
A trombeta ajudava a definir a comunidade militar. O seu som chegava não só até aos
soldados, entregues aos seus deveres, mas também àqueles cujas vidas estavam
interligadas ao exército e a sua rotina – as famílias à espera da chegada ou da partida
de um pai ou filho, os comerciantes pressentindo momentos oportunos para fazer
negócios, os taberneiros aguardando pela aparição de clientes - todos terão aprendido a
reconhecer o significado do ritmo diário.
Teoricamente, pelo menos, o dia do soldado estaria integralmente ocupado por
deveres essenciais - treinos, patrulhas, piquetes, obras de construção, missões de
guarda, escoltas a cobradores de impostos, transporte de víveres – e por outros, ainda,
«inventados para manter os soldados atarefados» (a frase procede de Tácito, Ann. 1.35,
surgindo repetida em Vegécio, Ep. rei mil. 3.4). Sabemos que se realçou este ponto, não
apenas porque os autores romanos nos contam isto, mas igualmente por corresponder
a uma preocupação familiar para aqueles que tivessem comandado unidades de
combate. Mas conseguir estabelecer um devido equilíbrio das actividades, mantendo
simultaneamente os soldados em forma e controlados não era fácil. O conhecito relato
das tropas transferidas da Síria para o exército em campanha chefiado por Corbulão
representa um caso elucidativo: Tácito referiu-se a soldados que, depois longos
períodos de paz, mostraram renitência em cumprir os seus deveres num acampamento
romano. É sabido que o exército incluiu veteranos que nunca haviam servido num
piquete ou numa vigília – a tal ponto que encaravam as muralhas e os fossos como
objectos invulgares – e que nem utilizavam elmos e couraças, guerreiros polidos e
prósperos que cumpriram grande parte do tempo de serviço nas cidades (Ann. 13.35).
Apesar de tal narração, que descreve acontecimentos ocorridos por volta de 56 d.C.,
lembrar velhos e gastos estereótipos respeitantes aos soldados sírios, é possível que
encerre um fundo de verdade1834.
Os que imaginaram os exércitos de Roma como modelos de perfeição, funcionando
com a regularidade exacta de um relógio, não só ignoraram o espectro da eficiência
militar atestado pelos autores antigos, mas igualmente falharam em reconhecer que um
bom moral e uma disciplina efectiva nas unidades militares tinham um preço – uma
eterna vigilância. Ademais, não existem razões para presumir que o padrão da
liderança no enquadramento das forças armadas romanas fosse uniformemente
elevado1835.
Havia muito que se adoptara um meio para verificar as condições em que os soldados
e o seu equipamento se encontravam: a parada. Pouco se sabe, em concreto, que forma
assumiriam estas paradas, mas, no dia-a-dia, seriam conduzidas tendo por unidade-
base a centúria, um contingente de cavalaria ou um destacamento. De acordo com a
mencionada passagem de Flávio Josefo, vemos que os milites se apresentavam aos seus
centuriões. Eles talvez o fizessem alinhados em formatura, em amplos terrenos
concebidos para tal efeito, capazes de albergar uma unidade inteira, mas a verdade é
que não dispomos de testemunhos explícitos sobre isto. Flávio Josefo estabelece um
paralelo entre os soldados aguardando pelos centuriões e os movimentos dos clientes
visitando os seus patronos (BJ, 3.87). É provável que algumas destas reuniões tivessem
realmente lugar nos espaços entre os blocos das casernas. Curiosamente, os textos
renuntium de Vindolanda (relatórios diários), compostos poucas décadas após os
acontecimentos descritos pelo historiador judeu, foram escritos e apresentados pelo
optio, o adjunto do centurião, o que sugere que as inspecções diárias se efectuavam ao
nível de postos ou estações de serviço (e. g., Tab. Vind. III.574). Assim, não existia,
necessariamente, uma única parada «regimental» todos os dias.
O grau de atenção dispensado à limpeza do vestuário dependeria das circunstâncias
específicas de uma parada. Temos conhecimento de que se esperava que os centuriões e
decuriões possuissem registos actualizados das armas perdidas e garantissem que o
armamento das tropas estivesse em bom estado de conservação. Os textos renuntium
1834
E. L. Wheeler, «The laxity of Syrian legions», in D. Kennedy (ed.), The Roman Army in the East, Porstmouth/RI,
1996, pp. 229-276.
1835
I. Haynes, «Marking time: temporality, routine and cohesion in Rome’s armies», p. 115.
626
confirmam especificamente que os soldados estavam et impedimenta, isto é, «com o
seu equipamento»1836. As representações plásticas de militares produzidas a partir do
século II também os figuram muitas vezes a envergarem túnicas brancas. Ora estas
exigiam uma limpeza regular para terem bom aspecto, pelo que simbolizavam, em certa
medida, a riqueza e o poder relativos do soldado na sociedade à escala provincial 1837.
Para determinadas paradas era preciso, então, trabalho preparatório, o que tinha o
mérito de manter as tropas ocupadas, mas, na realidade, parte dessa tarefa poderia
muito bem recair nas suas famílias, serviçais e escravos. É de suspeitar, em particular,
que os calones que estavam ao serviço dos soldados de cavalaria deviam tratar
sobretudo da manutenção das selas e arreios das montadas. Se, como parece possível,
os seus deveres se estendiam igualmente ao cuidar do próprio equipamento militar ou
da recolha de lenha, fica-nos a impressão de que um cavaleiro desfrutaria de mais
tempo de lazer do que os seus camaradas de infantaria.
As inspecções diárias eram, sem dúvida, essenciais para mais coisas do que somente a
verificação do estado do equipamento. Documentos do século II, achados em Dura
Europos, aludem a enfermidades que afectaram homens pertencentes à cohors XX
Palmyrenorum. A necessidade de conhecer o número de soldados não operacionais,
que constituíam os grupos indiferenciadamente reunidos, na gíria militar britânica, sob
o rótulo de «doentes, aleijados e indolentes» era um aspecto que ocupava um
significativo lugar nos registos castrenses, à semelhança do que sucede nos exércitos
actuais. Documentos como o chamado «Hunt’s Pridianum», produzido pela cohors I
Hispanorum equitata veterana no século II, mostra que a indicação dos soldados
doentes e inaptos para o serviço era um elemento habitual nos relatórios anuais, o qual
permitia às altas autoridades apurarem com exactidão os efectivos nos seus exércitos
(P. Lond. 2851 = Fink 1971, nº 63).
No seio das próprias unidades, efectuavam-se relatórios mais periódicos em que se
reportavam a problemas que cedo poderiam conduzir a uma diminuição dos soldados
no activo: numa tabuinha de finais do século I, de Vindolanda, discrimina-se o número
de doentes (15), feridos (6) e dos que padeciam de inflamações nos olhos (10) no dia em
questão, 18 de Maio (Tab. Vind. II, 154, xxii-xxiv). A atenção dispensada às oftalmites,
problema muito comum no mundo antigo, é digna de nota (Horácio, Sat. 1.7.3, sobre
este fenómeno em Roma). Logicamente que tais inflamações oculares preocupavam o
comando num ambiente fechado como um acampamento ou forte, já que elas podiam
ser altamente contagiosas1838. Aos soldados forneciam-se pomadas (unguentos) para os
olhos, além de outros tratamentos mais recentes na medicina de então. Em
contrapartida, a massa dos camponeses não beneficiaria destes cuidados, pelo que
recorreria a «remédios» locais. Posto isto, as avaliações regulares dos soldados,
acompanhadas por copiosa documentação, ajudavam a que se pudessem tomar
medidas céleres para impedir o desenvolvimento e a propagação de enfermidades
virulentas.
Esta preocupação oficial pela saúde dos militares também se observa na nomeação de
médicos. Embora os arqueólogos experimentem dificuldades na identificação de certas
estruturas como correspondendo a hospitais ou enfermarias nos castra, preservaram-
se amplas evidências quanto à presença de médicos profissionais adstritos a unidades
de legionários e auxiliares. Houve quem tenha sugerido que as formas de medicina que
estes indíduos praticavam muito dependeriam das origens da unidade em causa, 1839
mas é algo que nos parece improvável. Na realidade, e situando-nos apenas no contexto
dos auxilia, as fontes primárias provam que os médicos militares prestavam assistência
a unidades de procedências muito diversas. Alguns medici estavam activamente
1836
A. K. Bowman e J. D. Thomas, The Vindolanda Writing Tablets. Tabulae Vindolandenses II, Londres, 1994, p. 75.
1837
S. T. James, «The community of soldiers: a major identity and centre of power in the Roman Empire», in P. Baker,
C. Forcey, S. Jundi e R. Witcher (eds.), TRACK 98: Proceedings of the Eighth Annual Theoretical Roman Archaeology
Conference, Oxford, 1999, p. 19.
1838
L. Allason-Jones, «Health care in the Roman North», Britannia 30 (1999), p. 137.
1839
P. A. Baker, «Medicine, material culture and military identity», in G. Davies, A. Gardner e K. Lockyear (eds.), TRAC
2000: Proceedings of the Tenth Annual Theoretical Roman Archaeology Conference, Oxford, 2001, p. 55.
627
envolvidos na discussão com a comunidade médica mais alargada a respeito da
adopção dos melhores métodos de tratamento. Atesta-se claramente este intercâmbio
entre as comunidades militares e civis: por exemplo, um medicus na ala Indiana
permaneceu por algum tempo na Germânia e, a seguir, viu-se transferido para a ala III
Asturum em África, antes de, finalmente, passar a atender pacientes civis em Itália
(CIL II 11.3087 = ILS 2542). As ideias postas em prática pelos médicos no serviço
militar podiam conhecer uma aplicação mais generalizada na esfera civil1840.
Neste sentido, os relatórios médicos achados em Dura Europos e Vindolanda
reflectem o significado para o indivíduo enquanto parte integrante do sistema militar. A
sua saúde inspirava muitos mais cuidados para as autoridades do que os simples
habitantes provinciais. Se bem que esta preocupação se apresentasse como sinal do zelo
imperial pelo bem-estar do soldado, a mesma obedecia a considerações pragmáticas e
não a razões de ordem humanitária. Também se velava pelo tratamento dos cavalos das
unidades militares, visto que os serviços médicos incluíam veterinários. Homens como
Gaius Aufidius, médico especializado em equídeos (hippiatros, que exerceu o seu ofício
na cohors I Thebaeorum equitata, no Egipto), deve ter trabalhado com os seus colegas
profissionais. Afinal, «homens e montadas eram igualmente bens imperiais» 1841.
Um óstraco do século II, descoberto em Mons Claudianus, ilustra as circunstâncias
mais mundanas da doença e da saúde no ambiente militar, sublinhando o cuidado em
averiguar o paradeiro dos soldados (O. Claud. 384): enviado por um curator, Valens, a
um decurião, o emissor adverte que um miles ausente do presidium desde as 17 00, que
estava doente, não reunia condições para cumprir os deveres que lhe tinham sido
atribuídos. O que mais salta à vista neste documento é a referência a uma hora concreta
do dia: este pormenor, afora demonstrar a rapidez com que se transmitiam as
informações, patenteia a dependência do exército em relação ao relógio. Até o ressoar
da trombeta tinha de ser medida de acordo com alguma unidade de tempo. Sabemos
que os relógios acabaram até por ser introduzidos em assentamentos relativamente
pequenos nas províncias, mas a sua importância para a rotina militar revestia-se de
especial significado. Nas fortalezas do império, o relógio «regimental» estava bem à
mostra; o mais frequente era encontrar-se nos muros dos próprios principia.
Uma inscrição de 218, descoberta no forte romano de Remagen, na Germânia Inferior,
lembra, no seu tom, os actos de evergetismo assinaláveis em muitas cidades romanas
(CIL XIII.7800): nela se declara que Petronius Athenodorus, comandante da cohors I
Flavia, mandou consertar o relógio de sol às suas expensas, dado que o último já não
indicava as horas correctamente. Justifica-se que perguntemos: estariam os seus
predecessores rotineiramente atrasados, entregues à lassidão ou disporiam de outros
relógios a funcionar no interior do forte?
O controlo do tempo, ao longo das horas a coberto da escuridão, requeria a cooptação
de outro elemento da antiga tecnologia, o relógio de água (clepsydra), para marcar a
passagem da noite1842. Aventou-se a hipótese de que um fragmento de liga de cobre,
achado em Vindolanda, pertenceria a um relógio de água anafórico, embora segundo
outra explicação talvez consistisse numa parcela de um calendário perpétuo. Os papiros
do Egipto e da Síria mostram que os soldados, e por vezes os civis, se serviam dos
relógios dividindo este tempo em quatro períodos ou turnos, o que só se conseguia
fazer com o recurso às clepsydrae. De entre os documentos recuperados em Mons
Claudianus (no Deserto Oriental do Egipto), aparecem escalas de serviços para a
guarda, elaboradas para homens que trabalhavam com o exército, mas aparentemente
sendo civis; cada documento contém uma lista de 8 indivíduos por noite e apontam-se
expressamente os numerais indicando quatro turnos 1843. Isto revela que os civis que
1840
E. g., Pedanius Dioscorides 1.4; R. W. Davies, «The Roman military medical service», Saalburg Jahrbuch 27 (1970),
pp. 84-104.
1841
I. Haynes, «Marking time…», p. 117.
1842
A. Johnson, Roman Forts of the First and Second Centuries AD in Britain and the German Provinces, Londres,
1983, p. 105.
1843
A. Bülow-Jacobsen, «Lists of Vigiles (309-356)», in J. Bingen, A. Bülow-Jacobsen, W. E. H. Cockle, H. Cuvigny e L.
Rubinstein, Mons Claudianus. Ostraca graeca et latina II. Claud. 191 à 416, Cairo, 1997, p. 165; O. Claud. 335, 336,
628
operavam na proximidade do exército também teriam de se habituar a estes sistemas
de ordenamento do tempo.
Para a organização de actividades durante períodos de tempo mais longos, o exército
precisava de utilizar calendários. Na «Casa E4» em Dura Europos, na Síria, é possível
vermos como isto funcionava ao nível das casernas. Numa das paredes do que parece
ter correspondido ao aposento de um oficial, os arqueólogos encontraram vestígios de
um calendário latino1844. Com as suas imagens esquemáticas de sete cabeças divinas,
recorda outro calendário idêntico ornamentado por sete divindades romanas, na razão
de uma para cada dia da semana, que se achou no outro extremo do mundo romano,
em Rottweil (Alemanha)1845. O que cabe realçar é os documentos de Dura Europos
provarem que se adoptaram vários sistemas de calendários distintos, mas no caso
acima mencionado o oficial responsável impôs que as vidas dos seus homens (e a sua)
decorressem de acordo com um sistema de dias com nomes latinos. Esta nomeação não
deixa de ser significativa, dado que a semana com sete dias tem origens pré-romanas, e
os nomes mais antigos conhecidos atribuídos a estes dias remontam aos Babilónios.
Estamos longe de saber quando é que se generalizou verdadeiramente a semana de
sete dias no império, e até que ponto este fenómeno esteve associado ao exército
romano. No entanto, subsistem indícios de que a semana com sete dias já seria
utilizada pelo exército romano em períodos mais recuados, como sugere o chamado
«Modius Claytonensis», uma unidade de medida que se descobriu perto do forte de
Carvoran, na Muralha de Adriano (RIB 2415.56): o carácter oficial deste vaso de bronze
atesta-se por uma inscrição com títulos imperiais, que permitem datá-lo de c. 90-91.
Como se verificou que a medida continha, na realidade, 17,5 sextarii (perto de 20
pintos [unidade valendo 56,825 cl]), e não os 16 sextarii típicos de um modius, houve
quem tenha defendido que se tratava de um artifício romano, com o propósito de
extrair mais cereais aos desafortunados Bretões do que a quantidade que estariam
obrigados a pagar. Porém, Mann1846 demonstrou que não se justifica tal explicação: este
historiador avançou com outra proposta mais credível; a medida seria ideal para
proceder à distribuição de cereais durante sete dias, com uma média de 2,5 sextarii de
grão por dia, valor muito próximo da quantidade que Políbio escreveu que os soldados
de infantaria recebiam para o mesmo período de tempo. Esta interpretação faz todo o
sentido, além de que também ajuda a perceber por que razão os títulos do imperador
surgem no vaso de bronze: era uma garantia simbólica de que os milites recebiam as
rações que necessitavam e, igualmente, uma maneira de lembrar que, tal como a
moeda, o pão diário provinha do próprio princeps1847.
Independentemente de se ter adoptado ou não um padrão regular da semana nos
fortes romanos, é altamente provável que se empregassem ciclos de treino baseados em
subdivisões de um mês em muitos castra. Vegécio advogava a realização de marchas de
dez em dez dias, ideia que o autor colheu em obras anteriores dedicadas a assuntos
militares. Também cumpre referir que Avídio Cássio, conhecido comandante
(assassinado em 175), estipulou que todos os soldados deviam exercitar-se com armas
pelo menos uma vez por semana (SHA/Hist. Augusta, Avidius Cassius 6.3)e, no século
III, Maximino-o-Trácio pôs, alegadamente, os seus recrutas a efectuar pugnas
simuladas de cinco em cinco dias (SHA/Hist. Augusta, Duo Maximi, 6.2), embora estes
dois relatos não mereçam grande credibilidade. Estas sessões de treino podiam,
decerto, apontar-se nos calendários, como o de Dura Europos E4, mas a sua existência
não nos ajuda necessariamente a compreender como se encaixariam na estrutura
temporal mais dilatada usada para a administração militar.
Porém, não resta dúvida alguma quanto à maneira como o tempo regulado se
empregava para manter os soldados em boa forma física, ocupados e sob controlo.
356.
1844
M. I. Rostovtzeff, A. R. Bellinger, C. Hopkins e C. B. Welles, The Excavations at Dura-Europos: Preliminary Report
of the 6th Season of Work (1932-33), New Haven, 1936, pp. 40-42, nº 622.
1845
P. Goessler,«Ein gallorömischer Steckkalender aus Rottweil», Germania 12 ( 1928), pp. 1-9.
1846
J. C. Mann, «A Note on the “Modius Claytonensis”», AA 5th serv. 12 (1984), pp. 242-243.
1847
I. Haynes, «Marking time […]», p. 119.
629
Fazendo eco das fontes que consultou, Vegécio (Ep. rei mil. 3.2) afirmou que desta
maneira se evitava que os soldados se amotinassem, acrescentando que os exercícios
militares diários eram «bem mais benéficos do que a medicina». Assim, uma vez mais,
todo o sistema reforçava-se a si próprio, assegurando que, pelo menos em teoria, os
exércitos de Roma permaneciam activos e fiéis. Note-se que em algumas unidades (ou
talvez todas), até dos serviçais dos soldados se esperava que adquirissem alguns
talentos marciais, incluindo a natação (Vegécio, Ep. rei mil., 1.10). Ora isto conduziria a
que também eles participassem nos programas de treino nos castra.
Muito já se escreveu acerca da importância das hierarquias enquanto instrumento
para a preservação da ordem nas forças armadas de Roma. Mais recentemente, vários
estudiosos exploraram o papel que as instalações militares desempenharam como
espaços organizados para manter o controlo sobre os milites. Todavia, estas duas
facetas dependiam do uso e da gestão do tempo, a fim de de garantir que os homens se
encontrariam ocupados e devidamente dirigidos, na medida em que o colapso da rotina
rapidamente podia ocasionar o colapso da ordem militar. Na opinião de Ian Haynes,
«O reconhecimento [deste facto] ditou as decisões e as actividades de muitos
comandantes ao longo dos tempos, mas a sagaz combinação de relógios, calendários e
documentos foi uma inovação que muito ajuda a explicar o êxito duradouro dos
exércitos de Roma»1848.
1848
Ibidem, p. 119.
630
«Os Romanos: implacáveis vencedores»
Não há muito, descobriu-se uma curiosa inscrição rupestre, no Sul da Jordânia, em que
se lê:
«Os Romanos vencem sempre. Eu, Lauricius, escrevo isto, Zeno»1849.
Quem quer que tenha gravado estas palavras, fosse um Romano a gabar-se ou um
auctótone ressentido, estava convencido da inevitabilidade da vitória romana. Com
efeito, a despeito de derrotas esporádicas, o exército romano levou a cabo, em termos
globais, campanhas bélicas bem-sucedidas para dilatar e proteger o império ao longo de
trezentos anos.
É relativamente fácil avançar com razões explicativas para o êxito dos «filhos de Marte»
na guerra, aludindo aos seus consideráveis recursos, à sua organização, à mão-de-obra
disponível, à disciplina, às armas, à liderança e, mesmo, a uma superioridade resultante
de muito treino, de uma alimentação salutar e regular, bem como de razoáveis
condições sanitárias. Estes factores terão concorrido para o sucesso dos Romanos, mas
nem sempre demonstraram ser suficientes1850. Assim, por exemplo, eles não
conseguiram estar à altura dos potenciais recursos humanos que tinham as tribos
situadas para lá do Reno e do Danúbio. Tácito notou que os Germanos não só possuíam
boa compleição física, como também os Chatti, em particular, dominavam até uma
qualidade tipicamente romana, a da disciplina no campo de batalha 1851.
Quanto ao comando, para diversos historiadores actuais, a maioria dos altos oficiais
compunha-se, em regra, de indivíduos sem grande instrução militar formal, embora os
centuriões pudessem fornecer elementos tão imprescindíveis como a consistência e a
experiência na condução das tropas 1852. No entanto, cabe relativizar esta visão 1853: com
efeito, quase todos os oficiais superiores numa legião eram homens qualificados pelo
seu nascimento ou pela riqueza, mais do que pela sua experiência marcial; posto isto,
não causa estranheza que os estudiosos frequentemente os rotulem de «amadores»,
mas o emprego deste vocábulo afigura-se enganador e os próprios Romanos nem
conseguiriam compreender tal noção: na realidade, os hábitos do comando e da
supervisão da administração seriam inculcados, desde a mais tenra idade neste género
de indivíduos que haviam crescido em mansões ou villae onde tinham dezenas, senão
1849
G. D. B. Jones, «From Brittunculi to Wounded Knee: a study in the development of ideas», in D. J. Mattingly (ed.),
Dialogues in Roman Imperialism. Power, Discourse and Discrepant Experience in the Roman Empire, Portsmouth, RI,
1997, p. 185.
1850
A. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 246-247.
1851
Tácito, Ann. III, 20-21.
1852
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 41.
1853
N.B. Rankov (cf. «Military Forces», p. 39).
631
mesmo, centenas de escravos, e cujas famílias possuíam extensas propriedades
fundiárias nas zonas rurais.
Muito do trabalho requerido na chefia de uma legião, em especial em tempo de paz,
pouco diferia das funções, deveres ou responsabilidades dos magistrados ou
funcionários estatais em Roma e nas restantes cidades do império. Aliás,
tradicionalmente, sob a República, os homens que os oficiais comandavam nas legiões
consistiam, muitas vezes, nos mesmos que eram seus clientes e para os quais
discursavam nas assembleias da Urbs. Esta situação veio a mudar no começo do
Principado, mas o ethos continuou a prevalecer: o que se requeria basicamente de um
oficial era auto-confiança e habilidade de impor respeito através de uma postura e um
carácter inatos.
A partir de finais do século III e princípios do IV da nossa era, os membros da ordem
equestre passaram a assumir a maior parte das responsabilidades militares, até aí
confiadas a senadores, o que levou à emergência de um ethos mais profissional, mas ao
mesmo tempo foi nesta fase que começou a dissipar-se a superioridade romana em
combate. Ainda que as tropas romanas estivessem mais bem armadas e protegidas do
que os seus inimigos, elas não dispunham de qualquer género de superioridade
esmagadora, como aconteceria se tivessem armas de fogo.
Além disso, o império não tomou iniciativas estratégicas ou diplomáticas de vulto que
garantissem uma total segurança. O território imperial consistia numa série de
províncias com base no Mediterrâneo, e o seu governo central lidava com problemas
militares concretos num regime ad hoc em diferentes zonas, sendo o espaço físico
controlado pelos Césares vulnerável a ataques que se realizassem simultaneamente em
várias frentes.
Até 300 d.C., o principal desenvolvimento táctico nas forças romanas consubstanciou-
se na criação de uma cavalaria mais forte (se bem que não seja claro até que ponto isto
tenha exercido um impacto significativo em combate) e no «exército de campanha», o
qual, em teoria, podia acompanhar o imperador numa expedição para uma
determinada região assolada por sérios problemas. No que respeita à disciplina, esta foi
usualmente bastante eficaz e, por vezes, viu-se rigorosamente imposta, haja em vista o
que sucedeu, no Norte de África, em 20 d. C., quando uma coorte legionária virou
costas e abandonou o seu comandante; o governador provincial aplicou, então, o
castigo tradicional, a decimatio, através do qual um em cada dez homens foi espancado
até à morte1854. No entanto, tudo leva a crer que a disciplina não se aplicaria de uma
maneira uniforme e sistemática, afirmando-se mais duramente no decurso de
campanhas1855.
De todos os factores acima mencionados, havia um mais importante que jogava a favor
de Roma: o exército romano era constituído por forças profissionais e permanentes,
dotado de um pragmatismo inexorável e dos recursos materiais necessários para
desgastar e vencer qualquer oposição numa campanha prolongada. Os inimigos que
não lograssem manter-se em campanha por bastante tempo podiam ser forçados a
livrar uma rápida batalha1856. Os soldados romanos tinham confiança na sua
superioridade e na vitória, uma vez que faziam parte de um exército cujo palmarés de
êxitos bélicos quedou demonstrado durante gerações a fio. Eles tinham, ademais, o
estímulo psicológico de geralmente tomar a iniciativa do ataque, facto perceptível pelas
tácticas ofensivas amiúde adoptadas pelos comandantes romanos, o que confirma, em
certa medida, a ideia da superioridade «inata» romana.
Mas tudo isto se escorava num conjunto de preparativos estritamente profissionais e
meticulosos, antes da realização de cada campanha, o que se assinala por meio das
missões de exploração e reconhecimento, pela utilização de colunas de marcha
dispostas de acordo com o terreno (prevendo a eventualidade de iminentes investidas
1854
Tácito, Ann. II, 20-21.
1855
J. B. Campbell, War and Society, p. 39.
1856
Problemas experimentados pelos Germanos e outros povos ao combaterem os Romanos: A. Goldsworthy, The
Roman Army at War, pp. 73-74.
632
do antagonista), bem como por técnicas de acampamento temporário ou permanente
rigorosamente empregues1857. Se as operações bélicas corressem mal, a coragem quase
rotineira do soldado romano, como salientou o experiente oficial Veleio Patérculo, bem
como a sua obediência à prática militar e a lealdade para com os seus camaradas,
podiam conduzir à vitória, mesmo até em casos em que lhe faltasse o comandante.
Numa situação perigosa durante a guerra desenrolada na Panónia, quando diversos
oficiais superiores e centuriões ficaram feridos e o exército se viu sob grande pressão,
«as legiões, soltando gritos de encorajamento uma para a outra, investiram sobre o
inimigo e, não satisfeitos em repeli-lo, ao arremeterem penetraram na linha de batalha
do último e averbaram uma vitória quando tudo parecia perdido» 1858.
Mal as legiões derrotassem o antagonista em batalha, o desfecho era violento e
implacável. Como não havia normas definidas para terminar uma contenda, quando a
oposição se desintegrava os Romanos dispunham livremente dos materiais, do povo
vencido e da sua terra, caso assim pretendessem1859. Por exemplo, no reinado de
Augusto, Marco Crasso perseguiu a tribo trácia dos Bastarnae praticamente até à sua
total aniquilação, enquanto a revolta dos Panonianos, em 6 d. C. foi jugulada com
extrema ferocidade1860. A seguir ao efémero motim do ano 14, Germânico conduziu as
legiões através do Reno para se redimirem:
«[Elas] devastaram a região a ferro e fogo, ao longo de 50 milhas. Não se mostrou piedade em função da
idade ou do sexo. Foram arrasados edifícios, tanto religiosos como seculares» 1861.
No ano seguinte, Germânico avançou inesperadamente contra os Chatti:
«Mulheres, crianças e velhos indefesos foram imediatamente capturados ou massacrados».
Depois, em 16 d. C., também sob o comando de Germânico, as tropas romanas
chacinaram os Cherusci:
«Os restantes foram indiscriminadamente massacrados. Muitos tentaram atravessar o Weser a nado,
vendo-se bombardeados por dardos, arrastados pela corrente ou esmagados pela pressão dos fugitivos e
pelo colapso das margens do rio. Alguns, vergonhosamente, buscaram escapar subindo para as árvores.
Quando eles se esconderam por entre as ramagens, os arqueiros divertiram-se ao abatê-los. Outros, por
seu turno, caíram, ao derrubarem-se as árvores. Foi uma grande vitória e tivemos poucas baixas. A
matança do inimigo prosseguiu desde o meio-dia até ao crepúsculo, e os seus cadáveres e armas ficaram
espalhados ao longo de cerca de 10 milhas» 1862.
1857
Quanto às operações de reconhecimento em território hostil e de recolha de informações, veja-se N. J. E. Austin e N.
B. Rankov, Exploratio. Military and Political Intelligence in the Roman World from the Second Punic War to the Battle
of Adrianople, Londres/Nova Iorque, 1995. Acerca dos acampamentos: L. Keppie, The Making of the Roman Army, pp.
36-38; A. K. Goldsworthy, The Roman Army at War, pp. 111-113. Relativamente ás colunas em marcha, Flávio Josefo
deixou-nos uma excelente descrição de como Vespasiano marchou rumo à Galileia (B. Iud., III, 115-126): em primeiro
lugar avançavam tropas auxiliares com armamento ligeiro e archeiros que serviam como batedores e lidavam com
ataques repentinos; a seguir, encontravam-se unidades de infantaria legionária (fortemente armadas) e um contingente
de cavaleiros, secundados por dez homens de cada centúria para descobrir e delimitar o local para o acampamento, além
de soldados munidos de apetrechos para desimpedir o caminho; mais atrás vinham as bagagens de Vespasiano e dos
seus oficiais, escoltadas pela cavalaria, depois o próprio general e a sua guarda pessoal, as unidades montadas das
legiões, o trem das máquinas de assédio, os legados, prefeitos e tribunos (protegidos por tropas escolhidas); depois,
estavam os aquiliferi e demais porta-estandartes, acompanhados de trombeteiros; a seguir marchava cada uma das
legiões, em filas de seis homens, enquadrada por um centurião que velava pela ordem durante a progressão; atrás das
mesmas, vinham serviçais, animais de tiro, as unidades apeadas de auxilia e, por fim, uma retaguarda composta de
infantaria ligeira e pesada, bem como de um destacamento de cavaleiros auxiliares – a este respeito, consulte-se P.
Connolly, Greece and Rome at War, p. 238. Observe-se igualmente o relato de F. Josefo da coluna de Tito em marcha
em direcção a Jerusalém (Bell. Iud., V, 47-50). Para o dispositivo concebido por Arriano, na marcha contra os Alani, cf.
Ectaxis, 1-11; B. J. Campbell, The Roman Army […] A Sourcebook, pp. 92-93; A. Goldsworthy, op. cit., pp. 105-111.
1858
2.112.6. Naturalmente que a tradição e as próprias lendas marciais estavam, muitas vezes, distanciadas da realidade.
Os Romanos gostavam de pensar que as suas tropas lutariam sempre até ao fim e, de facto, elas assim o fizeram com
bastante frequência (Tácito, Ann. 4.73; F. Josefo, B. J. VI, 185-188. No entanto, também se registaram situações
(raramente objecto de narrações) em que certas unidades se renderam face ao inimigo ou até debandaram
ignominiosamente (e.g. Tácito, Ann. 15.,16; Hist. 4.60).
1859
Havia, ainda assim, a possibilidade de se entabularem contactos diplomáticos: repare-se que a Primeira Guerra
Dácia, por exemplo, findou com a ratificação formal de um tratado de paz. Para esta vertente em geral, consulte-se B. J.
Campbell, «Diplomacy in the Roman world (c. 500 BC-AD 235)», Diplomacy and Statecraft 12.1 (2001), pp. 1-22.
1860
Díon Cássio, Hist. rom. 51.23-24.
1861
Díon Cássio, Hist. rom. 55.29-30; Veleio Patérculo, II, 115. Salientemos, também, que os Cântabros/Cantabri e os
Ástures/Asturi, na Hispânia, se viram submetidos à custa de enormes baixas (Díon Cássio, Hist. rom. 54.5, 11).
1862
Tácito, Ann.1.51.
633
Durante o principado de Domiciano, quando os Nasamones, uma tribo númida, se
rebelaram, o governador da Numídia obliterou-os, pura e simplesmente, incluindo os
não combatentes. O imperador terá comentado:
«Proibi que os Nasamones existam»1863.
Uma derrota em combate contra os Romanos era invariavelmente acompanhada pelo
extermínio ou deportação dos homens em idade militar, haja em vista o que Tibério e
Druso fizeram na Récia, em 15 d. C.:
«Como a região tinha uma grande população e parecia provável que se revoltasse, eles deportaram a
maioria dos homens em idade militar, deixando apenas alguma gente para povoar a terra, mas não a
suficiente para iniciar uma insurreição»1864.
Analogamente, na Panónia, Tibério escravizou e deportou todos os homens em idade
militar, devastando toda a área 1865. Por seu lado, o governador da Mésia, Pláutio Silvano
Aeliano celebrou, de entre as suas proezas obradas sob a égide de Nero, o facto de haver
«trazido mais de 100 000 transnubianos para o pagamento de impostos, juntamente
com as suas mulheres, líderes ou reis»1866.
Ocasionalmente, os Romanos mutilavam antagonistas. O historiador Floro (século II d.
C.) desprezava os povos estrangeiros e considerava que os inimigos selvagens só
podiam ser «domesticados» através dos seus próprios métodos. Referindo-se à guerra
contra os Trácios, ele comenta que «os cativos foram selvaticamente tratados por meio
do fogo e do gládio, mas os bárbaros pensavam que nada era mais terrível que deixá-los
com vida e as suas mãos decepadas e forçados a sobreviver ao seu castigo» 1867.
Os líderes de povos que se opusessem aos Romanos e não morressem nem se
suicidassem (como o fez Decébalo, rei da Dácia) durante uma campanha, estavam
muitas vezes condenados a partirem rumo a Roma, onde participavam nos cortejos
triunfais dos imperadores, depois vendo-se cerimonialmente executados. Vejamos um
exemplo:
«O cortejo triunfal [de Vespasiano e Tito] chegou ao seu termo junto do Templo de Júpiter Capitolino,
onde parou. Era um antigo costume aí esperar até que se anunciasse a morte do general do inimigo. Este
homem era Simão, filho de Gioras, que participara na procissão com os prisioneiros; então, colocou-se uma
corda à volta do seu pescoço e ele foi açoitado pela escolta à medida que o arrastaram até ao local perto do
fórum onde a lei romana determina que os condenados à morte pela sua vilania sejam executados. Quando
se anunciou que Simão estava morto, houve um clamor de aprovação e eles começaram os sacrifícios» 1868.
1863
Ibidem, 1.56.
1864
Ibidem, 2.17-18. Cabe advertir igualmente para o extermínio dos Bretões depois da derrota de Boudica: «Os
Romanos não pouparam sequer as mulheres. Os animais das bagagens também, perfurados por armas, juntaram-se às
pilhas de mortos» (ibidem, 14.37).
1865
Díon Cássio, Hist. rom. 67.4.6.
1866
E. M. Smallwood, Documents Illustrating the Principates of Gaius Claudius and Nero, Cambridge, 1967, nº 228;
para a tradução em ingles, cf. D. C. Braund, Augustus to Nero. A Sourcebook on Roman History 31 BC-AD 68,
Londres/Sydney, 1985, nº 401.
1867
I, 39.7.
1868
F. Josefo, B. J. VII, 153-155.
634
seres humanos que foram massacrados, mas até também cães cortados em dois e os
membros de outros animais cortados»1869
Num dos capítulos anteriores vimos que, sob o ponto de vista técnico, os Romanos
estavam muito bem equipados para efectuarem assédios, possuindo poderosas
máquinas, incluindo aríetes, anteparos (plutei) – feitos de vime e cobertos de couro
(para servir de protecção contra o fogo aos soldados enquanto trabalhavam – torres de
assalto, catapultas (que lançavam pedras) e engenhos que disparavam dardos e flechas
de grande comprimento, sendo especialmente versados na construção de linhas de
circunvalação e contravalação1870. A nível global, os métodos da poliorcética romana
não eram muito mais avançados do que os adoptados no período helenístico, mas o
exército romano distinguia-se pela sua resolução, persistência, pela competência
profissional e, igualmente, pela sua capacidade em permanecer em campanha durante
considerável espaço de tempo.
Graças a F. Josefo, dispomos de informações bastante detalhadas sobre o assédio de
Jerusalém, em 70 d. C. (que durou cinco meses), e o de Masada, sitiada por Flávio
Silva, operação que se arrastou por seis meses, terminando em 73 ou 74 1871. Em Masada,
ainda hoje é possível observarmos vestígios da circunvalação romana, dos oito
acampamentos de cerco, e de uma rampa (feita de terra e cascalho, sustentada
lateralmente por barrotes, pregados uns aos outros e preenchidos com cascalho; estas
«paredes eram construídas ao mesmo tempo que a rampa, evitando, assim, que o
conteúdo se espalhasse), a qual se ergueu até à base das muralhas da fortificação,
funcionando como plataforma de artilharia.
Se bem que em menor escala, o cerco de Jotapata reveste-se de interesse, ocorrendo na
fase inicial da mesma revolta judaica, em que o próprio Josefo, enquanto comandante,
defendeu a cidade contra as forças sitiantes de Vespasiano: os Judeus abrigados na
cidade tiveram de enfrentar três legiões romanas, apoiadas por tropas auxiliares e por
160 catapultas. Vespasiano recorreu a uma barragem de artilharia para afastar os
defensores das muralhas e impedi-los de atirar pedregulhos, o que permitiu a
construção de uma rampa. Josefo descreve como uma pedra arremessada por uma das
catapultas arrancou literalmente a cabeça de um homem, fazendo-a voar ao longo de
550 m. Os sitiados tentaram aumentar o tamanho das suas muralhas, mas em vão.
Quando a rampa atingiu suficiente altura, os Romanos fizeram subir um aríete,
começando a bater com ele de encontro a uma porção das muralhas. Os defensores
procuraram amortecer as pancadas, pendurando sacos de palha em frente do aríete,
mas os sitiadores resolveram utilizar foices na extremidade de varas compridas, para
assim cortar as cordas que sustentavam os sacos.
A certa altura, os Judeus lograram despedaçar a cabeça do aríete com uma grande
pedra e deitaram fogo à sua armação. Os legionários e os auxilia não foram capazes de
apagar as chamas, mas não deixaram de tentar salvar o aríete. Mais tarde, ao fim da
tarde, o aríete estava de novo operacional e retomaram-se os movimentos de percussão,
que continuaram pela noite dentro. Pouco antes de amanhecer, ruiu uma parte das
muralhas e, ao romper do dia, no meio de um clamoroso ressoar das trombetas e de
brados de guerra trovejantes, os legionários atacaram, mas foram repelidos. Vespasiano
mudou então a táctica do assalto e mandou erigir três torres revestidas de ferro, a partir
das quais se podia dirigir uma barragem constante contra os defensores da cidade.
Alteou-se a rampa até ultrapassar a altura das fortificações.
Ao alvorecer, após 47 dias de assédio, os Romanos conseguiram abrir uma brecha e
colocaram pranchas de madeira para aceder ao interior. Enquanto os Judeus se
encontravam assoberbados pelo assalto generalizado sobre as muralhas, os legionários,
utilizando a característica formação da «tartaruga» (testudo), através da qual punham
os escudos por cima das suas cabeças, construindo uma espécie de «telhado»,
1869
X, 15, 4-6.
1870
Para a guerra de assédio, consultem-se, entre outros: G. Webster, The Roman Imperial Army, pp. 230-245; P.
Connolly, Greece and Rome at War, pp. 292-300.
1871
Jerusalém: F. Josefo, B. J. V, 54-56-VI, 409. Massada: ibidem, VII, 252-253, 275-406.
635
penetraram pela brecha, embora os inimigos tenham despejado azeite a ferver sobre
eles, além de azeite líquido na passagem de acesso, para a tornar escorregadia 1872. Eis o
que aconteceu a seguir:
«Naquele dia os Romanos massacraram toda a gente que encontraram. Nos dias subsequentes, andaram
à procura de esconderijos e vingaram-se sobre os que se haviam refugiado em abóbadas subterrâneas e
cavernas. Não pouparam ninguém, não ligando à idade, exceptuando crianças e mulheres. Reuniram-se
1200 prisioneiros e o número total de mortos, tanto durante a conquista final como nos combates
anteriores, estimou-se em 40 000. Vespasiano ordenou que a cidade fosse completamente arrasada e se
incendiassem todos os fortes»1873.
Embora Flávio Josefo possa ter exagerado um pouco no que toca ao impacto dos
estragos provocados pelas catapultas romanas, o seu relato não deixa de constituir um
bom indicador do pânico que estes engenhos de guerra geravam entre gente não
familiarizada com os mesmos.
É indiscutível que os Romanos não tinham escrúpulos ao lidar com povos que se
revelassem obstinados ao resistir-lhes. Frontino, um distinto senador que exerceu
vários postos de comando militar e foi governador da Britânia (73/4-77), na sua
colecção de estratagemas militares, cita diversos métodos para pôr termo a uma guerra
depois de se livrar uma batalha vitoriosa. Os três exemplos que ele evoca mostram que
a utilização de cabeças decapitadas de inimigos perseguia o intento de intimidar os
sobreviventes que persistiam em resistir: assim, Frontino descreve como o famoso
general Domício Corbulão (Domitius Corbulo), ao sitiar Tigranocerta, na Arménia,
conseguiu «persuadir os defensores da cidadela a claudicarem:
«[ele] executou Vadandus, um dos nobres que capturara, mandou lançar a sua cabeça por meio de uma
catapulta, enviando-a para o interior das fortificações adversas. Aconteceu que ela caiu precisamente no
meio de uma reunião de conselho que os bárbaros tinham organizado, e a visão da mesma [a cabeça], como
se de um mau presságio se tratasse, aterrorizou-os tanto que se renderam apressadamente» 1874.
Naturalmente que os Romanos recorriam a outros meios para infundir o terror,
designamente em muitos recontros de pequena escala, dos quais raramente temos
conhecimento pelas fontes antigas. Quando os habitantes da cidade de Uspe, na actual
Crimeia, propuseram capitular, «os vitoriosos Romanos rejeitaram isto porque era
cruel chacinar homens que se haviam rendido e difícil de arranjar guardas para vigiar
tanta gente (aproximadamente 10 000 pessoas). Era melhor que perdessem as suas
vidas na própria guerra. Assim, os soldados, que escalaram as muralhas através de
escadas, receberam a ordem para os matar»1875.
A eliminação meticulosa e sistemática perpetrada pelas tropas romanas dos inimigos
que buscavam abrigo dentro de praças-fortes contribuía para causar uma impressão de
um enorme poder aniquilador irrefreável, e, no caso de Uspe, surtiu um efeito
psicológico fortíssimo sobre os povos vizinhos: «A destruição de Uspe provocou terror
nos outros. Armas, fortificações, montanhas e obstáculos, rios e cidades, tudo foi
igualmente vencido»1876. De facto, as consequências a nível económico e social de se ser
derrotado por Roma podiam ser incalculáveis, ideia que se vê expressa por Flávio
Josefo quando condena a futilidade da revolta judaica de 66 d. C., num discurso
colocado na boca do rei Agripa II:
«Ireis fechar os olhos ao império romano e não reconheceis a vossa própria fraqueza? Não aconteceu já
que as nossas tropas foram muitas vezes derrotadas até por povos vizinhos, ao passso que o seu exército [o
romano] é invencível em todo o mundo?»1877.
Em 70 da nossa era, os Judeus assistiram, impotentes, à destruição da sua capital
histórica e do grande templo, ficando em Jerusalém uma legião aboletada em regime de
1872
F. Josefo, B. J. III, 141-339, esp. 271-278.
1873
Ibidem, 336-338. F. Josefo e quarenta das pessoas mais notáveis e influentes esconderam-se num subterrâneo:
quando foram descobertos, Josefo tentou render-se, mas os companheiros não deixaram. Explicou-lhes que era vontade
de Deus que ele sobrevivesse, mas os outros não ligaram às suas palavras, os quais, pouco depois, decidiram suicidar-se.
Josefo foi o único a ficar vivo: rendeu-se aos Romanos e, em paga por ter traído o seu povo, foi poupado.
1874
Strat. II, 9.2-3, 5.
1875
Tácito, Anais, XII, 17.
1876
Ibidem.
1877
B. J. II, 362. Quanto à atitude de Flávio Josefo em relação à guerra, vejam-se: T. Rajak, Josephus. The Historian and
his Society, pp. 78-103; M. Goodman, The Ruling Class of Judaea. The Origins of the Jewish Revolt against Rome AD
66-70, Cambridge, 1987, pp. 5-25.
636
permanência. O dinheiro anteriormente fornecido pelos Judeus para a manutenção do
templo passou a ser arrecadado por um tesouro especial romano 1878.
O elo final na cadeia do êxito bélico romano radicava numa organização eficaz do
aprovisionamento e da logística, componentes essenciais, como vimos, para apoiar um
exército em campanha. Tomando em consideração as limitações tecnológicas do
mundo antigo, os Romanos parecem haver estado, de longe, bem mais à frente dos
povos contra os quais lutaram. A este respeito, Tácito, embora reconhecendo que as
forças partas possuíam certas qualidades, criticou-as pela sua falta de capacidade em
montar assédios e pelos seus fracos serviços de abastecimento militar 1879.
Apesar de não terem sobrevivido muitos testemunhos específicos ilustrativos de como
os Romanos organizavam a logística no decurso das suas campanhas, dispomos de
suficiente documentação que nos fornece uma visão de conjunto bastante
esclarecedora1880. Se bem que o exército pudesse transportar todos os seus víveres e
equipamento, isto revelava-se assaz incómodo e retardava a sua marcha. Assim,
utilizava amiúde depósitos de aprovisionamento e colunas de víveres (que eram
vulneráveis e necessitavam de escoltas para as proteger). Ambas as opções implicavam
o emprego de grande quantidade de vagões, carroças e de animais de tracção. Embora
transportasse alimentos e forragens, um exército romano podia subsistir na região
onde se encontrasse, desde que fosse na altura certa do ano, recorrendo a contingentes
encarregados de recolher comida1881. Para que as forças militares romanas fossem
regularmente abastecidas, afigurava-se imprescindível a existência de uma rede
impressionante de estradas, que garantia a fluidez do trânsito das provisões destinadas
às mais diversas unidades1882. Além disso, a dominação romana do Mediterrâneo e dos
principais rios da Europa permitia que o transporte se efectuasse através das frotas
imperiais1883.
O imperador tentava manter, a todo o custo, os seus soldados relativamente
confortáveis e satisfeitos, enquanto, por outro lado, os últimos provocavam destruições
maciças e enormes privações aos inimigos de Roma. Os princeps, ao fazer isto, não só
se preocupava em mantê-los abastecidas como também acantonados em fortes
permanentes, velando pelas suas condições de vida materiais. Tibério, por exemplo,
numa altura em que ainda não era imperador, esforçou-se por agradar os seus oficiais,
no intento de tornar as campanhas militares mais toleráveis, e para o efeito cedeu-lhes
o seu médico pessoal, a liteira, a cozinha e as suas instalações de banhos privados 1884.
Como veremos mais detidamente no próximo capítulo, para um miles gregarius, afora
a alimentação e o vestuário, beneficiar de eficientes cuidados médicos era algo que
assumia grande importância psicológica. Tradicionalmente era fundamental que os
Romanos tratassem dos soldados feridos e doentes, aspectos que tomaram em séria
consideração.
Um bom comandante partilhava as adversidades com os seus homens e passaria à
ignominiosa condição de infame se abandonasse os seus feridos. Tácito, a propósito,
critica veementemente Cesénio Peto (Caesennius Paetus), tanto por se ter rendido aos
Partos em Rhandeia, como por bater em retirada de uma maneira vergonhosa:
«Num dia, Paetus marchou 40 milhas, abandonando os feridos ao longo do caminho. Esta fuga,
provocada pelo pânico, não foi menos desonrosa do que debandar do campo de batalha» 1885.
Por último, se um miles ficasse estropiado ou inválido por causa de ferimentos ou de
algum género de enfermidade, tinha o direito de dispor de uma pensão de aposentação
1878
B. M. Levick, Vespasian, Londres/Nova Iorque, 1999, p. 101.
1879
Ann. 11.9, 12.50.
1880
Vertente que exploramos no capítulo seguinte.
1881
Sobre esta matéria, remetemos para duas monografias já citadas:J. Roth, The Logistics of the Roman Army at War
(264 BC-AD 235).
1882
R. Chevalier, Roman Roads, edição revista, Londres, 1989, cap. 3.
1883
B. J. Campbell, War and Society in Imperial Rome, pp. 49-50.
1884
Veleio Patérculo, II, 114.
1885
Ann. 15.16.
637
proporcional ao grau da sua invalidez e tendo em conta os anos que servira no
exército1886. Assim, tanto quanto possível, os soldados viam-se protegidos contra a
pobreza, e vale a pena salientar que este tipo de medidas não constituiu prática comum
em diversos exércitos do mundo até tempos comparativamente recentes.
Mas os militares de todas as idades tinham, forçosamente, de enfrentar a morte em
combate. Na inscrição da estela funerária de Marcus Caelius, oriundo de Bononia
(actual Bolonha, Itália), deparamos com uma história concreta de tragédia pessoal e,
também, de compaixão e de lembrança: Caelius, que ocupou o posto de centurião,
perdeu a vida na tremenda derrota sofrida pelas três legiões de Varo em 9 d. C.; nunca
se chegou a identificar o seu corpo, pelo que os restos mortais foram possivelmente,
inumados no próprio local da batalha pelas tropas do exército de Germânico, em 15 d.
C. O seu cenotáfio, erigido pelo seu irmão no acampamento militar situado perto de
Vetera (Xanten, Alemanha), inclui uma representação esculpida em baixo-relevo de
Caelius com o seu traje militar, exibindo a típica vitis centurial e as suas condecorações
(torques e phalerae), fixas à couraça, por actos de bravura (FIG. )1887:
M(arco) Caelio T(iti) f(ilio) Lem(onia tribu) Bom(onia)/(centurioni) leg(ionis) XIIX ann(orum) LIII
s(emissis)/[ced]cidit bello Variano ossa/[in]ferre licebit P(ublius) Caelius T(iti) f(ilius)/Lem(onia tribu)
frater fecit.
«Marcus Caelius, filho de Titus, da tribo Lemonia, de Bononia, centurião da legio XVIII, com 53 anos e
meio de idade, pereceu na Guerra Variana. Concedeu-se autorização para depositar os seus ossos dentro
[do monumento]. Publius Caelius, filho de Titus […], seu irmão, isto fez»1888.
Os soldos
Como referimos, Augusto redefiniu o estatuto do soldado, mas sem subir o nível do
salário que fora estabelecido por Júlio César. Os soldos mantiveram-se inalterados até
ao reinado de Domiciano, que os aumentou em 1/3, por volta de 83 d. C. Assim, o
montante da remuneração-base do legionário passou de 225 para 300 denários por ano
(Suetónio, Domiciano, 7; Díon Cássio, Hist. rom. 67.3,5). Mais bem pagos, os
1886
B. J. Campbell, The Emperor and the Roman Army, 31 BC-AD 235, pp. 311-314.
1887
A ladear a figura do centurião encontram-se os bustos dos libertos do defunto, M. Caelius M. I. Privatus e M.
Caelius M. I. Thiaminus.
1888
CIL XIII 8648 = ILS, 2244. Para um estudo minucioso deste monumento, veja-se H.-J. Schalles e S. Willer, Marcus
Caelius: Tod in der Varusschlacht, Darmstadt, 2009. As palavras bello Variano gravadas no epitáfio constituem a única
referência epigráfica conhecida às campanhas de P. Quinctilius Varus a leste do Reno.
638
cavaleiros legionários e auxiliares auferiram de 7/6 desse valor, ao passo que os
infantes auxiliares receberam 5/6. Este aumento representou mais que uma mera
reactualização remuneratória depois da Guerra das Gálias: veio a servir para oficializar,
também, o crescente peso político do exército no Império, bem manifesto aquando das
guerras civis de 68-69 d. C.
Por outro lado, as coortes pretorianas eram, de longe, as tropas com melhores soldos:
se nos fundamentarmos nos donativa de Augusto à guarnição de Roma, podemos
calcular o montante dos soldos anuais dos pretorianos e dos urbaniciani em 750 e 375
denários, respectivamente, em 14 d. C. Os primeiros receberam possivelmente 1000
denários anuais por altura da medida decretada por Domiciano.
Em finais do século II e princípios do III, houve mais dois aumentos nos soldos: sob o
reinado de Septímio Severo, por volta de 197, e, depois, no do seu filho Caracala,
provavelmente em 2121889. Tem-se discutido muito a importância destes dois factos, já
que os testemunhos de Díon Cássio (Hist. rom. 75.2, 5; 77.24, 1), da História Augusta
(Vida de Septímio Severo, 12) e de Herodiano (História, III, 8, 4; IV, 4, 7) não
fornecem pormenores sobre a matéria. Com base sobretudo em J. Jahn e M. A. Speidel,
o fundador da dinastia terá aumentado o valor anual do soldo-base dos legionários para
2 400 sestércios (cada stipendium ascendendo a 800 sestércios, o que representaria
uma subida de 100%), e o seu filho elevou-o para 3 600 sestércios (cifrando-se o
stipendium em 1200, o que correspondeu a um aumento de 50%). Aparentemente, os
soldos mantiveram-se estáveis ao longo do século III, se nos ativermos aos papiros de
Panópolis (Egipto), que remontam ao reinado de Diocleciano.
É possível que Septímio Severo e, depois, Caracala, tenham aproveitado estas
sucessivas subidas dos montantes dos soldos para alinharem progressivamente as
remunerações dos auxilia em relação às dos legionários1890. Assim, ambos os
imperadores tomaram em consideração a diminuição da diferença de estatuto entre
estes dois corpos de tropas, bem como as dificuldades que se registavam no
recrutamento de auxiliares desde a difusão da concessão da cidadania romana.
Mas Septímio Severo terá realmente enriquecido os soldados, além de recomendar aos
seus filhos, no seu leito de morte, que se preocupassem apenas com os militares, como
nos conta Dião Cássio (Hist. rom. 76.15, 2)? Na realidade, o aumento dos soldos serviu
para compensar, e mesmo assim a custo, os efeitos da inflação. Foi o motivo pelo qual
Septímio Severo também distribuiu os donativa, através dos despojos obtidos nas
guerras contra os Partos. Díon Cássio e Herodiano reflectem, lembremos, o ponto de
vista das elites do Império, que experimentavam ao mesmo tempo desprezo e temor
face aos soldados, encarando-os quase como bárbaros, na medida em que muitos deles
eram recrutados entre as populações dos confins do território imperial. Neste sentido,
estes autores taxaram de «demagógica» uma política cujo objectivo consistia em tornar
o ofício das armas ainda atractivo. Com efeito, desde o reinado de Marco Aurélio, as
guerras, mais frequentes e habitualmente mais defensivas, diminuíram o número de
vocações.
O montante das remunerações dos oficiais não se comparava de modo algum ao dos
simples soldados e dos graduados que recebiam uma vez e meia, o dobro ou o triplo do
montante-base. Ao examinarmos as estimativas de B. Dobson e M. A. Speidel, um
centurião auxiliar e um decurião terão recebido o quíntuplo, um centurião legionário
quinze vezes mais e um primus pilus sessenta vezes mais no começo do Império. No
entanto, estes soldos não foram, talvez, aumentados dentro das mesmas proporções
que o salário-base do simples legionário ao longo do tempo.
1889
R. Develin, «The army pay rises under Severus and Caracalla and the question of the annona militaris», Latomus
(1971); J. Jahn, «Zur Entwiclung römischer Soldzahlungen von Augustus bis auf Diokletian», Studien zu den
Fundmünzen der Antike 2 (1984); M. A. Speidel, «Roman Army Pay Scales», JRS 82 (1992), p. 88, «Table I», 97ss; B. J.
Campbell, The Roman Army … A Sourcebook, pp. 20-21, «Table I».
1890
M. P. Speidel, «The pay of the auxilia», JRS 63 (1973), pp. 141-147. No tempo de Septímio Severo, nos auxilia, um
infante (miles cohortis) recebia anualmente 2000 sestércios, e um cavaleiro (eques cohortis) 2 400; sob a égide
Caracala, os primeiros passaram a auferir de 3000 sestércios e os últimos 3600 por ano.
639
Na época imperial, os oficiais equestres e senatoriais recebiam igualmente um
emolumento, que se pode avaliar indirectamente: o denominado «Mármore de
Thorigny» (CIL XIII, 3162), menciona uma soma de 25 000 sestércios em ouro, o que
corresponderia a metade ou, até, à totalidade da remuneração do tribuno semestris
(nomeado para um período de seis meses) Titus Sennius Sollemnis. De qualquer modo,
este valor devia ser inferior às remunerações do primeiro escalão dos procuradores
equestres: 60 000 sestércios. Quanto aos oficiais senatoriais, recebiam possivelmente
mais do que os da ordem equestre, mas menos do que os procônsules das províncias de
África e Ásia que, segundo Díon Cássio, usufruíam de 1 milhão de sestércios no início
do século III (Hist. rom. 88.22, 5).
A análise da documentação papirológica sugere que o viaticum pago aos recrutas se
elevaria a 75 denários no século II: equivalia, portanto, a 1/3 do soldo anual de um
legionário, montante que, ao que parece, seria o mesmo para todos os corpos de tropas.
Ele representava, de facto, um subsídio contingente para os tirones, cujos anos de
serviço se contabilizavam normalmente a partir de 1 de Março, a seguir ao seu
arrolamento. Este pecúlio permitia-lhes cobrir todas as despesas antes de 1 de Maio do
mesmo ano. Com efeito, o soldo era pago em três ocasiões – 1 de Janeiro, 1 de Maio e 1
de Setembro. Se a viagem do recruta fosse longa, o viaticum não bastava para suprir a
todos os custos com o equipamento. Por esta razão é que, no princípio do século II, o
marinheiro Claudius Terentianus, recrutado primeiramente para a frota de Alexandria
e, depois, transferido para uma coorte auxiliar, escreveu a seu pai, Claudius Tiberianus,
pedindo que lhe enviasse vestuário e parte do seu equipamento, para evitar ter de
adquiri-los novamente (P. Mich. 467, 468).
Em meados do mesmo século, um cavaleiro da Ala Veterana Gallica pediu
emprestados 50 denários para o pagamento das suas armas, comprometendo-se a
devolvê-los na altura em que receberia o seu primeiro stipendium, que só poderia ter
lugar nas calendas de Janeiro, de Maio ou de Setembro, após a sua probatio (P. Fouad
45). O pagamento do stipendium em datas fixas ocorria durante uma cerimónia
peculiar, que Flávio Josefo descreveu, ao narrar o assédio de Jerusalém em 70 da nossa
era (B. J. V, 349-351).
Por vezes, um oficial superior transportava consigo os fundos necessários para o
pagamento das tropas, aquando de viagens de inspecção das guarnições militares: foi o
que sucedeu, por exemplo, com Arriano, legado da Capadócia, cujo relatório
apresentado ao imperador da sua visita às unidades estacionadas junto ao mar Negro é
conhecido como Périplo do Ponto-Euxino (VI, 1-2; X, 3). De facto, em teoria, cabia ao
tesouro imperial a manutenção do exército, mas na prática, geralmente não era preciso
enviar a partir de Roma a totalidade do numerário necessário, até porque isto envolvia
grandes distâncias a percorrer e demasiados gastos.
Na realidade, nas províncias imperiais onde se concentrava a maior parte das unidades
do exército, existia uma arca destinada a recolher o produto das receitas fiscais, gerida
por um procurador imperial (Estrabão, Geog. III, 4, 20). Este, alternativamente,
também podia deslocar-se para distribuir o stipendium pelas tropas acantonadas na
província em que exercia funções. Mas o mais usual era o envio de um destacamento
com a missão específica de levantar o dinheiro dos soldos nas repartições do
procurador e o transportar até ao local de aquartelamento de uma unidade.
Os papiros de Dura Europos1891 permitem que reconstituemos a organização material
implícita ao pagamento do soldo, uma vez que contêm registos dessas missões,
obedecendo a uma ordem cronológica, nas listas dos efectivos da XXª coorte auxiliar
Palmyrenorum: numa primeira etapa, um contingente com uns trinta homens
apresentava uma estimativa das necessidades da unidade em numerário ao procurador
1891
A respeito deste rico corpus documental, consultem-se: C. B. Welles et al., (eds.), Excavations at Dura Europos:
Final Report V, Part I: The Parchments and Papyri, New Haven, 1959. Para uma análise e uma interpretação rigorosas
sobre os papiros descobertos em Dura Europos, consulte-se a tese para a obtenção do grau de PhD de J. Austin, Writers
and Writing in the Roman Army at Dura Europos, College of Arts and Law, University of Birmingham, 2010: no
capítulo 1, Austin tece comentários esclarecedores sobre a Cohors XX Palmyrenorum e a vida no forte (pp. 33-45), no 2,
intiulado «Writing in the Camp», são abordados os diversos usos da escrita e o seu papel na administração quotidiana
(pp. 47-60), e no 5, um exame meticuloso e critico sobre o conteúdo dos papiros (pp. 62-77).
640
(P. Dura, 95; ChLA, VII, 350, 1 e 2); depois, levava-se o dinheiro da estrutura
administrativa do procurador até ao acantonamento das tropas. Uma escolta, composta
por infantes e cavaleiros, assegurava a protecção desse grupo de soldados no seu
percurso; depois da entrega do stipendium, um número mais reduzido de militares
dirigia-se à sede do procurador, fornecendo-lhe a lista do pagamento dos soldos para
verificação (documento provavelmente arquivado num «gabinete»). Para esta tarefa, o
P. Dura 95 só menciona quatro homens, o que não causa estranheza, visto que não
carecia de protecção especial, nem do recurso a animais de carga.
Aprovisionamento e logística1892
À semelhança do pagamento dos soldos pelas arcas do fisco que estivessem localizadas
mais perto do local de aboletamento das tropas, a organização do aprovisionamento
militar foi também concebida de molde a limitar, o mais possível, a transferência de
capitais para regiões muito distantes: assim, em cada stipendium descontavam-se as
quantias destinadas à alimentação e ao equipamento dos soldados. Posto isto, os
militares não dispunham da totalidade dos seus stipendia. Ademais, retinha-se metade
dos donativa que os mesmos recebessem do imperador no santuário das insígnias da
respectiva unidade, o qual se situava no centro dos principia do acampamento: este
dinheiro aí se mantinha até ao licenciamento de um soldado, dando-se-lhe o nome de
seposita. Em caso de morte, esse numerário era atribuído aos seus herdeiros.
Por outro lado, os militares podiam depositar igualmente uma parcela do seu
viaticum e do seu stipendium, a que se chamava deposita. As rações e a organização
destas poupanças, forçadas ou encorajadas, foram objecto de comentários por parte de
Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 20):
«Os Antigos haviam estabelecido sabiamente que metade dos donativa distribuídos pelas
tropas se depositasse nas insígnias, por medo de que os soldados viessem a dissipar tudo em
deboche e outras despesas tolas. A maioria dos homens, sobretudo os pobres, vai gastando à
medida que recebe; assim, é para o próprio bem dos soldados que se coloca este dinheiro sob
sequestro. Mantidos à custa do Estado, pouco a pouco, eles fazem da metade dos donativa um
fundo para as suas necessidades, e não pensa, de maneira alguma, em desertar; prendem-se
mais às insígnias, defendem-nas com acrescido ardor, animados que estão por esta tendência do
coração humano, que nos torna tão cuidadosos em relação aquilo que nos permite subsistir. Os
donativa eram divididos em dez bolsas, uma para cada coorte: cada legião punha ainda um
undécimo para a sepultura comum; e se um soldado falecesse, daí se retirava dinheiro para
custear o seu funeral».
A documentação papirológica (por exemplo, o P. Columbia, inv. 325) corrobora este
testemunho. Com efeito, determinados recibos e relatórios de contas de soldados
aludem a esses depósitos (PST, IX, 1063; ChLA, III, 208). Os P. Berl. 6866, P. Aberd.
133 e P. Reinach 2222 aos mesmos se referem sob a rúbrica lorictitis ou loricem.
Segundo Roy W. Davies1893, tal como o tesouro imperial deposto junto da estátua
couraçada de César no Palatino, ou talvez no seu forum, os dois vocábulos reportavam-
se às efígies couraçadas dos imperadores, que se encontravam no mesmo santuário que
as insígnias, local onde os soldados também prestavam o culto imperial. Este recinto,
repleto de símbolos, escolhido para albergar os seposita e os deposita servia para
1892
Para este assunto existem diversos estudos: J. P. Adams, Logistics of the Roman Imperial Army. Major Campaigns
in the First Three Centuries AD, dissertação defendida na Universidade de Yale, em 1976; idem, «Supplying the Roman
army: O. Petr. 245», ZPE 109 (1995), pp. 119-124; D. J. Breeze, «Supllying the army», in G. Alföldy et al. (eds.), Kaiser,
Heer und Gesellschaft in der römischen Kaiserzeit. Gedenkschrift für Eric Birley, Estugarda, 2000, pp. 59-64; P.
Erdkamp, «The corn supply of the Roman armies during the principate (27 BC-235 AD)», in The Roman Army and the
Economy, Amsterdão, 2002, pp. 47-69; P. Herz, «Zur Logistik des römischen Heeres von der mittleren Republik bis
zum Ende der hohen Kaiserzeit (241 v. Chr-235 n. Chr.): Forschungen und Tendenzen», Militärgeschichtliche
Zeitschrift 63 (2004), pp. 115-151; J. Roth, «Logistics and the legion», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), Les légions de
Rome sous le Haut Empire, Lyon, 2000, pp. 707-710.
1893
Cf. «Ratio and opinio in Roman Military Documents», Historia 16 (1967), pp. 115-118.
641
designar os signiferi, ou seja, aqueles que se responsabilizavam pelas insígnias de cada
manípulo (signa) e as guardavam.
Ao longo do século I e no início do II d. C., todas as despesas respeitantes ao
aprovisionamento militar faziam-se mediante retenções na fonte: o soldado recebia o
seu equipamento e a sua comida do exército, o qual, por sua vez, lhe entregava um
stipendium reduzido em função dos descontos. Em todas as unidades,
independentemente de qual fosse o corpo de tropas (legiões, auxilia, frotas ou a
guarnição de Roma), afigurava-se, pois, imprescindível a existência de elementos
contabilísticos detalhados que comportasse o montante que cada soldado recebia. Os
papiros latinos Genebra 1 (81 d. C.) e 4 (cerca de 84 d. C.) mostram esta realidade: o
anverso do primeiro discrimina as contas individuais de dois soldados de infantaria,
certamente auxiliares, no espaço de um ano, enquanto o segundo papiro, assaz
mutilado, conserva aparentes vestígios da conta de um legionário. Nestas fontes, a
seguir à indicação da recepção do stipendium aparecem habitualmente quatro rúbricas:
foi o enunciado destas no primeiro papiro que permitiu restituí-las no segundo;
consistiam em deduções feitas no soldo, referentes a artigos diversos -
faenaria/«feno», in victum/«víveres», caligas fascias/«sandálias e correias», in
[vesti]torium, in vestimentis, ou in vesti[tu]m/«vestuário».
Não sabemos ao certo se o feno, pago pelas tropas de infantaria, serviria para forragem
dos animais utilizados nas equipagens do trem ou, então, para fazer a enxerga em que
os soldados dormiam. No entanto, se nos basearmos no teor do P. Yadin 722, o
desconto realizado no soldo de um cavaleiro para alimentar a sua montada era
geralmente chamado hordiaria («para a cevada»).
À primeira vista, o que causa mais estranheza é a ausência de descontos idênticos no
que concerne ao fornecimento de armas nestes documentos. Na realidade, a retenção
nos soldos para tais gastos ocorria uma primeira vez por altura da incorporação do
recruta, e só excepcionalmente se renovava, na medida em que os militares não teriam,
forçosamente, necessidade de mudar de armas durante o seu tempo de serviço. Apenas
se atesta uma dedução de numerário para este efeito noutra fonte contabilística (P.
Faium, 105; ChLA, III, 208, datando entre 120 e 140 d. C.), embora não consigamos
apurar se o soldado em causa, Dyonisius de seu nome, decerto cavaleiro auxiliar da ala
Veterana Gallica, corresponderia a um recruta ou, então, se não o era e precisasse de
substituir uma arma já danificada. Neste caso, o desconto feito na remuneração
funcionava como uma caução, dado que os soldados, como anteriormente se disse, não
eram proprietários das armas que utilizavam: pelo contrário, deviam devolvê-las
quando terminassem o serviço militar.
Gravados em elmos, gládios e noutras peças do equipamento militar, descobriram-se
também os nomes de cinco utilizadores sucessivos. À semelhança dos seposita e dos
deposita, a caução em troca das armas era entregue aos signiferi, como se constata ao
examinar o mesmo papiro do Faium. Assim, quando fosse desmobilizado, Dionysius
poderia recuperar a soma de 103 denários que ele depositara, ao restituir o seu
equipamento. Estes dados numéricos proporcionam, então, indicações preciosas sobre
o valor da panóplia de um soldado romano sob o Alto Império 1894. A importância
referida representava quase o equivalente a um ano de soldo de um tropa auxiliar de
infantaria. É certo que Dionysius terá provavelmente servido na cavalaria, visto que
pertenceu a uma turma, pelo que o seu equipamento seria um pouco mais dispendioso
que o de um infante. De qualquer modo, e mesmo que esta ordem de grandeza se
afigure aproximativa, uma tal soma não era, de forma alguma, uma ninharia.
Consequentemente percebe-se o interesse que os veteranos tinham em devolver as
armas e o exército, por seu turno, em recuperá-las. Em caso de morte, o dinheiro podia
até destinar-se aos herdeiros dos militares defuntos.
Nas suas Historiae (2.67), Tácito descreve os pretorianos entregando as «suas» armas
aos tribunos das coortes. Verdade se diga que, deixar estes veteranos peritos em
técnicas de combate e habituados a matar, com todo o seu armamento, representaria
1894
P. Cosme, L’armée romaine, pp. 135-136.
642
uma ameaça para a segurança interna do Império: basta atentar na legislação
respeitante aos desertores, plenamente ilustrativa quanto a este facto.
No entanto, havia excepções, designadamente entre determinados grupos de auxiliares
germânicos e bretões, cujos costumes ancestrais previam a inumação dos guerreiros
com as suas armas. Encontraram-se algumas destas sepulturas. Neste caso, os defuntos
(ou os seus herdeiros) terão renunciado à recuperação do valor da caução, depositada
aquando do arrolamento, ficando ele proprietário dessas armas. Ao todo, as deduções
no soldo poderiam representar entre 2/3 e 3/4 do montante anual.
No seu conhecido livro L’armée romaine et l’organisation des provinces ibériques
d’Auguste à l’invasion de 409 (Bordéus, 1982), P. Le Roux tentou avaliar as
necessidades dos soldados no que respeita ao aprovisionamento, tanto em termos
quantitativos como em qualitativos. Os estudos mais recentes têm vindo a sublinhar
um facto – a alimentação dos militares era mais variegada do que anteriormente se
supunha, embora os cereais nela ocupassem um lugar essencial 1895. Os últimos, para
além de salutares, podiam ser armazenados com facilidade por longos períodos sem se
estragarem: o que os soldados mais consumiam era o trigo, embora, por vezes, se
recorresse à cevada, designadamente para alimentar tropas submetidas a castigos
devidos a infracções. O trigo era moído e preparava-se sob a forma de papas ou então
cozia-se, dele se obtendo pão ou bolachas (que se comiam habitualmente no decurso
das campanhas).
Quanto ao consumo de carne, designadamente, de toucinho, estava longe de ser
irrisório. Também se consumiam legumes secos (favas e lentilhas) e até frescos,
conforme se verifica no teor dos ostraca descobertos no Egipto, no forte de Krokodilo,
decifrados por H. Cuvigny1896). Nos dias de festividades, a alimentação 1897 via-se
melhorada com peixe, mariscos (sobretudo no caso de guarnições situadas na faixa
litoral ou perto de rios), peças de caça, frutos e artigos de pastelaria. Calculou-se que
um simples soldado consumiria 393 kg de trigo por ano, o que corresponderia à
produção de uma superficie agrícola de 4 323 hectares para uma legião, e de 378
hectares para uma coorte quingenaria. Quanto às necessidades em azeite, talvez
equivalessem a uma ânfora por ano. Afigura-se mais arriscado fazer uma estimativa do
consumo de vinho, na medida em que os militares bebiam mais frequentemente a
posca, mistura de água com vinagre.
Com base na descoberta de marcos que delimitavam os prata legionis, especialmente
na Hispânia e na Dalmácia, alguns investigadores aventaram a hipótese de os soldados
explorarem, directa ou indirectamente, as terras por sua própria conta. Contudo,
actualmente, a maioria dos historiadores refuta a veracidade de uma ideia extraída de
uma passagem da Vida de Severo Alexandre (58), na História Augusta, segundo a qual
teria podido servir no exército romano uma espécie de camponeses-soldados. Quando
muito, no quadro da repartição habitual das missões no seio de uma guarnição, certos
militares talvez se vissem temporariamente afectos a tarefas agro-pastorais, - como os
pecuarii, que se encarregavam do gado, e os destacamentos reunidos para se proceder à
ceifa (CIL VIII, 4322; ILS, 2484).
No seu trabalho sobre o territorium legionis, F. Bérard1898 demonstrou que não existia
um regime de propriedade particular para o exército: este recebia, simplesmente, o
usufruto de terras públicas que, por sua vez, se podiam dividir em várias parcelas,
nestas se obtendo a madeira, a água e as forragens necessárias. Além disso, o exército
tinha a possibilidade de erigir termas e explorar pedreiras nessas mesmas zonas. Seja
1895
Sobre a dieta militar, bem como os requisitos nutritivos dos alimentos, as rações e as quantidades, consultem-se: R.
W. Davies, «The Roman militar diet», Britannia 2 (1971), pp. 122-142; idem, Service in the Roman Army, Edimburgo,
1989, pp. 187-206, 283-290; L. Foxhall e H. A. Forbes, «Sitometreia: The role of grain as a staple food in classical
antiquity», Chiron 12 (1982), pp. 41-90; P. Erdkamp, Hunger and the Sword, pp. 27-45; J. Roth, The Logistics of the
Roman Army at War, pp. 7-59.
1896
Ostraca de Krokodilô. La correspondance militaire et sa circulation, Cairo, 2005.
1897
Refira-se que a comida era invariavelmente condimentada com sal.
1898
«Territorium legionis: camps militaires et agglomérations civiles aux premiers siècles de l’Empire», Cahiers du
Centre Gustave Glotz 3 (1993), pp. 75-105.
643
como for, hoje em dia os historiadores tendem a relativizar cada vez mais a alegada
auto-suficiência que as guarnições romanas possuiriam. É certo que este ideal autárcico
inspirou muito o tratado de Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 11).
O exército só deve ter gozado de certa autonomia no abastecimento das armas, já que
em tempo de paz, se reutilizavam os materiais dos utensílios bélicos danificados para
fabricar outros nas oficinas1899 dos acampamentos e fortes, quando as unidades
militares se encontrassem em regiões desprovidas de recursos minerais ou de tradições
metalúrgicas. Durante largo tempo, as armas achadas no subsolo de recintos militares
foram interpretadas basicamente como perdas involuntárias e acidentais por parte dos
soldados. Se, por um lado, tal explicação é plausível em relação a peças mais pequenas
do equipamento, como os anéis de cotas de malha, ela parece bem improvável para os
objectos mais volumosos e importantes como um gládio ou uma espada. Um exame
atento mostra que tais peças se encontravam danificadas ou defeituosas, razão pela
qual terão sido descartadas pelos seus utilizadores; ademais, estas peças foram
descobertas nos estratos arqueológicos que comportam maior quantidade de resíduos,
escórias e detritos metálicos. É de supor que tais armas, consideradas inutilizáveis, se
colocavam em montes de entulho intencionalmente, podendo, em alguns casos,
recuperar o seu metal para o fabrico de novos utensílios bélicos.
Em alguns locais onde foram instaladas bases militares romanas, a massa metálica
que os arqueólogos encontraram, que se destinava à reciclagem, atinge proporções
verdadeiramente impressionantes. É relativamente frequente a mesma haver sido
acumulada em valas que, de seguida, foram cobertas. Este fenómeno aparece
caracteristicamente em acampamentos ou fortalezas que as unidades do exército
romano abandonaram, sendo o material destruído metodicamente para evitar que
caíssem nas mãos do inimigo. Antes de partirem, os responsáveis pela oficina da
guarnição levavam com eles o máximo possível de reservas metálicas, mas, como é
lógico, viam-se obrigados a deixar para trás uma parcela in situ, já que representariam
um peso adicional muito incómodo para tropas em marcha.
Em regra, os historiadores modernos preferiram explorar o tópico dos circuitos
comerciais induzidos pelo abastecimento do exército em detrimento de outros aspectos.
Ademais, mesmo no tocante ao armamento, atesta-se também a existência de artífices
civis através da aposição das suas marcas de manufactura nos gládios ou nas bainhas,
enquanto nas fabricae dos acampamentos ou fortes militares, uma determinada
distribuição de tarefas não permitia a entrega de armas para reparação a um artesão
particular.
A presença de militares recebendo soldos regulares produzia, com efeito, um impacto
económico apreciável sobre a região onde eles estavam acantonados, como bem o
demonstrou M. Reddé1900 quanto à Gália num artigo recente, tanto mais que eles
beneficiavam de isenção de impostos, facto corroborado pelas tarifas descobertas em
fontes epigráficas do Norte de África, mais propriamente em Zarai (CIL VIII,
4508=18643) e em Lambaesis (AE, 1914, 234; CIL, VIII, 18352), o que significava um
incentivo suplementar para o consumo.
Neste sentido, não admira que se desenvolvessem aglomerações civis na vizinhança
dos acampamentos, fortalezas ou dos fortins. Elas surgem na documentação epigráfica
das províncias renanas e danubianas, rotuladas de canabae e vici (atrás mencionadas):
tradicionalmente, o primeiro vocábulo estava mais associado às legiões, e o segundo
aos auxilia. Contudo, deve relativizar-se esta distinção demasiado compartimentada, já
que o étimo canabae possuiria, quiçá, um significado menos oficial e jurídico do que o
de vicus. Embora não possuindo o estatuto de cidades, estes assentamentos
comportavam instituições civis, «quase municipais» segundo F. Bérard. Evidencia-se
tal facto igualmente fora do contexto das regiões do Reno e do Danúbio, haja em vista o
1899
M. C. Bishop, «The military fabrica and the production of arms in the early principate», in M. C. Bishop (ed.), The
Production and Distribution of Roman Military Equipment, BAR S275, Oxford, 1985, pp. 1-42.
1900
«Vt eo terrore commeatus Gallia aduentantes interciperentur (Tácito, Hist., V, 23). La Gaule intérieure et le
ravitaillement de l’armée du Rhin», Revue des etudes Anciennes 113 (2011), pp. 489-509.
644
caso da Tripolitânia, objecto de estudo por parte de R. Rebuffat 1901, na área circundante
do acampamento romano de Bu Njem, onde havia um aglomerado que ocuparia uma
quinzena de hectares (ainda que as palavras vicus e canabae não apareçam aí
consignadas).
Conhecemos inegavelmente melhor como o Estado provia os soldados de comida e de
equipamento sob o Alto-Império do que na época republicana. Efectivamente, a
natureza das fontes, antes do século I d. C., não nos permite apurar ao certo se as
requisições impostas aos civis sempre seriam reembolsadas. Em papiros já da nossa
era, observam-se recibos de requisições e, num deles, alude-se a um reembolso: em 161,
uma egípcia entregou, por intermédio do seu irmão, um recibo a um decurião
concernente à aquisição de dois dromedários (P. Gen. 35); em 130, um cavaleiro da ala
Veterana Gallica acusa a recepção de forragens destinadas às montadas do conjunto da
sua turma, entregues contra pagamento (P. Lond. 482); em 199, foi todo o nomo de
Arsinoe que recebeu dinheiro do fisco imperial pelos fornecimentos que prestou ao
exército. Esta modalidade de aquisição forçada pelo Estado, a chamada coemptio, era
por vezes aplicada na obtenção de peças de vestuário. Também se descobriram
vestígios desta prática noutras paragens do território imperial, mas lamentavelmente,
os documentos são quase ininteligíveis, por haverem sofrido muito com os efeitos da
usura do tempo.
Normalmente, a organização do aprovisionamento militar alto-imperial, bem como o
pagamento do soldo, faziam parte das atribuições dos procuradores financeiros que
representavam o imperador nas províncias. Assim, eles recebiam instruções detalhadas
do princeps a respeito de tal assunto. Como testemunho, dispomos de uma carta de
Domiciano para um seu procurador, Claudius Athenodorus, que foi gravada em Hama,
na Síria, na qual se regulamenta a utilização da vehiculatio e o recurso às requisições
(IGLS, V, 1998, l. 1-5, 17-30):
«Extracto das ordens do Imperador Domiciano César, filho de Augusto, Augusto, para o
procurador Claudius Athenodorus […] Ordeno-te, então, que te certifiques também que
ninguém requisite animais de carga se não tiver uma autorização por mim entregue; pois que é
muito injusto que a influência pessoal ou o estatuto de qualquer um que seja permita que se
efectuem as requisições, as quais ninguém, salvo eu próprio, tem o direito de autorizar. Assim,
que nada aconteça que provoque obstáculos à minha ordem e comprometa esta medida assaz
útil para as cidades – uma vez que é justo acudir às províncias exauridas que, com dificuldade,
provêm às suas necessidades; que pessoa alguma oprima, de maneira contrária à minha
vontade, e que ninguém requisite um cocheiro se não dispuser da minha permissão […] se os
camponeses são incomodados, as terras não serão cultivadas».
Certos géneros consumidos pelos soldados eram ocasionalmente procedentes de
regiões distantes, em especial produtos mediterrânicos como o azeite e o vinho, para as
guarnições na Britânia, no Reno e no Danúbio. Nestas regiões bastante arborizadas, as
tropas não encontrariam decerto trigo em suficiente quantidade, além do facto de a
densidade populacional nas primeiras ser reduzida, pelo menos no início do Império.
Assim se percebe que muitos acampamentos e fortes se instalassem na proximidade de
rios, para facilitar o seu abastecimento. No entanto, a presença militar serviu para
estimular o desenvolvimento agrícola em províncias como a Britânia e a leste da Gália
Bélgica.
Relativamente à questão da remonta, importa frisar que as unidades de cavalaria
também não gozavam de autonomia. De facto, a necessidade de seleccionar cavalos de
qualidade surge sublinhada por todos os autores antigos que se interessaram pelo papel
militar da cavalaria1902. Para se arranjarem as montadas, por vezes era preciso trazê-las
de bem longe, de zonas conhecidas por terem bons equídeos, como, por exemplo, a
Capadócia. Na escolha dos mesmos empregavam-se métodos que lembram os aplicados
na selecção dos recrutas.
1901
«L’armée romaine à Gholaia», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer, und Gesellschaft in der
römischen Kaiserzeit: Gedenkschrift für Eric Birley, Estugarda, 2000, pp. 227-259.
1902
R. W. Davies, «The supply of animals to the Roman army and the remount system», Latomus 28 (1969), pp. 429-
459.
645
É possível recriar, nas suas grandes linhas, este processo através dos arquivos da
cohors XX Palmyrenorum, estacionada em Dura Europos, o que também dava lugar a
troca de missivas entre comandantes de unidades e governadores provinciais. O
comandante da unidade solicitaria primeiramente ao governador a substituição de
alguns cavalos, proporcionando pormenores identificativos sobre estes. Não
sobreviveram cartas sobre esta matéria, mas no exemplar que melhor se preservou das
respostas dadas pelo governador de Coele-Síria constatamos que as montadas eram
simplesmente atribuídas a cavaleiros concretos e descritos por sinais particulares,
desde a idade, a cor, cicatrizes, manchas, etc (P. Dura 56, ChLA VII, 311, 16 de Março-
17 de Agosto de 208 d. C.).
Esta primeira afectação dos cavalos, aprovada pelos serviços do governador tinha,
ademais, o nome de probatio, como a dos tirones1903. Ela incluiria quase de certeza um
exame básico veterinário. Depois, tal como os recrutas, os cavalos viam-se submetidos
a um treino intensivo, evocado por Tácito (Germ. 6), por Díon Cássio (Hist. rom.49.30)
e por Vegécio (Epit. rei mil., I, 10; II, 23), e ao qual Arriano consagrou toda a sua
Tactica (4). Só após este adestramento é que o exército adquiria definitivamente os
cavalos. Nesse momento, então, eram registados (signati) nas listas da unidade, por
baixo dos nomes dos cavaleiros a quem haviam sido atribuídos. Em consonância com o
mesmo princípio aplicável ao abastecimento das armas, os cavaleiros tinham de pagar
uma caução que, segundo julgamos, seria fixada (aestimatus) pelo procurador
financeiro da província em causa. Estes elementos estão exarados num documento que
provavelmente consistiu num justificativo enviado ao governador (P. Dura, 97; ChLa,
VII, 352, em 251 d. C.). À semelhança do recrutamento de homens, vários responsáveis
controlavam o processo de selecção dos cavalos: O comandante da unidade, o
governador da província e o procurador financeiro do imperador.
Mas sucedia também que as provisões militares, bem como a entrega das montadas,
eram, pura e simplesmente assimiladas a um imposto em espécie. Estas requisições
gratuitas, que podiam estender-se ao próprio alojamento dos soldados (hospitium),
vieram a tornar-se sistemáticas em tempo de guerra e desenvolveram-se sobretudo nas
campanhas militares do século III d. C. Elas podiam ser confiadas pelo imperador (bem
como a logística de uma campanha) a encarregados de missões extraordinárias, os
praepositi annonae (ou copiarum) expeditionis: eram, geralmente, oficiais do ordo
equestre que chefiavam as tropas que protegiam os comboios de aprovisionamento.
Ao estudar a carreira de um dos praepositi designados por Domiciano, Plotius
Grypus, pertencente ao ordo senatorial, F. Bérard1904 colocou sérias reservas quanto à
existência de um verdadeiro serviço central de intendência militar, que outros autores
entenderam que esse imperador, ou Trajano, teria criado. Porém, os prefeitos do
pretório teriam possivelmente certas responsabilidades neste domínio específico, e
quando o imperador partia em campanha, via-se acompanhado de um séquito de
amigos e conselheiros, os comites, cujo albergamento estava previsto na planta dos
acampamentos (Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 10).
1903
K. Dixon e P. Southern, The Roman Cavalry, from the First to the Third Century AD, Londres, 1992, pp. 78-86; N.
Fields, Roman Auxiliary Cavalryman AD 14-193, Oxford, 2006, p. 24.
1904
«La carriere de Plotius Grypus et le ravitaillement de l’armée impériale en campagne, Mélanges de l’École Française
de Rome-Antiquité, 96 (1984-1), pp. 259-324.
1905
Sobre este aspecto: P. Cosme, Armée et bureaucratie dans l’Empire romain (de la Guerre Sociale aux Sévères), tese
dactilografada, Université de Paris I, Paris, 1995; A. K. Bowman, «The Roman imperial army: Letters and literacy on the
northern frontier», in A. K. Bowman e G. Woolf (ed.), Literacy and Power in Ancient World, Cambridge, 1994, pp. 109-
125; S. E. Phang, «Military Documents, Languages, and Literacy», in P. Erdkamp (ed.), A Companion to the Roman
Army, pp. 286-305.
646
Se bem que não houvesse verdadeiramente um organismo central de intendência, a
complexidade das operações de tesouraria – compreendendo o pagamento dos soldos,
a distribuição das provisões militares e a gestão dos fundos depositados pelas tropas –
supunha necessariamente a presença, a nível local, de um pessoal suficientemente
competente para levar a cabo estas tarefas administrativas, oscilando o seu número em
função do tamanho das guarnições. Atrás dissemos que os soldados que dominassem a
escrita, a leitura e o cálculo aritmético podiam esperar promoções com mais rapidez e
facilidade do que os seus camaradas1906. As fontes arqueológicas, epigráficas e
papirológicas deixaram vestígios da «topografia», do pessoal e das práticas desta
«intendência militar». Em termos financeiros, as responsabilidades dos porta-
insígnias, atrás evocadas acerca do dilectus, obrigavam-nos a efectuar uma escrupulosa
contabilidade dos fundos que lhes eram confiados. Eis o que escreveu Vegécio
(Epitoma de rei militaris, II, 20):
«Todas estas somas estavam sob a guarda dos porta-insígnias: por isso é que se escolhiam para
esta função indivíduos de reconhecida fidelidade, capazes não só guardar o seu depósito, mas
também de fazer a cada um a dedução daquilo que lhe pertencia».
Deles, provavelmente, emanaram os documentos contabilísticos, extractos de contas e
recibos conservados em papiros, que actualmente permitem que logremos reconstituir
o montante e o processo de pagamento dos soldos. Os dados que os signiferi deixavam
registados serviam igualmente para se precaverem contra acusações que se lhes fossem
imputadas de malversações ou desfalques.
A par dos depósitos individuais dos soldados, cada unidade possuía também os seus
próprios fundos, guardados na quaestura do acantonamento, cuja denominação
derivava da função exercida pelos questores no exército romano durante a época
republicana. De acordo com o P. Dura 60 B, verificamos que tal serviço estava
relacionado com o procurador financeiro do imperador na província. Este papiro
contém a cópia de uma circular de Marius Maximus, governador da Síria em princípios
do século III d. C., dirigida ao procurador Minucius Martialis, nela solicitando ao
último que tomasse a seu cargo os cuidados com a viagem, através da província, de um
embaixador parto. Após a recepção por Martialis, este enviou exemplares da carta para
os comandantes das unidades estacionadas perto do caminho percorrido pelo
plenipotenciário estrangeiro, ordenando-lhes para que fizessem as adequadas
diligências em termos de alojamento e de provisões. Consequentemente, a circular
destinou-se aos quaesturae dos numeri, ou seja, às «intendências dos destacamentos»:
«Marius Maximus, aos tribunos, prefeitos, prepostos dos destacamentos. Saudações. Junto
envio uma cópia da carta que escrevi a Minucius Martialis, procurador dos nossos Augustos,
para vossa informação. Cópia (conforme o original). Trata, tu mesmo e a intendência dos
destacamentos, dos sítios por onde passar Gocés, o embaixador dos Partos, que foi enviado aos
nossos senhores, os corajosíssimos imperadores, no sentido de lhe entregar os presentes de
acordo com o costume. Escreve-me a seguir quanto ao que for gasto em cada destacamento:
Gazica, Appadana, Dura, Eddana, Biblada»1907.
Os informes contabilísticos descobertos no forte romano de Vindolanda1908 terão sido
igualmente realizados pela intendência desta instalação militar. Se, por um lado, se
manteve o nome de quaestura, por outro, a administração dos fundos e dos recursos
das guarnições deixou de ser, sob o Império, assegurada por um magistrado assistido
pela sua familia pessoal: a tarefa passou a recair num soldado que desse mostras de ser
muito competente, ostentando ele também, ao que parece, o título de quaestor (CIL,
III, 798; 1369; 1396; ILAlg, II, 6877; AE, 1912, 5; 1950, 16; 1967, 371).
1906
M. A. Speidel, «Specialisation and promotion in the Roman imperial army», in L. de Blois (ed.), Administration,
Prosopography, and Appointment Policies in the Roman Empire, Amesterdão, 2001, pp. 50-61.
1907
Sobre esta fonte, cf. M. L. Chaumont, «Un document méconnu concernant l’envoi d’un embassadeur parthe vers
Septime Sevère (P. Dura 60 B)», Historia 36 (1986), pp. 422-447.
1908
A. K. Bowman e J. D. Thomas, «A militar strength report from Vindolanda», JRS 81 (1991), pp. 62-73; J. N. Adams,
«The language of the Vindolanda writing-tablets: An interim report», JRS 85 (1995), pp. 86-134.
647
Segundo uma inscrição descoberta em 1965, perto de Filipos (Philippi), na Macedónia
(AE 1969-1970, 583), em que se descreve a carreira de um soldado da cavalaria
legionária, Tiberius Claudius Maximus, havia provavelmente nas legiões um quaestor
suplementar, adstrito à gestão dos fundos reservados para a manutenção das unidades
montadas. Foi, aliás, a contabilidade do quaestor equitum da legio II Gallica que
Plínio-o-Moço deve ter estado incumbido de controlar durante o exercício do seu
tribunato militar semestral (Plínio-o-Moço, Cartas, VII, 31).
Nos acampamentos de legionários da época republicana, ao lado do questor estava um
jovem pertencente à ordem equestre em começo de carreira, que dirigia os serviços
«técnicos (oficinas, engenharia militar, equipagens e até a enfermaria) e era qualificado
de praefectus fabrum1909. Esta prefeitura dos operários, que não se deve confundir com
a direcção de um collegium profissional de ferreiros ou de artífices metalúrgicos num
contexto municipal, subsistiu durante o Império, ainda que levante muitos pontos de
interrogação aos estudiosos. Aparentemente, os prefeitos dos artífices desempenharam
cada vez mais o papel de ajudantes-de-campo dos comandantes das legiões, bem como
dos magistrados ou promagistrados que os empregavam em missões de confiança. B.
Dobson1910 e S. Demougin examinaram os prefeitos dos artífices que Cláudio nomeou
aquando dos seus consulados e da sua expedição de conquista da Britânia em 43 d. C. O
que se conclui é que os laços entre as oficinas (fabricae) dos acampamentos ou dos
fortes e o praefectus fabrum (título que se tornou acrescidamente honorífico, até
desaparecer no início do século III) deixaram de ser tão estreitos com o decorrer do
tempo.
O exemplo do referido P. Dura 60 B ilustra a importância da correspondência epistolar
na logística militar romana. Além disso, o serviço de correios (cursus publicus1911)
concebido por Augusto destinou-se, acima de tudo, à transmissão de despachos
militares. Esta tarefa foi primeiramente garantida por iuvenes a cavalo, agrupados em
collegia nas cidades de Itália e das províncias, que, de etapa em etapa, se iam
revezando. Depois, Augusto optou por recorrer a um único correio para cada missão
(Suetónio, Vida de Augusto, 49). O último viajava então numa carroça puxada por
mulas, substituindo os animais nas mutationes previstas para o efeito (estando elas
separadas umas das outras em intervalos de cerca de 15 km) e pernoitando em
pousadas, as denominadas mansiones (situadas entre cada 30 a 36 km). Estas
mutationes, mansiones e stabuli eram mantidas pelas cidades da península itálica e das
províncias. Quanto aos veículos, estavam sob a alçada de um prefeito (praefectus
vehiculorum), geralmente da ordem equestre, cujo primeiro titular conhecido remonta
ao reinado de Nero.
O conjunto dos serviços postais encontrava-se nas mãos dos prefeitos do pretório
(mais tarde sob a alçada do magister officiorum) e do próprio imperador. Importa
frisar que o prefeito dos veículos não dirigia a posta imperial: em princípio, ele talvez se
achasse adstrito à organização do abastecimento militar por via terrestre e à requisição
das carroças necessárias1912. Para se ter acesso a estas, assim como às mutationes e às
mansiones, era preciso dispor de um diploma imperial: neste, a indicação do dia e da
hora da expedição permitia controlar a velocidade de entrega do correio (tarefa levada a
cabo por um tabellarius ou um veredarius1913) à chegada. Através da correspondência
trocada entre Plínio-o-Moço e Trajano (Cartas, X, 45-46), depreende-se que todos os
governadores provinciais teriam anualmente ao seu dispor uma certa quantidade de
diplomas em branco, que se poderiam utilizar em função das circunstâncias.
1909
E. Sander, «Der praefectus fabrum und die Legionsfabriken», BJ 162 (1962), pp. 139-161.
1910
«The Praefectus Fabrum in the Early Principate», in Britain and Rome, 1966, pp. 61-84.
1911
Para esta matéria, remetemos para a obra (antiga mas profícua) de H. G. Pflaum, Essai sur le cursus publicus, Paris,
1940, e para um estudo bem mais recente de P. Stoffel, Über die Staattspost, die Ochsengespanne und die requieserten
Ochsengespanne, P. Lang, série III, vol. 5950, Berna-Frankfurt, 1994.
1912
S. Crogiez-Pétrequin, «Poste (Cursus publicus): Empire romain», in J. Leclant (dir.), Dictionnaire de l’Antiquité, p.
1780. Em termos concretos, o papel do praefectus vehiculorum seria bastante limitado, consistindo essencialmente em
supervisionar os transportes e velar pelo bom funcionamento do «parque» dos veículos, não tendo autoridade sobre os
mensageiros, nem a possibilidade de obter as permissões postais ou de organizar as requisições.
1913
Podendo tratar-se, consoante os períodos históricos, de soldados, escravos ou libertos.
648
Desde 1976, ano em que se publicou o texto de um édito de Sextus Sotidius Strabo
Libuscidianus, legado da Galácia (documento que remonta aos anos 14-15 da nossa era,
achado inserido numa inscrição em Sagalassos, cf. SEG, XXVI, 1976-1977, nº 1392),
passámos a conhecer com maior precisão a prática da vehiculatio: tratava-se,
essencialmente, de senadores e cavaleiros que exerciam funções ao serviço do
imperador, assim como de militares a partir do posto de centurião. Os correios
empregues consistiam, usualmente, em soldados escolhidos entre os immunes,
portadores do título de speculatores e, mais tarde, de frumentarii.
No que concerne aos despachos militares, o cursus publicus previa mesmo um
encaminhamento mais rápido das más notícias («cartas escritas à pluma») do que das
boas, traduzindo-se o ritmo de velocidade média em 70 a 80 km por dia, isto se nos
ativermos a Juvenal (IV, 148-149) e a Estácio (Silvae, V, 1, 85-93). Era, pois, normal
que o exército contribuísse para o funcionamento deste serviço, guardando as estradas
utilizadas pelos veículos do cursus publicus e, mais em especial, dos principais
cruzamentos da rede viária. Através de duas cartas do procurador imperial de Coele-
Síria, Aurelius Rufinus, dirigidas ao tribuno da XXª coorte auxiliar Palmyrenorum,
chamado Iustillus, sabemos que os soldados de Dura Europos estavam possivelmente
destacados numa estação do cursus publicus, identificada pela presença de muleteiros,
em Appadana (P. Dura 64, ChLA VI, 319).
Para levarem a bom termo as missões, os correios da vehiculatio teriam provavelmente
listas onde se enumeravam as postas (estações de muda de cavalos e outros solípedes) e
as etapas; terá sido a partir de tais listas, compiladas e reutilizadas sobretudo desde o
Baixo-Império, que nasceram os itinerários puramente textuais, de que o mais célebre é
o Itinerário de Antonino, além de outros figurativos, como o «escudo» de Dura
Europos (que cabe mais assimilar a um périplo), e mais tarde, a chamada «Tábua de
Peutinger». Estas fontes tardias atestam os laços que existiam entre o exército e a posta
imperial, na medida em que nelas se indica ainda a localização de certas guarnições.
Em Roma, o pórtico de Agripa, no Campo de Marte, onde estava exposta uma
representação alegórica do mundo conhecido, terá sido possivelmente o sítio escolhido
para sede da vehiculatio, o catabulum.
O que se tinha de manter no mais absoluto sigilo eram as informações transmitidas
pelos correios, não as rotas que utilizavam. Prova disso mesmo é o facto de o imperador
depressa se preocupar em monopolizar a recepção dos despachos militares, em
detrimento do Senado, como se observa pelo comportamento de Agripa após a sua
vitória sobre os Cântabros, em 19 d. C. (Díon Cássio, Hist. rom. 54.11).
Independentemente das suas dimensões, a administração de uma guarnição requeria a
presença e a actividade de «gabinetes», chamados tabularia. Com base nas inscrições e
nos vestígios arqueológicos do acampamento da legio III Augusta, em Lambaesis, uma
legião contaria com, pelo menos, três estruturas administrativas, situadas junto do
quartel-general, os principia. O tabularium principis, erigido por volta de 99 d. C. e
restaurado em 253 (CIL VIII, 1872; ILS, 2446), devia o seu nome ao centurião princeps
prior, que ocupava o escalão imediatamente inferior ao do primipilato, na hierarquia
dos centuriões (Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 20; Vegécio, Epitoma de
rei militaris, II, 8). Havia, também, um tabularium legionis (AE 1898, 108-109) e um
tabularium equitum (AE 1957, 85).
Se, por um lado, as denominações de tabularium equitum e de quaestor equitum,
parecem suficientemente explícitas, por outro, é mais difícil distinguir as atribuições
respectivas do tabularium legionis e do tabularium principis. No entanto, um exame
do pessoal associado aos dois tabularia fornece um elemento para a resposta: as duas
inscrições a eles referentes comportam, com efeito, uma lista dos graduados que
ajudaram na construção dos edifícios; segundo estas listas, o tabularium legionis
corresponderia basicamente a uma espécie de «secretaria» da unidade, ligado a um
depósito de arquivos. À cabeça dos subscritores vemos um cornicularius, que, como
anteriormente vimos, era o principalis com categoria mais elevada; a seguir, aparece o
actarius ou actuarius, responsável pela organização do serviço diário e pela redacção
de todos os documentos que aí se encontravam reunidos. As suas competências e
649
atribuições, que gradualmente abrangeram o aprovisionamento, conferiam-lhe um
poder significativo (Aurélio Victor, Livro dos Césares, XXXIII, 13).
No fim da lista, surgem os librarii e os exacti, isto é, os arquivistas e os que realizavam
a contabilidade e assentavam por escrito uma série de elementos, consistiam nos
subordinados dos actarii. No século III, é provável que nas guarnições legionárias o
primus pilus tenha igualmente desempenhado o seu papel no abastecimento militar,
convertendo-se no encarregado do encaminhamento dos géneros alimentícios (Codex
Iustinianus, VII, 73, 1 e XII, 63, 1). De facto, quando o primipilato passou a ser um grau
da administração provincial no fim do mesmo século, o pastus primipili designava a
missão de transporte de víveres que se destinavam ao exército, tarefa superintendida
por estes funcionários civis. Tal expressão conservou, talvez, a lembrança das antigas
tarefas do primeiro centurião da primeira coorte.
Por seu turno, na segunda lista, onde constam os subscritores que financiaram a
construção do tabularium principis, a qual data do reinado de Septímio Severo, o
conteúdo revela-se menos explícito: tratava-se de optiones dos centuriões da primeira
coorte. Quanto ao restauro do edifício, feito após a reconstituição da legião em 253 d.
C., ele implicou, para além dos optiones, o centurião princeps, dois librarii (que lhe
estavam associados) e adiutores (adjuntos de grau inferior). Tanto os optiones como os
adiutores não tinham funções bem definidas: podiam, efectivamente, levar a cabo
diversos tipos de tarefas. Pela referência, na dita lista, a todos os optiones dos
centuriões da primeira coorte, talvez seja de depreender que o tabularium principis
lidaria com assuntos mais importantes do que o tabularium legionis, dirigido por um
cornicularius. As actividades deste «gabinete» estariam, portanto, ligadas às
competências particulares do primus pilus.
Estes serviços administrativos e os estados-maiores existiam em todos os corpos de
tropas, embora eles registassem certamente mais complexidade ao nível das legiões. A
descoberta dos arquivos da cohors XX Palmyrenorum veio a lançar luz sobre a
existência e o funcionamento de um officium (do tribuno) e de um tabularium de uma
unidade auxiliar aboletada em Dura Europos, documentos que remontam à primeira
metade do século III da nossa era. Estas duas estruturas administrativas situavam-se
em divisões do pátio do templo de Artemisa Azzanothkona, o qual servia de quartel-
general para esta coorte auxiliar. A partir de 212, construiu-se mais um tabularium,
que serviria para as vexillationes de legiões que também ocupavam a cidade, nos seus
respectivos principia. No recinto do templo de Artemisa, encontraram-se paredes
cobertas de manchas de tinta, prova de que nelas se limparam tanto os dedos como os
cálamos.
Por seu turno, os óstracos de Gholaia/Bu Njem (Líbia), redigidos entre 253 e 259, são
ilustrativos de um contingente militar ainda mais reduzido, visto que este
acampamento na Tripolitânia apenas albergava um numerus não identificado e uma
vexillatio de cavalaria auxiliar, destacada de uma coorte chamada VIII Fida. No
entanto, a descoberta de um verdadeiro scriptorium, nos principia de Bu Njem,
permitiu avaliar a importância da utilização da escrita no exército romano, mesmo
numa guarnição modesta, em que tal tarefa era confiada a um único librarius,
coadjuvado por alguns adjuntos. Num compartimento, descobriu-se um atril com
inclinação dupla, rodeada por bancos dispostos junto das paredes 1914. Aparentemente,
essa estante serviria simplesmente de suporte para colocar documentos, cujo teor era
lido em voz alta, enquanto os bancos permitiam aos indivíduos escreverem sentados,
pondo o óstraco na palma da mão esquerda, e, com a direita, escrevendo sobre a face
exterior do suporte, revestido de engobo (massa terrosa empregue na cerâmica)
utilizando um pequeno junco de com a ponta quebrada, e não um cálamo, que só era
manuseado ao consignar sobre folhas de papiro.
Geralmente, os documentos redigidos nos tabularia dos acampamentos não se
conservavam por muito tempo, sobretudo os que Vegécio (Ep. rei mil. II, 19) rotulou de
1914
R. Rebuffat, «Le camp romain de Gholaia», Lybian Studies XX (1989), pp. 155-167; Y. Le Bohec, L’armée romaine, p. 169.
650
breves, consistindo em quadros de serviço, listas de turnos de guarda, de corveias, de
tarefas e autorizações:
«Todo o tipo de actividade militar, pública particular, bem como o pagamento do soldo, é
assente por escrito dia-a-dia, quase mais minuciosamente do que os relatórios quotidianos de
víveres e do policiamento na cidade. O serviço de guarda de um acampamento, tanto em tempo
de guerra como em paz […] também se indica nas tabuinhas, apontando-se os nomes dos
soldados, à medida que chegam os seus turnos, a fim de que ninguém fique sobrecarregado
injustamente, ou isento do seu dever por favor. Exara-se igualmente a data e a duração das
licenças que constam dos registos».
O facto de se escreverem diariamente estas listas, amiúde de forma descuidada, e
sempre no reverso de um documento anterior, manifesta bem o seu carácter efémero.
Encontraram-se algumas deles em certos papiros de Dura Europos. É também o caso do
papiro latino de Genebra nº 1 (ChLA, I, 7), atrás citado a propósito dos descontos
efectuados sobre os soldos. Este documento, inicialmente contabilístico, foi reutilizado
no anverso para redigir um estado nominativo das missões exteriores realizadas por
quatro soldados e, depois, no reverso, incluindo a apresentação de um quadro de
serviço, com base na lista de militares disponíveis para as corveias.
Mas até os documentos assimiláveis à categoria dos matriculae referidos por Vegécio
não eram verdadeiramente arquivados. Em Dura Europos, consistiam em róis onde
constavam, classificados por centúrias de infantaria e turmae de cavalaria, os nomes de
todos os homens da unidade, precedidos pelas respectivas datas de incorporação e
seguidas pela sua afectação: à cabeça, apareciam os dos centuriões ou dos decuriões,
bem como dos seus optiones, depois os dos duplicarii e dos sesquiplicarii e, por fim, os
dos simples soldados, por ordem decrescente de antiguidade. É certo que a indicação
da afectação ou da disponibilidade, mediante uma barra horizontal para os simples
soldados, ou um sinal angular no caso dos graduados, provavelmente devia prescrever
ao fim de uns dez dias. Consequentemente, os papiros que serviam de suporte para os
documentos eram reutilizados em espaços de tempo bastante curtos: assim, as duas
listas que melhor se conservaram de uma unidade do exército romano foram escritas
no reverso uma da outra, com três anos de intervalo (P. Dura, 100-101; ChLA, VIII, 355-
356).
Ao basearem-se neste género de documentos para uso interno, os exacti redigiam
outros de carácter mais oficial, que tinham valor probatório para o cálculo e para o
pagamento dos soldos, haja em vista os chamados acta diurna, nos quais se registavam
diariamente os efectivos de uma unidade: calculava-se o efectivo líquido (numerus
purus), que correspondia a determinada quantidade de remunerações-base, antes de se
precisar o número de graduados e de cavaleiros que beneficiavam de suplementos. A
seguir, nos acta diurna, mencionava-se a palavra de ordem do dia, eventuais
movimentações do pessoal militar (nomeadamente a chegada de recrutas) e, por
último, surgia um resumo do relatório da manhã, que Flávio Josefo descreveu (B. J. III,
87-88):
«Ao nascer do dia, os homens reúnem-se para saudar os seus centuriões respectivos, estes os seus
tribunos e, com os últimos, todos os oficiais vão saudar o general-chefe. O que está ao seu lado dá-lhes,
conforme o regulamento, a senha e as outras instruções a serem transmitidas aos seus subordinados. Eles
fazem o mesmo no campo de batalha: realizam rapidamente as mudanças de direcção rumo ao local
pretendido, e nas suas ofensivas, bem como nas suas retiradas, deslocam-se passo a passo, mantendo-se
agrupados».
Todos os meses se mudavam os rolos de papiro, mas eles eram somente preservados
enquanto as contas do ano em curso não estivessem apuradas. O estado geral da
unidade que então se apresentava sintetizava os informes contidos nos acta diurna do
651
ano transacto. Assim, o reverso dos acta diurna reempregava-se num prazo variando
entre um a três anos (P. Dura, 82-91, ChLA, VII, 337-346). Não admira, portanto, que os
documentos redigidos nos «gabinetes» de uma unidade só muito raramente eram
arquivados. Com efeito, os arqueólogos encontraram-nos, não ao descobrirem os
tabularia e os officia, onde em teoria estariam conservados, mas nas reservas onde os
papiros usados (ainda aproveitáveis) foram armazenados ou, então, em montes de
detritos e entulho, para onde se deitava fora o material definitivamente inutilizável.
Por outro lado, em Bu Njem, onde o aprovisionamento de papiro era mais difícil do
que em Dura Europus, para escrever recorria-se, como vimos, a simples fragmentos de
ânforas, os óstracos, como suportes para documentos cuja validade era temporalmente
limitada. Pelas mesmas razões, em Vindolanda e em Vindonissa, empregaram-se
tabuinhas de madeira revestidas por uma camada de cera.
Pelo contrário, os denominados pridiana eram, em princípio, objecto de adequado
arquivamento: tratava-se de listas de efectivos que se elaboravam «nas vésperas das
calendas», possivelmente anuais (no caso do Egipto bienais, já que aí o ano terminava
no fim do mês de Agosto, de acordo com o calendário local). Estes documentos,
destinados à administração central romana, mais especificamente ao «gabinete»
chamado a rationibus, apresentavam o balanço das baixas (mortos e feridos), das
transferências e das promoções de soldados, assim como dados sobre os destacamentos
existentes tanto no interior como no exterior da província em questão. Deles também se
efectuavam cópias, que ficavam nas mãos dos governadores provinciais.
Lamentavelmente, não se conhece um só que apareça explicitamente designado como
pridianum (P. Berl. inv. 14097; ChLA, X, 411); refira-se, a propósito, que a identificação
de um documento semelhante ao modelo do pridianum não reuniu consenso entre os
estudiosos (P. Lond., 2851; ChLA, III, 219). Além disso, a falta de exemplares impede
que se possa avaliar por quanto tempo se conservariam os pridiani, face à eventual
reutilização dos papiros que lhes terão servido de suporte.
Apesar de tudo, graças à documentação de Dura Europos, foi possível deparar com a
constituição de arquivos numa unidade do exército romano, sob o Império. Ao
fundamentarmo-nos neste acervo, verificamos que apenas a correspondência era
realmente preservada intacta. De facto, os originais das cartas recebidas pela unidade
eram colados uns aos outros, formando, em cada semestre, um rolo qualificado de liber
epistularum acceptarum.
Havia, ademais, rolos específicos, «catalogados» em função da identidade dos
correspondentes ou do assunto das missivas. Esta classificação de acordo com critérios
cronológicos ou temáticos obrigava, então, a voltar a copiar aqueles que teriam de
figurar concomitantemente em vários libri: foi o que sucedeu, por exemplo, com as
epistulae equorum, que se acharam numa fonte fragmentária muito deteriorada (P. Dura,
130; ChLA, IX, 384, datando entre 215-245 d. C.); o facto de o nome de Geta haver sido
riscado na carta do governador da Síria - recebida a 16 de Março de 208 -, por causa da
sua damnatio memoriae, prova que ela ainda foi consultada quatro anos mais tarde (P.
Dura, 56; ChLA, 311).
652
Fosse em campanha, num acampamento temporário (castra aestiva) ou num forte
(castra stativa) de uma unidade legionária ou de auxiliares, os altos comandos tinham
especial atenção no sentido de que as tropas beneficiassem de boas condições
sanitárias, de uma dieta alimentar equilibrada e adequada assistência médica. Note-se
que cada importante estrutura militar, em regra uma fortaleza, dispunha de um
complexo para banhos, o que oferecia um espaço apropriado tanto para fazer exercícios
menos estruturados e relaxar como para manter certos hábitos higiénicos. Além disso,
as latrinas nos recintos militares, ao estarem providas de cisternas de água, eliminavam
os excrementos, havendo a precaução de os depositar num rio ou num lago afastados
do sítio onde se recolhia a água para consumo da legião. Observemos, a propósito, um
trecho de Vegécio:
«Agora chamarei à atenção para algo que importa ter em mente a todo o custo: como proteger a saúde
do exército […] O exército não deve servir-se de água insalubre ou barrenta, já que beber água em más
condições é como ingerir veneno, fazendo adoecer aqueles que a utilizam. Assim, quando um soldado fica
enfermo, todos os oficiais, desde o grau mais alto até ao mais baixo da legião, devem fazer todo o possível
para que ele recupere através de uma dieta e de cuidados médicos adequados. Pois que será mau que os
soldados enfrentem, afora as exigências da guerra, as doenças. Assinale-se que numa coisa os especialistas
estão de acordo: o exercício diário faz mais pela saúde dos soldados do que aquilo que possam fazer os
médicos» (Epitoma rei militaris, III, 2).
Embora estas precauções nem sempre tenham sido adoptadas no plano prático, não
resta a menor dúvida que os soldados se encontravam mais bem alimentados e viviam
num ambiente claramente mais limpo, arejado e equipado do que o grosso da
população civil.
Conforme se viu numa das precedentes alíneas, a alimentação dos militares era
simples mas o mais saudável possível, caracterizando-se pela sua variedade e elevado
nível nutritivo.
Os soldados gozavam de bons cuidados médicos, muito superiores aos que tinha a
maior parte da população (à excepção das camadas da elite dirigente da sociedade, que
dispunham de dinheiro para pagar os honorários de um prático). No exército, tomava-
se muito a sério a perda de soldados por causa de ferimentos ou doenças. A medicina
no mundo romano derivava, quase por completo, dos Gregos, mas no domínio da
medicina militar os Romanos desenvolveram e aperfeiçoaram as teorias e as práticas
helénicas. Em especial, eles aprenderam a saber como tratar de ferimentos, mas sem
negligenciar a cura de enfermidades, construindo hospitais nos recintos militares,
sobretudo nas fortalezas legionárias.
Estes complexos estavam dotados de pessoal especializado e sabemos que vários
médicos acompanhavam as suas unidades durante as campanhas. Pseudo-Higino
menciona a presença de uma tenda para um hospital (valetudinarium) na sua obra
dedicada à construção dos acampamentos (De munitionibus castrorum, IV, 35),
recomendando que a mesma devia localizar-se num sítio onde os soldados em
convalescência pudessem usufruir de tranquilidade e sossego.
O pessoal mais habitual era composto, logicamente, pelos medici, documentalmente
atestados em todos os tipos de unidades, incluindo as legiões, as coortes auxiliares e
alae, as coortes urbanas, a guarda pretoriana, os vigiles e os equites singulares. O título
653
medicus englobava uma série de funções e estatutos hierárquicos diferentes 1915: alguns
seriam possivelmente simples soldados, pertencentes à categoria dos immunes, que
estavam dispensados dos deveres de faxina e corveias, mas outros corresponderiam a
membros da oficialidade, talvez detentores de uma condição prestigiosa. Em algumas
inscrições aparecem nomeados medici ordinarii, como, por exemplo, Caius Papirius
Aelianus em Lambaesis, que viveu até à aos 85 anos o que, per se, representaria uma boa
recomendação para um médico (ILS 2432). Numa fonte posterior, descoberta no forte
romano de Niederbieber (Alemanha), um tal Processus dedicou uma inscrição à família
imperial, autoproclamando-se medicus hordinarius [sic] (ILS 9182).
É provável que diversos medicii ordinarii fossem centuriões, mas nenhum documento o
confirma, pelo que se trata de uma teoria contestada. Alguns estudiosos sugeriram que
ordinarius significaria simplesmente que os médicos serviriam nas fileiras. Numa
monumental fonte epigráfica de Roma, onde figura uma lista dos oficiais e soldados da
Vª coorte dos vigiles, observam-se os nomes de quatro medici: Caius Runnius Hilaris,
Caius Iulius Hermes, Quintus Fabius Pollux e Sextus Lutatius Ecarpus; estes surgem
consignados logo a seguir à enumeração dos centuriões e dos oficiais subalternos,
como os cornicularii, mas antes dos soldados de cada centúria (com o nome do
centurião à cabeça). A posição dos nomes dos medici imediatamente depois dos oficiais
parece conferir alguma crebibilidade à teoria de que os médicos se encontrariam neste
escalão hierárquico. Nas frotas da marinha romana, alguns (ou quiçá todos) medici
pertenceriam à categoria dos duplicarii, como se atesta numa inscrição de Puteoli (RIB
2315; veja-se igualmente CIL X, 3441, de Misenum).
Vários dos médicos que surgem na documentação epigráfica têm nomes gregos ou
orientais latinizados: Quintus Marcius Artemidorus, dos equites singulares Augusti, em
Roma (ILS 2193ª), Marcus Mucius Hegetor, da cohors XXXII Voluntariorum (ILS 2601) ou
ainda Marcus Rubrius Zosimus, da cohors IIII (IV) Aquitanorum. Outro, possivelmente
oriundo do Oriente grego, foi Marcus Ulpius Telesphorus, medicus da ala Indiana, mas o
seu nome foi reconstituído apenas com base nas poucas letras legíveis na inscrição (ILS
2542). Estes homens terão principado a sua carreira como médicos civis, depois
alistando-se no exército. No entanto, não sabemos como e onde recebiam formação.
Ainda assim, conhece-se a existência de professores ou discentes em contextos
médicos. Ora, em face destes escassos indícios, talvez o exército treinasse o seu próprio
pessoal médico, escolhendo os candidatos que fossem incorporados recentemente ou
que evidenciassem aptidão para tal trabalho.
Havia outros elementos que faziam parte do pessoal médico, como os optiones
valetudinarii e os capsarii, também assinaláveis nas fontes epigráficas. De acordo com a
citada lista de Tarrutieno (Digesta, L, 67), os optiones valetudinarii pertenciam à categoria
dos immunes, e as suas funções, caso os seus títulos se devam interpretar literalmente,
consistiam em tarefas realizadas no hospital, mas não se afigura ao certo quais eram.
Na realidade, talvez fossem assistentes administrativos, e não indivíduos que
participassem activamente na prestação de cuidados médicos e em actos cirúrgicos. Em
Lambaesis encontraram-se duas inscrições que aludem a optiones da IIIª legião Augusta,
aparecendo o nome de um deles, Lucius Caecilius Urbanus (ILS 2437; 2438). Por seu
1915
I. A. Richmond, «The Roman Army Medical Service», The University of Durham Medical Gazette (June 1952); R. W.
Davies, The medici of the Roman armed forces», Epigraphische Studien 8 (1969), pp. 83-99; IDEM, «The Roman military
medical service», Saalburg Jahrbuch 27 (1970), pp. 84-104; idem, «Some more military medici», Epigraphische Studien 9
(1972), pp. 1-11; D. B. Campbell, «Evidence for medics amongst the milites», Ancient Warfare IV.4 (2013), pp. 46-51.
654
turno, a lápide de Caius Luccius Sabinus, de Beneventum (Itália) mostra que, na sua
diversificada carreira ele terá começado como optio valetudinarii e depois prosseguiu,
ocupando uma série de outros postos; assim, das duas uma, ou não era um especialista
médico ou então não pretendeu manter-se nesta função.
Quanto aos capsarii, também referidos nas inscrições juntamente com os medici e os
optiones valetudinarii, deviam ser os responsáveis pelo tratamento de ferimentos, dado
que o vocábulo capsarius deriva de capsa, uma caixa onde se guardavam ligaduras.
Contudo, alguns autores modernos sustentaram que tal caixa se destinaria a guardar
rolos de pergaminho, pelo que os capsarii representariam elementos administrativos.
No entanto, o soldado representado numa cena da famosa Coluna de Trajano a pôr
ligaduras na perna de um camarada ferido é usualmente interpretado como se tratando
de um capsarius. Numa inscrição de Carnuntum, no Danúbio (ILS 9095), alude-se aos
capsarii pertencentes à XIV legião Gemina; noutra fonte, um tal Aelius Munatius é
qualificado como capsarius da cohors milliaria Hemesenorum (ILS, 9169). Ainda noutro
documento epigráfico, procedente da fortaleza tardia romana situada em Niderbieber,
associa os capsarii do numerus Diviti ensium Gordianorum ao atrás referido medicus
hordinarius (sic) chamado Processus (ILS 9182).
Através das prospecções arqueológicas, exumaram-se vestígios materiais de hospitais
nas fortalezas legionárias localizadas ao pé do Reno, em Vetera (actual Xanten) e em
Novaesium (Neuss), e em Inchtuthil 1916, na Escócia. Por outro lado, captam-se provas
epigráficas quanto à existência de um valetudinarium na base militar de Lambaesis, no
Norte de África. Na Sérvia, em Stojnik, uma inscrição datando de 179 d. C. refere-se
expressamente ao hospital da cohors Aurelia equitata civium Romanorum. Nos fortes de
Housesteads e de Wallsend, que fizeram parte do sistema defensivo da Muralha de
Adriano, os arqueólogos localizaram hospitais de unidades auxiliares: em
Housesteads, atesta-se um medicus ordinarius, Anicius Ingenuus, que faleceu só com 25
anos, cuja lápide se revela invulgar devido à inclusão de uma lebre figurada em relevo
no topo do monumento (RIB, 1618); quanto ao hospital de Wallsend, terá sido
acrescentado ao forte por volta de 180 ignoramos se a estrutura de madeira que o
precedeu se destinaria também à mesma função.
Os hospitais consistiam normalmente em edifícios dotados de um pátio e que tinham
cubículos que davam para a área central a céu aberto, a fim de que houvesse luz e
arejamento; por vezes existia uma varanda correndo a toda a volta do pátio. Porém,
nem todas as estruturas deste tipo planimétrico eram necessariamente centros
hospitalares: com efeito, algumas podiam corresponder a fabricae que dispusessem
igualmente de um pátio central e de pequenos compartimentos estabelecidos em seu
redor.
Em campanha, as tarefas dos medici englobavam o tratamento dos soldados que
ficassem doentes, mas os cuidados dispensados aos ferimentos sofridos em combate
encontram-se muito mais documentados. Um dos melhores tratados conhecidos é o de
Aulo Cornélio Celso, De Medicina, que foi escrito no começo do século I da nossa era e
se baseou fortemente em manuais gregos. Nele, o autor discorre sobre doenças,
farmacologia, bem como a respeito de métodos terapêuticos e cirúrgicos. Note-se,
1916
J. Wilkes, El ejército romano, p. 20: planta e alçado do valetudinarium da fortaleza de Inchtuthil. Hospitais como este
tinham alguns cubículos, que podiam alojar cerca de oito doentes. Em muitas bases militares havia um quirófano, isto é,
uma sala destinada especial,ente para intervenções cirúrgicas, mas no caso de Inchtuthil, utilizava-se para este
propósito um grande vestíbulo situado perto da porta principal.
655
todavia, que algumas das práticas por ele recomendadas até poderiam contribuir para
aumentar a taxa da mortalidade, em vez de a reduzir, até porque os Romanos não
compreendiam plenamente o fenómeno do contágio e a eficácia do isolamento dos
pacientes.
No entanto, na abordagem que Celso fez sobre os ferimentos, verifica-se que talvez
possuísse experiência pessoal neste domínio ou, então, adquiriu conhecimentos junto
de alguém que tenha exercido a medicina nos teatros de operações bélicas. Na
realidade, ele foi mais um enciclopedista do que um oficial médico em actividade no
exército, embora pouco saibamos sobre a sua vida. Ao redigir a sua obra sob a égide do
imperador Tibério, ainda assim ele pode haver ter presenciado muitas batalhas e
recontros travados na Germânia e na Panónia durante o reinado de Augusto, o
fundador do Principado.
Celso descreve pormenorizadamente como remover vários tipos de projécteis do
corpo, aconselhando que, se a arma não tivesse penetrado profundamente e
atravessado um grande vaso sanguíneo, ela devia ser puxada através do orifício por
onde entrara. Mas se a distância que a arma que precisava de ser extraída se afigurasse
superior à que restava, então o melhor seria forçá-la a ir de uma ponta à outra do
corpo, cortando-se a carne no lado oposto com um escalpelo (bisturi). Isto não era
prescrito para armas mais volumosas, já que poderia criar dois ferimentos de grandes
dimensões em vez de um só.
Para estes casos, Celso mostra como utilizar o cyathiscus diocleiano, assim designado
por causa do nome do seu inventor, Diócles: este instrumento possuía uma
extremidade curva provida de um buraco, o qual devia inserir-se junto da armas
alojada na carne, até o dito orifício pudesse apanhar a ponta da arma e, depois,
remover tanto a última como o utensílio (De Medicina, 7, 5.3-4). Celso desenvolve
também comentários sobre como estancar hemorragias de feridas e as maneiras para se
prevenir a inflamação; caso os procedimentos não surtissem o efeito desejado, tinha
que se proceder à amputação de membros, matéria à qual Celso reservou várias
parcelas do seu tratado (De Medicina, 7.26.21-24; 7.33.1-2). Celso estava igualmente a
par das lesões que as bolas de chumbo arremessadas pelos fundibulários podiam
provocar: se elas se achassem simplesmente alojadas na carne, urgia extraí-las por meio
de um fórceps; todavia, a situação era bem mais complicada se uma dessas bolas
estivesse cravada num osso ou numa articulação. Por vezes, era necessário efectuar um
corte à volta do sítio onde se encontrava o projéctil enfiado num osso, através de uma
incisão em forma de V; se a bala estava presa em articulações, o único meio para a
remover consistia em separar ligeiramente as últimas.
Em vários locais onde houve fortalezas legionárias, acharam-se instrumentos médico-
cirúrgicos romanos: em Neuss, encontraram-se agulhas, escalpelos, sondas e espátulas;
na base de Aquincum (na actual Hungria), recuperaram-se tesouras e fórceps, além de
talas para as pernas e um ganho para lancetar1917.
No que respeita à farmacologia, caracterizava-se sobretudo pela utilização de ervas.
De facto, acharam-se plantas medicinais em instalações militares, em particular na
fortaleza de Neuss (antiga Novaesium), onde se distinguiram cinco variedades
1917
Aparentemente, os instrumentos medicos seriam esterilizados em pequenos fogões que se encontraram neste
género de edifícios. Saliente-se, todavia, que ao tempo, ainda não se sabia o que eram as bactérias, embora se
adoptassem diversas medidas para combater as infecções.
656
diferentes. Houve quem tenha sugerido que os pátios dos hospitais talvez acolhessem
jardins onde se plantariam certos tipos de erva.
Não resta a menor dúvida que uma das melhores maneiras para garantir boas
condições de saúde radicava na higiene. Consequentemente, existiam, ligados a cada
forte ou fortaleza, termas, que os militares usavam regularmente, servindo também
para espaços de convívio e relaxamento. Nestes edifícios, os arqueólogos depararam
frequentemente com a presença de altares consagrados à deusa Fortuna. Quanto aos
soldados doentes e feridos, é possível que dispussem de instalações próprias de
banhos, como parece sugerir o valetudinarium do forte de Inchtuthil, que continha uma
sala para esse efeito.
Havia igualmente cozinhas nos recintos hospitalares, onde se preparariam, decerto,
refeições especiais. Celso alerta para a importância da dieta no tratamento dos
enfermos, e enumera os alimentos considerados mais facilmente digeríveis (De
Medicina, 2.24.1-3). Refira-se, a propósito, que no hospital de Novaesium/Neuss se
encontraram restos de ovos, ervilhas, lentilhas e de marisco, os quais constam da lista
feita pelo tratadista. Os Romanos tinham igualmente noção da importância do tempo
suficiente para a convalescença no processo da recuperação: num papiro do Egipto,
observa-se que alguns legionários da XII Deiotariana foram enviados para junto do mar,
a fim de usufruírem de um período de convalescência.
Para concluir, acresce que o étimo de medicus também servia para designar os
veterinários que cuidavam dos cavalos e das mulas do exército, os quais aparecem
ocasionalmente nas fontes com o título de medicus veterinarius1918: por exemplo, a estela
funerária de Quartianus, medicus veterinarius, que serviu na primeira coorte pretoriana
em Roma (ILS 9071). Eles surgem alternativamente qualificados como mulomedicus,
termo recorrente na Ars Mulomedicinae de Vegécio; numa lápide descoberta em França,
vê-se um mulomedicus autóctone pegando numa hipposandal, que se empregava ao jeito
de cataplasmas.
657
A principal tarefa atribuída aos beneficiarii consistia na sua colocação, durante seis
meses ou mais, à cabeça de um posto, chamado statio, ocupado por alguns soldados (os
stationarii1919), situado ao longo de uma estrada ou perto de uma via navegável,
usualmente nas imediações de uma cidade. Eram tais stationes que concorriam para o
devido funcionamento da posta imperial (vehiculatio).
Nas regiões em que subsistiam populações que viviam fora de um quadro cívico,
algumas das quais podendo ser nómadas ou semi-nómadas, como acontecia em África,
elas viam-se controladas por oficiais da ordem equestre que exibiam o título de
praefectus gentis. Em Itália e em todas as províncias, os soldados também eram
chamados a intervir enquanto forças policiais, combatendo, entre outras coisas, o
banditismo que, em determinadas zonas, constituía um fenómeno endémico. Ainda
que menos frequentes do que as corveias, as missões de manutenção da ordem
aparecem bastantes vezes referidas nas fontes antigas, afigurando-se indispensáveis
num Estado que não dispunha de uma força especificamente policial (192049 bohec). Na
literatura, com efeito, colhem-se diversas menções a bandoleiros e outros malfeitores
(Apuleio, As Metamorfoses, livro IV; Flávio Josefo; Heliodoro, Filóstrato…) 1921 (50), assim
como em inscrições. Um dos textos mais conhecidos e comentados relata as
desventuras de Nonius Datus, um oficial subalterno do exército romano de África que
foi atacado, roubado e abandonado quase morto 1922(51). Existe outra fonte epigráfica
que se tornou famosa, nela se descrevendo detalhadamente aquilo a que os estudiosos
chamaram o caso do saltus Burunitanus 1923(52): colonos, camponeses livres e rendeiros
constataram que o procurador que recebia os seus pagamentos para o proprietário, na
ocorrência o imperador, abusava do seu poder e recusava-se a respeitar
escrupulosamente a legislação vigente. A certa altura, para os calar, ele enviou
soldados para prenderem esses cidadãos romanos, os quais se viram acorrentados e
chicoteados. Mas os últimos não desistiram, pelo que endereçaram uma missiva a
Cómodo, que lhes deu razão (afinal, este imperador não terá sido sempre tão perverso
como afirmaram os senadores), sendo então feita justiça.
Tanto em Itália como nas províncias, havia uma rede de stationes: vigiavam as grandes
cidades onde as desordens aconteciam com alguma regularidade, como na Urbs, onde
os soldados dispersaram uma manifestação1924 (54), e as estradas, para combaterem o
desenvolvimento e propagação do banditismo (por exemplo, na Judeia 1925) (56). Um
antigo soldado do pretório tornou-se chefe de um bando de marginais; para as
autoridades o vencerem, foi preciso recorrer às equipagens de três birremes
comandadas por um questor e a tropas de infantaria sob as ordens de um tribuno (57).
Porém, ressalvemos que os termos «bandido» e «banditismo» também se empregavam
para aludir aos inimigos numa guerra civil ou mesmo externa (assim se designavam os
habitantes de Jerusalém).
1919
Sobre este assunto: Maria Fedrica Petraccia, Gli stationarii in età imperiale, Roma, 2001; para uma abordagem mais
breve, da mesma autora, veja-se «statio, stationarii: Late Empire», in Y. Le Bohec (ed.), The Encyclopedia of the Roman
Army, Londres, John Wiley & Sons, 2015.
1920
1921
1922
1923
1924
1925
658
Os stationarii moviam caça igualmente aos escravos em fuga 1926 (59) e vigiavam os
desterrados, como Octávia, primeiramente enviada para a Campânia e depois para
uma ilha, ou Séneca. Eles garantiam também a segurança das zonas mineiras, como as
existentes no País de Gales, no Noroeste da Península Ibérica e na Sardenha, a mesma
função exercendo nas pedreiras de mármore de Chemtu, em África 1927(62). Além de
tudo isto, havia centuriões, ajudados por escravos imperiais, que velavam pelos bens
que o princeps havia herdado em diversas regiões 1928 (63): foi, aliás, por terem cumprido
a sua missão com particular brutalidade que alguns destes oficiais subalternos
provocaram a revolta de Boudicca, na Britânia 1929(64).
Ao exercerem esta actividade de manutenção da ordem, era habitual os militares
cometerem várias espécies de abusos, facto que certos autores antigos se mostraram
quase sempre prontos a denunciar, convencidos que estavam que havia uma profunda
incompatibilidade entre o soldado e a cidade, quadro, por excelência, da vida
civilizada. Numa monografia subordinada ao tema das relações entre as elites locais e
os exércitos, B. Rossignol1930 mostra como Apuleio pôs em cena essas transgressões
num episódio1931 narrado na sua obra O Asno de Ouro: observa-se o caso de um militar,
forçosamente intemperante, que abusa do hospitium, ao instalar-se no local onde residia
um magistrado. Mais à frente, veremos que o soldado e o malfeitor podiam igualmente
confundir-se na figura do desertor.
A documentação papirológica do Egipto, em especial a descoberta no Oásis do Faium,
alude muitas vezes a inquéritos e detenções levados a cabo por beneficiarii e por
centuriões1932. Existem também testemunhos referentes às perseguições movidas contra
os cristãos, aspecto que H. Ménard explorou na sua obra Maintien de l’ordre à Rome (IIe-
IVe siècle ap. J.-C). No entanto, não se deve depreender que os militares estavam
investidos de competências judiciais: na realidade, o seu papel ter-se-á limitado à
recepção de queixas, às buscas dos culpados e à escolta destes até ao tribunal, após um
primeiro interrogatório. Nestas tarefas, os soldados utilizavam o fustis, ou seja, um
bastão (que aparece representado em algumas estelas funerárias e é evocado pelos
autores antigos), que distinguia as operações de manutenção da ordem das bélicas, em
que obviamente se recorria às armas.
É certo que nas fontes mencionadas topamos também com soldados actuando na
qualidade de auxiliares da justiça, designados quaestionarius ou a questionibus, termos
que, consoante as situações, se podem traduzir por «inquiridor» ou até «verdugo». Mas
no presente caso, eram graduados, adstritos ao officium de um governador provincial
ou dos prefeitos do pretório, que ajudavam na gestão administrativa e judicial do
Império.
Com efeito, atrás salientámos que o exército romano representou uma máquina
administrativa essencial no Império que ele próprio havia permitido conquistar. A este
respeito, P. Le Roux sublinhou que, depois da passagem do exército conquistador para
o exército permanente na Península Ibérica, se desenvolveram as funções
1926
1927
1928
1929
1930
«Élites locales et armées: quelques problèmes», in M. Cébeillac-Gervasoni e L. Lamoine (eds)., Actes du Colloque Les
élites et leurs facettes. Les élites locales dans le monde hellénistique et romain, Roma/Clermont-Ferrand, 2003, pp. 349-380.
1931
Que noutro capítulo desenvolvemos com algum pormenor.
1932
A este respeito, veja-se R. S. Bagnall, «Army and police in upper Egypt», JARCE 14 (1977), pp. 67-86.
659
administrativas exteriores aos corpos das tropas, ainda que exercidas por militares. Ao
longo do período dos Júlios-Cláudios, tais actividades limitavam-se ainda a missões
temporárias que, gradualmente, se converteram em cargos bem definidos. Assim, os
immunes eram destacados para os officia dos governadores provinciais e dos prefeitos
do pretório, nos quais também trabalhavam escravos públicos e libertos. A composição
destas repartições administrativas, dirigidas pelos cornicularii, foi estudada por A. von
Domaszewski, em princípios do século XX (em Die Rangordnung des römischen Heeres) e,
mais recentemente, em 1997, por H. Haensch (Capita provinciarum. Statthltersitze und
Provinzialverwaltung in der römischen Kaiserzeit).
660
O direito militar romano1933 foi objecto de formulação ao longo do século I a. C. e do I
da nossa era e, depois de receber especial atenção durante o reinado de Adriano, o seu
desenvolvimento prosseguiu nos séculos II e III. Exceptuando a descrição de Políbio da
disciplina militar romana e dos castigos aplicados sob a República, as fontes
respeitantes às normas militares datam do Baixo Império. Elas englobam sentenças e
opiniões jurídicas compiladas a partir de documentação do século II em diante, só que
perspectivadas de acordo com os pontos de vista existentes no decurso dos séculos V e
VI, pelo que não é possível, para os estudiosos modernos, reconstituir o corpus legal
militar de qualquer período do Império. O Codex Theodosianus, do século V, consiste
numa compilação de normas civis e militares, bem como de decisões legais, enquanto o
Digesta de Justiniano comporta um leque mais alargado de pareceres de jurisconsultos,
nele havendo o cuidado de identificar os seus autores originais.
Descobriu-se outra colectânea, esta exclusivamente concernente às leis militares, na
obra de Rufo ou Rúfio (Ruffus, Rufius), que talvez corresponda a Sexto Rúfio Festo, que
foi governador provincial durante o reinado de Valentiniano II. No entanto, certos
autores, como C. E. Brand1934, supuseram que ele seria antes um oficial pertencente ao
estado-maior do imperador Maurício.
Salientemos que os soldados gozavam de uma posição privilegiada em termos legais:
estavam isentos da tortura e da condenação aos trabalhos forçados nas minas, e nos
tribunais civis o satirista Juvenal queixa-se que os militares se viam favorecidos, não
estando sujeitos a atrasos no desenrolar dos processos, nem às frustrações
experimentadas pela gente comum. De facto, o miles gozava de privilégios especiais
diante da lei. Na sua vida privada, ele podia redigir o seu testemunho sem ter em conta
a vontade paterna. Nas relações interpessoais, a essência desses benefícios radicava no
facto de ele sempre se ver favorecido pelas circunstâncias em processos judiciais. Só os
tribunais militares tinham jurisdição sobre os soldados e sobre qualquer acto levado a
cabo pelos últimos durante o seu serviço. Se um civil apresentasse uma queixa contra
um soldado, este era julgado no meio militar, por um tribunal formado por centuriões.
Além disso, um civil que pretendesse acusar um soldado de algum crime, tinha
forçosamente que o seguir; nenhum soldado podia ser julgado in absentia. Tão pouco
existia forma de convocá-lo para um lugar distante para prestar depoimento. Se ele
estivesse ausente, a cumprir as suas funções militares, não era possível torná-lo objecto
de uma demanda. Pelo contrário, se um soldado apresentasse queixa contra um civil, o
julgamento tinha lugar em âmbito não militar; um processo que envolvesse um
soldado tinha prioridade sobre uma série de outros, e em geral decorria numa data
estabelecida pelo mesmo.
Posto isto, não admira que vários homens vissem no exército uma maneira de evitar
os problemas legais que tivessem na sua vida civil: era mais fácil apresentar uma
demanda ou defender-se de uma queixa caso o indivíduo em questão desfrutasse de
privilégios militares Um jurista do século III d. C. faz referência a este género de
artimanha:
1933
Para esta matéria, vejam-se: E. Sander, «Das Recht des römischen Soldaten», Rheinisches Museum 101 (1958), p. 152ss;
J. M. Blanch Nougués, «Una visión histórica y jurídica sobre el ejército romano», Anuario Jurídico y Económico
Escurialense, XLIV (2011), pp. 29-48.
1934
Roman Military Law, Austin, 1968.
661
«Nem todo aquele que é incorporado no exército, por causa de um julgamento pendente, deve ser
afastado do serviço, mas apenas os que o fazem tendo em mente o julgamento e com a finalidade de
ganhar vantagem em relação ao seu adversário, graças aos privilégios militares. Uma pessoa que se alista
enquanto está envolvida num litígio, deve ser cuidadosamente examinada: no entanto, se renunciar ao
julgamento, cabe aplicar-se-lhe a indulgência» (Árrio Menandro, Sobre a competência militar 1 = Digesta,
49.16.4.8).
Na realidade, não era raro alguns recorrerem a tal tipo de tramóias: fazer uso da
posição privilegiada dos soldados significava um meio muito tentador para alguém ter
êxito perante a lei.
Naturalmente que os soldados estavam submetidos à disciplina militar, em relação à
qual sentiam grande orgulho. Qualquer coisa que pusesse em causa a disciplina
militar, ou ameaçasse a segurança de uma unidade, de um acampamento, de um forte
ou do exército em geral, classificava-se usualmente como um crime. A lista das ofensas
incluía a traição, a maquinação de conjuras (juntamente com outros soldados) contra os
comandantes, o incitamento à violência, a insubordinação, agressões a oficiais, a fuga
dos campos de batalha, o abandono das fortificações, a simulação de doença para
evitar combater, o fornecimento de informações ao inimigo, etc. Os julgamentos dos
soldados acusados destes e de outros crimes tinham lugar no acampamento ou no
forte: um oficial, geralmente com o posto de tribuno, recebia a incumbência de
investigar o caso, ao passo que outro graduado pronunciava o veredicto.
Durante a República, os Romanos criaram um conjunto de recompensas e castigos
que serviu para manter os soldados dentro da mais estrita disciplina e, ao mesmo
tempo, os levava a obter reconhecimento dos seus oficiais e camaradas. Políbio
enfatizou a grande importância que os Romanos, sob a República, atribuíram às honras
militares e à obediência. Inicialmente, as punições adoptadas no exército romano
primaram pela sua brutalidade. Os que fossem considerados culpados por certas
ofensas viam-se espancados com bastões até à morte, pena a que se dava a designação
de fustuarium: o soldado que mostrava negligência e adormecesse, quando estava de
guarda no turno da noite num acampamento, punha em perigo todo o exército, daí que
merecesse a pena capital; esta também se aplicava aos que roubassem bens de outros
soldados, aos que prestassem falsos testemunhos, estivessem envolvidos em relações
homossexuais e, igualmente, alguém que já tivesse sofrido três castigos por infracções
menores.
Um sentimento de honra profundamente arreigado assegurava, em princípio, que a
maioria dos soldados permanecesse nos seus postos, preferindo a morte à desonra; se
os militares perdessem as suas armas ou os escudos, Políbio conta que muitos deles
lutavam selvaticamente para os reaver, ou então pereciam nesse esforço, em vez de
sofrerem a ignomínia que estava associada ao deitar fora as armas ou desertar do
campo de batalha. Se um conjunto de unidades decidisse fugir, cerca de um décimo
dos homens era escolhido à sorte (a decimatio), ao passo que os restantes recebiam
rações de cevada em lugar de trigo.
No exército imperial manteve-se em vigor muitas destas medidas mas, aparentemente,
os regulamentos impunham-se de forma mais rigorosa em tempo de paz do que em
paz, Rufo recomenda que os soldados que cometem ofensas quando embriagados não
deviam ser punidos com a pena capital, mas antes transferidos para outra unidade.
Tácito (Ann. 13.35) dá a entender que os castigados por uma primeira infracção e os
recrutas geralmente seriam tratados com alguma brandura pelos seus comandantes,
embora estes tivessem em conta a gravidade dos seus crimes.
662
As punições dependiam do posto ocupado pelo militar, do seu comportamento bem
como da sua «folha de serviço», elementos que eram bem conhecidos pelos oficiais. Por
exemplo, segundo Apiano (Guerras Civis, III, 7), quando Marco António quis identificar
os desordeiros entre as suas tropas, os oficiais entregaram-lhe uma lista desses homens
com base nos seus registos. Ocasionalmente puniam-se coortes ou unidades inteiras: as
legiões que sobreviveram à batalha de Canas foram enviadas para a Sicília, onde
ficaram a viver em tendas durante vários anos, até que Cipião-o-Africano as levou
consigo para o Norte de África, aqui se redimindo ao obrarem actos de valor.
1935
Sobre este assunto, o melhor estudo continua a ser o de V. A. Maxfield, The Dona Militaria of the Roman Army, tese
que a autora apresentou à Universidade de Durham (Inglaterra) para a obtenção do grau académico de PhD, em 1972.
Consultámos este texto e não o intitulado The Military Decorations of the Roman Army (Londres, 1981), que consiste,
essencialmente na publicação da tese de V. Maxfield com algumas adaptações.
1936
V. M. Maxfield, The Dona Militaria of the Roman Army (cap. 1- «Types of Military Decoration»), pp. 15-16.
1937
Ibidem, pp. 16-17
1938
Ibidem, pp. 17-19.
1939
Ibidem, pp. 14-15.
1940
Ibidem, pp. 7-10.
1941
Ibidem, pp. 3-6.
1942
Ibidem, pp. 1-2.
1943
Ibidem (cap. 7 - «The Dona of the Milites, Immunes and Principales»), pp. 94-106.
1944
Ibidem (cap.. 5 - «The Dona of the Centurion and Primipilaris»), pp. 71-87.
663
função do seu estatuto1945. No entanto, o mérito particular de determinados oficiais
podia ser premiado através da concessão de honras suplementares, em consonância
com os seus graus. Muito presentes na epigrafia militar até ao reinado de Caracala, as
condecorações tenderam ulteriormente a desaparecer das inscrições, se bem que
continuassem a ser evocadas pelos autores antigos, pelo menos até Amiano Marcelino,
na segunda metade do século IV d. C.
Concediam-se, igualmente, condecorações colectivas, abrangendo unidades inteiras.
Assim se percebe que as coortes pretorianas recebessem coroas de ouro, uma legião
simples coroas, ao passo que uma coorte legionária só poderia aspirar a obter uma
phalera. Todas estas condecorações se ostentavam nas respectivas insígnias. Quanto às
unidades dos auxilia, obtinham torques,1946 que apareciam depois na titulatura das
unidades em questão. A partir do reinado de Trajano, as tropas auxiliares vieram a ser
recompensadas pela sua bravura ou eficiência, recebendo colectivamente a cidadania
romana. Elas seriam, doravante, portadoras do título oficial civium romanorum, que, nas
inscrições, surge por meio das iniciais C.R. (CIL III, 5775, 6748 e 11931-11932; CIL XI,
5669). Não se confunda estas unidades com as cohortes voluntariorum e as cohortes
ingenuorum, constituídas por cidadãos romanos, sob comando de tribunos equestres e
criadas no fim do principado de Augusto, talvez na altura em que eclodiu a sublevação
da Panónia, em 6 d. C., e pouco antes da derrota de Varo no ano 9 (Veleio Patérculo,
História romana, II, 111 e 113; Suetónio, Augusto, 25).
Para as defecções, logicamente que estavam previstas sanções, tanto individuais como
colectivas1947. A luta contra a deserção sempre constituiu uma preocupação para o alto
comando romano. O termo desertor, como em português, designava o soldado que se
afastava do acampamento ou do exército em marcha sem permissão. Este afastamento
era mesmo medido de forma bastante precisa: tornava-se repreensível desde que o
legionário se encontrasse fora do alcance dos sinais dos sinais sonoros da música
militar (Isidoro de Sevilha, Origines, IX, 3, 39). Logicamente, se alguém desertasse e
decidisse bandear-se para o inimigo, a situação ainda tinha mais agravantes. Repare-se
que na terminologia militar latina se distingue o desertor do defector ou do transfuga –
vocábulos que se traduzem por trânsfuga, que designa simultaneamente um desertor e
um traidor (proditor).
A partir do exame das fontes antigas, constatamos que um soldado se sentia mais
tentado a desertar em dois momentos concretos da sua carreira: um deles situava-se
nos dias ou semanas subsequentes ao seu arrolamento, altura em que ainda era
1945
Ibidem (cf. cap. 2 e 3-, pp. 27-38, pp. 39-50.
1946
Ibidem (cap. 8 - «Alae and Cohortes Torquatae and Armillatae»), pp. 107-122.
1947
Sobre este assunto, durante a República, veja-se C. Wolff, Déserteurs et transfuges dans l’armée romaine à l’époque
republicaine, Nápoles, 2009; para a época imperial, consultem-se: M. Vallejo Girvés, «Sobre la persecución y el castigo de
los desertores en el ejército de Roma», Polis. Revista de ideas y formas politicas de la Antigüedad clásica/Alcalá de Henares, 5
(1993), p. 241ss; P. Cosme, «Le châtiment des déserteurs dans l’armée romaine», Revue historique de droit français et
étranger, 81/3 (2003), pp. 287-307.
664
encarado como um simples tiro. Conservaram-se numerosos testemunhos (tardios, mas
não só) sobre as rigorosas precauções que se tomavam para impedir que os recrutas,
quando viajavam rumo às suas unidades, fugissem. Desde a época republicana, afora
uma lista de justificações específicas, todas as ausências se assimilavam a uma deserção
(Políbio, Hist. 3.61; 6.33 e 9.6; Tito Lívio, Ab Urb. cond. 22.38), que significava um nefas,
isto é, uma ofensa contra os deuses e a Cidade devido à violação do juramento de
obediência. Sob o Império, no término do dilectus, o probatus era identificado ao mesmo
tempo pelo signaculum (mais tarde por uma tatuagem a partir do fim do século III) e
pela breve ficha sinalética, que seguia juntamente com a carta enviada pelo governador
ao comandante da unidade em que o futuro soldado iria ser integrado.
Estavam, de igual modo, previstas sanções especialmente severas contra os desertores
que se faziam arrolar noutra unidade, depois de abandonarem a primeira para onde
haviam sido adstritos (Digesta, XLIX, 16, 4 (9)), decerto com o objectivo de receberem
um novo viaticum.
Havia ainda outro «género» de indivíduos especialmente atreitos a desertar, os quais
representavam uma ameaça para os civis e para o próprio poder imperial: muitas
vezes, consistiam em militares experientes, já perto de se verem licenciados e que, por
vários motivos, preferiam a deserção ao estatuto de veteranos. O soldado de carreira,
formado durante toda a sua vida no ofício das armas e treinado para usar da violência
e para matar, perfilava-se basicamente como um «assassino profissional», mas, com
relativa facilidade, era passível de se tornar num marginal. De facto, os facínoras e
salteadores eram, amiúde, veterani que haviam tido problemas em adaptar-se a uma
nova existência fora das fileiras ou, então, desertores. O hábito da prática de violência e
de se abastecer junto das populações podia transformar o exército numa espécie de
«escola do crime», afastando assim os soldados da vida civil.
Num considerável número de disposições legais 1948, verifica-se que certos militares
optavam por não se aposentar, vendo mais perspectivas de lucrar ao enveredar pelo
banditismo, onde a perícia e experiência no uso das armas se afigurava especialmente
útil. Em alguns códigos legais observamos alusões aos que escolheram tornar-se
bandidos, «por pura preguiça» (Codex Iustinianus, XII, 46; Codex Theodosianus, VII, 20,
7). Assim, muitos soldados decidiam seguir a pior via, talvez fartos da dureza da
disciplina militar, por falta de jeito ou de vontade para serem agricultores, ou ainda
por não possuírem dinheiro suficiente para investirem em negócios dignos.
A isto cabe acrescentar as tropas derrotadas no fim das guerras civis e que nem sempre
logravam ficar totalmente reincorporadas nos exércitos vitoriosos. Em alturas dessas,
tinha lugar, habitualmente, uma proliferação de soldados errantes que buscavam
refúgio nas montanhas, em florestas ou em zonas pantanosas, onde o controlo e a
vigilância das autoridades dificilmente se exerciam. Depois de se verem tratados como
malfeitores pelos seus camaradas vencedores, abraçavam a vida do crime. Não faltam
exemplos de episódios de desertores-salteadores, transmitidas pela tradição histórica e
literária da Antiguidade.
Contam-se diversos episódios entre os auxilia. Sem remontar ao famoso Espártaco, de
origem trácia (que se evadiu com um grupo de companheiros de um ludus gladiatório
1948
M. Vallejo Girvés, «La legislación sobre los desertores en el contexto político-militar de finales del siglo IV e
principios del V d. C.», Latomus, 55 (1996), p. 31ss. Para uma curiosa abordagem sobre a deserção e as suas causas
através do exame do Codex Theodosianus, consulte-se J. L. Cañizar Palacios, «Posibles causas de deserción en el ejército
romano vistas a través del “Codex Theodosianus”: problematica bajo Constantino y problematica a partir de la segunda
mitad del s. IV d. C.», Studia Historica. Historia Antigua/Salamanca, 16 (1998), pp. 217-223.
665
em Cápua e veio a constituir uma ameaça às próprias forças armadas romanas em
Itália, durante três anos), podemos citar o africano Tacfarinas, que reuniu contra Roma
Númidas, Mauri, Musulames, Cinitienses e Garamantes (161); Ganasco, um caninefate
(povo germânico), que se tornou pirata (162); uma coorte de Usipetes (igualmente
Germanos), que foi enviada para a Britânia em 82, rebelou-se; os soldados eliminaram
os seus oficiais e lançaram-se ao mar, mas o barco naufragou, uns sendo mortos e
outros reduzidos à escravidão pelos Bretões (163).
Um dos casos mais conhecidos é o de Júlio Materno (Iulius Maternus), que principiou
a sua carreira como soldado profissional; de acordo com Herodiano (Hist. rom. I, 10),
ele terá servido no exército romano na Gália, na segunda metade do século II da nossa
era, antes de desertar no início da década de 180. A sua deserção teve lugar no
seguimento de múltiplas e graves atitudes de insubordinação e indisciplina. Materno
terá ainda convencido outros soldados a fazer o mesmo. Então, à cabeça de um bando
de salteadores, começou a atacar os campos e a pilhar as aldeias 1949. Mais tarde, o seu
grupo veio a transformar-se num pequeno exército, aderindo a este camponeses
arruinados e outros tantos. Os últimos «alistaram-se» sobretudo por Materno prometer
que todos teriam um quinhão igual nos despojos obtidos, no que ia contra os princípios
vigentes no exército regular, em que a recompensa dependia do grau do soldado na
hierarquia. Materno e os seus sequazes tomaram de assalto várias cidades, nestas
soltando os indivíduos que se encontravam nas prisões. As depredações e rapinas
parecem haver assolado grande parte da Gália e dos Campos Decumatos e, quiçá, a
Península Ibérica.
Herodiano não adianta se Materno era um legionário ou um auxiliar, um cidadão ou
um peregrinus. Alguns historiadores supuseram que ele talvez fosse oriundo de uma
das regiões em que cometeu os seus crimes. No entanto, estudos mais recentes tendem
a considerar este personagem mais como um estereótipo literário do que propriamente
um indivíduo que realmente existiu. Note-se que Herodiano inseriu esta narrativa na
sua História para levantar a questão da legitimidade e da fragilidade do poder de
Marco Aurélio. Não é certamente por mero acaso que os três governadores intimados
por Cómodo para resolver os problemas provocados por Materno correspondam aos
três futuros protagonistas das guerras civis de 193 a 197 - Septímio Severo, Pescénio
Níger e Clódio Albino. Quando o mesmo autor evoca uma tentativa de Maternus de se
deslocar até Roma com o expresso propósito de assassinar Cómodo, facilmente se
percebe que a figura do desertor foi aqui posta em cena para evidenciar a precariedade
da posição do imperador. Mas, perante estes factos, será de duvidar da historicidade
dos problemas causados por desertores?
No decurso das guerras danubianas, Marco Aurélio recorreu a uma conscrição de
carácter muito coercivo, em razão das dificuldades militares que se faziam sentir nesse
período. Assim, escravos, gladiadores, salteadores oriundos da Dalmácia e da
Dardânia, bem como Germanos, foram recrutados pelo exército romano. Neste sentido,
os desertores que se reuniram em torno de Materno poderiam corresponder a uma
referência aos indivíduos mobilizados em tal ocasião.
Sob esta óptica, os roubos e os ataques aos quais tais homens se entregaram
representariam uma espécie de exutório expressando o ressentimento de haverem sido
arrolados à força. Com efeito, neste momento histórico, ingressaram no exército
1949
J. B. Campbell, War and Society in Imperial Rome, p. 82.
666
mancebos seleccionados à pressa, contra a sua própria vontade e suportando com
muita dificuldade a férrea disciplina militar (cf. infra). Algum tempo volvido, Díon
Cássio admoestou Septímio Severo por gerar um recrudescimento da criminalidade na
península itálica, ao vedar aos italianos o acesso às coortes pretorianas (Hist. rom.
76.10).Os delitos cometidos por Bulla Felix, cabecilha de um bando, que aparentemente
significa também um estereótipo literário, terão servido para ilustrar tal fenómeno.
Estas quadrilhas de desertores formavam como que um «espelho invertido» do
exército regular romano. Por outro lado, ficamos impressionados com a leitura de
fragmentos de obras de jurisconsultos de finais do século II e princípios do III, citados
no Digesta (XLIX, 16, 5 (8); 6 (9) e 14), e pela quantidade de textos em que se estabelece
uma conexão bastante estreita entre deserção e banditismo. Não admira, pois, que as
deserções grupais, potencialmente mais perigosas do que as individuais, fossem
brutalmente reprimidas.
Por idênticos motivos, criaram-se normas particularmente severos contra aqueles que
oferecessem asilo aos desertores: os que o fizessem, chamados occultatores, corriam o
risco de ver confiscada metade dos seus bens, isto se tivessem uma elevada condição
social, ao passo que para os outros, não pertencentes às classes privilegiadas, a sorte
afigurava-se bem mais sombria – condenados a trabalhos forçados ou, até, a morrerem
na fogueira. Durante esta época, parece haver uma correlação entre uma relativa
rarefacção dos motins e o desenvolvimento da deserção no Império romano. Seja como
for, em função das circunstâncias, o descontentamento dos soldados podia assumir
uma ou outra forma.
No entanto, castigar os desertores de forma demasiado drástica ou implacável
implicava a eventualidade de exaurir as fontes de recrutamento, bem como a de
eliminar militares experientes cuja formação e treino haviam representado um
investimento oneroso para o Estado, desde a instauração de um exército permanente e
profissional por Augusto. Na viragem do século II para o III da nossa era, a severidade
habitual dos antigos regulamentos viu-se, muitas vezes, suavizada por várias
diferenciações e medidas, como se assinala no De re militari de Árrio Menandro
(Digesta, XLIX, 16, 3). Nos textos jurídicos, aparecem termos como emansor ou
infrequens (Digesta, XLIX, 16, 3), que se podem traduzir respectivamente como
«retardatário» e «pouco assíduo», sendo a falta de um emansor encarada como menos
grave do que a de um desertor.
Era a duração da ausência que marcava a principal diferença entre as duas situações.
A resolução dos diferentes casos era levada a cabo com muito cuidado. Em geral,
desculpava-se um recruta, devido aos seus poucos conhecimentos dos regulamentos
militares. No tempo que demorava a realizar-se a viagem – por terra ou por mar – do
recruta, rumo à unidade para que fora destinado, previa-se que houvesse alguns dias
de atraso em relação à data estipulada para a chegada. No caso de um soldado que
partisse a tempo mas que se visse retido por doença, capturado por inimigos ou
salteadores, ele não sofria qualquer tipo de punição. Eram também levados em linha de
conta o número de anos de serviço, o posto ocupado, assim como o local e a afectação
da qual o militar em causa se tinha afastado, além do comportamento evidenciado ao
longo do tempo que já servira, o facto de desertar sozinho ou acompanhado, ou se ele
regressava espontaneamente à sua base ou, pelo contrário, para esta fora reconduzido
à força. Na realidade, a legislação romana contra os desertores parece ter sido aplicada
667
sobretudo em situações em que se registasse uma tendência para a proliferação das
deserções.
A própria definição jurídica do desertor e do emansor suscitava a questão da relação
entre estes delitos e a permissão legítima (Digesta, XLIX, 16, 14). Neste sentido, é de nos
interrogarmos quanto aos meios que a administração disporia para controlar
eficazmente as deslocações dos soldados que tivessem sido autorizados a fazê-lo, a fim
de que não se vissem confundidos com eventuais desertores. Os que usufruíssem de
uma licença estariam decerto providos de salvos-condutos; no entanto, tudo leva a
supor que os últimos deviam dar lugar a fraudes e, mesmo, ao tráfico de documentos
falsos.
Durante a época imperial (ou talvez antes), no entender de G. Wesch-Klein 1950, os
pedidos de autorização de licença (commeatus) seriam primeiramente redigidos por
escrito e enviados às autoridades competentes. As justificações alegadas pelos
requerentes relacionavam-se com problemas de saúde, assuntos familiares ou com a
necessidade que teriam alguns soldados de gerir os seus bens. Se fosse concedida a
permissão, o interessado recebia um salvo-conduto. Para M. Speidel 1951, um óstraco do
Egipto (O. Florida) corresponde possivelmente a um exemplar deste género de
documento. Tal autorização de ausência era então consignada nos registos militares,
onde igualmente se forneciam pormenores sobre a duração da licença e o tempo que
demoraria a viagem de ida e de regresso (Vegécio, Epitoma, II, 19).
A expressão liber commeatus (referida por Amiano Marcelino, História, XXVII, 8, 10),
devia reportar-se à dispensa da obrigação de se ficar em regime de permanência no
acampamento ou no forte. Os soldados também se ausentavam durante períodos mais
ou menos prolongados sem possuírem autorização, o que só acontecia através da
cumplicidade de oficiais, que faziam vista grossa desde recebessem algo em troca, isto
é, subornos. Nestes casos, eles não parecem haver sido tratados como desertores. Seja
como for, desde o reinado de Constantino, pelo menos, a fim de evitar abusos e actos
ilícitos, reservou-se o direito da concessão de autorizações a um número mais reduzido
de oficiais superiores. Quaisquer infracções a esta regra eram puníveis com a
deportação e de confiscação de bens em tempo de guerra, e com a pena de morte em
tempo de guerra (Codex Theodosianus, VIII, 12, 1).
Já no exército arcaico romano, o imperium incluía o direito de julgar e punir os
soldados. Este regime manteve-se em vigor sob o Império. Na época republicana, o
juramento (sacramentum) prestado na altura da incorporação, colocava o cidadão-
soldado à inteira disposição do comandante-chefe, detentor do imperium, que estava
efectivamente investido de um poder de coerção depois de tomados os auspícios de
partida no Capitólio. O poder que advinha do imperium era simbolizado, como atrás
referimos, pelos machados e feixes de varas (fasces) transportados pelos lictores.
Nos tempos mais recuados, o condenado à morte era açoitado antes de decapitado. A
partir do voto da lex Valeria, em 300 a. C., só se acrescentavam os machados aos feixes
de varas quando o detentor do imperium ultrapassava o primeiro marco miliar depois
do pomerium da Urbs, uma maneira de se marcar bem a a distinção entre o imperium
domi – que se exercia no interior da Cidade – e o imperium militiae, que se levava a cabo
1950
«Commeatus id est tempus, quo ire, redire quis possit: Zur Gewährung von Urlaub im römischen Heer», in G. Alföldy, B.
Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer, und Gesellschaft in der römischen Kaiserzeit: Gedenkschrift für Eric Birley, Estugarda,
2000, pp. 493-507.
1951
«Furlough in the Roman army», YCS 28 (1985), pp. 283-293.
668
no exterior. Mas caso se tivessem tomado os auspícios de partida, o general via os
machados adicionados desde a sua saída do pomerium. Apenas o dictator usufruía, em
todo o lado, do privilégio de conservar sempre os machados e os feixes de varas, na
medida em que o seu poder de coerção não se encontrava submetido à provocatio ad
populum.
Aparentemente, as leges Porciae não concederam, pelo menos sem restrições, o direito
de apelo (provocatio ad populum) aos cidadãos que estavam sob as insígnias quando
eram condenados. Seja como for, após 300 a. C., há indícios de que o comandante-chefe
preferia muitas vezes remeter tais assuntos a Roma, assim evitando usar do direito de
coerção derivado do seu imperium militiae. Por outro lado, os tribunos da plebe
tentavam, se possível, não minar a autoridade do detentor do imperium. Mas a justiça
não era feita somente pelo comandante-chefe: este gozava da possibilidade de delegar
parcialmente a sua autoridade disciplinar nos seus oficiais subordinados. Os delitos
militares tanto podiam ser punidos através de uma decisão imediata do comandante-
chefe, sem existir de permeio a formalidade da instauração de um processo (Dionísio
de Halicarnasso, Ant. rom. XI, 43 e XI, 27) como através de um julgamento por um
tribunal constituído para o efeito (Ibidem, XI, 27).
A delegação da autoridade nos tribunos militares é algo que se atesta em todas as
épocas (Lívio, Ab Urb. cond. 28.24, 10; Políbio, Hist. 6.37, 1 e 7; Digesta, XLIX, 16, 12 (2);
Vegécio, Epit. rei mil. II, 9). Com base na terminologia empregue por Políbio, os
tribunos militares reunidos em conselho (em grego boulé) formavam um tribunal
marcial, talvez presidido pelo comandante-chefe.
Na época imperial, o ius gladii (direito de aplicar a pena de morte) dos governadores
provinciais permitia que estes pudessem julgar sem apelo soldados que estivessem sob
a sua autoridade (Díon Cássio, Hist. rom. 52.22, 2-5; 53.13, 6-7; Tácito, An. 3.21; Digesta,
I, 18, 6 (8). O mesmo direito também podia ser conferido aos legados de legião ou a
outro comandante do exército ou da frota que não fosse governador de província,
tendo a possibilidade de aplicar sanções individuais ou colectivas (Tácito, Ann. 1.29 e
44).
Assim, os soldados podiam ser flagelados (castigatio fustium), multados (pecuniaria
multa), submetidos a corveias (munerum indictio) degradados, transferidos para outro
corpo de tropas com menos prestígio, expulsos do exército, (cf. infra; Digesta, XLIX, 16,
3 [1]) ou, por fim, condenados à morte (Tácito, Ann. 13.35).
O encarceramento não representava uma pena per se, mas um meio de manter um
soldado sob estreita vigilância antes do seu julgamento e execução da sentença.
Consequentemente, nos campamentos e fortificações, havia quase sempre uma prisão,
confiada à guarda de um optio (ILS 9060; CIL VI, 531; IX, 1617; XIII, 1833), assistido por
clavicularii (carcereiros, literalmente «porta-chaves»). Importa não confundir este optio
carceris com o optio custodiarum, o responsável pela prisão sob a alçada do governador
na capital de província (CIL III, 15191; XIII, 6739).
Quanto aos transfugas, foram menos numerosos do que os «simples» desertores, já
que, para além de abandonarem as fileiras, se convertiam em traidores. Em 58, as
forças comandadas por Córbulo, que combateram na Síria, perderam soldados que se
passaram para os Partos1952 (167). Na guerra civil de 68-69, um substancial número de
tropas de Otão bandearam-se para o exército de Vitélio 1953(168); Civilis, por seu turno,
1952
1953
669
foi considerado um trânsfuga 1954(169). Mas não faltam mais exemplos: alguns milites
resolveram juntar-se aos Dácios 1955(170), outros aos Quados, sob Marco Aurélio1956
(171), outros ainda refugiaram-se na mesma tribo no tempo de Cómodo 1957(172).
Sabemos que Mitridates, rei do Bósforo, acolheu desertores romanos 1958(173). No
conflito civil que se seguiu à morte de Nero, foram trânsfugas que ensinaram aos
Bretões técnicas de assédio, o que causou diversas dificuldades aos seus compatriotas
1959
(174). Mas o pior caso, praticamente olvidado pelos historiadores, teve lugar em 197
1960
( 175): no decurso de um episódio da guerra civil, Pescénio Níger foi vencido; os
sobreviventes do seu exército dispersaram-se, vários resolvendo entrar ao serviço dos
Partos; mostraram aos últimos como confeccionar armas de qualidade e como pelejar à
maneira romana. Mais tarde, no século III, os legionários vieram a sofrer grandemente
por causa dos conhecimentos que os Partos adquiriram com os trânsfugas 1961.
Punições colectivas
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1961
Y. Le Bohec, La guerre romaine, p. 146.
670
3.43). Bem mais tarde, Macrino recorreu a uma «centimação», ou seja, mandou matar
um homem em cada cem1962 (191).
Na época imperial prevaleceu outra modalidade de castigo colectivo, que abrangia
unidades inteiras do exército romano: tratava-se da dissolução de legiões; foi desta
forma que Octávio desmobilizou a sua Xª legião durante as guerras civis (194) 1963.
Quanto às legiões XVII, XVIII e XIX, comandadas por Varo na Germânia, aniquiladas
pelas forças lideradas por Armínio em 9 d. C., elas jamais se viram reconstituídas, já
que se consideravam os seus números funestos. A Legio XV Primigenia, por seu turno,
foi dissolvida por Vespasiano após a revolta de Civilis em 70, o mesmo acontecendo
com a V Alaudae, a seguir à derrota de Cornélio Fusco na Dácia, em 86, e com a XXI
Rapax em consequência do grave revés sofrido no Danúbio em 92. Por vezes, aplicava-
se um castigo menos severo, como sucedeu à Legio XII, que foi retirada da Síria e
instalada na Capadócia1964 (196).
O desaparecimento de outras legiões – a XXII Deiotariana e a IX Hispana, no século II
da nossa era – tem suscitado mais interrogações entre os historiadores em relação às
causas concretas, conforme referimos no capítulo precedente: a primeira terá sido
destruída no decurso dos tumultos que eclodiram em Alexandria nos anos 121-122, e a
última aquando da Guerra Judaica de 132-135 ou por ocasião da derrota infligida pelos
Partos ao exército romano em Elegeia, na Arménia, em 161.
No século III, a damnatio memoriae abateu-se sobre as legiões III Gallica e III Augusta: a
primeira em 219, por haver combatido Elagábalo, a última em 238 depois de reprimir a
insurreição dos Gordianos em África. Em virtude desta condenação da memória das
duas unidades, os seus nomes foram raspados e martelados nas inscrições oficiais.
1962
1963
Augusto, embora desmobilizando «com ignomínia» esta legião, concedeu a gratificação de reforma aos soldados que
a reclamaram com demasiada insistência, mas sem incluir os commoda e o praemium do licenciamento.
1964
671
Judaica (66-73), Tito erradicou das fileiras um soldado que tinha sido feito prisioneiro
pelo inimigo (apesar de ele haver logrado evadir-se), isto porque, em nenhuma
circunstância, os soldados se deviam deixar capturar vivos. Consequentemente, a
ameaça da perda das gratificações e dos privilégios, obtidas aquando do licenciamento,
e a proibição de ingressar em qualquer outra unidade, fazia com que a maioria dos
soldados se mantivesse do lado da lei e respeitasse a disciplina militar1965.
A indisciplina e os motins
Nas fontes antigas, captam-se diversos elementos desconcertantes 1966 (131). O exército
romano do Oriente ganhou má reputação, o que actualmente alguns estudiosos têm
tentado negar, mas provavelmente em vão. Os soldados viviam nas cidades, bebiam
em excesso, não praticavam exercício, careciam de equipamentos e faltava-lhes
experiência de combate. Diante dos Partos, eles começaram a debandar, sendo
necessária a energia de um general como Lúcio Vero para os restabelecer na ordem 1967
(132). Turbulenta, a Legio XX (Valeria), da Britânia, era difícil de comandar; Agrícola,
todavia, soube mantê-la obediente e operacional 1968 (133). A indolência e a indisciplina
caminhavam de mãos dadas, principalmente sob a égide de «maus» imperadores como
Vitélio, Domiciano e Elagábalo, e mesmo no tempo dos bons soberanos, como Nerva 1969
(134).
Frequentemente, os soldados abusaram dos privilégios que tinham, sobretudo a partir
da crise do século III, período em que o pagamento dos salários se tornaram cada vez
menos regulares ou, até, inexistentes. Foi assim que o Estado lhes reconheceu o direito
de fazer requisições (alojamento e comida). Em 238, os habitantes de Skaptopara
queixaram-se do comportamento das tropas a Gordiano III (135); por seu turno, os que
viviam em Aragueni, na Frígia, o mesmo fizeram junto de Filipe-o-Árabe, salientando
os desmandos e vexações que estavam a sofrer por parte da soldadesca. Em cada um
dos casos o imperador deu-lhes razão; mas- cabe perguntar-, por duas comunidades
civis satisfeitas, quantas o não terão sido?
No entanto, os piores males (recorrentes) eram a deserção, que já explorámos, e o
motim. Este podia eclodir em duas circunstâncias: no primeiro caso, ele correspondia à
tradição romana de um exército composto por cidadãos, que elegiam os seus oficiais e
não se sentiam verdadeiramente obrigados a manifestar uma obediência cega.
Situações diversas, por exemplo, materiais, serviam para deflagrar uma revolta. Esta,
além disso, suscitava uma questão jurídica, visto que implicava o desrespeito pelo
juramento, afora o problema militar propriamente dito. No segundo caso, a sedição era
provocada por um oficial superior ambicioso que almejasse o desencadear de uma
guerra civil, como sucedeu no conflito que opôs César aos «pompeienses» 1970 (137). Os
1965
S. E. Phang, Roman Military Service: Ideologies of Discipline in the Late Republic and Early Principate, Nova Iorque, 2008.
1966
1967
1968
1969
1970
672
motins encabeçados por oficiais degeneravam normalmente em guerras civis 1971(138),
mas revelam-se difíceis de analisar para nós. O general sublevado via-se perante duas
eventualidades: ou o seu golpe de Estado fracassava, tornando-se ele um insubmisso
ad aeternum (o mesmo acontecendo aos seus soldados), ou tinha êxito, podendo chegar
ao trono e convertendo-se num imperador legítimo, e os seus homens passando a ser
fiéis sustentáculos da ordem romana.
Os motins de soldados que se revestem de maior interesse para o historiador – em
latim seditiones ou discordiae1972 (139) – ocorreram na Germânia e na Panónia, em 14 d.
C., pouco após o falecimento de Augusto. Os militares estacionados na Germânia
apresentaram um «catálogo» de reivindicações que não fica aquém dos elaborados
pelos sindicatos no século XX 1973(140): exigiram a redução da idade para o
licenciamento, o aumento dos salários e uma substancial melhoria das condições de
trabalho, em concreto uma menor severidade por parte dos centuriões 1974(141); para
forçarem a satisfação das suas exigências, eles fizeram greve, interrompendo o
cumprimento do serviço, principalmente do exércício.
Quanto à seditio na Panónia (em Emona) foi despoletada por motivos idênticos, um
dos quais se relacionava com a corrupção e brutalidade dos centuriões e oficiais
superiores - um dos amotinados, chamado Percennius, queixou-se que, com o dinheiro
do seu soldo, tinha de «comprar roupas, armas e tendas [e] subornar o violento
centurião» para obter a dispensa de certas corveias. Os seus camaradas mataram o
centurião Lucilius, conhecido pela expressão Cedo alteram («Tragam-me outro), por
causa do seu hábito constante de inculcar a disciplina ao infligir fortíssimas bastonadas
no corpo dos legionários, a tal ponto que frequentemente a sua vitis se partia e ele
mandava que lhe arranjassem outra (Tácito, Ann. 1.20). Assim, a revolta das legiões
panonianas traduziu-se em reivindicações análogas às tropas da Germânia, com
apenas algumas adições 1975(143): queriam uma subida no montante do praemium,
aquando da desmobilização, que se pagaria em dinheiro e não em lotes de terra. Em
suma, eles arrogaram-se ao direito de receber a remuneração de 1 denário por dia,
«pensão» de reforma definitiva depois de 16 anos nas fileiras, e um serviço menos
duro.
Na guerra civil de 68-69, colhemos referências a várias seditiones: certa vez, os soldados
acusaram um legado de incorrer em traição e partiram para o combate sem terem
ordem para fazer 1976(144); noutro episódio, pretorianos que haviam sido expulsos
pediram para se verem reintegrados 1977(145). É notável que Vespasiano, embora
ganhando o poder suprema na guerra civil, não tenha deparado com oposição
(discordia) 1978(146). Em finais do século II, Septímio Severo, ainda que extremamente
rigoroso, não chegou a enfrentar uma revolta, basicamente porque a guerra fora
1971
1972
1973
1974
1975
1976
1977
1978
673
encarniçada e longa 1979(147). Em contrapartida, já no século III, Severo Alexandre teve
de lidar com muitos motins, o último dos quais causando-lhe a morte 1980(148).
Mas, a par dos motins, havia igualmente contra-motins. As rebeliões de 14 d. C.
mostram os métodos que os oficiais empregavam nestas circunstâncias. Em geral, o
restabelecimento da ordem efectuava-se em cinco etapas: a) o imperador Tibério
escolheu figuras prestigiosas, membros da sua família, para voltar a impor a disciplina,
Germânico na Germânia 1981(149) e Druso na Panónia. Em 68, pelo contrário, os
sediciosos foram abandonados à sua sorte: nenhuma ronda nocturna, nenhum apelo, o
que gerou pânico entre as tropas 1982(150); b) Os enviados do imperador falaram com os
soldados 1983(151) (de facto, o verbo desempenhou um papel crucial na civilização
romana); c) eles fizeram algumas concessões 1984(152); d) procedeu-se ao castigo de
vários dos agitadores 1985(153). Em 68-69, atesta-se o mesmo género de punição
selectiva, aplicada: em todo um exército somente dois homens foram castigados. Em
14, uma série de insurrectos pereceu sob os golpes assestados por soldados fiéis
1986
(155); e) Germânico conduziu as suas tropas numa expedição contra os Germanos 1987
(156); e)bis –a situação mais particular e inesperada, quando os deuses socorreram
Druso, ao ocasionar um eclipse lunar: os soldados, que desconheciam as leis da
astronomia, ao contrário do seu comandante, viram no fenómeno uma expressão clara
do descontentamento divino, pelo que pouco depois retomaram o serviço militar
1988
(157).
***
Como se viu, para manter a disciplina existiam punições que podiam atingir uma
vasta escala, algumas caracterizando-se por uma inaudita severidade. Porém, o juiz
devia saber pesar as vantagens da dureza e da clemência 1989(176). A dureza variava em
função do nível hierárquico do culpado; no século II, o poder central decidiu que os
honestiores (senadores, membros da ordem equestre e a elite dos notáveis) deviam ser
castigados de modo menos extremo do que os humiliores (simples cidadãos e peregrini)
1990
(177). No caso dos primeiros, a utilização abusiva das insígnias militares para
assustar um particular era punida com o exílio, mas no dos últimos, a pena era a morte
1991
(178). Pelo contrário, a clemência permitia a reintegração de desertores que, por
vezes, se revelavam úteis.
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
674
Os oficiais raramente eram condenados à pena capital: normalmente, as suas carreiras
viam-se suspensas e, nas situações mais graves, eram expulsos do exército (179) 1992. Por
uma infracção desconhecida, um tribuno de coorte ficou proibido de viver em Itália
durante dois anos 1993(180). Um membro do ordo equestre, que cortou os polegares dos
seus dois filhos para evitar que cumprissem o serviço militar, foi vendido como
escravo e confiscaram-se todos os seus bens 1994(181). Ignoramos que medidas terá
tomado Severo Alexandre, que ameaçou os oficiais corruptos 1995(182), ou Gordiano III,
que não quis que os cargos de comando no exército fossem vendidos pelos seus
eunucos 1996(183).
Em matéria disciplinar, os centuriões eram assimilados aos humiliores, ou quase; em
caso de crime ou delito, eles arriscavam-se a sofrer a pena de morte, mas esta poucas
vezes se aplicou 1997(184): no tempo de Augusto, temos conhecimento de um centurião
executado por haver abandonado o seu posto 1998(185); bastante mais tarde, há registo
de que Clódio Albino proferiu a sentença da crucificação, algo infame, habitualmente
reservada aos peregrinos e aos escravos 1999(186).
Existiam sanções menos graves e não definitivas, como o desterro 2000(187) ou um dia
inteiro de pé diante do praetorium, estando o soldado vestido com uma túnica,
segurando, durante todo esse tempo, uma vara, um torrão de terra ou um tijolo numa
das mãos 2001(188); também se empregava o látego para homens que fugissem durante
uma porfia 2002(189). Plínio-o-Moço conta-nos uma história de sexo 2003(190): a esposa de
um tribuno enganava-o com um centurião; este foi banido e a dama castigada de
acordo com uma lei augustana – perdeu metade do seu dote e 1/3 dos restantes bens,
sendo enviada para uma ilha e obrigada a vestir-se como uma cortesã.
Já referimos que para os milites gregarii, as punições eram frequentes e variegadas
(197)2004, algumas terríveis. A pena de morte assumia diferentes formas – crucificação, a
fogueira ou o afogamento 2005(198). Macrino teve uma ideia bizarramente original, a de
amarrar os condenados aos mortos 2006(199). Logicamente que os desertores e os
trânsfugas eram castigados com grande rigor, mas nem sempre condenados à pena
capital (havia que não desencorajar sistematicamente o regresso desses homens às
fileiras) 2007(201). Podiam decepar-lhes as mãos ou partir-lhes as pernas, o que, ao
tempo, com a falta de cuidados de higiene, equivalia a uma morte lenta. Também
1992
1993
1994
1995
1996
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2000
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675
corriam o risco de ser vendidos como escravos, o que aconteceu, por exemplo, com um
soldado que maltratou uma idosa 2008(202).
Na Judeia, um soldado capturado pelo inimigo esteve para ser executado mas, como
lograra evadir-se, Tito contentou-se em expulsá-lo da legião 2009(209). Vitélio foi mais
longe na sua generosidade, a tal ponto que o acusaram de fraco, por suprimir a
desonra dos degradados, a mácula dos acusados e as punições dos condenados
2010
(204). No século III, Maximino-o-Trácio, pelo contrário, agiu de maneira
particularmente dura no âmbito disciplinar 2011(205).
Pelo que ficou exposto, observamos uma espantosa mescla de disciplina e
indisciplina. Para Y. Le Bohec, «O exército romano assemelhava-se mais ao Tsahal do
que ao organizado pelo rei-sargento prussiano Frederico Guilherme I»2012. Não é difícil
explicar este facto: os legionários não combatiam como escravos, nem enquanto
súbditos, mas na qualidade de cidadãos romanos, ou seja, de homens livres 2013(211).
Este mesmo aspecto serve igualmente para compreendermos os êxitos obrados pelo
exército romano e a sua eficácia.
2008
2009
2010
2011
2012
Cf. La guerre romaine, p. 149.
2013
676
Cultos públicos romanos e cerimonial militar
677
auxiliares: no dia 7 de Janeiro, um evento solene marcava a altura do pagamento do
primeiro stipendium do ano, assim como o licenciamento dos soldados que haviam
cumprido o seu tempo de serviço regulamentar. Meses mais tarde, a 1 ou 7 de
Setembro, tinha lugar um ritual similar, aquando do terceiro stipendium. No que
respeita ao segundo pagamento, que ocorria em Maio, não dispomos de indicação
alguma. Contudo, dado que o Feriale Duranum nos revela também a realização de uma
cerimónia denominada ob Rosalias signorum supplicatio (que significa basicamente
«festa das rosas e das insígnias»2017), que se celebrava a 10 e a 31 de Maio, é possível
que ela coincidisse com o segundo pagamento anual do soldo, como defendeu R. O.
Fink, embora outros estudiosos, designadamente J. F. Gilliam, não aceitem esta
hipótese.
Outros testemunhos documentais indiciam que o calendário atestado em Dura
Europos seria igualmente seguido nas demais guarnições do Império: situado nas
imediações da Muralha de Adriano, o forte romano de Corbridge deixou numerosas
inscrições e esculturas alusivas às festas que constam do Feriale Duranum como, por
exemplo, a citada festa das rosas e das insígnias, evocada na Britânia num baixo-relevo.
Por seu lado, os papiros latinos de Genebra mostram duas deduções nos soldos que
ocorreram apenas uma vez por ano: a primeira sucedia em 1 de Janeiro, qualificada
pela fórmula saturnalicium K(astrense), que deveria corresponder à contribuição
financeira dos militares para a celebração dos Saturnais, no mês precedente; a segunda,
chamada de ad signa, efectuada a 1 de Maio, talvez se destinasse ao financiamento do
culto das insígnias das unidades. Ora isto confirma o laço que já havia sugerido o
papiro de Dura entre o pagamento do soldo e a festividade das rosas e das insígnias.
A epigrafia revela igualmente (CIL II, 2634, 5083; III 1019, 1646 e 15208; IV 227, 230 e
234; VIII 2529=18040, 2531, 10716 = 17623, 17621…) que os soldados prestavam culto
a divindades protectoras designadas genericamente como génios 2018. Y. Le Bohec
dividiu-as em dois géneros2019, consoante protegessem os lugares (o genius do
acampamento, do pretório, do recinto onde se efectuava o treino, dos celeiros, da
enfermaria) ou os homens (genius da legião, da coorte, da centúria, da ala).
Há mais fontes que completam os informes fornecidos pelo Feriale Duranum quanto à
existência de um cerimonial militar: uma passagem da História Eclesiástica (VII, 15, 1-
2) de Eusébio de Cesareia, relativa ao martírio do centurião Marino, por volta de
meados do século III, deixa entrever que a concessão do cepo de vinha aos centuriões, o
seu símbolo emblemático de autoridade, seria objecto de uma cerimónia, no decurso da
qual a promoção de Marino se viu contestada por um dos seus companheiros de armas.
De igual modo, uma inscrição procedente do Norte de África (CIL VIII, 2634) evoca a
deposição da vitis «junto da águia» por Sattonius Iucundus, primus pilus da IIIª legião
Augusta, no momento em que se aposentou.
Não há dúvida que muitas destas cerimónias contribuíam para fortalecer o espírito de
corpo e a lealdade do exército em relação ao seu chefe supremo, o imperador, tal como
o próprio juramento proferido pelos recrutas aquando da sua incorporação. Ressalve-se
que o sacramentum era anualmente renovado através de uma fórmula abreviada no dia
3 de Janeiro, ao mesmo tempo que se faziam os votos pela saúde do imperador 2020.
Além disso, na época imperial, a fraseologia privilegiava acima de tudo a fidelidade ao
princeps, e não tanto o tópico da defesa da Urbs, que sob a República se invocava.
À semelhança do calendário religioso, os ritos praticados pelo exército não diferiam dos
de Roma. De facto, eles englobavam sacrifícios de animais (machos para os deuses e
2017
D. B. Campbell, «Eagles, Flags and Little boars: The cult of the Standards in the Roman Army», Ancient Warfare,
III.6 (2010), p. 39.
2018
M. P. Speidel e A. Dimitrova-Milčeva, «The Cult of the Genii in the Roman Army and a new Military Deity», in
Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II.2, pp. 1542-1553.
2019
Y. Le Bohec, L’armée romaine sous le Haut-Empire, pp. 261-262
2020
B. J. Campbell, The Emperor and the Roman Army, pp. 19-32; J. Rüpke, Domi Militiae. Die religiöse Konstruktion
des Krieges in Rom, Estugarda, 1990, pp. 76-91; P. Herz, «Das römische Heer und der Roms Kaiserkult in Germanien»,
in W. Spickermann, H. Cancik e J. Rüpke (eds.), Religion in der germanischen Provinzen Roms, Tübingen, 2001, pp.
101-102.
678
fêmeas para as deusas), bem como oferendas de vinho e incenso (supplicatio)2021. Note-
se, a propósito, que nos baixos-relevos das colunas de Trajano e de Marco Aurélio
surgem representadas cenas de imolações. Neste âmbito, observamos no calendário de
Dura Europos prescrições idênticas às consignadas nas actas dos Frateres Arvali –
oferecia-se um touro a Marte e ao genius do imperador, ao passo que para os divi se
sacrificavam de bois. Mas o Feriale Duranum apenas prevê supplicationes para os
divae, não implicando a imolação das vacas por meio das quais as imperatrizes eram
honradas.
Certos immunes exerciam funções religiosas: os victimarii, encarregados de matar os
animais sacrificados, os harúspices, incumbidos de lerem os presságios nas entranhas
dos últimos. Nas legiões, o aquilifer era responsável pela guarda da águia legionária,
pertencendo ele forçosamente à centúria do primipilus. Numa estela funerária
descoberta em Apamea, figurou-se Felsonius Verus, aquilifer da IIª legião Parthica,
aparecendo munido de todos os atributos da sua função e posto.
Com efeito, em todas as bases militares havia um santuário (sacellum ou aedes
signorum) que albergava as insígnias, as efígies imperiais, assim como o tesouro da
guarnição; numa inscrição encontrada na Germânia Superior (AE 1989, 581), este
recinto é até chamado Capitolium. Os santuários localizavam-se invariavelmente no
centro das bases militares, por detrás dos principia (quartel-general), mas era diante
destes que o comandante-chefe tomava os auspícios.
679
danubianas e na Britânia2024, não se tendo encontrado vestígios do mesmo nas
províncias orientais e meridionais do Império.
Curiosamente, no santuário da guarnição de Dura Europos, junto do Eufrates, o local
mais próximo da suposta origem geográfica desse deus, não ostenta quaisquer
diferenças dos achados na Europa. A afirmação da origem oriental representava
essencialmente uma prova de sabedoria. A própria configuração dos santuários
mitríacos (mithrae) imitaria, esquematicamente, a gruta da Pérsia onde Mitra
sacrificou um touro, ao mergulhar uma faca no cachaço ou no pescoço do animal.
Enquanto nas tradições romanas se supunha que o animal consentia a sua imolação e
os rituais celebrados pelos homens, o referido sacrifício primordial demarcava-se dos
restantes pelo envolvimento pessoal do deus e pela sua violência: foi Mitra que forçou o
touro a deitar-se no solo antes de o esfaquear. Os fiéis teriam de passar por sete graus
de ritos iniciáticos, dos quais se conservaram os nomes, que, em parte, permitem
reconstituir tal progressão: «corvo», «noivo», «soldado», «persa», «heliódromo»,
«pai».
Os «corvos» situavam-se, então, na fronteira entre os iniciados e os não iniciados, à
semelhança da ave, que se acreditava ter o dom da palavra e se encontrava no limite
entre o mundo animal e o género humano. Se, por um lado, os três primeiros graus
correspondiam a etapas preparatórias, por outro as últimas três já implicavam uma
total adesão ao culto. O «leão» balizava a passagem entre estes dois níveis, e o «pai»
significava o ponto mais elevado da perfeição. Assim, o último era o verdadeiro
sacerdote de Mitra. A iniciação parece ter consistido em provas físicas e morais. Cada
escalão estava associado a um planeta, dado que se considerava que a alma do defunto
se elevava progressivamente acima da Terra, até à apogénese, o seu nascimento num
outro mundo, espiritual. Transpôs-se esta dimensão astronómica para a própria
planimetria dos mithrae: a orientação do santuário devia traduzir este percurso da
alma: o touro fora sacrificado a leste, à luz do sol, enquanto o Oeste permanecia na
penumbra. A popularidade que o culto de Mitra gozou entre as tropas não é difícil de
explanar, já que havia uma analogia entre os graus iniciáticos e a hierarquia dos postos
militares: o soldado aí encontraria, ao mesmo tempo, um eco da sua vivência
quotidiana e um incentivo para a ultrapassar as adversidades. Consequentemente, a
difusão do mitraísmo patenteava a mentalidade militar característica dos membros da
«plebe média» evocada por P. Veyne, que aspiravam a melhorar a sua sorte por meio
dos esforços pessoais.
Mitra também ganhou acólitos entre certos oficiais superiores, como o atesta a
iniciação de tribunos laticlavos em Aquincum ou a obtenção do título de pater para um
romano da ordem equestre, num mithraeum do Castra Peregrina em Roma. No
entanto, o mais usual era que os senadores e os cavaleiros se limitassem a efectuar
dedicatórias a Mitra enquanto exerciam o comando, não se iniciando no culto: veja-se o
caso dos oficiais que chefiaram a guarnição de Dura Europos, dois dos quais
ofereceram duas estátuas cultuais para o mithraeum. Em contrapartida, os centuriões
ocupavam frequentemente os graus superiores da iniciação mitraica. Quanto aos
imperadores, só começaram a conceder os seus favores a este deus no século IV.
Por outro lado, os mithrae descobertos no interior de bases militares não se
localizavam num sítio central comparável ao do santuário das insígnias. Em Dura
Europos, o mithraeum estabeleceu-se primeiro numa casa particular e, depois em
duas, incorporadas no acampamento da XXª coorte Palmyrenorum, onde, aliás, os se
encontraram incisos múltiplos grafitos. O culto consistia fundamentalmente numa
refeição ritual em que os devotos, reunidos, se deitavam sobre bancos. Quando o
número de fiéis de Mitra excedeu a capacidade de acolhimento da sala do banquete
(rondando umas vinte pessoas), foi necessário criar novos santuários. Os iniciados que
se encontravam no estádio do «corvo» serviam-se de pão, vinho e de espetadas de
carne. No entanto, várias pinturas e inscrições mostram que os archeiros palmirenses
2024
Descobriu-se um templo mitraico perto do forte de Carrawburgh (na Muralha de Adriano), cujos vestígios foram
minuciosamente examinados por I. A. Richmond e J. P. Gilliam, «The Temple of Mithras at Carrawburgh», AA. 4th ser.
29 (1959), pp. 1-92. Encontraram-se outros santuários em Segontium, Housesteads e Rudchester.
680
acantonados em Dura Europos também frequentavam o templo consagrado ao deus
Baal.
O cristianismo
681
Na opinião de R. Haensch2026, a instauração do culto cristão público no seio das forças
armadas não chegou a suscitar reacções demasiado hostis ou adversas, uma vez que os
soldados estavam habituados a participar em cerimónias colectivas religiosas, que não
coincidiriam necessariamente com as suas próprias crenças. O mesmo historiador
sugeriu também que o carisma de Constantino pode haver estimulado o exército a
aceitar a religião do imperador que o conduzira à vitória. Mas Constantino foi
provavelmente ainda mais longe, ao proibir os militares de sacrificarem animais em
honra das divindades pagãs, e a substituir as festividades oficiais dedicadas a deuses
específicos pelo Domingo, isto é, o dia do Sol (Eusébio de Cesareia, Vida de
Constantino, IV, 18-20; Codex Iustinianus, III, 12, 2) no calendário tradicional.
Os soldados cristãos assistiam à missa numa igreja ou numa tenda montada para o
efeito (Eusébio de Cesareia, Vida de Constantino, II, 12). Quanto aos outros, teriam de
recitar uma prece redigida por Constantino e dirigida a uma divindade suprema, que
não se podia assimilar a qualquer outra. No que respeita ao culto das insígnias, que
muito ajudava para o fortalecimento do espírito de corpo em cada unidade, viu-se
substituído pelo do labarum, o estandarte sobre o qual estava representado o crisma.
Torna-se difícil avaliar a amplitude da progressão do cristianismo no exército romano.
Amiano Marcelino (Histórias, XXVII, 10, 1) conta-nos que os Alamanos (Alamanni) se
apoderaram de Mogontiacum (Mogúncia/Mainz) precisamente na altura em que a
guarnição romana celebrava uma festa cristã. Se nos ativermos ao Codex Theodosianus
(XVI, 10, 21), os pagãos não foram mais admitidos no exército a partir de 416 d. C. Por
seu turno, Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 5) precisa que, doravante, os recrutas
eram obrigados a prestar juramento sobre a Trindade, mas importa saber, ao certo,
quando é que este autor redigiu o tratado.
2027
Sobre o espirito de corpo e identidade grupal no exército romano: S. T. James, «The community of the soldiers: A
major identity and centre of power in the Roman Empire», in P. Baker et al. (ed.), TRAC 98. Proceedings of the Eighth
Annual Theoretical Roman Archaeology Conference, Leicester 1998, Oxford, 1999, pp. 14-25; O. Stoll, «De honore
certabant et dignitate. Truppe und Selbstidentifikation in der Armee der römischen Kaiserzeit», in Römisches Heer und
Gesellschaft. Gesammelte Beiträge 1991-1999, Estugarda, 2001, pp. 222-268.
682
Estes vínculos, criados no interior do forte ou do acampamento, no treino, nas
actividades quotidianas, afora os períodos de tempo livre e as alturas das refeições
dentro das casernas, aproximavam inevitavelmente os homens enquanto camaradas. A
guerra e as batalhas serviam para solidificar mais anda tais laços. Os legionários numa
centúria lutavam com eficácia porque eram bem conhecidos uns dos outros e,
frequentemente, amigos – a centúria não era uma unidade tão grande que se visse
desprovida de rosto e se convertesse em algo impessoal. Mais: os legionários nutriam
profundo orgulho pela sua identidade colectiva centurial. Assim, no seio da legião, as
centúrias correspondiam a «mini-elites», cujos elementos se protegiam mutuamente.
Clarifiquemos alguns pontos sobre a terminologia usada para a camaradagem no
exército romano: contubernalis, que significa «companheiro de tenda ou de rancho»
num contubernium de oito legionários, expressava não só o grupo mais básico e os
vínculos sociais dentro da legião, como igualmente a dependência dos contubernales
uns em relação aos outros num prélio. Quanto a commilito (pl. commilitones, «co-
militar»), seria quiçá o vocábulo mais abrangente, já que se aplicava tanto ao soldado
raso (miles) como ao general e até ao imperador. Commilito englobava então o conceito
de união no exército e de respeito pelos camaradas, independentemente do lugar que
cada um ocupava na hierarquia. No entanto, descobriu-se uma curiosa ocorrência deste
termo commilito numa urna funerária de um soldado augustano. A brevidade do texto
que nela se gravou realça a morte injusta de um soldado provocada por outro, no
mesmo exército, e a traição ao espírito de camaradagem:
«L. Hepenius L. f. ocisus ab comilitone [sic]»/ «Lucius Hepenius, filho de Lucius, morto por um
camarada».
A urna foi achada num túmulo em Asciano, a sudeste de Siena, e continha uma moeda
datando de 15 a. C., o que sugere que o militar perdeu a vida durante o reinado
augustano. Aventou-se a hipótese de Hepenius haver sido um pretoriano ou um
soldado das coortes urbanae que pereceu em Roma e cujas cinzas se entregaram à sua
família para a realização do seu funeral2028.
Passemos a outro vocábulo, manipularis ou commanipularis (soldado do mesmo
manípulo), que implica a noção de dependência entre os legionários, centúria a
centúria, a chave para se conseguir uma vitória e para sobreviver numa contenda. Mas
o termo mais comovente, habitualmente observável nas inscrições das lápides, é do de
frater («irmão»). Em muitas destas estelas funerárias, verificamos, através dos
diferentes nomes da família do defunto e do(s) herdeiro(s), que não eram verdadeiros
irmãos, pelo que o étimo servia para manifestar, com eloquência e simplicidade, os
laços fundamentais que uniam os homens de armas.
Se, em certa medida, podemos descrever a legião como uma «sociedade», o
contubernium significava a «família» do legionário. A fraternidade entre camaradas
por vezes expressava-se na atitude extrema do suicídio em massa: em 28 d. C.,
encurralados no complexo de uma villa, os soldados pertencentes a um contingente
auxiliar resolveram matar-se uns aos outros, assim evitando serem apanhados pelo
inimigo (Tácito, Anais, 4.73). Tempos antes, em 54 a. C., uma das legiões de Júlio César
e cinco outras coortes legionárias foram desbaratadas ao tentarem sair do território dos
Eburones; alguns legionários procuraram regressar ao seu acampamento de Inverno
abandonado e aqui repelir os assaltos dos Gauleses até ao cair da noite, mas, ao
constatarem que seriam derrotados, preferiram suicidar-se (Júlio César, Bell. Gall.
5.37). Apiano transmite-nos um pouco a ideia de como os soldados encaravam o
suicídio: conta que os milites da reputada legio Martia decidiam abdicar das suas vidas
quando a frota antagonista de Sexto Pompeio, em 42 a. C., incendiou e afundou os
navios de transporte dos primeiros (Apiano, G. civ., IV, 116).
Este recurso ao suicídio parece ter sido considerado como bastante honroso,
traduzindo-se numa maneira de retirar ao inimigo os louros de uma vitória total, além
que também significava um meio de manter a honra do exército acima de tudo.
Durante o assédio a Jerusalém, em 70 d. C., os Judeus emboscaram um grande número
2028
L. J. Keppie, Legions and Veterans: Roman Army Papers, 1971-2000, Mavors 12, Estugarda, 2000, p. 317.
683
de soldados romanos, ao atearem fogo ao pórtico onde os últimos estavam a lutar,
assim cortando-lhes a retirada. A Muitos dos legionários morreram queimados ou sob
os golpes do inimigo, mas Longinus escapou:
«Os Judeus, ao admirarem a proeza de Longinus e perante a incapacidade de o matarem, pediram-lhe
que descesse […] garantindo que poupariam a sua vida. O seu irmão, Cornelius […] implorou-lhe que não
desonrasse a sua própria reputação ou as armas romanas. Influenciado por essas palavras, ele [Longinus]
brandiu o seu gládio à vista de ambos os exércitos e matou-se» (Flávio Josefo, Bell. Iud., VI, 185-188).
Estes episódios mostram, acima de tudo, como os laços que mantinham coesa uma
unidade militar persistiam até em momentos de grande pressão e terror, optando um
soldado por morrer ao selar um pacto com os seus camaradas, em vez de se ver
capturado ou chacinado pelo antagonista. Até um suicídio motivado pela vergonha,
como sucedeu com um miles aparentemente cobarde evocado por Suetónio (Otão, 10),
se podia considerar, à luz da mentalidade romana, como uma atitude redentora,
significando a expressão suprema da camaradagem. Suetónio Leto (Laetus), pai do
biógrafo, serviu na qualidade de legado da XIIIª legião Gemina, durante a guerra civil
de 69 d. C. Ele contou ao filho um facto que teve lugar quando um mensageiro apareceu
para comunicar ao imperador Otão a derrota das suas forças perto de Cremona:
«Quando a guarnição [em Brixellum] o acusou de ser mentiroso, desertor e cobarde, o homem [o
mensageiro] caiu sobre a sua espada aos pés de Otão. Vendo isto, Otão, relatou o meu pai, disse em voz alta
que nunca mais iria arriscar as vidas de homens tão corajosos e meritórios» (Suetónio, Otão, 10).
Pouco depois, o próprio Otão matou-se, e alguns dos seus soldados mais leais fizeram
o mesmo, à volta da pira funerária do seu comandante.
Em tempo de guerra, o conceito e a prática da fraternidade ganhava proporções ainda
maiores, porfiando os soldados em socorro de outras unidades, bem como, obviamente,
pelos seus camaradas imediatos. Em 28 a. C., verificou-se um caso notável, quando, no
decurso de uma desastrosa batalha opondo contingentes de auxilia a hordas de Frisii, a
Vª legião desencadeou um contra-ataque e conseguiu libertar um considerável número
de tropas auxiliares. Contudo, outros 900 não puderam escapar e pelejaram até ao fim
(Tácito, Ann. 4.73). Veleio Patérculo compôs um epitáfio em honra das legiões XVII,
XVIII e XIX, esmagadas em Teutoburgo (9 d. C.), reportando-se à sua coesão enquanto
grupo na contenda: «elas foram as mais valorosas de todos os exércitos» (II, 119, 2).
684
XI.1. A criação do tesouro militar
685
Não obstante a ambiguidade da terminologia empregue por Díon Cássio (Hist. rom.
55.24.9), e a associação, por Suetónio, da gratificação da aposentação militar a outros
commoda militaria (Augusto, 49), o aerarium militare destinava-se exclusivamente ao
financiamento de tal prémio e não à manutenção do exército em geral, tarefa que
estava a cargo do fisco imperial. Tal tesouro militar foi, numa primeira fase,
alimentado por uma doação inicial de Augusto, com um montante ascendendo a 42
milhões e meio de denários (isto é, 170 milhões de sestércios), depois por um imposto
de 5% sobre as sucessões (o vigésimo das heranças), bem como por uma taxa de um
centésimo sobre as vendas realizadas em hasta pública.
No entanto, o produto da vicesima hereditatium e da centesima rerum venalium não
seriam suficientes para cobrir as despesas. Pelos mesmos motivos, as concessões de
lotes de terra não parecem ter ficado mais sob a alçada do tesouro militar, conforme
depreendemos pelos resultados das pesquisas de M. Corbier 2029. De finais do século II
a. C. em diante, as conquistas e as confiscações feitas ao longo das guerras civis
representaram um «reservatório» de terras regularmente renovado, destinando-se aos
veteranos dos imperatores vitoriosos. Ora esta fonte veio a esgotar-se sob o principado
de Augusto, com a pacificação do mundo romano. Foi por esta razão que ele, depois de
licenciar massivamente os pletóricos efectivos das forças armadas triunvirais, tentou
resolver o problema ao prolongar, em duas etapas, a duração do serviço militar, no
intuito de limitar o número de veteranos a recompensar. Mas até este artifício, que
mais tarde valeu a Tibério a acusação de especular com a morte dos seus soldados, não
permitiu ao tesouro militar libertar os recursos suficientes para comprar as terras
necessárias, para além daquilo que o ager publicus podia fornecer (Suetónio, Tibério, 48).
Tal como para a manutenção geral do exército, terá sido possivelmente o fisco (as
arcas que recebiam o produto dos impostos das províncias imperiais) que se viu
solicitado, e mesmo o patrimonium (o conjunto de bens pessoais do imperador), que
servia ainda mais para que o imperador ficasse na qualidade de deductor das colónias
de veteranos, de acordo com C. Moatti.
O processo de desmobilização veio, pois, a mudar sob o Alto Império. Doravante, só
um determinado contingente de tropas era licenciado, provavelmente de dois em dois
anos2030: os legionários nos anos ímpares do nosso cômputo, os pretorianos e os
urbaniciani nos pares. Como se efectuava um supplementum todos os anos, os tirones
recrutados nos anos em que havia desmobilizações tinham, assim, menos doze meses
de serviço, o que podia incentivar os alistamentos voluntários. A partir de 216 d. C.,
pelo menos, o referido Feriale Duranum indica o mesmo dia de aposentação para todos
os corpos militares: 7 de Janeiro, talvez uma referência simbólica à data em que
Augusto se apossou dos seus primeiros fascia.
Com base nos estudos de M. Corbier e de J. C. Mann 2031 é possível quantificar os
efectivos dos contingentes desmobilizados. De dois em dois anos, licenciavam-se 150 a
200 homens por legião (quando se tratava de legiões completas que não tivessem
sofrido baixas). Nestas condições e tomando em consideração a oscilação do número
das legiões (entre 25 e 30), o total dos legionários dispensados variaria entre 3000 e
7500. Nas coortes pretorianas, a média dos soldados «libertos» em cada uma passou de
30, no início do século I da nossa era, para 66 no começo do III, o que representou um
aumento de um total de menos de 300 para mais de 600 indivíduos. Nas coortes
2029
L’aerarium Saturni et l’aerarium militare. Administration et prosopographie sénatoriale, Roma, 1974; idem, «L’aerarium
militare sur le Capitole», Cahiers du groupe de recherche sur l’armée romaine et les provinces, 3 (1984), pp. 147-160.
2030
Embora frequentemente se tenha afirmado que as desmobilizações ocorriam anualmente. Como eventual prova de
que o licenciamento tinha um carácter bienal, cf. AE 1973, 553. Sobre este assunto: G. Wesch-Klein, «Recruits and
Veterans», p. 440.
2031
«Honesta Missio from the legions», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft in der
Römischen Kaiserzeit, pp. 153-161.
686
urbanae, esta média numérica subiu de 18 para 60 por cada uma, e de uma cinquentena
para mais de 300 para o conjunto deste corpo militar ao longo do mesmo período.
Neste sentido, compreende-se que a quantidade de colónias estabelecidas sob o
Principado, bem como a superfície das terras disponíveis não permitiam acolher todos
os veteranos. A escolha que estes poderiam fazer, entre a missio agraria e a missio
nummaria devia, pois, situar-se num plano bastante teórico. Quando não existiam terras
suficientes para satisfazer todos os pedidos, os quadros de serviço e os comentários
exarados nas «cadernetas» militares constituíam, talvez, meios para seleccionar os
beneficiários. Nas outras unidades, aboletadas nas províncias, o imperador delegava os
seus poderes nos comandantes das primeiras que, por sua vez, confiavam este encargo
aos seus subordinados. Tácito, por exemplo, descreve os tribunos militares a
concederem o licenciamento aos legionários (Ann. 1.37.1). Nas coortes urbanae e
pretorianas, os tribunos desempenhavam também o mesmo papel, visto que foi aos
mesmos que os pretorianos desmobilizados pelo imperador Vitélio entregaram as suas
armas (Tácito, Hist. 2.67).
Para tal operação, efectuava-se uma lista de missiones, na qual haveria provavelmente
uma distinção entre os titulares da honesta missio, já repartidos entre os beneficiários de
lotes de terras, os que receberiam gratificações em numerário, e os soldados licenciados
desonrosamente (missio ignominiosa), privados de qualquer recompensa, além daqueles
desmobilizados antes de terminar o seu tempo de serviço, devido a ferimentos ou
doenças, recebendo uma soma de dinheiro proporcional ao número de anos em que
estiveram nas fileiras (missio causaria). A lista dos desmobilizados era, então, expedida
para Roma.
Sabe-se do caso de um miles acusado de deserção que logrou obter do imperador que
os seus anos de ausência do exército fossem levados em linha de conta no cálculo do
seu tempo de serviço, depois de ele haver provado a sua boa-fé, o que parece indicar
que possivelmente haveria uma espécie de direito de apelo face a uma decisão tomada
pelos tribunos (Papiniano, em Digesta, XLIX, 16, 15).
Temos conhecimento destas listas somente a partir de exemplares que se descobriram
nas guarnições. Os mais completos encontraram-se em Nicópolis, no Egipto (AE, 1955,
238; AE, 1969-1970, 633, em 157 d. C.) e em Lambaesis, na actual Líbia (CIL VIII, 18068,
em 198 d. C.). Dispomos igualmente de séries muito bem preservadas de dados de
veteranos do pretório (CIL VI, 32515, 32516; 32519; 3250; 3522, em 172 d. C.; 32638, por
volta de 193; 32639). Outras listas dizem respeito às cohortes urbanae (CIL VI, 32521 e
32526), que foram afixadas nos santuários das suas casernas em Roma.
Nos latercula2032, só aparecem indicados os titulares da honesta missio: os seus nomes
estão ordenados por colunas, por coorte e por centúria, acompanhados pela
explicitação dos seus lugares de origem. Na realidade, estas inscrições possuíam uma
função honorífica, já que eram dedicadas pelos próprios veterani ao imperador às suas
próprias expensas, nelas lhe agradecendo por haverem recebido a honesta missio.
Quanto aos outros, não lhes assistia qualquer razão para constarem de tais listas.
A respeito das listas destinadas à chancelaria imperial, desempenhavam um
evidente papel contabilístico, pelo que deviam mencionar todos os soldados
licenciados do exército. Elas eram, em primeiro lugar, recebidas no «gabinete» do
procurador ab epistulis e depois, possivelmente, transmitidas ao procurador a rationibus,
no tocante aos beneficiários da recepção de terras, bem como aos três prefeitos do
aerarium militare, quanto aos desmobilizados que recebessem o «prémio» em dinheiro.
Na opinião de C. Moatti, a concessão dos praemia militiae (gratificações do serviço
militar) levava à elaboração de uma constituição imperial, contendo uma lista dos
beneficiários e a sua repartição territorial (quando se tratava de veteranos que
2032
No singular laterculum, que significa «registo».
687
recebessem lotes de terra), cujo texto era afixado em Roma, antes de ficar depositado
nos arquivos2033.
Os governadores provinciais talvez pudessem emitir propostas de atribuições de
terras. Mas, em último recurso, só a administração central, perante as listas que recebia,
é que podia proceder à distribuição de missiones agrariae disponíveis pelos veteranos.
Depois, enviavam-se os anúncios das respectivas atribuições de terras unidade a
unidade, aos veteranos em causa que, por seu turno, se dirigiam aos seus lotes pelos
seus próprios meios.
Um tribuno da guarda pretoriana, Antonius Naso, que exerceu o cargo de pra[ep]ositus
supra[vetera]nos Romae mo[o]rantium [pluriu]m exercituum, esteve encarregado dos
veteranos de vários exércitos presentes em Roma (CIL III, 14387; ILS 9199, l. 16-18), no
começo do reinado de Vespasiano. Por esta altura, as circunstâncias eram muito
particulares, na medida em que era preciso vigiar de perto os veteranos dos diferentes
exércitos envolvidos nas guerras civis que deflagraram nos anos 68 e 69 d. C.
No entanto, o pagamento do prémio de aposentação aos veteranos que, à excepção
dos pretorianos e os urbaniciani, não se encontravam mais concentrados na Urbs para
serem desmobilizados, deve ter suscitado mais problemas do que a repartição dos
mesmos pelos lotes de terras, a qual, como vimos, se podia tratar por correio. Ora, os
fundos do tesouro militar estavam depositados em Roma. A existência de uma
verdadeira arca, instalada num local, é-nos confirmada por Tácito, que relata o
episódio de um prefeito a entregar as chaves da mesma a Sejano (Ann. 5.8.1).
Mas era nas províncias que a maioria dos beneficiários, os legionários, se encontrava
nas guarnições. Assim, para se efectuar o pagamento, a administração viu-se
confrontada com o seguinte dilema: convocar os veteranos a comparecer na capital,
solução da qual já referimos os inconvenientes que ocasionava (e que não se atesta na
época imperial), ou recorrer às transferências de fundos, o que implicava sempre
riscos, dado que se teriam de realizar viagens cobrindo longas distâncias entre Roma e
os acantonamentos das legiões. De facto, ao contrário do fisco imperial, o aerarium
militare não possuía, ao que se julga, uma rede de arcas romanas e provinciais, onde
pudesse estabelecer um processo de compensações.
Num artigo publicado nas actas do colóquio subordinado às legiões romanas sob o
Alto Império, centrado nas modalidades práticas do pagamento dos praemia de
aposentação aos legionários, P. Cosme2034, ao apoiar-se na narração de Tácito (Ann. 1.
16-49) sobre os motins que eclodiram na Panónia e na Germânia (aquando do
falecimento de Augusto), sugeriu existirem eventuais jogos de compensação entre o
tesouro militar, o fisco e os fundos depositados nos santuários dos acampamentos
legionários. Pretendendo satisfazer as aspirações dos soldados, Germânico começou
por declarar que eles receberiam as suas gratificações na altura em que regressassem
aos aquartelamentos de Inverno. Será, então, de imaginar que uma parte, pelo menos,
da soma necessária se conservaria nos últimos.
Sabemos da existência de soldados afectos ad anuam, que possivelmente estariam
encarregados de pagar os praemia aos veteranos: pelo menos é o que extrapolamos a
partir da interpretação de R. Marichal do conteúdo de certos óstracos descobertos em
Bu Njem2035. Sabemos igualmente que se incitavam os milites a depositar uma parcela
do seus soldos e dos donativa recebidos na capela das insígnias dos seus
acampamentos, a qual se encontrava, como atrás ficou dito, sob a guarda dos signiferi.
Os seus depósitos podiam atingir um nível bastante elevado, a ponto de conduzir a
que um legado ambicioso tivesse a veleidade de fomentar uma conjura, daí que
2033
C. Moattti, Archives et partage de la terre dans le monde romain (IIe siècle avant-Ier siècle après J.-C., Roma, 1993, pp. 18-23.
2034
«Le versement de la prime de retraite aux vétèrans des légions: quelques hypothèses à partir des mutineries de 14
ap. J.-C.», in Y. Le Bohec (ed.), Les Légions de Rome sous le Haut-Empire, pp. 699-706.
2035
Deste autor, veja-se o artigo «Les ostraca du Bu Njem», CRAI (1979), pp. 436-452.
688
Domiciano resolvesse tentar limitar o montante de cada depósito individual (Suetónio,
Domiciano, 7).
Em algumas ocasiões, vários estudiosos presumiram que este entesouramento
improdutivo revelaria claramente um rudimentar pensamento económico. No entanto,
estas reservas monetárias serviriam, talvez parcialmente, para pagar o praemium dos
veteranos, sem ter de mandar vir de Roma a totalidade dos fundos necessários. Ao
depositarem até 20 ou 30% do montante dos seus soldos junto dos respectivos porta-
insígnias, os legionários em serviço terão assim contribuído para adiantar as somas que
agilizavam o financiamento da aposentação daqueles que se viam desmobilizados.
Também é de supor que se trataria de uma maneira, para as arcas provinciais do fisco
(às qual incumbia a manutenção das tropas aboletadas nos seus espaços geográficos),
de se avançar tal soma ao tesouro militar, sob a forma de soldos, donativa ou de outros
pagamentos, destinados às guarnições.
O aerarium militare, que não tinha cofres provinciais suficientemente «alimentados»,
poderia reembolsar a seguir o fisco imperial na própria cidade de Roma. O facto de se
efectuarem as missiones de dois em dois anos, ao passo que os supplementa tinham lugar
anualmente, devia-se à necessidade, possivelmente, de facilitar as operações de
compensações entre as diferentes arcas, já que o número dos recrutas ultrapassaria
sempre o dos veteranos licenciados. Em 14 d. C., os soldados amotinados recusaram
esperar pelo seu regresso aos quartéis de Inverno, e pagaram-se a si próprios, ao
apropriarem-se dos fundos destinados a cobrir os gastos da missão de Germânico. O
cortejo de legionários descrita pelo cálamo de Tácito pode interpretar-se assim como
uma paródia do pagamento normal das gratificações, uma vez que os militares
transportavam os cofres no meio das insígnias e das águias (Ann. 1.37.1-2).
É muito provável que os eventuais mecanismos de troca entre o fisco imperial e o
aerarium militare, para o pagamento do prémio da aposentação, podem também haver
sido favorecidos pela estabilidade do seu montante, enquanto o do soldo aumentou em
dois momentos concretos, nos reinados de Domiciano e de Septímio Severo. A última
subida do valor dos praemia data, segundo se pensa, do tempo de Caracala (Díon
Cássio, Hist. rom. 77.24.1): ascendeu a 5 000 denários para os legionários e talvez 8 250
para os pretorianos. Se bem que o montante do prémio representasse
aproximadamente catorze anos de soldos aquando da sua criação, no início do século
III, apenas corresponderia a uns sete ou oito anos (Díon Cássio, Hist. rom. 7.24.1, em
215 d. C.).
A criação do tesouro militar precedeu o estabelecimento definitivo do sistema fiscal,
remontando em princípio ao reinado de Cláudio, a acreditarmos nos argumentos
esgrimidos por M. Corbier. Mas não tardou que ele tivesse de colaborar com o aerarium
militare, fosse para beneficiar de transferências dos seus cofres provinciais, na altura do
pagamento do prémio aos veteranos, fosse para «desencalhar» o depósito na própria
Urbs, quando estivesse deficitário.
Consequentemente, as competências dos prefeitos do tesouro militar eram, sem
dúvida, limitadas face a esta crescente dependência da caixa de aposentações, e pelo
controlo da utilização apropriada das receitas do vigésimo das heranças e do centésimo
das vendas realizadas em hasta pública. A lógica da sua própria evolução, bem como
as dificuldades com que o aerarium militare deparou para conseguir levar a cabo
autonomamente a sua missão levaram, portanto, a que o mesmo viesse a ser absorvido
pelo fisco imperial em meados do século III. Com efeito, não encontramos vestígios da
existência de prefeitos do tesouro militar depois do ano 250.
689
Os beneficiários dos diplomas militares
690
a evolução das vantagens concedidas aos soldados. Com efeito, como oportunamente
se verá, os diplomas militares foram descobertos em grande quantidade, ao passo que
os originais das constituições imperiais de que procederam não sobreviveram à
voragem temporal. Estas fontes viram-se reunidas por T. Mommsen no CIL III2,
posteriormente por H. Nesselhauf no CIL XIV, e por M. M. Roxan nos Roman Military
Diplomas a partir de 19542038. Após o falecimento desta investigadora, a tarefa de
compilação prosseguiu graças ao labor de P. Holder 2039 e W. Eck. A fórmula básica
englobava dez elementos bem identificados: a titulatura imperial, a lista das unidades
em questão, o nome da província de guarnição, o do comandante do exército, uma
evocação dos serviços prestados, os privilégios concedidos enquanto recompensa, a
data (dia, mês, ano), o nome do beneficiário (por vezes acompanhado pelos da sua
mulher e dos seus filhos), o local onde estava afixada a constituição imperial em Roma
e, por último, os nomes das testemunhas.
O primeiro diploma militar que se conhece foi entregue a 11 de Dezembro de 52 d.
C., em nome de Cláudio, aos marinheiros da frota de Misenum (CIL XVI, 1; ILS, 1986):
«Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus, sumo pontifex, no seu 12º mandato tribunício,
imperator 27 vezes, pai da pátria, censor, cônsul pela 5ª vez, aos trierarcas e aos remadores que
serviram na frota, que está em Misenum sob [o comando] de Tiberius Iulius Optatus, liberto de
Augusto, os quais foram licenciados com a honesta missio, cujos nomes se apresentam aqui
escritos em baixo: para eles próprios, para os seus filhos e descendentes, ele concedeu a
cidadania e o direito ao casamento legal com as mulheres que tinham no momento em que lhes
foi outorgada a cidadania ou, no caso de serem solteiros, aquelas com quem desposaram a
seguir, na condição de que cada um se case apenas com uma mulher. Em 11 de Dezembro, sob o
consulado de Faustus Cornelius Sulla Felix e de Lucius Salvidienus Rufus Salvianus. Para o soldado:
Sparticus, filho de Diuzenus, Dipscurtus de Bessa. Transcrito e autenticado, conforme à placa de
bronze que está afixada em Roma, no Capitólio, no Templo de Fides, à direita»
«[Testemunhas] Lucius Mestius Priscus, filho de Lucius, da tribo Aemilia, de Dyrrhachium,
Lucius Nutrius Venustus, de Dyrrhachium, Gaius Durrachinus Anthus, de Dyrrhachium, Gaius
Sabinius Nedymus, de Dyrrhachium, Gaius Cornelius Ampliatus, de Dyrrhachium, Titus Pomponius
Epaphroditus, de Dyrrhachium, Numerius Minius Hylas, de Thessalonice»2040.
Existem motivos para supor que os auxilia começaram também a receber diplomas
na mesma altura que os marinheiros, na medida em que a diferença de dois anos,
observável entre o documento transcrito e os primeiros diplomas conhecidos obtidos
pelos auxiliares, se deve, muito possivelmente, ao acaso das descobertas arqueológicas.
Capta-se uma primeira diferença entre os diplomas dos marinheiros e os dos auxilia:
até ao século II, os primeiros eram atribuídos «aos trierarcas e aos remadores que
serviram», enquanto os segundos se concederam «aos cavaleiros e aos infantes que
servem» até ao reinado de Vespasiano (CIL XVI, 1-3).
Daqui se depreende que os marinheiros teriam de esperar obrigatoriamente pelo
cumprimento dos seus 26 anos de serviço para aspirarem às vantagens atestadas pelos
seus diplomas; os auxilia, por seu turno, podiam obtê-los encontrando-se ainda nas
fileiras, fosse por haverem ultrapassado o seu tempo regulamentar de 25 anos, fosse
porque o imperador tomasse a decisão a eles respeitante achando-se eles no activo 2041.
A partir do principado de Vespasiano, o verbo militare pôde ser conjugado tanto no
passado como no presente nos diplomas entregues aos auxilia. Assim, os seus
beneficiários englobavam tanto veteranos desmobilizados como soldados ainda em
actividade que se tivessem distinguido por um tempo de serviço particularmente longo
2038
M. M. Roxan, Roman Military Diplomas I 1954-1977, Londres, 1978; idem, Roman Military Diplomas 2 1978-1984,
Londres, 1985.
2039
Roman Military Diplomas 5 2003-2005, Londres, 2006.
2040
E. M. Smallwood (ed.), Documents illustrating the Principates of Gaius Claudius and Nero, Cambridge, 1967, nº 295
(diploma, Stabiae, 52 d. C.); B. J. Campbell, The Roman Army 31 BC-AD 337. A Sourcebook, nº 322, p. 195.
2041
J. C. Mann, «The development of auxiliary and fleet diplomas», Epig. Stud. 9 (1972), pp. 233-241.
691
(CIL XVI 26; 34 e 164). Em contrapartida, desde o reinado de Trajano, tinha que se ser
preciso ter- obrigatoriamente veterano para receber o diploma militar, já que o verbo
militare apenas surge mencionado no passado (CIL XVI, 58; 59; 61-64).
Um recente achado revelou que o direito de cidadania romana podia até conceder-se
aos pais, irmãos e irmãs do veterano em causa: trata-se de um diploma que W. Eck e A.
Pangerl dataram de 121 d. C2042. No entanto, uma tal extensão de privilégios deveria ser
de carácter excepcional, uma vez que ocorreu outra importante mudança entre os anos
140 e 145. De facto, a partir deste período, os filhos e os demais descendentes dos
veterani auxiliares (salvo os centuriões e os decuriões) foram excluídos dos privilégios
outorgados, embora os veteranos da frota tenham continuado a beneficiar dos mesmos.
Torna-se difícil compreender as razões que conduziram a essas modificações,
cronologicamente situadas entre o final do principado de Trajano e o de Antonino-o-
Pio. Para W. Eck, que salientou que a exclusão não se aplicava aos filhos nascidos antes
do alistamento dos seus pais, Antonino pretenderia lembrar desta forma que os
soldados não tinham o direito de se casar durante o tempo em que estivessem a
cumprir o serviço militar. Além disso, o temor de um acesso demasiado rápido das
populações pouco romanizadas ao direito de cidade também deve haver
desempenhado o seu papel, bem como a vontade de não diminuir o potencial dos
recrutas auxiliares peregrini, que se viam impelidos a alistar-se com vista à obtenção da
cidadania romana. B. Rémy2043, biógrafo de Antonino-o-Pio, sublinhou que este reinado
não foi tão pacífico como muitos historiadores frequentemente ainda supõem, e que o
imperador talvez se preocupasse em manter esse potencial num nível que permitisse
enfrentar eventuais ameaças. Posto isto, os documentos aqui em apreço talvez nos
elucidem sobre a história militar em geral.
Se, por um lado, os primeiros diplomas de auxiliares e marinheiros parecem ter sido
quase coevos, por outro, só cerca de vinte anos mais tarde se atestam os diplomas
entregues aos pretorianos: o primeiro que se conhece data possivelmente de 72 d. C.
(CIL, XVI, 25; ILS, 1994, entre 72 e 79). Nesta situação, não nos podemos contentar em
invocar o acaso das descobertas. Assim, cabe buscar a explicação para este facto nas
perturbações que afectaram a composição das coortes pretorianas durante a crise de 68-
69. Efectivamente, cada um dos quatro imperadores que se sucederam entre a morte de
Nero e o advento de Vespasiano procedeu à depuração da guarda do seu predecessor,
substituindo-a pelo seu próprio pretório.
Foi por isto que Vespasiano se viu à cabeça de pletóricos efectivos de pretorianos no
activo ou já licenciados, dos quais uma significativa proporção saira das legiões (até de
unidades de auxilia), vindas das suas províncias de guarnição para a Urbs, a fim de
apoiarem a causa dos diferentes candidatos à púrpura imperial (Tácito, Hist. 2.93-94).
Ora era impossível transferir este acréscimo de homens para outros corpos de tropas
forçosamente menos prestigiosos, porque de outro modo haveria sérios riscos de gerar
graves descontentamentos. Galba fez, previamente, a cruel experiência (Suetónio,
Galba, 12). Vespasiano, por seu turno, resolveu desmobilizar parte dos pretorianos,
concedendo-lhes privilégios especiais que vieram a juntar-se às recompensas habituais,
sob a forma de lotes de terra ou de dinheiro (Tácito, Hist. 4.46).
Nesta categoria de soldados (de elite), não se colocava a questão da concessão da
civitas, visto que todos eles já eram cidadãos desde a altura da sua incorporação. Não
obstante este facto, muitos dos pretorianos haviam estabelecido uniões ilegais com
peregrinas, no decurso da sua anterior carreira. Eles alimentariam, então, expectativas
em verem a sua situação regularizada, para que os seus filhos igualmente
2042
«Neue Miltärdiplome für Truppen in Britannia, Pannonia superior, Pannonia inferior sowie in Thracia», REMA
1(2004), pp. 63-101.
2043
Antonin le Pieux, le siècle d’or de Rome. 138-161, Paris, 2005, capítulos II e III. Para uma visão sucinta, consulte-se o
artigo igualmente de B. Rémy, «La politique extérieure de l’empereur Antonin le Pieux (138-161)», Histoire Antique &
Medievale, nº 47, (jan.-fév. 2010), pp. 44-49.
692
beneficiassem da cidadania. Neste sentido, ao outorgar-lhes o conubium, Vespasiano
encontrou uma boa maneira para os fazer aceitar mais facilmente a desmobilização.
Mas, ao mesmo tempo, o imperador criou um precedente.
Doravante, a concessão de tal privilégio foi regularmente renovada sempre que se
licenciasse um contingente de pretorianos, embora tenha sido necessário aguardar pelo
advento de Septímio Severo, em 193, para que, de novo, a guarda pretoriana integrasse
legionários das províncias. O novo imperador entendeu castigar desta forma os
pretorianos por haverem vendido literalmente o poder supremo em leilão depois do
assassinato de Pertinax e, no outro extremo, recompensar os legionários que o
ajudaram a subir ao trono, oferecendo-lhes uma promoção de elevado prestígio. A
acentuada diminuição do número de diplomas militares obtidos pelos veteranos do
pretório que se verifica entre o período Flávio e o Severiano não se deveu, portanto, a
uma mera casualidade. Neste espaço de tempo, os italianos voltaram efectivamente a
tornar-se maioritários no pretório, justificando até uma suspensão do conubium após
168 e ao longo do reinado de Cómodo.
É certo que sobreviveu o texto de um discurso, proferido por Marco Aurélio no dia 6
de Janeiro de 168 e tendo como palco o Castra Pretoria, sem dúvida destinado aos
pretorianos que estivessem prestes a aposentar-se, no qual ainda se alude ao conubium,
apenas concedido aos veteranos da guarda (Fragmentos do Vaticano, 195). Mais tarde,
Septímio Severo restabeleceu a concessão do conubium para compensar a provável
manutenção da proibição do casamento durante o serviço militar somente para os
pretorianos e, principalmente, tendo em conta a origem provincial dos mesmos.
Em relação às coortes urbanae, o primeiro diploma que conhecemos de um veterano
remonta a 166 (CIL XVI, 124). Mas, na realidade, os urbaniciani devem ter beneficiado
do conubium no fim do seu tempo de serviço, nas mesmas circunstãncias que os
pretorianos. O que acontece é que eles tiveram ocasião de fazer valer ainda menos
frequentemente do que os pretorianos, na medida em que o seu recrutamento
continuou a assentar muito em mancebos da península itálica, mesmo em fases de
conflitos e depois do advento de Septímio Severo.
A questão dos diplomas entregues aos soldados dos numeri veio a ficar esclarecida a
partir do momento em que os estudiosos deixaram de considerar que este termo
corresponderia a um tipo específico de corpo de tropas, servindo, em vez disso, para
designar globalmente qualquer género de formação militar. Na maior parte dos casos,
os numeri mencionados nos diplomas consistem em vexillationes, isto é, destacamentos
de unidades de auxiliares pré-existentes. Apenas seis dos quinze documentos
conhecidos dizem respeito a soldados procedentes de unidades étnicas. Um diploma,
datando do reinado de Antonino-o-Pio, do qual infelizmente não se conseguiu
reconstituir as suas cláusulas, destinou-se a cavaleiros mauri (CIL XVI, 114). Os
restantes cinco, redigidos entre 120 e 126 d.C., tiveram como beneficiários archeiros
palmirenos, que apenas receberam o direito de cidadania a título pessoal, sem o
conubium (CIL XVI, 68). Esta restrição corrobora a natureza muito peculiar destas
unidades pouco romanizadas, que conservavam as suas próprias indumentárias e
técnicas de combate.
A outorga da cidadania a tais soldados não recompensava apenas os actos de bravura
excepcional que tivessem empreendido nos campos de batalha. Ela sancionava
principalmente um compromisso com uma determinada duração, difícil de apurar, ao
serviço de Roma, na sequência de um tratado concluído com o povo de origem dessas
tropas. De facto, como mostrou P. Le Roux, contrariamente ao tempo de serviço
exigido aos auxilia, esta duração de «contrato» diferia consoante as unidades étnicas em
questão.
Quanto aos equites singulares Augusti, tiveram de aguardar pelo reinado de Septímio
Severo (193-211) para beneficiarem do conubium e do direito de cidade, no fim do seu
693
serviço, isto se nos ativermos ao primeiro diploma conhecido a eles respeitante (CIL,
XVI, 144). Ora, desde 212, por iniciativa de Caracala, todos os habitantes livres do
Império passaram a ser cidadãos romanos.
Outros documentos
2044
E. Smallwood, Documents illustrating the Principates of Nerva, Trajan and Hadrian, Cambridge, 1966, nº 330 (papiro
redigido em Caesarea, Síria-Palestina, 150 d. C.).
694
No escalão imediatamente inferior, os legionários geralmente não poderiam aspirar a
mais do que benefícios materiais, mesmo quando algumas constituições imperiais lhes
concediam episodicamente o conubium com peregrinas, em circunstâncias particulares.
Mais abaixo estavam os auxilia e os marinheiros, que se tinham de contentar com uma
promoção do seu estatuto pessoal.
Assim, a entrega de um diploma militar não se achava ligada, de modo algum, a um
prestígio menor da arma em que o soldado tivesse servido. Ela dependia, acima de
tudo, do tipo de recompensa que o miles recebia no fim da sua carreira, já que tal
documento servia para que ele pudesse valer os privilégios jurídicos que o seu estatuto
de veterano lhe conferia. Convém também ter em conta o peso do costume, que levava
a administração romana a continuar a fornecer diplomas aos veteranos dos corpos de
tropas que começaram a recebê-los em determinadas circunstâncias, mas não aos
outros, para os quais simplesmente não se estabelecera uma tradição idêntica.
A melhor prova radica no facto de os únicos veteranos legionários a receberem
diplomas terem sido os da Iª e IIª legiões Adiutrices (Adiutrix, no singular): com efeito,
estas haviam sido inicialmente formadas com marinheiros recrutados para as frotas de
Misenum e de Ravenna, em 68 d. C. (Tácito, Hist. 1.6, 3.50; Suetónio, Galba, 12; Plutarco,
Vida de Galba, 15). Os soldados incorporados nestas duas unidades, antes da sua
assimilação às outras legiões, foram rapidamente desmobilizados, os da primeira em 22
de Dezembro de 68, e os da segunda em 7 de Março de 70. Nestas duas datas, eles
receberam diplomas, na medida em que só obtinham a cidadania na altura do seu
licenciamento. Tais documentos apresentavam-se redigidos de acordo com um
formulário similar aos concedidos aos veteranos das frotas.
No presente caso, trata-se de legiões inteiras, formadas numa conjuntura particular,
o das guerras civis de 68-69. De forma idêntica, os 22 veteranos da legio X Fretensis
obtiveram, por fim, do governador da Judeia, não um verdadeiro diploma, mas um
certificado ou declaração a apresentar ao prefeito do Egipto. Isto não era estranho no
país nilótico, onde o número reduzido de cidadãos nos primeiros tempos que se
seguiram à criação da província terá muitas vezes constrangido as autoridades a
recrutarem Egípcios para as legiões da guarnição provincial, infringindo as normas
observadas no âmbito do arrolamento. Mas, para lhes ministrarem uma formação
militar inicial romana, era-lhes imposta uma passagem prévia pela marinha, o que não
incomodava esses homens, tanto mais que esta arma possuía um certo prestígio no
Egipto. Quanto à cidadania, apenas a recebiam uma vez cumprido o tempo de serviço,
enquanto legionários.
Compreende-se, portanto, a importância especial que assumiria, aos olhos dos
referidos veteranos, o direito ao casamento. Segundo W. Eck, os veterani da legio X
Fretensis foram possivelmente recrutados aquando da revolta judaica de Bar Kochba
(132-135), altura em que as autoridades romanas talvez arrolassem, a título
excepcional, peregrini para algumas das legiões que participaram na repressão do
movimento subversivo.
A necessidade desses documentos, os diplomas militares, para os legionários que
não tinham a condição de cidadãos, fez-se sentir especialmente no Egipto, cuja
população se encontrava repartida por uma série de categorias sociais e jurídicas muito
hierarquizadas2045. Ora sabe-se que esta situação complexa obrigava as autoridades a
proceder a operações de verificação do estatuto pessoal dos seus administrados,
conhecidas oficialmente pela designação de épicrisis: quando o prefeito do Egipto dava
as suas audiências, esses homens compareciam diante de um oficial delegado, que
recolhia os seus nomes e os documentos que apresentavam num registo, o tomos
épicriseôn. Depois, era possível solicitar uma cópia nominativa de tal declaração, vertida
2045
F. Mitthof, «Soldaten und Veteranen in der Gesellschaft des römischen Ägypten (1.-2. Jh. N. Chr.), in G. Alföldy, B.
Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer…, pp. 377-405.
695
para grego, por assim ser mais facilmente utilizável a nível local. Foram estras
traduções para a língua helénica que se conservaram, escritas sobre papiro. Em duas
declarações de épicrisis, aparece mencionada uma categoria particular de veteranos, os
chamados «veteranos sem bronze» (BGU, I, I, 113; CIL XVI, p. 143, nº 4, l. 1-5, datando
de 140 d. C.):
«Extracto do registo dos epicriseis de Gavius Avidius Heliodorus, antigo prefeito [….]: os
veteranos cujos nomes se seguem, que serviram nas alas, nas coortes e nas duas frotas de
Misenum e da Síria, que receberam a cidadania romana, juntamente com os seus filhos e
descendentes, e o direito ao casamento legal com as esposas que tinham no momento em que
lhes foi outorgada a cidadania ou, no caso dos celibatários, com aquelas que desposaram
depois, na condição de que cada um só case com uma mulher; assim como os outros veteranos
“sem bronze” […]».
Na sua colectânea Corpus Papyrorum Latinarum (Wiesbaden, 1958), R. Cavenaile,
entendeu que os «veteranos sem bronze» corresponderiam aos legionários de origem
peregrina, que não podiam obter um verdadeiro diploma, contentando-se só com uma
declaração textual, redigida numa tábua de madeira (eventualmente revestida com
uma camada de cera) ou num papiro. Esta interpretação foi afinada por S. Daris, nos
Documenti per la storia dell’esercito romano in Egitto (Milão, 1964), graças à descoberta da
cópia de um excerto de registo de épicrisis entregue a um veterano (P. Clermont-
Ganneau, com data de 159 d. C.). Eis o seu conteúdo:
«Marcus Antonius Pastor, que pretende residir actualmente em Syene, idade [em branco];
Marcus Valerius Antonius Ammonianus, seu filho [em branco]. O dito Pastor apresentou um
certificado de bronze selado, cópia da estela de bronze, atestando que ele serviu e recebeu uma
aposentação honrosa, a datar do 5º dia antes das calendas de Janeiro, sob o consulado de Gaius
Iulius Severus e de Titus Iunius Severus, da I ª Cohors Augusta Praetoriana Lusitanorum, Prefeito
Quintus Aelius Pudentillus […]».
Para S. Daris, a expressão «sem bronze» não pode reportar-se a um só corpo de
tropas, já que, nesse caso, a administração teria certamente empregue um termo mais
adequado. Demonstra, por outro lado, que os veteranos legionários, quando tivessem
sido recrutados segundo as regras em vigor, não estariam, ao que tudo indica, sujeitos
à épicrisis, dado que eles jamais figuram nas declarações e não poderiam apresentar um
documento que não lhes fora entregue. Cabe ver então nos «veteranos sem bronze»
todos aqueles que não tinham possibilidade de mostrar um diploma militar à épicrisis.
Nesta situação, além dos legionários peregrini e egípcios2046, conhecemos também
auxiliares: por exemplo, M. Lucretius Clemens, da II cohors Itureorum, que apresentou ao
prefeito da legio II Traiana Fortis uma carta do prefeito do Egipto, certificando que ele
terminara o seu tempo de serviço e fora licenciado (P. Mich., inv. nº 2930, SB, IV, 7362;
CIL XVI, p. 144, nº 8, 188 d. C.):
«Extracto do registo das épicriseis […]: épicrisis de Longaeus Rufus, antigo prefeito, por
procuração de Allius Hermolaus, tribuno da II legio Traiana Fortis, do 25 Epeiph ao 29 Thoth do 26º
ano do [nosso] senhor Aurelius Commodus Antoninus Caesar. Depois de outras [rúbricas], na
página 1: M. Lucretius Clemens, que deseja residir actualmente no nomo Arsinoita, idade [em
branco]. O veterano acima nomeado declarou ter servido na II cohors Itureorum, e apresentou
uma carta de Pactumeius Magnus, antigo prefeito, que atesta que depois de servir na coorte
acima referida, ele recebeu a sua aposentação honrosa em 31 de Dezembro, sob o consulado de
Aurelius Commodus Antoninus Pius e de Quintillus».
Citemos igualmente o caso de Lucius Cornelius Antas, veterano da ala Augusta, que,
na altura de se submeter à épicrisis, juntou ao seu diploma militar um documento
contabilizando os seus anos de serviço (P. Hamb. 31; CIL XVI, p. 143, nº 2, l. 5-20, 103 d.
C.):
«Lucius Cornelius Antas, querendo residir actualmente no nomo Arsinoita, [com a sua mulher]
e seus filhos, Heraklidés, idade [em branco], Crispina, idade [em branco] e Ammonarion, idade
2046
Para um bom apanhado sobre esta matéria: P. Cosme, «Les véterans sans diplôme en Égypte», Cahiers du Centre
Gustave Glotz, XVIII (2007), pp. 55-65.
696
[em branco]. O dito Antas, acima mencionado, apresentou um certificado de bronze, do qual se
consignou aqui uma cópia, atestando que ele se registou com a sua mulher e os seus filhos, da
seguinte maneira: Lucius Cornelius Antas, filho de Heraklidés, castris, duplicarius na ala Augusta, de
que Messius Iulianus é o prefeito, Antonia, irmã de Crispus, sua mulher, Heraklidés, seu filho,
Crispina, sua filha, Ammonarion, sua filha. Ele juntou também uma cópia dos arquivos [do
templo de Castor e Pollux, incluindo a declaração que serviu durante 26 anos e recebeu a sua
aposentação honrosa; ele apresentou três testemunhas para a sua identidade»2047.
Em face dos privilégios concedidos, o que mais contava não era o suporte do
documento exibido pelo veterano, mas a própria natureza do acto. Afora as suas
diferenças de forma e de suporte, todos estes documentos têm um ponto em comum, o
de não procederem de uma constituição imperial afixada em Roma, sendo eles
entregues por um governador provincial: num caso, o prefeito do Egipto, noutro, o
legado propretor da Judeia. Por seu lado, o texto ao qual os mesmos aludem era
afixado na capital da província: no pórtico do santuário do divino Augusto, em
Alexandria (a versão egípcia do templo do divino Augusto de Roma), no que respeita
aos documentos egípcios.
O papel desempenhado pelos governadores provinciais e a indicação dos diferentes
locais de afixação revelam a complexidade inerente aos procedimentos de
desmobilização das tropas, que, à semelhança do dilectus, punham em acção várias
instâncias administrativas, que, em cada etapa, deviam poder comunicar entre si.
Assim, o estudo deste processo talvez sirva para esclarecer a questão dos veteranos
«sem bronze». O facto de os legionários não receberem um diploma militar, de que os
auxilia os obtinham antes de cumprirem o seu tempo de serviço, mostra que estava em
causa um documento que atestava os privilégios jurídicos conferidos ao seu detentor, o
qual não se pode assimilar a um simples certificado de aposentação. Importa dizer que
também existiam estes certificados, dos quais sobreviveram alguns exemplares. O mais
divulgado consiste numa tábua de madeira revestida por uma camada de cera, que se
preserva no Museu Egípcio do Cairo («Tábua do Cairo», 29811; CIL XVI, p. 143, nº 1;
ILS 9060; CPL 113, com data de 4 de Janeiro de 122, Faium):
M’ Acilio A{va}viola et Pansa cos. / pridie Nonas Ianuarias /T. Haterius Nepos, praef. Aeg., / L.
Valerio Nostro, equiti / alae Vocontiorum turma / Gaviana emerito, hone/stam missionem dedit […]
«Sob o consulado de Marcus Acilius Avaviola e de Pansa, na véspera das nonas de Janeiro, Titus
Haterius Nepos, prefeito do Egipto, concedeu a aposentação honrosa a Lucius Valerius Noster,
cavaleiro que terminou o seu serviço na Ala dos Voconces, na turma de Gavius […]».
O formulário empregue é bastante mais simples que os dos diplomas militares
propriamente ditos: o nome do prefeito do Egipto, citado logo a seguir à data, precede
o do beneficiário e a designação da sua unidade. O texto finda com a referência à
honesta missio e, na parte inferior da tábua, através da subscriptio do prefeito2048. Este
género de documento era igualmente redigido fora do Egipto, sem obedecer, de
maneira tão rigorosa, a um modelo expositivo, como sucedia nos diplomas militares:
em 1964, em Han sur Lesse (Bélgica), descobriu-se uma placa de bronze que,
inicialmente, se supôs fazer parte de um diploma, mas, depois, se verificou
corresponder à subscriptio de uma tabula honesta missionis, ou seja, da «assinatura» de
um certificado de boa conduta (AE, 1980, 647, 19 de Janeiro de 108):
«Concedemos uma honesta missio; Claudius Livianus, prefeito do pretório, subscreveu [este
documento] em 19 de Janeiro, sob o consulado de Gallus e de Bradua».
As semelhanças com a «Tábua do Cairo» saltam à vista: com efeito, vemos, numa das
faces da peça de bronze, os mesmos elementos que no suporte de madeira, mas numa
ordem diferente, à excepção do nome do beneficiário, que não resistiu à usura do
2047
Para comentários adicionais sobre M. Lucretius Clemens e L. Cornelius Antas: cf. «HONESTA MISSIO. Zu
Entlassungsurkunden und verwandten Texten», in M. A. Speidel, Heer und Herrschaft im Römischen Reich der Hohen
Kaiserzeit, Estugarda, 2009, pp. 340-341.
2048
«HONESTA MISSIO. Zu Entlassungsurkunden und verwandten Texten, in M. A. Speidel, Heer und Heerschaft…, p.
336
697
tempo (provavelmente seria um pretoriano): em primeiro lugar, a menção à honesta
missio, secundada pelo nome do prefeito do pretório, terminando com a data; na outra
face, enumeram-se os nomes de sete testemunhas, garantindo a autenticidade do
documento.
Entregavam-se estes certificados de boa conduta quando os interessados os
solicitavam. Mas eles emanavam do governador provincial e não do imperador. Uma
descoberta relativamente recente prova, aparentemente, que ao contrário dos diplomas
militares, também se poderiam entregar tabulae honestae missionis a legionários: num
das tabuinhas de madeira achadas no forte legionário de Vindonissa, aparece,
efectivamente, o texto de um édito de Domiciano, de 91 d. C. (AE, 1991, 1261), pelo
qual se concede a honesta missio aos soldados da XI Claudia, que na altura estava de
guarnição na Germânia Superior. Verifica-se que este documento destinado aos
legionários difere dos outros certificados de aposentação até agora conhecidos, na
medida em que emana directamente do imperador, e não de um governador provincial
ou de um comandante de corpo:
«O imperador César, filho do divino Vespasiano, Domiciano Augusto Germânico, sumo
pontifex, no seu 11º mandato tribunício, aclamado imperator pela 21ª vez, cônsul pela 15ª vez,
censor perpétuo, pai da pátria, concedeu a aposentação honrosa aos soldados da XIª legião
Claudia Pia, Fidelis, incorporados na mesma sob os consulados de Caius Luccius Telesinus e de
Caius Suetonius Paullinus, de Lucius Iulius Rufus e de Fonteius Capito, sob o comando de Lucius
Iavolenus Priscus, legado de Augusto propretor, dos quais a seguir se apresentam os nomes […]
[Feito] sob o consulado de Quintus Valerius Vegetus Publius Metilius Nepos».
Para concluir esta alínea, prestemos um derradeiro esclarecimento sobre os veteranos
«sem bronze» referidos nas fontes papirológicas: talvez estivessem inseridos nesta
categoria os soldados cujo licenciamento fora deixado ao cuidado apenas do
governador de província, em razão do caso particular que eles representariam (por
exemplo, os marinheiros egípcios recrutados nas legiões). Seriam chamados «sem
bronze» porque os seus nomes não constariam indubitavelmente das tábuas de bronze
afixadas em Roma. Em contrapartida, a situação desses milites era regulamentada
mediante uma decisão do governador da província onde os mesmos haviam estado de
guarnição.
Os soldados aposentados, que estavam a criar bases para uma nova vida, em geral já
com uma idade relativamente avançada, viam-se gratificados por uma substancial
quantia em dinheiro, bem como passavam a usufruir de privilégios significativos.
Chamava-se praemium militiae à recompensa em numerário ou sob a forma de um lote
de terra, enquanto em relação às prerrogativas e privilégios concedidos a um veteranus
se dava a designação de emeritum (Suetónio, Augusto, 24, 2; Digesta, 49.16.5.7). A
concessão deste conjunto de privilégios representava, realmente, um importante
contributo para que um militar pudesse «construir» uma existência civil depois de
servir nas fileiras. Augusto atribuiu aos veteranos vantagens quase exorbitantes que,
anos depois, foram restingidas. De facto, o primeiro imperador de Roma, ainda no
rescaldo das guerras civis, outorgou uma imunidade fiscal total aos ex-militares,
extensiva aos seus filhos, esposas e pais. A partir dos Flávios, tal imunidade cingiu-se
aos familiares que vivessem com o veterano. Mais tarde, desde o reinado de Septímio
Severo, o património fundiário dos veterani passou a ser tributável. Assim, os
698
privilégios variaram ao longo do tempo. Mais: também dependiam do número de anos
de serviço, do posto e do ramo em que o soldado estivera nas forças armadas. Além
disso, as isenções legais atribuídas aos veteranos nem sempre foram permanentes,
frequentemente tendo validade apenas para determinado período.
Havia, igualmente, privilégios que apenas se outorgavam a ramos ou a categorias
específicas de soldados. Assim, Vespasiano concedeu aos pretorianos desmobilizados
imunidade no que respeita aos impostos sobre as parcelas de terra que tinham recebido
do fundador da dinastia dos Flávios e, também, sobre quaisquer bens de que fossem
proprietários até à altura da obtenção deste privilégio (CIL XVI 125).
Em 44 d. C., por determinação expressa de Cláudio, todos os soldados se viram
igualados à condição de homens casados, o que melhorou o estatuto dos veteranos:
agora, um veteranus, a par de um seu homólogo mais jovem, ganhava os benefícios
fiscais de um indivíduo casado (Díon Cássio, Hist. rom. 60.24.1). Na realidade porém,
não sabemos ao certo se um veterano usufruía deste estatuto para sempre ou se era
obrigado a casar-se dentro de um certo espaço de tempo para desta forma o manter.
Os veteranos estavam dispensados de levarem a cabo deveres municipais (munera
personalia e mixta) e de exercer cargos cívicos (Digesta, 49.18.2 e 49.18.5; Codex
Theodosianus, 7.20.2), mas não ficavam isentos das taxas locais (vectigalia e munera
patrimonii; Digesta, 49.18.2.4). Dentro desta categoria, outra série de privilégios
facilitava as suas vidas: os veteranos ficaram livres de efectuarem trabalhos pesados
por iniciativa de Augusto, o que também se aplicava aos seus parentes mais chegados
(mulheres, filhos e pais). Estes direitos foram confirmados por Domiciano (CIL XVI, p.
166, nº 12 = FIRA I (2ª edição), 76, l. 15ss.) e pelos imperadores subsequentes. Mais
tarde, Constantino-o-Grande e os seus sucessores confirmaram novamente isenções de
impostos sobre o comércio para os veteranos (Codex Theodosianus, 7.20.4, 13.1.2, 13.1.7).
No entanto, em 385 d. C., esta isenção fiscal limitava-se a transações até 15 solidi (Cod.
Theod. 13.1.14; 385).
O número de familiares de um veteranus que gozava dos privilégios atribuídos ao
último foi reduzindo com o tempo, embora desconheçamos os detalhes deste processo.
Em determinado momento do século III, o mais tardar, os descendentes de um
veterano já não tinham mais imunidade ou, então, se desta usufruíam era só
condicionalmente. A denominada tabula Brigetionensis diferencia as isenções do
imposto individual (capitatio) de acordo com o número de stipendia que o veterano
cumprira (AE 1937, 232 = FIRA I [2ª edição], 94): depois de terminado o período
completo de serviço (completis stipendis legitimis), quatro pessoas ficaram isentas,
enquanto, em contrapartida, com uma honesta missio após 20 anos nas fileiras, ou com
uma aposentação em resultado de ferimentos sofridos em combate, apenas foram
concedidas duas isenções, para um veterano e a sua mulher. Isto significa, ao mesmo
tempo, que era possível, como anteriormente ou mais tarde, obter um licenciamento
honroso volvidos 20 anos, mas o número de stipendia que se esperava que um soldado
atingisse situava-se acima dos 20.
Depreende-se, igualmente, que a atribuição dos privilégios diferia do ramo a que o
veterano tivesse pertencido nas forças armadas: é algo que se atesta num decreto de
Diocleciano e de Maximiano, que negaram a um soldado auxiliar a isenção de funções
políticas e serviços pessoais (honorum et munerum personalium vacatium), já que a mesma
só se concedia habitualmente a homens que tivessem sido desmobilizados prematura
mas honrosamente de uma vexillatio ou legião, findos 20 anos de serviço (Codex
Iustinianus 10.55.3). No dia 17 de Junho de 325, Constantino I estabeleceu novas normas
sobre as imunidades dos veteranos e do seu estatuto (Codex Theodosianus 7.20.4).
Doravante, um soldado que tivesse militado com os comitatenses ou os ripenses ficava
isento do pagamento do imposto individual, tanto para ele próprio como para a sua
esposa, depois de cumprido o tempo integral de serviço; caso fosse desmobilizado
699
honrosamente a seguir «apenas» a 20 anos de serviço, recebia a isenção só a título
pessoal. Esta disposição constituiu uma novidade para os ripenses: estes, até aí,
obtinham tais privilégios apenas uma vez completados 24 anos de serviço.
Os restantes veteranos recebiam uma única isenção relativamente a uma capitatio. Os
comitatenses que abandonassem o exército por razões de saúde tinham direito a uma
isenção fiscal para duas pessoas, enquanto os inválidos de guerra pertencentes aos
ripenses que tivessem entre 15 a 23 stipendia na altura do licenciamento recebiam
isenção só para eles, privilégio que poderia abranger outras pessoas, contanto que o
veterano acumulasse 24 anos de serviço.
700
negócio, recebia 100 folles isentos de impostos. Se pretendesse dedicar-se à agricultura,
obtinha um pedaço de terra, um par de bois, 100 modii (medida de capacidade) de
sementes, 25 folles para diversas aquisições e uma isenção de taxas vitalícia para o seu
lote (Cod. Theod. VII, 20, 3). Em 364, Valentiniano revogou a concessão da gratificação
em dinheiro: a partir de então, um antigo soldado da guarda de corpo (protector)
recebia quatro bois e 200 modii de sementes. Os outros milites, independentemente de
serem honrosamente aposentados no fim do seu tempo de serviço ou reformados por
motivos de saúde, tinham direito igualmente a dois bois e a 100 modii de grão (Cod.
Theod. VII, 20, 8).
Durante o Alto Império, se um veterano obtinha uma gratificação superior a 3 000
denarii e a investisse, com uma taxa de juros anual de 6%, podia contar com 300 denarii
por ano ao longo de 14 anos, pelo que ganhava mais do que o mínimo requerido para a
sua subsistência. Com pagamentos anuais de 225 denarii, o montante total podia durar
24 anos, permitindo que um veterano gozasse de um resto de vida tranquilo e sem
privações2050.
Afora isto, é provável que um número não negligenciável de ex-militares conseguisse
acumular poupanças durante o tempo do seu serviço, a que se adicionavam, por vezes,
também proventos que advinham de rendas e de contratos de aluguer. Sabe-se que,
esporadicamente, veteranos ou as suas famílias aumentavam as suas fortunas por meio
de empréstimos privados de pequenas quantias de dinheiro acrescidas de juros 2051.
Os soldados e os veteranos também recebiam heranças, por vezes avultadas, das suas
respectivas famílias ou até de camaradas. C. Iulius Nepotianus desfrutou de um
respeitável e desafogado estilo de vida que, por certo, não seria possível apenas
tomando em consideração as suas poupanças militares: obteve a soma de 1200 dracmas
ao arrendar um jardim provido de palmeiras (P. Strasb. 3.336; 212-213 d. C.). O
veterano legionário L. Bellienus Gemellus representa outro caso de um indivíduo que
auferia de rendimentos fora do âmbito militar: exerceu a actividade de agiota ou
prestamista, em meados do século II d. C., tendo sido igualmente proprietário de
numerosas terras e explorações agrícolas na região de Arsinoe, no Egipto2052.
Analogamente, em finais do século II, Iulius Apolinaris, antigo soldado da Cohors I
Apamenorum, viveu o resto da sua existência na sua cidade-natal, também no país
nilótico, em Karanis, onde se destacou como um rico proprietário fundiário (BGU 1,
18=W.Chr. 398; 69 d. C.; BGU 1, 180 = W. Chr. 396; 172 d. C.); o mesmo homem aparece
repetidas vezes na qualidade de guardião, servindo como tutor da sua irmã, de um
cidadão romano (provavelmente seu parente) e dos filhos de outro veterano (BGU
1.168; 4.1032; 15.2461).
Uma vez aposentados, os veteranos tinham maneira de se dedicar a uma profissão,
caso aprendessem um ofício durante o tempo em que estiveram no exército,
continuando a exercê-lo na vida civil. Isto sucedia especialmente com militares que se
tivessem especializado como artífices ou adquirido razoáveis conhecimentos técnicos e
médicos. O veterano, por exemplo, que se fixou como construtor naval em
Mogontiacum (Germânia superior), junto ao Reno, aprendeu decerto esta arte no seio da
sua antiga unidade, que aí se encontrava de guarnição, a legio XXII Primigenia pia fidelis,
e lucrou com tal trabalho enquanto civil. Grosso modo, dispomos de parcos testemunhos
documentais sobre as ocupações profissionais dos veteranos, isto se deixarmos de parte
a agricultura. Apesar de tudo, sabemos de veterani que ganharam a vida como
2050
L. Wierschowski, Heer und Wirtschaft. Das römische Heer der Prinzipatszeit als Wirtschaftsfaktor, Bona, 1984, p. 89, n. 305.
2051
P. Oxy. 12.1471 (81 d. C.; 38 dracmas); SB 1.7 (216d. C.; 72 dracmas; arrendatário: um veterano ou o seu filho); SB
1.4370 (229 d. C.; 900 dracmas); BGU 7.1657 (240 dracmas, trigo, centeio, sementes para vegetais; 231 d. C.; P. Yale 1.60
(6/5 a. C.; 102 dracmas).
2052
N. Hohlwein, «Le vétèran Lucius Bellienus Gemellus, gentleman-farmer au Fayoum», Études de Papyrologie 8 (1957),
pp. 69-91; F. Mitthof, «Soldaten und Veteranen in der Gesellschaft des römischen Ägyten (1.-2 Jh. N. Chr.)», in G.
Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft, p. 393ss.
701
comerciantes e diversos artigos, negociando em vestuário e na venda de gládios
(vestiarius, negociator gladiarius), construtores de embarcações (naupegus; acima vimos
um exemplo); encontramos referências a ex-militares que eram donos de prensas de
azeite, de tinturarias e tijolarias2053.
Não fica claro até que ponto os veteranos proprietários de quintas ( villae rusticae),
oficinas, lojas e pequenos negócios realizariam as tarefas pessoalmente ou, se, em vez
disso, as confiassem a terceiros. O certo, porém, é que eles também alancavam com
pesados fardos: não só tinham de prover às suas próprias necessidades diárias como
também, possivelmente, das dos seus eventuais agregados familiares, além de
precisarem de adquirir provisões para a nova vida civil. Em 136, um antigo legionário
de Karanis arrendou uma habitação aparentemente com o objectivo de poder comprar
uma propriedade sem restrições (SB 6.936). Em 3 de Fevereiro de 154, Iulius Niger,
então com 47 anos de idade, que servira na Ala veterana Gallica, adquiriu uma casa e o
terreno em seu redor por 800 dracmas. A julgarmos pela data em que se efectuou a
compra, deduzimos que Niger fora recentemente desmobilizado (P. Mich. 6.428).
2053
Vestiarius: CIL V, 774; negotiator gladiarius: CIL XIII, 8877 + 13,4, p. 107; naupegus: CIL XIII, 11861; proprietário de uma
prensa de azeite: P. Fay.91; de uma tinturaria: P. Osl. 3.139; de uma oficina de fabrico de tijolos: CIL XIII, 64568; O. Paret,
«Der Privatziegler G. Longinius von Großbottwar», Germania 10 (1926), pp. 67-70; H.-P. Kuhnen, «Die Privatziegelei des
Gaius Longinius Speratus in Großbottwar, Kreis Ludwigsburg. Handel und Wandel im römischen
Südwestdeutschland», Fundberichte Baden-Würtemberg 19(1994), pp. 255-264.
702
onde estiveram acantonados, muitos voltavam aos sítios onde nasceram ou cresceram,
partindo especialmente em direcção da Trácia e da Mésia2054.
Os legionários também faziam o mesmo: em 170, um miles da legio V Macedonica, que
viera ao mundo em Troesmis, a canabae desta legião (que mais tarde foi transferida para
a Dácia), tornou ao mesmo local depois de cumpridos 25 stipendia (CIL III 7505).
Noutros casos, não conseguimos explicar os motivos que presidiram à escolha de
determinado sítio por parte de um veterano. Resta-nos apenas especular quanto ao que
induziu M. Aurelius Macenius, que nasceu na Capadócia e serviu em Bonna (Germânia
Inferior) como miles da legio I Minervia, a retirar-se para Novae, na Mésia Inferior (AE
1987, 861).
A participação na sociedade civil
703
Mas deve ter havido mais motivos. Dos antigos legionários que tomavam parte
activa na vida cívica, vários deles atingiram postos elevados durante o serviço militar.
Isto sugere que aqueles que eram desmobilizados como simples soldados fugiam aos
custos associados ao exercício de cargos municipais, visto que a isenção fiscal
(immunitas) aplicável aos veteranos não incluía as obrigações resultantes dessas
funções (Digesta 49.18.5; Codex Iustinianus 10.44.1-2). De facto, um veterano que se
tornasse membro do conselho de uma cidade perdia o benefício da sua imunidade;
assim, caso assumisse tal dever, ele teria negociar antecipadamente uma situação
especial com a comunidade, aspecto, aliás, estipulado na legislação severiana (Digesta,
XLIX, 18, 5; Codex Iustinianus, X, 44, 1). Era normal, para os funcionários municipais,
pagarem uma taxa de entrada antes de ficarem empossados nos cargos (summa legitima
ou summa honoraria). Além disso, estavam previstas mais despesas em nome da cidade
e dos seus habitantes. Os veteranos das legiões lidariam mais facilmente com estas
obrigações do que os das tropas auxiliares.
Façamos uma referência igualmente aos antigos soldados típicos que, contrariamente
aos camaradas detentores de patentes mais altas, não tinham sido incumbidos de
tarefas e responsabilidades administrativas ao longo do tempo em que serviram nas
fileiras, daí que podiam alimentar dúvidas quanto ao desempenho de actividades deste
género. Não esqueçamos, também, que nas cidades cuja existência foi pautada por uma
vertente demarcadamente civil, e nas quais já havia uma elite municipal extensa e bem
estabelecida, a incorporação de veteranos na vida política seria encarada como algo
sem valor e de pouco interesse2057. No entanto, os conselhos (ordo decurionum) nas
cidades fundadas com o estatuto de colónias de veteranos comportaram certamente
alguns antigos militares ou os seus descendentes. Assim, os membros originais da ordo
seriam, na sua maioria, veteranos, mas, em breve, nela ingressariam civis, talvez
administradores e artífices (fixados aquando da fundação das colónias), descendentes
de libertos, novos cidadãos e, até, peregrinos.
Aparentemente, os filhos dos veteranos não alimentaram grande interesse por cargos
ou funções municipais. Nas comunidades situadas junto do Reno e do Danúbio,
apenas cerca de 1% de filhos ou netos de veterani terão efectivamente participado na
vida municipal, os quais muitas vezes se contentaram apenas em tomar assento como
decuriões nos conselhos2058.
Reportemo-nos também a outro fenómeno assinalável nos conselhos municipais
citadinos: em vários deles havia militares ainda no activo a exercerem funções: em
Madaure (ILAlg, I, 2130), na Úmbria, um jovem pretoriano chamado Caius Ancharius
Verus (CIL XI, 5217) ocupou o cargo de decurião de Fulginae e o de edil em Forum
Flaminii; verificam-se casos semelhantes nos Ligures Baebiani (CIL IX, 1459) ou em
Auximum, no Picenum (CIL, 5843).
Nos primeiros três séculos da nossa era, de acordo com os cálculos de L. Mrozewicz,
somente uns 5,8% dos veteranos conhecidos nas províncias do Reno e do Danúbio
desempenharam um papel activo na vida municipal2059. A maioria deles serviu nas
legiões, aproximadamente metade consistindo em simples milites gregarii e os restantes
tendo saído do exército com postos mais elevados. As inscrições que documentam as
actividades municipais dos veteranos nessa área datam, quase todas, do período
situado entre os reinados de Antonino-o-Pio e de Severo Alexandre. Repare-se que,
2057
Quanto mais importante fosse a cidade em que o veteran se estabelecesse, menos oportunidades concretas ele teria
de participar na vida municipal, na qual se envolveriam, quando muito, militares mais graduados como os centuriões.
Para uma abordagem particularmente invulgar, consulte-se o artigo de B. Rossignol, «Élites locales et armées: quelques
problèmes», in M. Cébeillac-Gervasoni e L. Lamoine (eds.), Actes du Colloque Les Élites locales et leurs facettes. Les élites
locales dans la monde hellénistique et romain, Roma/Clermond-Ferrand, 2003, pp. 349-380.
2058
G. Wesch-Klein, «Recruits and Veterans», p. 448.
2059
L. Mrozewicz, «Die Veteranen in den Munizipalräten an Rhein un Donau zur hohen Kaiserzeit (I-III Jh.)», Eos 77
(1989), pp. 65-80; R. Ardevan, «Veteranen und städtische Dekurionen im römischen Dakien», Eos 77 (1989), pp. 81-90; K.
Królczyk, «Veteranen in den Donauprovinzen des römischen Kaiserreiches (1.-3 Jh. N. Chr.)», Eos 86 (1999), pp. 165-170.
704
precisamente neste espaço de tempo se verificou um recrudescimento na produção de
inscrições, além de um aumento do dinamismo social e uma crescente urbanização das
regiões mencionadas. De entre os veterani sobressai C. Sertorius Tertullus, soldado da
Legio XVI, que veio a ocupar o cargo de curator civium Romanorum Mogontiaci (CIL V
5747); citemos outro caso, o de T. Florius Saturninus, que também enveredeou pela vida
política em Mogontiacum, enquanto membro do conselho da cidade (ordo civium
Romanorum Mogontiaci), depois de terminar o serviço militar com o posto de signifer da
Legio XXII Primigenia piae fidelis Alexandrinae (CIL XIII 6769).
Outras províncias, que não as do Reno e do Danúbio, oferecem basicamente a
mesma imagem. No Egipto, os veteranos atestam-se raramente na vida municipal. Até
no Norte de África, uma das províncias mais antigas do império, os veteranos parecem
ter exercido honoráveis cargos cívicos mas com certas reticências ou hesitações.
Porém, as funções de carácter religioso despertavam aparentemente mais o interesse
dos veteranos. A respeitável posição ocupada pelo flamen terá sido particularmente
estimada, embora o número de veteranos no cômputo total dos flâmines seja muito
reduzido. Como seria expectável, os que levaram a cabo as actividades de flâmines
correspondiam, em geral, em ex-militares pertencentes à oficialidade intermédia ou
superior. Os veteranos participavam de bom grado na vida religiosa da sua localidade,
como membros ou doadores de sociedades de culto. Com efeito, numerosos
monumentos dedicados por veteranos enfatizam a sua estreita conexão com os deuses
estatais romanos, bem como com divindades de origem oriental, locais e outras, ainda,
assimiladas a entidades divinas romanas. Assim, um tal C. Caesellius Vitalis, veterano
da legio I Italica, nessa ocasião estabelecido em Novae, ofereceu um altar com mais de
um metro de altura em honra de Iupiter Optimus Maximus e Iuno Regina (AE 1998, 1136).
Os veteranos agradeciam, amiúde, aos deuses e deusas o facto de terem logrado gozar
de uma aposentação afortunada ou, então, cumpriam os votos feitos na altura em que
se alistaram no exército.
O grau de integração dos veteranos no seu ambiente social dependia muito deles
próprios, da sua saúde e da vontade que tivessem de entabular e manter contactos
pessoais; da sua capacidade de interagir na vida social e económica e de se inserirem
nesse meio étnico, cultural e social específico. Isto bem pode ter sido a principal razão
pela qual os veteranos preferiam regressar às suas terras-natais ou ao local onde
cumpriram o serviço militar. Mas, mesmo assim, não dispunham de grande protecção
contra as agruras e padecimentos do envelhecimento. O veterano C. Iulius Apolinaris,
atrás referido, que decidiu voltar ao sítio que o viu nascer, diz-nos, nas suas próprias
palavras, que estava na recta final da sua existência, já idoso e sozinho, o qual,
acrescentamos nós, dificilmente deixou para trás familiares ou amigos (BGU 1.180 =
WChr. 396, 22ss.)
Inválidos e mortos
705
Se pusermos à margem os ferimentos e outras lesões traumáticas sofridas no campo
de batalha ou em acidentes vários (por exemplo, em actividades edificatórias), não é
fácil apurarmos que problemas de saúde concretos afectavam os soldados ao longo das
suas carreiras. O vigile Marcus Aurelius Mucianus2060, quando precisou de declarar a sua
condição militar, mostrou-se discreto quanto aos motivos específicos que levaram à sua
causaria missio, obrigando-o a ser «desvinculado do seu juramento» por falta de
condições físicas. Nos óstracos de Bu Njem, descobriram-se listas contendo referências
a soldados a receber tratamento médico no valetudinarium (hospital/enfermaria) do
acampamento local: porém, ao fundamentarmo-nos nestas fontes pontuais, torna-se
deveras complexo extrairmos conclusões de ordem geral, até porque, na base militar
em questão, os seus efectivos eram muito reduzidos e flutuantes. Apesar de tudo, R.
Marichal observou que os doentos seriam, aparentemente, em maior número nos
meses de Maio e Setembro, ou seja, no começo e no fim do Verão na Tripolitânia; o
mesmo historiador, ao examinar os registos com os nomes dos soldados, verificou que
cada um deles ficava no hospital apenas o tempo estritamente necessário para
recuperar de afecções correntes, à excepção de dois militares que no primeiro ficaram
por sofrerem de enfermidades de longa duração.
Em contrapartida, dispomos de mais informações sobre os milites que pereceram em
serviço antes de atingirem o estatuto de veteranos, factos que se extraem do teor dos
seus epitáfios. Nestes monumentos funerários, atestam-se, igualmente, as aspirações e
os valores característicos do mundo militar.Os riscos inerentes à sua profissão levaram,
logicamente, a que os soldados se preocupassem em usufruir de sepultura e funeral
condignos. Foi certamente por causa disto que surgiram os collegia (embora estes
também tivessem outras finalidades), os quais o imperador Septímio Severo autorizou,
talvez em 198, que existissem legalmente, já que antes os militares estavam proibidos
de se reunir em organismos associativos (Digesta, XLVII, 22, 1). Inicialmente, as únicas
associações autorizadas diziam respeito aos veteranos, que, desta maneira, se podiam
reagrupar ao deixar o exército e obter fundos destinados a custear exéquias e sepulcros
para cada um dos seus membros. Mas, na realidade, esta extensão da vida associativa
deveria interessar somente aos militares que tivessem alcançado, pelo menos, o grau de
principales. Em determinados locais, os arqueólogos encontraram vestígios de salas,
chamadas scholae, onde os commilitones se juntavam nos fortes, bem como o texto de um
regulamento, exumado em Lambaesis, respeitante à legio III Augusta (CIL, VIII, 2554).
Os moldes organizativos de um collegium eram semelhantes aos das próprias
unidades militares: dispunham de uma arca, onde se guardavam as quotas dos
aderentes, a qual era gerida por um tesoureiro, o questor. Para além de fazerem face às
despesas relativamente à erecção de lápides e de inumações, estes collegia forneceriam,
em princípio, uma espécie de suplemento para as gratificações recebidas pelas tropas
licenciadas e, ainda, desempenhariam o seu papel na celebração do culto imperial.
706
primeiras de entre elas, que cobriram as paredes do templo da Fides, no Capitólio. Com
efeito, na medida em que era a fidelidade ao compromisso assumido pelos soldados no
começo do seu serviço (aquando do sacramentum) o aspecto mais frequentemente
mencionado nos diplomas, a fim de justificar os privilégios outorgados, parece lógico
que o santuário consagrado a esta divindade constituísse o local de eleição. Geralmente
explicou-se a escolha dos outros sítios utilizados, a partir de 54 d. C., para expor tais
textos através do desmoronamento dos muros do templo da Fides. S. Dušanic2061,
todavia, ao constatar que se terá recorrido novamente a este monumento para afixar as
constituições datadas do ano 80, defendeu a existência de uma continuidade da carga
simbólica dos edifícios escolhidos, tendo em conta determinadas emissões monetárias
coevas. As investigações empreendidas por G. Forni vieram a confirmar tal hipótese,
demonstrando que as tábuas de bronze só ficariam expostas apenas durante um ano,
aproximadamente, antes de ficarem conservadas nos arquivos e, mais tarde, se
reutilizarem para se gravaram os textos das constituições ulteriores.
Consequentemente, os diplomas comportariam indicações preciosas sobre a
topografia do Capitólio e as diferentes concepções da relação entre o exército e o
Império, que se sucederam durante a segunda metade do século I da nossa era. A
escolha do templo de Ops significaria, então, uma manifestação da vontade de garantir
a prosperidade do exército, assim como o seu paredro assegurava a do povo romano
(CIL, XVI, 4, de 18 de Junho de 54, e 29; ILS, 1996, de 9 de Junho de 83).
No entanto, assinala-se uma proeminência dos locais imbuídos de claro simbolismo
dinástico, sobretudo nos reinados de Nero e de Domiciano: o pedestal dos Claudii
Marcelli, antepassados de Nero (AE, 1978, 658, de 18 de Junho de 65), depois o altar da
Gens Iulia, perto dos templos da Fides e de Ops (CIL, XVI, 7-17 e 19, entre 22 de
Dezembro de 68 e Abril de 71). Galba e, a seguir, Vespasiano invocaram assim
Augusto, fundador do Principado e restaurador dos valores tradicionais romanos, com
o expresso intento de melhor denunciar as tendências despóticas de Nero e, depois, de
Vitélio. Em 69, sob a égide de Vespasiano, as constituições imperiais foram afixadas no
pedestal de Júpiter Africus, deus tutelar desse imperador, e, anos depois, numa tribuna
que servia de suporte às estátuas dos três imperadores Flávios, na esplanada capitolina
(CIL, XVI, 28; ILS, 1995, de 20 de Setembro de 82 ou 83). De acordo com M. Corbier,
tratar-se-ia antes do templo de Vespasiano e de Tito divinizados, que foi construído ao
pé do Capitólio.
O tema do triunfo estava igualmente muito presente. Basta citar a coudelaria dos
tensae (CIL, XVI, 30; ILS, 1997, 3 de Setembro de 84), ou seja, dos carros sagrados que
transportavam, nas procissões, as divindades da tríade capitolina (chamada Tensarium,
thesarium vetus ou aedes thensarum). Os dois arcos a que um diploma (com data de 21 de
Maio de 74) faz referência possuíam um indubitável valor simbólico (CIL, XVI, 20; ILS,
1992), mas a identificação e a localização exacta dos mesmos ainda o eram mais: M.
Corbier propôs que o texto original terá sido afixado no muro de sustentação do clivus
Capitolinus (a rua que subia até ao Capitólio), entre dois arcos que talvez ladeariam a
Via Sacra, quando esta desembocava na esplanada capitolina2062. Muito possivelmente
corresponderiam aos arcos erigidos em memória de Germânico e de Druso-o-Moço,
mas desconhecemos ao certo onde se situariam. Importa salientar que, mais tarde, se
associaram às vitórias de Domiciano, proclamado Germanicus em 84 d. C. (CIL, XVI, 32
[17 de Fevereiro de 86, 33 [13 de Maio de 86).
A partir de 27 de Outubro do ano 90 da nossa era, os textos gravados das
constituições imperiais vieram a conhecer o seu local definitivo: doravante, ficariam
afixados num pórtico, rodeando uma estátua de Minerva, num nível inferior ao do
Palatino (CIL, XVI, 36; ILS, 1998). Este sítio estabelecia um vínculo estreito entre o
2061
«Loci constitutionum fixarum, Epigraphica, 46 (1984), pp. 91-115.
2062
«L’aerarium militare sur le Capitole», Cahiers de Recherches sur l’armée romaine et les provinces, 3 1984, pp. 157-160.
707
fundador do Principado e uma divindade guerreira, pela qual Domiciano manifestou
uma particular devoção (Suetónio, Domiciano, 15).
Destaquemos outro aspecto relevante: a transferência das tábuas de bronze do
Capitólio para o Palatino inscreveria a transformação do exército do povo romano em
exército imperial na própria topografia da capital. Estes esclarecimentos topográficos,
sobre a afixação dos textos originais dos diplomas militares, permitem, segundo
julgamos, resolver a questão da localização do aerarium militare, com base na
descoberta de um diploma datado de 17 de Junho de 65, publicado por S. Dušanic em
19782063 (AE, 1978, 658, linhas 25-28). Anteriormente, M. Corbier acreditou poder
identificar o tesouro militar com o templo da Concórdia. Mas a inscrição do ano 65
reporta-se a um original afixado no Capitólio, defronte do aerarium militare, no pedestal
dos Claudii Marcelli. É certo que no Forum, o templo da Concórdia se encontrava ao pé
do Capitólio, e a expressão in Capitolio poder-se-ia entender num sentido mais lato.
Mas as efígies dos Claudii Marcelli deviam situar-se na esplanada do Capitólio.
Consequentemente, S. Dušanic preferiu localizar o tesouro militar no templo de Ops, o
que, aliás, se apoia num precedente histórico: de facto, foi neste santuário que Júlio
César depôs um verdadeiro tesouro de guerra, destinado a financiar a guerra que ele
preparava contra os Partos (Veleio Patérculo, História romana, II, 60).
Todavia, M. Corbier realçou que não se compreende bem por que razão um mesmo
edifício seria designado de diferentes maneiras num mesmo corpus documental (e.g.,
CIL, XVI, 3 e 29; ILS, 1996 e AE, 1978, 658). Tal objecção também se aplicou ao templo
da Fides, que, à semelhança do outro santuário, teria bons motivos para acolher o
tesouro militar. Posto isto, os dois elementos que dispomos para a localização do
aerarium militare parecem, então, irremediavelmente contraditórios: por um lado, o
termo aerarium sugere mais a noção de um depósito num santuário: por outro, como
todos os templos do Capitólio que podem haver sido empregues para esta finalidade
aparecem citados nos diplomas, a sua utilização revela-se incompatível com a ideia do
aerarium militare enquanto um edifício distinto e específico, o que se presume também
da passagem atrás mencionada de Tácito (Ann. 5.8.1), concernente ao financiamento do
praemium da desmobilização.
Na realidade, a solução para esta contradição talvez permita resolver outra questão
bastante controversa, a existência de um primeiro templo dedicado a Marte Ultor, no
Capitólio. A fazer fé num trecho de Díon Cássio (Hist. rom. 54.8.3) e de representações
esculpidas em moedas cunhadas em Roma, na Hispânia e na Ásia, alguns historiadores
e arqueólogos admitiram a hipótese de Augusto ter fundado um templo consagrado a
Marte Ultor no Capitólio, em 19 a. C., onde ficariam guardadas as insígnias das legiões
de Crasso e de Marco António devolvidas pelos Partos um ano antes2064.
Efectivamente, o carácter inédito da restituição de insígnias romanas por parte de um
inimigo incitaria a supor a construção de um novo monumento, decerto associado ao
templo de Júpiter Feretrius, em vez de as imaginar no referido santuário, colocadas
num mesmo plano que os despojos opimos. No entanto, é incontestável que o templo do
Capitólio ficara privado da maior parte das suas atribuições devido à inauguração do
dedicado a Marte Ultor, no Forum de Augusto, em 2 a. C., que a partir daí albergaria as
insígnias devolvidas pelos Partos2065.
M. Bonnefond2066 parece ter demonstrado que este facto se inseriria num processo
deliberado de desapossessão do Capitólio em proveito do Forum de Augusto. Assim,
2063
«A Military Diploma of AD 65», Germania 562 (1978), pp. 461-475.
2064
Veja-se, a propósito, C. Bustany, «Auguste, les temples de Mars Ultor et les enseignes de Crassus», Rivista Storica
dell’Antichità 24 (1994), pp. 93-98.
2065
J. Rich, «Augustus’s Parthian honours, the temple of Mars Ultor and the arch in the Forum Romanum», PBSR 66
(1998), pp. 71-128.
2066
«Transferts de fonctions et mutation idéologique: le Capitole et le Forum d’Auguste», in C. Pietri (ed.), L’Vrbs: espace
urbain et histoire (Ier siècle av. J.-C.-IIIe siècle ap. J.-C), Roma, 1987, pp. 251-278.
708
não seria concebível que tal edifício (que nas figurações monetárias tinha a forma de
um tholos) se utilizasse em seguida para acolher o aerarium militare? Esta identificação
possuiria o mérito de situar a criação desta instituição sob o patronato de uma
divindade protectora dos soldados. Ademais, ela serviria para explicar a ausência de
qualquer referência religiosa nas alusões posteriores ao tesouro militar, cujo local era
conhecido e designada apenas desta maneira, já que o culto de Marte Ultor fora
transferido do Capitólio para o Forum de Augusto.
Preâmbulo
Para o estudo do exército romano desde o fim do século II até ao V d. C., dispomos
de fontes desiguais: a documentação é bastante rica para o período dos Severos, a tal
ponto que determinadas características das forças armadas que se conhecem neste
momento histórico podem parecer inovações quando, na realidade, talvez já existissem
709
anteriormente. Os dados fornecidos pelas inscrições descobertas no aquartelamento de
Inverno da legio II Parthica, em Apamea (Síria) atestam especialmente esse fenómeno.
Pelo contrário, o século III revela-se muito menos fácil de apreender: com efeito, entre
o fim da narrativa da obra de Herodiano (que termina com o reinado de Gordiano III,
em 238) e o começo da que foi redigida por Amiano Marcelino, cujos livros principiam
a partir de 353, carecemos de fontes textuais circunstanciadas e fiáveis para se proceder
a um exame verdadeiramente aprofundado deste período.
Para além disso, os documentos que sobreviveram à voragem do tempo são, muitas
vezes, polémicos, no sentido em que reflectem explicitamente a oposição entre autores
pagãos e cristãos. Assim, as medidas militares implementadas por Diocleciano e
Constantino foram objecto de julgamentos ou comentários diametralmente diferentes
por parte de Zósimo, alto funcionário pagão durante o reinado de Anastásio I (491-
518), autor da História Nova, escrita em grego, e de Lactâncio, contemporâneo de
Diocleciano e de Constantino, que, n’A morte dos perseguidores, descreveu os tormentos
que sofreram os imperadores instigadores de perseguições movidas contra os cristãos.
Quanto às fontes epigráficas, são relativamente raras, à excepção de algumas
procedentes de certas regiões do império que se mantiveram prósperas, como
aconteceu com o Norte de África. Assim, os historiadores modernos precisaram de se
socorrer de outros géneros de documentação, nomeadamente a numismática e a
papirológica, bem como dos achados arqueológicos. Na viragem do século IV para o V,
a Notitia Dignitatum (Notícia das Dignidades), que significa uma espécie de repertório
dos postos militares e dos cargos civis do império, proporciona uma lista dos
comandos militares, mas há dúvidas sobre os efectivos reais do exército que
corresponderiam a toda essa hierarquia de graus consignada em tal fonte.
Embora o reinado de Antonino-o-Pio não tenha sido tão pacífico como anteriormente
se supôs, o de Marco Aurélio significou uma incontestável ruptura na história das
relações do Império romano com o mundo exterior. Desde as migrações dos Cimbros e
Teutões, vencidos por Mário no fim do século III a. C., e após as deslocações dos
Suevos (Suebi) de Ariovistus que Júlio César combateu em 58 antes da nossa era, o
mundo germânico parecia encontrar-se relativamente estabilizado. Mais ainda do que
o poder das legiões, esta «paragem» das movimentações de populações de grande
envergadura junto das suas fronteiras permitiu ao Império romano usufruir de um
pouco mais de 150 anos de pax romana.
Tais fluxos migratórios haviam seguido uma orientação no sentido norte-este e sul-
oeste, envolvendo povos que partiram da Escandinávia meridional, os quais chocaram
contra os Celtas, ao mesmo tempo que ficaram marcados pela sua influência. A génese
deste fenómeno radica provavelmente num complexo conjunto de factores climáticos,
demográficos e até culturais. Houve quem tenha evocado um acentuado arrefecimento
afectando a Escandinávia a partir do século VI a. C., mas em termos concretos, o seu
impacto permanece discutível2067.
2067
Sobre esta matéria complexa realizaram-se múltiplas abordagens e há uma vasta bibliografia. Como não podemos
explorar a fundo este aspecto, remetemos o leitor para as seguintes obras:É. Demougeot, La formation de l’Europe et les
invasions barbares, 1: des origines à l’avènement de Dioclétien, Paris, Aubier-Montaigne, 1969; IDEM, La formation de l’Europe
et les invasions barbares, 2: de l’avènement de Dioclétien (284) à l’occupation germanique de l’Empire romain d’Occident (début
du IVe siècle), Paris, 1979 (estes dois tomos, embora encerrem muitos dados úteis, actualmente apresentam-se algo
datados); W. Pohl, Die Völkerwanderung: Eroberung und Integration, Estugarda, Kohlammer, 2002; K. Rosen, Die
Völkerwanderung, 3ª edição, Munique, Beck, 2006. Ressalve-se que a palavra Völkerwanderung significa, em alemão,
710
Existem, igualmente, dificuldades em verificar, por meio da arqueologia, a hipótese
de um sobrepovoamento dessa região durante o mesmo período. Alguns estudiosos
sustentaram que talvez existissem ritos que obrigassem as gerações mais jovens de
guerreiros a lançar-se à conquista de novos territórios, o que a ser verdade lembraria
práticas levadas a cabo por determinados povos itálicos. O certo é que foram estas
migrações, rumo a oeste e a sul que Mário e, posteriormente, Júlio César se viram
obrigados a confrontar entre finais do século II e meados do século I a. C. Elas levaram
ao estabelecimento de tribos muito fragmentadas, vivendo ao pé do limes. Foi, aliás,
nesta altura que historiadores antigos como Possidónio de Rodes, em 90 a. C., ou o
próprio César, mais tarde, começaram a designar a globalidade destas populações sob
o termo genérico de «Germanos»2068. Para César, bem como para Augusto, tratava-se de
explicar também o porquê da suspensão do expansionismo romano sobre o Reno,
quando de uma e de outra parte deste rio viviam tribos bastante marcadas pela cultura
céltica.
Mesmo após o abrandamento do ritmo desses movimentos populacionais de grande
amplitude, os Germanos continuaram submetidos a constantes misturas, o que
dificulta sobremaneira a individualização de grupos específicos, bem como o
acompanhamento da evolução deles até ao século III d. C. Assim, as distinções de
carácter topográfico ou étnico que Júlio César apresenta nos seus Commentarii de Bello
Gallico não coincidem forçosamente com as expostas por Veleio Patérculo, Estrabão,
Plínio-o-Antigo, Tácito ou por Ptolemeu, no século II. Ocorreram, presumivelmente,
alianças que se fizeram e desfizeram em torno de algumas linhas aristocráticas que
reclamavam ancestrais míticos comuns.
Actualmente, para os seus critérios classificativos, os investigadores apoiam-se acima
de tudo na arqueologia e na linguística. Consequentemente, os povos bárbaros são
distinguidos uns dos outros de acordo com critérios mais culturais do que étnicos.
Acredita-se consensualmente que eles se terão distribuído por três grandes regiões:
Germanos do Norte ou Germanos do mar, Anglos, Cimbros e Jutes, situados na
Escandinávia e na Jutlândia; Germanos do Oeste ou da floresta, instalados entre o
Reno, o Danúbio e o Elba; Germanos do Leste ou da estepe, Bastarnas (Bastarni),
Esquiros, Costoboci, Godos, Vândalos (Vandali), Burgúndios (Burgundi) e Gepidi,
localizados para além do Elba.
Os primeiros a entrarem em contacto com o Império romano foram os Germanos
ocidentais. Nestes se reconhecem três conjuntos principais: o mais próximo do limes, o
conjunto dito Reno-Weser, que englobava os Batavos (Batavi), os Chamavi, os Sigambri,
os Bructeri, os Tubanti, os Usipeti, os Tencteri, os Chatti e os Cherusci; no espaço
geográfico entre a Frísia e a Jutlândia, sob a designação de Germanos do mar do Norte,
estavam reunidos os Frísios (Frisii), os Chauci e os Saxões (Saxones); por último, os
Germanos entre o Elba e a Boémia, neles sobressaindo os Semnones, os Hermunduri, os
Marcomanni, os Quadi 2069, os Suevos e os Lombardos (Langobardi).
A partir do primeiro quartel do século II, recomeçaram as migrações na Germânia
oriental, seguindo, numa primeira fase, a mesma direcção que o do movimento que já
«migração dos povos», sendo amplamente utilizada pelos historiadores no contexto dos fluxos migratórios e das
invasões bárbaras.
2068
Sobre os Germanos em particular: E. A. Thompson, The Early Germans, 2ª edição, Oxford, 1968; M. Todd, The Early
Germans, Oxford/Cambridge, 1995;IDEM, Die Zeit der Völkerwanderung, Estugarda, 2002; W. Pohl, Die Germanen
(Enzyklopädie deutscher Geschichte Bd 57), Munique, Oldenbourg, 2000; M. P. Speidel, Ancient Germanic Warriors:
Warrior Style from Trajan´s Column to Icelandic Sagas, Londres, Routledge, 2004. Para dados mais específicos acerca das
relações entre Romanos e Germanos, consultem-se T. Burns, Rome and the Barbarians, 100 BC-AD 400, Baltimore, The
Johns Hopkins University Press, 2003, pp. 1-193; M. Todd, The Early Germans, pp. 44-61; P. S. Wells, The Barbarians Speak:
How the Conquered Peoples Shaped Roman Europe, Princeton, Princeton University Press, 1999, pp. 64-98; A. K.
Goldsworthy, O fim do Império Romano: O lento declínio da superpotência, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010, pp. 139-152.
2069
Para mais informes sobre os Marcomanni e os Quadi: W. Herwig, «Markomannen und Quaden nach dem “Grossen
Krieg”: Spurensuche nach einer Verfassung», in H. Heftner e K. Tomaschitz (eds.), Festschrift für Gerhard Dobesch, Viena,
2004, pp. 783-790.
711
havia sido conduzido os Bastarni, os Esquiros e, depois, os Costoboci à Ucrânia e ao mar
Negro, no século III a. C. Os Vândalos subiram pelo vale do Oder, fixando-se na Silésia,
Galícia e na Eslováquia. A seguir, os Godos, sem dúvida empurrados das costas do
Báltico pela acção conjugada da fome e do sobrepovoamento, avançaram para os vales
do Vístula e do Dniestr. Os Burgúndios, por seu turno, dirigiram-se para oeste, rumo
aos vales do Meno e do Reno, ao passo que os Gepidi chegaram ao território que, hoje
em dia, corresponde, grosso modo, à Hungria.
Estes povos, sobretudo os Godos 2070, revelaram-se geralmente mais poderosos e
coesos do que os Germanos ocidentais, nomeadamente por causa das riquezas que
obtinham do comércio do âmbar. De facto, os Godos ascenderam à categoria de uma
potência militar, ao criarem confederações que englobavam os diversos povos com que
contactavam. Mas os Germanos orientais também repeliram algumas das populações
que se atravessaram no seu caminho: as últimas consistiam, em parte, em nómadas das
estepes que se estendiam a leste dos Cárpatos, usualmente de origem iraniana (de entre
os Sármatas, que haviam absorvido os Citas, sobressaíam os Roxolanos (Roxolani),
entre o Don e o Dniepr, e os Iazigues (Iazyges), no curso inferior do Tisza e do Danúbio,
já mesclados com os Bastarni).
Por outro lado, o contra-golpe destas migrações fez-se sentir mais no Oeste do que
nas zonas ocupadas pelos Germanos ocidentais, registando-se um aumento da sua
densidade demográfica. Os Germanos do mar do Norte progrediram para os vales do
Sem e do Weser, as tribos que estavam junto ao Elbe atingiram a Boémia e a Morávia, e
as do Reno e do Weser seguiram tanto em direcção a Hesse e às Turíngia como para as
regiões confinantes com o Império romano.
Assim, a pressão intensificou-se acentuadamente no Reno, nos Agri Decumates
(Campos Decumatos) e, principalmente, no Danúbio. Não admira, portanto, que, a
partir de 166 d. C., as fronteiras romanas tenham sido invadidas. Os Chatti penetraram
na Gália Bélgica, os Chauci dedicaram-se à pirataria na embocadura do Reno, ao passo
que os Quadi e os Marcomanni se estabeleceram no Nórico e, a seguir, em Venécia;
entretanto, os Carpi chegaram à Dácia, os Sármatas Iazigues transpuseram o Danúbio,
ao passo que os Costoboci e os Bastarni alcançaram a Acaia e a Ásia.
Ante este panorama, a estratégia imperial demonstrou estar claramente inadaptada,
no que respeita aos meios militares e à situação que então se vivia para lá das suas
fronteiras. Com efeito, no Oriente, o exército romano envolveu-se em quatro anos de
campanhas bem sofridas contra os Partos (162-166 d. C.) 2071, acabando por regressar
com as suas tropas contaminadas por uma epidemia pestífera que se propagou por
quase todo o Império. Depois de haver dedicado grande parte do seu reinado a
rechaçar as incursões germânicas2072, Marco Aurélio terá possivelmente pensado em
2070
Sobre os Godos: É. Demougeot, La Formation de l’Europe et les invasions barbares, I, pp. 391-433; Q. Herwig, A History
of the Goths, trad. T. J. Dunlap, Berkeley, 1987; H. Wolfram, Histoire des Goths, trad. F. Straschitz e J. Mélie, Paris, 1990; M.
Kulikowski, Rome’s Gothic Wars, Nova Iorque, 2007.
2071
Sobre as campanhas párticas durante o reinado de Marco Aurélio: A. R. Birley, Marcus Aurelius: A Biography,
Londres/Nova Iorque, 1993, pp. 123-131, 141-142,144-150; P. Grimal, Marco Aurelio, Mexico, Fondo de Cultura
Económica, 1997 (a edição original, em francês, data de 1991), pp. 150-165; G. Webster, The Roman Imperial Army, pp. 82-
83; Y. Le Bohec, L’armée romaine sous le Haut-Empire, p. 202.
2072
Com efeito, o imperador-filósofo passou grande parte do seu reinado a travar guerras: afora o referido conflito com
os Partos, que durou quatro anos (em que Lúcio Vero, co-imperador, assumiu um papel activo), Marco Aurélio teve de
enfrentar uma situação mais grave. A Coluna Aureliana, através da sua série de cenas em baixo-relevo (à semelhança da
Coluna de Trajano), narra parte das lutas que se desenrolaram de um e outro lado do Danúbio. A partir de 166-167,
assistiu-se a uma primeira investida dos Germanos, que atravessaram a Panónia e só pararam junto ao Adriático. Os
Godos, por seu turno, empurraram à sua frente os Quadi, os Marcomanni, os Iazigues e os Roxolanos. Até 169, Marco
Aurélio participou em diversas operações bélicas. Em 171, começou uma segunda ofensiva; anualmente, surgia uma
nova vaga de bárbaros nas fronteiras: os Quadi em 172; os Sármatas em 173; estes dois povos em 174; apenas os
Sármatas em 175. Marco Aurélio permaneceu no Danúbio de 172 a 175: a gerra tornou-se particularmente dura. Uma
terceira fase de confrontos durou de 177 a 179. O imperador veio a falecer no meio dos seus soldados em 180. Para uma
visão global destas guerras, cf. A. R. Birley, Marcus Aurelius, pp. 159-183, pp. 249-255 («Appendix 3.The Marcomannic
Wars»); P. Grimal, Marco Aurélio, pp. 165-187; para uma abordagem mais detalhada sobre as chamadas «Guerras
Marcomânicas», veja-se P. Kovács, Marcus Aurelius’ Rain Miracle and the Marcommanic Wars, Leiden/Boston, Brill, 2009,
712
resolver a questão bárbara através da criação de duas novas províncias para lá do
Danúbio. Se de facto este plano existiu, o certo é que veio a ser abandonado pelo seu
filho e sucessor, Cómodo e, por vezes, mediante o pagamento de subsídios, a situação
pareceu estabilizar até ao reinado de Caracala.
No tempo de Septímio Severo 2073 (193-211), ainda foi Roma a tomar a iniciativa da
maior parte dos conflitos armados em que o Império se viu implicado. As duas guerras
párticas (195-195 e 197-199)2074 empreenderam-se, assim, em larga medida porque o
imperador buscou fazer olvidar, nos campos de batalha em solo estrangeiro, o sangue
que derramara durante as guerras civis, e lograr adquirir desta maneira um prestígio
militar de que carecia; note-se que ele formou três novas legiões ostentando o título de
Parthica em Itália, processo que terá principiado em 196 ou mesmo antes, em 193. Este
expansionismo manifestou-se igualmente no Norte de África: uma nova via 2075, a Nova
Praetentura, veio reforçar a já existente no Sul da Mauritânia Cesariana, ao mesmo
tempo que se estabeleceram postos avançados na orla do deserto, tais como Castellum
Dimmidi (a cerca de 400 km a sul de Lambaesis) em 198, e Bu Njem, na Tripolitânia, em
201.
Na Britânia, em 208, Septímio Severo podia ainda imaginar subjugar pela força os
povos instalados para lá da Muralha de Antonino (isto é, na Caledónia, actual
Escócia)2076, já que o Norte da velha Albion, claramente menos extenso que a «Germânia
Livre» (Germania libera), parecia reunir condições para uma espécie de guerra de
extermínio. Mas depois da morte do imperador (em Eburacum/York), as primeiras
dificuldades fizeram com que o seu filho e sucessor tivesse de recuar, assim como
muito antes Augusto abandonou a ideia de uma expansão até ao Elba, no seguimento
do estrondoso desaire de Varão, em 9 d. C. No entanto, quando Caracala conduziu os
preparativos da sua expedição oriental2077 em 215, ele não estava a ripostar à ameaça
dos Partos2078, na medida em que a dinastia Arsácida já se achava bastante
enfraquecida; na realidade, Caracala tentava seguir as pisadas de Alexandre Magno,
almejando ganhar a fama de conquistador. A busca pela glória militar não constituía
uma novidade em Roma, uma vez que o tema da vitória bélica representava uma das
dimensões essenciais do carisma dos imperatores republicanos e do poder imperial
desde a fundação do Principado.
Mas o reinado de Caracala (211-217) também coincidiu com a emergência de um
novo fenómeno: a formação de vastas coligações de tribos germânicas. A «liga dos
Alamanos»2079, que se atesta em 213, por ocasião das refregas que valeram a Caracala o
pp. 201-249.
2073
M. Christol, L’Empire romain du IIIe siècle. Histoire politique, 192-325 apr. J.-C., Paris, Errance, 1997, pp. 11-37; para o
resto da dinastia dos Severos (cujo derradeiro representante foi Severo Alexandre), cf. ibidem, pp. 38-77.
2074
Para mais informações a respeito das duas campanhas: Díon Cássio, Hist. Rom. 75.1-3; Herodiano, História do Império
romano depois de Marco Aurélio, 3.9,1-9; Aurélio Victor, De Caesaribus, 20.15; SHA, SepSev, 9.9; 28.1; Orósio, Hist. adv. pag.
7.17.3; Zósimo, História Nova, 1.8.2; A. Birley, Septimius Severus, the African Emperor, Londres, 1988, pp. 129-135; A.
Daguet-Gagey, Septime Sévère: Rome, l’Afrique et l’Orient, Paris, 2000, pp. 250-322; A. Luther, «Römische Militärposten
der Severerzeit am Unteren Häbür», Göttinger Forum für Altertumwissenschaft, 5 (2002), pp. 1-9; Y. Le Bohec, L’armée
romaine dans la tourmente. Une nouvelle approche de la «crise du IIIe siècle, Paris, 2009, pp. 79-80; A. R. Menéndez Argüin, El
ejército romano en campaña. De Septimio Severo a Diocleciano, pp. 35-36.
2075
Y. Le Bohec, L’armée romaine sous le Haut-Empire, p. 186.
2076
O imperador esteve, de 208 a 211, na Britânia, onde supervisionou várias grandes campanhas contra as tribos da
Caledónia: A. Birley, Septimius Severus, the African Emperor, pp. 177-187.
2077
Para uma breve panorâmica sobre as campanhas contra a Pártia sob Septímio Severo e Caracala, consulte-se G.
Barnett, «Father and son invade Iraq: The Parthian wars of the first Severi», Ancient Warfare, II.6 (Dec/Jan 2009), pp. 22-
27. Para
2078
Ressalve-se que, ao longo de três séculos, Roma e a Pártia travaram uma série de guerras centradas nas terras altas
da Arménia e no Vale do Eufrates: a este respeito, veja-se o o artigo sucinto de G. Barnett e A. Blumberg, «Seeking the
knock-out blow. A history of asymmetric warfare», Ancient Warfare, III.5 (Oct/Nov 2009), pp. 13-19
2079
Sobre os Alamanos: J. F. Drinkwater, «The Alamanni and Rome», in P. Defosse (ed.), Hommages à Carl Deroux, 3,
Histoire et épigraphie, droit, Col. Latomus, 270, Bruxelas, 2003, pp. 200-207; IDEM, The Alamanni and Rome, Oxford, 2007.
Para a «liga dos Alamanos», vejam-se: G. Alföldy, Die Krise des römischen Reiches, Estugarda, 1989, pp. 406-418; C.
Dirlmeyer e G. Gottlieb (eds.), Quellen zur Geschichte der Alamannen, 7 vols., Heidelberg, 1976-1987; D. Geuenich,
713
título de Alamanicus, reunia, assim, as tribos que se fixaram nos altos vales do Elba e do
Saale. Lembremos que, sob o ponto de vista etimológico, «alamano» resulta da
aglutinação de dois vocábulos, «todos» e «homens». Para estes Germanos do Alto
Danúbio, a maior preocupação era a de resistirem às pressões exercidas por outros
povos germânicos, à medida que se apoderavam de mais terras. Quanto à «liga
Franca»2080, foi criada por razões análogas à anterior, algumas décadas depois, no curso
inferior do Reno, compreendendo, numa primeira fase, os Chamavi, os Chatti, os
Sicambri e os Bructeri e, numa segunda, os Usipeti e os Tencteri. Eles aparecem referidos
pela primeira vez na biografia de Aureliano da História Augusta (SHA, Aurel. 7.1-2),
obra que data de finais do século IV d. C. A nível etimológico, o vocábulo «Franco»,
tanto pode haver derivado da expressão «homens livres» como evocar a reputação de
bravura ou ferocidade deste conjunto de povos.
Noutros casos, porém, os adversários novamente em contacto com o Império
romano, vieram a fundir-se com os anteriores ocupantes, submetidos à sua dominação
e introduziram formas de organização político-militar mais eficazes, o que os tornaria
em antagonistas temíveis e imprevisíveis. Pelo contrário, os povos contra os quais o
Império combateu até ao reinado de Marco Aurélio, eram mais conhecidos dos
Romanos e mais limitados nos seus meios de acção. Aparentemente, o poder imperial e
as elites do Império não se terão apercebido da extensão e da gravidade dessas
ameaças, com uma amplitude inédita. Uma das melhores provas disso está no facto de
os Romanos tardarem a adaptar a sua terminologia face aos seus novos inimigos, para
além dos Alamanos que surgem nas fontes escritas desde o reinado de Caracala.
Assim, em geral, os autores antigos não conseguiram diferenciar, antes de um certo
tempo, as populações recentemente chegadas às fronteiras do Império das que as
tinham precedido. Godos, Vândalos e, depois, até Hunos, continuaram frequentemente
a ser rotulados de «Citas». A primeira atestação de «Godo» remonta ao epíteto de
Gothicus Maximus - «O supremo vencedor dos Godos» - ostentado pelo imperador
Cláudio II2081, em 269 d. C., quando, na realidade, as incursões deste povo na Ásia
Menor e nos Balcãs já tinham principado desde 238.
É certo que Plínio-o-Velho já menciona os Gutones, na sua História Natural, no século
I da nossa era, mas os Romanos do século III mostraram-se incapazes de estabelecer
uma aproximação entre os primeiros e os Godos. Ora, esta atitude é reveladora tanto
de uma concepção «estaticista» dos seres e das coisas, como de uma espécie de
complexo de superioridade cultural, os dois aspectos estando muito enraizados nas
mentalidades greco-romanas. Ademais, a visão augustana de um império que atingira
os limites do mundo conhecido e útil acabou por contaminar os próprios
conhecimentos geográficos do seu tempo.
Ressalvemos que, durante muitas décadas, para os Romanos os objectivos que
levavam os Germanos a fazer a guerra permaneceram difíceis de apreender. De facto,
no século III, não se tratava geralmente de verdadeiras conquistas territoriais, mas
antes de incursões depredatórias a grande distância, destinadas a obter a maior
quantidade possível de despojos e cativos. A inscrição descoberta em Augsburgo, em
1992, gravada sobre um altar dedicado à Vitória (AE, 1993, 1231), reporta-se, assim, a
vários milhares de prisioneiros italianos que foram arrebatados aos Jutungos
(Juthungi), na sua viagem de regresso, pelo governador da Récia Marcus Simplicinius
Genialis 2082, em Abril de 260.
714
Esta fonte evidencia a capacidade que os bárbaros tinham de operar muito longe das
suas bases, conseguindo avançar até ao próprio coração do Império e, por extensão,
patenteia a clara inadaptação do sistema defensivo das fronteiras. Acresce que o
carácter muito instável ou volúvel das organizações políticas dos bárbaros, que tanto se
fragmentavam como se confederavam, muitas vezes obstava a que o poder imperial
lograsse identificar interlocutores fiáveis e representativos com os quais pudesse
entabular negociações de paz.
715
reunião de contingentes que procediam de regiões vizinhas que não se encontravam
ameaçadas. Um imperador como Trajano até se pôde dar ao luxo de desguarnecer
durante bastante tempo certas zonas fronteiriças quando tomou a iniciativa de lançar
ofensivas para lá do Danúbio e do Eufrates.
Pelo contrário, entre 65 e 180 d. C., e depois, sobretudo a partir da década de 30 do
século III, o exército romano viu-se obrigado a empreender operações bélicas de vulto
em frentes distantes simultaneamente, o que conduzia a movimentações incessantes,
implicando marchas cobrindo milhares de quilómetros. Calculou-se que as forças que
Severo Alexandre reuniu em Antioquia ascenderiam a mais de 1/3 do potencial militar
do Império, as quais se destinavam a fazer frente a Ardashir: correspondiam às onze
legiões estacionadas nas províncias orientais, acompanhadas por tropas auxiliares em
número equivalente, por destacamentos de legiões acantonadas no Reno e no Danúbio,
bem como pela legio II Parthica e pelas coortes pretorianas. O desfecho desta campanha
revelou-se muito incerto, quando chegaram a Antioquia as notícias da invasão dos
Campos Decumatos pelos Alamanos e de incursões dos Carpi e dos Iazyges no curso
inferior do Danúbio, em 232-233.
O imperador percorreu a rota de Itália e depois a Gália, a qual atravessou para
alcançar Mogontiacum no início de 235, à cabeça de destacamentos das legiões renanas e
danubianas (que aliás haviam reclamado o regresso às suas bases), além de forças
escolhidas, desta feita, no Oriente, para lutar contra os bárbaros no Ocidente. Entre 230
e 235, os legionários da II Parthica terão marchado uns 4 000 km para chegarem a
Antioquia e, a seguir, outros 5 000 para atingirem o Reno! Isto fez-se por via terrestre,
já que, afora não se poder navegar por mar excepto no período entre Abril a Outubro,
era impossível arranjar uma frota que embarcasse todos os soldados, equipamentos e
provisões necessários para uma longa travessia2086.
Assim, estaria fora de cogitação deslocar tropas por via naval, salvo para passar os
estreitos ou curtos braços de mar. Segundo Vegécio (Epitoma de rei militaris, I, 9), um
infante romano percorria em média 30 a 36 km por dia. Ora, se tivermos em conta o
tempo de descanso necessário entre as diversas etapas, estas marchas forçadas entre as
frentes orientais e setentrionais durariam entre quatro e cinco meses, que causariam
baixas no seio das tropas, em proporções descontínuas mas certamente consideráveis.
2086
Para as actividades bélicas conduzidas por Severo Alexandre, veja-se Y. Le Bohec, L’armée romaine dans la tourmente,
pp. 95-96
716
Tais reacções começaram a manifestar-se no exército de Severo Alexandre, durante a
sua campanha contra os Persas: os soldados provenientes do Reno exigiram regressar
para defenderem os territórios ameaçados pelos Alamanos. A alegada incapacidade do
imperador em combater os últimos gerou um motim em Mogontiacum, onde ele veio a
perecer no início de 235. Pouco depois, o exército alçou ao poder supremo um oficial
encarregado da instrução dos recrutas, Maximino-o-Trácio.
Mais tarde, se um comandante delegado pelo imperador que estivesse num sector
ameaçado velasse pelos interesses e expectativas dos soldados e dos provinciais, era
praticamente garantido que estes se juntariam ao primeiro e lhe dariam todo o apoio
para «voos mais altos». A seguir, este tentaria fazer-se reconhecer em Roma pelo
Senado e no resto do Império. Em diversas ocasiões, ele procuraria também fundar
uma dinastia, ao associar um filho ao seu poder para melhor o consolidar. Foi, por
exemplo, o que aconteceu com Trajano Décio 2088, proclamado em Julho de 249 pelas
tropas que enfrentavam a progressão dos Godos nas regiões danubianas e balcânicas, o
qual associou ao trono o seu primogénito, Herénio Etrusco. Não foi por mero acaso que
os imperadores do século III, detentores de um poder fragilizado, comemoravam com
pompa e circunstância o aniversário do seu advento ao trono: Galieno teve a rara
oportunidade de conseguir celebrar os seus decenais em 262.
As usurpações engendraram, por vezes, autênticos «impérios dissidentes», quando
os que se viam guindados ao poder se contentavam apenas em controlar um conjunto
de províncias, sem buscarem o reconhecimento oficial em Roma. Ocorreu uma situação
destas, quando o imperador Valeriano foi derrotado e capturado pelos Persas em
Edessa, em 2602089: no Ocidente, Póstumo foi colocado, no mesmo ano, pelo exército do
Reno, à frente de um «Império gaulês»2090 que durou até 274, ano da sua submissão a
Aureliano. No Oriente, igualmente, os príncipes de Palmira2091 estenderam a sua
dominação sobre as províncias do Egipto, do Levante e da Ásia Menor, e assumiram o
controlo das tropas que nelas estavam acantonadas até à derrota da célebre rainha
Zenóbia2092 pelo mesmo Aureliano (272)2093. Actualmente, a maioria dos historiadores
não vê nestas dissidências manifestações de um suposto «nacionalismo» anti-romano,
até porque os imperadores dissidentes reassumiram, à sua custa, todas as prerrogativas
dos imperadores de Roma.
2087
Sobre esta matéria, remetemos o leitor para a investigação muito aprofundada de Christian Panaget, Les révoltes
militaires dans l’empire romain de 193 à 324, tese de doutoramento, Université de Rennes II, 2014.
2088
X. Loriot, «Un empereur illyrien élévé à la pourpre: Trajan Dèce», in E. Frézouls e H. Jouffroy (eds.), Les Empereurs
illyriens, pp. 43-55.
2089
Aurélio Victor, 32.5 (segundo este autor, o imperador terá sido esfolado vivo); SHA, Val, 8.3; Orósio, 7.22.4; Zósimo,
1.36.2 (apresenta Valeriano como sendo apanhado num acto de traição); D. Kienast, Römische Kaisertabelle, p. 212.
Julga-se que Valeriano foi exibido como troféu no Irão, morrendo em circunstâncias pouco claras: D. S. Potter, The
Roman Empire at Bay, pp. 255-256; Y. Le Bohec, L’Armée romaine dans la tourmente, p. 234. A captura do imperador,
chefe do Estado e chefe dos exércitos, significou um novo grande revés para Roma; Galieno revelou-se incapaz de
recuperar o corpo do seu pai. Todavia, os seus desaires não o impediram de celebrar numerosas vitórias: A. Alföldi,
Studien zur Geschichte der Weltkrise des 3. Jh. n. Chr., Darmstadt, 1967, pp. 73-101
2090
J. Lafaurie, «L’empire gaulois», Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, 2.2 (1975), pp. 853-1012; J. F.
Drinkwater, Roman Gaul. The Three Provinces, Londres, 1984, pp. 212-227; IDEM, The Gallic Empire. Separatism and
Continuity in the North-Western Provinces of the Roman Empire, AD 260-274, Wiesbaden, 1987.
2091
A este respeito, veja-se U. Hartmann, Das palmyrenische Teilreich, Estugarda, 2001.
2092
Sobre esta invulgar figura histórica: D. S. Graf, «Zenobia and the Arabs», in The Eastern Frontier of the Roman
Empire, BAR Inter. S. 553, Oxford, 1989, pp. 143-167; E. Equini Schneider, Septimia Zenobia Sebaste, Roma, 1993; Y.
Zahran, Zenobia between Reality and Legend, Oxford, 2003. A. Watson, Aurelian and the Third Century,
Londres/Nova Iorque, Routledge, 1999, pp. 57-69. Para uma análise detalhada das três fases que conheceu a expansão
territorial de Palmira neste período: U. Hartmann, Das palmyrenische Teilreich, pp. 244-255, 278-286, 352-354; para a
organização deste «império», cf. ibidem, pp. 297-332.
2093
R. Stonemann, Palmyra and its empire. Zenobia’s revolt against Rome, Ann Arbor, MI, 1992; E. Cizek, L’Empereur
Aurélien et son temps, Paris, 1994, pp. 103-105; A. Watson, Aurelian and the Third Century, pp. 70-79. U. Hartmann,
Das palmyrenische Teilreich, pp. 395-424. Para as guerras travadas no Ocidente durante o reinado de Aureliano, A.
Watson, op. cit., pp. 91-98.
717
Novas modalidades de formações e de combate
«Os exércitos imperiais de campanha». O recurso às vexillationes
2094
Diversos historiadores sustentaram que Septímio Severo foi o principal reformador do exército romano entre
Augusto e Diocleciano: E. Birley, «Septimius Severus and the Roman Army», Epigraphische Studien 8 (1969), pp. 63-
82; P. Cosme, L’État romain entre éclatement et continuité: l’Empire romain de la mort de Commode au concile de
Nicée (192-325), Paris, 1998, pp. 75-86; A. Daguet-Gagey, Septime Sévère: Rome, l’Afrique et l’Orient, p. 281; Y. Le
Bohec, L’Armée romaine dans la tourmente, p. 83.
2095
Para um estudo pormenorizado das vexillationes legionárias, do reinado de Augusto ao de Diocleciano, consulte-se a
monografia de R. Saxe, Untersuchungen zu den Vexillationen des römischen Kaiserheeres von Augustus bis Diokletian,
Colónia/Graz, 1967.
2096
Sobre as vexillationes no tempo dos Severianos, remetemos para a tese de doutoramento de Ross Cowan, Aspects of
the Severan Field Army:The Pretorian Guard, Legio II Parthica and Legionary Vexillations, AD 193-238, Universidade
de Glasgow, Glasgow, 2002, pp. 135-155 (cap. 5). Veja-se, também, A. R. Menéndez Argüin, El ejército romano en
campaña. De Septimio Severo a Diocleciano, p. 35.
718
Dácia, e de Claudius Gallus, na Germânia. É certo que alguns duces podiam ser antigos
cavaleiros adlectados no Senado por favor imperial, como sucedeu, por exemplo, com
Tiberius Claudius Candidus, que esteve em funções no Illyricum durante o reinado de
Septímio Severo.
Por outro lado, este imperador aumentou igualmente os efectivos dos diferentes corpos
militares que compunham a guarnição de Roma, o que permitiu eventualmente aos
italianos, doravante excluídos das coortes pretorianas, de ingressarem noutros ramos
das forças armadas. Além disso, os italianos foram também chamados às fileiras
quando Septímio Severo criou as três legiões Parthicae. Afora as 10 coortes
pretorianas, reservadas para os legionários com mais mérito, que passaram de 500
para 1000 homens, as quatro coortes urbanae subiram de 500 para 1500, e as sete
coortes de vigiles de 3500 para 7000.
O acentuado aumento dos efectivos da guarnição de Roma, que de 11 500 se elevaram
a 23 000 homens, aos quais cabe ainda adicionar os 6 000 da II Parthica (acantonada
no Albano e chefiada por um prefeito equestre) 2097 levou a que determinados estudiosos
considerassem tal dispositivo como uma prefiguração do exército móvel, organizado
sobre moldes permanentes nos decénios subsequentes.
Esta reserva militar posicionada no coração do Império fora congeminada com vista a
poder intervir rapidamente em qualquer sector ameaçado das fronteiras setentrionais
do Império2098. Esta interpretação merece maior credibilidade do que a hipótese,
segundo a qual, Septímio Severo teria deliberadamente decidido submeter a península
itálica antes de partir para defrontar Pescénio Níger. Díon Cássio criticou o imperador
com argumentos moralizantes, acusando-o de ter empurrado a juventude de Itália para
a gladiatura para o banditismo, ao mesmo tempo que acentuou a ideia de uma
«barbarização» do exército (Hist. rom. 75.2.5).
O controlo da Itália não justificava por si só um tal desenvolvimento da presença
militar no seu solo. Não obstante, cabe interrogarmo-nos sobre a eficácia real deste
exército estacionado em Roma e nas suas cercanias, ficando a dois meses de marcha em
relação ao limes germânico. Neste caso, julgamos talvez preferível falar de uma
«reserva», e não tanto de um «exército móvel» ou de um «exército de campanha».
Mais do que a guarnição no âmago de Itália, foram os corpos expedicionários, as
vexillationes, que desempenharam verdadeiramente o papel de exército de campanha,
à semelhança da praetentura Italiae et Alpium de Marco Aurélio.
Quanto ao «exército imperial de campanha» de Severo Alexandre, formou-se em 231-
232, combateu na Guerra Persa, acompanhou o imperador até ao Reno, em 233-234 e,
em 235, apoiou a proclamação de Maximino. Saliente-se que idênticos exércitos se
organizaram no tempo dos predecessores de Maximino (Gordiano III, Filipe-o-Árabe e
Décio).
O período em que reinaram Valeriano e Galieno 2099 constituiu um importante passo
para a definição das estruturas do exército tardo-romano. De facto, surgiram diversos
exércitos imperiais de campanha duradouros e organizados: por exemplo, o exército de
campanha de Valeriano em 253-260, e o de Galieno, em 254-268, desde 260 um
exército estacionado no Norte de Itália, contra a ameaça de uma invasão por parte de
Póstumo, e outro no Oriente, a partir de 262, sob as ordens de Odenato, «vice-rei» da
metade oriental do império, e nos anos 256-258, mais um exército de campanha
comandado pelo Caesar Valeriano Junior, no Danúbio (Sirmium/Viminacium), que
terá fornecido ajuda para a usurpação de Ingenuus, em 259. Após o assassinato de
2097
Para a legio II Parthica: R. Cowan, Aspects of the Severan Field Army…, pp. 78-109 (cap. 3); A. R. Menéndez Arguin,
«II Parthica: Legio apud Romam», Habis 34 (2003), pp. 313-321.
2098
A. K. Goldsworthy não aceita esta ideia (O Fim do Império Romano, p. 94), escrevendo:«Era a primeira vez que uma
legião estava permanentemente estacionada em Itália desde a criação do Principado. Em conjunto com as unidades
expandidas da guarda, Severo tinha um exército de cerca de 17 000 homens à sua disposição imediata. Os especialistas
gostam com frequência de ver isto como a criação de uma reserva estratégica, que supostamente revelou ser necessária
durante as violentas guerras do reinado de Marco Aurélio. Na realidade, tinha muito mais a ver com a potencial ameaça
de um governador provincial contra o imperador».
2099
M. Christol, «Les règnes de Valérien et de Gallien», Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, 2.2 (1975), pp.
803-827; G. C. Brauer, The Age of the Soldier Emperors. Imperial Rome AD 244-284, Park Ridge, 1975, pp. 68-120.
719
Galieno, em 268, o seu exército de campanha converteu-se no centro do poder militar
de Cláudio II e, mais tarde, de Aureliano. Consequentemente, o uso do exército de
campanha continuou no decurso dos reinados dos sucessores de Valeriano e Galieno,
ininterruptamente, o que veio a proporcionar os fundamentos para o ulterior
desenvolvimento durante a Tetrarquia.
As vexillationes legionárias foram conduzidas por Valeriano até ao Reno em 255-256,
procedentes do Oriente, e por Galieno, do Danúbio. Da Britânia e da Germânia também
se reuniram vexillationes de legiões, juntamente com outras compostas de auxiliares,
rumo ao Oriente, integrando o exército de Valeriano em 258; as tropas que restaram
foram lideradas pelos Macriani contra Galieno em 261, depois ficando aboletadas em
Sirmium (ILS 546). Estas vexillationes eram unidades que dispunham do seu próprio
método de recrutamento, cujos efectivos se aumentavam em várias ocasiões para
possuirem considerável força bélica.
É bem possível que as vexillationes não compreendessem sub-unidades especiais para
o treino dos recrutas, nem tivessem os serviços administrativos, uma importante
componente de uma guarnição legionária normal. Consequentemente, as vexillationes
representavam unidades de um novo tipo de agrupamentos com menos efectivos, mas
nem por isso deixaram de ser chamadas legio, não se estabelecendo uma diferenciação
nítida com as legiones propriamente ditas. Subsistem provas de que se criou um
sistema específico de recrutamento e instrução militar para os exércitos de campanha,
independente das unidades-matrizes das vexillationes. Em 235, Maximino, um alto
oficial equestre que gozava de muita popularidade no exército de campanha de Severo
Alexandre, foi comandante do corpo de recrutas das forças imperiais no Reno, onde
numerosos tirones receberam treino para ocuparem as vagas existentes nas
vexillationes e nas legiões. A seguir à sua insurreição bem-sucedida, tornando-se
imperador, Maximino-o-Trácio2100 organizou corpos especiais de adestramento para os
jovens das cidades de Itália, recrutados em duas levas, a Iuventus Nova Italica Sua, do
dilectus prior e posterior (cf. InscrAg. 2892 a, b, 2893 a, b).
Os exércitos de campanha do século III e da Tetrarquia estiveram sempre ligados aos
imperadores, aos Augusti e aos Caesares. Os exércitos de campanha regionais, como
aconteceu em meados do século IV (Gália, Ilíria e Oriente) não existiram
verdadeiramente como organismos adicionais aos exércitos imperiais de campanha:
foram apenas temporariamente organizados para lidar com conflitos junto às fronteiras
ou participar em guerras civis.
O exército imperial de campanha tornou-se o núcleo do poder dos principes, e o seu
conjunto de oficiais correspondia à elite militar do império mas, igualmente, uma
potencial ameaça para os imperadores. Alguém que comandasse um exército de
campanha podia, efectivamente, tornar-se um usurpador, detendo a poderosa
influência de um capax imperii. Como exemplos, temos os casos de Póstumo, em 260,
e de Auréolo, chefe do exército de campanha estacionado em Mediolanum/Milão
(268)2101. A existência do denominado «Império Gaulês» de Póstumo e seus sucessores
obrigou à necessidade de um exército permanente na Itália Setentrional até 274, para
assim bloquear tal ameaça contra o imperador «central». Aquileia, por seu lado, era o
segundo local mais importante de guarnição para os contingentes desse exército de
campanha que protegia Itália e Roma contra incursões bárbaras e ataques no contexto
de conflitos intestinos.
Os imperadores Diocleciano, Maximiano Constâncio I e Galério 2102 travaram as suas
guerras e conduziram as expedições com exércitos de campanha formados dentro da
tradição de finais do século III, consistindo em unidades de guarda (infantaria e
cavalaria), legiões-vexillatio, além de corpos de cavaleiros e «brigadas».
2100
M. Christol, L’Empire romain du IIIe siècle. Histoire politique, pp. 79-92; M. F. Petraccia Lucernoni e M. Traverso,
«A proposito di Massimo il Trace», in Y. Le Bohec (ed.), Les Légions de Rome sous le Haut-Empire, Lyon, 2000, pp.
675-684. M., Sommer, Die Soldatenkaiser, Darmstadt, 2004; P. N. Pearson, Maximinus Thrax: From Common Soldier
to Emperor of Rome, Nova Iorque, Skyhorse Publishing, 2016.
2101
D. S. Potter, The Roman Empire at Bay, p. 264.
2102
T. D. Barnes, «La Tétrarchie (293-312): histoire et archéologie», Antiquité tardive 2 e 3 (1994-1995).
720
Adicionalmente, constituiram-se, cada vez mais, unidades étnicas sobretudo de
indivíduos de origem germânica2103. As vexillationes legionárias não foram
reincorporadas nas suas unidades de raíz por Diocleciano, contrariamente ao que
amiúde se disse, mas desenvolveram-se antes em conjuntos separados de tropas 2104.
A expressão sacer comitatus 2105, aplicável ao exército imperial de campanha, já se
empregava nos últimos anos da dinastia dos Severos: ela atesta-se no epitáfio da estela
de um aquilifer da legio XXX Ulpia Victrix, em Ancyra (actual Ancara, Turquia), no
reinado de Caracala ou no de Elagábalo (CIL III 6764), e aparece também no tratado
De re militari do jurista Aemilius Macer, sob Severo Alexandre (Digest. 49.16.13.3). O
referido monumento funerário mostra igualmente que a águia legionária acompanhava
uma grande vexillatio de combate, representando, pois, toda a legião. Com efeito,
registou-se uma tendência para a separação entre as legiões e as suas vexillationes nos
exércitos de campanha. É aliás neste contexto que cabe inserir o desaparecimento da
função proeminente do primipilato, que perdeu o seu papel na organização da
vexillatio do exército de campanha2106.
O reforço da cavalaria
721
fontes, constituindo uma cavalaria couraçada imitando a tradição parta, é a Ala
Galorum et Pannoniorum, sob o reinado de Adriano. Isto resultou, decerto, da Guerra
Parta conduzida por Trajano. No período severiano, especialmente por ocasião da
Segunda Guerra Parta de Septímio Severo, da campanha de Caracala, seu filho e
sucessor, e da Guerra Persa travada por Severo Alexandre, a cavalaria couraçada viu-se
finalmente mais organizada.Os cataphractarii romanos possuíam armas especialmente
compridas (Heliodoros, Aith. 9.15), elmos, grandes escudos redondos e lanças (contus),
um ou dois cavalos adicionais, um outro equídeo para transporte de equipamento, além
de disporem de serviçais (um ou dois calones). No entanto, não se empregou qualquer
espécie de armadura para as montadas na cavalaria pesada romana. Na realidade, os
cataphractarii totalizavam um reduzido efectivo e a sua eficácia revelava-se mais
evidente em combates com armas combinadas, actuando principalmente em
conjugação com archeiros montados. No que respeita aos últimos, também munidos de
armamento pesado, passaram a fazer parte dos exércitos romanos de campanha no
Oriente, sobretudo após a derrota sofrida em Palmira em 272; nas forças tardo-
romanas encontravam-se presentes os equites sagittarii clibanarii; antes, o exército
romano utilizou os famosos Palmirenos e outros arqueiros montados orientais.
Todavia, os cataphractarii não serviram apenas em unidades especiais: no Arco
triunfal de Galério e no de Constantino, a guarda do imperador – os Equites Singulares
Augusti – entretanto chamados protectores Augusti, surgem nos relevos armados
como cataphractarii. Por outro lado, em finais do século III, pequenos grupos de
catafractos foram inseridos noutras unidades da cavalaria, com o objectivo de agirem
no âmbito de armas combinadas: por exemplo, temos notícia de cataphractarii na Ala
II Dromedariorum no Egipto, em 300 d. C. (P. Panop. Beatty 2, l.27-31).
Durante o Alto Império, os oficiais superiores e os subalternos lutavam na linha da
frente da cavalaria, comandando as três filas da turma; o mesmo terá sucedido do
século IV a 600, quando cada fileira da unidade de Maurikos (Maurício) tinha 10
homens de profundidade e era liderada por um oficial, um dekarches ou decanus.
Provavelmente desde o fim do século III em diante, eles apresentaram-se equipados
com armamento pesado; os duplicarii e os sesquipilicarii foram então designados
catafractari, e os decuriões envergaram igualmente a armadura dos catafractos. A ala
romana tardia também estava organizada em turmae na ordem de batalha, com filas de
10 homens sob as ordens de um decurio e dois catafractarii subalternos. Em princípio,
até ao século IV não se modificou a disposição característica da turma do Alto-Império:
30 cavaleiros, dois oficiais subalternos (duplicarius, sesquiplicarius) e o decurião, cada
um chefiando uma fileira de 10 soldados em combate ou em manobras, a primeira
dispondo de três cavalos de reserva, a segunda e a terceira de dois, que eram
conduzidos por serviçais (Fink 1971, nº 12; Pseudo-Higino, De muni. castr. 16).
A partir do conflito contra os Partos travado por Lúcio Vero e as guerras danubianas
de Marco Aurélio, a importância da cavalaria foi recrudescendo visivelmente. Atrás já
nos referimos às unidades de cavalaria formadas por Septímio Severo. Mas o Ektaxis de
Arriano contra os Alani (um tribo sármata), mostra que os cavaleiros legionários e os
Equites Singulares do governador, com os seus centuriões e decuriões, e uma guarda
escolhida de infantes legionários (lanciarii), os protectores, compunham a escolta do
general, a qual se usava também como reserva táctica durante as batalhas (Arriano, Ek.
22-23). Septímio Severo duplicou a guarda imperial montada, os Equites Singulares
Augusti, e a cavalaria pretoriana. Assim, os cavaleiros da guarda subiram para 4 400
homens. Note-se que os archeiros montados fizeram sempre parte dos Equites
Singulares Augusti. Em finais do século III, os Equites Singulares Augusti que
acompanhavam o imperador no exército de campanha passaram a chamar-se
protectores Domini nostri2108. A cavalaria pretoriana no exército de campanha
encontrava-se separada da infantaria pretoriana, e recebeu uma nova denominação –
pela primeira vez no século III. Quanto à famosa armadura de um cavalo descoberta em Dura Europos, há que
considerá-la como um despojo que os Romanos arrebataram ao inimigo.
2108
K. Strobel, «Strategy and Army Structure…», p. 275.
722
equites promoti Dom(i)nici. Estes dois grupos de tropas tornaram-se, no exército
tardo-romano, as unidades de maior categoria no seio da cavalaria de elite.
A cavalaria legionária, igualmente separada e organizada em contingentes especiais,
adquiriu o mesmo título de equites promoti, indicando, portanto, que eram uma força
montada de elevada qualidade. Sob Diocleciano, criou-se um terceiro ramo de equites
promoti, as unidades dos equites promoti indiginae, equipadas e treinadas como
cavalaria pesada, mas cujos soldados eram recrutados na população local ou regional,
consistindo, em parte, em archeiros dotados de armaduras. As unidades de cavalaria
legionária compreendiam homens muito bem adestrados e pesadamente armados
(equites loricati), que demonstraram a sua eficiência ao combaterem em formações. A
este respeito, o discurso de Adriano proferido em Lambaesis sublinhou o valor militar
dos equites legionis. Ao mesmo tempo, era entre os cavaleiros das legiões que procedia
um substancial número de futuros centuriões e decuriões (dekarches) das unidades
auxiliares montadas. Em campanha, eles serviam como a guarda especial do
comandante do exército. Na Primeira Guerra Judaica ou na campanha de Arriano
contra os Alani, os cavaleiros de todas as legiões formavam uma elite peculiar e um
corpo de reserva, acompanhando o general (F. Josefo, B. J. 5.47-49; Arriano, Ekt. 4-6;
22). Repartidos em turmae, estes cavaleiros estavam dispostos em «brigadas» com os
equites Singulares. Cada turma era enquadrada por um centurião, o seu comandante,
coadjuvado por um optio e um vexillarius como porta-estandarte. Cada fila de 10
soldados estava sob a chefia de um deles. Os centuriões e os principales da cavalaria
legionária receberam o qualificativo de supernumerarii, na medida em que não se
achavam incluídos no conjunto dos oficiais superiores e subalternos das dez coortes
legionárias. Como vimos, tradicionalmente, a cavalaria das legiões consistia em 120
homens distribuídos em 4 turmae, com 4 centuriões e 8 suboficiais comandando filas
de 8 homens. Em suma, 132 militares (soldados e oficiais). Estas tropas constavam das
listas das coortes legionárias, mas ficavam alojadas à parte dos contubernia das
centuriae2109.
Para a sua campanha contra os Partos, Caracala organizou um corpo especial de
cavaleiros legionários, os equites extraordinarii, colocando-os sob as ordens do
comandante equestre da II Parthica, a legião que escoltava o imperador. Por definição,
tais tropas estavam fora da organização regular de uma legião. Neste sentido, os equites
extraordinarii devem encarar-se como cavaleiros adicionais servindo nas legiões.
Quanto ao aumento numérico da cavalaria legionária, parece-nos que se deve atribuir
aos reinados de Septímio Severo e de Caracala e não mais tarde, como vários autores
propuseram.
E. Ritterling formulou a teoria de que Galieno teria criado a cavalaria do exército
romano (Schlachten-reiterei), e que a sua Kavalleriereform separou o corpo de
cavaleiros dos exércitos provinciais e das suas unidades de origem, especialmente as
legiões2110. Considerou, também, que o efectivo de cavaleiros legionários apontado por
2109
Veja-se também Pseudo-Higino, De munitionibus castrorum, 4 (não vexillarii das vexillationes legionárias). Ao
discutir o tamanho da legião imperial, J. Roth («The size and organization of the Roman imperial legion», Historia 43
[1994], pp. 346-362) sustentou que uma legião padrão possuiria 4 800 homens no século I, e que no século II passou a
ser maior (a primeira coorte com um efectivo duplo), totalizando 5 280 homens. A centuria aboletada numa caserna
albergava 80 soldados em 10 contubernia (Pseudo-Higino, De muni. castr. 1). Porém, Pseudo-Higino referiu que uma
coorte legionária tinha 600 milites (De muni. castr. 5), logo haveria 6 000 em cada legião. Ao contrário de Roth,
Pseudo-Higino não faz menção a calones ou escravos incluídos nesta cifra. Uma legião «expandida» comportava 54
centúrias de 80 infantes, quatro centúrias de 160 de 160 homens e a primeira centúria com 320, sob o comando do
primus pilus da primeira coorte. Cumpre acrescentar 60 (ou 59) centuriões e 60 (ou 59) optiones centuriarum e 132
equites (cavaleiros, suboficiais e centuriones supernumerarii), em suma 5 532 soldados e oficiais, além dos indivíduos
não aquartelados nas casernas das centuriae: os principales e officiales, o pessoal médico, alguns artífices e
«engenheiros». Septímio Severo completou a assimilação, não só dos centuriões, mas igualmente dos principales, à
categoria equestre. É impossível que estes militares com postos e remunerações elevados se encontrassem acantonados
juntamente com os simples soldados nas casernas. Ao todo, o efectivo de uma legião do século II ascenderia a cerca de 6
000 homens, cavaleiros, oficiais superiores e subalternos.
2110
E. Ritterling, «Zum römischen Heerwesen des ausgehenden 3.Jahrhunderts», in Festschrift O. Hirschfeld, Berlim,
1903, pp. 345-349; cf. C. Keyes, The Rise of Equites in the Third Century of the Roman Empire (1ª edição 1915), Ann
Arbor, 1985; L. De Blois, The Policy of the Emperor Gallienus, Leiden, 1976, pp. 26-30. Ao basear-se numa atenta
análise das fontes, B. Bleckmann (Die Reichkrise des III. Jahrhunderts in der spätantiken und byzantinischen
Geschichtsschreibung, Munique, 1992, pp. 226-237, 255-260) apresentou uma argumentação convincente. Num âmbito
723
Vegécio serviria como prova para tal reforma. Hoje em dia, descartaram-se estas ideias.
Na realidade, durante o século III, sempre houve grandes contingentes de cavalaria
(constituídos por forças diversas) a escoltar os imperadores em campanha: para a sua
expedição contra os Partos, Caracala acrescentou cavaleiros foederati mauri, afamados
lançadores de dardos e especialistas em tácticas de combate em meio montanhoso
(Díon Cássio, Hist. rom. 78 [79].32.1), além de outros foederati montados germânicos e
godos. Lembremos, a propósito, que os Mauri já haviam sido empregues por Trajano
em elevado número. Por seu turno, tropas étnicas de foederati mauritanos fizeram
parte integrante do exército de Alexandre Severo nas guerras persas e germânicas e,
mais tarde, escoltaram Maximino-o-Trácio até Itália, em 238 (Herodiano, 8.1.3;
Zósimo, 1.15.1; Zonaras, 126.7).
Quanto aos equites Dalmatae, constituíam uma força de cavaleiros de elite, que vieram
a desempenhar um papel activo no assassinato de Galieno em 68 e, depois, lutaram
exitosamente sob Cláudio II (Zósimo, 1.40.2; 1.43.2; Hist. Aug.Gall. 14.4.9). Zósimo
alude aos cavaleiros dálmatas e mauri nas tropas de Aureliano, aquando da batalha de
Emesa, contra a cavalaria superior de Palmira. Ironicamente, os Dálmatas, ao que se
julga, terão sido recrutados no reinado de Galieno, com o intento de fortalecer o seu
exército de campanha em 2602111.
Os palafreneiros da cavalaria dos exércitos de campanha devem ter sido numerosos,
afora o facto de também estarem bem treinados como cavaleiros. Em data
desconhecida, possivelmente enquanto medida ad hoc, alguns deles passaram a
pertencer a unidades de combate de diferentes tamanhos como stablesiani2112 (numeri,
cunei ou vexillationes stablesianorum), com o objectivo de reforçar a cavalaria pesada.
Não resta qualquer dúvida de que o núcleo de elite do exército de campanha de
Galieno radicava num grande corpo de cavalaria que escoltava o imperador ou actuava
na qualidade de força móvel de avanço (Zósimo, 1.40.1; Zonaras, 143.10-26, 143.14.21;
145.11-12).
Por volta de 256, Galieno terá concentrado no Reno vexillationes de tropas montadas
tanto das legiões e das alas de cavalaria auxiliares, como ainda os numeri, supletivos
mobilizados nos confins do Império que pelejavam de acordo com as suas próprias
tradições, não segundo as regras romanas. Ora, em meados do século III, os soldados
recrutados por Severo Alexandre ainda estavam disponíveis, pelo menos os que
tivessem sobrevivido, na medida em que teriam de cumprir 25 anos de serviço. Não
restam grandes dúvidas que foram eles que Galieno mobilizou, já que seria impossível
criar de improviso uma força de cavalaria em condições. Uma vez constituído, um tal
exército só poderia ser eficaz após um longo período de formação militar e treino.
Acantonados em Milão a partir de 259, estes cavaleiros funcionariam como uma
reserva simultaneamente contra o «Império gaulês» e contra os Alamanos. Todavia,
não devemos considerar este exército como algo autónomo, quanto mais não seja
porque os diferentes destacamentos que o integravam jamais foram separados das suas
unidades de origem, apenas temporariamente.
Y. Le Bohec2113 enfatizou que tal estratégia se inscreve numa certa continuidade face às
concentrações de tropas organizadas por Augusto e, depois, por Trajano, nos seus
respectivos planos de conquista da Germânia e da Mesopotâmia. Por outro lado, o
exército de Galieno em Milão só compreendia unidades de cavalaria, desde a altura em
que as vexillationes de infantaria tinham completado o núcleo inicial, cujos efectivos
seriam provavelmente reduzidos. Além disso, este exército de campanha, ainda que
permitisse interceptar forças invasoras que rompessem as defesas do limes,
apresentava o inconveniente de propiciar as tentativas de usurpação por parte daquele
mais global, consulte-se também K. Strobel, «Pseudophänomene der römischen Militär- und Provinzgeschichte am
Beispiel des “Falles” des obergeraminisch-rätischen Limes. Neue Ansätze zu einer Geschichte der Jahrzehnte nach 253
n. Chr. An Rhein und oberer Donau», Roman Frontier Studies, XVII (Zalau, 1999), pp. 9-33.
2111
K. Strobel, «Strategy and Army Structure…», p. 276.
2112
M. P. Speidel, «Stablesiani. The raising of new cavalry units during the crisis of the Roman Empire», Chiron 4
(1974), pp. 541-546.
2113
L’Armée romaine dans la Tourmente. Une nouvelle approche de la “crise du IIIe siècle”, pp. 236-237.
724
que assumia o seu comando: veja-se o caso de Auréolo que, depois de haver sido um
dos fiéis apoiantes de Galieno, acabou por se virar contra o último em 268. Assim, é
pouco provável que este género de formação militar se tenha mantido depois do
reinado de Aureliano.
Em 268, o que viria a ser o imperador Cláudio II comandava o corpo de cavalaria do
exército imperial de campanha, e Aureliano era o segundo na cadeia do mando, ambos
tendo desempenhado um papel determinante no assassinato de Galieno. Aureliano, que
se tornou comandante do corpo de cavalaria do exército de campanha de Cláudio II,
parece ter abolido este posto, o que acarretou certos riscos para a segurança do
imperador. O alto comando do núcleo móvel do exército de campanha, com o seu corpo
de cavalaria, as tropas de elite das forças armadas imperiais, fizeram dos seus oficiais
capax imperii.
Quanto às unidades de cavaleiros legionários, entre os anos 240 e 285 d. C., passaram
de 120 para 726 homens, distribuídos em 22 turmae cada um, sem ruptura de laços
com a legião de origem. Torna-se difícil atribuir esta medida a Galieno ou a Aureliano.
Os equites promoti correspondiam a legionários apeados que se viram promovidos na
cavalaria. Os historiadores modernos têm preconizado opiniões divergentes em relação
à importância que exerceu a cavalaria romana. Y. Le Bohec 2114, por exemplo, relativizou
o papel por ela desempenhado no período aqui em apreço. No entanto, entre o século II
e o IV, a proporção entre unidades de cavalaria e de infantaria mudou de 1/10 para 1/3.
Em 262, repare-se que as emissões monetárias (estudadas por L. Okamura 2115 e D. B.
Campbell2116) honraram pela primeira vez as tropas de cavalaria, em razão do papel
decisivo que manifestaram nos campos de batalha entre 253 e 261. Uma inscrição
achada em Grenoble, um pouco posterior (França; CIL, XII, 2228; ILS, 569) sublinha
igualmente a proeminência evidenciada pelos equites na ofensiva de Iulius Placidianus,
prefeito dos vigiles do imperador Cláudio II (268-270) contra o «império gaulês»
dissidente.
M. P. Speidel2117, no artigo publicado no volume de homenagem a E. Birley, tentou
reconstituir a ordem de batalha da cavalaria romana; ao escorar-se em documentos
tardios, insistiu na tónica do envolvimento dos oficiais na primeira linha. Com efeito, o
reputado especialista advertiu para a existência de diversos elementos que mostram
ter-se registado uma taxa de mortalidade bastante elevada entre os oficiais subalternos
da cavalaria, e para o lugar ocupado, respectivamente pelos decuriões, duplicarii e
sesquiplicarii em combate, com base no número de montadas que lhes era atribuído.
De facto, os cavalos representavam alvos ideais para o inimigo, e os cavaleiros que
pelejavam na primeira linha tinham de mudar de montadas mais frequentemente do
que os demais: os escudeiros mantinham-se, portanto, na retaguarda, com cavalos
«sobresselentes». É, aliás, assim que por vezes eles foram representados nas estelas
funerárias, nomeadamente em Apamea.
Ora se os corcéis eram vulneráveis, facilmente se infere que os seus cavaleiros estariam
também muito expostos quando operavam na primeira linha. Speidel aventou ainda a
hipótese de o crescente número de recrutas de origem germânica incorporados no
exército romano, desde meados do século III reflectir um meio de reforçar com
efectivos este envolvimento dos oficiais na cavalaria na primeira linha, o que já se
atesta no século precedente através da inscrição que evoca a carreira de Marcus
Valerius Maximianus, que matou com as próprias mãos, na Germânia, Valaon, o chefe
dos Naristi (AE, 1956, 124).
O desenvolvimento da cavalaria exigiu, assim, oficiais competentes neste domínio
específico em número cada vez maior, a fim de suprirem as baixas sofridas em refregas.
2114
Ibidem, pp. 236-237.
2115
«The flying columns of Emperor Gallienus: “legionary” coins and their hoards», in V. Maxfield e B. J. Dobson (eds.),
Roman Frontier Studies 1989: Proceedings of the XV International Congress of Roman Frontier Studies, Exeter, 1991,
pp. 387-391.
2116
«Coinage and cavalry: The sources for Gallienus and his equites», Ancient Warfare, II.6. (Dec/Jan. 2009), pp. 8-11
2117
«Who fought in the front?», in G. Alföldy, B. Dobson e W. Eck (eds.), Kaiser, Heer und Gesellschaft in der
Römischen Kaiserzeit. Gedenkschrift E. Birley, pp. 473-482.
725
As províncias da Europa Ocidental (da Récia à Britânia) constituíram um «viveiro»
acrescidamente importante para o recrutamento de oficiais equestres, o que se
confirmou graças às investigações de índole prosopográfica empreendidas por H.
Devijver2118. Mas a tendência para a promoção dos Ilíricos, detectável a partir do
período severiano, acentuou-se ainda mais entre os reinados de Galieno e Aureliano.
M. P. Speidel salientou uma evolução similar no âmbito do recrutamento dos equites
singulares Augusti (nos quais Maximino-o-Trácio talvez tenha servido) e dos seus
tribunos, facto bem documentado pelos monumentos funerários desses indivíduos.
Tais regiões eram, efectivamente, conhecidas pelo seu savoir-faire e pelas suas
tradições equestres.
2118
Prosopographia militiarum equestrium quae fuerunt ab Augusto ad Gallienum, Lovaina, 1976-1980; IDEM, ,The
Equestrian Officers of the Roman Imperial Army, Mavors Roman Army Researches 6, Amesterdão, Gieben, 1989.
2119
R. Cowan, Imperial Roman Legionary AD 161-284, Oxford, 2003, pp. 27-28.
726
os lanciarii 2120, com as lanceae, se encontravam imediatamente atrás deles, e os
sagittarii ainda mais recuados. Todos estes termos se atestam na rica documentação
epigráfica de Apamea, acervo que foi resgatado do olvido graças às escavações
realizadas por J.-C. Balty e W. van Rengen 2121. As descobertas arqueológicas e os baixos-
relevos das lápides dos soldados da II Parthica revelam significativas mudanças na
estrutura das legiões no começo do século III: atesta-se a existência de um instrutor na
utilização das lanceae, o discens lanciarum, de outro para recrutas portadores de
piques, o discens phalangiarium, e de um lanciarius pertencente à categoria de
immunis; num dos monumentos funerários de Apamea representou-se um milites
munido de lancea. Nos derradeiros tempos do século III, no exército imperial de
campanha assinala-se a presença de unidades de lanciarii parcialmente montadas,
retiradas das legiões.
Diversos achados sugerem que a configuração dos escudos e, sobretudo, dos elmos foi
adaptada a novas modalidades de combate. Os elmos de legionários de finais do século
II, pertencentes aos tipos Niedermörmter e Niederbieber, foram concebidos para
soldados que porfiavam em formações cerradas, do género da falange, que
permaneciam em ordem unida mesmo quando brandiam as espadas. O modelo
Niedermörmter (equivalente ao «Imperial Itálico H» de H. R. Robinson) oferecia a
máxima protecção ao seu utilizador, mas permitia apenas um reduzido leque de
movimentos do corpo. Os combatentes teriam de ficar numa posição bastante direita
em formação compacta; o arremesso do pilum ou de dardos afigurava-se uma tarefa
difícil; quanto à espada, empregava-se em movimento descendente e directamente para
a frente. O tipo de casco Niederbieber proporcionava igualmente boa protecção, só
deixando a descoberto a boca, o nariz e os olhos através de uma abertura estreita em
forma de «T»; o seu guarda-nuca, contrariamente ao do Niedermörmter, dava
possibilidades para o soldado mexer com mais facilidade o corpo. Estes dois modelos
de elmos limitavam a capacidade da visão frontal2122. Sexto Júlio Africano refere-se a
queixas por causa da imobilidade da cabeça que os capacetes coevos provocavam 2123.
O assunto muito debatido entre os estudiosos da disposição dos homens em combate
veio a ser parcialmente esclarecida graças aos símbolos gráficos dos seis graus de
centuriões existentes em cada coorte, achados em inscrições de Mogontiacum
(Mogúncia/Mainz; CIL, XIII, 6801) e de Lambaesis (CIL, VIII, 2568-2569a). Tais
símbolos foram interpretados nesse sentido por M. P. Speidel 2124, J.C. Mann2125 e, mais
recentemente, por P. Faure2126, considerando que os mesmos terão sido concebidos nos
officia militares em função da posição ocupada pelas centúrias no campo de batalha.
Consequentemente, testemunhariam uma certa continuidade relativamente ao
dispositivo manipular republicano, ao colocar na primeira linha os manípulos de
hastati (phalangarii), na segunda os dos principes (lanciarii) e na terceira os dos pili
(sagittarii). Em cada manípulo, a centúria de posteriores seria posicionada à esquerda
2120
Ibidem, pp. 24-26.
2121
Para o resultado das escavações arqueológicas em Apamea, consulte-se a monografia de J.-C. Balty e W. van Rengen,
Apamea in Syria. The Winter Quarters of Legio II Parthica. Gravestones from the Military Cemetery, Bruxelas, 1993;
J.-C. Balty, «Apamée (1986). Nouvelles données sur l’armée romaine d’Orient et les raids sassanides du milieu du IIIe
siècle», CRAI (1987), pp. 213-241; IDEM, «Apamea in Syria in the second and third centuries AD», JRS 58 (1988), pp.
97-104; W. van Rengen, «La IIe Légion Parthique à Apamée», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), Les légions de Rome sous
le Haut-Empire, vol. I, pp. 407-410.
2122
Para mais elementos descritivos sobre estes elmos: M. C. Bishop e J. C. N. Coulston, Roman Military Equipment,
pp. 145-147, figs. 103; R. Cowan, Imperial Roman Legionary AD 161-284, pp. 41-42; C. Koepfer, «Guarding the gates to
Italy: The Raetian army in the 3 rd century», Ancient Warfare (Dec/Jan 2009), p. 12- fotografia de um exemplar do tipo
Niederbieber descoberto em Rainau-Buch, actualmente conservado no Limesmuseum de Aalen (Alemanha); G. Barnett,
«Father and son invade Iraq: The Parthian wars of the first Severi», ibidem, p. 24 – fotografia de um casco de finais do
século II ou começos do III, do tipo Niedermörmter, achado na cidade epónima situada perto de Xanten (Alemanha), e
preservado no Rheinisches Landesmuseum de Bona.
2123
Kestroi, 1, 1, 50-52.78-80.
2124
«Centurial Signs and the Battle Order of the Legions», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, 154 (2005), pp.
286-292.
2125
«Roman Legionary Centurial Symbols», Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, 115 (1997), pp. 295-298.
2126
L’aigle et le cep. Les centurions legionnaires dans l’Empire des Sévères, Bordéus, 2012.
727
dos priores. Frente ao inimigo, as dez coortes de uma legião estariam possivelmente
alinhadas por ordem decrescente de número, da esquerda para a direita. Contudo,
nesta triplex acies, que se manteve, substituiu-se progressivamente o gládio pela
espada comprida (spatha) e pela lança, privilegiando-se a coesão dos piqueiros
combatendo em filas cerradas, em detrimento do talento dos soldados na esgrima,
conforme destacou S. Janniard na comunicação apresentada no colóquio subordinado
ao tema L’armée romaine de Dioclétien à Valentinien Ier2127.
No estado actual dos conhecimentos e da documentação conhecida, não é possível, elo
menos por enquanto, ir mais longe na tentativa da reconstituição das linhas de
combate. Mas, de qualquer modo, a disposição das tropas podia evidentemente variar
consoante o inimigo e a natureza do terreno onde se livrava a refrega. Terá este género
de formação mais compacta tornado inoperante a especificidade da primeira coorte,
dotada de cinco centúrias com efectivos duplos? Certas inscrições de Apamea
revelaram também a existência, sob a égide de Severo Alexandre, do posto de centurião
pilus posterior na Iª coorte da legio II Parthica (AE, 1993, 588), o qual não consta em
qualquer outra legião. Este facto fez reacender o debate acerca dos efectivos e do
número de centúrias da Iª coorte legionária.
No entanto, a inscrição do tabularium principis (ou seja, dependente do centurião
princeps da Iª coorte) da IIIª legião Augusta, em Lambaesis, que foi gravada durante o
reinado de Septímio Severo e retocada nos de Valeriano e de Galieno, apenas menciona
5 optiones para a Iª coorte, sem referência a um optio do pilus posterior. Cabe então
imaginar se a criação da IIª legião Parthica por Septímio Severo não terá funcionado
como um «laboratório» em que se testassem novas técnicas de combate. Ao tornarem
as centúrias de uma mesma linha de batalha mais intermutáveis do que anteriormente,
as transformações na organização interna das legiões foram particularmente profícuas
por facilitarem as transferências de tropas e a formação de vexillationes.
A carreira de Aurelius Gaius, sob a Tetrarquia, conhecida graças a uma fonte epigráfica
encontrada na Frígia (AE, 1981, 777), dá conta da importância assumida pelos
cavaleiros e pelos lanceiros no exército romano em finais do século III:
«Aurelius Gaius, o segundo deste nome, tendo servido na Iª legião Italica dos Mesíacos (?), seleccionado
para a VIIIª legião Augusta na Germânia [servindo] na Iª legião lovia Scythica na Cítia e depois na
Panónia. Enquanto recruta, servi como aprendiz de cavaleiro, a seguir como cavaleiro lanceiro, optio de um
centurião triarius, optio de um centurião ordinatus, optio de um centurião princeps, optio dos comites do
senhor da Iª legião lovia Scythica; viajei através do Império, pela Ásia, Cária […], Lídia, Licaónia, Cilícia
[…] Síria, Fenícia, Arábia, Palestina, Egipto, por Alexandria, pela Índia [isto é, a Etiópia], pela
Mesopotâmia, Capadócia […] Galácia, Bitínia, pela Trácia […], Mésia, Cárpia […] Sarmácia, quatro vezes
por Vimiacium […] pela Hispânia, Mauritânia […] depois de ter progredido […] cheguei à minha terra-
natal, Pessinus, onde fui criado e actualmente resido, no lugarejo de Cotiaeum […], com Macedonia
[minha filha?]; com os frutos do meu trabalho, erigi esta estela em memória de Jul[…] Arescusa, a minha
querida esposa, até à ressurreição. Saudações a todos».
Este testemunho mostra que Aurelius Gaius2128 seguiu a carreira «clássica» de um
legionário que foi integrado no corpo dos principales, aqueles oficiais subalternos que
ocupavam uma posição hierárquica imediatamente inferior à dos centuriões. Constata-
se que ele serviu como soldado de cavalaria (eques legionis e lanciarius) quando foi
recrutado na infantaria. As sucessivas afectações deste militar mostram tanto a
relevância que então possuía a cavalaria, como a ausência de uma separação nítida
entre infantes e cavaleiros nas legiões durante o período da Tetrarquia.Nesta inscrição,
destaquemos igualmente a referência ao grau de ordinatus de que foi detentor um
centurião, às ordens do qual esteve Aurelius Gaius como optio. No entender de S.
Janniard, o emprego dos termos ordinatus ou ordinarius2129, aparentemente
procedentes da gíria militar, remontaria à altura em que se registaram modificações
2127
«Armati, scutati et la catégorization des troupes dans l’Antiquité Tardive», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.), L’armée
romaine de Dioclétien à Valentinien Ier (Actes du Congrès de Lyon, 12-14 sept.; 2002), Paris, 2004, pp. 389-395.
2128
T. Drew-Bear, «Les voyages d’Aurélius Gaius, soldat de Dioclétien», in La géographie administrative et politique
d’Alexandre à Mohamet (Actes du colloque de Strasbourg, 14-16 juin 1979), Leiden, 1981, pp. 93-141; R. Cowan, Roman
Legionary AD 284-337: The Age of Diocletian and Constantine the Great, Oxford, 2015, pp. 18-20
2129
«Centuriones ordinarii et ducenarii dans l’armée romaine tardive IIIe-VIe siecle ap. J.-C»., in A. Lewin (ed.),
L’esercito romano tardo antico nel vicino Oriente. Da Diocleziano alla conquista araba, Oxford, 2012.
728
nas formações de combate, a partir do período Severiano; tais vocábulos serviriam para
designar os centuriões priores existentes nas duas primeiras linhas de batalha (hastati
e priores).
Como a reformulação do dispositivo de combate reforçou as responsabilidades destes
centuriões nas duas centúrias do seu manípulo, eles depressa terão sido qualificados de
ducenarii. A atestação mais antiga que conhecemos deste título, ducenarius, consiste
num grafito encontrado no palácio do dux em Dura Europos, construído, o mais tardar,
sob o reinado de Elagábalo (217-222), e evacuado em 256, quando a cidade foi tomada
pelos Persas. Aproximadamente no mesmo momento histórico, começou-se a utilizar
igualmente o termo centenarius para identificar os outros centuriões.
As inscrições de Apamea, bem como os símbolos das centúrias atrás mencionados,
deixam entrever que as coortes legionárias compreenderiam sempre seis centúrias no
tempo severiano. Mais tarde, de acordo com Vegécio (Epitoma de rei militaris, II, 67),
o número de centúrias transitou de 60 para 50, enquanto os efectivos de cada coorte
subiram de 480 para 555 legionários. Esta antiqua legio, no dizer de Vegécio, seria
então posterior e poderia remontar à segunda metade do século III.
A premente necessidade de mobilizar o maior número de forças possível para a defesa
do Império não permitia, sem dúvida, utilizar os militares para outras funções sem ser
a guerra. A isto acrescentou-se, talvez, a dificuldade de se encontrar suficiente
quantidade de recrutas que tivessem as competências para levar a cabo tarefas
administrativas. A especialização das carreiras significava, pois, o lógico corolário desta
evolução que levou à criação de um corpo de funcionários civis, os officiales, que
gradualmente veio a substituir os principales nas administrações provinciais e centrais:
frequentemente, eram recrutados entre os notáveis municipais e beneficiavam de certos
privilégios, como se verifica pelo «álbum» de Thamugadi/Timgad de 363 d. C. (CIL,
VIII, 2403 e 17824; ILS, 6122 e AE, 1978, 891).
Mas esta transformação não se revelou sistemática. Com efeito, ainda havia soldados
em destacamentos a fazerem parte de determinados officia. Os últimos beneficiários
conhecidos por se encontrarem adstritos ao officium de um governador provincial
aparecem nomeados nos epitáfios descobertos em Salonae, na necrópole de
Manastirna (CIL, III, 8727 e 8754), fontes que datam do fim do século III ou do começo
do IV.
No entanto, a hierarquia militar funcionou como modelo para a burocracia civil,
organizada também como uma milícia, na medida em que alguns postos de oficiais
subalternos do Alto Império que caíram em desuso no exército romano do século IV,
continuaram a ser empregues para designar doravante officiales civis. Posto isto, na
documentação tardia, nem sempre é fácil distinguir os civis dos militares.
A metamorfose que sofreu o primipilato é bem representativa desta evolução:
aparentemente, as competências do primipilus em matéria de aprovisionamento terão
aumentado sob o reinado de Septímio Severo, que desta forma procurava tornar mais
eficaz a logística militar. Em cada legião, o primeiro centurião da primeira coorte
passou a ser responsável pelos fundos que financiavam o abastecimento e o
equipamento dos legionários. Para cumprir a sua missão (como demonstraram os
estudos de A. Mócsy2130 e P. Faure), ele dispunha de escravos, libertos (actores e
dispensatores), vendo-se assistido pelos signiferi, cujo papel no domínio da
contabilidade anteriormente já se referiu.
Mas na segunda metade do século III, o primipilus converteu-se num cargo puramente
civil, concedido a um officialis em final de carreira, que tinha por incumbência velar
pelo pastus primipili, ou seja, o encaminhamento dos víveres destinados aos soldados
entre a província em que exercia a sua função e as respectivas guarnições.
2130
«Das Lustrum Primipili und die Annona Militaris», Germania 44 1966, pp. 312-326
729
As fortificações
2131
No entanto, recentemente, Y. Le Bohec (L’Armée romaine sous le Bas-Empire, p. 25) aceitou, em certa medida, tal
tese: «Enfin, a propos de la défense en profondeur, notion qui a été critiquée, parfois à juste titre parfois non, elle a été
imposée par plusiers facteurs. Les difficultés de la logistique ont amené les cadres à installer les soldats près des sources
d’approvisionement. La pratique de la guerre propre aux Germains, qui voulaient créer une zone désertique tout au long
de leur frontière, a repoussé vers le Sud les soldats de l’armée des Gaules».
2132
«L’armée et ses fortifications pendant l’Antiquité tardive: la difficile interpretation des sources archéologiques», in
L’armée romaine de Dioclétien a Valentinien Ier, 2004, pp. 157-167; veja-se, também, uma obra colectiva em que M.
Reddé participou juntamente com R. Brulet, R. Fellmann, J. Kees Haalebos e S. Schnurbein, Les fortifications
militaires. Collection L’architecture de la Gaule romaine, Bordéus, 2007.
2133
M. Reddé, «Dioclétien et les fortifications militaires de l’Antiquité Tardive», Antiquité Tardive 3 (1975), pp. 9-124.
730
desde que se realizaram as prospecções aéreas de A. Poidebard 2134, na altura do
protectorado francês na Síria. Nos últimos anos, um reexame do conjunto desta rede
viária neste sector permitiu constatar que a mesma foi construída em várias etapas, e
que não obededeceria forçosamente ao propósito de servir de defesa contra eventuais
invasões sassânidas, mas sobretudo ao interesse de melhorar o sistema de
comunicações entre o Norte da Síria e o Sul da Arábia, ao mesmo tempo que se exercia
vigilância sobre as populações que viviam no interior do Império.
Quanto às fortificações no Norte de África sob o Baixo-Império, torna-se assaz difícil
datá-las com precisão, à excepção do centenarium de Aqua Viva, construído perto de
Hodna, que remonta a 303 (com base no texto da sua dedicatória; cf. AE, 1942, 81).
Por último, saliente-se que em diversas ocasiões se associaram a praças-fortes
construções que nada tiveram de militar; as que se localizaram no interior do Império
vieram, aliás, a alimentar a teoria já referida de uma «defesa em profundidade», que foi
posta em causa e até refutada por M. Reddé 2135 e J.-M. Carrié2136. A este respeito, basta
evocar o exemplo da quinta fortificada de Duch, no Egipto, que certos autores
identificaram erradamente como um acampamento militar, o mesmo sucedendo com
outras construções similares achadas na Tripolitânia.
Não obstante, a verdade é que a multiplicação de destacamentos militares, a
possibilidade doravante oferecida aos soldados de viverem com as suas famílias, a
busca de obras acarretando menor custo, assim como a formação de legiões com
efectivos reduzidos (aspecto que abordaremos oportunamente) conduziram à criação
de acantonamentos de dimensões muito mais diversificadas do que sob o Alto-Império.
Consequentemente, nem sempre é fácil distinguir os vestígios arqueológicos de um
acampamento dos de uma cidade ou de um lugarejo fortificados.
2134
La Trace de Rome dans le désert de Syrie. Le limes de Trajan à la conquête arabe. Recherches aériennes, 2 vols.,
Paris, 1934.
2135
Cf. artigos citados anteriores notas infrapaginais.
2136
«Les castra Dionysiados et l’évolution de l’architecture militaire tardive», MEFR(A), 86.2 (1974), pp. 819-850.
731
já atrás ficou dito que transmitem uma imagem muito negativa sobre os soldados. Uma
tal atitude parece bastante reveladora da dificuldade que experimentavam os meios
dirigentes do Império na determinação das medidas militares que a nova conjuntura
geoestratégica impunha, a fim de manter a sua coesão.
No entanto, aboletados, na sua maioria, em guarnições fronteiriças, os soldados
tiveram a propensão de formarem uma sociedade à parte. Na realidade, não olvidemos
que, quando Septímio Severo assumiu o comando da guarnição da Panónia Superior,
em 191, enquanto legado, ele viu-se em contacto directo com o exército que sofreu
provavelmente mais provações ao longo das guerras conduzidas contra os Marcómanos
e com as epidemias que ocorreram no reinado de Marco Aurélio.
De facto, a duração do serviço militar era de tal modo longa que algumas tropas que se
encontravam sob as ordens do novo legado propraetor talvez tenham findado as suas
carreiras neste período.Como muitos soldados eram filhos de veteranos, as recordações
desta fase difícil e atribulada podem igualmente haver marcado grande parte dos
homens que estavam nas fileiras. Assim, a sua experiência panoniana conduziu
possivelmente Septímio Severo a tomar plena consciência da necessidade imperativa de
reforçar a adesão ao Império daqueles que o deviam defender, pelo que urgia melhor a
sorte dos mesmos. As novas modalidades de recrutamento dos pretorianos foram, pois,
motivadas pela vontade de oferecer perspectivas de carreira susceptíveis de atrair mais
recrutas para as legiões e, também, com o propósito de preencher o fosso que se abrira
entre pretorianos e legionários, causado pelas condições de serviço mais vantajosas de
que gozavam os primeiros. A partir de então, um legionário podia almejar aceder ao
pretório, ao passo que os pretorianos promovidos a um posto mais elevado nas legiões
– por exemplo, os centuriões do pretório que ascendessem ao primipilato – nelas
seriam mais bem aceites.
Como o aumento do montante dos soldos compensava muito a custo os efeitos da
inflação, houve que estabelecer outras disposições para melhorar a condição dos
militares. Desta maneira se percebe que Septímio Severo tenha procedido, em certas
ocasiões, as distribuições de carácter excepcional, de aurei, os donativa, graças aos
despojos obtidos nas guerras párticas. No entanto, não se deve entender a instauração
do sistema atestado a partir de Diocleciano, sob o nome de anona militar (annona
militaris), como uma decisão de substituir um imposto em moeda por uma operação
fiscal em espécies, tomada por Septímio Severo em 193 ou 198, como presumiu D. van
Berchem2137. Para este autor, a gratuidade das provisões militares teria igualmente
substituído o pagamento com moeda e as retenções na fonte.
Na realidade, os soldados continuaram a receber as suas remunerações em numerário
ao longo de todo o século III, como o provam os papiros de Dura Europos (P. Dura 82;
ChLA, VII, 338), nos quais se assinala o reembolso de certas requisições durante o
período Severiano, bem como os descobertos em Panópolis (P. Beatty Pan. 1 e 2), que
datam da estadia de Diocleciano no Egipto (298-300):
«Aurelius Isidoros, procurador da Tebaida Inferior, para Apollinarius, estratego, e para os recebedores
financeiros do nomo Panopolita, saúde. Tratai de pagar aos cavaleiros comandados pelo decurião Besas, da
Iª ala dos Iberos, que se encontram estacionados em Thmôos, como soldo pelas calendas de Janeiro do
felicíssimo consulado dos nossos senhores Constâncio e Maximiano, nobilíssimos Césares, sete miríades de
denários e três mil e quinhentos áticos; e, por conta da anona que lhes é devida para quatro meses, das
calendas de Setembro às vésperas das calendas de Janeiro, sob os felicíssimos sétimo e sexto consulados
dos nossos senhores Diocleciano e Maximiano Augustos, duas miríades de denários e 7 100 áticos,
perfazendo um total de nove miríades de denários e de sete mil e cem áticos. Remetei estas somas para o
decurião Paniscus, opiniator, e dele obtei os habituais recibos aquando da inscrição nos registos. Portai-
vos bem, peço-vos, por muitos anos» (P. Beatty Panop. 2, 36-42, 30 de Janeiro de 300 d. C.).
Sem a manutenção destes pagamentos, não se compreenderia os esforços envidados
pelo poder imperial para fazer continuar a circular a moeda, à custa de uma forte
2137
«L’annone militaire dans l’Empire romain au IIIe siècle», Mémoires de la Société nationale des antiquaires de
France 10 (1937), pp. 117-202; IDEM, «L’annone militaire est-elle un mythe?», in Armées et fiscalité dans le monde
antique.Colloques nationaux du Centre national de la Recherche scientifique, nº 936, Paris, 1977, pp. 331-339. Veja-se
também, F. Mitthof, Annona militaris. Die Heersversorgung im spätantiken Ágypten. Ein Beitrag zur Reichs- und
Verwaltungsgeschichtedes Römischen Reiches im 3. bis 6 Jh. n. Chr., Florença, 2001, p. 31ss. (para uma descrição do
aprovisionamento básico das fronteiras e exércitos de campanha).
732
depreciação devido à penúria do metal2138. No decurso do século III, o Estado procurou
adaptar a emissão da moeda à dispersão dos teatros das operações bélicas,
multiplicando e descentralizando as oficinas de cunhagem, que se foram aproximando
mais das fronteiras do Império. Isto conduziu à diminuição da quantidade de metal na
composição das rodelas monetárias, a tal ponto que os soldados tiveram de se
contentar com uma moeda de bilhão. Perfilhamos a opinião de M. Corbier 2139, no
sentido de que não se deve assimilar a anona militar a um imposto distinto criado por
Septímio Severo. É certo que esta fórmula se encontra mencionada pela primeira vez
nos óstracos de Pselcis, no Egipto, que remontam ao reinado de Marco Aurélio e ao de
Cómodo, mas ela aplicava-se apenas sobre parte dos impostos tradicionais, fundiários e
pessoais, que se cobravam em espécies, para prover às necessidades do exército, da
mesma forma que havia uma anona civil, destinada ao aprovisionamento de Roma e de
outras grandes cidades do Império.
Por outro lado, mesmo num período inflacionário, o Estado romano não teria qualquer
interesse em exigir por toda a parte só produtos em espécie, consistindo essencialmente
em alimentos perecíveis, que inevitavelmente se estragariam antes que a administração
imperial pudesse fazer uso dos mesmos, em razão dos custos e da lentidão dos
transportes. Esta modalidade de levantamento só poderia dizer respeito, por exemplo,
às regiões que tivessem fáceis comunicações com as guarnições ou com os grandes
aglomerados urbanos.
Pelas mesmas razões, por muito que os militares apreciassem ver as suas necessidades
em alimentação e em equipamento supridas por fornecimentos gratuitos, torna-se
dificilmente concebível imaginar que aceitassem a totalidade dos seus soldos apenas
desta forma. Com efeito, era preciso assegurar as suas despesas correntes, o que eles
faziam usando a moeda de bilhão, paga aquando do stipendium. Em 301, Diocleciano,
no prefácio do édito, deplora o facto de que «o soldado é por vezes privado das suas
gratificações e do seu soldo por haver efectuado uma única aquisição». Assim, não
havia maneira de este numerário desvalorizado ser mais poupado, sob a forma de
depósitos guardados no santuário das insígnias dos acampamentos ou fortes,
contrariamente ao que sucedera no Alto Império. J.-M. Carrié 2140 sugeriu que tal prática
não terá sobrevivido aparentemente às manipulações monetárias ocorridas durante o
século III: ela viu-se, então, substituída por donativa em boa moeda de ouro ou de
prata, distribuídos com maior regularidade, por ocasião de adventos, aniversários
imperiais ou de vitórias.
As reformas administrativas e fiscais de Diocleciano e de Constantino concorreram
igualmente para o desaparecimento da distinção entre províncias imperiais e
províncias do povo romano, bem como das procuratelas que tinham representado um
elemento crucial para a carreira dos membros da ordo equestre ao serviço dos
imperadores. Sob a denominação de aerarium principis, o tesouro imperial veio a ser
repartido por dois cofres: o das «Prodigalidades sagradas», que arrecadava as
amendas, controlava as oficinas e os monopólios imperiais, assim como as
distribuições, e o dos «Bens privados», que geria os bens do fisco, o património
imperial (que se achavam, portanto, misturados) e controlava as confiscações. Cada
uma das duas arcas era administrada em Roma por um alto funcionário, portador do
título de comes/«conde». Nas províncias, por seu turno, os procuradores foram
substituídos pelos rationales summarum, que estavam subordinados ao comes das
«Prodigalidades sagradas». Era normalmente este cofre que pagava os soldos, procedia
aos donativa e fornecia os equipamentos militares.
Quanto à origem da difusão do abastecimento gratuito e em espécie do exército, cabe
procurá-la – de acordo com os estudos mais recentes - na generalização da organização
2138
A este respeito, consulte-se M. Crawford, «Finance Coinage and Money from the Severans to Constantine», ANRW
2.2 (1975), pp. 562-563
2139
«Dévaluations et évolutions des prix (Ier-IIIe siècles)», Revue Numismatique (1985), pp. 69-106.
2140
«L’esercito: transformazioni funzionali ed economie locali», in A. Giardina (dir.), Società romana e impero
tardoantico, vol. 1, Roma/Bari, 1986, pp. 449-488.
733
logística vigente em tempo de guerra, existente desde o início da época imperial por
causa da crescente frequência das campanhas bélicas.
Os estudiosos modernos aludiram muitas vezes ao peso cada vez maior que significou
o aprovisionamento do exército por parte dos provinciais. A célebre inscrição de
Scaptotara (IGR, I, 674; AE, 1992, 1994), na Trácia, testemunha precisamente o peso
das requisições, que aliás, estiveram na raíz das queixas que os aldeãos apresentaram a
Gordiano III. Em 364, os habitantes de Leptis Magna o mesmo fizeram, apelando a
Valentiniano I, por causa das exacções do comes de África, Romanus, que, ao servir-se
do pretexto de combater os nómadas Austoriani, abusou do direito de hospitium,
exigindo o fornecimento de 4 000 camelos sob coacção (Amiano Marcelino, Histórias,
XXVIII, 6).
O Papiro Panópolis nº 1 (53-62), de 13 de Setembro de 298, refere-se, pela primeira
vez sob a designação de anona, às distribuições gratuitas de géneros alimentícios aos
soldados:
«Ao proedro. No que toca às anonas, que devem ser reunidas de acordo com as ordens, em diversos locais
antes da feliz visita tão aguardada do nosso senhor, o imperador Diocleciano, o mais antigo Augusto, já te
mandei, uma primeira vez, depois uma segunda, que se escolham rapidamente os recebedores e os
epimeletos dos produtos destinados aos soldados que irão entrar na cidade, a fim de que nenhuma demora
venha a retardar o cumprimento deste dever muito piedoso».
Ao cotejar esta fonte com o Papiro Beatty Panop. 2, acima citado, verifica-se que no
começo do século IV, os soldados romanos recebiam simultaneamente um stipendium
em moeda e em rações alimentares gratuitas chamadas anonas. O Papiro Beatty
Panop. 2 mostra que as rações também se podiam eventualmente entregar em
dinheiro, sob a forma de uma gratificação paga por um graduado, o opiniator em grego
nos papiros de Panópolis, ou o opinator em latim no Codex Theodosianus ou nas cartas
de Santo Agostinho. Este vocábulo derivaria de opinio, que se reportava aos registos de
pagamento dos soldos atestados nas fontes papirológicas latinas, de meados do século
III d. C.: estes documentos eram levados ao officium do procurador imperial, uma vez
pagas as remunerações, para verificação e arquivamento (P. Dura, 94 e 95; ChLA, VII,
349 e 350, o primeiro datando de cerca de 240, e o último de 250-251).
Quanto às entregas em espécies, era tarefa que cabia aos optiones e aos actuarii, como
o sublinhou Aurélio Victor (Livro dos Césares, XXXIII, 13). O papel desempenhado
pelos últimos no aprovisionamento, já importante sob o Alto Império, parece ter
aumentado mais com o desenvolvimento das distribuições gratuitas em espécies, a tal
ponto que, doravante, os optiones, ficariam subordinados aos actuarii. Embora
soldados, ao contrário dos outros, podiam ver-se submetidos à tortura (Codex
Theodosianus, VIII, 3-5): de facto, a missão dos mesmos consistia também acusar a
recepção das remessas de géneros fornecidas pelos civis, na sua maioria curiales ou
funcionários imperiais.
O Papiro Beatty Panop. 1 foi, aliás, dirigido ao proedro, isto é, ao mais importante
magistrado municipal responsável pela arrecadação dos impostos em espécie e em
dinheiro devidos pela sua cidade. Quando o abastecimento das tropas requeria o
encaminhamento de comboios que teriam de percorrer longas distâncias, esta pesada
tarefa era confiada ao primipilus, um funcionário civil em fim de carreira, cujo cargo
testemunha, como anteriormente referimos, a evolução do primipilato desde o Alto
Império. A possibilidade, estipulada por lei, de estarem sujeitos a interrogatórios
constituía, para as autoridades, um elemento dissuasor, a fim de evitar que tanto os
optiones como os actuarii não lucrassem ilicitamente com as suas funções ao
desviarem os recursos postos à sua disposição, apresentando declarações falsas quando
entregassem os recibos. Se nos basearmos em Aurélio Victor, constatamos que as
malversações ou desfalques seriam relativamente comuns.
Se bem que os papiros de Panópolis representem, hoje em dia, o primeiro acervo
documental conhecido sobre o novo modo de retribuição das tropas, J.-M. Carrié
aventou a hipótese de que o estabelecimento da anona militar remontaria ao reinado de
Aureliano, na medida em que este imperador reformou e fomentou as distribuições
alimentares em Roma, numa altura em que os efeitos da depreciação monetária
734
começaram a fazer-se realmente sentir no poder de compra dos soldados. R. Duncan-
Jones estimou que esta anona militar se cifraria em 600 denários, isto apenas para o
fornecimento do azeite, ao qual se acrescentaram outros produtos no decurso do século
IV.
No que respeita às armas, passaram a ser produzidas em fabricae imperiais, que
aparecem mencionadas na Notitia Dignitatum (Oriente, XI, 18-39, e Ocidente, IX, 16-
38). No Oriente, elas seriam em número de quinze, e no Ocidente vinte: cada fabrica
estava sob a direcção de um tribuno ou de um praepositus de categoria perfectissimo,
significando uma unidade especializada na produção de uma limitada quantidade de
tipos de armas ou de máquinas de guerra. Não se deve exagerar a amplitude da ruptura
que a criação destes arsenais ocasionou no equipamento dos soldados, no sentido de
uma acrescida intervenção estatal na economia romana a partir da Tetrarquia.
Na realidade, certas fabricae foram instaladas sem solução de continuidade em locais
adjacentes a bases militares do Alto Império, como aconteceu, por exemplo, em
Lauriacum, no Noricum, ou em Carnuntum, na Panónia Superior. Presume-se que
estas fabricae terão substituído as anteriores oficinas militares, quando a reorganização
dos corpos de tropas não permitiu que elas funcionassem normalmente.
Tal como os múltiplos do montante dos soldos haviam servido de base para a
hierarquia dos postos sob o Alto Império, os da anona «fundaram» a hierarquia dos
graus do exército tardio. Assim, distinguia-se os soldados que dela recebiam uma, uma
e meia, duas, até oito. Com o expresso intuito de facilitar estas entregas em espécie,
aplicou-se uma lógica administrativa que associava as províncias desprovidas de
aquartelamentos às províncias dotadas de guarnições, as primeiras aprovisionando as
últimas. Neste sentido, as dedicatórias dos primipili de Oescus (AE, 1927, 45; 1975,
287-288), na Dácia Ripuaria, nova província criada para camuflar a evacuação da
Dácia, mostram os laços estabelecidos (na segunda metade do século IV) entre o
acampamento da Vª legião Macedonica, no Danúbio, e as províncias do Helesponto, da
Ásia e da Palestina, cuja acessibilidade ao mar facilitava o envio dos víveres rumo aos
Balcãs.
No entanto, J.-M. Carrié defendeu que terá sido principalmente entre os reinados de
Aureliano e de Constâncio II que aumentaram as distribuições gratuitas em espécies,
com vista a compensar os nocivos efeitos da desvalorização da moeda de bilhão.
Depois, com a estabilização do novo sistema monetário fundamentado no ouro por
Constantino, intensificou-se o recurso à conversão de uma entrega em espécie num
pagamento em dinheiro, o que já se atesta no Pap. Beatty Panop. 2. Contudo, os soldos
das tropas continuaram a ver-se materializados sob a forma de anonas até ao século VI
no Império romano do Oriente, como lembrou C. Zuckerman 2141. Com efeito, a taxa de
conversão variava consoante as províncias, a fim de permitir, em qualquer lugar, que os
soldados conseguissem prover à subsistência das suas respectivas famílias, mesmo que
modestamente, com uma só anona.
O sistema militar do Alto-Império fez com que os auxilia, na sua maioria estacionados
junto às fronteiras, se tornassem particularmente vulneráveis às agressões externas ao
longo de todo o século III. Não admira, portanto, que Diocleciano tenha decidido
recrutar novas unidades: recusando-se a utilizar mercenários bárbaros, o imperador
2141
«L’armée», in C. Morison (ed.), Le Monde byzantine, I: l’Empire romain d’Orient (330-641), Paris, 2004, pp. 143-
180.
735
instaurou medidas de arrolamento mais coercivas. Elas testemunham uma dificuldade
cada vez maior em encontrar soldados em número suficiente, isto é, 30 000-40 000
homens por ano para o conjunto do exército, tendo o Império por esta altura uns 60
milhões de habitantes. O princípio da conscrição não fora abolido mas, em termos
concretos, os alistamentos de voluntários haviam permitido geralmente responder às
necessidades do exército durante o Alto Império. Contudo, desde meados do século III
pelo menos, o recrudescimento da frequência das guerras defensivas conduziu a que o
serviço militar se afigurasse inevitavelmente menos atractivo e aumentou a taxa de
renovação de homens.
É neste contexto que se deve compreender a hereditariedade da condição militar,
estabelecida por uma série de leis de Diocleciano e Constantino (Codex Theodosianus,
VII, 22, 1-3 e 23,1), leis essas que converteram em obrigatório o arrolamento dos filhos
de soldados, retomando-se provavelmente as disposições anteriores de Probo e
oficializando uma tendência espontânea dos castris em enveredarem pela carreira das
armas. Desde o período Severiano, os últimos terão constituído cerca de metade dos
legionários. Na opinião de C. Zuckerman, este recrutamento hereditário esteve na
origem da distinção entre as unidades de seniores e de iuniores, a qual se assinala mais
tarde na Notitia Dignitatum. Os contingentes de iuniores teriam sido formados para
incorporar os filhos dos soldados que se encontravam nas fileiras dos seniores,
oferecendo aos primeiros basicamente as mesmas condições de serviço dos seus
progenitores. Todavia, de acordo com Y. Le Bohec, tais denominações resultariam antes
do fraccionamento de antigas unidades, com o objectivo de se criarem outras novas.
Mas a inovação mais significativa de Diocleciano radicou nos novos laços unindo o
recrutamento ao fisco, facto que se conhece pela designação de protostasia. Em virtude
deste sistema, os proprietários de terras tinham de fornecer um recruta ao exército ou,
então, pagar ao Estado um imposto de substituição, chamado aurum tironicum. O
capitulum correspondia à unidade mínima em termos fundiários que obrigava a
facultar um recruta. Numa primeira fase, as propriedades senatoriais viram-se
dispensadas de tal taxa, mas acabaram por perder este privilégio em 361. Segundo os
cálculos de J.-M. Carrié2142, um capitulum representaria uma superfície que teria entre
500 e 750 há na década de 70 do século IV. Aos contribuintes sujeitos a este imposto
qualicavam-se de capitularii ou, por vezes, temonarii, por analogia ao timão de um
atrelado. Os proprietários cujos bens não atingissem o montante suficiente deviam
associar-se num consortium, para que o conjunto das suas terras chegasse, assim, ao
valor de um capitulum. Neste caso, o étimo capitularius reportava-se ao dirigente do
consortium, o principal responsável, que apresentava os seus bens como garantia, pelas
prestações devidas pelos membros do capitulum.
De acordo com as referidas Actas do mártir Maximilianus, a presença, em Theveste,
de um temonarius, de seu nome Fabius Pictor, ao lado do procônsul de África,
enquanto este efectuava o interrogatório deste cristão que se negava a servir no
exército, atesta a existência da protostasia em 295. Trata-se, efectivamente, de uma das
primeiras menções textuais à instituição do temonarius.
Com a substituição da obrigação cívica do serviço militar (que remontava às próprias
origens da Urbs) pelo princípio da requisição reembolsada, o vocábulo dilectus perdeu
o seu significado original de leva de recrutas, passando a empregar-se a expressão
praebitio tironum. Ainda assim, o dilectus aparece por vezes utilizado como sinónimo
de probatio (Codex Theodosianus, VII, 13,3 e 10), já que os mancebos continuavam a
ser submetidos a um exame das suas aptidões físicas e intelectuais. O Codex
Theodosianus (X, 23, 2, em 362 d. C.) evoca também uma litúrgia denominada
prototypia, que impunha o fornecimento de soldados ao conjunto dos curiales de uma
cidade, que teria de recrutar homens e pagar-lhes uma gratificação aquando do
alistamento.
2142
«Le système de recrutement des armées romaines de Dioclétien aux Valentiniens», in Y. Le Bohec e C. Wolff (eds.),
L’armée romaine de Dioclétien à Valentinien I. Actes du Congrès de Lyon, Lyon, 2004, pp. 371-387.
736
Para Diocleciano, os colonos registados nos domínios cujos proprietários eram
indemnizados pelo montante de 30 solidi, a nova moeda de ouro cunhada a partir do
começo do século IV, deviam consistir no grosso dos recrutas. No entanto, embora a
protostasia tenha sido concebida inicialmente como meio para reconstituir o exército
romano mediante as suas bases rurais tradicionais, a aplicação das mesma cedo revelou
as suas limitações, na medida em que os proprietários fundiários aproveitaram a
oportunidade para se desembaraçarem dos colonos que não os satisfizessem. Eles
podiam igualmente aliciar gente para se alistar, mas isto saía caro, porque os
voluntários solicitados tendiam a fazer-se pagar bem. Os capitularii perdiam, então, o
benefício da indemnização que lhes era atribuída.
Seja como for, desconhecemos com que ritmo e periodicidade se exigiam recrutas.
Para J.-M. Carrié, há que relativizar a frequência dos arrolamentos, que talvez
ocorressem de quatro em quatro anos (ou de cinco em cinco). Resta saber até que ponto
a protostasia terá permitido reconstituir ou, até, aumentar, os efectivos do exército.
Lactâncio (A morte dos perseguidores, 7) acusa Diocleciano de arruinar o Império, ao
quadruplicar o número de soldados sob as suas insígnias. Mas outros elementos
informativos deixam entrever que o mundo romano não deveria possuir os meios
demográficos e financeiros necessários para aumentar os efectivos militar numa escala
tão maciça. É certo que J.-M. Carrié salientou que o fundador da Tetrarquia se dera ao
luxo de expulsar os cristãos do exército, mas este episódio data de 298, num período
em que a crise do recrutamento, evidente sobretudo no início do seu reinado, talvez
tivesse sido parcialmente controlada.
No fim da dinastia Severiana, o exército romano teria 450 000-445 000 homens. Mais
tarde, na primeira metade do século VI, João-o-Lido, um retórico de Constantinopla,
funcionário da prefeitura do pretório e autor de vários tratados sobre as instituições
romanas, já matizava os propósitos polémicos de Lactâncio quanto aos efectivos do
exército romano sob a Tetrarquia, apontando a cifra de 435 266 homens (De mensibus,
I, 27), que, todavia, não teve possivelmente em conta a totalidade dos corpos de tropas,
atribuindo o autor a Constantino uma duplicação dos efectivos. Um outro historiador
bizantino da mesma altura, Agatías, sugeriu, para o século IV, um total de 645 000
homens (Sobre o reinado de Justiniano, V, 13, 7), o que aparenta ser excessivo.
Actualmente, os estudiosos são mais cautelosos em relação a este assunto, tentando
integrar nas suas estimativas eventuais distorções entre efectivos reais e efectivos
nominais: muitas unidades podiam permanecer incompletas, enquanto determinados
oficiais se sentiam tentados a forjar o número de tropas que estavam sob o seu
comando, no intuito de fazerem negociatas lucrativas com os soldos e as provisões. Por
outro lado, é arriscado tentar deduzir a partir da Notitia Dignitatum, as verdadeiras
dimensões do exército tetrárquico, visto que esta fonte data de aproximadamente cem
anos depois.
Consequentemente, na esteira de João-o-Lido, a maioria dos historiadores actuais
avalia geralmente as forças armadas de Diocleciano totalizando cerca de 435 000
homens, ou seja, um aumento modesto quando comparado com os efectivos existentes
sob o Alto-Império. Nessa estimativa, incluem-se as diferentes frotas, mas não os
numeri, que eram arrolados segundo regras diferentes das que vigoravam no resto do
exército.
Do período tetrárquico em diante, é complexo apurar se os contribuintes teriam a
liberdade de escolher entre o fornecimento de recrutas e um imposto de substituição,
designado, como atrás se disse, aurum tironicum, cujo princípio se assemelha ao
processo de conversão da anona militar. Porém, a partir do reinado de Constantino, a
legislação ofereceu indiscutivelmente tal possibilidade aos proprietários fundiários: ao
tempo, utilizava-se a expressão comparatio tironum. É certo que os recrutamentos em
massa que ele levou a cabo, com vista aos seus confrontos contra Maxêncio e, depois,
Licínio, diminuiram consideravelmente as suas necessidades em homens – os efectivos
do exército de Constantino podem ter ascendido a 570 000 soldados, isto é, traduzindo
um aumento de 25 a 33% desde o reinado de Diocleciano. Ao ficar como único detentor
737
do poder imperial em 324, Constantino aplicou-se, então, mais em diminuir as suas
forças militares para um nível que fosse compatível com os recursos do Império.
Porém, a obrigação de fornecimento de recrutas talvez tenha sido novamente imposta
em determinadas circunstâncias, como, por exemplo, em 375, na iminência do conflito
contra os Godos. Neste ano, uma lei de Valentiniano, Valente e de Graciano (Codex
Theodosianus, VII, 13, 7) tentou combater os abusos ocasionados pela busca de
substitutos. Os imperadores proibiram que se procurassem e arranjassem homens fora
dos capitula em questão, além de interditarem que se utilizassem os solidi apenas para
indemnizar os capitularii e pagar as despesas dos recrutas durante a viagem rumo à
unidade para a qual haviam sido destinados. Mas, escorando-nos uma vez mais em J.-
M. Carrié, este «ouro dos recrutas», arrecadado anualmente, acabou por representar
metade das receitas fiscais em ouro do orçamento imperial, o que permitiu cobrir a
maior parte dos gastos militares do Estado romano.
738
que durante o Alto-Império, ocuparam uma posição hierárquica e numérica subalterna
no exército, passaram a preponderar cada vez mais, a partir de meados do século III:
este fenómeno ganhou tais proporções que numerosas unidades de elite vieram a ser
mesmo compostas por povos estrangeiros, nomeadamente os cavaleiros couraçados
persas, sármatas ou mauri, aos quais se chamava genericamente catraphactarii ou
clibanarii.
Isto correspondeu ao começo de um processo no corolário do qual o exército romano
se diferenciou cada vez menos dos seus antagonistas, na medida em que a necessidade
de uma gestão do recrutamento, do aprovisionamento e da desmobilização à escala do
Império se fez sentir em menor grau. A este respeito, invoca-se muitas vezes o barritus,
um grito de guerra certamente de origem germânica que os soldados romanos
passaram a bradar quando entravam em combate (Amiano Marcelino, História, XVI,
12, 13). Pode-se ainda citar a aparição de um novo género de insígnia, constituída por
uma manga cheia de ar e de cor púrpura, com a forma de um dragão ( draco)2143, que se
fixava no topo de uma lança, outro elemento tomado de empréstimo aos bárbaros
(Amiano Marcelino, Hist., XV, 5, 16; CIL V.8760; ILS, 2805).
A partir de finais do século III, para além dos sectores evacuados de maneira a
redistribuirem-se as tropas de guarnição, como sucedeu na Dácia, colocou-se o
problema da reconstrução e da defesa das regiões mais afectadas pelas guerras,
frequentemente esvaziadas de uma parte significativa das suas populações. Desde
princípios do século IV, contrariamente às intenções de Diocleciano, a aplicação da
protostasia contribuiu também para o recrutamento de indivíduos exteriores ao
Império no exército romano. Com efeito, os capitularii viram-se incitados a fornecerem
bárbaros que se lhes tinham sido atribuídos como colonos, enquanto os imperadores
utilizaram o produto do aurum tironicum a fim de aliciar igualmente os últimos, os
quais chegaram a ingressar, inclusive, em corpos de elite. Assim, não se tratava mais
apenas de populações que viviam na periferia do mundo romano.
Estes bárbaros, também, já representariam a maioria dos voluntários que se
apresentava para o recrutamento, que se sentiriam atraídos pelas perspectivas de uma
carreira e de uma remuneração regular (Panegíricos latinos, V, 8, 9, em 297 d. C.). Mas
cumpre advertir para o facto de que estes alistamentos voluntários supunham, à
partida, que os interessados tivessem atingido um certo grau de assimilação cultural,
para então poderem ser sujeitos às diferentes etapas dos procedimentos romanos do
recrutamento militar, que culminavam na incorporação dos homens em unidades do
exército imperial. Os escritos de Amiano Marcelino testemunham a existência de
possibilidades de promoção até aos postos mais elevados da oficialidade, no decurso do
século IV, acessíveis aos mais capazes de entre os bárbaros admitidos nas fleiras.
Mas o recurso aos bárbaros também podia assumir uma forma colectiva: atribuíam-se
os prisioneiros de guerra ou os que fossem considerados como deditoris (ou seja que se
haviam rendido) aos proprietários fundiários sob a designação de coloni inquilini, aos
quais se impunha que contribuíssem para o recrutamento militar, numa só ocasião ou
através de contingentes anuais. Era também o que sucedia com as tribos vencidas pelo
exército romano ou rechaçadas por outros bárbaros, os laeti esporadicamente
qualificados de gentiles, que recebiam autorização para se estabelecerem no interior do
Império, no território de certas cidades da Gália e de Itália, sob o controlo de um
prefeito romano desde a Tetrarquia. Estas terrae laeticae correspondiam muitas vezes
a agri deserti. Em contrapartida, os laeti, tal como os prisioneiros e os deditoris, teriam
de facultar determinados contingentes de mancebos que, aparentemente, estariam
ainda submetidos às estruturas romanas de recrutamento, enquadramento, de
abastecimento e de remuneração, mas que em geral não ficariam adstritos à defesa das
terras que foram concedidas a tais povos.
Em 334 d. C., 300 000 Sármatas viram-se assim repartidos por várias regiões: Trácia,
Cítia, Macedónia e Norte de Itália. Alguns povos bárbaros obtiveram o direito de
ocupar um sector fronteiriço, no seguimento da celebração de um tipo específico de
2143
J. C. Coulston, «The “draco” standard», JRMES 2 (1991), pp. 101-114.
739
tratado celebrado com o imperador, o foedus, qualificando-se os beneficiários de
foederati, palavra que os historiadores actuais vertem em regra por «federados». Os
foederati deviam igualmente participar na defesa do Império, mas os homens que
forneciam mantinham-se enquadrados e geridos pelos seus próprios chefes, daí que o
imperador se limitasse em pagar-lhes um tributo para prover às necessidades dos seus
soldados, não exercendo qualquer outra forma de controlo.
Fora da Europa, a rica documentação epigráfica do Norte de África revela-nos que os
governadores da Mauritânia Tingitana, já no século III, negociavam regularmente com
determinados líderes mouros, cujas tribos se encontravam estabelecidas na orla do
Império. Y. Modéran cunhou-os de «gentes do segundo círculo», para assim os
diferenciar simultaneamente daquelas que se situavam no interior do Império e das
tribos que viviam para lá das fronteiras do último. No entanto, embora alguns «altares
da paz» de Volubilis mencionem um tratado (foedus) celebrado com um rei dos
Baquates, neles não se explicita a exacta natureza dos compromissos que cada uma das
partes de obrigava a respeitar e a pôr em prática (IAM, II, 360, em 277 d. C.).
Exceptuando o Norte de África, não dispomos de elementos informativos que garantam
a existência deste género de tratados antes de meados do século IV: a alusão feita por
Jordanes (História dos Godos, 21) a 40 000 foederati godos fornecidos ao exército
romano, em consequência de um foedus concluído em 332, é, na realidade, talvez
exagerada e anacrónica, visto que se trata de um facto que que se coaduna mais com a
situação a seguir à batalha de Andrinopla.
Até ao fim do século IV, os foederati estiveram presentes em todas as fronteiras do
Império, mas em sectores limitados em termos de superfície: Germanos
(nomeadamente os Francos Sálios em 358) e Sármatas no Reno e no Danúbio, tribos
caucasianas e Sarracenos nos confins orientais, Nobadae e Blemi no Egipto, Mauri nas
imediações do Saara (Jordanes, Hist. dos Godos, 21). Certos estudiosos questionaram-
se se não seria a este tipo de formações militares que uma constituição mais tardia, de
Honório faria referência (reproduzida no Codex Theodosianus, VII, 15, 1), concernente
ao reforço do fossatum Africae e destinada ao vicarius de África, Gaudentius.
Com efeito, nessa fonte, o imperador evoca os gentiles, aos quais Roma concedera
terras, a fim de manter uma parte do dispositivo fronteiriço, em troca do
reconhecimento da sua autoridade. Consistiriam em tribos mauritanas, possivelmente
integradas no sistema militar romano, ainda que estando sob as ordens dos seus
próprios chefes.
As inovações de Galieno
Comecemos por dizer que se tem verificado certa propensão para fazer de Galieno o
autor da maior parte das transformações que ocorreram no exército romano no século
III. Os estudos de M. Christol mostraram que se deve inserir estas mutações num
fenómeno evolutivo de longa duração. Por volta de 258-260, o processo evolutivo do
título de protector sugere que a organização militar romana passou a assentar em
novas bases2144. Anteriormente, protector terá correspondido a uma função ou a um
posto inferior ao centurionato, assinalável em algumas inscrições do período Severiano
analisadas por M. P. Speidel (CIL, VI, 3238; 3261; 32854 e AE, 1979, 448). Este
2144
M. Christol, L’Empire romain du IIIe siecle, Paris, 1997, pp. 143-151.
740
graduado estaria, aparentemente, adstrito à guarda dos governadores provinciais e dos
prefeitos do pretório.
Posteriormente, o termo protector passou a reservar-se aos centuriões (AE, 1954, 135)
e aos tribunos militares angusticlavos (CIL, III, 3126) que exerciam o seu mando no
exército que acompanhava o imperador, o qual se designava então como comitatus. Sob
o Alto Império, aos amigos que formavam o séquito do princeps e que com este ficavam
nos acampamentos já eram qualificados de comites. O comitatus era habitualmente
constituído pelas coortes pretorianas, pelos equites singulares Augusti, pela legio II
Parthica, bem como por vexillationes legionárias e auxiliares.
Concedia-se o grau de protector tanto no pretório como nas legiões. Assim, verifica-se
que a identidade das funções assumidas no terreno registou a tendência de se sobrepor
ao estatuto jurídico das unidades, o qual significava o fundamento estruturante da
hierarquia entre os distintos corpos de tropas do exército do Alto Império.
Estas diferenças jurídicas ainda mais se esbateram quando a cidadania romana foi
outorgada por Caracala à maioria dos homens livres do Império, em 212 d. C., medida
que contribuiu inegavelmente para apagar a tradicional separação entre legionários e
auxilia. J.-M. Carrié encarou este facto como a primeira etapa no âmbito de uma
reforma do comando e de uma utilização mais racional dos soldados, na medida em que
as finanças imperiais impuseram limites ao aumento dos efectivos militares. Mas seria
preciso esperar pelo reinado de Constantino para que o poder imperial conseguisse
extrair todas as conclusões dessa evolução, ao remodelar por completo a organização
militar imperial.
A única medida concreta seguramente imputável a Galieno, o filho de Valeriano, foi a
decisão de privar os senadores de qualquer tipo de comando militar. Tal disposição
materializou-se, em princípio, num édito promulgado em 262, se bem que vários
historiadores modernos (por exemplo, Y. Le Bohec2145) até coloquem em dúvida a sua
existência. Galieno suprimiu o tribunato laticlavo e a legação de legião, de que, após
260, não conhecemos efectivamente mais titulares. Ora o mando das legiões andava de
«mãos dadas» com a governação das províncias imperiais pretorianas, que por esta
altura também se retirou aos senadores: observe-se o que aconteceu na Numídia, cujo
derradeiro legado de Augusto pro praetor documentado se chamava Caius Iulius
Sallustius Saturninus Fortunatianus (CIL, VIII, 2797; ILS, 2413).
Os princípios que até aí tinham regido a governação do Egipto e da Mesopotâmia
foram, assim, aplicados a uma crescente número de províncias, confiadas a
governadores equestres, denominados praesides. Note-se que a mudança de estatuto se
entendeu como transitória, precisando-se, na fraseologia oficial, que o cavaleiro em
quiestão era um simples agens vice praesides, por outras palavras, que se encontrava a
subsistir interninamente o governador. Quanto ao comando das legiões, passaram os
prefeitos a exercê-lo, igualmente escolhidos na ordem equestre. Naquelas províncias
imperiais em que apenas houvesse uma legião, esta era chefiada pelo praeses.
Voltando ao caso da Numídia, o primeiro praeses conhecido foi Tenaginus Probus
(CIL, VIII, 2571, 18057), cuja governação remonta a 267-268, o mais tardar. Estes
praesides equestres receberam o título de vir perfectissimus, que os elevava a uma
categoria superior à dos antigos procuradores na hierarquia das funções equestres. Nas
províncias imperais «presidiais», em que o praeses chefiava também a única legião que
guarnecia a circunscrição, não se modificou a prefeitura de legião. Por seu lado, o
prefeito de legião passou a chamar-se agens vice legati, o que significava que substituía
o legado.
Ao procurar explanar os motivos para tal evicção dos senadores pelos cavaleiros à
cabeça da maior parte das províncias, M. Christol sublinhou que os equestres que
ocuparam postos-chave no Império durante a segunda metade do século III não tinham
mais o mesmo «perfil» dos que, anteriormente, haviam exercido as procuratelas:
correspondiam a notáveis municipais oriundos de Itália ou das províncias mais
2145
«Gallien et l’encadrement senatorial de l’armée romaine», REMA 1 (2004), pp. 123-132; IDEM, L’Armée romaine
dans la tourmente, pp. 237-238.
741
romanizadas, mas, principalmente, a soldados saídos directamente das fileiras, que se
viram promovidos mercê da sua experiência militar, num período em que numerosas
províncias fronteiriças se encontravam ameaçadas. Eles foram geralmente admitidos
no segundo ordo, em razão do seu talento, muitas vezes enquanto simples milites numa
primeira fase, e depois com o posto de centurião, que lhes dava acesso ao primipilato e
ao tribunato de uma coorte pretoriana. É certo que a promoção dos militares se viu
favorecida pelas circunstâncias e pelas medidas tomadas por Septímio Severo, a fim de
facilitar o acesso dos principales ao centurionato.
Estes homens, de origem modesta, muitas vezes provenientes do Illyricum, não
tinham, assim, muito em comum com os cavaleiros que haviam ocupado os mais altos
cargos do Império do Império sob os reinados dos Antoninos e dos Severos, os quais
seguiram um percurso essencialmente civil. Estes membros da ordem equestre que não
tinham vindo do exército continuaram a ser empregues nos «gabinetes» da chancelaria
imperial, nesta passando a ficar excluídos os libertos.
Salientemos, além disso, que os «eminentíssimos» cavaleiros que tivessem atingido o
topo da carreira equestre, sempre traduzida na prefeitura do pretório, ambicionavam,
mais do que nunca, ingressar no Senado, fosse por adlectio, fosse por nomeação para
um consulado suffectus ou ordinarius. Com efeito, estas nomeações tornaram-se
correntes a partir do reinado de Galieno: basta citar o exemplo de Iulius Placidianus,
prefeito dos vigiles em 269, que passou a prefeito do pretório em 277 e, por fim, a
cônsul ordinarius em 273. Cumpre referir que o Senado continuava a ser fonte de um
importante prestígio. No que toca ao património fundiário dos senadores, ele até saiu
mais reforçado neste período marcado por dificuldades económicas.
Neste sentido, a decisão de Galieno parece ter sido motivada pelo estado de guerra
quase permanente que se vivia em certas regiões, o que, por seu lado, levou a que se
conferisse novamente à noção de província o sentido que ela tivera na época
republicana. À circunscrição geográfica precisamente delimitada substituiu-se, em
determinadas ocasiões, a missão a levar a cabo numa zona, não consistindo
forçosamente numa função administrativa específica. Mesmo antes de 262, tal missão
pode já ter sido incumbida a um cavaleiro, que utilizava frequentemente o título de dux
ou, por vezes, o de corrector: foi deste modo que o cavaleiro Marcus Cornelius
Octavianus, governador da Mauritânia Cesareia, se viu designado dux de África, da
Numídia e da Mauritânia, com o objectivo de combater os Mauri, entre 253 e 258 (CIL,
VIII, 21000). Também se conhece um corrector no Egipto, entre 256 e 258, mas esta
província conhece sempre governadores equestres, assim como um dux em África,
Numídia e Mauritânia.
Prisco, irmão de Filipe-o-Árabe, nomeado rector Orientis após haver ocupado cargos
interinos, representa um dos casos mais elucidativos destes governadores, que os
historiadores modernos costumam rotular de «vigários independentes», a fim de
melhor realçar o carácter transitório das suas funções. Podemos citar ainda o exemplo
de Marcus Simplicinius Genialis, o redactor da «Inscrição de Ausburgo», que se juntou
a Póstumo a seguir à sua vitória sobre os Jutunges. A partir de 265-266, os duces
receberam o estatuto de perfectissimus, tal como os praesides.
As posições ocupadas por estes personagens no aparelho estatal permitiram-lhes
aceder com certa facilidade ao poder imperial ou, pelo menos, de controlar a
transmissão do mesmo. Procedentes do estado-maior imperial, as figuras de Marciano,
Auréolo, Cláudio-o-Gótico e de Aureliano são as que melhor reflectem as significativas
mutações ocorridas nos meios dirigentes do Império. M. Christol e L. De Blois 2146, cada
qual à sua maneira, valorizaram o tópico do papel acrescidamente mais importante que
tais oficiais equestres desempenharam no Estado romano neste momento histórico, a
maioria dos quais anteriormente com o posto de centurião e oriundos das províncias
ilíricas. Eles tinham a seu favor uma experiência no terreno bem superior à dos
senadores, progressivamente mais desfazados da realidade militar e dos teatros de
operações bélicas, na medida em que apenas exerciam cargos de comando
2146
The Policy of the Emperor Gallienus, Leiden, 1976, pp. 26-30.
742
intermitentes, entre o tribunato, no início das suas carreiras, e as legações de legiões a
partir da pretura.
L. De Blois sugeriu ainda que a promoção desses cavaleiros romanos teria contribuído
provavelmente para preencher o fosso que aos poucos se foi cavando entre os
legionários e os oficiais senatoriais. De facto, os soldados que compunham as fileiras
eram rapidamente recrutados a nível local, ao passo que os oficiais superiores
continuavam a provir de Itália e das províncias mais romanizadas ou helenizadas. Os
oficiais equestres deviam encontrar-se certamente mais próximos dos legionários, já
que a geografia do recrutamento dos primeiros conheceu uma evolução muito mais
similar à dos soldados, como, aliás, o sugerem as pesquisas prosográficas de H.
Devijver2147. É algo que se observa particularmente nos antigos centuriões admitidos na
ordem equestre que, segundo M. Christol2148, formariam a maioria dos oficiais
equestres à cabeça das legiões desde o reinado de Galieno.
Porém, no primeiro número da Revue des Études Militaires Anciennes, em 2004, Y.
Le Bohec2149 refutou tal opinião, expressando sérias reservas quanto à própria
existência de um édito de Galieno em 262: de acordo com o eminente historiador
francês, o imperador terá simplesmente cessado (logo no começo da década de 60 do
século III) de prover os postos vacantes ao designar novos quadros militares
senatoriais. Assim, Galieno parece haver prosseguido a política adoptada pelos seus
predecessores que, a partir do fim do reinado de Septímio Severo, investiu os cavaleiros
de comandos militares extraordinários.
A verdade é que o desaparecimento dos oficiais pertencentes à classe senatorial
significou um fenómeno bastante progressivo, pelo que, aparentemente, não coincidiu
com uma decisão tão pontual como a promulgação de um édito: não temos registo de
mais tribunos laticlavos após 260, nem de legados de legiões a seguir à morte de
Galieno, em 268, mas, em contrapartida, atestam-se legados senatoriais nas províncias
imperiais consulares até ao período da Tetrarquia, conforme observou M. Christol no
seu Essai sur les carrières sénatoriales dans la 2e moitié du IIIe siècle ap. J.-C. Se o
édito foi efectivamente promulgado, ele apenas diria respeito à hierarquia interna da
legião, e não ao governo das províncias.
Para Y. Le Bohec, as razões de Galieno foram de natureza principalmente política – ao
excluir os senadores do exército, o imperador buscaria privá-los de meios para
tentarem usurpar o poder imperial, não estando, assim, em causa, a competência ou o
mérito dos mesmos. Bohec também salientou, a propósito, a inveja que Galieno teria
sentido relativamente aos senadores, baseando-se numa alusão de Aurélio Victor (Livro
dos Césares, 33-34). Mas, em termos concretos, é impossível apurarmos as motivações
psicológicas de Galieno. Além disso, se ele pretendeu realmente retirar aos senadores
todos os meios de acção político-militar, não se percebe então que os tenha mantido a
governar as províncias consulares.
Todavia, interrogamo-nos, igualmente, até que ponto as guerras terão diminuído o
grupo dos oficiais superiores. Embora a este respeito as fontes sejam escassas,
observamos, pela primeira vez, imperadores a perecerem em combate. A Trajano Décio,
que morreu no campo de batalha de Abrittus, em 251, e a Valeriano, capturado pelos
Persas em Edessa em 260, acrescente-se também Gordiano III: com efeito, a
descoberta em 1936, no sítio de Nags-i Rustem, perto de Persépolis, de uma inscrição
trilingue (em parto, persa e grego), gravada no ano de 270 para a glorificação do
soberano Shapur (ou Sapor), fonte que veio a ser divulgada desde as pesquisas de M. I.
Rostovsteff sob o título de Res gestae Divi Saporis, veio a desmentir a versão narrada
na História Augusta, segundo a qual o jovem imperador perdera a vida aquando de um
motim instigado pelos seus novos prefeitos do pretório.
2147
Prosopographia militiarum equestrium quae fuerunt ab Augusto ad Gallienum, Lovaina, 1976-1980; IDEM, The
Equestrian Officers of the Roman Imperial Army, Mavors Roman Army Researches 6, Amsterdão, 1989.
2148
Essai sur l’évolution des carrières sénatoriales dans la 2e moitié du IIIe siècle ap. J.-C, Paris, 1986.
2149
«Gallien et l’encadrement senatorial de l’armée romaine», pp. 123-132.
743
O teor da inscrição, confirmado aliás por um dos baixos-relevos persas de Darab e de
Bishapur, sugere que Gordiano III terá falecido em consequência de ferimentos
sofridos numa queda de cavalo, durante a batalha de Mesiché, ganha por Shapur no
começo do mês de Março de 244. Num período que viu dois imperadores morrerem em
refregas e um terceiro feito prisioneiro no espaço de uma quinzena de anos, parece-nos
lícito supor que os oficiais senatoriais – que se cifrariam entre 60 e 70 e não mais,
segundo B. Dobson – pagaram também um tributo bem pesado, havendo considerável
número de baixas entre eles, o que justificaria o facto de não lhes permitir prover todos
os postos vacantes. Mas frisemos que isto consiste somente numa conjectura, que
carece, por enquanto, de elementos probatórios.
Lembremos que os membros da ordem equestre que se encontravam à frente das
províncias ou das legiões eram ocasionalmente designados como agens vice praesidis
(exerciam a governação interina), o que nos leva a depreender que se entenderia esta
mudança de estatuto como algo temporário. Quanto aos prefeitos de legião, igualmente
escolhidos na classe equestre, dava-se-lhes o nome de agens vice legati, por terem que
desempenhar o papel de substitutos dos legados nas províncias imperiais consulares.
Não poderiam estes títulos haver surgido precisamente por causa do falecimento de
certos governadores ou de oficiais senatoriais? É pergunta cuja resposta se mantém em
suspenso…
Enquanto as guerras que marcaram o reinado de Marco Aurélio parecem ter facilitado
a admissão de numerosos oficiais equestres no Senado (haja em vista o caso de
Pertinax, que veio a ocupar a prefeitura da Urbs), sob a égide de Galieno, pelo
contrário, registou-se uma vontade de despojar os senadores do comando militar. Por
que motivo não se continuou a admitir tais oficiais no Senado, antes de lhes confiar a
chefia das legiões ou a governação das províncias? Não estariam os senadores dispostos
a aceitar como seus pares esses recém-chegados, cuja ascensão social fora, em geral,
extremamente rápida, e que muito possivelmente ainda careciam da humanitas, como
testemunha o desprezo da historiografia de inspiração senatorial em relação a
Maximino-o-Trácio?
Com efeito, ao examinarmos a documentação, constatamos que era mais tarde, no
desenrolar das suas carreiras, mais frequentemente após a prefeitura do pretório, que
alguns deles obtinham os «ornamentos» consulares e, até, o acesso à cúria.
O crescimento do exército romano sob a Tetrarquia terá sido bastante mais limitado
do que afirmou Lactâncio. É certo que Diocleciano parece haver somado 35 legiões às
34 existentes, mas, ao que se julga, o mesmo imperador tentou reduzir os efectivos das
legiões. As que já existiam mantiveram o número teórico de homens, traduzindo-se
cada uma em cerca de 6 000, distribuídos por 10 coortes, embora algumas unidades
estivessem incompletas após os numerosos conflitos armados em que participaram
desde meados do século precedente.
Numa primeira fase, Diocleciano criou legiões de acordo com o modelo tradicional. As
últimas deste tipo foram, talvez, as legiões IIª Herculia e a Iª Iovia, formadas
aproximadamente em 297, num contexto atribulado, marcado por revoltas no Egipto e
pela guerra contra os Persas, findando esta no ano seguinte mediante a paz de Nisibis, a
seguir às vitórias de Galero. No entanto, a partir deste período, as legiões viram-se
sistematicamente fraccionadas e repartidas por uma rede de praças-fortes. Numa
segunda etapa, Diocleciano reuniu, aparentemente, legiões com apenas 1000 homens
cada. É, aliás, o que sugerem as escavações arqueológicas efectuadas nos locais onde
houve acampamentos legionários do tempo da Tetrarquia – em Palmira, na Síria, em
744
El-Lejjun, na Arábia e em Lucsor, no Egipto. Mas estes testemunhos materiais revelam-
se difíceis de interpretar, na medida em que muitas vezes é quase impossível apurar se
tais bases militares foram especificamente projectadas para acolher o conjunto de uma
legião ou, então, só um destacamento.
O acampamento de El-Lejjun (4,6 ha), com base nos seus vestígios, terá efectivamente
albergado toda a IVª legião Martia, como o próprio topónimo árabe também deixa
entrever: ainda assim, as suas dimensões, limitando-se a 1/5 da superfície de um típico
acampamento legionário do Alto Império, não permitiam, sem dúvida, que recebesse
mais de 1000 soldados. Todavia, várias grandes fortalezas de legiões do Alto Império
continuaram a acolher guarnições com significativo número de homens: citemos os
casos de Eburacum (York), Argentoratum (Estrasburgo), Mogontiacum (Mainz), ou de
Bona (recinto ocupando mais de 29 ha) e de Aquincum (com 21,6 ha; Budapeste).
No Norte de África, os efectivos de cada legião não parece ter ultrapassado os 1000
soldados: uma delas ainda possuía a denominação de IIIª Augusta, mas é difícil
averiguarmos se as demais legiões resultaram do fraccionamento da mesma ou se, mais
provavelmente, consistiriam em novas tropas, reunidas em princípio por Maximiano
para combater os Mauritanos em 297-298.
Será que o fraccionamento das legiões e, depois, a redução dos seus efectivos, se
deveram realmente a uma nova estratégia original concebida por Diocleciano? A
associação de quatro imperadores (Tetrarquia) levou a que cada um deles ficasse
dotado de um exército expedicionário, chamado comitatus (termo empregue, por
exemplo, nas referidas Actas do mártir Maximilianus). Ao mesmo tempo que reforçava
as defesas fronteiriças, mediante a edificação de fortificações (como vimos), cada
tetrarca concentrou tropas nas imediações do seu local de residência preferencial:
Constâncio Cloro em Treverorum (Trier), Maximiano em Milão, Galero em Sirmium e
Diocleciano em Nicomédia (actual Izmit, Turquia).
A este respeito, Aurelius Gaius (atrás citado) representa um exemplo esclarecedor dos
soldados que serviram nestes exércitos que acompanharam os imperadores em
diferentes teatros de operações bélicas, onde intervieram. A carreira de Gaius, atrás
evocada através do teor de uma inscrição, fez-se em três legiões distintas entre 284 e
302, conduzindo-o do Danúbio ao Norte de África, e do Egipto à Mesopotâmia. Uma tal
mobilidade via-se recompensada, em geral, por melhores possibilidades de progressão
na hierarquia militar, como o atesta a promoção do soldado Gaius na cavalaria
legionária, mais tarde ascendendo ao posto de optio. Os papiros de Panópolis
testemunham de igual modo, os donativa de que beneficiaram as tropas que
marcharam com Diocleciano rumo ao Egipto, em 298-300.
Assim, Diocleciano não se preocupou unicamente com o reforço do dispositivo militar
fronteiriço. J.-M. Carrié ressalvou que esta interpretação da estratégia de Diocleciano
assenta numa compreensão incorrecta do vocábulo limes. Este (como tivemos o ensejo
de referir), a partir de meados do século III, não correspondia mais apenas a uma via
aberta em território hostil, nem tão quanto ao conjunto do sistema de protecção das
fronteiras do Império, no sentido em que diversos historiadores modernos o
entenderam, uma vez que tal étimo jamais comportou esse significado na Antiguidade.
De 250 em diante, o limes adquiriu igualmente uma acepção territorial abrangente,
reportando-se a um sector militar ou, até, a toda uma província fronteiriça num
contexto especificamente bélico, aplicando-se, por outro lado, a noção de provincia à
administração civil, quando esta passou a dissociar-se das responsabilidades militares.
A dedicatória do forte (centenarium) de Aqua Viva, na Numídia (AE, 1942-1943, 84)
alude a toda a cadeia de comando nas fronteiras no ano de 303, cujos titulares
pertenciam então à ordem equestre, incluindo o vicarius, cargo criado por Diocleciano
que se situava à cabeça de uma diocese, isto é, a um agrupamento de várias províncias:
«Sob o reinado dos nossos dois senhores Diocleciano e Maximiano, eternos Augustos, e de
Constâncio e Maximiano, bravíssimos Césares, príncipes da juventude, este centenarium, a que
se deu o nome de Aqua Viva, foi construído a partir das suas fundações a mando de Valerius
Alexander, perfectissimus, vicarius dos prefeitos do pretório, [praeses] da província da
745
Numídia, pelos cuidados de Valerius Ingenuus, chefe do sector do limes [praepositus limites], e
dedicado sob o consulado do nosso senhor Diocleciano e o sétimo do nosso senhor Maximiano».
Nesta inscrição, limes significa, claramente, «sector militar», sob o comando de um
praepositus.
Desde o reinado de Elagábalo, em Dura Europos há menção a um dux ripae,
subordinado ao governador da Síria, sediado num palácio que os arqueólogos
conseguiram localizar. Aqui, o vocábulo ripa deve entender-se com um sentido análogo
ao de limes: trata-se de uma província ou de um grupo de províncias fronteiriças
bordejadas por um rio, neste caso o Eufrates. A partir de começos do século IV, este
conjunto territorial militar ficava muitas vezes sob a autoridade de um dux. A
documentação epigráfica mostra que o último título não era mais exclusivamente
utilizado pelo comandante-chefe de um exercitus composto, por seu turno, por
vexillationes. Assim, os duces podiam estar afectos a circunscrições geográficas e não a
corpos expedicionários, sobretudo desde o fim da Tetrarquia.
Por fim, Diocleciano também se aplicou na restauração do poderio naval romano: as
incursões dos Godos no Ponto-Euxino e no mar Egeu, no decénio de 60 do século III
não haviam deparado com qualquer resistência. De facto, os Tetrarcas viram-se
confrontados com a dissidência de Caráusio na Britânia e, depois, pela de Alecto, o que
conduziu a que Constâncio Cloro tivesse de chefiar uma operação de desembarque. A
seguir, a Mancha permaneceu bastante afectada pela pirataria levada a cabo por
Francos e Saxões. Consequentemente, as acções de patrulhamento da marinha romana
serviram para completar e reforçar as defesas terrestres do litus saxonicum.
EPÍLOGO
O peso conjuntural
746
cada tetrarca dispunha, a fim de defrontar Maxêncio e, depois, Licínio. A maneira como
o fez é mal conhecida: sabemos que recorreu a Germanos, dos quais havia verificado o
seu valor enquanto guerreiros durante os conflitos que deflagraram no Reno.
Constantino não se contentou em empregar os últimos para defenderem as fronteiras,
como aconteceu com os precedentes imperadores – chegou a integrá-los até nas
unidades de elite que o acompanhavam. Algumas delas exibiam o título de auxilia, mas
sem serem constituídas de acordo com as mesmas modalidades vigentes sob o Alto
Império. Os nomes que lhes foram atribuídos raramente possibilitam que descubramos
as suas origens. No entender de M. Speidel, terá sido ao recrutar prisioneiros de guerra
germanos que Constantino veio a formar os mais antigos quatro auxilia palatina.
Depois da sua vitória na batalha de Ponte Mílvio (Pons Milvius), em 312, Constantino
suprimiu a guarda pretoriana e os equites singulares Augusti, castigando-os por
haverem tomado o partido de Maxêncio; substitituiu-os então por 11 scholae palatinae
(cada uma contando com 500 cavaleiros) e pelos protectores et protectores domestici,
que, na sua maioria, se recrutaram entre os bárbaros. Esta guarda imperial reforçada
por auxiliares, como, por exemplo, os Batavos, e por legiões, passou a chamar-se
exército palatino ao redor de 360 d. C., designação que ainda se atesta na Notitia
Dignitatum. No entanto, a prefeitura do pretório não foi eliminada: viu-se
progressivamente transformada numa circunscrição administrativa composta por um
conjunto de dioceses, entre 318 e 335. Convertido num alto funcionário civil, cada
prefeito do pretório conservava, não obstante, competências em matéria de
aprovisionamento militar e de logística. O fornecimento das rações alimentares para os
homens e as forragens para as montadas estava sob a alçada deste dignitário.
Concomitantemente, talvez em 342, estes prefeitos do pretório regionais encontravam-
se igualmente incumbidos da gestão da arca praetoriana, que financiava o
abastecimento dos soldados, o funcionamento da posta imperial, o cursus publicus e as
obras públicas no seu âmbito territorial.
Esta redefinição da prefeitura do pretório teve por consequência colocar a nova guarda
imperial sob o comando do primeiro tribuno do pretório. Este, até aí, fora o adjunto do
prefeito e tratava da matrícula das coortes. A partir de 320, ele passou a exibir o título
de tribuno e de senhor dos offici, além de dirigir todos os gabinetes palatinos que
dependiam dos dois «condes» financeiros, ou seja, do conjunto da chancelaria
imperial. Afora as suas responsabilidades no conselho imperial e o facto de se achar à
cabeça das scholae palatinas, o «senhor dos offici» controlava também a posta imperial
e a actividade das fabricae.
Constantino viu-se obrigado a manter o exército que o acompanhava durante mais
tempo do que o normal, a fim de lograr consolidar o seu poder ainda mal firmado. Com
o objectivo expresso de recompensar estes soldados pela sua fidelidade, o imperador
concedeu-lhes determinados privilégios, que viriam a estar na origem do estatuto dos
comitatenses. É o que sugere o conteúdo de dois documentos muito importantes: a
«Tábua de Brigetio» (AE, 1937, 232) e um excerto do Codex Theodosianus (VII, 20, 4).
Na tábua de bronze de Brigetio, gravou-se o texto de um rescrito de Licínio, datando de
9 de Junho de 311, concernente aos privilégios fiscais dos soldados e dos veteranos do
Illyricum, promulgado em Serdica (Sófia) e depois afixado neste forte legionário
panoniano entre 10 e 31 de Dezembro do mesmo ano (AE, 1937, 232):
«Eis o que julgamos conveniente dar a conhecer à Tua Devoção: que os nossos soldados, pelo tempo do
seu serviço, sejam exonerados, em virtude da nossa decisão, dos cinco capita de entre os que figuram do
registo do censo e contando para as prestações correntes do imposto anonário. Que eles usufruam também
dos mesmos privilégios quando, depois de cumprirem os anos de serviço prescritos pela lei, eles obtiveram
a sua honesta missio. De igual modo, aqueles que a obtiveram após somente 20 anos de serviço, sejam
dispensados de dois capita que fazem parte dos encargos anonários, o deles e o de suas esposas. E se, por
acaso, um deles fica incapaz de servir por causa de um sofrimento sofrido em combate, mesmo que por
esta razão ele obteve a isenção dos seus bens antes de haver terminado os seus 20 anos de serviço, que
participe também no benefício do nosso presente, de maneira a que seja dispensado do seu caput e do da
sua esposa; que os soldados agradeçam, pois, pelos seus benefícios à Nossa Previdência, que vela por todos
os meios, não apenas pela tranquilidade mas igualmente pelas vantagens materiais do licenciamento dos
primeiros».
747
Enquanto a «Tábua de Brigetio» se refere a soldados (milites) e a veteranos (veterani),
sem pormenorizar a que corpos de tropas eles pertenciam, numa lei de Constantino
sobre o mesmo assunto, afixada em Antioquia, a 17 de Junho de 325, ou seja, depois da
derrota de Licínio em Chrysopolis (Scutari) em 324, recolhida no Codex Theodosianus
(VII, 20, 4), faz-se a distinção entre comitatenses, ripenses, alares e cohortales:
«O imperador Constantino para Máximo. Que os soldados comitatenses e ripenses e os protectores que
constem das listas do censo sejam todos dispensados do seu caput, assim como os do seu pai, mãe, sua
esposa, se os últimos ainda estiverem vivos. Se esta condição não for preenchida por uma dessas pessoas
ou pelas três, que obtenham então, pelos seus bens, um desagravamento igual ao que teriam recebido tais
pessoas se fossem vivas, a fim de que, todavia, obtenham o desagravamento dos bens verdadeiramente
próprios e não de bens estrangeiros por meio de um pacto fictício estabelecido com terceiros. Para os
veteranos eméritos, ordenamos a desobrigação do seu caput e o das suas esposas; para aqueles que só têm
a honesta missio, a desobrigação será apenas do seu próprio caput. Quanto aos demais veteranos,
independentemente dos corpos a que pertencerem, devem gozar só de um caput para eles e para as suas
esposas ao mesmo tempo. No que respeita ao veterano ripensis que, em virtude de uma lei anterior,
usufruía da isenção de um só caput ao receber a honesta missio depois de 24 anos de serviço, queremos
que dele usufrua ao fim de 20 anos, à semelhança dos comitatenses. O mesmo favor no caso de ele se
reformar antes de cumprir este tempo de serviço, já que os fracos e os débeis não estão inscritos nas listas
do censo. Quanto aos alares e aos cohortales, que gozem do desagravamento do seu próprio caput ao
longo do seu tempo de serviço, devendo os veteranos ter também uma suavização do mesmo
desagravamento. De entre os que obtiveram, em qualquer altura ou local, um diploma de desmobilização,
os que foram licenciados das unidades dos comitatenses por causa da idade ou de problemas de saúde,
gozarão, sobre o conjunto da sua base contributiva, do desagravamento de dois capita, o dele e o da sua
mulher; e os ripenses possuirão o mesmo privilégio sobre o conjunto das suas quotas, se puderem
demonstrar que se viram reformados por ferimentos sofridos em combate; assim, que desfrutem apenas da
exoneração do seu próprio caput se cessarem a sua actividade entre os 15 e os 20 anos de serviço; pois que
cabe que o ripensis seja dispensado além do caput da sua esposa, se abandonou o serviço ao cumprir os
seus 24 anos. Afixado em Antioquía, no 15º dia antes das calendas de Julho, sob o consulado de Paulinus e
de Iulianus».
Comitatenses e limitanei
A distinção entre legiões, coortes e alas auxiliares não desapareceu, mas alguns destes
corpos militares receberam, doravante, o título de comitatenses, enquanto outros
foram qualificados de ripenses ou riparienses. Além disso, as vexillationes legionárias
podem haver sido promovidas a comitatenses, embora as suas legiões de origem não
acediam a tal estatuto privilegiado. Mais tarde, a Notitia Dignitatum identificou estes
destacamentos pelo número das suas unidades, eventualmente completado pelo seu
cognome e local original de guarnição. Quanto aos alares e cohortales, não aparecem
mais mencionados na legislação posterior: viram-se, por fim, assimilados aos ripenses,
sob a designação de cunei, que eram contingentes de cavalaria (lembre-se que o termo
cuneus significa igualmente uma formação de combate, objecto de estudo por parte de
S. Janniard.
748
Provavelmente no seguimento desta nova classificação é que os soldados de todas
essas unidades passaram a chamar-se limitanei, o que se atesta desde o ano 363 (Codex
Theodosianus, XII, 1, 56). Mas decerto que não foi ao desguarnecer os efectivos
militares estacionados junto das fronteiras que Constantino fundou o exército
comitatensis, como Zósimo; pelo contrário, determinados contingentes que
participaram nas campanhas de Constantino acabaram por ver o seu estatuto
intermédio alinhado no dos ripenses da lei de 325: J.-M. Carrié sugeriu que isto talvez
tenha acontecido aos cunei. Ulteriormente, integraram-se unidades limitaneae nos
comitatenses, mas receberam o título de pseudo-comitatenses.
Com as disposições legais a reforçarem progressivamente a posição privilegiada dos
comitatenses, os estudiosos modernos concluíram frequentemente que se teria
verificado uma inelutável deterioração do valor militar dos ripenses que, sob o nome de
limitanei, se converteriam numa espécie de «milícia campesina», tanto mais que os
critérios aplicados para os selecionar seriam menos exigentes. Em caso de agressões
externas, as regiões fronteiriças do Império ver-se-iam, assim, sacrificadas na falta de
uma defesa eficaz, além do tempo que os comitatenses acantonados, na sua maior
parte, nas cidades do interior do território imperial, demorariam a interceptar ou
repelir as forças invasoras. No entanto, os que advogaram esta teoria não entenderam a
palavra limes no sentido correcto, isto é, de província fronteiriça. Os ripenses (ou
riparienses), e depois os limitanei, definiam-se antes de mais como soldados às ordens
de duces regionais e não enquanto «camponeses-soldados», como amiúde se supôs,
sendo confundidos por vezes com os laeti. Estas tropas agrupavam unidades auxiliares
(alas e coortes), bem como as antigas legiões e representavam 2/3 dos efectivos totais
no século IV d. C. Embora pudessem estar em guarnições afastadas das fronteiras,
continuavam a residir em acampamentos.
As nomeações dos comandantes das unidades limitanei dependiam dos prefeitos do
pretório e dos duces, antes de serem apontadas por escrito pelo questor do palácio,
como se assinala nos papiros de Abinnaeus, candidato a uma prefeitura de ala em
Dyonisias, no Egipto, durante o reinado de Constâncio II (P. Abbin. 1). Com efeito, sob
a égide de Constantino, provavelmente antes de 329, o questor do princeps, magistrado
que representava o imperador no Senado no Alto-Império, transformou-se num
verdadeiro alto funcionário clarissimo, com o título de quaestor sacri palatii. Porta-voz
do imperador no conselho, ele redigia os discursos e as cartas do primeiro, preparava os
textos legais (de que conservava cópias), respondia às súplicas dirigidas ao soberano e,
pelo menos no Oriente, dispunha do laterculum minus, ou seja, o registo dos prefeitos
das alas e dos tribunos das coortes auxiliares aboletadas nas fronteiras. Contudo, estes
oficiais podiam transitar dos limitanei para os comitatenses.
Relativamente aos comitatenses, os seus efectivos ultrapassavam, de longe, os dos
comitatus anteriores, com os quais não se devem confundir. Sob este ponto de vista,
era principalmente o exército qualificado de «palatino» que constituía um
prolongamento dos comitatus tetrárquicos. J.-M. Carrié, por seu turno, viu nos
comitatenses mais pontos de contacto com os exércitos clientelares do fim da
República, cumulados de favores pelos imperatores, que se defrontaram no decurso
das guerras civis. Tais soldados também gozaram de vantagens em matéria de donativa,
da anona, de equipamento e de remonta de cavalos. A seguir da vitória de Constantino
sobre Licínio, as tropas comitatenses passaram a ficar sob o comando de dois magistri
militiae nomeados pelo imperador: um magister peditum, para a infantaria, e um
magister equitum para a cavalaria, subordinado ao primeiro.
As diferenças entre os limitanei e os comitatenses radicavam, pois, mais no seu
respectivo comando do que na sua implantação geográfica. Esta reforma teve lugar
possivelmente após a derrota de Licínio em 324, no contexto da incorporação maciça
de recrutas bárbaros, alguns dos quais se amotinaram. Os titulares dos postos de
comando eram, originariamente, talvez do ordo equestre. Mas as suas funções
permitiam-lhes, a seguir, pertencer ao Senado alargado, concebido por Constantino.
Este, com efeito, foi o criador de uma nova aristocracia imperial, saída da fusão das
duas ordens superiores romanas.
749
Desde a Tetrarquia, a multiplicação das províncias e o estabelecimento de novas
estruturas administrativas obrigaram a um claro aumento do pessoal, tanto para cargos
subalternos como para as mais altas funções públicas. Até ao reinado de Constantino, a
maior parte das últimas continuaram a ser exercidas por cavaleiros romanos, numa
espécie de continuidade do movimento que Galieno encetara. Porém, tornou-se cada
vez mais evidente uma contradição na alta sociedade romana, entre uma ordem
senatorial que preservava as suas riquezas fundiárias e uma eminente posição social, ao
mesmo tempo que se viu quase totalmente privada de responsabilidades políticas, e
uma ordem equestre que detinha o essencial do poder, pelo menos no caso dos
cavaleiros procedentes do exército, mas cujos membros que passavam a ser senadores
se encontravam, de imediato, excluídos do governo do Império. No entanto, a
estabilização das fronteiras do Império levou a que Constatino conseguisse resolver
esta situação paradoxal: verifica-se, a partir do seu reinado, uma inversão da relação
numérica entre cavaleiros romanos civis e os que haviam saído do exército, um
fenómeno contrário à tendência que se desenvolvera desde o principado de Galieno.
Até aos primeiros anos do século IV, os membros da classe equestre que ascendessem a
prefeitos do pretório provinham usualmente da categoria dos «perfeitíssimos»,
podendo tornar-se «claríssimos» se viessem a tornar-se cônsules. Ora, parece que
Maxêncio terá designado um senador para a prefeitura, Rufus Volusianus, que foi
enviado justamente para combater o usurpador Domício Alexandre, no Norte de África,
em 310. Desde 312, ou talvez somente desde 314, Constantino nomeou apenas
«claríssimos» para tal cargo, a tal ponto que caiu em desuso a categoria de
«eminentíssimo». O mesmo aconteceu com os prefeitos da anona e dos vigiles, cujos
derradeiros titulares equestres conhecidos se observam em fontes datando dos anos
312 e 314, ao passo que os primeiros titulares «claríssimos» se atestam em 328 e 330. O
mesmo processo afectou a governação das províncias: os últimos vicarii equestres que
se captam na documentação remontam a 325, enquanto os derradeiros praesides
equestres terão desaparecido um pouco antes. Foram geralmente substituídos por
«claríssimos» portadores do título de consularis (apesar de o epíteto praeses se haver
mantido ainda por algum tempo) que, todavia, não tinham precedência sobre os
procônsules.
Quanto aos magistri militiae, dispunham de assento no consistório e no Senado, entre
os consulares com o estatuto de patrício e, depois, com o título de illustris a partir de
312. Com a extinção das famílias aristocráticas, o patriciado converteu-se numa
dignidade transitória, conferindo um prestígio excepcional a senadores que obtivessem
precedência sobre todos os dignitários.
Indubitavelmente a partir de 325, Constantino, que desejava dotar a sua nova capital
de um Senado, aumentou consideravelmente o número de senadores, que subiu de 600
para 2 000. Foi então necessário acolher no Senado não apenas cavaleiros romanos,
mas também a elite dos curiais. Actualmente, os historiadores continuam a discutir
qual terá sido o grau de rapidez desta absorção da ordem equestre pela ordem
senatorial, já que, aparentemente, a primeira subsistiu nas províncias geridas por
governadores pertencentes à categoria «perfeitíssima», como aconteceu no Norte de
África, mais especificamente na Mauritânia Sitifiana e na Tripolitânia, onde o título de
«perfeitíssimo», ostentado por um tal Flavius Lucretius Florentinus Rusticus (AE,
1963, 144), ainda se encontra, na transição do século IV para o V.
Mas o culminar deste processo não oferece dúvidas: o título de «perfeitíssimo»,
também empregue por alguns chefes militares, só foi concedido, a título provisório, a
curiais que atingissem o tpo das suas carreiras municipais e que, ao cumprirem todas as
suas obrigações para com as suas cidades, ganhavam o epíteto de honorati. Quanto ao
título de vir egregius, não era mais apenas atribuído aos detentores de cargos públicos
pertencentes à ordem equestre, mas igualmente aos mais ricos notáveis municipais. Os
que não haviam sido admitidos no Senado por Constantino continuaram, então, a
utilizar o título até à sua morte; o mesmo jamais voltou a ser conferido pelo imperador,
embora não tenha constituído objecto de uma supressão formal. Encontra-se a última
referência à ordem equestre em 326.
750
Esta evolução manifestou, simultaneamente, o retorno dos senadores à direcção dos
assuntos do Império e o desaparecimento da distinção tradicional entre a carreira
equestre e a carreira senatorial (que remontava ao começo do Principado). Ela
confirmou também a manutenção da separação entre os poderes civis e os militares nas
províncias, iniciada através das reformas introduzidas por Galieno, visto que os
limitanei acantonados nas províncias permaneceram sob a chefia de duces. Em certas
dioceses, um comes podia receber a tarefa de supervisionar a actuação de vários duces.
Estando às ordens dos «senhores das milícias», atribuiu-se igualmente aos comites o
comando das tropas comitatenses nos principais centros políticos, administrativos ou
económicos de uma diocese.
Efectivamente, Constantino fez do título de comes uma dignidade, que geralmente se
verte por «conde», que não correspondia a uma função específica. Este título era
atribuído a todos os que beneficiassem do privilégio de contactar diariamente com a
pessoa do imperador e assim venerar a púrpura. Entre 325 e 330, diferenciavam-se três
categorias hierárquicas de «condes»: na primeira, estavam aqueles que assistiam ao
conselho imperial, ou seja, os condes do consistório e os altos funcionários palatinos,
que passaram a exibir tal título a partir de 320. Assim, existia um comes stabuli, que
superintendia a distribuição de montadas pelos cavaleiros.
No que respeita ao papel desempenhado pelos comites nas dioceses, pode-se pegar no
exemplo do «conde» de África, que residia em Cartago mas cujas competências
também se estendiam a Bizacena, à Numídia e à Mauritânia Sitifiana, enquanto os
«duques» comandavam os limitanei das guarnições da Mauritânia Cesareia e da
Tripolitânia. Como acontecia na Europa, os bárbaros tinham a possibilidade de se
verem promovidos a «senhores das milícias» desde o reinado de Constâncio II,
havendo mauri designados «condes» de África, à semelhança do príncipe Gildo.
Na realidade, a presença dos comitatenses nas guarnições urbanae não era apenas
motivada por questões de natureza política como o sugeriu Zósimo (História Nova, II,
34), que acusou Constantino de arruinar desta maneira o Império e de corromper os
soldados. A instalação de tropas nas cidades apresentava também o interesse de
facilitar o seu aprovisionamento, ao aproximá-las dos locais mais importantes de
produção. Além disso, no Oriente designadamente, esta prática era moeda corrente
desde o Alto Império. Investigações recentes tentaram situar tais implantações
militares de forma mais precisa.
No século IV, como antes, o dispositivo militar diferia muito de uma região para outra,
mas determinadas regiões fronteiriças tinham sido demasiado afectadas para
conseguirem manter tropas com efectivos excessivamente grandes. A partir de então,
ao basear-se no facto de os comitatenses serem demasiado numerosos para ficarem
concentrados num só sítio, J.-M. Carrié defendeu a ideia que o alojamento e o
abastecimento das tropas terão favorecido a emergência de futuras grandes metrópoles
como Londres, Paris, Colónia, Genebra, Milão, Tessalónica e o Cairo. Mas esta
categoria de soldados também podia participar nas operações bélicas junto às
fronteiras. Seja como for, a defesa das cidades tornou-se verdadeiramente uma
prioridade durante o século IV, no conjunto do mundo romano: confrontado com
guerras habitualmente defensivas, o Império procurou, acima de tudo, proteger o seu
território das agressões externas e das revoltas intestinas.
Nesta conjuntura, a cidade, centro de acumulação de riquezas e ponto de apoio militar,
passou a constituir um significativo elemento estratégico. A guerra, que praticamente
desaparecera do horizonte quotidiano dos citadinos do século II, transformou-se então
no cerne das suas preocupações. O desenvolvimento atrás constatado da cavalaria e a
crescente importância da poliocértica prefiguravam já certas formas características da
arte da guerra dos tempos medievais.
751
As redefinições hierárquicas entre os diferentes corpos de tropas (formalizadas por
Constantino) e as novas modalidades de remuneração dos militares não puseram termo
à hierarquia de graus que havia entre os simples soldados e os oficiais. Mas, daí em
diante, o posto era indicado pelo número de anonas a que o mesmo dava direito e não
mais pelos múltiplos do montante do soldo de base. No entanto, na documentação
tardia, aparecem novos postos cujo significado nem sempre é facilmente discernível:
vejam-se os casos de circitor ou do biarchus, de que a mais antiga atestação remonta a
327. Ao que se julga, eles deviam estar encarregados do aprovisionamento, pelo que
tinham competências numa área fundamental da administração militar. Ao
socorrermo-nos do teor de várias fontes epigráficas (ILS, 2796, 2797, 2798, 2799,
2800, 2806, 9209…) e papirológicas (P. Abinn, 1 e 42), bem como do testemunho de
São Jerónimo (Contra João de Jerusalém, 19), conseguimos reconstituir, grosso modo,
a estrutura hierárquica:
-Tiro (jovem recruta: uma anona);
- Pes (soldado de infantaria: uma anona);
- Eques (soldado de cavalaria: uma anona);
- Semissalis (anona e meia);
- Circitor (duas anonas);
- Biarchus (duas anonas);
- Draconarius (duas anonas).
No escalão imediatamente acima, S. Janniard situou no âmbito das reformas
constantinianas a instituição oficial dos graus de centenarius e de ducenarius, até essa
altura empregues de maneira informal: eles terão substituído os de centurião e de
ordinarius (ou ordinatus) nos novos contingentes militares criados pelo imperador.
Mas os dois últimos postos mantiveram-se em uso no resto do exército. À semelhança
do centurionato, os novos graus também foram hierarquizados:
Centenarius (duas anonas e meia);
Centenarius protector;
Ducenarius (três anonas e meia);
Senator (quatro anonas);
Primicerius (incumbido de verificar as listas dos efectivos das unidades; cinco
anonas).
Quanto aos oficiais superiores, o posto de prefeito de ala e de coorte, ainda atestado
sob Constâncio II, acabou por desaparecer, vendo-se substituído pelo de tribuno.
Porém, nos papiros de Abinnaeus, estes dois graus parecem confundir-se.
As grandes invasões
752
Depois de um período de tranquilidade relativa, entre a Tetrarquia e o reinado de
Juliano-o-Apóstata (360-363), a conjuntura militar deteriorou-se novamente nas
fronteiras romanas desde meados do século IV. De facto, as incursões bárbaras já não
tinham como objectivo somente a pilhagem: certas populações exteriores aspiravam a
fixar-se no interior do Império; procuravam os recursos que lhes faltavam mas,
também, uma maior segurança, na medida em que se sentiam ameaçadas pela chegada
de novos povos aos seus próprios territórios. Isto sucedeu, em especial, com os Godos,
que tentaram escapar à pressão exercida pelos Hunos, que apareceram entre o Don e o
Danúbio por volta de 360.
No entanto, à semelhança do que havia ocorrido no século precedente, o poder imperial
terá avaliado mal a gravidade das diferentes ameaças com que se viu confrontado.
Quase sempre desejosos de seguirem o modelo de Alexandre-o-Grande, os imperadores
viram-se, muitas vezes, incitados a privilegiar a frente persa, quando, na realidade, os
maiores perigos se encontravam frequentemente noutros palcos geográficos: assim, o
exército com 65 000 homens reunido por Juliano-o-Apóstata contra os Sassânidas, em
362, representou possivelmente o mais significativo dos conjuntos militares
mobilizados na Antiguidade Tardia. Tais forças compreendiam tanto comitatenses
como limitanei, o que parece provar que as missões atribuídas a estas duas categorias
de tropas não apresentariam ainda diferenças de vulto entre si.
A derrota e a morte de Juliano em 363, seguidas pelo reinado muito efémero de
Jovieno, compeliram os dois imperadores subsequentes, Valentiniano I e o seu irmão
Valente (Valens), a evacuar a Mesopotâmia. Em Naissus (Nisch), no ano de 364, eles
partilharam o seu exército entre as partes ocidentais e orientais do Império,
respectivamente sob a liderança de Valentiniano e Valente (Amiano Marcelino,
Histórias, XXVI, 5, 3). C. Zuckerman, a este respeito, sublinhou que nunca mais se
reuniriam as tropas repartidas pelo Ocidente e pelo Oriente, afirmando ainda que foi
nesta altura que nasceu do exército bizantino.
Enquanto Valentiniano I e, depois, o seu filho Graciano (a seguir à morte do primeiro
em 375), combateram os Alamanos no Reno e os Sármatas no Danúbio, Valente, por
seu lado, achava-se sobretudo absorvido pelos preparativos de uma nova campanha
contra os Persas. Eis então que os Godos, cujos «reinos» haviam sido devastados pelas
investidas dos Hunos, lhe pediram asilo. Em 376, celebrou-se um acordo que parecia
convir a ambas as partes, já que os Godos receberam a autorização para se instalarem,
na qualidade de foederati, na Trácia, em troca do fornecimento de contingentes
militares que Valente contava utilizar contra os Persas.
Mas as malversações perpetradas pelo comes da Trácia, Lupicinius (que ironicamente
estava encarregado de aplicar o tratado), conduziram a um conflito armado entre
Godos e Romanos no fim de 377. Valente cometeu o erro de enfrentar o inimigo sem
esperar pelos reforços enviados do Ocidente por Graciano. A 9 de Agosto de 378, perto
de Andrinopla, o exército do Oriente, que compreendia cerca de 7 000 infantes e 3 000
cavaleiros, foi esmagado pelos Godos, que provavelmente contariam com 10 000
homens de infantaria e 5 000 de cavalaria (para uma população total de mais de 100
000 indivíduos). As baixas sofridas pelos Romanos devem ter atingido 2/3 dos
efectivos e o próprio comando saiu desta batalha particularmente enfrequecido, uma
vez que o próprio Valente pereceu, bem como 35 tribunos: Amiano Marcelino
comparou a derrota de Andrinopla à de Canas, contra Aníbal, em 216 a. C. (Histórias,
XXXI, 13, 14, 19). Consequentemente, o recurso aos bárbaros tornou-se imprescindível
para se refazer as forças imperiais dizimadas.
A partir deste momento histórico, os Godos converteram-se num elemento político-
militar da maior relevância para as duas partes do Império romano. Os historiadores
designaram com o nome de Visigodos todos os que então ficaram estabelecidos no
Império, essencialmente nas províncias danubianas, para assim os distinguir dos
Ostrogodos, que estavam sob a dominação dos Hunos.
Em 379, Graciano confiou o Oriente a Teodósio, filho de um antigo oficial de
Valentiniano I, que servira na Britânia e em Africa, antes de ser executado. O novo
imperador tentou, em primeiro lugar, travar pela força a invasão gótica. Mas as pesadas
753
baixas registadas em Andrinopla obrigaram-no a recrutar bárbaros. Alguns êxitos
bélicos levaram à conclusão de um tratado, em 3 de Outubro de 382. Através deste
convénio, os Godos foram autorizados a a instalar-se na Panónia, na Mésia e na Trácia,
assumindo o compromisso de, em contrapartida, facultarem contingentes militares,
embora preservando estes as suas tradicionais estruturas tribais: Os soldados godos
passaram, então, a gozar de subsídios e víveres do imperador, mas continuaram sob a
liderança do seu próprio chefe. Anteriormente, este estatuto de foederatus já fora
concedido, mas jamais para uma população tão numerosa e dotada de uma identidade
cultural e religiosa tão forte. Na sua maioria, os godos tinham-se convertido ao
arianismo, e um dos seus bispos, Ulfila, ficou para a posteridade como o primeiro
tradutor da Bíblia em língua gótica.
Igualmente pela primeira vez, estes foederati estabeleceram-se no núcleo das
províncias romanas e não na periferia das mesmas. Segundo P. Richardot, os bárbaros
terão formado cerca de metade dos efectivos do exército romano desde o último quartel
do século IV, a tal ponto que os vocábulos «soldados», «bárbaros» e «Godos» se
tornaram, amiúde, em sinónimos. Efectivamente, estes «federados» godos viriam a
constituir um poderoso fermento de agitação no Império.
Teodósio serviu-se dos Godos para lutar contra os usurpadores que eliminaram a
dinastia Valentiniana no Ocidente. A seguir à morte de Graciano, aniquilado pelas suas
tropas em Lugdunum (383), Teodósio veio em auxílio de Valentiniano II, ameaçado
pelo usurpador Máximo, que foi derrotado em Poteouio (actual Ptuj) e depois
executado em Agosto de 388. No entanto, quatro anos mais tarde, Valentiniano II
acabou assassinado em Viena, e o seu magister militum, o franco Arbogasto, mandou
proclamar o retórico Eugénio com o imperador. Teodósio decidiu intervir novamente,
logrando obter uma vitória decisiva sobre os seus adversários no Riacho Frio, entre
Émona (Ljubljana) e Aquileia, no dia 6 de Setembro de 394. Ao basearmo-nos nos
cálculos de C. Zuckerman, nesta campanha terão sucumbido uns 10 000 foederati
godos.
Certos contemporâneos até tentaram persuadir o vencedor a dimuir desta forma a
presença dos Godos no Império (Orósio, Contra os Pagãos, VII, 35, 19), expôndo-os
deliberadamente na primeira linha de combate. Mas os últimos não eram tolos e, após
as duas primeiras revoltas em 387-388, as relações entre o poder imperial e os
foederati não tardaram a deteriorar-se logo a seguir ao falecimento de Teodósio I em
Milão, em 17 de Janeiro de 395. Com o seu deaparecimento, selou-se a cisão definitiva
entre as duas partes do Império romano, que haviam estado temporariamente reunidas
na refrega livrada no Riacho Frio. Neste caso, pode-se falar de uma separação bem real,
ao contrário do período da Tetrarquia, em que se estabelecera uma repartição das
tarefas entre os Augustos, mantendo-se os Césares solidários num império indiviso.
Os dois filhos de Teodósio, os novos e jovens imperadores, Honório no Ocidente (com
10 anos de idade), e Arcádio no Oriente (com 17 anos) rapidamente entraram em
conflito um contra o outro, impelidos pelos seus respectivos dignitários e séquitos. As
questões relacionadas com as fronteiras representaram, de facto, um pomo de discórdia
recorrente entre os dois impérios a partir de 395. Este problema fazia-se sentir com
particular acuidade no Illyricum: os Romanos chamavam assim ao conjunto composto
pelas dioceses da Panónia, da Dácia e da Macedónia (ou seja, a maior parte das
províncias danubianas e balcânicas) que pertencia à prefeitura do pretório, de Itália,
África e do Illyricum, desde as reformas de Constantino. Só a diocese da Trácia tinha
ficado definitivamente ligada à prefeitura do pretório do Oriente, no momento da
fundação de Constantinopla.
Ora era no Illyricum que se situava a fronteira linguística entre o grego e o latim, mais
precisamente entre as dioceses da Macedónia e da Dácia. Em alturas de urgência
militar, as dioceses da Dácia e da Macedónia chegaram a ser atribuídas ao imperador
que reinava em Constantinopla. Assim, Teodósio resolvera aumentar o número dos
magistri das milícias, a fim de adaptar o dispositivo bélico à necessidade de combater
em várias frentes e à crescente regionalização dos comitatenses, já induzida pela
754
repartição das tropas entre Valentiniano e Valente, na impossibilidade de as concentrar
todas num mesmo local.
Na parte oriental do Império, houve sempre um magister peditum e um magister
equitum em Constantinopla, ambos qualificados como praesentales, visto que tinham
assento no consistório e desempenhavam o papel de chefes de estado-maior do
imperador. Mas, doravante, o Oriente, a Trácia e o Illyricum viram-se dotados de
tropas comitatenses, sob as ordens de um magister equitum que, no século V, adquiriu
o título de magister militum. O controlo do Illyricum e do seu exército tornou-se então
numa fonte de constantes conflitos entre os impérios do Oriente e do Ocidente.
No Ocidente, com a morte de Teodósio, na prática o poder era exercido por Estilicão,
de origem vândala, que ostentava o título honorífico de magister utriusque militiae,
isto é, «mestre das duas milícias». Os magistri militiae nunca excederam o número de
três, a Gália sendo atribuída por Estilicão a um magister equitum, para além de dois
«mestres de milícias» praesentales. Exceptuando Estilicão, a maioria destes magistri
militiae era de origem franca. Apioando-se na presença, em Itália, das tropas orientais
que Teodósio trouxera para pelejar no Riacho Frio, Estilicão recusou-se a ceder as
dioceses da Dácia e da Macedónia à pars orientalis, reclamadas por Rufino, prefeito do
pretório do Oriente. Foi nesta conjuntura que eclodiu uma nova rebelião dos foederati
godos encabeçada por Alarico, rei dos mesmos desde 394. Os actos sediciosos
devastaram a Trácia, chegando a ameaçar directamente Constantinopla.
Estilicão tentou reprimir a insurreição pela força das armas na Tessália, no Verão de
395, mas a sua iniciativa pouco durou, já que Arcádio lhe exigiu que regressasse com as
tropas orientais que ainda se encontravam sob o seu mando. Estes efectivos passaram a
ficar às ordens do godo Gainas, entretanto promovido a magister militum: isto fez com
que se reconhecesse a soberania de Arcádio sobre as dioceses em disputa. Alarico pôde
então invadir a Grécia, saqueando Atenas, e depois prosseguiu com as depredações no
Peloponeso e no Épiro.
Porém, em 397, Estilicão agiu de novo contra os foederati Godos, desta feita no mar,
talvez alimentando a expectativa de recuperar as dioceses perdidas, mas em vão.
Depois do assassinato de Rufino a mando de Gainas, o novo prefeito do pretório do
Oriente, Eutrópio, preferiu negociar pessoalmente com Alarico, nomeando-o magister
militum per Illyricum. Ao tempo, tornou-se comum que um bárbaro lograsse aceder a
estas funções, à semelhança dos exemplos de Estilicão e de Gainas. No entanto, os
indivíduos indigitados correspondiam frequentemente a germanos perfeitamente
integrados na aristocracia romana (repare-se que Honório se casou com a filha de
Estilicão). Mas, pela primeira vez, um rei foederatus viu-se investido do comando de
tropas comitatenses, actuando na charneira entre os dois impérios.
Esta «germanização» do alto comando militar suscitou, todavia, reticências e oposições
nos meios dirigentes. Elas manifestaram-se incontestavelmente em Constantinopla,
por meio da eliminação de Gainas e do massacre dos seus acólitos em 400. Ao inteirar-
se desta notícia, Alarico resolveu afastar-se, rumando a Itália, em 401, na esperança de
aí negociar com Estilicão boas condições para se instalar. Na altura em que Honório
abandonou Milão, demasiado exposto aos invasores, por Ravena, onde estaria
protegido pelos pântanos do delta do Pó, Estilicão começou por repelir os Visigodos em
Verona e em Pollentia em 402, forçando-os a seguir para leste. Não obstante, a seguir a
estas operações militares, Estilicão entabulou conversações com Alarico, imaginando,
certamente, que poderia utilizá-lo contra Arcádio, confirmando-o no seu posto de
magister militum no Illyricum, em 404 ou 405. Celebrou-se então um acordo que
previa, entre outras coisas, a promessa de um pagamento de 4 000 libras de ouro ao
chefe dos foederati. O certo é que a tentação de recorrer aos bárbaros para os «ajustes
de contas» entre as duas cortes imperiais, acompanhada por uma nova vaga de
movimentos migratórios, acabou por se revelar fatal para o Ocidente romano.
755
O desaparecimento progressivo do exército imperial no Ocidente
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militaris, escrito por Vegécio, advoga um retorno às tradições e ao modelo de uma
antiqua legio, que actualmente, os especialistas ainda se esforçam por identificar; o
segundo, anónimo, sugere o desenvolvimento do recurso às máquinas de guerra –
conhecido como De rebus bellicis, o texto foi possivelmente composto antes da derrota
de Andrinopla.
Vegécio (Epitoma rei militaris, II, 3) deplora, em particular, a mediocridade dos
«gabinetes» militares do seu tempo, pela sua incapacidade em organizar, em boa e
devida ordem, as listas dos efectivos das legiões, ameaçando o nível desejável de
operacionalidade das forças armadas:
«Não se teve o cuidado de meter novos soldados no lugar daqueles que se retiraram, já aposentados,
uma vez cumprido o seu tempo de serviço; mostrou-se ainda negligência na desmobilização de homens por
causa de enfermidades ou de doença. Tudo isto provocou um vazio tão grande nas tropas que, se não
houver atenção em recrutá-las anualmente e até mensalmente, o exército mais numeroso depressa ficará
exaurido».
Zósimo compartilhou a opinião de Vegécio (História Nova, IV, 30-31), mas ele não era,
em absoluto, mais favorável a Teodósio que a Constantino. J.-M. Carrié defendeu que,
na altura da redacção da Notitia Dignitatum, se terá registado uma diminuição dos
efectivos militares no Ocidente, ao passo que C. Zuckerman calculou que as forças dos
dois impérios se elevariam a uns 500 000 soldados, destes cabendo para o Oriente
pouco mais de metade.
Para além dos pontos de vista amiúde polémicos expressos pelos autores antigos, salta
à vista a incapacidade do exército romano em rechaçar os perigos que ameaçavam o
Império no Ocidente ao longo de todo o século V. A invasão de 406, na Britânia, levou à
usurpação de Constantino III, que a seguir tentou apoderar-se da Gália com o apoio dos
Francos Ripuários. Quatro anos depois, o poder imperial, que havia abandonado a
Muralha de Adriano desde finais do século IV, evacuou definitivamente a ilha.
No mesmo ano de 410, Alarico tomou Roma em 24 de Agosto e capturou Gala Placídia,
a própria irmã de Honório, que veio a desposar Ataúlfo, cunhado do líder dos foederati
godos. Apesar de gerar considerável impacto, este episódio não teve consequências de
vulto: Alarico perdeu a vida em Cosenza, no fim de 410, após o naufrágio dos navios
que ele reunira em Rhegium (actual Regio di Calabria) com o objectivo de se lançar na
conquista das províncias africanas, na esperança de que as mesmas fornecessem o
aprovisionamento tão necessário para as suas tropas. Pouco depois, Honório nomeou
como magister utriusque militiae um ilírio, Flávio Constâncio, que, em 411, logrou
eliminar o usurpador Constantino III.
Ao pretender, em simultâneo, libertar a Itália da presença dos Visigodos e a Península
Ibérica da dos Vândalos, Alanos e Suevos, Honório selou o destino das Gálias e do
Norte de África. Segundo os termos de um acordo firmado em 412 com Ataúlfo, que
sucedera a Alarico, os Visigodos voltaram-se para o sul da Gália, de onde passaram à
Hispânia, onde defrontaram os outros bárbaros que a ocupavam.
Depois do assassinato de Ataúlfo, resultado do enorme descontentamento atiçado por
um período de fome em 415, o novo rei dos Visigodos, Vália, ao chegar à parte
meridional da península, também congeminou o plano de desembarcar em África. No
entanto, uma violenta tempestade dispersou a frota que ele havia organizado. Um novo
tratado, celebrado em 417, libertou Gala Placidia em troca do estabelecimento dos
Visigodos num terço das terras da Aquitânia, na qualidade de «federados»: doravante,
eles assegurariam a defesa do Sudoeste da Gália por conta do Império. Os foederati aí
constituiriam um verdadeiro reino, que foi aumentando incessantemente. Com efeito,
eles também souberam tirar partido os problemas que assolaram o Ocidente com a
morte de Honório, em 423.
O advento de Valentiniano III, jovem sobrinho de Honório e filho de Gala Placidia (que
entretanto voltou a casar, depressa, ficando viúva do magister militum Constâncio,
falecido em 421) foi vivamente contestado pelo primicério dos notários, João. A irmã do
imperador defunto viu-se então compelida a pedir auxílio ao imperador do Oriente,
Teodósio II, filho e sucessor de Arcádio. Quanto ao usurpador, ele enviou o tribuno
Flávio Aécio (Flavius Aetius) para obter reforços junto dos Hunos. Estes nómadas, que
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se encontravam na Panónia, mantinham boas relações com os impérios do Oriente e do
Ocidente, os quais tencionavam poder usá-los para manter os Godos em respeito.
Precedido pelos reforços orientais, Aécio, à cabeça de 60 000 Hunos, acabou por ficar
ao serviço de Valentiniano III, depois de receber o posto de «mestre das milícias» da
Gália, em sequência da eliminação do primicério João, em 424-425. No que respeita ao
comando militar supremo do Ocidente, ele estava nas mãos de Félix, magister
utriusque militiae.
Entretanto, os Vândalos, após cinco anos de lutas contra os Visigodos, foram
novamente obrigados a recuar, desta vez na mais meridional das províncias ibéricas, a
Bética (à qual deram, note-se, o seu nome tribal, originando o termo de Andaluzia).
Achando-se confinado a um território de escassos recursos, Genserico, rei dos Vândalos
desde 428, almejou encontrar, para lá das «Colunas de Hércules» (actual estreito de
Gibraltar), uma existência mais tranquila e próspera, que ajudasse a olvidar as
provações experimentadas pelo seu povo. De acordo com Procópio, autor de uma
História da guerra dos Vândalos, Genserico teria sido chamado ao Norte de África
pelo comes Bonifácio, então comandante-chefe do exército dessa região e que, havia
pouco, entrara em dissidência face ao poder central. Ele, que governava uma província
altamente estratégica, como dera um apoio decisivo a Gala Placídia e ao seu filho,
esperava, como recompensa, uma promoção a «mestre das milícias»; no entanto, ficou
amargamente decepcionado ao ver aquela que exercia uma autêntica regência do
Ocidente designar Aécio como magister equitum das Gálias em 425. Não admira, pois,
que Bonifácio se tenha recusado a obedecer à carta de chamamento que a imperatriz
lhe enviou em 427. Ao aperceber-se da atitude claramente sediciosa do «conde» de
África, Gala Placídia ordenou a um godo ao serviço do Império, Sigisvulto, à frente de
um contingente de tropas, que suprimisse Bonifácio.
Na realidade, bem vistas as coisas, os Vândalos não precisariam que lhes fosse
sugerido que rumassem para o «celeiro» de trigo do Império do Ocidente. Se tal tivesse
realmente acontecido, Bonifácio depressa tomaria consciência do seu erro, ao saber que
cerca de 80 000 Vândalos e Alanos haviam partido das «Colunas de Hércules» em
Maio de 429. Eles desembarcaram em solo africano com mulheres, crianças e velhos;
estimou-se que, no máximo, entre toda esta gente existiriam uns 15 000 guerreiros.
Não é tarefa fácil avaliar quantos efectivos teria o exército de África para os enfrentar,
mas provavelmente seriam numericamente superiores. Se nos escorarmos nos corpos
de tropas enumerados na Notitia Dignitatum, talvez houvesse perto de 30 000 homens
sob as insígnias romanas em África.
Nestas condições, como se pode explicar que a invasão dos Vândalos parece ter
representado apenas um simples «passeio militar» até Hipona, a qual o comes
Bonifácio converteu num reduto fortificado? Decerto que o dispositivo militar romano
se apoiava, em determinados sectores, num conjunto de paliçadas e fossos, à
semelhança do fossatum, acerca do qual a constituição de Honório, já referida (Codex
Theodosianus, VII, 15, 1), ainda recomendava a sua manutenção, no princípio do século
V. Mas o fossatum tinha sobretudo a aparência de uma rede viária munida de fortins e
torres de vigia, destinando-se a controlar os movimentos de populações nómadas ou
transumantes nos confins do deserto, e não para barrar o caminho a um invasor
proveniente do norte. Lembremos também que essas missões de vigilância levavam a
uma grande dispersão e a um elevado grau de mobilidade do exército romano, embora
não preparava os seus soldados para pelejarem contra forças aguerridas e endurecidas
por anos de conflitos num vasto palco geográfico, entre o Reno e o Mediterrâneo.
Vencido junto às muralhas de Hipona, Bonifácio retirou-se com o que restava dos seus
homens para o interior da cidade, onde suportou um assédio que se arrastou por onze
longos meses, entre Maio ou Junho de 430 e Agosto de 431, até que, por fim, os
Vândalos se apoderaram da localidade.
Numa situação tão perigosa como esta, a partida do comes de África para Ravena
mostra-nos a inconsequência de um governo imperial que se perdia nas intrigas
cortesãs. Galvanizado com as suas façanhas bélicas contra os Jutunges no Naricum e
na Récia, Aécio mandou assassinar Félix, em Maio de 430, e apossou-se do seu lugar à
758
cabeça das forças armadas romanas no Ocidente. Gala Placídia tentou então neutralizar
a crescente influência de Aécio, apoiando-se em Bonifácio (que, recorde-se, tempos
antes ela buscou eliminar), que o promoveu ao posto de magister utriusque militiae em
432. Desta vez, Gala Placídia agiu em sentido inverso, ao servir-se de Bonifácio para
combater Aécio, que entretanto se refugiou entre os Hunos. Os dois generais acabaram
por se defrontar no campo de batalha de Rimini, no Outono de 432, do qual Bonifácio
saiu mortalmente ferido. Assim, à frente de contingentes de Hunos, Aécio conseguiu
impor a sua reintegração a Gala Placídia, em 433. A partir daí, sem rivais à sua altura,
ele preocupu-se com o destino de África, que o comes Aspar havia abandonado, em
434, rumando a Constantinopla.
Por esta razão é que se concluiu, a 11 de Fevereiro de 435, a convenção de Hipona,
através da qual se concedeu aos Vândalos o estatuto de foederati no território da
Mauritânia Sitifiana e na Numídia, entre Calama e Sitifis (correspondente às hodiernas
cidades de Gelma e Setif). Por meio deste tratado, o poder imperial pensou ter salvado
o que considerava essencial: Cartago, a África Proconsular e a Bizacena, a metrópole e
as mais ricas terras cerealíferas de África. Mas não estava a contar com a avidez de
Genserico, animado por uma conquista tão fácil: quatro anos depois, lançou os seus
guerreiros ao assalto de Cartago, que foi tomada em 19 de Outubro de 439. Desta
maneira, privado das suas províncias mais férteis, o Império romano do Ocidente já se
encontrava condenado…
Quanto aos Hunos, foram empregues por Aécio na Gália, entre 425 e 439, para repelir
as investidas dos Visigodos, em Itália para robustecer as suas aspirações políticas.
Sempre com o objectivo de combater os Visigodos, Aécio estabeleceu os Alanos, na
qualidade de «federados» em redor de Orleães em 422, e os Burgúndios em Sapaudia
(entre Lyon e Genebra) em 443. Ressalve-se que outros burgúndios já haviam obtido tal
estatuto do magister militum Constâncio, na província da «Germânia Segunda», assim
como os Francos Ripuários na mesma e também na «Germânia Primeira» desde 428.
Aécio obtivera o auxílio de Rua, rei dos Hunos, ao ceder-lhe as províncias de Valéria,
Savia e a maior parte da «Panónia Segunda». Nos anos de 425-430, o reino huno já
representava uma potência temível, no qual uma aristocracia de cavaleiros nómadas
dominava os povos sedentários que os haviam precedido na diocese da Panónia
(Ostrogodos, Hérulos, Skiros…). Esta potência saiu ainda mais reforçada mediante os
contactos entabulados tanto com Aécio como com Teodósio II. Lembremos que a corte
de Constantinopla pagava, efectivamente, um tributo a Rua para assim o afastar da
Trácia. O sobrinho e sucessor do último, Átila, conseguiu receber a tripilicação do
montante do tributo em 447. Por aqui se vê que o império romano do Oriente sacrificou
o do Ocidente para garantir, assim, a sua segurança.
Ao pedir ajuda a Átila contra o seu irmão Valentiniano III, a princesa Honória ofereceu
ao soberano dos Hunos o pretexto que lhe faltava para se voltar para o Ocidente. Foi
em vão que o imperador lhe propôs o posto de «mestre das milícias». Na realidade, só
através de uma coligação de todos os demais foederati (incluindo os Visigodos),
reunida por Aécio, é que este logrou vencer Átila nos Campos Catalaunicos (entre as
actuais cidades de Troyes e Châlons, em França), em 20 de Julho de 451, apesar de
sofrer pesadas baixas. O «mestre das milícias» apresentou-se no campo de batalha com
uns 40 ou 50 000 homens, opondo-se às forças de Átila que teriam idênticos efectivos.
No entanto, a parte das tropas que ainda representava o exército regular romano, no
meio dos contingentes de «federados» reunidos por Aécio, era provavelmente
numericamente escassa. Assim, para conter e eliminar o perigo bárbaro nas Gálias, ao
poder imperial restou apenas a alternativa de pôr os foederati a combaterem uns
contra os outros.
Ainda que, por um lado, a morte de Átila tenha oferecido um certo alivio em 453, por
outro, o exército imperial do Ocidente veio a perder o seu último comandante de valor,
Aécio que, em 454, foi assassinado a mando de Valentiniano III. O imperador terá
querido desembaraçar-se da incómoda tutela de um «generalíssimo» que supôs não lhe
ser mais útil. Mas, pouco depois, mataram Valentiniano, talvez em jeito de represália:
este facto inquietou Genserico, que havia pouco obtivera a mão da filha do imperador
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defunto para o seu próprio filho. Ora, como a princesa se viu forçada a casar com o
novo imperador, Petrónio Máximo, o rei dos Vândalos decidiu saquear Roma em Junho
de 455, antes de se apossar das Baleares, da Córsega e da Sardenha.
Ocorreram então dois desaires, um em 460 e outro em 467, que demonstraram a
incapacidade das frotas romanas do Oriente e do Ocidente em anular a dominação dos
Vândalos no Mediterrâneo ocidental. Após a extinção da dinastia Teodosiana, os
imperadores do Ocidente passaram a ser designados como «mestres da milícia» pela
corte de Constantinopla e, até, pelos chefes foederati bárbaros: isto sucedeu com Avito,
antigo prefeito do pretório das Gálias, que contou com o apoio do rei visigodo
Teodorico II. A seguir o poder militar ficou nas mãos do novo «mestre das milícias»,
Ricímero, um suevo, que derrubou do trono o sucessor de Avito, Majorieno, que
ocupara o cargo de comes domesticarum. Com efeito, ele viu no último um indivíduo
insubmisso, já que havia tentado, com Egídio, «mestre das milícias» das Gálias,
rechaçar os Burgúndios, entre 458 e 460. Substituiu-o por Líbio Severo, com a morte
do qual Leão I, imperador do Oriente, conseguiu impor, entre 467 e 472, o seu
candidato, Antémio, que faleceu pouco depois de subir ao poder Olíbrio.
Mais tarde, o posto de «mestre das milícias» coube ao burgúndio Gondebaldo,
sobrinho do defunto, que, por sua vez, jogou como «fazedor de imperadores» ao
proclamar o comes domesticarum Glicero, que não gozou de reconhecimento em
Constantinopla. Entretanto, um parente de Leão I, Júlio Nepos, aclamado pelas tropas
da Dalmácia em 474, foi rapidamente contestado pelas de Itália, cujo comandante,
Oreste, alçou ao poder supremo o seu próprio filho, Rómulo, cognominado Augústulo
(475-476): muito jovem e desprovido de meios financeiros capazes de satisfazer as
exigências dos soldados que ainda lhe restavam, depressa se viu destronado pelo chefe
skiro Odoacro, em 23 de Agosto de 476, o qual preferiu negociar com o Senado romano
o título de rei em Itália, em lugar de proclamar um novo imperador fantoche no
Ocidente. Enviaram-se então as insígnias imperiais ao imperador do Oriente, Zenão I,
que se negou a aceitar tal facto, continuando a considerar Júlio Nepos como o único
soberano legítimo. Cumpre referir que ainda persistia um enclave romano na Gália,
entre o Loire e o Somme, sob o controlo de Siágrio, filho de Egídio, mas acabou
derrotado por Clóvis, na batalha de Soissons em 486. Quanto a Rómulo Augústulo,
usufruiu de dias tranquilos na villa de Lúculo, na baía de Nápoles.
Em muitos aspectos, tanto o início como o fim da história militar da Roma antiga foram
marcados por figuras de condottieri, etruscos nos séculos VII-VI antes da nossa era, e
germânicos no século V d. C. É muito complexo determinar a composição e os efectivos
das forças militares que os últimos comandaram: Ricímero dispunha, provavelmente,
de pouco mais de 6 000 homens para defender a península itálica. Majorieno parece ter
reunido maior número de soldados, mas em ambos os casos os foederati germânicos e
hunos eram largamente maioritários nas fileiras. Estes exércitos, verdade se diga, em
quase nada diferiram dos que surgiram com a decomposição do Império do Ocidente,
para defenderem os reinos bárbaros. Além disso, os seus chefes não desdenharam,
esporadicamente, algumas insígnias do comando romano, designadamente a couraça e
o paludamentum.
Actualmente, julga-se que um dos factores que mais concorreu para o desaparecimento
do exército romano no Ocidente radicou na falta de recursos que mais concorreu para o
desaparecimento do exército romano no Ocidente. A perda do Norte de África
significou, neste contexto, um golpe mortal. De acordo com C. Zuckerman, a única
tentativa de reconquista das ilhas do Mediterrâneo ocidental aos Vândalos, em 468,
custou indubitavelmente ao tesouro imperial mais de um ano de receitas.
Aparentemente, é um texto hagiográfico que testemunha da maneira mais vivaz e
eloquente o impasse financeiro em que mergulhou o Império: trata-se da Vida de São
Severino (20), de Eugípio, na qual se evoca a suspensão de um procedimento
administrativo essencial para o funcionamento do exército regular romano, o
pagamento do soldo, certamente na altura em que Rómulo Augústulo foi deposto por
Odoacro. Na narrativa, o autor alude a uma guarnição estacionada em Bataua (actual
Passau), no Noricum, que se encontra privada de soldos:
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«Nesta mesma época – ainda existia o Império romano – os soldados afectos à guarda da fronteira, num
grande número de cidades, eram remunerados a partir dos fundos públicos; quando terminou este hábito,
as unidades militares desapareceram ao mesmo tempo que a fronteira; só restava um corpo de tropas
aboletado em Bataua. Certos soldados desta unidade partiram rumo a Itália, a fim de obterem o último
soldo destinado aos seus camaradas; no entanto, durante a viagem, foram mortos pelos bárbaros, sem que
ninguém disto tivesse conhecimento».
O relato de Eugípio sugere que existiriam soldados que receberiam as suas pagas, de
acordo com as regras da administração imperial até à desaparição do Império no
Ocidente, embora o seu número fosse cada vez menor. Ao lermos o trecho acima citado,
ficamos com a impressão de que a missão levada a cabo por um punhado de militares
se revestiria de um carácter excepcional e que, usualmente, os soldados seriam
remunerados sem precisarem de se deslocar – como acontecia no Alto-Império – mas
torna-se difícil irmos para além de uma mera impressão, sem incorrermos no risco de
especular demasiado.
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Dourado, desempenhando, mais tarde, um papel determinante no dispositivo militar
bizantino.
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